Dissertação Rosildo Do Rosário
Dissertação Rosildo Do Rosário
Dissertação Rosildo Do Rosário
CACHOEIRA
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS
PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA
DIÁSPORA E DOS POVOS INDÍGENAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA DIÁSPORA E DOS
POVOS INDÍGENAS
Banca de Defesa
Profª. Drª. Vanda Machado
Profª. Drª. Ana Célia da Silva
Prof. Dr. Silvio Humberto dos Passos Cunha
Cachoeira
2020
Cheganças e Marujadas: de uma travessia imaginária a um porto seguro.
BANCA EXIMINADORA
_________________________________________
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus
Professora Orientadora
Professora do Programa
_________________________________________
Claudio Orlando Costa do Nascimento
Co-Orientador Professor
Professor do Programa
________________________________________
Professora Vanda Machado
Professora do Programa
___________________________________________
Professora Ana Célia da Silva
Professora Convidada
___________________________________________
Silvio Humberto dos Passos Cunha
Professor Convidado
AGRADECIMENTOS
Eu vi cupido nu em campo
Descalço pisando em flores
Dizendo viva a quem ama
E morra quem não tem amores...
Este é um trabalho de que jamais poderá ser dito “eu fiz”, mesmo que escrito na
primeira pessoa. Essa foi a maneira que minha limitação permitiu produzir. Quando
agradecemos é porque reconhecemos o quanto foi importante a ajuda de todos, e, nesse caso
específico, foram muitos, de modo que posso até cometer o pecado de esquecer-me de
alguém. Foram vários “ventos de proa”, “alagamento da embarcação”, “tempestades”
terríveis, mas depois de ter colocado o barco n’água, não é possível retornar sem a missão
cumprida. E foi com esse espírito e determinação que retornamos ao porto. É preciso
primeiramente agradecer aos nossos ancestrais, pedir a benção aos Marujos que se
encantaram. É preciso marcar ancestralidade.
Agradecer aos membros do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira,
aqueles que já não se encontram entre nós fisicamente, que partiram ao cumprir sua função
aqui na terra. Agradeço aos cheganceiros de agora, que continuam a navegar sob o meu
comando, acreditando nas rotas traçadas, encarando todas as adversidades e vivendo a triste
vida que um marujo leva, amor de marujo dura mais de uma hora.
Agradeço a minha família, mãe, irmã, irmãos, sobrinhas, sobrinhos, primas,
primos, tios, muitos desses que veem em mim um exemplo de sucesso. A Tia Jelita um
agradecimento especial, minha Yá, que, sempre com palavras certas, me acalmava nos tempos
de ventos fortes, e se permitia ouvir minha reclamações. Com ela aprendi o que é ser paciente.
Tenho certeza que, se estivesse entre nós, seria quem mais vibraria com esse trabalho.
Acredito que lá do Orum observa e orienta. Agradecer Minha companheira Cosminha
Conceição Ribeiro, que, com paciência, resistiu, assistiu a tudo acontecer, e, em muitos
momentos, cobriu as minhas faltas; a Dandara Rosa Ribeiro do Rosário, minha filha, que
admira intensamente as minhas produções; a Juão Miguel Ribeiro do Rosário, meu filho, o
mais especial agradecimento ele me permitiu imitar seu avô nesse fazer cultural.
Agradecer à Professora Mestra Vanessa Pereira Almeida que sempre esteve por
perto a me encorajar, e dando as preciosas dicas, porque também se navega em águas doces; a
Eliege Santiago Santos, braço forte nas remadas para construção do livro; ao professor Jarbas
Farias, que gentilmente cedeu a sua arte para compor o material. Um agradecimento especial
à Professora Luciana Maria de Lima Barreto, que me incentivou durante todo o processo do
curso. Obrigado Daniela Barros Pontes e Silva, Saulo Pequeno Nogueira Florencio que,
mesmo distante, não esqueceu em momento algum de contribuir, sugerindo importantes
leituras.
Aos mestres e mestras de todos os grupos de Cheganças, Marujadas e Lutas entre
Mouros e Cristãos da Bahia, com quem tive contato durante esse processo de construção.
Suas palavras deram uma melhor e maior dimensão do que é ser agente cultural.
Conquistamos para todos os grupos o Título de Patrimônio Imaterial da Bahia, num processo
lindo de articulação e envolvimento de todos. Obrigado!
Agradecer a Oxum, por ter me concedido a honra de suas orientações através da
Professora Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus, minha orientadora, que conduziu parte dessa
navegação com a sabedoria que só uma filha de Oxum conseguiria. Zelosa, paciente e
sensível, com o reflexo de seu Abebé indicava a direção a seguir.
Agradecer a minha Tia Dodô, que nesta data parte para o mundo de Orum,
deixando seus ensinamentos para todos os que tiveram a oportunidade de uma vivência com
ela, fazendo valer que, mesmo se a travessia for imaginária, chegaremos a um porto seguro.
Saubara, 25 de maio de 2020.
Dedico este navegar a Maria Anna Moreira do
Rosário e a Raimundo Bento do Rosário, meus pais,
que me introduziram nesse universo com a certeza de
que eu seguiria a rota do bem.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira
como um grupo da cultura tradicional que oferece elementos que colaboram com a formação
da identidade da comunidade de Saubara, por ser constituído das memórias coletivas e
individuais das pessoas desse lugar, por fazer referências históricas de como essa Saubara foi
importante para Independência da Bahia, demonstrar como a prática milenar da oralidade, o
“boca a ouvido”, tem sido um dos principais veículos na preservação dessa manifestação e
discutir como a política de patrimonialização, que reconhece as Cheganças e Marujadas como
patrimônio imaterial pode colaborar para a sua preservação, sem transferir para o Estado a
responsabilidade orgânica de preservação que pertence aos seus fazedores. Busco ainda
evidenciar a música como elemento de memória, dando a ela o status de elo que dá unidade
para os pilares trabalhados. Trazer um novo olhar acerca da religiosidade também constitui
esse trabalho, uma vez que todas as retóricas antes existentes apontavam para a fé sob a
perspectiva do colonizador.
The objective of this work is to present the Chegança dos Marujos Fragata Brasileira as a
group of traditional culture that offers elements that collaborate with the formation of the
identity of the community of Saubara, for being constituted of the collective and individual
memories of the people of that place, for making historical references of how this Saubara
was important for Independência da Bahia, to demonstrate how the ancient practice of orality,
the “word of mouth”, has been one of the main vehicles in the preservation of this
manifestation and to discuss how the patrimonialization policy, which recognizes Cheganças
and Marujadas as intangible heritage it can collaborate for its preservation, without
transferring to the State the organic responsibility of preservation that belongs to its makers. I
also try to highlight music as an element of memory, giving it the status of a link that gives
unity to the pillars worked on. Bringing a new perspective on religiosity also constitutes this
work, since all the rhetoric that previously existed pointed to faith from the perspective of the
colonizer.
Foto 2 Luta entre Mouros e Cristão da cidade de Alcobaça, apresentação em janeiro de 2018.
Foto: Rosildo do Rosário ---------------------------------------------------------------------página 37
Foto 3 Marujada de Jacobina apresentação em abril de 2018. Foto: Reinilson do Rosário ------
-----------------------------------------------------------------------------------------------------página 38
Foto 7 Chegança Fragata Barca Nova da cidade de Saubara, em setembro de 2018. Foto:
Reinilson do Rosário----------------------------------------------------------------------------página 90
Darei uma maior atenção para Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira,
da cidade de Saubara, descrevendo suas histórias, suas ocorrências, como se dá sua
organização, como é sua relação com a comunidade, seus rituais, como se relaciona com
outras manifestações culturais da comunidade, como é sua indumentária, sua performance,
dentre outros aspectos. Isso, na tentativa de vislumbrar como este grupo vem, através dos
tempos, mantendo-se como referência cultural e elemento de transformação da identidade e
subjetividade da comunidade de Saubara, utilizando-se da oralidade como fundamento para
sua transmissão, ainda que a educação formal tenha deixado de lado essa característica.
A metodologia proposta é o trabalho com narrativas dos integrantes do grupo de
Chegança, coletadas por meio de entrevistas que privilegiarão, além das histórias de vida, a
convivência cotidiana no contexto da manifestação. Será considerada também a minha própria
experiência enquanto fazedor de cultura e componente do grupo. Como resultado deste
projeto, pretendo apresentar um livro, que poderá ser utilizado como material paradidático no
contexto escolar destinado para estudantes das séries iniciais do ensino fundamental da cidade
de Saubara e região, para o fortalecimento das ações destinadas ao cumprimento da Lei
11.645/2008.
Algumas questões foram postas e levantadas para nos orientar sobre quais mares
navegar. Como é possível um grupo de uma manifestação cultural manter-se resistente ao
longo dos tempos, enfrentado as mais diversas investidas de uma camada da sociedade que
cada vez mais tenta apagar da história os fatos que revelam quais foram os verdadeiros
caminhos que lhes trouxeram até aqui? Como os conhecimentos que são transmitidos através
da oralidade mantiveram-se presentes nas comunidades tradicionais e colaboraram para que a
cultura popular se tornasse um elemento de formação identitária? Como a ideia de patrimônio
cultural e o processo de patrimonialização das manifestações de natureza imaterial, vêm sendo
utilizados para uma tomada de consciência por parte dos agentes culturais detentores e
detentoras dos saberes e fazeres tradicionais? Estas são algumas das perguntas que buscarei
elucidar com a continuidade do trabalho, caso seja possível encontrar respostas para esses
questionamentos, assim conseguirei os objetivos propostos, que são: investigar como o grupo
cultural Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, por meio da oralidade, resiste ao tempo, e
como tem atuado na formação da identidade das pessoas que vivem em torno do grupo e da
comunidade de modo geral; realizar um levantamento das letras das canções da Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira, buscando compreender como estas podem contribuir com a
educação escolar para o cumprimento da Lei 11.654/2008; e, ainda, investigar como o
conceito de patrimônio cultural pode contribuir para que as pessoas envolvidas nas mais
diversas manifestações culturais possam se reconhecer como agentes protagonistas do
processo de formação de suas próprias identidades. Apresentaremos também relatórios de
atividades desenvolvidas a partir do grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, que
desencadearam o processo de registro dos grupos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas
como Patrimônio Imaterial do Estado da Bahia, além dos resultados do inventário que serviu
para embasar o dossiê, peça fundamental para o registro. Uma literatura também específica
será visitada para que possamos comparar as nossas experiências com experiências vividas
em outras comunidades. Trabalhos como os de Antonio Osmar Gomes, D. Martins de
Oliveira, Manuel Quirino, Oneyda Alvarenga, Altimar de Alencar Pimentel e Theo Brandão
servirão como base para essa reflexão. O trabalho do professor Nelson Araújo, que no início
da década de 1980 coletou importantes dados do grupo Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira, será utilizado para que possamos realizar uma análise dessa manifestação nos dias
atuais.
INTRODUÇÃO
Desde cedo, aos três anos de idade, meu pai, Raimundo Bento do Rosário, me
apresentou a esta manifestação. Com ele aprendi as primeiras canções, bem como a tocar o
pandeiro da Chegança. Pandeiro que tem uma peculiaridade: não é aquele toque que todo
mundo conhece, há um jeito especial para tocar o pandeiro da chegança, a sincronia do riscar
e bater o pandeiro faz com que ele seja diferente. O abafar e soltar da pancada faz o seu som
ser diferente, seu canto e contra canto conduz a cantiga. É tocado por 30 pessoas
simultaneamente, são vários tamanhos e espessuras, que, ao serem tocados conjuntamente,
fornecem uma música peculiar.
Tenho na memória os ensaios, toda tarde de domingo, na Rua do Cansanção, onde
me parece que hoje é a casa da família da finada Dona Izartina. Era uma casa ainda em
construção, uma casa de taipa, “casa de barro”, como falamos. Muitas pessoas se reuniam
para assistir o ensaio, pois essa era a principal atração nas tarde de domingo. O chão era de
areia, e quando dançávamos subia um poeirão, e eu ficava ali encantado em meio a tanta
alegria. As pessoas em volta se envolviam a cada momento que parávamos para lembrar a
canção.
Minha avó paterna Maria Joana do Rosário era aquela a quem todos ouviam, era a
mais velha. Não conheci meu avô Torquato Leandro, já havia falecido quando nasci. Com
certeza foi um dos componentes desse grupo outrora. Minha avó tinha na memória todo o
repertório, e estava sempre ali pronta para colaborar. Ela fazia os “ensinamentos”, era assim
que se chamavam os “workshops” antigamente. Antes dos ensaios formais, todos se reuniam
em torno dela para ouvir seus relatos, todos queriam saber como meu avô fazia, e o que ele
cantava. Assim o grupo foi sendo reerguido.
Não sei bem por qual motivo tivemos que buscar outro lugar para os ensaios,
mas, depois de algum tempo, passamos a ensaiar no bar de Zé de Umbu, na rua do lavador e
as tardes de domingo continuavam alegres. Era uma grande festa, muita gente vendia
amendoim cozido, amendoim torrado, licor, mugunzá, arroz doce, tudo isso para ajudar na
confecção das roupas.
O Tempo se passou e tivemos que ir para outro lugar para ensaiar, fomos então
para a “biboca” de Codô, ali mesmo na rua do Lavador. Codô era o Comandante da Marujada,
um senhor negro, alto, forte, e que tinha na voz e na postura a delicadeza de um comandante:
na retaguarda da marujada, não permitia que os marujos destoassem ou bailassem de forma
errada. Seu apito trazia o som de finalizar uma encenação. Codô cedeu seu espaço durante um
tempo, mas, nesse mesmo período, se desfez da biboca, e tivemos que encontrar outro espaço
para os ensaios. Foi então que Seu Vivaldo, filho Seu Satu um dos Marujos, emprestou uma
casa que acabara de construir na rua do Taboão, Vivaldo morava em Salvador, e sempre aos
finais de semana vinha com a família para Saubara, e as vezes os ensaios não podiam
acontecer, foi então que Seu Gonçalo, I gajeiro do grupo, cedeu um casebre que tinha nos
fundos de sua casa, era onde ele guardava rede, remo, cofo, candeeiro, seus instrumento de
pesca, era um espaço grande, os ensaios aconteceram por lá, até a construção da sede da
Chegança.
Numa das apresentações que o grupo fez em Salvador recebemos um cachê, com
esse dinheiro decidiu-se, em reunião, comprar um terreno. Encontram o lugar perfeito na Rua
chamada Boca da Mata, perto de uma alfaiataria onde os marujos se juntavam para jogar três-
sete.1 Numa manhã de domingo todos se reuniram para iniciar os trabalhos de construção com
a limpeza do terreno. Lembro-me bem de Ica, marujo alto, forte, pescador, um dos primeiros
que chegava nesses dias, meu pai, João de Iaiá, Grigório, Muca... foi um dia de farra! Para
dar início à construção houve também um mutirão para buscar pedra. Todas as pedras usadas
para as alvenarias da sede foram tiradas na maré, com marretas e alavancas. Várias manhãs de
domingo nessa labuta. Num dia desses de tirada de pedras, quando voltávamos depois de a
maré encher, passando por um rego, um peixe se bateu nas raízes do mangue, e foi uma festa,
vários tentaram pegar esse peixe e Guga foi o mais ágil.
O grupo recebeu um convite para participar, dos festejos do dia de marinheiro no
segundo Distrito Naval em Salvador. Foi um grande alvoroço na cidade. Minha tia trouxe a
notícia, porém muitos dos membros não acreditaram, outros ficaram com medo, parecia o
episódio narrado por Manoel Quirino:
Em certa ocasião, pelos festejos do dois de julho, João Pacheco, almirante de uma
chegança, dirigia-se ao largo da lapinha, como de costume, no intuito de
acompanhar os emblemas de nossa emancipação política. Ao chegar à praça de
Palácio encontrou uma divisão do exército, estendida em linha, tendo à sua frente o
comandante das armas, general Luiz da França Pinto Garcez. João Pacheco, bem
persuadido de sua posição de almirante, fez parar o préstito, e, de acordo com as
ordenanças em vigor, prestou as homenagens a que tinha direito o general, com
1
Um jogo de baralho muito antigo de que hoje só temos notícias de ser jogado em Saubara.
todas as formalidades do estilo. O general, por sua vez, não se fez esperar,
retribuindo ao almirante a continência a que tinha direito, na ocasião. Esta
circunstância, de todo imprevista, molestou a vaidade do capitão do porto, oficial da
armada, Sr. Leal Ferreira [...] a ponto de procurar vingar-se com o popular João
Pacheco, por ter batido a continência do general, num dia de entusiasmo patriótico.
(QUIRINO, 1955, p. 65).
Foi preciso que viesse uma carta convite para que alguns acreditassem, e outros
criassem coragem para ir ao tal evento. Chegado o dia (se não me falha a memória era 13 de
dezembro de 1985), e um ônibus cinza, um carro oficial da Marinha do Brasil, chegou à
cidade. Muita gente queria ver se era verdade que o grupo iria mesmo para o quartel da
Marinha em Salvador. Antes da apresentação dentro dos festejos da Marinha, fomos à Igreja
de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde o grupo fez a reverência, uma das mais bonitas
que já presenciei.
Tive a felicidade e honra de ter sido concebido numa família onde as
manifestações culturais tiveram sempre presente. Minha família materna muito envolvida
como Samba de Roda e a família paterna com a Marujada. Esse ambiente me proporcionou a
possibilidade de uma educação diferenciada, fora dos padrões da escola informal. E ter tido
desde cedo contato com esse universo do aprendizado orgânico foi o caminho para agora
conseguir ter alcançado a realização de projetos extremamente importantes para a preservação
dessas manifestações.
No Grupo Cheganças dos Marujos Fragata Brasileira entrei como marujo, o mais
jovem marujo, com apenas 3 anos, e cresci com o grupo. No grupo, uma das maiores alegrias
foi quando recebi a notícia de que seria o calafatinho. Deveria ter 9 anos, quando, em um dos
ensaios, que acontecia sempre aos sábados, o Contra-Mestre Duca disse: “Vamos ouvir a
rezinga2 do nosso calafatinho”, e me chamou para perto dele. Ele apitou, os guias iniciaram
com os pandeiros, e eu, sem demora, cantei: “Eu já não posso mais bailar ô mais bailar,
mande-me senhora eu sentar, que é para eu puder descansar...”, eu já sabia toda letra,
conhecia o exato momento de cada intervenção na encenação. Sabia quando o piloto cantaria,
quando tinha que me reportar ao piloto, ao mestre, ao patrão, como se fala, sabia tudo “de cor
e salteado”, e quando cantei: “Graças aos céus de todo meu coração ainda ontem estava
preso e hoje já tô no cordão”, percebi que tinha conseguido. A partir daquela data eu era o
calafatinho e pude com muito orgulho, cantar minha rezinga.
2
Rezinga é o efeito de rezingar, uma espécie de reclamação, discordância. O calafatinho reclama que tem
trabalhado excessivamente e precisa de descanso. No meio da encenação, é acusado e preso, apela para os
oficiais e é solto. De maneira bem alegre, festeja no final.
Ser calafatinho não dura muito tempo. Esse personagem é ocupado sempre por
criança, e criança cresce. Eu cresci, e voltei a ser marujo comum. Participei de algumas
apresentações depois, mas dois motivos me fizeram por algum tempo me distanciar do grupo.
O primeiro, é que muito rapidamente minha roupa se perdia. O grupo fazia apenas duas
apresentações ao ano, e era necessário confeccionar roupa todos os anos. Por um período foi
muito difícil para meus pais conseguir confeccionar minha farda (calça, camisa, sapato,
chapéu, cinto, meia). Segundo, chegou também a adolescência, e com ela os mais diversos
conflitos. Encontrei outros grupos, outras pessoas, que momentaneamente atraíram minha
atenção. Mas, de alguma forma, estava sempre envolvido com a marujada. Acompanhava o
zelo que minha mãe tinha com a farda de meu pai, o cuidado que meu pai tinha pela espada, a
mágica do 4 de agosto, os ensaios... Eu saí da chegança, mas a chegança nunca saiu de mim.
O sentimento de pertencimento é mais forte, e ecoa na lição aprendida com a canção:
“Cresce, cresce meu menino para a pátria defender, que o Brasil está jurado, liberdade ou
morrer”.
Nessa transição da juventude para a fase adulta, eu me reencontro novamente com
a Chegança, e dessa vez espero que para sempre. Era por volta de 1996, meu pai ocupava o
posto de Contra-Mestre, e eu juntei-me novamente ao grupo. Assumi o posto de piloto,
função antes ocupada pelo meu pai. Tive momentos fabulosos, pude com meu pai, diversas
vezes, cantar a rezinga do contramestre e piloto3 e sentia o orgulho dele em cantar comigo,
sentimento que era recíproco. Viver esse grupo tornou-se necessidade vital. Mais
concretamente percebi o quanto era dali que havia absorvido ensinamentos, que os momentos
mais perigosos da vida pude driblar e sair ileso. Foram mais de dez anos vividos intensamente
com meu pai no grupo, quando de repente descobrimos que ele estava doente. Um câncer na
garganta forçou sua saída das apresentações do grupo. Desde então, eu assumi sua função e
permaneço até os dias de hoje. Seis meses após a descoberta da doença, ele faleceu, e além de
assumir a função, assumo também a responsabilidade de criar outros mecanismos para que o
grupo permaneça em atividade.
São 41 anos de contínua transformação, aprendizados, crescimento. Sem a
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira seria impossível conseguir perceber a vida sob a
ótica da necessidade da vivência coletiva, da valorização e preservação da memória, da
valorização da família. Foi esse grupo que me mostrou que é possível persistir na travessia e
3
Nessa rezinga, o contramestre acusa o piloto de não saber para onde está navegando.
enfrentar com as tempestades, lembrando sempre do ensinamento: é certo chegar a um porto
seguro.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
INTRUDUÇÃO
Chegança dos marujos fragata brasileira: Memória de um marujo de primeira viagem.
Capítulo I
1-CULTURA, UMA NOVA VELHA FORMA DE EDUCAR: OS SABERES E FAZERES
TRADICIONAIS, PODER PARA UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA.--21
Capítulo II
2-ORIGEM DO TERMO CHEGANÇA E SUAS DEFINIÇÕES.--------------------------------30
Capítulo III
3-ETNOMÉTODOS PARA A PERPETUAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES DA CULTURA
POPULAR------------------------------------------------------------------------------------------------41
3.1.1 Analogia entre os poemas dos Lusíadas de Camões e a cantigas da Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira.-----------------------------------------------------------------------------48
Capítulo IV
4-Patrimonialização novos horizontes para uma autoorganização e autoreconhecimento. -------
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------75
Capítulo V
5-PROJETOS DESENVOLVIDOS E AÇÕES SOCIAIS.---------------------------------------132
4
Trecho de cantigas do grupo, uma estrofe que aparece em diversas músicas e em diversos ritmos.
Independência ou morrer.5
Ouvir esse trecho de umas das músicas da chegança era como se todos dali
estivessem repassando para mim aquela responsabilidade. Soava-me como algo direto,
pois eu era o menino dali. Além disso, abre espaço para outra indagação: quem
primeiro cantou esse trecho? Quem ouviu de quem esse trecho? É possível que se
tenha uma construção simultânea desse trecho? Uma possibilidade de estudo que a
educação formal ignora, e que está ali sendo cantada, declamada por um grupo da
comunidade onde crianças, jovens e adultos que compõem o grupo, são os mesmos
que estão no ambiente escolar. A instituição não percebe ou não considera que esses
conhecimentos trazidos de fora podem servir como elemento potencializador da
aprendizagem escolar. Conhecer determinados assuntos através de um grupo cultural
pode revelar a natureza pedagógica que a cultura oferece para que o cidadão aprenda.
Para Tomaz Tadeu (2010) esses conhecimentos extracurriculares
Ser do recôncavo, baiano, saubarense, brasileiro, para mim tem muito mais
significado por ter aprendido no grupo cultural do que ter sido forçado a um
5
Trecho do hino da Bahia.
aprendizado sem significação. Arrisco-me a interpretar de forma bastante firme, a
possibilidade de como, de maneira sutil, tais ensinamentos foram incorporados nesta
manifestação, utilizando-se da ludicidade, do canto, da dança, da música, para fazer
aprender sobre fatos históricos importantes. Faz-se necessário salientar que a partir
desta ótica
6
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura (PPgLinC) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), para a disciplina LETE04 - Tópicos em Sintaxe II, ministrada pela Profª Drª Maria
Cristina Figueredo e pelo Prof. Dr. João Paulo Lazzarini Cyrino.
Graças ao céu/ Ô Maria Virgem Bela 2x7
Ainda agora em perigo/ Já estou em salva terra 2x
7
Musica do Grupo Chegança do Marujos Fragata Brasileira. Trecho da encenação da Barca, depois de
sérios problemas na embarcação o calafatinho conserta e todos seguem para um porto seguro.
8
Termo que vem sendo usado pela para designar uma pessoa que participa de uma chegança.
...Meus bons marujos vamos a Lisboa
Com o gajeiro acima, já avistou terras boas...
9
Avis, cidade próxima a Lisboa, Portugal.
lembranças trazidas do continente africano seriam como elementos constituintes do
território brasileiro. E ao relacionar as navegações no Brasil apenas às navegações
portuguesas, fica explícito o pensar que os portugueses opressores, que também
dominavam a navegação, e através dela chegaram às nossas terras e as exploraram,
provoca uma forma de preconceito contra todos os grupos culturais que têm em seu
enredo temas marítimos, como é o caso das Cheganças/Marujadas. Esse preconceito
fez com que permanecêssemos por bastante tempo às margens das políticas culturais e
sociais.
Foi no transatlântico que a diáspora africana aconteceu. Foi assim que o
Brasil recebeu milhares de pessoas que foram em condições sub-humanas para outras
terras, e tiveram que adaptar-se, e ao mesmo tempo, produzir novas formas para a
manutenção de suas tradições. Logo após o período da colonização, instalou-se no
Brasil uma forma de opressão na qual as pessoas não tiveram condições de enfrentar a
nova ordem social. Para Hall (2009) o período pós-colonial dissolve a política de
resistência, uma vez que “não propõe uma dominação clara, nem tampouco demanda
uma clara oposição”. (HALL, 2009 p. 96).
Essa demanda clara de que fala Hall (2009) aparece na forma com que os
povos descendentes de africanos encontraram para manterem-se vivos, e com a
capacidade de continuar com suas práticas no Brasil. Não foi diferente o que aconteceu
com as cheganças, apesar da sua ligação estreita com a cultura ibérica, foram os negros
descendentes que assumiram o seu fazer, como maneira de estar inseridos nas atividades
em suas comunidades. O ato de ligar imediatamente a chegança à Portugal e Espanha,
de maneira naturalizada, é uma forma de invisibilização da participação negra nessa
manifestação. Esse pensar permitiu o crescimento de um processo preconceituoso com
esses grupos. Kubik(2008), aponta esse preconceito e ao mesmo tempo explicita de
maneira bastante nítida que vem da descendência negra africana um dos principais
elementos que compõem essa manifestação. É a partir desta consciência que
assumimos o nosso papel de povo tradicional, de comunidade tradicional, de afro-
brasileiro que ao longo dos tempos teve que se apropriar de todos os modelos impostos
e ressignificá-los, para manter viva a sua memória:
Para o autor, é o povo negro quem mais contribui para a permanência de tal
manifestação. É o seu corpo que, explorado na escravidão outrora, agora é elemento que
indica de onde provém sua existência. As Cheganças possuem elementos característicos
distintos, que, no momento da interconexão, originam especificidades. As performances
do grupo, baseadas em movimentos corpóreos elevados pelos cânticos, criam narrativas
que contribuem para o conhecimento do processo histórico vividos em sua dimensão
marítima. Entendemos, dessa forma, que os grupos de Cheganças se constituem num
espaço de produção do saber/fazer, gerando simultaneamente, conhecimento histórico,
expressão artística e manutenção da salvaguarda da cultura local e ancestral.
Encontramos em comunidades resquícios dessa influência negra, nas narrativas de
pessoas que até hoje transmitem ensinamentos, a partir da consciência da contribuição
de povos africanos no meio dessa manifestação. No extremo sul da Bahia, nas cidades
de Caravelas, Alcobaça e Prado, encontramos depoimentos que apontam para essa
ligação entre essa manifestação e o continente africano: Adilson Santos membro da
irmandade de São Benedito, e da Marujada nos disse em entrevista que:
10
Entrevista realizada na cidade de Prado em dia 02 de abril de 2018.
11
Entrevista realizada na cidade de Prado em dia 2 de abril de 2018
12
Entrevista realizada na cidade de Alcobaça em dia 1 de abril de 2018
Como vemos, as celebrações artísticas as vivências de navegações
extrapolam o limite da dominação portuguesa no Brasil. É no fazer da
chegança/marujada que os negros encontram uma maneira de permanecer com suas
memórias vivas nas terras do além mar.
13
Entrevista realizada na cidade de Alcobaça no dia 01 de abril de 2018.
Curaçá, que devido à quantidade de participantes no dia da festa, os dispõem em
diversas fileiras.
Os grupos de Cheganças ou Marujadas têm diferentes características nas
diferentes comunidades onde aparecem. As cheganças de marujos são representações
culturais desenvolvidas dando origem no Brasil a outras manifestações populares, como
Fandango, Nau Catarineta, Marujada e Marujos Oneyda Dantas apud (Alvarenga 1976).
Todos esses grupos trazem memórias de acontecimentos de grande importância para a
compreensão da construção do nosso Estado, por utilizar de elementos de
acontecimentos que foram reelaborados por brasileiros. Segundo Alvarenga (1995):
Os estudos que estamos fazendo sobre esta manifestação nos orientam para
a compreensão que, de fato, as Cheganças de Marujos/ Marujadas em cada comunidade
que estão inseridas elementos próprios são colocados como complementos. Esses
elementos fazem parte daquilo é de cada indivíduo ali integrante ou de uma
característica do lugar, ou, ainda, um acontecimento histórico que marca aquela
comunidade.
CAPÍTULO III
O tema oralidade é talvez o que mais faça sentido quando se trata de uma
manifestação cultural, seja ela qual for. A forma encontrada para a continuidade de
práticas ancestrais, em terras ocidentais, tem origem na oralidade, e essa é, sem sobra de
dúvida, a porção mais africana encontrada nos grupos de manifestações populares.
Portanto, é importante fazer uma análise do que é a oralidade nas comunidades
tradicionais africanas, e como essa oralidade chega e se finca no Brasil, e como tem sido
ela o elemento mais eficaz na existência de práticas culturais.
Quando falamos da tradição em relação à historia africana, referimo-nos à
tradição oral, nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos
terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
pacientemente transmitido de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos
séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de
grandes depositários, de quem se pode dizer são memórias vivas da África (HAMPATÊ
BÂ, 2010). Esse ensinamento parece ter sido aprendido nas outras bandas do Atlântico,
o espírito dos povos africanos é vivido de forma intensa, e o seu legado é cultuado na
sua forma mais sublime. A oralidade que vem fornecendo a condição de resistir e de
existir das comunidades e manifestações tradicionais, cultura de ouvir os mais velhos,
de ter paciência para escutar e transmitir o que se ensinou, é a tecnologia mais avançada
na manutenção das tradições.
14
Depoimento de Roque Antonio da Silva, 50 anos. Entrevista realizada em sua residência em Saubara-
BA, no dia 14 de outubro de 2019.
Roque Antonio da Silva tem 50 anos de idade, já foi mestre da filarmônica
São Domingos da cidade de Saubara, professor graduado em pedagogia, pescador, e
desde 2006, participa do grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, sendo o II
gajeiro15. Para ele é necessário que o grupo se aproprie de novas maneiras de lidar com
a transmissão, uma evidente preocupação com a existência do grupo. Há uma atenção
para que ocorra um aprendizado mais acelerado, isso parece uma nova ordem, imposta
por uma sociedade cada vez mais sedenta de resultados imediatos, e os grupos culturais
sofrem também essa influência do imediatismo. Entendo que isso não é dos problemas o
mais grave, parece possível uma convivência harmoniosa entre saberes tradicionais e
novas tecnologias, desde que os métodos não inferiorizem os ritos, ou estaríamos
novamente sofrendo com a hegemonização das culturas. Observo a necessidade de uma
mediação constante, para que sempre haja a possibilidade de uma revisão das práticas,
que seja possível os grupos se retroalimentarem tendo na memória a condição de não
perder de vista sua verdadeira história.
Desde muito cedo, ouvia dizer que muitas pessoas que vieram para ajudar a
fundar o Brasil só trouxeram as suas memórias. Essa afirmação me intrigava, ficava a
pensar como trazer coisas na memória, no pensamento? “É na cabeça que guardamos
nossa força”, dizem os mais velhos. Fui crescendo e juntando esses pensares, e para
mim não foi difícil concluir os ensinamentos por trás deles: precisamos conservar as
nossas lembranças e fazer com que elas sirvam para o nosso próprio crescimento.
Falar de memória é, sobretudo, falar de uma capacidade inerente ao ser
humano, a capacidade de preservação de ensinamentos do passado e tudo o que está
diretamente ligado a eles. As lembranças que temos de acontecimentos do passado são
possíveis devido à capacidade da nossa memória, que “remete-nos, em primeiro lugar, a
um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 2003,
p.419). Como uma manifestação popular existe e resiste ainda nos dias atuais, se não
pela preservação de memórias, com esforços de muitos que buscam e entendem a
necessidade da manutenção daquilo que aprenderam através da transmissão oral?
15
Gajeiro é o marujo que fica no alto do mastro da embarcação, sua função é informar quando a
embarcação aproxima-se de terras firmes.
Segundo Maurice Halbwachs (2006), um dos primeiros intelectuais a falar
sobre memória, há uma divisão onde são apresentados dois grupos: Memória Individual
e Memória Coletiva. Esse primeiro, seria a memória vista a partir somente da ótica de
uma pessoa, essa pessoa guarda o passado em torno de si; já a memória coletiva seria
composta por lembranças, recordações distribuídas dentro de uma comunidade, grande
ou pequena, em que as imagens coletadas tratam de uma memória externa ou no social.
Na entrevista feita com Luan Moreira de Castro, membro dos grupos
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, ele apresenta a sua mais distante memória
desse grupo:
16
Depoimento de Luan Moreira de Castro. Entrevista realizada na Sede da Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira, em Saubara – BA, no dia 16 de outubro de 2019.
contada. Para Maurice Halbwachs “não é preciso que outros estejam presentes,
materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa
quantidade de pessoas que não se confundem” (HALBWACHS, 2003, p. 30). Os mais
diversos grupos de manifestações culturais passam por longos períodos desativados,
alguns deixam de existir por inúmeros fatores, como falta de apoio financeiro, falta de
interesse da própria comunidade, falta de espaço físico para suas atividades, falecimento
das pessoas mais idosas, dentre outros muitos aspectos. Aqueles que ressurgem para dar
continuidade em suas comunidades, vivem na busca incansável de superar todas essas
adversidades citadas, mas, o que de fato lhes permite retomar suas ações é a capacidade
de rememorar, são esses flashs deixados na memória que as faz entender:
17
Depoimento de Roque Antonio da Silva, 50 anos. Entrevista realizada em sua residência em Saubara-
BA, no dia 14 de outubro de 2019.
a fotografia também nos incentiva a adivinhar aquilo que está fora do
cenário fotografado [...] e uma das qualidades da imagem fotográfica
reside precisamente neste poder de evocação, no fato de que ela pode
suscitar, naquele que observa o desejo de conhecer mais, de imaginar,
de reconstruir interiormente, a partir da visão de um destes momentos,
o conjunto de uma vida”. (DEL PRIORE apud SILVA, 2008. p. 94).
MARUJADA (coro) I
Ora Deus bela menina 2x
Eu de Lisboa cheguei 2x
Eu trago pratas bem finas 2x
E ouro no singular 2x
Cheguem os senhores ourives 2x
Para seus preços venha dar. 2x
Ourives:
18
O guarda-marinha é o responsável por proteger as riquezas (ouro, prata), em alguns grupos o
tecido(peça) aparece como essa riqueza.
19
O ourives é o marujo especialista em ouro, é responsável por assegurar a autenticidade das jóias.
20
O General é um dos oficiais da Marujada. Um fato curioso. Não existe a figura de general da marinha.
Uma das narrativas de sua aparição é que a marinha solicita do exército o seu melhor combatente para
ajudar nas batalhas, e um general foi escolhido.
21
Contramestre é aquele que comanda a proa da embarcação, o responsável por indica a direção para
navegar.
22
Os gajeiros são os marujos responsáveis em verificar a condição climática, ficam sempre no alto do
mastro de onde também é possível ver aproximação de inimigos.
Dou-te vinte mil cruzado 2x
Pelo ouro fino real 2x
Se não quiser me vender 2x
Vou dar parte ao general 2x
MARUJADA (coro) II
Dou-te vinte mil cruzados 2x
Pelo ouro fino real 2x
Se não quiser me vender 2x
Vou dar parte ao general 2x
Guarda Marinha:
Ora Deus bela menina 2x
Eu de Lisboa cheguei 2x
Eu trago pratas bem finas 2x
E ouro no singular 2x
Cheguem os senhores ourives 2x
Para seus preços venha dar. 2x
MARUJADA (coro) I
Ourives:
Salve vossa excelência 2x
Meu tenente general 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo ouro por arte 2x
Ourives:
Salve vossa excelência 2x
Parte eu já estou lhe dando 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo contrabando 2x
MARUJADA (coro) IV
Salve vossa excelência 2x
Parte eu já estou lhe dando 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo contrabando 2x
General: falando.
Vem-te cá Guarda Marinha 2x
Me diz por que razão tu vendes contrabando dentro dessa
embarcação?.
General: falando.
Você não sabe que dessa nau eu sou o chefe de divisão?
Guarda Marinha: falando.
Parece não ter política nem tão pouca educação, ajoelha em meus pés
venha me pedir perdão, pelo falso que me levanta dentro dessa
embarcação
General: falando.
Que atrevida resposta senhores oficiais me deu esse guarda marinha.I
e II gajeiro prenda esse guarda marinha.
Guarda-Marinha
Ai de mim Mestre Piloto?
Piloto
Tô de férias
Guarda-Marinha
Aí de mim Calafatinho?
Calafatinho
Quando eu estava preso você não me soltou.
Guarda-Marinha
Ai de mim Contra- Mestre?
Contra- Mestre
Quem te prendeu que te solte.
Guarda-Marinha
Aí de mim Comandante?
Comandante
Não tenho nada haver com isso
Guarda-Marinha
Aí de mim General?
General
Vá pagar sua culpa.
Depois de implorar por ajuda a todos os oficiais, sem sucesso, com a última
fala do general é retomado o canto onde vai acontecer a condenação feita pelo
contramestre, e em seguida, o lamento do guarda-marinha. Nesse trecho, o som dos
pandeiros é novamente incorporado na encenação.
Contramestre:
MARUJADA (coro) V
Com as tuas próprias 2x
Mãos o trabalho procurou2x
Chora agora sem remédio 2x
Bem feito quem te mandou 2x
MARUJADA (coro) VI
Deixa-me viver em duras penas
Já que a sorte me condena
Ai de mim um triste amante
Chorando as minhas grandes dores
E não me venha lembrar
Saudade dos meus amores
Guarda-Marinha.
Não charas menina de ver a minha prisão 2x
Eu já estou livre dos ferros bailando nesse cordão 2x
MARUJADA (coro)VIII
23
O Comandante também chamado de Capitão Patrão é o oficial responsável pelos marujos, comanda
orienta a disposição de cada um deles em seus lugares, motivando o canto e a dança.
24
Padre Capelão uma de suas atribuições dar o sacramento da unção, aos feridos nos combates é manter a
fé entre os marujos.
25
O Calafatinho é um marujo necessariamente uma criança que tem a atribuição de calafetar(consertar) os
danos sofridos pela embarcação, apenas uma criança chega aos lugares mais estreitos de uma
embarcação.
tempo, solicitam que os gajeiros observem sobre a possibilidade de seguir viagem ou
atracar em algum porto e esperar a tempestade passar. O ritmo é dado pelo pandeiro que
muda de ritmo diversas vezes durante a encenação:
Comandante Falando.
Vamos ouvir no I Gajeiro
I Gajeiro.
Ô meu comandante,
Olhe que tormenta,
Lá é vem uma nuvem,
Que traz muito vento.
Comandante – Falando.
Meu Contramestre, o I gajeiro ta dizendo que vem muito vento por aí.
Contramestre – Falando.
Comandante eu tanto tempo viajando conheço tudo de mar. Vamos
seguir viagem.
I Gajeiro.
Ô meu comandante,
O que havemos de fazer
Chamar por Maria
Pra ela nos valer
Contramestre Falando.
Vamos ouvir nosso II Gajeiro.
26
Os guias são os dois primeiros marujos do cardão, tem a responsabilidade de junto com o Contra-
Mestre iniciar o canto e o bailado.
II Gajeiro
Ô meu contramestre
Lá vejo um luzir
Estrela o norte
Para nós seguir
II Gajeiro.
Ô meu contramestre,
Eu bem lhe dizia,
Que ferrasse a gávea,
Em quanto era dia.
Esse contramestre
É um beberrão
É causa da derrota
Desta embarcação
Contamestre
Ai, ai Senhor!
Comandante.
Se a gente se “anaufragar” a culpa sua meu contramestre
Contamestre
Foi não Senhor o Gajeiro me enganou.
Contramestre
Calafatinhos vamos consertar essa embarcação. Calafatinho!!
Calafatinho
Ai, ai Senhor!!
Contramestre
Para que lado tá o vento Calafatinho?
Calafatinho
Pro norte Senhor
Contramestre
Consertou Calafatinho?
Calafatinho
Sim Senhor!!
Guias.
Ferra, ferra ferra eu já to ferrando.
Marujada X coro (repete)
Meu contramestre mande chegar a escota
Guias
Meu Contra-Mestre
Terra na Proa
Avistamos
Estamos em Lisboa
Guias
Mestre Piloto
Terra na Proa
Avistamos
Estamos em Lisboa
Outros estudos talvez possam orientar para outras construções a partir dessa
ótica, são inúmeros grupos que têm cantigas parecidas e vão possibilitar outras
analogias, mas tenho certeza que somente um cheganceiro nato consiga encontrar uma
relação entre Os Lusíadas de Luis de Camões, e as letras das músicas da Chegança.
Importante salientar que essa relação ainda pode ser feita com canções de outros grupos,
mas aqui tentamos buscar entrar no nosso universo, e demonstrar nossa concepção de
que é possível que se aprenda, que se tenha contato com a mais variada literatura, e,
ainda assim, os nossos conhecimentos aprendidos nas comunidades nos permitam
navegar num universo ainda mais amplo.
Vemos nos dias atuais um descontrole por parte da população, não se tem
mais um zelo para se manter as narrativas que ainda só são possíveis pelas janelas da
memória, há uma fluidez tão veloz na produção de informações que não há tempo para
experimentar a diversidade, a pluralidade, o indivíduo vem se tornando cada vez mais
sujeito hegemônico, o distancia da possibilidade de uma convivência coletiva. “Isso nos
impõe uma revisão dos modos pelos quais vivemos e nos relacionamos, e da forma
como representamos a nós mesmos e às nossas sociedades” (JESUS, 2010 p. 17), onde
o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2006).
Esse comportamento traz à luz temporal o sujeito pós-moderno, que segundo Hall
(2006) é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, ou permanente.
Resistir às novidades, resistir à cultura de massa tem sido o maior desafio de
grupos tradicionais, como as marujadas de Saubara. De modo geral, seguimos
contrariando as piores previsões de que teríamos desaparecido e, ainda, acreditando que
são esses conhecimentos da cultura tradicional que mantém vivo esse nosso imenso
país. Ser referência cultural é também constatar a sua perenidade. Ao tentar conversas
informais e exploratórias com os herdeiros das cheganças, identificar a origem da
manifestação, a fonte de aprendizagem e outras referências, não é raro mapear mais de
100 anos de existência dos grupos de marujos. Até o momento são poucas as fontes
encontradas sobre os caminhos percorridos por essa tradição, até se firmar no meio
cultural brasileiro. “Na cidade de Taperoá a Chegança chegou há 265 anos” afirma o
Senhor Brás Pimentel, que tem 80 anos, e é hoje o mestre da Chegança de Mouros de
Taperoá, conhecido como Mestre Brás. Nesse caso, especificamente, é fácil ter a
percepção da contribuição que essa manifestação tem trazido para a construção da
identidade da comunidade. A louvação dos marujos aos seus padroeiros, nas
festividades religiosas de cada município é uma importante marca identitária para essas
localidades. Não somente os sujeitos envolvidos diretamente com a tradição, ou seja, os
detentores do saber, responsáveis pela encenação. Toda a comunidade aguarda, a cada
ano, “a saída das Cheganças” ou “os marujos”. A louvação ao padroeiro, assim como o
seu desfile pelas ruas das cidades, entoando cânticos que contam e cantam amores,
rezingas entre marujos – supostamente embarcados – e, curiosamente, fatos
relacionados às lutas entre Mouros e Cristãos, ou pela independência da Bahia,
conforme registros históricos já citados. Os grupos de marujos são uma referência
cultural importante para o calendário das mais diversas comunidades do estado da
Bahia, cujas celebrações vêm contribuindo ao longo dos tempos para a construção da
identidade das pessoas e da comunidade onde elas estão inseridas.
Imaginemos um barco que sai de um porto para navegar, e um determinado
instante o seu capitão dá ordem de “ferrar as gáveas”, e que seja lançada a âncora ao
mar, e de repente uma tempestade fizesse esse barco fazer movimentos bruscos por
conta dos ventos, que o mar sacudisse esse barco de um lado para outro, para cima e
para baixo. A água invade o barco, alguns utensílios são perdidos durante a tempestade,
mas com todo esse movimento o barco resistisse, e ao vir a “calmaria” todos
percebessem que estávamos ali no mesmo lugar ancorado. Assim é um ser pós-
moderno: como um barco sacudido pelo vento, e o ser, e o fazer uma determinada
manifestação cultural é essa corrente que não se rompe, nos permite experimentar, viver
as mais diferentes aventuras e “conscientemente reconhecemos um valor que nos torna
seres definidos historicamente e não biologicamente” (HALL, 2006). Essa corrente é o
que nos mantém firmes no propósito da preservação. Essa corrente é a identidade
construída dentro de uma manifestação cultural, a corrente é a própria manifestação,
que, diferentemente do que pensam alguns cientistas, aqui privilegiamos uma unificação
social a partir da convivência, aproximando-se mais do pensar de Moscovici,
diferentemente do “coletivo” de Durkheim, designa o aspecto dinâmico e a
bilateralidade no processo de constituição das representações sociais (XAVIER, 2002,
p. 22).
Ao entender o sinal, agradece e reconhece o valor dos seus iguais, que estão
sempre nos orientando. Esse diálogo, apresentado em forma de canto, foi uma das
formas encontradas por negros e negras para sobreviver no período em que era difícil
falar diretamente. A música aqui se apresenta como uma elemento de sobrevivência. É
dessa maneira que se constrói a memória coletiva, perpassando pelo sentido, pelos
sonhos, indo além de meramente um simples lapso mental. Desde o início da formação
do Brasil, nos deparamos com a utilização da música, foi assim que os padres jesuítas
introduziram por aqui a fé cristã, utilizando-se de elementos como dança, canto e
técnicas do teatro. Tudo isso, orquestrado, resultou no início de inúmeras festas
populares, dentre ela estão as cheganças. Uma colonização feita à base da fé, do fogo e
da festa. (Marujada. Bahia Singular e Plural. TVE. 2000). Uma fé externa e imposta,
muita guerra e extermínio, e a festa foi a maneira encontrada para resistir e sobrevier.
Foi possível recriar modelos tendo a música como fundamento, usando a música era
possível se comunicar de modo que quem era de determinado grupo compreendia. Ir
para igreja, era muitas vezes, era única possibilidade de, mesmo cantando para santos
católicos (São Domingos de Gusmão, São Benedito, São Braz, São Bartolomeu, São
Sebastião etc.), reverenciar outras entidades religiosas proibidas. Em Prado, cidade do
extremo sul da Bahia, a Marujada festeja São Benedito. A festa é realizada sempre na
segunda-feira após o Domingo de Páscoa. “A marujada é aquilo foi Jesus Cristo deixou
para São Benedito, Jesus Cristo deu pra ele, disse pra ele, São Benedito você é preto
nagô então você vai ficar com isso, ele gosta desse negócio de samba dessas coisa...”
Esse depoimento foi dado por Antonio Gomes de Azevedo para o documentário
Marujada -Bahia Singular e Plural, produzido pele TVE no ano 2000, e traduz o
entendimento das pessoas sobre como se produziram tais manifestações culturais. O
sincretismo atuou de forma a garantir que essas produções fossem mantidas, e, ainda
hoje, é possível, em Prado, conviver com essa manifestação.
A música é um lugar onde é possível ativar a memória, e também onde
reside a memória. Quem não lembra de algo que aprendeu a partir de uma música? Para
Pierre Nora, “a memória se enraíza no concreto, no espaço no gesto, na imagem, no
objeto”. (NORA, 1993, p. 12). Compreendemos o quanto é importante a música para a
sobrevivência das manifestações culturais, como é indispensável para qualquer
manifestação a presença da música, que com o corpo, ou saindo do próprio corpo, vai
materializar saberes, vai perpetuar fazeres, e assim garantir a transgeracionalidade dos
conhecimentos e saberes. É necessária a compreensão de que, nas culturas de matriz
africana, ou naquelas em que o povo negro alimenta sua existência, é um ato
pecaminoso dissociar música, canto e dança. Esses elementos configuram-se num tripé
que sustenta toda construção a musicalidade. É urgente a prática de afeição à música,
entender que a manifestação musical é o sustentáculo das artes, que não tem tempo
definido, que não precisa necessariamente de métrica e compasso.
É recorrente que os grupos culturais passem por momentos de
enfraquecimento e muitos deles desaparecem, nossa experiência com o Grupo Chegança
dos Marujos Fragata Brasileira, nos dá essa dimensão, beirando o seu último suspiro, o
grupo foi ressuscitado por conta da memória e dá memória musical.
27
Entrevista realizada na casa do entrevistado no dia 23 de fevereiro de 2020.
28
Membro fundador do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, sempre teve função de marujo.
29
Membro do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira. Já foi Padre Capelão, segundo gajeiro e
atualmente é o primeiro guia.Entrevista realizada no dia 23 de fevereiro de 2020.
no cordão aí já sabe que é bonito demais. Assim também na
hora da espada, “rastou” a espada você vai lá, vem cá, vem cá
vai lá, na hora de rodar a Chegança a rua toda a Chegança
tem que rodar, pra mostrar o povo que é bonito. O movimento
da maré.30
30
Entrevista realizada na casa do entrevistado no dia 22 de fevereiro de 2020.
31
Domingos Vieira participou durante muito anos da do Grupo Chegança Fragata Brasileira, deixando de
atuar no grupo devido a um problema de saúde. Foi marujo e porta bandeira.
32
Entrevista realizada na cidade de Saubara no dia 22 de fevereiro de 2020
necessidade de se registrar as canções em outras mídias, para se fazer o mais próximo
possível da realidade.
A escola pode ser uma aliada na preservação de uma manifestação cultural,
desde que seja aplicada uma metodologia de educação musical que considere a
possibilidade de manter entre suas estratégias a utilização da música produzida na
comunidade em que os estudantes estão inseridos e que reconheça a habilidade musical
dos envolvidos, fugindo da postura hegemônica que tem imperado, que reforça a ideia
do bom e do ruim. Para Howard Gardner (1995) “o aprendizado se dá através de
diversas inteligências entre elas a musical que pode ser treinada e desenvolvida a partir
de fatores como oportunidade e experiências que pode ser influenciada pela escola”.
(GARDNER, 1995, p. 45).
As manifestações culturais apresentam-se como um interessante elo que pode
proporcionar um aprendizado mais eficaz, principalmente aquelas manifestações em que
a música é elemento primordial: o Samba de Roda, a Capoeira, a Marujada dentre
outras, que fazem parte constante da vida de crianças e adolescentes, por serem
produzidas nas comunidades onde elas nascem e crescem.
Esses trechos oportunizam uma discussão sobre umas das datas mais
emblemáticas na Bahia, o 2 de julho. É possível uma investigação sobre como surgiu
esse canto se Ladislau dos Santos Titára33 que participou das lutas para independência
da Bahia ouviu aqui em Saubara e depois adaptou para o hino, ou se depois da guerra,
as pessoas daqui ouviram e adaptaram para a Chegança. Esse fragmento da canção ativa
a memória sobre um episódio histórico, ao mesmo tempo preserva as informações que
podem ser acessadas sempre que for mantido contato com ela. Em manifestações
33
Militar, historiador e poeta brasileiro. Destacou-se nas campanhas pela independência do Brasil na
Bahia e por ter escrito depois a obra Paraguaçu: Epopeia da Guerra da Independência na Bahia.
culturais com características musicais, se aprende cantado e canta-se aprendendo, isso
não está longe do que propôs Zoltán Kodály
em sua concepção, ser musicalmente alfabetizado inclui o apropriar-se
da música com capacidade de pensar, ouvir, expressar, ler e
escrever...O cidadão, a partir da vivência musical, deve ser capaz de
escrever o que canta e cantar o que lê. (KODÁLY apud MONTEIRO,
2011. p. 57).
Uma pedagogia que é reforçada com o pensamento de que podemos sim levar
em consideração a importância de tudo que é organicamente produzido pelas
comunidades, o mundo em torno da instituição escola. No livro “A importância do ato
de ler”, Paulo Freire (1989) revela que precisamos ter “uma compreensão crítica do ato
de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem
escrita” (FREIRE, 1989. p. 9). Um mundo pode ser construído a partir da experiência
musical, uma nova história pode ser escrita a partir de uma vivência com a música, a
música pode trazer reflexões que saiam das quatro paredes, e pode oferecer outras
diversas leituras. Sendo um lugar de memória, a música pode funcionar como propulsor
que dinamiza a compreensão que o sujeito pode ter de si e do mundo que o envolve.
CAPÍTULO IV
34
Denominação dada às pessoas que integram comunidade, grupos, segmentos e coletividade que
possuem relação direta com a dinâmica de produção e reprodução de determinado bem cultural imaterial
e/ou de seus bens culturais associados, para as quais a prática cultural possui valor referencial por ser
expressão da história e da vida de uma comunidade ou grupo, de seu modo de ver e interpretar o mundo,
ou seja, sua parte constituinte da memória e identidade. Os detentores possuem conhecimentos
específicos sobre esses bens culturais e são os principais responsáveis pela sua transmissão para futuras
gerações, pela continuidade das práticas dos valores simbólicas a ela associados ao longo do tempo.
(IPHAN, 2017. p. 11)
horizontes. A constituição traz em seu corpo dois artigos que fazem referência à
produção cultural de comunidades e saberes ora esquecidos nas práticas anteriores.
35
Constituição Federal de 1988.
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados,
feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e
reproduzem práticas culturais coletivas.
36
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
articulação com a sociedade, na salvaguarda dos bens tangíveis e intangíveis e no
fomento de ações culturais para o fortalecimento das identidades no estado da Bahia
(IPAC, 2014.). Criado desde a década de 60, o IPAC só passou a atuar no que diz
respeito ao reconhecimento de bens imateriais em 2006, a partir do Decreto nº 10.039
DE 03 DE JULHO DE 2006, que regulamenta a Lei nº 8.895, de 16 de dezembro de
2003, que instituiu normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural
do Estado da Bahia e criou a Comissão de Espaços.
I - Tombamento;
II - Inventário para a Preservação;
III - Espaço Preservado;
IV - Registro Especial do Patrimônio Imaterial.
37
http://www.ipac.ba.gov.br/wp-content/uploads/2011/09/DECRETO1003906.pdf acesso 08/04/2019
A partir da promulgação do decreto n◦ 10.039/2006, houve o primeiro processo
de reconhecimento de um bem imaterial, a Capoeira foi reconhecida a partir Decreto n◦
10.309/2006. Outros registros foram feitos, e já é mais de uma dezena de bens
registrados no Estado da Bahia.
Acompanhando toda a movimentação acerca dos Registros Especiais de
eventos, celebrações, saberes, modos e fazeres, fizemos uma mobilização para
discutirmos a viabilidade de Registro das Cheganças e Marujadas no Livro Especial de
Expressões Lúdicas e Artísticas. Esta ideia surge num momento em que o grupo
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira vive talvez sua melhor época, onde foi
possível abrir uma discussão sobre o processo de patrimonialização dos grupos da
Bahia, quando foi possível criar um ambiente de diálogo com os mais diversos grupos
espalhados pelo estado da Bahia. No dia 02 de agosto de 2013, em Saubara, na ocasião
da realização do I Encontro de Cheganças da Bahia fizemos a primeira reunião, e uma
das pautas dessa reunião era a deliberação de encaminhamento para o IPAC do pedido
de registro das Cheganças e Marujadas como Patrimônio Cultural do Estado. O diálogo
foi bastante intenso e proveitoso, com presença de lideranças dos grupos, de
representantes de universidades públicas, representantes do IPHAN, políticos e
pesquisadores, foi aprovado que a Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira
encaminharia para o IPAC o pedido de registro especial. Foi então que no dia 13 de
setembro desde mesmo ano foi encaminhado o ofício n◦ 08/2013, para o então Diretor,
o Sr. Frederico A. R. C. Mendonça. No dia 15 de janeiro de 2015 foi publicado no
diário oficial do Estado da Bahia a notificação pública de abertura do Processo de
Registro Especial como Patrimônio Imaterial das Cheganças e Marujadas do Estado da
Bahia n◦ 0607130030671/2013, datado de 14 de setembro de 2014, ou seja, um ano
após termos encaminhado o pedido é que o processo foi aberto. A morosidade com que
é tratado o tema tem o poder de fazer desistir, mas este sentimento fez parte de nossas
vontades. Foram cinco anos de trabalhos intensos, diversas atividades foram
desenvolvidas com o intuito de manter as pessoas envolvidas. Realizamos diversas
atividades: os encontros estaduais foram importantes (apresento relatórios a abaixo)
para mantermos foco no processo, realizamos encontros territoriais (baixo sul, extremo
sul, piemontês de diamantina, região metropolitana), registramos áudio em CD de cinco
grupos, realizamos pelo menos dez reuniões com lideranças. No final do ano de 2017,
começamos a fazer o inventário dos grupos existentes na Bahia. Foram doze meses de
visitas a comunidades, fizemos um levantamento de informações dos grupos,
fotografamos em logo, fizemos um vídeo documentário desses grupos. Como dados do
inventário, temos a informação de que existem hoje em atividade vinte grupos
espalhados em oito territórios de identidade e quinze localidades diferentes, e foi
possível ainda descobrir que em vinte e seis outras localidades um dia já houve grupos
dessa manifestação. Obviamente, acreditamos que é possível encontrar alguns grupos
ativos que não conseguimos atingir neste levantamento, assim como também outras
muitas comunidades onde estes já existiram. No dia 11 de fevereiro de 2019, sob o
decreto n◦ 18.905, as Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia foram reconhecidas
como Patrimônio Imaterial do Estado.
Pessoalmente falando, para mim foi uma vitória, não só para a Fragata
Brasileira, mas para todas as Marujadas, esse registro, porque com
esse registro vai viabilizar muitas outras coisas; com esse registro
muitas outras Marujadas que estavam desativadas vão começar a se
reestruturar, então cresce essa cultura, essa manifestação cultural vai
crescendo cada dia, porque têm cidades aí que a gente nem imagina
tinha uma Marujada, essa mesmo daqui segundo Mouro, foi uma
daqui de perto que existia que veio fazer uma apresentação aqui e daí
criou a nossa aqui, e essa que a gente é oriunda será que não existe
hoje? Será que não tem algum remanescente por lá? Então com esse
registro tem 20 grupos em atividades, mas deve ter mais. Então
possivelmente a gente vai poder resgatar ou reativar muitas que estão
inativas. Então esse registro foi uma vitória [...], então vamos agora
colher os frutos dessa vitória, saber aproveitar nesse mundo, tem que
saber ser visto, mas que precisamos estar sempre em evidência sim
[...] nesse ponto tem que ser no sim, a gente precisa expandir agora,
nós não podemos mais pensar só na Fragata Brasileira nós temos que
pensar coletivo, pensar nas Marujadas, Chegança e Embaixadas, tem
que pensar grande agora. 38
38
Entrevista realizada na cidade de Saubara, no dia 17 de outubro de 2019.
Por entender que é também relevante perceber a existência das Cheganças em
diferentes territórios do estado da Bahia e que foram espalhadas, difundidas por meio da
oralidade, por compreender que parte da sua singular dramaturgia, musicalidade
própria, merecedora de estudos aprofundados, e ainda pelo eminente risco de
desaparecimento – devido a fatores como falta de apoios institucionais, falta de
fomento, falta de compreensão das novas tecnologias em torno do processo cultural que
vem acontecendo ao longo dos tempos – o que buscamos pela vias do ser Patrimônio é
ser reconhecidos pelo estado inserindo-nos nas políticas culturais existente. Precisamos
nos reinventar, e entendemos que a patrimonialização, se de nada servir, pelo menos
juntou pessoas que, sem esse processo, talvez fosse impossível que se encontrassem.
39
Aurelita Rocha é a mestra do Grupo Chegança Barca Nova – Feminina de Saubara
Ninguém nasce sabendo. Todo mundo que entra num grupo desse (...)
não entra sabendo. Ela vai aprender ali dentro. É uma escola aquilo
ali! Essas meninas quando entram, entram sem saber nada. Bate no
pandeiro errado e não sabe cantar. Mas, por ver a gente cantar, por
ver a gente fazer, elas aprendem. Estamos ensinando. É uma escola!
40
40
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 14 de abril de 2018
41
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 26 de abril de 2018.
Existe uma hierarquia funcional onde cada título confere uma atribuição
específica para ser desempenhada. A general coordena o “navio”, entoando as músicas,
direcionando o movimento a ser executado, gerenciando o início e o término de cada
ato. A contra-mestra e as marujas que tocam o pandeiro. Nesta Chegança existe ainda a
família real de mouros, é uma representação do rei, suas filhas e a guarda-real. Outras
personagens aparecem no desenrolar da performance, são elas: gajeiro grande,
calafatinho, imediato, comandante, pipão e general.
A Chegança feminina conta uma história de luta. Durante todo o cortejo, é
cantada uma história do cotidiano de quem vivia ou vive no mar. O cotidiano de uma
comunidade que vive com o mar em torno da sua vida, nas mais diversões dimensões da
vida pesqueira. Contudo, a Chegança carrega a marca da guerra em seus cantos.
O vestuário carrega as cores do mar: azul e branco. As marujas chamam de
fardamento, assim como em um campo de guerra, as marujas incorporam o sentido da
função da marinha, e assumem conceitos inerentes ao serviço militar. As marujas se
vestem com camisas brancas com atalhos azuis e listras brancas, além de fitas azuis e
brancas penduradas na bata, entre um peito e o outro. Saias brancas, na altura dos
joelhos, subindo um pouco mais na coxa quando a maruja é mais nova. Meia calça
branca e sapato preto compõem a lista de indumentárias. A vestimenta das oficiais se
diferencia das marujas pelos detalhes dourados, tanto na camisa quanto na boina.
foi passado de pai pra filho, de pai pra filho, de pai pra filho, tanto que, meu
tio Caetano, que era irmão da minha avó, ele era o contramestre e ele me
falava dos antigos que faleceram que eram mesmo da Chegança, então ela é
muito antiga mesmo, a única coisa mesmo que eu tenho de oficial é que ela
veio de Mar Grande, havia uma relação, naquela época uma relação de
amizade muito forte com os pescadores da ilha com os pescadores de
Saubara e numa dessas conversas o pescador vinha de lá pra cá e ia pra lá,
essa Chegança existia lá em Mar Grande, lá... aquela coisa de 150, 200 anos
atrás, e aí Saubara.... eles foram lá, foram de canoa, remando, no remo,
trouxeram a Chegança pra aqui, fizeram uma primeira apresentação aqui
em Saubara e o saubarense amou a Chegança, o que eles fizeram42
42
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
Edmundo Passos de Jesus “Mestre Mouro” 43 nasceu em Saubara, dia 07 de
março de 1952 e lidera a Barca Nova Masculina há 40 anos. O momento da iniciação dele
foi casual, mas a relação com a tradição na família foi fator decisivo para que dedicação e
o comprometimento fossem crescendo com o tempo. O amor pela Chegança é uma herança
do pai, que faleceu cheganceiro aos 82 anos. Ele conta que saiu a primeira vez quando o
Bahia foi jogar em Saubara pela primeira vez. O pai e seus dois irmãos estavam no cordão.
A cidade em grande festa. Ele acompanhou a Chegança a partir dessa data e foi quando
aprendeu a gostar de Chegança:
[...] eu tinha o maior amor em sair em Chegança... o meu amor era tão
grande, mas era principalmente porque meu pai estava ali dentro, então eu
tinha aquela alegria muito grande de estar ao lado dele, fazendo aquele
grupo folclórico, que eu via que dava uma satisfação. Eu, quando amanhecia
o dia de domingo, que era o dia da nossa saída, dia 4 de agosto, que o dia
clareava, meu pai já estava sentado numa cadeira com a roupa dele, ele
mesmo arrumando as divisas, era botando cada enfeite em seu devido lugar,
então aquilo realmente mostrava o amor que ele tinha.44
43
Edmundo Passos de Jesus conhecido como Mouro é o Mestre do Grupos Chegança de Mouros Fragata
Barca Nova
44
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
45
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
E essa narrativa permanece viva nos mais diversos cantos do solo baiano,
graças à força desse povo que enfrenta as mais diversas dificuldades para manter vivas
as suas tradições. Seu Mouro conta que nunca teve acesso a apoios formais e recursos
financeiros. Essa sempre foi uma dificuldade presente, segundo ele. Mas, ao mesmo
tempo, havia uma dedicação maior:
46
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
47
Conforme orientação religiosa, a palavra “Divino” é usada para referenciar Deus, tal qual na Chegança
Fragata Brasileira, também pesquisada, é cantado “Viva o Divino Sacramento”. Ainda nesta pesquisa, na
música Virgem do Rosário, é cantado “Ao Divino Sacramento”.
Louvores, já
São Domingos de Gusmão
Louvores, já
Foi quem nos deu a primazia
Louvores, já
Para brincar neste cordão
Louvores já
Como líder do grupo, o senhor Mouro relata que, nos anos mais recentes, tem
enfrentado dificuldades com a motivação das pessoas para o engajamento no grupo: “o
cara que bagunçava muito a gente não permitia, hoje eu tô querendo procurar os quatro
bagunceiros e não acho”, diz. Ele atribui boa parcela disso aos interesses atuais.
48
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
49
Idem
a gente vai tendo que ir mudando as coisas, porque o folclore é
antigo, mas não precisa também ser... aquilo era pro pessoal daquela
época, cem, cento e vinte, cento e trintas anos atrás, eram
praticamente analfabetos. E a gente aos poucos vai, conversando com
um, ouviu uma música lá no lavador, gostei daquela música, mas
achei que aquela frase não foi legal, eu aí fico com a música e troco a
frase, de repente, o pessoal do lavador vê uma frase bonita cá na
Chegança da Barca Nova e acha que tem alguma coisa pra mudar
que fica legal e aí...50
50
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
participação nas apresentações no grupo), isso devido ao fato de que passado não havia
mulheres nas forças armadas, um cenário que vem sendo mudado em várias
comunidades, onde surgem grupos femininos. As mulheres na Fragata Brasileira
assumem o papel de colaboradoras na organização das atividades que são desenvolvidas
pelo grupo. Em 2013, logo após a realização do I Encontro de Cheganças e Marujadas
da Bahia, um grupo de mulheres (filhas, irmãs, esposas, primas) resolveu fazer uma
versão feminina do grupo, ensaiaram por alguns dias, mas a ideia não seguiu devido a
uma série de fatores.
O grupo Fragata Brasileira, atualmente é composto por 38 membros
efetivos, aqueles que estão sempre atuando, são cinco oficiais (contramestre,
comandante, general, piloto e guarda marinha), um porta-bandeira, um padre capelão e
trinta e um marujos. Dentre os marujos, há destaque para o primeiro e segundo guias,
primeiro e segundo gajeiros, ourives e calafatinho. A formação é feita com duas filas
(cordão) compostas pelos marujos e no centro do cordão ficam os oficiais, porta-
bandeira, e padre capelão. No comando da Marujada fica o contramestre, que junto com
os guias têm a responsabilidade de iniciar os cantos e conduzir o bailado.
Algumas cantigas da “Chegança” contam a história de uma marinha de
guerra genuinamente brasileira que participa da guerra de independência da Bahia, e
pode ser verificado em algumas canções “Vamos companheiros / Vamos lá chegar
/Leva essa bandeira /Lá em Pirajá”.
Pirajá é o local onde aconteceu a última batalha que resultou na expulsão
definitiva de holandeses e portugueses de terras brasileiras. Há quem diga que aqui na
Bahia de fato aconteceu a Independência do Brasil. E no imaginário das pessoas de
Saubara foi possível reproduzir este momento histórico, ludicamente através da
Marujada.
Em um trecho de outra canção é possível compreender as razões da
localização da igreja de São Domingos em Saubara:
Dizem que a Igreja de São Domingos foi erguida lá, no “alto da freguesia”, de
onde era possível ver toda a movimentação dos inimigos que, possivelmente atacariam
cidades importantes naquela época. Saubara era uma das portas de entrada para o
recôncavo e, portanto, sua localização era muito estratégica, protegendo a Baía de
Todos os Santos contra os invasores.
Há cantigas que relatam também acontecimentos que se passam dentro das
embarcações, que diferem as Cheganças de Marujos de algumas Cheganças de Mouros.
A inexistência de qualquer episódio que trata das lutas entre Mouros e Cristãos, nas
Cheganças de Marujos é evidência de que esta manifestação é reelaborada no Brasil, a
partir de experiências vividas nas travessias marítimas e fluviais. Ainda que
encontremos nas Cheganças de Mouros canções também existentes nas Cheganças de
Marujos, a guerra seja ela de que nível for, é sempre uma das razões para a criação e
existência das Cheganças como elas são hoje. Em todos os grupos de Mouros ou de
Marujos encontraremos uma cantiga nesses termos.
Moças baianas
Cheguem às janelas
Venham ver os Marujos
Oras meu bem
Que vão pra guerra.
Puxamos amarra/
Com muita alegria/
Para festejar/
Hoje neste dia.
Só então saímos da rua Boca da Mata seguindo pela praça Jaime Leoni, Rua
Alfredo Bitencult e Rua da Matriz cantando:
Louvo viva
PARTE I
Refrão
Deus vos salve casa santa (2x)
Aonde Deus fez a morada
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada (2x)
PARTE II
Refrão
Ô minha virgem do Rosário
Nós somos naufragrantes
Nós escapamos de morrer
Neste mar inconstante (2x)
PARTE III
Aceitai a romaria
Desse pobre marinheiro
PARTE IV
LOA I ( declamada)
Botai minha galera n’agua
Broqueando o mar foi ao fundo
Eu chamei por São Domingos
Eu vi socorro no mundo
A divina providência
Socorro nos veio dá
Estamos em porto seguro
Marujo toque a bailar
Bravo, bravo
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)
LOA II (declamada)
Eta marujada – Pronto meu general
O anjo São Gabriel
Do céu trouxe uma embaixada,
Que Maria Imaculada
Foi perfeita mulher,
Nasceu tão firme na fé
Que de nada se assustou,
Veio o anjo do Senhor
Desceu do céu o encanto
E o véu divino encarnou
Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)
LOA III (declamada)
Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)
LOA IV (declamada)
Adeus praia de cascata
Adeus cidade de Santo além
Adeus torre de Belém
Dos pombados Pará
Adeus cidade querida
Adeus querida Lisboa
Adeus a quem de te me aparto
Contra-Mestre mande a proa.
Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)
PARTE
É bastante comum neste dia recebermos convites para ir a alguma casa onde
foi feito um almoço ou será servido um lanche, uma bebida. Então, depois da igreja, não
se tem um itinerário fixo, seguimos a maré. Em cada lugar onde paramos fazemos uma
encenação, as vezes fazemos uma rezinga, depois de sermos servidos fazemos o
pagamento, que nada mais é do que cantar a cantiga pedida pelo dono da casa, e em
seguida cantamos uma canção de despedida:
Adeus, adeus gente até um dia
Adeus, adeus gente até um dia
A mãe de Deus do Rosário
É nossa guia
Vamos dá a despedida/
Que de cá já vou marchando/
Adeus praia de fama que me aparto chorando.
E isso se repete a cada lugar onde paramos. Ao longo desses anos muitos
dos membros morreram, como é natural acontecer conosco, seres humanos mortais, e
sempre fazemos homenagens para essas pessoas que nos deixaram. Em agosto
visitamos sempre alguma casa para saudar a família numa maneira de dizer que aquela
pessoas que não se encontra mais entre nós foi importante para o grupo e que seu legado
continua. Cantamos sempre a cantiga preferida da família.
O grupo atualmente é formado por pescadores, professores, pedreiros,
pintores, músicos, fotógrafos e estudantes. Uma variedade de profissões que em certos
momentos são requeridas para colaborar com a manutenção do espaço. Participam do
grupo pessoas de diferentes idades. O mais jovem participante é Juão Miguel Ribeiro do
Rosário, meu filho, que tem 13 anos de idade. Desde os seus três anos repeti com ele o
que meu pai fez comigo, levei-o para frequentar o espaço, participar dos ensaios,
ensinando-o a tocar e cantar. Desde então nos acompanha em atividades do grupo, não
sei se ele continuará com as atividades do grupo futuramente, espero que sim, mas
tenho a esperança que o legado seja continuado e um neto de Juão possa saber contar
essa história. O mais velho é Mateus Ribeiro da Silva, com 83 anos de idade. Um dos
fundadores do grupo, hoje uma das personalidades que contribuem para o processo de
transmissão dos saberes e fazeres da Marujada. São pessoas com escolaridades diversas.
Religiosamente, a composição do grupo conta com pessoas católicas e adeptos do
candomblé, numa convivência pacífica e harmoniosa. Para Mário de Andrade
Isso justifica a presença dos Santos católicos nas cantigas e a forma festiva
com que a população negra encontrou para se manifestar em tempo de ferrenha
opressão de práticas ancestrais. A forma de transmissão desses saberes e fazeres sempre
aconteceu através da oralidade, através da repetição. Essa é uma forma ancestral de
comunidades tradicionais manterem suas atividades culturais. Uma pessoa que deseja
entrar para o grupo passará, inevitavelmente, por esse processo, mesmo que tenha ele
outros contatos antes. Grupos tradicionais trazem uma importante característica, os
ensinamentos também acontecem nas casas, nas famílias. Logo, muitos, quando
decidem entrar no grupo já trazem um aprendizado por terem convivido em casa com
seus mais velhos. Mesmo assim experimentarão na prática como de fato acontece o
aprendizado. Existem algumas regras para fazer parte do grupo: respeitar a dinâmica já
existente, freqüentar os ensaios, providenciar a sua roupa e no dia de sua primeira
apresentação, que geralmente é um 04 de agosto, receber todo o grupo em sua casa para
uma espécie de “batizado”, onde terá que bailar sozinho no cordão e cantar sozinho a
cantiga que mais gosta dentre todas do grupo. Cantar, tocar e bailar sozinho é uma
condição muito recente, criada para motivar que as pessoas busquem de fato aprender e
sintam-se de fato integrante do grupo a partir daquele momento.
Um aspecto a ser observado neste grupo diz respeito a sua linha sucessória
nas funções inerentes às apresentações. O mais comum é que os mais velhos assumam
determinadas funções (contramestre, piloto, general etc.), mas o que de verdade é
levado em conta é o conhecimento sobre a manifestação. O fator família também é
bastante importante. Meu pai foi marujo, piloto e mestre desse grupo, eu fui marujo,
calafatinho, piloto e hoje assumo a função de mestre. É extremamente importante ter um
vivência em várias funções, isso pode ajudar a ter uma maior compreensão do
significado de uma chegança. Filho de peixe, peixinho é?
Infelizmente, as manifestações culturais tradicionais como a Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira não contam com apoio financeiro direto dos órgãos da
gestão pública, das esferas de governo. O poder público municipal ignora
completamente as atuações do grupo, não há um interesse político por grupos desta
natureza. É comum ouvir de gestores públicos que “cultura não dá voto”, e este pensar
faz com que inúmeras manifestações desapareçam. É importante o incentivo, é caro
manter um grupo cultural, todos os esforços feitos são também na busca de um
reconhecimento que nos renda parcerias, que de alguma maneira colabore e fortaleça a
resistência.
4.2-Saubara o porto seguro onde essa embarcação atraca.
A escritora saubarense Judite Santana Barros também traz uma narrativa que
contribui para o entendimento do surgimento do município de Saubara:
51
Segundo Pedro Tomaz Pedreira esse Padre não passa de uma lenda, para ele, Braz Amaral fez uma
confusão, existia um Vigário chamado Bernardo na freguesia de Nossa Senhora do Rosário, em
Cachoeira. Para ele quem esteve na frente das lutas em Saubara foi o Padre Manoel Jose Gonçalves
Pereira. Ver Documentos do Recôncavo: O “14 de junho”. Santo Amaro na independência do Brasil.
Imprensa Oficial –Santo Amaro. 1970.
uma resposta que é no mínimo sensata e esclarecedora. Para Joel Rufino dos Santos isso
nada mais é que
“o vivo desejo de fazer da Independência uma propriedade patriótica
do Rio de Janeiro e de São Paulo levou os interessados a dar aquela
festividade um cunho demasiadamente particularista, apagando o
trabalho e o sacrifício de outros que também contribuíram para levar a
cabo a grande obra da libertação em diversos pontos do território
brasileiro”. (SANTOS, 1979, p. 191).
E assim a Marujada canta todos os anos no dia da festa de São Domingos. Outra
cantiga que por várias vezes vamos citar neste trabalho refere-se a Pirajá.52
...”Vamos companheiro
Vamos lá chegar
Leva essa Bandeira
Lá em Pirajá”....
52
Pirajá, onde aconteceu a principal batalha da Guerra da Independência do Brasil, iniciada na madrugada de 8
de novembro de 1822.(http://www.cidade-salvador.com/patrimonios/piraja.htm)
É nesse cenário antagônico que a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira de
Saubara se mantém contrariando todos os prognósticos negativos que lhe fora
atribuídos, permanecendo nos dias atuais como uma referência no cenário cultural,
contribuindo para que permaneça acesa na memória do povo a importância que Saubara
teve num período histórico tão importante para o Brasil.
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, com esse nome uma indagação
sempre esteve presente: Por que Marujos? Qual o lugar do marujo nessa manifestação?
Talvez seja um tanto quanto inapropriado, ou mesmo extremamente necessário abordar
o aspecto religioso que emerge no meu pensar sobre este tema. Em um 4 de agosto que
não lembro o ano, o grupo fez, como de costume, uma apresentação na Igreja de São
Domingos, e ao invés de descer a Rua da Igreja, naquele ano fomos pela Rua do
Taboão, paramos na porta da casa de Tia Jelita, e ali fizemos uma apresentação como de
praxe, depois veio o almoço, algumas cervejas, umas risadas, e fizemos o pagamento.
Ela gostava de ouvir a Chegança cantar:
De longe avistava
Meu bem na Janela
Por não ter Lila
Eu amei uma donzela.
Trecho de uma música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira
Compreender que falar de Lisboa pode ser apenas uma forma de identificar
de onde partiu tal embarcação e que caminho foi feito até chegar ao destino final.
53
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
54
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
enxergarem uma aproximação entre o grupo e a religião do Candomblé, sempre buscam
um acalanto nas apresentações do grupo. Pessoas que têm algum problema na família
com parentes alcoólatras encontram no nosso fazer cultural um aporte para compreender
o quanto é possível agradar Marujo, e assim pedir que os ajudem a resolver tais
problemas.
Apesar de não ter um envolvimento direto com o candomblé, o Grupo
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira provoca nas pessoas que estão ao seu redor,
sensações e experiências espirituais das mais diversas. Perguntado se conseguia ver
alguma relação do grupo com o caboco Marujo o Babalorixá Eliomário respondeu:
É com esse entendimento que navegamos num mar que ora de apresenta
revolto, e como marujo nele nos equilibramos, executando com o corpo o mesmo
movimento das marés, e que nos momentos de calmaria refletimos sobre o quanto essa
nossa construção social se dá pela vertente racial que nos identifica, promove
aproximação e vem garantindo que os elos sejam mantidos, no incessante desejo que o
55
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
marujo que habita na Chegança dos Marujos Fragata Brasileira sirva de sustentáculo
para que a cultura seja vista como um alicerce para uma educação que liberta.
56
Uma antiga peça de artilharia adaptada para serviços nos engenho que trazida para a vila foi preparada
para atirar pedras e pedaços de ferro.
repartições arrecadadoras de impostos. Em 29 de junho de 1822, a Vila de Maragogipe
reconhece a autoridade de D. Pedro.
Ainda em 26 de junho de 1822, em Cachoeira, foi constituída a junta interina
conciliatória e de defesa, no dia 29 do mesmo mês um grupo de pessoas vindas das
Vilas de São Francisco do Conde e de Santo Amaro chegam a Cachoeira, propondo a
transformação da junta interina em Comissão da Administração da Caixa Militar, com
fóruns de governo civil e militar e jurisdição sobre todas as vilas do Recôncavo
(PORTO FILHO, 2015.p. 67). Através de ato administrativo, o Tenente Coronel
Felisberto Gomes Caldeira
57
Sobre essa data e local encontramos divergências nos documentos pesquisados.
d’onde regressou, por ordem superior, a 16 de setembro de 1822”. (Revista Militar
Brasileira. n 10. 1974. p. 30).
O Padre Manoel José Gonçalves Pereira teve participação efetiva nas lutas
pela independência da Bahia. Sua participação ficou registrada através de suas cartas
que ele escrevia para o Conselho Interino. Tais cartas nos revelam muito daquilo que
vivenciamos hoje, quando brincamos na Chegança. Além de evidenciar a participação
em massa da população de Saubara em defesa do território chamado costa de Saubara.
Inúmeros relatos encontramos hoje sobre este feito, a exemplo da igreja de São
Domingos.
Parece que o Padre recebe uma ordem para as pessoas e os animais da costa
de Saubara e não obedece a tal ordem. Não encontrei escritas sobre o motivo das
orientações, suponho que retirar o gado da costa seria levá-los para Santo Amaro, onde
imaginavam estarem mais seguros e com mais alimentos à disposição.
Na sétima carta, de 17 de novembro de 1822, escreve apontando que:
Duas barcas inimigas que existem ancoradas não longe desta Costa, e
a perseguem, como tudo tenho feito ver s V. Exa., ontem seguirão
para a Bahia, e a seo regresso trocerão mais três grandes Barcos que se
reunião ao malfazejo Comboio, e por isso considero atacados os
pontos desta Costa, e eu então sem armas bastantes para devida
defesa, e mesmo sem artilharia para impidir aproximação dellas á
terra, pois que tendo a muito esse socorro...the o prezente não tem sido
atendidas minhas tão justas suppiclas... (Revista Militar Brasileira:
Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10,
Dezembro de 1974).
.
Moças baianas
Cheguem a Janela
Venham vê os marujos
Oras meu bem
Que vão pra guerra
Podem ter sido ser essas as cantigas feitas pelos marujos ao se despedir de
suas famílias quando iriam para as trincheiras da guerra.
Na décima terceira carta, de 06 de fevereiro de 1823, o Padre Manoel José
Gonçalves Pereira agradece o reconhecimento de seu trabalho.
Muito nos dias atuais se discute sobre o papel de Santo Amaro nas lutas de
independência da Bahia. Todas as cartas a que tive acesso no documento pesquisado em
momento nenhum é mencionado algum episódio de batalha em Santo Amaro (sede), e
nesta carta fica evidente a falta de apoio para uma medida de guerra que quisera adotar
o padre, mas não teve por parte do Conselho deliberação para continuar. Isso demonstra
que foram de fato os saubarenses e acupeses que assumiram e deram seu sangue pela
causa. Importante salientar que Saubara era um distrito de Santo Amaro nesta ocasião.
Mas, não era de se estranhar, em Santo Amaro vivia uma burguesia da época, que pouco
se preocupava com os acontecimentos de guerra. Eles ainda se vangloriavam com a ata
de 14 de junho um documento que só revelava a subserviência ao império.
Na décima sexta carta, de 08 de março, o Vigário diz que:
Houve momento em que o confronto foi evitado por ambas as partes, talvez
pelo cansaço, pela falta de alimentação, pela falta de munição ou simplesmente por uma
trégua momentânea.
Na décima sétima carta, de 12 de março de 1823, o padre comunica que
Dez barcas inimigas... seguirão para Costa da Ilha dos Frades pelo
lado do Nascente, e lá fizerão algum fogo, pelo que vi esta manhã os
nossos Barcos de Itaparica no canal do Boqueirão, que para lá
passarão ontem de tarde, e nesse momento os vejo fronteiro a esta
Costa...de seu porto. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios
para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
Contramestre.
Marujada (coro)
Mestre
Marujada (coro)
Mestre
Mestre.
Piloto
Contra – Mestre
Que barco é esse que trafega a barra vento 2x
Marujada (coro)
Hoje na volta das 2 horas da manhã derão alguns tiros de peça para a
parte da malfadada Bahia; as seis horas da tarde entrarão pela Barra de
S. Antonio dois vasos de três mastros e um de dois, e neste momento
que são sete da noite, vejo iluminada a Cidade, pelo que me persuado
ter chegado o socorro dos marotos prestado pelas infames Côrtes de
Lisboa favor do quadrúpede Madeira, contra a justa Santa Causa da
Independência. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a
História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
Pirajá era um ponto estratégico de onde era possível impedir o acesso por
terra ao recôncavo. Em Pirajá foi onde as lutas tiveram maiores relevâncias, os
brasileiros combatiam com os “caçadores” da Bahia. É possível imaginar alguém a
gritar...
Não se sabe se realmente esse fato aconteceu, pois há outra versão para a
retirada das tropas lusitanas. Particularmente, eu prefiro essa versão, ela me parece mais
apropriada para o encorajamento das pessoas que ali se encontravam e nos faz sentir a
emoção do momento.
A batalha de Pirajá foi muito importante para a independência da Bahia,
porque demonstrou a incapacidade dos portugueses de romper o cerco feito pelos
brasileiros para dominar o interior baiano. Para isso acontecer, era m necessário mais
soldados, mas a fome já se apresentava como um grande problema para os portugueses.
Não chegava mais alimentos do interior para Salvador. A guerra agora passava a ser
travada pelo mar.
Os brasileiros passam também a ter seus problemas. Labatut enfrenta a
resistência da junta de Cachoeira, que não quer mais libertar seus escravizados para
servir a causa da independência, e também é descoberta uma fortuna em ouro e prata
num engenho da região e seus “donos” não querem usá-lo a favor das lutas prol
independência.
Foram inúmeros os outros momentos de combate, de lutas, a exemplo do
que aconteceu na Ilha de Itaparica em janeiro de 1823, quando os itaparicanos
expulsaram os portugueses. Maria Felipa, mulher negra, comandava homens e mulheres
(negros e indígenas) em uma das últimas batalhas, quando queimaram várias
embarcações inimigas. O ataque foi feito a navios portugueses pelo Lord Cochrane em
04 de maio de 1823, sem contar com todas as que já mencionamos da Costa de Saubara.
A guerra foi constante e teve perdas horríveis para os dois lados. A doença
matava mais que bala. No exército brasileiro, dos seus 9000 homens, cerca de 1000
estavam doentes, principalmente pelo impaludismo (malaria), muita gente ainda
desertava temendo o pesado serviço, a fome, a falta de cuidados. Ao entrarem em
Salvador, em julho de 1823, os soldados estavam com suas roupas aos farrapos e
descalços.
Madeira de Melo ficou acuado em Salvador, totalmente sem alimentos, e o
primeiro sinal de que estava realmente perdendo a batalha foi quando ele, para
economizar alimentos e livrar-se dos doentes, expulsa mais de 10 mil pessoas de
Salvador. Isso era 9 de maio de 1823, em 20 de junho, junto com o seu conselho de
guerra ele decide abandonar a cidade antes que fosse invadida pelo exército libertador.
O fim da guerra se deu no dia 02 de julho de 1823. Ao amanhecer deste dia,
as tropas portuguesas embarcaram em lanchas e navios e deixaram a cidade. Era o sinal
para que o exército pacificador ocupasse a cidade. As tropas brasileiras entraram na
cidade de Salvador
Puxamos a amarra
Com muita alegria
Para festejar
Hoje neste dia
Vamos companheiro
Vamos lá chegar
Leva essa bandeira lá em Pirajá
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Instituição responsável pela implementação do Plano de Salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo
que foi reconhecido como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
que nunca se tinham encontrado. Para mim foi crucial para o sucesso do
desenvolvimento do Plano de Salvaguarda do Samba de Roda, proporcionar ambientes
para que essas pessoas pudessem conhecer-se e assim cada um potencializar as suas
ações sabendo e reconhecendo-se como detentores e senhores de seus próprios saberes e
fazeres. Mesmo atuando de forma intensa com o Samba de Roda, a Marujada me atinge
com mais força, o ser marujo sempre esteve mais forte.
A experiência em tratar com as políticas culturais que afloraram no Brasil a
partir do ano de 2003, no governo do presidente Lula, me muniu de conhecimentos que,
por sua vez, trouxe para o Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, onde tive a
condição de desenvolver projetos dos quais O Encontro de Cheganças e Marujadas do
Estado da Bahia, aquele que vem garantindo uma importante articulação com os grupos
dessa manifestação.
Este sentimento expresso por Romário traduz um pensar comum entre nós
representantes dos grupos, revela a nossa responsabilidade em manter existindo as
Cheganças, Marujadas e Embaixadas.
Esta reunião serviu também para contribuir na elaboração do parecer do
Conselho de Cultura do Estado. Foram apresentadas inúmeras sugestões para ações de
salvaguarda dentre elas podemos destacar: a formação para os agentes culturais
envolvidos com essas manifestações; uma aproximação mais intensa do estado com os
municípios onde elas acontecem; que a partir do reconhecimento o estado notifiquem
esses municípios sugerindo um maior apoio; que sejam incorporadas ações nos
calendários locais das comunidades onde existe esta manifestação; que as escolas
possam cada vez mais aproximarem-se desses mestres; que seja construída uma agenda
entre o IPAC e os cheganceiros para a reestruturação dos diversos grupos que deixaram
de existir; que o fomento do estado seja permanente para as ações.
No segundo dia da programação, foi realizada a segunda reunião, que
contou com as presenças das lideranças dos grupos das cidades de Andaraí, Alcobaça,
Prado, Caravelas, Sítio do Mato, Paratinga, Arembepe, Taperoá, Jacobina, Lençóis,
Saubara, Curaçá, Remanso e Barra, alem dirigentes municipais de cultura, produtores
culturais, professores, pesquisadores, representantes do Conselho Estadual de Cultura,
Representantes da Secretaria Estadual de Cultura e a comunidade em geral. Foi o
momento de ouvir os órgãos do governo estadual expressarem sobre o processo do
Registro. Ficamos sabendo que o dossiê já estava no conselho de cultura aguardando o
parecer da relatora e depois seria votado para assim seguir os trâmites processuais.
Várias foram as indagações feitas pelos representantes dos grupos e todas as questões
foram devidamente respondidas pelos representantes do governo.
Na tarde deste mesmo dia, aconteceu o desfile dos grupos presentes foram
eles: Marujada de Jacobina, Remanso, Andaraí, Lençóis, Paratinga e de Curaçá,
Cheganças de Mouros Femininas de Arembepe e de Saubara, Cheganças de Mouros
Masculinas de Saubara, Arembepe, Taperoá, Cheganças de Marujos de Saubara e Cairu.
Contamos também com uma pequena demonstração das embaixadas de Alcobaça. Ao
todo foram quatorze representações. O momento das apresentações é aguardado pela
comunidade, que se concentra para apreciar acomodadamente cada grupo. São crianças,
jovens, adultos, idosos um público variado na idade, no sexo e na condição social.
Realizar um evento como esse traz consigo alguns desafios e dificuldades.
Os recursos não são suficientes para todas as demandas envolvidas na produção e a falta
de apoio e a forma com que algumas prefeituras apóiam os grupos, a disposição
geográfica onde os grupos se encontram também se apresenta como algo desafiador
para conseguir juntar essas pessoas. Assim como os desafios e dificuldades se
apresentam, aparecem também as satisfações em produzir tal evento.
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