FUNK DA GEMA de Apropriacao A Invencao PDF

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CHRISTINA FORNACIARI

FUNK DA GEMA
De apropriao a inveno, por uma esttica popular brasileira

1a Edio

Belo Horizonte
Edio da Autora
2011

2
Funk da gema: de apropriao a inveno, por uma
esttica popular brasileira. Christina Fornaciari. 2011. 111 p.

ISBN: 978-85-912356-0-5

1. Antropologia. 2. Cultura Popular. 3. Performance.


I. Christina Fornaciari. II. Titulo.
Tiragem: 1000
Distribuio gratuita.

projeto grfico: Martuse Fornaciari


http://martuse.com

reviso: Virgnia Junqueira


textos respectivos autores
(Christina fornaciari, prefcio de Mylene Mizrahi), 2011.

Feito depsito legal (Leis N. 10.994 de 14/12/2004,


e 12.192, de 14/01/2010)`a Biblioteca Nacional.

e-book disponvel em
www.funkdagema.blogspot.com

3
SUMRIO

Prefcio 5

Notas da autora 8

Introduo 12

Captulo I
Origens do funk: marcos histricos, movimento negro e atualidade 13

Captulo II O funk e sua contextualizao na sociedade

II.I Anlises da estrutura dos bailes, insero mercadolgica, gerao de


renda e perspectiva de carreira no universo funk 30

II.II O Funk e a Segregao Poltico-Social 37

II.III Funk e Religio 47

II.IV Funk Proibido e Putaria: questes jurdicas e de gnero 56

Captulo III Funk e arte contempornea, em dois estudos de caso

III.I O caso FUNK STADEN: a cultura popular do funk carioca absorvida pela
arte contempornea de Dias e Riedweg para a Documenta de Kassel 79

III.II O caso PERFORMAFUNK: cultura popular e formas hbridas de arte


combinadas em um projeto de performance urbana 88

Referncias Bibliogrficas 110

4
PREFCIO

O Funk, Hans Staden e um coletivo de artistas

Mylene Mizrahi

O Funk Carioca tem sido freqentemente tomado como um meio de acessar


a vida social do Rio de Janeiro e de certo modo tambm como porta de
entrada para a anlise das desigualdades sociais, econmicas e raciais que
compem parte do cenrio urbano brasileiro. E ao incio de seu livro, Christina
Fornaciari nos anuncia que tomar o ritmo musical como dispositivo de
objetificao de uma cultura da favela. Leitores situados e cientes da
trajetria da autora, mestre em performance e com doutorado em
andamento em artes cnicas, no podemos se no ficar surpreendidos com
tal afirmativa. Afinal, nos perguntamos, a pesquisa de uma artista performtica
inserida no contexto das artes contemporneas nacional e internacional, ir
repetir o mesmo caminho que vemos sendo seguido quase que
unanimemente pela produo acadmica nacional, em especial a das
cincias sociais, acerca dessa manifestao esttico-cultural? E instigados por
essa dvida em mente seguimos a nossa leitura.

De incio nos oferecido um apanhado histrico cuidadoso da trajetria do


ritmo musical, desde suas origens norte-americanas, a sua chegada no Brasil e
as distintas fases por quais passou e continua a passar em territrio nacional.
Em seguida, a partir da anlise de diferentes produes sociolgicas e
antropolgicas, nos so oferecidas algumas elaboraes sobre gnero,
relaes raciais, etnia, religio, tendo sempre como pano de fundo as letras
das msicas Funk e o contexto social no qual este se insere. Mas como
antroploga interessada em uma discusso sobre arte e esttica e em tomar o
Funk no somente como produto do contexto mas como manifestao
artstica que tece a prpria vida em sociedade, e nesse sentido no apenas
produzida por ela mas a produz, continuo intrigada sobre o momento em que
Christina nos brindar com sua marca. E com satisfao que chegamos
parte final de seu livro, que nos mostra a que veio a reflexo da autora,
alimentada por sua insero no mundo das artes.

5
A partir da anlise de dois estudos de caso que nos so apresentados de
modo aparentemente contnuo, o que enfatizado pela prpria seqncia
cronolgica com que somos introduzidos vdeo-instalao da dupla MauWal
e em seguida performance do coletivo de artistas de que a autora do
presente livro faz parte, vemos ocorrer de fato uma mudana de perspectiva
do olhar do artista. Este giro pode ser entendido a partir de uma mudana na
relao do artista tanto com seu pblico como com aquele que
representado. Uma mudana que fala no somente de como representamos
o outro mas do prprio modo como concebemos a alteridade. O que o
coletivo de artistas quer evitar , como coloca a autora, uma exotizao;
uma representao do outro tal que o dispa de qualquer possibilidade de
empatia com o self e assim impea qualquer relao entre self e outro.

Mas nem por isso deixamos de ver nas imagens de Performafunk contrastes
entre corpos brancos e corpos Funk que marcam a diferenciao entre estes
dois mundos. Assim como tambm escutamos a msica Funk. Mas
diferentemente do que vemos na vdeo-instalao FUNK STADEN onde o
sujeito Funk emerge como alteridade radical a partir da representao guiada
pela analogia com os canibais Tupinambs com os quais o alemo Hans
Staden se encontrou , o modo brincalho e fluido com que os corpos agora
se aproximam nos fala tambm de similaridades que aproximam estes mundos
dessemelhantes. Assim, se o coletivo movido pelo aspecto subversivo do
Funk, enquanto movimento cultural que desestabiliza as pr-concepes da
sociedade oficial, este mesmo aspecto subversivo que lhe permite esse
encontro entre muito iguais e muito diferentes.

A esttica Funk detm um carter hiper-realista, pois no se trata tanto de


tomar a realidade da vida narrada em suas letras como um espelho da vida
cotidiana, mas notar que o Funk, atravs de suas narrativas, elabora uma
fico avassaladoramente real. Este o aspecto tricky do Funk: ele elabora
sobre o real, exagerando em suas cores, e no se deixa apreender por
categorias explicativas fechadas. E deste modo que, penso, finalmente
poderemos pens-lo como dispositivo de objetificao de uma cultura da
favela: se entendermos sua esttica como uma mquina de triturar que

6
articula um universo multifacetado e de certo modo inapreensvel, como nos
mostram tambm, atravs de suas danas e brincadeiras, os artistas de
Performafunk.

7
NOTAS DA AUTORA

Quando se pretende produzir pensamento crtico acerca das culturas


populares brasileiras, falar de funk 1 carioca falar de um Brasil estritamente
contemporneo, urbano e de massa.

Sou uma artista, pesquisadora e professora de artes2 que vem se debruando


ou melhor, sendo provocada artisticamente pelo funk carioca. Idealizei o
projeto de arte urbana PERFORMAFUNK 3, que une fotografia, performance,
dana, grafite e vdeo em uma interveno multidisciplinar. Realizado por
meio do Prmio Funarte Artes Cnicas na Rua 2009, o trabalho surge a partir
de uma iconografia do funk, relacionando esse movimento ao conceito de
Corpo sem rgos, cunhado por Gilles Deleuze e Flix Guattari. Portanto,
vindo de uma trajetria de paixo e inspirao com o meu objeto, e
carregada do olhar do artista, do sujeito criador, que abordo a pesquisa que
aqui resulta.

Ao longo da execuo das atividades envolvidas no estudo do funk, que


resulta neste e-book, FUNK DA GEMA: de apropriao a inveno, por uma
esttica popular brasileira, busquei identificar nesta manifestao cultural
caractersticas que afirmem nossa tradio antropofgica afinal, o funk um

1
Optei por utilizar a palavra funk sem o grifo itlico que em muitas escritas acompanha o termo, denotando palavra de
idioma estrangeiro. Utilizo-o como se utiliza qualquer palavra na lngua portuguesa, ressaltando a total absoro desse
elemento pela cultura nacional. Apesar de sua origem estrangeira, a palavra funk hoje encontrada na maioria dos
dicionrios de lngua portuguesa, apresentando o significado que concerne ao tema desse estudo. Portanto, mais que
pertencente ao universo da sociedade brasileira em geral.
Algumas definies de funk encontradas em dicionrios online:

Dicionrio Aulete
1. Ms. Msica popular de origem norte-americana, danante, de marcao rtmica vigorosa e repetitiva
2. Ref. ao, ou prprio do funk (bailes funk). Disponvel em:
http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=funk&x=17&y=12. Acesso
em em 22/04/2011.

Dicionrio Michaelis
fun.k - (fnc) sm (ingl) Ms
Estilo musical simples e vigoroso, originrio dos Estados Unidos. Disponvel em:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=funk
Acesso em 22/04/2011.
2
Doutoranda em Artes Cnicas pela UFBA Universidade Federal da Bahia. Linha de pesquisa: Corpo E(m)
Performance. Orientadora Professora Doutora Ivani Santana (2010). Mestre em Performance pela Queen Mary
University of London, orientador Professor Doutor Paul Heritage (Londres, 2005). Mestre em Teorias e Prticas
Teatrais pela ECA/USP Universidade de So Paulo, (So Paulo, 2009). Graduada em Direito pela Faculdade Milton
Campos (Belo Horizonte, 2002), e Graduada no Curso de Formao de Atores do Teatro Universitrio da UFMG
Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, 2000). Acesso ao Currculo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4261721T6 acessado em 27/07/2011.
3
Retomaremos o projeto PERFORMAFUNK mais adiante, no Captulo III deste e-book, no qual, juntamente com a
anlise da obra FUNK STADEN, de Dias e Riedweg, estudaremos alguns dilogos entre arte contempornea e o
mundo do movimento funk.
8
dos tantos exemplos de apropriao cultural seguida de uma singular re-
inveno no Brasil e as maneiras como tais adaptaes se do em nossa
cultura ao adentrar o territrio e imaginrio nacionais. Entretanto, o que
encontrei com a pesquisa me levou para muito alm dessa questo!

Descobri no funk nossa urbe, ali exposta, aberta, revelada. Atravs do estudo
desse movimento social, acessei por diversos ngulos a sociedade que o
produz, utilizando o funk como dispositivo para objetivao de uma cultura
da favela, embrenhando-me a fundo em suas relaes de gnero, classe,
esttica, religio, poltica, economia, criminalidade e lazer.

Uma radiografia de nossas cidades nos salta aos olhos, a partir da observao
do funk carioca. Um olhar mais atento aos atores desse movimento, suas
origens tnica, econmica e geogrfica; o discurso proferido nas letras, a
sonoridade, a dana, o vesturio, a linguagem que compe o movimento e
outros pormenores de seu universo ilustram uma realidade do Brasil onde a
frico entre os gneros intensa e fortemente marcada por smbolos. A
violncia presente e aparente no dia-a-dia, a f e a crena religiosa so
fervorosas e a vontade de liberdade e prazer, latentes.

So esses atributos que tornam o funk da cidade do Rio de Janeiro uma fonte
de conhecimento de valor incomensurvel, que transcende questes de
cunho puramente esttico-cultural do movimento e fornece dados
sociolgicos que ilustram diversos aspectos da sociedade brasileira, desde o
ponto de vista da economia lingstica, aos aspectos psicolgicos de
formao de subjetividade utilizao do funk em contextos religiosos.

Esse rico mergulho somente foi possvel graas rede de cooperao


existente hoje entre funqueiros, DJs, MCs, pesquisadores, instituies como a
APAFUNK Associao de Amigos e Produtores de Funk, o Grupo de
Pesquisadores de Funk Carioca da UFRJ Universidade Federal do Rio de
Janeiro, e tantos outros. Ao iniciar o processo de coleta dados, me surpreendi
com a quantidade de pessoas envolvidas no estudo e pesquisa acerca do
movimento e, tambm, com a disponibilidade com que se mostraram prontos
a contribuir comigo em minhas indagaes.

9
Uma busca pelo banco de teses e dissertaes da agncia de fomento
pesquisa CAPES me levou a encontrar inmeras produes que tangenciam
ou mesmo tratam como foco principal temas pertencentes ao mundo do funk
carioca, em abordagens pelos mais variados ngulos, como violncia,
juventude, religio, moda e vesturio, gnero, lingstica, economia, msica e
tecnologia, entre outros. Comprovei que o funk tem despertado o interesse
acadmico por diversos campos do conhecimento, j que possui facetas com
as quais se pode adentrar o universo popular brasileiro de forma profunda e
genuna.
Percebi que, assim como eu, diversos socilogos, antroplogos, musicistas,
estudiosos da dana e das artes do espetculo e muitos outros pesquisadores
descobriram no movimento funk carioca uma manifestao da riqueza
cultural de nossa gente, sempre s voltas com a produo de seus prprios
meios e estratgias de sobrevivncia cultural, econmica e poltica.

por esse motivo que no poderia deixar de incluir aqui alguns


agradecimentos, a pessoas sem as quais nada disso teria sido possvel.

Aos pesquisadores Mylene Mizrahi, Luciane Soares, Juarez Dayrell, Adriana


Facina, Silvio Essinger, Carlos Palombini, Hermano Vianna, e tantos outros, meu
sincero agradecimento pela generosidade com que me permitiram ter acesso
a suas descobertas, pensamentos e dvidas. Alguns deles tive a oportunidade
de conhecer pessoalmente; outros colaboraram com o projeto sem me
conhecer ao vivo, ao disponibilizar seus livros, textos, artigos, ou mesmo
concedendo entrevistas pela internet. So pessoas como essas que tornam
possvel que nossa cultura popular possa estabelecer um lugar junto
comunidade acadmica, permitindo sua disseminao para alm dos seus
territrios de manifestao, contribuindo para que assim tambm se adentre
instncias da poltica, da educao formal e da elaborao de estratgias de
fomento e manuteno dessas expresses culturais. A todos vocs aqui
citados e aos que aparecem apenas ao final deste texto, nas notas
bibliogrficas, o meu muito obrigada e minha admirao imensa e sincera.

10
FUNARTE Fundao Nacional de Artes, e em especial ao Edital de
Produo Crtica em Culturas Populares e Tradicionais, meu profundo respeito
por seu reconhecido comprometimento com o fomento e a difuso das artes
e da cultura de nosso pas.

Gabriela Serpa Chiari, fiel escudeira em terras cariocas, meu brao direito
na realizao de entrevistas e idas a campo, este texto dedicado a voc e
ao lindo trabalho que realiza com o Teatro do Oprimido na cidade
maravilhosa. A Rafael Miranda Medina, artista de vdeo e fotgrafo que atuou
como cmera-man atento ao universo do funk; Diana Castilho, antroploga
experiente que contribuiu na transcrio de materiais gravados; a meu marido
Joo Castilho, companheiro desta e de tantas outras realizaes; minha
famlia e a todos os que contriburam para o sucesso desta empreitada, meu
agradecimento sincero vem do fundo do corao.

Obrigada aos funqueiros, MCs, DJs e equipes de som, aos produtores,


professores de msica e tecnologia, DJ Sany Pitbull, s ONGs e instituies
governamentais atuando junto s comunidades funk que apoiaram nosso
projeto de pesquisa... O mrito pela conquista deste espao de produo de
conhecimento de vocs!

11
Introduo

O estudo aqui apresentado foi dividido em captulos, para facilitar o acesso


do leitor a seu contedo. No Captulo I, sero analisados os momentos
marcantes e elementos fundadores do movimento funk carioca, com nfase
no seu surgimento, seu desenvolvimento e nas transformaes pelas quais o
movimento passou at se tornar o que hoje. Sero abordadas as chamadas
primeira, segunda e terceira gerao do funk, de modo que um panorama do
movimento poder ser traado. A partir da avaliao crtica de dados
cronolgicos; fatos relevantes; informaes retiradas de capas de discos e de
matrias de jornais e livros e estudos acadmicos, pretendemos contribuir para
um mapeamento das origens, caractersticas e desdobramentos imediatos do
movimento na cultura brasileira.

Uma anlise pormenorizada das relaes do funk carioca com os elementos


que o rodeiam ser realizada no Captulo II, contextualizando-o junto aos
demais dados presentes no cotidiano urbano brasileiro, em especial na cidade
do Rio de Janeiro. Para isso, selecionamos temas recorrentes em pesquisas
acadmicas e relatos de artistas, organizadores de bailes funk e da prpria
comunidade funqueira. Religio, gerao de renda e de trabalho, atuao
do poder pblico e legislao, trfico de drogas e o lugar da mulher no funk
so alguns dos assuntos com os quais relacionaremos o nosso objeto de estudo
nesse segundo captulo.

Finalmente, no Captulo III, visitaremos dois projetos de arte que utilizam o funk
carioca como ponto de partida para a criao artstica. Assim, atravs de dois
estudos de caso, das obras FUNK STADEN, da dupla Dias e Riedweg, e
PERFORMAFUNK, de autoria desta pesquisadora, analisaremos como o funk,
como movimento cultural tipicamente popular, vem dialogando com o
universo da arte contempornea brasileira.

Apresentaremos ainda, como anexos, algumas entrevistas e informaes


relevantes colhidas ao longo da pesquisa, que possam fornecer ao leitor fonte
direta de dados, possibilitando-lhe tirar suas prprias concluses acerca de
questes relativas ao mundo funk carioca.

12
Captulo I Origens do funk: marcos histricos, movimento negro e atualidade

Para entender o contexto brasileiro do funk e os diferentes momentos histricos


pelos quais esse movimento passou, tornando-se o que hoje, essencial que
sejam levantadas as suas origens. Nota-se que funk ganhou grande espao na
mdia brasileira a partir dos anos 90, porm, sua histria no pas parecer ter tido
incio dcadas antes, no final dos anos 60 e, assim como muitos outros gneros
musicais hoje to presentes no Brasil, est intimamente ligado chegada de
influncia da cultura estrangeira, tanto de origem africana, quanto europeia,
latina e norte-americana.

Como o nome indica, o funk carioca coloca a cultura


musical do Rio de Janeiro em relao com a msica negra
norte-americana, numa combinao nica, de reverberaes
transcontinentais. Se remontarmos s componentes musicais
africanas do Brasil e dos Estados Unidos, provavelmente
encontraremos, em exlios involuntrios, expresses musicais
relativamente parecidas. (...) o reencontro de sujeitos
oprimidos de hemisfrios distintos na conscincia das foras
opressoras, numa espcie de africanos de todas as Amricas,
4
uni-vos.

Para alguns, o pianista Horace Silver poderia receber o ttulo de av do


funk5. Ele uniu o soul ao gospel, em meados dos anos 60, gerando o jazz funky
nos EUA. E essa mistura foi recebida no Brasil por entusiastas e rapidamente foi
apropriada por artistas e pelo pblico nacional. Em decorrncia disso, o Rio de
Janeiro dos anos 70 estava antenado ao que ocorria no movimento Black
Music, que acontecia simultaneamente nos EUA. Enquanto os americanos
ouviam o soul de James Brown, por aqui Gerson King Combo6 balanava a

4
PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk carioca apud http://www.anppom.com.br/opus/opus15/103/103-
Palombini.htm acessado em 27/07/2011.
5
Horace Silver (n.1928), um dos mentores do hard bop, ficou associado ao estilo pianstico conhecido como funky.
Inspirado no soul e no gospel, o jazz funky se caracteriza por uma repetio obstinada de figuras rtmicas sincopadas.
Os improvisos so mais longos do que no bebop. As composies freqentemente possuem uma forma estruturada
em sees. Os sopros e metais comparecem desempenhando a funo de moldura para a seo rtmica. Silver um
pianista de toque duro, entrecortado e percussivo. Sua msica vigorosa e fortemente rtmica. um excelente
intrprete de blues. Entre os descendentes musicais de Silver e de seu jazz funky podemos incluir Herbie Hancock e
Wayne Shorter. Silver tocou com Stan Getz, Coleman Hawkins, Lester Young, Art Farmer, Milt Jackson e Miles Davis,
e teve uma associao marcante com Art Blakey e os Jazz Messengers. http://www.ejazz.com.br/detalhes-
artistas.asp?cd=136 acessado em 27/07/2011.
6
Gerson "King" Combo um msico brasileiro, um dos cones da soul music no pas, onde conhecido pela alcunha
de "James Brown brasileiro". Nascido na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, iniciou na carreira artstica fazendo
dublagem , no famoso programa "Hoje Dia de Rock" apresentado por "Jair de Taumaturgo", em seguida seu irmo
Getlio Cortes (autor de "Negro Gato", um sucesso na voz de Roberto Carlos) o levou para danar no programa Jovem
Guarda, apresentado por nada menos que o prprio Roberto. Influenciado pela msica negra, Gerson cantou nas
bandas de Erlon Chaves e Wilson Simonal e fez parte do embrio da Banda Black Rio. Em carreira solo, adotou o
nome Gerson King Combo (aluso a uma banda de soul music chamada King Curtis Combo). Seu estilo "James
Brown" causou sensao e foi aclamado o rei dos bailes black cariocas e comeou a gravar sucessos como:
"Mandamentos Black, "Jingle Black", "o Rei Morreu", entre outros, e seu ltimo sucesso gravado foi em 1984, o
compacto "Mel do Mo Branca". Com a queda do movimento black dos anos 1980 no cenrio musical, Combo ficou
13
galera com cabelos black power 7.

Influenciado pelo ritmo soul, a principal expresso cultural do movimento


negro estadunidense, o nosso funk tambm j nasce muito ligado questo
racial. L, os atores do movimento Black Music lutavam pelo
reconhecimento de sua cidadania, pelo respeito sua cultura, pelo fim da
segregao tnica das cidades norte-americanas ou, ao menos, pelo lema:
separados, mas iguais. Tambm no Brasil, os primeiros eventos ligados ao
movimento negro ocorreram com restries geogrficas. No entanto, por aqui
foi na Zona Sul8 carioca que surgiram os primeiros bailes, ento chamados de
Bailes da Pesada, promovidos pelos lendrios Big Boy e Ademir Lemos9, que
lotavam a casa noturna Caneco nas noites de domingo. Somente anos
mais tarde que os bailes partiram para o subrbio, organizados por equipes
de som como Soul Grand Prix e Furaco 2000.

Lvio Sansone, autor do livro Negritude sem etnicidade , destaca o fato de que
o primeiro disco de msica soul de origem brasileira trazia o ttulo em ingls
What is soul10. Produzido em 1967 pela Companhia Brasileira de Discos,

no ostracismo. Retornou nos anos 1990 fazendo alguns shows e gravando o disco "Mensageiro da paz". Segundo
Gerson, seu interesse pela black music por influncia do irmo Getlio, o pai dos dois no queria que os filhos
fizessem amizade com pessoas ligadas ao samba, j que o ritmo era marginalizado na poca. Em 2010, Gerson King
Combo foi tema do documentrio "Viva Black Music". Gravou os discos Gerson King Combo (1977) e Gerson King
Combo - Volume II (1978) pela Polydor; e Mel do Mo Branca (1984) e Mensageiro da Paz (2001) pela Warner Music
Brasil.
7
Cabelo black power ou afro um penteado muito popular entre os negros na dcada de 1960 e 1970. Martha
Mendona, A volta do cabelo crespo. poca. Pgina visitada em 16 de julho de 2011.

8
Entendamos aqui que a Zona Sul refere-se aos bairros de classe mdia e alta do Rio de Janeiro, enquanto que a
Zona Norte aos bairros das classes cariocas pobres; membros desses distintos grupos sociais se identificavam com a
identidade negra que o funk representava, mas aos poucos as camadas mais pobres aderiram completamente ao novo
gnero.

9
Ademir Lemos esteve no comando da Boate Le Bateau, no incio dos anos 1970, e foi pioneiro entre os
discotecrios. Numa poca em que as casas noturnas apresentavam somente msica ao vivo, a boate Le Bateau, na
Praa Serzedelo Corra, no Rio de Janeiro, inovava apresentando msica danante em discos, com Ademir frente da
casa, na seleo de msicas. Ele no ficava atrs da aparelhagem de som: recebia fregueses e danava junto,
animando a festa. Ademir contava que se tornou discotecrio graas aos seus dotes de danarino. Ele dizia ter sido a
primeira chacrete da TV, danando rock no programa Brotos no Comando 1966, na TV Continental. Da boate, o
discotecrio passou a fazer shows de rock ao ar livre e bailes no Caneco com Big Boy. Lemos comandou o programa
Som Livre Exportao e promoveu a msica negra. Lanou um disco de funk carioca, do qual surgiu o hit Mel da
Rapa (1993), com samples da msica Money for Nothing do grupo Dire Straits. Em 1996, Ademir Lemos sofreu um
derrame que o deixou paralisado. Faleceu em 1998, aos 52 anos, de complicaes de uma cirurgia, aps uma queda.

Big Boy foi produtor, locutor, programador e manteve um elo muito prximo com a juventude setentista. Observador e
ligado nas mudanas e nas novas tendncias musicais, o discotecrio trouxe ideias que revolucionaram o sistema de
programao de rdio. Big Boy iniciou uma coleo que chegou a 20 mil discos, ainda na sua adolescncia. Foi na
rdio Mundial que Newton Alvarenga Duarte ganhou o apelido de Big Boy e com sua postura descontrada
complementava as msicas que tocava com informaes quentes sobre o mundo do disco, com um estilo de locuo
que fez escola no Brasil. Apresentou programas como o Papo Pop, na TV Record, de So Paulo, trabalhou na
Eldorado FM, e inovou ao apresentar, em sua participao diria no Jornal Hoje, da TV Globo, clipes com msicas de
sucesso do momento. Sua discoteca foi um acervo cultural importantssimo, pois retratava vrios perodos do cenrio
da msica mundial. Big Boy morreu vitimado por um ataque cardaco em 1977.
10
Item de Colecionador. Companhia Brasileira de Discos, 1967.
14
apresentava a coletnea de diversos cantores estrangeiros e negros (Aretha
Franklin, Jacksons Five, Percy Sledge, Joe Tex, The Capitols, Wilson Picket, Sam
& Dave, etc). A capa do disco exibia uma foto de jovens brancos danando,
ao lado de uma extensa descrio do que seria o tal soul:

Dia a dia surge uma novidade no mundo da msica em todos


os cantos do mundo. E cada inovao ganha sempre um
nome pequenino, mas com a inteno de definir algo muito
grande e elevado. Assim o soul, a ltima inovao surgida
no mundo da msica e que consegue uma aceitao das
maiores, principalmente pelo pblico jovem que, como
sempre, o primeiro a aceitar, adotar e beber o que vem com
caracterstica de novidade. As letras contm mensagens de
muito sentimento e ternura, embora o ritmo seja alegre e bem
dentro da linha que o jovem prefere e exige.

Acerca do termo funk, esse era uma gria nos EUA dos anos 70 (funky); um
termo pejorativo que significava malcheiroso e era correntemente usado para
atacar os negros. Como forma de contra-ataque, os prprios negros se
apropriaram dessa gria e a reciclaram, transformando-a em representao
do orgulho de sua identidade tnica. A partir disso, os negros americanos
cobiavam ser funky em tudo: nas roupas, no gestual, nos cortes de cabelo e
at na msica, cujos arranjos agressivos e ritmo bem marcado serviram de
base para o estilo que ficou conhecido como funk hoje. Portanto, assim como
a origem do nome funk, o prprio movimento ficou amplamente conhecido
por seu engajamento da cultura de valorizao do negro.

E possvel notar que durante os primeiros anos da dcada de 70, os termos


soul e funk foram usados indiscriminadamente, sem se restringir ao
significado exato que esses estilos musicais representavam nos Estados Unidos.
Conforme j foi dito, as primeiras festas deste movimento na cidade do Rio de
Janeiro foram os Baile da Pesada, nos quais esses estilos musicais se
misturavam no Caneco, em noites inspiradas no disco Revolution of Mind,
de James Brown.

medida que outros movimentos culturais e musicais no ligados negritude


iam surgindo e tomando espao ao longo dessa dcada, os Bailes da
Pesada foram se transferindo para a Zona Norte, ganhando cada vez mais o
espao e o pblico especfico dos subrbios cariocas. Sobre o rompimento
com o Caneco, Ademir faz um comentrio:
15
As coisas estavam indo muito bem por l. Os resultados
financeiros estavam correspondendo expectativa. Porm,
comeou a haver falta de liberdade do pessoal que
freqentava (os Bailes da Pesada). Os diretores comearam
a pichar tudo, a por restrio em tudo. Mas ns amos levando
at que pintou a idia da direo do Caneco de fazer um
show com o Roberto Carlos. Era a oportunidade deles para
intelectualizar a casa, e eles no iam perd-la, por isso fomos
convidados pela direo a acabar com o baile. (Jornal de
Msica, n. 30, fevereiro de 1977:5).

O jornalista e especialista em funk Silvio Essinger 11 nos conta que alguns


adeptos dos Bailes da Pesada montaram suas prprias equipes, com nomes
que mantinham o vnculo com o movimento soul norte americano, tais como
Revoluo da Mente, Uma Mente numa Boa, Atabaque, Black Power e Soul
Grand Prix. Mesmo sem poder definir exatamente a ordem de surgimento
destas equipes, sabe-se que nas festas desse perodo o soul tinha supremacia
absoluta, apesar da grande dificuldade dos discotecrios cariocas da poca
em relao ao acesso aos discos e lanamentos. As lojas no Rio que
importavam msica soul, como a Billboard, em Copacabana, eram
bastante raras naqueles tempos, e a disputa pelas aquisies era acirrada.
Tanto que tornou-se um hbito entre as equipes o ato de rasgar o rtulo do
disco para torn-lo exclusividade de quem o detinha.

Anos de auge dos bailes, entre 1974 e 1976 as festas aconteciam de segunda
a domingo, sempre lotadas. A divulgao era feita de modo bastante restrito,
atravs de faixas em ruas de movimento e pelos prprios discotecrios no fim
de cada baile. Portanto, o porte que o movimento toma nesses anos um
fato ressaltado por muitos pesquisadores. nessa poca tambm que a
histria poltica do funk carioca passa a ser conhecida, atravs do papel
didtico que alguns bailes adotaram nesse perodo, trabalhando com a
cultura importada do movimento norte-americano Orgulho de Ser Negro.

Alguns ativistas negros identificaram os bailes soul como um lugar na busca de


adeptos: ali, jovens negros, instrudos ou no, reuniam-se para ouvir msica soul

11
Silvio Essinger um jornalista brasileiro autor dos livros Punk: Anarquia Planetria e a Cena Brasileira, publicado
pela editora "34" em 1999, seguido do aclamado Batido - Uma Histria do Funk, publicado pela Editora Record em
2005.
16
e inspirar-se nas conquistas polticas e nos modismos dos negros norte-
americanos.

Nesse contexto, o antroplogo Hermano Vianna nos conta que a equipe Soul
Grand Prix foi a precursora nessa politizao que dominava o novo cenrio do
funk carioca, devido ao trabalho cultural, no Renascena Clube, local que
deu origem equipe.

Enquanto o pblico estava danando, eram projetados


slides com cenas de filme como Wattstax (semi-
documentrio de um festival norte-americano de msica
negra) Shaft (fico bastante popular no incio da
dcada de 70, com atores negros nos papis principais),
alm de retratos de msicos e esportistas negros
nacionais ou internacionais (...). Foi o perodo dos
cabelos afro, dos sapatos conhecidos como pisantes
(solas altas e multicoloridas), das calas de boca estreita,
das danas James Brown, fazendo relao
expresso Black is Beautiful. James Brown era o artista
mais tocado nos bailes. Suas msicas, principalmente Sex
Machine, Soul Power, Get on the Good Foot, lotavam
12
todas as pistas de dana .

Devido a essa grande divulgao na imprensa, alguns integrantes influentes


do movimento como o Paulo (dono e discotecrio da Black Power), Nirto e
Dom Fil (equipe Soul Grand Prix), tiveram que se entender com o DOPS
Departamento de Ordem Poltica e Social, j que a polcia achava que por
trs das equipes de som existiam grupos clandestinos de esquerda. Em
contrapartida, o Black Rio recebeu apoio de entidades do movimento negro
da poca, como o IPCN - Instituto de Pesquisa da Cultura Negra. A partir deste
momento, o ritmo soul deixa de ser uma simples curtio, passando a ser
considerado um instrumento de apoio para a superao do racismo.

Um dado curioso: foi na cidade de Salvador, capital da Bahia, que o papel


libertador e conscientizador designado ao soul concretizou-se de forma mais
duradoura, talvez por j haver ali movimentos voltados questo tnica. Esses
grupos encontraram no ritmo soul o impulso necessrio para revitalizar seus
ideais. O bloco Il Aiy, que perdura at os dias de hoje, foi um dos frutos da
passagem dessa onda soul pela cidade baiana.

12
VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca". RJ, Jorge Zahar Editor:1988. p.27.
17
No Rio de Janeiro, a febre do soul obteve um carter comercial por
excelncia, j que se buscou transformar o que at ento era apenas
diverso aliada manifestao de uma ideologia negra, em um canal de
gerao de renda e lucro. A indstria fonogrfica encontrou no movimento
que ali surgia um campo inexplorado e frtil, seguido por inmeros adeptos
prontos para consumir.

Nessa poca, foram lanados discos de equipes pela gravadora WEA, como a
Soul Grand Prix, Dynamic Soul e Black Power, com coletneas de grandes
sucessos dos bailes. Apesar de a tentativa de alguns artistas como Gerson King
Combo, Robson Jorge e Rosa Maria, de perpetuar um soul com origem e
pegada mais nacional, a maioria dessas tentativas no obteve xito nas
vendas.

Em resumo, entre os anos 70 e 80 tivemos no Brasil a primeira gerao funk,


engajada com o conceito de negritude e produzindo um ritmo mais parecido
com o soul. Aos poucos, os bailes, que ficaram conhecidos como Bailes da
Pesada, foram transferidos para a Zona Norte, rea que passou a possuir
maior concentrao de adeptos desse tipo de msica. O pesquisador George
Ydice13 aponta que, na passagem da dcada de setenta para a de oitenta,
viu-se o declnio da conscincia negra das galeras funk na Zona Norte do Rio,
chegando-se chamada segunda gerao funk, que j no olhava para a
msica como uma simbologia cultural de um grupo tnico.

Essa segunda gerao do funk apresentou caractersticas prprias, trazendo


um apelo maior violncia, bem como uma batida mais agitada. Enquanto a
primeira gerao apresentava caractersticas identificadas com uma postura
romntica e por buscar uma identidade para o negro.

Ainda com base nas reflexes de Hermano Vianna, podemos considerar que,
aps a grande exploso do movimento soul carioca no incio dos anos 70, j
no final da dcada, possvel notar uma queda na popularidade do
movimento, seja por um desgaste do fenmeno soul junto imprensa, seja
devido transio para o mercado fonogrfico - que gerou uma certa

13
YDICE, George. A funkificao do Rio, In: A convenincia da cultura: usos da cultura na era global, p. 15785.
18
indefinio no movimento-, seja devido chegada ao Brasil de filmes com
temticas de Embalos de Sbado Noite, do ator Jonh Travolta, fazendo com
que tanto a Zona Sul quanto a Zona Norte aderissem nova moda das
discotecas.

Como se percebe, a vinculao do movimento aos ritmos e modismos que


chegavam ao Brasil vindo do estrangeiro (especialmente os EUA) evidente,
chegando mesmo a ditar moda e definir o pblico que era atingido. Como
no podia ser diferente, tambm os reflexos polticos dessas mudanas
influenciariam para intensificar ou abrandar a formao de uma gerao,
que comeava a se organizar conscientemente em torno das questes
tnicas.

E assim, ainda seguindo inmeros modismos e sofrendo influncias norte-


americanas, os anos 80 vo assistir ao incio de uma nova fase, marcada por
bailes menos engajados com a questo da exaltao cultura negra e pela
diminuio do carter didtico das festas. Chega ao Rio de Janeiro um novo
ritmo oriundo da Flrida, o Miami Bass, que consiste em msicas com letras
erotizadas e batidas rpidas. Esse ritmo logo se tornou um grande sucesso,
sendo chamado apenas de funk em decorrncia disso, comum que ainda
hoje se oua de especialistas que o funk carioca uma adaptao do estilo
estadunidense do Miami Bass.

Ainda em relao a esta fase, importante que se considere o regime da


ditadura militar ento vigente no pas, que contribuiu fortemente para frustrar
as tentativas de desenvolver, naquele momento, qualquer tipo de movimento
social. De fato, ao longo da dcada de 1980, dos inmeros bailes realizados
diariamente na cidade carioca, poucos procuravam desenvolver um formato
militante.

Entretanto, as festas do subrbio passaram por uma nova fase de destaque


junto imprensa no ano de 1986. Rdios como a FM Tropical passou a manter
em sua programao um programa totalmente dedicado ao funk, tendo
excelente repercusso e alcanando liderana de audincia na regio
metropolitana do Rio de Janeiro. Equipes como a Soul Grand Prix e a Furaco

19
2000 bateram recordes de vendas, sendo a primeira equipe contemplada
com o Prmio Disco de Ouro (100 mil cpias vendidas, 70% delas no Rio de
Janeiro).14

Tambm na dcada de 80, o hip-hop reconquistou espao com suas danas


em grupo e roupas peculiares, bons e bermudes, bem diferentes do estilo
engajado do Black is Beautiful da gerao anterior. Com a chegada do
Miami Bass, que trazia msicas mais erotizadas, batidas graves, acentuadas e
mais rpidas, os bailes se tornam mais violentos, e funcionam sob aguda
vigilncia da polcia e da imprensa. Uma CPI Comisso Parlamentar de
Inqurito, criada na Assembleia do Rio de Janeiro no final dos anos 90, visava
a acabar com a violncia em grande parte dos bailes. A primeira CPI foi feita
em 1995, e investigava a ligao entre o funk e o narcotrfico (tal ligao no
foi provada e os bailes foram regulamentados com a ajuda de polticos locais
do Rio), mas, posteriormente, muitas outras CPIs foram montadas com
finalidades semelhantes.

Essa nova fase do ritmo, descrita por alguns como new funk, se tornou sucesso
em todo o pas e conquistou lugares antes dominados por outros ritmos, como
o carnaval baiano. Apesar de muitas letras serem simplesmente pardias de
velhas msicas de sucesso, as gravadoras comearam a investir nesse gnero
musical. Nessa poca tambm ganha fora o Hip-Hop, que ento se mistura a
essa segunda gerao.

Para Herschmann15, O Funk e o Hip-Hop so gneros culturais e musicais


primos, com a mesma raiz, ao mesmo tempo em que as msicas se tornaram
mais danantes, e as letras, mais sensuais. Os dois fazem RAP (Rhythm and
Poetry) e possuem arranjos musicais semelhantes. Todavia, se diferenciam nos
aspectos polticos e ideolgicos. Luna16 tambm concorda com essa
diferena, definindo assim o funk e o Hip-Hop: Enquanto no RAP h uma
preocupao explcita com a mensagem conscientizadora, o Funk envereda
pelo caminho da diverso, do prazer imediato, do hedonismo.

14
ESSINGER, Batido: Uma Histria do Funk.
15
HERSCHMANN, O funk e o hip-hop invadem a cena.
16
LUNA. Samba, rap e funk, uma histria de encontros e desencontros In: Revista Eletrnica Sculo XXI,
01/03/2006. Disponvel em: http://www.multirio.rj.gov.br/sec21/chave_artigo.asp?cod_artigo=49. Acesso em
20/04/2011.
20
Ao falar em RAP, Luna est usando o termo como sinnimo do Hip Hop,
embora o ritmo e poesia seja considerado a base da linguagem musical tanto
do Hip-Hop quanto do funk. Como o Hip-Hop mais poltico, acabamos
associando-o mais ao RAP, enquanto o Funk, que enfatiza mais a diverso e a
sensualidade musical, acaba sendo associado aos termos batido ou
pancado .

Essa diferenciao ainda pode ser notada nos estudos de Dayrell, que
investigou o funk e o Hip Hop (que ele tambm vai chamar, por vezes, de Rap)
em Belo Horizonte. O autor estuda esses movimentos como estilos musicais que
vo construindo a identidade dos jovens pobres da capital mineira. Segundo
ele, por intermdio do funk, os jovens ressaltam a festa, a fruio do prazer, a
alegria de estar juntos17. J o Hip-Hop pode ser descrito como uma proposta
mais radical, ligada a um som menos danante, com letras que faziam a
denncia da realidade social18.

Retornando ao estudo da segunda fase do funk, temos as msicas que


comeavam a ser cantadas em portugus - at ento a grande maioria das
msicas da primeira fase funk eram cantadas em ingls ou eram parodiadas
de canes nessa lngua. De forma geral, as letras descreviam o dia a dia das
pessoas pobres do Rio de Janeiro. Drogas, violncia, armas, pobreza e
criminalidade eram temas presentes, embora tambm existissem msicas que
falassem de amor e de outros assuntos. Milhares de pessoas passaram a
frequentar os bailes.

Surgiu a competio entre as galeras: inicialmente, competia-se para ver qual


comunidade tinha a melhor coreografia. Em alguns bailes, a competio se
tornou violenta: a pista era dividida em dois lados e os integrantes de uma
galera que fossem para o local da galera inimiga eram agredidos. Os bailes
que ficaram mais populares, ento, eram bailes de comunidade e bailes de
clubes. Os primeiros eram realizados em espaos pblicos das comunidades,
e os bailes de clubes eram realizados em espaos separados, em quadras ou
em ginsios, e se dividiam em bailes de corredor (com confrontos entre

17
DAYRELL., A msica entra em cena: o rap e o funk na socializao da juventude , p.123.
18
Ibidem, p.51.
21
galeras diferentes e incitao assumida violncia) e os bailes comuns, cuja
tnica era a paquera. Nessa fase, o apelo sexualidade tambm comeava
a ser sentido.

De toda forma, nos primeiros anos da dcada de 90, a maioria das letras
refletia o dia a dia nas periferias, como verdadeiras crnicas que relatavam o
cotidiano dos moradores: dificuldades e problemas, desigualdade social,
preconceito racial e de classe, violncia. Ocupando cada vez mais espao
nessas reas da cidade, no decorrer dessa dcada os bailes funk passam a se
configurar como uma das formas de lazer mais populares dos jovens de classe
baixa do Rio de Janeiro, e, aos poucos, esse espao de lazer se tornou
tambm um dos principais meios de expresso desses jovens.

Por se firmar como um espao relevante para a produo de trocas sociais e


afetivas, os bailes passaram a ocupar o principal veculo de exaltao e
manifestao do movimento funk. Era ali que se efetivavam os mecanismos
de incluso e excluso, fundando a celebrao seja dos vnculos sociais que
unem os jovens no funk, seja de suas diferenas. Em outras palavras, o baile se
configura como o espao onde a adeso (ou no) ao movimento se
concretiza.

Para muitos estudiosos, com a nacionalizao do movimento, possibilitada


atravs da incluso de msicas cantadas em lngua portuguesa, que a
periferia e as favelas ganharam voz ativa dentro e fora de suas comunidades.
Seria o incio de uma abertura realidade do subrbio, como demonstra a
letra do funk Rap do Arrasto19, citada abaixo:

(...) na hora de voltar para casa


o maior sufoco pegar conduo
E de repente pinta at um arrasto (...)
Esconde a grana, o relgio e o cordo
Cuidado, vai passar o arrasto (...)
Batalho todo dia dando um duro
danado
Mas no fim de semana sempre fico na
mo
Escondendo minha grana para entrar
na conduo

19
Rap do Arrasto, de DJ Marlboro, Ademir Lemos e Nirto.
22
Um dos compositores do funk citado acima (que recebe o nome de Rap do
Arrasto demonstrando claramente a proximidade de temas entre o funk e o
rap desta poca), o DJ Marlboro20 hoje considerado um dos grandes
responsveis pela implementao de um processo de nacionalizao do funk.
Vencedor de diversos prmios no Brasil e no exterior por sua carreira de DJ de
funk, produziu em 1989 o disco Funk Brasil, dando novos contornos ao mercado
da msica nacional, incrementando essa produo e incluindo o funk entre as
principais paradas de sucesso nos rdios e eventos em todo o Brasil.

Esse disco revolucionou o movimento funk tanto quantitativa, quanto


qualitativamente. Com as verses de letras originais em ingls, passaram a
gerar os famosos mels (mels da Cachaa, da Bundinha, da Mulher
Feia), originando inmeras oportunidades para que seus criadores, moradores
das favelas e periferias, pudessem experimentar o gostinho do sucesso e suas
vantagens, fossem materiais e/ou simblicas. Desse momento em diante, os
compositores, produtores e DJs encontraram um pblico fiel e um caminho
aberto para a criao de letras originais em lngua portuguesa.

Paralelamente, ainda nos anos 90, o funk passou por um forte momento de
criminalizao, ao ser ligado aos arrastes no Rio de Janeiro fato
posteriormente investigado e sem verificao de ligao direta com o mundo
do funk. Mais tarde, outra ligao com crime (o assassinato do jornalista Tim
Lopes tambm passou por momentos de ligao e investigao com o funk)
deixa mais estigmas no movimento. Esses episdios marcaram um perodo de
forte represso aos bailes funk, na virada do sculo, culminando na proibio
dos bailes em virtude de lei.

20
No ano de 1989, ganhou o "Campeonato Brasileiro de DJs", em So Paulo, o primeiro concurso de DJ do Brasil,
patrocinado pela DMC (Disco Music Club), da Inglaterra, sendo convidado para apresentar-se em Londres
representando o pas como o nmero um do funk nacional e classificando-se entre os dez melhores DJs do mundo.
Neste mesmo ano lanou, pelo selo Polydor, da gravadora PolyGram (depois Universal Music Group), o que
considerada a primeira coletnea de funk brasileiro, o LP Funk Brasil. Tambm atuou, neste mesmo disco, na
programao de teclados e bateria eletrnica. No LP participaram Abdla, nas faixas "Mel dos Nmeros" (Abdla e
Marlboro DJ) e "Mel da Mulher Feia", verso de Marlboro DJ, Nirto e Abdla para "Do Wah Diddy" (Barry e
Greenwich); Ademir Lemos, na faixa "Rap do Arrasto" (Ademir Lemos, Nirto e Marlboro DJ); Cidinho Cambalhota, em
"Rap das aranhas", na realidade uma verso para rap de "Rock das aranhas" (Raul Seixas e Cludio Roberto), Guto &
CIA, em "Mel do bicho" (Guto Laureano, Marlboro DJ, J.r. Pinto e Nirto) e MC Batata, nas faixas "Entre nessa onda"
(Marlboro DJ e Batata) e "Mel do bbado", de autoria de Batata e Marlboro DJ. O LP vendeu mais de 250 mil cpias e
foi seguindo por outros, chegando ao Funk Brasil n 5, com os quais lanou boa parte dos novos valores do funk
nacional. Apresentou-se nas principais casas noturnas do Rio de Janeiro e de vrios estados do Brasil, alm de
apresentar-se na casa noturna Favela Chic, em Paris, e em vrios pases como Inglaterra, Estados Unidos, Crocia,
Japo, Colmbia, Eslovnia, Espanha e Portugal, sempre tocando funk-carioca. Em 2003, foi o primeiro DJ brasileiro a
participar do festival "Summer Stage", no Central Park, em Nova York, que lhe rendeu uma entrevista para o
"Manhattan Connection". Logo depois fez apresentaes em Nova Jersey, Chicago e Boston e ainda no "Festival
Eletrnika", em Belo Horizonte.
23
Com nova visibilidade e represso violncia, origina-se um novo tipo de funk,
no que se tornaria a terceira fase brasileira desse gnero musical, iniciada nos
anos 2000 21Em sua maioria, os bailes se tornaram mais pacficos, mais ao estilo
dos bailes comuns, com freqentadores interessados basicamente em
danar e paquerar. Msicas cada vez mais erotizadas e com coreografias
sensuais ganharam a ateno da mdia e conquistaram outros locais do Brasil.

O Furaco 2000, o DJ Marlboro e a equipe Castelo das Pedras so os principais


personagens dessa terceira fase da cena funk brasileira, chamando grande
ateno da mdia. As msicas se tornaram cada vez mais erotizadas e com
coreografias sexualizadas, invariavelmente fazendo referncia ao prazer.

Considerando esse conjunto de caractersticas, possvel definir o funk como


uma msica sociolgica, que se caracteriza por sua produo como msica
popular associada ou promovida por grupos sociais especficos, assim como
msica tecnolgica/econmica, dado a seu carter a partir desse perodo,
de produto relacionado tecnologia e mdia de massa.

Atualmente, embora apresente uma prevalncia da verso erotizada, o funk


ainda utilizado como plataforma de reivindicao por melhores espaos
sociais nas favelas onde os bailes ocorrem; denncia violncia racial e
batalha por um maior reconhecimento mercadolgico do gnero musical e
do trabalho de seus profissionais.

Desde a proibio dos bailes em 2008, pela lei conhecida como Lei lvaro
Lins, assim batizada devido ao nome do redator do Projeto que a originou, a
lei que proibia a realizao de bailes funk e da raves em todo o Estado do Rio
de Janeiro vigorou por quase dois anos, entre maio de 2008 e setembro de
2009, quando foi finalmente revogada.

Ao revogar a Lei lvaro Lins no dia primeiro de setembro de 2009, os


deputados da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro tambm aprovaram o
PL - Projeto de Lei, que passou a caracterizar o funk como um movimento

21
ESSINGER, Batido - Uma Histria do Funk.
24
cultural legtimo de carter musical e popular.

O fim da lei de proibio das festas levou todos os entusiastas do funk


presentes na Assembleia a comemorar, cantando Eu s Quero Ser Feliz 22.
Coautor de tal Projeto de Lei,23 o deputado Marcelo Freixo (PSOL), afirmou a
importncia do movimento e disse que "Atualmente impossvel repactuar o
Rio e dialogar com os jovens sem o funk"24.

O projeto visava a diminuir o preconceito sobre o estilo e fazer com que o funk
fosse integrado comunidade desde cedo, sendo ensinado nas escolas e
utilizado como objetivo de reflexo a respeito da sociedade.

"O samba tambm foi marginalizado no incio, o sambista era preso por
vadiagem. E hoje o maior espetculo do Brasil. Meus filhos so funqueiros e
eu vim para prestigiar. Se o funk tivesse surgido no asfalto, no sofreria
discriminao"25, afirmou Neguinho da Beija-Flor, tambm presente na
Assembleia para prestigiar a votao. Essa aprovao foi motivo de grandes
comemoraes no local, que tinha entre os observadores do plenrio MC
Jnior, MC Leonardo, Ivo Meirelles, devidamente acompanhado de uma parte
da bateria da Mangueira, Rmulo Costa (diretor da Furaco 2000) e o DJ
Marlboro26. Com isso, surgia a terceira gerao do funk carioca...

Outro marco dessa gerao apontado como o surgimento da APAFUNK -


Associao de Profissionais e Amigos do Funk, em 2008, com objetivo de
organizar o movimento, derrubar a ento vigente Lei lvaro Lins (Lei
5.265/2008, do deputado cassado, que impedia a realizao de bailes funk) e
redimensionar o papel cultural, poltico e econmico do funk. A APAFUNK teve
seu estatuto elaborado pelo grupo de estudantes de direito da UERJ, DPQ -
DIREITO PARA QUEM?-, grupo que ainda lhes presta assessoria jurdica e que
contou com o envolvimento de diversas cabeas tambm advindas da
academia, como a antroploga Adriana Facina, que participou ativamente

22
Msica de funk, de autoria de MC Cidinho e Doca, de 1995.
23
PL aprovado, dando origem Lei 5.543, que reconhece o funk como movimento cultural, musical popular.
24
Marcelo Freixo, em fala na ALERJ, disponvel em: http://apafunk.blogspot.com/2009/09/deputados-revogam-lei-que-
proibia-baile.html.Acesso em 25/07/2011.
25
Neguinho da Beija-Flor, em fala na ALERJ, http://apafunk.blogspot.com/2009/09/deputados-revogam-lei-que-
proibia-baile.html , acesso em 25/07/2011.
26
Notcia jornalstica publicada em O Globo. Disponvel em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/09/01/alerj-revoga-
lei-que-restringia-bailes-funk-767411082.asp. Acesso em 24/07/2011.
25
da construo da APAFUNK. Outra colaborao fundamental para a
existncia da APAFUNK veio do movimento RAP de So Paulo, em especial na
figura do vocalista dos Racionais MCs, o Mano Brown27. Novamente passa a
existir, nesse momento, uma grande converso de ateno para com o
movimento do funk carioca, numa tentativa de reestruturar-se politicamente.

Portanto, segundo diversos pesquisadores, o movimento funk inicia-se no Brasil


com um cunho ideolgico de afirmao da cultura negra e, aos poucos,
influenciado por diversos fatores, passou a valorizar a questo musical e
aspectos relacionados ao lazer, ao direito dos jovens pobres do Rio de Janeiro
ao entretenimento e, depois, retornando a esse iderio de politizao e
organizao social.

Nesse sentido, podemos dizer que o movimento funk procura proporcionar aos
negros pobres e moradores das periferias um reconhecimento social e cultural
que nunca foi totalmente atingido por esses personagens sociais, seja nas
favelas cariocas do Brasil, seja nos EUA, onde o movimento comeou,
valendo-se da msica como um espao de expresso tnica e de
configurao de estratgias de reconhecimento e valorizao.

Hoje disseminado amplamente em todas as regies do Brasil, estudiosos


afirmam que embora seja possvel identificar a origem das msicas,
praticamente impossvel determinar o alcance dessa produo musical,
devido informalidade de seu comrcio e devido influncia que a mdia
exerce sobre o mercado fonolgico. Sendo a msica um produto de massa
da indstria cultural, criado e influenciado pela mdia, esta sai de seu grupo de
origem e dissemina-se por todo o mercado consumidor, conforme a indstria
cultural projeta. E talvez nesse fato resida tanto a potncia quanto a
fragilidade do movimento.

Portanto, impossvel determinar a abrangncia do fenmeno funk no


cenrio musical atualmente. Sabe-se que sua presena j chegou s mdias
convencionais, ao morro e asfalto de todos os Estados do Brasil. No Rio de
Janeiro, o funk hoje transita livremente entre periferia e Zona Sul, sendo comum

27
Adriana Facina em palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, maio de 2011, UFRJ.
26
o contrato de bondes de funk para cantar em bailes de debutantes e festas
de pessoas influentes na sociedade carioca 28.

Outro aspecto interessante que pude descobrir durante a pesquisa


relacionado ao carter dinmico que possui o funk de hoje , seja quanto aos
estilos, seja quanto s respostas e dilogos que a velocidade da internet
propicia aos funqueiros.

Durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, do qual tive o prazer


de participar em maio de 2011, na UFRJ, ouvi o especialista Silvio Essinger
afirmar, com fascnio, sobre a enorme diversidade de estilos de funk existentes
hoje, no Rio de Janeiro.

Segundo Essinger,

embora haja uma predominncia do funk pornogrfico ou


funk putaria - predominncia essa que se d por uma srie de
razes, entre elas a mencionada ditadura do mercado -
diversos estilos convivem, muitas vezes em um mesmo contexto.
O estilo romntico, o gospel, a apropriao feita pelo pessoal
do Rock, da msica eletrnica, do samba, e muitos outros
convivem; alguns com mais, outros com menos espao na
mdia29.

A flexibilidade com que o funk pode tratar de temas variados tem sido bem
aproveitada pelos DJs e MCs. Alm disso, Essinger revela que o funk foi
exportado, uma vez que hoje o gnero musical funk carioca produzido na
Finlndia, Inglaterra, Japo30, invertendo totalmente a direo do fluxo desse
movimento, que agora parte do Brasil e invade culturalmente outros pases.

Essinger ainda aponta para uma questo muito polmica do funk, que seria
sua relao com o machismo. Ele nos conta que o funk contemporneo, mais
recente, como o ltimo hit do momento, (Sou Foda, dos Avassaladores,

28
Matria O funk das debutantes publicada pelo Jornal O Globo. Disponvel em:
http://fantastico.globo.com/platb/revistafantastico/2008/12/11/cezareth-canta-o-funk-das-debutantes. Acesso em
24/07/2011.
29
Silvio Essinger, em palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, maio de 2011.
30
Idem.
27
lanado em maio de 2011) primeira vista uma msica de intenso cunho
machista. Porm, dentro no movimento, isso no tomado pelas mulheres
como uma ofensa, j que a maioria delas entende esse teor das msicas
como uma provocao.

Prova disso o fato de ser possvel encontrar no site de vdeos YouTube (que
hoje em dia considerado um grande campo de difuso e interao do funk)
diversas respostas das mulheres a essa msica. Elas fazem verses em resposta
a esse funk, por exemplo a Sou Brocha. Esse dinamismo do funk traz tona
outras questes, j que o movimento de hoje, com a ajuda da tecnologia
digital e da internet, no mais to unilateral quanto se imaginava.

Hoje em dia, se um MC faz um funk, ele vai se responsavilizar por ele, pois
outros funqueiros e funqueiras vo dar resposta de imediato. Isso um dos
fatores que configuram o funk como um movimento social, uma prtica social.
Esse espao hoje maior do que o prprio espao musical ocupado pelo
funk.

Nesse mesmo sentido, gostaria de citar uma fala de Adriana Facina, a qual
tive o prazer de ouvir no mesmo Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca,
na UFRJ, que ilustra bastante esta questo:

Olhar somente a msica em si, horrvel, super machista, mas


o que est por trs tem que ser olhado. Uma vez eu estava na
rvore Seca, em um baile, me deu vontade de fazer xixi, e
banheiro era num beco. Eu estava l e o MC cantou voc,
gatinha que est a no beco abaixando a calcinha pra fazer
xixi, cuidado que ns vamos te estuprar. Na mesma hora
minha vontade de fazer xixi passou (risos). Mas depois eu
estava ali mesmo na comunidade, fazendo a unha em um
salo local, e falei com as meninas: Poxa, outro dia fiquei
morrendo de medo no baile, quando fui fazer xixi... E as moas
no salo comearam a rir da minha cara : Ah, que nada!
Esses caras no so de nada, no fazem nada, s fala! No
tem nada disso aqui, no, s zoao! Nunca tivemos estupro
em baile funk daqui! Ento se comea a ter uma outra viso...
H uma profuso de respostas a essas msicas machistas...
Ento essa anlise depende de, no relativizar o machismo da
msica - machista, no tem como dizer que no - mas de
perceber que a recepo daquilo, a dinmica que aquilo
gera e na qual gerada... As mulheres no so vtimas... A
gente tem um olhar muito duro, s vezes... Quer dizer, so
vtimas, mas tambm no so! Essa realidade mais sutil,
mais complicada do que essa coisa chapada que a gente tem
28
s ao ouvir as msicas. E interessante que isso aparea nas
pesquisas. Que a gente comece a ver essas respostas, no
para relativizar o machismo, mas para podermos perceber que
as pessoas no so to passivas assim; existem rplicas,
trplicas... Podem no ser organizadas em um movimento
feminista (como a gente, no vou negar, gostaria que fosse)
mas as respostas existem.31

Essas falas comprovam que o funk da atualidade se mostra mesmo como um


territrio de trocas, de negociaes entre gneros, configurao de espaos
de convvio social intenso, indo para alm das questes do mero
entretenimento.

31
Fala de Adriana Facina durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, maio de 2011.
29
Captulo II - O funk e sua contextualizao na sociedade

II.I - Anlises da estrutura dos bailes, insero mercadolgica, gerao de


renda e perspectiva de carreira no universo funk

Os bailes funk movimentam, em mdia, aproximadamente R$1,5 milhes por


fim de semana em todo o Brasil, entre pagamento de cachs, salrios e
servios formais e informais, bem como recolhimento de impostos. So
informaes surpreendentes como essa que aparecem no documento
Configuraes do Mercado no Baile Funk Carioca, um estudo da Fundao
Getlio Vargas realizado em 2008, e em outros estudos realizados nesse
sentido.

Segundo tal estudo, algumas caractersticas desse mercado apontam um


crescimento rpido da funo dos DJs, sendo esses os profissionais os que mais
tm diversificado suas atividades no mundo funk, e os quais cuja importncia
simblica cresceu de forma mais acentuada. At a dcada de 1990, tocavam
de costas para o pblico, mas atualmente os DJs so parte essencial do show
de funk, assim como os MCs e os danarinos. Um DJ pode exercer as funes
de empresrios, produtores de eventos, apresentadores de programas de
rdio e produtores musicais nesse campo atuam em conjunto com MCs, j
que a insero desses profissionais em programas de rdio lhes passou a ser
vista como novas estratgias de divulgao de sua msica.

So tambm os grandes responsveis pelas maiores inovaes sonoras no


mercado do Funk, com a introduo de novas batidas eletrnicas e
incorporao de outros gneros musicais ao ritmo.

J em relao aos MCs, nota-se que a partir de 2003 esse profissional


comeou a se desligar das equipes e a conquistar um espao prprio. Sua
imagem pblica foi recolocada no cenrio musical: passou a ser visto como
um artista mas principalmente porque conquistou novos espaos, que no
somente os bailes Funk animados pelas equipes de som. Tal como ocorreu
com o DJ, o crescimento da msica eletrnica possibilitou que o MC
vislumbrasse uma carreira fora do Rio de Janeiro e at mesmo fora do Pas. H

30
uma consistente rede de relaes estabelecidas entre MCs nacionais e
produtores estrangeiros. Essa estrutura menos pesada que as equipes de
som, possibilita um menor custo de contratao e, portanto, maiores
oportunidades de trabalho.

Diversificao das funes de seus agentes no Rio de Janeiro / RJ32

Funo principal Outras funes diretas Funes menos comuns

Dono de editora
MC MC
Empresrio de MC

Dono de equipe
Produtor de shows
Motorista de MC
DJ independente Produtor musical
Secretrio
Locutor de Rdio
Empresrio de MCs

Secretrio de equipe
DJ de MC
DJ de equipe Tcnico de som
DJs de comunidade
Operador de udio

Empresrio de MC
DJ
Produtor de Shows
Dono de Equipe MC
Locutor de rdio
Apresentador de TV

Por esses motivos, o funk representa uma grande oportunidade de


crescimento profissional e de trabalho para jovens de comunidades. A carreira
de MC (Master of Cerimony) um marco referencial em relao a estas
oportunidades de ascenso material e simblica. Com funes que podem
ser descritas como a de um cantor de RAP, que cria rimas em improvisaes
ritmadas, maneira dos repentistas, esses profissionais renem caractersticas
de compositor e cantor, sendo os principais atores do universo funk.

32
Configuraes do Mercado no Baile Funk Carioca, Fundao Getlio Vargas, Rio de Janeiro: 2008.
31
Embora hajam diversas MCs do sexo feminino, a maioria desses artistas so
homens, com idade oscilando entre os 11 e os 30 anos. Apresentam-se
individualmente ou em duplas, em pockets shows (shows de curta durao,
em media com 3 a 4 msicas), sendo comum circularem por diversos bailes
numa mesma noite, recebendo assim diversos cachs por noite de trabalho.
A trajetria desses artistas pode ser descrita como meterica: aps
ultrapassada a fase inicial da carreira, quando se apresentam recebendo
bem pouco ou at mesmo gratuitamente em shows de outros artistas como
forma de promover seu trabalho, o MC talentoso - talento aqui medido pelo
sucesso que o MC atinge em bailes de comunidade - passa a ser o profissional
mais bem remunerado no crculo de profissionais envolvidos no funk. Os
cachs por apresentao, que comeam a partir de R$200,00, podem chegar
ao valor de R$10 mil. Um MC de sucesso que chega a realizar de 10 a 15 bailes
semanais, consegue obter uma renda mensal bastante significativa33.

Com essa perspectiva em mente, simples entender as razes que fazem do


funk (assim como o futebol e o envolvimento com trfico de drogas) uma
alternativa bastante sedutora para esses jovens de baixo nvel de instruo e
educao formal. Diante da esperana de uma carreira cuja ascenso
relativamente rpida e de generoso retorno financeiro, esses jovens optam por
essa trajetria ao invs se sujeitarem a outros tipos de trabalhos que lhes
poderiam ser conseguidos, como vendedores, porteiros, faxineiros e outras
atividades cujo futuro no se mostra to promissor quanto o investimento na
carreira dentro no universo funk.

Durante a pesquisa, encontrei um estudo de caso citado por Herschmann34,


que ilustra claramente a mobilidade social e econmica que o funk
representa na vida desses jovens:

H um ano Sidnei da Silva, 19 anos, passava oito horas, seis


dias por semana, empacotando as compras de clientes de um
supermercado da barra. No fim do ms ganhava um salrio
mnimo (...) Sidnei virou MC Cidinho, formou uma dupla com
Marcos Paulo J. Peixoto, 20 anos, o MC Doca, e comeou a
ganhar dinheiro (...). Hoje, por 15 minutos de show nos bailes
funk da cidade, cobra at 8 mil reais. Fora do Rio, o cach

33
Dados compilados a partir de grficos e nmeros estatsticos retirados de Configuraes do Mercado no Baile Funk
Carioca, um estudo da Fundao Getlio Vargas realizado em 2008.
34
HERSCHMANN, O Funk e o Hip Hop invadem a cena. p.259.
32
sobe para 30 mil reais. O ex-empacotador j tem telefone,
casa prpria de dois quartos um Monza 87 e se permite at
extravagncias: coleciona 21 pares de tnis importados.
Cidinho personifica o sonho dourado de milhares de jovens, a
maioria de comunidades carentes, que vem na nova
profisso a sua grande chance de subir na vida. Importados
nos EUA, as duas letrinhas que vm na frente do nome dos
cantores de Rap (...) virou sinnimo de fama e dinheiro. (...) A
medida de sucesso de um MC est diretamente associada a
uma srie de bens de consumo. O nmero de tnis,
bermudes, camisas e bons. Outro indcio de prosperidade
so os telefones celulares. (...) O armrio de um MC tambm
conta com anis, cordes, pulseiras e relgios (...).

Embora com um trajeto mais longo e lento rumo ao sucesso se comparado


com a carreira de MC, tornar-se um DJ de funk uma alternativa que tambm
se mostra bastante promissora para estes jovens. Essa escolha geralmente
acontece por duas vias distintas: a primeira, com o investimento em um curso
de DJ (o que raro em se tratando dos jovens em questo devido a suas
dificuldades em arcar com os custos financeiros desses cursos de formao), a
fim de adquirir habilidade em mixar sons ao vivo ou em gravaes, e dominar
tambm as tcnicas de sampleamento. A outra via perpassa as relaes de
amizade que possam aproximar um garoto de talento a uma equipe de som
ou a um MC renomado. Ambas as vias vo garantir ao DJ cachs que variam
entre R$100 e R$2 mil reais por apresentao.

Como os bailes acontecem geralmente em antigos clubes de bairro, quadras


de escolas de samba, terrenos baldios e outros locais no apropriados para
essa finalidade35, os eventos invariavelmente possuem precrias instalaes.
Assim, a venda de bebidas e alimentos feita informalmente, na maioria das
vezes por moradores do entorno da rea onde se d o baile, gerando renda e
empregos no formais tambm para esses moradores - esses dados sero
analisados mais aprofundadamente adiante, neste captulo.

Em poucas palavras, a estrutura dos bailes funk abriga de 2 mil a 3 mil pessoas,
podendo chegar at a 6 mil pessoas, em alguns casos. A entrada franca
(como nos bailes de comunidade) ou custa relativamente pouco (R$3,00),
quase sempre permitindo a entrada gratuita para mulheres at determinado
horrio. Usualmente, ocorrem de sexta-feira a domingo, entre onze da noite e

35
HERSCHMANN, O funk e o hip-hop invadem a cena..p.37.
33
quatro da madrugada exceto domingos, quando o baile ocorre mais cedo,
entre oito horas da noite e uma hora da madrugada. Em geral, o baile
envolve bilheteiros, seguranas, DJ, MCs, tcnicos da equipe de som e
responsveis pela sonorizao do baile.

As equipes trabalham mediante uma distribuio de tarefas, sendo que o


tamanho do equipamento de som deve ser compatvel com o tamanho do
local onde ser realizado o baile o som deve ocupar a totalidade do
espao, seja ele um ginsio de esportes ou uma quadra de escola de samba.

Geralmente os proprietrios dos equipamentos de som so mltiplos scios e


nicos membros permanentes da equipe. A eles cabe negociar as datas,
horrios, preos, despesas, lucros e todos os detalhes para a realizao do
evento. Essa negociao ocorre entre os membros permanentes das equipes
e os gerentes dos locais de realizao. Pode ocorrer de a segurana do baile
e o bar ficarem tambm a cargo dos scios das equipes.

A equipe se encarrega do transporte e da montagem das


caixas de som, quase sempre dezenas, que ficam empilhadas
num dos lados da pista de dana, formando uma parede
sonora que s vezes tem vinte metros de comprimento, bem
como amplificadores, toca-discos e luzes. Muitas vezes
necessrio o aluguel de caminhes para o transporte e a
contratao de um grupo de carregadores para a montagem.
A equipe tambm contrata um tcnico de som que fica
encarregado da manuteno dos aparelhos. Esse tcnico tem
que estar sempre disponvel em dias de baile para consertar
qualquer defeito que aparea na ltima hora36.

Em algumas equipes, o DJ um dos scios, em outras vezes, um discotecrio


contratado para tocar exclusivamente nas festas da contratante. Porm, o
importante para as equipes maravilhar o pblico com suas luzes,
amplificadores de alta qualidade e potncia e demonstrar toda a sua
capacidade de produo de som, a fim de obter o reconhecimento pela
melhor aparelhagem.

Normalmente, ao trmino do baile, renem-se diretores do clube e integrantes


da equipe a fim de calcular o lucro obtido com a bilheteria, que em regra,
dividido igualmente entre as partes. Equipes com envergadura para realizar
36
VIANNA, O Mundo Funk Carioca, p.36.
34
festas com dois ambientes, geralmente usam o funk como carro-chefe do
baile, com a maior pista e melhor aparelhagem, e, em um espao de menor
proporo, geralmente se toca pagode ou outro estilo de msica brasileira37.
Funcionando como grandes empresas, h ainda equipes que realizam
simultaneamente bailes em diferentes locais, j que so proprietrios de
inmeras aparelhagens de som. Portanto, o objetivo das equipes deter boa
aparelhagem e tambm em grande quantidade, viabilizando um maior
nmero de bailes por noite.

Geralmente os DJs so os responsveis diretos pela negociao dos novos


sucessos do mundo funk, analisando a qualidade da batida, melodia ou
qualquer outro elemento imperceptvel para um leigo. A escolha final do
repertrio no tem um mtodo ou uma tcnica, sendo definido apenas pela
intuio ou sensibilidade, garantindo ao discotecrio que tal msica v fazer
sucesso entre os funqueiros.

Os donos das equipes sabem da importncia do trabalho do DJ, mas pelo


fato de ser considerado menos essencial que o MC, sua participao nos
lucros reflete essa realidade, ou seja, o valor da remunerao dos DJs menor
que a dos MCs, como se ver mais adiante em termos concretos.

Alm de contribuir para o aumento do trabalho informal, pois poucos so os


trabalhadores desse mercado que possuem carteira assinada e salrio fixo, o
funk carioca movimenta um mercado formal significativo envolvendo as
equipes de som, podendo se configurar em micro e pequenas empresas com
CNPJ e funcionrios devidamente registrados, emitindo notas fiscais de seus
servios e pagando impostos normalmente. Tambm h DJs que trabalham no
mercado formal, como funcionrios de rdios, equipes de som e casas de
show. Da mesma forma, os MCs podem ser contratados por equipes de som
ou por empresrios, ambas as situaes abarcadas pelas formalidades legais
empregatcias.

No entanto, muitos dos profissionais ligados a equipes de som, bem como


alguns dos DJs que trabalham em rdio ou tm pequenas produtoras, pagam

37
HERSCHMANN, Abalando os anos 90 - funk e hip-Hop.
35
o INSS como autnomo, configurando uma forma informal de serem
contratados. Nesses casos, verifica-se ausncia de contratos de exibio e de
contratos de empresariamento, com cach renegocivel aps o evento,
estabelecendo uma rede de relaes de confiana. Porm, apesar da
informalidade das relaes contratuais, h o desejo de formalizao e
profissionalizao.

Desde 2006 nota-se que os principais agentes vm tentando montar


organizaes com o objetivo de criar regras mais fixas e claras para os
contratos e cachs, como as associaes de DJs, de MCs e de donos de
Equipes38. Alguns empresrios j fazem contratos de empresariamento nos
quais os percentuais de cada parte (empresrio/empresariado) ficam pr-
estabelecidos e registrados.

Ainda acerca da informalidade, foi analisado o trabalho dos camels,


vendedores de alimentos, bebidas, balas e outros produtos comercializados
na porta de bailes de clubes e boates da regio metropolitana do Rio de
Janeiro. Existem cerca de 6,2 camels por baile, ou seja, a populao de
camels em bailes funk, seja de de clubes, comunidades ou de boates da
Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, de aproximadamente 248 pessoas.

A renda mensal dessas pessoas fora do funk gira em torno de R$374,12. J nos
bailes, os camels conseguem retirar uma renda mensal de aproximadamente
R$957,47. Assim, a renda como vendedor informal com barracas nas portas
dos bailes contribui para mais de 70% da renda total dessas pessoas, que gira
em torno de R$1.331,59, configurando esse trabalho como a principal fonte de
renda desses trabalhadores. Se multiplicarmos este valor pelo nmero
estimado de camels nos bailes funk, veremos que esse tipo de servio
movimenta uma renda mensal de R$ 320 mil.

Alm disso, h tambm camels que possuem funcionrios ou auxiliares em


suas barracas (media de dois funcionrios por barraca), e a estimativa diria
de mercado com o gasto dos camels com funcionrios por dia de R$
4.357,44, totalizando um valor de R$ 29 mil por ms. Em torno de 13% dos

38
Dados compilados a partir de grficos e nmeros estatsticos retirados de Configuraes do Mercado no Baile Funk
Carioca, estudo da Fundao Getlio Vargas realizado em 2008.
36
camels possuem licena para trabalhar, sendo os demais trabalhadores
totalmente informais.

Abaixo, um quadro com os produtos vendidos em maior quantidade pelos


camels de bailes funk:

Produto %
Balas (Halls) 18,1
Alimentos 16,7
Cerveja 15,3
Chiclete (Trident) 15,3
Bebidas 10,4
Cachorro- Quente 7,8
Churrasquinho 6,9
Hamburger 6,9
Outros 2,8

As Balas Halls so o produto que mais se vende nos bailes. No entanto, esse
gera pouco lucro comparativamente a outros produtos. Alimentos, para a
maioria dos entrevistados, o produto mais rentvel, e o segundo, em termos
de quantidade vendida.

A estimativa de produo de mercado com o trabalho dos MCs de R$717


mil. J os DJs fazem circular nos bailes cerca de R$286 mil, enquanto que as
equipes de som movimentam R$275 mil e os camels produzem um mercado
informal mensal no valor de R$143 mil.

Portanto, como j havia sido mencionado, os MCs so os profissionais que


possuem o maior volume de renda mensal dentre todos os segmentos, dentro
de uma massa salarial total do mercado de funk no Estado do Rio de Janeiro
que gira em torno de R$1,5 milho de reais por ms.

37
II.II O Funk e a Segregao Poltico-Social

Ainda que o funk se apresente como uma alternativa com papel significativo
na economia da periferia no cenrio urbano carioca, a realidade desses
moradores dosubrbio marcada por um diaa dia de pobreza, violncia por
parte do Estado, dificuldade de mobilidade social e pequena influncia nas
engrenagens da poltica nacional.

Ao longo da histria do funk, o ritmo comear a se expandir para alm dos


subrbios da Zona Norte, onde se concentravam os bailes. Atualmente, esse
gnero musical encontra-se amplamente disseminado por todo o Brasil,
perpassando espaos de convvio desde as classes mais baixas at as mais
altas, e tambm espalhadas geograficamente em nossa sociedade.

No entanto, perceptvel ainda sua ntima relao com a populao de


reas pobres do Rio de Janeiro. Em sua essncia, o funk ainda retrata o
cotidiano e a cultura dos habitantes de periferias e reas pobres da cidade. A
realidade explicitada pelo funk a de um pas com pouco acesso
educao, excludo das melhores oportunidades do mercado de trabalho e
do acesso ao consumo.

Com uma linguagem cheia de neologismos e elementos sgnicos alterados,


com criao de dados vocabulares e imagticos prprios e singulares, o
movimento funk revela um lado muitas vezes escondido da nossa sociedade,
a face pobre, esquecida, invisvel nas grandes metrpoles. Essa face pobre do
Brasil revelada pelo funk , justamente, o fator que determina a sua grande
aceitao, muitas vezes propiciada tambm pela prpria ignorncia de
outras possibilidades39.

Portanto, mantendo ainda estrita ligao com a populao negra e trazendo


tona a questo da segregao racial, o funk carioca aponta para os efeitos
de tal apartheid, que se traduzem em desigualdades no somente nas esferas
econmicas e polticas, mas tambm presentes nas estruturas simblicas e

39
Apesar de existirem outros movimentos culturais presentes na realidade dos menos favorecidos, como o samba, o
pagode e a capoeira e outros comuns nesses nichos, de forma geral o acesso a estilos artsticos de fora das
comunidades ainda bastante restrito e excessivamente caro para essas classes, conforme nos contou a
pesquisadora Luciane Soares, em entrevista concedida ao projeto em abril de 2011.
38
ideolgicas com que esses atores tentam enfrentar o antagonismo social
presente em seu dia a dia.

O resultado disso que, apesar de sua disseminao e frequente entrada nas


camadas mais altas da sociedade, existe uma grande discriminao e
preconceito contra o funk, principalmente daqueles ditos formadores de
opinio, dos crticos de arte e dos apreciadores da alta cultura. Na opinio
de Hermano Vianna, nessa referncia estigmatizante que se forma o lao
entre o segmento no branco e pobre da populao, formando o que ele
chama de uma fronteira provisria para esses jovens. O cotidiano das
comunidades passa a ser permeado por essas galeras e grupos, e
consequentemente, por/em suas alianas e laos sociais e articulao entre
os segmentos sociais no espao urbano. a prpria discriminao contra o
funk que fortalece sua simbologia junto s comunidades que o produzem e
que se percebem retratadas nas letras das msicas.

Enquanto isso, do lado de fora dessas comunidades, no que tange mdia de


massa e produo televisiva, de rdio e de mdia impressa, questionvel se
esses grupos ditos minoritrios se vem representados a ponto de poder
configurar nesses espaos, contedos para sua produo identitria. Sabe-se
que, como vetor de informaes e de imagens, a mdia destaca alguns
aspectos em detrimento de outros; manipula dados e reconforma valores, em
um jogo de interesses negociados constantemente.

E, de fato, o funk carioca conseguiu atingir sua notoriedade na mdia nacional


atravs de uma imagem denegrida desde seu surgimento. A explorao de
sua possvel ligao com gangues que promoviam arrastes nas praias
cariocas, no incio dos anos 90, deixou uma marca negativa importante na
cultura do funk carioca. Mostrando jovens em multido que brigavam entre si
e ao mesmo tempo roubavam os pertences das pessoas que utilizavam a
praia carioca como rea de lazer, este fato veiculado na TV a partir do ano
de 1992 inevitavelmente promoveu uma ligao do funk com a exaltao da
violncia e do caos urbano.

39
Desta forma, o tipo de espao concedido cultura dessa classe urbana
pobre e no branca brasileira foi relegado novamente a segundo plano,
revelando a segregao e a estratificao social em mais um de seus
aspectos. A excluso dessas classes de espao para veiculao de sua
cultura na mdia acaba por alimentar empecilhos que impedem o pleno
desenvolvimento da msica afro-brasileira na indstria cultural. A msica
entendida como um dos principais veculos de expresso de identidade, tanto
que a prpria origem do funk nos EUA se deu em razo de uma promoo da
cultura negra naquele pas no incio dos anos 60.

Porm, na realidade brasileira, embora os negros sejam a maioria da


populao, o espao que ocupam na msica ainda restrito muitas vezes ao
ax (msica baiana), ao pagode e ao funk. A sigla MPB Msica Popular
Brasileira nem sempre inclui esses estilos musicais, dando preferncia para
msica produzida e comercializada por brancos. H pouco espao para
msicas cujas razes so oriundas na cultura negra, como o RAP, o Hip Hop, o
funk, o samba e mesmo o jazz.

Dessa forma, torna-se difcil para artistas brasileiros negros se consagrarem


nacionalmente, a no ser na produo de pagode e msica ax. Assistimos a
restrio do acesso aos negros de um livre trnsito em todos os gneros
musicais, sem falar na produo de outras formas de arte. Numa realidade em
que o negro relegado a segundo plano pela mdia, tem pouco acesso
divulgao e explorao irrestrita de seus talentos, e ainda excludo da
ocupao de cargos polticos e administrativos importantes da sociedade40, a
invisibilidade ou projeo de uma imagem negativa do negro demonstra sua
grande segregao social, ainda nos dias atuais.

Tanto que o Estado do Rio de Janeiro acaba de implantar a reserva de


cotas para negros e ndios nos concursos pblicos. O decreto comear a
valer no dia 6 de Julho de 2011, e reservar 20% das vagas nos processos de
seleo para rgos do Poder Executivo e da administrao do Estado. Para
a atual Ministra da Igualdade Racial (em agosto de 2011), Luza Helena Bairros,
espera-se que esse seja apenas o pontap inicial para mobilizao poltica

40
Os nmeros a respeito da presena de negros em cargos de nvel executivo nas maiores companhias brasileiras -
apenas 3,5%, segundo pesquisa do Ibope com o Instituto Ethos em 2008.
40
mais abrangente, instituindo tambm sistema de cotas em setores pblicos e
privado do Brasil inteiro.

O lder de movimento negro, representante do Centro de Articulao de


Populaes Marginalizadas, CEAP, Ivanir dos Santos, avalia que a medida foi
um passo corajoso e ousado, que vem para comear a resolver falhas ainda
da poca da abolio da escravatura no pas:

Se o Brasil tivesse feito a Reforma Agrria, dado educao


para a populao escrava, hoje no estaramos precisando
das cotas. Agora, preciso tomar medidas corajosas para
enfrentar esse problema. No adianta o pas ter uma
economia moderna em crescimento e manter a maioria da
populao fora dessa conquista, afirma a representante do
movimento negro, segundo a qual o sistema de quotas j
chega atrasado, para compensar um histrico de dvidas com
os afrodescendentes. (...) Nas dcadas de 50 e 60 diziam que
os negros no tinham instruo. Ento, a partir dos anos 70,
com universalizao do ensino fundamental, o negro passou a
ter acesso escola pblica. A, ns comeamos a observar
que o problema no era instruo, era a cor da pele. Depois,
disseram que no existia espao no mercado de trabalho
porque faltavam negros capacitados, engenheiros, mdicos,
arquitetos. Com a medida de cotas nas universidades pblicas,
desde 2001, obviamente j temos negros preparados, mas
ainda com dificuldade de entrar no mercado. Temos que
encarar que h racismo no mercado de trabalho e essa
medida vai alavancar as discusses. (...) Mais de 80% da
populao da Bahia so de negros, mas nos cargos pblicos
mais importantes, do judicirio e legislativo, no se v a
presena deles.41

Dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada em 2009


revelam que apesar de a populao negra j ter possivelmente ultrapassado
a branca no pas, a participao do negro em segmentos importantes da
sociedade, ainda mnima. Na poltica no diferente. Desde o incio da
dcada de 80, com o advento do processo de redemocratizao no Brasil, o
pas vem assistindo emergncia de candidaturas negras vencendo corridas
eleitorais para cargos do executivo municipal e estadual. Entretanto,
considerando o tradicional padro de recrutamento poltico-eleitoral
brasileiro, marcado pelo quase monoplio de homens brancos oriundos das
elites, so raros os casos de negros eleitos prefeitos de grandes metrpoles e
governadores de estados. Um negro jamais foi eleito presidente do Brasil.

41
Disponvel em: http://conexaoafro.wordpress.com/2011/06/11/brasil-cria-quotas-mnimas-para-negros-no-acesso-
funo-pblica. Acesso em 24/07/2011.
41
Celso Pitta, eleito em 1996, foi o segundo negro a ser prefeito da cidade de
So Paulo, tendo sido o primeiro cargo ocupado pelo advogado Paulo Lauro,
entre 1947 e 1948. Na regio do ABC Paulista, a Grande So Paulo, onde h
grande concentrao de recursos industriais, a estatstica segue a tendncia
eleitoral que prev brancos eleitos para comandar as prefeituras na regio. No
entanto, a candidatura de negros vem aumentando, e trazendo tona
questes relevantes nesse debate poltico. Em um pas onde h preconceito
racial e h desigualdades sociais causadas por questes raciais, candidaturas
como as de Edvaldo Brito Prefeitura de Salvador, em 1985, pelo PTB-BA; e a
candidatura de Benedita da Silva Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1992, pelo
PT-RJ, possuem um importante papel simblico.

As tentativas dos afrodescendentes em conquistar cargos polticos, parecem


ter sido bloqueadas pelos esteretipos negativos para com o negro, sendo
comum a prpria falta de autoestima. A sua grande desorganizao social e
poltica como classe tambm foi prejudicial neste contexto. Porm, inegvel
que os afrodescendentes exercem, de uma forma ou de outra, poder poltico
na sociedade brasileira. Seja por lideranas negras entre os seus pares, seja no
universo das suas organizaes (comunitrias, religiosas), oriundas de
movimentos sociais urbanos, h uma fora tnica negra que pressiona o
Estado, por estar em contato direto, na presena desses agentes pblicos nas
comunidades e nas favelas.

Atuam ainda que de forma desorganizada, buscando resolver problemas


especficos de suas comunidades, muitas vezes sem levantar a bandeira
tnica como estratgia eleitoral ou sequer considerar como um problema
poltico a questo racial.

Soma-se a isso o fato de que o espao pblico das cidades brasileiras foi
historicamente construdo e ainda sustentado por nossa sociedade
atualmente com rgida excluso de referenciais de representao do negro,
com primazia absoluta do referencial branco, em especial da cultura
europeia. So raros no Brasil os monumentos pblicos referenciando a cultura
negra ou mesmo indgena; esttuas e outras representaes da cultura e da

42
organizao territorial das cidades seguem um modelo ocidentalizado de
conceber a espacialidade.

Os jovens das comunidades tm sua voz no modo de receber essa


configurao de mundo, respondendo nas interaes sociais e culturais como
forma de se fazer presente, e, ao mesmo tempo, delimitar sua inscrio nesse
contexto. Instituindo novas formas de lazer e tambm atuando na
manifestao de resistncia cultural, o movimento funk d voz aos anseios,
lamentos e festejos dos atores urbanos menos favorecidos, criando espaos de
expresso desse povo.

A violncia; a presena conflituosa da polcia e traficantes nas comunidades;


a precariedade do transporte e das condies de moradia; os massacres s
populaes das favelas, tudo isso notrio nas letras de funk, espelhos da
configurao da realidade de seus compositores e atores. At mesmo na
excessiva sensualidade comum dos pornofunk e funk putaria, pode-se
perceber a formao de mecanismo de afirmao de identidade, na busca
de espaos e reivindicaes na sociedade.

Fruto da grande defasagem socioeconmica entre a base da pirmide social


e a classe alta, ocorrida de forma brutal desde o perodo de
redemocratizao na dcada de 80, surgem novos anseios e nova frustrao
na populao jovem negra brasileira, elevando cada vez mais os ndices de
criminalidade entre os negros.

A pesquisadora Adriana Facina discute em seu estudo de ps-doutorado


sobre a Msica e lazer da classe trabalhadora no Rio de Janeiro, realizado
no Departamento de Antropologia da UFRJ entre 2009 e 2010, quem so esses
jovens funqueiros e como se fala coletivamente na cidade do RJ. Com um
trabalho de campo desenvolvido principalmente em bailes de favelas e em
algumas favelas, principalmente no complexo de Acari, Cidade de Deus e na
Rocinha, e no acompanhamento de vrios artistas, DJs e MCs em suas rotinas
de trabalho, a autora defende que esses personagens envolvidos na sua
produo e fruio do funk carioca so hoje alvo do que ela entende como
uma poltica de extermnio.

43
Primeiramente, os dados da violncia armada hoje sobretudo na violncia
do Estado sobre a populao no Brasil mostram que os principais atingidos
por essa violncia tm uma classe social, uma cor e uma faixa etria. E que o
perfil sociolgico da juventude funqueira hoje o mesmo perfil desses que
vm tombando sob a ao do Estado. A pesquisadora relembra a estatstica
segundo a qual, de quase 2 mil mortes cometidas pela polcia da cidade do
Rio de Janeiro em 10 anos, mais de 60% dos atingidos so jovens abaixo de 25
anos, negros, moradores de favelas ou seja, provavelmente muitos deles
funqueiros, sejam produtores, fruidores ou frequentadores de bailes, e nos
conta:

Esse contexto importante, pois nos ajuda a entender muitas


coisas. Muitos estrangeiros chegam aqui pra estudar o funk,
mas no entendem o porqu da perseguio aos funqueiros,
pois muitos chegam justamente pela comercializao do funk
como batida eletrnica brasileira, como msica eletrnica
popular, etc. Mas a compreenso de qual o lugar na nossa
sociedade hoje de quem produz e se identifica com o funk
muito mais do que ir a festas de funk. Quem se expressa de
alguma maneira, seja poltica ou esteticamente atravs desse
gnero, sofre com a implantao de um Modelo de Estado
Penal, a partir dos anos 90. Quando h essa virada na
aplicao de modelos sociais, a criminalizao da pobreza
ganha novos contornos. Nessa poca h o desmonte final do
estado de bem estar social e a sua substituio, em boa parte
do mundo ocidental, pelo que o socilogo francs Lic
Wacquant vai chamar de Estado Penal. Onde as polticas
pblicas voltadas para os de baixo so preponderantemente
polticas de segurana pblica. Diversos estudos nos falam,
sobretudo, dos exemplos francs e estadunidense de
ampliao da populao carcerria, tornando-a a populao
que mais cresce no mundo que no Brasil de 10 anos pra c,
duplicou - e que nos diz muito no nosso tema de pesquisa.42

Relatos demonstram que o convvio dos funqueiros com essa criminalizao


tem efeitos objetivos, materializados na entrada do caveiro43 na favela,
proibio dos bailes, interrupo de vrios bailes a tiros, com destruio de
equipamentos de equipes e arrestamento de laptops de DJs. A autora nos
descreve um caso que acompanhou em uma ida delegacia na tentativa
de recuperar equipamento de DJ, que ilustra muito essa situao:

Um desses casos, por exemplo, de um DJ no Jacarezinho, que


eu acompanhei na delegacia para tentar recuperar o laptop.

42
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de funk carioca, UFRJ, 2011.
43
Caveiro o nome popular do carro de apoio blindado usado pelo batalho de operaes policiais especiais da
Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro em incurses nas favelas na capital fluminense.
44
Quando ele chegou na delegacia, o policial tinha apagado
todas as msicas. Quer dizer, o DJ tinha a Nota Fiscal do laptop,
ento ele conseguiu recuperar o aparelho, mas as msicas
foram apagadas. Simplesmente deletadas. Isso mostra o que
eu falava no inicio: h uma confrontao proposital com essa
cultura porque ela tem muito de uma resistncia. Ento h esse
efeito objetivo da criminalizao, mas tambm os subjetivos,
por exemplo, quem assume que gosta de funk. Dizer no
gosto do proibido... O prprio pessoal que se organizou
politicamente para reivindicar o funk como cultura, que se
organiza agora pelos direitos autorais e que Tambm se
organizou pela queda da lei lvaro Lins, no incio eles tinham
esse discurso. De dizer que o funk estava sendo perseguido por
conta da putaria e das questes da faces. Eu falava: poxa,
essa perseguio comeou desde que o funk entrou na cena,
dede os anos 90, quando no tinha ainda putaria (at tinha,
mas no era como hoje), no tinha proibido, e os bailes
foram fechados 44.

O fato de que a perseguio ao funk no est relacionada ao gnero em si,


mas sim a uma interveno policial e de represso direcionada a
determinados atores sociais, hoje o gnero musical est presente em quase
todo o espao pblico do RJ. Eles esto l, em festas infantis, nas feiras, nos
carros. Ento, como uma msica que to presente, pode ser to produtora
de um estigma? Talvez seja uma represso que se volta ao ator que se
enuncia ali, e no tanto ao que dito.

(...) pois dizer que vai explodir o caveiro, que CV (Comando


Vermelho) vai mandar bala em sei l quem, isso no
nenhuma novidade para quem l Expresso, Meia Hora; para
quem assiste Wagner Montes; os programas policiais da TV; os
famosos favela movies, filmes como Tropa de Elite, que
exploram esse tema ao mximo. Isso tudo est ligado ao
contexto mais amplo de criminalizao da pobreza 45.

Outros defendem que a ao do Estado mais territorial. Alm de buscar


atingir determinados atores sociais, atuam principalmente na sua origem, na
regio onde reside esse alvo. Os bailes, por serem realizados em favelas,
concentrariam dois motivos para a atuao desses modelos sociais da
criminalizao da pobreza e de aplicao do Estado Penal.

Ainda acerca da relao desses jovens com o Estado, a escola uma das
poucas referncias de relao com o Estado que no passa por um vis da
segurana pblica ou da presena da polcia. Ao mesmo tempo, a escola

44
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de funk carioca, UFRJ, 2011
45
Idem.
45
mostra-se esvaziada de significado para esses jovens, pois muitas vezes busca
excluir e no permitir que os elementos do universo funk sejam vividos ou
levados para o espao escolar 46, como pudemos assistir recentemente numa
escola do Esprito Santo, onde o aluno foi brutalmente espancado pelo
professor de artes marciais quando ouvia funk no celular, no horrio do recreio.

Durante o Simpsio de Pesquisadores de funk carioca, realizado na UFRJ,


destacou-se o fato de que esse funk proibido usado como ttulo para
justificar muitos atos violentos contra o movimento funk e seus participantes.
O Presidente da APAFUNK, MC Leonardo, ficou como representante de um
funk crtico e no fala de faco, que ficou sem espao nos bailes o funk
consciente, que constantemente acusado de proibido... Esses rtulos so
fluidos, muitas vezes servem para alcanar muitos agentes.

46
Retirado da notcia do Jornal Hoje, do O Globo, verso online: http://g1.globo.com/jornal-
hoje/noticia/2011/07/adolescente-e-agredido-por-professor-no-patio-da-escola-no-espirito-santo.html acessado em
27/07/2011.
46
II.III: Funk e Religio

Diversos pesquisadores com os quais tive contato ao longo da realizao


deste projeto relataram que, de modo geral, os funqueiros so muito religiosos.
A pesquisadora Adriana Facina, que conviveu com grupos de funqueiros em
toda a cidade do Rio de Janeiro, afirmou em sua fala no Simpsio de
Pesquisadores de Funk Carioca: no encontrei nenhum funqueiro ateu at
hoje.

Um elemento interessante dentro dessa anlise que a gerao mais antiga


de funqueiros, ainda nos anos 90, mantinha uma relao muito estreita com
cultos afro- -brasileiros, sendo que muitos desses MCs e DJs dessa poca
pertencem (ou pertenciam) ao Candombl e Umbanda.

Na novas geraes, no entanto, essa identificao direta com as religies de


origem afro-brasileira rara. A maioria dos jovens e adultos dessa gerao
mais recente do funk so ligados s religies evanglicas, ou afirmam no ter
uma religio definida (se dizem pertencentes a Jesus, mas no a uma igreja
especfica). Porm, estudiosos do ritmo funk atual encontram ali fortes
elementos das batidas de pontos de macumba, na forma de danar e na
memria corporal desses danantes:

(...) ento, muitas vezes, as batidas lembram um ponto da


macumba, e eles negam, dizem que cantam para Jesus, mas
o batido est l, inscrito, na sua memria corporal, na sua
memria esttica, e no final esto danando ainda que sem
saber, sobre o ritmo dos pontos de macumba.47

De uma forma ou de outra, a ligao entre o funk e a religio pode ser


notada atravs da forte presena do funk gospel ou funk de louvor,
gnero que tem sido identificado como um dos mais impressionantes
fenmenos da msica funk recente, e apontado como uma das fatias de
mercado que mais crescem dentro do funk 48.

47
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, Maio de
2011.
48
Fala de Silvio Essinger. Palestra gravada durante o Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, Maio de
2011.

47
Presente em dinmicas religiosas junto ao grupo juvenil, a existncia de
msicas religiosas ao ritmo de funk circulando no meio evanglico e fora dele
expressiva. A forma como o funk tem sido apropriado e transformado em um
potente meio de converso e celebrao religiosa, gerou (e ainda gera)
bastante polmica, devido ao mau legado deixado pelo funk nos anos 90
(quando o movimento foi associado aos arrastes nas praias cariocas e foi
alvo de uma lei que proibia a realizao dos bailes). Para muitos, o funk goza
de reconhecimento negativo na cidade do Rio de Janeiro, o que, a princpio,
tornaria o movimento incompatvel com as crenas dos evanglicos.

De fato, possvel encontrar comentrios na internet, oriundos de praticantes


de religies ligadas ao cristianismo, afirmando que a utilizao do ritmo funk
para fins religiosos e de pregao demonstra uma banalizao da palavra de
Deus e da cultura crist como um todo:

(...) Qual a diferena ento se voc danar um funk gospel e


um que no seja? Como seria o funk sem o rebolado, sem ficar
chacoalhando o quadril, para no dizer outra coisa? Esse o
movimento caracterstico dessa dana. Se voc tirar ele, ento
no funk. E quanto ao tango, basta ver um casal danando
para dizer se d para no ser sensual. Por que ser que nada
criado dentro da Igreja para influenciar o Mundo? Eu acredito
que tais coisas acontenam por que a pessoa, quando se
"converte", quer carregar para dentro da Igreja suas
preferncias e costumes, e com certeza a maioria no est
disposta a se ajustar Igreja. o que est acontecendo com a
Igreja Catlica. As pessoas se dizem catlicas mas no
aceitam o que a igreja prega. Querem que a Igreja se ajuste a
elas. Como possvel num lugar de reverncia a Deus estar
danando de forma que nada alm do ritmo e da diverso
importante? A letra o de menos. E isso acontece no s com
o funk. Quantas letras de tudo quanto ritmo, no trazem
nada de bom para o ouvinte? No se aprende sobre Deus, seu
amor, salvao. S falam o que as pessoas querem ouvir.
Receba, tome posse, e se divirta danando. Isso s
necessrio em muitas igrejas pelo fato de no haver pessoas
realmente convertidas, que s permanecem na Igreja se tiver
divertido para fazer. Ningum est disposto a carregar a cruz,
queremos diverso. Vamos danar, qualquer que seja o ritmo,
mesmo que seja lascivo, sensual (no diga que d para
danar funk sem ser sensual, no tem como, voc de um jeito
ou de outro vai rebolar, etc e tal). Infelizmente esse o
evangelho que tem sido propagado no nosso mundo. No se
ganha mais pessoas para Cristo pelo o que Ele , mas sim pelo
que a Igreja pode oferecer de entretenimento. Fazer o qu!!! 49

49
Dmiranda no site da SEPAL, SErvindo a PAstores e Lderes. Disponvel em: http://www.lideranca.org. Acesso em
22/07/2011.
48
Entretanto, o trabalho dos agentes religiosos parece compreender justamente
o fato de o funk possuir forte carter negativo, tanto em seu passado como
em sua atual ligao com uso de drogas, abuso de lcool e sexualidade
exacerbada praticada nos bailes. Para os cantores de funk gospel, o funk est
ligado ao incentivo de atos violentos, incitao dos sentidos e alterao da
conscincia. Mas exatamente por possuir essas caractersticas que o gnero
musical tem sido recuperado, adaptado e utilizado como instrumento de
evangelizao entre seus ouvintes e interessados nesse gnero musical.
Seja pelo poder atribudo ao som, seja pela penetrao em grupos juvenis
urbanos encontrados em clubes e quadras localizadas em bairros e em
comunidades, o funk se revela um eficaz instrumento de converso e de
atuao. Para os cantores, membros e lderes religiosos, a msica um
eficiente modo de transformao. Eles atribuem ao som a habilidade de
modificar a disposio dos ouvintes, conduzindo-os coletivamente a atos de
purificao e exerccios de f, estimulados pelas letras de teor religioso e pelas
batidas danantes.

As msicas surgem atravs de processos de verso de canes produzidas por


artistas no ligados a religio, que, aps submetidas ao exerccio de
transcrio, recebem letras cujas palavras veiculam mensagens como o
poder divino e a guerra contra o mal que nesse contexto entendido como
o uso de drogas e lcool; o abandono de crianas; o envolvimento com a
criminalidade e a prtica de sexo fora do casamento.

Um exemplo desse processo de verso ocorre com o funk gospel Toque do


Irmo, no qual o MC Luizinho utiliza a base de ritmo do funk "Cerol na Mo",
do Bonde do Tigro, para compor este funk com mensagem religiosa:

Quer orar? Quer orar?


O irmo vai te ensinar!
Quer orar? Quer orar?
O irmo vai te ensinar!

Se entregue de corao,
Assim, assim,
Com jejum e orao,
Assim, assim.

Agradea toda hora


Assim, assim.

49
Fique firme at o fim
Assim, assim.

Se entregue de corao,
Com jejum e orao,
S Deus a soluo,
Porque a Terra, a Terra,
Vive na perdio.
Levante a mozinha,
Pela salvao,
o toque do irmo!

Em depoimentos a pesquisadores, os cantores revelam que se apresentam em


programas de televiso, em praas pblicas e, sobretudo, em bailes, incluindo
aqueles organizados pelas grandes equipes de som, como a Furaco 2000.
Assim, relatam poder contar com o pblico normal das equipes de som que
promovem os bailes funk, acrescido ainda dos fiis da igreja. Ou seja, esse tipo
de evento objetiva atingir pblico constitudo por evanglicos ou no, a fim de
aumentar o nmero de fiis a cada apresentao.

A cultura do funk gospel enfatiza uma proposta de evangelizao, com a


assimilao de uma expresso musical considerada adequada para penetrar
em determinados grupos, com o intuito de veicular a mensagem de
salvao. Uma dupla salvao perpassa as letras dessas msicas, convidando
a uma vida prxima a Deus e longe das drogas e da violncia.

Frequentemente, os prprios pastores promovem "bailes evanglicos" ou


"festas gospel" no Rio de Janeiro, eventos de carter itinerante, contemplando
verses de msicas nacionais e norte-americanas e tambm msicas
originalmente compostas para este tipo de veiculao de mensagem
evanglica.

Esses eventos renem participantes de diversas partes da cidade e so


compostos por diversos momentos (jogos, orao, brincadeiras e dana, por
exemplo), numa festa ou rito de orao que busca aliar entretenimento e
religio. De forma menos evidente, essas letras de funk tambm conseguem
tocar em questes sociais e polticas, como a desigualdade scioeconmica
enfrentada pelos moradores das regies mais pobres, o preconceito racial e o

50
lugar destinado aos negros na sociedade brasileira.

Sobre as canes vinculadas ao meio evanglico, incide a cobrana de


direitos autorais, j que o ECAD - Escritrio de Arrecadao de Direitos Autorais
no faz distino entre as modalidades musicais e, portanto, abrange as
execues realizadas por diversos meios.

Seguem abaixo exemplos de msicas compostas originalmente para fins


ligados manifestao da religiosidade de seu pblico:

Pras irm e pros irmo


Que curte o som pancado
Eu mando asssim :
Vem pro gospel funk
Pra se divertir
Com Jesus no corao
Voc vai ser feliz
ento, vem pro gospel funk
Pra se divertir
Com Jesus no corao
Voc vai ser feliz
ento pula e agora dana
A juventude, os adultos,
os coroa e as crianas,
ento pula e agora dana
A juventude, os adultos,
os coroa e as crianas,
ento pula e agora dana
A juventude, os adultos,
os coroa e as crianas,
a juventude, os adultos,
os coroa e as crianas,
vem pro gospel funk
pra se divertir...

(Vem Pro Gospel Funk, de Adriano Gospel Funk)

O inimigo derrotado, e o nosso


bonde vencedor, vencedor
E protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

O inimigo derrotado, e o bonde


vencedor, vencedor
Protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

E o bonde agora se refez, diferente


dessa vez

51
Traz ideia positiva para sarar todos
vocs
Pois dez anos se passaram e muitos de
nossos irmos
Esto perdidos no mundo e sem f na
salvao
Nosso bonde foi curado, nossa sorte
ento mudou,
Somos livres do pecado e Deus nos
abenoou
Hoje sou capacitado tenho f no meu
Senhor
Ele pega o fracassado e transforma em
vencedor

O inimigo derrotado, e bonde


vencedor, vencedor
Protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

O inimigo derrotado, e o bonde


vencedor, vencedor
Protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

E eu fao parte desse bonde, eu sou


funqueiro adorador
Me revisto da armadura dada por nosso
Senhor
Vou pra guerra protegido nessa luta
contra o mal
Vou orando e jejuando na guerra
espiritual
E a vitria desse bonde est em nome
de Jesus
Pois ele cobre com o seu manto, ilumina
com essa luz
Eu me inspiro na bondade, na justia e
no amor
Eu sou Dudu, eu sou Ded e o nosso
bonde vencedor

O inimigo derrotado, e o bonde


vencedor, vencedor
E protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

O inimigo derrotado, e o bonde


vencedor, vencedor
Protegido contra toda a obra do
devorador, sou vencedor

(Nosso Bonde Vencedor, da Tribo do Funk)

A pesquisadora Mylene Mizrahi acompanhou a rotina do MC Mr. Catra, um


caso singular de cantor e compositor de funk que rene em seu repertrio de

52
show a conexo de trs crculos geralmente isolados no universo do funk
carioca: um primeiro religioso, um segundo que lida com questes sobre
sexualidade e erotismo e, ainda, um terceiro, que gira em torno do consumo
de drogas ilcitas, mais nomeadamente a maconha.

Assim, o artista produz uma narrativa que tematiza a religiosidade em um


contexto artstico tradicionalmente associado ao ertico e violncia, e o faz
mantendo variadas caractersticas que ilustram de forma direta uma
cosmologia funk, presente em seu modo de se vestir, por exemplo.

A pesquisadora afirma que essa uma posio bastante nica do Mr. Catra,
no comum a outros MCs. Em contextos exteriores s suas apresentaes, no
discurso articulado em torno da religio predomina o posicionamento poltico
de Mr. Catra face ao mundo envolvente, posicionamento que tende a
expressar, atravs de suas reivindicaes, o ponto de vista da prpria
juventude favelada, principais criadores e consumidores do ritmo musical aqui
em questo.

Entretanto, em contextos performticos, mais do que a religio, o MC se utiliza


da ironia como elemento de potencial uso poltico; atravs do riso, o artista e
seu pblico desafiam e se defendem da autoridade opressora. Ainda em suas
performances, Mr. Catra faz questo de estruturar as apresentaes de modo
a contemplar a convivncia peculiar dos trs discursos - religiosidade,
sexualidade e ilegalidade - em planos superpostos de forma no
hierarquizada.

Conforme afirma a pesquisadora, o MC geralmente abre seus shows cantando


o refro de louvor, O Senhor meu pastor / e nada me faltar!. Esse refro
surge acompanhando de uma batida de funk, executada pelo DJ Edgar em
uma bateria eletrnica, sendo que a primeira frase entoada por Mr. Catra, e
a segunda acompanhada pela batida e pela voz do pblico, em resposta
ao MC. Em seguida cantado um trecho da cano Minha Faco:

Minha faco
o bonde de Deus
j fui ladro
e conheo o breu.

53
Se liga rapaziada
essa que a parada
Catra, o fiel
sinistro da Baixada

Catra, o fiel
sinistro da Baixada
Catra, o fiel
maluco pode cr
minha faco
fortalece voc

S no vale corr
vem represent
se ajoelhou
mano, vai ter que or

Humilde e sinistro
representao
a minha faco
fortalece voc

Eu est ligeiro
sempre atento e esperto
se ajoelhar
tem que fechar com o certo.

Em seguida a essa cano, o MC dirige-se ao DJ Edgar, com are


concomitantemente solene e jocoso, gradativamente assumindo ares
imperativos: DJ Edgar, por favor, que soem as trombetas da putaria! Nas
palavras da pesquisadora:
Um som de trombetas invade o espao, acompanhado do
que seria o rudo do galopar de cavalos. Em seguida o MC,
usando a potncia de sua voz, anuncia: Vai comear a
putaria!. Mr. Catra executa ento diversas canes erticas,
que costumeiramente falam das benesses do sexo oral ou da
troca sexual com vrias e simultneas mulheres. (...) este
momento propiciava a oportunidade para que muitas moas
da platia subissem ao palco. Participavam da performance,
danando, estimuladas pelo MC atravs das prprias
canes. 50

E, nesse mesmo contexto de show, a prxima msica entra logo em seguida s


trombetas, j fazendo claras referncias ao universo sexualizado do funk:

Ah...
Vem! Mariana, Juliana, Marieta, Julieta
Vem Aline, Yasmine, Jaqueline
Vem Andria, vem Lucia

50
MIZRAHI, Funk, religio e ironia no mundo de Mr. Catra In: Religio e Sociedadep.118.
54
Vem Iara, vem Jussara,
Vem todo mundo!!!

Vem todo mundo!


Ah, vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Ah, vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Pra!

S no vem aquela que fala demais


T ligado?
Aquela que fala demais pode ficar l

Fica l minha filha


Saia da janela
V se tu se toca
Mulher de verdade
Gosta mesmo de piroca

Ento...
Ah vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Ah vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem nhanha

Ela foi na minha casa


Tirar o meu sossego
Ficou cheia de marra
Depois pediu arrgo
Tremeu de perna bamba
Quando sentiu meu instrumento
Quero ver tu rebol
Ha ha! Com tudo dentro
Eu quero ver tu rebol
Ha ha! Com tudo dentro

(Vem Todo Mundo, de autoria de Mr. Catra).

Em seguida, Mr. Catra se volta para a plateia e afirma que quer ouvir o grito
dos maconheiros. O pblico responde ao MC com gritos e levantes de
isqueiros. Nesse instante pode-se ouvir ao fundo trechos de msicas de Bob
Marley. O MC faz uma pequena homenagem a esse compositor pelo uso que
faz da maconha, cita tambm outros msicos como Marcelo D2, e festeja a
todos os maconheiros presentes!51

Na sequncia, interpretado um trecho da cano Bonde dos


Maconheiros.
51
Entrevista de Mylene Mizhari, concedida ao projeto em maio de 2011.
55
, , , ,
Cad o isqueiro?
Demor, form
O bonde dos maconheiros
No fume cigarro...
No beba usque...

Ao finalizar sua apresentao, Mr. Catra retorna ao tema religioso, e grita: Pra
finalizar do jeito certo. Pode acreditar!, e canta: O Senhor meu pastor, e
nada me faltar!. Pode ainda pedir palmas pra quem verdadeiramente
merece e encerrar desejando que Deus ilumine vocs.

Como Mizrahi (2010) mostra, so casos como o de MC Mr. Catra, que


demonstram a complexidade de representaes includas no universo do funk
carioca. Esse ator famoso e respeitado dentro dos bailes funk, detentor de
grande sucesso de pblico e financeiro, parece conseguir cultivar seu pblico
atravs de uma ambiguidade e multifacetamento caractersticos mesmo da
ps-modernidade, desafiando o antroplogo ou estudioso de qualquer rea
que esteja a esquematizar sua anlise atravs de categorias fechadas.

Em MC Mr. Catra, as oposies asfalto e morro, religio e prazer, certo e


errado, parecem abandonar o lugar dualista que engendrou o pensamento
moderno, transformando-se em elementos vivos e interdependentes, cujas
fronteiras so delimitadas por contornos sutis, muitas vezes inexistentes. Nesse
sentido, o funk e sua utilizao em contextos de religio afirma, mais uma vez,
seu papel de sintoma a espelhar uma sociedade onde parmetros fixos se
desfazem, dando lugar a sistemas de convivncia instveis.

56
II.IV Funk Proibido e Putaria: questes jurdicas e de gnero

Desde seu surgimento, e perpassando toda a sua histria no Brasil, o funk


carioca vem sendo identificado ou relacionado ao mundo do crime, em
especial ao trfico nas favelas do Rio de Janeiro. A primeira grande notcia na
mdia brasileira acerca do funk surgiu no incio dos anos 90, quando gangues
de arrastes nas praias do Rio de Janeiro foram ligadas aos jovens pobres,
moradores da Zona Oeste do Rio, que aos finais de semana frequentavam
bailes funk.

Tal fato obteve intensa repercusso nos meios de comunicao na poca,


fazendo com que o policiamento fosse reforado nesses locais, muitas vezes
de forma abusiva, e quase sempre acarretando confrontos entre galeras e
policiais. Nesses termos, simples compreender como o universo do funk
carioca foi se tornando cada vez mais inseparvel do contexto das favelas, e
o funqueiro sendo identificado ao criminoso, ao traficante, ao causador de
desordem urbana.

Uma matria jornalstica publicada em 1995 no Editorial denominado


Juventude Transviada, pelo Jornal do Brasil, nos mostra como essa
associao era feita na poca:
(...) O mundo funk agasalha em seu espao paus, pedras e
armas de fogo. Grupos de jovens, em busca de divertimento,
espalham muito mais terror do que alegria. Transformou-se num
ritual de vida e morte. (...) No h distino entre funk, favela e
trfico de drogas no Rio.(...)52
Atualmente, sabemos que nem todo funqueiro est ligado criminalidade e
que nem todo baile funk financiado pelos comandantes do trfico de
drogas carioca. Porm, esses personagens continuam presentes nas letras de
funk, que abordam o universo dos atos ilcitos de duas formas essenciais.

A primeira, retratado no cotidiano do favelado: as letras das msicas trazem


tona figuras e fatos peculiares desse espao urbano e, assim como a pobreza,
falta de perspectiva do morador do subrbio e as dificuldades em se viver
nesse contexto so comumente tratadas nas letras, tambm aparecem
52
Juventude Transviada, Editorial do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 5 de junho de 1995, p. 11. apud Herschmann,
2000, p. 92.

57
personagens presentes nessa realidade, entre eles o traficante, assim como o
policial corrupto, o trabalhador pobre, etc.

E a segunda forma, atravs do surgimento de um subgnero dentro do funk


carioca que se dedica exclusivamente ao tema do crime, fazendo do trfico
seu principal material narrativo. Uma consequncia dessa proximidade
histrica entre o funk e o universo do crime nas favelas, o crime organizado
passou a manter um alinhamento ideolgico com a esttica do funk,
resultando no subgnero funk de faco ou funk proibido.

A primeira vez em que ouvi um funk proibido foi no ano de 2005, em que
trabalhei como tradutora junto a artistas oriundos de favelas cariocas que
estavam realizando workshops e shows de msica em toda a Inglaterra.
Tratava-se um projeto de artes possibilitado pela juno entre a ONG carioca
AffroReggae e a produtora cultural PPP (Peoples Palace Projects), dirigido por
Paul Heritage, que foi meu orientador de Mestrado em Artes, na Queen Marys
University of London, em Londres. Eram todos rapazes e moas livres de
envolvimento com drogas e lcool, muito inteligentes e instrudos. Eu os
acompanhava na maior parte do tempo, tanto nas atividades de trabalho
quanto nas de lazer, pois no dominavam o idioma ingls, e assim acabei
criando amizade e me tornando muito prxima de vrios desses artistas e
oficineiros das reas de teatro, circo, percusso e msica.

At que um dia, j passado quase um ms de trabalho dirio em solo ingls e


bastante intimidade e confiana entre todos ns do grupo, dentro da van, no
trajeto entre um workshop e outro, um deles me disse: Saca a! proibido
quente, acabou de sair! Com um ar de mistrio, colocou um fone de ouvido
em minha orelha e me olhava, como que a esperar alguma palavra de
reprovao ou louvor.

Eu s ouvia, prestando ateno nas letras, que citavam nomes de armas,


traficantes de drogas e grifes de marca, alm de mencionar tambm vrias
siglas, como CV (Comando Vermelho) e TC (Terceiro Comando), entre outros.
Aquele acontecimento instigou minha curiosidade acerca do funk proibido
e, mais tarde, perguntando sobre o por qu dessa denominao, me

58
responderam que essa tinha origem na proibio de sua venda por
ambulantes no centro da cidade, sob alegao de agentes pblicos de que
esse tipo de msica fazia apologia ao narcotrfico.

Segundo informam, a primeira apreenso de CDs de funk proibido ocorreu


no incio dos anos 2000, e foram, desde ento, negociados diretamente entre
cliente e camel, por encomenda e s escondidas, j que esse produto
passou a ser, definitivamente, uma mercadoria ilegal, dando origem ao seu
ttulo.

Ainda sobre o nome dado a esse subgnero, estudiosos entendem que o


aumentativo presente na nomenclatura proibido pode ser entendido tanto
como um reforo sua ligao com o banditismo, quanto como uma
expresso que faz ironia sobre a repercusso que a venda de CDs de
baixssima qualidade tcnica, gravado de forma caseira, possa ter adquirido
dentro dos meios de comunicao e de mdia nacionais.

Ao homenagear traficantes, celebrar publicamente acontecimentos como


tomada de bocas-de-fumo e morte de traficantes de faces inimigas dentro
da favela, por louvar o trfico de drogas e os bens que se pode consumir com
os altos lucros supostamente atingidos atravs da comercializao ilegal de
entorpecentes, o contedo encontrado em letras de funk proibido revelam
o motivo pelo qual a comercializao desses CDs considerada ilegal:

Alemo, tu passa mal porque o


Comando Vermelho
Vermelho-o!
o bonde do Salgueiro que s tem
destruidor
Vermelho-o!
O Comando Comando e o Comando
o Comando
Vermelho-o!
Esse o ritmo se liga sangue-bom

Mas pra voc formar com o bonde tem


que ter disposio
Porque de dia e de noite pode crer, a
chapa quente
melhor pensar direito se tu quer formar
com a gente

Na alta da madrugada o bonde j t


59
formado
Tem o p de cinco na boca de Nono

O Arlindo, p de trs com o seu fuzil na


mo
Rogrio j t ligado leva o toque pro
patro
E pra todos vacilo, eu s quero te
lembrar
Que o Mrcio sangue-bom mas se
amarra em quebrar

amigo dos amigos sem cobrir


vacilao
Se tiver parada errada matar a
soluo
Quando os bucha sobe a gente bota
pra descer
T dizendo, seus otrio bota a cara pra
morrer
Vou te dar uma idia pra tu no ficar
de touca
Se voc sangue-ruim melhor falar de
amor.

(Faixa Vermelho, do CD G3 e Amigos,)

A apologia ao crime est tipificada nos Artigos 286 a 288 do Cdigo Penal
Brasileiro, e para muitos legalistas, no contedo desse estilo de funk a apologia
est configurada.

H, entretanto, outras posies que enxergam tal proibio como violao ao


Direito Constitucional Liberdade de Expresso. Com a priso recente
(dezembro de 2010) de MCs acusados de cantar funks proibidos, tem havido
uma tentativa de tirar a questo do mbito da apologia ao crime. H um
grupo de juristas, entre eles os integrantes do movimento DIREITO PARA
QUEM?53 que defende que tratar o caso como apologia ao crime uma
prtica inconstitucional, pois gera um cerceamento da liberdade de
expresso desses cidados cuja realidade se reflete nessas letras.

Juridicamente discutvel, a questo da priso de MCs envolvidos em funks


proibidos gerou um apelo pelo direito desses artistas, no somente pelo direito
de dizer o que dito, independentemente de seu contedo, mas tambm a
discusso de seus direitos como criadores; seus direitos de autores como um

53
O Movimento "DPQ - DIREITO PARA QUEM?" um coletivo de militantes que luta pelos direitos humanos sob uma
perspectiva de emancipao da classe trabalhadora. Disponvel em http://direitopraquem.blogspot.com. Acesso em 25
de junho de 2011
60
todo.

Tal discusso gerou o lanamento, em janeiro de 2010, da Cartilha de Direitos


Autorais para MCs: Liberta o Pancado Manual de Defesa do Artista Funk54.
A cartilha foi elaborada como fruto da parceria entre o movimento DIREITO
PARA QUEM? e a APAFUNK - Associao dos Profissionais e Amigos do Funk,
alm de outros colaboradores.

Feita a partir de desenhos e linguagem acessvel a seu pblico, a cartilha


revela um deslocamento da preocupao jurdica com o compositor e os
demais autores envolvidos no processo de criao de msicas funk: de
contraventor a criador, o debate atual gira muito mais em torno de uma
proteo liberdade de expresso e dos direitos de autor do funqueiro do
que o teor das letras que canta.

A relao entre funk e a lei tem sido conturbada h bastante tempo.


Conforme se demonstrou no Captulo I, os bailes j foram proibidos legalmente
(a famosa Lei lvaro Lins, que leva o nome de seu autor, o deputado que teve
seu mandato caado pela ALERJ - Assemblia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro), para depois serem novamente permitidos e at mesmo protegidos
como bem cultural, sendo decretado como Patrimnio do Estado do Rio de
Janeiro. O funk proibido tambm viveu dias de maior perseguio por
apologia ao trfico, sendo notvel um desvio recente dessa discusso para a
questo da liberdade de expresso. A prpria profisso do DJ no est
regulamentada em lei, fazendo com que esse seja um profissional invisvel no
marcado de trabalho.

Eles foram excludos das leis dos msicos e dos artistas, respectivamente Lei
3.857/60 e Lei 6.533/78; os DJs e MCs no possuem categoria prpria na CBO
Classificao Brasileira de Ocupao. Sem reconhecimento pelo
ordenamento jurdico, os DJs enfrentam um cotidiano problemtico, lanados
no mercado da indstria do entretenimento sem as protees e garantias
especficas. Os dois Projetos de Lei que pretenderam regulamentar a profisso
(PL n. 2.631/07, do Deputado Brizola Neto, e o PL n. 740/07, do Senador Romeu

54
A cartilha pode ser baixada gratuitamente, no link http://direitopraquem.blogspot.com/2010/01/cartilha-de-direitos-
autorais-para-mcs.html. Acesso em 25 de junho de 2011.
61
Tuma) no se transformaram em lei, mantendo esses profissionais invisveis
perante o ordenamento jurdico e suas atividades e criaes carentes de
proteo legal55.

Se o DJ encontra-se invisvel no sistema legal brasileiro, a questo especfica


do funk proibido ou de faco demonstra que essa invisibilidade tambm
notada no espao social e artstico ocupado pelos que o produzem. A
realidade de discriminao social e do mercado da msica, aliada ao
cotidiano de violncia a que esto submetidos pode ser uma explicao
aderncia ao funk de faco. A forma de buscar visibilidade e assim, delimitar
uma identidade ou identificao com seus pares, pode ser uma das vias de
impulso para a criao de funks proibidos. O pesquisador e msico Rodrigo
Russano estudou o funk proibido a fundo, e nos afirma que:

No momento em que um funk proibido executado, expe-


se uma realidade contrastante com a do habitante do asfalto.
Quando esse choque de realidades acontece, cria-se o medo.
E essa capacidade de gerar a sensao de medo usada de
formas diferentes pelos vrios atores envolvidos no mundo do
Proibido. O jovem favelado que frequenta o baile em sua
comunidade ostenta este tipo de msica como um instrumento
de visibilidade social, ainda que esta custe o medo de outros
setores da sociedade.56

O pesquisador conclui, ao longo de sua investigao, que o brasileiro no-


branco, morador de favelas, faz-se visvel na sociedade como um todo
atravs de uma representao de perigo, uma mscara aterrorizadora que
impe sua presena. Ao nos lembrarmos do lugar do negro na sociedade
desde o contexto da escravatura, em que a presena do negro era tolerada
graas sua representao como bobo e engraado57, no to difcil
entender que nas grandes cidades essa representao tenha sido substituda

55
Em 2009, a senadora Rosalba Ciarlini foi relatora do parecer em que a Comisso de Educao, Cultura e Esporte,
votou pela aprovao da Lei do Senado n. 740 de 2007 na forma de um substitutivo. Isso implica que as categorias DJ
e Produtor DJ passariam a ser abarcadas pela Lei dos Artistas do ano de 1978, que reconhece as atividades dos
Artistas e Tcnicos e Espetculos. Naquela poca, os DJs brasileiros no tinham a visibilidade que hoje possuem, por
isso no eram citados. O relator da Comisso de Assuntos Sociais, senador Wellington Salgado de Oliveira, concedeu
em abril de 2010, minuta de parecer pela aprovao do PL tambm na forma de substitutivo. Em novembro de 2010, a
Comisso de Constituio e Justia e de Cidadania aprovou a Redao Final por Unanimidade, sendo essa a ltima
ao legislativa nesse Projeto de Lei. No momento, agosto de 2011, o processo aguarda apreciao do Veto na Mesa
Diretora da Cmara dos Deputados Federais, conforme consulta ao site
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=466336. Acesso em 25/07/2010.
56
RUSSANO, Rodrigo. Bota o fuzil pra cantar! O funk proibido no Rio de Janeiro, dissertao de mestrado
apresendada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2006, pag. 38.
57
MOURA, Christian Fernando. O Teatro Experimental do Negro Estudo da personagem negra em duas peas
encenadas, dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da UNESP Universidade
Estadual Paulista, 2008.p.12.
62
pela encarnao da violncia, do perigo e da maldade.

Socilogos j afirmaram que smbolos podem traduzir informaes sociais de


modo a confirmar aquilo que outros signos demonstram sobre os indivduos,
reafirmando estigmas ou preconceitos.58 Conceitos acerca da favela (local
onde moram bandidos, de onde todo o crime urbano emana) se tornaram
lugar-comum no imaginrio popular e, nesse contexto, o funk proibido
passa a ser simblico de um estigma, ostentado como smbolo de fora e
perigo por esses atores sociais.

Porm, junto ao mercado fonogrfico, esse smbolo no consegue sequer


adentrar. Seja devido ligao do funk proibido com a alegao de
apologia ao crime, seja por sua posterior proibio de venda e causa de
priso de MCs e DJs, as gravadoras exigem verses limpas. Outros tipos de
funk demonstram-se muito mais lucrativos nesse sentido para os MCs e DJs,
possibilitando a entrada em um mercado cenrio artstico oficial.

Em alguns dos CDs analisados em estudos recentes, possvel perceber que os


MCs misturam, entre os funks proibidos, algumas faixas cujo teor no possui
ligao alguma com crime ou violncia, demonstrando para alguns o desejo
de sair da marginalidade e mostrar trabalhos que possam lhes render a
entrada no mercado da grande mdia. Um exemplo desse acontecimento o
CD da MC Sabrina, artista notoriamente conhecida por seus hits de cunho
proibido. Em seu CD, vendido por encomenda nos camels do Rio sob o
gnero do funk proibido, h pelos menos outras 4 msicas cujas letras so
similares a essa abaixo:

Baby, o que voc quiser eu quero


Tudo o que voc pedir eu dou
Fao tudo pelo seu carinho
Deixa eu te mostrar quem sou
Dessa vez eu vou te conquistar
Se eu te perder meu corao no vai
soltar [?]
J t sabendo que voc t sem
ningum

58
A informao social transmitida por qualquer smbolo particular pode simplesmente confirmar aquilo que outros
signos nos dizem sobre o indivduo, completando a imagem de dele de forma redundante e segura. Exemplos disso
so os distintivos na lapela que atestam a participao em um clube social (...) Smbolos de prestgio podem ser
contrapostos a smbolos de estigma, ou seja, signos que so especialmente efetivos para despertar a ateno sobre
uma degradante discrepncia de identidade que quebra o que poderia, de outra forma, ser um retrato global coerente,
com uma reduo consequente em nossa valorizao do indivduo. In: GOFFMAN, Contracultura Atravs dos tempos,
p.53.
63
Que terminou o seu romance outra vez
T vendo quanto tempo a gente j
perdeu?
J te falei: ningum te quer mais do que
eu.

(Faixa 1 do CD MC Sabrina, produzido


domesticamente e edquirido em camel)

Longe dos microfones, muitos desses artistas chegam a negar seu


envolvimento com o funk de faco para no terem seus nomes sujos, e
assim poderem se valer das benesses de um sistema de circulao de bens de
entretenimento no qual a exposio na mdia, apario em programas de TV,
realizao de turns nacionais e a possibilidade de se apresentar em eventos
dentro e fora do pas mais facilitada. Mas ento por que ainda cantam
funk?

H pessoas que ligam esse aspecto proibido ao fator adrenalina59 que o


consumo deste tipo de msica promove. Em tais discursos, pode-se aproximar
o funk proibido aos esportes radicais. Outros apresentam a hiptese de o
contedo das letras e a postura dos envolvidos no funk proibido ilustrarem
o papel social do bandido romntico: uma espcie de Robin Hood, figura
que encontra representao muito forte nas letras e no discurso do funk de
faco.

De fato, lderes do trfico agenciam os morros de forma muito ativa e so


considerados por muitos um poder paralelo ao Estado, sendo tanto ou mais
respeitados que os agentes pblicos oficiais. Nesse sentido, o funk proibido
comumente comparado ao gangsta rap dos Estados Unidos, aos
narcocorridos do Mxico e s narcocumbias do Chile, todas elas
manifestaes musicais de ode funcionrios do trfico. H tambm registros
de que a Mfia Italiana tambm recebesse homenagens em forma de msica
no incio do sculo XX, marcando que esse tipo de elogio musical a criminosos
relativamente comum em diversas culturas.
A pedido dos lderes do trfico, cantores gravam msicas que, em seguida, se
transformam em grandes sucessos. MC Duda faz um relato, que consta no livro
de Essinger, em que se manifesta essa situao:

59
Entrevista com MC Leonardo: O funk democrtico e, por isso, perigoso. Disponvel em:
http://apafunk.blogspot.com/2011/02/o-funk-e-democratico-e-por-isso.html. Acesso em 25/07/2011.
64
"A gente mora dentro de uma comunidade, e qual a
comunidade hoje em dia que no rola trfico? Eu moro na
comunidade, e dentro dela tem aquele lder. O cara escreveu
uma letra em cima da nossa e perguntou se dava para a
gente gravar, e a gravamos. No foi uma coisa forada, foi um
pedido. A gente respeitava eles, respeita at hoje.60

Herschmann61 apresenta ainda outra possvel origem para que artistas


continuem aderindo aos temas do proibido, ao afirmar a violncia e a
competio como elementos fundadores e estruturadores na sociabilidade
juvenil de forma geral. Assim, os jovens pobres das cidades brasileiras, ao
estarem envoltos no universo do funk e terem nessa manifestao sua principal
opo de lazer, extravasam esses elementos de sociabilidade (violncia e
competio) nos bailes.

A constante ligao entre favela e mundo do crime desencadeou a recente


ocupao de vrios morros cariocas pelas UPPs (Unidades de Polcia
Pacificadora). Desde ento, bailes foram proibidos em diversos desses locais
onde as UPPs foram instaladas. Indignada, as comunidades apresentaram
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro propostas de reinstaurao dos bailes
funk nessas reas, e a ALERJ (Assemblia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro) promoveu, no dia 31 de junho de 2011, uma Audincia Pblica para
discutir essa situao.

Nessa ocasio, o presidente da APAFUNK, MC Leonardo, voz representativa de


toda a comunidade do funk e dos moradores das reas onde foram instaladas
as UPPs, disse no ser contrrio poltica de segurana de ocupao das
favelas, mas defende que haja respeito cultura existente na localidade. MC
Leonardo criticou as proibies de bailes funk em comunidades pacificadas:

"Queremos que a lei seja cumprida. Mas no o capito da


polcia que vai decidir se ter baile (funk) ou no. Seno, a
favela vira um estado de exceo. A UPP para a segurana,
e no para permitir ou no o baile. Se tiver alvar da Prefeitura,
autorizao dos bombeiros, podemos fazer. Somos a favor que

60
ESSINGER Batido: uma histria do funk. p. 238.
61
HERSCHMANN, Abalando os Anos 90 - Funk e Hip-hop., p.65.
65
tenha polcia na favela, mas ela entra e jogam um monte de
coisa nas mos dela... " 62.

E, desta forma, o funk se encontra atualmente sob o estigma da proibio,


materializado expressamente com o impedimento da realizao de bailes nas
localidades com presena de UPPs. Lamentavelmente, a situao similar a
um retrocesso ao cenrio dos anos 90, com a criminalizao do funk. A
instalao das polticas do Estado Penal, em que os dispositivos de segurana
pblica so as principais medidas governamentais para com as classes mais
pobres da sociedade, parece atingir em cheio as opes de lazer dessa
populao, excluindo-as da vida das comunidades, como se ali estivessem
concentradas a criminalidade e a origem da violncia.

Ainda nessa lgica da excluso, em outro relato de MC Leonardo,


anteriormente a esse incidente com as UPPs, desabafa sobre o ressentimento
da comunidade funqueira sobre a no participao do funk no Rock in Rio, e
chama ateno ao fato de a marginalizao do funk beneficiar a classe
mdia, que ocupa essa lacuna no mercado fonogrfico e passa a vender
coletneas de artistas de funk, obtendo maiores lucros que os prprios artistas:

(...) dizem que um grupo de executivos ligados ao mercado


fonogrfico no via com bons olhos o funk para o Rock in Rio.
L j tocou ax, forr, lambada, gacho da fronteira, j foi
tudo menos funk. No ltimo Rock in Rio, comeou a tocar Tati
Quebra Barraco numa tenda e mandaram parar na mesma
hora. (...) L atrs, nos bailes black, era o polcia da esquina
que no gostava de funk. O governo Marcello Alencar (1995-
1998) comeou, ento, a dificultar os alvars das casas que
tocavam funk. No colocavam policiamento nem transporte
pblico em festa com 3 mil pessoas e no queriam que tivesse
confuso? O ritmo jovem, a batida eletrizante, tem lcool.
Vai fazer o que numa noite em que no tem como voltar para
casa? Vai quebrar tudo. Onde falta alguma coisa sempre vai
ter o caos. No foi feita uma poltica para preservar o baile
funk. Se o governo quisesse fazer alguma coisa pelas classes
menos favorecidas, teria entupido de informao secretrios
de Educao, para saber que tipo de linguagem era aquela e,
principalmente, a Secretaria de Cultura, para comear uma
aproximao. Mas no. Eles preferiram proibir. O filho do rico
vai esquiar, vai pegar onda de 15 metros, vai andar a 320 por
hora. adrenalina. E o filho do pobre no pode ter adrenalina?
E ainda d uma televiso a ele para dizer que tem que ter um
celular de R$ 3 mil. Ele vai botar um revlver na cintura. (...)
Hoje, vai l ver quem que t na prateleira vendendo funk. o

62
Disponvel em: http://apafunk.blogspot.com/2011/05/deputados-do-rio-discutem-legalizacao.html. Acesso em 25 de
julho de 2011.
66
Caldeiro do Huck. Cad o MC Dolores? Cad o Jnior e
Leonardo? Cad o MC Galo? 63

Independente do subgnero, do funk romntico ao funk putaria, do funk


de contexto ao funk proibido, em geral pode-se afirmar que esse
movimento musical e social permeado por instncias da representao do
marginal, criminoso ou proibido. A antroploga Mylene Mizrahi, autora do
estudo Figurino funk: uma etnografia sobre roupa, corpo e dana em uma
festa carioca64, examinou o funk por diversos aspectos, entre eles na forma de
se vestir desses jovens, nos contou em entrevista que esse elemento do
proibido est presente na prpria vestimenta dos artistas, MCs e DJs do
universo funk. Em entrevista, a pesquisadora nos relata que esses jovens se
apresentam no palco portando grandes armas de fogo, como metralhadoras
e fuzis, verdadeiros adereos to essenciais quanto os colares de ouro que
complementam o look do funqueiro65.

Seja por alegao de apologia ao crime ou pela proibio de realizao de


bailes; pela criminalizao da atividade do profissional funqueiro ou pela
inexistncia de proteo legal adequada; pela difcil insero no mercado
fonogrfico por determinados estilos de funk e a constante evidncia, por
parte da mdia, de uma ligao entre funk e criminalidade nas favelas, tudo
indica que o funk inevitavelmente ocupa, de uma forma ou de outra, um lugar
estritamente relacionado com o excludo, o marginal e o ilcito na
cultura brasileira.

Embora amplamente disseminado no Territrio Nacional, declarado


oficialmente Patrimnio Cultural do Estado do Rio de Janeiro, presente como
lazer e diverso em diversas classes socioeconmicas no Brasil e exportado em
grandes escalas como msica eletrnica popular brasileira, o funk carioca
ainda apresenta-se fortemente identificado a um sentimento de excluso,
negao e preconceito no Brasil.

63
Entrevista com MC Leonardo: O funk democrtico e, por isso, perigoso. Disponvel em:
http://apafunk.blogspot.com/2011/02/o-funk-e-democratico-e-por-isso.html. Acesso em 25/07/2011.
64 64
MIZRAHI, Mylene. Figurino funk: uma etnografia sobre roupa, corpo e dana em uma festa carioca , Dissertao
de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, UFRJ. Rio de Janeiro: 2006.
<teses.ufrj.br/IFCS_M/MyleneMizrahi.pdf> acessada em 27/07/2011.
65
Entrevista com Mylene Mizhari, concedida ao Projeto em maio de 2011.
67
O chamado funk ertico, pornofunk ou funk putaria vem atraindo muita
popularidade dente os gneros de msica funk produzidos. Com letras que
falam mais ou menos explicitamente de questes relacionadas pratica de
atos sexuais, pesquisadores apontam que tal contedo no exclusividade
do funk carioca. E enxergam nesse estilo uma das caractersticas que mais
revela, ainda atualmente, a influncia da hipersexualizao pela qual passou
a prpria msica negra norte- -americana, com a disseminao do
gangsta rap e sua cultura de letras reverenciando mulheres e sua
performance sexual.

(...) em termos de letras, essas letras super erotizadas que


esto nos principais canais e que so tocadas nos bailes
furaco, so letras bastante erotizadas e nisso eu acho
semelhante hipersexualizao pela qual passou a prpria
msica negra estadunidense. Mas em relao a batida, em
relao a questo instrumental, o tambor torna nosso funk
nossa batida- diferente desse miami bass da dcada de 70,
80.66

A sociloga Luciane Soares, pesquisadora do movimento funk, nos respondeu


em entrevista, ao ser questionada sobre o papel da mulher no movimento,
citando o documentrio Sou feia mas t na moda, que investiga como o
funk usou a sensualidade para sair da decadncia em que se encontrava.

Eu vou responder essa pergunta com uma interao


interessante com a Denise Garcia. Quando a Denise Garcia
passou o documentrio Sou feia mas t na moda no festival
do Rio, a gente fez uma mesa com ela e eu fiz a seguinte
pergunta: Denise, h uma diviso de trabalho no funk? Os
homens fazem as letras de protesto e as mulheres danam? Ela
disse: Eu tenho vrias letras, romnticas e de protesto, mas eu
sustento minha famlia com o Rap da injeo. um rap super
erotizado, fez um sucesso enorme. E o engraado que a
Deise muito tmida, se no me engano ela evanglica. E o
Sou feia mas t na moda tem uma tese de que as mulheres
se liberam a partir do funk (...) Acho que a mulher, assim como
a maioria dos moradores da favela, v ali um lugar ao sol, um
lugar que pode gerar na massa algum tipo de adeso...67

Segundo nos afirma Soares, o caminho mais comum das mulheres cariocas
para a entrada no funk passa pelo corpo elas danam. E possvel notar
caractersticas comuns s mulheres que mais fazem sucesso nesse contexto,
no so exatamente negras, elas so morenas e brancas, possuem corpos

66
Entrevista com Luciane Soares, concedida ao Projeto em maio de 2011.
67
Idem.
68
esculturais, tm cabelos compridos e encaracolados, mas raramente
totalmente lisos ou crespos. Ressalta-se que dentro do prprio funk so
produzidas as formas de identificao dessas mulheres.

No caso dos homens danarinos, que esto presentes nos bailes tanto quanto
as mulheres e tambm possuem cdigos de identificao com o movimento,
eles tambm realizam coreografias sensuais e mostram o corpo, j que
danam sempre sem camisa. Entretanto, no caso dos homens, o uso do corpo
apenas no proporciona a venda de msicas. J essa exibio, no caso das
mulheres, pode exclusivamente gerar a venda de CDs ou de shows em bailes.
Portanto, pode-se afirmar que as mulheres, de fato, podem se utilizar
exclusivamente de sua aparncia corporal para se estabelecerem no
mercado como produto de consumo.

Por outro lado, a pesquisadora revela que essa utilizao da sua imagem
como produto no seja uma imagem real dessas mulheres, mas sim produzida
com a finalidade especfica de dali obter o seu sustento:

Eu no acredito que se possa afirmar que por elas usarem o


corpo, elas so aquilo que elas apresentam, apenas. Eu gosto
demais de pensar em performance. Eu acho que h uma
performance dessas mulheres. Aquelas que trabalham nisso
entenderam que esse nicho de mercado um nicho onde o
corpo o elemento mais importante para gerao de renda.
Acho que se tivesse um espao, talvez como em So Paulo, as
mina do RAP, acho que haveria muito mais mulheres fazendo
RAP por aqui. (...) Mas no RJ, o espetculo se sobrepe letra
e ao protesto, esse um ponto que eu acho que tanto para
mulheres quanto para homens. Para a mulher ainda mais,
porque essa imagem atualiza o esteretipo da mulata sensual,
a mulher brasileira sensual. O RJ visto por todo o Brasil e
influencia todo o Brasil, e esse lugar dessa mulher muito
narcotizante; as pessoas homens e mulheres vm nessa
forma de usar a roupa, essa forma de danar e mexer o
bumbum, uma idia de descolamento e hiper sensualidade. E
eu acho que essa uma idia muito construda, muito
performtica de fato nem todas essas mulheres so esse
boom de sexualidade, mas um produto que gera renda,
renda para elas inclusive.68

Muitas vezes comparadas s Chacretes, notrio em conversas e entrevistas


com pessoas do universo funk, e tambm ressaltado por pesquisadores em

68
Entrevista com Luciane Soares, concedida ao Projeto em maio de 2011.
69
geral, que os moradores das comunidades e o pblico do funk no
condenam moralmente essa mulheres.

Antes que as bandeiras moralistas se levantem contra as letras e danas


apelativas, os msicos e moradores dos morros cariocas criticam a hipocrisia
da sociedade, que aceita as novelas com sexo em horrio nobre e o Carnaval
para exportao, com danarinas nuas em carros alegricos. Defendem-se
lembrando que a juventude que hoje canta e dana o funk era a criana que
assistia ao Fausto apresentar, em seu programa dominical, os concursos de
loira e morena do Tchan!, e aprendeu a ralar na boquinha da garrafa.

As Chacretes j no faziam isso? Certas parcelas da


sociedade julgam negativamente o fato de uma mulher que
mora na favela conseguir trabalhar tirando seu sustento do seu
corpo, ainda que no haja prostituio. Mas h muito tempo
as mulheres danam semi-nuas e antes elas no eram
tachadas como algo condenvel... Ento o problema no a
mulher em si, mas sim a mulher da favela! (...) como usual, o
problema do funk no o funk em si, mas o lugar onde ele se
realiza e as pessoas que ele envolve 69.

O que se discute, por outro lado, que a afirmao desse esteretipo da


mulher bonita, gostosa, morena, sensual, uma mquina de sexo, que
vendida com as famosas mulheres fruta, atue para fortalecer a excluso de
outras mulheres que no possuem esses atributos do mercado de trabalho.

Porm, sabido que a cantora de funk mais famosa do Brasil, a Tati Quebra-
Barraco, no se encaixa nesse esteretipo da mulher gostosa, no realiza
danas erticas em seus shows e, ainda assim, a MC mais bem paga do
mercado do funk carioca70. A cantora e compositora se apresenta
geralmente em roupas que no mostram o corpo. Atravs das letras
sexualmente explcitas cantadas por ela, muitos tm enxergado uma
reafirmao do feminismo, com a qual as garotas do subrbio deixam de ser
objetos sexuais, abandonam a submisso em que se encontravam e
conseguem se impor social e economicamente no mercado de trabalho,
atravs da insero no funk.

69
Idem.
70
Dado recolhido no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca, UFRJ, 2011.
70
Ou seja, por um lado ou por outro, atravs da imagem ou atravs do talento
para composio musical e de letras, a mulher est includa no mecanismo de
produo de funk.
(...) o hip hop, aparentemente, no permite essa insero que
o funk permite... Talvez por esse aspecto hedonista, de falar do
sexo, da diverso, de ser uma msica para se divertir. Mas
atravs desse hedonismo, desse falar de sexo, de tudo isso que
eles continuam afirmando um modo outro de ser, e continuam
construindo significados e smbolos. (...) Eu nunca presenciei
sexo num baile funk, nem uso das armas que os seguranas e
artistas portam. Esses elementos so um adorno mesmo, fazem
parte dessa performance, dessa performance da fora, do
poder, que tanto feminina quanto masculina tambm, com
focos diferentes. (...) As mulheres no funk e o prprio funk
podem no ser bem aceitos se comparado a um bom gosto
oficial, mas ainda assim se relaciona e usufrui desse mercado,
usufruindo dessa relao com essa sociedade que o
envolve71.

Ainda em relao ao funk pornogrfico ou funk putaria, estudiosos tm


percebido que esse jovens de classe baixa, garotos e garotas, na maioria das
vezes receberam uma formao afetiva e sexual baseada na coibio e na
represso, e no no dilogo aberto, seja na escola ou em casa, atravs da
informao e da educao acerca dessa formao.

Ento o baile funk representa, de alguma forma, uma oportunidade na qual


esses jovens altamente reprimidos podem expressar suas libidos, celebrar o
prazer e a festa do corpo:

O que eu pude perceber que na formao afetiva, sexual,


desses jovens, dessas jovens, que esto envolvidos com o
mundo do funk, essa uma das nicas oportunidades no
baile, na msica de se falar de sexo sem se falar de ameaa,
de doena, de perigos (perigo de engravidar, perigo de pegar
uma doena, preveno, etc), de pecado, de coisas
negativas. Quer dizer, sempre que o tema sexo vem tona
perante esses jovens, seja na escola ou em casa (quando
vem), nas ONGs, na igreja, atravs desse tom de
advertncia, como algo ruim. Quer dizer, o baile, a msica
funk, seria a nica forma de falar de sexo como prazer, como
troca carnal entre dois seres humanos... Enfim, como uma coisa
boa...72

71
Entrevista com Mylene Mizhari, concedida ao Projeto em maio de 2011.
72
Fala de Adriana Facina. Palestra gravada no Simpsio de Pesquisadores de Funk Carioca na UFRJ, maio de 2011.
71
Longe de afirmar que o funk que esteja incentivando o sexo entre jovens, e
distante tambm da ingenuidade da crena popular de que as pessoas de
comunidades no so reprimidas; que na favela todos so sexualmente
liberados , pesquisadores revelam que a favela um ambiente extremamente
controlado, seja por agentes externos, seja devido prpria proximidade fsica
em que vivem essas pessoas.

Quando um espirra, o vizinho que fica doente, porque um


lugar de convivncia muito estreita. Ento bom a gente
pensar tambm qual o lugar dessas msicas nessa sociedade
altamente reprimida, o que elas expressam e representam, e o
que elas tm a dizer para a sociedade 73.

E foi essa a principal motivao que levou a professora e linguista Mrcia


Fonseca Amorim a pesquisar o funk pornogrfico, ao tentar lanar um olhar
acadmico e aprofundado sobre o que esse subgnero representa na
sociedade brasileira. Mrcia afirma em seu estudo que possvel, por meio do
funk, constatar que a mulher reivindica um papel social ativo.

Tal fato j percebido por alguns organismos internacionais que tm convidado


funqueiras a participarem de eventos feministas, pois as vem como
representativas de um movimento contemporneo que denominaram de
movimento neofeminista. Alm disso, constata ela, o funk brasileiro circula
atravs de grupos de artistas pela Europa, EUA e Amrica Central, e est
ganhando uma representatividade no percebida pelos que no do
ateno ao movimento.

Partindo do estudo do discurso que as mulheres do funk esto assumindo e


como esse discurso se situa na sociedade em geral, a pesquisadora analisa as
letras das msicas e revela que ali se encontram expresses de liberdade
sexual, enfatizada por coreografias sensuais. Sua tese analisa o discurso da
mulher para a mulher, do homem para a mulher e aquele gerado em outros
segmentos sociais como entidades religiosas, polticas e grupos intelectuais em
relao a essa representao.

73
Idem.
72
Na pesquisa, Mrcia relaciona a cultura s aes que a sociedade vai
promovendo, independentemente de seu grau de letramento; situa o
contexto do carnavalesco e considera a manifestao como decorrente da
realidade social brasileira. Na opinio da pesquisadora, as letras erotizadas das
msicas traduzem o falar cotidiano de grande parte da sociedade brasileira,
principalmente de grupos situados nas periferias dos grandes centros urbanos,
e se inscrevem no apenas no funk, mas em programas humorsticos, em
revistas e alguns textos literrios, no teatro, entre outros.

Nas consideraes finais do seu trabalho, relata que a mulher vem talhando a
sua imagem em todos os segmentos sociais, o que se revela mais amplamente
na vida profissional e na mdia. Mas mesmo aquelas que se situam em
atividades no consideradas relevantes para determinados setores da
sociedade, envolvidas em uma srie de tarefas domsticas que lhe so
atribudas e no so socialmente valorizadas, essas mulheres esto buscando
a construo de uma identidade, a fim de mostrar que elas existem.

Essas mulheres, assim como os homens, tm necessidade da busca de prazer,


de relaes com outras pessoas e esto construindo uma imagem de um
sujeito que participa do mundo, que tem alguma coisa a dizer, mesmo que
esse dizer no seja o esperado pela Igreja, por algumas instituies e/ou
organizaes sociais.

Essa mulher enfrenta os preconceitos e se mostra como uma pessoa que no


tem medo de se assumir perante a sociedade. No funk, ela aproveita para
dizer: minha vida assim e eu trato a minha sexualidade da mesma forma
que muita gente trata, mas camufla. No tenho medo de dizer o que fao e,
se preciso, digo isso publicamente74.

A pesquisadora revela que seu interesse foi despertado a partir de reportagens


apresentadas na TV, de onde se conclui que, enquanto o funk estava restrito
periferia, no incomodava muito. medida que ele desce o morro e passa
a circular por outras instncias, desperta a ateno e passa a incomodar

74
Entrevista com Mrcia Fonseca Amorim, concedida ao Jornal da IEL UNICAMP. Disponvel em:
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/setembro2009/ju443_pag12.php. Acesso em 25-07-2011.
73
alguns segmentos sociais, quando a menina do asfalto passa a frequentar
manifestaes antes restritas menina do morro.

Chama ateno o fato de mulheres que no so da periferia buscarem esses


bailes que constituem uma festa com um novo discurso, em que a mulher
assume, por meio das msicas que canta, a representao de uma
cachorra, uma potranca, uma piranha, uma vadia.

Mesmo que essa representao ocorra, de fato, somente no interior do baile e


no condiz com a representao que essa mesma mulher assume em outras
instncias sociais, ela demonstra estar incorporando um discurso que antes era
considerado machista. E, sobretudo, demonstra estar subvertendo esse
discurso machista, como que dizendo: agora eu digo de mim mesma o que
eu quero.

Assim, a pesquisadora apresenta a hiptese de que a mulher esteja assumindo


esse discurso machista para romper com ele, desconstruindo esse discurso. Ao
assumir a representao de piranha, por exemplo, essa mulher se constri
discursivamente como adepta da prtica sexual livre. Portanto, posiciona-se
socialmente, semelhana do homem, como um indivduo livre para atuar
sexualmente na sociedade, rompendo este conceito de piranha e dando-
lhe um novo significado, mais adaptado realidade sexual atual.

Embora setores da sociedade tratem o funk como subcultura, e pressionam


para manter o movimento musical marginalizado, atravs da sua constante
associao comum ao trfico de drogas, explorao sexual, promoo
da erotizao de mulheres de diferentes faixas etrias, incitao de crianas
e jovens prtica sexual e vulgarizao da msica brasileira - esse
tratamento pode ser encontrado em pginas de revistas e jornais de
circulao nacional e entrevistas nos meios televisivos -, a tese da
pesquisadora revela que o funk constitui, sobretudo, uma diverso. uma festa
de natureza carnavalesca e, como tal, brinca com questes como a
sexualidade e a representao social de homens e mulheres.

Grupos mais intelectualizados falam de funk pornogrfico como manifestao


indigente, livre do esforo criativo, composto de batidas muito pobres, um
74
batido, um pancado, coisa repetitiva e sem qualquer mrito artstico ou
de entretenimento. No entanto, se verifica um fato paradoxal: no princpio,
esse funk era constitudo e consumido apenas por afrodescendentes, mas
atualmente, pessoas de outras etnias e sobretudo de outras classes sociais -
passaram a integrar o movimento porque encontraram nele uma forma de
diverso.

Assim, em torno dessa construo discursiva acerca do valor cultural do funk,


se apoia o principal questionamento: o que podemos considerar grotesco?
grotesco em que termos? Como no podemos definir um conceito de belo,
tambm fica difcil definir um conceito de grotesco. Uma cena que ocorre
comumente na periferia no tem naquele ambiente a conotao de
grotesco, pois integra as diferentes prticas discursivas que ali se inscreveram.

Ali se verifica uma reinterpretao que substitui o grotesco pelo real, porque
aquelas pessoas vivem aquilo como particularidade de suas vidas, apesar do
choque que possa provocar no olhar de quem chega. O funk reivindica um
lugar entre os movimentos culturais porque traduz ou tenta traduzir a
identidade de um grupo, e no importa que essa identidade seja construda
margem dos grupos mais intelectualizados.

A pesquisadora ressalta que o fato de trazer esse estudo para a academia


no significa um apelo para que o funk venha a ter reconhecimento, pois ele
pode continuar onde est. A sua inteno mostrar que esse movimento
acontece no pas, pessoas participam dele e ele faz parte daquilo que
denominamos realidade social brasileira.

Tem uma representao expressiva, movimenta milhes na economia, influi na


poltica e at na religio; uma manifestao cultural necessria, uma forma
de criar e extravasar as emoes e a sexualidade.

Revela-se no funk um espao para que esses atores (homens e mulheres


moradores de reas pobres) de diferentes faixas etrias possam dizer o que
pensam e sentem, o que muitas vezes no conseguem fazer em outros
espaos sociais.

75
(...) vejo muitos adultos, pais na faixa de 35/40 anos, indo pro
baile com seus filhos. Isso eu fiz muito em campo... Eu mesma j
fui pro baile com a filha do Catra e a me dela. A gente j foi
pra baile junto. Num determinado momento da festa os
adolescentes ficaram na pista e a gente - eu com a me dela
e umas amigas da me dela ficou um pouco afastadas, de
olho mas nos divertindo tambm, tomando cerveja... E tem
muito isso, a me s vai embora com os filhos. E elas curtem, se
divertem. Ento, isso uma coisa que acontece, os mais
idosos, muitas vezes eles se incomodam, no querem a msica
alta... Tem ali sim um choque geracional. Mas nessa diferena
assim de 40 para 16 anos, a diferena no tanta75.

Assim, manifestam-se com alegria no funk carioca grupos sociais minoritrios,


sujeitos que no circulam por outros escales, que esto margem da
sociedade. Como um movimento musical/social que integra msica,
coreografia, modo de se vestir e de se portar socialmente, e no apenas
como um gnero musical, o movimento tem uma identidade prpria, que se
manifesta de acordo com o modo como seus adeptos se posicionam em
relao a si mesmos e sociedade.

Mc Catra foi objeto de estudo de Mylene Mizrahi em sua Tese de Doutorado


A Esttica Funk Carioca: criao e conectividade em Mr. Catra, defendida
no Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de
Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-
IFCS-UFRJ) em 2010 (e tantos outros pesquisadores de funk por adotar uma
postura controversa e bastante autntica. Mr. Catra usa muito a religio pra se
contrapor ao que ele chama de uma sociedade hipcrita, que ele v
associada a uma cosmologia ocidental, catlica, crist. Ento ele utiliza o
discurso religioso na sua esfera domstica , para se contrapor a uma certa
hipocrisia da sociedade que ele vai ver no prprio modo como se exige a
monogamia. H todo um discurso particular, que faz um uso muito
idiossincrtico da religio afinada com o seu modo de vida.

Mc Catra afirma ter 20 filhos. casado, sou muito amiga da


esposa dele, mas tem algumas outras mulheres, com quem
teve filhos, e a mulher participa disso, conhece e sabe. (...)
Agora, a leitura que eu fao da prpria produo da beleza
masculina e feminina que a mulher se faz, ela se constri,

75
MIZRAHI. Entrevista com Mylene Mizrahi concedida ao Projeto em maio de 2011.
76
de um modo muito independente do homem. Acho at que
isso uma leitura que a gente pode fazer do Brasil em geral.
O homem tem que estar quase que o tempo inteiro
evocando a mulher, presentificando a mulher. Seja a mulher
bonita, gostosa, piranha, me, seja de que modo for, para
se fazer homem, para se dizer homem, essa masculinidade
construda muito a partir do contraste com a mulher. (...)
Estou querendo falar que ela tem um poder e uma
independncia que o homem no tem. O homem ali nesse
contexto, no consegue se fazer homem sem evocar a
mulher, seja oralmente, seja na msica, seja l do lado dele,
seja atravs da imagem dela no computador.

Nesses termos, a pesquisadora revela um aspeto do funk em geral, e em


especial o funk putaria, que o mundo feminino se constitui mesmo na ausncia
do homem, e que o masculino nesse universo depende da mulher.

ela no parece despida de identidade social (...). Fica claro


que inerente ao estatuto de masculino se fazer cercar por
mulheres. O homem, para afirmar a sua masculinidade, precisa
da mulher ao seu lado, esteja ela visibilizada ou presentificada
atravs das conversas solidrias. As mulheres, no Funk, por sua
vez, no necessitam se fazer cercar de homens, no necessitam
da presena fsica masculina nem visibiliz-la ou presentific-la
para afirmar a sua feminilidade. (Mizrahi 2010:244/245)76

Ou seja, a inveno dessas mulheres passa por uma reinveno delas


mesmas, que vo aos bailes com o real intuito de se divertir, danar, se
colocar em cena, mostrar seu corpo, seu poder. Tal fenmeno, na viso de
Mizrahi, trata-se menos um discurso feminista e mais de uma assuno de si
mesmas, assumindo um lugar de oposio, de complementaridade dos
gneros, se atraindo, se opondo e marcar as diferenas, inclusive exercendo
mutuamente uma certa relao de poder ao sexo oposto, seduo e poder.

Nesse contexto de hiper-realismo, a questo da mulher que se reinventa no


fcil de ser aceita porque h uma quebra de tabus muito antigos, fixados na
sociedade h muitos sculos. Em relao sexualidade feminina, desfaz-se a
imagem da mulher ingnua, intocvel, suave; a mulher que jamais expressa o
seu desejo sexual , que sempre desejada e nunca toma a iniciativa com o
homem, mas sempre passivamente conquistada pelo homem e no pode se

76
MIZRAHI, Mylene. A Esttica Funk Carioca: criao e conectividade em Mr. Catra. Tese de Doutorado defendida no
Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-UFRJ). 2010.
77
mostrar desejosa. Esses tabus so quebrados quando essas mulheres assumem
seu desejo, assumem sua sexualidade no que ela tem de ativo, e no passivo.

Elas podem e elas falam o que desejam. Quer dizer, o MC


Catra faz uma performance com a Valeska (artista da Gaiola
das Popozudas). A Valeska sobe no palco da Marina da Glria,
um pblico classe mdia do Rio de Janeiro. Ento, ela sobe no
palco e com a seguinte frase ela abre o show: "O poder da
mulher est na buceta" 77.

Ao mesmo tempo que essa fala desconstri tabus seculares, ela prov
genitlia feminina poder e valor. Alis, poder e valor do qual o falo masculino
j usufrui h muito tempo.

77
MIZRAHI. Entrevista com Mylene Mizrahi, concedida ao Projeto em maio de 2011.
78
Captulo III Funk e arte contempornea, em dois estudos de caso

III.I - O caso FUNK STADEN: a cultura popular do funk carioca absorvida pela
arte contempornea de Dias e Riedweg para a Documenta de Kassel

A obra "FUNK STADEN" foi apresentada pela primeira vez na 12a Documenta de
Kassel, inspirada por ilustraes de Hans Staden (1527-1578), nascido tambm
em Kassel no Sculo XVI. Staden, durante uma viagem pelo Brasil, teria sido
capturado e estava para ser comido, mas foi liberado porque no foi o
suficientemente corajoso para ser "incorporado". Os canibais no queriam
ingerir aquela diversidade ali apresentada - uma metfora perfeita para o
trabalho dos artistas de que vamos falar.

Mauricio Dias (Rio de Janeiro, 1964) e Walter Riedweg (Lucerna, 1955), a dupla
Dias e Riedweg, reinterpreta Staden ao compor uma vdeo instalao
circundante, que mostra as aes realizadas dentro de favelas no Rio de
Janeiro, projetadas em telas. As imagens foram gravadas por trs cmeras
instaladas em postes de madeira (uma citao do instrumento utilizado por
canibais para matar a vtima) e tambm em uma laje, onde os participantes
de um churrasco passaram as cmeras de mo em mo enquanto
danavam, simulando as imagens encontradas no livro. Atualiza-se aquele
remoto ritual, em que os habitantes da favela passam a ser o outro: o
antropfago no Sculo XXI, cuja tecnologia canibalizada, torna-se um
instrumento de difuso de sua cultura.

Dias e Riedweg, conjugando os aspectos polticos e emocionais, tentam


destruir a barreira entre as sociedades opostas, que dificilmente se comunicam
de uma forma sincera uma outra. Eles derrubam esteretipos e lugares-
comuns para mostrar a vibrao e a matria sensvel de que todos somos
feitos.

O espao onde a obra foi originalmente montada, a sala De Vleeshal (cuja


traduo para o portugus seria sala da carne), abriga FUNK STADEN numa
videoinstalao que desafia os espectadores a repensarem a distncia entre
si.

79
Para produzir a obra, Dias Riedweg colaboraram com adeptos do movimento
funk carioca, nas favelas no Rio de Janeiro, para estabelecer, atravs deste
trabalho, uma conexo entre a cena do funk e a do livro de Hans Staden78

Desde 1993, Dias e Riedweg trabalham juntos em projetos que investigam a


maneira pela qual a vida privada afeta o espao pblico. Eles criam situaes
em que as questes relativas alteridade so ressaltadas, e a percepo do
outro colocada em foco. Muitas vezes, produzem obras a partir de
interaes - performances como processos que geram trocas dentro de
grupos especficos da sociedade, e que incidem sobre a identidade e o
envolvimento dos participantes.

FUNK STADEN mostra como a representao do outro pelo viajante alemo,


ainda nos primeiros dias de interaes entre europeus e tribos indgenas
brasileiras, provavelmente no difere tanto do modo como, hoje, os meios de
comunicao marginalizam certos grupos da sociedade, beneficiando
poderes polticos desses grupos.

Atravs dessa obra, a dupla interfere nessa viso do EU mediada pelo outro,
atravs da utilizao do funk carioca, convida os bailarinos de funk a
reencenar nove das xilogravuras originais do livro de Staden como tableaux
vivants contemporneos.

Como em diversas outras ocasies na obra de Dias e Riedweg, FUNK STADEN


concebida como uma videoinstalao. So utilizadas trs telas, combinadas
com superfcies espelhadas para formar uma arena octogonal, em que duas
culturas desconhecidas e marginalizadas uma da outra - 450 anos as separam
- esto sendo analisadas em close-up e confrontadas, sobrepondo-se nas
imagens.

As superfcies de espelhamento capturam os espectadores em um espao


alegrico, adicionando camadas extras histria e incluindo-os no mundo dos
canibais de Staden. O trabalho preenche esse lapso de tempo que separa

78
STADEN, Duas viagens ao Brasil.
80
Hans Staden e os funqueiros, suprimindo um hiato histrico e cultural
significativo, colocando o espectador em um espao-tempo onde ambos
contextos se convergem. Mais que mero espectador, o pblico se faz
participante da obra. A esses aspectos de confronto entre camadas
temporais, a arquitetura gtica do espao para o qual a obra foi
originalmente pensada adiciona mais um elemento.

Esse espao foi um mercado de carne nos tempos de Staden, e hoje um


espao dedicado aos novos desenvolvimentos na arte contempornea, em
sua forma mais ampla. Na instalao, computadores controlam desde a
codificao dos vdeos para combinar com os projetores, passando pela
configurao de udio at a precisa sincronizao dos quadros.

Desde Kassel, a obra j transitou por quinze museus da Europa e dos Estados
Unidos, e chegou a ser condenada como "politicamente incorreta" pela crtica
americana, mas, em contrapartida, est entre as mais recentes aquisies do
Centro Georges Pompidou, de Paris. Teve sua primeira montagem no Brasil em
2007, na mostra "Parasos Possveis", que reuniu oito trabalhos recentes da
dupla nos quais se procura fazer uma reviso da ideia de "paraso" e de todas
as utopias, fantasias e fices construdas historicamente.

Nesse sentido, a constituio de fico enfatizada; na grande mdia, o funk


habitualmente associado ao crime organizado, sendo muito menos comum
compar-lo s prticas canibais do Sculo XVI. Em entrevista, Riedweg
declarou: "O imaginrio visual do funk que aparece nas pginas policiais dos
jornais cariocas muito prximo das ilustraes do livro de Staden: corpos
mutilados para serem devorados publicamente79". Dias acrescenta: "O
trabalho cria desconforto porque a histria de marginalizao continua at
hoje80".

Fotos: Leo van Kampen

79
Entrevista concedida pela dupla a Daniel Hora em Os Valores Dominantes apud Revista Cultura e Pensamento, p.
28.
80
Idem, p.34.
81
82
O relato abaixo, de uma visitante brasileira que observou a obra na
Documenta e, tambm mais tarde, em sua montagem no Brasil, demonstra o
impacto com que o trabalho atinge seu espectador-participante:

Faltavam duas semanas para o trmino da 12 Documenta de


Kassel. A pequena cidade alem recebia ento um sem fim de
pessoas de todos os lugares possveis, transformando a
paisagem normalmente buclica em uma frentica. A mostra
se realiza a cada cinco anos, ocupando diversos espaos com
arte contempornea de ponta. Um deles, em meio a um bem
cuidado parque, o museu Wilhelmshohe Castle. Em seu
acervo esto raridades de Rembrandt e Frans Hals, da era de
ouro holandesa.

Em uma das salas, a obra FUNK STADEN, de Dias & Riedweg,


at ento por mim desconhecidos. Essa juno do atual com o
antigo por si s j transformava a experincia em algo nico.
Subitamente, minha ateno foi despertada por uma msica
vinda diretamente dos morros cariocas: Eu s quero ser feliz.

O corpo teve dvidas se dava uma leve danada,


denunciando a origem, ou se ficava quieto para no dar
bandeira. Em questo de segundos o lugar se encheu de
visitantes a observar a obra da dupla, formada por um
brasileiro e um suo, que no arredaram o p enquanto no
viram a vdeo-instalao em sua ntegra.

Inspirada em ilustraes do holands Hans Staden, que retratou


uma tribo Tupinamb nos princpios da nossa colonizao,
apresentava um paralelo entre o canibalismo e selvageria de
ento com as cenas atuais das favelas do Rio de Janeiro.
Homens e mulheres se posicionavam tal qual as gravuras,
atuando de maneira real ou fictcia. De fato, meu imaginrio
com relao a esse universo me fez acreditar que as imagens
eram representativas de uma situao corriqueira. Imagino que
para aqueles estrangeiros tambm.

A potica dos dois no visa representar uma realidade de


forma documental, mas imbu-la de um carter artstico, livre
para interpretaes infinitas. Se as retrataes de Staden eram
verdicas ou fantasiosas, o mesmo pode ser estendido
produo tecnolgica do sculo 21.
83
No Instituto Tomie Ohtake, em So Paulo, Parasos possveis
apresenta 10 trabalhos de Dias & Riedweg. A forma como so
montados nos permite ver uma preocupao esttica, que
complementa o sentido das imagens. Pela segunda vez, me
vejo surpreendida por FUNK STADEN, que segue atraindo a
ateno dos visitantes. Em torno dela, uma srie de fotografias
feitas dentro desse projeto, contendo cenas que nos remetem
clssicas composies da pintura.

(...) Os artistas, ao percorrerem o mundo para comporem seus


trabalhos, ganham ou perdem um pouco de suas
nacionalidades, para configurarem algo mestio.
Parafraseando o escritor Pirandello, ter uma, nenhuma e cem
mil personalidades.81

A mistura de elementos antagnicos cria uma tenso que permeia toda a


obra: novo e velho, corpo e tecnologia, nacional e estrangeiro, arte
contempornea e cultura popular de massa. A releitura que os artistas
propem a uma obra j existente - o antigo livro - traz tona questes
relacionadas aos processos ps-produtivos na contemporaneidade, que seria,
para alguns, a marca fundamental do processo criativo atual na viso de
diversos pensadores e crticos de arte.

Em sua obra recente, Ps-produo: como a arte reprograma o mundo


contemporaneo, Bourriaud aponta para o fato de que prticas
contemporneas esto cada vez menos preocupadas com a ideia de
original, de singular, e cada vez mais se interessam em como reorganizar
elementos j existentes, dando a eles novos sentidos. Assim, formas de saber
que constituem a produo em arte geram um infinito campo de pesquisa
para os artistas, e apontam para uma postura relativamente mais aberta a
questes como a originalidade, a autoria e, mais importante, aos mecanismos
que condicionam a criao e a circulao das imagens, das informaes e
das narrativas.

Tais prticas nascem da conscincia, por parte do artista, da necessidade de


intervir onde se produzem e propagam as estruturas que sustentam a noo
de verdade (na arte ou fora dela), de forma a produzir alguma tenso. Assim,
artistas da atualidade relacionam-se, seja de forma intencional, seja de forma
incidental, com dados de outras reas, tais como cincia, tecnologia,

81
Relato de Adriana Guivo intitulado"Parasos Possveis": as videoinstalaes que vo dos morros cariocas ao Plo
Norte. Disponvel em: http://www.colheradacultural.com.br. Acesso em 11/07/2011.
84
geografia, fsica, medicina, eletrnica, ou com todo o universo de informaes
que lhes esto disponveis.

Para alm da apropriao, a ps-produo na juno funk carioca e obra de


arte contempornea possibilita articulao entre os fluxos de informao,
apoiados pelas diferentes redes e a possibilidade de os artistas entrelaarem
essas informaes, reinvestindo-as com novos poderes, ampliando os
contornos dessas informaes.

Nesses termos, Bourriad aponta para uma arte que se integra de forma
essencial ao que a circunda, dialogando e utilizando elementos de outros
campos do conhecimento, para resultar em processos-produtos conectados a
seus ambientes, sendo arte e contexto indissociveis. E FUNK STADEN parte de
uma considerao do prprio contexto (Brasil, baile funk, sociedade
capitalista), relacionando-o com a histria da colonizao do Brasil, feita pela
Europa judaico-crist.

O trabalho da dupla MauWal, como so conhecidos Dias e Riedweg, toca


muito nas questes dos fora da lei, bordelines e excludos, dos que no
possuem um canal de expresso para reclamar seus direitos. Nesse sentido,
esto conectados sua realidade, e inclusive a usam como se ela fosse uma
fico. So artistas que atuam como documentaristas de suas prprias
propostas artsticas, as quais revelam, muitas vezes, uma situao que
preferamos ignorar.

Ao relatar cenas contundentes dos bailes funk ao canibalismo, a obra


relaciona um ritual de devorao ancestral do outro, a um acontecimento
atual da mdia brasileira. Assim, FUNK STADEN confronta seus espectadores
com o fato de que estamos envolvidos por uma histria, destacando as
maneiras como nos locomovemos por ela.

A obra se insere na discusso sobre o alcance e os limites polticos da arte;


aponta para a arte no apenas (ou mais) como um objeto, mas
essencialmente como as relaes que o artista alcana com/entre os
espectadores.

85
Desde o comeo da dcada de 90 pode-se assistir propagao de tais
prticas artsticas e culturais, que elevam os aspectos imateriais das obras de
arte. Determinadas caractersticas presentes nesse tipo de preocupao so a
nfase na relao entre artista e pblico (arte orientada pelo social), o
engajamento imediato do artista com uma audincia determinada (arte
como evento), a formao de coletivos artsticos e o uso de mtodos no
tradicionalmente artsticos como um meio de resistncia poltica82.

curioso marcar que as qualidades mencionadas prevem, com maior ou


menor profundidade, a questo da participao do espectador. Alguns dos
vocbulos que surgiram nesse contexto, por parte dos crticos de arte
internacional nos anos recentes, a fim de proporcionar definies teorias para
essa nova tendncia, podem ser citadas, entre eles, o termo arte situada,
por Clare Doherty.

Nessa nova configurao de site, o conceito de lugar tambm passa por uma
intensa modificao, do que antes poderia ser entendido como uma
localizao fsica especifica, para a atual configurao como um lugar ou
uma coisa estabelecida atravs de processos culturais, sociais, polticos e
econmicos.

Retornando a Bourriaud, esse nos conta que esse novo tipo de estratgia de
criao artstica tem origem na dcada de 1990, e que se d por meio de
objetos a serem manipulados, recolocados em circulao em novos contextos
e com novos significados, por atores tambm novos (artistas e espectadores).

A principal novidade apontada pelos crticos acerca dos escritos recentes de


Bourriaud seria a gerao de uma nova problemtica: a da convivncia de
seres humanos, objetos e figuras, configurando significados especficos e
singulares. Nesse sentido, participao do pblico um fator chave no
modelo proposto.

Dessa forma, o trabalho passa a ter seu significado totalmente vinculado


colaborao de indivduos normalmente excludos de sua produo (no caso
82
MAZZUCCHELLI. A arte como projeto, In: Revista Cultura e Pensamento. Vol. 2. Outubro/Novembro 2007.
86
especifico, os moradores das comunidades funk carioca) e insero dos
participantes dentro do espao de exposio da obra (os visitantes que se
inserem nas projees atravs dos espelhos). Assim, os processos de arte
passam a buscar a construo formal de entidades de tempo e espao que
possam desconstruir certos processos instalados na sociedade ps-moderna,
tais como a alienao, a diviso e desvalorizao do trabalho, a
mercantilizao do espao e das relaes, a coisificao da vida.

Rebelando-se contra a pobreza das alternativas polticas, o novo projeto de


arte, do qual FUNK STADEN faz parte, aponta para o fracasso do projeto
modernista e direciona-se para a construo de um novo projeto, no qual a
participao poltica possa ser mais efetiva, a comear pela sua incluso nos
processos artsticos.

87
III.II O caso PERFORMAFUNK cultura popular e formas hbridas de arte
combinadas em um projeto de performance urbana

PERFORMAFUNK um trabalho de classificao problemtica, dado


permeabilidade e fluidez com que se faz transitar entre diversas linguagens
artsticas, como a dana, as artes cnicas, a performance e a interveno
urbana. Em sua estruturao ainda em formato de projeto, o trabalho desafia
uma conceituao nica e fechada, muito embora tenha sido contemplado
pelo Prmio Funarte Artes Cnicas na Rua 2009, o que, no contexto das
polticas pblicas culturais, torna-se uma estratgia de ampliao de seu
alcance, j que o projeto poderia da mesma forma ter sido enquadrado em
um edital de vdeo, fotografia ou mesmo de dana.

Apesar de ter sido financiado por um Edital Pblico de fomento s artes


cnicas, pode-se constatar, pela presente leitura, que a fluidez de fronteiras
caracterstica do trabalho tem incio na prpria configurao do time de
artistas envolvidos83, oriundos de diversas linguagens artsticas como dana,
teatro de rua, vdeo, fotografia, msica e artes visuais.

A seleo e escolha por trabalhar com esses profissionais foi inspirada no


desejo de facilitar a interface entre diferentes formas de fazer artstico,

83
Performafunk j se apresentou com diversas formaes, entre essas incluem-se os artistas: Christina Fornaciari
(concepo, performance) doutoranda em Artes Cnicas pela UFBA, mestre em Performance pela Queen Mary
University of London (Inglaterra, 2005) e em Prticas e Teorias Teatrais pela ECA/USP. ps-graduada em Gesto
Cultural pelo Instituto Luigi Sturzzo (Itlia, 2007). Possui formao em Direito (BH, 2000) e pelo Teatro Universitrio da
UFMG (BH, 1999). Realizou residncia artstica na exposio Tropiclia: A revolution in Brazilian Culture no Barbican
Arts Centre, em Londres (Inglaterra-2006) e no Bronx Museum, em Nova York (EUA-2007). Gustavo Arantes Botelho
(vdeo) ps-graduado em Cinema pela PUC/MG e em Artes Visuais pelo SENAC/MG e possui formao em Cinema
Digital e Edio de Vdeo pela New York Film Academy (EUA). Joo Castilho (fotografia) artista visual, com diversas
exposies individuais e coletivas no Brasil e no exterior, ganhador dos prmios Conrado Wessel de Arte, Prmio Porto
Seguro de Fotografia, Bolsa Funarte de Estmulo a Criao Artstica e a Bolsa Pampulha. Em 2008 publicou o livro
Paisagem Submersa, pela Cosac Naify. Tem obras no acervo do Museu da Pampulha, no MAM da Bahia, no MAM de
So Paulo e na Coleo Pirelli-Masp de Fotografia. Eduardo Mendez (performance) vem de um background de arte
urbana, e h oito anos desenvolve a linguagem da interveno performtica na rua. J participou de eventos como II
Manifestao Internacional de Performance (Caminhando com meus Vcios e Virtudes), e Perpendicular:aes para
apartamento (Crislidas). Paloma Parentoni (corpo sonoro) produtora cultural, pesquisadora de ritmos populares e
DJ. Possui formao em Desenvolvimento Cultural pelo Curso Pensar e Agir na Cultura. Marcelle Louzada
(performance) performer e artista de dana, graduada em psicologia e Mestre em Artes Visuais pela EBA- Escola de
Belas Artes da UFMG. Paula Nunes (performance) formada pelo Teatro Universitrio da UFMG (1999). Leciona
teatro e cultura popular brasileira junto Secretaria Adjunta de Assistncia Social da Prefeitura de BH. multiplicadora
do Teatro do Oprimido, tcnica que utilizou em montagens teatrais junto ao Senado Federal, em Braslia/DF. Dirigiu e
adaptou "Cobra Norato, espetculo encenado por moradores de rua, que integrou a oitava edio do FIT/BH- Festival
Internacional de Teatro Palco e Rua. Juliana Floriano atriz, cengrafa, cantora e compositora. Faz parte do coletivo
Frito na Hora e j dirigiu e participou de montagens teatrais no Brasil e no exterior. Possui graduao em Artes
Visuais (pintura) pela EBA Escola de Belas Artes da UFMG e em Formao de Atores pelo TU Teatro Universitrio
da UFMG. Mariana Rubino sociloga formada pela UFMG e estudou no TU - Teatro Universitrio. Atuou em curta
metragem na Holanda, participando do Filmfestival de Roterdam e trabalhou como atriz e figurinista em So Paulo.

88
inaugurando na rua um espao de convvio que dissolvesse limites e borrasse
fronteiras entre manifestaes culturais, compondo o cenrio catico do
cotidiano da cidade. A cidade descortina o diverso, mistura sem pedir
licena... A arte tambm, nesse caso.

Assim, surgido da vontade de tratar de uma manifestao cultural popular,


que fosse urbana e de massa, sem cair no erro de isolar essa manifestao do
que h fora dela como se lida geralmente com folclore e outras expresses
artsticas populares -, o projeto visava a trabalhar em cima dessa
manifestao, e por meio dela, abordar questes hoje relevantes no universo
artstico contemporneo, nas instncias de produo de subjetividades das
classes pobres das metrpoles brasileiras.

Dentro dessa linha de pensamento, o funk carioca, com sua falta explcita de
comportamento, acaba por se fazer til, ao atingir um tema recorrente para
diversos artistas: a desconstruo da ordem vigente, a implementao de
polticas enviesadas, a dissoluo - ou exposio - dos agenciamentos
maqunicos que perpassam a cidade.

Por esses motivos, o universo do funk carioca serviria como rico ponto de
partida. Esse movimento to criticado pela classe mdia espelha valores j
enraizados na cidade - como a objetificao sexual, a frico de gneros, a
segregao urbana, a violncia -, e os potencializa, os torna visveis,
destacados - talvez por isso mesmo o funk seja to duro de engolir.

Alm disso, tambm tem a propriedade de se distanciar de alguns dos


mecanismos de controle impostos pela classe dominante, j que cria formas
no convencionais de consumo musical e cultural, bem como de sua
distribuio, configurando uma economia prpria, resignificando vocbulos,
redimensionando valores do ncleo familiar e apontando para uma nova
poltica - do prazer, e no da lei.

Uma leitura atenta de quem so os atores do movimento (gnero, etnia e


afiliao de classe) e do que eles enfatizam atravs do discurso, do
movimento e da materialidade sonora, revela o seu potencial subversivo. Ao

89
criar instncias vistas pela classe dominante como vergonha pblica, esses
atores configuram identidades e se organizam de forma a gerar intimidao.

Mesmo sem auto-proclamarem revolucionrios da moral e da ordem, os atos


praticados em um baile funk so de tamanha liberdade e anormalidade no
sentido de ausncia de normas vigentes que podem configurar-se como
atos de resistncia, de afirmao de uma identidade urbana, de
configurao de estratgias populares de sobrevivncia cultural e
econmica.

Por isso tudo, o conceito de Corpo sem rgos (CsO), criado por Gilles
Deleuze e Flix Guatari84 com inspirao nos escritos de Antonin Artaud,
parece se coadunar com os estados corporais provocados nos bailes funk
cariocas, no sentido de que esse ltimo tambm constitui, sua maneira, um
desfazimento da ordem, um desmantelar de controles, um corpo sem rgos.

Tanto CsO quanto o funk trazem em comum a assuno de um lugar de risco,


no qual limites e referncias so descartadas em prol da experimentao,
rumo a uma zona onde o corporal supera o racional.

Consideremos os trs grandes estratos relacionados a


ns, quer dizer, aqueles que nos amarram mais
diretamente: o organismo, a significncia e a
subjetivao. Voc ser organizado, ser um organismo,
articular seu corpo seno voc ser um depravado.
Voc ser significante e significado, intrprete e
interpretado seno ser desviante. Voc ser sujeito e,
como tal, fixado, sujeito de enunciao rebatido sobre
um sujeito enunciado seno voc ser apenas um
vagabundo.
Ao conjunto de todos os estratos, o CsO ope a
desarticulao (ou as n articulaes) como propriedade
do plano de consistncia, a experimentao como
operao sobre este plano (nada de significante, no
interprete nunca!), o nomadismo como movimento (...) O
que quer dizer desarticular, parar de ser um organismo?
Desfazer um organismo nunca foi matar-se, mas abrir o
corpo a conexes85.

84
DELEUZE e GUATTARI, Mil plats, capitalismo e esquizofrenia. v.1 e 3.

85
Ibidem.
90
atravs da ativao de mecanismos bsicos de comunicao, em nveis
pr-lingusticos, que ambas as atividades buscam derreter todo tipo de
estratificao organizadora, ou, nas palavras antropolgicas, atingem a
exploso de uma libido encurralada pela moral crist e pela tica esvaziada
da famlia, uma entidade que mesmo fragmentada e fantasmagorizada,
ainda faz frente ao niilismo e suas irradiaes86. Para o antroplogo Hermano
Viana, o movimento do funk carioca teria essa potncia a mesma a que
Deleuze e Guattari se referem - de desfazer estratos organizadores, sejam
cristos, morais ou econmicos.

Logo, notrio que a utilizao do funk no projeto no se deu por acaso, mas
sim fundada nesses aspectos que manifestam sua qualidade de revelar, para
ento reconfigurar agenciamentos.

E a essa reconfigurao/revelao, nem o prprio funk escaparia de dentro


do projeto. Propositalmente, esteretipos do movimento so dissolvidos em
PERFORMAFUNK. A escolha por trabalhar com um nmero pequeno de artistas,
criando um evento discreto, contrasta com o carter macro e de massa dos
bailes.

Embora presente em toda a obra, j que todas as aes so criadas a partir


de vocbulos, grias, costumes, imaginrio e iconografia retirados do mundo
funk, a ideia que ele seja apenas um ponto de partida para exploraes na
cidade, para a criao de movimentos corporais que tambm podem ser
chamados de dana, sem a necessidade de criar instncias j
comprometidas com o funk, inclusive sem a presena sonora desse gnero
musical.

Tal deciso ocorre a fim de evitar a reafirmao do carter de exotismo que


esse movimento apresenta, j que o extico surge como um mecanismo
dentro de um processo de alteridade. O extico um misto de admirao e
repulsa frente a algo. um empecilho a qualquer adensamento de relao.
Duvidando dos dogmas, sejam eles de ordem poltica, religiosa ou sexual,
posto que vivemos em uma poca em que tudo est extremamente inserido

86
VIANNA, Hermano. In: Revista RAIZ nmero um, Novembro de 2005.

91
na mdia, conforme a orientao de urgncia de um capitalismo. A frmula
em que o brasileiro se v transformado em produto de exportao,
identificado com a banana, futebol, samba e cerveja, redutora demais.
um tipo de autoreconhecimento absolutamente controlado pelos meios de
comunicao, que a tiram proveito econmico. Portanto, para utilizar o funk
no trabalho, era necessrio antes desconstru-lo, evitando a reafirmao do
esteretipo.

E, sendo o funk um movimento urbano, que ocorre na interseo de corpo,


espao pblico e linguagem tecnolgica, a utilizao da cidade na
realizao do projeto era tambm essencial conceitualmente, j que se
pretende misturar o trabalho ao cotidiano da cidade mesma, tornando-o mais
um acontecimento urbano, um quase acidente, gerado pelo acaso, pelo
caos.

Diferente de espetacularizar o trabalho (tornando a rua em palco), o que se


pretende desfazer os limites entre cidade e arte, entre vida cotidiana e
performance, teatro, interveno, dana. Estar perto do povo que habita a
cidade, diariamente, que ocupa suas ruas, seus pontos de nibus, suas
estaes de metr... A inteno surpreender as pessoas em seus trajetos
dirios.

Todas essas caractersticas apontam para o forte veio poltico do trabalho,


que se propaga at mesmo da divulgao do evento, feita de forma
diferenciada, longe da utilizao de cartazes, flyers e divulgao na internet,
alinhando conceito acessibilidade.

Assim, ao longo de todo o processo criativo, aes foram realizadas no local


das apresentaes, inaugurando a presena do projeto naquele mbito, e
convidando os que ali transitam ao exerccio de um olhar novo, distinto, com o
qual tocar a velha cidade. Nessas aes, os vocbulos retirados do universo
funk carioca foram apropriados por cada artista, na constituio de suas
aes e repertrios de movimentos.

92
Portanto, a partir dos estmulos derivados da iconografia pesquisada, a
criao de d de maneira totalmente livre, independente de um
compromisso com ritmo, linguagem ou esttica. De forma similar ao que
ocorre quando algum brasileiro avalia o funk: ele pode simplesmente dizer que
detesta essa cultura porque ela representaria coisas que ele no quer
sustentar, da propaganda de cerveja frequente ligao dos bailes com o
trfico de drogas e desvio de dinheiro pblico. No entanto, se a pessoa/artista
se sente atrada por esse universo, pode tentar se inserir e dele participar sem
perder seu olhar crtico.

A performance propriamente dita se desenvolve em uma dinmica intensa,


mesclando ao vivo os trabalhos gerados individualmente, sem ensaio prvio. O
espao pblico permeado por esses smbolos medida que so criados. Os
vdeos projetados no entorno do local de realizao eram captados ao vivo;
os performers, respondendo aos smbolos iconogrficos, dialogavam com os
transeuntes em constante troca. Nada era engessado ou cristalizado. No
havia tempo para reflexo, mas criao aps criao, continuidades e
simultaneidades inventadas no calor da cidade.

O contato dos artistas entre si tambm foi mnimo, ocorrendo apenas nas
visitas prvias, possibilitando um frescor da criao tambm para os
compositores em relao ao trabalho de seus companheiros. A assimilao de
trajetos por um e por outro participante ocorria no corpo, longe de pausas
reflexivas, num processo cognitivo em ao corporal e desencadeado por
aes corporais, visando mais aes corporais. Mesmo antes do evento em si,
essas assimilaes de trajetos j aconteciam, uma vez que o trabalho era
modificado e alterado ainda em seu processo de construo, devido a
alteraes/aes vindas de um participante ativo, a cidade.

O local onde escolhemos fazer PERFORMAFUNK uma rea


de expresso urbana fortssima. Em todas as paredes do lugar
h trabalhos de grafitti, de diversos artistas e traos variados.
Foi por isso (em parte) que decidi trabalhar com o spray. No
primeiro dia que visitei o local, o muro em frente casa do
conde estava branco, era o nico totalmente branco, alis, e
na hora pensei nas projees ali. Porm, no dia seguinte,
quando voltei com o grupo, o local tinha sido pichado.

Pensei, ento, em utilizar um spray branco para "limpar" umas


pichaes que apareciam nessa parede branca, onde, a
93
princpio, ocorreriam as projees. Ento, surgiu uma ao
fsica dessa situao, que seria pintar o muro de branco
simultaneamente projeo. Para pintar, eu usaria primeiro um
spray branco por cima dos escritos, e depois um rolo. E meio
que todos poderiam eventualmente se alternar nessa posio
de pintor. S que trabalhar com a cidade imprevisvel... dois
dias depois, o muro estava todo pintadinho, de laranja, e sem
as pichaes. Ento, eu quis manter o spray, e escolhi com o
Eduardo (integrante do grupo que artista visual e tem um
trabalho com grafiti), uns stencils com imagens de coisas que
voam, que transportam pelo ar - balo, helicptero, avio - e
um cachorro (que dialogaria com a "cachorra" grafitada com
stencil, e me serviria como um meio de demarcar o territrio,
alheio e ao mesmo tempo nosso, que estvamos invadindo).

Vesti a asa de anjo para compor essa passagem para alm do


plano concreto do urbano: como se o grafitti fosse um modo
de fazer a cidade transcender seus muros, e se estender pelas
possibilidades infinitas que os artistas do spray imprimem nessas
paredes urbanas. Tudo isso me serviu conceitualmente de
estmulo para buscar me exprimir na performance atravs do
spray, buscando me comunicar atravs dessa linguagem
urbana que faz dos muros mais um comeo que um fim. Da,
dessa idia do muro como comeo, surgiu tambm a vontade
de ME imprimir na/de cidade. Da, busquei dependurar roupas
minhas na parede e grafitar uma parte do desenho sobre a
roupa, e outra parte do desenho no muro.

Ao ser retirada, a roupa deixa um "buraco" no desenho, ou


seja, eu fico na parede atravs da ausncia que foi gerada no
desenho. Foi uma forma que encontrei de deixar pedaos do
meu corpo na cidade, e vice-versa. Porm, fui surpreendida
novamente pela cidade e os moradores de rua, que ao me
virem ali pichando, se empolgaram e vieram tambm brincar,
pois aquilo para eles era tido como um ato criminoso... mas eu
afirmava a eles que no, aquilo no era crime, era arte. Por
isso, no final, acho que me transformei no anjo dos cados,
legitimando seus pecados, e a pichao acabou se
tornando um forte elemento de integrao entre ns
performadores e os habitantes do local87

Como se percebe, nessas quatro apresentaes em Belo Horizonte, cada uma


com durao de aproximadamente duas horas, PERFORMAFUNK manteve
uma intensa troca com o ambiente em que ocorreram, locais esses
densamente habitados e com intenso e contnuo fluxo de pessoas.

Nesse ponto, configura-se a participao popular no trabalho: uma proposta


na qual as classes mais baixas possam ser inseridos no universo da arte

87
Entrevista a Mariana Lage. www.chrispsiu.blogspot.com. Acessado em 03/07/2011.
94
contempornea dita alta, oficial, porm longe da esttica vitimizadora,
que arrogantemente enxerga os pobres como desprovidos de subjetividade.

Abaixo, algumas imagens do trabalho, feitas por Joo Castilho, demonstram


como essa participao popular ocorreu ao longo de toda a obra:

88

88
Nessas imagens: meninos de rua e Christina Fornaciari fazem intervenes de grafite no espao urbano e em si
mesmos; Eduardo Mendez, com suas molas de borracha, incorpora o Joo teimoso, termo retirado da pesquisa
iconogrfica acerca do universo do funk carioca.
95
O conceito de CsO de essencial importncia no contexto da criao
conceitual do projeto. Mas como entender esse conceito cunhado dentro
do universo filosfico aplicado no mbito na dana, das artes cnicas, da
performance, da poltica? E como e por que conectar essa relao com o
conceito de Corpomdia? E onde a cidade se encaixa nesse pensamento?

So perguntas que possibilitam diversas respostas, e iniciaremos tentando


entender onde o CsO se encaixa nas questes acerca das artes do corpo,
do funk e da cidade, aqui tratadas. Deleuze e Guattari tratam o CsO como
um plano de consistncia, a partir do qual o organismo se desenvolve por
dobramentos e estratificaes impostas pelos sistemas de controle (religio,
moral, capitalismo, estruturas sociais fechadas). Para os autores, esse plano
urge de recuperao, ou de ressurreio, o que poderia ser obtido apenas
atravs de experincias prticas, capazes de desconstruir as configuraes
que agem para moldar, dobrar e estratificar o corpo, fazendo-o retornar ao
CsO.

Deleuze e Guattari fazem uso de escritos de William Burroughs89 para revelar


algumas dessas experincias de retorno ao CsO, em textos que aludem a
carnes sendo costuradas, ndegas para sempre trancadas, seios pisados e
cortados, lnguas fatiadas e outros detalhes com que narrado um ritual
sadomasoquista: uma possvel - e arriscada estratgia em busca do CsO.

Os autores rastreiam o CsO na hipocondria, na paranoia, na esquizofrenia,


no masoquismo e nas fantasias somticas que compem os delrios da
droga, novamente recorrendo a Burroughs. "Mas por que este desfile lgubre
de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o
CsO tambm pleno de alegria, de xtase, de dana?", perguntam-se os
autores. "Voc agiu com a prudncia necessria? No digo sabedoria, mas
prudncia como dose, como regra imanente experimentao: injees
de prudncia. Muitos so derrotados nessa batalha", parecem responder.
Sem essas necessrias injees de prudncia, atinge-se, sim, o Corpo sem

89
BURROUGHS, William S. Almoo nu. So Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

96
rgos, mas de modo inverso ao que se pretendia: "Corpos esvaziados em
lugar de plenos."

Recomendam Deleuze e Guattari, que para cada tipo de CsO devemos


perguntar: 1) Que tipo este, como ele fabricado, por que
procedimentos e meios que prenunciam j o que vai acontecer; 2) e quais
so estes modos, o que acontece, com que variantes, com que surpresas,
com que coisas inesperadas em relao expectativa?" Pode-se chegar a
fabricar um CsO atravs de perguntas respondidas com experimentaes, e
o alcanamos na medida em que nos desfazemos do eu. E ainda
prescrevem os autores que se deva "(...)substituir a anamnese pelo
esquecimento, a interpretao pela experimentao. (...) Encontre seu
corpo sem rgos, saiba faz-lo, uma questo de vida ou de morte, de
juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. a que tudo se decide."

90

90
Nessas imagens, em sentido horrioi: Gustavo Arantes projeta sobre corpo-tela de Christina Fornaciari, Paloma
Parentoni recolhe rimas de funk de transeunte e Paula Nunes encarna o mito da mulher fruta.

97
Assim, sem correr os risco de chegar a um dualismo, verifica-se que, no
projeto, o CsO foi criado a partir de um processo de despersonalizao do
criador que, ao criar em improvisao coletiva, torna-se outro, por meio da
prpria criao.

Torna-se um processo obrigatoriamente necessrio, j que o trabalho


composto no instante em que surge no mundo, trespassado de
agenciamentos que a prpria condio de ser feito na cidade, na rua ou
em outro lugar pblico provoca nos artistas.

Ao mesmo tempo, a prudncia presente, j que o EU uma construo


frgil nem sempre nos reconhecemos no espelho. Os artistas que se
dissolvem e dissolvem o funk - em suas criaes, se espelham nelas, at se
reconhecem, mas como sinais - no h contaminao com a imagem do
espelho. Ora, criar significa, nesse sentido, criar um CsO pleno de sentidos,
de sentidos que no so do EU que creio que sou, mas de um outro EU: um
devir-outro.

Ainda segundo os autores, o percurso de criao do Corpo sem rgos se


d em duas fases distintas. possvel que os autores dividam a criao em
uma primeira fase, de desconstruo dos estratos autoritrios, o que leva ao
surgimento de espaos dentro do corpo, a serem preenchidos na segunda
fase. E preenchidos de intensidades. Assim, o CsO se manifestaria em
constante movimento, circulao de intensidades que se consomem e se
regeneram, criando ondas de abismo que racham e se recompem. Cada
fase se finaliza reiniciando a seguinte, mantendo a energia em livre
circulao.

Apego-me a esse ponto para criar um nexo entre o CsO e o taosmo chins,
a titulo de exemplificao, semelhana do nexo que poderia haver entre
o CsO e a criao coletiva que inclui o pblico - em PERFORMAFUNK. O
taosmo se constri sobre a fundamentao da meditao, e meditar nada
mais que limpar a mente de todo pensamento, focando a ateno
apenas no ato da respirao. Torna-se clara a conexo entre a criao do

98
CsO - suas duas fases e sua constante impermanncia e a meditao
taosta sua busca por esvaziar a mente de pensamentos e inteno de
preench-la de respirao. A respirao em si mesma um ato de
imanncia, composto de duas fases, inspirao e expirao, em constante
construo e desconstruo, consumo e produo, presena e ausncia.

Nesse sentido, em "Como Criar para Si um Corpo sem rgos", trata-se de


uma filosofia no carnal, no corpo, no/em movimento. Uma filosofia que se
vale de ideias para atingir a matria, que busca em conceitos, elaborados
por Deleuze e Guattari, instrumentalizao para potencializar libertao
biopsicolgica a partir de prticas corporais. Um pensamento que parte do
corpo e a ele retorna, nesse percurso desconstruindo os rgos: desfazendo
limiares entre o externo e o interno. Uma razo que respira, e circulando,
conecta o fora e o dentro.

Isso bastante claro em todo o processo de criao de PERFORMAFUNK:


primeiro, o esvaziamento do contedo do movimento funk carioca, o
desfazimento de seu esteretipo, criando uma ruptura com o sentido em
que visto, criando assim seu esvaziamento. A seguir, fazer circular nesse
universo as criaes que nasceram desse mesmo universo, porm
impregnada de pessoalidades e subjetividades que o conectam com o
interior de cada artista ali envolvido.

Da mesma forma, os artistas so tambm esvaziados de seu EU, so des-


-subjetivados, medida que suas criaes so guiadas e mediadas pelas
criaes dos outros e pelo prprio universo do funk. Como na respirao, a
circulao e permanente troca entre interno e externo se processam
continuamente.

Nesse ponto, pertinente explicitar a tese de Helena Katz acerca do


Corpomdia, j que nesse ponto o trabalho por ora retratado vai se
relacionar ou poderamos dizer vai mesmo traduzir com o prprio
conceito de Corpomdia. Em diversos artigos, Katz argumenta que o desejo
de permanecer leva necessidade de se prolongar atravs do outro, de

99
fazer outros a partir de si mesmo. E esse desejo somente pode se realizar
desde que as informaes se operem em um processo permanente de
comunicao.

As informaes encostam-se, umas nas outras, e assim se modificam e


tambm modificam o meio onde esto. Tal processo afeta a todos os nele
envolvidos, seja a prpria informao, seja o corpo onde ela encostou e do
qual passou a fazer parte, sejam as outras informaes que constituam o
corpo at o momento daquele contato, sejam o ambiente onde esse corpo
(agora transformado) continua a atuar. E, estando transformado, esse corpo
tende a se relacionar com a nova coleo de informaes que agora o
constitui. Ento, tambm altera o seu relacionamento com o ambiente,
transformando-o. Contgios simultneos em todas as direes, agindo e
interagindo em tempo real.

Nessa estrutura, argumenta Katz, com o passar do tempo as trocas


permanentes tenderiam, quase como uma conseqncia natural, a borrar
os limites de todos os participantes do fluxo, produzindo, ento, uma
plasticidade no congelada de suas fronteiras91. Se as trocas no param,
pois pertencem ao fluxo permanente, cada corpo est sempre sendo um
corpo processual e em codependncia com as trocas que realiza com os
outros corpos e com o ambiente. Por isso, pode-se pensar o corpo como
sendo sempre um resultado provisrio de acordos contnuos entre os
mecanismos que promovem as trocas de informao, incluindo a a cidade
tambm como um corpo.

A compreenso da vida como produto e produtora de um mundo em rede


dessa natureza marca uma diferena bsica. E nela, a hiptese de que os
corpos so sempre corpos-mdia de si mesmos ocupa uma posio central.
A proposta de que todo corpo Corpomdia de si mesmo, isto , um
Corpomdia do estado momentneo da coleo de informaes que o
constitui, mexe tambm com o entendimento habitual de mdia. Aqui, mdia

91
KATZ. In: Todo Corpo Corpo Mdia. Disponvel em/; http://www.helenakatz.pro.br. Acesso em 03/04/2010.

100
no tratada como sendo um meio de transmisso. Na mdia que o
Corpomdia emprega, a informao fica no corpo, se torna corpo. No se
trata da noo de corpo-mquina, em que adentra uma informao que
estava fora (no ambiente), a mquina processa e, em seguida, a devolve
ao ambiente, em uma sequncia fora-dentro-fora. O que ocorre um
constante fluxo no qual fora e dentro no mais so perceptveis, no qual a
ordem de entrada e sada no mais pode ser fixada. A mdia do
Corpomdia, ento, identifica um estado do corpo-ambiente, e vice-versa.

A experincia dos artistas e do pblico ali envolvidos a materializao


clara e potente do conceito que Helena Katz nos traz, uma vez que o
Corpomdia gerado em PERFORMAFUNK identifica o efmero dessas
estruturas de troca que perfazem a comunicao no trabalho, gerando
corpos-mdia. Isso notvel nas constantes trocas que ocorreram em
PERFORMAFUNK, que so, na verdade, essas aberturas de frestas
comunicativas, sintaxes que se abrem brevemente, para logo se transmutar
novamente num ciclo de troca que afeta tanto os corpos quanto o meio, de
maneira igualmente potente.

No fragmento de entrevista que concedi jornalista Mariana Lage,


demonstrei e detalhei algumas das formas como essas trocas ocorriam,
apontando para sua potncia desconstrutora de estratos controladores:

Desde o incio, quando convidei os artistas participantes, a


orientao que passei era a de que a interao deles entre si
- e at mesmo com o pblico como outro performer- era
secundria, pois aconteceria naturalmente,
independentemente de qualquer planejamento ou
intencionalidade. Assim, a liberdade deles foi ampla ao
ponto de no prever qualquer tipo de relao, a no ser a
relao com os termos do funk que eu havia lhes passado. E,
apesar disso, como j previsto, houve interao o tempo
todo! O Eduardo, que retirou da cidade a matria de suas
instalaes cmeras de ar de pneus velhos conseguidos em
borracharias no centro da cidade - viu suas instalaes de
totalmente apropriadas pelos moradores de rua. Enquanto
seu peso esticava as borrachas, e os moradores de rua
faziam o mesmo, os carros e nibus s vezes tinham que
parar, pois o elstico se espichava de tal forma com o pesos
desses corpos, que toda a instalao chegava a invadir a
rua, ia para o asfalto! A Paula estava no ponto de nibus e o

101
tempo todo interagindo, chegando ao ponto de entrar em
um nibus e algumas pessoas descerem com ela, saindo
antes do lugar que deveriam descer. O Gustavo e o Joo,
com suas cmeras, buscavam nos performers/pblico sua
alimentao, e essas imagens eram retroalimentadas e
alimentavam a prpria performanceAs imagens ficaram
sobrepostas ao caos que j existia ali, nesse sentido criando
uma certa overdose imagtica, que eu acho bastante
produtiva em um trabalho que busca retratar o urbano e
seus excessos, como o prprio funk. Acima de tudo,
acredito que o vdeo era um elemento que fazia um recorte
da performance. Como havia muitas coisas acontecendo ao
mesmo tempo, o vdeo funcionava como um olhar mais
refinado, que buscava essa sobreposio, essa
simultaneidade, mas de uma forma mais calculada, e
injetava esse novo olhar novamente para dentro da ao.
Paloma, com seu megafone, a todo tempo coletava entre os
transeuntes fragmentos de versos de funk, que por sua vez,
iam interferir na movimentao corporal do grupo e dos
presentes no local... Da mesma forma, a minha interao
com os meninos de rua atravs do spray, criou relaes que
alteraram o espao urbano aquelas marcas esto la nas
paredes ate hoje! - alm de nos alterar enquanto corpos,
sujeitos. Isso fica muito claro nos vdeos. Acho que isso
natural do trabalho de rua92.

No fragmento abaixo, pode-se ainda notar com ainda mais clareza como as
setas de intercomunicao, que tornam o corpo um Corpomdia, ainda
mais notvel, quando em minha fala, me mostro bastante afetada pelo
comportamento inusitado e inadequado - dos moradores de rua durante
o trabalho, numa poltica que empodera os moradores de rua e os coloca
como agentes principais do trabalho, em detrimento da prpria artista.
Nota-se explicitamente, nessa passagem, o carter poltico dessa ao:

... O que aconteceu com o vdeo foi que nossa "tela"


sumiu, como te expliquei acima. Por sentir que faltava
um corpo a esse vdeo - tanto um corpo onde ser
projetado (nossa tela tinha sumido) e no primeiro dia as
imagens forma projetadas basicamente no teto do
ponto de nibus, mas quanto um corpo mesmo, de
performer, j que o Gustavo (artista do vdeo) sempre s
projetava e nunca era projetado, corporalmente
falando - eu resolvi, no segundo dia, criar uma
vestimenta-tela. Essa veste-tela ao mesmo tempo podia
receber as imagens do projetor, mas tambm me servir
como a parede branca do incio, pronta para ser
pichada. Tambm dava uma forma mais
desumanizada ao meu corpo, compondo um corpo

92
Entrevista a Mariana Lage. Disponvel em: www.chrispsiu.blogspot.com. Acesso em 03/07/2011.

102
sem rgos e me permitindo realizar os movimentos de
funk sem o risco de mimetizar. Para minha surpresa, uma
coisa, no entanto, me incomodou. No segundo dia,
quando eu estava realizando os movimentos de funk
utilizando a veste-tela, sempre vinham uns moradores
de rua e tentavam me "engatar por trs... danavam
engatados, como se estivessem em um baile funk.
Aquilo me tirou do plano da metfora, do corpo sem
rgos, e me mostrou o quanto era difcil para eles
desligar aqueles movimentos do funk, levar para outro
lugar. Mesmo sem ver meu corpo, j que eu estava
com a veste-tela, o que ficou para eles foi o
movimento, a coreografia do funk muito potente. J
est de tal forma enraizada que no teve como
escapar de uma certa mimetizao, mas vindo da
leitura que eles fizeram. Nessa hora eu fiquei
frustrada..93.

Como na cidade, no corpo tambm o fluxo constante de/entre pessoas,


energias, velocidades, presenas e ausncias, torna o Corpomdia
intensidade pura, eternamente a circular. Sua instantaneidade perpetua a
cidade enquanto instabilidade, ruptura com seus mapas, cartografias e
organizao. Nas palavras da pesquisadora Paola Berenstein,

A cidade lida pelo corpo como conjunto de


condies interativas e o corpo expressa a sntese dessa
interao descrevendo em sua corporalidade, o que
passamos a chamar de corpografia urbana. A
corpografia uma cartografia corporal (ou corpo-
cartografia, da corpografia), ou seja, parte da hiptese
de que a experincia urbana fica inscrita, em diversas
escalas de temporalidade, no prprio corpo daquele
que a experimenta, e dessa forma tambm o define,
mesmo que involuntariamente (o que pode ser
determinante nas cartografias de coreografias ou
carto-coreografias94.

Como o Corpomdia e o CsO, a cidade no passvel de organizao, de


controle, de sistematizao. Nunca est sujeita a uma s forma, uma s
funo, um s meio. Em PERFORMAFUNK isso evidente: nada constante.
Ou antes, em PERFORMAFUNK, na cidade, no Corpomdia e no CsO, a nica
constncia sua permanente inconstncia: entidades que se consomem e
se regeneram, incessantemente. Entidades que se definem por meio de sua

93
Entrevista a Mariana Lage. www.chrispsiu.blogspot.com acessado em 03/07/2011.
94
BERENSTEIN, Paola. Esttica da Ginga, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2001. Pg..21.

103
indefinio, desconstruindo tabus e esteretipos, portanto, instituindo novas
instncias polticas.

Assim, no fazer PERFORMAFUNK, as prticas/processos de criao do CsO,


Corpomdia e a cidade, se manifestam. Cada corpo, cidade includa,
acumula diferentes experincias urbanas vividas, por cada um, e cada um
de sua maneira, com sua temporalidade, sua materialidade, sua
intensidade. Por constantemente estar a subverter o estabelecido sem gerar
novos estabelecimentos nada se estabelece, tudo processado e em
processo PERFORMAFUNK problematiza os corpos, os coloca em contnua
crise. na falta de soluo que surge a potncia poltica do evento, na
ausncia de soluo que ele se resolve existncia na experimentao, na
no-interpretao, e, nesse ponto, reside seu potencial revolucionrio,
rebelde, anarquista. Caractersticas tambm presentes no movimento funk
carioca.

104
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