Cantando Rodas, Contando Histórias - o Balanço Da Roseira
Cantando Rodas, Contando Histórias - o Balanço Da Roseira
Cantando Rodas, Contando Histórias - o Balanço Da Roseira
Salvador
2017
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Salvador
2017
3
FICHA CATALOGRÁFICA
Biblioteca Professor Edivaldo Machado Boaventura – CAMPUS I – UNEB
Contém referências.
Aprovada em:
Banca examinadora:
_____________________________________________
Profa. Dra. Márcia Rios da Silva (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
_____________________________________________
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (Avaliador externo)
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
_____________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Oliveira de Freitas (Avaliador interno)
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
5
AGRADECIMENTOS
Agradecer. Gostaria de ter minha veia poética aflorada nessa hora para fazer
jus às dádivas que recebi nesse percurso. Diz Guimarães Rosa que “o real não está
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. No
meio da travessia encontrei apoio e colaboração de muitos. Talvez se cantasse com
o Balanço da roseira, pudesse tirar uma roda para agradecer.
Ao meu bom Deus, Criador e Mantenedor da minha vida, a quem devo tudo o
que tenho, tudo o que sou e o que vier a ser.
Aos meus pais, que concederam a mim o que não tiveram em sua trajetória. A
eles faltou um pai, uma mãe. A mim nada faltou. Mas é também preciso agradecê-los
individualmente. À minha mãe, Edileuza, pelos ensinamentos, por sua força,
companheirismo e amizade, por me fazer acreditar em mim, por não me deixar
desanimar e ser o porto seguro dessa família. Ao meu pai, Tiago, por me fazer sorrir
e encarar a vida com mais leveza, por me trazer à Quixabeira e ali permanecer me
dando a certeza de que não importa onde eu vá, sempre poderei voltar e ele sempre
irá me buscar onde quer que eu esteja.
À minha família, sempre presente, meu irmão Marlos, minha cunhada
Orleângela, meus sobrinhos Caio e Graziela, minhas tias Nita e Deza (que sempre me
agradaram com um delicioso cuscuz e uma sopa incomparável), meus primos-irmãos
Éden, Eli, Juce e Leide, pois sempre me receberam em seus lares, onde sei que
encontrarei por toda a vida uma extensão da minha casa. De maneira especial,
agradeço ainda a Éden, pela sugestão do tema para a pesquisa, por me acompanhar
nas entrevistas e eventos e sempre me incentivar a ser melhor, e a Eli, pela linda arte
da capa, só você, com tanta sensibilidade, compreenderia a minha descrição e
transformaria isso em arte!
Minhas amadas amigas Elcione e Roberta, que tantas vezes secaram minhas
lágrimas, ouviram minhas lamúrias, me arrancaram de casa quando preciso para
respirar.
Aos amados Daniel e Alisson, pela recepção sempre festiva, pelas gentilezas
e carinho, pelos risos e abraços. Amo muito!
Aos professores e funcionários do PPGEL, por proporcionarem encontros
felizes e improváveis, pela acolhida e cuidado.
7
RESUMO
A presente dissertação tem como objeto de estudo a cultura popular, tomando por
base o grupo de rodas Balanço da Roseira, integrado por mulheres do município de
Quixabeira, região noroeste da Bahia que compõe o Território de Identidade da Bacia
do Jacuípe, a 300 km da capital, Salvador. Partindo do conceito de cultura popular, na
perspectiva de autores como Stuart Hall (2009) e Néstor García Canclini (2015) as
considerações se desdobram partindo da formação do grupo no intuito de tomar o
grupo Balanço da Roseira como fruto da cultura popular local. Detentoras de um
espaço e uma linguagem musical particular, as mulheres que participam do grupo
revelam no que cantam o resultado do conhecimento que buscam legitimar. Para
analisar a atuação do grupo, são observadas a estrutura das performances que
realizam, com base nos estudos de Paul Zumthor (2010) e Richard Schechner (2013).
É ainda empreendida uma análise das canções que compõem seu repertório, em que
constam canções aprendidas nas quebras comunitárias de licuri, e produções atuais
compostas para os eventos de que participam. Este é, portanto, um estudo
direcionado à compreensão do grupo de rodas Balanço da Roseira como
manifestação da cultura popular, reconhecida pela comunidade em que está inserida
e, uma contribuição na tessitura de uma história da tradição oral no município de
Quixabeira.
ABSTRACT
This research has as study object the group Balanço da roseira composed by women
of the Quixabeira county, Bahia northwest region and that composes the Territory of
Identity Jacuípe Basin, to 300 km from the capital, Salvador. Starting from the concept
of popular culture, from the perspective of authors as Stuart Hall (2009) e Néstor
García Canclini (2015) the considerations unfold to take the Balanço da roseira group
because of local popular culture. The women who participate in the Balanço da roseira
has been holders of a space and a particular musical language. They reveal in what
they sing the result of the knowledge that legitimizes them. To analyze the group
performance, the structure of the presentations is analyzed, based on the studies of
Paul Zumthor (2010) e Richard Schechner (2013). It is also undertaken an analysis of
the songs that compose their repertoire, which includes songs learned in the breaks of
licuri at community and current productions composed for the events that they
participate. This is, therefore, a study directed to the understanding of the group
Balanço da roseira as a manifestation of popular culture, recognized by the community
in which it is inserted and, perhaps, to contribute to the writing a history of the oral
tradition in the Quixabeira county.
SUMÁRIO
1 ENTRANDO NA RODA 10
2 ONDE BUSCO AS PEDRAS, ONDE CANTO AS RODAS: 30
FORMAÇÃO DO GRUPO BALANÇO DA ROSEIRA
2.1 DE MULHERES DA RODA AO BALANÇO DA ROSEIRA: O 36
POPULAR E SUA ENCENAÇÃO
2.2 À SOMBRA DA QUIXABEIRA SE QUEBRA O LICURI: FORJANDO 54
IDENTIDADES
2.3 BALANÇO DA ROSEIRA: O TODO E A PARTE 59
3 ENTRE O QUE SE CANTA E O QUE SE CONTA 62
3.1 NOS TEMPOS ANTIGOS: AS RODAS QUE SÃO LEMBRADAS 64
3.2 AS RODAS E O COTIDIANO DO BALANÇO DA ROSEIRA 80
4 “VAMOS CANTÁ RODA QUE É PRA NOSSO BEM” 94
4.1 ARRUMANDO A CANTORIA: DO ENSAIO À ENCENAÇÃO 100
4.2 NA CADÊNCIA DA VOZ, NA DANÇA CIRCULAR: A 104
PERFORMANCE DAS MULHERES QUE CANTAM RODA
5 SAINDO DA RODA 126
REFERÊNCIAS 129
12
1 ENTRANDO NA RODA
1 Quixabeira, município do interior baiano com pouco mais de 10.000 habitantes, de acordo com o
censo 2015 (IBGE), está situado na região noroeste do estado, a cerca de 300 km de Salvador, com
clima semiárido e vegetação característica da caatinga. O nome do município vem de um dos
espécimes vegetais de grande importância no sertão nordestino por suas múltiplas utilidades. É uma
árvore que tem propriedades medicinais, sua madeira é resistente e muito utilizada para a construção
de móveis; suas folhas servem de alimentação para animais e a terra à sua volta serve de adubo. A
sideroxylon obtusifolium, também conhecida como quixabeira ou quixaba, pode chegar a 15 metros de
altura, armada de espinhos, e produz um pequeno fruto negro adocicado.
13
Nesta pesquisa, tomo esse grupo como uma manifestação da cultura popular, uma
prática marcada por sua singularidade, resistindo à imposição de valores da cultura
hegemônica.
É importante ainda delimitar esse espaço como sendo também um espaço do
feminino da cultura local. O ajuntamento dessas mulheres na organização de um
grupo voltado para os cantos oriundos do universo da agricultura, os cantos de
trabalho, transformando-se em um grupo de manifestação da cultura local, institui um
movimento social que lhes permite aparecer. Tornam-se visíveis no espaço público e,
dessa maneira, lhes é permitido entrar no mundo social.
É através do grupo que podem também ser ouvidas, com um vocabulário
específico dentro da forma poética, apresentam o discurso por intermédio do qual se
revelam. Vale aqui ressaltar que os movimentos feministas, bem como a atuação de
mulheres no desenvolvimento de pesquisas, dentre outros aspectos, propiciaram
condições para que essas pautas fossem e sejam analisadas com base em novos
enfoques e percepções. Segundo Guacira Louro (1997, p. 21), falar de gênero e,
especificamente, do feminino, é tornar visível o que esteve ocultado, e para
compreendermos “o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade
importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se
construiu sobre os sexos”.
As relações entre os gêneros continuam, sem dúvida, objeto de atenção, e nos
estudos de gênero está o conceito de empoderamento. A palavra empoderamento,
tem origem no termo da língua inglesa empowerment e seu uso tem sido ampliado.
Através do seu prefixo, pode-se compreender a palavra empoderar como uma ação.
Contudo, no sentido que atualmente se propaga, o empoderamento significa a
transmutação de um sujeito em agente ativo, por intermédio de procedimentos que
irão se alternar de acordo com a conjuntura em que se atua e as circunstâncias em
que se inscreve. No campo do feminino, a noção de empoderamento exprime a
condição de mulheres que decidem sobre seu modo de vida, seja em espaço público,
seja em um contexto privado, bem como sua atuação nas tomadas de decisões acerca
das políticas públicas e quaisquer outros acontecimentos concernentes à sociedade
e que possam interferir direta ou indiretamente sobre seus interesses.
2 O licuri é o fruto da syagrus coronata, palmeira nativa do território brasileiro, podendo ser encontrada,
desde o sul de Pernambuco, nos estados de Alagoas e Sergipe, em toda a região central, oriental e sul
da Bahia, abrangendo ainda toda a região norte de Minas Gerais, caracterizando sua preferência por
regiões secas e áridas da Caatinga (NOBLICK, 1986). Considerada uma das mais importantes
palmeiras da região semiárida brasileira, seu fruto é uma “drupa com endoderme abundante, ovóide e
carnoso. Enquanto verde, possui o endosperma líquido que se torna sólido no processo de
amadurecimento. Quando maduro, tem coloração que varia do amarelo-claro ao alaranjado,
dependendo do estágio de maturação. Os frutos maduros têm polpa amarela, pegajosa e adocicada.
As sementes, quando secas, são de cor escuro e de tegumento duro que reveste a amêndoa rica em
óleo (cerca de 38%)” (DRUMMOND, 2007, p. 8).
15
de 1998, embora dele não haja qualquer registro público oficial, além dos vídeos e
fotos feitos pelas integrantes. Alguns desses registros estão disponibilizados nos
perfis que duas delas mantêm na rede social Facebook. Sobre a formação do Balanço
da roseira, as entrevistadas afirmam que na cidade existem várias pessoas, homens
e mulheres, que conhecem as canções outrora utilizadas como canto de trabalho nas
quebras de licuri, debulhas de milho, feijão etc. Nos festejos do município ou em
comemorações particulares, ao estarem reunidos aqueles que conheciam os cantos,
formavam ali a “roda”, sem organização prévia, e cantavam. Ao convidar as pessoas
que sabia que “cantavam rodas”, Edinalva sugeriu a formação do grupo para uma
apresentação no aniversário da cidade. Cerca de 20 pessoas aceitaram o convite e
se apresentaram como Mulheres da roda, mantendo esse nome até o ano de 2015.
Quando questionadas sobre o aprendizado das canções, as integrantes
afirmam ter como primeira lembrança o canto de trabalho durante as quebras de licuri.
Tal atividade, como tantas outras no campo, era acompanhada dos cantos de
trabalho, que abrandavam o esforço da atividade braçal, cadenciando o bater das
pedras. Em algumas ocasiões, a quebra de licuri em comunidade se tornava um
evento, conhecido por muitos como “roubar licuri” ou “licuri roubado”.
Em seu livro Música e ancestralidade na Quixabeira, Sandro Santana relata a
manifestação cultural conhecida como “boi roubado”3. Interessante é perceber que a
descrição do “boi roubado” feita por Sandro Santana em muito se assemelha à que as
mulheres do Balanço da roseira fazem do que chamam de “roubar licuri”: quando um
membro da comunidade estava com o trabalho por fazer, ou se encontrava enfermo
e tendo muito licuri para quebrar, a comunidade organizava, em segredo, um grupo
para realizar o trabalho em atraso. Na madrugada, o grupo arregimentado para auxiliar
o vizinho chegava soltando foguetes e entoando os cantos específicos para a ocasião.
Ao ouvir os fogos de artifício e o canto, o dono da casa saía para providenciar comida
para o mutirão. A quebra de licuri seguia acompanhada dos cantos de trabalho que
ditavam o ritmo da atividade naquela noite e, ao final, virava festa com rodas, sambas
e batuques. Assim, o ato de “roubar licuri” se configura tal qual o do “boi roubado”,
“uma forma de se solidarizar diante de um momento difícil com alegria e diversão”
(SANTANA, 2012, p. 59-60).
3A comunidade de Quixabeira descrita por Sandro Santana não é o município de Quixabeira, origem
do Balanço da roseira. O trabalho de Sandro Santana (2012) diz respeito à comunidade de Lagoa da
Camisa, situada entre os municípios de Feira de Santana e Valente/Ba.
16
4A Slow Food é uma associação internacional, sem fins lucrativos, fundada por Carlo Petrini em 1986,
com o objetivo de ser uma resposta aos efeitos padronizantes do fast-food. Disponível em:
<http://www.slowfoodbrasil.com/perguntas-frequentes#faq1>. Acesso em: 07 set. 2016.
17
festejos locais, em que todo aquele que soubesse “cantar roda” participava da
cantoria. Depois de um tempo, algumas delas começaram a se encontrar
regularmente em tais festejos. Passaram a ser conhecidas como Mulheres da roda,
por saberem cantar o que designam como rodas. Vez ou outra, reúnem-se para algum
evento específico.
O despertar do grupo para um maior engajamento nas atividades do município
se deu em 2001, com a iniciativa da Profa. Cláudia Santana, que à época trabalhava
no Centro Educacional de Quixabeira, e decidiu criar a Fundação de Apoio a
Empreendimentos Educacionais e Culturais de Quixabeira (FAEECQ), com o apoio
dos seus alunos. Orientados por um grupo de professores do Paraná, que se
encontravam no município realizando pesquisas5, organizaram a comissão, lavraram
ata e, a partir de então, buscaram apoio financeiro junto a entidades públicas e
particulares para a realização das ações programadas. Dentre essas ações, uma das
primeiras foi a apresentação de toda a variedade de manifestações da cultura popular
local, nas comemorações do dia do Folclore.
A despeito da FAEECQ tomar o dia do Folclore como ponto de partida para
suas ações, a professora Cláudia Santana, em entrevista concedida em 2016, afirma
que, na sua concepção, as culturas não são estáticas, elas se transformam. Para ela,
no entanto, essas transformações não querem dizer que uma determinada
manifestação cultural deve ser extinta para dar lugar a outra, mas que essas
manifestações podem ser negociadas, num constante ir e vir. A professora diz temer
a extinção das manifestações da cultura popular local pela supervalorização do que é
visto como “moderno”, “atual” e, consequentemente, pela negação de uma história,
uma “tradição”, reiterando que as tradições podem ser atualizadas, e aqui faço uso de
suas palavras: “porque elas não precisam acontecer como aconteciam antigamente,
aí a gente tá aprisionando a cultura a viver um tempo que não existe mais, ela pode
se modernizar, ela só não pode deixar de existir”.
A declaração da Profa. Cláudia Santana pode ser pensada a partir dos
questionamentos de Nestor Garcia Canclini (2015, p. 159) sobre cultura popular. Ao
afirmar que “o mundo moderno não se faz apenas com aqueles que têm projetos
modernizadores”, trata da “resistência à modernidade”, da apropriação de bens
5A Profa. Claudia Santana afirma não se lembrar da Universidade que financiava a pesquisa feita pelos
professores paranaenses no município de Quixabeira, nem do teor da pesquisa. Apenas que eles
estavam hospedados na casa paroquial da sede do município.
18
Folklore Society, fundada por Franz Boas. A repercussão dos estudos europeus e
americanos chega ao Brasil na segunda metade do século XIX.
No projeto do que se considera como pré-modernismo da literatura brasileira,
a cultura popular é acolhida com o intuito de, por assim dizer, “mostrar o Brasil real
aos brasileiros”. Esse objetivo foi levado adiante por Mário de Andrade e outros
estudiosos, que se lançaram pelos “brasis”, num movimento de valorização da cultura
popular, fazendo um inventário de produções culturais de diferentes regiões do país,
tecendo, assim, um discurso de identidade nacional. Conforme Martha Abreu (2003,
p. 2), a partir do final do século XIX, o termo cultura popular “esteve presente numa
vertente do pensamento intelectual, formada por folcloristas, antropólogos,
sociólogos, educadores e artistas, preocupada com a construção de uma determinada
identidade cultural”.
Os textos orais, bem como outras produções literárias, valiam-se da
possibilidade de representar uma sociedade com sua cultura e sua história. Câmara
Cascudo e Silvio Romero realizaram preciosos registros da música e da dança
populares tradicionais. O movimento folclórico brasileiro, expressão alcunhada por
Luís Rodolfo Vilhena (1997), designa os projetos de um grupo de intelectuais que
aspiravam, entre outras coisas, ao reconhecimento do folclore como saber científico.
Tal movimento permeia o século XX e possibilita um legado institucional precioso,
como o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP), abrigando ricos
acervos museológicos.
Nas décadas de 1940 e 1950, a cultura popular passa a ser compreendida de
uma perspectiva política, associada aos movimentos populares latino-americanos,
almejando “oficializar as imagens reconhecidamente populares às identidades
nacionais e à legitimidade de seus governos” (ABREU, 2003, p. 3). Segundo Abreu
(2003), o conceito também foi incorporado pela esquerda política, assumindo uma
acepção de resistência de classe.
De acordo com Rubim (2007), a passagem de Mário de Andrade pelo
Departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo (1935-1938) e a
implantação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, são experimentos que
inauguram as políticas públicas culturais no Brasil. No entanto, ainda que Mário de
Andrade tenha inovado no setor cultural, propondo uma definição mais ampla de
cultura, ao englobar as culturas populares, aqui elas são percebidas na perspectiva
do folclore. Apesar disso, as limitações dos projetos desse período “não podem
21
7 Miguel Jost. Apontamentos de aula. Curso “Políticas públicas de cultura no brasil: uma perspectiva
crítica e teórica. 07-09 de nov. de 2016. PPGEL, UNEB.
22
sem levar em consideração sua importância e atuação a quem lhe diz respeito, a
população que a produz.
No primeiro decênio do século XXI, entre 2003 e 2008, as políticas culturais de
governo expressaram um novo entendimento dos bens simbólicos e práticas culturais
populares. O governo Lula e o ministro Gilberto Gil se deparam com as complicadas
tradições no departamento da cultura, como o autoritarismo e intervenções do Estado,
uma instituição fragilizada, poucos recursos orçamentários etc. De acordo com
Calabre (2007, p. 98), “os primeiros quatro anos de gestão do Ministro Gil foram de
construção real de um Ministério da Cultura. Desde a criação em 1985, o órgão passou
por uma série de crises e processos de descontinuidade”8.
Sob a gestão de Gilberto Gil, o Ministério da Cultura desvincula da política
cultural a ideia de uma “identidade nacional”, trazendo uma concepção pluralizante de
cultura, valorizando as produções locais e conferindo um protagonismo ao “povo”. O
Programa Cultura Viva, responsável pelos Pontos de Cultura, é um marco nessas
políticas públicas culturais. Gil toma sobre sua gestão que: “formular políticas culturais
é fazer cultura” (GIL, 2003, p. 11).
Segundo Célio Roberto Turino de Miranda (2005), o objetivo do programa
Pontos de Cultura é “[...] a ampliação do acesso aos bens organizados da cultura”,
com uma metodologia diferenciada do programa, pois, afirma, “em vez de o governo
dizer como tem que ser feito um centro cultural, [...] nós preferimos inverter a situação,
disponibilizando-nos para atender às propostas que chegarem das diversas
produções culturais no Brasil”. Busca-se, assim, “potencializar as produções locais,
de forma que elas tenham condições de desenvolver um sítio na internet, fazer uma
venda direta do produto, estabelecer diálogo umas com as outras”, no intuito de
possibilitar que “o patrimônio cultural tangível seja observado, acompanhado e
preservado. Assim, não temos o Estado fazendo algo para o povo, mas sim,
observando o que o povo faz” (MIRANDA, 2005, p. 114).
Vemos assim, em concordância com a problematização colocada por Canclini
(2015), o que se pode observar na Constituição, nas determinações da UNESCO, bem
como nas ações do Ministério da Cultura ao estabelecer a criação dos Pontos de
Cultura. Ainda nessa perspectiva, Stuart Hall (2009, p. 241) apresenta a cultura
9 Informação fornecida por Fábio Bonfim, responsável pelo Departamento de Esporte e Cultura da
Prefeitura Municipal de Quixabeira. No site da Fundação Palmares é encontrado apenas o registro do
reconhecimento da comunidade de Alto do Capim como remanescente de Quilombo. Sobre o grupo de
rodas não há informações.
24
O grupo Balanço da roseira, por sua vez, mantém suas atividades vinculadas,
em sua maioria, às festas religiosas e feiras educacionais. As participantes usam
esses espaços para propiciar a sobrevivência do grupo. Desejosas de
reconhecimento, lutam para se tornarem vistas como parte da cultura local. Demarcar
o espaço do Balanço da roseira torna-se então pertinente, pois no escopo dos estudos
da cultura está a condição de ter um efeito prático, “onde possa fazer diferença em
termos de conscientização e ação políticas” (CEVASCO, 2003, p. 158). De acordo
com Eneida Cunha, em A emergência da cultura, “as demandas do presente em torno
da cultura emergem principalmente no interior da própria comunidade nacional
enquanto expressão de vivências minoritárias” (CUNHA, 2009, p. 79).
São, portanto, as vivências desse grupo de mulheres que as conduzem na
produção cultural que realizam e as unem, não de forma homogênea, mas com
aspectos em comum na história de cada uma: a lembrança das quebras de licuri. Com
esse ponto convergente, constroem uma identidade cultural, participam de um campo
de luta no qual, através das canções – ou as rodas, como elas nomeiam seu canto –,
criam uma memória que lhes é comum e que se opõe à cultura hegemônica imposta.
O conceito de hegemonia oriundo da teoria de Gramsci indica um equilíbrio
entre o domínio e a liderança e diz respeito a uma ampla compreensão do social “não
apenas sobre a estrutura econômica e sobre a organização política da sociedade, mas
também sobre o modo de pensar” (GRUPPI, 1978, p. 3). Para Gramsci, a hegemonia
é o domínio de uma classe social sobre as outras, em termos ideológicos, uma
dominação consentida, terreno sobre o qual se desenvolve não somente como ação
política, mas também “como direção moral, cultural, ideológica” (GRUPPI, 1978, p.
11). Ao falar de hegemonia, Gramsci “refere-se por vezes à capacidade dirigente,
enquanto outras vezes pretende referir-se simultaneamente à direção e à dominação”
(GRUPPI, 1978, p. 11).
considerado como não existente, ou, nas palavras já referidas de Boaventura Santos
(2004. p. 246), desejam “transformar as ausências em presenças”.
O caminho da pesquisa segue o som do canto cadenciado no arrastar de pés
da formação da roda e na dança que evoca a cadência do som das pedras nas
quebras de licuri em Quixabeira, e das vozes das mulheres que compõem o grupo
Balanço da roseira, sejam cantadas, sejam contadas. Para tanto, além de buscar o
aporte teórico sobre as temáticas que perpassam este estudo, foi imperativo recorrer
a algumas técnicas de pesquisa: entrevistas, conversas informais, coleta das cantigas,
observação e registro das atividades e apresentações do grupo.
Por tratar-se de um estudo qualitativo, de cunho exploratório, foram
entrevistadas seis, das dez integrantes do grupo. Em relação às participantes, quase
todas estão aposentadas – algumas, como trabalhadoras rurais, outras, por idade ou
como funcionárias públicas – e oito delas residem na sede do município. No que se
refere à caracterização sociodemográfica, as entrevistadas possuem idade entre 55 e
72 anos. Quanto à escolaridade, a maioria cursou o ensino fundamental I, duas têm
graduação, uma, no curso de Pedagogia, e a outra, em Letras. Todas declaram-se
casadas e católicas.
A pesquisa atendeu à adequação dos aspectos éticos conforme as resoluções
nº 196/96, versão 2013, e nº 251/97, seguindo os trâmites exigidos de registro da
pesquisa, submetida à análise do Comitê de Ética da Universidade do Estado da
Bahia. Contemplados os aspectos éticos e políticos da pesquisa, atendendo às
resoluções, foi marcada uma reunião na casa da Profa. Edinalva Brito, coordenadora
do grupo. Nessa reunião, foi explanada às integrantes do Balanço da roseira a
finalidade da pesquisa, enfatizando a importância da colaboração de cada uma, não
apenas em gravações das rodas e filmagens das apresentações do grupo em eventos,
mas também em entrevistas individuais e coletivas. Nesse primeiro momento, todas
concordaram em participar da pesquisa.
Embora as entrevistas tenham sido realizadas em dia e local previamente
agendados e escolhidos pelas participantes, algumas disseram estar constrangidas,
optando por se ausentarem desse momento. Outras integrantes do grupo tiveram
problemas familiares que as afastaram temporariamente das atividades e,
consequentemente, do diálogo previsto. Além das seis participantes do Balanço da
roseira, também foi entrevistada a professora Cláudia Santana, idealizadora da
Fundação de Apoio a Empreendimentos Educacionais e Culturais de Quixabeira,
28
Na seção “Vamos cantá roda que é pra nosso bem”, serão analisadas as
apresentações do grupo, as chamadas rodas, ora consideradas como performances,
ora entendidas como as canções que integram o repertório do grupo Balanço da
roseira. Para tais apresentações, são fundamentais a “arrumação” da cantoria, a
escolha do local, a indumentária, a definição das duplas de vozes, a seleção das
cantigas e a participante que vai “puxar a roda” para dar início a cada canção. Todos
os elementos que marcam a performance do grupo são decididos coletivamente e
ensaiados para a apresentação. As análises da performance do Balanço da roseira
estão orientadas pelos estudos de Segismundo Spina (2002), Richard Schechner11
(2003; 2013) e Paul Zumthor (2010; 2014).
São considerados neste estudo dois pontos da performance. O primeiro a ser
analisado são as circunstâncias em que ocorrem as performances, sua duração e
local em que ocorre cada apresentação. O segundo, a presença da voz como
elemento fundamental na estrutura das apresentações. Associada à voz, são
observadas ainda as melodias e a função do ritmo em cada roda. Por fim, é
considerada a presença do corpo. Os movimentos do corpo integrados a uma poética
na performance, o cenário na visualidade desse corpo com sua vestimenta e a
dinamicidade da dança. Além desses aspectos, é certo que há em uma performance
a recepção, tendo importância a audiência como parte desse contexto. A percepção
que esse ouvinte-espectador tem da performance gera reações e influencia a
recepção do texto oral. No entanto, a despeito da importância no duplo papel da
atuação do ouvinte – receptor e coautor, posto que interfere nas apresentações –, a
recepção não é tomada por análise neste estudo, pois não consiste no foco principal
da pesquisa.
Diante de tal exposição, não é intento nesta dissertação cristalizar conceitos
sobre o tema proposto diante do objeto estudado, mas, antes, contribuir para que
novos pesquisadores possam se enveredar pelo caminho de ida e vinda da cultura
popular. Apresento assim a importância do grupo Balanço da roseira para a identidade
cultural do município de Quixabeira, credibilizando essas mulheres por resistirem à
cultura hegemônica que a elas foi imposta, transformando o silêncio ao qual foram
11 Ao falar sobre performance, é importante situar Erving Goffman com A representação do eu na vida
cotidiana (2009), em que o autor se utiliza da metáfora do teatro para abordar a questão das relações
interpessoais. Neste estudo, no entanto, optamos por Richard Schechner, pois seu trabalho se
direciona à performance, manifestação artística – que é o que nos interessa nas observações do grupo
Balanço da roseira – e não à teatralização vivida no cotidiano.
31
O grupo Balanço da roseira, no que diz respeito às suas “origens”, não data
sua formação. “Cantar roda” é algo que sempre esteve presente na vida das
participantes. Faz-se necessário, dessa maneira, determinar o que, no vocabulário do
grupo, significa o termo “roda”. Em um primeiro momento, “roda” designa as canções
do repertório do grupo – que usa, assim, a expressão “vamos cantar roda”. Durante
as entrevistas e conversas informais, a palavra aparece com esse significado em
vários momentos, como “ontem lembrei de uma roda” ou, ainda, “fiz uma roda pra
gente cantar”. Mas este não é o único sentido que dão ao vocábulo “roda”. Em outras
ocasiões, “roda” pode designar o conjunto de ações que compõem a performance do
grupo. Após uma apresentação que consideraram ruim, disseram: “a roda de ontem
foi derrubada, não entraram no ritmo da roda”. Em outra ocasião, durante um ensaio
para apresentação na festa da padroeira, afirmaram: “a roda não prestou, foi
desanimada”.
Dessa forma, o termo “roda” será tomado ao nos referirmos às músicas que
integram o cancioneiro do grupo, “as rodas”. A palavra roda também pode vir
acompanhada do verbo cantar, resultando na expressão “cantar roda”. Pode ainda ser
considerada somente a palavra “roda” para designar as canções. É certo que esse
vocábulo surgirá em outros contextos, nos quais será delimitado e exemplificado.
Questionadas sobre quando se deu o início da formação do grupo, as
integrantes não conseguem precisar uma data. Recordam-se de quando ainda
cantavam na rádio comunitária na sede do município todas as tardes. Afirmam
estarem juntas há mais de 10 anos, “coisa de muito tempo”. Sugerem que eu pergunte
a Mininha, nome pelo qual é conhecida a coordenadora do grupo, Edinalva Brito.
Atribuem a ela o chamado para se organizarem. A mais nova do grupo, Mininha, tem
uma data registrada: 13 de junho de 1998, em ocasião do aniversário de emancipação
do município de Quixabeira.
O grupo hoje reúne dez mulheres, entre 55 e 72 anos de idade. A maioria reside
em Quixabeira, sede do município. Duas residem em fazendas a menos de 10 km de
distância da sede. Todas foram convidadas a participar do grupo principalmente pela
33
Outra diz lembrar-se de sua mãe cantando rodas enquanto realizava afazeres
domésticos e, quando criança, isso a admirava. São unânimes em um ponto:
aprenderam as rodas durante as quebras de licuri. Eva, uma das integrantes,
moradora do Ramal, um dos povoados do município, afirma não se lembrar de
presenciar ninguém da sua família cantando rodas, mas diz que quando algum grupo
se reunia, ela lá estava para cantar:
chamava roubar, o licuri roubado. A gente sabia que tinha uma amiga
que tinha um monte de licuri catado e a gente convidava ali uma turma
e ia sem avisar, sem a dona da casa saber. Aí, chegava lá, se tivesse
licuri quebrado a gente tirava, se não umas quebrava outras tirava. E
eu sempre na minha região era eu quem puxava.
12 Também conhecido como ouricuri, aricuri, nicuri, alicuri e coquinho-cabeçudo, da polpa do licuri,
pode-se extrair o “leite” ou o óleo, sendo um dos ingredientes fundamentais na culinária local.
13 “Palmeira de altura mediana, podendo atingir até 10 m, com folhas grandes, de 2 a 3 metros de
comprimento, distribuídas em espiral ao longo do fuste. As flores são pequenas, amarelas, reunidas
em cachos que surgem predominantemente de maio a agosto” (DRUMOND, 2007, p. 1)
14 “As principais palmeiras bravas da Bahia são as que chamam ururucuri, que não são muito altas, e
dão uns cachos de cocos muito miúdos, do tamanho e cor dos abricoques, aos quais se come o de
fora, como os abricoques, por ser brando e de sofrível sabor; e quebrando-lhe o caroço, donde se lhe
tira um miolo como o das avelãs, que é alvo e tenro e muito saboroso, os quais coquinhos são mui
estimados de todos” (SOUSA, 1587, p. 198).
15 A Bacia do Jacuípe é um dos 27 Territórios de Identidade, reconhecidos pelo Governo da Bahia em
2007, e constituídos a partir da especificidade de cada região. O território da Bacia do Jacuípe localiza-
se na região semiárida do estado e 14 municípios fazem parte deste território. São eles: Baixa Grande,
Capela do Alto Alegre, Gavião, Ipirá, Mairi, Nova Fátima, Pé de Serra, Pintadas, Quixabeira, Riachão
do Jacuípe, São José do Jacuípe, Serra Preta, Várzea da Roça e Várzea do Poço.
35
16 O Centro de Referência da Assistência Social é uma unidade pública que atua com famílias e
indivíduos em seu contexto comunitário, visando à orientação e fortalecimento do convívio
sociofamiliar. Atende famílias que, em decorrência da pobreza, estão vulneráveis, privadas de renda e
do acesso a serviços públicos, com vínculos afetivos frágeis, discriminadas por questões de gênero,
idade, etnia, deficiência, entre outras. Cada unidade do CRAS conta com assistentes sociais,
psicólogos, estagiários e pessoal de apoio. Os recursos para implantação e manutenção dos CRAS
são provenientes do Governo Federal, através do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS), da Prefeitura e do Governo do Estado. Disponível em:
<http://www.saude.ba.gov.br/hjm/images/documentos/cras.pdf>. Acesso em: 14 set. 2016.
40
da cultura dos trabalhadores, sendo esse o ponto de partida para qualquer estudo
sobre cultura popular e suas transformações.
As atividades rurais, a quebra do licuri são parte da cultura das classes
trabalhadoras e dos pobres do município de Quixabeira. Os cantos de trabalho, hoje
transformados em seu aspecto festivo, dizem respeito às relações de forças sociais
que empurram para as margens da sociedade tudo o que não produz renda, capital.
As identidades que se constroem nesse espaço de interposição, entre o que é posto
pela sociedade capitalista e o que a cultura popular deseja manter, é onde reside o
local de resistência dessa cultura. Para Hall (2011, p. 232), não apenas luta e
resistência, “mas também, naturalmente, apropriação e expropriação. Na realidade o
que vem ocorrendo frequentemente ao longo do tempo é a rápida destruição de estilos
específicos de vida e sua transformação em algo novo”.
O que se observa no Balanço da roseira é justamente a reorganização de uma
“tradição”, não como uma “persistência das velhas formas” (HALL, 2011, p. 243), mas
uma negociação diante do que lhes é imposto, atendendo a novas demandas com
novos significados.
ela, festa é roda. Por isso tem prazer em participar de um grupo de mulheres que
ainda se reúnem para festejar como aprendeu na infância: “quando a gente se ajunta
e faz essa cultura velha, antiga, a gente se sente ó (faz sinal de positivo com o polegar)
lá em cima”.
Dessa maneira, ao refletir sobre as motivações que conduzem este estudo
pautado na cultura popular de uma determinada região, é possível pensar tal cultura
na perspectiva de Hall (2009), em que as manifestações populares se movem em uma
“transformação cultural”. De acordo com o autor, embora pareçam persistir, diferentes
relações são mantidas “com as formas de vida dos trabalhadores e com as definições
que estes conferem às relações estabelecidas uns com os outros” (HALL, 2009, p.
232). À vista disso, Hall considera que a cultura popular se colocará no terreno das
transformações, não sendo “nem as tradições populares de resistência a esses
processos, nem as formas que as sobrepõem”, mas sim, “o terreno sobre o qual as
transformações são operadas”. Perpassa também pela necessidade de legitimar as
ações de um grupo como produção cultural que identifica um povo.
No ensaio A centralidade da cultura, Hall (1997) examina questões culturais no
contexto das mudanças sociais contemporâneas. Esse sociólogo afirma que os
homens, como seres interpretativos, são instituidores de sentido. A ação social é,
portanto, significativa tanto para os que a praticam quanto para os que a observam.
Assim, a multiplicidade de sistemas de significados que utilizamos para definir o que
as coisas representam, regula nossa conduta em relação aos outros.
Na minha opinião é uma coisa de muito valor porque era uma coisa
que a gente tinha de muito tempo, muito tempo e fracou, depois
renovou e agora a gente tá tentando erguer e eu acho que tem muito
valor isso aí. Uma coisa que nossos filhos, minhas filhas, minhas
netas, não alcançou esse tempo que a gente fazia isso e hoje elas tem
como ver e até querer se engajar no grupo. Como lá a gente tá
querendo criar um grupo lá e elas vão entrar no meio, filha, neta, as
vizinhas, que já é filho desse grupo daqui.
44
Hall (2014) então estabelece cinco pontos sobre os quais as comunidades são
“imaginadas”. O primeiro aponta para as narrativas locais, como são contadas e
recontadas “nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular”
(HALL, 2014, p. 31). São essas narrativas que dão significado a uma existência
ordinária, numa possibilidade de conectar a vida diária a um destino maior que nos
antecede e continuará depois que deixarmos de existir. Essa ideia de um plano linear
e contínuo conduz à segunda proposição do autor, “a ênfase das origens, na
continuidade, na tradição e na intemporalidade”. Uma representação de identidades
que exista desde o nascimento e que será perpetuada. A terceira estratégia discursiva
diz respeito ao que Hobsbawn e Ranger (2015) chamam de invenção da tradição, que
facilmente se comunica com o quarto exemplo de narrativa de uma cultura: o mito
fundacional, “uma história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter
nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do
tempo ‘real’, mas de um tempo ‘mítico’” (HALL, 2014, p. 33). Conduzindo, desse modo,
à quinta estratégia discursiva, a ideia de um povo original.
De natureza igual acontece com as histórias do Balanço da roseira.
Questionadas individualmente ou em grupo, as mulheres atestam a “origem” das
rodas: o canto de trabalho nas quebras de licuri. Das quebras de licuri, para as festas
locais, o canto é transposto da sua “origem”, com uma nova finalidade, a brincadeira,
a festa. Hoje, as rodas são, indubitavelmente, na concepção das integrantes do grupo,
manifestação da cultura popular de Quixabeira, como é possível observar na dala de
Fidelcina:
18 Atualmente os 417 municípios baianos estão inseridos em 27 Territórios de Identidade, sendo eles
Irecê, Velho Chico, Chapada Diamantina, Sisal, Litoral Sul, Baixo Sul, Extremo Sul, Médio Sudoeste da
Bahia, Vale do Jiquiriçá, Sertão do São Francisco, Bacia do Rio Grande, Bacia do Paramirim, Sertão
Produtivo, Piemonte do Paraguaçu, Bacia do Jacuípe, Piemonte da Diamantina, Semiárido Nordeste
II, Litoral Norte e Agreste Baiano, Portal do Sertão, Vitória da Conquista, Recôncavo, Médio Rio de
Contas, Bacia do Rio Corrente, Itaparica, Piemonte Norte do Itapicuru, Metropolitano de Salvador e
Costa do Descobrimento. O território da Costa do Descobrimento foi desmembrado do território do
Extremo Sul em 2012.
48
21 Segundo Serpa (2015), os técnicos das secretarias do estado entrevistados para realização da
pesquisa, que culminou com o livro Territórios de identidade, admitem os entraves na operacionalização
dessa política cultural a partir da nova regionalização. Sinalizam, conforme Serpa (2015), que os
territórios com maior dificuldade de identificação territorial são aqueles mais urbanizados, como é o
caso de Vitória da Conquista, já que o nome da cidade é também o nome do território de identidade, o
que se opõe à prerrogativa da regionalização com base no conceito de região cultural.
22 Interessa aqui salientar um breve histórico da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. A SECULT
passou por várias transformações desde sua criação, em 15 de julho de 1987, pelo então governador
Waldir Pires. O novo órgão visava proporcionar autonomia ao segmento da cultura, antes vinculado à
função educação. Em 1989, o governador Nilo Coelho reformulou a Secretaria Estadual de Cultura
extinguindo alguns órgãos e criando outros. A partir de 22 de maio de 1991, a Secretaria de Cultura foi
extinta pela reforma administrativa durante o governo Antônio Carlos Magalhães. Com o Ministério da
Cultura também desativado pelo presidente Fernando Collor, os antigos órgãos e atribuições da
Secretaria de Cultura da Bahia foram incorporados pela Secretaria de Educação, que passou a se
chamar, de 1991 a 1994, Secretaria de Educação e Cultura. Em 1995, foi instituída a Secretaria da
Cultura e Turismo. Apesar dos ganhos na gestão conjunta das políticas governamentais de cultura e
de turismo, considera-se que esta fusão limitou a atuação do governo no campo da cultura. A Secretaria
de Cultura foi separada do Turismo, em 28 de dezembro de 2006, por solicitação do governador eleito
Jaques Wagner e da equipe de transição de governo – trazendo nova mudança significativa sobre a
forma de conceber e gerir a cultura na Bahia e compreendendo a necessidade de uma secretaria
específica para a área. Disponível em: <http://www2.cultura.ba.gov.br/a-secretaria/historico/>. Acesso
em: 15 set. 2016.
50
de identificação entre eles: o vínculo com a produção rural. Segundo o Plano territorial
de desenvolvimento sustentável do Território Bacia do Jacuípe, publicado em 2010, a
maioria da população que integra esse território (55%) vive no campo. Apesar disso,
os dados oficiais revelam que a agropecuária tem peso igual às atividades industriais,
nesse território, para a formação do PIB. No entanto, o que se observa no PTDS é
que “uma parcela significativa de tudo que é produzido (feijão, farinha, carne, leite etc.)
é destinada ao autoconsumo e não aparece na contabilidade oficial” (PTDS, 2010, p.
12).
Observa-se ainda que os indivíduos residentes nas cidades mantêm um vínculo
com o meio rural, com suas tradições e cultura. Portanto, é necessário pensar nos
planejamentos para estes municípios de forma integrada e orgânica, “considerando o
rural e o urbano como integrantes de um mesmo conjunto” (PTDS, 2010, p. 12).
Justificam assim que, embora o PTDS esteja mais focado para ações no espaço rural,
busca contemplar o todo, “até porque não seria possível pensar o desenvolvimento
sustentável sem um planejamento holístico, sistêmico e integral” (PTDS, 2010, p. 12).
Em concordância com essas afirmativas, Perafán (2013, p. 16) declara:
23 Exemplo disso é a ação dos municípios que compõem a Bacia do Jacuípe na busca pela inserção
de dois municípios ao Território de Identidade, Capim Grosso e Serrolândia. Estes municípios
atualmente pertencem ao Território Piemonte da Diamantina, mas, segundo a administração pública
local, há manifestações da sociedade civil e do poder público local para que os municípios passem a
fazer parte do Território com o qual se identificam, posto que já façam parte do Consórcio Público da
Bacia do Jacuípe. Para a concretização dessa mudança, em 2015, as 14 Câmaras Municipais
aprovaram o projeto da inclusão destes municípios ao território, e com a Nota Técnica (Nº007/2015) do
Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial (CEDETER) recomendaram a alteração, além da
52
resolução do Colegiado do Território Bacia do Rio Jacuípe que aceitou a presença dos municípios de
Capim Grosso e Serrolândia. Atualmente, o Projeto de Lei Nº 21.474/2015, que institui o Plano
Plurianual Participativo – PPA do Estado da Bahia para o quadriênio 2016-2019, está em tramitação
na Assembleia Legislativa da Bahia.
24 Disponível em: <http://www.coopes.org.br/>. Acesso em: 13 jun. 2016.
25 Com ações que partem da proposta de sociedade justa e igualitária, a COOPES não atua de forma
isolada. Para entender a atuação dessa Cooperativa na região, é importante ainda traçar seu percurso
até a fundação. A atual representante comercial da COOPES, a produtora Josenaide de Souza Alves,
antes da fundação da cooperativa e em parceria com outras mulheres da zona rural, iniciaram as
pesquisas e experiências com o licuri para a produção de alimentos incentivada pelo Projeto Conviver,
um projeto de extensão da Escola Família Agrícola de Quixabeira, fundada em 04 de março de 1994.
26 Em 2012 foi realizada a I Conferência Regional de Desenvolvimento Sustentável do Bioma Caatinga
27 O Terra Madre é um projeto concebido pelo Slow Food, e tem, atualmente, como ponto central a
convicção de que “comer é um ato agrário e produzir é um ato gastronômico”. Dessa forma, o Terra
Madre tem por objetivo dar voz e visibilidade aos agricultores, pescadores e criadores que povoam o
mundo. A rede do Terra Madre foi lançada na reunião inaugural de 2004 em Turim, Itália. Os três
encontros mundiais das comunidades do alimento Terra Madre, organizados pelo Slow Food, desde
então, promovem o encontro de milhares de agricultores, produtores, chefs, educadores, jovens e
ativistas de 150 países, para que possam trabalhar juntos para melhorar o sistema alimentar mundial.
Disponível em: <http://terramadre.slowfoodbrasil.com/tmb2010/sobre/>. Acesso em: 15 set. 2016.
28A Arca do gosto é um “catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase
esquecidos de produtos ameaçados de extinção, mas ainda vivos, com potenciais produtivos e
comerciais reais. O objetivo é documentar produtos gastronômicos especiais, que estão em risco de
desaparecer”. Disponível em: <http://www.slowfoodbrasil.com/arca-do-gosto>. Acesso em: 15 set.
2016.
54
29 Fortalezas são projetos do Slow Food iniciados em 1999, para ajudar os pequenos produtores a
resolver suas dificuldades, reunindo produtores isolados e conectando-os com mercados alternativos,
mais sensíveis à sua situação e que valorizam os seus produtos.
30 No município de Quixabeira são parceiros da COOPES a AFACAMUQ (Associação das famílias
carentes do município de Quixabeira), que faz a distribuição do leite de cabra, mel e outros produtos
aos grupos da Pastoral da Criança; o Convênio CONAB; a APPJ (Associação de Pequenos Produtores
de Jaboticaba), fornecendo diversos produtos para a cooperativa; o CAE (Conselho da Merenda
Escolar de Quixabeira e Capim Grosso), trabalhando na aquisição de Merenda Escolar; a Pastoral da
criança paroquial, articulando a distribuição de alimentos pelo convênio Conab. Além de rádios
comunitárias de Capim Grosso e Quixabeira, realizam a divulgação dos produtos, e o STTR (Sindicato
dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de Capim Grosso e Quixabeira), responsável pela articulação
e documentação dos produtores. Disponível em: <http://www.coopes.org.br/>. Acesso em: 13 jun.
2016.
55
Em consonância com Hall (2009), Canclini (2015) acredita ser possível analisar
as manifestações populares levando em consideração suas interações com a cultura
de elite e indústrias culturais. Sob essa nova perspectiva, sistematiza seis refutações
à visão clássica dos folcloristas: o desenvolvimento moderno não suprime as culturas
populares tradicionais; as culturas camponesas e tradicionais já não representam a
parte majoritária da cultura popular; o popular não se concentra nos objetos; o popular
não é monopólio dos setores populares; o popular não é vivido pelos sujeitos
populares com complacência melancólica para com as tradições; a preservação pura
das tradições não é sempre o melhor recurso popular para se reproduzir e reelaborar
sua situação.
Entrecruzando as afirmativas de Canclini (2015) com as ações que envolvem a
cultura popular de Quixabeira, vemos que a modernidade não extinguiu as ações
sociais em torno da cultura do licuri – cooperativas atuam para manutenção dessa
produção, festas são promovidas, o canto ligado ao trabalho rural permanece na
existência de grupos de roda. Há uma continuidade das ações por meio daqueles que
desejam manter essa herança através da renovação, embora os grupos que se
envolvem nessas atividades não sejam a representatividade da maioria da população.
A tradição que se cria a partir do licuri é uma forma de legitimar o presente em uma
projeção do passado. As mulheres do Balanço da roseira já não estão diretamente
envolvidas na produção agrícola, não é o objeto “licuri” que mais lhes importa, esse é
o mote a partir do qual encena-se a experiência coletiva.
Dessa maneira, ponderar a atuação do grupo Balanço da roseira na qualidade
de manifestação da identidade cultural do município de Quixabeira, implica discernir
quem são as mulheres que compõem o grupo. Mais da metade do grupo é composto
por senhoras acima dos 65 anos de idade, entre elas há professoras, lavradoras,
sindicalistas, funcionárias públicas, donas de casa. Aposentadas ou em atividade, são
todas católicas e, devotas em sua religião, algumas atuam nas mediações da Pastoral
da criança. Todas desfrutam da memória do canto de trabalho, das rodas, nas quebras
de licuri do município de Quixabeira.
O que o grupo Balanço da roseira representa para seu local de atuação não
está fixado apenas em uma “tradição”. Segundo Bhabha (2010), as negociações feitas
pelas minorias que buscam reconhecimento são pautadas em aspectos que não se
limitam à persistência da tradição; “ele é alimentado pelo poder da tradição de se
reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem
56
sobre as vidas dos que estão ‘na minoria’” (BHABHA, 2010, p. 21). Reconhecer a
tradição é uma parte desse processo de identificação. “Ao reencenar o passado, este
introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição”
(BHABHA, 2010, p. 21). Inventam a tradição: as rodas agora são apresentações,
performances para serem vistas. O passado é renovado, modifica-se na atuação
presente, “O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia,
de viver” (BHABHA, 2010, p. 27).
Como já observado através dos diversos setores que têm se envolvido nas
questões identitárias da cultura local, não podemos encarar as manifestações da
cultura popular como exclusivas dos setores populares. Há uma interação constante
nas sociedades modernas entre o poder hegemônico e os fenômenos culturais
populares e, nessa interação, percebe-se ainda que não há por parte dos setores
populares o desejo de permanecerem isolados na sua produção cultural, e sim a
aspiração em reelaborar a tradição transitando na modernidade. O grupo Balanço da
roseira já participou de programas na rádio comunitária local e manifesta o desejo de
um dia gravar um CD. Algumas das integrantes do grupo usam redes sociais para
divulgar fotos e vídeos das apresentações que realizam. Tais ações corroboram as
reflexões de Canclini e de outros pensadores, como Stuart Hall (2011, p. 238), para o
qual “as pessoas comuns não são uns tolos culturais, elas são perfeitamente capazes
de reconhecer como as realidades da vida da classe trabalhadora são reorganizadas,
reconstruídas e remodeladas [...]”.
Essas ações remetem também ao que o pensador marxista inglês Raymond
Williams (1992) estabelece em suas concepções sobre os estudos culturais. Partindo
de uma teoria materialista da cultura, considerando-a em seu papel social, Williams
(1992) entende os bens culturais como resultados de meios de produção. Tais meios
são materiais e organizados em relações sociais abrangendo instituições, convenções
e formas. Para tanto, propõe-se a redefinir o termo “cultura”, que pode ser entendida
“como o sistema de significações mediante o qual necessariamente [...] uma dada
57
O estudioso referido ressalta ainda que tal processo “está continuamente ativo
e adaptando-se” (WILLIAMS, 2011, p. 54). Introduz, desse modo, a distinção entre os
termos “residual” e “emergente”, distinguindo-os. Williams (2011) considera
importante traçar uma diferença entre o que seria “arcaico” e “residual”. O conceito de
residual diferencia-se do arcaico, já que este pode ser reconhecido como elemento do
passado, enquanto o “residual” é formado no passado, mas se apresenta de forma
ativa no processo cultural, atuando nos sujeitos.
58
ponto, há uma convergência entre os escritores: é nas relações sociais que o valor da
cultura popular é conquistado.
O esforço, nessa perspectiva dos Estudos Culturais, resulta, de forma prática,
em possibilitar que toda a produção cultural escamoteada adquira voz e busque maior
visibilidade. No entanto, Regina Dalcastagnè (2012) alerta para observarmos que
essas vozes não são silenciadas somente pelos que se sobrepõem a elas, mas
também por aqueles que buscam falar em nome delas.
A autora ainda afirma que o interesse pelo estudo dos cocos surgiu por conta
das dificuldades em caracterizá-lo. As diferenças de contexto, as várias formas
poéticas e a diversidade de nomes que se dá à manifestação popular dos cocos
podem levar a supor que se trata de mais de uma produção cultural, e os aspectos
levantados por Ayala (1999) podem ser utilizados no estudo das rodas.
O coco, tal qual a roda, é palavra vaga e chega a se confundir com outras
manifestações da cultura popular. O que se pode afirmar é que “designa um canto de
caráter extra urbano” (AYALA, 1999, p. 247). Há outras semelhanças: não existe um
calendário fixo para que ocorra a manifestação, mas, sempre que acontece, é em um
ambiente festivo, como os dias dos santos juninos, santos padroeiros de cidades e
povoados, eventos públicos. É sempre necessário que algum grupo de poder, político,
social ou econômico interfira para que aconteçam as apresentações. Outro ponto
comum entre os cocos e as rodas é a valorização do passado em relatos sobre a
cultura popular e sua atuação como “elemento integrador e também como
componente de uma afirmação de identidade cultural” (AYALA, 1999, p. 246).
De igual modo, Sandro Santana (2012), em seu estudo sobre a Comunidade
de Lagoa da Camisa, declara que os batuques e cantos de trabalho funcionavam
como “estratégias de resistência e forma de comunicação de um povo que vive no
cativeiro” (SANTANA, 2012, p. 35), atuando também na construção de identidades.
As manifestações culturais oriundas da África, transmitidas oralmente ao longo dos
anos, assimilaram aspectos da cultura portuguesa com a diáspora, adaptando-se a
condições diferentes da sua origem.
escreveram a história oficial, por outro, podemos afirmar que por meio
da sua musicalidade as camadas mais pobres – descendentes de
escravos, pardos e mestiços – passaram a sua história, mitos, crenças
e concepção de mundo, oralmente, geração a geração, através dos
ritmos, danças e músicas que construíram uma “cosmogonia” do seu
universo (SANTANA, 2012, p. 38).
Dito isso, o autor reitera que as manifestações culturais a que se refere são
produtos de um processo de colonização assimilacionista. Afirma também que o
processo de “reconceitualização” de uma cultura em outro espaço simbólico de
pertencimento “acontece por meio de hibridizações dentro de um novo território”
(SANTANA, 2012, p. 36). Para tanto, o autor vê as festas e a religiosidade não apenas
como “elementos da formação identitárias brasileira”, mas também reafirmando
padrões de dominação, “fatos sociais e produtos do pensamento coletivo” (SANTANA,
2012, p. 36).
Nesse processo de hibridização cultural, dificuldades se mostram, posto que,
no que diz respeito às rodas, ao serem consideradas como dança de velhos, a
continuidade da manifestação cultural se torna difícil sem a participação dos mais
jovens aprendendo a dançar, a cantar. Nas negociações entre o que será mantido e
o que será posto à parte, é comum o desejo de valorizar o passado, especialmente
no que toca à cultura popular. A origem das rodas, associada a uma atividade agrícola
sazonal, aponta para o vínculo criado entre as pessoas que participam da
“brincadeira”, como muitas se referem às rodas, tal qual àqueles que participam dos
cocos, o que “permite apreender múltiplos componentes desse universo da oralidade
em que experiência, solidariedade, alegria são fundamentais” (AYALA, 1999, p. 247).
No entanto, isso, como já vimos, não é sinônimo de “conservação” nem desejo
de reivindicar uma cultura “pura”. Os processos de mudanças acontecem e é possível
perceber essas manifestações populares se valendo de agentes da cultura
hegemônica para subsistir. O ato de inventar uma tradição é procedimento que
possibilita a inserção dessa manifestação popular, ainda que representada no
contraste com as manifestações culturais dominantes. O Balanço da roseira atua,
portanto, no limiar entre o campo e a cidade, como instrumento nas relações sociais
e produção simbólica em uma tradição que se forja a partir de vivências no conjunto
da sociedade, articuladas a organizações representativas com a finalidade de permitir
o protagonismo desses sujeitos, tornando visto o que foi escamoteado pela cultura
hegemônica.
64
31 O canto interjeccional é, segundo Segismundo Spina (2002), um canto “cujo sentido é quase sempre
inexistente [...]. As sílabas ou as interjeições, nesse caso, são meros expedientes orais para marcar o
compasso ou sustentar a melodia” (SPINA, 2002, p. 59).
32 A maioria das histórias que não são contadas em público referem-se a traições, como na roda a
seguir: “Se eu fosse crente / não cortava meu cabelo / trocou o seu marido / pelo amor do motoqueiro”.
66
Nossa memória é, então, constituída não apenas das nossas lembranças, mas
da combinação da memória coletiva dos distintos grupos em que participamos em
sociedade e da realidade em que estamos inseridos. Para Halbwachs, teórico cuja
obra embasa Ecléa Bosi em seu estudo, a memória do indivíduo está ligada à memória
do grupo. Em uma rede de conexões, a memória do grupo liga-se à tradição, que é,
por sua vez, “a memória coletiva de cada sociedade” (BOSI, 2004, p. 55). Dessa
maneira, a memória coletiva abrange a memória do grupo, e cada indivíduo que
compõe tal grupo com ela se identifica. Partilhando do ponto de vista de Halbwachs
(2006), cada memória individual será um olhar sobre a memória coletiva, que pode
ser alterada de acordo com as relações mantidas entre os integrantes de um grupo.
68
Roda nº 1
Roda nº 2
O vaqueiro novo
Que nunca aboiou
Na boca da mata
A onça pegou
A onça pegou
A onça pegou
O vaqueiro novo
Que nunca aboiou
69
33A imagem de Guimarães Rosa como vaqueiro é publicada pelo jornal O Cruzeiro em uma reportagem
de Álvares da Silva, com o título “Com o vaqueiro Guimarães Rosa – um escritor entre seus
personagens”, dois meses após sua viagem, no dia 21 de junho de 1952 (ROSA, 2011, p. 7).
70
Roda nº 3
Roda nº 4
Eu pisei na pedra
E a pedra abalou
Eu pisei e tornei pisar
E a pedra balanceou
Pisar por caminhos de pedras, verificar, a cada passo, a segurança do caminho
traçado. A repetição da ação é demonstrada também na aliteração pisei/pedra
72
Nem a poesia popular saiu da poesia de arte, nem esta saiu daquela.
Os dois tipos coexistem no tempo e no espaço desde que coexistem
as classes sociais. O letrado e o homem do campo; o homem dos
salões e o artista da rua. O que se verifica entre uma e outra forma de
poesia é um fenômeno de capilaridade, contínua e mútua osmose de
processos técnicos formais, devendo notar-se que a poesia culta
sempre hauriu com vantagens os recursos formais da poesia popular
[...] (SPINA, 2002, p. 76).
Roda nº 5
O sol virou,
virou, virou
O sol virou,
tomaram meu amor
Tomaram meu amor
Eu vou na porta buscar
74
Isso é um desaforo
Meu amor você tomar
Nessa roda com temática amorosa, a repetição da ideia “o sol virou” aponta
para o passar do tempo. À medida que os dias se passam, o eu-lírico percebe-se sem
seu objeto de amor. Com uma expressão de posse, “tomaram meu amor”, revela a
indignação pela ausência do sujeito amado e a intenção da disputa: “eu vou na porta
buscar”. Na triangulação amorosa que é formada, o eu-lírico vai à casa do rival em
uma tentativa de reconquista, muito mais em decorrência da vaidade: “isso é um
desaforo / meu amor você tomar”.
Quanto à forma, o vocábulo “virou” se repete à semelhança das partículas
interjeccionais, com um aspecto de reforço a uma ideia, o passar do tempo. Da mesma
maneira o verso “tomaram meu amor”, que encerra a primeira quadra, torna-se mote
para a segunda quadra, concluindo a estrofe em uma espécie de paralelismo em que
ocorre uma ligeira diferença entre o verso de uma, “Tomaram meu amor”, e o seu
correspondente, “Meu amor você tomar”. Sobre esse tipo de repetição, Spina (2002,
p. 46) afirma:
Nas mesmas condições estão as partículas interjeccionais, emotivas,
não só representadas pelas interjeições como ainda pelos próprios
afixos verbais reforçativos, muito usuais na linguagem para
acrescentar mais força à expressão. As interjeições costumam
colocar-se periodicamente entre as unidades rítmicas, ou no princípio
ou no fim do mesmo segmento melódico; às vezes a separação destes
segmentos rítmicos se faz mediante a repetição da última palavra.
Roda nº 6
Eu não pensei de rosa branca
Dentro da água desbotar
Eu não pensei de meu amor
Ser tão firme e me deixar
75
Roda nº 7
A chuva miudinha
Não molha ninguém
De manhã bem cedo
Vim te ver meu bem
76
Roda nº 8
A roda nº 7 faz uma breve narrativa em que o eu-lírico sai em busca do seu
amado. Como em uma justificativa, apresenta os elementos naturais sem a intenção
de tornar-se um empecilho do encontro amoroso: “A chuva miudinha / não molha
ninguém”. A chuva é tão irrisória, que não deveria ser a desculpa para não ir ao
encontro. A ansiedade pelo encontro é ainda compreendida quando é mencionado o
tempo, “de manhã bem cedo”, o que denota uma relação já existente, semelhante às
temáticas das cantigas de amigo.
A roda nº 8, embora não trate de uma relação amorosa, não condiciona a
felicidade de um eu-lírico feminino à satisfação no amor: “eu não tenho amor / eu não
tenho nada”; a afirmação não direciona o eu-lírico à tristeza. Há uma revelação de
autoestima, não tenho amor, mas sou bela: “meu cabelo é bom / meu vestido é uma
fachada”. Essa é uma das rodas que mais aparece nas performances do Balanço da
roseira.
Como parte “essencialmente querida na literatura oral” (COUTINHO, 2004, p.
188), a poesia popular fixa-se em uma constante rítmica. A fórmula simples das
quadras é a estrutura que mais comumente se encontra no repertório das rodas do
Balanço da roseira. Segundo Afrânio Coutinho (2004), a história literária no Brasil tem
início no século XVI, que é a época sonora em Portugal, “tempo de gaitas e pandeiros,
romarias lindas, Portugal vivo nos autos de Gil Vicente” (COUTINHO, 2004, p. 188).
Populariza-se assim, no século XVII, a quadra, que se chamou “verso”. “Quadra
singela, de rimas simples, na fórmula ABCB” (COUTINHO, 2004, p. 189).
Na roda a seguir, a temática amorosa muda sua perspectiva ao falar de uma
escolha errada, com base na cartomancia. O eu-lírico feminino se arrepende de ter
trocado um relacionamento anterior por alguém que a trai:
77
Roda nº 9
A carta de baralho
Ô carta enganadeira
Deixei de amar meu bem
Pra amar aquele ingrato
Que anda na cegueira
Roda nº 10
Roda nº 11
respondem com o “sindolelê”. Segundo Spina (2002), a poesia sertaneja equilibra sua
melodia com recursos designados como “refrão de encher”:
Na roda nº 11 não é encontrado algo com sentido claro, mas parece remeter a
uma canção que entristece: “Não faz assim / Que me faz chorar”. Formação
semelhante à dos recursos citados por Spina (2002), utilizados como “refrão de
encher”, é encontrada no “ô diô lê” / “ô diô lá”. Os chamados “refrões de encher” atuam
na composição melódica da quadra, a roda se completa, pois, com esses expedientes
desprovidos de sentido. Para Zumthor (2010, p. 203): “Palavra poética, voz, melodia
– texto, energia, forma sonora ativamente unidos em performance, concorrem para a
unicidade de um sentido”.
Os versos interjeccionais, observados nessas e em outras rodas, surgem no
final de cada verso contribuindo para a melodia e ritmo das rodas. Como um
encantamento ou mantra, as interjeições-refrão marcam o ritmo dos versos pois,
segundo Octavio Paz (1982, p. 68), apesar do poema não ser “feitiço nem conjuro, à
maneira de bruxarias ou sortilégios o poeta desperta as forças secretas do idioma. O
poeta encanta a linguagem por meio do ritmo”. Com linguagem encantada, a ordem
verbal do poema é determinada pelo ritmo que o marca. Para Paz (1982, p. 69), o
“ritmo é sentido de algo”, o significado da frase não antecede o ritmo, o verso “já
palpita a frase e sua possível significação”.
Em todo o repertório das rodas trazidas na lembrança, nenhuma cantiga
apresenta versos que falem das quebras de licuri. As referências à formação da roda
mostram-se, por exemplo, nos seguintes versos:
Roda nº 12
Ô na chegada da Bahia
Quero ver pisar
Se essa roda não desanda
Eu faço ela desandar
79
Roda nº 13
Dona da casa
Bem que eu lhe dizia
Que essa surpresa
Eu vinha fazer um dia
E eu dizendo
Você pode acreditar
Que hoje nós vadeia
Até o sol raiar
rodas cumprem o papel da literatura oral como produto dessa cultura campesina.
Assim como os trovadores medievais cantavam o amor e as relações amorosas nas
cantigas de amor e amigo, ou preocupavam-se em denunciar os falsos valores morais
de todas as classes, as rodas trazem uma leitura musical de tempos idos. A memória
popular que permeia o canto do Balanço da roseira versa, numa linguagem peculiar
ligada à literatura portuguesa, em torno de motivos amorosos e circunstâncias do dia
a dia. Alcançando na metade do século XIII seu ponto mais elevado, a poesia medieval
portuguesa tinha como seu principal meio de transmissão a oralidade (BEZERRA,
2001). A influência da cultura medieval no repertório do Balanço da roseira dá-se tanto
na estrutura dos versos quanto na temática, como foi observada.
No que diz respeito à estrutura melódica das rodas, todas são cantadas de igual
maneira: uma dupla começa o canto entoando os dois primeiros versos, no caso das
rodas de apenas uma estrofe, e as outras participantes cantam os versos seguintes.
Quando a roda tem duas estrofes, a dupla escolhida para “tirar a roda” canta a primeira
estrofe e o grupo canta a segunda. Em virtude de serem cantos curtos, o grupo repete
a mesma roda quantas vezes julgar necessário em uma apresentação.
As rodas registradas nesta análise não abrangem todo o repertório memorizado
pelas participantes do grupo. Algumas rodas não integram o repertório por preferência
das integrantes; outras rodas, por envolverem pessoas conhecidas na comunidade,
surgem apenas quando se desliga a câmera filmadora, na conversa informal, contada
quase como um segredo. Essas rodas falam de traições, furtos ou qualquer outro
comportamento fora das regras morais da comunidade, semelhantes às cantigas
satíricas da poesia medieval. Por este motivo é que o grupo prefere preservar essas
rodas apenas na memória, sem registro, por receio de expor a vida de velhos
conhecidos. Ecléa Bosi (2004), em sua pesquisa sobre memória e sociedade, afirma
ser comum que recordações surjam depois da entrevista e que muitas passagens
fiquem sem registros, “contadas em confiança, como confidências. Continuando a
escutar ouviríamos outro tanto e ainda mais. Lembrança puxa lembrança e seria
preciso um escutador infinito” (BOSI, 2004, p. 39).
Dona Josefa, uma das integrantes mais idosas no grupo, afirma que toda roda
tem uma história, sempre criada para contar do cotidiano da comunidade. Mesmo que
não conheçam mais a história “por trás” da cantiga, o canto permanece na memória.
Segundo Bosi (2004, p. 54), “a memória é um cabedal infinito do qual só registramos
um fragmento” e o que ficará registrado na memória de cada indivíduo “depende do
81
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja,
com a profissão”. O ato de lembrar está assim associado à situação presente, ou seja,
porque outros nos fazem lembrar. Assim, da mesma forma que não se relê um livro
de modo semelhante, o nosso pensamento presente sobre a sociedade “nos impediria
de recuperar exatamente as impressões e os sentimentos experimentados a primeira
vez” (BOSI, 2004, p. 58).
Compartilhando coletivamente as lembranças individuais, as mulheres do
Balanço da roseira constroem uma memória coletiva. Os estudos empreendidos por
Halbwachs (2006) apresentam os quadros sociais como constituintes da memória.
Para ele, a memória de um indivíduo estará vinculada a um grupo, participando de
dois tipos de memória, individual e coletiva. Dessa maneira, “o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as palavras e as
ideias, que o indivíduo não inventou, mas que toma emprestado do seu ambiente”
(HALBWACHS, 2006, p. 72).
As lembranças do grupo tornam-se, desse modo, fundamentais na transmissão
da história local. Com esse repertório de rodas, o Balanço da roseira marca suas
origens, forma um vínculo. Isso é possível pois o convívio do grupo com todas as
histórias de vida reafirma a experiência coletiva através do foco individual. Há entre o
grupo uma avaliação positiva do passado em comunidade, e, segundo Bosi (2004, p.
423), as lembranças de um grupo são interpostas em cada um dos seus membros,
compondo “uma memória una e diferenciada”.
Roda nova nº 1
Quebra o licuri
Que termina já
Chama a mulherada
E vamos dançar
Chama a mulherada
E os homens também
Vamos cantar roda
Que é pra nosso bem
Roda nova nº 2
Quixabeira é boa
Eu não vou sair daqui
Vamos cantar roda
Na quebra do licuri
Roda nova nº 3
Cheguei aqui
Gostei da brincadeira
Quero cantar roda
Aqui em Quixabeira
As festas de Quixabeira
Não é sua, nem é minha
Viemos cantar roda
Aqui mais Mininha36
Roda nova nº 4
O caminho de Quixabeira
É de ida é de vinda
Viemos cantar roda
Aqui mais Guilherina
Nestas rodas, vemos mais uma vez o espaço de representação social ser
evocado e exaltado. Na roda nova nº 3, Quixabeira é o local de identificação do grupo,
“quero cantar roda / aqui em Quixabeira”, e a ideia de coletividade, um lugar de todos,
é representado nos versos “As festas de Quixabeira / não é sua nem é minha”. É
marcada ainda a organização do grupo, que vem para cantar roda a chamado da
coordenadora: “viemos cantar roda / aqui mais Mininha”.
Percebe-se também a ideia de um local que abraça a todos na roda nova nº 4:
“O caminho de Quixabeira / é de ida é de vinda”, revelando um sentimento de pertença
em que se produz significados e identificações compartilhados entre os membros de
uma determinada cultura. Em Cultura e representação, Stuart Hall (2016) compreende
a representação como uma das principais práticas de produção da cultura:
Roda nova nº 5
A festa da Padroeira
É uma cultura popular
Não podemos esquecer
Vamos todos se alegrar
Roda nova nº 6
O rádio tá ligado
Para o povo ouvir
Maria, Cláudia e Mira
Zefa e Nini
Roda nova nº 7
Ô Dinalva
Amiga fiel
Fez uma música
Pra abertura do cordel
Importa então, diante do que foi exposto, destacar também como as integrantes
do Balanço da roseira compreendem seu lugar de mulher através da produção
poética, associando a este lugar outras fontes que se inserem nas representações
sociais. Por esse motivo, há a necessidade de perceber o gênero em um
encadeamento de experiências cotidianas, entrecruzados pelo recorte das
representações sociais e da cultura popular.
Nas rodas sobre o 8 de março37, Dia Internacional da Mulher, é expresso um
discurso que estabelece esse dia como um símbolo importante na elaboração de uma
37Em 1977, o "8 de março" foi reconhecido oficialmente pelas Nações Unidas como o Dia Internacional
da Mulher, resultado de uma série de fatos, lutas e reivindicações das mulheres (principalmente nos
EUA e Europa) por melhores condições de trabalho e direitos sociais e políticos, que tiveram início na
segunda metade do século XIX e se estenderam até as primeiras décadas do XX.
90
consciência social. Sendo uma data emblemática, torna-se espaço para um chamado
à luta, organizando-se, detendo significações no que diz respeito às atribuições para
esse dia: manter a força, resistir, unir-se, alcançar vitória. Há sempre um apelo para
que a data não seja esquecida, marca na memória de cada uma, e dos que as
assistem, esse espaço de luta. São representativos desse tema os versos a seguir:
Roda nova nº 8
Roda nova nº 9
Isto é que é
Minha gente isto é que é
Fizeram um massacre
E mataram a mulher
Dia Internacional
Hoje é Dia da Mulher
Vamos nos organizar
Para o que der e vier
chamado para a luta: “vamos nos organizar / para o que der e vier”, preparando para
que uma unidade seja estabelecida. A partir desses versos, é possível ainda perceber
como compreendem o dia 8 de março: dia de comemoração e dia de ajuntamento,
para enfrentar os obstáculos que se interpõem na vida cotidiana. Inserem-se aí
perspectivas do campo político nas condições para a produção do discurso expresso
pelo grupo Balanço da roseira.
Sob essa perspectiva, Moscovici (2007) considera as representações sociais
como fenômeno entre indivíduos e diferentes grupos sociais que se mantêm
relacionados cotidianamente. Compreender as representações é adquirir consciência
de que estas não são criadas por um indivíduo isoladamente e que circulam e
possibilitam o surgimento de novas representações, pois, “sendo compartilhada por
todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social sui generis”
(MOSCOVICI, 2007, p. 41).
Para as mulheres que integram o Balanço da roseira, a prática das rodas tem
um significado também de socialização, na qual se constroem enquanto mulheres,
através das experiências e lembranças que compartilham na elaboração de uma
memória coletiva. O “cantar rodas” não é uma prática passada de geração em geração
diretamente. O Balanço da roseira aprendeu as rodas observando outras mulheres,
que não as suas mães, e convivendo com essa expressão cultural. O espaço da roda
é um espaço em que essas mulheres unem forças, criam uma tradição, aperfeiçoam
diferentes formas de expressividade. Em mais uma composição para comemorar o
93
Dia Internacional da Mulher, a roda que se segue é a que tem mais estrofes entre
todas as composições que o grupo tem registrado:
Roda nova nº 10
E chegamos animadas
Este grupo de mulher
Foi Delcina que convidou
Combinado com Zezé
Viemos parabenizar
Os vários tipos de mulher
Seja em qualquer profissão
E lugar onde estiver
38 A Lei Maria da Penha, denominação popular da lei número 11.340, de 7 de agosto de 2006, é um
dispositivo legal brasileiro que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos. É
normalmente aplicada aos homens que agridem fisicamente ou psicologicamente uma mulher ou a
esposa.
39 Neusa Cadore é deputada estadual pelo Partido dos Trabalhadores, eleita em 2006 e reeleita duas
vezes (2010 e 2014). Natural de Santa Catarina, chegou à Bahia em 1984 para desenvolver um trabalho
missionário em Comunidades Eclesiais de Base. Foi prefeita de Pintadas por dois mandatos
consecutivos (1997 a 2004). Em sua atuação em parceria com os movimentos sociais, Neusa foi
relatora da Lei de apoio ao Cooperativismo e teve participação em outras leis, como a que instituiu o
94
As rodas do Balanço da roseira voltam a tratar dos temas que circundam suas
vidas cotidianas. Cantando, descrevem o lugar em que estão se apresentando, a
motivação para essa performance e como se sentem: “Estamos chegando à praça /
Com prazer e alegria / Pra saudar a mulherada / E festejar o nosso dia / E chegamos
animadas / Este grupo de mulher”. Na terceira estrofe, falam do objetivo principal: a
valorização da mulher e a comemoração pelos espaços já conquistados: “Para animar
essa tarde / E a mulher valorizar / Pela conquista dos direitos / E por na política ela
estar”. Há, nesses versos, a ideia de empoderamento articulada a uma noção de
protagonismo. Os movimentos emancipatórios de luta pelos direitos civis e o conceito
de empoderamento expressam estratégias que pretendem contribuir para o processo
de transformação social.
Dessa maneira, evidencia-se a posição de destaque ocupada por uma mulher:
“E queremos mencionar / Dilma nossa presidente”. Nesses versos, mostram uma
consciência da luta no campo do gênero, incorporando vozes de outras mulheres e
impondo-se diante do silenciamento. Por intermédio da composição, o grupo valoriza
os espaços conquistados pelas mulheres na sociedade, já que, segundo Guacira
Louro (1997, p. 21), para compreendermos “o lugar e as relações de homens e
mulheres numa sociedade”, é imprescindível observar “tudo o que socialmente se
construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova
linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental”.
Sob esse prisma do gênero como conceito fundamental, recoloca-se o debate
no campo social, “pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações
(desiguais) entre os sujeitos” (LOURO, 1997, p. 24). São, portanto, as formas de
representação que se colocam como desiguais, sendo necessário entender o gênero
“como constituinte da identidade dos sujeitos” e compreender que estes sujeitos têm
“identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou
permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias” (LOURO, 1997, p. 24).
apoio às Escolas Famílias Agrícolas. Participou de várias Comissões Parlamentares, exerceu a vice-
presidência da Comissão de Agricultura e Política Rural, a presidência da Comissão dos Direitos da
Mulher e atualmente acumula a vice-presidência da Comissão dos Direitos da Mulher e a coordenação
da Subcomissão de Autonomia Econômica da Mulher.
95
Por meio das rodas, o Balanço da roseira ilustra e constrói noções de gênero
através de um discurso sociocultural. Enaltece em seus versos as conquistas dos
direitos sociais femininos: “mulher nasceu pra ser feliz / E ser estrela pra brilhar / E
com a Lei Maria da Penha / Isso acabou de confirmar”, assim como a presença das
mulheres no campo político, ao mencionar Dilma Rousseff e Neusa Cadore. Sem
abandonar o viés religioso, cita nomes de mulheres referidas no texto bíblico: “Até na
Bíblia Sagrada / Tem nome de mulher / É Maria Madalena / Rute, Judite e Ester”.
Maria Madalena, a prostituta e seguidora fiel de Cristo; Rute que não pertencia à
nação judaica mas alcançou posição na genealogia de Jesus; Judite, esposa tomada
por Esaú, para ombrear com seu irmão Jacó o direito à bênção concedida por seu pai
Isaque, e Ester, a princesa judia que, através da política, conseguiu libertar seu povo.
Nesse contexto religioso, são mulheres que representam, de igual maneira, esse
espaço de luta por visibilidade em que se encontram.
Revelam ainda que os espaços conquistados permitem a presença das
mulheres em diversas instâncias: “Viemos parabenizar / Os vários tipos de mulher /
Seja em qualquer profissão / E lugar onde estiver”. O empoderamento feminino é aqui
relacionado ao fortalecimento nos espaços sociais, concebendo que a questão das
desigualdades de gênero está vinculada à falta de oportunidades sociais, políticas e
econômicas.
– Pois cante, filha. Foi-lhe dado o dom de cantar. Cante. Quem canta
seus males espanta. É o que recomenda uma sabedoria sem dono,
porque de todos, folclore, intuição e criação popular. E desde a minha
infância, naquele distante tempo da azagaia, eu ouço dizer que a voz
do povo é a voz de Deus; deve ser. Então cante. O que é uma
cantadeira que abandona suas canções? Cante.
Jonas Rezende.
O título desta seção foi extraído de uma das rodas cantadas pelo Balanço da
roseira. É um convite para entrar na roda. Dar as mãos, nesse contexto, é ato
primordial para fazer a roda ou nela entrar. Para formar o círculo e dar início ao canto,
as mulheres que compõem o grupo Balanço da roseira, primeiro, dão as mãos. De
mãos dadas, iniciam o ritmo da roda em um arrastar de pés cadenciado enquanto
cantam. O movimento circular se alterna, girando para direita e para esquerda. Após
algumas voltas, quando, segundo as integrantes do grupo, a roda “pega o ritmo”, elas
vão formando duplas. Dançando enlaçadas no centro da roda, intercalam essas
duplas enquanto a roda mantém seu ritmo, para esquerda e para direita. Se a roda for
grande, quando mais pessoas se juntam ao grupo nas apresentações públicas, mais
de uma dupla entra na roda.
Fonte:<https://www.facebook.com/terezinha.novais.1/media_set?set=a.800659813309965.1
073741829.100000978621232&type=3>. Acesso em: 15 set. 2016
“Ritual not only communicates something but is taken by those performing it to be ‘doing something’as
40
well [...]” (RAPPAPORT, 1979 apud SCHECHNER, 2013, p. 53, tradução nossa).
101
Tais perspectivas podem ser observadas no grupo Balanço da roseira, uma vez
que suas apresentações oscilam entre sagrado e secular, celebrações da Igreja
Católica, seguidas das festas populares, feiras e afins. Podemos compreender os
rituais e ritualizações sob as quatro perspectivas de Schechner (2013): observamos
os percursos traçados pela performance do grupo, o uso que fazem dos diferentes
espaços performanciais e quem são essas mulheres que performatizam; o que
significa para as integrantes do grupo e para a comunidade as performances
realizadas; como conduzem o ritual do canto e da dança nos espaços em que se
inserem e como é a experiência de participar desta performance ritual. Desta forma,
podemos compreender o que o autor quer dizer quando afirma que “os rituais
humanos são pontes sobre as águas turbulentas da vida”41 (SCHECHNER, 2013, p.
65).
Ao tratar de performance e recepção, Zumthor (2014) reitera que, em sua
maioria, as definições existentes sobre performance colocam ênfase “na natureza do
meio, oral e gestual”, havendo convergência entre performance e poesia, posto que
ambas “aspiram à qualidade de rito”:
41 “Human rituals are bridges across life’s troubled waters” (SCHECHNER, 2013, p. 65, tradução nossa).
102
A epígrafe diz respeito a uma voz para além do corpo que a pronuncia; abstrata,
separada de um corpo, sua manifestação em linguagem, a voz que ultrapassa essa
palavra coisa, sua concretização. E, na atuação do grupo Balanço da roseira, a
concretização da palavra coisa se dá na performance que as mulheres elaboram.
Schechner (2003) encontra sete funções para a performance: “entreter; fazer alguma
coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; fazer ou estimular uma comunidade;
curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco”
(SCHECHNER, 2003, p. 10), e reitera que nenhuma performance exercerá todas
essas funções, embora existam performances que dão ênfase a mais de uma.
No grupo Balanço da roseira, podemos observar através das performances e
das entrevistas concedidas por cada integrante que o entretenimento é uma das
motivações identificadas por elas para continuarem cantando. As participantes veem
a atividade no grupo como uma forma de relembrar a juventude e cantam por
divertimento, lazer. Mas não se encerra no ato de entreter. É também fazer algo belo.
Percebem beleza e encantamento no canto, na dança, na roda, além de
compreenderem a atuação do grupo como marca da cultura local. Schechner (2013)
reitera que as muitas maneiras de entender a performance se revelam como um
conceito vantajoso. Essa multiplicidade de interpretações possibilita a investigação
dos comportamentos performativos que estão em continuidade, considerando a
fluidez das performances da vida cotidiana, bem como da construção de identidades.
42
“Rituals, play and games, and the roles of everyday life are performances because
convention, context, usage, and tradition say so. One cannot determine what ‘is’ a
performance without referring to specific cultural circumstances. There is nothing inherent in
an action in itself that makes it a performance or disqualifies it from being a performance. From
the vantage of the kind of performance theory I am propounding, every action is a performance.
But from the vantage of cultural practice, some actions will be deemed performances and other
not; and this will vary from culture to culture, historical period to historical period”
(SCHECHNER, 2013, p. 38, tradução nossa).
108
No tempo livre, nada liga a performance ao que é vivido, o canto é o que lhe
resta, e o desejo de cantar não mais se mantém atrelado ao canto do trabalho ou a
uma comemoração religiosa. O conceito de Zumthor (2010) é que, embora o tempo
seja sentido em toda performance, em virtude da própria natureza da comunicação
oral, na performance ritual essa regra constitui os sentidos do poema, enquanto na
performance de tempo livre esse efeito se dilui.
Tal qual Cecília Meireles, que canta “porque o instante existe”, as mulheres do
grupo Balanço da roseira cantam pelo instante, pelo prazer, pela crença naquilo que
continuam a fazer. A noção de performance atrelada à ideia de competência, Zumthor
(2014, p. 34) define como o saber-ser, “um saber que implica e comanda uma
presença e uma conduta”. É por ele fundamentada através dos quatro traços da
performance apresentados por Dell Hymes (1973) em Breakthrough into performance:
performance é reconhecimento, “faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade à
atualidade”; a performance está sempre situada em um contexto que é tempo cultural
e situacional, algo que “ultrapassa o curso comum dos acontecimentos”; há três tipos
de atividades no grupo cultural de cada homem, o comportamento, a conduta e a
performance; a performance modifica o que se sabe sobre o conhecimento que ela
transmite: “cada performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em
performance, mas a cada performance ela se transmuda” (ZUMTHOR, 2014, p. 36).
O entendimento de performance como transformação também é abordado por
Schechner em seu livro Perfomance studies: an introduction. No capítulo 3, em que
trata de ritual, o autor define performance como a ritualização de gestos e sons.
Explora então as variações do ritual, o sagrado e o secular, temas relacionados ao
ritual para os estudos de performance, até chegar às transportações e
transformações. Usando exemplos de rituais religiosos, Schechner (2013) trabalha o
conceito de transportações como uma experiência que transforma quem as pessoas
são: “Um performer deixa seu mundo cotidiano e, por meio de preparações e
aquecimentos, entra na performance. Quando a performance acaba, o performer se
acalma e retorna para a vida ordinária”43 (SCHECHNER, 2013, p. 72, tradução e grifo
nosso).
A voz é instrumento através do qual as mulheres do grupo Balanço da roseira
deixam o seu mundo cotidiano. Presente no universo da performance, as vozes
ecoam por intermédio do canto, remetem à memória de cada integrante, são
lembranças de tempos idos. A voz, para Zumthor, não é sinônimo de oralidade. A “voz
é uma coisa”, pode ser descrita, e às suas qualidades são inferidos valores simbólicos.
A linguagem humana é “impensável sem a voz”, e a voz “ultrapassa a palavra”. Voz
que emerge da história da humanidade, nas origens vocais da poesia nos cantos e
43“A performer leaves her daily world and by means of preparations and warm-ups enters into
performing. When the performance is over, the performer cools down and re-enters ordinary life”
(SCHECHNER, 2013, p. 72).
112
Corpo que fala, a voz é sua representação. Uma voz sem corpo é sempre
assustadora. A presença da voz na enunciação da palavra “constitui um
acontecimento do mundo sonoro, do mesmo modo que todo movimento corporal o é
do mundo visual e táctil” (ZUMTHOR, 2014, p. 13). Partimos assim do sonoro para o
visual, posto que a performance é, sobretudo, constituída da forma. “Ordem de valores
encarnada em um corpo vivo”, a performance do grupo Balanço da roseira traz esse
corpo do qual emanam a voz e o ritmo da roda como dança circular. As apresentações
são sempre assim organizadas, em círculo, dando voltas e, alternadamente, cada
dupla se coloca no meio da roda e todas dançam enquanto cantam. A roda é parte da
performance, uma simbologia de união e comunidade. Ao se reunirem em círculo, as
mulheres do grupo “fazem a roda”, e a roda determina o ritmo das cantigas.
O ritmo não é medida, nem algo que está fora de nós; somos nós
mesmos que nos transformamos em ritmo e rumamos para “algo”. O
ritmo é sentido e diz “algo”. Assim, seu conteúdo verbal ou ideológico
não é separável. Aquilo que as palavras do poeta dizem já está sendo
dito pelo ritmo em que as palavras se apoiam (PAZ, 1982, p. 70).
Da mesma forma que o ritmo está ligado ao sentido da poesia, unem-se dança
e ritmo musical: “não se pode dizer que o ritmo é a representação sonora da dança;
nem tampouco que o bailado seja a tradução corporal do ritmo. Todos os bailados são
ritmos; todos os ritmos, bailados. No ritmo está a dança e vice-versa.” (PAZ, 1982, p.
70). Assim, a totalidade da performance do Balanço da roseira pode ser marcada na
presença da voz, no ritmo da roda, no empenho do corpo; esse corpo que se coloca
a serviço do ritmo acompanhado pela voz. Imagem e sentido, o ritmo se afigura como
“atitude espontânea do homem frente à vida, não está fora de nós: expressando-nos,
ele é nós mesmos. É temporalidade concreta, vida humana irrepetível” (PAZ, 1982, p.
74).
No livro Na madrugada das formas poéticas, de Segismundo Spina,
encontramos ainda uma classificação do que o autor chama de “cantos primitivos”,
considerando as práticas rituais e atividades lúdicas: canto mágico, canto mimético,
114
canto iniciático, canto ctônico, canto social-agonal e canto de ofício. Este último está
associado ao trabalho humano como “estimulante e sedativo do esforço muscular”.
Na perspectiva do autor, os cantos que acompanham o trabalho cooperativo
alcançaram desenvolvimento significativo em sociedades agrícolas, “onde o trabalho
adquire uma forma coletiva (danças e cantos por ocasião da colheita, da manipulação
de certos produtos, etc.)” (SPINA, 2002, p. 41). As atividades que compunham o
cotidiano das comunidades agrícolas – que é o espaço de memória do grupo Balanço
da roseira, a quebra e retirada do licuri – desenvolviam “a regularidade rítmica, e com
ela a música, que vem facilitar os movimentos e suavizar o sacrifício do trabalho”
(SPINA, 2002, p. 23).
A “regularidade rítmica” do canto no grupo Balanço da roseira leva ainda em
consideração a forma sonora de cada cantiga, formas também decorrentes do refrão
e paralelismos na composição poética, bem como da repetição de cada verso e
estrofe. A repetição na performance das rodas é, segundo Spina, “elemento
embrionário”; um dos fatores que determina a repetição é a situação emocional em
que os intérpretes estão colocados, como um mantra que, inúmeras vezes repetido,
conduz a alma ao Nirvana. A cadência da repetição dos versos cantados promove
essa elevação de espírito, alcança onde o texto, apenas escrito, não alcançaria: “a
repetição significa a expressão mais simples da concentração do espírito, em virtude
da qual se espera poder provocar o efeito desejado” (SPINA, 2002, p. 47).
Seja com uma ou mais estrofes, as rodas são repetidas inúmeras vezes durante
a performance do grupo Balanço da roseira, e a disposição das intérpretes de cada
“roda” é o que determina quantas vezes ela continuará sendo cantada. Zumthor
determina o ritmo, a expressividade e a repetição como os elementos determinantes
na gênese do canto. A repetição dessa única quadra a torna refrão ou pode se
encontrar rodas em que o refrão se dá como resposta a um ou dois solistas,
semelhantes ao canto responsorial litúrgico, que é, segundo Spina (2002, p. 53), “uma
segunda fase do solo salmódico dos primeiros tempos do Cristianismo, é um exemplo
do segundo tipo, isto é, o solista canta um versículo do salmo, e os fiéis intervêm em
coro com a execução do refrão”.
Qualquer que seja a linguagem utilizada, verbal ou não, palavra ou corpo,
haverá um ritmo, ritmo esse que determinará o significado de cada enunciação,
atraindo o universo em diálogos profícuos. Não há nada em nós além de linguagem:
“a linguagem é o homem, e é algo mais” (PAZ, 1982, p. 63).
115
A dança, prazer puro, pulsão corporal sem outro pretexto que ela
própria é, também, por isso mesmo, consciência. Tanto a dança de
um só, quanto a de casal ou a coletiva, todos os tipos de dança
aumentam a percepção calorosa de uma unanimidade possível. Um
contrato se renova, assinado pelo corpo, selado pela efígie de sua
forma, liberada por um instante (ZUMTHOR, 2010, p. 226).
A cadência da voz marcada pelo balanço do corpo é para Zumthor (2010) traço
que prolonga e esclarece o dito, ou melhor, o entoado, manifestando o que não se
revela apenas no texto oral. Dança acompanhada de canto faz o jogo necessário para
o ritual que se estabelece nas apresentações do grupo.
44 “They give the impression of permanence, of “always having been.” That is their publicly performed
face. But only a little investigation shows that as social circumstances change, rituals also change”
(SCHECHNER, 2013, p. 81, tradução nossa).
45 “The tendencies to move in both these directions are present in all performances” (SCHECHNER,
egregiously exclusive, new rituals will be invented, or older rituals adapted, to meet felt needs.
Not only have rituals been invented wholesale, but older rituals have long provided grist for the artistic
mill or have been used as a kind of popular entertainment” (SCHECHNER, 2013, p. 83, tradução nossa).
47 “[...] a way for people to connect to a collective, remember or construct a mythic past, to build social
solidaritym and to form or maintain a community” (SCHECHNER, 2013, p. 87, tradução nossa).
123
Entre o sufixo designando uma ação em curso, mas que jamais será
dada por acabada, e o prefixo globalizante, que remete a uma
totalidade inacessível, se não inexistente, performance coloca a
“forma”, improvável. Palavra admirável por sua riqueza e implicação,
porque ela refere menos a uma completude do que a um desejo de
realização (ZUMTHOR, 2014, p. 36).
provável que duas pessoas tenham uma percepção similar de uma mesma
performance.
5 SAINDO DA RODA
mutação; não uma totalidade, mas uma intenção totalizante, desde já provida dos
meios de se manifestar” (ZUMTHOR, 2010, p. 253).
Para o autor, a voz poética é atrelada à história da humanidade, entrecruzando
ações de um corpo vivo e em movimento à presença de uma voz que transcende o
uso corriqueiro da linguagem. Essa voz poética indicada não está ligada à transmissão
de uma mensagem em particular, mas é capaz de se fazer ouvir e alcançar outros
sentidos, o visual, o tátil, por meio da performance, sua concretização. A presença do
corpo, a expressão do movimento através da dança, a vestimenta das mulheres, a
melodia das cantigas, o ritmo dado pela roda, são elementos que se fazem entender
no interstício da palavra que, no grupo Balanço da roseira, não é dita, mas é cantada.
No texto poético oral há, portanto, corporeidade, “o corpo é ao mesmo tempo o ponto
de partida, o ponto de origem e o referente do discurso” (ZUMTHOR, 2013, p. 75).
REFERÊNCIAS
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