Assedioprofessoraluna
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O Conselho Federal da OAB - por meio da OAB Editora - ressalta que as opiniões emitidas nesta
publicação, em seu inteiro teor, são de responsabilidade dos seus autores.
P195
ISBN: 978-65-5819-041-7.
CDDir: 341.556
CDU: 343.232:396(81)
SU M Á R IO
\N IN G U N A A G R E S IÓ N S IN RESPU ESTA!
ACCIONES DE COLECTIVAS
FEMINISTAS UNIVERSITARIAS DE BOGOTÁ FRENTE AL ACOSO SEXUAL....85
Juliana Flórez Flórez, Sara Cano Díaz, Eliana Carrillo, Laura Suspes
xxxiii
Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
xxxiv
A UNIVERSIDADE É PÚBLICA, NOSSO CORPO NÃO: trajetórias de um
coletivo feminista na Universidade Federal de Pernambuco......................... 415
Karla Galvão Adrião, Daniele Cristine Cavalcanti Rabello, Bárbara
Pereira Martorelli, Mariana Borelli Rodrigues
xxxv
A SSÉ D IO SEXUAL NO EN SINO SU P E R IO R BRASILEIRO: u m a
a n á lis e s o c io g e n d r a d a d a s e m o ç õ e s e d a s s u b je tiv id a d e s
n a t r a n s f e r ê n c i a e n t r e a lu n a s a s s e d i a d a s e p r o f e s s o r e s
a s s e d ia d o r e s
Valeska Zanello**
Iara Flor Richwin*
1 INTRODUÇÃO
291
Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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um lado, e a submissão e domínio das mulheres, concentrando o
capital cultural e a validação do saber nas mãos dos homens
(MARTINEZ-LOZANO, 2019; SEGATO, 2003, 2020).
c) o funcionamento de duas "leis" simbólicas efetivas: a "ignorância
cultivada" e o “não saber” (MINGO; MORENO, 2015). A primeira
aponta para uma posição do grupo circundante em fazer vista
grossa frente às situações de assédio sexual; e a segunda consiste
em um não querer saber/pensar, por parte dos homens, sobre os
próprios privilégios e responsabilidades, bem como sobre
problemas e opressões de gênero.
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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como tom e timbre de voz; uma parte do corpo, como olhos, cabelo; características
da personalidade; o conhecimento, a retórica, o humor etc.
Se no processo de análise espera-se que o analista maneje (n)a
transferência o conteúdo que nele é colocado, devolvendo-o para o próprio
paciente (em seu processo de perlaboração, tomada de consciência e
simbolização), na educação, espera-se que o professor utilize esse lugar que lhe é
concedido para o desenvolvimento do saber do próprio aluno. No caso do analista,
trata-se de uma questão antes de tudo técnica, mas também ética (FREUD,
1912/1974 e 1914 [1915]/1974); no caso do professor, trata-se eminentemente de
uma questão ética. Idealmente, é necessário que ambos (analista e professor)
possuam uma certa elaboração do próprio narcisismo, para que não caiam no
engodo de confundir o lugar em que são colocados com as qualidades de sua
pessoa. E mais, para que não abusem, a partir desse lugar e da fragilização em que
a transferência coloca o aluno. Antes de mais nada, o que se interpela na ética é,
principalmente, a responsabilidade pelo (destino do) outro.
É nesse ponto que precisamos gendrar o fenômeno tão detalhadamente
descrito por Freud e que, talvez, nos ajude a entender por que o assédio sexual é
comum em pares de professores homens e alunas, mas bem mais incomum entre
professoras e alunos. Gênero deve ser aqui entendido não apenas como repetição
estilizada de performances (BUTLER, 1990), mas também como configuração de
emocionalidades (LE BRETON, 2009), marcada em países sexistas, pelo
binarismo do tornar-se homem e mulher. No Brasil, os processos de subjetivação
do tornar-se mulher são pautados pelos dispositivos amoroso e materno, e o dos
homens, pelo dispositivo da eficácia (ZANELLO, 2018). Em nosso estudo, vamos
nos centrar sobretudo no dispositivo amoroso e na virilidade sexual, um dos
pilares do dispositivo da eficácia.
Segundo Zanello (2018), o dispositivo amoroso estabelece o amor
como um elemento identitário e de legitimação para as mulheres, que “ se
subjetivam, na relação consigo mesmas, mediadas pelo olhar de um homem
que as ‘escolha’” (ZANELLO, 2018, p. 84). Nesse sentido, elas são
interpeladas a centrarem sua existência na relação amorosa com um homem
que as escolheu. O “ser escolhida” é subjetivado, então, como uma experiência
vital, de legitimação de seu valor e de afirmação social e identitária. Uma
“verdadeira mulher” deve ser “a preferida” e, jamais, “a preterida” . Para
figurar o lócus simbólico desse processo de subjetivação, Zanello (2018)
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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Levando em consideração as discussões apresentadas, o objetivo
deste capítulo consiste em analisar como os processos de subjetivação
gendrados se atualizam na transferência entre aluna e professor e como eles
participam na configuração e na potencialização traumática das situações de
assédio sexual no contexto universitário.
2 MÉTODO
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
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recebeu o seguinte conselho: “Isso pode prejudicar ele a ponto dele perder
tudo, inclusive o concurso! E como você tem vontade de seguir uma carreira
acadêmica, eu te aconselho que você não denuncie. Não fa le nada, porque isso
pode te fechar portas lá na fr e n te ” (muito choro).
Ana desistiu da área que tanto a empolgara, pois Sérgio era uma figura
central nesse campo, coordenava o laboratório e era amigo dos demais professores
envolvidos: “na época (...) eu quis sair do curso, eu pensei em trancar”. Então
surgiu Marcelo, professor muito elogiado pelos alunos, que ofereceu uma
disciplina na qual Ana se matriculou. Angustiada com o que havia acontecido com
Sérgio, Ana pediu um horário com Marcelo para conversarem. Ainda duvidava se
o que acontecera era uma violência ou se era comum e correto o que Sérgio fez.
Marcelo foi muito receptivo e assegurou-lhe que Sérgio estava errado. Além disso,
estimulou-a a não abandonar o curso e convidou-a para integrar seu grupo de
pesquisa, o que ela aceitou. Ana apaixonou-se pelos estudos de Marcelo: “eu achei
muito bonito, fo i um encantamento assim, um segundo encantamento...me
resgatou dessa decepção imensa”.
Ana disse que Marcelo se apresentava sempre cheio de mistérios, com
um dom muito especial. Os alunos eram encantados por sua figura. A questão
espiritual e a religião que ele seguia se faziam muito presentes. Além disso, Ana
buscou um psicoterapeuta indicado por ele: “fo i invadindo todas as áreas assim” .
Ela fez várias disciplinas com Marcelo e seguiu a pesquisa, até chegar no estágio,
que era de um ano e exigia do aluno o comprometimento em permanecer
vinculado por esse período. Nas supervisões, Marcelo não apenas supervisionava
a prática, mas aplicava técnicas nos supervisionandos e dava orientações sobre sua
alimentação, em um lugar que se aproximava de um mestre espiritual: “era uma
imersão, muito doido assim, envolvia também alimentação, então ele entrava
muito como essa pessoa perfeita, muito equilibrado ... um lugar bem idealizado,
assim, bem místico, bem mágico mesmo”.
A comunicação estabelecida por Marcelo era marcada por
ambiguidades, palavras evasivas e metáforas abertas. “Ele estabelecia um
relacionamento que a gente queria muito, muito, receber um elogio dele;
porque eles eram raros ... é meio nebuloso assim... ao mesmo tempo que ele
era muito acolhedor, ele era muito sádico, não reconhecia, não legitimava
nada, era sempre destituindo com muito acolhimento” . Marcelo começou a
dedicar muitos elogios a Ana, exaltando suas intervenções, suas interpretações,
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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era muito confuso” . Ao mesmo tempo, tinha muito medo de dizer não e
“perder tudo aquilo (...) M as não só desse carinho, mas como aluna, como
formação, o estágio estava indo a m il por hora, eu estava amando os textos,
eu estava muito realizada profissionalmente, academicamente, então eu tinha
medo de perder tudo” .
Marcelo insistiu no encontro fora da universidade. A cabeça de Ana
fervia e ela acabou aceitando, “eu tinha uma confiança nele, porque ele se
mostrava como um cara muito ético, muito íntegro (...)Aí eu falei: Gente, que
mal? É o MARCELO (enfatiza), poxa! (...)E fui. A gente fo i pro X X ”. Quando
chegaram, Marcelo se deitou em seu colo e disse que aquele momento era para
que ela o visse com outros olhos. Eles se beijaram e Marcelo disse que não
queria brincadeira, que era sério, que queria assumir para todo mundo,
inclusive contar para a coordenadora do curso. Era um tudo ou nada. Ana se
sentiu surpresa e pressionada: “mas como é que você pensa que isso vai
funcionar? Você é meu professor! Eu tô na graduação!” .
Pediu para ele esperar, pois precisava pensar: “a ífo i minha vez de falar
quais eram as minhas condições! ‘Ok, acho que a gente pode fazer isso sim, mas
a minha vida acadêmica e profissional é o centro da minha vida ’. Disse que não
estava disposta a perder isso em nome de relacionamento e namoro. Eu não tinha
o sonho de me casar (...) eu queria ser uma excelente profissional (...). Então eu
tinha muito medo de assumir um relacionamento com ele e perder o mérito das
minhas conquistas””. Marcelo disse que só poderia ajudá-la, pois faria o pós-
doutorado no exterior e poderia levá-la junto. Ana reiterou que gostaria de abrir
suas portas por mérito próprio e ele respondeu: “vai ser do jeito que você achar
melhor, mas é importante você entender que eu posso conseguir algumas coisas
pra você chegar lá mais rápido””. E repetiu que ela estava se envolvendo com um
homem e não um moleque.
Menos de uma semana depois, Marcelo tornou pública a “relação” com
Ana diante dos estagiários. Para ela, ainda estavam na fase de se conhecer e testar
a relação. Ela pagou para ver, mas não estava apaixonada. E então a situação foi
se tornando um inferno: Marcelo começou a querer dominar sua vida, orientá-la
sobre o que comer, que horas acordar, dormir etc.: “ele era idoso [risos]. Então
tinha que acordar muito cedo, tinha que fazer coisas de velho, e eu e tava com 21
anos, eu estava namorando uma garota um mês antes, ia pra balada todo dia””.
Marcelo se colocava como um mestre, que fazia orientação espiritual: “elefalava:
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
você vai ver, você vai se acostumar”. Ele também começou a criticar os amigos
de Ana. Implicava com as séries que ela assistia. Começou a invadir totalmente a
sua vida. Apesar de temer retaliações de Marcelo, Ana terminou a relação um mês
depois: “chegou num limite assim... eu estava com ojeriza mesmo (...)aí eu falei:
(...)o que vier, eu vou ter que enfrentar (...) eu tinha medo, medo da retaliação,
mas eu falei ‘não consigo mais! ”
Com o término da relação, Ana resolveu sair da pesquisa, mas quis
permanecer no estágio de que tanto gostava. Marcelo garantiu que isso seria
mantido. Porém, assim que o semestre começou, com o período de matrícula já
encerrado, ele comunicou que não poderia mantê-la no estágio, pois estava
emocionalmente abalado. Ele disse que o que ela havia feito deixou-lhe graves
sequelas psíquicas e que estava até tomando remédios psiquiátricos. Ana
precisava do estágio para concluir o curso e disse: “Isso é coisa de moleque,
Marcelo! Você falou que você é homem, mas o que você tá fazendo é coisa de
moleque! Você tá prejudicando a MINHA vida profissional, que eu te falei que
era a coisa mais importantepra mim [choro]”. Saiu desesperada do encontro, mas
juntou forças e conseguiu um estágio com outro professor. Depois de formada,
decidiu fazer mestrado em outro estado. Disse que foi difícil ressignificar essa
experiência, mas que conseguiu fazê-lo na relação com o orientador de mestrado,
alguém que respeitava os limites e tinha uma postura profissional.
Análise do caso
302
É importante destacar que Marcelo não somente se identificou com esse
lugar, mas tentou efetivamente ocupá-lo, como um mestre, que não apenas
transmite conhecimentos aos alunos, mas ainda lhes guia em seus hábitos,
alimentação, espiritualidade. Ele caiu na cilada de acreditar que aquilo que lhe era
direcionado tinha a ver com sua pessoa, e não com o suposto lugar em que estava
sendo colocado. Porém, para além dos elogios às habilidades intelectuais e
profissionais de Ana, Marcelo atravessou a linha ética e a assediou sexualmente,
não de forma clara, mas de maneira indireta, usando palavras metafóricas e dúbias.
E mais, o assédio sexual, vinha disfarçado de “carinho” e “cuidado”, o que deixou
Ana ainda mais na dúvida entre aquilo que ela conseguia ler nas palavras e aquilo
que ela ressentia nas entrelinhas. Precisou da ajuda de uma amiga para
efetivamente nomear o que se passava entre ela e o professor.
Ana reconhece que, para além da satisfação de se ver reconhecida como
futura profissional, era gostoso se sentir escolhida e chancelada como mulher. Isso
tem a ver com o comparecimento do dispositivo amoroso na relação
transferencial. Gostar de se sentir escolhida não necessariamente fazia de Marcelo
uma opção amorosa. Na conversa em que ele se declarou, Ana ainda resistiu,
nomeando a diferença essencial do que parecia se passar ali: ela o via como
professor, como mestre, mas ele respondeu como homem, pela virilidade sexual.
Não satisfeito com a inacessibilidade de Ana, ele lhe propôs que saíssem do
âmbito universitário para que fosse possível que ela tivesse outro olhar. Ou seja,
ele insistiu; e essa insistência é calcada numa forte pedagogia afetiva do tornar-se
homem na nossa cultura: a de que um NÃO talvez possa se transformar em um
SIM. Nunca é demais lembrar que se trata de uma relação mediada por uma
hierarquia e distribuição (real e imaginária) desigual de poder.
Ana disse que não estava apaixonada, mas que deixou rolar, ainda que
temesse perder tudo o que lhe era mais caro naquele momento, que não era Marcelo,
mas o que a ele estava ligado no âmbito acadêmico e em seu projeto de vida. Ela
lhe disse claramente que sua vida profissional era mais importante que qualquer
relação amorosa; ou seja, apesar de sentir satisfação em ser escolhida, não se
mostrava amor-centrada. O dispositivo amoroso estava agindo, mas tinha seus
limites. Marcelo usou meios de sedução relacionados ao desejo profissional e
acadêmico de Ana (“posso abrir portas”), ainda que ela se mostrasse resistente.
A pressa de Marcelo em publicizar a relação perante outros alunos e
colegas fez com que Ana se sentisse pressionada e exposta. Além disso, ele se
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
arrogou o direito de palpitar sobre sua vida, seus amigos e tentar ser o mestre
total, o que levou Ana ao sufocamento e a terminar o que nem havia começado
direito. É importante dizer que Ana contou com a ajuda de uma grande amiga
durante todo esse processo e, no final, também contou com a ajuda de sua mãe.
Frente ao grupo de pesquisa, Marcelo mostrou-se “apaixonado” e em
grande sofrimento. Ou seja, posicionou-se como uma vítima, como em geral
acontece, desresponsabilizando-se pela situação e produzindo a culpabilização
de quem foi assediada. Aqui faz-se mister destacar que o grupo também
estabelecia uma transferência importante com Marcelo ( “todos os alunos eram
encantados com ele”) e que, entre um par-rival e o mestre, é muito pouco
provável que o grupo faça cumplicidade com o par-rival. E dificilmente um
professor não se inteira desse fato. Ao contrário, muitas vezes faz uma
manipulação intencional a partir desse lugar.
Marcelo usou então seu poder acadêmico para tentar prejudicar Ana
em seu estágio, usando uma chantagem emocional ( “estou até tomando
remédio psiquiátrico”) que visava culpabilizá-la por ela ter decidido terminar
a relação. Apesar de tudo, Ana conseguiu romper, engajou-se em outro estágio
e, novamente, se viu frente à necessidade de abandonar um sonho, um projeto
profissional de um percurso futuro. Ela não procurou a coordenação porque já
havia “aprendido” as regras do jogo na situação anterior de assédio moral: não
importava o tamanho da injustiça ou violência, ali ela era sem-poder e, se
quisesse ter algum futuro profissional, precisava suportar aquilo e tocar a vida
adiante, para que essa história não lhe fechasse portas.
Sobre os efeitos do assédio, é importante destacar que, apesar de Ana
ter conseguido se formar, ela desistiu de seguir nessa área e de tentar o
mestrado por um tempo. Ela só voltou a sonhar com a vida acadêmica quando
identificou a possibilidade de fazer um mestrado em outra cidade, em outra
universidade. Dentre os fatores que contribuíram para o desfecho
razoavelmente bem-sucedido do caso de Ana, podemos citar: o não total amor-
centramento no dispositivo amoroso (um real investimento na vida acadêmica
e profissional, que antecedeu essa experiência); ter contado com uma rede de
apoio encarnada na figura da amiga e da mãe.
304
3.1.2 Lúcia: ”com o é que eu vou sentir raiva, sendo que f o i ele que abriu
todo esse espaço”
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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academicamente para além daquilo que eu poderia dar naquele momento, ele
sabia disso (...) Quando eu não correspondia, quando eu não sorria, quando
eu não aceitava o presente, quando eu recusava o convite de ir para um café,
a exigência ela dobrava".
Os sentimentos de Lúcia foram se tornando cada vez mais ambivalentes:
"Em um primeiro momento eu neguei efalei assim: ‘isso é brincadeira dele ’, ‘não
tem nada a ver’; noutro momento, eu falei assim: ‘não, de fato, ele tá me
cantando, isso tá passando do limite ’. Em alguns momentos eu sentia (...) muita
raiva, mas ao mesmo tempo (...) vinha um sentimento de culpa fora do normal,
vinha assim: ‘como é que eu vou sentir raiva, como é que eu vou brigar com o
César, como é que eu não vou deixar ele se apaixonar por mim, sendo que fo i ele
que abriu todo esse espaço pra eu chegar? ’". Ela sentia raiva pela violência e
culpa tanto por se sentir ingrata em relação ao que ele supostamente lhe deu,
quanto por não conseguir colocar um limite assertivo. "Toda vez que eufalo nisso,
é uma tentativa de elaborar... por mais que eu tenha consciência do que tenha
acontecido, pra mim é muito ambivalente".
César passou a violar ainda mais sua intimidade: "ele vasculhou meu
facebook (...)e falou: ‘o seufacebooknão é condizente com uma doutoranda’.
Porque eu gosto de carnaval e me fantasio no carnaval e boto purpurina ”.
Novamente, somado à imobilização e congelamento, Lúcia sentia raiva e
culpa. A situação chegou a um ponto em que orientação do doutorado virou o
nome burocrático de uma relação esvaziada de conhecimento e com espaço
apenas para uma investida erótica unilateral. César começou a narrar sonhos
eróticos, sonhos em que era pai de seu filho. Além das redes sociais, passou a
policiá-la em eventos da área: "Na reunião da XX, eu estava conversando com
um colega meu (...)e aí ele me chamou no canto e disse: ‘não quero você de
conversa com esse menino porque eu não gosto d ele!’". Lúcia começou a
adoecer. De aluna vivaz e participativa, foi esmorecendo, se anulando: "Eu
parei de participar. Eu gostava de participar, eu sorria para as pessoas e eu
apaguei! Apaguei!". Ou seja, ela teve de amputar uma dimensão extremamente
prazerosa em sua vida, que era discutir, conhecer.
Já em esgotamento, ocorreu a gota d'água: Lúcia precisou chegar
atrasada em uma reunião do grupo de pesquisa e pediu a uma colega que
avisasse César. Ao entrar na sala, César recebeu-a gritando: "Quem você pensa
que é para se dar o luxo de chegar atrasada desse jeito? (...) Você não está
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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mensagem: "eu tenho todas as mensagens registradas, todos os e-mails
registrados, porque toda vez que eu me coloco em dúvida, eu tenho pelo menos
ali uma questão concreta, pra mim, não é nem para os outros, é para mim
mesma. Será que isso realmente aconteceu? A í eu: tá aqui! Tá aqui!".
Na busca de nova orientação no doutorado, Lúcia foi confrontada com
uma exigência por parte da professora: "só te oriento se você não denunciar o
César". Ela aceitou e ficou um ano sem conseguir produzir nada: "Teve um
impacto grande na minha vida (...) Eu tomei antidepressivo e ansiolítico. E eu tive
que passar por alguns processos para alguém de fora me confirmar que eu tinha
sofHdo um assédio". A culpa persiste até hoje: "eu ainda me culpabilizo, eu penso
‘Lúcia, você podia ter sido mais firme! Você podia ter batido o pé, você podia ter
feito diferente’". As consequências dessa experiência também persistem: "Eu
me sentia muito mais segura. Hoje eu tenho muita dificuldade de estabelecer
relações com homens... e eu sinto muito medo de estar sozinha com um homem
que eu não conheço... sensação de estar correndo risco... isso veio depois da
história do César de uma form a mais intensa".
Análise do caso
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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César manipulou a transferência grupal para desencorajar Lúcia a
romper com ele, pedindo que alguns alunos interviessem. Ao invés de acolhê-
la, o aluno deu a entender que a culpa era de Lúcia, pois ela se vestia de
minissaia. Ou seja, César seria uma vítima e ela, a aluna sedutora. Lúcia
ressaltou que não recebeu apoio das pessoas do grupo e que teve de enfrentar
praticamente sozinha essa situação. Houve uma cumplicidade do grupo com o
assédio sexual, tentando inclusive silenciá-la e trazê-la de volta para um certo
lugar de aceitação das investidas.
No pedido de mudança de orientador, ocorreu uma cumplicidade
institucional com o assédio sexual. Em primeiro lugar, pela forma como foi
conduzido o pedido, com a leitura integral de todos os e-mails e mensagens de
César na frente de todo colegiado. Em segundo lugar, com a condição imposta:
Lúcia deveria não denunciá-lo. A preocupação foi com a reputação e carreira
de César e não com a proteção de Lúcia.
Sobre os impactos do assédio, podemos apontar aqueles presentes no
decorrer da própria situação assediadora: a paralisia, o constrangimento e a culpa,
relacionados principalmente à ambivalência experimentada na relação. Também
se destacam os efeitos posteriores, como a raiva, autoculpabilização, ansiedade,
tristeza, depressão, falta de desejo e motivação em estudar, crises de choro.
Ademais, Lucia identifica como consequente a essa experiência o
desenvolvimento de uma dificuldade de estabelecer relações e confiar em homens.
Por fim, é importante destacar que o processo vivenciado por Lúcia
foi muito solitário e ela não contou com o apoio de colegas ou parentes. Até
hoje, Lúcia coloca em dúvida o que viveu, encontrando na leitura das
mensagens a comprovação para si mesma de que sofreu uma violência e que
foi efetivamente assediada sexualmente.
3.1.3 Paula: “Qualquerpasso em falso, elepode me tirar tudo e eu não tenho nada”
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Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
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Eu só saí me sentindo mal, eu não quis pensar sobre, eu acho que eu tava em
negação, entendeu? Acho que tinha um mal-estar até meio físico assim, ao
mesmo tempo um sentimento de culpa, que eu não sabia de onde estava vindo,
eu tava me sentindo meio desorientada”.
Paula não comentou sobre o ocorrido com ninguém. Disse que tentou
esquecer o que tinha se passado. Decidiu então provocar um encontro entre
André e seu namorado, pedindo que ele buscasse uns materiais quando ela
estava na sala do professor. Quando André conheceu seu namorado: “ele se
comportou de um jeito muito esquisito, que eu fiquei muito nervosa, acho que
essa é a sensação, eu saí da sala do André me sentido nervosa, tipo tremendo
por dentro. Segundo Paula, André, que normalmente era amistoso e gentil, foi
muito seco e ríspido com seu namorado “muito marcando o território mesmo”.
Depois disso, no fim do semestre, André chamou Paula para um almoço:
“eu também nesse momento senti alguma coisa dentro de mim assim, esse mesmo
estremecimento assim, só que eu de novo racionalizei, eu pensei ‘ok, ele querfalar
alguma coisa da pesquisa, massa, a gente precisafinalizar mesmo ”” No encontro,
André foi direto: “ele disse que tinha me chamado lá porque desde o congresso
tinha começado a sentir uma coisa diferente por mim, e que ele tentou se afastar
pra ver o que era, mas que que ele não conseguiu e que ele gostava muito de mim,
e aí ele fe z um tipo de declaração (...) aí ele tirou de debaixo da mesa uma rosa e
ele me entregou, e ele perguntou se eu queria casar com ele, e ele disse que
poderia conversar com meu pai [risos], se eu quisesse e tal e eu falei: ‘meu deus
do céu, André! ’. Eu disse: ‘olha eu não sei o que me aguarda no futuro, mas do
que eu posso dizer de hoje é que quem eu gosto é o meu namorado, é com ele que
eu gostaria de me casar um dia ’”.
Paula conseguiu se posicionar, mas os efeitos da situação vieram de
imediato: “eu só lembro de me sentir que eu estava me desestruturando por
dentro, sabe? Muito esquisito. Eu senti fisicamente uma desestrutura assim, e
eu disse: ‘A ndré eu acho que a gente tava muito próximo e tal, acho que tudo
isso era porque você me admirava pelo meu trabalho”. Não só isso: circulava
no grupo uma experiência anterior de assédio sexual por parte desse professor
com outra aluna, a qual, no fim, foi banida do grupo de pesquisa e estágio.
Paula expressou seu receio: “André, eu sei o que aconteceu com Ivone! Tipo
querendo dizer: e agora? Você vai me tirar de tudo por conta disso? A í ele me
disse: não, isso nunca vai acontecer, com a Ivone fo i diferente” . André insistiu:
313
Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas
“a gente ainda vai voltar a conversar sobre isso/” . Paula diz que saiu de lá
desestruturada “duvidando de mim mesma, e me sentindo muito mal, com
muitos sentimentos misturados” . André pediu que ela guardasse segredo sobre
essa conversa. Paula disse que se sente culpada até mesmo em relatar a história
na entrevista: “eu descumpri essa promessa várias vezes, eu j á contei para
algumas pessoas, mas nunca no caráter de que de alguma form a isso vai ser
divulgado. Sei lá, parece que eu tô tipo traindo ele, entendeu?” .
Paula tentou ir para a faculdade, mas teve uma crise de choro. “não soube
explicar porque, eu só morri de chorar” . No mesmo dia, André mandou uma
mensagem convidando-a para ir a sua casa para finalizarem a análise de dados da
pesquisa. Ela lhe respondeu: “André eu não me sinto confortável de ir pra sua
casa! ’. A í ele ficou espantado: ‘mas o que é isso? Que isso, Paula? Você sabe que
eu nunca faria nada, não sei o quê ’. Esse processo foi devastador para Paula: “Eu
morri de chorar 50 vezes nesse dia. (...)não sabia o que ia acontecer comigo,
entende? Porque eu fiquei assim tipo eu preciso manter a normalidade porque
tudo o que tinha academicamente na época, que hoje eu vejo que era tipo uma
coisa pequena perto do universo, mas pra mim na época meu universo era X (área
de pesquisa de André), Y (cidade onde vivia), Z (Instituição de ensino superior
onde estudava) entendeu? E André fazia parte de todo ele/ A í eu fiquei tipo eu vou
perder tudo! Que que eu vou fazer? ”
Paula passou a colocar em xeque a conclusão do curso, mesmo
estando no penúltimo semestre: “eu fa lei ‘eu não sei cara, acho que vou trocar
de profissão, eu não s e i’. Eu fiquei assim, bem duvidando de tudo assim, e com
muito medo, tipo cara e agora? Qualquer passo em falso ele pode me tirar de
tudo e eu não tenho nada” . Paula já estava inclusive combinando com André
a possibilidade de seguir em um mestrado. Decidiu se abrir com Léa, uma
amiga do grupo. Durante a conversa, chorou muito. Contou também para o pai
e a mãe. Começou a ter pesadelos. Em um deles, André aparecia falando “ ’se
a gente não resolver essa coisa nessa vida, a gente terá que resolver em ou tra ’.
Que ainda envolvia uma parada espiritual, que me deixava paranoica, do tipo,
‘será que isso é uma coisa que eu preciso passar espiritualmente com ele?
Será que eu tô descumprindo alguma regra?’. (...) eu comecei a surtar muito” .
As crises permaneceram ao longo do ano. André tentou manter uma
normalidade impossível para Paula: “eu não dava conta (...)tudo o que ele dizia
eu não sabia se era pra mim, porque como eu não tinha pegado as dicas e
314
indiretas dele antes, eufiqueiparanóica, entendeu? (...) ao mesmo tempo meio
desestruturada internamente, identitariamente eu a c h o ". Além disso, Paula
sentia que André tinha uma dívida de reparação com ela: “eu tinha um senso
de que ele tinha que me reparar de alguma forma, então também eu
demandava muito dele assim, e eu tinha muita raiva dele engasgada sabe,
então como ele andava pianinho comigo, eu vira e mexe soltava umas nele,
sabe? Eu era grossa com ele, coisas que antes disso eu não faria, entendeu?
Eu era estúpida (risos), sei lá, curta e grossa com algumas coisas” .
Mesmo nessa relação tão complicada, Paula conseguiu finalizar o
PIBIC. Começou a estudar para o mestrado e não conseguia vislumbrar outra
pessoa para orientá-la: “Eu tava tão minha única opção é o André (...) pra mim
não existia vida acadêmica sensata fo ra do André, é bizarro dizer isso hoje.
Eu questiono minha própria sanidade mental quando penso que um dia eu
achei isso, mas eu achei isso na época!” . Depois de entrar no mestrado, Paula
começou a questionar o papel da relação com André em sua aprovação: “será
que isso influenciou na minha entrada no mestrado? Tipo, qual influência o
André tinha na seleção’. E completa: “Eu também me utilizei disso de certa
forma, eu não quero jogar a responsabilidade nele não” . Ou seja, além do
sofrimento, também havia benefícios secundários.
A relação de orientação ficou abalada. Paula contou que a
proximidade física de André incomodava, sentia nojo. Ele era controlador e
não a deixava tomar decisões sobre seu mestrado: “fu i começando a fica r um
pouco de saco cheio disso, e aí como ele se comunicava muito indiretamente
isso me deixava doida, aí eu pensei se eu fo r finalizar meu mestrado com essa
cara eu vou precisar ter uma conversa com ele sobre o que aconteceu há um
ano atrás” . Mas ela não queria voltar a tratar desse assunto com ele, com medo
de novas investidas. Tentou fazer isso por email, mas André se esquivava,
talvez com medo de constituir uma prova objetiva. Teve então a ideia de
marcar uma conversa com André, mas com a presença de Léa: “A í ele falou
que ia fazer o pos-doc na XX, e que ele não ia poder mais me orientar, e eu
fiquei desesperada... e agora, o que que vai acontecer com o projeto?” . Apesar
do receio inicial, Paula se engajou com uma nova orientadora, mulher,
conseguindo se desligar de André e concluir seu mestrado. Ela disse que essa
mudança de orientação foi o melhor que lhe aconteceu.
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Análise do caso
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persistiu na pesquisa e entrou no mestrado, que seria orientado por ele. Aqui
vemos a força do laço transferenciai que a mantinha nessa relação: para além de
André, ela não via nenhuma possibilidade interessante no campo profissional.
André lhe fez prometer que não contaria a ninguém o que se passou,
levando a vítima do assédio a se revitimizar ao se sentir culpada por
compartilhar a história. É importante destacar que Paula mesma nos apontou
esse sentimento de estar traindo André ao compartilhar conosco o que se
passou, pois estaria quebrando uma promessa. Mas, para além dos impactos e
efeitos negativos do assédio, tais como paralisação, angústia, culpa, ansiedade
extrema quanto ao futuro profissional e crises de choro, Paula reconhece que
usufruiu de benefícios secundários por ter sido colocada nesse lugar. É um
reconhecimento ambivalente, como foi, por exemplo, sua entrada no mestrado.
Se houve proteção de André para que fosse aprovada na seleção (não sabe, mas
questiona), por outro lado, isso coloca em questão seu valor e capacidade (teria
passado se não fosse ele?). A partir de então, passou a contar com a mediação
de uma colega do grupo para interagir com André. Ao que tudo indica, ao
perceber que Paula não seria facilmente manipulada e silenciada, André deu
um jeito de cortar a relação.
Por fim, precisamos ressaltar a importância da quebra da
cumplicidade proposta por André no assédio, ao solicitar-lhe um silêncio
benevolente, manipulado desde onde André era colocado na relação
transferencial. Ainda que fosse e seja difícil quebrar o pacto proposto, Paula
conseguiu sair desse lugar com a ajuda de sua rede de apoio.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Outro importante aspecto evidenciado pelos três casos refere-se à
satisfação narcísica implicada no “ser eleita”. Os processos de idealização, projeção
e hiperinflação da imagem do professor na transferência, quando articulados aos
mecanismos subjetivos do dispositivo amoroso, promovem grande satisfação nesse
lugar, uma vez que o “ser escolhida” constitui chancela fundamental do valor de
mulheridade em nossa cultura. Nesse ponto, vemos um borramento comum aos três
casos: a surpresa, a dúvida e o desconforto, mas, ao mesmo tempo, o sentimento
gostoso de sentirem que são especiais, não para uma pessoa qualquer, mas para
aqueles a quem elas consideram muito especiais e admiráveis. Esse jogo de espelhos
inebria, mas, a um só tempo, constitui o caminho perfeito para a paralisação. No
início, o assédio parece vir como um reconhecimento de sua capacidade e
desempenho. Porém, conforme se torna mais nítido o interesse sexual do professor,
o que antes proporcionava satisfação narcísica passa a ser perfurado pela dúvida
destrutiva que coloca em xeque o próprio reconhecimento que se pensava gozar
como aluna: “então ele só quer me comer”
Os casos de Ana, Lúcia e Paula revelam de modo patente a
objetificação sexual da mulher por parte do professor, a partir de sua atuação
sob a égide da virilidade sexual. Observa-se, aqui, a reafirmação da diferença
hierárquica de gênero que atribui o capital cultural e simbólico - tesouro mais
valorizado nas universidades - ao mundo dos homens, sobrando às mulheres
o lugar de objetos sexuais (SEGATO, 2020; ZANELLO, 2018). A aluna, ser
humano em processo de aprendizagem, é reduzida à mulher, objeto disponível
ao desejo sexual do homem, professor. É importante sublinhar o que, do
professor, também se reafirma nessa atuação: a exibição de uma virilidade
sexual que, nos casos discutidos, se apresenta como algo irrefreável. Em
momento algum é questionada essa não renúncia ao desejo; ao contrário, se
responsabiliza o objeto desejado pelos possíveis desfechos da situação.
Também se fez evidente a cumplicidade institucional e dos grupos
com relação ao assédio sexual. Esse ainda é um grande tabu a ser
problematizado e enfrentado nas instituições de ensino superior no Brasil. Ele
transita em meio a um processo de silenciamento, no qual várias cumplicidades
são interpeladas de modos distintos, que podem ser, em maior ou menor
medida, emocionais ou corporativistas. Diferentes atores institucionais
participam, consciente ou inconscientemente, da manutenção do silêncio e da
invisibilização desse tipo de violência. Em geral, o propósito é evitar
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isso, psicologizar esse fenômeno. Ao contrário, ao mostrar o gendramento da
transferência e a configuração social, histórica e cultural das emocionalidades por
meio de processos gendrados, aderimos a uma politização dos afetos e daquilo
que, em uma mirada superficial, pareceria ocorrer somente na esfera privada.
Por fim, ressaltamos que este estudo sofre da limitação de ter sido
realizado somente com mulheres brancas, uma vez que, pelo método da “bola
de neve”, não tivemos acesso a mulheres negras e indígenas. Nesse sentido,
apontamos a importância de que sejam realizadas pesquisas sobre o assédio
sexual no ensino superior a partir de uma perspectiva das relações raciais. A
prateleira do amor, o reconhecimento por ser escolhida e os processos de
objetificação sexual não funcionam da mesma forma com mulheres brancas,
negras ou indígenas, o que pode implicar em outras configurações do assédio
sexual e de seus impactos sobre as mulheres. Além disso, também são
necessários estudos que abordem esse fenômeno a partir da perspectiva das
diversidades sexuais e de gênero.
REFERÊNCIAS
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KUPFER, M.C. Freud e a educação : o mestre do impossível. São Paulo:
Scipione, 1989.
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