Secos e Molhados - Metáfora, Ambivalência e Performance

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Capa do LP Secos & Molhados (1973).

Secos & Molhados:

metfora, ambivalncia e performance


Jos Roberto Zan
Doutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Departamento de Msica e do Programa de Ps-graduao em Msica da
Unicamp. [email protected]

Secos & Molhados: metfora, ambivalncia e performance*


Secos & Molhados: metaphor, ambivalence, and performance

Jos Roberto Zan

resumo

abstract

Este artigo traz algumas reflexes

This article brings some reflexions about

sobre a produo do grupo Secos &

the production of the group Secos & Mo-

Molhados, nos anos de 1973 e 1974,

lhados, back in the years of 1973 and 1974,

caracterizada por formas peculiares

characterized by peculiar enunciation

de enunciao da cano. O objetivo

forms of the song. The texts objective is

do texto compreender os sentidos

to understand the meanings of the bands

das escolhas e da performance da banda

choices and their performances in a poli-

num contexto poltico e cultural marca-

tical and cultural context marked by the

do pela vigncia do regime ditatorial,

dictactorial regime, the cultural industry

pelo desenvolvimento da indstria cul-

development and by a new market configu-

tural e por uma nova configurao do

ration of symbolic goods in Brazil.

mercado de bens simblicos no Brasil.


palavras-chave: msica popular; per-

keywords: popular music; performance;

formance; indstria fonogrfica.

music industry.

* Este artigo a verso ampliada do texto apresentado no


VII Congresso da IASPM-LA,
realizado em Havana Cuba,
em 2007, sob o ttulo Secos
& Molhados: o novo sentido da encenao da cano.
Agradeo aos amigos Antonio
Rafael dos Santos e Adelcio
Camilo Machado pelos toques
musicais.
1

Cf. SEVERIANO, Jairo &


HOMEM DE MELLO, Zuza.
A cano no tempo: 85 anos de
msicas brasileiras. So Paulo:
Editora 34, 1998, vol. 2, p. 191.
8

Corria o ano de 1973 quando as emissoras de rdio passaram a


veicular msicas de um grupo ainda desconhecido, que caram imediatamente no gosto do pblico. Era o Secos & Molhados. Ao lado de sucessos
memorveis que marcaram aquele ano, como Estcio Holy Estcio, de
Luiz Melodia, Ouro de tolo, de Raul Seixas e Folhas secas, composio de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito interpretada por Elis
Regina, trs gravaes do novo conjunto ocuparam posies de destaque
nas paradas: O vira, de Joo Ricardo e Luhli, Rosa de Hiroshima, de
Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, e Sangue latino, de Joo Ricardo e
Paulinho Mendona.1 Essas canes fazem parte do primeiro LP do grupo
lanado pela gravadora Continental. Com um repertrio que combina elementos do pop rock, lirismo de baladas folk e letras que transitavam do tom
alegre, debochado, brincalho crtica social e poltica, os novos artistas
venderam milhares de discos num curto espao de tempo, tornando-se
um dos maiores fenmenos comerciais da indstria fonogrfica brasileira.
Suas apresentaes ao vivo eram marcadas pelo forte apelo visual, com
seus integrantes usando fantasias, maquiagens carregadas e gestualidade
com traos andrgenos, lembrando a chamada esttica glitter, em voga
no cenrio da msica pop internacional daqueles anos. Tudo isso, parecia
chocar e, ao mesmo tempo, seduzir a plateia. As aparies nas emissoras
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de televiso desde o lanamento do LP garantiam elevados ndices de


audincia. Especialmente as performances do vocalista Ney Matogrosso, com suas fantasias exticas, mscaras, maquiagem pesada, tangas e
requebros exagerados, tudo isso somado ao seu timbre vocal de contra
tenor com entoao ao estilo das cantoras do rdio, construam um clima
de ambivalncias e metforas.
A formao do grupo se deu num contexto histrico marcado pela
vigncia do regime ditatorial militar no pas na sua fase mais violenta (anos
imediatamente posteriores decretao do Ato Institucional no. 5); pelo
recrudescimento da prtica da censura; por elevadas taxas de crescimento
do produto interno bruto combinadas com a forte concentrao da renda
e arrocho salarial; e pelo desenvolvimento e racionalizao da indstria
cultural. Nesse perodo, o ramo fonogrfico atraiu novos investimentos, o
que resultou no aumento expressivo a produo de msica gravada.2 As
empresas se modernizaram e construram grandes estdios de gravao
com novos equipamentos, reduzindo a defasagem tecnolgica entre a
produo fonogrfica brasileira e a dos pases desenvolvidos. O avano
da racionalizao dos modos de gesto das indstrias de bens simblicos
contribuiu para a superao da fase marcada por certa artesanalidade que
as caracterizara em dcadas anteriores. Nesse cenrio, aprofundou-se a
segmentao do mercado de msica popular e tornaram-se mais evidentes os sinais de mundializao da cultura, especialmente com o consumo
crescente de hists internacionais.3
Nesses anos foi se fechando todo um ciclo de intensa participao
cultural e poltica no Brasil que se delineou a partir do governo nacional
desenvolvimentista do Juscelino Kubitshek e ganhou fora nos anos 60; um
ciclo marcado por uma profcua produo artstica diferenciada e muitas
vezes conflituosa em diversos campos como msica, teatro, artes plsticas,
cinema e literatura, colocando na ordem do dia questes fundamentais
associadas s ideias de modernizao e revoluo brasileira. Sob o impacto do recrudescimento do regime no final da dcada e de ressonncias de
movimentos culturais e polticos que abalavam pases europeus e Estados
Unidos, determinados segmentos da juventude brasileira passaram a se
identificar com uma produo simblica e um estilo de vida associados
contracultura, colocando em pauta as temticas do corpo, da sexualidade, da psicanlise, das drogas e elegendo o rock como uma das formas de
expresso. Esse gnero musical, que nos anos anteriores fora estigmatizado como smbolo do imperialismo cultural, se converteu em sinnimo de
um novo comportamento, de uma maneira libertria de encarar a prpria
condio moderna.4 Ao mesmo tempo, ganhava fora o culto marginalidade como forma de resistncia ao autoritarismo poltico e ao avano da
administrao da cultura. De certo modo, ser marginal, ou viver fora do
sistema, era uma espcie de resposta ou uma tomada de posio frente s
circunstncias impostas pelo regime ditatorial e por uma indstria cultural
fortemente integrada que restringia os espaos para a interveno cultural
e a criao artstica com perspectiva crtica.5
Foi nesse contexto que, no incio de 1971, o trio, ainda amador,
formado por Joo Ricardo, Fred e Antnio Carlos (Pitoco), comeou a
se apresentar na casa de espetculos Kurtisso Negro, situada no Bixiga,
tradicional bairro bomio do centro da cidade de So Paulo. O repertrio
mesclava sonoridades de gneros musicais regionais brasileiros e do pop

2
Ver ORTIZ, Renato. A moderna
tradio brasileira. So Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 133.
3
Ver VICENTE, Eduardo. Segmentao e consumo: a produo fonogrfica brasileira
1965/1999. ArtCultura: Revista
de Histria, Cultura e Arte.
Uberlndia: Edufu, v. 10, n. 16,
jan-jun. 2008, p. 104.
4

Ver HOLLANDA, Heloisa


Buarque. Impresses de viagem:
CPC, vanguarda e desbunde 1960/70. So Paulo: Brasiliense,
1981, p. 53-69.

Ver COELHO, Frederico. Eu


brasileiro confesso minha culpa
meu pecado: cultura marginal
no Brasil das dcadas de 1960
e 1970. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010, p. 216-217.

6
VAZ, Denise Pires. Ney Matogrosso: um cara meio estranho.
Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992, p. 51.

10

internacional, com arranjos compostos a partir de instrumentos como viola


de 10 cordas, violo folk, gaita e bong. Depois de alguns meses de relativo
sucesso, Fred e Pitoco deixaram o grupo e Joo Ricardo convidou dois outros msicos para recompor o trio: o violonista e compositor Gerson Conrad
e o vocalista Ney de Souza Pereira, que ficou conhecido posteriormente
como Ney Matogrosso.
Joo Ricardo, jornalista, msico e compositor, foi o lder intelectual
do grupo. De origem portuguesa, imigrou para o Brasil ainda adolescente
com o pai, o poeta e crtico Joo Apolinrio, que foi obrigado a deixar seu
pas por razes polticas. Portugal, nessa poca (meados dos anos de 1960),
vivia sob a ditadura salazarista. Joo Ricardo iniciou estudos musicais
ainda em Portugal e logo se interessou pelo folclore da sua terra, pelos
Beatles e pela msica pop norte-americana. Em So Paulo, ampliou seus
conhecimentos no convvio com o vizinho e amigo Gerson Conrad. Como
compositor, se dedicou principalmente criao de letras de canes com
contedo social e musicalizao de poemas.
Gerson Conrad comeou a se interessar por msica ainda na infncia,
quando iniciou seus estudos de violo acompanhados pela audio de
bossa nova, jazz e pop rock. Instrumentista, compositor, arranjador e cantor.
Quando comeou a compor, juntamente com Joo Ricardo, suas principais
referncias eram The Beatles e o quarteto norte-americano Crosby, Stills,
Nash and Young, cuja sonoridade pode ser reconhecida em algumas composies e arranjos do Secos & Molhados.
Para recompor o trio, Joo Ricardo procurava por um cantor de voz
aguda para os arranjos vocais. Sua amiga, a cantora e compositora Helosa
Orosco Borges da Fonseca, Luhli, que tambm atuou na casa Kurtisso Negro, lhe apresentou Ney de Souza Pereira que conhecera no Rio de Janeiro.
Ney, o mais velho do grupo, filho de militar e natural de Campo Grande,
estado de Mato Grosso do Sul. Nos anos 60, em Braslia, tentou carreira de
ator e cantou em coral. Mudou-se para o Rio de Janeiro onde fez algumas
pontas em peas de teatro e se dedicou ao artesanato, assumindo um estilo de vida hippie. Em 1971, mudou-se para So Paulo a convite de Luhli
e Joo Ricardo para integrar o Secos & Molhados. Durante os meses de
ensaio, garantiu a sobrevivncia com artesanato e pequenas atuaes em
peas teatrais infantis e no musical A viagem, uma adaptao de Os Lusadas
de Cames realizada por Carlos Queiroz Teles. Em dezembro de 1972, o
grupo comeou a se apresentar no palco da Casa de Badalao e Tdio, do
Teatro Ruth Escobar, em So Paulo. Denise Pires Vaz fala das impresses
que teve da apario do trio e, especialmente, do cantor: surgia [no palco]
uma figura estranha corpo e rosto pintados de dourado e ostentando
smbolos aparentemente excludentes: um enorme bigode e uma grinalda
na cabea. A voz revelou-se outro susto: soava numa fronteira meio indefinida e surpreendia pela limpidez. A dana cheia de saltos e contores,
parecia liberar emoes do inconsciente.6
As fantasias, mscaras e maquiagens carregadas que Ney de Souza
Pereira (que adotara o nome artstico de Ney Matogrosso) usava em suas
apresentaes, se tinham como finalidade preservar sua privacidade, ao
mesmo tempo definiam e fixavam o estilo performtico do grupo.
A temporada na Casa de Badalao e Tdio teve enorme sucesso.
O espao relativamente exguo era insuficiente para um pblico cada vez
maior que se aglomerava na porta de entrada a cada espetculo. Estimulado
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pelas reaes da platia, o grupo, em especial Ney Matogrosso, se esmerava


nas performances. Ao tomar conhecimento da grande repercusso desses
eventos, a empresria e atriz Ruth Escobar, proprietria do espao, foi assistir ao show e, se dizendo chocada, proibiu que os rapazes continuassem
a se apresentar naquele local, alegando a presena de loucos e drogados
entre os frequentadores. O produtor e empresrio Moracy do Val, que
j acompanhava a trajetria do trio, procurou alternativas, promovendo
apresentaes em programas de televiso, clubes e em outros espaos da
cidade, especialmente no prestigiado Teatro Aquarius.
Dentre os eventos de lanamento e promoo do primeiro LP, o grupo
fez uma breve turn no Teatro Itlia, no centro de So Paulo, com enorme
sucesso. O depoimento do jornalista e crtico Joo Nunes nos d uma idia
do impacto que aquele espetculo provocava no pblico:
Eu era seminarista, com crise vocacional, de um respeitoso seminrio presbiteriano
de Campinas, quando assisti a um dos shows da histrica temporada de duas semanas dos Secos & Molhados no Teatro Itlia, em So Paulo. Sara do casamento de
um irmo, em So Paulo, regado a cerveja e ao incansvel rodar do disco do Secos
& Molhados na vitrola. Na noite daquele sbado, em vez de retornar ao seminrio,
como bem deveria fazer um bom seminarista mesmo em crise de vocao -, rumei
para o Teatro Itlia. Apliquei mal o dinheiro dado por meu pai, porque se fosse um
seminarista de bom comportamento compraria livros teolgicos ou o gastaria em
causas mais nobres, mais teis e, claro, menos mundanas.
...................................................................................................................................
Na minha memria, o palco e a platia do Teatro Itlia so pequenos. O suficiente
para ver Ney Matogrosso rebolar feito cobra mal matada muito perto de mim. E,
no papel de seminarista presbiteriano, minha reao foi de incmodo, de espanto
e... de deslumbre.
Isso foi em setembro. Em dezembro, abandonei o seminrio. E a culpa deve ser
creditada ao Secos & Molhados, pois desviou meus pensamentos sos para desejos
e sonhos demonacos.7

O lbum que surpreendeu o mercado fonogrfico


Em maio de 1973, foram gravadas 13 canes que compem o LP Secos
& Molhados, sob o patrocnio da gravadora Continental. O trabalho contou
com a produo de Moracy do Val, a direo musical de Joo Ricardo e
direo artstica de Jlio Nagib. Os arranjos foram assinados pela prpria
banda, com exceo da faixa Fala, cuja tarefa coube ao msico Z Rodrix.
O reforo nos acompanhamentos coube a instrumentistas como Srgio
Rosadas nas flautas, John Flavin na guitarra e violo de 12 cordas, Willi
Verdaguer no baixo, Emilio Carreira ao piano e Marcelo Frias na bateria e
percusso. O produtor Moracy do Val, que dirigia um jornal da Continental e, portanto, tinha acesso a membros da diretoria da empresa, foi quem
encaminhou as negociaes para a produo do disco. As gravaes foram
feitas no Estdio PROVA, equipado com quatro canais, durante quinze
dias, sem grandes interferncias da equipe de produtores da empresa. A
capa do LP, composta a partir da arte fotogrfica de Antonio Carlos Rodrigues, com lay-out de Dcio Duarte Ambrsio, mostra as cabeas dos quatro
msicos sobre bandejas dispostas numa mesa ao lado de pes, garrafas de
bebida, cebola, gros e lingias como se tudo estivesse preparado para
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NUNES, Joo. Quando o Brasil


se descobriu. 2003. Disponvel em <http://www.com.br/
diversaoarte/2003/03/16/materia_div_52931.shtm>. Acesso
em 10 jan. 2006.
8

Na capa do primeiro LP aparecem as fotos de Joo Ricardo,


Gerson Conrad, Ney Matogrosso e do baterista Marcelo
Frias que fora convidado a se
integrar ao grupo. Pouco tempo
depois ele abdicou do convite,
deixou o conjunto e o Secos &
Molhados permaneceram como
um trio.

11

Ver RIBEIRO, Lucio e SANCHES, Pedro Alexandre. Secos


& Molhados vence enquete da
melhor capa de disco brasileira.
Disponvel em <http://tools.folha.com.br/print?site=emcimad
ahora&url%3A%2Fwww1.fol>.
Acesso em 08-09-2006.

10

Ver BAIANA, Ana Maria e


SOUZA, Tarik de. Os ps caetanistas. Jornal Opinio, n. 37, Rio
de Janeiro: Enbia Ltda, 23-30
jul. de 1973 e MORELLI, Rita.
Indstria fonogrfica: um estudo
antropolgico. Campinas: Editora da Unicamp, 1991, p. 78.
11
Ver ANDRADE, Mrio. Dicionrio musical brasileiro. Belo
Horizonte/Braslia/So Paulo:
Editora Itatiaia, Ministrio da
Cultura e Edusp, 1989, p. 564.

12

um banquete antropofgico8. O trabalho grfico cuidadoso e a riqueza de


significados da composio fizeram com que mais tarde o jornal Folha de
S. Paulo a elegesse como a melhor capa de LP de toda a histria da msica
popular brasileira.9
O investimento na produo do disco era parte da estratgia da
gravadora, at ento fortemente identificada com os segmentos regional
e sertanejo, de atingir outras faixas de pblico, especialmente a de jovens
universitrios de classe mdia. Alm do Secos, outros grupos e artistas
individuais como O Tero, Novos Baianos, Walter Franco e o Pessoal do
Cear, portadores de repertrios que transitavam pelas cenas do rock e da
MPB progressiva (adjetivo usado pelo produtor Carlos Alberto Sion)
figuravam na lista de novos contratados.10
O disco foi lanado em agosto de 1973 no Teatro Aquarius, situado no
mesmo bairro em que a banda se formou, e vendeu mais de 300 mil cpias
nos primeiros 60 dias. Aparentemente a gravadora no estava preparada
para atender a uma demanda to grande. As mil e quinhentas cpias tiradas
inicialmente se esgotaram em poucos dias. Com a avalanche de pedidos
das lojas, a maior parte das prensas da fbrica foi ocupada exclusivamente
para a reproduo do LP e muitos discos de outros artistas que estavam
encalhados nas prateleiras foram recolhidos e derretidos para suprir a falta
de matria prima.
Coube a Moracy do Val a organizao dos eventos de lanamento do
disco. Na condio de diretor do Teatro Aquarius, garantiu o espao para
os shows e, em seguida, promoveu a breve, porm memorvel temporada
no Teatro Itlia. Ao mesmo tempo, agendou apresentaes do grupo em
canais televisivos, especialmente na Globo, que se projetava como a primeira grande rede nacional de televiso. Em agosto daquele ano, a emissora
inaugurava o programa Fantstico o show da vida que ainda hoje obtm
elevados ndices de audincia no chamado horrio nobre das noites de
domingo. Com o formato de revista de variedades, o programa tornou-se
um espao estratgico e, portanto, altamente disputado para a promoo
de artistas da msica popular, o que exigia investimentos volumosos
de recursos das gravadoras para a divulgao dos novos lanamentos.
O sucesso do LP no foi puxado por uma msica em particular.
Vrias das suas canes tiveram presena constante nas programaes de
rdio. Mas talvez a que tenha conquistado maior popularidade fora, de
fato, a segunda faixa do lado A, uma composio de Joo Ricardo e Luli,
intitulada O vira. uma cano de melodia simples, apoiada nos trs
acordes fundamentais (tnica, dominante e subdominante) com andamento
de rock nroll. A guitarra eltrica, explorando timbres agudos e distorcidos,
faz um lick de blues na introduo, acompanhada por bateria, piano e contrabaixo eltrico em walking bass. A msica faz aluso ao gnero popular
portugus de canto e dana conhecido pelo mesmo nome, associado
coreografia na qual os pares, dispostos em filas opostas, giram os corpos
em 360 evitando mostrar as costas ao companheiro. Originalmente uma
msica em compasso 6/8 e acompanhada por cavaquinho, guitarra portuguesa e tambor.11 Na composio do Secos & Molhados, a referncia ao
gnero folclrico ocorre na repetio da melodia aps o solo, quando h
uma mudana no padro rtmico e o acompanhamento incorpora o acordeom, criando uma sonoridade que lembra a de estilos musicais regionais
brasileiros, especialmente sulinos.
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A letra cita figuras mticas da cultura popular e fala de situaes


associadas a supersties como o gato preto cruzando a estrada ou o risco
de passar debaixo de escadas. A referncia a essas crendices, reforada
pelas citaes de personagens mitolgicos notvagos como sacis e fadas,
bem como a descrio do cenrio atravs dos versos: l no fundo azul/na
noite da floresta/a lua iluminou, constri um cenrio que prepara o ouvinte para o tema principal da composio que a metamorfose do homem
em lobisomem. Nesse ponto, o cancionista joga com a dupla conotao
da palavra vira: a de girar (girar o corpo de acordo com a coreografia do
gnero portugus) e a de transformao - Vira, vira ,vira homem [...],vira,
vira lobisomem. Mas a composio adquiriu significados mais amplos. As
caractersticas musicais, com redundncias e clichs, e o contedo aparentemente brincalho e fantasioso da letra contriburam para a comunicao
fcil com um pblico amplo, at mesmo com o segmento infantil. Porm,
possivelmente em funo da performance do grupo, a msica ganhou outras conotaes. Para o jornalista e crtico Joo Nunes, tratava-se de uma
espcie de referncia metafrica homossexualidade, uma elegia gay
bem-humorada.12 E Joo Silvrio Trevisan foi mais enftico ao afirmar
que o lobisomem, no caso, poderia ser, facilmente, uma irnica referncia
a esses annimos habitantes da grande cidade, os quais, passada a meianoite, deixam seu cansativo papel de abboras para se transformarem em
atrevidas cinderelas; nas boates gueis (sic), esse sentido ficou evidente: a
cano se tornou quase um debochado hino das bichas.13
Essa dubiedade fez com que para alm da aparente de ingenuidade
da composio houvesse algo mais contundente. Naqueles anos, os novos movimentos sociais ensaiavam seus primeiros passos, reivindicando
direitos especficos de determinados grupos que se definiam a partir da
identificao tnica e de gnero. Neste caso, incluam-se as mobilizaes
pelos direitos dos homossexuais. Ora, numa sociedade impregnada de
valores machistas e num contexto marcado pela vigncia do regime ditatorial militar que, de dentre outras coisas, se respaldava numa moralidade
anacrnica, as bandeiras de luta dos homossexuais adquiriam um sentido
transgressor.
De um modo geral, as faixas do LP apresentam caractersticas musicais muito prximas dos estilos das baladas pop e do rock. So canes
com melodias simples, compostas a partir de encadeamentos rotineiros
de acordes naturais com instrumentao base de violes, guitarra, contrabaixo eltrico e bateria. Flautas, teclados eletrnicos, piano e percusso complementam os acompanhamentos em algumas faixas. No canto,
destaca-se a atuao de Ney Matogrosso, com seu timbre caracterstico,
que se integra, em alguns momentos, a breves arranjos vocais. As letras,
muitas das quais so poemas musicados, contriburam para que o disco
se mostrasse palatvel at mesmo para o pblico do segmento crtico e
engajado representado naquele perodo pela MPB.
O primeiro fonograma do lado A a composio de Joo Ricardo
e Paulinho Mendona, intitulada Sangue Latino, que se soma a outras
quatro canes com conotaes polticas e sociais mais acentuadas. Aps
a introduo de oito compassos com um ri de baixo acompanhado por
percusso de pandeiro (ou meia lua), marcando o ritmo em 4/4, o violo de
doze cordas prepara o canto. A melodia simples e o arranjo tem caractersticas da msica pop da poca, especialmente da folk music norte americana.

12

NUNES, Joo, op.cit.

13

TREVISAN, Joo Silvrio.


Devassos no paraso. So Paulo:
Editora Max Limonad, 1986,
p. 171.

13

O acompanhamento discreto com poucos instrumentos permite que a voz


de Ney Matogrosso se destaque, numa entoao ligeiramente passional. A
letra, poeticamente bem construda, faz aluso condio dos povos latinoamericanos submetidos ao um doloroso processo de dominao colonial e
imperialista. Os versos os ventos do norte no movem moinhos/e o que
me resta s um gemido/minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos/
Meu sangue latino/Minha alma cativa do a chave do significado mais
geral da composio. Ao mesmo tempo, o cancionista, numa imagem um
tanto alegrica, ressalta a fora com a qual essa gente resiste dominao:
Rompi tratados, tra os ritos/Quebrei a lana, lancei no espao: um grito,
um desabafo/E o que me importa e no estar vencido.
Seguindo essa linha politizada, destaca-se o blues Primavera nos
dentes, de Joo Ricardo e Joo Apolinrio (5. faixa do lado A). Uma longa introduo em dois acordes (Em7 e A7), na qual o piano e a guitarra
dialogam em improvisos sutis sobre a base de baixo e bateria, cria uma
ambincia que nos remete a uma temporalidade cclica, repetitiva, preparando a entrada das vozes em unssono. A letra, de cunho marcadamente
poltico, fala da condio humana sob um sistema opressivo e da coragem
de certos indivduos que se mantm conscientes, resistem e lutam. Quem
tem conscincia para ter coragem/Quem tem a fora de saber que existe/e
no centro da prpria engrenagem/inventa a contra-mola que resiste. Os
ltimos versos, de intenso contedo dramtico, enaltecem a fora herica
daquele que mesmo em situaes extremamente adversas, matem viva a
esperana; daquele que mesmo envolto em tempestade, decepado/entre
os dentes segura a primavera. Aps o canto das duas estrofes, os instrumentos retornam aos improvisos e alternncia de acordes do incio da
composio, reduzindo a intensidade lentamente at o final da faixa.
El Rey (3. faixa do lado B), composio de Conrad e Joo Ricardo,
tem caractersticas de canes folclricas portuguesas, lembrando cantigas
de roda. Acompanhado apenas por violo e flauta, Ney Matogrosso a interpreta com delicadeza, acentuando o ritmo dos versos que fazem aluso,
um tanto debochada, personificao do poder monrquico e absoluto:
Eu vi El Rey andar de quatro/de quatro caras diferentes/[...] de quatro
patas reluzentes/[...] de quatro poses atraente/. Ao mesmo tempo, em
contraposio ao exibicionismo pattico de El Rey, a letra expe o sofrimento da populao: quatrocentas celas/cheias de gente/[...] quatrocentas
mortes/[...] quatrocentas velas/ feitas duendes. A cano, caracterizada
por certo contraste entre o contedo crtico da letra e a leveza da melodia e
do arranjo, pode ser entendida como uma referncia alegrica aos regimes
totalitrios modernos.
Na faixa Assim assado (1. faixa do lado B), composio de Joo
Ricardo, a exposio crua da violncia do poder parece destoar com a leveza do arranjo. uma composio ao estilo pop rock em tonalidade maior
com acompanhamento de guitarra eltrica, baixo, flautas de bambu, bateria e percusso. A melodia, com tessitura restrita, inferior a uma oitava,
permite ao cantor uma interpretao discreta, delicada e sem arroubos
passionais, intercalada quatro vezes por refres em trs vozes. A letra,
cuja narrativa lembra a das tiras em quadrinhos publicadas em jornais,
construda a partir da expresso popular que contrape duas palavras
assonantes, assim e assado, cujo significado apontar a alternativa
entre uma coisa ou outra, ou sugerir que algo seja feito desta ou daquela
14

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maneira. Os primeiros versos descrevem os personagens e o cenrio onde


a trama acontece: So duas horas/da madrugada/ de um dia assim/Um
velho anda/ de terno velho/assim assim/Quando aparece o guarda belo.
Estabelece-se, ento, uma relao assimtrica entre o velho, figura annima e frgil, e o guarda, agente pblico dotado de autoridade que posto
em cena/ fazendo cena/um treco assim. Neste momento, o compasso
marcado apenas pelo som das baquetas do baterista, sugerindo que o
policial ostenta o cassetete com gestos intimidadores. Ameaado, o velho
perde a cor, supostamente empalidece, mas o guarda belo/no acredita
na cor assim e partindo para aes mais agressivas, ele decide/no terno
velho/assim assim. Vulnervel, o velho acaba morrendo, embora matlo talvez no fosse a prioridade do guarda que queria um velho assado/
Mas mesmo assim/o velho morre/assim assim. Ao final, o ato arbitrrio
e covarde se torna magnnimo, praticado por algum que cumpre seu
dever: e o guarda belo/ o heri/ assim assim/Porque preciso ser assim
assado. evidente o contraste entre a leveza ou o carter despretensioso
da cano no plano formal plano que envolve a articulao entre letra,
melodia, pulsao, arranjo e canto - e o contedo contundente e dramtico
que denuncia o abuso de poder e o exerccio da violncia como prticas
inerentes a um estado policial.
Esse contraste tambm caracteriza o Rond do capito (6. faixa
do lado B), outra composio que criou forte identificao com o pblico
infantil. Originalmente, um poema de Manuel Bandeira escrito em 1940,
inspirado numa cantiga de ninar bastante conhecida intitulada Bo-Balalo; uma tpica parlenda, um tipo de poesia para criana, cantada ou no,
repleta de onomatopias e com ritmo cadenciado. Bandeira utiliza-se da
forma da cantiga, mas introduz um contedo existencial, falando do peso
de se ter esperana num mundo opressivo e suplica ao senhor capito, num
tom de prece, que o livre desse peso. Bo balalo,/Senhor capito/Tirai este
peso/Do meu corao/No de tristeza,/no de aflio:/ s esperana,/
Senhor capito!/ A leve esperana,/Area esperana.../Area, pois no!/Peso mais pesado/No existe no/Ah, livrai-me dele,/Senhor capito!. A
melodia de Joo Ricardo, com andamento moderado e compasso 3/4, uma
espcie de pardia da cano de ninar. Entoada por Ney Matogrosso com
acompanhamento de violo e flauta, a composio ressignifica o poema
no contexto brasileiro dos anos 70, acentuando o contraste entre a forma
singela da melodia, envolta em certa aura de inocncia, e o contedo da
letra que agora parece fazer aluso ao carter opressivo do regime militar.
Um segundo bloco temtico de composies toca em temas ligados
guerra como Rosa de Hiroshima (4. faixa do lado B), poema de Vincius
de Moraes que recebeu melodia de Gerson Conrad e se tornou uma das
canes mais populares do grupo. Escrito um ano aps o lanamento das
bombas atmicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, evento
que ps fim Segunda Guerra Mundial, o poema convoca as pessoas para
que pensem e no se esqueam dos efeitos catastrficos das armas nucleares.
A referncia a crianas, meninas e mulheres nos primeiros versos
chama a ateno para tais efeitos que no se limitaram ao momento em que
foi detonada a bomba, mas se estenderam a geraes futuras em funo de
alteraes genticas: Pensem nas crianas/Mudas telepticas/Pensem nas
meninas/Cegas inexatas/Pensem nas mulheres/Rotas alteradas. A rosa,
smbolo de vida, beleza e lirismo transmuta-se em metfora do aterrorizan15

te cogumelo de fogo que devastou a cidade: A rosa radioativa/Estpida


invlida/A rosa com cirrose/A anti-rosa atmica/ Sem cor sem perfume/Sem
rosa sem nada. A bela melodia, uma espcie de toada, simples, um tanto
repetitiva e de fcil memorizao, articula-se com delicadeza aos versos.
O arranjo de violo, com pequenas incurses de flauta no incio e no final
da composio, permite que a voz do cantor se destaque numa entoao
um tanto melanclica e solene. Em 1973, momento que o mundo vivia o
auge da corrida armamentista e a parania de um confronto nuclear entre
as potncias militares, o poema cano teve seus significados reforados,
soando como uma espcie de manifesto pacifista.
Com temtica semelhante, embora distinta quanto ao aspecto formal,
ouve-se Mulher barriguda (2. faixa do lado B), poema de Solano Ribeiro
com msica de Joo Ricardo. Trata-se de uma reflexo sobre a natalidade
e o destino das geraes futuras frente iminncia de guerras: Mulher
barriguda que vai ter menino/qual o destino que ele vai ter?/[...] Haver
guerra?/tomara que no. uma composio de andamento rpido com
ritmo de pop rock bem marcado. O arranjo base de piano, guitarra eltrica, gaita, baixo e bateria, d suporte ao canto em trs vozes com solos de
Ney Matogrosso em alguns versos. A entoao estridente e vibrante dos
cantores cria um clima eufrico e brincalho, contrastando com o contedo
um tanto dramtico da letra.
Prece csmica (5. faixa do lado B), poema de Cassiano Ricardo
publicado em 1971, perodo em que o poeta assume, do ponto de vista
formal, procedimentos da poesia prxis e traduz em seus versos a perplexidade frente ao um mundo conturbado e na iminncia de um confronto
nuclear. Com melodia de Joo Ricardo, a cano recebeu um tratamento
instrumental ao estilo country rock com guitarra eltrica, baixo e bateria.
Os versos expressam a esperana de que a sensibilidade se sobreponha
racionalidade fria dos detentores do poder: Que os 4/como num teatro/
conservem a mo/sem nenhum gesto/que o vinho quente do corao,
suba cabea espessa/e que do bolso de cada um dos 4/como num teatro/
voem pombas/ (pombas brancas) ...e amanhea. Cantada em trs vozes
com despojamento e graa, a cano soa tambm como uma pea pacifista.
Um terceiro conjunto de composies apresenta aspectos mais intimistas e certo lirismo. A composio de Joo Ricardo, intitulada O patro
nosso de cada dia (3. faixa do lado A), pode ser includa nesse grupo.
Trs batidas compassadas de sino anunciam o incio da cano, criando um
clima solene e melanclico. O narrador fala do seu sofrimento pelo amor
no correspondido e a sua dependncia em relao pessoa amada: Eu
quero amor/da flor de cactus/ela no quis/Eu dei-lhe a flor/de minha vida/
vivo agitado/[...]Eu vivo preso/ sua senha/ sou enganado. Na quinta e na
stima (e ltima) estrofes, o cancionista estabelece certa analogia, um tanto
inusitada, entre a dolorosa dependncia amorosa e o cotidiano opressivo,
numa provvel aluso ao mundo do trabalho e relao patronal, parodiando a orao Pai nosso: Eu solto o ar/no fim do dia/ perdi a vida.
[...]/ o patro nosso/ de cada dia/ dia aps dia. A melodia, de andamento
lento, construda em tonalidade maior a partir de trs acordes bsicos, e com
arranjo leve e sutil, feito base de violo, baixo e breves incurses de flauta,
permitem o destaque das vozes. A passionalizao ocorre logo no incio da
cano com o amplo intervalo de doze semitons (uma oitava) entre o pronome eu e o verbo quero, reforada pela entoao de Ney Matogrosso.
16

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ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

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Esse salto intervalar se repete ao incio de cinco estrofes, operando como


uma espcie de motivo meldico que d unidade composio. O refro,
em que o narrador expressa suas dvidas existenciais: Eu j no sei se sei/
de tudo ou quase tudo/eu s sei de mim..., tem melodia construda num
campo de tessitura mais restrito (sete semitons) e cantado em trs vozes.
Ao final, retornam as batidas sucessivas do sino que vo se distanciando
lentamente criando uma atmosfera um tanto soturna.
A composio Amor (4. faixa do lado A), versos de Joo Apolinrio
como melodia de Joo Ricardo, ganhou tratamento roqueiro e cantada
em trs vozes com uma base instrumental de violo de 12 cordas, baixo
eltrico e bateria, com um breve improviso de gaita ao final. A letra faz
aluso dialtica do amor, sentimento ao mesmo tempo leve [...] suave
coisa [...] suave coisa nenhuma.
O penltimo fonograma do lado B do lbum uma vinheta com
menos de um minuto de durao composta a partir do poema de Cassiano Ricardo, escrito em homenagem ao poeta portugus Antonio Nobre,
intitulado As andorinhas de Antonio Nobre. Os versos, com contedo
acentuadamente metafrico, - Nos/fios/ten/sos/da/pauta/de me/tal/as/
an/do/ri/nhas/ gri/tam/por/fal/ta/de u/ma/cla/ve/de/ sol -, so compostos
por slabas e fragmentos das palavras, parecendo representar visualmente
os pequenos pssaros pousados nos fios. O gorjeio catico do bando de
andorinhas sobre o pentagrama metlico parece soar como um clamor
para que uma clave que venha organiz-lo e convert-lo em msica. Os
instrumentos piano, baixo e violo fazem ataques em bloco, apoiados por
rufos de tambor, numa sequencia descendente de acordes (Am/G/F) e sem
marcao rtmica definida. Sobre essa base harmnica a melodia silbica
acompanha a estrutura formal do poema e entoada por Ney Matogrosso
como um aboio. Com essa cano o grupo fazia a abertura dos shows.
A ltima faixa do LP a balada romntica de Joo Ricardo e Luhli,
intitulada Fala. a nica cano que recebeu um arranjo de Z Rodrix
feito base de piano, contrabaixo, bateria e pandeiro (meia lua). No decorrer da composio entram outros instrumentos como naipes de cordas
(violinos e viola) e o improviso de sintetizador Moog, ampliando a massa
sonora de maneira crescente at o final da faixa. Na letra, o eu lrico pede
supostamente pessoa amada que fale algo, uma vez que ele nada tem a
dizer. Aparentando resignao, se dispe apenas a ouvir, mesmo que no
entenda o que dito. Ao final, promete falar somente na hora de falar.
As quatro estrofes, cada uma com trs versos, so distribudas em duplas
entre as quais se interpe o estribilho com o verbo falar no imperativo
Fala. A interpretao suave e melanclica de Ney Matogrosso acentua
o clima intimista da composio, mas, ao entoar o estribilho com melodia
descendentes, intercalado pelo vocalize l-l-l.... , parece criar certa ambiguidade entre a splica e o desafio. Vale lembrar que em 1973 o formato
LP reinava absoluto na indstria musical. Reunindo algo em torno de uma
dzia de fonogramas, o lbum, alm de atender a objetivos estratgicos
das gravadoras, se convertera num objeto artstico no qual tanto a
disposio das faixas como a converso das capas em espaos de
interveno visual traduziam projetos de msicos, artistas plsticos
e produtores, expandindo, de certa forma, o conceito de obra fonogrfica. Desse modo, levando em conta o contexto scio histrico
daquele perodo, pode se dizer que essa cano funcionava como o
17

14

Em entrevista concedida a
Tarik de Souza, Joo Ricardo,
disse que foram censuradas
trs canes por ele compostas
sobre os poemas Balada, de
Carlos Drumond de Andrade, Passrgada, de Manuel
Bandeira e Tem gente com
fome, de Solano Trindade. Ver
SOUZA, Tarik de. A liquidao
dos Secos & Molhados. Jornal
Opinio, n. 93, Rio de Janeiro:
Inbia Ltda, 19 ago. 1974, p. 16.

15

Cf. SILVA, Vinicius Rangel


Bertho da. O doce & o amargo
do Secos & Molhados: poesia,
esttica e poltica na msica
popular brasileira. Dissertao
(Mestrado em Letras) UFF,
Niteri, 2007, p. 305.

18

eplogo do LP Secos & Molhados, adquirindo significados mais amplos. Talvez o eu lrico desta ltima cano no se dirigisse apenas pessoa amada,
mas tambm ao pblico ouvinte, aos crticos ou at mesmo aos censores.

Turn, crise e o segundo lbum


Sob o efeito do sucesso do primeiro disco o grupo realizou uma srie de shows pelo interior paulista, em cidades mineiras, Braslia e Recife.
No final do ano, desembarcou no Rio de Janeiro para uma temporada no
Teatro Tereza Raquel, situado no bairro de Copacabana, sempre com casa
cheia e fila de espera. Entusiasmado com o sucesso, o empresrio Moracy
do Val organizou a histrica apresentao do grupo no Maracanzinho
em fevereiro de 1974, quando mais de 20 mil pessoas lotaram as dependncias do ginsio, deixando ainda uma multido do lado de fora. Era o
pice da consagrao do grupo em territrio brasileiro, o que motivou a
programao de lanamentos do disco no exterior, comeando por pases
da Amrica Latina. Os planos eram ambiciosos, prevendo ainda uma maratona de apresentaes nos Estados Unidos, Europa e Japo. No entanto,
no momento em que o grupo embarcava para o Mxico, os primeiros desentendimentos em relao gerncia dos negcios e diviso dos lucros
comeavam a se manifestar entre seus integrantes. Aps duas semanas
de shows e apresentaes num canal de TV na capital daquele pas, com
grande sucesso e repercusses promissoras no mercado norte americano,
o grupo retornou a So Paulo e iniciou os preparativos e ensaios para a
produo do segundo disco.
As gravaes desse esperado lbum foram feitas em junho de 1974 nos
estdios SONIMA, em So Paulo, sob a coordenao de produo de Julio
Nagib. Joo Ricardo definiu o repertrio sem ouvir os demais integrantes, o
que contribuiu para acirrar a animosidade entre eles. O disco contm treze
faixas, das quais seis so poemas musicados de Julio Cortzar, Fernando
Pessoa, Oswald de Andrade e Joo Apolinrio. Algumas msicas foram
vetadas pela censura, dentre elas, Tem gente com fome, versos do poeta
Solano Trindade com melodia de Joo Ricardo, o que obrigou o grupo
a compor s pressas outras canes para completar o lbum.14 A balada
Delro.., de Gerson Conrad e Paulinho Mendona, nica sem a participao autoral do lder, foi uma delas. A instrumentao manteve padres
similares aos do primeiro disco, com a atuao de msicos habilidosos em
arranjos compactos, oscilando entre as baladas pop e o rock progressivo. A
capa repete, em certos aspectos, as caractersticas conceituais do primeiro
disco. Produzida por Antonio Carlos Rodrigues, traz as fotos dos rostos
maquiados dos trs integrantes do grupo sobre um fundo preto. Atravs da
superposio de imagens, cabeas parecem impressas sobre cestos de palha.
O disco foi bem produzido e a Continental elaborou um extenso
plano de divulgao e marketing, includo cartazes e filmes comerciais que
seriam exibidos em salas de cinema das principais cidades brasileiras.15
Porm, no teve a receptividade esperada por parte do pblico e nem da
crtica. Na opinio de Ana Maria Baiana, num texto escrito logo aps o
lanamento, tratava-se de um disco frio e distante da fora e de um certo
encanto mgico e ingnuo do lbum de estreia. A autora destacou ainda
a excessiva pretenso literria ao se trazer para o campo da cano os
poemas de Julio Cortzar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa, alm
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de certa literatice que caracterizava especialmente as letras de Paulinho


Mendona.16 O crescente clima de discrdia entre os membros do grupo
impediu que fossem cumpridos todos os compromissos previstos na extensa agenda de eventos destinados divulgao e promoo montada
pela gravadora, o que certamente prejudicou as vendas.
Antes de o trio anunciar a sua dissoluo no incio de agosto, foram
produzidos na TV Globo dois clips para o programa Fantstico, com as
canes Flores astrais e Tercer mundo. A primeira (2. faixa do lado A)
uma tpica balada pop de Joo Ricardo e Joo Apolinrio. O arranjo, base
de piano, guitarra eltrica, contrabaixo, flauta e bateria, integra-se ao canto
em trs vozes. Na gravao para a TV, Ney Matogrosso usa uma fantasia
futurista feita pela escultora Mari Yoshimoto, composta por um cocar de
metal prateado, luvas com dedos longos e pontiagudos confeccionadas com
o mesmo material, e um grande braso cintilante fixado no centro do peito.
Joo Ricardo e Gerson Conrad, maquiados e com fantasias mais discretas,
atuam como coadjuvantes. O cenrio formado pela imagem ampliada
da capa do LP, tendo ao fundo uma grande lua dourada. Essa foi a cano
que se tornou mais conhecida e que impulsionou a vendagem do disco.
A composio Tercer mundo, a primeira faixa do lbum, um
poema de Julio Cortzar com melodia de Joo Ricardo composta a partir
de clichs da msica flamenca. Ney Matogrosso se apresenta com o cabelo
preso por uma fita vermelha, formando um coque na altura da nuca, costeletas longas, um grande brinco em forma de argola na orelha esquerda
e braceletes de metal nos braos. Sem mscara e penachos, usa apenas
sobras escuras sobre os olhos e batom encarnado. O vestido preto, com
amplo decote, deixa expostos os ombros e o peito peludo. Esses adereos,
somados gestualidade ao estilo das divas do flamenco e ao seu timbre
vocal caracterstico, acentuam a ambivalncia da performance.
O grupo se desfez em seguida. Joo Ricardo, que se manteve como
detentor da marca Secos & Molhados, recriou o grupo vrias vezes com
outras formaes e gravou vrios discos, obtendo relativo sucesso, porm
numa escala muito menor da fase anterior. Gerson Conrad tambm gravou um lbum e passou a atuar discretamente como msico, produtor e
arquiteto. E Ney Matogrosso se projetou como um dos mais importantes
intrpretes da msica popular brasileira.

Performance 1: poesia e cano


A produo do Secos & Molhados se deu num momento em que a
MPB (Msica Popular brasileira), segmento musical que adquiriu identidade e se consagrou a partir de meados dos 60, ocupava posio hegemnica
no interior do sistema cultural ento vigente no pas. A legitimidade da
sigla, que abarcava uma multiplicidade de gneros, estilos e sonoridades,
fora conquistada em meio a lutas culturais associadas ao intenso debate
esttico ideolgico que marcou aquele decnio.
A consagrao desse segmento representou o ponto alto de um longo processo de refinamento e intelectualizao pelo qual passou a nossa
msica popular desde os anos 30; processo que envolveu tanto mudanas
nos aspectos meldicos, harmnicos e dos arranjos das composies resultantes da incorporao de padres advindos da msica de concerto e do
jazz , como a interseo entre cano e poesia erudita. Nesse perodo, uma
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16

BAHIANA, Ana Maria. Um


salto no vazio. Jornal Opinio, n.
93, 19 de ago. 1974, op. cit., p. 18.

19

17

Para a autora, o carter crtico da cano se manifesta em


dois nveis: primeiramente, no
plano textual, interno obra,
quando o cancionista reflete
muitas vezes sobre o prprio
processo de criao, recorrendo
ao uso de metalinguagem, intertextualidades, pardias etc.
Tais procedimentos tornaramse marcantes especialmente
com a Bossa Nova. O segundo
nvel o da crtica contextual,
que atingiu a plenitude com a
cano engajada de orientao
cepecista e com a MPB. Nesse caso, a obra se volta para
questes de poltica e cultura
com o intuito, em ultima anlise, de articular arte e vida e
transformar a sociedade. Ver
NAVES, Santuza Cambraia.
Cano popular no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Civilizao
Brasileira, 2010.
18

TATIT, Luiz. O sculo da


cano. Cotia: Ateli Editorial,
2004, p.227.

19
NAPOLITANO, Marcos.
MPB: Totem-Tabu da vida
musical brasileira. In: RISRIO,
Antonio et al. Anos 70: trajetrias. So Paulo: Iluminuras/Ita
Cultural, 2005, p. 125.
20

SANTANNA, Aonso Romano de. Msica popular e


moderna poesia brasileira. Petrpolis: Vozes, 1986, p. 265.

20

determinada parcela da msica popular atingiu alto nvel de reflexividade,


conquistando o status de arte no interior do sistema cultural. Foi o momento da emergncia da cano crtica, como bem definiu Naves; uma
modalidade de cano reflexiva que traduziu, num primeiro momento, o
iderio nacional popular que marcou a cultura brasileira nos anos 60 e se
converteu, aps o golpe civil militar de 1964, numa forma de resistncia
ao regime ditatorial. A Tropiclia ampliou o conceito de cano, desconstruindo em parte a sua estrutura formal que se consolidara especialmente
a partir da Bossa Nova. Ao radicalizar o sentido crtico desse produto artstico, adotou, entre outras coisas, a esttica do excesso, incorporando o
rudo, o gesto, a performance, a visualidade das capas dos discos tratados
como objetos conceituais.17 Sob o impacto da crtica tropicalista, a MPB se
abriu para mltiplas dices.18
De acordo com Napolitano, a msica popular brasileira abrangia,
nos anos 70, trs grandes circuitos que se delinearam no interior do
campo musical: o que ainda mantinha linhas de continuidade do nacional
popular, politicamente engajado e mantendo afinidades com o iderio de
esquerda; o alternativo, herdeiro das incurses vanguardistas e associado a subculturas juvenis que emergiram especialmente no contexto ps
AI5; e, por fim, o massificado, representado por produes fortemente
orientadas pela lgica da indstria cultural.19 De certo modo, os Secos &
Molhados tangenciaram esses circuitos. Suas letras, por exemplo, guardam
certa proximidade com a MPB notadamente quanto ao tratamento formal
e ao contedo crtico e engajado de inmeras composies. Porm, h
diferenas entre essa produo e a dos compositores e intrpretes que se
dedicaram chamada cano de protesto dos anos 60. No trabalho do trio,
prevalecem traos do que Romano de SantAnna definiu como uma poesia
de tradio simblica, isto , uma maneira de dizer certas coisas atravs
do envolvimento, do uso de metforas, e no de modo direto, contrastando
com a agressividade, a estridncia e o estilo pico/dramtico dos artistas
engajados. Em muitas das composies observa-se certa liberdade com
que o grupo articula o contedo participante e politizado das letras com o
tratamento musical muitas vezes brincalho, aparentemente inocente ou at
mesmo infantil dado s canes. Nesse aspecto, ele parece se aproximar do
segundo circuito apontado por Napolitano, associado s novas subculturas
juvenis que emergiram no pas no perodo ps-tropicalista. Do ponto de
vista musical, como j foi destacado, suas canes seguem certos padres
das bandas de pop rock internacional com melodias delineadas a partir de
uma base harmnica composta por sequncias elementares e rotineiras de
acordes sustentada por uma instrumentao simples e caracterstica do
repertrio desse segmento.
Outra peculiaridade da produo dos Secos & Molhados a musicalizao de poemas. Ao mesmo tempo em que se mostraram capazes de
fazer canes com letras esteticamente bem elaboradas, criaram melodias
para poemas de autores consagrados. Como ressaltou Aonso Romano
de SantAnna, eles vo ...resgatar textos literrios de sua imobilidade
livresca e traz-los para o espetculo vivo da srie musical.20 O poeta e
crtico reconhece, por exemplo, certa equivalncia, quanto qualidade
literria, entre a letra de El Rey, de Gerson Conrad e Joo Ricardo, e o
poema Prece csmica de Cassiano Ricardo, tambm musicado pelo grupo.
Desse modo, ao mesmo tempo em que promoveram o refinamento esttico
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das suas letras, fazendo com que elas se aproximassem do status de obras
literrias, eles trouxeram os poemas para o campo da cano miditica,
revestindo-os com o tratamento musical e outros adereos inerentes a esse
meio, preparando-os para a insero num plano de circulao e consumo
simblico muito mais amplo.
Mas a articulao entre textos literrios e cano de massa, produtos
artsticos que alm de ocuparem posies opostas e distantes na escala de
valores do sistema cultural, sendo, portanto, destinados a modos distintos
de recepo, nem sempre se mostra eficaz. Ao ser apropriado pela performance cancionstica o poema tende, em algumas situaes, a sofrer certo
esvaziamento do seu significado semntico. Zumthor ressalta que com o
impacto da vocalidade na entoao da obra literria o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos efeitos performticos,
no textuais.21 Isso pode ter ocorrido com alguns poemas musicados que
compem o segundo lbum dos Secos & Molhados, motivando objees
por parte da crtica.
A composio Tercer mundo parece ser um desses casos. De fato,
a letra no um poema, stricto sensu, mas uma frase retirada do livro Prosa
del observatorio, de Julio Cortzar, publicado em 1972. Trata-se de um texto
concebido, dentre outras coisas, a partir das impresses do autor sobre
as runas dos observatrios astronmicos das cidades de Jaipur e Delhi
edificados por um sulto decadente da ndia do sculo XVIII fascinado
por estrelas, e de um artigo cientfico publicado no jornal Le Monde que
descrevia o ciclo de vida e morte das enguias no seu eterno trnsito sazonal
entre as profundezas das guas tpidas do Atlntico Norte e os esturios
dos rios europeus. Numa narrativa fragmentada e imagtica, definida do
ponto de vista formal como prosa, mas repleta de recursos da linguagem
potica, o escritor argentino constri um universo mtico que serve de base
para uma aguda reflexo crtica sobre o mundo atual. Estrelas, enguias, mar
de sargaos, anel de Moebius convertem-se em metforas de um plano pulsante da realidade encoberto pelo manto de um cotidiano esquadrinhado,
mensurado e classificado pela racionalidade tcnico cientfica do Ocidente.
Em meio a um mosaico de imagens surrealistas, retratos da catstrofe contempornea, uma revoluo aguarda o seu momento. Certamente, no uma
revoluo nos padres tradicionais concebidos pela cincia poltica, mas
um profundo movimento transformador cujo sujeito o homem que no
se aceita cotidiano, que capaz de fazer a sua verdadeira revoluo de
dentro para fora e de fora para dentro.22 A frase retirada dessa obra pelo
Secos & Molhados e transformada em cano traduz, de certo modo, essa
ideia. Ahi, no lejos,/las anguilas laten/su inmenso pulso,/su planetrio
giro,/todo espera el ingresso/en una danza/que ninguna Isadora danz/
nunca de este lado del mundo,/tercer mundo global/del hombre sin orillas,/
chapoteador de histria,/vspera de si mismo.23
O trecho destacado faz referncia ao Terceiro mundo, bloco geoeconmico que, de acordo com novos critrios de regionalizao do espao
mundial definidos por cientistas sociais e economistas aps a segunda
grande guerra, seria composto por pases subdesenvolvidos da Amrica
Latina, frica e sia. Cortzar no parecia um entusiasta de classificaes
desse tipo, embora cultivasse simpatia e certa esperana em relao ao
potencial libertador de movimentos que ocorriam nesses continentes, especialmente os conflitos do sudeste asitico e a revoluo cubana. De certo

21
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. So Paulo:
Cosac Naify, 2007, p. 17 e 18.
22

CORTZAR, Julio. Prosa do


observatrio. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 99.
23

CORTZAR, Julio. Prosa del


obsertavatorio. Barcelona: Editorial Lumen, 1972, p. 67 e 68. Na
traduo de Davi Arrugucci Junior: A, no longe, as enguias
palpitam seu imenso pulso, seu
giro planetrio, tudo espera o
ingresso numa dana que nenhuma Isadora jamais danou
deste lado do mundo, terceiro
mundo global do homem sem
fronteiras, chapinhador de
histria, vspera de si mesmo.
CORTZAR, Julio. 2005, op.
cit., p. 99.

21

24

Idem, ibidem, p. 103.

25

A cano, de autoria dos


franceses Hubert Giraud e Jean
Drjac, intitulada LArliquin
de Tolde, foi muito ouvida
no Brasil em 1962 e 1963. Tendo como tema as peripcias e
desventuras amorosas de um
trovador solitrio de Extremadura, na Espanha, narradas em
versos a partir de uma melodia
com padres esteriotipados da
msica espanhola, a composio se converteu num hit da
indstria fonogrfica europeia
na voz de Dalila e foi adaptada para o portugus em duas
verses. Uma delas, feita por
Fernando Barreto, foi gravada
por ngela Maria na RCA
Victor, e a outra, de autoria de
Romeu Nunes, foi registrada
em discos Odeon na voz de
Gilda Lopes, com o ttulo O
trovador de Toledo. Esta ltima obteve enorme sucesso.
A cantora, dotada de recursos
vocais excepcionais (soprano
capaz de atingir notas agudas
com notvel pureza e brilho),
interpreta a cano com forte
expressividade, sensualidade
e delicadeza. Por mais de dois
meses essa gravao figurou no
topo da Parada de Sucesso
da Revista do Rdio. Ver Revista
do Rdio, 1962. Ano XIV, do
nmero 681 ao 693.

26
Sobre esse assunto diz Valverde: ainda o canto que atrai o
ouvinte, embora numa lngua
que s se deixa identificar por
suas articulaes, independentemente de toda compreenso.
E como a solicitao semntica
perde-se na ignorncia do cdigo lingustico, a cano torna-se
pura msica e o seu sentido fazse aqum das significaes nas
texturas de uma sonoridade
to indecifrvel quanto irresistvel. VALVERDE, Monclar.
Mistrios e encantos da cano.
In: MATOS, Claudia Neiva de,
TRAVASSOS, Elizabeth e MEDEIROS, Fernanda Teixeira de
(orgs.). Palavra cantada: ensaios
sobre poesia, msica e voz.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008,
p. 273.
27

Neste segundo LP diz a jornalista - as pretenses literrias


e existenciais de Joo Ricardo
deixam o repertrio num meio
termo sem sabor, alm do apelo
primrio (e bem rock) e muito
aqum do alcance pretendido.
exceo dos textos de Pessoa,
Cortzar e Oswald de Andrade (belos, mas at que ponto

22

modo, o escritor compartilhava da perspectiva que circulava entre intelectuais e ativistas de esquerda nos anos 60 segundo a qual as mobilizaes
de foras sociais que poderiam desestabilizar a nova ordem internacional
e abrir brechas para a ecloso de movimentos libertadores viriam dessa
regio do planeta, identificada por alguns como o elo fraco do sistema
de poder mundial. Porm, em seu livro, a expresso terceiro mundo
global no tem exatamente essa conotao geopoltica, mas parece soar
como metfora contra cultural de uma face invisvel da realidade; de um
lugar mtico a partir do qual o homem fora da ordem, movido pelo desejo,
poder romper a carapaa do institudo e bater contra a matria rampante
do fechado, de naes contra naes e blocos contra blocos.24
A esse fragmento da obra Prosa do observatrio, Joo Ricardo incorporou uma melodia composta a partir dos acordes da cadncia andaluza na
tonalidade de mi menor (Em/D/C/B), com padres estilizados da msica
flamenca. O arranjo, base de trs violes e castanholas, somado gestualidade vocal caracterstica de Ney Matogrosso, acentua esses aspectos,
mobilizando elementos do imaginrio construdo e reproduzido no mbito
da cultura de massa que atribui latinidade, em especial cultura hispnica, certas qualidades como exotismo, sensualidade e passionalidade.
A entoao peculiar do cantor refora a autonomia da frase em relao
totalidade da narrativa, ao mesmo tempo em que desloca e expande seus
significados. O intrprete parecia acionar, voluntariamente ou no, at
mesmo certa memria radiofnica ainda viva naqueles tempos. possvel
identificar alguns traos das suas inflexes vocais que lembram cantoras
do rdio como ngela Maria e, especialmente, Gilda Lopes na memorvel gravao de O trovador de Toledo de 1962. Em sua breve carreira,
a cantora obteve enorme sucesso com essa cano, definida como valsa
fantasia, que falava das aventuras amorosas de um estranho personagem
num cenrio sedutor e misterioso de algum lugar da Pennsula Ibrica. A
melodia, tambm repleta de clichs da msica espanhola, permitia que a
cantora exibisse suas habilidades vocais, numa combinao um tanto kitsch
entre vocalizes, nos quais transitava com surpreendente naturalidade por
trs oitavas, e uma entoao sensual e impetuosa.25
Provavelmente, grande parte dos ouvintes se emocionava muito mais
com a performance de Ney Matogrosso, com inflexes e timbre peculiares que
mobilizavam facetas do imaginrio popular como os atributos da cultura
hispnica j fixadas pela cano massiva, do que com o contedo do texto
de Cortzar. At mesmo as dificuldades impostas pelo idioma espanhol
compreenso dos versos do escritor argentino no comprometeram o desempenho da composio como hit, pois o pblico muitas vezes se emociona
com uma cano cuja letra em lngua estrangeira lhe incompreensvel.
Prevalecem, nesses casos, apenas os efeitos fonticos da palavra cantada
convertidos em pura msica.26 A uma melodia simples e envolvente como
a de Tercer mundo, a adio de outra letra qualquer que abordasse o
mesmo tema no faria grande diferena. A crtica Ana Maria Bahiana, num
texto escrito no calor da hora, faz um comentrio sutil e perspicaz sobre
isso. Ao mesmo tempo em que ressalta a beleza dos poemas de Fernando
Pessoa, Oswald de Andrade e Cortzar, convertidos em canes desse
lbum, pergunta at que ponto eles eram realmente necessrios.27
possvel que nesses casos a escolha do trio (ou do lder Joo Ricardo) reflita certo esnobismo de massa, expresso cunhada por Roberto
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

necessrios?) as letras, em
especial as de Paulinho Mendona, pecam pela literatice.
BAHIANA, Ana Maria. Um
salto no vazio. Jornal Opinio,
n. 93, 19 ago. 1974, op. cit., p. 18.
28

Cf. SCHWARZ, Roberto.


Cultura e poltica: 1964-1969.
In: SCHWARZ, Roberto. Pai de
famlia e outros estudos. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 76.

29
MORIN, Edgar. No se conhece a cano. In: Linguagem
da cultura de massas: televiso
e cano. Petrpolis: Vozes,
1973, p. 146.
30

Cf. KRAUSCHE, Valter. Na


pista da cano: primeiros
passos de uma dana maior.
Trilhas Revista do Instituto
de Artes. Campinas: Instituo de
Artes da Unicamp, ano 1, no. 1,
jan.abr., 1987, p. 77.

Performance 2: gestus
Num texto pioneiro sobre estudos de msica popular, escrito em
meados dos anos 60, o socilogo Edgar Morin destaca o carter sincrtico da cano cujas razes remontam a manifestaes culturais como
a pea musical, o music-hall, o cabaret e prticas festivas diversas.
Apontada pelo autor como o mais cotidiano dos objetos de consumo da sociedade moderna, a cano, que integra as substncias
musical e verbal com todas as suas derivaes, configura-se como
produto artstico dotado de uma linguagem multidimensional.
Desse modo, sua msica arrasta-se para a dana, sua letra para o
teatro, e o conjunto msica-letra mais que dana-teatro, algo que tem
realidade molecular.29
A cano, tal como a conhecemos hoje, se constituiu como narrativa
miditica ao longo do sculo XX de modo indissocivel dos seus meios
tcnicos de produo e reproduo. No perodo em que o rdio atuou
como principal canal de circulao de msica popular, a face sonora desse produto artstico ganhou supremacia. Os intrpretes se preocupavam
fundamentalmente com as tcnicas de emisso das notas musicais, com
a explorao dos recursos dos estdios, com o uso dos microfones etc. O
pblico frua a visualidade nos programas de auditrio ou ao lado dos seus
aparelhos receptores atravs da imaginao. Foi uma poca, nos termos
de Krausche, da hegemonia do ouvido em que a capacidade de controle
da indstria sobre a recepo do produto musical pelo pblico mostravase relativamente incipiente. Na tentativa de preencher as lacunas ainda
presentes nessa relao, a indstria da cultura utilizou de outros recursos
como as publicaes voltadas para o mundo da msica popular, suprindo
com imagens os espaos vazios que as programaes radiofnicas no eram
capazes de ocupar.30 No Brasil, por exemplo, a famosa Revista do Rdio divulgava no s imagens, mas histrias da vida privada de cantores e cantoras
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

23

Artigo

Schwarz para se referir criticamente a determinados procedimentos dos


tropicalistas como submeter traos dos anacronismos inerentes sociedade
brasileira aos meios tcnicos mais avanados, citar obras artsticas da esfera
culta a partir de circuito massificado, deslocar fragmentos de tradies
monumentalizadas para os fluxos da moda, tudo isso resultando numa
construo alegrica de um Brasil absurdo. No contexto ps-golpe, em que
se consolidava o processo de modernizao conservadora, a produo dos
baianos mostrava-se ambgua, tendendo tanto para a crtica aos impasses
scio polticos e culturais do pas naquele perodo como para a integrao
ao mercado28. Mas a produo dos Secos & Molhados parecia orientada por
uma inteno estratgica, ainda que amadora, na busca de legitimidade no
interior do campo artstico da poca. Nomes de poetas consagrados como
parceiros poderiam representar uma espcie de chancela para a conquista
de reconhecimento no interior do sistema cultural no qual o crculo seleto
de cancionistas da MPB ocupava posio hegemnica. Portanto, aquela
ambiguidade atribuda por Schwarz aos tropicalistas no se aplica ao trio,
mesmo porque as apropriaes e citaes de obras literrias presentes no
repertrio do grupo parecem desprovidas de qualquer sentido parodstico. Parece prevalecer, neste caso, a perspectiva da insero no mercado
de bens culturais.

31

Idem, ibidem, p. 86.

32

O happening um tipo de criao artstica que surgiu nos Estados Unidos em fins dos anos
50 e teve grande repercusso
na dcada seguinte em outros
pases. Reunindo artes visuais,
corporais, cnicas e musicais,
no se materializa em produtos
especficos, mas consiste em
aes e eventos que se realizam
com intensa participao do
pblico. Eles no podem ser
adquiridos, no so consumveis; s podem ser frudos no
momento em que acontecem.
A imprevisibilidade quanto
ao contedo, durao, bem
como a ausncia de enredo e
de narrativa so algumas das
caractersticas formais dessa
modalidade artstica. Sem clmax e concluses, as aes se
contrapem noo cotidiana
de tempo. Os eventos se desenrolam como se fossem orientados por uma lgica ou por uma
temporalidade onrica. H certa
afinidade entre os happenings
e o surrealismo que, dentre
outras coisas, desmontam significados convencionais, promovendo o choque. um tipo
de arte que agride e incomoda
o pblico, ao mesmo tempo em
que tensiona o prprio meio.
Durante os anos 60, os happenings foram incorporados por
diversos movimentos artsticos
de vanguarda, repercutindo at
mesmo no mbito da cultura
de massa. Sobre esse tema, ver:
GOLDBERG, RoseLee. A arte da
performance: do futurismo ao
presente. So Paulo: Martins
Fontes, 2006 e SONTAG, Susan.
Contra a interpretao. Porto
Alegre: L&PM, 1987.
33

Ver CALADO, Carlos. Tropiclia: a histria de uma revoluo musical. So Paulo: Editora
34, 1997, p. 218-19 e VENTURA,
Zuenir. 1968, o ano que no
terminou: a aventura de uma
gerao. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988, p. 201.

24

do rdio, contribuindo para a construo da imagem pblica dos artistas.


O cinema e a televiso, cada um ao seu modo, potencializaram o lado
cnico e performtico dessa manifestao artstica. medida que interagiam com o mundo da msica popular, esses ramos da indstria cultural
proporcionaram a rearticulao entre as dimenses sonora e imagtica da
cano, dando maior relevncia ao papel do intrprete. Pode-se dizer que
eles produziriam, ao longo de algumas dcadas, os elementos da linguagem
do vdeoclip que se constituiu nos anos 70, momento em que a colagem
de sons e imagens atingiu o seu apogeu.31
No Brasil, foi a partir de 1960 que a televiso se transformou num
importante meio de veiculao de msica popular com a multiplicao
dos programas musicais e festivais em vrias emissoras, contribuindo
para a expanso das possibilidades estticas da cano. Nesses anos, intrpretes, cantores e instrumentistas, alm de porem em prtica as tcnicas
desenvolvidas a partir de suas experincias radiofnicas, apuraram novas
habilidades interpretativas de natureza cnico-expressiva. Elis Regina,
por exemplo, atravs de expresses faciais e movimentos corporais programados, transitava com agilidade do clima eufrico, alegre e vibrante
para o excessivamente dramtico, realando a temtica das composies.
Os artistas da Jovem Guarda, tambm se revelaram intrpretes performticos bastante habilidosos, desenvolvendo estilos compatveis tanto com
o repertrio que produziam como as expectativas do pblico juvenil junto
ao qual buscavam reconhecimento.
Os tropicalistas, no final dos anos 60, exploraram de forma radical as
novas linguagens at os limites possveis naquele contexto. Eles adotaram,
em diversas situaes, atitudes tpicas dos happenings.32 Foram marcantes
as apresentao de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Mutantes, Tom
Z que se seguiram ao Festival de MPB de 1967, da TV Record, evento que
inaugurou a Tropiclia. Roupas extravagantes, cabelos longos e arrepiados,
gestos e rebolados exagerados, gritos e longos improvisos eram alguns
dos procedimentos adotados por esses artistas que envolviam o pblico,
provocando, muitas vezes, reaes agressivas. A participao de Caetano
Veloso no Festival Internacional da Cano, promovido pela TV Globo, em
setembro de 1968, defendendo a cano proibido proibir, teve grande
impacto. Vestindo roupas de plstico, miangas e colares exticos, o compositor baiano foi acompanhado pelo conjunto Os Mutantes que executava
o arranjo repleto de sons metlicos e estridentes, enquanto um jovem hippie
norte americano caminhava pelo palco gritando palavras sem sentido. Tudo
isso provocou reaes violentas do pblico presente no Tuca (Teatro da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo), que explodiu em vaias e
insultos. Impossibilitado de continuar a cantar, fez um discurso emocionado, comparando a plateia aos integrantes do CCC (Comando de Caa aos
Comunistas) que haviam espancado os atores durante a pea Roda Viva
e saudou Cacilda Becker, atriz que compunha o elenco. Em seguida, disse
que ele e Gil estavam ali para acabar com a estrutura do festival e acusou
o jri de incompetente, pedindo para que o desclassificasse.33
Atitudes iconoclastas e ousadas dos tropicalistas marcaram os shows na Boate Sucata, no Rio de Janeiro, realizados concomitantemente s
sees finais do FIC no Maracanzinho. No palco, duas bandeiras traziam
inscries associadas ao movimento: Yes, ns temos bananas e Seja
marginal, seja heri. Esta ltima compunha o estandarte do artista plsArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

Artigo

tico de vanguarda Hlio Oiticica feito em homenagem ao bandido Cara de


Cavalo, morto pela polcia.34 As reaes tanto do pblico como da crtica
oscilavam entre euforia, entusiasmo, decepo e agressividade. A curta
temporada foi interrompida com a interdio da boate.
O programa Divino Maravilhoso, da TV Tupi, que foi ao ar nos dois
ltimos meses de 1968, tambm era concebido como happening. Gravado
semanalmente no auditrio da emissora, com a presena de pblico, era
transmitido ao vivo. No palco, com cenrios compostos por painis, desenhos extravagantes e pichaes, as canes eram interpretadas de forma
livre, com longos improvisos, e encenadas de modo debochado e parodstico. A audcia dos tropicalistas provocava reaes de telespectadores mais
conservadores que enviavam cartas emissora protestando contra o tom
agressivo das apresentaes.35 Logo aps a decretao de AI -5, Caetano se
apresentou com um revolver apontado para a prpria cabea, cantando
capela, como um adgio, os versos eu pensei de todo mundo fosse filho
de Papai Noel, da composio Boas Festas de Assis Valente. A emissora
retirou o programa do ar e, dias depois, Caetano e Gilberto Gil foram presos.
De certo modo, o happening tropicalista preparou a recepo do Secos
& Molhados, embora no seja correto pressupor uma linha de continuidade
entre essa duas experincias. Sob o clima poltico pesado que reinou no
pas no contexto ps AI-5, surgiram novos movimentos artsticos performticos que exploravam a corporeidade e abordavam questes relativas
sexualidade, sintonizados, via de regra, com tendncias internacionais
e a cultura underground. O grupo de teatro e dana Dzi Croquetes, foi um
desses casos. Tendo frente o danarino e cantor norte-americano Lennie
Dale, se notabilizou por atuaes arrojadas e obteve grande adeso de pblico especialmente em salas do Rio de Janeiro e de So Paulo. Inspirado
no teatro musical de revista e shows de cabar, o grupo, composto incialmente apenas por homens, fazia a crtica aos costumes convencionais e
moralidade retrgrada vigente nos tempos de ditadura, usando fantasias,
maquiagem, silos postios, plumas, paets, purpurina, tudo combinando
com uma gestualidade ambgua. Com adereos e gestos femininos, exibiam
longas barbas e corpos msculos no depilados, criando um ambiente de
jogo ldico e transgressor dos cdigos de classificao dos gneros sexuais.
O nome soava como uma pardia ao do grupo californiano The Cockets,
uma das manifestaes do gay power, notabilizado por suas apresentaes
marcadas pela sexualidade polimorfa e drags extravagantes. A repercusso
do espetculo Dzi Croquettes contribuiu para a propagao entre o pblico
brasileiro da moda andrgina que j circulava em contextos internacionais.36
Moda que tambm ressoava no Brasil a partir de uma nova cena que emergiu no campo da msica popular do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Identificada como Glam Rock ou Glitter Rock, essa tendncia representou ao
mesmo tempo ruptura e continuidade em relao ao rock progressivo e
contracultura. Seus intrpretes, dentre os quais se destacavam Gary Glitter,
Perry Farrell, Iggy Pop, Alice Cooper e David Bowie, se apresentavam com
cabelos coloridos, trajes escandalosos, maquiagem pesada, purpurina e
com nfase no desempenho cnico e na androginia.37
Os Secos & Molhados foram contemporneos dessas experincias,
embora seus integrantes no admitissem que fossem elas suas principais
referncias. Para Ney Matogrosso, suas fantasias no eram influenciadas
pelo Glam, mas inspiradas principalmente na lembrana que tinha da vedete

34

Sobre esses shows, Caetano


faz o seguinte relato: Eu usava [na Boate Sucata] o mesmo
traje plstico verde e negro das
apresentaes do Tuca creio
que Gil e os Mutantes tambm
mantinham o figurino e levava s ltimas consequncias o
comportamento de palco esboado desde `Alegria, alegria,
estirando-me deitado no cho,
plantando bananeira e enriquecendo o rebolado cubano
baiano do ` proibido proibir.
Mas o mais forte do espetculo
era o que o Gil e os Mutantes
faziam musicalmente com o
material escolhido. VELOSO,
Caetano. Verdade tropical. So
Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 306 e 307.
35

Fizemos diz Caetano um


programa atrs de grades e
dentro de gaiolas (o proscnio
era tomado por uma grade de
madeira imitando ferro; outras jaulas menores, dentro da
grande jaula que era o palco,
guardavam os Mutantes, Gal,
Tom Z etc.; Jorge Ben cantava
dentro de uma jaula que pendia do teto): no final eu vinha
do fundo do palco berrando o
sucesso de Roberto Carlos `Um
leo est solto nas ruas e quebrava as grades, convidando
todo o elenco de participantes a
colaborar comigo nessa destruio. [...] Num outro programa,
nos distribumos um pouco
maneira de Cristo e os apstolos na Santa Ceia lembrando o
Bruel de Viridiana -, mas sobre
a mesa havia apenas bananas.
Cantvamos e comamos bananas. Os Mutantes fizeram
o `enterro do tropicalismo.
Idem,ibidem, p. 342. Ver tambm
CALADO, Carlos, op. cit., p.
235 e 236.
36

Ver LOBERT, Rosemary. A


palavra mgica: a vida cotidiana
do Dzi Croquettes. Campinas:
Editora Unicamp, 2010, p. 244.
37
Ver SHUKER, Roy. Vocabulrio de msica pop. So Paulo:
Edra: 1999, p. 145.

25

38

Cf. VAZ, Denise Pires, op.


cit., p. 109.

39
MATOGROSSO, Ney apud
QUEIROZ, Nico Pereira e PRATA, Leonel. Ney Matogrosso:
mocinho e bandido. Msica:
a nova impresso do som, ano
I, n. 7, So Paulo: Imprima Comunicao e Editorao Ltda.
1979, p. 27.
40

Zumthor se apoia na noo


de gestus de Bertold Brecht
segundo a qual o modo de
dizer um texto no se dissocia
de todo um jogo fsico do ator.
Transpondo essa ideia para o
campo da literatura, o medievalista afirma que na fronteira
entre dois domnios semiticos,
o gestus d conta do fato de que
uma atitude corporal encontra
seu equivalente numa inflexo
de voz, e vice-versa, continuamente. ZUMTHOR, Paul. A
letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 244.
41
MASCARENHAS, Eduardo
apud VAZ, Denise Pires, op.
cit., p. 293.
42

Cf. VARGAS, Heron. Secos &


Molhados: experimentalismo,
mdia e performance. Rio de
Janeiro: Anais do 19. Encontro
Anual da COMPS, PUC/RJ,
2010.
43
MASCARENHAS, Eduardo
apud VAZ, Denise Pires, op.
cit., p. 293.

26

Elvira Pag que vira, quando ainda criana, se apresentando numa emissora
de rdio com o corpo coberto apenas por uma pele de ona e miangas.38
Carmem Miranda foi outra das suas fontes inspiradoras tanto para as
fantasias como para os gestos e a maneira de danar. Por fim, dizia que
Caetano Veloso fora o principal precursor do seu estilo. Graas a Caetano
Veloso eu hoje posso fazer o que fao afirmou Ney. Ele deu abertura na
cabea das pessoas, que me permitiu, alguns anos depois, vir a dar outra...
Ele foi at um ponto e no pode ir adiante. Me passou o basto.39
Do ponto de vista da performance, os Secos & Molhados no eram
propriamente uma banda nos padres daquela formao que se fixou no
universo da msica pop a partir dos anos 60, comportando uma diviso
de trabalho ou de papeis entre cantores e instrumentistas de modo razoavelmente equilibrado. A grande fora do grupo residia na atuao de
Ney Matogrosso. Se por um lado era notria certa fragilidade dos demais
integrantes do trio como instrumentistas, o que exigia a convocao de
msicos mais experientes para as gravaes e os shows, por outro Ney
era o foco das atenes, exibindo grande domnio tcnico tanto em relao
ao canto como gestualidade. No momento em que o desenvolvimento
tecnolgico que se anunciava apontava para um novo ajuste entre sons e
imagens no campo da cano, que culminaria no formato do videoclipe,
o grupo parecia antecipar essa articulao no palco. Com ele, o gestus,
termo aqui usado na acepo de Zumthor, mostrava toda a sua potncia
como elemento articulador da melodia, do ritmo, bem como de toda a
sonoridade resultante da instrumentao e dos arranjos com a palavra
cantada, de tal modo que as inflexes vocais tornavam-se indissociveis
da atitude corporal.40
A performance de Ney, sempre acompanhada pela atuao secundria e discreta de Gerson Conrad e Joo Ricardo, compunha um amplo campo
de ambivalncias. Aos adornos, roupas, missangas, penachos e maquiagens
com caractersticas femininas, contrapunham-se as longas costeletas, o
corpo desnudo, no depilado e msculo. Gestos bruscos, expresses faciais
agressivas, movimentos plvicos e rebolados exagerados contrastavam,
muitas vezes, com a delicadeza do canto. O exotismo dos adereos parecia problematizar no apenas as identidades masculina e feminina, mas
as fronteiras entre homem e animal, entre o primitivo e o futurista. Como
destacou Eduardo Mascarenhas, no palco, Ney mostrava-se de uma outra
raa, com uma identidade extraterrena e um aspecto hipertransgressivo: um
ser estranho e marginal cultura.41 As maquiagens e as fantasias, quase
todas confeccionados pelo prprio cantor, eram refeitas e modificadas a
cada espetculo, o que contribua para a construo de uma identidade
fluda, mutvel, em contraposio a uma persona fixa, confundindo,
assim, os limites entre a imagem pblica de artista e a da vida pessoal.42
Surpreendentemente, a gestualidade exagerada e certas bizarrices
do grupo no provocavam reaes agressivas. Salvo incidentes pontuais
registrados em alguns shows, o pblico mantinha-se atento e extasiado com
o espetculo. Para o psicanalista Eduardo Mascarenhas, especialmente Ney
Matogrosso atingia uma distncia tima em relao plateia de modo a
evitar ao mesmo tempo a indiferena e a rejeio. Se viesse humanizado
demais diz ele , fatalmente ocasionaria conflitos na alma conservadora
[...]. Mas, como ele se encontrava quase no mundo do desenho animado,
os conflitos se atenuaram.43
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

Artigo recebido e aprovado em novembro de 2013.

ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013

Artigo

Pode-se dizer que os Secos & Molhados operavam, dentre outras


coisas, com elementos de uma esttica que Sontag definiu como uma
sensibilidade Camp; um tipo de gosto e de produo artstica que guarda forte apreo pelo excesso, pelo estilo e pelo artifcio em detrimento do
contedo. Trata-se de uma arte de cunho decorativo que valoriza muito
mais a textura, a aparncia, a representao do que qualquer substncia
mais profunda das coisas. E at mesmo a imagem do andrgino especialmente cultivada por essa esttica que tende a exacerbar as caractersticas
sexuais e os maneirismos de certas personalidades. Camp diz a autora
representa a vitria do estilo sobre o contedo, da esttica sobre
a moralidade, da ironia sobre a tragdia.44
Vista de outro ngulo, a atuao do grupo guardava alguma identidade com o music-hall, um tipo de espetculo popular cuja inteno primordial, nos termos de Barthes, extrair o gesto de sua poupa adocicada de
durao, apresent-lo num estado superlativo, definitivo, dar-lhe o carter
de uma visualidade pura, desembara-lo de toda a causa, esgot-lo como
espetculo e no como significao.45 Desse modo, o corpo parcialmente
desnudo e os requebros ousados eram revestidos por um certo exotismo
codificado46, tornando a cena intangvel e, de alguma maneira, neutralizando o seu potencial transgressor e seu efeito de choque.
Todo o desempenho do trio era ordenado e planejado para o espao
cnico recomposto aps os abalos sofridos pelos happenings dos anos 60. Os
Secos procuraram restabelecer a distino e os limites entre palco e plateia
nos moldes do teatro tradicional no qual o artista assume o controle da
cena.47 Atuavam na direo do que RoseLee Goldberg definiu como a nova
performance que se configurou em meio a transformaes que ocorreram no
campo da cultura e da arte no incio dos anos 70. Em contraposio arte
conceitual e aos happenings que floresceram nas dcadas anteriores, a nova
performance vai reafirmar as instituies tradicionais do campo artstico e
o mercado, passando a valorizar o estilo, a extravagncia e bom humor.48
Os Secos estavam em sintonia com o seu tempo. Ao contrario dos tropicalistas que atuavam num ambiente marcado por meios massivos ainda
dotados de certa artesanalidade, contendo brechas que permitiam incurses
ousadas e anrquicas, provocando reaes muitas vezes imprevisveis do
pblico, o grupo de Joo Ricardo, Matogrosso e Conrad estava inserido
num contexto distinto. Alm das restries impostas pelo regime poltico
ditatorial, o campo artstico apresentava outra conformao, sustentado por
uma nova base tcnica e por uma indstria cultural muito mais integrada e
racionalizada que em dcadas anteriores. Uma nova configurao na qual
as aberturas para experimentalismos, criao livre e improvisaes eram
infinitamente menores. Numa escala mais ampla, era um tempo em que no
apenas nos pases mais desenvolvidos, mas em grande parte do mundo, a
radicalidade e a irreverncia no plano da cultura e da arte davam sinais de
esgotamento e as incurses de vanguarda eram suplantadas por produes
bem acabadas, comprometidas com o embelezamento e o entretenimento.
Como apontou Jameson, era o retorno do belo e do decorativo no lugar
do antigo sublime moderno.49

44
SONTAG, Susan, op. cit.,
p. 332.
45

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Editora


Bertrad Brasil S.A., p. 116.

46

Idem, ibidem, p. 94.

47

Sobre esse aspecto, Caetano


Veloso afirma que Ney adotou
apagar a distino entre masculino e feminino, mas no entre
palco e plateia. Nos anos 60, a
ideia era de que, quando Mick
Jagger entrava no palco, todo
mundo na plateia se sentia mais
ou menos igual a ele, partilhando o mesmo tipo de experincia; j nos anos 70, ocorre um
movimento completamente
oposto nesse sentido (e David
Bowie o artista mais marcante), restaurando uma teatralidade clssica do espetculo.
VELOSO, Caetano apud VAZ,
Denise Pires, op. cit., p. 266.
48

GOLDBERG, RoseLee, op.


cit., p. 144.
49

JAMESON, Fredric. Fim da


arte ou fim da histria? In:
JAMESON, Fredric. A cultura
do dinheiro: ensaios sobre a
globalizao. Petrpolis: Vozes,
2001, p. 86.
27

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