FUNK DA GEMA de Apropriacao A Invencao PDF
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FUNK DA GEMA de Apropriacao A Invencao PDF
FUNK DA GEMA
De apropriao a inveno, por uma esttica popular brasileira
1a Edio
Belo Horizonte
Edio da Autora
2011
2
Funk da gema: de apropriao a inveno, por uma
esttica popular brasileira. Christina Fornaciari. 2011. 111 p.
ISBN: 978-85-912356-0-5
e-book disponvel em
www.funkdagema.blogspot.com
3
SUMRIO
Prefcio 5
Notas da autora 8
Introduo 12
Captulo I
Origens do funk: marcos histricos, movimento negro e atualidade 13
III.I O caso FUNK STADEN: a cultura popular do funk carioca absorvida pela
arte contempornea de Dias e Riedweg para a Documenta de Kassel 79
4
PREFCIO
Mylene Mizrahi
5
A partir da anlise de dois estudos de caso que nos so apresentados de
modo aparentemente contnuo, o que enfatizado pela prpria seqncia
cronolgica com que somos introduzidos vdeo-instalao da dupla MauWal
e em seguida performance do coletivo de artistas de que a autora do
presente livro faz parte, vemos ocorrer de fato uma mudana de perspectiva
do olhar do artista. Este giro pode ser entendido a partir de uma mudana na
relao do artista tanto com seu pblico como com aquele que
representado. Uma mudana que fala no somente de como representamos
o outro mas do prprio modo como concebemos a alteridade. O que o
coletivo de artistas quer evitar , como coloca a autora, uma exotizao;
uma representao do outro tal que o dispa de qualquer possibilidade de
empatia com o self e assim impea qualquer relao entre self e outro.
Mas nem por isso deixamos de ver nas imagens de Performafunk contrastes
entre corpos brancos e corpos Funk que marcam a diferenciao entre estes
dois mundos. Assim como tambm escutamos a msica Funk. Mas
diferentemente do que vemos na vdeo-instalao FUNK STADEN onde o
sujeito Funk emerge como alteridade radical a partir da representao guiada
pela analogia com os canibais Tupinambs com os quais o alemo Hans
Staden se encontrou , o modo brincalho e fluido com que os corpos agora
se aproximam nos fala tambm de similaridades que aproximam estes mundos
dessemelhantes. Assim, se o coletivo movido pelo aspecto subversivo do
Funk, enquanto movimento cultural que desestabiliza as pr-concepes da
sociedade oficial, este mesmo aspecto subversivo que lhe permite esse
encontro entre muito iguais e muito diferentes.
6
articula um universo multifacetado e de certo modo inapreensvel, como nos
mostram tambm, atravs de suas danas e brincadeiras, os artistas de
Performafunk.
7
NOTAS DA AUTORA
1
Optei por utilizar a palavra funk sem o grifo itlico que em muitas escritas acompanha o termo, denotando palavra de
idioma estrangeiro. Utilizo-o como se utiliza qualquer palavra na lngua portuguesa, ressaltando a total absoro desse
elemento pela cultura nacional. Apesar de sua origem estrangeira, a palavra funk hoje encontrada na maioria dos
dicionrios de lngua portuguesa, apresentando o significado que concerne ao tema desse estudo. Portanto, mais que
pertencente ao universo da sociedade brasileira em geral.
Algumas definies de funk encontradas em dicionrios online:
Dicionrio Aulete
1. Ms. Msica popular de origem norte-americana, danante, de marcao rtmica vigorosa e repetitiva
2. Ref. ao, ou prprio do funk (bailes funk). Disponvel em:
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=funk&x=17&y=12. Acesso
em em 22/04/2011.
Dicionrio Michaelis
fun.k - (fnc) sm (ingl) Ms
Estilo musical simples e vigoroso, originrio dos Estados Unidos. Disponvel em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=funk
Acesso em 22/04/2011.
2
Doutoranda em Artes Cnicas pela UFBA Universidade Federal da Bahia. Linha de pesquisa: Corpo E(m)
Performance. Orientadora Professora Doutora Ivani Santana (2010). Mestre em Performance pela Queen Mary
University of London, orientador Professor Doutor Paul Heritage (Londres, 2005). Mestre em Teorias e Prticas
Teatrais pela ECA/USP Universidade de So Paulo, (So Paulo, 2009). Graduada em Direito pela Faculdade Milton
Campos (Belo Horizonte, 2002), e Graduada no Curso de Formao de Atores do Teatro Universitrio da UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, 2000). Acesso ao Currculo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4261721T6 acessado em 27/07/2011.
3
Retomaremos o projeto PERFORMAFUNK mais adiante, no Captulo III deste e-book, no qual, juntamente com a
anlise da obra FUNK STADEN, de Dias e Riedweg, estudaremos alguns dilogos entre arte contempornea e o
mundo do movimento funk.
8
dos tantos exemplos de apropriao cultural seguida de uma singular re-
inveno no Brasil e as maneiras como tais adaptaes se do em nossa
cultura ao adentrar o territrio e imaginrio nacionais. Entretanto, o que
encontrei com a pesquisa me levou para muito alm dessa questo!
Descobri no funk nossa urbe, ali exposta, aberta, revelada. Atravs do estudo
desse movimento social, acessei por diversos ngulos a sociedade que o
produz, utilizando o funk como dispositivo para objetivao de uma cultura
da favela, embrenhando-me a fundo em suas relaes de gnero, classe,
esttica, religio, poltica, economia, criminalidade e lazer.
Uma radiografia de nossas cidades nos salta aos olhos, a partir da observao
do funk carioca. Um olhar mais atento aos atores desse movimento, suas
origens tnica, econmica e geogrfica; o discurso proferido nas letras, a
sonoridade, a dana, o vesturio, a linguagem que compe o movimento e
outros pormenores de seu universo ilustram uma realidade do Brasil onde a
frico entre os gneros intensa e fortemente marcada por smbolos. A
violncia presente e aparente no dia-a-dia, a f e a crena religiosa so
fervorosas e a vontade de liberdade e prazer, latentes.
So esses atributos que tornam o funk da cidade do Rio de Janeiro uma fonte
de conhecimento de valor incomensurvel, que transcende questes de
cunho puramente esttico-cultural do movimento e fornece dados
sociolgicos que ilustram diversos aspectos da sociedade brasileira, desde o
ponto de vista da economia lingstica, aos aspectos psicolgicos de
formao de subjetividade utilizao do funk em contextos religiosos.
9
Uma busca pelo banco de teses e dissertaes da agncia de fomento
pesquisa CAPES me levou a encontrar inmeras produes que tangenciam
ou mesmo tratam como foco principal temas pertencentes ao mundo do funk
carioca, em abordagens pelos mais variados ngulos, como violncia,
juventude, religio, moda e vesturio, gnero, lingstica, economia, msica e
tecnologia, entre outros. Comprovei que o funk tem despertado o interesse
acadmico por diversos campos do conhecimento, j que possui facetas com
as quais se pode adentrar o universo popular brasileiro de forma profunda e
genuna.
Percebi que, assim como eu, diversos socilogos, antroplogos, musicistas,
estudiosos da dana e das artes do espetculo e muitos outros pesquisadores
descobriram no movimento funk carioca uma manifestao da riqueza
cultural de nossa gente, sempre s voltas com a produo de seus prprios
meios e estratgias de sobrevivncia cultural, econmica e poltica.
10
FUNARTE Fundao Nacional de Artes, e em especial ao Edital de
Produo Crtica em Culturas Populares e Tradicionais, meu profundo respeito
por seu reconhecido comprometimento com o fomento e a difuso das artes
e da cultura de nosso pas.
Gabriela Serpa Chiari, fiel escudeira em terras cariocas, meu brao direito
na realizao de entrevistas e idas a campo, este texto dedicado a voc e
ao lindo trabalho que realiza com o Teatro do Oprimido na cidade
maravilhosa. A Rafael Miranda Medina, artista de vdeo e fotgrafo que atuou
como cmera-man atento ao universo do funk; Diana Castilho, antroploga
experiente que contribuiu na transcrio de materiais gravados; a meu marido
Joo Castilho, companheiro desta e de tantas outras realizaes; minha
famlia e a todos os que contriburam para o sucesso desta empreitada, meu
agradecimento sincero vem do fundo do corao.
11
Introduo
Finalmente, no Captulo III, visitaremos dois projetos de arte que utilizam o funk
carioca como ponto de partida para a criao artstica. Assim, atravs de dois
estudos de caso, das obras FUNK STADEN, da dupla Dias e Riedweg, e
PERFORMAFUNK, de autoria desta pesquisadora, analisaremos como o funk,
como movimento cultural tipicamente popular, vem dialogando com o
universo da arte contempornea brasileira.
12
Captulo I Origens do funk: marcos histricos, movimento negro e atualidade
4
PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca apud http://www.anppom.com.br/opus/opus15/103/103-
Palombini.htm acessado em 27/07/2011.
5
Horace Silver (n.1928), um dos mentores do hard bop, ficou associado ao estilo pianstico conhecido como funky.
Inspirado no soul e no gospel, o jazz funky se caracteriza por uma repetio obstinada de figuras rtmicas sincopadas.
Os improvisos so mais longos do que no bebop. As composies freqentemente possuem uma forma estruturada
em sees. Os sopros e metais comparecem desempenhando a funo de moldura para a seo rtmica. Silver um
pianista de toque duro, entrecortado e percussivo. Sua msica vigorosa e fortemente rtmica. um excelente
intrprete de blues. Entre os descendentes musicais de Silver e de seu jazz funky podemos incluir Herbie Hancock e
Wayne Shorter. Silver tocou com Stan Getz, Coleman Hawkins, Lester Young, Art Farmer, Milt Jackson e Miles Davis,
e teve uma associao marcante com Art Blakey e os Jazz Messengers. http://www.ejazz.com.br/detalhes-
artistas.asp?cd=136 acessado em 27/07/2011.
6
Gerson "King" Combo um msico brasileiro, um dos cones da soul music no pas, onde conhecido pela alcunha
de "James Brown brasileiro". Nascido na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, iniciou na carreira artstica fazendo
dublagem , no famoso programa "Hoje Dia de Rock" apresentado por "Jair de Taumaturgo", em seguida seu irmo
Getlio Cortes (autor de "Negro Gato", um sucesso na voz de Roberto Carlos) o levou para danar no programa Jovem
Guarda, apresentado por nada menos que o prprio Roberto. Influenciado pela msica negra, Gerson cantou nas
bandas de Erlon Chaves e Wilson Simonal e fez parte do embrio da Banda Black Rio. Em carreira solo, adotou o
nome Gerson King Combo (aluso a uma banda de soul music chamada King Curtis Combo). Seu estilo "James
Brown" causou sensao e foi aclamado o rei dos bailes black cariocas e comeou a gravar sucessos como:
"Mandamentos Black, "Jingle Black", "o Rei Morreu", entre outros, e seu ltimo sucesso gravado foi em 1984, o
compacto "Mel do Mo Branca". Com a queda do movimento black dos anos 1980 no cenrio musical, Combo ficou
13
galera com cabelos black power 7.
Lvio Sansone, autor do livro Negritude sem etnicidade , destaca o fato de que
o primeiro disco de msica soul de origem brasileira trazia o ttulo em ingls
What is soul10. Produzido em 1967 pela Companhia Brasileira de Discos,
no ostracismo. Retornou nos anos 1990 fazendo alguns shows e gravando o disco "Mensageiro da paz". Segundo
Gerson, seu interesse pela black music por influncia do irmo Getlio, o pai dos dois no queria que os filhos
fizessem amizade com pessoas ligadas ao samba, j que o ritmo era marginalizado na poca. Em 2010, Gerson King
Combo foi tema do documentrio "Viva Black Music". Gravou os discos Gerson King Combo (1977) e Gerson King
Combo - Volume II (1978) pela Polydor; e Mel do Mo Branca (1984) e Mensageiro da Paz (2001) pela Warner Music
Brasil.
7
Cabelo black power ou afro um penteado muito popular entre os negros na dcada de 1960 e 1970. Martha
Mendona, A volta do cabelo crespo. poca. Pgina visitada em 16 de julho de 2011.
8
Entendamos aqui que a Zona Sul refere-se aos bairros de classe mdia e alta do Rio de Janeiro, enquanto que a
Zona Norte aos bairros das classes cariocas pobres; membros desses distintos grupos sociais se identificavam com a
identidade negra que o funk representava, mas aos poucos as camadas mais pobres aderiram completamente ao novo
gnero.
9
Ademir Lemos esteve no comando da Boate Le Bateau, no incio dos anos 1970, e foi pioneiro entre os
discotecrios. Numa poca em que as casas noturnas apresentavam somente msica ao vivo, a boate Le Bateau, na
Praa Serzedelo Corra, no Rio de Janeiro, inovava apresentando msica danante em discos, com Ademir frente da
casa, na seleo de msicas. Ele no ficava atrs da aparelhagem de som: recebia fregueses e danava junto,
animando a festa. Ademir contava que se tornou discotecrio graas aos seus dotes de danarino. Ele dizia ter sido a
primeira chacrete da TV, danando rock no programa Brotos no Comando 1966, na TV Continental. Da boate, o
discotecrio passou a fazer shows de rock ao ar livre e bailes no Caneco com Big Boy. Lemos comandou o programa
Som Livre Exportao e promoveu a msica negra. Lanou um disco de funk carioca, do qual surgiu o hit Mel da
Rapa (1993), com samples da msica Money for Nothing do grupo Dire Straits. Em 1996, Ademir Lemos sofreu um
derrame que o deixou paralisado. Faleceu em 1998, aos 52 anos, de complicaes de uma cirurgia, aps uma queda.
Big Boy foi produtor, locutor, programador e manteve um elo muito prximo com a juventude setentista. Observador e
ligado nas mudanas e nas novas tendncias musicais, o discotecrio trouxe ideias que revolucionaram o sistema de
programao de rdio. Big Boy iniciou uma coleo que chegou a 20 mil discos, ainda na sua adolescncia. Foi na
rdio Mundial que Newton Alvarenga Duarte ganhou o apelido de Big Boy e com sua postura descontrada
complementava as msicas que tocava com informaes quentes sobre o mundo do disco, com um estilo de locuo
que fez escola no Brasil. Apresentou programas como o Papo Pop, na TV Record, de So Paulo, trabalhou na
Eldorado FM, e inovou ao apresentar, em sua participao diria no Jornal Hoje, da TV Globo, clipes com msicas de
sucesso do momento. Sua discoteca foi um acervo cultural importantssimo, pois retratava vrios perodos do cenrio
da msica mundial. Big Boy morreu vitimado por um ataque cardaco em 1977.
10
Item de Colecionador. Companhia Brasileira de Discos, 1967.
14
apresentava a coletnea de diversos cantores estrangeiros e negros (Aretha
Franklin, Jacksons Five, Percy Sledge, Joe Tex, The Capitols, Wilson Picket, Sam
& Dave, etc). A capa do disco exibia uma foto de jovens brancos danando,
ao lado de uma extensa descrio do que seria o tal soul:
Acerca do termo funk, esse era uma gria nos EUA dos anos 70 (funky); um
termo pejorativo que significava malcheiroso e era correntemente usado para
atacar os negros. Como forma de contra-ataque, os prprios negros se
apropriaram dessa gria e a reciclaram, transformando-a em representao
do orgulho de sua identidade tnica. A partir disso, os negros americanos
cobiavam ser funky em tudo: nas roupas, no gestual, nos cortes de cabelo e
at na msica, cujos arranjos agressivos e ritmo bem marcado serviram de
base para o estilo que ficou conhecido como funk hoje. Portanto, assim como
a origem do nome funk, o prprio movimento ficou amplamente conhecido
por seu engajamento da cultura de valorizao do negro.
Anos de auge dos bailes, entre 1974 e 1976 as festas aconteciam de segunda
a domingo, sempre lotadas. A divulgao era feita de modo bastante restrito,
atravs de faixas em ruas de movimento e pelos prprios discotecrios no fim
de cada baile. Portanto, o porte que o movimento toma nesses anos um
fato ressaltado por muitos pesquisadores. nessa poca tambm que a
histria poltica do funk carioca passa a ser conhecida, atravs do papel
didtico que alguns bailes adotaram nesse perodo, trabalhando com a
cultura importada do movimento norte-americano Orgulho de Ser Negro.
11
Silvio Essinger um jornalista brasileiro autor dos livros Punk: Anarquia Planetria e a Cena Brasileira, publicado
pela editora "34" em 1999, seguido do aclamado Batido - Uma Histria do Funk, publicado pela Editora Record em
2005.
16
e inspirar-se nas conquistas polticas e nos modismos dos negros norte-
americanos.
Nesse contexto, o antroplogo Hermano Vianna nos conta que a equipe Soul
Grand Prix foi a precursora nessa politizao que dominava o novo cenrio do
funk carioca, devido ao trabalho cultural, no Renascena Clube, local que
deu origem equipe.
12
VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca". RJ, Jorge Zahar Editor:1988. p.27.
17
No Rio de Janeiro, a febre do soul obteve um carter comercial por
excelncia, j que se buscou transformar o que at ento era apenas
diverso aliada manifestao de uma ideologia negra, em um canal de
gerao de renda e lucro. A indstria fonogrfica encontrou no movimento
que ali surgia um campo inexplorado e frtil, seguido por inmeros adeptos
prontos para consumir.
Nessa poca, foram lanados discos de equipes pela gravadora WEA, como a
Soul Grand Prix, Dynamic Soul e Black Power, com coletneas de grandes
sucessos dos bailes. Apesar de a tentativa de alguns artistas como Gerson King
Combo, Robson Jorge e Rosa Maria, de perpetuar um soul com origem e
pegada mais nacional, a maioria dessas tentativas no obteve xito nas
vendas.
Ainda com base nas reflexes de Hermano Vianna, podemos considerar que,
aps a grande exploso do movimento soul carioca no incio dos anos 70, j
no final da dcada, possvel notar uma queda na popularidade do
movimento, seja por um desgaste do fenmeno soul junto imprensa, seja
devido transio para o mercado fonogrfico - que gerou uma certa
13
YDICE, George. A funkificao do Rio, In: A convenincia da cultura: usos da cultura na era global, p. 15785.
18
indefinio no movimento-, seja devido chegada ao Brasil de filmes com
temticas de Embalos de Sbado Noite, do ator Jonh Travolta, fazendo com
que tanto a Zona Sul quanto a Zona Norte aderissem nova moda das
discotecas.
19
2000 bateram recordes de vendas, sendo a primeira equipe contemplada
com o Prmio Disco de Ouro (100 mil cpias vendidas, 70% delas no Rio de
Janeiro).14
Essa nova fase do ritmo, descrita por alguns como new funk, se tornou sucesso
em todo o pas e conquistou lugares antes dominados por outros ritmos, como
o carnaval baiano. Apesar de muitas letras serem simplesmente pardias de
velhas msicas de sucesso, as gravadoras comearam a investir nesse gnero
musical. Nessa poca tambm ganha fora o Hip-Hop, que ento se mistura a
essa segunda gerao.
14
ESSINGER, Batido: Uma Histria do Funk.
15
HERSCHMANN, O funk e o hip-hop invadem a cena.
16
LUNA. Samba, rap e funk, uma histria de encontros e desencontros In: Revista Eletrnica Sculo XXI,
01/03/2006. Disponvel em: http://www.multirio.rj.gov.br/sec21/chave_artigo.asp?cod_artigo=49. Acesso em
20/04/2011.
20
Ao falar em RAP, Luna est usando o termo como sinnimo do Hip Hop,
embora o ritmo e poesia seja considerado a base da linguagem musical tanto
do Hip-Hop quanto do funk. Como o Hip-Hop mais poltico, acabamos
associando-o mais ao RAP, enquanto o Funk, que enfatiza mais a diverso e a
sensualidade musical, acaba sendo associado aos termos batido ou
pancado .
Essa diferenciao ainda pode ser notada nos estudos de Dayrell, que
investigou o funk e o Hip Hop (que ele tambm vai chamar, por vezes, de Rap)
em Belo Horizonte. O autor estuda esses movimentos como estilos musicais que
vo construindo a identidade dos jovens pobres da capital mineira. Segundo
ele, por intermdio do funk, os jovens ressaltam a festa, a fruio do prazer, a
alegria de estar juntos17. J o Hip-Hop pode ser descrito como uma proposta
mais radical, ligada a um som menos danante, com letras que faziam a
denncia da realidade social18.
17
DAYRELL., A msica entra em cena: o rap e o funk na socializao da juventude , p.123.
18
Ibidem, p.51.
21
galeras diferentes e incitao assumida violncia) e os bailes comuns, cuja
tnica era a paquera. Nessa fase, o apelo sexualidade tambm comeava
a ser sentido.
De toda forma, nos primeiros anos da dcada de 90, a maioria das letras
refletia o dia a dia nas periferias, como verdadeiras crnicas que relatavam o
cotidiano dos moradores: dificuldades e problemas, desigualdade social,
preconceito racial e de classe, violncia. Ocupando cada vez mais espao
nessas reas da cidade, no decorrer dessa dcada os bailes funk passam a se
configurar como uma das formas de lazer mais populares dos jovens de classe
baixa do Rio de Janeiro, e, aos poucos, esse espao de lazer se tornou
tambm um dos principais meios de expresso desses jovens.
19
Rap do Arrasto, de DJ Marlboro, Ademir Lemos e Nirto.
22
Um dos compositores do funk citado acima (que recebe o nome de Rap do
Arrasto demonstrando claramente a proximidade de temas entre o funk e o
rap desta poca), o DJ Marlboro20 hoje considerado um dos grandes
responsveis pela implementao de um processo de nacionalizao do funk.
Vencedor de diversos prmios no Brasil e no exterior por sua carreira de DJ de
funk, produziu em 1989 o disco Funk Brasil, dando novos contornos ao mercado
da msica nacional, incrementando essa produo e incluindo o funk entre as
principais paradas de sucesso nos rdios e eventos em todo o Brasil.
Paralelamente, ainda nos anos 90, o funk passou por um forte momento de
criminalizao, ao ser ligado aos arrastes no Rio de Janeiro fato
posteriormente investigado e sem verificao de ligao direta com o mundo
do funk. Mais tarde, outra ligao com crime (o assassinato do jornalista Tim
Lopes tambm passou por momentos de ligao e investigao com o funk)
deixa mais estigmas no movimento. Esses episdios marcaram um perodo de
forte represso aos bailes funk, na virada do sculo, culminando na proibio
dos bailes em virtude de lei.
20
No ano de 1989, ganhou o "Campeonato Brasileiro de DJs", em So Paulo, o primeiro concurso de DJ do Brasil,
patrocinado pela DMC (Disco Music Club), da Inglaterra, sendo convidado para apresentar-se em Londres
representando o pas como o nmero um do funk nacional e classificando-se entre os dez melhores DJs do mundo.
Neste mesmo ano lanou, pelo selo Polydor, da gravadora PolyGram (depois Universal Music Group), o que
considerada a primeira coletnea de funk brasileiro, o LP Funk Brasil. Tambm atuou, neste mesmo disco, na
programao de teclados e bateria eletrnica. No LP participaram Abdla, nas faixas "Mel dos Nmeros" (Abdla e
Marlboro DJ) e "Mel da Mulher Feia", verso de Marlboro DJ, Nirto e Abdla para "Do Wah Diddy" (Barry e
Greenwich); Ademir Lemos, na faixa "Rap do Arrasto" (Ademir Lemos, Nirto e Marlboro DJ); Cidinho Cambalhota, em
"Rap das aranhas", na realidade uma verso para rap de "Rock das aranhas" (Raul Seixas e Cludio Roberto), Guto &
CIA, em "Mel do bicho" (Guto Laureano, Marlboro DJ, J.r. Pinto e Nirto) e MC Batata, nas faixas "Entre nessa onda"
(Marlboro DJ e Batata) e "Mel do bbado", de autoria de Batata e Marlboro DJ. O LP vendeu mais de 250 mil cpias e
foi seguindo por outros, chegando ao Funk Brasil n 5, com os quais lanou boa parte dos novos valores do funk
nacional. Apresentou-se nas principais casas noturnas do Rio de Janeiro e de vrios estados do Brasil, alm de
apresentar-se na casa noturna Favela Chic, em Paris, e em vrios pases como Inglaterra, Estados Unidos, Crocia,
Japo, Colmbia, Eslovnia, Espanha e Portugal, sempre tocando funk-carioca. Em 2003, foi o primeiro DJ brasileiro a
participar do festival "Summer Stage", no Central Park, em Nova York, que lhe rendeu uma entrevista para o
"Manhattan Connection". Logo depois fez apresentaes em Nova Jersey, Chicago e Boston e ainda no "Festival
Eletrnika", em Belo Horizonte.
23
Com nova visibilidade e represso violncia, origina-se um novo tipo de funk,
no que se tornaria a terceira fase brasileira desse gnero musical, iniciada nos
anos 2000 21Em sua maioria, os bailes se tornaram mais pacficos, mais ao estilo
dos bailes comuns, com freqentadores interessados basicamente em
danar e paquerar. Msicas cada vez mais erotizadas e com coreografias
sensuais ganharam a ateno da mdia e conquistaram outros locais do Brasil.
Desde a proibio dos bailes em 2008, pela lei conhecida como Lei lvaro
Lins, assim batizada devido ao nome do redator do Projeto que a originou, a
lei que proibia a realizao de bailes funk e da raves em todo o Estado do Rio
de Janeiro vigorou por quase dois anos, entre maio de 2008 e setembro de
2009, quando foi finalmente revogada.
21
ESSINGER, Batido - Uma Histria do Funk.
24
cultural legtimo de carter musical e popular.
O projeto visava a diminuir o preconceito sobre o estilo e fazer com que o funk
fosse integrado comunidade desde cedo, sendo ensinado nas escolas e
utilizado como objetivo de reflexo a respeito da sociedade.
"O samba tambm foi marginalizado no incio, o sambista era preso por
vadiagem. E hoje o maior espetculo do Brasil. Meus filhos so funqueiros e
eu vim para prestigiar. Se o funk tivesse surgido no asfalto, no sofreria
discriminao"25, afirmou Neguinho da Beija-Flor, tambm presente na
Assembleia para prestigiar a votao. Essa aprovao foi motivo de grandes
comemoraes no local, que tinha entre os observadores do plenrio MC
Jnior, MC Leonardo, Ivo Meirelles, devidamente acompanhado de uma parte
da bateria da Mangueira, Rmulo Costa (diretor da Furaco 2000) e o DJ
Marlboro26. Com isso, surgia a terceira gerao do funk carioca...
22
Msica de funk, de autoria de MC Cidinho e Doca, de 1995.
23
PL aprovado, dando origem Lei 5.543, que reconhece o funk como movimento cultural, musical popular.
24
Marcelo Freixo, em fala na ALERJ, disponvel em: http://apafunk.blogspot.com/2009/09/deputados-revogam-lei-que-
proibia-baile.html.Acesso em 25/07/2011.
25
Neguinho da Beija-Flor, em fala na ALERJ, http://apafunk.blogspot.com/2009/09/deputados-revogam-lei-que-
proibia-baile.html , acesso em 25/07/2011.
26
Notcia jornalstica publicada em O Globo. Disponvel em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/09/01/alerj-revoga-
lei-que-restringia-bailes-funk-767411082.asp. Acesso em 24/07/2011.
25
da construo da APAFUNK. Outra colaborao fundamental para a
existncia da APAFUNK veio do movimento RAP de So Paulo, em especial na
figura do vocalista dos Racionais MCs, o Mano Brown27. Novamente passa a
existir, nesse momento, uma grande converso de ateno para com o
movimento do funk carioca, numa tentativa de reestruturar-se politicamente.
Nesse sentido, podemos dizer que o movimento funk procura proporcionar aos
negros pobres e moradores das periferias um reconhecimento social e cultural
que nunca foi totalmente atingido por esses personagens sociais, seja nas
favelas cariocas do Brasil, seja nos EUA, onde o movimento comeou,
valendo-se da msica como um espao de expresso tnica e de
configurao de estratgias de reconhecimento e valorizao.
27
Adriana Facina em palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, maio de 2011, UFRJ.
26
o contrato de bondes de funk para cantar em bailes de debutantes e festas
de pessoas influentes na sociedade carioca 28.
Segundo Essinger,
A flexibilidade com que o funk pode tratar de temas variados tem sido bem
aproveitada pelos DJs e MCs. Alm disso, Essinger revela que o funk foi
exportado, uma vez que hoje o gnero musical funk carioca produzido na
Finlndia, Inglaterra, Japo30, invertendo totalmente a direo do fluxo desse
movimento, que agora parte do Brasil e invade culturalmente outros pases.
Essinger ainda aponta para uma questo muito polmica do funk, que seria
sua relao com o machismo. Ele nos conta que o funk contemporneo, mais
recente, como o ltimo hit do momento, (Sou Foda, dos Avassaladores,
28
Matria O funk das debutantes publicada pelo Jornal O Globo. Disponvel em:
http://fantastico.globo.com/platb/revistafantastico/2008/12/11/cezareth-canta-o-funk-das-debutantes. Acesso em
24/07/2011.
29
Silvio Essinger, em palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, maio de 2011.
30
Idem.
27
lanado em maio de 2011) primeira vista uma msica de intenso cunho
machista. Porm, dentro no movimento, isso no tomado pelas mulheres
como uma ofensa, j que a maioria delas entende esse teor das msicas
como uma provocao.
Prova disso o fato de ser possvel encontrar no site de vdeos YouTube (que
hoje em dia considerado um grande campo de difuso e interao do funk)
diversas respostas das mulheres a essa msica. Elas fazem verses em resposta
a esse funk, por exemplo a Sou Brocha. Esse dinamismo do funk traz tona
outras questes, j que o movimento de hoje, com a ajuda da tecnologia
digital e da internet, no mais to unilateral quanto se imaginava.
Hoje em dia, se um MC faz um funk, ele vai se responsavilizar por ele, pois
outros funqueiros e funqueiras vo dar resposta de imediato. Isso um dos
fatores que configuram o funk como um movimento social, uma prtica social.
Esse espao hoje maior do que o prprio espao musical ocupado pelo
funk.
Nesse mesmo sentido, gostaria de citar uma fala de Adriana Facina, a qual
tive o prazer de ouvir no mesmo Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca,
na UFRJ, que ilustra bastante esta questo:
31
Fala de Adriana Facina durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, maio de 2011.
29
Captulo II - O funk e sua contextualizao na sociedade
30
uma consistente rede de relaes estabelecidas entre MCs nacionais e
produtores estrangeiros. Essa estrutura menos pesada que as equipes de
som, possibilita um menor custo de contratao e, portanto, maiores
oportunidades de trabalho.
Dono de editora
MC MC
Empresrio de MC
Dono de equipe
Produtor de shows
Motorista de MC
DJ independente Produtor musical
Secretrio
Locutor de Rdio
Empresrio de MCs
Secretrio de equipe
DJ de MC
DJ de equipe Tcnico de som
DJs de comunidade
Operador de udio
Empresrio de MC
DJ
Produtor de Shows
Dono de Equipe MC
Locutor de rdio
Apresentador de TV
32
Configuraes do Mercado no Baile Funk Carioca, Fundao Getlio Vargas, Rio de Janeiro: 2008.
31
Embora hajam diversas MCs do sexo feminino, a maioria desses artistas so
homens, com idade oscilando entre os 11 e os 30 anos. Apresentam-se
individualmente ou em duplas, em pockets shows (shows de curta durao,
em media com 3 a 4 msicas), sendo comum circularem por diversos bailes
numa mesma noite, recebendo assim diversos cachs por noite de trabalho.
A trajetria desses artistas pode ser descrita como meterica: aps
ultrapassada a fase inicial da carreira, quando se apresentam recebendo
bem pouco ou at mesmo gratuitamente em shows de outros artistas como
forma de promover seu trabalho, o MC talentoso - talento aqui medido pelo
sucesso que o MC atinge em bailes de comunidade - passa a ser o profissional
mais bem remunerado no crculo de profissionais envolvidos no funk. Os
cachs por apresentao, que comeam a partir de R$200,00, podem chegar
ao valor de R$10 mil. Um MC de sucesso que chega a realizar de 10 a 15 bailes
semanais, consegue obter uma renda mensal bastante significativa33.
33
Dados compilados a partir de grficos e nmeros estatsticos retirados de Configuraes do Mercado no Baile Funk
Carioca, um estudo da Fundao Getlio Vargas realizado em 2008.
34
HERSCHMANN, O Funk e o Hip Hop invadem a cena. p.259.
32
sobe para 30 mil reais. O ex-empacotador j tem telefone,
casa prpria de dois quartos um Monza 87 e se permite at
extravagncias: coleciona 21 pares de tnis importados.
Cidinho personifica o sonho dourado de milhares de jovens, a
maioria de comunidades carentes, que vem na nova
profisso a sua grande chance de subir na vida. Importados
nos EUA, as duas letrinhas que vm na frente do nome dos
cantores de Rap (...) virou sinnimo de fama e dinheiro. (...) A
medida de sucesso de um MC est diretamente associada a
uma srie de bens de consumo. O nmero de tnis,
bermudes, camisas e bons. Outro indcio de prosperidade
so os telefones celulares. (...) O armrio de um MC tambm
conta com anis, cordes, pulseiras e relgios (...).
Em poucas palavras, a estrutura dos bailes funk abriga de 2 mil a 3 mil pessoas,
podendo chegar at a 6 mil pessoas, em alguns casos. A entrada franca
(como nos bailes de comunidade) ou custa relativamente pouco (R$3,00),
quase sempre permitindo a entrada gratuita para mulheres at determinado
horrio. Usualmente, ocorrem de sexta-feira a domingo, entre onze da noite e
35
HERSCHMANN, O funk e o hip-hop invadem a cena..p.37.
33
quatro da madrugada exceto domingos, quando o baile ocorre mais cedo,
entre oito horas da noite e uma hora da madrugada. Em geral, o baile
envolve bilheteiros, seguranas, DJ, MCs, tcnicos da equipe de som e
responsveis pela sonorizao do baile.
37
HERSCHMANN, Abalando os anos 90 - funk e hip-Hop.
35
o INSS como autnomo, configurando uma forma informal de serem
contratados. Nesses casos, verifica-se ausncia de contratos de exibio e de
contratos de empresariamento, com cach renegocivel aps o evento,
estabelecendo uma rede de relaes de confiana. Porm, apesar da
informalidade das relaes contratuais, h o desejo de formalizao e
profissionalizao.
A renda mensal dessas pessoas fora do funk gira em torno de R$374,12. J nos
bailes, os camels conseguem retirar uma renda mensal de aproximadamente
R$957,47. Assim, a renda como vendedor informal com barracas nas portas
dos bailes contribui para mais de 70% da renda total dessas pessoas, que gira
em torno de R$1.331,59, configurando esse trabalho como a principal fonte de
renda desses trabalhadores. Se multiplicarmos este valor pelo nmero
estimado de camels nos bailes funk, veremos que esse tipo de servio
movimenta uma renda mensal de R$ 320 mil.
38
Dados compilados a partir de grficos e nmeros estatsticos retirados de Configuraes do Mercado no Baile Funk
Carioca, estudo da Fundao Getlio Vargas realizado em 2008.
36
camels possuem licena para trabalhar, sendo os demais trabalhadores
totalmente informais.
Produto %
Balas (Halls) 18,1
Alimentos 16,7
Cerveja 15,3
Chiclete (Trident) 15,3
Bebidas 10,4
Cachorro- Quente 7,8
Churrasquinho 6,9
Hamburger 6,9
Outros 2,8
As Balas Halls so o produto que mais se vende nos bailes. No entanto, esse
gera pouco lucro comparativamente a outros produtos. Alimentos, para a
maioria dos entrevistados, o produto mais rentvel, e o segundo, em termos
de quantidade vendida.
37
II.II O Funk e a Segregao Poltico-Social
Ainda que o funk se apresente como uma alternativa com papel significativo
na economia da periferia no cenrio urbano carioca, a realidade desses
moradores dosubrbio marcada por um diaa dia de pobreza, violncia por
parte do Estado, dificuldade de mobilidade social e pequena influncia nas
engrenagens da poltica nacional.
39
Apesar de existirem outros movimentos culturais presentes na realidade dos menos favorecidos, como o samba, o
pagode e a capoeira e outros comuns nesses nichos, de forma geral o acesso a estilos artsticos de fora das
comunidades ainda bastante restrito e excessivamente caro para essas classes, conforme nos contou a
pesquisadora Luciane Soares, em entrevista concedida ao projeto em abril de 2011.
38
ideolgicas com que esses atores tentam enfrentar o antagonismo social
presente em seu dia a dia.
39
Desta forma, o tipo de espao concedido cultura dessa classe urbana
pobre e no branca brasileira foi relegado novamente a segundo plano,
revelando a segregao e a estratificao social em mais um de seus
aspectos. A excluso dessas classes de espao para veiculao de sua
cultura na mdia acaba por alimentar empecilhos que impedem o pleno
desenvolvimento da msica afro-brasileira na indstria cultural. A msica
entendida como um dos principais veculos de expresso de identidade, tanto
que a prpria origem do funk nos EUA se deu em razo de uma promoo da
cultura negra naquele pas no incio dos anos 60.
40
Os nmeros a respeito da presena de negros em cargos de nvel executivo nas maiores companhias brasileiras -
apenas 3,5%, segundo pesquisa do Ibope com o Instituto Ethos em 2008.
40
mais abrangente, instituindo tambm sistema de cotas em setores pblicos e
privado do Brasil inteiro.
41
Disponvel em: http://conexaoafro.wordpress.com/2011/06/11/brasil-cria-quotas-mnimas-para-negros-no-acesso-
funo-pblica. Acesso em 24/07/2011.
41
Celso Pitta, eleito em 1996, foi o segundo negro a ser prefeito da cidade de
So Paulo, tendo sido o primeiro cargo ocupado pelo advogado Paulo Lauro,
entre 1947 e 1948. Na regio do ABC Paulista, a Grande So Paulo, onde h
grande concentrao de recursos industriais, a estatstica segue a tendncia
eleitoral que prev brancos eleitos para comandar as prefeituras na regio. No
entanto, a candidatura de negros vem aumentando, e trazendo tona
questes relevantes nesse debate poltico. Em um pas onde h preconceito
racial e h desigualdades sociais causadas por questes raciais, candidaturas
como as de Edvaldo Brito Prefeitura de Salvador, em 1985, pelo PTB-BA; e a
candidatura de Benedita da Silva Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1992, pelo
PT-RJ, possuem um importante papel simblico.
Soma-se a isso o fato de que o espao pblico das cidades brasileiras foi
historicamente construdo e ainda sustentado por nossa sociedade
atualmente com rgida excluso de referenciais de representao do negro,
com primazia absoluta do referencial branco, em especial da cultura
europeia. So raros no Brasil os monumentos pblicos referenciando a cultura
negra ou mesmo indgena; esttuas e outras representaes da cultura e da
42
organizao territorial das cidades seguem um modelo ocidentalizado de
conceber a espacialidade.
43
Primeiramente, os dados da violncia armada hoje sobretudo na violncia
do Estado sobre a populao no Brasil mostram que os principais atingidos
por essa violncia tm uma classe social, uma cor e uma faixa etria. E que o
perfil sociolgico da juventude funqueira hoje o mesmo perfil desses que
vm tombando sob a ao do Estado. A pesquisadora relembra a estatstica
segundo a qual, de quase 2 mil mortes cometidas pela polcia da cidade do
Rio de Janeiro em 10 anos, mais de 60% dos atingidos so jovens abaixo de 25
anos, negros, moradores de favelas ou seja, provavelmente muitos deles
funqueiros, sejam produtores, fruidores ou frequentadores de bailes, e nos
conta:
42
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de funk carioca, UFRJ, 2011.
43
Caveiro o nome popular do carro de apoio blindado usado pelo batalho de operaes policiais especiais da
Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro em incurses nas favelas na capital fluminense.
44
Quando ele chegou na delegacia, o policial tinha apagado
todas as msicas. Quer dizer, o DJ tinha a Nota Fiscal do laptop,
ento ele conseguiu recuperar o aparelho, mas as msicas
foram apagadas. Simplesmente deletadas. Isso mostra o que
eu falava no inicio: h uma confrontao proposital com essa
cultura porque ela tem muito de uma resistncia. Ento h esse
efeito objetivo da criminalizao, mas tambm os subjetivos,
por exemplo, quem assume que gosta de funk. Dizer no
gosto do proibido... O prprio pessoal que se organizou
politicamente para reivindicar o funk como cultura, que se
organiza agora pelos direitos autorais e que Tambm se
organizou pela queda da lei lvaro Lins, no incio eles tinham
esse discurso. De dizer que o funk estava sendo perseguido por
conta da putaria e das questes da faces. Eu falava: poxa,
essa perseguio comeou desde que o funk entrou na cena,
dede os anos 90, quando no tinha ainda putaria (at tinha,
mas no era como hoje), no tinha proibido, e os bailes
foram fechados 44.
Ainda acerca da relao desses jovens com o Estado, a escola uma das
poucas referncias de relao com o Estado que no passa por um vis da
segurana pblica ou da presena da polcia. Ao mesmo tempo, a escola
44
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de funk carioca, UFRJ, 2011
45
Idem.
45
mostra-se esvaziada de significado para esses jovens, pois muitas vezes busca
excluir e no permitir que os elementos do universo funk sejam vividos ou
levados para o espao escolar 46, como pudemos assistir recentemente numa
escola do Esprito Santo, onde o aluno foi brutalmente espancado pelo
professor de artes marciais quando ouvia funk no celular, no horrio do recreio.
46
Retirado da notcia do Jornal Hoje, do O Globo, verso online: http://g1.globo.com/jornal-
hoje/noticia/2011/07/adolescente-e-agredido-por-professor-no-patio-da-escola-no-espirito-santo.html acessado em
27/07/2011.
46
II.III: Funk e Religio
47
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, Maio de
2011.
48
Fala de Silvio Essinger. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, Maio de
2011.
47
Presente em dinmicas religiosas junto ao grupo juvenil, a existncia de
msicas religiosas ao ritmo de funk circulando no meio evanglico e fora dele
expressiva. A forma como o funk tem sido apropriado e transformado em um
potente meio de converso e celebrao religiosa, gerou (e ainda gera)
bastante polmica, devido ao mau legado deixado pelo funk nos anos 90
(quando o movimento foi associado aos arrastes nas praias cariocas e foi
alvo de uma lei que proibia a realizao dos bailes). Para muitos, o funk goza
de reconhecimento negativo na cidade do Rio de Janeiro, o que, a princpio,
tornaria o movimento incompatvel com as crenas dos evanglicos.
49
Dmiranda no site da SEPAL, SErvindo a PAstores e Lderes. Disponvel em: http://www.lideranca.org. Acesso em
22/07/2011.
48
Entretanto, o trabalho dos agentes religiosos parece compreender justamente
o fato de o funk possuir forte carter negativo, tanto em seu passado como
em sua atual ligao com uso de drogas, abuso de lcool e sexualidade
exacerbada praticada nos bailes. Para os cantores de funk gospel, o funk est
ligado ao incentivo de atos violentos, incitao dos sentidos e alterao da
conscincia. Mas exatamente por possuir essas caractersticas que o gnero
musical tem sido recuperado, adaptado e utilizado como instrumento de
evangelizao entre seus ouvintes e interessados nesse gnero musical.
Seja pelo poder atribudo ao som, seja pela penetrao em grupos juvenis
urbanos encontrados em clubes e quadras localizadas em bairros e em
comunidades, o funk se revela um eficaz instrumento de converso e de
atuao. Para os cantores, membros e lderes religiosos, a msica um
eficiente modo de transformao. Eles atribuem ao som a habilidade de
modificar a disposio dos ouvintes, conduzindo-os coletivamente a atos de
purificao e exerccios de f, estimulados pelas letras de teor religioso e pelas
batidas danantes.
Se entregue de corao,
Assim, assim,
Com jejum e orao,
Assim, assim.
49
Fique firme at o fim
Assim, assim.
Se entregue de corao,
Com jejum e orao,
S Deus a soluo,
Porque a Terra, a Terra,
Vive na perdio.
Levante a mozinha,
Pela salvao,
o toque do irmo!
50
lugar destinado aos negros na sociedade brasileira.
51
Traz ideia positiva para sarar todos
vocs
Pois dez anos se passaram e muitos de
nossos irmos
Esto perdidos no mundo e sem f na
salvao
Nosso bonde foi curado, nossa sorte
ento mudou,
Somos livres do pecado e Deus nos
abenoou
Hoje sou capacitado tenho f no meu
Senhor
Ele pega o fracassado e transforma em
vencedor
52
show a conexo de trs crculos geralmente isolados no universo do funk
carioca: um primeiro religioso, um segundo que lida com questes sobre
sexualidade e erotismo e, ainda, um terceiro, que gira em torno do consumo
de drogas ilcitas, mais nomeadamente a maconha.
A pesquisadora afirma que essa uma posio bastante nica do Mr. Catra,
no comum a outros MCs. Em contextos exteriores s suas apresentaes, no
discurso articulado em torno da religio predomina o posicionamento poltico
de Mr. Catra face ao mundo envolvente, posicionamento que tende a
expressar, atravs de suas reivindicaes, o ponto de vista da prpria
juventude favelada, principais criadores e consumidores do ritmo musical aqui
em questo.
Minha faco
o bonde de Deus
j fui ladro
e conheo o breu.
53
Se liga rapaziada
essa que a parada
Catra, o fiel
sinistro da Baixada
Catra, o fiel
sinistro da Baixada
Catra, o fiel
maluco pode cr
minha faco
fortalece voc
S no vale corr
vem represent
se ajoelhou
mano, vai ter que or
Humilde e sinistro
representao
a minha faco
fortalece voc
Eu est ligeiro
sempre atento e esperto
se ajoelhar
tem que fechar com o certo.
Ah...
Vem! Mariana, Juliana, Marieta, Julieta
Vem Aline, Yasmine, Jaqueline
Vem Andria, vem Lucia
50
MIZRAHI, Funk, religio e ironia no mundo de Mr. Catra In: Religio e Sociedadep.118.
54
Vem Iara, vem Jussara,
Vem todo mundo!!!
Ento...
Ah vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Ah vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Em seguida, Mr. Catra se volta para a plateia e afirma que quer ouvir o grito
dos maconheiros. O pblico responde ao MC com gritos e levantes de
isqueiros. Nesse instante pode-se ouvir ao fundo trechos de msicas de Bob
Marley. O MC faz uma pequena homenagem a esse compositor pelo uso que
faz da maconha, cita tambm outros msicos como Marcelo D2, e festeja a
todos os maconheiros presentes!51
Ao finalizar sua apresentao, Mr. Catra retorna ao tema religioso, e grita: Pra
finalizar do jeito certo. Pode acreditar!, e canta: O Senhor meu pastor, e
nada me faltar!. Pode ainda pedir palmas pra quem verdadeiramente
merece e encerrar desejando que Deus ilumine vocs.
56
II.IV Funk Proibido e Putaria: questes jurdicas e de gnero
57
personagens presentes nessa realidade, entre eles o traficante, assim como o
policial corrupto, o trabalhador pobre, etc.
A primeira vez em que ouvi um funk proibido foi no ano de 2005, em que
trabalhei como tradutora junto a artistas oriundos de favelas cariocas que
estavam realizando workshops e shows de msica em toda a Inglaterra.
Tratava-se um projeto de artes possibilitado pela juno entre a ONG carioca
AffroReggae e a produtora cultural PPP (Peoples Palace Projects), dirigido por
Paul Heritage, que foi meu orientador de Mestrado em Artes, na Queen Marys
University of London, em Londres. Eram todos rapazes e moas livres de
envolvimento com drogas e lcool, muito inteligentes e instrudos. Eu os
acompanhava na maior parte do tempo, tanto nas atividades de trabalho
quanto nas de lazer, pois no dominavam o idioma ingls, e assim acabei
criando amizade e me tornando muito prxima de vrios desses artistas e
oficineiros das reas de teatro, circo, percusso e msica.
58
responderam que essa tinha origem na proibio de sua venda por
ambulantes no centro da cidade, sob alegao de agentes pblicos de que
esse tipo de msica fazia apologia ao narcotrfico.
A apologia ao crime est tipificada nos Artigos 286 a 288 do Cdigo Penal
Brasileiro, e para muitos legalistas, no contedo desse estilo de funk a apologia
est configurada.
53
O Movimento "DPQ - DIREITO PARA QUEM?" um coletivo de militantes que luta pelos direitos humanos sob uma
perspectiva de emancipao da classe trabalhadora. Disponvel em http://direitopraquem.blogspot.com. Acesso em 25
de junho de 2011
60
todo.
Eles foram excludos das leis dos msicos e dos artistas, respectivamente Lei
3.857/60 e Lei 6.533/78; os DJs e MCs no possuem categoria prpria na CBO
Classificao Brasileira de Ocupao. Sem reconhecimento pelo
ordenamento jurdico, os DJs enfrentam um cotidiano problemtico, lanados
no mercado da indstria do entretenimento sem as protees e garantias
especficas. Os dois Projetos de Lei que pretenderam regulamentar a profisso
(PL n. 2.631/07, do Deputado Brizola Neto, e o PL n. 740/07, do Senador Romeu
54
A cartilha pode ser baixada gratuitamente, no link http://direitopraquem.blogspot.com/2010/01/cartilha-de-direitos-
autorais-para-mcs.html. Acesso em 25 de junho de 2011.
61
Tuma) no se transformaram em lei, mantendo esses profissionais invisveis
perante o ordenamento jurdico e suas atividades e criaes carentes de
proteo legal55.
55
Em 2009, a senadora Rosalba Ciarlini foi relatora do parecer em que a Comisso de Educao, Cultura e Esporte,
votou pela aprovao da Lei do Senado n. 740 de 2007 na forma de um substitutivo. Isso implica que as categorias DJ
e Produtor DJ passariam a ser abarcadas pela Lei dos Artistas do ano de 1978, que reconhece as atividades dos
Artistas e Tcnicos e Espetculos. Naquela poca, os DJs brasileiros no tinham a visibilidade que hoje possuem, por
isso no eram citados. O relator da Comisso de Assuntos Sociais, senador Wellington Salgado de Oliveira, concedeu
em abril de 2010, minuta de parecer pela aprovao do PL tambm na forma de substitutivo. Em novembro de 2010, a
Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania aprovou a Redao Final por Unanimidade, sendo essa a ltima
ao legislativa nesse Projeto de Lei. No momento, agosto de 2011, o processo aguarda apreciao do Veto na Mesa
Diretora da Cmara dos Deputados Federais, conforme consulta ao site
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=466336. Acesso em 25/07/2010.
56
RUSSANO, Rodrigo. Bota o fuzil pra cantar! O funk proibido no Rio de Janeiro, dissertao de mestrado
apresendada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2006, pag. 38.
57
MOURA, Christian Fernando. O Teatro Experimental do Negro Estudo da personagem negra em duas peas
encenadas, dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da UNESP Universidade
Estadual Paulista, 2008.p.12.
62
pela encarnao da violncia, do perigo e da maldade.
58
A informao social transmitida por qualquer smbolo particular pode simplesmente confirmar aquilo que outros
signos nos dizem sobre o indivduo, completando a imagem de dele de forma redundante e segura. Exemplos disso
so os distintivos na lapela que atestam a participao em um clube social (...) Smbolos de prestgio podem ser
contrapostos a smbolos de estigma, ou seja, signos que so especialmente efetivos para despertar a ateno sobre
uma degradante discrepncia de identidade que quebra o que poderia, de outra forma, ser um retrato global coerente,
com uma reduo consequente em nossa valorizao do indivduo. In: GOFFMAN, Contracultura Atravs dos tempos,
p.53.
63
Que terminou o seu romance outra vez
T vendo quanto tempo a gente j
perdeu?
J te falei: ningum te quer mais do que
eu.
59
Entrevista com MC Leonardo: O funk democrtico e, por isso, perigoso. Disponvel em:
http://apafunk.blogspot.com/2011/02/o-funk-e-democratico-e-por-isso.html. Acesso em 25/07/2011.
64
"A gente mora dentro de uma comunidade, e qual a
comunidade hoje em dia que no rola trfico? Eu moro na
comunidade, e dentro dela tem aquele lder. O cara escreveu
uma letra em cima da nossa e perguntou se dava para a
gente gravar, e a gravamos. No foi uma coisa forada, foi um
pedido. A gente respeitava eles, respeita at hoje.60
60
ESSINGER Batido: uma histria do funk. p. 238.
61
HERSCHMANN, Abalando os Anos 90 - Funk e Hip-hop., p.65.
65
tenha polcia na favela, mas ela entra e jogam um monte de
coisa nas mos dela... " 62.
62
Disponvel em: http://apafunk.blogspot.com/2011/05/deputados-do-rio-discutem-legalizacao.html. Acesso em 25 de
julho de 2011.
66
Caldeiro do Huck. Cad o MC Dolores? Cad o Jnior e
Leonardo? Cad o MC Galo? 63
63
Entrevista com MC Leonardo: O funk democrtico e, por isso, perigoso. Disponvel em:
http://apafunk.blogspot.com/2011/02/o-funk-e-democratico-e-por-isso.html. Acesso em 25/07/2011.
64 64
MIZRAHI, Mylene. Figurino funk: uma etnografia sobre roupa, corpo e dana em uma festa carioca , Dissertao
de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, UFRJ. Rio de Janeiro: 2006.
<teses.ufrj.br/IFCS_M/MyleneMizrahi.pdf> acessada em 27/07/2011.
65
Entrevista com Mylene Mizhari, concedida ao Projeto em maio de 2011.
67
O chamado funk ertico, pornofunk ou funk putaria vem atraindo muita
popularidade dente os gneros de msica funk produzidos. Com letras que
falam mais ou menos explicitamente de questes relacionadas pratica de
atos sexuais, pesquisadores apontam que tal contedo no exclusividade
do funk carioca. E enxergam nesse estilo uma das caractersticas que mais
revela, ainda atualmente, a influncia da hipersexualizao pela qual passou
a prpria msica negra norte- -americana, com a disseminao do
gangsta rap e sua cultura de letras reverenciando mulheres e sua
performance sexual.
Segundo nos afirma Soares, o caminho mais comum das mulheres cariocas
para a entrada no funk passa pelo corpo elas danam. E possvel notar
caractersticas comuns s mulheres que mais fazem sucesso nesse contexto,
no so exatamente negras, elas so morenas e brancas, possuem corpos
66
Entrevista com Luciane Soares, concedida ao Projeto em maio de 2011.
67
Idem.
68
esculturais, tm cabelos compridos e encaracolados, mas raramente
totalmente lisos ou crespos. Ressalta-se que dentro do prprio funk so
produzidas as formas de identificao dessas mulheres.
No caso dos homens danarinos, que esto presentes nos bailes tanto quanto
as mulheres e tambm possuem cdigos de identificao com o movimento,
eles tambm realizam coreografias sensuais e mostram o corpo, j que
danam sempre sem camisa. Entretanto, no caso dos homens, o uso do corpo
apenas no proporciona a venda de msicas. J essa exibio, no caso das
mulheres, pode exclusivamente gerar a venda de CDs ou de shows em bailes.
Portanto, pode-se afirmar que as mulheres, de fato, podem se utilizar
exclusivamente de sua aparncia corporal para se estabelecerem no
mercado como produto de consumo.
Por outro lado, a pesquisadora revela que essa utilizao da sua imagem
como produto no seja uma imagem real dessas mulheres, mas sim produzida
com a finalidade especfica de dali obter o seu sustento:
68
Entrevista com Luciane Soares, concedida ao Projeto em maio de 2011.
69
geral, que os moradores das comunidades e o pblico do funk no
condenam moralmente essa mulheres.
Porm, sabido que a cantora de funk mais famosa do Brasil, a Tati Quebra-
Barraco, no se encaixa nesse esteretipo da mulher gostosa, no realiza
danas erticas em seus shows e, ainda assim, a MC mais bem paga do
mercado do funk carioca70. A cantora e compositora se apresenta
geralmente em roupas que no mostram o corpo. Atravs das letras
sexualmente explcitas cantadas por ela, muitos tm enxergado uma
reafirmao do feminismo, com a qual as garotas do subrbio deixam de ser
objetos sexuais, abandonam a submisso em que se encontravam e
conseguem se impor social e economicamente no mercado de trabalho,
atravs da insero no funk.
69
Idem.
70
Dado recolhido no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, 2011.
70
Ou seja, por um lado ou por outro, atravs da imagem ou atravs do talento
para composio musical e de letras, a mulher est includa no mecanismo de
produo de funk.
(...) o hip hop, aparentemente, no permite essa insero que
o funk permite... Talvez por esse aspecto hedonista, de falar do
sexo, da diverso, de ser uma msica para se divertir. Mas
atravs desse hedonismo, desse falar de sexo, de tudo isso que
eles continuam afirmando um modo outro de ser, e continuam
construindo significados e smbolos. (...) Eu nunca presenciei
sexo num baile funk, nem uso das armas que os seguranas e
artistas portam. Esses elementos so um adorno mesmo, fazem
parte dessa performance, dessa performance da fora, do
poder, que tanto feminina quanto masculina tambm, com
focos diferentes. (...) As mulheres no funk e o prprio funk
podem no ser bem aceitos se comparado a um bom gosto
oficial, mas ainda assim se relaciona e usufrui desse mercado,
usufruindo dessa relao com essa sociedade que o
envolve71.
71
Entrevista com Mylene Mizhari, concedida ao Projeto em maio de 2011.
72
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca na UFRJ, maio de 2011.
71
Longe de afirmar que o funk que esteja incentivando o sexo entre jovens, e
distante tambm da ingenuidade da crena popular de que as pessoas de
comunidades no so reprimidas; que na favela todos so sexualmente
liberados , pesquisadores revelam que a favela um ambiente extremamente
controlado, seja por agentes externos, seja devido prpria proximidade fsica
em que vivem essas pessoas.
73
Idem.
72
Na pesquisa, Mrcia relaciona a cultura s aes que a sociedade vai
promovendo, independentemente de seu grau de letramento; situa o
contexto do carnavalesco e considera a manifestao como decorrente da
realidade social brasileira. Na opinio da pesquisadora, as letras erotizadas das
msicas traduzem o falar cotidiano de grande parte da sociedade brasileira,
principalmente de grupos situados nas periferias dos grandes centros urbanos,
e se inscrevem no apenas no funk, mas em programas humorsticos, em
revistas e alguns textos literrios, no teatro, entre outros.
Nas consideraes finais do seu trabalho, relata que a mulher vem talhando a
sua imagem em todos os segmentos sociais, o que se revela mais amplamente
na vida profissional e na mdia. Mas mesmo aquelas que se situam em
atividades no consideradas relevantes para determinados setores da
sociedade, envolvidas em uma srie de tarefas domsticas que lhe so
atribudas e no so socialmente valorizadas, essas mulheres esto buscando
a construo de uma identidade, a fim de mostrar que elas existem.
74
Entrevista com Mrcia Fonseca Amorim, concedida ao Jornal da IEL UNICAMP. Disponvel em:
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/setembro2009/ju443_pag12.php. Acesso em 25-07-2011.
73
alguns segmentos sociais, quando a menina do asfalto passa a frequentar
manifestaes antes restritas menina do morro.
Ali se verifica uma reinterpretao que substitui o grotesco pelo real, porque
aquelas pessoas vivem aquilo como particularidade de suas vidas, apesar do
choque que possa provocar no olhar de quem chega. O funk reivindica um
lugar entre os movimentos culturais porque traduz ou tenta traduzir a
identidade de um grupo, e no importa que essa identidade seja construda
margem dos grupos mais intelectualizados.
75
(...) vejo muitos adultos, pais na faixa de 35/40 anos, indo pro
baile com seus filhos. Isso eu fiz muito em campo... Eu mesma j
fui pro baile com a filha do Catra e a me dela. A gente j foi
pra baile junto. Num determinado momento da festa os
adolescentes ficaram na pista e a gente - eu com a me dela
e umas amigas da me dela ficou um pouco afastadas, de
olho mas nos divertindo tambm, tomando cerveja... E tem
muito isso, a me s vai embora com os filhos. E elas curtem, se
divertem. Ento, isso uma coisa que acontece, os mais
idosos, muitas vezes eles se incomodam, no querem a msica
alta... Tem ali sim um choque geracional. Mas nessa diferena
assim de 40 para 16 anos, a diferena no tanta75.
75
MIZRAHI. Entrevista com Mylene Mizrahi concedida ao Projeto em maio de 2011.
76
de um modo muito independente do homem. Acho at que
isso uma leitura que a gente pode fazer do Brasil em geral.
O homem tem que estar quase que o tempo inteiro
evocando a mulher, presentificando a mulher. Seja a mulher
bonita, gostosa, piranha, me, seja de que modo for, para
se fazer homem, para se dizer homem, essa masculinidade
construda muito a partir do contraste com a mulher. (...)
Estou querendo falar que ela tem um poder e uma
independncia que o homem no tem. O homem ali nesse
contexto, no consegue se fazer homem sem evocar a
mulher, seja oralmente, seja na msica, seja l do lado dele,
seja atravs da imagem dela no computador.
76
MIZRAHI, Mylene. A Esttica Funk Carioca: criao e conectividade em Mr. Catra. Tese de Doutorado defendida no
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-UFRJ). 2010.
77
mostrar desejosa. Esses tabus so quebrados quando essas mulheres assumem
seu desejo, assumem sua sexualidade no que ela tem de ativo, e no passivo.
Ao mesmo tempo que essa fala desconstri tabus seculares, ela prov
genitlia feminina poder e valor. Alis, poder e valor do qual o falo masculino
j usufrui h muito tempo.
77
MIZRAHI. Entrevista com Mylene Mizrahi, concedida ao Projeto em maio de 2011.
78
Captulo III Funk e arte contempornea, em dois estudos de caso
III.I - O caso FUNK STADEN: a cultura popular do funk carioca absorvida pela
arte contempornea de Dias e Riedweg para a Documenta de Kassel
A obra "FUNK STADEN" foi apresentada pela primeira vez na 12a Documenta de
Kassel, inspirada por ilustraes de Hans Staden (1527-1578), nascido tambm
em Kassel no Sculo XVI. Staden, durante uma viagem pelo Brasil, teria sido
capturado e estava para ser comido, mas foi liberado porque no foi o
suficientemente corajoso para ser "incorporado". Os canibais no queriam
ingerir aquela diversidade ali apresentada - uma metfora perfeita para o
trabalho dos artistas de que vamos falar.
Mauricio Dias (Rio de Janeiro, 1964) e Walter Riedweg (Lucerna, 1955), a dupla
Dias e Riedweg, reinterpreta Staden ao compor uma vdeo instalao
circundante, que mostra as aes realizadas dentro de favelas no Rio de
Janeiro, projetadas em telas. As imagens foram gravadas por trs cmeras
instaladas em postes de madeira (uma citao do instrumento utilizado por
canibais para matar a vtima) e tambm em uma laje, onde os participantes
de um churrasco passaram as cmeras de mo em mo enquanto
danavam, simulando as imagens encontradas no livro. Atualiza-se aquele
remoto ritual, em que os habitantes da favela passam a ser o outro: o
antropfago no Sculo XXI, cuja tecnologia canibalizada, torna-se um
instrumento de difuso de sua cultura.
79
Para produzir a obra, Dias Riedweg colaboraram com adeptos do movimento
funk carioca, nas favelas no Rio de Janeiro, para estabelecer, atravs deste
trabalho, uma conexo entre a cena do funk e a do livro de Hans Staden78
Atravs dessa obra, a dupla interfere nessa viso do EU mediada pelo outro,
atravs da utilizao do funk carioca, convida os bailarinos de funk a
reencenar nove das xilogravuras originais do livro de Staden como tableaux
vivants contemporneos.
78
STADEN, Duas viagens ao Brasil.
80
Hans Staden e os funqueiros, suprimindo um hiato histrico e cultural
significativo, colocando o espectador em um espao-tempo onde ambos
contextos se convergem. Mais que mero espectador, o pblico se faz
participante da obra. A esses aspectos de confronto entre camadas
temporais, a arquitetura gtica do espao para o qual a obra foi
originalmente pensada adiciona mais um elemento.
Desde Kassel, a obra j transitou por quinze museus da Europa e dos Estados
Unidos, e chegou a ser condenada como "politicamente incorreta" pela crtica
americana, mas, em contrapartida, est entre as mais recentes aquisies do
Centro Georges Pompidou, de Paris. Teve sua primeira montagem no Brasil em
2007, na mostra "Parasos Possveis", que reuniu oito trabalhos recentes da
dupla nos quais se procura fazer uma reviso da ideia de "paraso" e de todas
as utopias, fantasias e fices construdas historicamente.
79
Entrevista concedida pela dupla a Daniel Hora em Os Valores Dominantes apud Revista Cultura e Pensamento, p.
28.
80
Idem, p.34.
81
82
O relato abaixo, de uma visitante brasileira que observou a obra na
Documenta e, tambm mais tarde, em sua montagem no Brasil, demonstra o
impacto com que o trabalho atinge seu espectador-participante:
81
Relato de Adriana Guivo intitulado"Parasos Possveis": as videoinstalaes que vo dos morros cariocas ao Plo
Norte. Disponvel em: http://www.colheradacultural.com.br. Acesso em 11/07/2011.
84
geografia, fsica, medicina, eletrnica, ou com todo o universo de informaes
que lhes esto disponveis.
Nesses termos, Bourriad aponta para uma arte que se integra de forma
essencial ao que a circunda, dialogando e utilizando elementos de outros
campos do conhecimento, para resultar em processos-produtos conectados a
seus ambientes, sendo arte e contexto indissociveis. E FUNK STADEN parte de
uma considerao do prprio contexto (Brasil, baile funk, sociedade
capitalista), relacionando-o com a histria da colonizao do Brasil, feita pela
Europa judaico-crist.
85
Desde o comeo da dcada de 90 pode-se assistir propagao de tais
prticas artsticas e culturais, que elevam os aspectos imateriais das obras de
arte. Determinadas caractersticas presentes nesse tipo de preocupao so a
nfase na relao entre artista e pblico (arte orientada pelo social), o
engajamento imediato do artista com uma audincia determinada (arte
como evento), a formao de coletivos artsticos e o uso de mtodos no
tradicionalmente artsticos como um meio de resistncia poltica82.
Nessa nova configurao de site, o conceito de lugar tambm passa por uma
intensa modificao, do que antes poderia ser entendido como uma
localizao fsica especifica, para a atual configurao como um lugar ou
uma coisa estabelecida atravs de processos culturais, sociais, polticos e
econmicos.
Retornando a Bourriaud, esse nos conta que esse novo tipo de estratgia de
criao artstica tem origem na dcada de 1990, e que se d por meio de
objetos a serem manipulados, recolocados em circulao em novos contextos
e com novos significados, por atores tambm novos (artistas e espectadores).
87
III.II O caso PERFORMAFUNK cultura popular e formas hbridas de arte
combinadas em um projeto de performance urbana
83
Performafunk j se apresentou com diversas formaes, entre essas incluem-se os artistas: Christina Fornaciari
(concepo, performance) doutoranda em Artes Cnicas pela UFBA, mestre em Performance pela Queen Mary
University of London (Inglaterra, 2005) e em Prticas e Teorias Teatrais pela ECA/USP. ps-graduada em Gesto
Cultural pelo Instituto Luigi Sturzzo (Itlia, 2007). Possui formao em Direito (BH, 2000) e pelo Teatro Universitrio da
UFMG (BH, 1999). Realizou residncia artstica na exposio Tropiclia: A revolution in Brazilian Culture no Barbican
Arts Centre, em Londres (Inglaterra-2006) e no Bronx Museum, em Nova York (EUA-2007). Gustavo Arantes Botelho
(vdeo) ps-graduado em Cinema pela PUC/MG e em Artes Visuais pelo SENAC/MG e possui formao em Cinema
Digital e Edio de Vdeo pela New York Film Academy (EUA). Joo Castilho (fotografia) artista visual, com diversas
exposies individuais e coletivas no Brasil e no exterior, ganhador dos prmios Conrado Wessel de Arte, Prmio Porto
Seguro de Fotografia, Bolsa Funarte de Estmulo a Criao Artstica e a Bolsa Pampulha. Em 2008 publicou o livro
Paisagem Submersa, pela Cosac Naify. Tem obras no acervo do Museu da Pampulha, no MAM da Bahia, no MAM de
So Paulo e na Coleo Pirelli-Masp de Fotografia. Eduardo Mendez (performance) vem de um background de arte
urbana, e h oito anos desenvolve a linguagem da interveno performtica na rua. J participou de eventos como II
Manifestao Internacional de Performance (Caminhando com meus Vcios e Virtudes), e Perpendicular:aes para
apartamento (Crislidas). Paloma Parentoni (corpo sonoro) produtora cultural, pesquisadora de ritmos populares e
DJ. Possui formao em Desenvolvimento Cultural pelo Curso Pensar e Agir na Cultura. Marcelle Louzada
(performance) performer e artista de dana, graduada em psicologia e Mestre em Artes Visuais pela EBA- Escola de
Belas Artes da UFMG. Paula Nunes (performance) formada pelo Teatro Universitrio da UFMG (1999). Leciona
teatro e cultura popular brasileira junto Secretaria Adjunta de Assistncia Social da Prefeitura de BH. multiplicadora
do Teatro do Oprimido, tcnica que utilizou em montagens teatrais junto ao Senado Federal, em Braslia/DF. Dirigiu e
adaptou "Cobra Norato, espetculo encenado por moradores de rua, que integrou a oitava edio do FIT/BH- Festival
Internacional de Teatro Palco e Rua. Juliana Floriano atriz, cengrafa, cantora e compositora. Faz parte do coletivo
Frito na Hora e j dirigiu e participou de montagens teatrais no Brasil e no exterior. Possui graduao em Artes
Visuais (pintura) pela EBA Escola de Belas Artes da UFMG e em Formao de Atores pelo TU Teatro Universitrio
da UFMG. Mariana Rubino sociloga formada pela UFMG e estudou no TU - Teatro Universitrio. Atuou em curta
metragem na Holanda, participando do Filmfestival de Roterdam e trabalhou como atriz e figurinista em So Paulo.
88
inaugurando na rua um espao de convvio que dissolvesse limites e borrasse
fronteiras entre manifestaes culturais, compondo o cenrio catico do
cotidiano da cidade. A cidade descortina o diverso, mistura sem pedir
licena... A arte tambm, nesse caso.
Dentro dessa linha de pensamento, o funk carioca, com sua falta explcita de
comportamento, acaba por se fazer til, ao atingir um tema recorrente para
diversos artistas: a desconstruo da ordem vigente, a implementao de
polticas enviesadas, a dissoluo - ou exposio - dos agenciamentos
maqunicos que perpassam a cidade.
Por esses motivos, o universo do funk carioca serviria como rico ponto de
partida. Esse movimento to criticado pela classe mdia espelha valores j
enraizados na cidade - como a objetificao sexual, a frico de gneros, a
segregao urbana, a violncia -, e os potencializa, os torna visveis,
destacados - talvez por isso mesmo o funk seja to duro de engolir.
89
criar instncias vistas pela classe dominante como vergonha pblica, esses
atores configuram identidades e se organizam de forma a gerar intimidao.
Por isso tudo, o conceito de Corpo sem rgos (CsO), criado por Gilles
Deleuze e Flix Guatari84 com inspirao nos escritos de Antonin Artaud,
parece se coadunar com os estados corporais provocados nos bailes funk
cariocas, no sentido de que esse ltimo tambm constitui, sua maneira, um
desfazimento da ordem, um desmantelar de controles, um corpo sem rgos.
84
DELEUZE e GUATTARI, Mil plats, capitalismo e esquizofrenia. v.1 e 3.
85
Ibidem.
90
atravs da ativao de mecanismos bsicos de comunicao, em nveis
pr-lingusticos, que ambas as atividades buscam derreter todo tipo de
estratificao organizadora, ou, nas palavras antropolgicas, atingem a
exploso de uma libido encurralada pela moral crist e pela tica esvaziada
da famlia, uma entidade que mesmo fragmentada e fantasmagorizada,
ainda faz frente ao niilismo e suas irradiaes86. Para o antroplogo Hermano
Viana, o movimento do funk carioca teria essa potncia a mesma a que
Deleuze e Guattari se referem - de desfazer estratos organizadores, sejam
cristos, morais ou econmicos.
Logo, notrio que a utilizao do funk no projeto no se deu por acaso, mas
sim fundada nesses aspectos que manifestam sua qualidade de revelar, para
ento reconfigurar agenciamentos.
86
VIANNA, Hermano. In: Revista RAIZ nmero um, Novembro de 2005.
91
na mdia, conforme a orientao de urgncia de um capitalismo. A frmula
em que o brasileiro se v transformado em produto de exportao,
identificado com a banana, futebol, samba e cerveja, redutora demais.
um tipo de autoreconhecimento absolutamente controlado pelos meios de
comunicao, que a tiram proveito econmico. Portanto, para utilizar o funk
no trabalho, era necessrio antes desconstru-lo, evitando a reafirmao do
esteretipo.
92
Portanto, a partir dos estmulos derivados da iconografia pesquisada, a
criao de d de maneira totalmente livre, independente de um
compromisso com ritmo, linguagem ou esttica. De forma similar ao que
ocorre quando algum brasileiro avalia o funk: ele pode simplesmente dizer que
detesta essa cultura porque ela representaria coisas que ele no quer
sustentar, da propaganda de cerveja frequente ligao dos bailes com o
trfico de drogas e desvio de dinheiro pblico. No entanto, se a pessoa/artista
se sente atrada por esse universo, pode tentar se inserir e dele participar sem
perder seu olhar crtico.
O contato dos artistas entre si tambm foi mnimo, ocorrendo apenas nas
visitas prvias, possibilitando um frescor da criao tambm para os
compositores em relao ao trabalho de seus companheiros. A assimilao de
trajetos por um e por outro participante ocorria no corpo, longe de pausas
reflexivas, num processo cognitivo em ao corporal e desencadeado por
aes corporais, visando mais aes corporais. Mesmo antes do evento em si,
essas assimilaes de trajetos j aconteciam, uma vez que o trabalho era
modificado e alterado ainda em seu processo de construo, devido a
alteraes/aes vindas de um participante ativo, a cidade.
87
Entrevista a Mariana Lage. www.chrispsiu.blogspot.com. Acessado em 03/07/2011.
94
contempornea dita alta, oficial, porm longe da esttica vitimizadora,
que arrogantemente enxerga os pobres como desprovidos de subjetividade.
88
88
Nessas imagens: meninos de rua e Christina Fornaciari fazem intervenes de grafite no espao urbano e em si
mesmos; Eduardo Mendez, com suas molas de borracha, incorpora o Joo teimoso, termo retirado da pesquisa
iconogrfica acerca do universo do funk carioca.
95
O conceito de CsO de essencial importncia no contexto da criao
conceitual do projeto. Mas como entender esse conceito cunhado dentro
do universo filosfico aplicado no mbito na dana, das artes cnicas, da
performance, da poltica? E como e por que conectar essa relao com o
conceito de Corpomdia? E onde a cidade se encaixa nesse pensamento?
89
BURROUGHS, William S. Almoo nu. So Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
96
rgos, mas de modo inverso ao que se pretendia: "Corpos esvaziados em
lugar de plenos."
90
90
Nessas imagens, em sentido horrioi: Gustavo Arantes projeta sobre corpo-tela de Christina Fornaciari, Paloma
Parentoni recolhe rimas de funk de transeunte e Paula Nunes encarna o mito da mulher fruta.
97
Assim, sem correr os risco de chegar a um dualismo, verifica-se que, no
projeto, o CsO foi criado a partir de um processo de despersonalizao do
criador que, ao criar em improvisao coletiva, torna-se outro, por meio da
prpria criao.
Apego-me a esse ponto para criar um nexo entre o CsO e o taosmo chins,
a titulo de exemplificao, semelhana do nexo que poderia haver entre
o CsO e a criao coletiva que inclui o pblico - em PERFORMAFUNK. O
taosmo se constri sobre a fundamentao da meditao, e meditar nada
mais que limpar a mente de todo pensamento, focando a ateno
apenas no ato da respirao. Torna-se clara a conexo entre a criao do
98
CsO - suas duas fases e sua constante impermanncia e a meditao
taosta sua busca por esvaziar a mente de pensamentos e inteno de
preench-la de respirao. A respirao em si mesma um ato de
imanncia, composto de duas fases, inspirao e expirao, em constante
construo e desconstruo, consumo e produo, presena e ausncia.
99
fazer outros a partir de si mesmo. E esse desejo somente pode se realizar
desde que as informaes se operem em um processo permanente de
comunicao.
91
KATZ. In: Todo Corpo Corpo Mdia. Disponvel em/; http://www.helenakatz.pro.br. Acesso em 03/04/2010.
100
no tratada como sendo um meio de transmisso. Na mdia que o
Corpomdia emprega, a informao fica no corpo, se torna corpo. No se
trata da noo de corpo-mquina, em que adentra uma informao que
estava fora (no ambiente), a mquina processa e, em seguida, a devolve
ao ambiente, em uma sequncia fora-dentro-fora. O que ocorre um
constante fluxo no qual fora e dentro no mais so perceptveis, no qual a
ordem de entrada e sada no mais pode ser fixada. A mdia do
Corpomdia, ento, identifica um estado do corpo-ambiente, e vice-versa.
101
tempo todo interagindo, chegando ao ponto de entrar em
um nibus e algumas pessoas descerem com ela, saindo
antes do lugar que deveriam descer. O Gustavo e o Joo,
com suas cmeras, buscavam nos performers/pblico sua
alimentao, e essas imagens eram retroalimentadas e
alimentavam a prpria performanceAs imagens ficaram
sobrepostas ao caos que j existia ali, nesse sentido criando
uma certa overdose imagtica, que eu acho bastante
produtiva em um trabalho que busca retratar o urbano e
seus excessos, como o prprio funk. Acima de tudo,
acredito que o vdeo era um elemento que fazia um recorte
da performance. Como havia muitas coisas acontecendo ao
mesmo tempo, o vdeo funcionava como um olhar mais
refinado, que buscava essa sobreposio, essa
simultaneidade, mas de uma forma mais calculada, e
injetava esse novo olhar novamente para dentro da ao.
Paloma, com seu megafone, a todo tempo coletava entre os
transeuntes fragmentos de versos de funk, que por sua vez,
iam interferir na movimentao corporal do grupo e dos
presentes no local... Da mesma forma, a minha interao
com os meninos de rua atravs do spray, criou relaes que
alteraram o espao urbano aquelas marcas esto la nas
paredes ate hoje! - alm de nos alterar enquanto corpos,
sujeitos. Isso fica muito claro nos vdeos. Acho que isso
natural do trabalho de rua92.
No fragmento abaixo, pode-se ainda notar com ainda mais clareza como as
setas de intercomunicao, que tornam o corpo um Corpomdia, ainda
mais notvel, quando em minha fala, me mostro bastante afetada pelo
comportamento inusitado e inadequado - dos moradores de rua durante
o trabalho, numa poltica que empodera os moradores de rua e os coloca
como agentes principais do trabalho, em detrimento da prpria artista.
Nota-se explicitamente, nessa passagem, o carter poltico dessa ao:
92
Entrevista a Mariana Lage. Disponvel em: www.chrispsiu.blogspot.com. Acesso em 03/07/2011.
102
sem rgos e me permitindo realizar os movimentos de
funk sem o risco de mimetizar. Para minha surpresa, uma
coisa, no entanto, me incomodou. No segundo dia,
quando eu estava realizando os movimentos de funk
utilizando a veste-tela, sempre vinham uns moradores
de rua e tentavam me "engatar por trs... danavam
engatados, como se estivessem em um baile funk.
Aquilo me tirou do plano da metfora, do corpo sem
rgos, e me mostrou o quanto era difcil para eles
desligar aqueles movimentos do funk, levar para outro
lugar. Mesmo sem ver meu corpo, j que eu estava
com a veste-tela, o que ficou para eles foi o
movimento, a coreografia do funk muito potente. J
est de tal forma enraizada que no teve como
escapar de uma certa mimetizao, mas vindo da
leitura que eles fizeram. Nessa hora eu fiquei
frustrada..93.
93
Entrevista a Mariana Lage. www.chrispsiu.blogspot.com acessado em 03/07/2011.
94
BERENSTEIN, Paola. Esttica da Ginga, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2001. Pg..21.
103
indefinio, desconstruindo tabus e esteretipos, portanto, instituindo novas
instncias polticas.
104
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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ESSINGER, Silvio. Batido Uma Histria Do Funk. Rio de Janeiro: Record, 2005.
105
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106
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108
Contedo digital
109
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110