Los Hermanos y o Novo Século de La Canción
Los Hermanos y o Novo Século de La Canción
Los Hermanos y o Novo Século de La Canción
INSTITUTO DE LETRAS
Porto Alegre
2018
AFONSO LUIS FREIBERGER ANTUNES
Porto Alegre
2018
AFONSO LUIS FREIBERGER ANTUNES
BANCA:
Porto Alegre
2018
AGRADECIMENTOS
Following the resounding success of “Anna Júlia”, hit song included in Los
Hermanos’ namesake debut album (1999), Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante and
band went straight to a bold, conceptual second album: Bloco do Eu Sozinho (2001).
This transition represented a modification in Brazil’s phonographic market, since
having the record denied by record label Abril Music, under the claim that the album
had no songs with radio-appeal, the Rio de Janeiro-based band had to reinvent its
relationship to both audience and media, giving the first steps towards a brazilian
independent market. From an aesthetic point of view, the record represents the
revival of the evolutionary line proposed by Caetano Veloso (CAMPOS, 1974, p.63),
engaging with the traditions of samba-canção, promoting, simultaneously, Bossa
Nova’s gesture of selection and the tropicalist’s blending gesture (TATIT, 2004) while
offering a modernization of the model for popular song, through a “impressionist” or
“expansive” kind of song, characterized by a shift or displacement of “diction” from
the center of the model, a process I call “new century’s node”. Because of its artistic
boldness and privileged place in the turn of the century, Los Hermanos represents
not only the project of a new century for popular music, but the values, desires and
the modes of expression of a generation.
1
O disco, no entanto, não foi assinado por Bonadio, devido a impedimentos contratuais com outra
gravadora. Oficialmente, constam como produtores da obra os nomes de Rafael Ramos e Rodrigo
Castanho.
9
que era produzido no país. Esse rompimento foi responsável por uma mudança de
rumos no cenário da música popular.
Bloco do Eu Sozinho, do ponto de vista comercial, representou uma atitude de
negação da banda carioca aos valores estéticos e mercadológicos impostos pela
indústria fonográfica, como a busca obsessiva pelo hit e a desvalorização do álbum
enquanto obra e conceito. Los Hermanos pode ser considerado o primeiro
representante do indie brasileiro, a ponta de lança de um fenômeno de
independência do rock semelhante ao que vinha acontecendo em diversos lugares
do mundo, principalmente nos Estados Unidos com o surgimento da banda The
Strokes e o sucesso do EP The Modern Age, lançado praticamente na mesma
época. De certa forma, ambas as bandas são resultados de um mesmo processo de
transformação dentro do mercado fonográfico, em que artistas estavam saturados
do tratamento recebido pelas gravadoras e passaram a reivindicar o controle sobre
seu próprio trabalho.
Concomitantemente, do ponto de vista estético, Marcelo Camelo, Rodrigo
Amarante, Rodrigo Barba e Bruno Medina propõem uma nova forma de se fazer
canção no Brasil, misturando algumas novidades do rock estrangeiro da virada do
século, como as colagens experimentais dos discos Ok, Computer (1997) e Kid A
(2000) do Radiohead e o peso das guitarras de pop-punk da banda Weezer com
influências de música brasileira oriundas diretamente das raízes da canção popular.
Entre elas, a batida síntese da bossa nova, a dicção frágil e “pé de ouvido” ao estilo
João Gilberto, mas principalmente a poética amoroso-existencial própria dos antigos
sambas-canção, semelhante àqueles criados por compositores como Nelson
Cavaquinho, Cartola, Lupicínio Rodrigues e Noel Rosa nos anos 30 e 40, tendo
como temas centrais o amor não correspondido, a solidão, a saudade, e outras
questões do universo da chamada “dor-de-cotovelo”. As referências ao universo
popular também se explicitam em inúmeras citações diretas ao carnaval, ao circo e
ao samba, em diálogos diretos com antigas canções brasileiras, além da própria
inserção de instrumentos como o pandeiro, o tamborim e os naipes de metais à
formação clássica da banda de rock.
Essa atitude de negação às estruturas do mercado fonográfico, aliada ao
experimentalismo estético do segundo disco, transformou Los Hermanos em um
paradigma para uma nova cena brasileira, que tem como característica principal
justamente a liberdade criativa proporcionada pela independência das gravadoras e
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das mídias de massa. A banda acabou se tornando também uma espécie de elo
entre uma canção popular do passado, dos sambas-canções, das marchinhas de
carnaval, da bossa nova e do tropicalismo, e uma nova geração de música popular.
No entanto, ao mesmo tempo em que Los Hermanos resgata as raízes da
canção brasileira, também é responsável por promover algumas revoluções
importantes em sua estrutura. A primeira revolução foi apresentar um projeto que
busca sintetizar a música popular brasileira dentro de uma estética rock. Algo que,
sem dúvida, já havia sido ensaiado dentro do movimento tropicalista com Os
Mutantes, Gil e Caetano, mas sob outras perspectivas estéticas. E também era
explorado em alguns contemporâneos noventistas como Raimundos e as bandas do
movimento manguebeat, mas através de influências de ritmos do nordeste, como o
forró, o baião e o maracatu. Porém, ninguém obteve o mesmo sucesso que o
quarteto carioca ao propor a absorção de elementos do samba-canção e da bossa
nova ao rock brasileiro. Até então, tal atitude soava um tanto pejorativa à cena
roqueira, que negava a antropofagia tropicalista e via no tamborim e no pandeiro, no
banquinho e no violão, estereótipos de Brasil:
no começo dos anos 1990, era até meio vergonhoso para qualquer um
admitir que gostava de música brasileira. Gostar de tropicália, então, era
motivo de chacota: “Curte Caetano? Gil? Você está maluco! Mutantes?”. As
pessoas davam risadas. (CRUZ, 2008 apud CLEMENTE, 2008, p. 130)
Houve um momento em que apareceu o Los Hermanos, que não por acaso
tem o nome em espanhol, com canções de rock tristes. Havia já outros
grupos melancólicos, mas o fato é que a temática da tristeza deixou de ser
proibitiva. (GRAIZ, 2018).
pelo projeto da bossa nova: “a retomada da tradição da música brasileira deverá ser
feita na medida em que João Gilberto fez” (CAMPOS, 1974, p.63). Isto é, mostrar
como a banda carioca alinha-se a uma perspectiva de vanguarda.
Após analisar o panorama histórico e as características dos dois primeiros
discos da banda, a intenção desta pesquisa é mostrar como Los Hermanos
representa uma espécie de membrana na canção popular brasileira, que absorve
elementos do passado na mesma intensidade que fornece novidades para o futuro,
inaugurando o que chamarei, com alguma ousadia, de “um novo século da canção”.
Tendo não só uma posição central num momento sócio-histórico decisivo, por
ser, sem dúvida, a grande banda brasileira da virada do milênio, mas também por
propor inovações nos mais variados aspectos, seja no modelo cancional, seja no
mercado fonográfico, a banda Los Hermanos chacoalha e transforma para sempre o
cenário nacional, dentro e fora do rock. Entendê-los, de certa forma, também é uma
tentativa de entender como se expressa e se identifica uma geração.
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foi um divisor de águas na história dos hermanos, porque os faria chegar aos olhos e
ouvidos das grandes gravadoras, caso da Abril Music, com quem assinaram o
primeiro contrato fonográfico.
O primeiro disco da banda é como um ornitorrinco estético. Transita entre
Weezer e Lamartine Babo, vai de Sublime a Roberto Carlos, passando
invariavelmente por Mulheres Q Dizem Sim e Acabo La Tequila – bandas
contemporâneas da época underground. Numa geleia geral meio talhada, feita de
fruta ainda verde, há um disco que se pretende ousado, mas esbarra em
inconciliações estéticas. É uma obra que pode ser facilmente dividida em duas
visões divergentes de música, como se houvesse dentro dela dois discos diferentes:
o disco que a banda idealizava, minado por outro disco, o da gravadora, com
canções que soavam comercialmente interessantes. Apesar dos dois lados
confluírem na ideia de se gravar canções de amor, algo que seduzia tanto o mundo
mainstream – por ver numa banda de garotos cantando músicas românticas uma
grande oportunidade de mercado –, quanto para a própria banda – por ter essa
temática como essência das suas composições desde seu surgimento –, gravadora
e banda não falavam musicalmente a mesma língua. Los Hermanos ainda era a
banda queridinha do underground, conhecida pela ousadia de misturar hardcore, ska
e marchinha de carnaval, fazendo de seus shows um carnaval de tamborins, naipes
de metais e guitarras distorcidas. Já a Abril, com suas óbvias intenções comerciais,
enxergava um grupo de rostos jovens com um grande potencial para emplacar
baladas românticas.
Essa dissonância é a grande tônica do álbum Los Hermanos (1999). Em suas
14 faixas, claramente, existem dois tipos diferentes de canções. O primeiro grupo,
predominante no disco, é onde se fazem mais presentes o hardcore e o ska:
músicas com andamentos acelerados, variações bruscas de estilo e vocais que
transitam entre o agressivo e o romântico. Algo interessante dessas faixas é que a
sua maioria mal chega aos 2 minutos de duração, o que dá a elas certo tom de
vinheta ou interlúdio. Essa é mais uma faceta da influência hardcore, gênero que
tem por característica o BPM acelerado e a música de curta duração. Neste grupo,
destacam-se “Pierrot” (“O Pierrot apaixonado chora pelo amor da Colombina/E a sua
sina chorar a ilusão”), espécie de paráfrase da tradicional marchinha carnavalesca
“Pierrot Apaixonado” (“Um pierrô apaixonado/Que vivia só cantando/Por causa de
uma colombina/Acabou chorando”) de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres; e
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“Azedume” (Tira esse azedume do meu peito/E com respeito trate minha dor/Se hoje
sem você eu sofro tanto/Tens no meu pranto a certeza de um amor) uma faixa que
derrama em seus brevíssimos 1 minuto e 21 segundos a amargura do final de um
relacionamento amoroso. Ambas são registros de repertório ainda da fase
underground. Nelas, e em outras 10 faixas que seguem pela mesma linha, temos
uma mostra daquela banda que entusiasmava a cena carioca com suas levadas de
marchinha de carnaval aliadas à intenção de contrastar o “peso da melodia” e a
“leveza das letras”, como define o próprio Camelo:
A escolha de Bonadio para a produção musical do disco diz muito sobre como
a gravadora encarava o projeto Los Hermanos: como um caça-níquel, uma aposta
alta no mercado fonográfico. Bonadio era o nome por traz dos dois últimos grandes
sucessos comerciais a surgirem do rock brasileiro: Mamonas Assassinas e Charlie
Brown Júnior. Já era conhecido na cena musical por ser um produtor que busca o
hit, a parada de sucesso e o disco de ouro antes de qualquer valor estético. É um
17
Quando foi lançada em 1999, era impossível sintonizar uma rádio e não
ouvir “Anna Júlia”. A levada alegre da canção triste agrada já na primeira
audição – e puxou o álbum de estreia do Los Hermanos. Apesar de ser
exatamente roqueira (o beatle George Harrison até regravou o solo de
guitarra, em versão do ex-Traffic Jim Capaldi), dominou até o Carnaval
naquela época (TURRA, 2009)
O hit havia saído do controle de tal modo que a própria banda começou a
sentir-se, de certa forma, ofuscada pela própria criação. Em seus shows, ninguém
queria ouvir qualquer outra canção que não “Anna Júlia”, e nesse embalo, a
imprensa tratava-os como a banda de uma música só:
A escalação do show era bizarra: uma dupla sertaneja mirim, uma banda de
baile e outra dessas gauchescas. Pra fechar a noite, Los Hermanos. O
cartaz e o material de divulgação também eram, no mínimo, estranhos.
Sobre uma foto antiga da banda carioca, estava lá a frase, em letras
garrafais: “Ô Anna Júliaaaaaaa”. Até um jornal de São Bento do Sul (SC),
ao noticiar o show, disse que estaria na cidade o grupo autor do sucesso “Ô
Anna Júliaaaaaaa”. Bizarro. (FERNANDEZ, 2002).
comum as pessoas acharem que fazer sucesso é uma coisa ruim, negativa.
Porque “ah, não, se faz sucesso então não deve ser bom”. E isso é uma
ingenuidade, tanto da imprensa, quanto das pessoas, de achar que se
tornar público ou ser muito conhecido é uma coisa ruim. Acho que é ruim
para quem é fraco e tem medo de perder isso. A gente nunca teve isso. A
gente faz música com o coração, da forma como a gente sabe fazer. Então,
Anna Júlia foi feita da mesma forma, a gente adora a música. As pessoas
se incomodam é com a gente ter feito sucesso, isso sim. (AMARANTE,
2006).
Tal fala demonstra que havia muito mais um ressentimento da banda em
relação a certo tratamento recebido da imprensa – que é um desdobramento do
tratamento da gravadora e da indústria como um todo - do que propriamente um
desdém por “Anna Júlia”. O mito de que Los Hermanos renegou o sucesso surge de
atitudes da banda que demonstravam consciência e cuidado em relação à própria
imagem e obra, gestos incomuns à maioria dos artistas de grande exposição da
mesma época, como aponta artigo do Estadão:
Queremos ser felizes. Isso não é um ato heróico. Não queremos colocar as
conseqüências antes das causas. Risco é não imitar, não ter medo de ser
popular. Se arriscar é se expor. Ser popular é se opor a fazer música para
um determinado público. Não pensamos em quem vai gostar. Isso é ser
popular. (UNIVERSO MUSICAL, 2003).
essa ousadia. No entanto, o sucesso excessivo de “Anna Júlia” ofusca essa faceta
do grupo, como fala Camelo:
Ser popular não é criar refrãos fáceis, que as pessoas repetem. Ser popular
é fazer o que agrada a cada um. Rótulos como ser banda de skate, de
hardcore, criam um público, mas ao mesmo tempo restringe. Não temos
compromisso com a marca Los Hermanos. Não queremos criar estigmas –
os que criam para a gente já são suficientes. (UNIVERSO MUSICAL, 2003).
Os anos 2000, enfim, abriam suas portas e a tensão em torno de um bug que
afetaria os sistemas informatizados, causando o fim dos tempos, não se confirmara.
Sob os olhos do século XXI, a vida permanecia aparentemente igual. Para os
hermanos, no entanto, os tempos eram outros. Imersos num sítio na serra do Rio de
Janeiro, longe da cidade, dos estúdios tradicionais e das cobranças da gravadora,
refugiaram-se para a produção de um novo disco (processo que se repetiria em
todos os trabalhos do grupo a partir de então). Amarante justifica essa mudança:
No nosso primeiro disco fizemos a pré-produção em um estúdio tradicional,
e fizemos um registro das nossas músicas do underground.. Com
o Bloco... foi a primeira vez que paramos para fazer um CD. Fizemos uma
reclusão em um sítio, e acabou virando um método necessário. Isso é fruto,
primeiro, da nossa vontade de concentração. Não é só tocar – a gente
conversa, toca violão, faz as letras... (UNIVERSO MUSICAL, 2003).
Com novo produtor e nova formação, agora sem mais um baixista fixo –
nesse disco, Kassin, ex-integrante da banda do underground carioca Acabo La
Tequila, colaboraria nos graves - a banda buscou o sossego de um sítio para
trabalhar nos novos arranjos, promovendo um “clima quase libertário”, nas palavras
de Marcelo Camelo (BLOCO, 2001). O resultado desse processo de isolamento e
libertação foi Bloco do Eu Sozinho, um disco conceitual sobre uma quarta-feira de
cinzas:
Quem esperava uma nova “Anna Julia” já recebe o recado na primeira faixa
do álbum: “Todo Carnaval Tem Seu Fim”. Este “Bloco do Eu Sozinho” é um
disco de quarta-feira de cinzas, um disco de ressaca, de maquiagem
borrada, camisas suadas e, sobretudo, um disco de quem vai embora para
casa sozinho após a festa. (COSTA, 2001).
São Paulo (BLOCO, 2001). A banda obviamente recusou. Bateu pé, defendeu o
disco com unhas e dentes e partiu para o embate, como escancara a provocação de
Amarante em entrevista à Folha de São Paulo:
Foi a maior perda de tempo, porque acabou ficando como nós queríamos.
Mas eles acabaram ficando felizes, porque tiveram a última palavra. Foi
meio por causa de birra, coisa de falar que não aceitam, querer impor, dizer
que “a gente é que manda” e tal. (FERNANDEZ, 2002).
O impasse real jamais seria solucionado. Por mais que a gravadora acabasse
lançando o novo disco, não faria o menor esforço para promovê-lo. Sem verba de
divulgação, longe de jabás, capas de revista e entrevistas para TV, o lançamento de
Bloco do Eu Sozinho criava uma situação inusitada: Los Hermanos passava do topo
das paradas de sucesso para o desaparecimento quase total para o grande público.
Camelo fala sobre isso para o blog ScreamAndYell:
25
O resultado disso é uma queda brutal nas vendas (das 300 mil cópias do
primeiro, para 35 mil no segundo), o sumiço das FM e a diminuição – em quantidade
e dimensão – de shows, como conta novamente Marcelo:
Esse disco não é pra ser tocado em lugares grandes, até porque não teve
uma música que tocou pra caramba em rádio e tal. E isso é legal. Embora
com pouco tempo de estrada, temos muita experiência ao vivo. Já
experimentamos todos os tipos de palco nesse pouco tempo. É bom voltar a
tocar em lugares pequenos, para um público que conhece a banda, canta
as músicas, vai no site, vê a banda como um todo. A gente passou muito
tempo tocando pra públicos grandes, na excursão do primeiro álbum, em
que tentávamos convencer as pessoas. E é bacana estar de volta a plateias
mais próximas, sem ter que convencer ninguém. (FERNANDEZ, 2002).
2
Segundo Alexandre (2013), quase metade da música comercializada no Brasil vinha de suportes
falsificados no início dos anos 2000.
27
3
Trechos de ensaios da banda tocando canções do disco vazaram na internet antes mesmo de seu
lançamento. Algo, até então, inédito no país.
28
atenção de parte da imprensa, como mostra uma crítica da Folha de São Paulo
sobre o disco:
4
Conta Medina: “As bandas têm que se adaptar à nova realidade. O nosso site, por exemplo, foi
muito importante para a divulgação do Bloco...Tivemos problemas de divulgação com a gravadora,
e o site ajudou. Estamos entre os 20 mais acessados da UOL, disputando com nomes
absurdamente maiores.” (UNIVERSO MUSICAL, 2003)
29
É importante frisar que tudo isto só é possível por causa da ousadia estética e
rompedora de Bloco do Eu Sozinho, espécie de marco zero do movimento indie. O
disco exerce no Brasil o mesmo papel fundador que The Modern Age (2001) –
primeiro EP do The Strokes que, lançado por um selo independente britânico,
continha apenas três músicas e fez sucesso a nível mundial6 – exerce no indie norte-
americano. Ambos têm como principal característica o desprezo pelas convenções
radiofônicas e pelas fórmulas ortodoxas de sucesso, um rompimento consciente com
a lógica do mercado musical, construindo reconhecimento e audiência longe dos
jabás e das mídias de massa. Inauguram, assim, princípios morais e estéticos que
norteariam uma fração importante das novas gerações a partir de então. Camelo fala
sobre essa questão:
5
Kapp (2017, p. 17) destaca o pioneirismo de Tim Maia ao criar a SEROMA, sua própria gravadora
independente, em 1981.
6
Depois do sucesso avassalador de seu primeiro EP, The Strokes gerou uma disputa poucas vezes
vista entre gravadoras para contratar um artista. Ao menos 10 gravadoras diferentes tentaram
contratá-los, o que permitiu à banda fazer exigências artísticas das mais variadas, dando-lhes maior
autonomia.
30
4 MELANCOLIA E REBOSSANOVIZAÇÃO
Tal estigma se explica quando analisado o cenário musical dos anos 90.
Como já dito, o rock havia deixado de ser o gênero hegemônico do mainstream
desde o fim dos anos 80, quando ocorre a explosão de popularidade das duplas
sertanejas:
espaço”, como disse Toni Bellotto à Folha de S.Paulo, sem esconder uma
ponta de ressentimento. (ALEXANDRE, 2013, p. 91)
Pois foi esse trio de gêneros – sertanejo, axé e pagode – que mais
nitidamente se apoderou do mercado nacional de discos, gerando na
sociedade global um misto de alegria e mal-estar. De um lado, o prazer
imenso de multidões de fãs e, de outro, o desprezo aborrecido dos
aficionados da canção de autor. Nessa nítida divisão de interesses estava a
explicação do fenômeno. Programados para uma fruição a distância, os
novos gêneros não resistiam à audição concentrada de músicos,
intelectuais, jornalistas e praticamente todos os setores da elite cultural.
Essa sonoridade não trazia variação rítmica, sutilezas harmônicas, achados
poéticos, arranjos diferenciados e nem mesmo se identificava com a
procedência singela do canto caipira, do frevo ou do samba carnavalescos.
(TATIT, 2004, p. 236).
“Anna Júlia” foi um hit fora da curva justamente por ir contra a tendência
tematizadora, fazendo uma balada romântica bastante inocente, mas que trata do
amor de forma bem intencionada. Supria uma carência passional que havia há
tempos na dicção do rock. Não é à toa, portanto, que Marcelo Camelo é tão enfático
34
nas entrevistas quanto ao fato de fazer canções que misturam peso de guitarras
com letras de amor. Tudo isso ia contra o fluxo.
Tatit (2004) fala de um gesto de recolhimento e depuração da bossa nova que
realimenta a linguagem da canção popular sempre que essa é exposta a excessos:
a triagem. Diante de toda atitude ou tendência excessiva na música brasileira, a
triagem bossanovista surge como uma espécie de filtro, um ponto de retorno para a
raiz oral do gênero:
Há excesso quando a canção “diz”, mas não convence, em geral por ignorar
o princípio entoativo. O gênero se sobrepõe à particularidade da
composição de tal modo que já nos acordes introdutórios ou na “levada”
instrumental temos todos os elementos – de melodia e de letra – que
deverão comparecer ao longo da canção, como se esta tivesse de obedecer
a uma conduta preestabelecida. (TATIT, 2004, p. 86).
a melancolia tem por conteúdo algo mais do que luto normal. Nela a relação
com o objeto não é nada simples e se complica pelo conflito de
ambivalência. A ambivalência é ou constitucional, isto é, inerente a cada
uma das ligações amorosas desse ego, ou surge justamente das
experiências acarretadas pela ameaça de perda do objeto. Por isso a
melancolia pode, quanto aos motivos que a ocasionam, ir muito mais longe
do que o luto, que via de regra só é desencadeado pela perda real, a morte
do objeto. Na melancolia se tramam portanto em torno do objeto inúmeras
batalhas isoladas, nas quais ódio e amor combatem entre si: um para
desligar a libido do objeto,outro para defender contra o ataque essa posição
da libido.(FREUD, 2011, p. 37).
Não há, na música dos Hermanos, qualquer tipo de louvação ao risco. Pelo
contrário: muitas vezes o que encontramos é a vontade de retorno e de
permanência, a vontade de voltar ao porto, que vem junto com o lamento
por mudanças indesejadas. E se há uma diferença profunda entre os
Hermanos e os tropicalistas seria justamente essa: a de colocar novamente
a mudança sob suspeita. A teimosia em avaliá-la de modo direto, subjetivo
e parcial – do ponto de vista concreto de um sujeito sentimental. As coisas
mudam, sim, e não raro, a depender do ponto de vista, mudam para pior.
Um lamento difuso – talvez o lamento de uma geração que não chegou a se
sentir como Sujeito da história – perpassa algumas canções dos Hermanos.
(COSTA E SILVA, 2014).
Iniciar a vida adulta como trabalhador nos anos 2000 é sentir na carne o
resultado de uma desvalorização do trabalho iniciada em meados dos anos
1970 e levada a cabo com intensidade crescente até os dias de hoje. É
sentir-se continuamente ameaçado pela possibilidade (já naturalizada) de
“não encontrar um lugar” no mercado de trabalho; pelo sentimento de ser
altamente “substituível”. É sentir a pressão de um sistema que produz cada
vez mais ansiedade com o tempo, no qual estamos continuamente correndo
atrás não sabemos bem do que, num mundo que estimula e banaliza a
competição, a “luta por vagas”, apoiando-se, para isso, no mito do
vencedor. (COSTA E SILVA, 2014).
não estar filiado aos ideais da música pop de seu tempo, apresentando-se como
uma alternativa geracional que rema contra a maré e olha de forma nostálgica para
o passado para encontrar respostas: “Realmente é característica das gerações mais
jovens mudar o que foi feito antes. Principalmente porque nos anos 80 e 90 a
música brasileira foi muito maltratada. É natural que a nossa geração olhe pra trás.”,
provoca Marcelo (UNIVERSO MUSICAL, 2003)
Como reação a esse desacordo com o presente, em busca de uma
delicadeza perdida, a banda parece encontrar refúgio em outras épocas, em
existências e melancolias muito antigas, em paixões e sentimentos próprios do
samba pré-bossa nova dos anos 30 e 40. Seja nas letras das canções que parecem
compostas por contemporâneos de Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues ou Cartola, seja
na mistura do rock à estrutura ralentada e passional de composição do samba-
canção7– além do uso de timbres vintages em naipes de metais ou tamborins e
pandeiros gravados em estéreo -, Los Hermanos entoa uma espécie dicção
nostálgica, fora de seu tempo, como bem aponta resenha da época de lançamento
do Bloco do Eu Sozinho:
o álbum pega na veia e mostra que a saída para a música pop nacional é
ser antiga e atual no mesmo riff de guitarra, no mesmo som de tuba, na
mesma tristeza de letra que embalaria sambas-canção nos anos 30 e que
embalam relacionamentos partidos em 2001. (COSTA, 2001).
7
Camelo faz parte de uma família com fortes raízes no samba e na MPB. Integra uma terceira
geração de músicos. Em seu DVD solo, Ao Vivo no Theatro São Pedro (2013), regravou “Porta de
Cinema”, um antigo samba-canção composto por seu avô Luiz Souza. Seu tio, Bebeto Castilho, é
um dos fundadores do Tamba Trio, reconhecido conjunto musical da Bossa Nova, que acompanhou
artistas como Maysa, Nara Leão, Carlos Lyra, Edu Lobo e Quarteto em Cy. Como produtor, Camelo
assinou Amendoeira (2006), disco solo de Bebeto. Em 2017, também produziu e cantou no livro-
disco Acalanto, um projeto no qual foram gravadas canções de sua mãe, Ana Camelo, em parceria
com seu tio, Luis Otávio – que foi quem lhe ensinou os primeiros acordes de violão -, a partir de
“letras e melodias da família”, segundo texto postado em sua página oficial no Facebook (CAMELO,
2016). Com seu irmão, o escritor Thiago Camelo, compôs “Espelho D’Água”, presente no disco Gal
Estratosférica (2016) de Gal Costa.
42
“Todo Carnaval Tem Seu Fim” (Marcelo Camelo), faixa 1 do disco, abre com
um solitário trompete em tom fúnebre que anuncia – entre o militar e o apocalíptico –
um despertar. Representa tanto o despertar dessa nova fase estética da banda
quanto o despertar do novo milênio. A partir da abertura sugestiva, contrapõem-se
rasgadas guitarras em estilo pop-punk, remetendo a Weezer, com resquícios de
certa agressividade grunge. No primeiro verso, “Um ninguém José acorda já
deitado” 8 e dessa ressaca de fim de festa, a canção parte para uma série de
digressões em referências ao universo popular do carnaval e da canção brasileira:
“Toda rosa é rosa porque assim ela é chamada/Toda Bossa é nova e você não liga
se é usada”, “Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco/Todo samba tem um
refrão pra levantar o bloco”, finalizando no alegórico refrão “Deixa eu brincar de ser
feliz/Deixa eu pintar o meu nariz” que mistura a melancolia da busca pela felicidade
a um toque de cultura popular – nessa imagem dúbia que representa o palhaço. É
essa junção um tanto conflituosa entre o mundo psicológico individual e o imaginário
popular que transparece ao longo de todo disco.
Depois da música de abertura em tom quase manifesto, na qual se
apresentam explicitamente as referências que recheiam a obra – blocos de carnaval,
desfiles, palhaços, flores, sambas e bossas –, temos uma série de canções que se
estruturam no ritmo ralentado e na dicção passional do samba-canção. Alternando
as guitarras distorcidas em camadas expandidas – muitas vezes remetendo à
estética inorgânica dos arranjos do Radiohead–, com a batida leve e quebrada da
bossa nova, sem nunca deixar as pretensões pop das lições tropicalistas de lado, a
banda estabelece em suas letras, como já apontado, um diálogo interessantíssimo
com a poética romântica e existencial dos antigos sambas, reafirmando uma
maneira de ver o mundo, através da modulação da dicção nostálgica.
Em “A Flor” (Marcelo Camelo/Rodrigo Amarante) temos a imagem do que
talvez melhor simbolize essa relação com a canção do passado. A flor é uma
metáfora para dor e delicadeza numa mesma figura, pois representa tanto a euforia
do romantismo quanto a dor-de-cotovelo. É um tema extremamente frequente em
8
Além de uma clara referência à imagem do José drummondniano, esse Zé de “Todo Carnaval Tem
Seu Fim” parece ser o mesmo personagem criado por Gonzaguinha em “Comportamento Geral”:
“Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé/Se acabarem com o teu Carnaval?”. O carnaval, na canção do
Los Hermanos, no entanto, acabou.
43
canções dos anos 40, como a clássica “A Flor e O Espinho” (Nelson Cavaquinho),
“Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Hoje pra você
eu sou espinho/Espinho não machuca a flor”, e está presente, inclusive, no primeiro
samba-canção de que se tem registro, “Linda Flor” (Henrique Vogeler/Luis
Peixoto/Marques Porto): “Chorei toda noite/E pensei/Nos beijos de amor/Que te
dei/Ioiô, meu benzinho/Do meu coração/Me leva pra casa/Me deixa mais não”. A flor
também é um dos símbolos da fase heroica da bossa nova em O amor, o sorriso e a
flor (1960), disco de João Gilberto. Na canção de Camelo e Amarante, a flor aparece
como centro de uma narrativa de desencontro. Ao tentar conquistar sua amada
cortejando-a com uma flor, o sujeito apaixonado acaba perdendo-a para “outro
alguém”: “Ouvi dizer/Do o teu olhar ao ver a flor/Não sei por que/Achou ser de um
outro rapaz”, “Minha flor serviu pra que você/Achasse alguém/Um outro alguém que
me tomou o seu amor”. Mas a grande sofisticação da canção está nas sutis trocas
de eu-cancional, alternando os lamentos do rapaz com o ponto de vista da própria
moça: “Tua flor me deu alguém pra amar”, “Eu que nunca amei a ninguém/Pude,
então, enfim, amar”. Essa alternância se apresenta nas quase imperceptíveis trocas
de vozes entre Camelo e Amarante.
A relação mais profunda com samba-canção, no entanto, está no vocabulário
e nas expressões. Los Hermanos utiliza em suas letras um registro linguístico antigo,
com construções que beiram o lírico e erudito, muito pouco usuais asua geração.
Usos de expressões como “fina-flor” e “fel fenecerá” em “Assim Será” (Marcelo
Camelo), “Há de encontrar um encantador, um novo ou velho amor/Vai te levar leve
a vagar prum lar de fina-flor”, “Sei que seu fél fenecerá em nome de nós dois”, ou
“braços castos” em “Casa Pré-Fabricada” (Marcelo Camelo), “Abre os teus armários
eu estou a te esperar/Para ver deitar o sol sobre os teus braços castos”; adjetivos
como “vis” e “sutis” em “Veja Bem, Meu Bem” (Marcelo Camelo) ”Veja bem além
destes fatos vis./Saiba, traições são bem mais sutis.”; verbos como “negacear” e
“reclinar”, além do uso de próclises como “dividir-se” e “procurar-me” em “Adeus
Você” (Marcelo Camelo), “Não venha mais me negacear/Teu choro não me faz
desistir, teu riso não me faz reclinar”, “Procure dividir-se em alguém, procure-me em
qualquer confusão”;
O uso de construções e palavras muito próximas ao registro utilizado nos
antigos sambas não é despropositado, serve como efeito e referência. Alimenta as
canções de uma aura nostálgica, abrindo um vórtice temporal e propondo um
44
diálogo com uma época de emoções menos veladas. A impressão que fica ao se
ouvir as canções de Bloco do Eu Sozinho é a de que poderiam muito bem ser
cantadas nos anos 30 ou 40 por Francisco Alves ou Orlando Silva, por Linda Batista
ou Elizeth Cardoso, sem qualquer estranhamento ou prejuízo, justamente por
carregarem em sua essência uma afinidade linguística e poética com esse passado.
Aproxima-se na linguagem como forma de aproximar-se também nas emoções,
mostrando – pela delicadeza – uma rebeldia com seu tempo.
Quando os grandes projetos coletivos se esvaem, o amor se torna a moeda
forte da felicidade. É surpreendente notar o conservadorismo afetivo das
canções dos Hermanos. Não há qualquer consideração pela abertura
sexual dos anos 1960, pelo campo de experimentação que ela representou
– simplesmente é como se nada disso tivesse existido. Camelo pode
mandar a mulher abrir as portas “do castelo que construí pra te guardar de
todo o mal”, aos berros de “eu sou teu homem, viu!”, ou louvar os “braços
castos” de outra donzela. Amarante expõe a amplidão de seu
sentimentalismo e de sua intransigência em versos como “eu só aceito a
condição de ter você só pra mim!” (COSTA E SILVA, 2014).
Em entrevista à Zero Hora (2018), Caetano Veloso fala que a partir de Los
Hermanos “a temática da tristeza deixou de ser proibitiva”. A bossa nova criara, nos
anos 60, com seu projeto de felicidade, uma tradição de canções otimistas, de
amores possíveis e bem sucedidos, como aponta o próprio Caetano:
5 O NÓ DO NOVO SÉCULO
própria gravadora com a ousadia estética e rompedora de seu segundo disco, Bloco
do Eu Sozinho. Nele, claramente já podemos notar essas transformações cancionais
em curso. Acauam Oliveira (2015) aponta que com o fim da indústria fonográfica –
aquela constituída até os anos 90 – há a emergência de um “sujeito frágil” que
contrasta em muito com aquele “ultra-sujeito” que tudo pode – utiliza Michael
Jackson como um símbolo -, inventado pelas gravadoras e pelo business cultural. A
própria ideia da perfeição estética e sonora, cavada pela triagem excessiva e
pasteurizadora das grandes gravadoras na busca de uma higienização estética, de
um som sem defeitos – isso fica evidenciado, por exemplo, na já citada briga da Abril
Music com o produtor Chico Neves –, esgota-se quase que por completo, abrindo
espaço para uma canção muito mais errática e artesanal, feita por sujeitos que
reverberam seus defeitos e suas delicadezas, caso da já exposta melancolia
presente na dicção dos hermanos:
Em uma série de palestras sobre a canção e seu suposto “fim”, José Miguel
Wisnik definiu a estrutura de certa música atual como sendo um tipo de
“canção expandida”, que tem como exemplos paradigmáticos os trabalhos
dos grupos Radiohead e Los Hermanos. Segundo o crítico, a característica
principal desse modelo de canção é não possuir um “centro” identificável,
um núcleo que estruture as diversas camadas de significação,
configurando-se quase como canções desestruturadas que se organizam ao
redor de impulsos que se multiplicam e sobrepõem, numa espécie de
transposição cancional da lógica da música eletrônica. (OLIVEIRA, 2015).
janela, a primavera quer entrar/Pra fazer da nossa voz uma só nota”. Novamente em
imagens amplas como “solidão”, “janela” e “primavera”, Camelo vai jogando com a
amplidão dos nossos sentidos para falar dessa antítese entre o gozo e a pureza. A
canção retorna mais uma vez para o bloco do samba – e aqui Los Hermanos quer
soar muito mais Jorge Bem e João Gilberto – e encerra-se novamente no bloco um,
num dolorido “Que explique a minha paz/Tristeza nunca mais” ralentado e distante.
O que se nota a partir dessa canção – e de outras do mesmo disco, tais como
“Cadê Teu Suín”, “Assim Será” e “Fingi na Hora Rir” – é como os impulsos sonoros
aliados às sugestões imagéticas ampliam a mensagem, que se expande em
melodias variadas, ritmos rachados e versos um tanto dessemantizados, sempre
colocando em pé de igualdade o canto e o instrumental, o que faz com que vivam
em um jogo de aproximação e distanciamento do sentido. Se o RAP transforma o
modelo cancional dando destaque ao beat e à palavra – no flow do rapper –, os
hermanos e seu indie rock transformam o modelo ao sobreporem – sem mediação –
ritmos, melodias e dicções: “O efeito é o desenho de um contraste entre o vocal e o
instrumental que acaba por ser uma base irônica para tudo o que é tocado: um
carnaval melancólico, uma euforia forçada”. (GAJANIJO, 2016, p. 139). De fato,
conseguem soar como Weezer e Radiohead na mesma canção em que modulam
Nelson Cavaquinho e Noel Rosa, sem necessariamente misturarem as duas partes,
como se as colassem lado a lado, ampliando contrastes e ironizando as estruturas.
E é nessa grande diversidade melódica que Los Hermanos constrói a beleza e a
inventividade de sua obra:
Em seu DVD solo, Ao Vivo no Theatro São Pedro (2013), num formato
minimalista quase bossa nova, Marcelo Camelo revisita uma série de composições
suas da época dos hermanos, tais como “Pois É”, “Dois Barcos”, “Morena”, “Samba
A Dois”, “A Outra” e até a própria “Casa Pré-Fabrica”, presente em Bloco do Eu
Sozinho. É interessante notar como as versões reduzidas dessas canções, mesmo
em um arranjo violão e voz, mantém o seu caráter expansivo. Tal qual João Gilberto
modulando os instrumentos percussivos do samba – surdo e tamborim – na batida
de suas cordas, Camelo tenta sintetizar – e é bastante feliz nisso – a complexidade
dos jogos melódicos e das periferias de sentido dos arranjos dos hermanos em um
jogo de aproximação e afastamento do seu canto com o violão. As linhas melódicas
dos metais, por exemplo, que servem praticamente como uma segunda dicção nos
discos da banda, chegam até a ser cantaroladas pela plateia, que encerra o show
num gigantesco coro da melodia dos sopros de “Além Do Que Se Vê”, acentuando a
importância desses na estrutura e na construção do sentido da canção.
O violão de Camelo faz muito além de uma cama harmônica, de uma base
para o canto. Em muitos momentos, chega a reproduzir riffs de guitarra – caso de
“Pois É” e “Tá Bom” – e de teclado – em “Casa Pré-Fabricada” – em batidas,
acordes e dedilhados. Sozinho, o instrumento procura dar a dimensão de deriva dos
diversos instrumentos presentes nos arranjos originais, cravando a importância
dessas linhas na construção do sentido. Nesse formato, confirma-se ainda mais
influência da bossa nova – o canto sussurrado, a síncope, o minimalismo –, o
virtuosismo de Camelo como instrumentista e, principalmente, a inventividade
melódica dessas canções: “ele se apresenta sozinho com um violão, numa espécie
de busca pela ‘desprodução’ das canções de toda sua trajetória”. (GUEDES, 2012)
A canção expandida não representa, no entanto, o fim da canção popular.
Muito pelo contrário, representa, talvez, uma das formas de renascimento, sua
emancipação como modelo: é a canção contemporânea manifestando-se. Chico
Buarque (2006) trata, no fim das contas, não do fim de um gênero, que está mais
vivo do que nunca - na internet, nos circuitos médios, nas rádios online - mas talvez
da derrocada de um formato. Distante da indústria fonográfica tradicional,
55
Nos anos 60, Caetano Veloso (CAMPOS, 1974, p.63) propôs ao debate sobre
os caminhos da música popular brasileira a ideia de uma “retomada da linha
evolutiva”. Para o então jovem compositor baiano, a bossa nova – na figura
revolucionária de João Gilberto – era um modelo a ser seguido, pois representava a
retomada da tradição do samba na mesma intensidade em que propunha uma
recriação, uma modernização musical do gênero. Essa ideia de evolução opunha-se
diretamente a certo tradicionalismo purista e ufanista, presente à época no ideário
de alguns representantes da MPB, que negavam as novidades, principalmente
estrangeiras, e propunham não uma retomada, mas uma involução, uma espécie de
retorno ao primitivo – a passeata contra a guitarra elétrica, por exemplo, passa por
esse ideal:
9
É importante lembrar das regravações que Cazuza fez de Cartola no fim da vida, bem como dos
esforços de Caetano Veloso ao longo de toda carreira, principalmente em seus discos no exílio –
Transa (1972) é bastante paradigmático nesse sentido – e nos discos dos anos 80, para construir
uma ponte entre o rock e a MPB.
59
vantagens da visibilidade de seu sucesso. Mas são nessas utopias que as estruturas
culturais são colocadas à prova, questionadas e estremecidas. De concreto,
independentemente do valor de nobreza desses atos, há a certeza de que o legado
de Los Hermanos e sua relevância na música popular brasileira são inquestionáveis.
Mesmo após o anúncio de hiato, em 2007, a banda continua influenciando
artistas, sendo referenciada por velhas e novas gerações. A banda retornou aos
palcos em 2012 e 2015, em duas turnês de celebração a esse legado, lotando
arenas, festivais e casas de espetáculo em inúmeras apresentações ao redor do
Brasil. A relação de adoração do público com a banda e o verdadeiro frenesi que
são seus shows foram magistralmente registrados no documentário Los Hermanos –
Esse é só o começo do fim da nossa vida (2015), dirigido por Maria Ribeiro.
Em 2012, a Musicoteca – selo importante de produção e divulgação da nova
MPBlançou um disco de versões do Los Hermanos, criadas por artistas da nova
geração. Chamado Re-Trato, contém 33 canções do grupo repaginadas por músicos
dos mais variados estilos. Entre eles, Bárbara Eugênia, Cícero, Tiago Iorc, 5 a Seco,
Maglore, Philip Long, A Banda Mais Bonita da Cidade, Graveola e o Lixo Polifônico,
Estrela Leminski e Téo Ruiz, Pélico, Wado, entre outros. Chama a atenção também
a versão para a canção “Anna Júlia” criada pelos roqueiros veteranos da banda
Velhas Virgens. Neste álbum-tributo nota-se a importância da banda para a
formação de uma nova música popular, e o sucesso desse novo modelo expansivo.
Além da influência direta na Nova MPB, não descarto a hipótese de que haja
respingos da melancolia dos hermanos na construção poética do movimento
emocore brasileiro. Fenômeno de público entre meados de 2007 e 2010, o chamado
“emo” caracterizava-se por sua estética ultraemotiva e por um hardcore marcado
pela hiperpassionalização da dicção – o lamento e o sofrimento como cerne das
canções –, tendo como grandes representantes do estilo as bandas NX Zero e
Fresno. O sentimentalismo das canções dos hermanos de alguma forma pode ter
aberto portas no cenário nacional para as formas expressivas dessa geração.
Mas a marca mais significativa e concreta do legado do Los Hermanos está
nas bem-sucedidas carreiras solo de seus dois principais compositores. Marcelo
Camelo lançou dois discos solo 11 muito bem recebidos por público e crítica, Sou
11
Camelo ainda lançou, em novembro de 2018, Sinfonia nº1 – Primitiva, um disco de música
sinfônica. Composto e orquestrado por Marcelo, foi gravado pela Orquestra Filarmônica da Cidade
de Praga.
61
(2008) e Toque Dela (2011), além de ter gravado dois ótimos DVDs ao vivo. Em sua
carreira, acentua sua relação com o samba-canção e com a bossa nova. Tornou-se,
também, um compositor bastante requisitado por grandes intérpretes da música
nacional, tendo canções suas gravadas por nomes de peso como Dominguinhos,
Maria Rita, Gal Costa, Ivete Sangalo e Ney Matogrosso. Como produtor, assinou
discos de Wado, Don La Nena, Momo, Bebeto Castilho – seu tio –, Mallu Magalhães
– com quem se casou em 2008 – e Banda do Mar – um trio luso-brasileiro meio surf
music, meio jovem guarda, formado pelo português Fred Ferreira, por Mallu e pelo
próprio Marcelo.
Rodrigo Amarante, por sua vez, lançou apenas um disco solo: o experimental
e interessantíssimo Cavalo (2013), composto, produzido e gravado inteiramente por
ele em sua casa em Los Angeles, Califórnia, onde vive desde 2008. No disco,
Rodrigo radicaliza ainda mais numa estética de deriva e impressionismo,
mergulhando em temas psicológicos como o duplo e o inconsciente, em letras
compostas em francês, português e inglês. Propõe uma espécie de exílio do mundo,
na qual se apresenta como um estrangeiro. Divulgando esse álbum, fez longas
turnês por países de Europa, América Latina e América do Norte. Amarante ainda
integrou os bem sucedidos grupos Little Joy – ao lado de Binki Shapiro e do
baterista do The Strokes, Fabrizio Moretti – e Orquestra Imperial – ao lado de nomes
influentes da MPB como Pedro Sá, Kassin, Moreno Veloso, Wilson das Neves e
Thalma de Freitas. Fez também participações importantes ao lado de Gilberto Gil,
Tom Zé, DevendraBanhart, Marisa Monte e Fernanda Takai.
A relevância da obra dos hermanos, bem como as conceituadas e
internacionais carreiras posteriores de seus dois vocalistas, fez com que Amarante e
Camelo – por suas diferenças estéticas – se tornassem algo como “dicções-
referência” tanto para o rock quanto para a MPB: Rodrigo por sua forma irônica e
arejada, aproximando-se do indie-rock e do folk americano; Marcelo por seu lirismo
e sua doçura, aproximando-se do samba e da MPB.
O projeto Los Hermanos parece, aliás, transcender questões estéticas ou
musicais. De alguma maneira, reflete a ética, os costumes e os ideais de uma
geração, representado até no modo de vestir. Alexandre (2013, p. 228) faz um
paralelo da banda com a chamada “Lei da Sinceridade”, estratégia de marketing em
que se ressaltam os defeitos de um produto para destacar suas virtudes: “Os
hermanos passavam a vida ressaltando sua fragilidade, suas roupas puídas de
62
brechó, sua tez pálida, suas barbas desgrenhadas e seu romantismo dolorido”. Foi
por essa sinceridade que conquistaram uma legião de fãs, que se identificam nas
fragilidades desses sujeitos, que enxergam neles um oásis em meio ao deserto
afetivo da lógica social neoliberal de competição. As roupas do hipster, a dicção
nostálgica e o gosto pelo vintage vão de encontro a um sentimento passadista, a
uma tentativa de proximidade com valores de outro tempo que não o atual,
simbolizando muito mais a insatisfação da sua geração com sua época, do que
propriamente um culto ao passado:
Costa e Silva (2014) analisa, em seu belo ensaio para a Revista Piauí, a
relação de Los Hermanos com a geração Y. Para ele, a banda apresenta mais do
que propriamente ideias ou modelos a serem seguidos: apresenta sintomas.
Representam o espírito de uma época, ao ressoar os sentimentos de uma geração
que está em descompasso com os rumos de uma sociedade neoliberal – competitiva
e consumista -, mas que também se mostra incapaz do conflito, de ir ao
enfrentamento com essa realidade. Isso ocorre, talvez, pelo medo de abrir mão de
seus privilégios de classe média, pela dificuldade de sair do conforto de seu
apartamento. Por isso, resta-lhe a melancolia e a introspecção como trincheiras.
Criam um mundo individual – numa “estética do caramujo” -, onde sentimentos e
valores perdidos imperam: “E no final, assim calado/Eu sei que vou ser coroado/Rei
de mim” (Marcelo Camelo em “De Onde Vem A Calma”). Algo como uma revolução
na sala de estar, feita através da delicadeza, da autoconsciência e da empatia:
Quem teve a chance de ir aos shows dos Hermanos sabe que a banda
existia na medida em que havia um público. As duas instâncias
caminhavam juntas, em rara simbiose. Pessoas cantando da primeira à
última música, em total identificação. Havia nos concertos dos Hermanos
algo da “efervescência coletiva” que Durkheim associava à experiência
coletiva do sagrado, uma atmosfera de comunhão religiosa. Não deixa de
ser curioso que ela tenha sido alcançada pela concentração na experiência
individual, no Bloco do eu sozinho, e não pela negação desta. Que ao
descer ainda mais no indivíduo se tenha tocado em um fundo comum,
capaz de fazer com que, pelo menos durante os shows, uma parcela
expressiva da juventude de classe média rompesse o isolamento e voltasse
a se conectar em irmandade. E que de repente uma geração tenha passado
a ter uma ideia mais clara de si. (COSTA E SILVA, 2014)
Em sua obra, como mostrado, Los Hermanos, passa diretamente pelos dois
nós cancionais tratados por Tatit (2004) ao revisar o século cancional brasileiro: a
triagem da bossa nova e a mistura do tropicalismo. Ao mesmo tempo, o grupo
também propõe um novo gesto, de flexibilização das linhas expressivas, apontando
caminhos para a canção contemporânea, no que chamei de “nó do novo século”.
Escancara-se, assim, seu projeto de retomada da linha evolutiva: dialoga com a
tradição ao passo que propõe novidades. Seleciona e dá o “passo-à-frente”. Com
isso, deixa um legado consistente, que reverbera em novas gerações de
cancionistas e em boa parcela da produção nacional.
A banda dá voz a um espírito de época, aos anseios e sentidos de uma
geração. Esse provavelmente seja seu mais largo gesto. Nesse sentido, triunfou
como poucas bandas brasileiras. O seu lugar de privilégio na história – por
expressar-se exatamente numa decisiva virada do século XX para o XXI, sendo seu
primeiro disco de 1999 e o segundo de 2001 – transformou-os em uma espécie de
membrana entre séculos, que absorve e alimenta, retoma e reconstrói. Posicionam-
se em algum lugar entre o passado e o futuro da canção popular, a tradição e a
novidade, o samba de Noel Rosa e o rock experimental do Radiohead, a lógica
mainstream e a emancipação indie. Em um novíssimo milênio, que se abre em
expectativas e poucas certezas, Los Hermanos parece ter percebido, mais do que
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ninguém, que “todo samba tem um refrão pra levantar o bloco”, e é por isso que se
põe a cantar. Para entendermos o bloco, afinal, é indispensável estar atento a esse
refrão. Nele, está a voz de um novo século da canção.
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