Dissertação Rosildo Do Rosário

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS


PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA
DIÁSPORA E DOS POVOS INDÍGENAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA DIÁSPORA E DOS
POVOS INDÍGENAS

ROSILDO MOREIRA DO ROSÁRIO

CHEGANÇAS E MARUJADAS: DE UMA TRAVESSIA IMAGINÁRIA A UM


PORTO SEGURO.

CACHOEIRA
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS
PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA
DIÁSPORA E DOS POVOS INDÍGENAS
MESTRADO PROFISSIONAL EM HISTÓRIA DA ÁFRICA, DA DIÁSPORA E DOS
POVOS INDÍGENAS

Cheganças e Marujadas: De uma travessia imaginária a um porto seguro.

Rosildo Moreira do Rosário

Relatório apresentado ao Mestrado Profissional em


História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia (UFRB), como requisito final para obtenção
do título de mestre.

Orientadora: Profª. Drª. Rita dias de Cássia Pereira


Alves
Co-Orientador: Prof. Dr. Cláudio Orlando Costa do
Nascimento

Banca de Defesa
Profª. Drª. Vanda Machado
Profª. Drª. Ana Célia da Silva
Prof. Dr. Silvio Humberto dos Passos Cunha

Cachoeira
2020
Cheganças e Marujadas: de uma travessia imaginária a um porto seguro.

Relatório final apresentado a Universidade Federal do


Recôncavo da Bahia, como parte das exigências para
obtenção do título de mestre.

Cachoeira, _____de __________________de _________.

BANCA EXIMINADORA

_________________________________________
Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus
Professora Orientadora
Professora do Programa

_________________________________________
Claudio Orlando Costa do Nascimento
Co-Orientador Professor
Professor do Programa

________________________________________
Professora Vanda Machado
Professora do Programa

___________________________________________
Professora Ana Célia da Silva
Professora Convidada

___________________________________________
Silvio Humberto dos Passos Cunha
Professor Convidado
AGRADECIMENTOS
Eu vi cupido nu em campo
Descalço pisando em flores
Dizendo viva a quem ama
E morra quem não tem amores...

Este é um trabalho de que jamais poderá ser dito “eu fiz”, mesmo que escrito na
primeira pessoa. Essa foi a maneira que minha limitação permitiu produzir. Quando
agradecemos é porque reconhecemos o quanto foi importante a ajuda de todos, e, nesse caso
específico, foram muitos, de modo que posso até cometer o pecado de esquecer-me de
alguém. Foram vários “ventos de proa”, “alagamento da embarcação”, “tempestades”
terríveis, mas depois de ter colocado o barco n’água, não é possível retornar sem a missão
cumprida. E foi com esse espírito e determinação que retornamos ao porto. É preciso
primeiramente agradecer aos nossos ancestrais, pedir a benção aos Marujos que se
encantaram. É preciso marcar ancestralidade.
Agradecer aos membros do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira,
aqueles que já não se encontram entre nós fisicamente, que partiram ao cumprir sua função
aqui na terra. Agradeço aos cheganceiros de agora, que continuam a navegar sob o meu
comando, acreditando nas rotas traçadas, encarando todas as adversidades e vivendo a triste
vida que um marujo leva, amor de marujo dura mais de uma hora.
Agradeço a minha família, mãe, irmã, irmãos, sobrinhas, sobrinhos, primas,
primos, tios, muitos desses que veem em mim um exemplo de sucesso. A Tia Jelita um
agradecimento especial, minha Yá, que, sempre com palavras certas, me acalmava nos tempos
de ventos fortes, e se permitia ouvir minha reclamações. Com ela aprendi o que é ser paciente.
Tenho certeza que, se estivesse entre nós, seria quem mais vibraria com esse trabalho.
Acredito que lá do Orum observa e orienta. Agradecer Minha companheira Cosminha
Conceição Ribeiro, que, com paciência, resistiu, assistiu a tudo acontecer, e, em muitos
momentos, cobriu as minhas faltas; a Dandara Rosa Ribeiro do Rosário, minha filha, que
admira intensamente as minhas produções; a Juão Miguel Ribeiro do Rosário, meu filho, o
mais especial agradecimento ele me permitiu imitar seu avô nesse fazer cultural.
Agradecer à Professora Mestra Vanessa Pereira Almeida que sempre esteve por
perto a me encorajar, e dando as preciosas dicas, porque também se navega em águas doces; a
Eliege Santiago Santos, braço forte nas remadas para construção do livro; ao professor Jarbas
Farias, que gentilmente cedeu a sua arte para compor o material. Um agradecimento especial
à Professora Luciana Maria de Lima Barreto, que me incentivou durante todo o processo do
curso. Obrigado Daniela Barros Pontes e Silva, Saulo Pequeno Nogueira Florencio que,
mesmo distante, não esqueceu em momento algum de contribuir, sugerindo importantes
leituras.
Aos mestres e mestras de todos os grupos de Cheganças, Marujadas e Lutas entre
Mouros e Cristãos da Bahia, com quem tive contato durante esse processo de construção.
Suas palavras deram uma melhor e maior dimensão do que é ser agente cultural.
Conquistamos para todos os grupos o Título de Patrimônio Imaterial da Bahia, num processo
lindo de articulação e envolvimento de todos. Obrigado!
Agradecer a Oxum, por ter me concedido a honra de suas orientações através da
Professora Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus, minha orientadora, que conduziu parte dessa
navegação com a sabedoria que só uma filha de Oxum conseguiria. Zelosa, paciente e
sensível, com o reflexo de seu Abebé indicava a direção a seguir.
Agradecer a minha Tia Dodô, que nesta data parte para o mundo de Orum,
deixando seus ensinamentos para todos os que tiveram a oportunidade de uma vivência com
ela, fazendo valer que, mesmo se a travessia for imaginária, chegaremos a um porto seguro.
Saubara, 25 de maio de 2020.
Dedico este navegar a Maria Anna Moreira do
Rosário e a Raimundo Bento do Rosário, meus pais,
que me introduziram nesse universo com a certeza de
que eu seguiria a rota do bem.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira
como um grupo da cultura tradicional que oferece elementos que colaboram com a formação
da identidade da comunidade de Saubara, por ser constituído das memórias coletivas e
individuais das pessoas desse lugar, por fazer referências históricas de como essa Saubara foi
importante para Independência da Bahia, demonstrar como a prática milenar da oralidade, o
“boca a ouvido”, tem sido um dos principais veículos na preservação dessa manifestação e
discutir como a política de patrimonialização, que reconhece as Cheganças e Marujadas como
patrimônio imaterial pode colaborar para a sua preservação, sem transferir para o Estado a
responsabilidade orgânica de preservação que pertence aos seus fazedores. Busco ainda
evidenciar a música como elemento de memória, dando a ela o status de elo que dá unidade
para os pilares trabalhados. Trazer um novo olhar acerca da religiosidade também constitui
esse trabalho, uma vez que todas as retóricas antes existentes apontavam para a fé sob a
perspectiva do colonizador.

Palavras chave: Oralidade, Patrimônio, Identidade, Memória, Chegança e Marujada


ABSTRACT

The objective of this work is to present the Chegança dos Marujos Fragata Brasileira as a
group of traditional culture that offers elements that collaborate with the formation of the
identity of the community of Saubara, for being constituted of the collective and individual
memories of the people of that place, for making historical references of how this Saubara
was important for Independência da Bahia, to demonstrate how the ancient practice of orality,
the “word of mouth”, has been one of the main vehicles in the preservation of this
manifestation and to discuss how the patrimonialization policy, which recognizes Cheganças
and Marujadas as intangible heritage it can collaborate for its preservation, without
transferring to the State the organic responsibility of preservation that belongs to its makers. I
also try to highlight music as an element of memory, giving it the status of a link that gives
unity to the pillars worked on. Bringing a new perspective on religiosity also constitutes this
work, since all the rhetoric that previously existed pointed to faith from the perspective of the
colonizer.

Keywords: Orality, Heritage, Identity, Memory, Chegança e Marujada.


Lista de imagens

Foto 1 Chegança de Mouros da cidade de Taperoá, em apresentação na cidade de Jacobina


em maio de 2018. Foto: Reinilson do Rosário----------------------------------------------página 35

Foto 2 Luta entre Mouros e Cristão da cidade de Alcobaça, apresentação em janeiro de 2018.
Foto: Rosildo do Rosário ---------------------------------------------------------------------página 37

Foto 3 Marujada de Jacobina apresentação em abril de 2018. Foto: Reinilson do Rosário ------
-----------------------------------------------------------------------------------------------------página 38

Foto 4 Chegança Barca Nova Feminina da cidade de Saubara apresentação na cidade de


Arembepeem novembro de 2018. Foto: Eliege Santiago----------------------------------página 85

Foto 5 Chegança Barca Nova Feminina da cidade de Saubara , apresentação em Saubara em


setembro de 2018. Foto: Reinilson do Rosário ---------------------------------------------página 86

Foto 6 Chegança Fragata Barca Nova da cidade de Saubara, apresentação em Salvador, em


julho de 2016. Foto: Eliege Santiago---------------------------------------------------------página 88

Foto 7 Chegança Fragata Barca Nova da cidade de Saubara, em setembro de 2018. Foto:
Reinilson do Rosário----------------------------------------------------------------------------página 90

Foto 8 Chegança Fragata Brasileira da cidade de Saubara, apresentação em Saubara, em


agosto de 1978. Foto: Ralph Wander---------------------------------------------------------página 92
Siglas

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional


IPAC Instituto do Patrimônio Cultural
PCN Parâmetro Curriculares Nacional
SECADI –Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola
FNDE-Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FUNCEB- Fundação Cultural do Estado da Bahia
Uneb Universidade Estadual da Bahia
SEPROMI Secretaria de Promoção da Igualdade Racial
CCPI Centro de Culturas Populares e Identitárias
CONEN Coordenação Nacional de Entidades Negras
APRESENTAÇAO

O presente relatório traz um aporte de informações a respeito dos grupos de


Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. Este último tipo de manifestação não
compunha o projeto original, o que submeti para adentrar no curso do Mestrado Profissional
em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas. Originalmente, a intenção era falar
apenas das Cheganças e Marujadas, porém, com o decorrer do tempo e o contato com
algumas comunidades, percebi a necessidade de inclusão do tema das Embaixadas, isso
porque, de certa forma, essa manifestação tem uma proximidade com os demais temas.

Darei uma maior atenção para Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira,
da cidade de Saubara, descrevendo suas histórias, suas ocorrências, como se dá sua
organização, como é sua relação com a comunidade, seus rituais, como se relaciona com
outras manifestações culturais da comunidade, como é sua indumentária, sua performance,
dentre outros aspectos. Isso, na tentativa de vislumbrar como este grupo vem, através dos
tempos, mantendo-se como referência cultural e elemento de transformação da identidade e
subjetividade da comunidade de Saubara, utilizando-se da oralidade como fundamento para
sua transmissão, ainda que a educação formal tenha deixado de lado essa característica.
A metodologia proposta é o trabalho com narrativas dos integrantes do grupo de
Chegança, coletadas por meio de entrevistas que privilegiarão, além das histórias de vida, a
convivência cotidiana no contexto da manifestação. Será considerada também a minha própria
experiência enquanto fazedor de cultura e componente do grupo. Como resultado deste
projeto, pretendo apresentar um livro, que poderá ser utilizado como material paradidático no
contexto escolar destinado para estudantes das séries iniciais do ensino fundamental da cidade
de Saubara e região, para o fortalecimento das ações destinadas ao cumprimento da Lei
11.645/2008.

Algumas questões foram postas e levantadas para nos orientar sobre quais mares
navegar. Como é possível um grupo de uma manifestação cultural manter-se resistente ao
longo dos tempos, enfrentado as mais diversas investidas de uma camada da sociedade que
cada vez mais tenta apagar da história os fatos que revelam quais foram os verdadeiros
caminhos que lhes trouxeram até aqui? Como os conhecimentos que são transmitidos através
da oralidade mantiveram-se presentes nas comunidades tradicionais e colaboraram para que a
cultura popular se tornasse um elemento de formação identitária? Como a ideia de patrimônio
cultural e o processo de patrimonialização das manifestações de natureza imaterial, vêm sendo
utilizados para uma tomada de consciência por parte dos agentes culturais detentores e
detentoras dos saberes e fazeres tradicionais? Estas são algumas das perguntas que buscarei
elucidar com a continuidade do trabalho, caso seja possível encontrar respostas para esses
questionamentos, assim conseguirei os objetivos propostos, que são: investigar como o grupo
cultural Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, por meio da oralidade, resiste ao tempo, e
como tem atuado na formação da identidade das pessoas que vivem em torno do grupo e da
comunidade de modo geral; realizar um levantamento das letras das canções da Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira, buscando compreender como estas podem contribuir com a
educação escolar para o cumprimento da Lei 11.654/2008; e, ainda, investigar como o
conceito de patrimônio cultural pode contribuir para que as pessoas envolvidas nas mais
diversas manifestações culturais possam se reconhecer como agentes protagonistas do
processo de formação de suas próprias identidades. Apresentaremos também relatórios de
atividades desenvolvidas a partir do grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, que
desencadearam o processo de registro dos grupos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas
como Patrimônio Imaterial do Estado da Bahia, além dos resultados do inventário que serviu
para embasar o dossiê, peça fundamental para o registro. Uma literatura também específica
será visitada para que possamos comparar as nossas experiências com experiências vividas
em outras comunidades. Trabalhos como os de Antonio Osmar Gomes, D. Martins de
Oliveira, Manuel Quirino, Oneyda Alvarenga, Altimar de Alencar Pimentel e Theo Brandão
servirão como base para essa reflexão. O trabalho do professor Nelson Araújo, que no início
da década de 1980 coletou importantes dados do grupo Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira, será utilizado para que possamos realizar uma análise dessa manifestação nos dias
atuais.
INTRODUÇÃO

MEMÓRIA DE UM MARUJO DE PRIMEIRA VIAGEM.

Desde cedo, aos três anos de idade, meu pai, Raimundo Bento do Rosário, me
apresentou a esta manifestação. Com ele aprendi as primeiras canções, bem como a tocar o
pandeiro da Chegança. Pandeiro que tem uma peculiaridade: não é aquele toque que todo
mundo conhece, há um jeito especial para tocar o pandeiro da chegança, a sincronia do riscar
e bater o pandeiro faz com que ele seja diferente. O abafar e soltar da pancada faz o seu som
ser diferente, seu canto e contra canto conduz a cantiga. É tocado por 30 pessoas
simultaneamente, são vários tamanhos e espessuras, que, ao serem tocados conjuntamente,
fornecem uma música peculiar.
Tenho na memória os ensaios, toda tarde de domingo, na Rua do Cansanção, onde
me parece que hoje é a casa da família da finada Dona Izartina. Era uma casa ainda em
construção, uma casa de taipa, “casa de barro”, como falamos. Muitas pessoas se reuniam
para assistir o ensaio, pois essa era a principal atração nas tarde de domingo. O chão era de
areia, e quando dançávamos subia um poeirão, e eu ficava ali encantado em meio a tanta
alegria. As pessoas em volta se envolviam a cada momento que parávamos para lembrar a
canção.
Minha avó paterna Maria Joana do Rosário era aquela a quem todos ouviam, era a
mais velha. Não conheci meu avô Torquato Leandro, já havia falecido quando nasci. Com
certeza foi um dos componentes desse grupo outrora. Minha avó tinha na memória todo o
repertório, e estava sempre ali pronta para colaborar. Ela fazia os “ensinamentos”, era assim
que se chamavam os “workshops” antigamente. Antes dos ensaios formais, todos se reuniam
em torno dela para ouvir seus relatos, todos queriam saber como meu avô fazia, e o que ele
cantava. Assim o grupo foi sendo reerguido.

Não sei bem por qual motivo tivemos que buscar outro lugar para os ensaios,
mas, depois de algum tempo, passamos a ensaiar no bar de Zé de Umbu, na rua do lavador e
as tardes de domingo continuavam alegres. Era uma grande festa, muita gente vendia
amendoim cozido, amendoim torrado, licor, mugunzá, arroz doce, tudo isso para ajudar na
confecção das roupas.
O Tempo se passou e tivemos que ir para outro lugar para ensaiar, fomos então
para a “biboca” de Codô, ali mesmo na rua do Lavador. Codô era o Comandante da Marujada,
um senhor negro, alto, forte, e que tinha na voz e na postura a delicadeza de um comandante:
na retaguarda da marujada, não permitia que os marujos destoassem ou bailassem de forma
errada. Seu apito trazia o som de finalizar uma encenação. Codô cedeu seu espaço durante um
tempo, mas, nesse mesmo período, se desfez da biboca, e tivemos que encontrar outro espaço
para os ensaios. Foi então que Seu Vivaldo, filho Seu Satu um dos Marujos, emprestou uma
casa que acabara de construir na rua do Taboão, Vivaldo morava em Salvador, e sempre aos
finais de semana vinha com a família para Saubara, e as vezes os ensaios não podiam
acontecer, foi então que Seu Gonçalo, I gajeiro do grupo, cedeu um casebre que tinha nos
fundos de sua casa, era onde ele guardava rede, remo, cofo, candeeiro, seus instrumento de
pesca, era um espaço grande, os ensaios aconteceram por lá, até a construção da sede da
Chegança.
Numa das apresentações que o grupo fez em Salvador recebemos um cachê, com
esse dinheiro decidiu-se, em reunião, comprar um terreno. Encontram o lugar perfeito na Rua
chamada Boca da Mata, perto de uma alfaiataria onde os marujos se juntavam para jogar três-
sete.1 Numa manhã de domingo todos se reuniram para iniciar os trabalhos de construção com
a limpeza do terreno. Lembro-me bem de Ica, marujo alto, forte, pescador, um dos primeiros
que chegava nesses dias, meu pai, João de Iaiá, Grigório, Muca... foi um dia de farra! Para
dar início à construção houve também um mutirão para buscar pedra. Todas as pedras usadas
para as alvenarias da sede foram tiradas na maré, com marretas e alavancas. Várias manhãs de
domingo nessa labuta. Num dia desses de tirada de pedras, quando voltávamos depois de a
maré encher, passando por um rego, um peixe se bateu nas raízes do mangue, e foi uma festa,
vários tentaram pegar esse peixe e Guga foi o mais ágil.
O grupo recebeu um convite para participar, dos festejos do dia de marinheiro no
segundo Distrito Naval em Salvador. Foi um grande alvoroço na cidade. Minha tia trouxe a
notícia, porém muitos dos membros não acreditaram, outros ficaram com medo, parecia o
episódio narrado por Manoel Quirino:
Em certa ocasião, pelos festejos do dois de julho, João Pacheco, almirante de uma
chegança, dirigia-se ao largo da lapinha, como de costume, no intuito de
acompanhar os emblemas de nossa emancipação política. Ao chegar à praça de
Palácio encontrou uma divisão do exército, estendida em linha, tendo à sua frente o
comandante das armas, general Luiz da França Pinto Garcez. João Pacheco, bem
persuadido de sua posição de almirante, fez parar o préstito, e, de acordo com as
ordenanças em vigor, prestou as homenagens a que tinha direito o general, com

1
Um jogo de baralho muito antigo de que hoje só temos notícias de ser jogado em Saubara.
todas as formalidades do estilo. O general, por sua vez, não se fez esperar,
retribuindo ao almirante a continência a que tinha direito, na ocasião. Esta
circunstância, de todo imprevista, molestou a vaidade do capitão do porto, oficial da
armada, Sr. Leal Ferreira [...] a ponto de procurar vingar-se com o popular João
Pacheco, por ter batido a continência do general, num dia de entusiasmo patriótico.
(QUIRINO, 1955, p. 65).

Foi preciso que viesse uma carta convite para que alguns acreditassem, e outros
criassem coragem para ir ao tal evento. Chegado o dia (se não me falha a memória era 13 de
dezembro de 1985), e um ônibus cinza, um carro oficial da Marinha do Brasil, chegou à
cidade. Muita gente queria ver se era verdade que o grupo iria mesmo para o quartel da
Marinha em Salvador. Antes da apresentação dentro dos festejos da Marinha, fomos à Igreja
de Nossa Senhora da Conceição da Praia, onde o grupo fez a reverência, uma das mais bonitas
que já presenciei.
Tive a felicidade e honra de ter sido concebido numa família onde as
manifestações culturais tiveram sempre presente. Minha família materna muito envolvida
como Samba de Roda e a família paterna com a Marujada. Esse ambiente me proporcionou a
possibilidade de uma educação diferenciada, fora dos padrões da escola informal. E ter tido
desde cedo contato com esse universo do aprendizado orgânico foi o caminho para agora
conseguir ter alcançado a realização de projetos extremamente importantes para a preservação
dessas manifestações.
No Grupo Cheganças dos Marujos Fragata Brasileira entrei como marujo, o mais
jovem marujo, com apenas 3 anos, e cresci com o grupo. No grupo, uma das maiores alegrias
foi quando recebi a notícia de que seria o calafatinho. Deveria ter 9 anos, quando, em um dos
ensaios, que acontecia sempre aos sábados, o Contra-Mestre Duca disse: “Vamos ouvir a
rezinga2 do nosso calafatinho”, e me chamou para perto dele. Ele apitou, os guias iniciaram
com os pandeiros, e eu, sem demora, cantei: “Eu já não posso mais bailar ô mais bailar,
mande-me senhora eu sentar, que é para eu puder descansar...”, eu já sabia toda letra,
conhecia o exato momento de cada intervenção na encenação. Sabia quando o piloto cantaria,
quando tinha que me reportar ao piloto, ao mestre, ao patrão, como se fala, sabia tudo “de cor
e salteado”, e quando cantei: “Graças aos céus de todo meu coração ainda ontem estava
preso e hoje já tô no cordão”, percebi que tinha conseguido. A partir daquela data eu era o
calafatinho e pude com muito orgulho, cantar minha rezinga.

2
Rezinga é o efeito de rezingar, uma espécie de reclamação, discordância. O calafatinho reclama que tem
trabalhado excessivamente e precisa de descanso. No meio da encenação, é acusado e preso, apela para os
oficiais e é solto. De maneira bem alegre, festeja no final.
Ser calafatinho não dura muito tempo. Esse personagem é ocupado sempre por
criança, e criança cresce. Eu cresci, e voltei a ser marujo comum. Participei de algumas
apresentações depois, mas dois motivos me fizeram por algum tempo me distanciar do grupo.
O primeiro, é que muito rapidamente minha roupa se perdia. O grupo fazia apenas duas
apresentações ao ano, e era necessário confeccionar roupa todos os anos. Por um período foi
muito difícil para meus pais conseguir confeccionar minha farda (calça, camisa, sapato,
chapéu, cinto, meia). Segundo, chegou também a adolescência, e com ela os mais diversos
conflitos. Encontrei outros grupos, outras pessoas, que momentaneamente atraíram minha
atenção. Mas, de alguma forma, estava sempre envolvido com a marujada. Acompanhava o
zelo que minha mãe tinha com a farda de meu pai, o cuidado que meu pai tinha pela espada, a
mágica do 4 de agosto, os ensaios... Eu saí da chegança, mas a chegança nunca saiu de mim.
O sentimento de pertencimento é mais forte, e ecoa na lição aprendida com a canção:
“Cresce, cresce meu menino para a pátria defender, que o Brasil está jurado, liberdade ou
morrer”.
Nessa transição da juventude para a fase adulta, eu me reencontro novamente com
a Chegança, e dessa vez espero que para sempre. Era por volta de 1996, meu pai ocupava o
posto de Contra-Mestre, e eu juntei-me novamente ao grupo. Assumi o posto de piloto,
função antes ocupada pelo meu pai. Tive momentos fabulosos, pude com meu pai, diversas
vezes, cantar a rezinga do contramestre e piloto3 e sentia o orgulho dele em cantar comigo,
sentimento que era recíproco. Viver esse grupo tornou-se necessidade vital. Mais
concretamente percebi o quanto era dali que havia absorvido ensinamentos, que os momentos
mais perigosos da vida pude driblar e sair ileso. Foram mais de dez anos vividos intensamente
com meu pai no grupo, quando de repente descobrimos que ele estava doente. Um câncer na
garganta forçou sua saída das apresentações do grupo. Desde então, eu assumi sua função e
permaneço até os dias de hoje. Seis meses após a descoberta da doença, ele faleceu, e além de
assumir a função, assumo também a responsabilidade de criar outros mecanismos para que o
grupo permaneça em atividade.
São 41 anos de contínua transformação, aprendizados, crescimento. Sem a
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira seria impossível conseguir perceber a vida sob a
ótica da necessidade da vivência coletiva, da valorização e preservação da memória, da
valorização da família. Foi esse grupo que me mostrou que é possível persistir na travessia e

3
Nessa rezinga, o contramestre acusa o piloto de não saber para onde está navegando.
enfrentar com as tempestades, lembrando sempre do ensinamento: é certo chegar a um porto
seguro.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO

INTRUDUÇÃO
Chegança dos marujos fragata brasileira: Memória de um marujo de primeira viagem.

Capítulo I
1-CULTURA, UMA NOVA VELHA FORMA DE EDUCAR: OS SABERES E FAZERES
TRADICIONAIS, PODER PARA UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA.--21

Capítulo II
2-ORIGEM DO TERMO CHEGANÇA E SUAS DEFINIÇÕES.--------------------------------30

2.1- Cheganças De Mouros.----------------------------------------------------------------------------35

2.2 Lutas De Mouros E Cristãos Ou Embaixadas.---------------------------------------------------37

2.3 Cheganças De Marujos Ou Marujadas -----------------------------------------------------------38

Capítulo III
3-ETNOMÉTODOS PARA A PERPETUAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES DA CULTURA
POPULAR------------------------------------------------------------------------------------------------41

3.1 O lugar da memória na preservação das manifestações da cultura popular------------------44

3.1.1 Analogia entre os poemas dos Lusíadas de Camões e a cantigas da Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira.-----------------------------------------------------------------------------48

3.2- Identidade: Um conceito estruturante na resistência das manifestações da cultura


popular.---------------------------------------------------------------------------------------------------60

3.2.1- Os Marotos pés de chumbo---------------------------------------------------------------------65

3.3- Música como elemento de memória-------------------------------------------------------------68

Capítulo IV
4-Patrimonialização novos horizontes para uma autoorganização e autoreconhecimento. -------
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------75

4.1-Os Grupos de Chegança de Saubara -------------------------------------------------------------83

4.1.1- Chegança de Mouros Barca Nova (Feminina) -----------------------------------------------84

4.1.2- Chegança de Mouros Fragata Barca Nova( Masculina)-------------------------------------87

4.1.3- O Grupo Chegança Dos Marujos Fragata Brasileira.----------------------------------------92

4.2- Saubara o porto seguro onde essa embarcação atraca.---------------------------------------105


4.3Caboco Marujo, Êta Marujada.---------------------------------------------------------------109

4.4- A independência da Bahia contada pela Chegança.--------------------------------------114

Capítulo V
5-PROJETOS DESENVOLVIDOS E AÇÕES SOCIAIS.---------------------------------------132

5.1- Os Encontros De Cheganças, Marujadas E Embaixadas Da Bahia.------------------------132

5.1.1- I Encontro de Cheganças Da Bahia-----------------------------------------------------------133

5.1.2- II Encontro de Chegança Da Bahia ----------------------------------------------------------134

5.1.3- III Encontro de Cheganças Da Bahia --------------------------------------------------------135

5.1.4 – IV Encontro de Cheganças Da Bahia-------------------------------------------------------136

5.1.5- V Encontro de Cheganças Da Bahia---------------------------------------------------------138

5.1.6- VI Encontro de Chegança Da Bahia----------------------------------------------------------138

5.1.7– VII Encontro de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia.-----------------------142


CAPÍTULO I

1- CULTURA, UMA NOVA VELHA FORMA DE EDUCAR: OS SABERES


E FAZERES TRADICIONAIS, PODER PARA UMA EDUCAÇÃO
LIBERTADORA

Existe na estrutura social do Brasil, uma questão que merece atenção de


quem busca, incansavelmente, defender as “minorias”, de quem defende os interesses
dos afrodescendentes e dos povos originários: fazendo essa defesa, inevitavelmente, vai-
se deparar com uma corrente que defende, estimula e pratica o “apartheid social”,
mantendo essas populações como inferiorizadas e submissas. Esse pensar, que perpetua
o pensamento eurocêntrico vem, ao longo dos anos, fazendo com que haja uma
manutenção de condições sociais precárias para essas minorias, e isso tem sido cruel
com a população negra no Brasil. Essa evidente separação, Henrique Cunha Jr. (2013)
chama de “racismo antinegro” que produziu uma desqualificação social da população
afrodescendente, com suas implicações nos mercados de trabalho, e no acesso aos bens
materiais e imateriais para a população negra”. (CUNHA Jr, apud GARCIA, 2013, p.
208). O processo de desenvolvimento da formação brasileira com base no capitalismo,
tendo como referência o modelo europeu, desenvolveu aqui uma tendência escravocrata
que se sustenta desde o período da colonização até os dias atuais. Isso acontece quando
ainda somos impedidos de ter as mesmas condições a saúde, a educação, quando as
nossas práticas ancestrais ficam a margem das políticas culturas existentes, que
concentram grande aporte financeiro na cultura de massa, quando se privilegia uma
determinada região em detrimento a outras. Com o processo de colonização para a
expansão do capitalismo, veio à necessidade da homogeneização da formação humana,
dando a ela um caráter utilitarista, para atender ao crescimento econômico e territorial
(SILVA, 2019, p 35).
Hegemonizar o ensino através do currículo vem sendo uma estratégia para a
manutenção de concepções que abordam a ideia de existência de raças e de mestiçagem,
e isso contribui para a proliferação de uma suposta inferioridade dos afrodescendentes
no Brasil. Para que o currículo escolar tenha poder de controle social, é necessário que
os significados educacionais que ele expande representem o capital cultural hegemônico
na sociedade, ou seja, a cultura da classe dominante (SILVA, 2004, p. 42). Tratar todos
e todas como seres que têm uma exclusiva forma de pensar e agir, é não considerar a
diversidade cultural existente entre todos os povos que compõem o país. Essas
concepções de inferioridade atingem de forma avassaladora as produções culturais, e
principalmente, aquelas produzidas por comunidades tradicionais, cujos indivíduos são
obrigados a ingressar na educação formal onde veem seus conhecimentos orgânicos
serem destratados. É nesse cenário de exclusão que vislumbramos a possibilidade de
uma educação que valorize os saberes e fazeres de comunidades, onde os saberes
ancestrais são praticados e a formação de identidades a partir das experiências de vida
das pessoas inseridas nos movimentos socioculturais seja de fato valorizada. Nesse
sentido é que Boaventura de Souza Santos, (2002) aponta a necessidade de refletir sobre
a permanência de paradigmas dominantes, encaminhamo-nos então, para uma nova
forma de pensar subjetivamente sobre o outro. Nesse navegar buscaremos um diálogo
com o trabalho de Tomaz Tadeu da Silva (2010), que apresenta uma importante visão
sobre o currículo, colocando a necessidade de ampliação desse conceito, para que sejam
valorizados os conhecimentos produzidos fora do ambiente formal da educação, para
melhor compreender a diáspora africana, e seu legado na construção da identidade do
povo brasileiro.
As práticas dos movimentos culturais foram por muito tempo relegadas à luz da
ciência moderna, as ditas “narrativas mestras”, que de forma hegemônica sempre tratou
o ser humano como sendo as mesmas, e os mesmos, em todos os lugares. É necessário
romper e reinventar paradigmas que considerem os indivíduos como seres plurais,
constituintes e constituídos de identidades, capazes de recriar suas formas de crescer no
mundo, e com o mundo, sem perder de vista suas raízes, seus ensinamentos e
aprendizados. Percebemos que ainda nos dias atuais, existem comunidades que
alimentam e praticam a transmissão de conhecimentos ancestrais, como forma de
preservar suas identidades, garantindo que saberes do passado sejam experenciados por
várias gerações. Um dos pilares dessa resistência são os grupos de “Culturas
Populares”, que utilizam técnicas ancestrais, como a oralidade, para não se submeterem
às investidas massacrantes da modernidade. Apesar de serem também esses seres que
vivem e convivem com a suposta modernidade.

Entretanto, resistindo aos processos de dominação e, mais


especificamente, aos processos de escolarização do conhecimento,
alguns grupos e sociedades denominadas de “Culturas Populares” e
"Povos e Comunidades Tradicionais”- especialmente de matriz
africana- sustentam seus modos de estar e agir no mundo, preservando
tradições ancestrais seculares, trazidas para o Brasil pelas correntes da
escravidão. Dessa maneira, preservam também os processos
educativos para o constituir-se humano afastados dos processos de
escolarização por meio de práticas que remetem ao cotidiano de suas
comunidades-mãe: as sociedades tradicionais africanas, que
antecedem a expansão da colonização européia e a escravidão.
(SILVA, 2019. p 36).

Mesmo que integrantes de uma determinada comunidade ou grupo tradicional


tenham uma aproximação com a escola formal, será no seio de sua ancestralidade que
seu processo de formação se iniciará de maneira mais efetiva e afetivamente.
Precisamos cada vez mais, e incansavelmente, sugerir práticas que articulem os
elementos da cultura popular para serem inseridas no ambiente escolar, a fim de que
tenhamos uma educação que favoreça e reconheça os saberes e experiências de fora da
escola.
Quem melhor poderia explicar o que aprendeu dentro de um grupo cultural,
senão quem lá foi formado? Tendo esse entendimento, lanço-me à tentativa de, embora
ter convivido com diversas outras experiências, desenvolver uma narrativa explicativa
que possa, em certa medida, colaborar na difusão de um conhecimento outro, ou
simplesmente fazer com que pessoas percebam o quanto são importantes as produções
realizadas nos mais diferentes ambientes sociais, já que para a etnometodologia todas as
ações praticadas pelos indivíduos podem servir como processo investigativo, através de
uma pesquisa.
A etnometodologia propicia realizar estudos sobre aquilo que mais dá
sentido ao universo do indivíduo, é ter a possibilidade de construir para si uma
autoestima necessária para o enfrentamento das adversidades encontradas durante a
vida, é buscar sentido naquilo que mais lhe é tocante, o que possibilitou transitar nos
diferentes meios, orientando suas tomadas de decisões. Perguntas em relação aos
saberes e experiências podem ser feitas a todo momento. Por que as experiências dos
indivíduos ficaram sempre num lugar de subtrato? De que lugar vieram os responsáveis
por educar na escola? Essas são questões antigas, e ainda tão atuais. A escola, mesmo se
dizendo moderna não deixou de ser arcaica, e, assim sendo, cuida de um currículo
universalizante, que despreza o ser humano enquanto produtor de seu conhecimento.
Para essa conclusão não precisaria citar qualquer teórico, basta apenas olhar um pouco
para trás, e logo me lembro de como era ironizado por tentar exemplificar algo da escola
com a minha música, com a minha tradição, nunca era possível na escola, ter como
exemplo o samba de roda, a marujada, a não ser nos momentos de folclorização (02 de
julho e o dia do folclore). Daí surge para mim uma indagação: esse desprezo pelo saber
do indivíduo configura-se num etnométodo? Essa minha dúvida se alicerça em Macedo
et al (2014), que diz: “para muitos planejadores de currículo, a propósito, a experiência
é percebida como um ‘epifenômeno’, uma ausência sem necessidade de justificativas,
em alguns casos um mal entendido perigoso”. A escola tardou em reconhecer que as
diferenças presentes em seu ambiente precisavam de um tratamento diferenciado. Posta
como estava ela, não daria conta de cumprir seu papel de colaboradora na formação dos
indivíduos. Desconsiderar, ignorar toda a gama de conhecimento trazida de fora para
dentro da escola, pelos indivíduos, era tão perverso quanto qualquer outra forma de
discriminação. A necessidade de se criar uma escola receptora dos saberes
extraescolares, fez com que o modelo tradicional de currículo fosse posto em cheque,
trazendo à tona outra ordem curricular. Era emergencial que não apenas a questão social
fosse vista na construção do currículo, demandas outras deveriam fazer parte do
currículo educacional para que a escola começasse a dar conta de atender os mais
variados aspectos da sociedade, e, exclusivamente, os aspectos étnico-raciais.
Para Tomaz Tadeu (2010) da Silva “a teoria crítica do currículo tinha que
levar em conta também as desigualdades educacionais centradas nas relações de gênero,
raça e etnia (SILVA, 2010, p.99). Esse pensar transfigura a necessidade de dar a devida
importância às formas como os indivíduos aprendem fora da escola, como eles
formulam conhecimento em seus locais particulares, como em um grupo de
manifestação cultural, por exemplo. O grupo da Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira é a manifestação cultural na qual eu aprendi diversas lições, que talvez a
escola convencional não daria conta, e da qual participo até hoje, na função de
contramestre. A aprendizagem a partir desse grupo vai além da formação social e
sentimental, ela se dá na sua dimensão prática. Enquanto o professor tentava, sem muito
sucesso, falar de temas como a independência da Bahia, eu já tinha contato com o tema
desde muito cedo, tão somente por ser do grupo: cresce, cresce meus meninos para
pátria defender, que o Brasil está jurado ou liberdade ou morrer 4, cantava isso bem
antes de ser forçado a cantar:

Cresce, oh! Filho de minha alma


Para a pátria defender
O Brasil já tem jurado

4
Trecho de cantigas do grupo, uma estrofe que aparece em diversas músicas e em diversos ritmos.
Independência ou morrer.5

Ouvir esse trecho de umas das músicas da chegança era como se todos dali
estivessem repassando para mim aquela responsabilidade. Soava-me como algo direto,
pois eu era o menino dali. Além disso, abre espaço para outra indagação: quem
primeiro cantou esse trecho? Quem ouviu de quem esse trecho? É possível que se
tenha uma construção simultânea desse trecho? Uma possibilidade de estudo que a
educação formal ignora, e que está ali sendo cantada, declamada por um grupo da
comunidade onde crianças, jovens e adultos que compõem o grupo, são os mesmos
que estão no ambiente escolar. A instituição não percebe ou não considera que esses
conhecimentos trazidos de fora podem servir como elemento potencializador da
aprendizagem escolar. Conhecer determinados assuntos através de um grupo cultural
pode revelar a natureza pedagógica que a cultura oferece para que o cidadão aprenda.
Para Tomaz Tadeu (2010) esses conhecimentos extracurriculares

mesmo sem ter o objetivo explícito de ensinar, entretanto, é óbvio que


elas ensinam alguma coisa, que transmitem uma variedade de formas
de conhecimento que embora não sejam reconhecidas como tais são
vitais na formação da identidade subjetividade. (SILVA, 2010, p.
140).

A cada momento de ensaio, a cada apresentação, essa canção foi ficando


entranhada no meu subconsciente, fazendo com que minha vida fosse a chegança, como
se eu e a chegança fossemos algo indissociável. A minha formação enquanto pessoa se
deu a partir desta convivência, a permanente participação das ações no grupo me levou
a construir a minha identidade, e me trouxe a possibilidade de uma reflexão mais crítica
do meu papel como pessoa, também formadora de opinião. Esse entendimento parece
dialogar diretamente com o que aponta Josso:
a experiência formadora é uma aprendizagem que articula,
hierarquicamente: saber-fazer e conhecimentos, funcionalidade e
significação, técnicas de valores num espaço-tempo que oferece a
cada uma oportunidade de uma presença para si e para a situação, por
meio da mobilização de uma pluralidade de registros (JOSSO 2004, p.
39).

Ser do recôncavo, baiano, saubarense, brasileiro, para mim tem muito mais
significado por ter aprendido no grupo cultural do que ter sido forçado a um

5
Trecho do hino da Bahia.
aprendizado sem significação. Arrisco-me a interpretar de forma bastante firme, a
possibilidade de como, de maneira sutil, tais ensinamentos foram incorporados nesta
manifestação, utilizando-se da ludicidade, do canto, da dança, da música, para fazer
aprender sobre fatos históricos importantes. Faz-se necessário salientar que a partir
desta ótica

identificamos na etnometodologia, por exemplo, fios condutores


interessantes para encontrarmos e compreendermos os saberes da
experiência, na medida em que essa teoria do social se esmerou em
compreendê-los como saberes que, em última instância, organizam e
realizam o social, para todos os fins práticos e, a partir dessa condição,
instituem ordens culturais. (MACEDO, 2014, p. 1563).

Logo, percebemos a necessidade imediata de mergulhar neste oceano, e buscar


saber mais sobre o ser etnometodológico, e construir uma base teórica que venha a
colaborar no desenvolvimento do produto final desta pesquisa. Sobre a noção de etno, já
havia consultado uma literatura e tinha certa aproximação por conta de outras
experiências, em ocasião do curso de especialização em Educação Matemática, iniciado
e não concluído na Universidade Estadual de Feira de Santana. No decorrer do curso de
especialização, pesquisei sobre a etnomatemática, que de acordo com LOPES (2006) é
uma “moderna forma de ensino da matemática, que é feita levando em conta o fato de
povos de várias partes do mundo desenvolveram métodos próprios de contar, medir e
marcar o tempo” (LOPES, 2006, p. 62). Neste momento, descrevi o “jogo de gude”
(triângulo) e elaborei questões matemáticas para aplicar em sala de aula.
Como é possível um grupo de uma manifestação cultural manter-se
resistente ao longo dos tempos, enfrentado as mais diversas investidas de uma camada
da sociedade que cada vez mais tenta apagar da história, os fatos que revelam quais
foram os verdadeiros caminhos que lhes trouxeram até aqui? Esse é um questionamento
que imagino poder ser melhor investigado se sustentado por uma teoria sociológica que
tenha em seus pilares o reconhecimento de que somente quem tem uma relação
intrínseca com seu objeto, quem é membro da comunidade pode melhor extrair as
respostas de seus pares. Membro aqui é o apresentado por Coulon “no vocabulário
etnometodológico a noção de membro não se refere à pertença social, mas, ao domínio
da linguagem natural.” (COULON, 1995, p. 47). Para além da possibilidade de uma
pesquisa orientada pela Etnometodologia, assegurar uma relação muito intimista entre
pesquisador e pesquisado, é possibilitado também que as formas pelas quais isso
aconteça, sejam orientados por etnométodos que possibilitam um processo de
negociação entre os elementos constituintes do processo. Esse diálogo é o caminho que
possibilita ao sujeito evidenciar, tornar público suas formas de proceder no mundo,
tendo como elemento sua inserção nas produções de suas localidades. É como cada
indivíduo inserido em movimentos culturais, sobrevive por conta também da existência
dessa ou daquela manifestação. Um dado surge como elo recriador desta manifestação:
a memória. Apenas foi possível restabelecer o grupo da Chegança Fragata Brasileira por
conta da existência de pessoas que tiveram o convívio com outras pessoas participantes
de uma formação anterior. A memória se coloca aqui como elemento de sustentação dos
fundamentos onde está depositado o poder de resistir, é de onde renasce, revivem
individual ou coletivamente expressões desarticuladas com o passar dos tempos.
Estamos, portanto, no campo movente da subjetividade. “De uma criação contínua do
que nos constitui, o que passa pelo reconhecimento e pela aceitação das referências
pessoais, uma escolha que se vocaliza de uma forma que não é neutra, e, por isso
mesmo se vê autorizada” (ALVES e NASCIMENTO, 2016, p. 25). Foi o que aconteceu
com esse grupo. As crianças do passado se juntaram e coletivamente reativaram o
grupo. A memória se apresenta aqui como um instrumento etnometodológico a favor
da aprendizagem.
Esses mecanismos usados como construtores de aprendizados são o que
entendemos como etnométodos. Neste sentido, entendo que a oralidade dialoga com a
etnometodologia, pois “pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para
dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias”. (COULON,
1995 p. 30).
As experiências vividas por indivíduos em seus ambientes sociais não formais os levam
para uma compreensão de mundo que vai além do projetado na formalidade. O
aprendizado adquirido de maneiras diferentes, distantes da racionalidade sistemática,
acadêmica, proporciona um conhecimento não estático, dando a esse indivíduo o status
de intelectual orgânico, produtor de sua própria narrativa. A apropriação desses saberes
é o que Silvia Michele Macedo de Sá (2016), chama de etnoaprendizagem,

por mais que aconteça em bacias semânticas socioculturais, em suas


diversas formas e manifestações, é no âmbito da irredutibilidade nas
experiências do sujeito que aprende. Somente é capaz de narrar seus
processos e descrever com propriedade tais encaminhamentos e os
resultados atingidos, ou seja, seu aprendizado. (Alves e Nascimento,
2016, p.76).
Os saberes e as experiências configuram-se como aportes extremamente
importantes para uma tomada de compreensão e posicionamento que coloca a pessoa no
centro das suas próprias ações. A visibilidade que se passa a ter a partir do entendimento
de que as vivências individuais e coletivas incubem-se de garantir o protagonismo do
indivíduo é imprescindível para uma nova forma de comportamento social, que poderá,
de algum modo, refletir de forma ambígua. Da experiência emerge o que há de mais
fundamental para as educações experienciais, ou seja, o ponto de vista, as definições das
situações, as opiniões. Com isso, em toda experiência surgem políticas de sentido, lutas
por significados, daí que a experiência vive relações de poder que implicam em
legitimações e deslegitimações, com consequências políticas importantes. (Macedo et al
2014). “Em vez de fazer a hipótese, que os atores seguem regras, o interesse da
etnometodologia é pôr em evidência os métodos pelos quais os atores ‘utilizam’ essas
regras”. A revelar esse seu entendimento Coulon (2018), nos apresenta um novo e
surpreendente paradigma, pois coloca não somente a pessoa no centro da discussão,
coloca a sua produção da vida em evidência, coloca suas relação sociais coletivas como
algo palpável, e com ensinamentos. Buscar entender os sinais que permeiam uma
construção sociocultural longe das regras pragmáticas que sempre regeram a criação
acadêmica constitui-se num modelo de convívio social com valores de exponencial
geométrico.
Desenvolvemos então as nossas maneiras, os nossos métodos para a
preservação (a cantiga, a dança, a comida, o vestir, o dar a bênção, o pedir a bênção,
sentar em rodas, ouvir os mais velhos, falar para os mais novos, rezar, ofertar, cultivar,
reverenciar...), dessas práticas que sutilmente, estratégica e potencialmente, garantiram
que até hoje, ainda fosse possível experimentar práticas seculares.
Exu ajuda Olofim na criação do mundo:

Bem no princípio, durante a criação do universo Olofim-


Olodumare reuniu os sábios do Orum para que ajudasse no
surgimento da vida e no nascimento dos povos sobre a face da
terra.
Entretanto, cada um tinha uma ideia diferente para a criação e
todos encontravam algum inconveniente nas idéias dos outros,
nunca entrando em acordo.
Assim, surgiram muitos obstáculos e problemas para executar a
boa obra a que Olofim se propunha.
Então, quando os sábios e o próprio Olofim já acreditavam que
era impossível realizar tal tarefa, Exu veio em auxílio de
Olofim-Olodume.
Exu disse a Olofim que, para obter sucesso em tão grandiosa
obra, era necessário sacrificar cento e um pombos como
ebó,Com o sangue dos pombos, se purificariam as diversas
anormalidades que perturbam a vontade dos bons espíritos.
Ao ouvi-lo, Olofim estremeceu, porque a vida dos pombos está
muito ligada à própria vida. Mesmo assim, pouco depois
sentenciou: - Assim seja pelo bem de meus filhos. E pela
primeira vez se sacrificaram pombos.
Exu foi guiando Olofim por todos os lugares onde deveria
verter o sangue dos pombos, para que tudo fosse purificado e
para que seu desejo de criar o mundo fosse cumprido. Quando
Olofim realizou tudo o pretendia, convocou Exu e lhe disse:
Muito me ajudaste e eu bendigo teus atos por toda a eternidade.
Sempre serás reconhecido, Exu, serás louvado sempre antes do
começo de qualquer empreitada. (PRANDI, 2001, p.44).

Nessa história encontramos “uma apresentação de outras possibilidades de


viver o mundo, para além da ideologia, para além da racionalidade, para além da
ciência”. Essa e outras histórias “são histórias vivas, que habitam o cotidiano e o
imaginário de muitos brasileiros. São histórias, narrativas, fragmentos culturais que
sinalizam outras possibilidades da apresentação, de modos de sentir, agir, pensar,
saber... Essa conclusão do conto sobre a criação do mundo apresentada por Prandi
(2001) configura-se como um etnométodo porque, a partir da compreensão desse conto,
diversos ensinamentos passam a fazer parte de seu repertório de pessoas que convivem
em comunidade, onde o saber ancestral é tido como base de sua formação e está ligado
intrinsecamente com o seu fazer diário. O aprendizado recorrente desse contato servirá
como elemento potencializador das suas concepções e entendimentos o que
Comprometida com as singularidades da condição humana na sua
diversidade e diferença [..] é tida como um processo sociocultural
legítimo e de direito na admissão da existência de diferentes formas de
educar e de aprender, inerentes à condição humana.(MACEDO DE
SÁ apud ALVES, 2016, p. 75).

É necessário compreender sem diminuir o valor das manifestações culturais


das comunidades, para que essas sirvam como elemento da dinamização do aprender,
proporcionando o desenvolvimento da capacidade de se manifestar e revelar seus
desejos. Levar em consideração tudo aquilo que é produzido durante a vida de um
indivíduo é tirar os conhecimentos do senso comum, de um lugar sem valor, para um
lugar onde, minimamente, seja valorizado tal qual qualquer outro tipo de produção
intelectual.
Quando Paulo Freire (1989) afirma que a leitura do mundo precede a leitura
da palavra, de uma forma bastante refinada ele já nos orienta para a percepção de algo
que se aproxima da etnometodologia. São as coisas que estão ao nosso redor que
também devem ser observadas para a construção de um aprendizado que liberta, que
transforma.
A etnometodologia apresenta-se como o mais relevante aprendizado no meu
novo caminhar, na busca por querer entender como foi possível um grupo de uma
manifestação cultural manter-se resistindo a uma opugnação ao longo dos tempos de
uma camada da sociedade que cada vez mais, tenta apagar da história os fatos que
revelam quais foram os verdadeiros caminhos que lhes permitiram sobreviver. A
resposta que encontramos que isso apenas foi possível por conta do ser
etnometodológico, no entender a necessidade vital de preservar os ensinamentos
ancestrais, de cultuar seus saberes e fazeres (como criar o seu próprio etnométodo), no
driblar as intempéries da vida, no criar das estratégias para manter-se vivo e resguardar
os seus, no crescer com sua aprendizagem demarcada cultural e etnoracionalmente.
CAPÍTULO II

2- CHEGANÇA E SUAS DEFINIÇOES.

O velho lexicógrafo Antonio Morais Silva, em seu Dicionário de Língua


Portuguesa, fac-simile da segunda edição de 1813, fotografada em 1922, pela “Revista
de Língua Portuguesa”, em comemoração ao primeiro centenário da Independência do
Brasil, dá ao vocábulo “Chegança” um segundo significado, no plural, de: “Chistes,
letrinhas chulas que se cantavam”. Cândido Figueiredo, no Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, registra o vocábulo como: “dança lasciva do século XVIII”. Mário de
Andrade diz que o termo chegança “terá vindo por certo de uma dança não dramática
portuguesa que teve grande voga pelo século XVIII e que era tão imodesta em
coreografia que a proibiram pelos tempos de pombal” (GOMES 1941, p 16). Para o
também lexicógrafo Luís Câmara Cascudo, “chegança” é um auto popular brasileiro do
ciclo do natal (1962, p. 204). Chegança “[...] é a versão brasileira, ou melhor,
nordestina, das Mouricadas da Península Ibérica e das Danças Mouriscas da Europa”
(BRANDÃO, 1976. p, 3). Segundo Manuel Quirino, “chegança” é um auto patriótico-
marítimo do ciclo das conquistas portuguesas e filia-se nas Moralidades outro ramo do
arremedilho peninsular. (QUIRINO 1955, p 62).
A professora Helitânia dos Santos Pereira6 fez algumas anotações acerca do
surgimento da palavra chegança e para tanto faz uma análise “da formação de palavras
na perspectiva da Morfologia Distribuída, teoria que traz os fenômenos morfológicos
não como resultantes de transformações, mas como tema central na teoria gerativa”. E
apresenta a definição de blend, “exemplos de casos desse processo de formação no
português brasileiro”. Para Helitânia, existem duas possibilidades para o surgimento da
palavra Chegança “traz-se elementos sobre a história da manifestação cultural
Chegança dos marujos que evidenciam ser uma junção dos itens chegar + festança”. Se
levarmos em consideração algumas atividades de grupos de chegança, que fazem suas
peformances a partir do imaginário de terem sobrevivido depois de inúmeras batalhas e
tormentas, e voltam para sua terra onde agradecem e celebram com muita festa, essa
teoria seria perfeita para explicar o significado da palavra.

6
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura (PPgLinC) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), para a disciplina LETE04 - Tópicos em Sintaxe II, ministrada pela Profª Drª Maria
Cristina Figueredo e pelo Prof. Dr. João Paulo Lazzarini Cyrino.
Graças ao céu/ Ô Maria Virgem Bela 2x7
Ainda agora em perigo/ Já estou em salva terra 2x

O que fazer se não festança depois de se livrar de um perigo?


Outra análise feita pela professora é “possibilidade de formação seria a
junção do verbo chegar mais o sufixo –ança.[...] Por essa perspectiva, seria possível
considerar que chegança expressa o “ato durativo de chegar”, uma vez que retrata a
chegada de marujos após período no mar. (PEREIRA, 2017 p. 3).
A Chegança é uma manifestação cultural realizada, inicialmente, por
homens pescadores, e conta a história das batalhas marítimas contra as forças europeias
na luta pela independência da Bahia. (SILVA, 2019, p. 146). Essa é uma definição que
se aproxima do que é o Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira de Saubara,
particularmente por fazer alusão aos episódios acontecidos no ano de 1823. Falaremos
um pouco mais profundamente desse tema quando tratarmos de maneira mais específica
sobre o grupo.
O professor Jarbas Farias em sua canção “Chegança” nos apresenta a mais
poética definição do que seja uma chegança. Isso é, para mim, o sentimento mais
profundo da representação do que seja hoje uma chegança ou do ser cheganceiro 8. A
Chegança é a profundidade encontrada no interior de cada indivíduo que dela participa;
é a pureza do marujo que, incorporado em seu corpo físico, transcende toda e qualquer
possibilidade que querer simplesmente encontrar uma definição.

Um barco que é feito de canto/


Seu remo é pandeiro
Seu mar é seu canto/
Navega nas águas da saudade/
Ancestralidade
Um rio e mares para eternidade...

Há uma série de narrativas que apresentam a Chegança como de origem


lusitana, e isso fica bastante evidente quando ouvimos algumas canções entoadas por
alguns grupos, a exemplo da Chegança de Mouros Flor do Dia de Taperoá:

7
Musica do Grupo Chegança do Marujos Fragata Brasileira. Trecho da encenação da Barca, depois de
sérios problemas na embarcação o calafatinho conserta e todos seguem para um porto seguro.
8
Termo que vem sendo usado pela para designar uma pessoa que participa de uma chegança.
...Meus bons marujos vamos a Lisboa
Com o gajeiro acima, já avistou terras boas...

Ou ainda pelo Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira de Saubara:


...Gajeiro a vista, gajeiro a vista/
Terra na proa, terra na proa/
Avistamos avis9, avistamos avis/
Estamos em Lisboa, estamos em Lisboa...

Sobre a origem da chegança, apesar das evidentes referências do


cancioneiro popular, em determinados instantes se faz necessário fazer uma
interpretação, na busca de encontrar um melhor entendimento sobre o seu surgimento.
Escritas como esta:
Em Portugal era dança no século XVIII, proibida por D. João V em
maio de 1745, sob pena de prisão no aljube e no troco. Era
extremamente lasciva e sensual, mas se tornara popularíssima e o
povo cantava: Já não se dançam cheganças/ que não quer o nosso rei,/
por que lhe diz Frei Gaspar/ que é coisa contra lei [...] Era dança de
par solto, “anca contra anca, peneirando-se coxas contra coxas.
(CASCUDO, 1962 p.204)

Nos deixa a compreensão de que estamos falando de duas coisas bem


diferentes, ou estamos falando de algo que se transformou ao longo dos tempos. Como
podemos observar, em nenhum grupo hoje denominado de chegança encontramos essa
característica de ser obsceno. O que talvez se aproxime dessa lascividade transcrita por
Luiz Câmara Cascudo é a observação de que

o heroísmo, a coragem, os trabalhos cotidianos, a tradição profana, a


pátria, a guerra, a história, concorrem vastamente com toda a sua
simbólica, desorientando, confundindo, deformando, mascarando,
dando mesmo a alguns bailados uma finalidade nova, que não sendo
nunca falsa[...], não é mais originária,( ANDRARDE, 1959, p. 25).

Outro importante aspecto a se observar sobre a origem da chegança é a


relação indissociável com a diáspora africana. Imaginamos sempre, à primeira vista, que
as chamadas “grandes navegações” foram as únicas aventuras marítimas para as terras
do ocidente, no entanto, “uma caravela portuguesa era capaz de transportar cerca de 500
cativos, e um pequeno bergantim podia transportar até 200. Nos últimos anos do tráfico,
a média de escravos transportados por navios era de 50. (FRAGA, 2009, p, 29). Este
massacrante período da história, que marcou a retirada brusca de pessoas do continente
africano para o Brasil, serviria como um divisor histórico em suas vidas, porém, as

9
Avis, cidade próxima a Lisboa, Portugal.
lembranças trazidas do continente africano seriam como elementos constituintes do
território brasileiro. E ao relacionar as navegações no Brasil apenas às navegações
portuguesas, fica explícito o pensar que os portugueses opressores, que também
dominavam a navegação, e através dela chegaram às nossas terras e as exploraram,
provoca uma forma de preconceito contra todos os grupos culturais que têm em seu
enredo temas marítimos, como é o caso das Cheganças/Marujadas. Esse preconceito
fez com que permanecêssemos por bastante tempo às margens das políticas culturais e
sociais.
Foi no transatlântico que a diáspora africana aconteceu. Foi assim que o
Brasil recebeu milhares de pessoas que foram em condições sub-humanas para outras
terras, e tiveram que adaptar-se, e ao mesmo tempo, produzir novas formas para a
manutenção de suas tradições. Logo após o período da colonização, instalou-se no
Brasil uma forma de opressão na qual as pessoas não tiveram condições de enfrentar a
nova ordem social. Para Hall (2009) o período pós-colonial dissolve a política de
resistência, uma vez que “não propõe uma dominação clara, nem tampouco demanda
uma clara oposição”. (HALL, 2009 p. 96).
Essa demanda clara de que fala Hall (2009) aparece na forma com que os
povos descendentes de africanos encontraram para manterem-se vivos, e com a
capacidade de continuar com suas práticas no Brasil. Não foi diferente o que aconteceu
com as cheganças, apesar da sua ligação estreita com a cultura ibérica, foram os negros
descendentes que assumiram o seu fazer, como maneira de estar inseridos nas atividades
em suas comunidades. O ato de ligar imediatamente a chegança à Portugal e Espanha,
de maneira naturalizada, é uma forma de invisibilização da participação negra nessa
manifestação. Esse pensar permitiu o crescimento de um processo preconceituoso com
esses grupos. Kubik(2008), aponta esse preconceito e ao mesmo tempo explicita de
maneira bastante nítida que vem da descendência negra africana um dos principais
elementos que compõem essa manifestação. É a partir desta consciência que
assumimos o nosso papel de povo tradicional, de comunidade tradicional, de afro-
brasileiro que ao longo dos tempos teve que se apropriar de todos os modelos impostos
e ressignificá-los, para manter viva a sua memória:

O Brasil está repleto de exemplos de reconfiguração cultural. Assim, a


porção de elementos da África Ocidental e da África das culturas
bantus é diferente de acordo com a região e mesmo com a
manifestação em si. Mesmo assim, quando cheguei aqui há mais de 30
anos, espantei-me diversas vezes com o quão pouco se considerava a
importância das culturas bantus para os folguedos como congada de
São Paulo e de Minas Gerais ou a Marujada na Bahia. Em especial em
relação a esta última. Os autores subestimavam a porção africana
justamente por acreditarem que essa manifestação representasse
unicamente um auto português (em torno do marinheiro). Justo a
corporalidade dessas manifestações já indica de onde provem as bases
conceituais. (KUBIK, 2008, p, 97).

Para o autor, é o povo negro quem mais contribui para a permanência de tal
manifestação. É o seu corpo que, explorado na escravidão outrora, agora é elemento que
indica de onde provém sua existência. As Cheganças possuem elementos característicos
distintos, que, no momento da interconexão, originam especificidades. As performances
do grupo, baseadas em movimentos corpóreos elevados pelos cânticos, criam narrativas
que contribuem para o conhecimento do processo histórico vividos em sua dimensão
marítima. Entendemos, dessa forma, que os grupos de Cheganças se constituem num
espaço de produção do saber/fazer, gerando simultaneamente, conhecimento histórico,
expressão artística e manutenção da salvaguarda da cultura local e ancestral.
Encontramos em comunidades resquícios dessa influência negra, nas narrativas de
pessoas que até hoje transmitem ensinamentos, a partir da consciência da contribuição
de povos africanos no meio dessa manifestação. No extremo sul da Bahia, nas cidades
de Caravelas, Alcobaça e Prado, encontramos depoimentos que apontam para essa
ligação entre essa manifestação e o continente africano: Adilson Santos membro da
irmandade de São Benedito, e da Marujada nos disse em entrevista que:

(...) Isso é devoção antiga, isso é tradição “folclórica” pertencente a


São Benedito que veio da África, causada pelos negros, São Benedito
é quilombola, foi escravo, foi que causou essa marujada[...] por isso
botou o nome dos marujos, São Benedito foi marujo e marinheiro”... 10

Mestre Pedro dos Santos também da Irmandade de São Benedito e da


Marujada acrescenta dizendo que: “Então Deus vendo que ele tinha muito prestígio de
ajudar os pobres aí quando ele morreu virou santo”...11. Para Joãozinho de Oliveira,
mestre da Marujada de Alcobaça “a marujada praticamente foi criada no sertão do
Prado e de Alcobaça, também através dos negros, entendeu, e isso foi influenciando que
através dos negros, os brancos e índios tudo brinca”12.

10
Entrevista realizada na cidade de Prado em dia 02 de abril de 2018.
11
Entrevista realizada na cidade de Prado em dia 2 de abril de 2018
12
Entrevista realizada na cidade de Alcobaça em dia 1 de abril de 2018
Como vemos, as celebrações artísticas as vivências de navegações
extrapolam o limite da dominação portuguesa no Brasil. É no fazer da
chegança/marujada que os negros encontram uma maneira de permanecer com suas
memórias vivas nas terras do além mar.

2.1– Cheganças de Mouros.

Grupo de expressão artístico-cultural, as Cheganças de Mouros apresentam


as Lutas de Cristãos e Mouros que acontecem na Europa, Ásia, África e América
Latina. Essa apresentação narra uma história, a partir da performance desses grupos,
sobre a reconquista de territórios na Península Ibérica, ocupada pelos mouros durante o
século V, onde toda a população de mouros era muçulmana, e, por isso mesmo, foi
considerada infiel pelos cristãos. Nas Américas, elas ganharam contornos dos
portugueses e espanhóis. No Brasil, existe uma singularidade no processo de construção
desses grupos: o corpo negro entra em cena. As lutas são performadas nas ruas,
apresentando uma narrativa particular sobre as festas europeias, ressaltando o drama das
guerras de conquistas, bem como o processo de evangelização. Uma particular tradição
se edifica, tendo os indígenas representando os mouros, uma vez que eram considerados
pagãos pela Igreja. Uma das características das Cheganças de Mouros é que os cristãos
são marujos e se vestem com roupas iguais às de uma marinha de guerra, e os mouros
vestem-se de vermelho e ficam sempre distante dos cristãos. Os cristãos estão sempre
dispostos em duas filas (cordão), em alguns grupos encontra-se a figura dos Guias,
Pimpão, I e II Gajeiros, Calafatinho, no centro do cordão tem a figura do Mestre,
Contra-mestre, Embaixador e General (apesar de não haver essa patente numa marinha),
Guardas, Porta –Bandeira. Os Mouros são representados pelo Rei, Príncipe, Guardas e
em alguns grupos vemos a figura da Princesa todos sempre vestidos com roupas
vermelhas (outros personagens podem aparecer isso também sofre uma influência de
cada lugar onde esses grupos são constituídos). A encenação de uma chegança de
Mouros acontece quase que inteiramente cantada, acompanhada por ritmos feitos por
pandeiros. Todo enredo se inicia quando o Mestre pede para o gajeiro subir no mastro e
observar se há alguma outra embarcação a sua procura.

Mestre: Gajeiro grande subir ao tope


Olhando para sul e olhando para o leste

Gajeiro: Já estou em cima meu contra mestre


Olhando para o sul e olhando para o leste

Mestre: Olhas e ver se há alguma vela


A nos procurar

Gajeiro: Meu contra –mestre á te dou parte


Lá vêm os Mouros teremos combate

Este é um trecho da Chegança de Mouros Barca Nova da cidade de Saubara


a partir desse momento dá-se o encontro da embarcação dos cristãos com a embarcação
dos mouros. O Embaixador cristão é enviado pelo general para fazer um desafio ao rei
dos Mouros.

General: Partes Embaixador


Diz aquele pirata
Que no campo o espero
Sem tardar
Para ir prisioneiro
Ou para morte dar.(trecho da Chegança de Mouro Barca Nova de Saubara)

Como resposta, o Embaixador diz ao general que o Rei Mouro o quer


encontrar para um duelo. Todo enredo da luta entre os cristãos e mouros acontece em
torno do querer cristão em converter os mouros à religião Católica. Talvez essa não
tenha sido a única tônica existente nas lutas, outros interesses podem ter sido também
motivo para que houvesse demasiadas batalhas. Gilberto Freyre “lembra que o
antagonismo racial, regional ou de classe, como entre Cristãos e Mouros se origina ou
se alimenta é quase sempre do antagonismo econômico [...] mas foi pela mística
religiosa que o movimento de reconquista se definiu: cristãos contra infiéis”.

Contam as histórias acontecidas nas lutas medievais entre mouros e cristãos,


outros grupos contam passagem de acontecimentos durante as lutas de independência
da Bahia e outros fazem louvor a santos católicos. Mario de Andrade já apontava que
“apesar de terem todos seus elementos importados de costumes ibéricos, são
entidades próprias, aqui organizadas e de indiscutível formação brasileira em seu
conjunto” (ANDRADE,1939).

2.2- Lutas de Mouros e Cristãos ou Embaixadas.

As Lutas de Mouros e Cristãos são também conhecidas como Embaixadas e acontecem


na Bahia exclusivamente no território do extremo sul. Alguns aspectos as diferenciam
das Cheganças de Mouros: nessa manifestação há dois grupos, um que representa os
mouros “infiéis”, que se vestem todos de vermelho, e os cristãos católicos, que se
vestem todos de azul. Nos grupos existentes na Bahia, o que motiva a disputa entre
mouros e cristãos é o roubo da imagem de São Sebastião. Outro aspecto que diferencia é
que os mouros chegam sempre numa embarcação para as batalhas. Depois da chegada
no porto onde acontece a primeira embaixada, os grupos saem pelas ruas, cada um
acompanhado de um grupo musical composto por uma flauta e um tambor. Marcham
pelas ruas e em cada encontro uma nova embaixada acontece. As embaixadas são os
diálogos que acontecem entre os embaixadores dos mouros e cristãos. Ao se
encontrarem, o capitão dos mouros manda um de seus embaixadores desafiar o capitão
dos cristãos e esse responde:

Embaixador essas inúteis e fracas ameaças não me fazem


amedrontar, é preciso que tu aprendas mais um pouco pra falar, mas
o que fazer se não fosse eu reconhecer essas inúteis fracas
missão[SIC] de embaixador, agora mesmo faria passar horror, mas
volte e diga a seu senhor que dele não tenho medo aqui eu sou
rendição.

Depois das embaixadas, que são sempre faladas, os dois grupos se


enfrentam lutando com espadas encenando terríveis batalhas.
No imaginário popular, a devoção por São Sebastião é quem sustenta a
existência dos grupos. Sebastião serviu ao exército romano e tinha como uma de suas
práticas tentar converter soldados do exército ao cristianismo. Descoberta sua prática,
ele foi morto a mando do Imperador Maximiniano. As apresentações dessa
manifestação acontecem sempre durante a festa de São Sebastião, num drama das
guerras de conquistas e evangelização do país, tendo os indígenas representando os
mouros, à medida que eram catequizados pelos cristãos, pois os nativos eram
considerados pagãos pela igreja. (Bahia Singular e Plural 2003).

2.3- Cheganças de Marujos ou Marujadas


Os estudos feitos por Silvio Romero apontam para a existência das
Cheganças de Mouros e as Cheganças de Marujos, o que vai diferenciar cada uma delas
é exatamente o enredo transmitido em suas apresentações. Enquanto as Cheganças de
Mouros retratariam exclusivamente as lutas entre mouros e cristãos, as Cheganças de
Marujos teriam construções performáticas a partir de episódios acontecidos no Brasil.
Para Mario de Andrade, as Cheganças de Marujos têm origem na religiosidade.

... Estudando esta dança dramática, as suas manifestações mais


primitivas que pude achar, só são rastreáveis nos vilhancicos
melodramáticos do século XVIII português, embora alguma coisa da
sua técnica e idéias já alvoreça nos dois séculos anteriores, tanto em
Portugal, como no Brasil, em procissões católicas e autos semi-
religiosos...(ANDRADE,1959. p. 25).

Podemos constatar nos grupos de Marujada existente na Bahia uma estreita


ligação com a religiosidade, principalmente se levarmos em consideração que as suas
principais aparições são sempre em datas religiosas: natal, festa de reis, festa do Divino
e em festas de santos católicos (São Benedito, São Domingos de Gusmão e Santo
Antônio). Além de constar em canções alusão a Nossa Senhora do Rosário, mas sobre
essa constatação é preciso fazer duas observações: primeiro, as Cheganças de Mouros e
as Embaixadas também aqui na Bahia têm suas principais atividades relacionadas às
festas religiosas, e, segundo, as Marujadas, apesar de estarem nesse contexto religioso
católico, têm mais evidente em suas práticas e narrativas uma proximidade com a
religião de matriz africana. Na entrevista feita com Romário dos Santos, um importante
ativista cultural da comunidade de Alcobaça, membro do grupo de Mouros e Cristãos e
também ativista religioso católico, ele nos apresentou uma importante narrativa não
encontrada em nenhuma outra comunidade:

...Uniu-se a uma tradição antiga a páscoa dos negros ser celebrada na


segunda-feira, justamente por que no domingo os brancos faziam sua
festa e os negros entravam na igreja para limpar, para cultuar e ali eles
começavam a fazer suas batidas, suas danças, e também um
pouquinho burlar a igreja no sentido de cultuar seus orixás 13...

Estabelecer relações foi uma estratégia de sobrevivência para os povos


africanos que foram trazidos ao Brasil no período da escravização. Dessa maneira a
religião foi um importante aporte para a continuidade de práticas desses povos. A fé
cristã foi imposta, mas não absorvida em sua plenitude, mesmo com as práticas dos
sacramentos cristãos, o africano resistiu.

A adesão dos africanos era apenas superficial; no máximo decoravam


algumas orações para se verem livres dessas imposições. A adoção do
catolicismo, principalmente o culto dos santos e santas, dera-se por
escolhas feitas pelos próprios africanos de acordo com suas
referências religiosas na África. [...]Isso explica, por exemplo, a
popularidade de Santo Antonio entre a população negra, tanto escrava
quanto liberta[...] Os poderes divinos de Santo Antonio muito
lembravam as características dos sacerdotes africanos[...]o escravo
africano ou crioulo dotou a religião dos portugueses de ingredientes de
tradições religiosas africanas, especialmente música e dança.
(FRAGA, 2009. p, 47).

Existem diferenças entre os grupos de Marujada, principalmente no que se


diz respeito às indumentárias. Alguns grupos vestem-se com roupas iguais às da
marinha brasileira, como é o caso dos grupos das cidades de Jacobina, Saubara,
Paratinga, Bom Jesus da Lapa, Lençois, Andaraí. Os grupos das cidades de Curaçá,
Alcobaça, Sítio da Mato e Prado têm como característica calça e camisa brancas
enfeitadas com fitas coloridas e os chapéus também enfeitados, bastante coloridos.
Algumas delas usam pedaços de espelhos nos chapéus, segundo os integrantes, para que
refletido no sol servisse de aviso para outros companheiros. Esses grupos se apresentam
sempre dispostos em duas filas, também chamados de cordão, com exceção do grupo de

13
Entrevista realizada na cidade de Alcobaça no dia 01 de abril de 2018.
Curaçá, que devido à quantidade de participantes no dia da festa, os dispõem em
diversas fileiras.
Os grupos de Cheganças ou Marujadas têm diferentes características nas
diferentes comunidades onde aparecem. As cheganças de marujos são representações
culturais desenvolvidas dando origem no Brasil a outras manifestações populares, como
Fandango, Nau Catarineta, Marujada e Marujos Oneyda Dantas apud (Alvarenga 1976).
Todos esses grupos trazem memórias de acontecimentos de grande importância para a
compreensão da construção do nosso Estado, por utilizar de elementos de
acontecimentos que foram reelaborados por brasileiros. Segundo Alvarenga (1995):

Grande número das nossas danças-dramáticas dividem-se


estruturalmente em duas partes bem definidas: um cortejo
coreográfico, com que o grupo representador se locomove pelas ruas,
ao som de cantos vários habitualmente chamados de cantigas; uma
parte dramática, entremeando elementos falados, danças e cantos,
geralmente chamada de embaixadas. Entre as peças do cortejo, ou
não-dramáticas, figuram tradicionalmente louvações, despedidas e
cantos de marcha. Os bailarinos-atores são dirigidos por um chefe,
quase sempre denominado Mestre que além de orientar o conjunto,
representa, na maioria dos casos, um dos principais papéis (Alvarenga
1955 p, 9.).

Os estudos que estamos fazendo sobre esta manifestação nos orientam para
a compreensão que, de fato, as Cheganças de Marujos/ Marujadas em cada comunidade
que estão inseridas elementos próprios são colocados como complementos. Esses
elementos fazem parte daquilo é de cada indivíduo ali integrante ou de uma
característica do lugar, ou, ainda, um acontecimento histórico que marca aquela
comunidade.
CAPÍTULO III

1- ETNOMÉTODOS PARA A PERPETUAÇÃO DAS MANIFESTAÇÕES


DA CULTURA POPULAR.

O tema oralidade é talvez o que mais faça sentido quando se trata de uma
manifestação cultural, seja ela qual for. A forma encontrada para a continuidade de
práticas ancestrais, em terras ocidentais, tem origem na oralidade, e essa é, sem sobra de
dúvida, a porção mais africana encontrada nos grupos de manifestações populares.
Portanto, é importante fazer uma análise do que é a oralidade nas comunidades
tradicionais africanas, e como essa oralidade chega e se finca no Brasil, e como tem sido
ela o elemento mais eficaz na existência de práticas culturais.
Quando falamos da tradição em relação à historia africana, referimo-nos à
tradição oral, nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos
terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
pacientemente transmitido de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos
séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de
grandes depositários, de quem se pode dizer são memórias vivas da África (HAMPATÊ
BÂ, 2010). Esse ensinamento parece ter sido aprendido nas outras bandas do Atlântico,
o espírito dos povos africanos é vivido de forma intensa, e o seu legado é cultuado na
sua forma mais sublime. A oralidade que vem fornecendo a condição de resistir e de
existir das comunidades e manifestações tradicionais, cultura de ouvir os mais velhos,
de ter paciência para escutar e transmitir o que se ensinou, é a tecnologia mais avançada
na manutenção das tradições.

Eu aprendi porque quando eu comecei a sair na Chegança eu me


apaixonei pela Chegança. Tinha um professor em casa, então eu
sentava com ele, pai o que é isso, ele me dizia, pai o que é aquilo, ele
me dizia, pai o que aquilo outro ele me dizia... De forma que eu
aprendi, porque meu pai me ensinou e tinha curiosidade de aprender...
(GUMES e ROSÁRIO, 2014, p. 97).

Este depoimento de Edmundo Passos de Jesus, Mestre da Chegança de


Mouros Fragata Barca Nova de Saubara, ilustra o poder da oralidade para a
sobrevivência de uma tradição, esse pensar encontra apoio na tradição africana de
ensinar e perpetuar seu ensinamento. A tradição situa-se no oral. Há um enorme esforço
de vários setores da sociedade para encontrar resposta sobre como proporcionar a
formação cultural na contemporaneidade. Grupos tradicionais como as Cheganças, por
exemplo, vêm sobrevivendo ao longo dos tempos por conseguirem encontrar suas
próprias maneiras de atuar.

A oralidade para os povos africanos é usada como fonte de sabedoria, um


silitigui tem o poder de fazer leitura dos mais variados fenômenos da natureza, e com
isso conduzir expedições e batalhas transmitindo seus conhecimentos exclusivamente
pelo uso da oralidade, como Patê Puollo em sua missão, pois para eles, a configuração
das coisas em determinados momentos – chave da existência possuía um significado
preciso, que sabiam decifrar. “Esteja à escuta”, dizia-se na velha África. “Tudo fala,
tudo é palavra, tudo procura se nos comunicar um conhecimento...” (HAMPATÊ BÂ,
2013. p. 27).
Em países ocidentais, como é o caso do Brasil, ao se tratar da questão da
oralidade, fatalmente cairemos na armadilha de colocar a tradição oral versus a tradição
escrita. Isto se configura numa interessante e relevante questão, sem perder de vista que
a tradição escrita é privilegiada pelas normatizações eurocêntricas que orientam a
sociedade constituída no ocidente. Mas, tendo em vista que as culturas de tradição oral
são tão ou mais seculares que as culturas de base escrita, não se pode reduzir ou
hierarquizar uma cultura sobre a outra. Tampouco se pode generalizar que todas as
sociedades de tradição oral sejam, pela prática da oralidade, homogêneas. (SILVA,
FLORENCIO, PEDERIVA, 2019, p.52). Argumentando contra a tentativa de dar à
escrita um status de superioridade à tradição oral, temos a orientação que:

Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos


como no próprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do
mundo foram o cérebro do homem. Antes de colocar seus
pensamentos no papel, o escritor ou estudioso mantém um diálogo
secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem
recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de
experiência própria, tal qual ele mesmo narra. (HAMPATÊ BÂ, 2010,
p. 168).

O pensar é o saber em sua primeira constituição, é preparação para a fala, e


falar é o saber materializado pela oralidade, assim também se constitui o aprendizado de
comunidades tradicionais, prezando pelo conhecimento ancestral que foi transmitido de
geração em geração. E esses conhecimentos têm valores, pois, nas sociedades orais, não
apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem
e a palavra é mais forte. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que
ele é. (HAMPATÊ BÂ, 2010).
Vivemos numa sociedade onde há possibilidade de utilização de inúmeros
meios tecnológicos para as práticas de transmissão dos conhecimentos tradicionais, mas
mesmo valendo-se desses novos aparatos, a oralidade estará presente como elemento
principal, e é talvez por compreender que qualquer prática de transmissão de
conhecimento passa pelo pensar, pelo falar que
importante é atentar-se ao que não está sendo dito, é considerar os
silêncios e esquecimentos. Assim, a história oral possibilita vislumbrar
novos horizontes para a escrita da história, ao dar voz àqueles e
àquelas que, por tanto tempo, foram silenciados/as e invisibilizados/as
da história dita oficial. (ALMEIDA, 2017. p 45).

Este pensar vislumbra a possibilidade que recorrermos às outras tecnologias


para a transmissão de saberes e fazeres não é uma opinião consensual, mas há membros
de grupos culturais tradicionais que reivindicam o uso de outros meios mais modernos,
por assim dizer, para ensinar seus ritos:

Então nós precisamos em termos de associação promover oficinas de


canto, tocar pandeiros, oficina até de confecção do pandeiro, de hoje
em dia a gente compra nossos pandeiros em quanto à gente pode fazer
nosso próprio pandeiro, já é uma coisa que eu tava pensando em falar
com você, de nós produzimos nossos próprios instrumentos. Levar
essa metodologia a todos que queiram entrar que a gente quando entra
na marujada a gente aprende uns com os outros. As coisas vão
mudando, vão se moldando levar esse conhecimento para quem queira
e para quem se identificar com a cultura da Marujada eu acredito que
nós temos que possibilitar um meio de aprendizado mais e organizado
mais atual. Há 50 anos a gente passava essa oralidade de um jeito hoje
à gente pode passar essa mesma oralidade de uma forma diferente
hoje já tem a escrita já tem os meios de comunicação. Digitalizar
poder fazer qualquer outra coisa é até mais rápido esse retorno, mais
rápido porque você tem que aprender cantar digamos 50 músicas em
média que é a marujada tem simplesmente passando e cantando no
ouvido dele. Inclusive isso por um motivo uma maneira é um
observação e nem só eu fiz, mas com outros até os marujos fizeram,
“tem gente que ainda canta errado" talvez essa pessoa canta errada
ainda não conseguiu ouvir a palavra certa o falar certo então né o
conhecimento de forma mais rápida para ele pegar usando os meios
mais atuais. 14

14
Depoimento de Roque Antonio da Silva, 50 anos. Entrevista realizada em sua residência em Saubara-
BA, no dia 14 de outubro de 2019.
Roque Antonio da Silva tem 50 anos de idade, já foi mestre da filarmônica
São Domingos da cidade de Saubara, professor graduado em pedagogia, pescador, e
desde 2006, participa do grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, sendo o II
gajeiro15. Para ele é necessário que o grupo se aproprie de novas maneiras de lidar com
a transmissão, uma evidente preocupação com a existência do grupo. Há uma atenção
para que ocorra um aprendizado mais acelerado, isso parece uma nova ordem, imposta
por uma sociedade cada vez mais sedenta de resultados imediatos, e os grupos culturais
sofrem também essa influência do imediatismo. Entendo que isso não é dos problemas o
mais grave, parece possível uma convivência harmoniosa entre saberes tradicionais e
novas tecnologias, desde que os métodos não inferiorizem os ritos, ou estaríamos
novamente sofrendo com a hegemonização das culturas. Observo a necessidade de uma
mediação constante, para que sempre haja a possibilidade de uma revisão das práticas,
que seja possível os grupos se retroalimentarem tendo na memória a condição de não
perder de vista sua verdadeira história.

3.1- O lugar da memória na preservação das manifestações da cultura popular

Desde muito cedo, ouvia dizer que muitas pessoas que vieram para ajudar a
fundar o Brasil só trouxeram as suas memórias. Essa afirmação me intrigava, ficava a
pensar como trazer coisas na memória, no pensamento? “É na cabeça que guardamos
nossa força”, dizem os mais velhos. Fui crescendo e juntando esses pensares, e para
mim não foi difícil concluir os ensinamentos por trás deles: precisamos conservar as
nossas lembranças e fazer com que elas sirvam para o nosso próprio crescimento.
Falar de memória é, sobretudo, falar de uma capacidade inerente ao ser
humano, a capacidade de preservação de ensinamentos do passado e tudo o que está
diretamente ligado a eles. As lembranças que temos de acontecimentos do passado são
possíveis devido à capacidade da nossa memória, que “remete-nos, em primeiro lugar, a
um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 2003,
p.419). Como uma manifestação popular existe e resiste ainda nos dias atuais, se não
pela preservação de memórias, com esforços de muitos que buscam e entendem a
necessidade da manutenção daquilo que aprenderam através da transmissão oral?

15
Gajeiro é o marujo que fica no alto do mastro da embarcação, sua função é informar quando a
embarcação aproxima-se de terras firmes.
Segundo Maurice Halbwachs (2006), um dos primeiros intelectuais a falar
sobre memória, há uma divisão onde são apresentados dois grupos: Memória Individual
e Memória Coletiva. Esse primeiro, seria a memória vista a partir somente da ótica de
uma pessoa, essa pessoa guarda o passado em torno de si; já a memória coletiva seria
composta por lembranças, recordações distribuídas dentro de uma comunidade, grande
ou pequena, em que as imagens coletadas tratam de uma memória externa ou no social.
Na entrevista feita com Luan Moreira de Castro, membro dos grupos
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, ele apresenta a sua mais distante memória
desse grupo:

Eu lembro, eu parado na porta vendo a chegança descendo, depois da


missa e minha avó no meio, as músicas, os pandeiros as músicas me
chamou atenção, (sic) [...]espontaneamente de espontânea vontade,
são lembranças guardadas, lembranças minhas, porque é uma coisa
que eu vi no meu ponto de vista é, eu estava parado na frente da
minha casa, vendo a chegança descer aquilo ali eu com meus
próprios olhos, ninguém me contou, ou seja, é uma lembrança minha
individual, sim...ou seja é uma lembrança minha, é como falei
depende do ponto de vista eu quando era criança eu não tinha noção
das coisas, então é um ponto de vista, da pessoa, tipo o que ela capta
naquela lembrança, se você estivesse na mesmo posição ali vendo
aquela coisa você poderia tirar mais detalhes daquele momento do
que eu, você captou mais detalhe e eu menos detalhes ou seja isso faz
com que a lembrança seja minha por captei menos detalhe justamente
isso.16

A narrativa feita por Luan parece concordar com o pensar de Maurice


Halbwachs sobre a memória individual. Com uma dose interpretativa, o ser individual
da memória está no campo visual que cada indivíduo tem no momento que acontece
cada cena. É o ponto de vista que orienta a sua lembrança, mesmo estando cercado de
diversos outros atores, o lugar de onde eu estou determina aquilo que vai ser guardado
na memória.
Imaginar a existência secular de uma manifestação cultural, e no caso
particular do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, perpassa por
compreender que só é possível exatamente porque conseguimos contar as suas histórias
sem mesmo estarmos lá em sua criação, os ensinamentos ainda ali perpetuados são
executáveis à luz da continuidade desses fazeres, a partir de uma memória que nos é

16
Depoimento de Luan Moreira de Castro. Entrevista realizada na Sede da Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira, em Saubara – BA, no dia 16 de outubro de 2019.
contada. Para Maurice Halbwachs “não é preciso que outros estejam presentes,
materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa
quantidade de pessoas que não se confundem” (HALBWACHS, 2003, p. 30). Os mais
diversos grupos de manifestações culturais passam por longos períodos desativados,
alguns deixam de existir por inúmeros fatores, como falta de apoio financeiro, falta de
interesse da própria comunidade, falta de espaço físico para suas atividades, falecimento
das pessoas mais idosas, dentre outros muitos aspectos. Aqueles que ressurgem para dar
continuidade em suas comunidades, vivem na busca incansável de superar todas essas
adversidades citadas, mas, o que de fato lhes permite retomar suas ações é a capacidade
de rememorar, são esses flashs deixados na memória que as faz entender:

“A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivo no eterno


presente[...] Por que é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a
detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas,
telescópicas, cenas, censura ou projeções” ( NORA, 1993, p. 9).

O Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, como muitos outros,


por um longo período (não sei precisar quanto tempo) ficou desativado, e só foi possível
reativá-lo porque as crianças do passado se juntaram para reavivar o grupo. Fizeram
diversos encontros para rememorar as histórias que ouviram de seus pais e avós, e foi
naquele momento que os ensaios foram retomados.
Percebemos assim o poder da memória, que orienta para a reconstrução de
um novo momento, sendo assim:

A memória instala a lembrança no sagrado, [...] a memória emerge de


um grupo que ela une, [...] há tantas memórias quanto grupos existem;
que ela é por natureza múltipla e desacelerada, coletiva, plural e
individualizada [...] A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto (NORA, 1993, p. 9).

Existe a possibilidade de revisitar o passado trazendo dele dados para a


reativação de atividades no presente, a memória para nós, de manifestações populares, é
o instrumento crucial para que nos mantenhamos resistentes às tribulações impostas no
mundo moderno, onde as memórias se desfazem como bolhas de sabão ao vento, o dia-
a-dia passa tão rápido e periodicamente se move, se desfia, se modifica repentinamente,
são muitas as informações produzidas e compartilhadas, há uma enorme transitoriedade
que não nos permite perceber o quão é saboroso experienciar os detalhes da existência
humana. Vivemos, parece que exclusivamente, com a possibilidade do que é
imediatista. Para Mariana Jantsch Souza (2014), a memória pode ser observada como
fonte de referentes identitários, como instrumento atuante na reconfiguração das
identidades na medida em que permite que o sujeito se apodere das imagens do passado
para consolidar uma nova posição identitária.
A memória humana é onde ainda residem resquícios do passado, onde ainda
podemos encontrar fundamentos que orientam produções ancestrais nos dias atuais.
Como então garantir que tudo aquilo que trazíamos na memória servisse de base,
alicerce para outras gerações? Parece só ter sido possível devido à nossa capacidade de
guardarmos na memória os nossos sentimentos, de acessarmos locais e/ou objetos que
favoreceram o ato de lembrar. Imaginamos que quando as pessoas decidiram reativar o
Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, ao recorrerem às suas lembranças,
essas lembranças podem ter causado várias sensações, alegria, tristeza, saudade,
nostalgia. É possível fazer o exercício de rememorar a partir da utilização de diversos
elementos: Esses elementos são definidos por (NORA, 1997) citado por (HORTA,
2008) como: “lugares de memória locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam
ou cristalizam as memórias de uma nação, e onde se cruzam memórias pessoais,
familiares e de grupo (2008).” Esses lugares configuram elementos que suscitam uma
ativação da memória capaz de produzir efeitos que potencializam o ato de lembrar. A
rua do Lavador, por exemplo, foi o lugar escolhido para dar início ao processo de
reestruturação do grupo, porque ali naquela região as pessoas encontravam as
inspirações necessárias para produzir, pois segundo Maria de Lourdes Pereiras Horta:

Estes “lugares”, ou “suportes” da memória coletiva funcionam como


“detonadores” de uma sequência de imagens, ideias, sensações,
sentimentos e vivências individuais e de grupo, num processo de
“revivenciamento”, ou de “reconhecimento”, das experiências
coletivas, que têm o poder de servir como substância aglutinante entre
os membros do grupo, garantindo-lhes o sentimento de “pertença” de
“identidade”, a consciência de si mesmos e dos outros que
compartilham essas vivências. (HORTA apud SILVA, 2008. p. 111).

O resultado do compartilhamento dessas convivências permitidas pelo


acesso aos lugares de memórias se fortalece nos dias atuais, porque também é possível
encontrarmos na materialidade dos lugares de memórias (fotos, vídeos, cd’s, livros),
aportes capazes de também contribuir para o enriquecimento e potencialização de um
grupo Cultural:

Memórias é o que fortalece a gente, porque são as pessoas que direta


ou indiretamente contribuiu para hoje nós estamos fazendo parte do
grupo (sic), por exemplo, eu só vi pelas fotos, quando Zinoel e Duca
participavam eu só vi pelas fotos, por essas fotos que eu tive o
conhecimento deles na Marujada, tanto que quando eles participavam
eu estava menor não acompanhei, mas segundo os relatos e pude
perceber pelas fotos que eram elegantes, pessoas que não tinha muita
formação, mas nas suas expressões lúdicas fazia com tantos esmeros
que passaram uma elegância, passava um brilho. Então essas
memórias é que fortalece e fortaleceu. Seu Carlos e elegante na frente
e cantava, e então essas pessoas teve uma participação muito grande
na nossa formação, para a gente se espelhar né nessas pessoas que tem
para fazer igual ou semelhante, para tentar chegar na perfeição, eles
faziam com tanta perfeição, e como eu falei no início eles
emocionavam as pessoas, então essa elegância e essa postura é que a
gente tenta retratar hoje né é a postura, na dança e a forma de cantar, é
o amor que tem pela coisa então essa memória significa muito para
mim, se espelhar nessas pessoas e ter essa memória viva na nossa
cabeça, desses homens que passou pela Fragata Brasileira, Chegança
dos Mouros da Barca Nova, a um certo ponto mostrar e se apresentar
desse jeito que eles passavam, é tão essa memória perdura, se não
estivéssemos e você sabe a memória do seu pai saudoso, você hoje
não fosse o homem que você é. Eu se não estivesse a memória do meu
sogro, do meu pai, talvez não fosse o homem que sou hoje, se eu não
valorizasse isso, então eu não me vejo sem essas memórias, e sem
fazer parte dessas memórias isso aí é o que fortalece a gente a buscar
sempre esse caminho, porque quando eu digo essas pessoas sim teve
participação (SIC), é visto por outras pessoas visto por nós até
pequeno, visto através de foto e de relatos como se prostravam e se
apresentaram então isso fortalece mais a gente essas memórias que a
gente também não pode perder.17

Roque Antonio da Silva é membro do grupo da Chegança dos Marujos


Fragata Brasileira e traz uma interessante narrativa acerca da utilização da fotografia.
Ele encontra na foto o incentivo que faltava para participar do grupo, na fotografia, está
o que faltava para sua tomada de consciência de pertencimento, como ele diz, a
memória fortalece. A memória também atua como aporte da construção da identidade
favorecendo com que o indivíduo tenha um referencial fora de si, capaz de fazê-lo
compreender o que o faz constituir-se enquanto pessoa, agente de seu próprio saber e de
sua realidade. Para Mary Del Priore (2008),

17
Depoimento de Roque Antonio da Silva, 50 anos. Entrevista realizada em sua residência em Saubara-
BA, no dia 14 de outubro de 2019.
a fotografia também nos incentiva a adivinhar aquilo que está fora do
cenário fotografado [...] e uma das qualidades da imagem fotográfica
reside precisamente neste poder de evocação, no fato de que ela pode
suscitar, naquele que observa o desejo de conhecer mais, de imaginar,
de reconstruir interiormente, a partir da visão de um destes momentos,
o conjunto de uma vida”. (DEL PRIORE apud SILVA, 2008. p. 94).

É a faculdade da memória, o ato de lembrar juntamente com as práticas


coletivas que também sustentam e proporcionam a existência, e a preservação de
Manifestações da Cultura Popular, o tempo não venceu a memória, e foi por meio dela
que foi possível garantir que futuras gerações tivessem acesso ao conhecimento do
passado. É nesse contexto que a memória atua como instrumento de favorecimento para
a existência e manutenção de uma manifestação da cultura popular, e no caso particular
e especial, do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira.

3.1.1-Analogia entre o poema Os Lusíadas, de Camões, e a cantoria da Chegança dos


Marujos Fragata Brasileira.

Existem inúmeras possibilidades de se falar de Chegança, uma delas é fazer


correlações com as histórias acontecidas no Brasil e, inevitavelmente, fazer a mesma co-
relação com episódios oriundos das chamadas “Grandes Navegações”. Tendo essa
segunda hipótese como inspiração para falar de Chegança, vou tentar aqui fazê-lo
utilizando-me do canto produzido por Luis de Camões, em Os Lusíadas, onde ele
procurou exaltar a bravura lusitana nas supostas descobertas mar a fora. Dando ouvido
ao apelo do povo português, contou, de forma poética, acontecimentos que ocorreram
durante tal período. N’Os Lusíadas ele perpetua batalhas, conquistas, naufrágios,
derrotas, contrabando, alegrias e vários outros acontecimentos. Sua forma de escrever
talvez não tenha alcançado o povão, que, por sua vez, buscou fazer o seu entendimento
de maneira mais próxima, e com um vocabulário menos rebuscado. Como muitas das
histórias brasileiras são entrelaçadas com a vinda dos portugueses para cá, é de se
compreender que possivelmente muitas coisas foram contadas e cantadas por
acontecerem aqui.
Fazendo a leitura do Canto nono na estrofe 9, o poeta Camões relata uma
certa confusão resultada em prisão de pessoas (marinheiro) supostamente que vão à
cidade para vender pedraria:
Porem não tardou muito que voando
Hum rumor não soasse, com verdade,
Que forão presos os feitores, quando
Forão sentidos vir-se da cidade
Esta fama as orelhas penetrando
Do sábio Capitão, com brevidade
Faz represaria nuns que ás nãos vierão
A vender pedraria que trouxerão
(CAMÕES,1944, p. 283 )

Algumas das cantigas da Chegança dos Marujos Fragata Brasileira são


chamadas de rezingas, retratam episódios que acontecem dentro da embarcação e são
vividos por diversos personagens do grupo. É uma espécie de denúncia, reclamação, um
resmungar. No grupo temos quatro rezingas uma delas é a do Guarda Marinha.
Personagens: Guarda Marinha18, Ourives19, General20, Contramestre21, I e II
Gajeiros22
Nessa rezinga o Guarda–marinha, depois de desembarcar em terra brasileira,
lança-se a querer vender ouro e prata. Todo esse enredo é dado através de cantos
ritmados pelo pandeiro com uma pequena parte sendo apenas falado. Depois do canto
de cada personagem a marujada repete em coro o mesmo canto.
Guarda Marinha:
Ora Deus bela menina 2x
Eu de Lisboa cheguei 2x
Eu trago pratas bem finas 2x
E ouro no singular 2x
Cheguem os senhores ourives 2x
Para seus preços venha dá. 2x

MARUJADA (coro) I
Ora Deus bela menina 2x
Eu de Lisboa cheguei 2x
Eu trago pratas bem finas 2x
E ouro no singular 2x
Cheguem os senhores ourives 2x
Para seus preços venha dar. 2x

Ourives:

18
O guarda-marinha é o responsável por proteger as riquezas (ouro, prata), em alguns grupos o
tecido(peça) aparece como essa riqueza.
19
O ourives é o marujo especialista em ouro, é responsável por assegurar a autenticidade das jóias.
20
O General é um dos oficiais da Marujada. Um fato curioso. Não existe a figura de general da marinha.
Uma das narrativas de sua aparição é que a marinha solicita do exército o seu melhor combatente para
ajudar nas batalhas, e um general foi escolhido.
21
Contramestre é aquele que comanda a proa da embarcação, o responsável por indica a direção para
navegar.
22
Os gajeiros são os marujos responsáveis em verificar a condição climática, ficam sempre no alto do
mastro de onde também é possível ver aproximação de inimigos.
Dou-te vinte mil cruzado 2x
Pelo ouro fino real 2x
Se não quiser me vender 2x
Vou dar parte ao general 2x

MARUJADA (coro) II
Dou-te vinte mil cruzados 2x
Pelo ouro fino real 2x
Se não quiser me vender 2x
Vou dar parte ao general 2x

Guarda Marinha:
Ora Deus bela menina 2x
Eu de Lisboa cheguei 2x
Eu trago pratas bem finas 2x
E ouro no singular 2x
Cheguem os senhores ourives 2x
Para seus preços venha dar. 2x

MARUJADA (coro) I
Ourives:
Salve vossa excelência 2x
Meu tenente general 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo ouro por arte 2x

MARUJADA (coro) III


Salve vossa excelência 2x
Meu tenente general 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo ouro por arte 2x

Ourives:
Salve vossa excelência 2x
Parte eu já estou lhe dando 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo contrabando 2x

MARUJADA (coro) IV
Salve vossa excelência 2x
Parte eu já estou lhe dando 2x
Olhe que o Guarda Marinha 2x
Tá vendendo contrabando 2x

Depois do diálogo entre o Guarda-Marinha e o Ourives que culmina na


denúncia feita pelo ourives ao General é efeito por esse uma averiguação da situação
que, se sentindo ofendido com a resposta dada pelo guarda Marinha, determina sua
prisão. Esse trecho da rezinga é falado sem o uso dos pandeiros.

General: falando.
Vem-te cá Guarda Marinha 2x
Me diz por que razão tu vendes contrabando dentro dessa
embarcação?.

Guarda Marinha: falando.


Salve vossa excelência meu tenente general que não uso de tal vereda
de vender contrabando desta embarcação sem ordem de vosso rei.

General: falando.
Você não sabe que dessa nau eu sou o chefe de divisão?
Guarda Marinha: falando.
Parece não ter política nem tão pouca educação, ajoelha em meus pés
venha me pedir perdão, pelo falso que me levanta dentro dessa
embarcação

General: falando.
Que atrevida resposta senhores oficiais me deu esse guarda marinha.I
e II gajeiro prenda esse guarda marinha.

Neste momento os gajeiros prendem o guarda-marinha simbolicamente,


amarrando seus braços como se fosse uma algema. Depois da prisão, o guarda-marinha
sai pedindo a todos que possuem uma patente (mestre, contra mestre, piloto,
calafatinho, I e II guias) na marujada para que o solte e não consegue:

Guarda-Marinha
Ai de mim Mestre Piloto?
Piloto
Tô de férias
Guarda-Marinha
Aí de mim Calafatinho?
Calafatinho
Quando eu estava preso você não me soltou.
Guarda-Marinha
Ai de mim Contra- Mestre?
Contra- Mestre
Quem te prendeu que te solte.
Guarda-Marinha
Aí de mim Comandante?
Comandante
Não tenho nada haver com isso
Guarda-Marinha
Aí de mim General?
General
Vá pagar sua culpa.
Depois de implorar por ajuda a todos os oficiais, sem sucesso, com a última
fala do general é retomado o canto onde vai acontecer a condenação feita pelo
contramestre, e em seguida, o lamento do guarda-marinha. Nesse trecho, o som dos
pandeiros é novamente incorporado na encenação.
Contramestre:

Com as tuas próprias 2x


Mãos o trabalho procurou 2x
Chora agora sem remédio 2x
Bem feito quem te mandou 2x

MARUJADA (coro) V
Com as tuas próprias 2x
Mãos o trabalho procurou2x
Chora agora sem remédio 2x
Bem feito quem te mandou 2x

Neste momento é mudado o toque do pandeiro o ritmo de lamento


acompanha o rezingar do guarda-marinha.
Guarda Marinha:
Deixa-me viver em duras penas
Já que a sorte me condena
Ai de mim um triste amante
Chorando as minhas grandes dores
E não me venha lembrar
Saudade dos meus amores

MARUJADA (coro) VI
Deixa-me viver em duras penas
Já que a sorte me condena
Ai de mim um triste amante
Chorando as minhas grandes dores
E não me venha lembrar
Saudade dos meus amores

Comovido com o lamento do Guarda-Marinha, o comandante toma a


iniciativa e o solta, com a esperança de que não se cometa mais erros dentro da
embarcação. Novamente é mudado a forma de tocar o pandeiro, a marcha de fogo dá
ritmo para essa parte da rezinga.
Comandante
Meu guarda-marinha te tenho compaixão 2x
Não me venda contrabando dentro dessa embarcação2x

MARUJADA (coro) VII


Meu guarda-marinha te tenho compaixão 2x
Não me venda contrabando dentro dessa embarcação2x

Guarda-Marinha.
Não charas menina de ver a minha prisão 2x
Eu já estou livre dos ferros bailando nesse cordão 2x

MARUJADA (coro)VIII

Não charas menina de ver a minha prisão 2x


Eu já estou livre dos ferros bailando nesse cordão 2x

Já no Canto sexto, na estrofe 70, Camões apresenta uma outra inusitada


representação que também podemos facilmente fazer uma analogia com outra rezinga
do grupo.
Mas neste passo, assipromptos estando
Eis o mestre, que olhando os ares anda
O apito toca: acórdão despertando
Os marinheiros de hua e outra banda
E porque o vento vinha refrescando
Os traquetes das gáveas tomar manda
Alerta disse estai. Que o vento cresce
Dáquella nuvem negra que aparece (CAMÕES, 1944, p. 214)

Nesse verso é relatado sobre uma possível tempestade que se aproxima da


embarcação. No Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira há algo parecido, e
inicia-se através do diálogo entre os gajeiros, o mestre e o comandante.
Personagens: Contramestre, Comandante23, I e II Gajeiros, Padre Capelão24,
Calafatinho25, e I e II Guias26. O comandante e o Contramestre, com dúvida sobre o

23
O Comandante também chamado de Capitão Patrão é o oficial responsável pelos marujos, comanda
orienta a disposição de cada um deles em seus lugares, motivando o canto e a dança.
24
Padre Capelão uma de suas atribuições dar o sacramento da unção, aos feridos nos combates é manter a
fé entre os marujos.
25
O Calafatinho é um marujo necessariamente uma criança que tem a atribuição de calafetar(consertar) os
danos sofridos pela embarcação, apenas uma criança chega aos lugares mais estreitos de uma
embarcação.
tempo, solicitam que os gajeiros observem sobre a possibilidade de seguir viagem ou
atracar em algum porto e esperar a tempestade passar. O ritmo é dado pelo pandeiro que
muda de ritmo diversas vezes durante a encenação:

Comandante Falando.
Vamos ouvir no I Gajeiro
I Gajeiro.
Ô meu comandante,
Olhe que tormenta,
Lá é vem uma nuvem,
Que traz muito vento.

Marujada coro I (repete)

Comandante – Falando.
Meu Contramestre, o I gajeiro ta dizendo que vem muito vento por aí.
Contramestre – Falando.
Comandante eu tanto tempo viajando conheço tudo de mar. Vamos
seguir viagem.

I Gajeiro.
Ô meu comandante,
O que havemos de fazer
Chamar por Maria
Pra ela nos valer

Marujada Coro II (repete)


Comandante
Ô Virgem Maria
Manda seus anjos rainha
Nesse mar de angustia
No céu as estrelas guiam

Marujada coro III (repete)

O contramestre não acredita nas palavras do I gajeiro.

Contramestre Falando.
Vamos ouvir nosso II Gajeiro.

26
Os guias são os dois primeiros marujos do cardão, tem a responsabilidade de junto com o Contra-
Mestre iniciar o canto e o bailado.
II Gajeiro
Ô meu contramestre
Lá vejo um luzir
Estrela o norte
Para nós seguir

Marujada coro IV (repete)


Comandante – Falando
Ô contramestre o I Gajeiro falou disse que aí, vem uma nuvem que
traz muito vento
Contramestre – Falando
Então você não ouviu o meu II Gajeiro, Meu II gajeiro disse que a
noite tem luz, aí um luzir que é pra nós seguir, vamos continuar ouvir
o nosso II gajeiro.

Percebendo que errou na previsão, o II gajeiro atribui a culpa ao


contramestre, que é acusado de beber durante a viagem .

II Gajeiro.

Ô meu contramestre,
Eu bem lhe dizia,
Que ferrasse a gávea,
Em quanto era dia.

Marujada coro V (repete)


Contramestre
Em quanto era dia
Eu nada quis fazer
De certos cuidados
Eu quis me arrepender

Marujada coro VI (repete)

O comandante agora acusa o contramestre e dá empurrões. O contramestre,


totalmente embriagado, pede a Padre Capelão que reze pela tripulação que se encontra a
deriva.
Comandante

Esse contramestre
É um beberrão
É causa da derrota
Desta embarcação

Marujada coro VII (repete)


Contramestre
Senhor Padre Capelão
Nos botai sua benção
Olhe que nós estamos perdidos
Dentro dessa embarcação

Marujada coro VIII (repete)


Padre Capelão
O queres, meus bons marujos
Filho do Meu coração
Chamemos pela Mãe de Deus
Que nos ê a Salvação

Marujada coro IX (repete)

Neste momento é formada a barca, os marujos ficam uns de costa para o


outro, deixando as pernas afastadas para permitir que o calafatinho faça o conserto da
embarcação. No ritmo do pandeiro, o comandante inicia uma perseguição contra o
contramestre, que tenta fugir ficando do lado oposto da barca. Num determinado
momento o contramestre se descuida e é pego. Depois de pego, o contramestre toma a
iniciativa e orienta os calafatinhos para o conserto da Barca. Toda essa parte da
encenação é falada, acompanhado ritmo marcha de fogo.
Comandante.
Meu contramestre!!

Contamestre
Ai, ai Senhor!

Comandante.
Se a gente se “anaufragar” a culpa sua meu contramestre

Contamestre
Foi não Senhor o Gajeiro me enganou.

Nesse momento o contramestre se descuida e é alcançado pelo comandante.


Comandante.
Peguei Senhor agora vai resolver.

O contramestre chama os calafatinhos para ajudarem a resolver o problema


da embarcação. Os calafatinhos usam um martelo, e para representar como se estivesse
trabalhando, um vai batendo com o martelo na barriga dos marujos e o outro passa por
debaixo da perna dos marujos

Contramestre
Calafatinhos vamos consertar essa embarcação. Calafatinho!!

Calafatinho
Ai, ai Senhor!!

Contramestre
Para que lado tá o vento Calafatinho?

Calafatinho
Pro norte Senhor

Contramestre
Consertou Calafatinho?

Calafatinho
Sim Senhor!!

Quando a barca é consertada os marujos começam a fazer um movimento


como se fosse ferrar (baixar) as gáveas. Usando um lenço, eles vão em dupla, dançando
e cantando da frente até o fundo (um movimento muito parecido com o das quadrilhas
juninas) ao ritmo do pandeiro. Quando eles voltam para seu lugar de origem, muda o
ritmo dos pandeiros e cantam felizes por terem se salvado:

Guias.
Ferra, ferra ferra eu já to ferrando.
Marujada X coro (repete)
Meu contramestre mande chegar a escota

Marujada X coro (repete)


Meu Comandante mande chegar a escota.

Marujada X coro (repete)


Meu General mande Chegar a escota.

Marujada X coro (repete)

Ao som do apito do contramestre, muda-se o ritmo do pandeiro e canta-se


para agradecer:
Guias

Graças aos céus


Ô Maria Virgem Bela
Ainda agora no Perigo
E já estou em Salva Terra

Marujada XI coro (repete)


Levanta os panos que o vento vem chegando
A procura de Saubara vamos todos navegando

Marujada XII coro (repete)

No Canto Quinto, estrofe 24, Camões cita uma passagem em um


marinheiro, possivelmente o gajeiro, que depois de momentos de muitos ventos e
tempestade, vê terra firme em sua frente:

Mas já o planeta que no ceo primeiro


Habita, cinco vezes, apressada,
Agora meio rosto agora inteiro
Mostrára, em quanto o mar cortava a armada,
Quando da atherea gávea hum marinheiro
Pronptoco a vista “terra terra”brada
Salta no bordo alvoroçada a gente
Cos olhos no horizonte do oriente
(CAMÕES, 1944, p.174)
Esses versos de Camões aparecem no Grupo Chegança Fragata Brasileira
num canto que fazemos sempre que saímos às ruas, ao nos aproximarmos de um lugar
pré-determinado para fazer uma apresentação e quando vemos esse lugar, cantamos
simbolicamente para dizer que está perto, ou quando numa apresentação num cortejo, e
se aproxima o final.
Guias
Gajeiro a vista
Terra na proa
Avistamos aves
Estamos em Lisboa

Marujada XII coro (repete)

Guias

Meu Contra-Mestre
Terra na Proa
Avistamos
Estamos em Lisboa

Marujada XII coro (repete)

Guias
Mestre Piloto
Terra na Proa
Avistamos
Estamos em Lisboa

Marujada XII coro (repete)


Guias
Meu General
Terra na Proa
Avistamos
Estamos em Lisboa

Outros estudos talvez possam orientar para outras construções a partir dessa
ótica, são inúmeros grupos que têm cantigas parecidas e vão possibilitar outras
analogias, mas tenho certeza que somente um cheganceiro nato consiga encontrar uma
relação entre Os Lusíadas de Luis de Camões, e as letras das músicas da Chegança.
Importante salientar que essa relação ainda pode ser feita com canções de outros grupos,
mas aqui tentamos buscar entrar no nosso universo, e demonstrar nossa concepção de
que é possível que se aprenda, que se tenha contato com a mais variada literatura, e,
ainda assim, os nossos conhecimentos aprendidos nas comunidades nos permitam
navegar num universo ainda mais amplo.

3.2-Identidade: um conceito estruturante na resistência das manifestações da


cultura popular

Como conhecimentos que são transmitidos através da oralidade


mantiveram-se presentes nas comunidades tradicionais, e colaboraram para que a
cultura popular se apresentasse como elemento de formação de identidade? Entendendo
cultura popular como uma estrutura de robustez empregada pelos povos que sempre
foram menos favorecidos, mas isso não significa que, sendo construída e constituída
majoritariamente desse setor da sociedade, teria menos valor que outro tipo de cultura, a
exemplo da cultura das ditas elites. Sigo o pensar de Denys Cuche (1999) quando
afirma que “as culturas populares devem ao esforço de resistência das classes populares
à dominação cultural”.(CUCHE, 1999, p. 149). Não estamos num constante confronto
com a sociedade, é justamente nesse momento do não confronto que assumimos o lugar
de uma cultura autônoma.
A questão sobre a construção da identidade é que indago e busco respostas
em diversas leituras. Na tentativa de uma elucidação a essas minhas inquietações,
apresentarei argumentos que possam encaminhar para um entendimento da minha
indagação. Importante registrar que identidade é um tema de bastante envergadura que
ainda não teve um consenso mesmo dentro das ciências sociais. Dizendo isso, exponho
que não tenho a intenção de conceituar identidade, mas sim, expor uma ideia de como
uma manifestação cultural, em nosso caso, a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira,
pode ser um aporte na formação da identidade para pessoas que compõem o grupo, e
quiçá da comunidade onde ela está presente e atua.
Para embasar essa discussão aproveito as definições de identidade
apresentadas por Sturt Hall, (2006) a partir das concepções de: sujeito iluminista, sujeito
sociológico e sujeito pós-moderno. (HALL, 2006, p. 10). As definições apresentadas
nesta obra nos orientam a confrontá-las com o olhar bastante atento e fazermos as
devidas observações que possam contribuir para encontrar as respostas que buscamos.
Imediatamente pela descrição feita por Stuart Hall (2006), sobre o sujeito iluminista,
“um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão”
podemos assegurar que este indivíduo não seria compatível com a convivência social
num grupo como a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, pois esse grupo preza pela
emoção plena, para quem se doa por inteiro, quem coloca o coração a serviço de um
navegar imaginário, repleto de sentimentos, desejos que só são completos se forem
compartilhados. Ninguém permanecerá o mesmo depois de ser tomado pela experiência
de ser cheganceiro. É comum em comunidades como a nossa encontrarmos
depoimentos, principalmente feitos pelas pessoas mais velhas, dizendo que as coisas de
hoje em dia deveriam acontecer exatamente como eram no passado. Não podemos
mudar nada no grupo, a roupa deve ser igual, o comportamento no grupo deve ser como
era antigamente, há uma exigência para que características sejam mantidas como em
tempos pretéritos. Lembro-me perfeitamente que para participar dos ensaios do grupo
todos os homens tinham que estar de calça, e não se podia usar chapéu, aqueles que por
costume o usassem, no exato momento dos ensaios, tinha que retirá-lo, para isso
existiam inúmeros ganchos nas paredes, onde era possível deixá-los. Embora esses
pensarem nos pareçam unificadores, eles nos demonstram como é dinâmico um grupo
cultural, como ele se transforma; e se transformando promove uma metamorfose nos
indivíduos que os compõem. Esse sujeito “idêntico” que Hall (2006) aponta, dá lugar
para o surgimento de um indivíduo constituído de uma identidade construída justamente
pela falta de autonomia do egocentrismo desse sujeito. É a vida fora de um grupo
cultural, que vivida de outras maneiras, com outras regras, que possibilita um
permanente diálogo entre a vida cotidiana dos indivíduos, e as regras impostas para que
ele integre um determinado grupo cultural, e as mais diversas influências sociais,
contribuem para a tomada de uma consciência coletiva, e formadora de identidade, é o
seu íntimo e o mundo exterior dando a condição para que um novo sujeito que Stuart
Hall(2006) chamaria de sujeito sociológico:

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o


“interior” e o “exterior”- entre o mundo pessoal e mundo político. O
fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais,
ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores,
tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos
subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e
cultural. A identidade então costura (ou, para usar uma metáfora
médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos
quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 2006 p. 11).

Vemos nos dias atuais um descontrole por parte da população, não se tem
mais um zelo para se manter as narrativas que ainda só são possíveis pelas janelas da
memória, há uma fluidez tão veloz na produção de informações que não há tempo para
experimentar a diversidade, a pluralidade, o indivíduo vem se tornando cada vez mais
sujeito hegemônico, o distancia da possibilidade de uma convivência coletiva. “Isso nos
impõe uma revisão dos modos pelos quais vivemos e nos relacionamos, e da forma
como representamos a nós mesmos e às nossas sociedades” (JESUS, 2010 p. 17), onde
o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas
identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2006).
Esse comportamento traz à luz temporal o sujeito pós-moderno, que segundo Hall
(2006) é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, ou permanente.
Resistir às novidades, resistir à cultura de massa tem sido o maior desafio de
grupos tradicionais, como as marujadas de Saubara. De modo geral, seguimos
contrariando as piores previsões de que teríamos desaparecido e, ainda, acreditando que
são esses conhecimentos da cultura tradicional que mantém vivo esse nosso imenso
país. Ser referência cultural é também constatar a sua perenidade. Ao tentar conversas
informais e exploratórias com os herdeiros das cheganças, identificar a origem da
manifestação, a fonte de aprendizagem e outras referências, não é raro mapear mais de
100 anos de existência dos grupos de marujos. Até o momento são poucas as fontes
encontradas sobre os caminhos percorridos por essa tradição, até se firmar no meio
cultural brasileiro. “Na cidade de Taperoá a Chegança chegou há 265 anos” afirma o
Senhor Brás Pimentel, que tem 80 anos, e é hoje o mestre da Chegança de Mouros de
Taperoá, conhecido como Mestre Brás. Nesse caso, especificamente, é fácil ter a
percepção da contribuição que essa manifestação tem trazido para a construção da
identidade da comunidade. A louvação dos marujos aos seus padroeiros, nas
festividades religiosas de cada município é uma importante marca identitária para essas
localidades. Não somente os sujeitos envolvidos diretamente com a tradição, ou seja, os
detentores do saber, responsáveis pela encenação. Toda a comunidade aguarda, a cada
ano, “a saída das Cheganças” ou “os marujos”. A louvação ao padroeiro, assim como o
seu desfile pelas ruas das cidades, entoando cânticos que contam e cantam amores,
rezingas entre marujos – supostamente embarcados – e, curiosamente, fatos
relacionados às lutas entre Mouros e Cristãos, ou pela independência da Bahia,
conforme registros históricos já citados. Os grupos de marujos são uma referência
cultural importante para o calendário das mais diversas comunidades do estado da
Bahia, cujas celebrações vêm contribuindo ao longo dos tempos para a construção da
identidade das pessoas e da comunidade onde elas estão inseridas.
Imaginemos um barco que sai de um porto para navegar, e um determinado
instante o seu capitão dá ordem de “ferrar as gáveas”, e que seja lançada a âncora ao
mar, e de repente uma tempestade fizesse esse barco fazer movimentos bruscos por
conta dos ventos, que o mar sacudisse esse barco de um lado para outro, para cima e
para baixo. A água invade o barco, alguns utensílios são perdidos durante a tempestade,
mas com todo esse movimento o barco resistisse, e ao vir a “calmaria” todos
percebessem que estávamos ali no mesmo lugar ancorado. Assim é um ser pós-
moderno: como um barco sacudido pelo vento, e o ser, e o fazer uma determinada
manifestação cultural é essa corrente que não se rompe, nos permite experimentar, viver
as mais diferentes aventuras e “conscientemente reconhecemos um valor que nos torna
seres definidos historicamente e não biologicamente” (HALL, 2006). Essa corrente é o
que nos mantém firmes no propósito da preservação. Essa corrente é a identidade
construída dentro de uma manifestação cultural, a corrente é a própria manifestação,
que, diferentemente do que pensam alguns cientistas, aqui privilegiamos uma unificação
social a partir da convivência, aproximando-se mais do pensar de Moscovici,
diferentemente do “coletivo” de Durkheim, designa o aspecto dinâmico e a
bilateralidade no processo de constituição das representações sociais (XAVIER, 2002,
p. 22).

A identidade de um grupo se dá pelos seus códigos imateriais e símbolos


materiais que se deslocam fluidamente no tempo e no espaço, construindo novas
identidades. Dessa forma, a Chegança revela a expressão de um território pesqueiro,
bem como a vida em alto mar. Revela também a condição celebrativa de uma
comunidade que entende o comemorar como parte essencial de sua existência
(SANTOS, 2011). A identidade é entendida como um conjunto de repertório de ação, de
língua e de cultura, que permite a uma pessoa reconhecer sua vinculação a certo grupo
social e identificar-se com ele. Isso não depende somente do seu nascimento ou das
escolhas realizadas pelas pessoas, pois, no campo político das relações de poder, os
grupos podem fornecer identidade aos indivíduos, a identidade é construída não de
forma unilateral.
Uma relação dialógica entre cultura e educação pode ser o caminho de
favorecimento para a construção de identidade. Imagino que se as manifestações da
cultura popular compuserem o cotidiano das escolas das comunidades, esta ação terá um
importante papel no fortalecimento das Manifestações Culturais e das identidades
locais. O aproveitamento do ambiente escolar como espaço onde as culturas populares
através das manifestações possam ser inseridas como elementos constituintes do
currículo escolar trariam para a sociedade resultados surpreendentes, esse é um apelo
que vem sendo feito ao longo dos anos em nosso país, várias foram as investidas para
que a escola de fato se torne este ambiente de colaboração, para que cultura e educação
caminhem juntas, no fortalecimento das identidades. Destaco três importantes
momentos de tentativas de implementação de ações de valorização das culturas
populares nas escolas formais. Em 1996, quando houve a reforma nas leis da educação
(LDB 9394/96), foram lançados os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) dentre
eles o volume 10 tratou do tema Pluralidade Cultural. Entre os seus objetivos um
versava sobre: “Valorizar as diversas culturas presentes na constituição do Brasil como
nação, reconhecendo sua contribuição no processo de constituição da identidade
brasileira” (PCN vol. 10, p. 59).
Uma ideia com uma intencionalidade bastante profunda, fazer com que a
cultura fosse trabalhada em sala de aula, de maneira transversal. Na minha avaliação, as
escolas (pelo menos as que conheço) não deram muita importância ao tema, dentre os
motivos acredito por que não houve um aprendizado do tema transversalidade. A
criação da lei 10.639/03 que tratava da obrigatoriedade da presença da temática História
e Culturas Afro-brasileira e Africana nas instituições de ensino, nas redes particulares e
públicas do país, e a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão – SECADI tinha como uma de suas tarefas a promoção da
equidade, valorização da diversidade e inclusão em âmbito nacional e desenvolveu o
projeto Mais Cultura nas Escolas, que teve sua regulamentação oficial a partir da
Resolução PDDE/FNDE nº 30 de 03/08/2012, e pelas complementações advindas da
Resolução PDDE/FNDE nº 04 de 31/03/2014 e da Resolução PDDE/FNDE nº 05 de
31/03/2014. Uma particularidade apresentada neste programa é que para serem
desenvolvidas as ações propostas nos projetos, deveriam ser firmadas parcerias entre as
escolas, associações e grupos que tivessem dentre suas atividades trabalhos com
questões culturais. Uma proposta interessante possibilitou que mestres e mestras da
cultura popular adentrassem nas escolas para realizar atividades culturais e transmitirem
seus conhecimentos para estudantes da escola formal.
Em Saubara foram aprovados 5 projetos no programa, dentre eles o da
parceria formada entre o Centro Educacional Manoel Castro e a Associação Chegança
Fragata Brasileira. O projeto tinha diversas ações previstas: realização de palestras,
oficinas, vivências, apresentações, mostra de vídeo, confecções de indumentárias. O
projeto aconteceu durante o ano de 2015 e 2016 e os resultados foram interessantes.
Vimos crescer na comunidade educacional um interesse pela manifestação, um grupo de
meninas foi formado no âmbito da escola, elas participaram de atividades na
comunidade e algumas delas se incorporaram no grupo de adultos. Vemos como uma
interação entre escola e comunidade pode refletir numa tomada de consciência sobre a
importância da preservação de um bem cultural, e quando se pensa em preservar uma
manifestação é porque temos conosco o sentimento de pertencimento.

3.2.1 Maroto pé-de-chumbo

Algumas das histórias da política brasileira também podemos encontrar em


uma das canções da Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, como é o caso da “noite
das garrafadas” episódio que aconteceu no século XIX no período do primeiro reinado
datado de 1822 a 1831.
Depois de outorgada a primeira constituição brasileira, em 1824, somente
em maio de 1826 a Câmara dos Deputados iniciou os trabalhos legislativos no Brasil, e
até o ano de 1829, na primeira fase da legislatura, houve uma tentativa de dar ao
império recém criado o status de que suas instituições estariam organizadas. No período
de 1829 a 1831 o império protagonizou um acordo político entre o poder executivo e o
legislativo. O que Chico Castro chamou de uma “paz armada entre a cora e o
parlamento” (CASTRO, 2013 p. 154). Após o 7 de setembro e 1822 e o 2 de julho de
1823, datas que marcam a história como a independência do Brasil, e Independência da
Bahia, respectivamente, o país continuou sendo governado por D. Pedro, monarca
português, ou seja, a independência não se deu por completo. A constituição da Câmara
dos Deputados foi um elemento que, de certa forma, começou a incomodar a
monarquia, que a partir de 1826 passou a ser “fiscalizada”. A tentativa de manter a
câmara dos deputados numa postura harmoniosa com a realeza, não resultou em bons
frutos para D. Pedro, e o ano de 1829 deu início a uma grande crise econômica no
Brasil. “Esse acordo consentido entre o Executivo e o Legislativo nunca deu a D. Pedro
a tranquilidade necessária na hora das votações e nem a certeza de que projetos do
governo passariam sem sobressaltos pela câmara” (CASTRO, 2013, p.154).
O curto primeiro reinado foi também marcado pela má gestão do então
Imperador D. Pedro I. Seus atos como administrador do Brasil duraram até o dia 7 de
abril de 1831, tendo iniciado no dia 7 de setembro de 1822. Quatro foram as razões que
levaram a D. Pedro abdicar do trono de Imperador: os inúmeros escândalos da sua vida
privada e sua inclinação para atender aos interesses dos portugueses, em detrimento dos
interesses dos brasileiros, as formas encontradas para que Portugal reconhecesse a
independência do Brasil, e a onerosa guerra com a Argentina pelo controle da província
Cisplatina, atual Uruguai. Para atender aquilo que propomos com o nosso estudo
daremos uma ênfase maior no que indicamos como quarta razão: o desgaste político que
deu início à revolta de populares no Rio de Janeiro. D. Pedro tentou alterar a
constituição de 1824 para que ele tivesse mais poderes e o parlamento brasileiro fosse
enfraquecido, o que seria um grande golpe na política brasileira. Um de seus fiéis
confessores, o Frei Antônio da Arrábida foi contra a atitude que tomaria o monarca
português e lhe aconselhou: “Queime, Senhor, o papel que contiver este quesito, que só
de pensando se julgaria crime. (...) Ele nos arrastaria à mais espantosa ruína” (GOMES,
2010. p. 301). D. Pedro parece ter ouvido o seu conselheiro, porém, não escapou das
previsões. A queda do rei Carlos X na França trouxe para o Brasil um ambiente
desfavorável a D. Pedro, pois assumira na França, Luiz Felipe, que tinha pensamento
contrário ao absolutismo real. Em meio a uma série de eventos que abalaram o seu
governo D. Pedro decidiu fazer uma viagem para Minas Gerais, que teve início no dia
30 de dezembro de 1830, com a pretensão de que receberia por parte dos mineiros a
mesma receptividade que acontecerá em 1822 um dia antes da proclamação da
independência. Mas, o que ele encontrou foi um ambiente hostil, e ao invés dos sinos
tocarem saudando sua chegada, ouviu-se segundo Chico Castro:...“repetidos e solenes
dobrar dos sinos das igrejas, numa homenagem póstuma ao jornalista Líbero Badaró”
(CASTRO, 2013. p. 174), assassinado por organizar uma manifestação para comemorar
a troca no trono francês, segundo um jornal da época por mando do próprio imperador.
Como consequência do discurso feito por D. Pedro em Ouro Preto, no Rio
de Janeiro, antes mesmo de seu retorno, já havia um ambiente de confronto entre
brasileiros e os pés-de-chumbo (apelido dado aos estrangeiros apoiadores do
imperador). “Dando vivas ao patrício, a portuguesada atacava as casas daqueles que não
acendiam luminárias nem manifestavam alegria pelo retorno de D. Pedro” (Idem, p.
175). Aos 11 de março de 1831, quase 90 dias depois da partida, o imperador não foi
bem recebido pelos brasileiros, entretanto, os portugueses apoiadores do imperante,
organizaram uma manifestação que tinha como grito de guerra: “o imperador sem
trambolho”, ou seja, sem o parlamento (GOMES, 2010. p. 302).
A Noite das Garrafadas como ficou conhecida, foi um dos confrontos que
aconteceram entre os dias 11 e 14 de março de 1831. Na noite do dia 11 de março de
1831, os portugueses colocaram luminárias em suas casas, acenderam fogueiras
(acender grandes fogueiras era uma costume europeu, era sinal de muita alegria),
dançaram, cantaram saudando a comitiva de D. Pedro que voltava da viagem que fez
para Minas Gerais. Na noite do dia 13 de março de 1831 os brasileiros dos mais
variados bairros da cidade tomou conta das ruas do Rio de Janeiro protestando contra as
condições precárias em que viviam e, insatisfeitos com a política atual, apagaram as
fogueiras (para os portugueses era um sacrilégio a uma tradição antiga dos aldeões da
Metrópole), quebraram luminárias das casas dos portugueses e travaram um sangrento
confronto com os portugueses.
Interessa-nos compreender quão é importante a manutenção da memória de
pessoas que outrora já buscavam seus direitos, e lutaram dando seu sangue para que nos
dias atuais, de forma lúdica e prazerosa, continuemos a reivindicar por melhores dias.
“Cacos de garrafas atiradas pelos portugueses da sacada de suas casas caíram como
chuva nos brasileiros. Em apenas uma residência, na Rua da Quitanda, foram
encontrados mais de 300 fundos de garrafas quebradas” (CASTRO, 2013. p. 177).
A razão ou circunstâncias que podemos observar para que no Grupo
Chegança Fragata Brasileira haja uma alusão a um movimento acontecido no Rio de
Janeiro, uma vez que na Bahia os movimentos de brasileiros/baianos para a expulsão de
portugueses e outros estrangeiros aconteceram nove ano antes do que é hoje conhecido
como o dia da independência da Bahia, o 02 de julho de 1823, (sobre esse tema
trataremos no próximo capítulo) é que, segundo Chico Castro, “os efeitos da noite das
garrafadas, assim como em Minas Gerais, provocaram na Bahia a elevação dos ânimos,
levando muitos cidadãos a praticarem atos de rebeldia,(...) Expulsaram portugueses que
se achavam nos batalhões, destituíram dos altos cargos alguns civis ligados a grupos de
antigos remanescentes da cidade antes de 1823” (CASTRO, 2013. p. 185).
Com certeza na Bahia fizemos isso com mais graça e sagacidade, além de
chamá-los de pés-de-chumbo acrescentamos os termos “maroto e calcanhar de
frigideira”.

Maroto pé -de- chumbo calcanhar de frigideira 2x


Quem deu a liberdade de casar com a brasileira 2x

Fora maroto fora, fora maroto daqui 2x


Brasileira não quer mais maroto no Brasil 2x
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

Imaginamos um grupo de homens e mulheres, em coro uníssono pelas ruas


cantado com grito de guerra “brasileira no quer mais maroto no Brasil”. Esse é o
espírito que carregamos quando, ainda hoje, cantamos e dançamos pelas ruas das
cidades. Nas nossas apresentações, essa é uma música que cantamos com empolgação e
força, quando há uma intervenção externa, algo ou alguém que tentar interferir na nossa
dinâmica, um símbolo que é identificado apenas por quem é do grupo é preciso ter essa
vivência para perceber as minúcias trazidas pela história, e pelas histórias de vida das
pessoas envolvidas. Não é de se estranhar que pelo recôncavo também houve repetição
de uma expressão parecida em momentos de tensão política. Um boato da possível
independência do Brasil chega ao recôncavo, e as cidades de Santo Amaro, Cachoeira,
Maragojipe e São Francisco do Conde, em junho de 1822, antecedem o ato político do
07 de setembro do mesmo ano, e por aqui D. Pedro é reconhecido como Imperador, e
assim rompem-se os laços com Portugal. Na cidade de Cachoeira quando esse boato foi
propagado “as pessoas saíram de suas casas, deixaram as suas atividades e foram para
as ruas manifestar a alegria com abraços e vivas. Repicaram os sinos da igreja de Nossa
Senhora do Rosário, Matriz da Vila e do Convento do Carmo. As pessoas e os sinos
silenciaram logo que soldados portugueses armados ocuparam as ruas e o porto. A
resposta veio em seguida nas vozes que gritavam da casas iluminadas:“Morra tudo
quanto for maroto”.Como vemos, crescia no Brasil o espírito por se tornar uma nação
livre de Portugal. Os brasileiros não querem mais maroto no Brasil, assim, para que não
se esqueçam, nós da Chegança dos Marujos Fragata Brasileira ainda hoje cantamos para
os marotos atuais, queremos um pais livre onde possamos preservar e cultuar nossa
ancestralidade.

3.3 Música como elemento de memória

Falar de música é falar de vida, de dinâmica, de movimento, de transe, é


falar de transformação. “Saubara pode ser considerada, em muitos aspectos, o coração
do Recôncavo” (Araújo, 1986, p. 93). Se o recôncavo fosse um corpo, teria como
coração Saubara, e o sangue que seria bombeado por esse coração seria sem sombra de
dúvida, a música: tambores, pandeiros, violas, atabaques, as palmas, as vozes, o corpo.
O mesmo pensamento pode-se atribuir ao Recôncavo. Se a Bahia fosse um corpo, o
recôncavo seria o coração, e o sangue bombeado desse coração seria a música: do
Samba de Roda, do Candomblé, das Caretas, afoxés, Marujadas, do Maculelê, da
Burrinha, da Boa Morte, da Capoeira, do Nego Fugido, Caretas do mingau etc. A
construção social desses lugares só se consolidou, imagino, porque, permeando toda a
construção, estavam ali as pessoas com seus corpos, ora gemendo de dor, ora
festejando, ora guerreando. Música e dança seguem juntas na produção das
manifestações tradicionais. Dançar é a utilização do corpo para expressar os sentimentos
experimentados quando estamos envolvidos nas práticas culturais, é o corpo negro que,
numa apropriação harmônica da musicalidade, revela as formas mais profundas para a
compreensão de toda a historicidade que envolve esse lugar.
Importante pensar como os primórdios, há milhões de anos, usavam o som,
como foi importante criar o som e depois dar sentido para esses sons. Criar sons, repetir
esses sons é dar significado ao novo experimento, é se identificar com aquilo que é
produzido por nós mesmos, é assim nas manifestações culturais, que para Katharina
Döring (2016) esta na “dimensão poética, histórica e semântica, profundo conhecimento
dos cantos, seus significados ancestrais, suas metáforas e entrelinhas para o momento
apropriado, assim revelando um baú de tesouro poético-musicais que contam a história
e sabedoria do seu povo” (DÖRING, 2016. p. 9).
A derrota do pau verde
É o seco encostado
Botei fogo no pau seco (ô colega)
Lá vai o verde queimado
Chula cantada nas Rodas de Samba do Recôncavo

Você é “pau seco” ou “pau verde”? É no trabalho diário, no ouvir, no


contato do machado com a madeira, é na inspiração da labuta que a música é construída,
e serve para ensinar, e fica na memória de gerações o seu aprendizado. O que é o samba
para o recôncavo? O que é o samba sem as palmas? As palmas são as mãos que, num
encontro fabuloso, produzem o som que orienta, que cadencia. Para um samba,
precisaríamos apenas do corpo ecoado sua sonoridade, com os pés arrastando no chão
dando ritmo, as mãos batendo uma na outra dando harmonia, e no requebrar da cintura,
mostrando sua intensidade. No som das palmas no samba, as experiências de vida
transformam-se em música, e revelam que homens e mulheres conseguiram significar
suas histórias.
Minha Santa Madalena
Rio Preto tá tomado
Morre o homem deixa a fama
Ouça meu palavreado
Samba chula cantado nas rodas de Samba do Recôncavo.

Ao cantar uma chula, expressamos uma realidade que somente quem é


membro desse universo consegue identificar: “não vá pelo caminho do Rio Preto, está
cercado pelo inimigo, se você for pode perder a vida, e apenas teremos você na
lembrança, ouça que eu te digo”.
Eu vi conversa de homem
Eu vi grito de rapaz
Eu vi conversa de homem
É assim que homem faz.
Relativo cantado nas Rodas de Samba do Recôncavo.

Ao entender o sinal, agradece e reconhece o valor dos seus iguais, que estão
sempre nos orientando. Esse diálogo, apresentado em forma de canto, foi uma das
formas encontradas por negros e negras para sobreviver no período em que era difícil
falar diretamente. A música aqui se apresenta como uma elemento de sobrevivência. É
dessa maneira que se constrói a memória coletiva, perpassando pelo sentido, pelos
sonhos, indo além de meramente um simples lapso mental. Desde o início da formação
do Brasil, nos deparamos com a utilização da música, foi assim que os padres jesuítas
introduziram por aqui a fé cristã, utilizando-se de elementos como dança, canto e
técnicas do teatro. Tudo isso, orquestrado, resultou no início de inúmeras festas
populares, dentre ela estão as cheganças. Uma colonização feita à base da fé, do fogo e
da festa. (Marujada. Bahia Singular e Plural. TVE. 2000). Uma fé externa e imposta,
muita guerra e extermínio, e a festa foi a maneira encontrada para resistir e sobrevier.
Foi possível recriar modelos tendo a música como fundamento, usando a música era
possível se comunicar de modo que quem era de determinado grupo compreendia. Ir
para igreja, era muitas vezes, era única possibilidade de, mesmo cantando para santos
católicos (São Domingos de Gusmão, São Benedito, São Braz, São Bartolomeu, São
Sebastião etc.), reverenciar outras entidades religiosas proibidas. Em Prado, cidade do
extremo sul da Bahia, a Marujada festeja São Benedito. A festa é realizada sempre na
segunda-feira após o Domingo de Páscoa. “A marujada é aquilo foi Jesus Cristo deixou
para São Benedito, Jesus Cristo deu pra ele, disse pra ele, São Benedito você é preto
nagô então você vai ficar com isso, ele gosta desse negócio de samba dessas coisa...”
Esse depoimento foi dado por Antonio Gomes de Azevedo para o documentário
Marujada -Bahia Singular e Plural, produzido pele TVE no ano 2000, e traduz o
entendimento das pessoas sobre como se produziram tais manifestações culturais. O
sincretismo atuou de forma a garantir que essas produções fossem mantidas, e, ainda
hoje, é possível, em Prado, conviver com essa manifestação.
A música é um lugar onde é possível ativar a memória, e também onde
reside a memória. Quem não lembra de algo que aprendeu a partir de uma música? Para
Pierre Nora, “a memória se enraíza no concreto, no espaço no gesto, na imagem, no
objeto”. (NORA, 1993, p. 12). Compreendemos o quanto é importante a música para a
sobrevivência das manifestações culturais, como é indispensável para qualquer
manifestação a presença da música, que com o corpo, ou saindo do próprio corpo, vai
materializar saberes, vai perpetuar fazeres, e assim garantir a transgeracionalidade dos
conhecimentos e saberes. É necessária a compreensão de que, nas culturas de matriz
africana, ou naquelas em que o povo negro alimenta sua existência, é um ato
pecaminoso dissociar música, canto e dança. Esses elementos configuram-se num tripé
que sustenta toda construção a musicalidade. É urgente a prática de afeição à música,
entender que a manifestação musical é o sustentáculo das artes, que não tem tempo
definido, que não precisa necessariamente de métrica e compasso.
É recorrente que os grupos culturais passem por momentos de
enfraquecimento e muitos deles desaparecem, nossa experiência com o Grupo Chegança
dos Marujos Fragata Brasileira, nos dá essa dimensão, beirando o seu último suspiro, o
grupo foi ressuscitado por conta da memória e dá memória musical.

Essas músicas quando eu entrei na Chegança eu ouvi dizer que


tinha livro, esse livro se apanhava nas mãos de Dedé. Codó
mais Zinoel eles foram puxando aquilo, puxando aquelas coisas
pela boca de alguém e foram assinando também, não sei se
ainda estão assinado, e foram completando as coisas. E aí
ficamos homens com boa memória quer dizer que segurou as
musicas parecendo que elas foram feitas hoje, mas elas foi do
tempo que fundou Chegança, que não foi no nosso tempo. E
dizem que ela tinha papel, quem tinha o documento dela, era a
velha Dominga, eu acho, que passou para Codó, Duca que era
neto, sobrinho e daí prá cá, nós canta sabemos o que vai
cantar. As músicas faz parte da tradição, as músicas você vê
que é uma coisa diferente de tudo, então, acho aquilo uma
coisa “impossível” como é que eles fundaram tudo e nós vem
conservando aquilo que ele fundou e nós vem conservando até
hoje, e essa conservação é feito pelo amor e pelo gosto,
passando de filho pra pai, de pai pra neto, nas memórias das
pessoas27.

Nesse depoimento, Vovô Pedro28 nos ajuda a compreender a força


que a memória tem e como essa memória é potencializada com a utilização da
música, e como a música é um meio onde as pessoas encontram fundamentos
para conseguir manter vivas as tradições locais. A musicalidade permitiu que o
grupo voltasse novamente às atividades, a música internalizada pelas pessoas, e
ancorada na oralidade que é uma das capacidades de transmitir conhecimento,
potencializou o grupo e fez com que ele revivesse e chegasse até os dias atuais.
Para Charles Murray (2008) “a oralidade característica inerente ao ato musical,
seja no aspecto da criação, da execução ou da preservação dos seus códigos”
(MURRAY apud SILVA, 2008, p. 106). Foi pela música que tudo se
reconstituiu, e por estar na memória e transmitido “boca ouvido” é possível hoje,
conviver com a manifestação.

Tinha por escrito aquela música então quando retornou pegou


aquela ata velha e foi que deu continuidade de novo, tinha
gente que ainda tava ainda no auge ainda (vivos) como Duca,
Delau esse povo, então já sabia e já sabia os toque como era
isso tudo tava gravado na mente.(Fernando Barbosa)29

Além do próprio corpo, a utilização de instrumentos musicais e a forma


peculiar com que eles são tocados, também fazem parte dessa reunião de elementos
musicais que compõem o universo do grupo. Os pandeiros de vários tamanhos emitem
afinações variadas, permitindo que a melodia das canções, o ritmo e harmonia atinjam a
altura, intensidade e timbre perfeitos, que complementam a voz, dando assim ao grupo a
possibilidade da utilização do corpo que, no movimento imaginário do mar, transforma-
se num ambiente que nos conduz à concepção do que representa o ser cheganceiro.

Aquele movimento da Chegança é pela música, se for uma


música de saltar você tem que pular, se for uma música de
levar o remo você tem que remar, se for uma música lenta você
tem que ser lento, aquela música mesmo de bailar do
calafatinho e guarda Marinha aquilo é muito bonito quando o
calafatinho dá aquele salto assim que vai lá ele tá preso hoje ta

27
Entrevista realizada na casa do entrevistado no dia 23 de fevereiro de 2020.
28
Membro fundador do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, sempre teve função de marujo.
29
Membro do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira. Já foi Padre Capelão, segundo gajeiro e
atualmente é o primeiro guia.Entrevista realizada no dia 23 de fevereiro de 2020.
no cordão aí já sabe que é bonito demais. Assim também na
hora da espada, “rastou” a espada você vai lá, vem cá, vem cá
vai lá, na hora de rodar a Chegança a rua toda a Chegança
tem que rodar, pra mostrar o povo que é bonito. O movimento
da maré.30

Domingão,31 em seu depoimento expõe seu entendimento sobre a função do


corpo, e o quanto o corpo é revelador da música na manifestação e como o universo
imaginário do mar está presente e para quem tem a sensibilidade é possível ouvir a mar
nos movimentos que fazemos. Essa visão é a mesma do método de educação musical
apresentado pelo pedagogo musical Jaques- Dalcroze que “propõe o rompimento da
dicotomia corpo-mente, estabelecendo relações entre estes dois através de uma
educação musical baseada na audição do corpo”. (MONTEIRO, 2011. p. 31).
Na atualidade enfrentamos um problema para a manutenção das
manifestações culturais. Por ter em seu histórico a transmissão feita pela oralidade, nos
deparamos com uma juventude que cada vez mais interage com as tecnologias
modernas, entendemos que é necessário acompanhar essa revolução e transformar os
nossos etnométodos. Como educador, acho possível uma educação musical a partir de
saberes e fazeres tradicionais da musicalidade orgânica existente em cada lugar,
produzidas por agentes culturais pertencentes às manifestações culturais. Não
subestimando o poder da aculturação, é possível sim que elementos outros sejam
introduzidos, porém, é extremamente oportuno que os conhecimentos musicais
produzidos pelas comunidades sejam prioritariamente usados num ambiente de
aprendizado. Perguntado sobre sua opinião do ensino da Chegança nas escolas,
Domingão disse:
Eu acho um negócio bom, mas só que a Chegança eles nunca
faz igual a principal, tem diferença. Eu acho bom tudo vem do
principio do mundo, se amanhã depois um morrer ou qualquer
um morrer já fica eles novo para representar a Chegança
aqueles quer aqueles que não quer... Eu acho que a Chegança
não acaba por que ta botando as crianças para aprender, na
hora que um “véio” morrer vem um novo. Agora o que você
tem que fazer é botar tudo no papel que a Chegança tem, pra
eles aprender o que a Chegança tem, pra não fazer besteira. 32

Em seu depoimento, além de a importância da transmissão, mesmo que aconteça


na educação formal, ele também orienta que tudo seja colocado no papel, ou seja, a

30
Entrevista realizada na casa do entrevistado no dia 22 de fevereiro de 2020.
31
Domingos Vieira participou durante muito anos da do Grupo Chegança Fragata Brasileira, deixando de
atuar no grupo devido a um problema de saúde. Foi marujo e porta bandeira.
32
Entrevista realizada na cidade de Saubara no dia 22 de fevereiro de 2020
necessidade de se registrar as canções em outras mídias, para se fazer o mais próximo
possível da realidade.
A escola pode ser uma aliada na preservação de uma manifestação cultural,
desde que seja aplicada uma metodologia de educação musical que considere a
possibilidade de manter entre suas estratégias a utilização da música produzida na
comunidade em que os estudantes estão inseridos e que reconheça a habilidade musical
dos envolvidos, fugindo da postura hegemônica que tem imperado, que reforça a ideia
do bom e do ruim. Para Howard Gardner (1995) “o aprendizado se dá através de
diversas inteligências entre elas a musical que pode ser treinada e desenvolvida a partir
de fatores como oportunidade e experiências que pode ser influenciada pela escola”.
(GARDNER, 1995, p. 45).
As manifestações culturais apresentam-se como um interessante elo que pode
proporcionar um aprendizado mais eficaz, principalmente aquelas manifestações em que
a música é elemento primordial: o Samba de Roda, a Capoeira, a Marujada dentre
outras, que fazem parte constante da vida de crianças e adolescentes, por serem
produzidas nas comunidades onde elas nascem e crescem.

Cresce meus meninos


Para pátria defender
Que o Brasil está jurado
Liberdade ou morrer
Trecho de uma música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

Cresce, ô filho de minha alma


Para a pátria defender
O Brasil já tem jurado
Independência, independência ou morrer
Trecho do Hino da Bahia

Esses trechos oportunizam uma discussão sobre umas das datas mais
emblemáticas na Bahia, o 2 de julho. É possível uma investigação sobre como surgiu
esse canto se Ladislau dos Santos Titára33 que participou das lutas para independência
da Bahia ouviu aqui em Saubara e depois adaptou para o hino, ou se depois da guerra,
as pessoas daqui ouviram e adaptaram para a Chegança. Esse fragmento da canção ativa
a memória sobre um episódio histórico, ao mesmo tempo preserva as informações que
podem ser acessadas sempre que for mantido contato com ela. Em manifestações

33
Militar, historiador e poeta brasileiro. Destacou-se nas campanhas pela independência do Brasil na
Bahia e por ter escrito depois a obra Paraguaçu: Epopeia da Guerra da Independência na Bahia.
culturais com características musicais, se aprende cantado e canta-se aprendendo, isso
não está longe do que propôs Zoltán Kodály
em sua concepção, ser musicalmente alfabetizado inclui o apropriar-se
da música com capacidade de pensar, ouvir, expressar, ler e
escrever...O cidadão, a partir da vivência musical, deve ser capaz de
escrever o que canta e cantar o que lê. (KODÁLY apud MONTEIRO,
2011. p. 57).

Uma pedagogia que é reforçada com o pensamento de que podemos sim levar
em consideração a importância de tudo que é organicamente produzido pelas
comunidades, o mundo em torno da instituição escola. No livro “A importância do ato
de ler”, Paulo Freire (1989) revela que precisamos ter “uma compreensão crítica do ato
de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem
escrita” (FREIRE, 1989. p. 9). Um mundo pode ser construído a partir da experiência
musical, uma nova história pode ser escrita a partir de uma vivência com a música, a
música pode trazer reflexões que saiam das quatro paredes, e pode oferecer outras
diversas leituras. Sendo um lugar de memória, a música pode funcionar como propulsor
que dinamiza a compreensão que o sujeito pode ter de si e do mundo que o envolve.
CAPÍTULO IV

1- PATRIMONIALIZAÇÃO: NOVOS HORIZONTES PARA UMA


AUTOORGANIZAÇÃO E AUTORECONHECIMENTO.

Numa turma do nono ano do Centro Educacional Municipal de Acupe,


Santo Amaro –Bahia, iniciei um trabalho sobre Patrimônio. Pensamos em fazer um
panorama geral sobre o tema apresentando o que difere o Patrimônio Material do
Imaterial, dando uma atenção maior para o Patrimônio Imaterial, e aproximando-nos
mais do Samba de Roda, que é um Patrimônio Imaterial muito presente na comunidade.
O Samba de Roda foi inscrito no Livro de Registro das Formas de Expressões em 2004
(IPAHN, 2006. p. 11). No primeiro contato com a turma para falar deste assunto fiz a
seguinte pergunta: o que é patrimônio? Foi uníssono “herança” e continuadamente ainda
ouvimos: é aquilo que herdamos de nossos pais, avós, parentes. Ao presenciar tais
respostas observamos que ao tratar de patrimônio estamos falando das histórias
daquelas pessoas, com aquilo que elas se identificam, com aquilo que elas lembram.
Outro aspecto a ser considerado é que as respostas vinham sempre acompanhadas de
exemplos como casa, roupa, uma jóia, dentre outros. O conceito de patrimônio
extremamente ligado à ideia de propriedade, sempre carregado do desejo de preservação
deixando-os distante da comercialização, toda herança deve ser guardada de uma forma
especial. Para os alunos o patrimônio é algo que deve ser protegido, que é carregado de
um sentimento de pertencimento.
O Brasil tem hoje uma série de bases legais no que diz respeito à
conservação e preservação do patrimônio cultural e órgãos que têm a responsabilidade
de gerenciar as políticas de patrimônio, mas tenho a impressão de que nada disso poderá
ser bem sucedido sem que haja uma participação real e efetiva dos que desse patrimônio
fazem parte, e mais especificamente no que tange ao Patrimônio Imaterial.
O primeiro órgão federal de proteção ao patrimônio – a Inspetoria dos
Monumentos Nacionais – foi criada em 1934, no Museu Histórico Nacional, por
iniciativa de Gustavo Barroso. Essa inspetoria atuou sobretudo na restauração de
monumentos da cidade de Ouro Preto, considerada desde 1933 a principal relíquia do
passado nacional a ser preservada (OLIVEIRA, 2008, p. 114 ). Os primeiros passos
dados para a formalização de repartições federais para os cuidados com o patrimônio
pareceram reforçar a ideia de que apenas as edificações teriam o status de ser capazes de
representar a história da cultura no Brasil. Esse pensamento é a base que alimenta, até
os dias de hoje, conceitos generalizados do que é ser um patrimônio. Segundo Lúcia
Lippi Oliveira, antecedendo a criação do órgão federal, alguns estados, como Minas
(1926), Bahia (1927) e Pernambuco (1928) já haviam criado seus órgão de proteção ao
Patrimônio. Mesmo os pensares da política de Patrimônio de “pedra e cal” tiveram ao
longo de sua construção diversos embates jurídicos:

Tamanha era a capacidade de estruturação de discursos demolidores e


contrários a essas ideias conservacionistas pelo tombamento, que na
fase de criação do DL 25/37, o próprio Rodrigo de Melo Franco levou
de dez a quinze anos defendendo, nas barras dos tribunais, a
constitucionalidade do tombamento (QUEIROZ, 2016. p. 54).

Por recomendação do então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema,


nos anos de 1934 e 1945 na era Vargas, Mário de Andrade elaborou o anteprojeto para a
criação de um serviço nacional para a proteção do Patrimônio Cultural brasileiro, essas
são as primeiras discussões para a o surgimento SPHAN (Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), criado pela lei n◦ 378 de janeiro de 1937, e pelo decreto
– lei n◦ 25, de 30 de novembro também desde ano. Já no anteprojeto elaborado por
Mário de Andrade, ele apontava uma visão bastante ampla sobre o que seria o
Patrimônio Cultural Brasileiro, listando assim oito categorias a serem pertencentes a
esse Patrimônio: a arte arqueológica, a ameríndia, a popular, a histórica, a arte erudita
nacional e estrangeira, as artes aplicadas nacionais e estrangeiras (Oliveira, 2008,
p.118). Chama-me atenção a arte popular posta neste documento como sendo
importante a ser preservada, já na década de 30. E nos dias atuais ainda vivenciamos
diversas lutas para o reconhecimento da importância dos saberes e fazeres populares. E
quando há esse reconhecimento, o trato dado pelos órgãos governamentais não é, em
alguns aspectos, o mesmo dado a um bem de outra natureza.

A pretensão de Mário de Andrade se contrapunha à de Rodrigo.


Enquanto o primeiro se preocupava com preservação das culturas
populares, do folclore, artes, etc., o segundo defendia a construção de
um Brasil que reafirmasse uma herança européia-portuguesa- e, em
contrapartida, negar uma possível “herança indígena”, buscando
constituir a fisionomia do Brasil sem regionalismos no âmbito das
relações internacionais. (CHUVA, 2003, p. 316 apud QUEIROZ,
2016 p. 58).
Se o anteprojeto de criação do SPHAN foi de Mário de Andrade, coube a
Rodrigo Melo Franco Andrade a sua versão final, algo que trouxe para este serviço
outra característica, segundo Lúcia Lippi Oliveira:
esse primeiro momento da política de preservação do Patrimônio
brasileiro orientou-se por uma concepção de política cultural – mais
tarde chamada de “pedra e cal” – executada, principalmente, pelo
estatuto do tombamento[...]. Tombamento, portanto, significa
inscrever em um dos quatro livros do Tombo: Livro de Belas- Artes,
Livro Histórico, Livro Arqueológico Etnográfico, e Livro Paisagístico.
(OLIVEIRA, 2008. p. 120).

Para Mário de Andrade, o resgate das tradições prescrito pelo discurso


modernista e de Estado da época, não deveria recuperar apenas as raízes elitistas,
reconhecidas nos monumentos arquitetônicos de século XVIII, mas era imprescindível
conhecer o “centro vivo da tradição”, os folguedos, os costumes, as músicas, as danças,
as receitas culinárias, etc. (ALENCAR, 2010. p. 68).
Foram inúmeras fases e transformações no que diz respeito às políticas
sobre patrimônio no Brasil. Várias fases ficaram marcadas a todo o momento pela
polarização entre duas correntes de pensadores. Com o passar dos tempos, a tentativa
frustrada de Mário de Andrade, que em outrora não foi colocada em prática, foi
ganhando espaço, e hoje vemos uma postura mais próxima daquilo que ele imaginara.
Digo mais próxima porque ainda há que se avançar no que se refere à proteção do
patrimônio imaterial, temas como: a proteção dos direitos intelectuais dos detentores34,
proteção dos direitos autorais contrapondo a ideia de domínio público, a participação
dos detentores como atores no processo de patrimonialização, o aumento no
financiamento do patrimônio imaterial, repatriação de acervo, etc. Tudo isso precisa ser
colocado de maneira mais incisiva para que, de verdade, possamos nos aproximar do
ideal.
A Constituição de 1988 no Brasil é vista como o momento da retomada da
democratização do país e também é tida no meio de estudiosos e apreciadores da
política de patrimônio como o marco simbólico para uma nova era com novos

34
Denominação dada às pessoas que integram comunidade, grupos, segmentos e coletividade que
possuem relação direta com a dinâmica de produção e reprodução de determinado bem cultural imaterial
e/ou de seus bens culturais associados, para as quais a prática cultural possui valor referencial por ser
expressão da história e da vida de uma comunidade ou grupo, de seu modo de ver e interpretar o mundo,
ou seja, sua parte constituinte da memória e identidade. Os detentores possuem conhecimentos
específicos sobre esses bens culturais e são os principais responsáveis pela sua transmissão para futuras
gerações, pela continuidade das práticas dos valores simbólicas a ela associados ao longo do tempo.
(IPHAN, 2017. p. 11)
horizontes. A constituição traz em seu corpo dois artigos que fazem referência à
produção cultural de comunidades e saberes ora esquecidos nas práticas anteriores.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos


culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do
processo civilizatório nacional.
§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de
alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. 35

Esses pontos da Constituição possibilitam que a pluralidade étnica e social


brasileira tenha um amparo legal, assim como todas as reivindicações dos movimentos
negros e indígenas. As produções da cultura popular passam a integrar o Patrimônio
Cultural do Brasil, devendo, tais quais as edificações, ser valorizadas. Como a
publicação da Constituição de 1988, outros mecanismos foram possíveis de serem
desenvolvidos para cumprimento da lei, o decreto presidencial n◦ 3551, de 04 de agosto
de 2000, é um desses:

Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza


Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro.

§ 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos


e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e
festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do
entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

35
Constituição Federal de 1988.
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados,
feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e
reproduzem práticas culturais coletivas.

§ 2o A inscrição num dos livros de registro terá sempre como


referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional
para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.

§ 3o Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de


bens culturais de natureza imaterial que constituam patrimônio
cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no
parágrafo primeiro deste artigo. (Decreto 3551/2000).

Com a institucionalização para o registro dos bens de natureza imaterial, a


partir do decreto abriu-se uma possibilidade para que manifestações da cultura popular
passassem a ser reconhecidas como Patrimônio Cultural do Brasil. No contexto
nacional, o IPHAN36é o órgão federal que tem a responsabilidade de desenvolver as
políticas de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro e no âmbito do Patrimônio
Imaterial já foram registrados uma série de bens, dentre estes: A Roda de Capoeira e
Ofício dos Mestre de Capoeira de abrangência nacional, a Arte Kusiwa-Pintura
Corporal e Arte Gráfica Waiãpi no Amapá,
o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, e o Ofício das Baianas de Acarajé na Bahia, o
Modo de Fazer Viola de Cocho no Mato Grosso do Sul,o Jongo no Sudeste, o Ofício de
Sineiro e o Toque dos Sinos em Minas Gerais, o Fandango Caiçara no Paraná.
Na Bahia, o histórico da política de preservação do Patrimônio cultural tem
raízes que antecedem o DL 25/37. No ano de 1927, o Governador do Estado da Bahia,
Francisco M. Góis Calmon, mediante as leis estaduais 2031 e 2032 de 08 de agosto,
regulamentadas pelo Decreto 5.339, de 06 de dezembro do mesmo ano, organizou a
defesa do acervo histórico e artístico do Estado e criou a Inspetoria Estadual de
Monumentos Nacionais anexa à Diretoria do Arquivo Público e Museu Nacional
(QUEROIZ, 2016). Como vemos na descrição, tratava-se de um órgão que seguia uma
tendência daquela época, privilegiando os monumentos edificados, sem nenhuma
referência às culturas populares.
O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC, criado em
13 de setembro de 1967, como FPACBa – Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural
da Bahia (atualmente denominado IPAC), é uma autarquia vinculada à Secretaria de
Cultura do Estado da Bahia - SECULT, cuja missão é atuar de forma integrada e em

36
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
articulação com a sociedade, na salvaguarda dos bens tangíveis e intangíveis e no
fomento de ações culturais para o fortalecimento das identidades no estado da Bahia
(IPAC, 2014.). Criado desde a década de 60, o IPAC só passou a atuar no que diz
respeito ao reconhecimento de bens imateriais em 2006, a partir do Decreto nº 10.039
DE 03 DE JULHO DE 2006, que regulamenta a Lei nº 8.895, de 16 de dezembro de
2003, que instituiu normas de proteção e estímulo à preservação do patrimônio cultural
do Estado da Bahia e criou a Comissão de Espaços.

Art. 1º - O Estado da Bahia protegerá o patrimônio cultural existente


em seu
território, por meio dos seguintes institutos:

I - Tombamento;
II - Inventário para a Preservação;
III - Espaço Preservado;
IV - Registro Especial do Patrimônio Imaterial.

Parágrafo único - O patrimônio cultural, para fins de preservação, é


constituído pelos bens culturaiscuja proteção seja de interesse público,
pelo seu reconhecimento social no conjunto das tradições.

Art. 5º - Serão mantidos no Instituto do Patrimônio Artístico e


Cultural – IPAC, autarquia vinculadaà Secretaria da Cultura e
Turismo, os seguintes livros de inscrição do patrimônio cultural,
quepoderão ter vários volumes, e cuja inviolabilidade e segurança
ficará sob a responsabilidade domencionado Instituto:

I - Livro do Tombamento dos Bens Imóveis;


II - Livro do Tombamento dos Bens Móveis;
III - Livro do Inventário para a Preservação dos Bens Imóveis e
Conjuntos;
IV - Livro do Inventário para a Preservação dos Bens Móveis e
Coleções;
V - Livro dos Espaços Preservados;
VI - Livro do Registro Especial dos Saberes e Modas de Fazer;
VII - Livro do Registro Especial dos Eventos e Celebrações;
VIII - Livro do Registro Especial das Expressões Lúdicas e Artísticas;
IX - Livro do Registro Especial dos Espaços destinados a Práticas
Culturais Coletivas.

Parágrafo único - Os livros relacionados neste artigo poderão ser


paulatinamente substituídos por bancos de dados.

Art. 6º - A abertura dos processos de Tombamento e Inventário para a


Preservação, por ato do Diretor Geral do IPAC, após instrução
sumária, deferindo proposta apresentada por qualquer pessoa, ou de
oficio, assegura ao bem, até o ato de inscrição, o mesmo regime dos
bens protegidos.37 (Lei nº 8.895, de 16 de dezembro de 2003).

37
http://www.ipac.ba.gov.br/wp-content/uploads/2011/09/DECRETO1003906.pdf acesso 08/04/2019
A partir da promulgação do decreto n◦ 10.039/2006, houve o primeiro processo
de reconhecimento de um bem imaterial, a Capoeira foi reconhecida a partir Decreto n◦
10.309/2006. Outros registros foram feitos, e já é mais de uma dezena de bens
registrados no Estado da Bahia.
Acompanhando toda a movimentação acerca dos Registros Especiais de
eventos, celebrações, saberes, modos e fazeres, fizemos uma mobilização para
discutirmos a viabilidade de Registro das Cheganças e Marujadas no Livro Especial de
Expressões Lúdicas e Artísticas. Esta ideia surge num momento em que o grupo
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira vive talvez sua melhor época, onde foi
possível abrir uma discussão sobre o processo de patrimonialização dos grupos da
Bahia, quando foi possível criar um ambiente de diálogo com os mais diversos grupos
espalhados pelo estado da Bahia. No dia 02 de agosto de 2013, em Saubara, na ocasião
da realização do I Encontro de Cheganças da Bahia fizemos a primeira reunião, e uma
das pautas dessa reunião era a deliberação de encaminhamento para o IPAC do pedido
de registro das Cheganças e Marujadas como Patrimônio Cultural do Estado. O diálogo
foi bastante intenso e proveitoso, com presença de lideranças dos grupos, de
representantes de universidades públicas, representantes do IPHAN, políticos e
pesquisadores, foi aprovado que a Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira
encaminharia para o IPAC o pedido de registro especial. Foi então que no dia 13 de
setembro desde mesmo ano foi encaminhado o ofício n◦ 08/2013, para o então Diretor,
o Sr. Frederico A. R. C. Mendonça. No dia 15 de janeiro de 2015 foi publicado no
diário oficial do Estado da Bahia a notificação pública de abertura do Processo de
Registro Especial como Patrimônio Imaterial das Cheganças e Marujadas do Estado da
Bahia n◦ 0607130030671/2013, datado de 14 de setembro de 2014, ou seja, um ano
após termos encaminhado o pedido é que o processo foi aberto. A morosidade com que
é tratado o tema tem o poder de fazer desistir, mas este sentimento fez parte de nossas
vontades. Foram cinco anos de trabalhos intensos, diversas atividades foram
desenvolvidas com o intuito de manter as pessoas envolvidas. Realizamos diversas
atividades: os encontros estaduais foram importantes (apresento relatórios a abaixo)
para mantermos foco no processo, realizamos encontros territoriais (baixo sul, extremo
sul, piemontês de diamantina, região metropolitana), registramos áudio em CD de cinco
grupos, realizamos pelo menos dez reuniões com lideranças. No final do ano de 2017,
começamos a fazer o inventário dos grupos existentes na Bahia. Foram doze meses de
visitas a comunidades, fizemos um levantamento de informações dos grupos,
fotografamos em logo, fizemos um vídeo documentário desses grupos. Como dados do
inventário, temos a informação de que existem hoje em atividade vinte grupos
espalhados em oito territórios de identidade e quinze localidades diferentes, e foi
possível ainda descobrir que em vinte e seis outras localidades um dia já houve grupos
dessa manifestação. Obviamente, acreditamos que é possível encontrar alguns grupos
ativos que não conseguimos atingir neste levantamento, assim como também outras
muitas comunidades onde estes já existiram. No dia 11 de fevereiro de 2019, sob o
decreto n◦ 18.905, as Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia foram reconhecidas
como Patrimônio Imaterial do Estado.

Pessoalmente falando, para mim foi uma vitória, não só para a Fragata
Brasileira, mas para todas as Marujadas, esse registro, porque com
esse registro vai viabilizar muitas outras coisas; com esse registro
muitas outras Marujadas que estavam desativadas vão começar a se
reestruturar, então cresce essa cultura, essa manifestação cultural vai
crescendo cada dia, porque têm cidades aí que a gente nem imagina
tinha uma Marujada, essa mesmo daqui segundo Mouro, foi uma
daqui de perto que existia que veio fazer uma apresentação aqui e daí
criou a nossa aqui, e essa que a gente é oriunda será que não existe
hoje? Será que não tem algum remanescente por lá? Então com esse
registro tem 20 grupos em atividades, mas deve ter mais. Então
possivelmente a gente vai poder resgatar ou reativar muitas que estão
inativas. Então esse registro foi uma vitória [...], então vamos agora
colher os frutos dessa vitória, saber aproveitar nesse mundo, tem que
saber ser visto, mas que precisamos estar sempre em evidência sim
[...] nesse ponto tem que ser no sim, a gente precisa expandir agora,
nós não podemos mais pensar só na Fragata Brasileira nós temos que
pensar coletivo, pensar nas Marujadas, Chegança e Embaixadas, tem
que pensar grande agora. 38

Esse depoimento feito por Roque Antonio da Silva, que é um membro do


grupo de Saubara, demonstra que para os cheganceiros o que importa de verdade nesse
reconhecimento é a possibilidade que tivemos e podemos ter de agregar valores a partir
desde processo. Ter conseguido encontrar pessoas de outros lugares fazedores de uma
mesma cultura, trocar experiências, ter novos aprendizados é o importante e necessário.
É nesse balanço da maré que navegamos, tentando trazer novos atores, novos grupos.
Espalhamos a notícia de que existem ainda grupos dessa manifestação que resistem, e
isso já traz resultados. Grupos que haviam sido desarticulados voltaram a reunir-se,
retomaram a jornada de ensaios, e já estão ativos novamente.

38
Entrevista realizada na cidade de Saubara, no dia 17 de outubro de 2019.
Por entender que é também relevante perceber a existência das Cheganças em
diferentes territórios do estado da Bahia e que foram espalhadas, difundidas por meio da
oralidade, por compreender que parte da sua singular dramaturgia, musicalidade
própria, merecedora de estudos aprofundados, e ainda pelo eminente risco de
desaparecimento – devido a fatores como falta de apoios institucionais, falta de
fomento, falta de compreensão das novas tecnologias em torno do processo cultural que
vem acontecendo ao longo dos tempos – o que buscamos pela vias do ser Patrimônio é
ser reconhecidos pelo estado inserindo-nos nas políticas culturais existente. Precisamos
nos reinventar, e entendemos que a patrimonialização, se de nada servir, pelo menos
juntou pessoas que, sem esse processo, talvez fosse impossível que se encontrassem.

4.1- Os grupos de cheganças de Saubara

Como em todas as comunidades em que tive a oportunidade de pesquisar


sobre as Cheganças, em Saubara também não encontramos registros que deem conta de
uma data precisa para o surgimento desses grupos. O que temos são narrativas que
trazem evidências da secularidade dessa manifestação. São depoimentos que foram
trazidos até os dias atuais, pelas memórias coletivas das comunidades e,
especificamente por descendentes, que ainda mantêm as atividades dos grupos
permanentemente ativas. Em Saubara existem três grupos ativos: a Chegança de
Mouros Fragata Barca Nova – masculina, Chegança de Mouros Barca Nova – feminina
e o grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira. Os grupos de Mouros têm as
mesmas características nas suas apresentações, o que os diferencia é justamente a
questão do gênero na formação do grupo. E o grupo Chegança Fragata Brasileira traz
consigo apropriações de episódios regionais em suas encenações.

4.1.1- Chegança de Mouros Barca Nova – feminina

Nesse contexto de ebulição cultural, situa-se a Chegança. Mestra Aurelita


Rocha39 entende a Chegança como uma escola, ela afirma:

39
Aurelita Rocha é a mestra do Grupo Chegança Barca Nova – Feminina de Saubara
Ninguém nasce sabendo. Todo mundo que entra num grupo desse (...)
não entra sabendo. Ela vai aprender ali dentro. É uma escola aquilo
ali! Essas meninas quando entram, entram sem saber nada. Bate no
pandeiro errado e não sabe cantar. Mas, por ver a gente cantar, por
ver a gente fazer, elas aprendem. Estamos ensinando. É uma escola!
40

As Cheganças e Marujadas são grupos que integram o universo das


experiências do brincar. Possuem peculiaridades de um espaço de saberes e fazeres
pesqueiros, apresentados nas performances dos grupos de manifestações populares. A
experiência do aprender é coletiva e holística. Nascida em 1991, a Chegança de Mouros
Barca Nova Feminina, tem 50 componentes de variadas idades.
As mestras ensinam os toques no pandeiro, a performance do bailado e todo o
movimento corporal desenvolvido durante a brincadeira. Além disso, aprende-se
também o canto. Contudo, concomitantemente ao ensino das mestras, existe mais um
caminho de aprendizado: a observação.
É no observar/perceber que as marujas aprendem as coreografias e toques no
pandeiro. O saber a partir da observação é um método tradicional em comunidades
descendentes de africanos e indígenas, espaço onde o conhecimento é transmitido
oralmente, e o olhar/observar é considerado importante instrumento no aprendizado.
Significa uma transgressão nos padrões instituídos como único formato da produção de
saberes. A partir de instrumentos musicais e de um vestuário peculiar, o corpo ganha
movimento, e logo se constitui em uma cena de teatro a céu aberto. O ritual da
Chegança Barca Nova Feminina começa com os ensaios. O aviso segue de boca a boca.
A mestra Aurelita aguarda a chegada das companheiras de atividade. É ela quem vai
ajustar os movimentos, ensinar a tocar pandeiro, ensinar as músicas e ensinar o bailado.
Contudo, muitas meninas que já aprenderam também ensinam aquelas que
estão chegando, mesmo se for mais velha. Segundo Ketelen Rosário de Jesus, de 14
anos, quem a ensinou a tocar o pandeiro foi a irmã mais nova, de 13 anos. Ela nos
conta: “ela entrou primeiro do que eu, aí quando ela entrou, eu entrei também porque
minha vó chamou. Eu gostei(...) Ensino um bocado, lá na escola as meninas me
pedem”41.

40
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 14 de abril de 2018
41
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 26 de abril de 2018.
Existe uma hierarquia funcional onde cada título confere uma atribuição
específica para ser desempenhada. A general coordena o “navio”, entoando as músicas,
direcionando o movimento a ser executado, gerenciando o início e o término de cada
ato. A contra-mestra e as marujas que tocam o pandeiro. Nesta Chegança existe ainda a
família real de mouros, é uma representação do rei, suas filhas e a guarda-real. Outras
personagens aparecem no desenrolar da performance, são elas: gajeiro grande,
calafatinho, imediato, comandante, pipão e general.
A Chegança feminina conta uma história de luta. Durante todo o cortejo, é
cantada uma história do cotidiano de quem vivia ou vive no mar. O cotidiano de uma
comunidade que vive com o mar em torno da sua vida, nas mais diversões dimensões da
vida pesqueira. Contudo, a Chegança carrega a marca da guerra em seus cantos.
O vestuário carrega as cores do mar: azul e branco. As marujas chamam de
fardamento, assim como em um campo de guerra, as marujas incorporam o sentido da
função da marinha, e assumem conceitos inerentes ao serviço militar. As marujas se
vestem com camisas brancas com atalhos azuis e listras brancas, além de fitas azuis e
brancas penduradas na bata, entre um peito e o outro. Saias brancas, na altura dos
joelhos, subindo um pouco mais na coxa quando a maruja é mais nova. Meia calça
branca e sapato preto compõem a lista de indumentárias. A vestimenta das oficiais se
diferencia das marujas pelos detalhes dourados, tanto na camisa quanto na boina.

A cabeça é enfeitada com boinas azuis. Geralmente é usado um coque no


cabelo, para o posicionamento da boina. Atualmente, com a aceitação dos cabelos
crespos e blackpower, as marujas usam o cabelo solto.
Segundo a Mestra Aurelita Rocha, “o instrumento é o pandeiro e o ‘gogó’”!
Nessa afirmação, percebemos que a mestra percebe a voz como instrumento musical. Os
pandeiros se constituem como uma das principais simbologias da Chegança feminina.
No interior da Chegança feminina, a hierarquia independe da idade biológica. Vê-se
então, a aplicabilidade de uma hierarquia baseada nas experiências acumuladas ao longo
do tempo de participação, contudo, não se trata de uma regra fixa. As regras são
constituídas seguindo o fluxo, e as conjunturas presentes naquele momento. Podemos
ver em alguns momentos, adolescentes e até crianças ensinando toques de pandeiro,
para as mais velhas, biologicamente falando.
A Chegança constitui espaços de aprendizagem, a partir da transmissão do
conhecimento oral, como também da experiência estética. Contam também com a
observação, mas é de boca a ouvido que se aprendem as músicas e os toques. As
marujas são mulheres que adentraram as veredas da transgressão, ao lançarem-se em
empreendimentos que tradicionalmente são feitos por homens. E nesse universo
masculino, as marujas aparecem como movimento de mulheres, ocupando o espaço da
rua com cânticos, bailados e belezas, nos ensinando a história de seus/suas ancestrais,
delas mesmas, e de toda comunidade pesqueira de Saubara.
4.1.2-Chegança De Mouros Fragata Barca Nova – Masculino

Não se sabe bem ao certo, mas encontramos na comunidade de Saubara


narrativas de que a Chegança Barca Nova Masculina foi a pioneira no município, e a
partir desse grupo foram formadas a Fragata Brasileira e a Barca Nova Feminina.
Nelson Araújo (1986) anotou o seguinte sobre esse grupo: “a Chegança de Mouros de
Saubara é, do gênero, uma das menos “contaminadas” entre as existentes na Bahia,
pouco tendo admitido, na sua estrutura dramática e nos seus cantos, que não seja
específico dessa criação brasileira de raízes ibéricas”. (ARAÚJO, 1986 p. 98). Edmundo
Passos de Jesus, conhecido como Mouro, é, atualmente, um dos mais antigos
guardadores dessa memória no município. São os relatos de Mouro que permitem
refazer possíveis caminhos dessa brincadeira até que ela se fixasse em Saubara, às
margens da Baía de Todos os Santos, e como ela vem se mantendo viva e ativa nas
celebrações dedicadas ao padroeiro da cidade, São Domingos de Gusmão, todo dia 4 de
agosto:

foi passado de pai pra filho, de pai pra filho, de pai pra filho, tanto que, meu
tio Caetano, que era irmão da minha avó, ele era o contramestre e ele me
falava dos antigos que faleceram que eram mesmo da Chegança, então ela é
muito antiga mesmo, a única coisa mesmo que eu tenho de oficial é que ela
veio de Mar Grande, havia uma relação, naquela época uma relação de
amizade muito forte com os pescadores da ilha com os pescadores de
Saubara e numa dessas conversas o pescador vinha de lá pra cá e ia pra lá,
essa Chegança existia lá em Mar Grande, lá... aquela coisa de 150, 200 anos
atrás, e aí Saubara.... eles foram lá, foram de canoa, remando, no remo,
trouxeram a Chegança pra aqui, fizeram uma primeira apresentação aqui
em Saubara e o saubarense amou a Chegança, o que eles fizeram42

42
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
Edmundo Passos de Jesus “Mestre Mouro” 43 nasceu em Saubara, dia 07 de
março de 1952 e lidera a Barca Nova Masculina há 40 anos. O momento da iniciação dele
foi casual, mas a relação com a tradição na família foi fator decisivo para que dedicação e
o comprometimento fossem crescendo com o tempo. O amor pela Chegança é uma herança
do pai, que faleceu cheganceiro aos 82 anos. Ele conta que saiu a primeira vez quando o
Bahia foi jogar em Saubara pela primeira vez. O pai e seus dois irmãos estavam no cordão.
A cidade em grande festa. Ele acompanhou a Chegança a partir dessa data e foi quando
aprendeu a gostar de Chegança:

[...] eu tinha o maior amor em sair em Chegança... o meu amor era tão
grande, mas era principalmente porque meu pai estava ali dentro, então eu
tinha aquela alegria muito grande de estar ao lado dele, fazendo aquele
grupo folclórico, que eu via que dava uma satisfação. Eu, quando amanhecia
o dia de domingo, que era o dia da nossa saída, dia 4 de agosto, que o dia
clareava, meu pai já estava sentado numa cadeira com a roupa dele, ele
mesmo arrumando as divisas, era botando cada enfeite em seu devido lugar,
então aquilo realmente mostrava o amor que ele tinha.44

A Barca Nova é a encenação de uma desavença entre oficiais de uma marinha


de guerra portuguesa e oficiais turcos, como se fosse um encontro entre embarcações de
países inimigos em alto mar. Sobre a origem desse tipo de manifestação, como as
cheganças e marujadas, ele se lembra de um senhor, seu Castro, já falecido, que lhe
contava sobre “as questões dos mouros” que se soma ao que o pai lhe explicava sobre o
texto que estava sendo falado:

(...) basicamente, quando meu pai me falou da Chegança, me contou


como se deu o encontro entre a fragata e os mouros, né, houve uma
cerração muito forte, por acidente a barca, com esses marujos,
invadiu a marca das 200 mil milhas náuticas da Turquia. Isso fez com
que houvesse uma disputa muito grande, aquela rivalidade e que
acabou gerando um duelo entre os mouros da Turquia e os marujos
da fragata.45

43
Edmundo Passos de Jesus conhecido como Mouro é o Mestre do Grupos Chegança de Mouros Fragata
Barca Nova
44
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
45
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
E essa narrativa permanece viva nos mais diversos cantos do solo baiano,
graças à força desse povo que enfrenta as mais diversas dificuldades para manter vivas
as suas tradições. Seu Mouro conta que nunca teve acesso a apoios formais e recursos
financeiros. Essa sempre foi uma dificuldade presente, segundo ele. Mas, ao mesmo
tempo, havia uma dedicação maior:

(...) a dificuldade financeira existia, mas o amor das pessoas pelo


grupo era maior, imagine, naquela época, pra botar uma Chegança
na rua... quando eu fiz a minha parte eu tive que ir pra rua pedir
esmola, entendeu? Djalma, Tom de rosinha e um rapaz chamado
Pepito, falecido. Nós saímos de casa em casa pra ir buscando cada
centavo e ir juntando aquele dinheiro e comprar a indumentária, que
foi uma calça de colégio, não sei se lembra, aquelas calças azuis, que
era de colegial, dois bolsos na frente, era a mais barata que tinha, a
calça branca era quase o dinheiro que a gente tinha, e aí nós
chegamos na loja, eu e meu pai e lá tinha essas calças azuis, aí eu me
lembrei que a marinha também vestia azul, ih, rapaz, pra ir pra rua
tem que ser blusa branca, que já tá pronta e as calças azuis, e nós
saímos com as calças azuis. [...] Então... era difícil, a dificuldade
para conseguir a indumentária, mas a quantidade de pessoas que
participava dava aquela influência46

São essas lembranças de Edmundo Passos de Jesus que garantem a presença


viva da Chegança Barca Nova Masculina nas festas dedicadas a São Domingos de
Gusmão. Devidamente caraterizados como marujos e oficiais de alta patente, a
participação dos mouros com suas bombachas, bata e capa em vermelho reluzente,
desfilam pelas ruas da pequena Saubara todo dia 4 de agosto.
Concentram-se na Rua da Rocinha, onde reside a maioria das componentes
do grupo, e partem para a Igreja Matriz de São Domingos de Gusmão. A música de
saída é a Marcha de Fogo:

Viva o Divino São Domingos47


E a nau que navegamos (2x)
Prepara a toda marujada
Do primeiro ao derradeiro
Ou vamos vê aonde mora
São Domingos padroeiro
Alegres todas as flores (2x)
Com prazer vamos cantar

Viva nosso padroeiro

46
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
47
Conforme orientação religiosa, a palavra “Divino” é usada para referenciar Deus, tal qual na Chegança
Fragata Brasileira, também pesquisada, é cantado “Viva o Divino Sacramento”. Ainda nesta pesquisa, na
música Virgem do Rosário, é cantado “Ao Divino Sacramento”.
Louvores, já
São Domingos de Gusmão
Louvores, já
Foi quem nos deu a primazia
Louvores, já
Para brincar neste cordão
Louvores já

Depois de receber a benção e agradecer, saem da Igreja e descem a colina


cantando. Nesse momento, as músicas são escolhidas aleatoriamente, podem variar de
um ano para o outro. Quando param, começa o “Combate”, que é a apresentação da
“questão”, são as cenas que compõem a “luta”. O combate é, justamente, o desenrolar
da história.

Moça baiana chegue à janela (2x)


Vem vê os marujos oh meu bem que já vão pra guerra (2x)

Mouro testemunha a falta de atenção do poder público local às manifestações


culturais. Segundo ele nunca houve um apoio sistemático, mas havia algum apoio à
indumentária, em momentos anteriores.

A administração pública de Saubara, eu até tenho que dizer o seguinte, no


que tange à questão... isso nós temos que frizar, no que tange à questão
cultural, pelo menos daquela que eu faço parte, só piorou. Teve alguns
momentos, com alguns prefeitos que passaram, por exemplo, a Barca Nova
teve ajuda de três administrações, que não foi uma gigante ajuda, mas pelo
menos a nível de indumentária nós tivemos [...] então eu acho o seguinte, é
uma coisa triste, porque eles falam muito em tirar a juventude do mundo
errado e o folclore é uma parcela importante disso, mas no entanto, ninguém
faz nada, ninguém move um dedo pra buscar uma forma de tirar, eu diria o
seguinte, você tem um grupo com 30 componentes, imagine se um poder
público chegasse e dissesse assim, olhe, eu vou tirar aqui do orçamento da
cultura, eu vou tirar aqui X valor pra dar de incentivo às pessoas pra
ficarem ali juntas ensaiando, fazendo tudo direitinho, será que ela não
estaria melhor? Estaria, claro. Mas as pessoas... é aquela história, cultura
parece não dar retorno e os homens só se preocupam com o retorno, mas é
isso mesmo. Tivemos melhores momentos, mas esperamos que vá
melhorando daqui pra frente.48

Como líder do grupo, o senhor Mouro relata que, nos anos mais recentes, tem
enfrentado dificuldades com a motivação das pessoas para o engajamento no grupo: “o
cara que bagunçava muito a gente não permitia, hoje eu tô querendo procurar os quatro
bagunceiros e não acho”, diz. Ele atribui boa parcela disso aos interesses atuais.

Eu tinha 60 componentes, mas porque eu tinha 60 componentes? Porque


naquele tempo não tinha televisão, se tinha, não tinha em todas as casas,
naquele tempo não tinha essa diversão, não tinha celular, não tinha internet,
não tinha facebook, aí as pessoas não tinham o que fazer, aí você chegava
num lugar: bora ensaiar a Chegança!49

Mas é perceptível o desejo do seu Mouro por uma retomada. E essa


perseverança vem, justamente, do envolvimento que ele tem. Mouro relata que no
primeiro grupo que saiu, o comprimento do cordão era tão extenso que os de trás não
conseguiam ouvir qual a música que estava sendo “puxada”, o que dava um
descompasso... “aí tinha que ficar uma pessoa no meio pra apanhar do meio e levar pra
lá, pra não ter problema, então era uma marujada gigantesca”, relembra. Atualmente,
para respeitar os critérios do interesse em aprender os toques do pandeiro, as falas e as
músicas, critérios fundamentais para o ingresso no grupo junto com o pacto do bom
comportamento, Mouro agregou ao seu cordão sete componentes de fora de Saubara e
algumas crianças... “(...) seria bom terem uma Chegança de criança [...] mas eu tenho
criança pra complementar o número de pessoas porque o pessoal tá a fim mesmo é de
ficar olhando pro celular, os jovens”, complementa.
Ao longo do tempo, o texto da encenação, as músicas, o ritmo dos pandeiros
têm sido mantidos. No entanto, o mestre cheganceiro sentiu necessidade de fazer ajustes
no modo como as palavras são pronunciadas:

Por exemplo, a palavra é Inglaterra, eles falavam Ingalaterra, então o


falajar daquela época era uma coisa assim, meio complicada, além disso... e

48
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018
49
Idem
a gente vai tendo que ir mudando as coisas, porque o folclore é
antigo, mas não precisa também ser... aquilo era pro pessoal daquela
época, cem, cento e vinte, cento e trintas anos atrás, eram
praticamente analfabetos. E a gente aos poucos vai, conversando com
um, ouviu uma música lá no lavador, gostei daquela música, mas
achei que aquela frase não foi legal, eu aí fico com a música e troco a
frase, de repente, o pessoal do lavador vê uma frase bonita cá na
Chegança da Barca Nova e acha que tem alguma coisa pra mudar
que fica legal e aí...50

Quanto às vestimentas, embora sofram pequenas alterações como a cor das


calças ou o modelo da camisa dos marujos, a identificação relacionada a um pelotão da
marinha é mantida. O mesmo acontece com os representantes da corte real da Turquia.

4.1.3-Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, é aquela em que eu aprendi e


da qual participo até hoje na função de contramestre. Esse grupo se aproxima mais de
uma marinha de guerra brasileira que teve função de proteger as terras baianas no
período em que aconteceram as lutas de independência da Bahia.
O grupo “Chegança dos Marujos Fragata Brasileira”, segundo relatos dos
mais antigos, tem por volta de 80 anos, acreditamos que tem mais de 100, mesmo tendo
sido um dos mais importantes movimentos culturais da cidade de Saubara, ficou durante
muito tempo desativado, existe uma série de narrativas que apontam entre 24 e 27 anos.
Nunca houve participação efetiva de mulheres (entendendo efetiva aqui como

50
Entrevista realizada na cidade de Saubara em 15 de abril de 2018.
participação nas apresentações no grupo), isso devido ao fato de que passado não havia
mulheres nas forças armadas, um cenário que vem sendo mudado em várias
comunidades, onde surgem grupos femininos. As mulheres na Fragata Brasileira
assumem o papel de colaboradoras na organização das atividades que são desenvolvidas
pelo grupo. Em 2013, logo após a realização do I Encontro de Cheganças e Marujadas
da Bahia, um grupo de mulheres (filhas, irmãs, esposas, primas) resolveu fazer uma
versão feminina do grupo, ensaiaram por alguns dias, mas a ideia não seguiu devido a
uma série de fatores.
O grupo Fragata Brasileira, atualmente é composto por 38 membros
efetivos, aqueles que estão sempre atuando, são cinco oficiais (contramestre,
comandante, general, piloto e guarda marinha), um porta-bandeira, um padre capelão e
trinta e um marujos. Dentre os marujos, há destaque para o primeiro e segundo guias,
primeiro e segundo gajeiros, ourives e calafatinho. A formação é feita com duas filas
(cordão) compostas pelos marujos e no centro do cordão ficam os oficiais, porta-
bandeira, e padre capelão. No comando da Marujada fica o contramestre, que junto com
os guias têm a responsabilidade de iniciar os cantos e conduzir o bailado.
Algumas cantigas da “Chegança” contam a história de uma marinha de
guerra genuinamente brasileira que participa da guerra de independência da Bahia, e
pode ser verificado em algumas canções “Vamos companheiros / Vamos lá chegar
/Leva essa bandeira /Lá em Pirajá”.
Pirajá é o local onde aconteceu a última batalha que resultou na expulsão
definitiva de holandeses e portugueses de terras brasileiras. Há quem diga que aqui na
Bahia de fato aconteceu a Independência do Brasil. E no imaginário das pessoas de
Saubara foi possível reproduzir este momento histórico, ludicamente através da
Marujada.
Em um trecho de outra canção é possível compreender as razões da
localização da igreja de São Domingos em Saubara:

“Glorioso São Domingos /


Traz a frente para o mar /
Pra socorrer todo aquele /
Que por seu nome chamar”.

Dizem que a Igreja de São Domingos foi erguida lá, no “alto da freguesia”, de
onde era possível ver toda a movimentação dos inimigos que, possivelmente atacariam
cidades importantes naquela época. Saubara era uma das portas de entrada para o
recôncavo e, portanto, sua localização era muito estratégica, protegendo a Baía de
Todos os Santos contra os invasores.
Há cantigas que relatam também acontecimentos que se passam dentro das
embarcações, que diferem as Cheganças de Marujos de algumas Cheganças de Mouros.
A inexistência de qualquer episódio que trata das lutas entre Mouros e Cristãos, nas
Cheganças de Marujos é evidência de que esta manifestação é reelaborada no Brasil, a
partir de experiências vividas nas travessias marítimas e fluviais. Ainda que
encontremos nas Cheganças de Mouros canções também existentes nas Cheganças de
Marujos, a guerra seja ela de que nível for, é sempre uma das razões para a criação e
existência das Cheganças como elas são hoje. Em todos os grupos de Mouros ou de
Marujos encontraremos uma cantiga nesses termos.

Moças baianas
Cheguem às janelas
Venham ver os Marujos
Oras meu bem
Que vão pra guerra.

Toda a história é contada através de canções que são acompanhadas por


uma orquestra de pandeiros tradicionais, feitos com aro de madeira de jenipapo,
chocalho feito com lata de alumínio e encourados com couro de bode. São cerca de 35
cantigas entoadas em sete ritmos diferentes, basicamente esses ritmos tem apenas três
denominações: Passeio é a forma mais lenta em que são tocados os pandeiros, e como o
nome já aponta esse ritmo conduz um movimento de caminhar lento um “passeio”, a
macha é um ritmo intermediário, sua maioria apenas é executado quando o grupo está
parado, nesse ritmo fica mais evidente na expressão corporal o movimento do mar, o
terceiro ritmo, denominado de marcha de fogo, é o mais frenético, e é executado quando
o grupo está parado, mas a sua principal característica é dar a possibilidade o
deslocamento do grupo, é nesse ritmo onde a dança é mais evidente, devido ao bailado
que é executado.
As cantigas desse grupo são as mesmas cantadas ao longo dos anos, não são
criadas novas canções. O que temos é um repertório de identidade contínua, que sofre
modificações devido à forma de transmissão oral, algo que é muito comum em
manifestações tradicionais. O corpo e a dança são elementos fundamentais para a
sintonia e execução das encenações. Todo movimento corpóreo lembra o movimento
das ondas do mar, o movimento que é feito pela embarcação. É impossível dissociar
canto, dança e música. É assim que viajamos por um mar ora revolto, ora em calmaria,
que nos leva e traz depois de uma travessia também imaginária.
Este grupo tem como um de seus fundamentos apresentar-se na
comunidade de Saubara pelo menos duas vezes no ano. Primeiro, no dia 06 de janeiro,
na festa de Reis, e depois, no dia 04 de agosto, na festa do padroeiro da cidade, São
Domingos de Gusmão. Importante salientar que desde a sua reestruturação, em 1978,
sua aparição nos festejos foram ininterruptas. Em outras ocasiões é possível ver o grupo
se apresentando na comunidade, como na festa de Santo Antonio, de São Pedro, Festa
da Santa Cruz, e depois de 1989, quando Saubara foi elevada à categoria de município,
inúmeras vezes a convite dos representantes políticos local o grupo também se fez
presente principalmente para os festejos de aniversário de emancipação política
Não temos informações de quando o grupo foi criado, porém Angélica Maria da
Silva (2007), em sua dissertação de mestrado realizado na Universidade Estadual da
Bahia, colheu o seguinte depoimento: “segundo depoimento de “seu” Alfredo de Jesus,
o seu pai, Ângelo Cristóvão de Jesus, foi mestre da Fragata Brasileira. Nasceu em 19-
11-1893 e faleceu em 1973 aos 80 anos” (SILVA, 2007. p.58). Uma análise rápida deste
depoimento nos remete a alguém que nasceu no final do século XIX e participou do
grupo, talvez na terceira década do século XX, isso daria uns 89 anos. Se pensarmos
qualquer formação do grupo anterior a esse período, teríamos com certeza um grupo
centenário. O que temos hoje de dados concretos é que a partir de 1977, houve uma
iniciativa de reconstituição do grupo, e que em 04 de agosto de 1978, a formação que
existe hoje fez sua primeira apresentação, como relata o Professor Nelson Araújo:

a fragata brasileira de Saubara, denominação formal da marujada,


velho brinquedo saubarense que por mais de vinte anos permaneceu
inativo e reviveu em 1978, graças aos esforços dos moradores que
ainda retinham a lembrança das suas “rezingas”, numa exemplar
mobilização sem a ingerência de estranhos à comunidade (ARAUJO,
1986. p. 97).

Desde então, são 41 anos de atividades ininterruptas, tendo havido, pelo


menos uma apresentação, no dia 04 de agosto. Esse novo momento vivido pela
Chegança Fragata Brasileira vem sendo marcado por vários episódios, desde a proibição
de entrar na igreja a inusitados convites para participar de atividades festivas em
terreiros de candomblé. Neste intervalo de tempo, realizamos várias apresentações em
comunidades circunvizinhas, como Santo Amaro, Cachoeira, Maragogipe, Salvador,
Acupe, Cabuçu, Itapema, Cruz das Almas, São Tiago do Iguape, Cairu, cidades
distantes como Taperoá, Jacobina, Bom Jesus da Lapa e Paratinga, em outros estados,
como São Paulo e Pernambuco, em Brasília e até em Lisboa, Portugal.
A retomada do grupo aconteceu a partir do momento em que as crianças e
jovens do passado reuniram-se para rememorar a Chegança. Eles decidiram juntar-se
para colher informações acerca do grupo e proporcionar o seu ressurgimento. Nesse
momento entra em ação a mulher, as esposas, filhas e mães, que tiveram um importante
papel de ajudar a lembrar das canções, dos ritmos. Elas ajudaram a decidir como seria a
roupa, pensaram em cada detalhe das roupas, pois queriam fazer uma distinção do outro
grupo que existia, em outro bairro. Foi um longo ano de trabalho e de muito esforço
para colocar o grupo na rua. Enfim chega agosto de 1978 e o grupo Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira ressurgiu e fez a sua primeira aparição. Já em 1979, aquelas
pessoas envolvidas decidiram constituir o grupo em uma associação jurídica. Fizeram
ata de fundação, mas não conseguiram registrar nesta ocasião. Saubara era distrito de
Santo Amaro, e havia uma maior dependência administrativa, de modo que eles não
conseguiram fazer o registro. Mas as ideias das mesas diretoras do grupo foram levadas
a sério, e a cada três anos uma nova eleição era feita e uma nova diretoria assumia os
trabalhos. Somente em 2008 foi criado o estatuto da entidade, e juntamente com a ata de
fundação datada de 1979, e a ata de eleição daquele ano é que foi feito o devido registro
em cartório da associação. O grupo tem uma sede própria, situada na rua Boca da Mata,
05. O terreno onde está localizada a sede da associação foi adquirido através de um
recurso que o grupo ganhou quando fez uma de suas apresentações em Salvador, no
início da década de 80. Depois da compra do terreno, foram feitos inúmeros mutirões.
Foram os próprios marujos que construíram a sede. No meio dos integrantes tinha
pedreiros, carpinteiros e todos contribuíram de certa forma. As pedras utilizadas na
alvenaria foram tiradas da maré, as madeiras, os próprios integrantes tiraram no mato,
para o concreto as mulheres catavam pedras miúdas e traziam na cabeça, o espaço foi
construído sobre um terreno de 5,5m x 11m num total de 60,5m 2, tendo apenas um
banheiro. O ano de 1983 foi de muito trabalho para essas pessoas que viram seu sonho
sendo realizado. Em 04 de agosto de 1984 a sede foi inaugurada. Esta permaneceu
durante 30 anos da mesma forma, desde sua construção. Servia de espaço para as mais
diversas atividades, de sala de aula, a festas de aniversários, casamentos, batizados. Lá
também se fazia uma discoteca, que servia para conseguir recursos para a manutenção
da mesma. Somente no ano de 2014, numa imitação dos fazeres do passado, o grupo
atual resolveu fazer uma reforma na sede, onde foi construído um pavimento superior,
dando assim uma maior possibilidade de uso ao espaço. Hoje é possível encontrar uma
exposição permanente de fotografias do grupo além de possibilitar que a comunidade
em geral utilize o espaço de maneira mais adequada.
Há uma estreita relação dessa manifestação com outras manifestações da
cidade como o Bumba-Meu-Boi, Burrinha, Caretas, Caretas no Mingau, Termo de Reis,
Reisado, Samba de Roda, dentre outras. Isso ocorre porque muitas das pessoas que
integram a Chegança também participam de outros grupos culturais, e o espaço tem
também essa característica de agregar outras manifestações, pois as pessoas usam para
fazer suas reuniões, ensaios e festas. Numa parceria com a Associação de Sambadores e
Sambadeiras do Estado da Bahia, a sede da Chegança passou também a ser chamada de
Casa do Samba, proporcionando assim que muitas ações do samba de roda fossem
desenvolvidas no espaço e pela Chegança (associação).
Uma das lideranças importante de se destacar neste grupo foi a minha tia
Joselita Moreira da Cruz Silva – Tia Zelita/Jelita. Faleceu no dia 24 de março de 2016,
ano em que completaria 80 anos, boa parte deles dedicados as grupo Chegança Fragata
Brasileira.

Os momentos mais importantes da vida de Dona Zelita se confundem


com os da Marujada. Ainda jovem, vivia em Salvador e trabalhava em
casas de família. Em uma das visitas a Saubara, para ver a sua própria
família, assistiu a saída da Chegança na Festa do Padroeiro.
Decidiu que ia levar “a brincadeira” para Salvador. E assim Zelita o
fez, mesmo contra a vontade da mãe. Tinha amigos influentes como
Gilberto Sena e Nelson Araújo que puderam ajudar. Se houvesse na
época a função de produtora cultural, empresária ou promoter cultural,
um desses, provavelmente seria o “cargo” dessa mulher visionária.
Não foi fácil. Ela, mulher, negra e analfabeta, sofreu todo tipo de
preconceito. Preconceito que veio dos que supostamente, eram os seus
e poderiam estar lado a lado com ela. “Eu fui muito criticada. Diziam
que com tanto homem na Saubara, nenhum tinha tirado a marujada
daqui. Aí eu disse, está bem! E continuei fazendo o que eu achava que
devia fazer. Aí, Eurico, disse, você pode levar a Chegança lá de cima,
a de cá de baixo, não. Aí, arrumei tudo e fomos. A primeira vez, levei
no Pelourinho, a segunda vez no Campo Grande, a terceira vez
também e a 4ª vez levei na marinha, no dia 13 de dezembro”.
O grupo não cobrava cachê, mas, quando havia possibilidade, pedia
em troca itens necessários à própria manifestação. “Fiz passeio para
comprar calçado, fiz passeio para comprar roupa, fiz passeio, comprou
aquele terreno”.
Zelita conta que os Marujos não queriam ir para Salvador, com medo
da Marinha. “Aí, eu acertei com Cid Teixeira, que foi na marinha
comigo, para pegar o papel, porque sem o papel, eles não viriam, aí
ele bateu o papel, eu não me lembro do nome do almirante”.
As primeiras articulações devem ter acontecido no começo da década
de 80, como mostram os recortes de jornal na época [ver álbum de
recordações ao final da publicação], que inclusive traziam a previsão
de que aquele grupo “não duraria mais 20 anos”.
[...]

Essa inspiração está personificada na figura de Dona Zelita que,


recentemente, foi reconhecida pelo grupo como madrinha da Fragata
Brasileira. Foi uma conquista dela. E como boa madrinha, não poupa
conselhos: “O poder público contribui muito pouco. Agora está sendo
formada Chegança mirim e outra Chegança feminina. Tomara que a
chegança mirim vá em frente, porque é outra forma deles terem amor,
e já tem alguns meninos na chegança de adultos. E eu espero que não
acabe, porque eu adoro essa brincadeira, você não sabe como eu sou
apaixonada. Eu queria que os jovens se interessassem, para
aprenderem, para não acabar, porque Rosildo está nessa chegança
desde os três anos de idade e hoje ele luta tanto para essa marujada,
porque é apaixonado por ela também”. (GUMES e ROSÁRIO, 2015.
p, 59).

Uma observação é necessário ser feita sobre a vida de Zelita e a Chegança


Fragata Brasileira. Primeiro, a ressalva de que o grupo desde a década de 80, já havia
externado e publicado sua importância para a manifestação, dando desde então para ela
o título de madrinha. Como podemos ver, Nelson Araújo já nos apresenta esta
designação: ... Estrutura que é um modelo para a defesa da cultura popular. Duca, o
presidente; Zelita, a “madrinha”; Zinoel, o General; Betinho; o Padre Capelão. Quem
não os conhecem em Saubara... (AUTOR, 1986, p. 97). Posso assegurar que não houve
uma sequer apresentação que Zelita não estivesse sempre ali, vestida de branco, e
orientando que mares seguir. O que seria da Marujada de Saubara, se não fosse a
participação de Jelita, como Exu abriu os caminhos, dando ao grupo a visibilidade que
hoje desfruta.
Ao se aproximar o mês de agosto, o grupo já começa sua mobilização.
Todos os sábados do mês de julho há reuniões para a realização dos ensaios. É algo que
já está dentro da ritualística, não é necessário avisar sobre esta atividade. O
contramestre é o responsável por conduzir os ensaios, fazer as observações sobre roupa,
sapatos, tudo aquilo que será necessário para o grupo ficar pronto para o grande dia. As
pessoas que são mais ligados ao calendário da igreja, responsabilizam-se por saber
horário da missa, que geralmente, acontece às 10 horas na Igreja Matriz (mas, já houve
anos de mudança), outros trazem notícias sobre convites para locais de exibição, cada
membro se responsabiliza pelo objeto que vai usar (pandeiro, espada, martelo, maleta,
bandeira), há uma sincronia necessária para que tudo ocorra bem. É momento de
lembrar-se das canções, aguçar os ouvidos, afinar o instrumento, avaliar as condições
das roupas, sapatos, cinto, quepes (chapéus). Os ensaios servem, antes de qualquer
coisa, para a preparação comportamental do dia da apresentação. O 04 de agosto é
sagrado para este grupo, precisamos estar impecáveis em todos os sentidos. É preciso
preparar-se para sermos marujos de fato, precisamos transmitir para a comunidade o
nosso prazer de sermos cheganceiros. Como sempre dizemos, chova ou faça sol, iremos
no dia para as ruas. Estamos cada ano assumindo a responsabilidade de apenas serem
necessário os nossos esforços para que tudo aconteça. Prezamos pela nossa autonomia
na realização desta atividade, quando decidimos fazer alguma festa, tudo é feito com
contribuição dos membros.
Na manhã do dia 04, nos reunimos na sede do grupo às oito horas, antes de
seguirmos, fazemos o primeiro canto:

Puxamos amarra/
Com muita alegria/
Para festejar/
Hoje neste dia.

Ô meu São Domingos/


Nos queira ajudar/
Para o vosso dia/
Nós o festejar.

Só então saímos da rua Boca da Mata seguindo pela praça Jaime Leoni, Rua
Alfredo Bitencult e Rua da Matriz cantando:

Vamos pra Igreja/Vamos pra Igreja


Fazer devoção, fazer devoção
Para render as graças/ para rendar as graças
Ao nosso Gusmão/ ao nosso Gusmão

Ô meu São Domingos/ ô meu São Domingos


É a flor dos Anjos/ é a flor dos anjos
Hoje neste dia/ hoje neste dia
Tão alegre eu Canto/ tão alegre eu canto

Meu São Domingos neste dia/


Neste dia de Alegria

Glorioso São Domingos/


Traz a frente para o mar/
Pra socorrer todo aquele /
Que por seu nome chamar

Glorioso São Domingos/


Consolai meu padroeiro/
Aceitai a romaria /
Desse pobre marinheiro/.

Em determinado momento muda-se a cantiga, numa outra fazemos um


convite para toda a cidade se alegre conosco.

Alegre todas as flores


Alegres todas as flores
Conosco vamos cantar
Viva ao nosso Padroeiro

Louvo viva

Glorioso São Domingo/ Louvo viva


Foi quem teve a primazia/ Louvo viva
Já recebeu seu Rosário/ Louvo viva
Das mãos da Virgem Maria/ Louvo viva

Temos de chegar na Igreja de São Domingos para aqueles marujos que


desejar possam participar da missa, alguns mais católicos já nos aguardam na Igreja. Ao
chegar no início da Rua da Matriz, paramos de tocar e marchar, a ladeira é muito
íngreme, fazemos parte do percurso andando, mas tão logo vemos a igreja voltamos ao
nosso ritmo e canto:

Como estar bonito o alto da freguesia/


Como estar bonito o alto da freguesia/
Onde se festeja a Pureza de Maria/
Onde se festeja a Pureza de Maria

Que cheiro de cravo que cheiro de flor


Que cheiro de cravo que cheiro de flor
Rogai a Maria pelo pecador
Rogai a Maria pelo pecador

Ao se aproximar da igreja, e ao som do apito do contramestre para o canto,


aguardamos a missa terminar. Antes da bênção final, somos convidados a adentrar a igreja, onde
fazemos a reverência.

PARTE I
Refrão
Deus vos salve casa santa (2x)
Aonde Deus fez a morada
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada (2x)

Dai-me licença senhores (2x)


Hoje é um dia necessário
Publicar grandes louvores
À mãe de Deus do Rosário (2x)

Com seus joelhos postados (2x)


Maria com grande amor
Já recebeu o seu rosário
De joelho o pecador (2x)

No trono dessa matriz (2x)


Embora se ver amada
Onde se representa
Meu Jesus sacramentado (2x)

PARTE II
Refrão
Ô minha virgem do Rosário
Nós somos naufragrantes
Nós escapamos de morrer
Neste mar inconstante (2x)

Puxamos na ponta de fora


Deu grande pé de vento
Nós prometemos uma romaria
Ao Divino Sacramento (3x)

Chamamos pelo vosso nome


Logo o tormento passou
E o vento quebrou a fúria
E o mar lento ficou (2x)

PARTE III

Viva o Divino Sacramento


No “a nau” que navegamos

Glorioso São Domingos


Traz a frente para o mar
Pra socorrer todo aquele
Que por seu nome chamar

Glorioso São Domingos


Consolai meu padroeiro

Aceitai a romaria
Desse pobre marinheiro
PARTE IV

LOA I ( declamada)
Botai minha galera n’agua
Broqueando o mar foi ao fundo
Eu chamei por São Domingos
Eu vi socorro no mundo
A divina providência
Socorro nos veio dá
Estamos em porto seguro
Marujo toque a bailar

Bravo, bravo
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)

LOA II (declamada)
Eta marujada – Pronto meu general
O anjo São Gabriel
Do céu trouxe uma embaixada,
Que Maria Imaculada
Foi perfeita mulher,
Nasceu tão firme na fé
Que de nada se assustou,
Veio o anjo do Senhor
Desceu do céu o encanto
E o véu divino encarnou

Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)
LOA III (declamada)

Nasce o sol e rompe a aurora


Que hoje é um tão venturoso dia,
Nasceu no ventre de Ana
Uma linda Rosa neste dia,
Esse nosso calafatinho
Que traz o vosso cordão composto,
Vamos louvar e saudar o dia 4 de agosto.

Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)

LOA IV (declamada)
Adeus praia de cascata
Adeus cidade de Santo além
Adeus torre de Belém
Dos pombados Pará
Adeus cidade querida
Adeus querida Lisboa
Adeus a quem de te me aparto
Contra-Mestre mande a proa.

Bravo, bravo.
Hoje que dia de tanta praça de tanta alegria
Aqui viemos louvar São Domingos neste dia (2x)

PARTE

Que bravo, que bravo


Louvores, aplausos, louvores, aplausos

Esta é talvez a mais emocionante das partes da marujada, momento onde a


comunidade atenta presta atenção e se emociona conosco, ouvimos o som do pandeiro e
as vozes ecoarem dentro da igreja, tomando todo o espaço, numa perfeita sonoridade, é
quando sentimos que somos todos marujos de verdade, os bons espíritos se encontram,
nos preparando para as batalhas que virão. Não precisa ser católico, budista, protestante
ou do candomblé ou de quaisquer outras religiões, esse momento é revelador de paz.
Terminado a apresentação, saímos da igreja aos aplausos de todos os presentes,
aguardamos na porta para cumprimentar as pessoas e depois seguimos mar a fora, num
navegar imaginário que nos leva e nos traz, nosso corpo se movimenta como numa
embarcação, reproduzindo o movimento das ondas.

É bastante comum neste dia recebermos convites para ir a alguma casa onde
foi feito um almoço ou será servido um lanche, uma bebida. Então, depois da igreja, não
se tem um itinerário fixo, seguimos a maré. Em cada lugar onde paramos fazemos uma
encenação, as vezes fazemos uma rezinga, depois de sermos servidos fazemos o
pagamento, que nada mais é do que cantar a cantiga pedida pelo dono da casa, e em
seguida cantamos uma canção de despedida:
Adeus, adeus gente até um dia
Adeus, adeus gente até um dia
A mãe de Deus do Rosário
É nossa guia

Vamos dá a despedida/
Que de cá já vou marchando/
Adeus praia de fama que me aparto chorando.

E isso se repete a cada lugar onde paramos. Ao longo desses anos muitos
dos membros morreram, como é natural acontecer conosco, seres humanos mortais, e
sempre fazemos homenagens para essas pessoas que nos deixaram. Em agosto
visitamos sempre alguma casa para saudar a família numa maneira de dizer que aquela
pessoas que não se encontra mais entre nós foi importante para o grupo e que seu legado
continua. Cantamos sempre a cantiga preferida da família.
O grupo atualmente é formado por pescadores, professores, pedreiros,
pintores, músicos, fotógrafos e estudantes. Uma variedade de profissões que em certos
momentos são requeridas para colaborar com a manutenção do espaço. Participam do
grupo pessoas de diferentes idades. O mais jovem participante é Juão Miguel Ribeiro do
Rosário, meu filho, que tem 13 anos de idade. Desde os seus três anos repeti com ele o
que meu pai fez comigo, levei-o para frequentar o espaço, participar dos ensaios,
ensinando-o a tocar e cantar. Desde então nos acompanha em atividades do grupo, não
sei se ele continuará com as atividades do grupo futuramente, espero que sim, mas
tenho a esperança que o legado seja continuado e um neto de Juão possa saber contar
essa história. O mais velho é Mateus Ribeiro da Silva, com 83 anos de idade. Um dos
fundadores do grupo, hoje uma das personalidades que contribuem para o processo de
transmissão dos saberes e fazeres da Marujada. São pessoas com escolaridades diversas.
Religiosamente, a composição do grupo conta com pessoas católicas e adeptos do
candomblé, numa convivência pacífica e harmoniosa. Para Mário de Andrade

a origem da Chegança de Marujo é sempre religiosa. Os trabalhos do


mar, que foram a admirável justificação humana da nação portuguesa
por três séculos, se imiscuíram nos vilhancicos religiosos, nos autos
portugueses e nas acarnavaladas das procissões quinhentistas do
Brasil.(ANDRADE, 1959, p.25).

Isso justifica a presença dos Santos católicos nas cantigas e a forma festiva
com que a população negra encontrou para se manifestar em tempo de ferrenha
opressão de práticas ancestrais. A forma de transmissão desses saberes e fazeres sempre
aconteceu através da oralidade, através da repetição. Essa é uma forma ancestral de
comunidades tradicionais manterem suas atividades culturais. Uma pessoa que deseja
entrar para o grupo passará, inevitavelmente, por esse processo, mesmo que tenha ele
outros contatos antes. Grupos tradicionais trazem uma importante característica, os
ensinamentos também acontecem nas casas, nas famílias. Logo, muitos, quando
decidem entrar no grupo já trazem um aprendizado por terem convivido em casa com
seus mais velhos. Mesmo assim experimentarão na prática como de fato acontece o
aprendizado. Existem algumas regras para fazer parte do grupo: respeitar a dinâmica já
existente, freqüentar os ensaios, providenciar a sua roupa e no dia de sua primeira
apresentação, que geralmente é um 04 de agosto, receber todo o grupo em sua casa para
uma espécie de “batizado”, onde terá que bailar sozinho no cordão e cantar sozinho a
cantiga que mais gosta dentre todas do grupo. Cantar, tocar e bailar sozinho é uma
condição muito recente, criada para motivar que as pessoas busquem de fato aprender e
sintam-se de fato integrante do grupo a partir daquele momento.
Um aspecto a ser observado neste grupo diz respeito a sua linha sucessória
nas funções inerentes às apresentações. O mais comum é que os mais velhos assumam
determinadas funções (contramestre, piloto, general etc.), mas o que de verdade é
levado em conta é o conhecimento sobre a manifestação. O fator família também é
bastante importante. Meu pai foi marujo, piloto e mestre desse grupo, eu fui marujo,
calafatinho, piloto e hoje assumo a função de mestre. É extremamente importante ter um
vivência em várias funções, isso pode ajudar a ter uma maior compreensão do
significado de uma chegança. Filho de peixe, peixinho é?
Infelizmente, as manifestações culturais tradicionais como a Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira não contam com apoio financeiro direto dos órgãos da
gestão pública, das esferas de governo. O poder público municipal ignora
completamente as atuações do grupo, não há um interesse político por grupos desta
natureza. É comum ouvir de gestores públicos que “cultura não dá voto”, e este pensar
faz com que inúmeras manifestações desapareçam. É importante o incentivo, é caro
manter um grupo cultural, todos os esforços feitos são também na busca de um
reconhecimento que nos renda parcerias, que de alguma maneira colabore e fortaleça a
resistência.
4.2-Saubara o porto seguro onde essa embarcação atraca.

“Saubara pode ser considerada, em muitos aspectos, o coração do


recôncavo”, (ARAÚJO, 1986. p. 93). Ao fazer esta declaração, o Professor Nelson
Araújo (se era a intenção talvez tenha conseguido) eleva a autoestima de saubarenses
que tiveram a oportunidade de, como eu, ter acesso ao seu trabalho. O coração é o órgão
mais importante do corpo humano, responsável por bombear o sangue para todo corpo.
Se o Recôncavo fosse um corpo, seria Saubara o seu órgão mais importante, e o sangue
aqui sairia em forma de música; seriam o som dos tambores, dos pandeiros, das violas,
dos atabaques, das vozes das pessoas envolvidas e integrantes das mais variadas
manifestações populares por ele identificadas (02 de julho, Samba das Caretas, Caretas
do Mingau, Terno Sol da Palestina, Terno das Bailarinas, Terno das Flores, Baile
Pastoril, Presépios, Samba das Raparigas, Zé do Vale, Filarmônica, Rezas de São João e
São Pedro, Milagres de São Domingos, Festa da Boa Morte, Festa de São Domingos de
Gusmão, Artesanato de Palha, Rancho, Renda de Bilro, Chegança Barca Nova). Foram
20 atividades identificadas, um motivo que com certeza “não será por menos que
merecerá esse título, se for vista a outra luz, a da resistência que continua oferecendo
aos assaltos da cultura metropolitana e transnacional” (ARAÚJO, 1986. p. 93) Algumas
dessas manifestações da cultura local já não se encontra na comunidade, por diversos
motivos. A cultura se renova, a manifestação cultural adormece e acorda de sonos
profundos trazendo à tona outras concretizações de sonhos possíveis. Se hoje o
professor estivesse entre nós e visitasse Saubara, veria que essa terra abriga outras
manifestações da cultura que ele não registrou (Reisado, Burrinha, Bumba-Meu-Boi,
Barquinha, Capoeira, Rezadeiras, Parteiras e os terreiros de Candomblé). Esse reviver e
sobreviver das manifestações culturais nos revela que “não há sociedade humana,
arcaica ou moderna, desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim, sempre
existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas por meio das culturas”
(MORIN, 2004. p. 56).

A obstinação é característica desse lugar, Saubara segue os caminhos


profetizados. De história se tentará não mais falar, mas do folclore e da sua presença no
dia-a-dia de Saubara. Ainda assim, a história inarredável de Saubara, como comunidade
retentora de folclore, talvez a mais importante do Recôncavo nessa condição.
(ARAÚJO, 1986).
O povoado de Saubara surgiu em 1550, num local chamado Ponta de
Saubara, próximo ao mar.Distrito criado com a denominação de
Saubara, pela Lei Provincial n.º 1.619, de 04-07-1876, subordinado ao
município de Santo Amaro. Elevado à categoria de município com a
denominação de Saubara, pela Lei Estadual 5.007, de 13 de junho de
1989, desmembrado de Santo Amaro. Constituído do distrito sede
instalado em 01 de janeiro de 1990. Em divisão territorial datada de
1993, o município é constituído da sede Saubara dos distritos de Bom
Jesus do Pobres, Cabuçu e Araripe. Situada a cerca de 100 km da
capital, Saubara traz consigo narrativas a cerca de sua criação.
O debravamento da região santamarense, à qual pertencia Saubara,
“foi efetuado por ordem do 3◦ Governador- Geral Mem de Sá que,
pessoalmente comandou a guerra do Paraguassu (ou peroaçú), contra
os índios ali residentes”A grande sesmarias doada, em 1559, por Mem
de Sá, a seu amigo Fernão Rodrigues Castelo Branco, residente em
Portugal, ia de Marapé até a ponta de Saubara, As terras que
pertenceram a Braz Fragoso, e depois ao clérico Francisco de Araújo,
iam da ponta de Saubara até Bom Jesus dos Pobres e adjacências,
subindo o rio Paraguassu para o lado de Cachoeira. Alguns meses
depois de receber a sesmaria, Fernão Castelo Branco, a doou a
Francisco de Sá, filho do 3◦ Governador-Geral, a 8 de julho de 1560,
mas quem utilizou as terras, legando-as depois em testemunho, foi
Mem de Sá. (PEDREIRA, 1997, p. 7) Como vemos desde os tempos
remotos as terras de onde hoje é o município de Saubara sempre
esteve em mãos de famílias que se apropriaram e as governam, como
nos dias de hoje.(grifo meu).

É nesse contexto de escravização que é constituído este lugar, apesar


desse não ser um tema recorrente nas histórias contadas por aqui, Pedreira
afirma que:

Mem de Sá “nestas terras fez construir o seu famoso “Engenho Real de


Seregipe”, em 1563. Este engenho possui uma “casa fortaleza”onde o
mesmo morava “quando ia ao engenho para ver o andamento dos
trabalhos e fiscalizar os serviços de plantio, colheita e moagem das
canas, etc”.”Para os serviços de engenho havia 259 escravos, mais 95
escravos e 4 escravos para os trabalhos dos campos e da casa-fazenda.
“Desses escravos, muitos eram negros, e outros indígenas da região”.
(PEDREIRA, 1997, p. 9)

Geograficamente, Saubara é uma cidade do recôncavo baiano que, além do


grande arsenal de manifestações culturais, ainda é privilegiada por deter mais de 5km
das mais belas praias da região, situadas nos distritos de Cabuçu, Bom Jesus dos Pobres
e Araripe.Toda essa região compôs o que podemos chamar da primeira região habitável
de Saubara:
Nela, por volta de 1685, no povoado fundado por Braz Fragoso, onde
já existiam algumas casas à beira mar, seus moradores resolveram
construir, num alto, uma igreja dedicada a São Domingos de Gusmão,
a qual, em 1696, foi elevada à categoria de Freguesia pelo Arcebispo
Dom João Franco de Oliveira.(PEDREIRA, 1977, p. 19).

A escritora saubarense Judite Santana Barros também traz uma narrativa que
contribui para o entendimento do surgimento do município de Saubara:

O nome Saubara, como quase todos os municípios do estado de nossa


querida Bahia, lugar onde nasceu o Brasil, é de origem indígena.Vem
da palavra saúva, que significa “comedor de formiga”. Seu nome
primitivo é fruto da junção do termo etimológico: SAÚVA + TERRA
= Saubara terra da Formiga. Essa denominação nos foi legada por
habitarem nessa região os índios tupis, que comiam formiga. Na
língua tupi-guarani, Saubara era denominada Sauvara. Com o passar
dos tempos, por questão de uma pronuncia mais adequada sonorizou-
se Saubara. (BARROS, 2002. p. 10).

Outra importante narrativa acerca da existência do município de Saubara se dá a


partir das lutas da independência da Bahia. Após o 07 de setembro de 1822, tropas
lusitanas permaneceram no Brasil dominando o território baiano. A historiadora Zilda
Paim apresenta um episódio de lutas que acontecera:

A 18 de novembro de 1822, tropas do General Madeira de Melo


investiram contra os postos avançados de Saubara, cuja tremenda luta
impôs às forças nacionais ali sediadas regularem as suas operações de
guerra. [...] E lá em Saubara estava o bravo Padre Bernardo 51, que com
destemido heroísmo arregimentava suas tropas e defendia com denodo
aquele ponto estratégico, que, sendo dominado ou conquistado, seria
fatal para a revolução. (PAIM, 2005. p. 92).

Este relato aponta a importância de Saubara para toda a movimentação em torno


das lutas de independência da Bahia, segundo a autora se neste dia não houvesse uma
resistência nessas terras, a histórias do Brasil seria outra. Existe no meio da produção de
livro didático a evidente investida de invisibilizar os acontecimentos históricos que
envolvem o 02 de julho de 1823. Como é que houve a independência do Brasil em 1822
e na Bahia durante 10 meses sucederam-se inúmeros episódios de guerra? Encontramos

51
Segundo Pedro Tomaz Pedreira esse Padre não passa de uma lenda, para ele, Braz Amaral fez uma
confusão, existia um Vigário chamado Bernardo na freguesia de Nossa Senhora do Rosário, em
Cachoeira. Para ele quem esteve na frente das lutas em Saubara foi o Padre Manoel Jose Gonçalves
Pereira. Ver Documentos do Recôncavo: O “14 de junho”. Santo Amaro na independência do Brasil.
Imprensa Oficial –Santo Amaro. 1970.
uma resposta que é no mínimo sensata e esclarecedora. Para Joel Rufino dos Santos isso
nada mais é que
“o vivo desejo de fazer da Independência uma propriedade patriótica
do Rio de Janeiro e de São Paulo levou os interessados a dar aquela
festividade um cunho demasiadamente particularista, apagando o
trabalho e o sacrifício de outros que também contribuíram para levar a
cabo a grande obra da libertação em diversos pontos do território
brasileiro”. (SANTOS, 1979, p. 191).

Em Saubara, duas manifestações culturais estão intrinsecamente ligadas ao


tema da independência da Bahia. Uma delas são as Caretas do Mingau que:

Há aproximadamente 100 anos, no mês de julho, anualmente, na


madrugada do dia 1º para o dia 2, mulheres de variadas idades,
religiosidades e profissões, saem em algumas ruas do município de
Saubara trajadas com grandes panos brancos – em sua maioria, panos
rendados – luvas e chapéu de palha, segurando colheres de pau e
panelas de alumínio, contendo mingaus de milho, carimã e tapioca,
sacudindo chocalhos e gritando: “Olha o mingau! Olha o
mingau”(BARROS, 2002. p. 22).

As caretas do mingau trazem para cena das guerras uma importante


contribuição, pois, reforça e evidencia a participação de mulheres participando de
guerras há muito tempo na história. Vanessa Pereira de Almeida nos apresenta em seu
trabalho a perspectiva de que em Saubara as mulheres desde cedo saíram do lugar de
conforto de ser: “a doce enfermeira, a mãe motivadora, a esposa conivente. Em Saubara,
as mulheres foram além: participaram da guerra pegando em armas para expulsar as
tropas de Madeira de Mello da costa saubarense. (ALMEIDA, 2017. p. 51). A Vanessa
Pereira ainda afirma que:

Para além da presença feminina no front das trincheiras armadas, o


que significa dizer que esta trama carrega o sopro do vigor na
historiografia baiana das guerras, a qual já possui traços de uma
perspectiva feminina da guerra, quando visibiliza Maria Felipa, Joana
Angélica, Maria Quitéria nas guerras de Independência, bem como
Luíza Mahin nas Rebelião dos Malês, as Caretas do Mingau vêm para
revigorar esse terreno de estudos sobre mulheres na guerra.
(ALMEIDA, 2017. p. 51).
A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira traz consigo o imaginário de
uma embarcação brasileira baiana que enfrenta os lusitanos defendendo a Baía de Todos
os Santos. Através de suas cantigas que é evidenciada essa relação com o 02 de julho
de 1823. Dois aspectos nas cantigas devem ser considerados para a existência dessa
manifestação dentro do contexto da independência da Bahia. O primeiro refere-se a São
Domingos de Gusmão, padroeiro da cidade. A igreja fora construída a 334 anos, no
final do século XVII, e segundo alguns moradores mais antigos, ela foi construída ali
por vontade do Santo, pois, a ideia inicial era fazer a construção no local onde hoje é a
praça 04 de agosto (centro da cidade). Porém, sempre que se colocava o material da
construção nesse lugar, na manhã seguinte tudo estava lá no ponto mais alto da cidade,
onde a igreja de fato foi construída. E lá do alto São Domingos protegeu contra a
invasão portuguesa.

...”Glorio São Domingos


Traz a frente Para o mar
Pra socorrer todo aquele
Que por seu nome Chamar”...

E assim a Marujada canta todos os anos no dia da festa de São Domingos. Outra
cantiga que por várias vezes vamos citar neste trabalho refere-se a Pirajá.52

...”Vamos companheiro
Vamos lá chegar
Leva essa Bandeira
Lá em Pirajá”....

Uma notícia foi vinculada da imprensa da Bahia Gilberto Sena escreveu:

O tradicional folguedo popular Marujada, uma bela manifestação


folclórica que colonizadores portugueses nos deixaram, é a atração
amanhã, domingo às 18 horas, no Campo Grande. A apresentação da
Chegança de Marujos Fragata Brasileira, do distrito de Saubara, em
Santo Amaro da Purificação, no domingo, em Salvador, é uma das
raras oportunidades para adultos e crianças verem algo que dentro de
mais 20 ou 30 anos terá desaparecido. (Jornal A tarde 23.08.1980).

52
Pirajá, onde aconteceu a principal batalha da Guerra da Independência do Brasil, iniciada na madrugada de 8
de novembro de 1822.(http://www.cidade-salvador.com/patrimonios/piraja.htm)
É nesse cenário antagônico que a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira de
Saubara se mantém contrariando todos os prognósticos negativos que lhe fora
atribuídos, permanecendo nos dias atuais como uma referência no cenário cultural,
contribuindo para que permaneça acesa na memória do povo a importância que Saubara
teve num período histórico tão importante para o Brasil.

4.3-Caboco Marujo, Êta Marujada.

Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, com esse nome uma indagação
sempre esteve presente: Por que Marujos? Qual o lugar do marujo nessa manifestação?
Talvez seja um tanto quanto inapropriado, ou mesmo extremamente necessário abordar
o aspecto religioso que emerge no meu pensar sobre este tema. Em um 4 de agosto que
não lembro o ano, o grupo fez, como de costume, uma apresentação na Igreja de São
Domingos, e ao invés de descer a Rua da Igreja, naquele ano fomos pela Rua do
Taboão, paramos na porta da casa de Tia Jelita, e ali fizemos uma apresentação como de
praxe, depois veio o almoço, algumas cervejas, umas risadas, e fizemos o pagamento.
Ela gostava de ouvir a Chegança cantar:

Adeus minha Lila


Adeus minha Bela
Saudade da Lila
Que o Meu Peito leva.

De longe avistava
Meu bem na Janela
Por não ter Lila
Eu amei uma donzela.
Trecho de uma música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira

Seguimos mar a fora, e nesta rua paramos na porta de outras casas,


repetindo nosso fazer, e tudo ocorreu como previsto. Neste dia, depois da Rua do
Taboão fomos para a sede e encerramos as atividades. Voltei para casa, e depois segui
novamente para casa de Tia Jelita, onde a festa continuava. Chegando lá, fiquei
espantado! Tinha uma senhora vestida de branco, com o chapéu de um dos marujos na
cabeça, cantando e dançando músicas muito parecidas com as da Chegança. Foi a
primeira vez que eu estava diante de um marujo. Um marujo se manifestando no corpo
de uma pessoa. Meu espanto logo se transformou em curiosidade, e ali, como uma
criança que tudo quer saber, fiquei o tempo todo a observar. Ele parecia que ia cair,
tinha uma garrafa na mão, era como se estivesse bêbado, era como Duca Contra-Mestre
fazia na rezinga dos gajeiros. Daquele dia em diante, comecei a procurar esse marujo no
grupo, e nunca via ninguém dali manifestado daquela forma.
Na Bahia, o caboclo é figura presente nos festejos do 2 de julho, numa
representação simbólica dos povos nativos, que estavam presentes no período das lutas
pela independência. Em Saubara, a figura da cabocla está sempre participando dos
desfiles alusivos ao dia da independência. É talvez onde aconteça a maior participação
popular, em eventos culturais na cidade. Anualmente na noite do dia primeiro de julho,
uma grande parte da população concentra-se no bairro da Rocinha para a levada da
cabocla, que segue em direção ao bairro do Lavador, onde fica para, no dia 2, integrar o
desfile cívico. Não fica explícito na comunidade de Saubara a realização desta atividade
com uma ligação direta com o culto do “caboco” no candomblé, a não ser pela
participação espontânea de adeptos da religião. A cabocla assume um lugar do sagrado,
quando na madrugada do dia 1◦ de julho as “Caretas do mingau” vão lhe fazer uma
saudação, mas é importante pontuar que esta saudação está mais direcionada a uma
reverência à figura feminina da cabocla por representar o fenótipo do povo brasileiro, do
que a entidade do candomblé.
Parece haver de verdade uma diferenciação do caboclo no 2 de julho, e o
caboco no culto do candomblé. De acordo com Jocélio Teles dos Santos (1995) os
caboclos “do candomblé são entidades integradas ao panteão sagrado da religião afro-
brasileira como os ‘donos da terra’, ou seja, deuses que já habitavam o Brasil antes da
chegada dos orixás africanos”. (SANTOS apud ALBUQUERQUE, 1999, p. 93).
Pensando desta forma, o caboco no Candomblé assumiria a identidade de serem
entidades brasileiras, espíritos desencarnados que voltam como espíritos de luz para
serem cultuados nos terreiros. O episódio das navegações no Brasil apresenta-se como
feitos realizados pelos portugueses e espanhóis, fica mais fortemente impregnada a ideia
de que tudo ocorreu a partir do olhar do colonizador, e se faz necessário pensar também
nessas travessias, sob a ótica dos povos que vieram na condição imposta de
escravizados, onde corpos negros foram mutilados e mortos em nome de uma fé cristã.
Para Tito Romão (2018), na religiosidade dos colonizadores, parecia haver um misto de
hipocrisia e perversidade: professar a religião católica e ser cristão não necessariamente
eram equivalentes. (Romão, 2018).
Para sua sobrevivência o povo negro teve que recorrer a algumas estratégias
numa tentativa de manutenção de suas práticas. Alguns dos cânticos encontrados nas
atividades religiosas, e também em algumas manifestações como no caso da Chegança
funcionam como uma espécie de sincretismo, fazendo com que pessoas de uma mesma
cultura compreendam os sinais.

Lá Mano que vem de Lisboa


Lá mano que vem de Lisboa
Que beleza é a as ondas do mar
Eu passei por Cabo Verde
Por cima da vela duas pomba reá
(Canto de caboco Marujo)

Compreender que falar de Lisboa pode ser apenas uma forma de identificar
de onde partiu tal embarcação e que caminho foi feito até chegar ao destino final.

Essa nau que não dá pelo leme


Não alça nem arriba
Eu vim lá no Mastro do meio
Na ponta da verga uma pomba reá
(Trecho de uma música da Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira)

Com a vinda de pessoas trazidas de diversas regiões do continente africano


para o Brasil, vieram também as mais variadas concepções de religião, diferentes
formas de cultos originários, além de diversas etnias representadas na diáspora africana,
e o candomblé surge no Brasil exatamente a partir do contato desses povos com as
culturas indígenas, e ainda sob pressão do catolicismo. Para a população negra
conseguir manter suas práticas religiosas de África aqui no Brasil foi necessário
desenvolver formas para não perder seus modos de vida, sendo que para muitos uma das
estratégias adotadas ficou conhecida como sincretismo religioso. Tito Romão (2018) diz
que: “No caso dos africanos, estes exerceram um papel de protagonistas, e buscaram
formas de continuar a cultuar suas divindades. Para tanto, buscaram uma espécie de
meio-termo entre seu real panteão e o sistema dos santos católicos” (ROMÃO, 2018,
p.07), e até hoje convivemos com a relação ambígua entre os orixás e os santos da igreja
católica.
No Candomblé temos a festa de Caboco, uma influência direta da cultura
indígena brasileira. De certo modo, com essa parte da religião, o sincretismo não
funcionou, pois não há uma relação dos cabocos com nenhum santo católico. São
inúmeros os cabocos existentes no candomblé (Sete Flecha, Boiadeiro, Sultão das
Matas, Pena Branca) e o Caboco Marujos esse que é o foco da nossa dissertação.
Segundo o Babalorixá Eliomário dos Santos, do Terreiro Ilê Axé de Nanã da cidade de
Saubara o Caboco Marujo é:

[...]é um caboco das águas, ele é um espírito de Marujos que tem


aquela coisa de Marujo ele é um espírito, que aquele Marujo morreu
e desencantou nas águas, esse espírito viveu nas águas então, então
virou um caboco das águas, ele pertence à parte de Yemanjá, Oxum,
então ele é sempre cultuado53...

Para o Babalorixá Agenor Santana, do Terreiro Baba Ôkê, o Caboco Marujo


é:
é um encantado ou um caboco d’água, por conta da rota né? Ele veio
nessa perspectiva de descobrir terras, via náutica, essas embarcações
naufragou, e aí esse individuo sei lá, faleceu, o corpo nunca foi
encontrado, virou um encantado, se encantou, o encantado surge
dessa perspectiva, dele se encantou, ele sumiu, ele desapareceu, e ele
retorna entre nós através justamente do culto da canção, por que?
Porque, a percussão acorda a ancestralidade, o rufar dos tambores,
rufar dos pandeiros, ele vai acordar, ele arranca arrepio54.

As definições apresentadas trazem convergências e divergências. Tanto para


o Babalorixá Eliomário quanto Agenor o Caboco Marujo continua sendo o espírito de
um Marujo que desencarnou, e volta a se manifestar nos terreiros nos cultos de Caboco,
porém para o Babalorixá Agenor fica evidente que esse espírito é de alguém que vem
para o Brasil, com a perspectivas de descobrir novas terras, seria talvez um Marujo
Português ou Espanhol? As festas do Caboco Marujo acontecem dentro do calendário
de cada terreiro, não havendo uma data específica, alguns terreiros fazem a festa
juntamente com o presente se Yemanjá, como é o caso do Terreiro Ilê Axé de Nanã.
O Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira apesar de levar o nome
de Marujo na sua estruturação, não tem registro de que algum preceito religioso foi
realizado para a sua constituição. O que sabemos e ouvimos é que diversas pessoas por

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Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
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Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
enxergarem uma aproximação entre o grupo e a religião do Candomblé, sempre buscam
um acalanto nas apresentações do grupo. Pessoas que têm algum problema na família
com parentes alcoólatras encontram no nosso fazer cultural um aporte para compreender
o quanto é possível agradar Marujo, e assim pedir que os ajudem a resolver tais
problemas.
Apesar de não ter um envolvimento direto com o candomblé, o Grupo
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira provoca nas pessoas que estão ao seu redor,
sensações e experiências espirituais das mais diversas. Perguntado se conseguia ver
alguma relação do grupo com o caboco Marujo o Babalorixá Eliomário respondeu:

[...] marujada de Marujos combina com a Chegança que a parte de


marinheiro, combina sempre nas festas, o meu marujo pede quando eu fizer
uma festa grande que mande convidar as marujadas, pra vim tocar pra ele.
Quando vocês estão parado cantando, que tem aquelas saudação, quando no
meio tem aquele menino aquelas cantigas, que luta as espadas quando
começa essa “batalhação”, aí é que representa mesmo. Até eu quando estou
assistindo eu sinto eu me abalo, com aquilo, aí eu fico assistindo tudo vocês
cantar em fim55.

Esta narrativa relava o quanto estamos garantindo que saberes e fazeres


ancestrais sejam perpetuados. No campo da religiosidade contribuímos com o nosso
protagonismo, saber que o nosso cantar, bailar e tocar sugere para um Babalorixá a
continuidade do culto ao marujo é revelador, ao sentir-se marujo, ao fazer uma
Chegança estamos em nossa plenitude do nosso rito de passagem para outra dimensão
espiritual, e de compreensão das nossas responsabilidades. Para Professora Rita de
Cássia Dias Pereira Alves,
esses sentimentos tão presentes para os/as participantes, só são
possíveis pela vívida memória ancestral que evocam, carregam e
nutrem. O corpo embalado na dança e na representação, pelo ritmo
dos pandeiros e chocalhos, dá fluxo ao ritmo interno, que pulsa nos
corpos que de diferentes modos, revivem as travessias, a vida-morte
no mar, a disputa por existência, na história que vai recontada.
(ALVES apud ROSARIO, 2019, p. 234).

É com esse entendimento que navegamos num mar que ora de apresenta
revolto, e como marujo nele nos equilibramos, executando com o corpo o mesmo
movimento das marés, e que nos momentos de calmaria refletimos sobre o quanto essa
nossa construção social se dá pela vertente racial que nos identifica, promove
aproximação e vem garantindo que os elos sejam mantidos, no incessante desejo que o

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Entrevista realizada na cidade de Saubara em 01 de março de 2020
marujo que habita na Chegança dos Marujos Fragata Brasileira sirva de sustentáculo
para que a cultura seja vista como um alicerce para uma educação que liberta.

4.4-A independência da Bahia contada pela Chegança.

A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira é um grupo que representa uma


marinha de guerra brasileira que atuou na defesa da costa da Bahia de todos os Santos
durante o período das lutas de independência da Bahia. Se não era um destacamento da
própria marinha brasileira entendamos como um agrupamento de pessoas que, com a
sabedoria sobre a vida marítima, colaborou de certa maneira com a intenção de defender
o território baiano.
Pirajá é onde ocorreu talvez a mais sangrenta das batalhas em terras baianas
durante a guerra da independência da Bahia. O ano de 1822 é marcado por uma série de
episódios que precede o dia 02 de julho de 1823, aquele que seria o dia em que os
“marotos pés-de-chumbo” perderiam de vez o controle da cidade de Salvador. Para
retratar a batalha de Pirajá, vamos antes fazer sinteticamente uma abordagem histórica
que compreende o período de 9 de janeiro de 1822 a 2 de julho de 1823, relatando
alguns fatos que são na nossa concepção interessantes para este trabalho.
D. Pedro decide ficar no Brasil, isso era 9 de julho de 1822. Um mês antes,
chega ao Brasil, no Rio de Janeiro, uma esquadra vinda de Portugal que trazia os
decretos com várias deliberações da corte de Lisboa, dentre as quais estavam: “aboliam
a regência, retiravam do Rio de Janeiro todo poder administrativo, judicial e militar e
ordenavam o retorno imediato do príncipe regente na mesma esquadra”. (PORTO
FILHO, 2015. p. 52) D. Pedro fica chateado porque a argumentação da corte de Lisboa
era que, para que ele assumisse o trono em Portugal, deveria retornar e ser treinado para
tal função, ou seja, teria que viajar pela Europa e melhorar sua educação. Já decido a
voltar, ele recebe uma carta vinda de São Paulo, da junta Governativa, indignado com a
sua decisão. Obtendo apoio de brasileiros, D. Pedro teima em ficar no Brasil, e esse dia
fica conhecido como o “Dia do fico”. Foi quando ele fez o seguinte pronunciamento:
“Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto, digam ao povo que
fico”. Essa decisão desencadeou medidas duras vindas de Portugal, uma delas é a
ocupação da cidade de Salvador por tropas portuguesas. Era desejo manter a qualquer
custo Brasil e Portugal unidos politicamente. Como medida, a corte nomeia para
governador das Armas na Bahia Inácio Luís Madeira de Melo. Essa nomeação para
muitos é o início das lutas entre brasileiros e portugueses. No dia 15 de fevereiro de
1822, chega a Salvador o navio correio Leopoldina, trazendo Madeira de Melo, que
substituiria Manoel Pedro de Freitas Guimarães, que era brasileiro e não aceitou tal
substituição alegando não ter validade a sua carta de nomeação. Porém, Madeira de
Melo foi recebido com bastante festa pelo oficiais portugueses, que de imediato
aceitaram seu comando. Essa disputa de poder originou os sangrentos acontecimentos
de 18 e 19 de fevereiro de 1822, que caracterizam o início da guerra civil na Bahia.
(Revista da Bahia, n 36, 2002. p. 14). A tentativa de impedir a substituição levou a um
novo choque na região do Forte de São Pedro, e os dias 18 e 19 ficaram marcados por
diversos atos de uma guerra de muito sangue derramado. Ao romper do dia 19 as duas
forças se enfrentaram [...], prevaleceram os portugueses[...]. Soldados e marujos lusos
se embebedaram e cometeram muitos excessos, inclusive mataram Soror Joana
Angélica e o Capelão do Convento da Lapa (Revista da Bahia, n 36, 2002. p. 15). Fato
esse que serviu como propulsor para a instalação da guerra.
Quando soube de tudo que ocorrera nos dias 18 e 19 em Salvador, D. Pedro
intimou Madeira a deixar o Brasil e proclamou aos baianos a que reagissem e lutassem
contra aquela tirania. (Revista da Bahia, n 36, 2002. p. 16). Esse pedido feito por D.
Pedro parece ter ganhado os ares do recôncavo e chegou aos lugares onde se
concentravam as forças políticas da Bahia. Em 12 de junho de 1822, o Senado da
Câmara de Salvador foi impedido de realizar uma reunião onde seria respondida a
consulta feita pelos deputados da bancada em Lisboa acerca do reconhecimento da
autoridade de D. Pedro como Príncipe Regente do Brasil. Madeira de Melo proibiu a
sessão e organizou um esquema militar fechando todos os caminhos que levava até a
câmara. Com a investida de Madeira de Melo e tomada da cidade de Salvador, muitas
pessoas começam a se deslocar para o recôncavo. No recôncavo, estava a riqueza, a
comida, o braço do trabalhador. A Bahia era uma terra de 400 mil almas. Em Salvador
viviam em torno de 100 mil. Portugal era uma nação com 2 milhões de habitantes. O
Brasil naquela época, tinha cerca de 4 milhões. (Revista da Bahia, n 36, 2002. p. 15).
Em Santo Amaro, a Câmara do Senado, também sabendo das notícias do
que ocorrera em Salvador, reuniu-se no dia 14 de junho de 1822 e redigiu a ata de
vereação onde consta: “Que haja no Brasil um centro único de Poder Executivo; que
esse Poder seja exercitado por sua Alteza Real, o Príncipe Real, segundo as regras
prescritas em uma liberal Constituição; e que a sede do mesmo Poder seja aquele lugar
que mais útil for ao seu bom Regime e administração de Reino” ( TAVARES, 2015. p.
95). Declarando-se a favor da regência de D. Pedro a Comarca de Santo Amaro no dia
17 de junho de 1822 “soldados portugueses da Companhia de Granadeiros pegaram em
armas, saíram para as ruas da Vila de Santo Amaro, ocuparam o porto do Xaréu, mas
não abriram luta” (Idem p. 96). Em Santo Amaro, a 29 de junho de 1822, foi feita a
aclamação de D. Pedro como Regente e Defensor Perpétuo do Brasil (PEDREIRA,
1977. p. 122).
Uma das primeiras investidas de Madeira de Melo foi feita na cidade de
Cachoeira. Por saber que ali se encontrava uma importante articulação contra o seu
posicionamento, Madeira de Melo determinou que uma embarcação sob o comando de
Domingos Fortunato atracasse naquela cidade para inibir quaisquer manifestações por
parte da população.
A Câmara do Senado de Cachoeira, com o apoio de milicianos patriotas (cerca
de 500 homens de diversas classes da sociedade), munidos de vários tipos de armas e
sob o comando do coronel José Garcia Pacheco de Moura Pimentel e Aragão, no dia 25
de junho de 1822 garantiram que a câmara se reunisse e aclamaram D. Pedro como:
“Regente e Perpétuo Defensor e Protetor do Reino do Brasil” (PORTO FILHO, 2015, p.
65). Ao assumir publicamente reconhecendo a autoridade de D. Pedro com Príncipe
regente do Brasil e ao festejar tal ato, a cidade foi alvo de um ataque feito pela tropa
portuguesa que estava na escuna estacionada no porto. Aproveitando-se da confusão
causada pelo ataque da escuna, alguns portugueses começaram, de seus prédios, a
efetuar disparos contra o povo, estabelecendo um clima de confronto na vila. (PORTO
FILHO, 2015.p. 62) Esse confronto terminou com a rendição da tropa de Madeira de
Melo, que não resistiu a investida improvisada (vaivém) 56feita pelo povo de Cachoeira,
que acertou a escuna provocando-lhe vários danos e feriu seu tripulantes. Com a tomada
de Salvador por Madeira de Melo, Cachoeira assume o papel de “capital” da província.
Nos dias atuais, o Governo do Estado da Bahia transfere a sede do governo por um dia,
25 de junho, para Cachoeira, como forma de reconhecer a importância que a cidade teve
para a independência do estado.
Aos 26 de junho de 1822, a Câmara do Senado de Maragogipe se reuniu
para responder a consulta feita pelos deputados baianos e seguiram a mesma linha de
Cachoeira e Santo Amaro. Contudo, nota-se que a maior preocupação nessa Vila era
que o novo governo abolisse a dívida que os senhores de engenho tinham com as

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Uma antiga peça de artilharia adaptada para serviços nos engenho que trazida para a vila foi preparada
para atirar pedras e pedaços de ferro.
repartições arrecadadoras de impostos. Em 29 de junho de 1822, a Vila de Maragogipe
reconhece a autoridade de D. Pedro.
Ainda em 26 de junho de 1822, em Cachoeira, foi constituída a junta interina
conciliatória e de defesa, no dia 29 do mesmo mês um grupo de pessoas vindas das
Vilas de São Francisco do Conde e de Santo Amaro chegam a Cachoeira, propondo a
transformação da junta interina em Comissão da Administração da Caixa Militar, com
fóruns de governo civil e militar e jurisdição sobre todas as vilas do Recôncavo
(PORTO FILHO, 2015.p. 67). Através de ato administrativo, o Tenente Coronel
Felisberto Gomes Caldeira

designou comandante das defesas da costa santamarense, da barra do


Rio Traripe à do Rio Paraguaçu, o então Vigário da Freguesia de São
Domingos da Saubara, o Padre Manoel José Gonçalves Pereira,
ocupante daquela função desde 1812. (Revista Militar Brasileira. n 10.
1974. p. 29).

Em 13 de agosto de 182257, na Vila de São Francisco da Barra do Sergipe do


Conde, os líderes emancipacionistas santamarenses e Sanfranciscanos se reuniram,
decidindo, unanimemente, a criação de um conselho interino de governo da Província,
cuja sede, resolveram, seria o Hospital de São João de Deus (atual Casa da
Misericórdia) na Vila de Cachoeira (Idem). Essa decisão só foi deliberada em 6 de
setembro de 1822, ficando instalada com participação de representantes das Vilas do
Recôncavo e de outros lugares da Província. Instalada, “uma das primeiras decisões do
Conselho Interino foi o envio de reforços para a zona costeira que se estendia de Bom
Jesus da Saubara (atual Bom Jesus dos Pobres) a Saubara e Acupe.”(Revista Militar
Brasileira. n 10. 1974. p. 30).
Foi nessa região da costa que as tropas lusitanas fizeram um de seus
primeiros ataques, tentaram desembarcar na costa da Saubara (costa de Saubara
compreendia a faixa litorânea que iniciava em Acupe e ia até a entrada do rio
Paraguaçu), mais precisamente em Acupe, nas terras do Padre Bernardo de Melo
Brandão, mas foram surpreendidos por um grupo de patriotas comandados pelo Coronel
Rodrigo Brandão, que travaram um combate com os lusitanos. “A força brasileira assim
vitoriosa foi acampar na fazenda Acupe, com fim de proteger toda a costa da Saubara,

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Sobre essa data e local encontramos divergências nos documentos pesquisados.
d’onde regressou, por ordem superior, a 16 de setembro de 1822”. (Revista Militar
Brasileira. n 10. 1974. p. 30).
O Padre Manoel José Gonçalves Pereira teve participação efetiva nas lutas
pela independência da Bahia. Sua participação ficou registrada através de suas cartas
que ele escrevia para o Conselho Interino. Tais cartas nos revelam muito daquilo que
vivenciamos hoje, quando brincamos na Chegança. Além de evidenciar a participação
em massa da população de Saubara em defesa do território chamado costa de Saubara.
Inúmeros relatos encontramos hoje sobre este feito, a exemplo da igreja de São
Domingos.

Glorioso São Domingos traz a frente para o mar


Pra socorrer todo aquele que por seu nome chamar

Glorioso São Domingos consolai meu padroeiro


Aceitai a romaria desse pobre marinheiro
Trecho de uma música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

A participação do Vigário Padre Manoel José Gonçalves Pereira ficara


registrada em cartas que ele escrevia para o Conselho Interino, onde dava ciência de
toda movimentação numa das áreas mais atacadas pelos portugueses e também recebia
ordens de como proceder em algumas ações de defesa. Em seguida, apresentamos
alguns trechos de algumas dessas cartas encontradas na Revista Militar Brasileira:
Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de
1974.

Na primeira carta datada de 02 de novembro de 1822:

Forão hontem, por vasos inimigos perseguidas cinco lanxas nossas


vindas de Maragogipe com farinha; duas das lanxas passarão livres,
duas se vierão abrigar debaixo das nossas trinxeiras, e huma que
temerariamente vindas escapar seguindo viagem encalhou em certos
baixos fronteiros nesta freguezia onde não existe trinxeiras e nem tão
pouco se lhe podia prestar soccorro da mosqueteira;...e o povo desta
terra vendo a minha grande afflição por não poder soccorrer aquela
embarcação, e vendo-me seguindo...para lhe prestar os caridozos
officios que estivessem ao meo alcance...me seguio, e soffreo hum
gradicissimo fogo do inimigo... (Revista Militar Brasileira: Navigator
Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro
de 1974).
Nesta carta fica evidente a importância do Ponto de Saubara para a proteção
de embarcações vindas de outros lugares do Recôncavo. Por ser aqui em Saubara,
precisamente no atual Bom Jesus dos Pobres, a entrada para o Rio Paraguaçu, que dava
acesso às cidades de Cachoeira e Maragogipe, importantes centros de articulação
política da época.
A segunda carta data de 07 de novembro 1822:

Na tarde de hontem tornou a ser atacado o Ponto da ponta da Saubára


de que já falei... porem perderão tempo a metralha, e assim
desenganados se retirarão já ao escurecer, e hoje amanhecerão todas
ao pé da escuna, que está ancorada não longe da Ilha do Medo...
(Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História
Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
.

A ponta de Saubara era um ponto estratégico de onde era possível observar


toda a movimentação de qualquer embarcação que se aproximasse da costa. Como
explicitado na carta, foi em vão a tentativa dos portugueses.
A carta terceira, de 12 de novembro de 1822:

Illmo, Senhor Coronel Comandante. Participo a V. S. que hoje depois


do meio dia, com pouca differença, apparecerão entre Itaparica e a
ponta de Nossa Senhora de Guadalupe 4 barcas inimigas e hum
escaler, huma das quaes se aproximou para a parte dita ponta, e fes
fogo, e também o recebeo... (Revista Militar Brasileira: Navigator
Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro
de 1974).

Da costa de Saubara era possível visualizar as movimentações lusas, nesta


carta nos é apresentada de forma bastante forte e vigorosa a participação dos brasileiros
contra as forças de Madeira de Melo que a todo instante investia como desejo de se
apropriar dessas terras.
Eu só mar eu não vejo terra
Só vejo marujo em campo de guerra

Ô meu patrão venha cá na prôa


Que sua espada e defenda a côroa

Ô meu patrão e também meu contramestre


Venha vê a chibança nesse mar de guerra

Fogo e mais fogo, fogo de arrasar


Estamos em campanha tocamos a peleja.
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

Essa música ilustra bastante esta situação descrita na carta, com a


aproximação das barcas inimigas houve “fogo e mais fogo, fogo de arrasar”, foram
intensos os embates na costa de Saubara, e o povo saubarense esteve o tempo todo
disposto a enfrentar as batalhas para que não tivesse perdas das terras para os
portugueses. É com esse imaginário que vemos a permanência ainda nos dias atuais de
todas essas lutas que existiram por aqui.

Duas cartas foram escritas dia 13 de novembro de 1822. A primeira para o


Governo, dizendo que

hontem pelas duas horas da tarde vi fundear no ponto de Manguinhos


e ponta de Nossa Senhora de Guadalupe para dentro da Costa desta
Saubara, dois barcos inimigos e huma Escuna ou coisa similhante...e
que hoje ao passar o barco em que hia o Alferes Ajudadente de
Ordens, e duas embarcações nossas fizerão força de remos sobre as
embarcações 4 barcas, pelo que mandei do ponto da Cambôa huma
canoa a participar as taes embarcações que voltassem, e na Canoa do
Avizo veio para terra o dito Ajudante, que mandei levar a Vila de São
Francisco em huma canoa, e passou livre...As quatro barcas ditas não
tem cessado de velejar cruzando a nossa Costa. (Revista Militar
Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil.
Número 10, Dezembro de 1974).

A segunda, direcionada ao Coronel Gaspar de Araújo Azevedo Gomes de


Sá.

Hontem já participaei a V. Sª da xegada de 5 Barcas e huma


escuna...que se achavão fundeadas da ponta de Manguinhos e ponta de
Nossa Senhora de Guadalupe para dentro...depois que as 4 distas
barcas não tem cessado de vellejar por toda esta Costa bem próximas a
Ella, ainda continuarão nesse exercício. Está a xegar no Porto do
Senhor Bom Jesus...Rogo que V. Sª me queira mandar huma pessa das
que tem nas trinxeiras desse rio de Santo Amaro, pois tenho cá numa
trinxeira feita há muito tempo, em hum ponto bem perigoso, e sem
pessa alguma, pois ellas por cá são mais necessárias, e não mando
canoa em busca della por que não posso tirar destes hum só soldado...
(Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História
Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
.
Nessas cartas o Padre demonstra o desespero de quem se vê acuado dentro
de seu território vendo o poderio militar luso se aproximando da costa, e em um ato de
total aflição parece dizer que os soldados que se encontravam em Santo Amaro eram
mais necessários em Saubara, pois lá estavam acontecendo de foto um investida
lusitana. Essa carta nos conduz a pensar que, de verdade, foi em Saubara (na costa de
Saubara) que aconteceram as mais sangrentas batalhas do recôncavo, enquanto em
Santo Amaro não houve nenhuma batalha.
Na sexta carta, de 14 de novembro de 1822, depois de receber
orientações, o Padre diz: “Julgo desnecessário a retirada dos gados e
gente destes sítios e Costa, por que estou sendo persuadido que o
inimigo, não tenta forçoso desembarque, e assim mesmo espero
confiado no omnipotente fazer repelir com as forças mesmo do povo
desta terra”. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a
História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Parece que o Padre recebe uma ordem para as pessoas e os animais da costa
de Saubara e não obedece a tal ordem. Não encontrei escritas sobre o motivo das
orientações, suponho que retirar o gado da costa seria levá-los para Santo Amaro, onde
imaginavam estarem mais seguros e com mais alimentos à disposição.
Na sétima carta, de 17 de novembro de 1822, escreve apontando que:

Deste Porto do Senhor Bom Jesus...que as barcas inimigas hontem por


todo o dia nada fizerão de movimento...Foi-me denunciado que certo
preto cativo de Dona Maria Joaquina de Andrade e seo Feitor na
Fazenda denominada Itapenha(sic), maquina ou move partido com
outros pretos a favor do infame Madeira...como tem um cabra escravo
do Engenho Acupe, e feitor deça fazenda, que me deram socorro no
mato a certos Europeos... (Revista Militar Brasileira: Navigator
Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro
de 1974).
.

As tropas brasileiras eram compostas por pessoas escravizadas, negros e


indígenas. A figura do feitor sempre foi cultivada nas fazendas e engenhos existentes,
não é de se estranhar que negros feitores tentassem favorecer aos portugueses, uma vez
que podiam circular em meio ao povo sem serem notados. Nos casos relatados pelo
Padre, parece que alguns deles eram reconhecidos por outros negros que lutavam a
favor da independência e os denunciavam.
Na oitava carta, de 20 de novembro de 1822, é alertado sobre

Duas barcas inimigas que existem ancoradas não longe desta Costa, e
a perseguem, como tudo tenho feito ver s V. Exa., ontem seguirão
para a Bahia, e a seo regresso trocerão mais três grandes Barcos que se
reunião ao malfazejo Comboio, e por isso considero atacados os
pontos desta Costa, e eu então sem armas bastantes para devida
defesa, e mesmo sem artilharia para impidir aproximação dellas á
terra, pois que tendo a muito esse socorro...the o prezente não tem sido
atendidas minhas tão justas suppiclas... (Revista Militar Brasileira:
Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10,
Dezembro de 1974).
.

Ao observar que, ao passar do tempo, os portugueses estavam mais


preparados para atacar a costa, nesta carta o padre declara que não tem mais como
defender toda a costa da Saubara sem que o Conselho responda positivamente as suas
reivindicações. Mais uma vez nota-se que o comando pouco se importa com tudo que
acontece nesta região
A nona carta tem a mesma data que a anterior, ele faz saber ao conselho
dentre outras coisas que:

As barcas já estão em numero de doze, e entre elas há dois Barcos


carregados de tropa. Inda se achão refugiadas neste Pôrto da Saubára
as três lanchas carregadas de farinha para o exercito Pacificador que
no domingo forão perseguidoas pelas ditas Barcas inimigas, e não
podem seguir viagem por se acharem tomadas as passagens do
Boqueirão e Ponta de N. Senhora de Guadalupe... (Revista Militar
Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil.
Número 10, Dezembro de 1974).

Era da região do recôncavo a maior produção de alimentos para a Bahia, e


não foi diferente no período das lutas, as lanchas que necessariamente vinham pelo Rio
Paraguaçu eram protegidas pelas tropas do Padre Jose Gonçalves, e quando perseguidas,
ficavam na costa até conseguirem chegar ao destino.
Na décima carta, de 21 de novembro de 1822, o vigário da ciência ao
Conselho de que recebeu
a relação de Cabos de Couro e piassaba que são necessários para
a prontificação da Escuna, passo já a ir examinar na cordoaria
do Padre Bernardo se há feitos os de piassaba, se é possível
fazer-se os de couro, por que não me é permitido presentemente
mandar à cordoaria de Pedro Gomes em razão de se acharem as
barcas em linha ao lado daquela ilha e jamais escapará o canoeira
que lá for... (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a
História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Como vemos no trecho da carta, ainda era de responsabilidade do padre


vistoriar a construção de embarcações para servir nas batalhas. Usar a matéria-prima
local parece ter sido uma saída para o enfrentamento.
Na décima primeira carta, de 24 de novembro de 1822, ele comunica que:

Hontem todo dia sofreu a Ilha de Santo Antonio da Freguezia de


Madre de Deus do Boqueirão fôgo das barcas inimigas, e algum
também se lhes fez, e hoje em esta manhã o houve para o lugar
chamado Lobato, que é entre a Barra e o Doirado. Tenho por modos
simulados feito retirar os gados da beira mar desta Fraguezia e sua
costa, também famílias e seus preciosos, e na estação da missa
Conventual fiz uma fala ao povo sobre esta mesma coisa... (Revista
Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do
Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Ao perceber a possibilidade de um ataque definitivo, o padre demonstra


uma preocupação com as pessoas e os animais, e começa a simular uma fuga de
emergência. E é na missa que ele chama o povo de Saubara para se juntar a ele na luta
contra os lusitanos.
A décima segunda carta, de 25 de novembro de 1822, ele comunicou ao
Conselho Interino que:

as barcas inimigas não tem...cessado de cruzar esta costa e a Ilha dos


Frades, e também se aproximarão a Itaparica, para onde fizerão fogo e
se lhe fez”a escuna esta manhã saiu do seu ancorador e foi fundear
alguma coisa mais abaixo; ontem por tarde, depois de estar toda
flotilha fundeada ao pé da Escuna, aparecerão pela Ponto de N.
Senhora 4 ou 5 embarcações nossas, sobre as quais sairão logo dois
barcos inimigos, mas nada conseguirão... (Revista Militar Brasileira:
Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10,
Dezembro de 1974).
Não encontramos informações de tropas do exército ou marinha brasileira
na costa de Saubara. Os relatos são de que pessoas nativas compunham as guarnições, e
como vemos na carta, eram pessoas que tinham sabedoria sobre como navegar. É nesse
universo do conhecimento do mar que imaginamos que saberes e fazeres da época se
desdobraram e se transformaram nas manifestações culturais da atualidade, exemplo das
Cheganças. As histórias de Portugal se misturaram com as histórias locais e o corpo
negro, indígena saubarense criou as canções inspiradas nas lutas travadas em solo
brasileiro, baiano.

Moças baianas
Cheguem a Janela
Venham vê os marujos
Oras meu bem
Que vão pra guerra

Se eles vão pra guerra


Vão pelejar
Se eles não morrer
Oras meu bem
Hão de voltar

Eles vão pra guerra


Deixe eles ir
Se eles não Morrer
Oras bem
Tornarão há vim
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira.

Podem ter sido ser essas as cantigas feitas pelos marujos ao se despedir de
suas famílias quando iriam para as trincheiras da guerra.
Na décima terceira carta, de 06 de fevereiro de 1823, o Padre Manoel José
Gonçalves Pereira agradece o reconhecimento de seu trabalho.

Hontem recebi a participação de V. Exa. Por intermédio do Exmo. Snr


Secretario, e nella minha nova nomeação para comandar a guarnição
deste Ponto como era antes, e para em defesa dele aplicar todas as
forças... (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a
História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
Cinco meses após ter sido nomeado comandante das forças brasileiras na
Costa da Saubara, o padre recebeu novamente tal função por reconhecimento de seu
trabalho em defesa da região. Isso demonstra que a condução do padre na região trazia
bons resultados, mesmo com os descasos do conselho.
Na décima quarta carta, de 11 de fevereiro de 1823, o Padre Manoel José
Gonçalves Pereira escreve ao Conselho que após receber novamente a função de chefe
da guarnição da Costa de Saubara sua primeira ação foi: “revistar com alguns Oficiais
desta guarnição o estado de defesa em que se achava cada um deles...” (Revista Militar
Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil. Número 10,
Dezembro de 1974).

Não encontramos relatos que nos conduzisse a entender se em algum


momento sua função ficou ameaçada. A carta continua revelando a preocupação que ele
tinha com a situação de fragilidade que se encontrava a região.
Na décima quinta carta, de 15 de fevereiro de 1822, o Vigário faz saber que:

com o sargento-mor Inspetor e o Capitão Engenheiro, e avivados os


traços das trincheiras pedi me desse o mesmo Inspetor um mapa do
preciso para a reedificação e construção delas; no entanto fui mandado
preparar faxinas e estacarias. Hoje me remeteu do Acupe o mesmo
Inspetor o pedido mapa incluso; e apesar de lhe ter lembrado que a
estreiteza do tempo e os poucos dados que tínhamos não permitirão
obras maiores....o Inspetor tudo quer no rigor da arte, sem se lembrar
que muitos mezes nos mantivemos contra o inimigo, com diários
ataques, entrincheirados como as circunstâncias permitirão... (Revista
Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do
Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Muito nos dias atuais se discute sobre o papel de Santo Amaro nas lutas de
independência da Bahia. Todas as cartas a que tive acesso no documento pesquisado em
momento nenhum é mencionado algum episódio de batalha em Santo Amaro (sede), e
nesta carta fica evidente a falta de apoio para uma medida de guerra que quisera adotar
o padre, mas não teve por parte do Conselho deliberação para continuar. Isso demonstra
que foram de fato os saubarenses e acupeses que assumiram e deram seu sangue pela
causa. Importante salientar que Saubara era um distrito de Santo Amaro nesta ocasião.
Mas, não era de se estranhar, em Santo Amaro vivia uma burguesia da época, que pouco
se preocupava com os acontecimentos de guerra. Eles ainda se vangloriavam com a ata
de 14 de junho um documento que só revelava a subserviência ao império.
Na décima sexta carta, de 08 de março, o Vigário diz que:

no dia 06 do corrente, pela Barra de Santo Antonio um grande Vaso,


que suponho ser a Nau D. João 6, e na verdade ela não existe no lugar
onde diariamente era vista... ontem 7 do mês corrente, os nossos
barcos de Itaparica reunidos, e um vindo de da Vila de São Francisco
se baterão com os do inimigos fortemente quase todo dia, mas sem
vantagem de ambas partes, pelo que me parece, pois os vi
pacificamente voltarem para os seus ancoradouros. (Revista Militar
Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do Brasil.
Número 10, Dezembro de 1974).

Houve momento em que o confronto foi evitado por ambas as partes, talvez
pelo cansaço, pela falta de alimentação, pela falta de munição ou simplesmente por uma
trégua momentânea.
Na décima sétima carta, de 12 de março de 1823, o padre comunica que

Dez barcas inimigas... seguirão para Costa da Ilha dos Frades pelo
lado do Nascente, e lá fizerão algum fogo, pelo que vi esta manhã os
nossos Barcos de Itaparica no canal do Boqueirão, que para lá
passarão ontem de tarde, e nesse momento os vejo fronteiro a esta
Costa...de seu porto. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios
para a História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Eram constantes os ataques deflagrados pelas tropas de Madeira de Melo, a


vantagem de estar em terra e com boa visão de toda a Baía de Todos os Santos deu ao
padre a condição de enfrentar e ter vitórias.
Na décima oitava carta, redigida no dia 20 de março de 1822, ele informa
que

nesta Saubára tem aparecido por duas vezes um escaler com 6


ingleses, os quaes ora aqui se achão, e trazem fazenda, mesmo alguns
molhados, como carne do sertão, manteiga e bolachas tudo em ponto
pequeno por ser pequeno o escaler; estes mesmos Americanos me
oeferecem da parte do Capitão de sua embarcação 4 peças de calibre
seis... (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História
Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
A estratégia adotada pelos brasileiros de isolar a costa da Saubara funciona,
e as tropas lusitanas sofrem com a falta de alimentação. O apoio de ingleses é
fundamental para que não faltasse alimento para os brasileiros.
A rezinga entre o contramestre e o piloto da Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira retrata esse episódio, reforçando o nosso entendimento de que pessoas que
viveram tais momentos possam ter relatado esse acontecimento e o tempo, como em
tudo, pode ter transformado isso numa permanência viva na memória de nossa
localidade.

Contramestre.

No natural da linha vejo quatro velas 2x


Marinha ao sul pra Inglaterra 2x

Marujada (coro)

No natural da linha vejo quatro velas 2x


Marinha ao sul pra Inglaterra 2x

Mestre

Meu comandante vejo quatro velas 2x


Marinha ao sul para Inglaterra 2x

Marujada (coro)

Mestre

Meu general vejo quatro velas 2x


Marinha ao sul para Inglaterra 2x
Marujada (coro)

E assim o Contra-Mestre se reporta a todos os oficiais da


marujada. O discurso muda quando ele se remete ao Piloto.

Mestre.

Mestre piloto em que praia vamos dar 2x


Olhe lá essa fragata para não se naufragar 2x

Piloto

Meu Contra –Mestre eu bem lhe dizia 2x


Chama-se por Deus que o Barco vinha 2x

Contra – Mestre
Que barco é esse que trafega a barra vento 2x

Marujada (coro)

É vapor Inglês que vem trazer mantimento 2x

Na décima nona carta, de 31 de março de 1823, o Padre comunica que:

Hoje na volta das 2 horas da manhã derão alguns tiros de peça para a
parte da malfadada Bahia; as seis horas da tarde entrarão pela Barra de
S. Antonio dois vasos de três mastros e um de dois, e neste momento
que são sete da noite, vejo iluminada a Cidade, pelo que me persuado
ter chegado o socorro dos marotos prestado pelas infames Côrtes de
Lisboa favor do quadrúpede Madeira, contra a justa Santa Causa da
Independência. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a
História Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Na vigésima carta, de 18 de abril de1823, o Vigário alerta sobre a


fragilidade da Costa:

É muito perigosa à segurança desta Costa...relativo à reunião dos


cinco Portugueses com escravatura no interior desta Costa, o que torna
perigosíssima a nossa retaguarda. Todos os dias aparecem novas
denuncias, e os receios dos povos crescem ao extremo. (Revista
Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História Marítima do
Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Inúmeras foram as tentativas de portugueses que viviam em Cachoeira,


Santo Amaro e São Francisco do Conde de mobilizarem pessoas para atacar a costa de
Saubara por terra, nesta carta fica evidente que o padre consegue também antecipar as
articulações e desmontá-las.
Na vigésima primeira carta, de 16 de maio de 1823, o Padre Manoel José
Gonçalves Pereira faz saber que ao Conselho Interino que:

Em noite do dia 9 do corrente apareceu nesta povoação o Português


José Vieira Campos, companheiro do outro José Barbosa, que daqui
forão remetidos a V. Exas. por inimigos da Causa do Brasil... Esta
aparição comoveu de tal sorte o Povo, que se pegou em armas, e
fugindo ele despedi Tropa, a qual o prendeu na manhã do dia 10.
(Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História
Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).
Nesta carta, o padre revela o verdadeiro espírito do povo de Saubara.
Muitas são as falas de que não houve batalhas por aqui. Mas, ao dizer “que se pegou em
armas” demonstra que elas ocorreram sim, e foi com muito sangue derramado. É nesse
pensar que se constrói manifestações populares para que não se perca a memória
daqueles que participaram efetivamente desde momento. É o que contam as caretas do
mingau, mulheres e homens se juntaram e pegaram em armas de fogo para defender as
terras saubarense. E hoje resistimos em contar todos esses episódios de maneira lúdica,
pois assim é mais revelador do quão se houve lutas e também se comemorou as vitórias.
Na carta de 30 de janeiro de 1823, o padre faz saber ao Conselho Interino
sobre “o estado crítico e arriscado em que se acha esta costa por falta de ordem no
serviço...” Em resposta a esta carta, o Conselho Interino, num ofício datado de
05/02/1823 diz o comandante de Santo Amaro que “mandasse guarnecer
competentemente os pontos de Bom Jesus e Acupe” e pede ao Padre José Gonçalves
Pereira que

o conselho espera que V. Mercê cuide da defeza do seu ponto com a


vehemencia que mostrou sempre na consolidação da Grande e
Augusta Cauza da Independência Nacional, dizendo-lhe que mandasse
buscar farinha á Encarnação da que tem vindo de Nazaret e ahi se
acha. (Revista Militar Brasileira: Navigator Subsídios para a História
Marítima do Brasil. Número 10, Dezembro de 1974).

Mais uma vez há uma explícita preocupação do padre e um descaso do


Conselho Interino, que somente ordena a manutenção da guarda dos pontos da Costa
sem os devidos apoios para uma guerra . E fica bastante clara a preocupação para que
este ponto da costa alimentasse aqueles que, de longe, apenas observava, enquanto o
povo ia para o enfrentamento.
O Padre Manoel José Gonçalves Pereira, vigário da Frequesia de São
Domingos da Saubara, teve um importante papel nas lutas da Independência da Bahia,
merecendo ser nomeado em 30 de junho de 1825 Deão da Sé da Cidade de Salvador.
Em Saubara, uma escola que leva seu nome foi construída em sua homenagem.
Outra figura emblemática na história da Independência da Bahia é o
Marechal Pierre Labatut, que foi contratado por D. Pedro para o posto de general. Ele
trouxe uma vasta experiência de outras lutas. Vem para a Bahia organizar o exército
brasileiro para enfrentar as forças de Madeira de Melo e libertar Salvador. Labatut
chegou em Salvador no dia 28 de outubro de 1822, quando a Bahia já se encontrava em
guerra. Brasileiros se enfrentavam contras as tropas de Madeira de Melo,
principalmente na Costa do Recôncavo. Chegando a Salvador, Labatut vai se instalar no
quartel general em Pirajá. Em 29 de outubro de 1822, Labatut assina um manifesto e
intima Madeira de Melo a abandonar o Brasil:

a lealdade e a obediência dos bons e leais portugueses evitarão


derramar o precioso sangue de irmãos. Que não deveria ser pela força
que seria evitada s escravidão que as cortes preparavam para o Brasil,
e que não haveria de ser pela força que sua Alteza Real desejava que a
tropa sob seu comando se retirasse para Portugal, concluindo que um
tiro de fuzil de vossa tropa contra qualquer brasileiro seria o sinal de
nossa eterna divisão, fato o que levaria o Brasil nunca mais se unir a
Portugal, pelo que o torna responsável, em nome do Príncipe de todo
Reino do Brasil (Revista da Bahia, nº 36, de dezembro de 2002. p.
22).

Pirajá era um ponto estratégico de onde era possível impedir o acesso por
terra ao recôncavo. Em Pirajá foi onde as lutas tiveram maiores relevâncias, os
brasileiros combatiam com os “caçadores” da Bahia. É possível imaginar alguém a
gritar...

Avança, avança caçadores


Do primeiro batalhão
E vamos vencer na Bahia
Com essa nau que é da nação

Nem inglesa, nem francesa


Nem a própria pernambucana
Nada disso vencerá
A brasileira baiana

Cresce, cresce meus meninos


Para pátria defender
Que o Brasil está jurado
Ô liberdade ou morrer
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira

Foram horas de combate, os lusitanos tinham um exército melhor equipado,


porém os brasileiros contavam com um melhor posicionamento. Era difícil atacar morro
acima e ainda emmeio a uma mata fechada. Foram muito mortos e feridos. A batalha de
Pirajá que aconteceu no dia 8 de novembro de 1822 foi a mais sangrenta registrada na
história da independência da Bahia. Um fato curioso cerca esse dia de batalha,

o coronel pernambucano José de Barros Falcão de Lacerda,


comandante da 1ª brigada, sentindo-se em desvantagem numa
posição-chave e temendo ficar sitiado, ordenou ao cabo Luiz Lopes o
toque de ‘Retirada’. Por equívoco, ou por rebeldia, o corneteiro Lopes
tocou ‘Cavalaria Avançar’, seguido de “Cavalaria Degolar”.(PORTO
FILHO, 2015. p. 87).

Não se sabe se realmente esse fato aconteceu, pois há outra versão para a
retirada das tropas lusitanas. Particularmente, eu prefiro essa versão, ela me parece mais
apropriada para o encorajamento das pessoas que ali se encontravam e nos faz sentir a
emoção do momento.
A batalha de Pirajá foi muito importante para a independência da Bahia,
porque demonstrou a incapacidade dos portugueses de romper o cerco feito pelos
brasileiros para dominar o interior baiano. Para isso acontecer, era m necessário mais
soldados, mas a fome já se apresentava como um grande problema para os portugueses.
Não chegava mais alimentos do interior para Salvador. A guerra agora passava a ser
travada pelo mar.
Os brasileiros passam também a ter seus problemas. Labatut enfrenta a
resistência da junta de Cachoeira, que não quer mais libertar seus escravizados para
servir a causa da independência, e também é descoberta uma fortuna em ouro e prata
num engenho da região e seus “donos” não querem usá-lo a favor das lutas prol
independência.
Foram inúmeros os outros momentos de combate, de lutas, a exemplo do
que aconteceu na Ilha de Itaparica em janeiro de 1823, quando os itaparicanos
expulsaram os portugueses. Maria Felipa, mulher negra, comandava homens e mulheres
(negros e indígenas) em uma das últimas batalhas, quando queimaram várias
embarcações inimigas. O ataque foi feito a navios portugueses pelo Lord Cochrane em
04 de maio de 1823, sem contar com todas as que já mencionamos da Costa de Saubara.
A guerra foi constante e teve perdas horríveis para os dois lados. A doença
matava mais que bala. No exército brasileiro, dos seus 9000 homens, cerca de 1000
estavam doentes, principalmente pelo impaludismo (malaria), muita gente ainda
desertava temendo o pesado serviço, a fome, a falta de cuidados. Ao entrarem em
Salvador, em julho de 1823, os soldados estavam com suas roupas aos farrapos e
descalços.
Madeira de Melo ficou acuado em Salvador, totalmente sem alimentos, e o
primeiro sinal de que estava realmente perdendo a batalha foi quando ele, para
economizar alimentos e livrar-se dos doentes, expulsa mais de 10 mil pessoas de
Salvador. Isso era 9 de maio de 1823, em 20 de junho, junto com o seu conselho de
guerra ele decide abandonar a cidade antes que fosse invadida pelo exército libertador.
O fim da guerra se deu no dia 02 de julho de 1823. Ao amanhecer deste dia,
as tropas portuguesas embarcaram em lanchas e navios e deixaram a cidade. Era o sinal
para que o exército pacificador ocupasse a cidade. As tropas brasileiras entraram na
cidade de Salvador

“em colunas , tendo na vanguarda um grupo de exploradores, seguido


pelos batalhões do Imperador, de Pernambuco, da Bahia, dos
Periquitos, por uma parte do batalhão dos Henriques e, fechando a
marcha pelos negros do batalhão dos libertos” (PORTO FILHO,
2015. p. 97).

Passaram pela lapinha, barbalho e seguiram para o Terreiro de Jesus onde


foram dispersos.
Muito parece com o que acontece com o Grupo Chegança dos Marujos
Fragata Brasileira, antes da saída do grupo para os festejos do dia 04 de agosto: São
formados dois cordões/colunas, as pessoas são dispostas em seus lugares, isso acontece
de forma bem orgânica, pois durante os ensaios tudo quase que se define. Esquentamos
os pandeiros (muitos acendem papéis para aquecer o couro do pandeiro e assim afiná-
lo), os pandeiros são suas armas. Observamos as fardas se estão dentro daquilo que
esperamos para garantir a qualidade visual do grupo, traçamos todo o itinerário para
esse dia e cantamos para que tenhamos uma apresentação com perfeição.

Puxamos a amarra
Com muita alegria
Para festejar
Hoje neste dia

Ô meu São Domingos


Nos queira ajudar
Para no vosso dia
Nós o festejar
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira
Depois de toda essa dinâmica um cordão é levado para fora pelo
Comandante e o outro pelo Mestre. Na rua iniciamos nosso percurso, e cantamos como
se estivéssemos marchando para Salvador no dia da tomada da cidade.

Vamos companheiro
Vamos lá chegar
Leva essa bandeira lá em Pirajá

Marcha Marujada ao clarear do dia


Vamos dá alívio ao povo da Bahia

Ô moça baiana cheguem à janela


Venham vê os marujos que partiu pra guerra
Música do Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira.

O dia 02 de julho ficou conhecido como o Dia da Independência da Bahia, e


nos dias de hoje essa data é rememorada e muita gente faz esse percurso para que toda a
história seja revivida no imaginário do povo brasileiro baiano. Em alguns anos a
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira participou desse evento, representando o povo
da Costa de Saubara, que muito contribuiu para a vitória brasileira sobre os marotos.
CAPÍTULO V

5- Projetos Desenvolvidos e Ações Sociais.

Conseguimos constituir um núcleo dentro da associação composto por


membros do grupo e sócios colaboradores que trabalham na captação de recursos
através da concorrência em editais públicos para garantir desenvolvimentos de ações
nos mais variados campo (educação, trabalho, cultura, transmissão de conhecimentos,
intercâmbios) visando dar uma dinâmica na atuação do grupo fugindo assim do
meramente cantar de dança. Toda essa movimentação nos rendeu ganhar cinco prêmios,
(Culturas Populares do Estado da Bahia, Culturas Populares do Ministério da Cultura do
Brasil, Ponto de Memória, Pontinho de Cultura, Boas Práticas para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial), além de aprovação de outros projetos culturais. Dentre
esses projetos, um vem ganhando destaque no cenário nacional: O Encontro de
Cheganças e Marujadas do Estado da Bahia. Apresentaremos a seguir trechos dos
relatórios das atividades dos encontros visando dar uma dimensão do que significa
realizar esse projeto para o Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira.

5.1- Os Encontros de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia.

Os encontros realizados na cidade de Saubara surgiram a partir do acúmulo


de experiências que tive no período (2005 a 2010) quando coordenei a Associação de
Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia- ASSEBA58, e depois quando na
coordenação diversos projetos que tinha ligação com a própria associação. Os projetos
desenvolvidos na ASSEBA tinham como alguns de seus objetivos: “salvaguardar o
saber dos praticantes mais idosos do Samba de Roda, contribuir para sua transmissão às
novas gerações e contribuir para o processo de auto-organização dos sambadores do
Recôncavo”. (DOSSIÊ IPHAN 4, p. 85). A partir desses objetivos, inúmeras ações
foram desenvolvidas e uma das ações que avalio como mais valiosa e que teve um
retorno bastante interessante era justamente as reuniões e encontro com os Sambadores
e Sambadeiras das diversas cidades do Recôncavo e de outros territórios de identidade

58
Instituição responsável pela implementação do Plano de Salvaguarda do Samba de Roda do Recôncavo
que foi reconhecido como Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
que nunca se tinham encontrado. Para mim foi crucial para o sucesso do
desenvolvimento do Plano de Salvaguarda do Samba de Roda, proporcionar ambientes
para que essas pessoas pudessem conhecer-se e assim cada um potencializar as suas
ações sabendo e reconhecendo-se como detentores e senhores de seus próprios saberes e
fazeres. Mesmo atuando de forma intensa com o Samba de Roda, a Marujada me atinge
com mais força, o ser marujo sempre esteve mais forte.
A experiência em tratar com as políticas culturais que afloraram no Brasil a
partir do ano de 2003, no governo do presidente Lula, me muniu de conhecimentos que,
por sua vez, trouxe para o Grupo Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, onde tive a
condição de desenvolver projetos dos quais O Encontro de Cheganças e Marujadas do
Estado da Bahia, aquele que vem garantindo uma importante articulação com os grupos
dessa manifestação.

5.1.1- I Encontro de Cheganças da Bahia

O I Encontro de Cheganças da Bahia, projeto inédito no qual reunimos


interessados com o objetivo de discutir a possibilidade de solicitar o reconhecimento
das Cheganças e Marujadas como Patrimônio Cultural da Bahia e do Brasil, aconteceu
nos dias 02 e 03 de agosto de 2013 e foi dividido em duas etapas: Roda de Conversa
entre Mestres e Mestras das Cheganças e Marujadas que abrilhantaram nosso encontro
com riquíssimos relatos sobre os seus grupos e o desfile dos grupos pelas principais ruas
da cidade.
Fizeram parte da Mesa de Conversa: José Roberto, mestre da Marujada de
Cairu, Elizabete, mestra da Chegança Feminina de Arembepe, José Carlos mestre da
Marujada de Jacobina, Mestre Deco, da Chegança de Taperoá, Adilson, mestre da
Chegança de Caravelas, Robson e Raimundo, mestres da Chegança de Mouros de
Arembepe, Sr. Djalma, mestre da Chegança Barca Nova, D. Tânia e D. Aurelita,
mestras da Chegança Feminina de Saubara, D. Jelita madrinha da Chegança Fragata
Brasileira, Sr. Pedro, mestre da Chegança Fragata Brasileira, além das presenças dos
pesquisadores Ralph Wader, que possui registros antigos através de fotos e vídeos de
marujadas, e Josias Pires, produtor do vídeo “Bahia Singular e Plural” que relata a
importância das cheganças e marujadas no contexto cultural para a Bahia e o Brasil, e
também de representantes do IPHAN, UFBA, UNEB, FUNCEB, CCPI, CONEM,
Prefeitura e Secretaria de Cultura de Cairu, SEMPROMI e outros. Todos contaram um
pouco de suas histórias e suas contribuições para a conservação dessa manifestação.

O evento ocorreu com muita emoção para todos os presentes, finalizando


com o apoio de todos, para a partir dali criar um documento pedindo ao IPAC que
reconhecesse essa manifestação como Patrimônio Imaterial da Bahia, para que a mesma
seja salvaguardada para as novas gerações. A troca de saberes entre esses mestres
proporcionou aos participantes um amplo conhecimento dessa manifestação cultural.
No I Encontro de Cheganças da Bahia não faltou emoção e entusiasmo
aos participantes e a comunidade de Saubara. O evento conseguiu mobilizar ilustres
mestres e mestras de Cheganças de diferentes regiões da Bahia, assim como intelectuais,
artistas, gestores públicos, admiradores da cultura popular, crianças, jovens, adultos e 3ª
idade, um público bastante diversificado que se encantou com a beleza do evento. Oito
grupos das cidades de Saubara, Taperoá, Cairu, Jacobina e Camaçari participaram desta
primeira edição do Encontro.

5.1.2- II Encontro de Cheganças da Bahia

O II Encontro de Cheganças da Bahia, realizado em Saubara pela


Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, foi mais uma vez um marco para
a Cultura Popular.
Os dias 01 e 02 de agosto de 2014 foram marcados pelo encontro de chegançeiros da
Bahia, que novamente se juntam a fim de celebrar e fortalecer a iniciativa da
Associação, de buscar oficialmente o registro das Cheganças como Patrimônio da
Bahia. O evento, que promove momentos de interação e troca de experiências entre as
cheganças, trouxe a Saubara mais uma vez a sensação de pertencimento da Cultura
Popular.
O encontro teve duas distintas etapas, na primeira etapa falamos sobre
registros, e ouvimos outras experiências de outras manifestações. A troca de saberes
aconteceu com o intuito de instrumentalizar os cheganceiros para entender melhor os
caminhos para a patrimonializaçao. Estavam presentes representantes da cidade de
Camaçari, Cairu, Jacobina e Taperoá além de representantes dos grupos locais.
Contamos com a presença do Senhor Américo Córdula, secretário de Políticas Culturais
do Ministério da Cultura, Arany Santana, diretora do Centro de Culturas Populares e
Identitárias do Estado da Bahia, Antonio Roberto Pelegrino, gerente de Patrimônio
Imaterial do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), Regane
Nobrega, representante da Fundação Palmares, José Ronaldo Menezes, representante da
Chegança de Laranjeira – Sergipe e representante do Colegiado Nacional de Culturas
Populares, Luiz Henrique Santos Oliveira Sena, representante da Regional Bahia
Sergipe do Ministério da Cultura e ainda representantes das prefeituras de Jacobina e de
Saubara, além da comunidade em geral. Nesta roda de conversa, falamos da importância
da manutenção do apoio aos grupos tradicionais e também sobre a possibilidade do
registro para reconhecimento das Cheganças/Marujadas como Patrimônio Cultural da
Bahia.
A segunda etapa ficou por conta das Cheganças, que desfilaram pelas ruas
de Saubara, enchendo a comunidade de orgulho e felicidade por estar contribuindo para
fortalecer e unir a cultura das Cheganças da Bahia. O evento contou com a participação
dos grupos das cidades de Saubara, Taperoá, Jacobina e Camaçari. A comunidade
acompanhou tudo de perto e aplaudiu com satisfação todos os grupos que ajudaram a
abrilhantar o II Encontro de Chegança da Bahia.

5.1.3- III Encontro de Cheganças da Bahia

Apoiado através do Edital de Culturas Populares versão padrão, o III


Encontro de Cheganças da Bahia – III ECB aconteceu nos dia 7 e 8 de agosto do ano de
2015, na cidade de Saubara/Bahia. O evento em sua terceira edição mais uma vez
celebra a cultura popular trazendo as Cheganças/Marujadas para a cena cultural do
Estado da Bahia.
Nesta 3ª edição o evento trouxe para a comunidade de Saubara 12 grupos
distintos de Cheganças e Marujadas que se espalharam pelas ruas de Saubara formando
um cortejo jamais visto na história das marujadas.
A Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira buscou
incansavelmente reunir os mais variados grupos de Chegança, e conseguiu trazer para o
encontro os grupos de Jacobina, Cairu, Camaçari, Taperoá, Caravelas, Remanso e
Andaraí. Contou ainda com a participação dos quatro grupos de Saubara, a Chegança
Mirim foi a sensação do encontro. Com esse movimento, busca-se continuar
incentivando a permanência da tradição das Cheganças na Bahia. Três momentos
marcaram a realização deste evento: primeiro foi realizada uma Roda de Conversa –
“Os mestres Cheganceiros da Bahia”, seguida da exibição do documentário “Cheganças
de Mouros, Bahia singular e Plural”, com representantes de todos os grupos convidados.
Uma segunda Roda de Conversa com os mestres das Cheganças e o Estado, dedicada
para uma explanação sobre o andamento do Processo de Registro das Cheganças no
Livro do Registro Especial das expressões Lúdicas e Artísticas. Foi o instante onde os
Mestres discutiram com o Estado a situação da cultura popular e ouviram atentos o
presidente do IPAC, em suas palavras finais, que convoca a sociedade e os colegas
representantes de órgãos governamentais para uma grande retomada, um grande levante
cultural em reação ao esvaziamento que estamos vivendo no Brasil. "Só a cultura, com
toda a produção de sentido própria dela, pode nos ajudar a superar isso". (João Carlos
Cruz de Oliveira, 2014). No final deste grande momento foram distribuídos DVD’s do
Material “Êta Marujada”, produzido no período de 2013/2014.
O terceiro e último momento foi o desfile pelas ruas da cidade. As
experiências adquiridas através das realizações dos I e II ECB, permitiu a toda equipe
envolvida, um amadurecimento em lidar com as novas dificuldades, que não foram
muitas nem significativas, devido à competência e comprometimento dos envolvidos.

5.1.4 - IV Encontro de Cheganças da Bahia

Realizado nos dias 4, 6 e 7 de agosto do ano de 2016, na cidade de


Saubara/Bahia o IV Encontro de Cheganças da Bahia, mais uma vez celebra a cultura
popular trazendo as Cheganças/Marujadas para a cena cultural do Estado da Bahia. Este
ano com muitas dificuldades para sua realização plena, adotamos um formato que nos
permitiu manter em atividade a rede de Chegança da Bahia seguindo o objetivo, que é
o Registro no Livro Especial das Expressões Lúdicas e Artísticas do IPAC.
Recebemos o grupo de Chegança Feminina de Arembepe, e alguns
representantes da Chegança Masculina, que juntamente com os quatro grupos de
Saubara, (Chegança Mirim Fragata Brasileira, Chegança dos Marujos Fragata
Brasileira, Chegança de Mouros Barca Nova, Chegança de Mouros Barca Nova
Feminina) desfilaram pelas principais ruas da cidade, levando o brilhantismo, a alegria e
o encantamento das marujadas para toda a comunidade e visitantes, que aplaudiram de
pé a passagem dos grupos.
O evento contou com uma programação de três dias, iniciando no 04 de
agosto, data em que é comemorado o aniversário da Chegança Fragata Brasileira e dia
do padroeiro da cidade, São Domingos de Gusmão. O grupo, como de costume nos
últimos 38 anos de reativação, dirigiu-se à Igreja Matriz, para prestar reverência ao
santo pelos “livramentos ocorridos nas lutas dentro da embarcação”. Como diz a música
“Vamos fazer reverência, vamos fa... fazer a reverência...” os marujos marcaram o dia
com uma linda apresentação. Um momento de diálogo com os representantes dos
grupos visitantes serviu para afinar a relação que vem sendo criada desde o I Encontro
em 2013. Falamos da possibilidade de uma pesquisa com os grupos de chegança da
Bahia, falamos também sobre a fase em que se encontra o pedido de registro e sobre
uma possível ação a ser realizada em novembro na comunidade de Arembepe. Esse dia
06 de agosto ainda foi abrilhantado pelo cortejo dos grupos pelas ruas, reafirmando a
importância da cultura popular e mostrando a todo o público a beleza das Cheganças da
Bahia. No dia 07 a festa foi por conta da Chegança de Mouros Barca Nova Feminina,
que seguiu para a Igreja Matriz nos festejos de São Dominguinhos para prestar
reverência e logo após percorreu algumas ruas da cidade.
O desfile se concretizou com o apoio do IPAC (Instituto do Patrimônio
Artístico e Cultural) e com a colaboração dos Grupos de Chegança de Arembepe
(Camaçari-BA) e os grupos locais que se responsabilizaram com a ASCMAFB com a
realização das atividades.
Ainda com todas as dificuldades, conseguimos marcar a data no cenário cultural,
trazendo as Cheganças e Marujadas como importantes referências culturais da Bahia. A
Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira buscou incansavelmente por
condições da realização plena do evento, porém, devido às dificuldades só conseguimos
reunir os grupos de Chegança locais e o de Camaçari (geograficamente mais próximo).
O movimento busca continuar incentivando a permanência da tradição das Cheganças
na Bahia. As experiências adquiridas através das realizações dos I, II e III ECB permitiu
a conclusão de forma significativa e criou novas expectativas para o próximo ano.
Importante salientar que essa rede de cheganças da Bahia é constituída por 21 grupos,
mas devido à falta de recurso suficiente para uma maior participação, este encontro teve
um formato bastante reduzido. Ter conseguindo realizar o IV Encontro gerou ainda
mais forças para iniciarmos os trabalhos que garantirão a realização do V Encontro com
a presença de mais grupos.
5.1.5- V Encontro de Cheganças da Bahia

O V Encontro de Cheganças da Bahia aconteceu nos dias 4 e 5 de agosto de


2017. Como programado, as atividades iniciaram com a louvação ao padroeiro de
Saubara, na Igreja Matriz de São Domingos de Gusmão, após a louvação, o grupo
desceu a ladeira da Igreja, e percorreu algumas ruas da cidade, demonstrando todo o
gozo e entusiasmo dos marujos. No dia 05, realizamos uma mesa redonda discorrendo
sobre o registro das Marujadas como patrimônio imaterial. Nesta oportunidade tivemos
uma importante participação da comunidade na escrita de uma carta que cobrava dos
órgãos competentes uma maior celeridade com o processo do registro. O desfile e
apresentação dos cheganceiros ficaram por conta dos grupos das cidades de Andaraí,
Cairu, Camaçari, Jacobina, Paratinga, Remanso, Taperoá, Saubara e Lençóis.

5.1.6- VI Encontro de Chegança da Bahia

Como programado, as atividades do VI Encontro de Cheganças da Bahia


iniciou-se as 04 horas da manhã do dia 04 de agosto de 2018, excepcionalmente este
ano foi realizado o Bando anunciador e Alvorada, uma dupla homenagem feita ao santo
padroeiro da cidade de Saubara, São Domingos de Gusmão, e ao Grupo Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira, que nesta data completou 40 anos de sua reorganização.
Juntamos os membros do grupo na sede, situada à Rua Boca da Mata, 05, Saubara-
Bahia, e seguimos em direção à Igreja cantando e tocando, anunciando as atividades
vindouras. Na igreja, participamos da alvorada (queima de fogos), depois retornamos
para a sede, onde foi servido um grande café da manhã. Logo às 6 horas e 30 minutos
recebemos a Marujada da cidade de Paratinga. Após o café, todos retornaram às suas
casas e às 9 horas estávamos todos novamente de volta, dessa vez já com as roupas
oficiais do grupo, e às 10 horas seguimos novamente para a igreja, onde às 11 horas
fizemos a nossa apresentação dentro da missa de São Domingos. Logo depois da
participação na missa, como é de costume, percorremos algumas ruas da cidade a
convite de munícipes para visitar suas casas. Durante o ano de 2017 e 2018, mais um
membro foi incorporado ao grupo, o senhor Edemir Beijamin dos Santos e como uma
espécie de oficialização desse novo membro, fizemos a tradicional visita à sua casa,
onde este ofereceu uma refeição para todo o grupo. Todo o trabalho realizado vem
sendo importante e ter novas pessoas querendo participar nos sinaliza um navegar por
águas tranquilas. Nesse mesmo dia, pela manhã, recebemos as lideranças das cidades de
Andaraí, Alcobaça, Prado, Caravelas e Barra e também os representantes da Secretaria
de Cultura do Estado da Bahia, a Senhora Marta Rita de A. Mendes e o Senhor Juliano
A. Campos, que acompanharam toda a atividade.

Ainda neste dia 4, às 18 horas, realizamos a reunião aberta comunidade em


geral e representantes dos grupos de cheganças da Bahia, além daqueles que chegaram
pela manhã juntaram-se a nós as lideranças das cidades de Sítio do Mato, Paratinga,
Arembepe, Taperoá, Jacobina, Lençóis e Remanso. Essa reunião teve como objetivo
socializar com os presentes todo o processo ocorrido durante o final de 2017 e o
primeiro semestre de 2018, em relação à construção do inventário dos grupos de
Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. Contamos com a presença do presidente
do Conselho de Cultura do Estado da Bahia, o Senhor Emilio Tapioca e também da
Conselheira Sueli Melo, relatora na Câmara Técnica de Patrimônio do Conselho do
Processo de Registro das Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia.
Foram apresentados os resultados parciais dos trabalhos sobre o inventário
dos grupos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. Foram visitadas 16
comunidades, onde foram encontrados 21 grupos em atividade. Através de diversos
contatos, foram levantadas informações que em outras 32 comunidades já existiram
grupos dessa manifestação, mas, que por motivos diversos esses grupos foram
desarticulados. Foi também ressaltada a importância da participação dos conselheiros de
cultura do Estado nesta reunião. Foi uma excelente oportunidade para falarmos sobre o
ser um bem patrimonializado, sobre as responsabilidades de se tornar um bem
reconhecido como patrimônio.
Um tema relevante nesta conversa foi sobre o prazer que se tem em fazer
parte dessa manifestação, algo que se coloca muito maior que o simples fato de ser
patrimonializado.

Se não partir de uma motivação pessoal, de um amor pessoal, uma fé,


de algo que está dentro lá do coração da pessoa, e o nosso papel aqui
e despertar isso. Porque não adianta muita coisa, a gente mostrar o
externo e interno não florescer. Eu acredito que uma busca pela
essência de cada Chegança, pela essência de cada Movimento lá no
seu lugar vai fazer com que, dentre aqui floresça e a gente consiga
cobrar com, com, com..com amor, mesmo”! Romário liderança de
Alcobaça.

Este sentimento expresso por Romário traduz um pensar comum entre nós
representantes dos grupos, revela a nossa responsabilidade em manter existindo as
Cheganças, Marujadas e Embaixadas.
Esta reunião serviu também para contribuir na elaboração do parecer do
Conselho de Cultura do Estado. Foram apresentadas inúmeras sugestões para ações de
salvaguarda dentre elas podemos destacar: a formação para os agentes culturais
envolvidos com essas manifestações; uma aproximação mais intensa do estado com os
municípios onde elas acontecem; que a partir do reconhecimento o estado notifiquem
esses municípios sugerindo um maior apoio; que sejam incorporadas ações nos
calendários locais das comunidades onde existe esta manifestação; que as escolas
possam cada vez mais aproximarem-se desses mestres; que seja construída uma agenda
entre o IPAC e os cheganceiros para a reestruturação dos diversos grupos que deixaram
de existir; que o fomento do estado seja permanente para as ações.
No segundo dia da programação, foi realizada a segunda reunião, que
contou com as presenças das lideranças dos grupos das cidades de Andaraí, Alcobaça,
Prado, Caravelas, Sítio do Mato, Paratinga, Arembepe, Taperoá, Jacobina, Lençóis,
Saubara, Curaçá, Remanso e Barra, alem dirigentes municipais de cultura, produtores
culturais, professores, pesquisadores, representantes do Conselho Estadual de Cultura,
Representantes da Secretaria Estadual de Cultura e a comunidade em geral. Foi o
momento de ouvir os órgãos do governo estadual expressarem sobre o processo do
Registro. Ficamos sabendo que o dossiê já estava no conselho de cultura aguardando o
parecer da relatora e depois seria votado para assim seguir os trâmites processuais.
Várias foram as indagações feitas pelos representantes dos grupos e todas as questões
foram devidamente respondidas pelos representantes do governo.
Na tarde deste mesmo dia, aconteceu o desfile dos grupos presentes foram
eles: Marujada de Jacobina, Remanso, Andaraí, Lençóis, Paratinga e de Curaçá,
Cheganças de Mouros Femininas de Arembepe e de Saubara, Cheganças de Mouros
Masculinas de Saubara, Arembepe, Taperoá, Cheganças de Marujos de Saubara e Cairu.
Contamos também com uma pequena demonstração das embaixadas de Alcobaça. Ao
todo foram quatorze representações. O momento das apresentações é aguardado pela
comunidade, que se concentra para apreciar acomodadamente cada grupo. São crianças,
jovens, adultos, idosos um público variado na idade, no sexo e na condição social.
Realizar um evento como esse traz consigo alguns desafios e dificuldades.
Os recursos não são suficientes para todas as demandas envolvidas na produção e a falta
de apoio e a forma com que algumas prefeituras apóiam os grupos, a disposição
geográfica onde os grupos se encontram também se apresenta como algo desafiador
para conseguir juntar essas pessoas. Assim como os desafios e dificuldades se
apresentam, aparecem também as satisfações em produzir tal evento.

O Encontro de Cheganças do Estado da Bahia é um projeto que vem crescendo a cada


ano que se realiza o encontro, é um projeto audacioso pra que essa manifestação seja
reconhecida pelo IPAC. Como patrimônio Artístico e Cultural da Bahia. Pra realizar um
evento desse porte pra que ele possa virar fonte de pesquisas pra várias instituições da
gama cultural não é fácil, temos inúmeras dificuldades como, apoios financeiros,
colaborações de agentes culturais etc. Mas a cada ano o Encontro de Cheganças está
ganhando visibilidade e gamas maiores. Isso é um grande sinal de que estamos no
caminho certo, "Vamos remando que para vencer" a equipe formada pelo nosso mestre
“Rosildo Rosário" são pessoas engajadas em fazer o outro mergulhar dentro de você
mesmo e que possa descobrir o brilho que foram os “seus” em fazer da sociedade uma
sociedade melhor. VI Encontro foi o reencontro dos encontros, foi lindo rever vários
amigos que ama caminhar com nós mesmo de longe, caminhada longa mas que iremos
vencer. Logo estaremos no caderno que desde sempre era pra estarmos.

Esse é um depoimento de um agente cultural que participa efetivamente na


produção do encontro e ainda é membro da Marujada de Saubara. Vando das Mercês de
forma crítica aponta não somente as dificuldades, mas de forma mais feliz revela o
sentimento que é da comunidade inteira, a satisfação de ver o seu fazer sendo
reconhecido.
O Encontro de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia foi o alicerce
estrutural para que no último dia 11 de fevereiro de 2019 esses grupos fossem
reconhecidos pelo estado da Bahia como Patrimônio Imaterial. Um esforço coletivo
oriundo de uma iniciativa que visar perpetuar a manifestação usando as mais diferentes
possibilidades.
A execução de projetos como esse também colabora com a manutenção do
grupo, a capacidade de gerenciar bem essas iniciativas faz com que cada vez mais os
membros do grupo e a comunidade também colaborem para que possamos manter em
pleno funcionamento o espaço.

5.1.7 - VII Encontro de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia.

Nos dias 02, 03 e 04 de agosto de 2019, Saubara, cidade do recôncavo da


Bahia foi sede da maior festa de Cheganças, Marujadas e Embaixadas do mundo. O
encontro, que reuniu 16 grupos dessa manifestação, teve o objetivo de, além de
promover demonstrações artísticas dos grupos através de apresentações públicas,
aproximar os mestres da cultura popular, especificamente das Marujadas, Embaixadas e
Cheganças, assim como divulgar a existência de diversos grupos, tornando possível o
resgate, a valorização e o reconhecimento aos grupos de Cheganças, Marujadas e
Embaixadas da Bahia.
Realizado pela Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, o
evento contou com a participação de 14 grupos de várias localidades da Bahia e de 2
grupos de outros estados. O evento é uma grande celebração cultural, com desfile,
debates e exibição de documentário. Em um momento especial para os grupos, esse ano
o encontro celebrou também o reconhecimento das Cheganças, Marujadas e
Embaixadas como Patrimônio Cultural Imaterial da Bahia, concedido pelo Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC).
No dia 2, a partir das 18 horas, aconteceu a reunião da Rede de Cheganças da
Bahia e comunidade em geral. O mestre Rosildo do Rosário, coordenador do Projeto,
fez o acolhimento, dando boas vindas a todos, saudando os mestre e mestras presentes.
Depois das boas vindas, o mesmo faz umas ressalvas sobre o desenvolvimento das
atividades que aconteceram em 2018, quando foram registrados os grupos ativos e
inativos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. Esse registro foi feito a
partir da construção do dossiê Etno-histórico, que tem como objetivo contribuir para o
registro dos grupos no livro Especial das celebrações e também a captação audiovisual
dos grupos numa perspectiva de fortalecimento da rede e da Patrimonialização. Após
apresentações e saudações, foi feita de forma inédita a apresentação do documentário,
resultado audiovisual da pesquisa etno-histórica dos Grupos de Cheganças, Marujadas e
Embaixadas da Bahia. Em seguida, Gustavo Castro falou sobre a satisfação de ter sido
responsável em registrar e editar as imagens que resultaram no documentário. Seguindo
a programação, foram convidadas as lideranças ou representações dos grupos de Sergipe
e Alagoas, as representantes do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia -
IPAC e a representante do poder público local, a secretária de Reparação Racial Maria
de Lourdes, para traçar suas narrativas com trabalhos na cultura popular. Giselma,
liderança de Sergipe, fala que acompanha desde 2013 toda a movimentação feita na
Bahia e vem com o grupo para participar do evento com dois objetivos: participar
efetivamente das atividades e entender como aconteceu na Bahia o registro dos grupos e
tentar no seu estado buscar o reconhecimento para os grupos lá existente. Nesse mesmo
pensar, Edson, liderança de Alagoas, aborda sobre a importância de estar em Saubara
para adquirir experiência e tentar no seu estado o mesmo reconhecimento obtido com os
grupos da Bahia.

Após as falas das lideranças e representações, Rosildo do Rosário conta


como foi o processo de desenvolvimento dos Encontros, onde inclusive, começou com
Encontro de Cheganças, depois de Cheganças e Marujadas e atualmente, Encontro de
Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. A redatora do parecer, Suely Melo, é
convidada a fazer uma fala do proceder burocrático de um registro de
patrimonialização. Em seguida, Rosildo do Rosário discute sobre a importância da
patrimonialização dos grupos e de como, a partir da institucionalização do registro,
pensar como deverá ser o posicionamento político. Além disso, todo esse processo teve
uma extrema relevância no fortalecimento da rede de Cheganças, Marujadas e
Embaixadas da Bahia e no encontro com grupos de fora do estado.
No dia 03 de agosto, o evento teve dois momentos: às 09h00 reuniram-se as
lideranças dos grupos (importante registrar que apenas dois dos vinte grupos da rede
não tinham representação nesta reunião), esta etapa, por sua vez, foi divida em três
momentos. Primeiro fez-se uma mesa com o tema: “O que é Patrimonialização e para
que serve?” que contou com as representações institucionais, secretários e/ou diretores
de cultura das cidades de Saubara, Curaçá, Taperoá, Prado, Cairu,Vice-prefeito de
Saubara, presidenta do Conselho Estadual de Cultura e representantes do Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia- IPAC. Neste momento, todos os que
compuseram a mesa fizeram seus pronunciamentos, que tiveram como principal
direcionamento os agradecimentos por estarem presentes no evento e felicitações pela
realização do evento. O Senhor Roberto Pelegrino, diretor de Patrimônio do IPAC, teve
a responsabilidade de falar sobre o tema proposto e ressaltou a importância do Registro
Especial para os grupos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia. Isso devido à
contribuição que estes grupos têm oferecido para a compreensão e fortalecimento da
identidade do estado da Bahia. Falou também de como se deu todo o processo, que teve
o protagonismo das pessoas que de fato participam dos grupos. Em sua fala, Roberto
aponta para a necessidade de todos os envolvidos perceberem quais são suas
responsabilidades para que tenhamos grupos fortalecidos e ativos em todo o território
do estado, e que para o Instituto foi de grande importância que tudo tenha acontecido da
forma como se deu este reconhecimento. O empenho dos próprios atores, ressaltou o
papel da Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira sob a liderança de
Rosildo do Rosário que conduziu com paciência e sabedoria, sabendo aguardar sem
atropelar as etapas de um processo demorado como é o de registro de um Patrimônio
Imaterial. Por fim, falou que esta é apenas uma importante etapa cumprida, mas que a
partir daquele momento precisamos buscar esforços para criar um plano de salvaguarda
sólido com propostas viáveis que envolvam o maior número possível de agentes.
Encerrando-se as falas, a primeira mesa foi desfeita e uma nova mesa foi composta,
dessa vez com as lideranças dos grupos onde estavam presentes 18 pessoas,
representando seus referidos grupos. Estavam representados os grupos Cheganças dos
Marujos Fragata Brasileira de Saubara, Chegança de Mouros Feminina de Saubara,
Chegança de Mouros de Taperoá, Chegança de Mouros de Arembepe, Chegança
Feminina de Arembepe, Chegança de Cairu, Marujada de Andaraí, Marujada de
Lençóis, Marujada do Remanso, Marujada de Jacobina, Marujada de Paratinga,
Marujada de Curaçá, Marujada de Prado, Marujada de Mangal, Marujada de Alcobaça,
Embaixadas de Caravelas, Embaixada de Alcobaça e Embaixada de Prado. Falamos
sobre o decreto assinado pelo governador que reconhece os grupos como Patrimônio
Imaterial do Estado da Bahia. Foi salientado que este reconhecimento acontece num
momento em que o país passa por um momento de desmonte das conquistas sociais de
muita luta por parte da sociedade civil e que a Bahia, a partir de ações como esta,
mantém uma postura de valorização dos bens culturais existente no estado. Em seguida,
cada mestre/responsável pelos grupos foram convidados a receber o certificado de
Patrimonialização, após receber o certificado cada um usou um tempo para falar de seus
sentimentos em participar daquele ato. A entrega dos certificados foi feita pelos
representantes do IPAC, CEC. Posterior à entrega dos certificados, algumas
deliberações foram apresentadas pela assembléia: todos concordaram que fosse
encaminhado ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional – IPHAN o
Pedido de Registro Nacional dos Grupos de Cheganças, Marujadas e Embaixadas, uma
demanda também reforçada pelos grupos de Alagoas e Sergipe presentes, e, ainda, que
fosse criada uma agenda para a construção do Plano de Salvaguarda para os grupos da
Bahia. Demandas que ficaram sob a responsabilidade da Associação Chegança dos
Marujos Fragata Brasileira para encaminhamentos. Na oportunidade, foi entregue para
os representantes dos grupos de Alagoas e Sergipe um certificado de participação do
VII ECMEBA. Logo em seguida, todos os presentes foram convidados a assinar o livro
Especial de Registro. O terceiro momento desse dia foi o encontro propriamente dito,
quando os 16 grupos presentes (Cheganças dos Marujos Fragata Brasileira de Saubara,
Chegança de Mouros Feminina de Saubara, Chegança de Mouros de Taperoá, Chegança
de Mouros de Arembepe, Chegança Feminina de Arembepe, Chegança de Cairu,
Marujada de Andaraí, Marujada de Lençóis, Marujada do Remanso, Marujada de
Paratinga, Marujada de Curaçá, Embaixadas de Caravelas, Embaixada de Alcobaça e
Embaixada de Prado, Chegança de Itabaina Sergipe e Chegança de Pão de Açúcar
Alagoas) encontraram-se no bairro da Rocinha e seguiram num cortejo que durou uma
hora e meia, findando no espaço de eventos do município de Saubara vale a pena aqui
ressaltar que houve uma mudança da proposta original para esta etapa, devido à
logística de montagem de som, palco e iluminação que foi a contribuição da prefeitura
local. Neste mesmo dia aconteceu a festa da cidade em louvor ao santo padroeiro e nos
foi oferecida toda a estrutura já montada para os festejos. Aproveito e relato também
que os grupos Marujada de Jacobina e Marujada da Chegança de Bom Jesus da Lapa,
inscritos originalmente no projeto, não conseguiram chegar para o evento, foram
substituídos pelos grupos de Alcobaça e Prado, e ainda tivemos um aumento de
participação com os grupos de Sergipe e Alagoas. Isso garantiu que o evento fosse
executado sem prejuízo numérico, e com o mesmo brilho proposto, onde cada grupo
teve um tempo de 10 minutos para fazer uma apresentação no palco montado
exclusivamente para esse fim. Após todas as apresentações, que terminaram exatamente
às 19 horas, os grupos foram encaminhados para o local da refeição. Alguns grupos
viajaram para suas cidades de origem nesse mesmo dia e outros pernoitaram e viajaram
na manhã do dia seguinte.
No dia 04 de agosto, a última atividade do encontro fica por conta da
participação dos Grupos Chegança dos Marujos Fragata Brasileira e Chegança Feminina
Barca Nova ambos de Saubara, na Missa em Louvor ao padroeiro da cidade São
Domingos de Gusmão, ato que se repete por mais de cem anos na comunidade. O grupo
feminino reuniu-se na igreja e logo após a missa cantaram a reverência. O Grupo
Chegança dos Marujos Fragata Brasileira reuniu-se às 9 horas da manhã na sede e às 10
horas partiram, como sempre, cantando e dançando pelas ruas da cidade até chegar à
igreja por volta das 11 horas, onde aguardaram a missa e no final fizeram a louvação ao
padroeiro, momento que é esperado por toda a comunidade todos os anos. E como é
tradição, após a missa o grupo visita algumas casas na cidade, são residências de ex
membros ou familiares de membros que nos convidam para, em suas portas, fazer
apresentações. Nesse momento eles oferecem almoço e outros petiscos ao grupo. O dia
04 de agosto é o momento onde acontece a verdadeira interação entre o grupo e a
própria comunidade. Este ato de percorrer as ruas, visitar pessoas configura-se como o
elo entre as pessoas que se sentem tocadas e representadas pela manifestação. Para nós,
membros participantes, a sensação é de que tudo que nós fazemos é muito mais
profundo do que amplo.

O VII Encontro de Cheganças, Marujadas e Embaixadas da Bahia revela-se


como um interessante ato cultural que a cada ano fortalece o território do Recôncavo
como o mais importante pólo cultural do Estado da Bahia. Para nós de Saubara,
assegurar a realização desse evento no território e em nossa cidade é possibilitar que
cada vez mais tenhamos uma comunidade detentora de saberes e fazeres tradicionais
capazes de contribuir efetivamente para a construção da identidade e da memória
coletiva da cidade. Realizar esta atividade em Saubara é, para todos nós da Associação
Chegança Fragata Brasileira, motivo de orgulho, satisfação e alegria. Ter a capacidade
de reunir diversas pessoas vindas dos mais variados cantos da Bahia e do Brasil
demonstra a capacidade mobilizadora que possuímos. Transformar a tarde do dia 3 de
agosto num momento onde famílias apreciadoras da cultura tradicional foram às ruas
para acompanhar este encontro revela a necessidade de cada vez mais pensarmos num
público diverso. São famílias inteiras que preferem uma programação regional,
tradicional. Saubara é o cenário perfeito para cultivar esse público. Mesmo com a
certeza de que Saubara é o cenário interessante para a realização deste evento temos a
consciência coletiva que aponta para a necessidade da descentralização, e outras
comunidades como Curaçá, Paratinga, Cairu, Prado, Andaraí, Lençóis, Remanso-
Lençóis, Arembepe-Camaçari, Caravelas, Alcobaça já entenderam a sua importância
dentro do cenário baiano e se colocam como localidades possíveis e reivindicam que os
próximos eventos sejam realizados em suas comunidades.
O VII ECMEBA foi o momento de desembarcarmos em um porto seguro
após um navegar coletivo no mar que em cada turbulência nos lançou a novos
aprendizados. Nesse navegar imaginário, lançamos as redes e nos fortalecemos para
juntos alcançarmos nossos objetivos. Acreditamos que esse seja o primeiro atracamento
de uma embarcação que muito tem a navegar, e esperamos contar sempre com os
parceiros que até aqui foram âncoras e contribuíram significativamente para que tudo
ocorresse com qualidade. A luta ainda se estende, muitos caminhos precisarão ser
percorridos, mas contar com os detentores dessa grandiosa manifestação é a principal
força para prosseguirmos.
A partir de então, como continuidade das ações, atentamos para a
construção do Plano de Salvaguarda, que acontecerá com a participação de todos os
envolvidos, e o pedido de Registro Nacional das Cheganças, Marujadas e Embaixadas,
conforme acordado por todos os presentes no último Encontro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Investigar como o grupo Cultural Chegança dos Marujos Fragata Brasileira


resiste ao tempo por meio da oralidade e como tem atuado na formação da identidade
das pessoas que vivem em torno do grupo e da comunidade de modo geral, realizar um
levantamento das letras das canções do grupo e fazer uma análise de como estas podem
contribuir para que a escola formal possa utilizá-las dentro do ambiente escolar e
investigar como o conceito de patrimônio cultural pode contribuir para que as pessoas
envolvidas nas mais diversas manifestações culturais possam cada dia mais reconhecer-
se como agentes protagonistas do processo de formação de sua própria identidade foram
os objetivos que nos motivou a ingressar no Mestrado profissional em História da
África da Diáspora e dos Povos Indígenas. Na esperança de encontrar respostas para as
indagações feitas inicialmente, recorremos a outros conceitos (memória, música,
religião) que serviram como fios que possibilitaram tecer uma rede de informações
proporcionando chegar aos entendimentos que nos trouxe até o final do curso.
A oralidade é o etnométodo aplicado pelas comunidades tradicionais para
estabelecer a continuidade dos saberes e fazeres. Ela permite com sua dinâmica que os
primeiros contatos entre os indivíduos aconteçam, é o falar e o ouvir que primeiramente
se estabelecem, é com essa organicidade que as pessoas constroem e nutrem suas
identidades. O estudo que por ora foi feito, orienta a compreensão de que a identidade
de cada pessoa é construída a partir das relações que se estabelecem entre seu íntimo e a
convivência social. Isso revelou a importância que um grupo cultural tem numa
comunidade. A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira há muito tempo vem
colaborando com suas ações, seus ensinamentos atingem inúmeras pessoas que
diretamente são integrantes do grupo e ainda se apresenta como uma manifestação que
representa a cidade de Saubara. Mas, apenas é possível que aconteça a transmissão oral
por conta da existência da memória coletiva, essa faculdade é o fio condutor que
permite que oralidade e memória se complementem. A transmissão feita outrora e
ouvidas hoje através de outras vozes é a concretização da permanência dessa
manifestação. Sendo a memória o fio transmissor, a corrente que passa por esse fio é a
música, pois é esta que embala os corpos e dão movimento, que no caso da Chegança é
o movimento da maré, maré que enche e vaza permanentemente indicando que estará
sempre presente.
Foi possível mergulhar de maneira mais profunda no mar das canções, estudar
seus significados e encontrar diversas relações possíveis com outras práticas. Através
das letras das canções foi possível construir um livro que vislumbro colaborar para uma
educação que liberta. Estão presentes na musicalidade, na historicidade desse grupo a
condição propícia para um fazer pedagógico que considere seus ensinamentos como
instrumentos educacionais que possam ser utilizados na escola formal. Com o intuito de
colaborar para que as escolas se aproximem cada vez mais das manifestações culturais
do município, desse grupo especificamente, e diretamente contribua com a sua
salvaguarda, foi criado o livro que leva o mesmo nome desse relatório: “Cheganças e
Marujadas: De uma travessia imaginária a um porto seguro”, que traz consigo a
narrativa de construção de um saber a partir da história da Chegança Fragata Brasileira.
Dividido em três capítulos, o livro primeiro faz uma descrição do grupo, onde e como
ele foi constituído, depois apresenta os conceitos e significados das Cheganças, fazendo
a distinção entre Chegança de Mouros e Chegança de Marujos, e por último relaciona as
canções com o episódio acontecido em 2 de julho de 1823 (Independência da Bahia),
que segue acompanhado com algumas sugestões e atividades que podem ser
desenvolvidas em sala de aula de qualquer nível, mas, para tanto, precisará contar com a
habilidade de cada professora ou professor.
Salvaguardar o patrimônio cultural existente é responsabilidade de todos os
indivíduos, mas é preciso também aprender sobre o que é ser patrimônio, é preciso
reconhecer-se parte integrante para cada vez mais valorizar e contribuir efetivamente
para sua proteção. Nessa linha de pensamento, acredito que uma política de
patrimonialização gerenciada de forma eficaz pelo Estado permite que os zeladores das
manifestações se encontrem, se reconheçam no fazer do outro e mutuamente construam
uma agenda positiva.
As expectativas foram alcançadas, as questões foram respondidas, as
respostas não se esgotam, até porque ao apresentar respostas, nesse trabalho, elas apenas
provocaram o surgimento de inúmeras outras indagações. É preciso desvendar o
universo da religiosidade sincrética por trás da existência das Cheganças, como elas se
espalharam pelos mais diversos e longínquos territórios do Brasil, em alguns casos, no
mundo. Julgamos extremamente necessário um mapeamento preciso da existência de
grupos no Brasil, a catalogação das canções dos grupos, registro de áudio e de imagens,
mapear e registrar os ritmos e melodias que os compõe. Tudo isso é mar a se navegar.
Existem ilhas, ilhotas, arrecifes, terras para serem conhecidas. As Cheganças e
Marujadas compreendem um oceano de inesgotável fonte de conhecimento, e precisa de
marujo para navegar, pois quem é do mar não enjoa.
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