Secos e Molhados - Metáfora, Ambivalência e Performance
Secos e Molhados - Metáfora, Ambivalência e Performance
Secos e Molhados - Metáfora, Ambivalência e Performance
resumo
abstract
music industry.
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2
Ver ORTIZ, Renato. A moderna
tradio brasileira. So Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 133.
3
Ver VICENTE, Eduardo. Segmentao e consumo: a produo fonogrfica brasileira
1965/1999. ArtCultura: Revista
de Histria, Cultura e Arte.
Uberlndia: Edufu, v. 10, n. 16,
jan-jun. 2008, p. 104.
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VAZ, Denise Pires. Ney Matogrosso: um cara meio estranho.
Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1992, p. 51.
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Em entrevista concedida a
Tarik de Souza, Joo Ricardo,
disse que foram censuradas
trs canes por ele compostas
sobre os poemas Balada, de
Carlos Drumond de Andrade, Passrgada, de Manuel
Bandeira e Tem gente com
fome, de Solano Trindade. Ver
SOUZA, Tarik de. A liquidao
dos Secos & Molhados. Jornal
Opinio, n. 93, Rio de Janeiro:
Inbia Ltda, 19 ago. 1974, p. 16.
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eplogo do LP Secos & Molhados, adquirindo significados mais amplos. Talvez o eu lrico desta ltima cano no se dirigisse apenas pessoa amada,
mas tambm ao pblico ouvinte, aos crticos ou at mesmo aos censores.
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NAPOLITANO, Marcos.
MPB: Totem-Tabu da vida
musical brasileira. In: RISRIO,
Antonio et al. Anos 70: trajetrias. So Paulo: Iluminuras/Ita
Cultural, 2005, p. 125.
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das suas letras, fazendo com que elas se aproximassem do status de obras
literrias, eles trouxeram os poemas para o campo da cano miditica,
revestindo-os com o tratamento musical e outros adereos inerentes a esse
meio, preparando-os para a insero num plano de circulao e consumo
simblico muito mais amplo.
Mas a articulao entre textos literrios e cano de massa, produtos
artsticos que alm de ocuparem posies opostas e distantes na escala de
valores do sistema cultural, sendo, portanto, destinados a modos distintos
de recepo, nem sempre se mostra eficaz. Ao ser apropriado pela performance cancionstica o poema tende, em algumas situaes, a sofrer certo
esvaziamento do seu significado semntico. Zumthor ressalta que com o
impacto da vocalidade na entoao da obra literria o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra se investiria dos efeitos performticos,
no textuais.21 Isso pode ter ocorrido com alguns poemas musicados que
compem o segundo lbum dos Secos & Molhados, motivando objees
por parte da crtica.
A composio Tercer mundo parece ser um desses casos. De fato,
a letra no um poema, stricto sensu, mas uma frase retirada do livro Prosa
del observatorio, de Julio Cortzar, publicado em 1972. Trata-se de um texto
concebido, dentre outras coisas, a partir das impresses do autor sobre
as runas dos observatrios astronmicos das cidades de Jaipur e Delhi
edificados por um sulto decadente da ndia do sculo XVIII fascinado
por estrelas, e de um artigo cientfico publicado no jornal Le Monde que
descrevia o ciclo de vida e morte das enguias no seu eterno trnsito sazonal
entre as profundezas das guas tpidas do Atlntico Norte e os esturios
dos rios europeus. Numa narrativa fragmentada e imagtica, definida do
ponto de vista formal como prosa, mas repleta de recursos da linguagem
potica, o escritor argentino constri um universo mtico que serve de base
para uma aguda reflexo crtica sobre o mundo atual. Estrelas, enguias, mar
de sargaos, anel de Moebius convertem-se em metforas de um plano pulsante da realidade encoberto pelo manto de um cotidiano esquadrinhado,
mensurado e classificado pela racionalidade tcnico cientfica do Ocidente.
Em meio a um mosaico de imagens surrealistas, retratos da catstrofe contempornea, uma revoluo aguarda o seu momento. Certamente, no uma
revoluo nos padres tradicionais concebidos pela cincia poltica, mas
um profundo movimento transformador cujo sujeito o homem que no
se aceita cotidiano, que capaz de fazer a sua verdadeira revoluo de
dentro para fora e de fora para dentro.22 A frase retirada dessa obra pelo
Secos & Molhados e transformada em cano traduz, de certo modo, essa
ideia. Ahi, no lejos,/las anguilas laten/su inmenso pulso,/su planetrio
giro,/todo espera el ingresso/en una danza/que ninguna Isadora danz/
nunca de este lado del mundo,/tercer mundo global/del hombre sin orillas,/
chapoteador de histria,/vspera de si mismo.23
O trecho destacado faz referncia ao Terceiro mundo, bloco geoeconmico que, de acordo com novos critrios de regionalizao do espao
mundial definidos por cientistas sociais e economistas aps a segunda
grande guerra, seria composto por pases subdesenvolvidos da Amrica
Latina, frica e sia. Cortzar no parecia um entusiasta de classificaes
desse tipo, embora cultivasse simpatia e certa esperana em relao ao
potencial libertador de movimentos que ocorriam nesses continentes, especialmente os conflitos do sudeste asitico e a revoluo cubana. De certo
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepo e leitura. So Paulo:
Cosac Naify, 2007, p. 17 e 18.
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Sobre esse assunto diz Valverde: ainda o canto que atrai o
ouvinte, embora numa lngua
que s se deixa identificar por
suas articulaes, independentemente de toda compreenso.
E como a solicitao semntica
perde-se na ignorncia do cdigo lingustico, a cano torna-se
pura msica e o seu sentido fazse aqum das significaes nas
texturas de uma sonoridade
to indecifrvel quanto irresistvel. VALVERDE, Monclar.
Mistrios e encantos da cano.
In: MATOS, Claudia Neiva de,
TRAVASSOS, Elizabeth e MEDEIROS, Fernanda Teixeira de
(orgs.). Palavra cantada: ensaios
sobre poesia, msica e voz.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008,
p. 273.
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modo, o escritor compartilhava da perspectiva que circulava entre intelectuais e ativistas de esquerda nos anos 60 segundo a qual as mobilizaes
de foras sociais que poderiam desestabilizar a nova ordem internacional
e abrir brechas para a ecloso de movimentos libertadores viriam dessa
regio do planeta, identificada por alguns como o elo fraco do sistema
de poder mundial. Porm, em seu livro, a expresso terceiro mundo
global no tem exatamente essa conotao geopoltica, mas parece soar
como metfora contra cultural de uma face invisvel da realidade; de um
lugar mtico a partir do qual o homem fora da ordem, movido pelo desejo,
poder romper a carapaa do institudo e bater contra a matria rampante
do fechado, de naes contra naes e blocos contra blocos.24
A esse fragmento da obra Prosa do observatrio, Joo Ricardo incorporou uma melodia composta a partir dos acordes da cadncia andaluza na
tonalidade de mi menor (Em/D/C/B), com padres estilizados da msica
flamenca. O arranjo, base de trs violes e castanholas, somado gestualidade vocal caracterstica de Ney Matogrosso, acentua esses aspectos,
mobilizando elementos do imaginrio construdo e reproduzido no mbito
da cultura de massa que atribui latinidade, em especial cultura hispnica, certas qualidades como exotismo, sensualidade e passionalidade.
A entoao peculiar do cantor refora a autonomia da frase em relao
totalidade da narrativa, ao mesmo tempo em que desloca e expande seus
significados. O intrprete parecia acionar, voluntariamente ou no, at
mesmo certa memria radiofnica ainda viva naqueles tempos. possvel
identificar alguns traos das suas inflexes vocais que lembram cantoras
do rdio como ngela Maria e, especialmente, Gilda Lopes na memorvel gravao de O trovador de Toledo de 1962. Em sua breve carreira,
a cantora obteve enorme sucesso com essa cano, definida como valsa
fantasia, que falava das aventuras amorosas de um estranho personagem
num cenrio sedutor e misterioso de algum lugar da Pennsula Ibrica. A
melodia, tambm repleta de clichs da msica espanhola, permitia que a
cantora exibisse suas habilidades vocais, numa combinao um tanto kitsch
entre vocalizes, nos quais transitava com surpreendente naturalidade por
trs oitavas, e uma entoao sensual e impetuosa.25
Provavelmente, grande parte dos ouvintes se emocionava muito mais
com a performance de Ney Matogrosso, com inflexes e timbre peculiares que
mobilizavam facetas do imaginrio popular como os atributos da cultura
hispnica j fixadas pela cano massiva, do que com o contedo do texto
de Cortzar. At mesmo as dificuldades impostas pelo idioma espanhol
compreenso dos versos do escritor argentino no comprometeram o desempenho da composio como hit, pois o pblico muitas vezes se emociona
com uma cano cuja letra em lngua estrangeira lhe incompreensvel.
Prevalecem, nesses casos, apenas os efeitos fonticos da palavra cantada
convertidos em pura msica.26 A uma melodia simples e envolvente como
a de Tercer mundo, a adio de outra letra qualquer que abordasse o
mesmo tema no faria grande diferena. A crtica Ana Maria Bahiana, num
texto escrito no calor da hora, faz um comentrio sutil e perspicaz sobre
isso. Ao mesmo tempo em que ressalta a beleza dos poemas de Fernando
Pessoa, Oswald de Andrade e Cortzar, convertidos em canes desse
lbum, pergunta at que ponto eles eram realmente necessrios.27
possvel que nesses casos a escolha do trio (ou do lder Joo Ricardo) reflita certo esnobismo de massa, expresso cunhada por Roberto
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
necessrios?) as letras, em
especial as de Paulinho Mendona, pecam pela literatice.
BAHIANA, Ana Maria. Um
salto no vazio. Jornal Opinio,
n. 93, 19 ago. 1974, op. cit., p. 18.
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MORIN, Edgar. No se conhece a cano. In: Linguagem
da cultura de massas: televiso
e cano. Petrpolis: Vozes,
1973, p. 146.
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Performance 2: gestus
Num texto pioneiro sobre estudos de msica popular, escrito em
meados dos anos 60, o socilogo Edgar Morin destaca o carter sincrtico da cano cujas razes remontam a manifestaes culturais como
a pea musical, o music-hall, o cabaret e prticas festivas diversas.
Apontada pelo autor como o mais cotidiano dos objetos de consumo da sociedade moderna, a cano, que integra as substncias
musical e verbal com todas as suas derivaes, configura-se como
produto artstico dotado de uma linguagem multidimensional.
Desse modo, sua msica arrasta-se para a dana, sua letra para o
teatro, e o conjunto msica-letra mais que dana-teatro, algo que tem
realidade molecular.29
A cano, tal como a conhecemos hoje, se constituiu como narrativa
miditica ao longo do sculo XX de modo indissocivel dos seus meios
tcnicos de produo e reproduo. No perodo em que o rdio atuou
como principal canal de circulao de msica popular, a face sonora desse produto artstico ganhou supremacia. Os intrpretes se preocupavam
fundamentalmente com as tcnicas de emisso das notas musicais, com
a explorao dos recursos dos estdios, com o uso dos microfones etc. O
pblico frua a visualidade nos programas de auditrio ou ao lado dos seus
aparelhos receptores atravs da imaginao. Foi uma poca, nos termos
de Krausche, da hegemonia do ouvido em que a capacidade de controle
da indstria sobre a recepo do produto musical pelo pblico mostravase relativamente incipiente. Na tentativa de preencher as lacunas ainda
presentes nessa relao, a indstria da cultura utilizou de outros recursos
como as publicaes voltadas para o mundo da msica popular, suprindo
com imagens os espaos vazios que as programaes radiofnicas no eram
capazes de ocupar.30 No Brasil, por exemplo, a famosa Revista do Rdio divulgava no s imagens, mas histrias da vida privada de cantores e cantoras
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O happening um tipo de criao artstica que surgiu nos Estados Unidos em fins dos anos
50 e teve grande repercusso
na dcada seguinte em outros
pases. Reunindo artes visuais,
corporais, cnicas e musicais,
no se materializa em produtos
especficos, mas consiste em
aes e eventos que se realizam
com intensa participao do
pblico. Eles no podem ser
adquiridos, no so consumveis; s podem ser frudos no
momento em que acontecem.
A imprevisibilidade quanto
ao contedo, durao, bem
como a ausncia de enredo e
de narrativa so algumas das
caractersticas formais dessa
modalidade artstica. Sem clmax e concluses, as aes se
contrapem noo cotidiana
de tempo. Os eventos se desenrolam como se fossem orientados por uma lgica ou por uma
temporalidade onrica. H certa
afinidade entre os happenings
e o surrealismo que, dentre
outras coisas, desmontam significados convencionais, promovendo o choque. um tipo
de arte que agride e incomoda
o pblico, ao mesmo tempo em
que tensiona o prprio meio.
Durante os anos 60, os happenings foram incorporados por
diversos movimentos artsticos
de vanguarda, repercutindo at
mesmo no mbito da cultura
de massa. Sobre esse tema, ver:
GOLDBERG, RoseLee. A arte da
performance: do futurismo ao
presente. So Paulo: Martins
Fontes, 2006 e SONTAG, Susan.
Contra a interpretao. Porto
Alegre: L&PM, 1987.
33
Ver CALADO, Carlos. Tropiclia: a histria de uma revoluo musical. So Paulo: Editora
34, 1997, p. 218-19 e VENTURA,
Zuenir. 1968, o ano que no
terminou: a aventura de uma
gerao. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988, p. 201.
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MATOGROSSO, Ney apud
QUEIROZ, Nico Pereira e PRATA, Leonel. Ney Matogrosso:
mocinho e bandido. Msica:
a nova impresso do som, ano
I, n. 7, So Paulo: Imprima Comunicao e Editorao Ltda.
1979, p. 27.
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Elvira Pag que vira, quando ainda criana, se apresentando numa emissora
de rdio com o corpo coberto apenas por uma pele de ona e miangas.38
Carmem Miranda foi outra das suas fontes inspiradoras tanto para as
fantasias como para os gestos e a maneira de danar. Por fim, dizia que
Caetano Veloso fora o principal precursor do seu estilo. Graas a Caetano
Veloso eu hoje posso fazer o que fao afirmou Ney. Ele deu abertura na
cabea das pessoas, que me permitiu, alguns anos depois, vir a dar outra...
Ele foi at um ponto e no pode ir adiante. Me passou o basto.39
Do ponto de vista da performance, os Secos & Molhados no eram
propriamente uma banda nos padres daquela formao que se fixou no
universo da msica pop a partir dos anos 60, comportando uma diviso
de trabalho ou de papeis entre cantores e instrumentistas de modo razoavelmente equilibrado. A grande fora do grupo residia na atuao de
Ney Matogrosso. Se por um lado era notria certa fragilidade dos demais
integrantes do trio como instrumentistas, o que exigia a convocao de
msicos mais experientes para as gravaes e os shows, por outro Ney
era o foco das atenes, exibindo grande domnio tcnico tanto em relao
ao canto como gestualidade. No momento em que o desenvolvimento
tecnolgico que se anunciava apontava para um novo ajuste entre sons e
imagens no campo da cano, que culminaria no formato do videoclipe,
o grupo parecia antecipar essa articulao no palco. Com ele, o gestus,
termo aqui usado na acepo de Zumthor, mostrava toda a sua potncia
como elemento articulador da melodia, do ritmo, bem como de toda a
sonoridade resultante da instrumentao e dos arranjos com a palavra
cantada, de tal modo que as inflexes vocais tornavam-se indissociveis
da atitude corporal.40
A performance de Ney, sempre acompanhada pela atuao secundria e discreta de Gerson Conrad e Joo Ricardo, compunha um amplo campo
de ambivalncias. Aos adornos, roupas, missangas, penachos e maquiagens
com caractersticas femininas, contrapunham-se as longas costeletas, o
corpo desnudo, no depilado e msculo. Gestos bruscos, expresses faciais
agressivas, movimentos plvicos e rebolados exagerados contrastavam,
muitas vezes, com a delicadeza do canto. O exotismo dos adereos parecia problematizar no apenas as identidades masculina e feminina, mas
as fronteiras entre homem e animal, entre o primitivo e o futurista. Como
destacou Eduardo Mascarenhas, no palco, Ney mostrava-se de uma outra
raa, com uma identidade extraterrena e um aspecto hipertransgressivo: um
ser estranho e marginal cultura.41 As maquiagens e as fantasias, quase
todas confeccionados pelo prprio cantor, eram refeitas e modificadas a
cada espetculo, o que contribua para a construo de uma identidade
fluda, mutvel, em contraposio a uma persona fixa, confundindo,
assim, os limites entre a imagem pblica de artista e a da vida pessoal.42
Surpreendentemente, a gestualidade exagerada e certas bizarrices
do grupo no provocavam reaes agressivas. Salvo incidentes pontuais
registrados em alguns shows, o pblico mantinha-se atento e extasiado com
o espetculo. Para o psicanalista Eduardo Mascarenhas, especialmente Ney
Matogrosso atingia uma distncia tima em relao plateia de modo a
evitar ao mesmo tempo a indiferena e a rejeio. Se viesse humanizado
demais diz ele , fatalmente ocasionaria conflitos na alma conservadora
[...]. Mas, como ele se encontrava quase no mundo do desenho animado,
os conflitos se atenuaram.43
ArtCultura, Uberlndia, v. 15, n. 27, p. 7-27, jul.-dez. 2013
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SONTAG, Susan, op. cit.,
p. 332.
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