Prostituuiçao Modernidade Otima Introduçao
Prostituuiçao Modernidade Otima Introduçao
Prostituuiçao Modernidade Otima Introduçao
TESE DE DOUTORADO
VERALCIA PINHEIRO
2006
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TESE DE DOUTORADO
Este exemplar corresponde redao final da tese defendida por Veralcia Pinheiro e aprovada pela Comisso Julgadora. Data: 30/06/2006 Assinatura: ...................................................................................................... Orientadora
2006
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Ficha da biblioteca
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AGRADECIMENTOS
Aos professores Ana Maria Fonseca de Almeida, Maria Ins de Freitas Petrucci dos Santos Rosa, Nildo Viana e urea Maria Guimares pela valiosa contribuio na banca de qualificao,
Aos Colegas da Universidade Estadual de Gois - Unidade Universitria de Jaragu, pelo incentivo e amizade.
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RESUMO
Nossa pesquisa est vinculada ao Grupo de Pesquisa Violncia, Imaginrio e Educao (Violar), da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas SP (UNICAMP), e tem como objeto de estudo a relao entre a memria da violncia no processo de socializao de crianas e adolescentes e o exerccio da prostituio como modo de vida. O ponto de partida de nossas reflexes foram as narrativas de trs mulheres, cujas condies de ingresso precoce na prostituio (antes dos 18 anos) e cuja trajetria infanto-juvenil, marcada por vrias modalidades de violncia (fsica, simblica, sexual etc.), correspondem s caractersticas que definimos para constituir nosso universo investigativo. Nosso intuito foi apresentar de forma textual a experincia vivida e os argumentos orais dos prprios sujeitos. Para isso, ancoramo-nos em autores como Walter Benjamin, Ecla Bosi, Jos Carlos Sebe Bom Meihy e Maurice Halbwachs, buscando compreender os significados da violncia nas memrias das jovens. Apresentamos, por isso diferentes situaes de misria material e moral, as quais retratam inmeras transgresses que contradizem nossa noo de civilizao. No obstante acreditamos que o desvelamento desta condio humana pode contribuir com a produo do conhecimento tanto quanto a investigao de outros universos do mundo social.
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ABSTRACT
Our research is linking with researchs group violence, imaginary and education (Violar), from Education Faculty from University of Campinas-SP (UNICAMP) and its object of study is the relationship between violencys memory in the children and teenagers process of socialization of the children and adolescents and the exercice of prostitution as way of life. The starting point of our reflections had been the narratives of three women, whose conditions of precocious ingression in the prostitution (before the 18 years) and whose trajectory of childhood and youthful were marked by several kind of violence (physical, symbolic, sexual etc) correspond to features which we define to constitute our investigative universe. Our intention was of word-perfect form the lived experience the proper subjects the orals arguments. Thus, we support in authors like Walter Benjamin, Ecla Bosi, Jos Carlos Sebe Bom Meihy and Maurice Halbwachs, searching for understanding the meanings of violence in the memories of the young. We present, therefore differents situations of material and moral misery, that depict several infringements whereby contradict our notion of civilization. human condition may contribute with the production of knoweledg alike the investigation of others universes from social world.
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EPGRAFE
Sem cessar ao meu lado o Demnio arde em vo; Nada em torno de mim como um ar vaporoso; Eu degluto-o a sentir que me queima o pulmo, Enchendo-o de um desejo eterno e criminoso. Toma, ao saber o meu amor fantasia, A forma da mulher, que eu mais espere e E tendo sempre um ar de pura hipocrisia, Acostuma-me a boca a haurir um filtro infame. Ele conduz-me assim longe do olhar de Deus, O peito a repartir-se de morna exausto, Pelas terras do tdio, infinitas, desertas, Para depois jogar os torvos olhos meus Ascorosos rasges e feridas abertas, E os aparelhos a sagrar da Destruio! Charles Baudelaire (Flores do Mal: A destruio)
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SUMRIO
INTRODUO
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55 78 90
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CONSIDERAES FINAIS
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
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INTRODUO
Nesta pesquisa investigamos a relao entre a memria da violncia no processo de socializao e o exerccio da prostituio como modo de vida. Para isso, realizamos entrevistas com mulheres jovens que romperam com as formas tradicionais de socializao e vivenciaram momentos de prostituio e de violncia quando ainda no eram adultas e que possuem em comum: a entrada na prostituio antes dos 18 anos, uma socializao mediada pela violncia, o abandono da escola concomitantemente ao ingresso na prostituio, alm da vivncia no espao social da cidade de Goinia. Atravs das entrevistas, elas nos ofereceram sua histria de vida. Assim, na presente pesquisa, trabalhamos com narrativas pois nosso objetivo discutir a relao entre violncia e prostituio na contemporaneidade, buscando compreender de que modo a violncia fsica, moral ou simblica e sexual atua no processo de socializao dos jovens, cujas experincias de infncia esto relacionadas com a violncia. Pretendemos verificar a importncia dessas narrativas em plena era das modernas tcnicas de comunicao/informao (televiso, internet, telefone celular etc), as quais demarcam o lugar das lembranas no processo de
transmisso das experincias, na tentativa de retir-las de seu isolamento, de maneira que venham a contribuir com outras formas de resistncia aos poderes que ajustam o funcionamento dos corpos, gestos e atitudes, tanto aos processos econmicos quanto aos modos de vida que, tal como alertou Costa (1984), causam sofrimentos muitas vezes desnecessrios e insuportveis para uma criana e um adolescente. Diversos estudos tm tratado de temticas relacionadas prostituio de crianas e adolescentes no Brasil. Sousa (2001) apresenta um extenso levantamento sobre os trabalhos que tiveram por objetivo conhecer esta problemtica, no meio acadmico ou fora dele. De acordo com a autora, a partir da dcada de 1990, cresceu o interesse pelos estudos sobre a prostituio envolvendo crianas e adolescentes, devido presso exercida por diferentes entidades/instituies nacionais e internacionais. Segundo Sousa (2001), a publicao, em 1994, do livro A menina e a adolescente no Brasil: uma anlise da bibliografia, pela Coordenao de Estudos e Pesquisas sobre a Infncia (CESPI) da Universidade Santa rsula (USU-RJ), inaugurou o tema da prostituio infantil e juvenil na dcada de 1990. Esta obra apresenta um item especfico sobre o fenmeno da prostituio infanto - juvenil e tambm ressalta a escassez de literatura sobre essa temtica. Segundo a autora, embora tenham
transcorrido seis anos desde a publicao da obra supracitada, no houve uma alterao significativa no que se refere a esse tipo de produo acadmica. Souza (2001) afirma que as pesquisas realizadas no Brasil sobre a existncia da prostituio de crianas e adolescentes enfocam, em geral, as formas que a prostituio assume e tambm os motivos que levam esses indivduos a se prostiturem. Por meio do levantamento feito pela referida autora, tomamos conhecimento dos objetos de estudo, de que tratam estas pesquisas: quais os significados da prostituio para as crianas e adolescentes, assim como para as instituies que atendem essa demanda; o processo sade-doena ligado sexualidade e violncia que o grupo sofre; as representaes sociais sobre a prostituio infanto-juvenil presentes nos depoimentos da Comisso Parlamentar de Inqurito; a identificao das diferentes estratgias discursivas utilizadas pelo jornalismo para construir uma discursividade que rena o infantil e o ertico, etc. At o momento de realizao do levantamento feito pela autora, as pesquisas apontavam para aspectos diversos da prostituio de crianas e adolescentes: a dade sade-doena; a relao prostituio, pobreza e uso de drogas; a associao entre o estar nas ruas e ser prostituta. Algumas tratam do cotidiano das crianas e adolescentes, preocupadas em identificar os espaos sociais por onde transitam as meninas vendedoras de chicletes e os diversos significados sociais contidos nas prticas deste tipo de trabalho infantil . No presente estudo, embora procuremos investigar o significado da violncia na memria das jovens, no nos voltamos exatamente para a prostituio de crianas e adolescentes, portanto no se trata de um estudo sobre a organizao da prostituio infanto-juvenil. Os sujeitos pesquisados, no nosso caso, so mulheres jovens, cujas primeiras experincias com atividades de prostituio ocorreram quando ainda no eram adultas. Por essa razo, realizamos um levantamento que, apesar de no ser exaustivo, procura oferecer ao leitor a viso de algumas pesquisas realizadas no Brasil sobre a prostituio.
De modo geral, estas pesquisas investigam o cotidiano das mulheres, as relaes de poder, os papis e a identidade das mulheres, os estigmas etc. Em 1980, a dissertao de mestrado de Anjos Jnior: A serpente domada: um estudo sobre a prostituio de baixo meretrcio, comparou a organizao da prostituio em duas grandes cidades: Braslia (Posto Sete) e Fortaleza (zona do
Farol Velho). O autor enfocou neste trabalho as relaes de poder que se estabelecem no interior e fora da zona, no chamado baixo meretrcio. Anjos Jnior identificou, em seu estudo, que a escolha da prostituio pelas mulheres1 deve-se ao fato de os ganhos, apesar de descontnuos, serem significativamente superiores aos que poderiam ser obtidos em outras atividades, a exemplo dos empregos domsticos, constituindo-se, dessa forma em alternativa de trabalho para as mulheres pesquisadas. Elas escolheram a prostituio, muito embora tenham tido que enfrentar todo tipo de discriminao e preconceito. Assim, o conceito de estigma garantiu suporte ao autor frente a seu objetivo de compreender comportamentos tidos como desviantes. A pesquisa de Gaspar realizou-se entre 1979 e 1983. Em maro de 1984, ela apresentou sua dissertao de mestrado2, intitulada Garotas de Programa - um estudo sobre prostituio e identidade social. Esta pesquisa3 foi publicada, em 1985, pela editora Zahar, sob o ttulo Garotas de programa: prostituio em Copacabana e identidade social, cujo foco principal so as garotas de Copacabana4 que exercem atividades de prostituio e se autodenominam garotas de programa. Teorias sobre desvio so utilizadas pela autora para explicar o processo de construo de suas identidades pelas jovens a que se refere. O universo da pesquisa constitui-se de garotas provenientes de famlias de classe mdia, da que a prostituio no vista por elas como uma opo diante da necessidade de sobreviverem. Ao contrrio, esta atividade percebida, muitas vezes, como o caminho para o luxo, o conforto, a fama, enfim, como forma de ascenso social. Com suporte terico em Goffman5, ela questiona o estigma, considerando que a mulher prostituta pode resguardar sua verdadeira identidade em seu contato cotidiano com o cliente. No extremo desta modalidade de prostituio, temos o estudo de Bacelar, originalmente apresentado como dissertao de mestrado sobre a famlia da prostituta, o qual retrata mulheres, em sua maioria, negras e com baixa qualificao profissional, num contexto scio-econmico bastante precrio. A pesquisa realizou-se no centro antigo da cidade de Salvador, no bairro Maciel,
- H, nesta preocupao do autor, uma similaridade com nosso objeto de estudo, pois procuramos investigar as possveis relaes existentes entre as lembranas da violncia na infncia e a escolha da prostituio. 2 Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 3 - De acordo com a autora, o livro Garotas de programa: prostituio em Copacabana e identidade social , basicamente, sua dissertao de mestrado. 4 - Bairro da cidade do Rio de Janeiro, na zona sul, cujos moradores so, em sua maioria, de classe mdia. 5 - As obras citadas pela autora so: GOFFMAN, Erving. A representao do eu na vida cotidiana. Petrpolis, Vozes (Col. Antropologia, 8): 1975 e Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar (4. Ed., 1982).
da pesquisa,
atividades de prostituio. Nestas circunstncias, a prostituio seria uma estratgia de sobrevivncia utilizada por mulheres desempregadas, donas-de-casa. O destaque para a famlia da prostituta decorre da preocupao das mulheres em afastar os filhos e outros parentes nos horrios em que atendiam os clientes. Tal postura indica, para o autor, que a idia de famlia encontra-se interiorizada no comportamento das prostitutas em evidente contraste com a viso desenvolvida pela sociedade. A perspectiva de Bacelar resulta do dilogo com tericos que discutem a liberdade, os preconceitos e a normalidade, concluindo que nenhum indivduo pode ser totalmente desviante, pois sempre existiro reas em que agir como um indivduo considerado normal. Mazzariol, em sua dissertao de mestrado, defendida em 1976: Mal necessrio: ensaio sobre o confinamento da prostituta, realizou uma pesquisa histrico-etnogrfica sobre a tentativa de regulamentar a prostituio. No desenvolvimento do trabalho, a autora esclarece que, embora tenham ocorrido, ainda no sculo XIX, acirrados debates entre os chamados abolicionistas e regulamentistas, so poucas as experincias de controle desta profisso, cujas raras tentativas de regulamentao ocorreram em So Paulo e no Rio de Janeiro, nas dcadas de 1940 e 1950. Mazzariol, assim como Bacelar, trata da prostituio em um bairro especfico6, mas bem menos pobre do que o bairro de Salvador, onde a prostituio era tambm muito visvel. Neste estudo, a autora analisa a organizao interna e externa da prostituio profissional, no contexto de uma sociedade urbana em desenvolvimento. A pesquisa foi realizada entre 1966 e 1974, mesmo perodo em que ocorreu uma campanha para deslocar a populao de prostitutas para um bairro mais distante do centro da cidade. Segundo a autora, pressionada pela populao e pela imprensa local, a polcia e a prefeitura decidiram retirar os prostbulos das proximidades das residncias familiares. Aps a migrao, as prostitutas eram fichadas pela polcia e obrigadas a apresentar exames mdicos quinzenalmente. A autora esclarece que tudo isso foi feito pela polcia revelia da lei, pois, no Brasil, a prostituio no ilegal, embora muitas das atividades a ela vinculadas o sejam. A pesquisa feita por Mazzariol demonstra que as autoridades (e a sociedade) consideram a prostituio um mal necessrio e, por isso, no propem seu desaparecimento, buscando apenas
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- O estudo de Mazzariol tem como referncia o bairro Jardim Itatinga ou Laredo, na cidade de Campinas/SP., criado com o objetivo de confinar as prostitutas da cidade.
confin-la. O estudo retrata, ainda, como esta atividade era vista como sujeira que deve ser mantida longe dos olhos e da sensibilidade da populao. Mesmo assim, prevaleceu no bairro pesquisado uma forte interao entre jornalistas, policiais e mulheres (prostitutas e cafetinas). Segundo a autora, este bairro tornou-se a mais importante zona de prostituio de So Paulo que, durante muitos anos recebeu mulheres de vrias cidades e teve seu cotidiano controlado pela polcia. Em relao ao papis desempenhados pelas mulheres prostitutas, o estudo de Mazzariol buscou subsdio no conceito de estigma desenvolvido por Goffman para compreender suas diferentes atuaes: me, mulher, filha, cidad. Ariente (1989), a partir de uma pesquisa de campo realizada na regio chamada Boca do Luxo em So Paulo, elaborou sua dissertao de mestrado sobre o cotidiano da prostituta nesta cidade. Segundo a autora, o objetivo da pesquisa foi tentar perceber a dinmica social que est por trs da realidade encontrada, levando em conta as oposies existentes entre as imposies e as necessidades dos indivduos. Assim, a preocupao central no referido estudo foram os estigmas, as normas e as contradies inerentes a este modo de vida. Outros aspectos importantes no trabalho de Ariente dizem respeito s formas locais de poder e ao controle detalhado e minucioso do corpo das prostitutas. De acordo com a autora, essas questes, no entanto, vo alm do universo do cotidiano da prostituta, estendendo-se sobre um espao mais amplo, consequentemente algumas interpretaes sugeridas ao longo do trabalho recorrem a conceitos ora mais restritos, ora mais amplos, tais como classe social, sexo, cotidiano, organizao social e cultural, cujas fronteiras so difceis de precisar. So vrias as pesquisas de Pasini7 que envolvem a temtica da prostituio, mas comentaremos aqui o artigo Limites simblicos corporais na prostituio feminina, o qual, segundo a autora, foi elaborado a partir de sua pesquisa realizada na rua Augusta de So Paulo, entre 1998 e 1999. Nesta pesquisa, o problema investigado foi a maneira como as garotas de programa operam os limites simblicos corporais na prtica da prostituio feminina. Em outras palavras, buscou-se compreender a lgica do agenciamento de sua corporalidade na prostituio. As anlises feitas pela
Elisiane PASINI. Corpos em Evidncia, pontos em ruas, mundos em pontos: a prostituio na regio da Rua Augusta em So Paulo. Dissertao (Mestrado Antropologia Social) Programa de ps-graduao em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, 2000a; O uso de preservativo no cotidiano de prostitutas em ruas centrais de Porto Alegre. In: BENEDETTI, Marcos; FBREGAS-MARTINEZ, Ana (Orgs.) Na batalha: identidade, sexualidade e poder no universo da prostituio. Porto Alegre: Dacasa, Palmarinca, 2000b; Limites simblicos corporais na prostituio feminina. In: Cadernos Pagu, n. 14, 2000c.
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autora partem do conceito de que a corporalidade tambm um espao social, do qual fazem parte elementos scio-culturais que comunicam significados e simbologias do grupo. Da que os corpos, na esfera da ao dessas mulheres, tornam-se espaos sobre os quais se inscrevem significados sociais e culturais. Pasini pesquisou a prostituio de rua, praticada em um tempo especificamente delimitado. Para a autora, as garotas estudadas elaboram e vivenciam a prostituio por meio de regras estabelecidas nos pontos8. Nesse espao da prostituio, elas encontram e negociam o programa com os clientes, agenciando sua performance na prostituio atravs de prticas que podem ser observadas na corporalidade e nas relaes sociais. O artigo de Fonseca, A dupla carreira da mulher prostituta, concentra suas reflexes na dimenso cotidiana das prticas de prostituio ou na atividade que ela prpria denomina de batalha, a qual abarcaria a dupla carreira da mulher prostituta, ou seja, a famlia e a profisso. Esta perspectiva tem por objetivo observar uma realidade, segundo a autora, ignorada pelo senso comum. Assim, esse tema apresentado de forma desvinculada da tica polcia/mdico e as prostitutas so analisadas como membros de redes sociais e universos simblicos. Segundo ela, trata-se de uma tica que coloca entre parnteses o problema da conteno de doenas venreas, assim como o da preservao da ordem pblica, para considerar algo diretamente ligado qualidade de vida das mulheres. Fonseca (1996) se contrape idia de que a prostituio constituir-se-ia exclusivamente em recurso de sobrevivncia. Acredita ela que esta atividade uma opo nada desprezvel para mulheres de origem humilde e de baixo nvel de escolaridade. No entanto a prpria autora reconhece, em suas pesquisas nos morros de Porto Alegre, que no encontrou mulheres cujos projetos de emprego e realizao pessoal estivessem ligados prostituio. Ao contrrio, suas ocupaes estavam sempre subordinadas trajetria de esposa e me. Engel (1988), em seu livro, Meretrizes e doutores saber mdico e prostituio no Rio de Janeiro (1840-1890), escrito originalmente como dissertao de mestrado para o curso de PsGraduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, defendida em setembro de 2005, estuda as idias, ou seja, os discursos sobre a prostituio no sculo XIX. Sua fonte de pesquisa so os textos mdicos sobre esta temtica, produzidos na cidade do Rio de Janeiro, entre as dcadas de 1840 e 1890, tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, memrias, artigos e
debates publicados nos Anais da Academia de Medicina. Segundo a autora, estes trabalhos se voltavam para a compreenso dos principais aspectos que caracterizaram a verso mdica do projeto de ordenao social do espao urbano, formulado em meio a um perodo de profundas transformaes do Rio de Janeiro. A partir do enfoque foucaultiano sobre o papel da medicina na elaborao de um discurso da sexualidade no sculo XIX, a autora procura destacar o significado e a importncia do ato de falar sobre a prostituio, levando vontade de saber que permitia ao mdico ultrapassar as interdies morais que pesavam sobre o tema, mesmo que no chegasse a destru-las completamente. Ainda no que se refere obra em questo, importante ressaltar a anlise feita pela autora sobre as palavras prostituio e prostituta no contexto dos discursos mdicos do sculo XIX. Alm de significarem literalmente doena, do ponto de vista fsico, estes termos abarcavam uma dimenso moral e social. Dessa forma, segundo Engel, a prostituio era classificada pelo mdico como uma ameaa famlia, ao casamento, ao trabalho e propriedade. Silva (2004), em sua dissertao de mestrado, Mulheres da vida? Um estudo sobre prostituio feminina, define como objeto de estudo, na cidade de Goinia, uma modalidade especfica de prostituio: o trottoir9 feminino. Sua pesquisa concentra-se em um grupo especfico de mulheres que se prostituem em uma regio da cidade de Goinia denominada Dergo. O autor, neste trabalho, busca textualizar a fala das mulheres pesquisadas sobre a atividade prostituinte em suas diversas dimenses, entendendo que o fato de estarem na prostituio constitui-se em eixo norteador de suas vidas. Utilizando-se dos conceitos de estigma, desenvolvidos por autores como Goffman, a respeito do processo de construo de identidades estigmatizadas, e Perlongher, sobre a complexidade dessa identidade, Silva (2004) adota como perspectiva o contexto relacional no qual as identidades so negociadas diariamente. A pesquisa de Rago, realizada para o doutorado em Histria da Unicamp10, resultou no livro Os prazeres da noite: prostituio e cdigos da sexualidade feminina em So Paulo (1890-1930). A prostituio moderna, neste estudo, um fenmeno essencialmente urbano, espetacularizado e que, em decorrncia da expanso do mercado capitalista, tornou-se tambm quantificvel por meio
- Pontos so locais estabelecidos na prostituio de rua. De acordo com o autor, o trottoir, ou prostituio de rua, uma forma de prostituio individual exercida nas ruas das cidades. Nesta modalidade de prostituio, a mulher procura um lugar que lhe seja favorvel e fica espera de um possvel cliente. 10 - Esta Tese de Doutorado foi defendida em maio de 1990.
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da atuao de chefes de polcia, mdicos, higienistas e juristas, os quais constituram um universo emprico para suas observaes, classificaes e anlises. Rago enfrentou, nesta pesquisa, o desafio de desvendar as representaes e mitologias que constituam o imaginrio do submundo no final do sculo XIX e incio do sculo XX. Sua pesquisa relaciona-se com o interesse que a prostituio suscitava entre mdicos, juristas, criminologistas, literatos e jornalistas, desde meados do sculo XIX. Ao final de seu estudo, a autora percebe o estreito vinculo entre o interesse destes profissionais pela temtica da prostituio e a moralidade pblica, ou seja, a definio dos cdigos de conduta da mulher num perodo de intenso crescimento urbano. Finalmente, apresentamos a obra de Severino (2004), intitulada Memria da morte, memria da excluso: prostituio, incluso marginal e cidadania11, a qual faz, segundo a autora, um estudo sobre a auto-representao da identidade de mulheres prostitutas, com base em depoimentos colhidos mediante entrevistas abertas. A partir de anlises das histrias de vida de mulheres prostitutas, a autora procurou perceber o modo pelo qual elas se inserem num processo de construo e reconstruo de suas identidades individuais, processo que se realiza, contudo, coletivamente. Violncia e prostituio so fenmenos indissociveis no universo de pesquisa e na compreenso desta autora. Por isso, ela parte do princpio de que a violncia sofrida pelas mulheres um produto de sociedades em processo de desagregao social. Essas sociedades, tendo perdido os limites entre a ordem e a desordem, simulariam, degradadas, um retorno ao ritual sagrado que se constituiria, de acordo com a autora, como puro simulacro. Assim, o sagrado seria profanado e as vtimas expiatrias construir-se-iam como peculiares mercadorias a serem consumidas, especialmente pelo chamado turismo sexual Podemos concluir, a partir deste breve levantamento das pesquisas realizadas no Brasil sobre a temtica da prostituio que, via de regra, o foco de suas investigaes no foram a socializao, os valores e a violncia. Alguns desses trabalhos se detiveram (secundariamente) nas escolhas das mulheres que exerciam atividade prostituinte, aproximando-se, assim, do problema de que partiu nosso estudo, cuja especificidade, acreditamos, est na caracterstica do grupo
- Esta obra de Severino foi publicada pela Editora Universitria Leopoldinaum /Universidade Catlica de Santos, em 2004, mas a referida pesquisa foi realizada para a dissertao de mestrado da autora, que foi defendida em 1991, na rea de Antropologia na PUC de So Paulo, sob o ttulo: Memria da morte, memria da excluso: um estudo sobre a identidade das mulheres prostitutas.
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pesquisado: meninas que se prostituram, perpetuando-se na condio de indivduos segregados e marginalizados. Trabalhamos alm disso, com o pressuposto de que a memria dessa violncia influenciou suas escolhas. Procuramos, assim, neste estudo, preencher esta lacuna, adotando como ponto de partida as reflexes feitas por Heller (2000) sobre as escolhas dos indivduos. Para esta autora, as escolhas entre alternativas, juzos, atos, possuem um contedo axiolgico objetivo. Mas os indivduos no escolhem valores, assim como no escolhem o bem ou a felicidade. Escolhem sempre idias concretas, finalidades concretas. Seus atos concretos de escolha esto naturalmente relacionados com sua atitude valorativa geral. Dessa maneira, a insero precoce de meninas no mundo da prostituio resulta, sem dvida alguma, de escolhas realizadas por elas mesmas. Nesta tese, todavia, procuramos relacionar lembranas de infncias marcadas pelo uso recorrente da violncia com o processo de escolha, mesmo que temporria, da prostituio como modo de vida. Dito de outra forma, consideramos que a memria da violncia influenciou as escolhas feitas pelas jovens que exercem (ou exerceram) atividades prostituintes. Isto no significa, contudo, que pretendamos compreender a insero precoce na prostituio pelo vis exclusivo da violncia desencadeada na infncia dos sujeitos. Propomo-nos, sim, a discutir a importncia que a violncia ocupa na constituio do ser social, pois, quando atentamos para as narrativas ou para as demais pesquisas sobre esta temtica, observamos o carter mltiplo, tanto do fenmeno da violncia quanto da prostituio. Trabalhamos com depoimentos, o que constituiu um desafio, pois a lembrana diz respeito ao passado mesmo quando este ainda muito recente, como no caso dos jovens. A memria, quando contada, se atualiza a partir de um ponto do presente, estando os relatos de vida sempre contaminados pelas vivncias posteriores ao fato relatado e, tambm, carregados de um significado que tem como centro o momento da rememorizao. As lembranas so seletivas, fragmentadas, por isso o trabalho com as narrativas de jovens mulheres que durante um perodo de suas vidas sobreviveram do exerccio da prostituio, evidentemente, leva ao enfrentamento de problemas dessa natureza. Explicamos claramente s jovens o objetivo da entrevista, esclarecendo-lhes que teriam autonomia sobre o registro de suas histrias. No nos preocupamos em comprovar os fatos relatados porque concordamos com Ortiz (1994), para quem as lembranas contam o passado atravs dos olhos daqueles que o vivenciaram. As histrias de vida podem, s vezes, reforar ainda
mais a violncia vivida ou , em outros casos, fetichizar o poder dos atributos fsicos. Ao longo das narrativas, percebemos que, muitas vezes, as mulheres se vem como portadoras de um poder de atrao irresistvel, proveniente de crenas em rituais dirigidos a deuses e deusas da beleza e do amor, fruto, portanto, de um imaginrio mgico. Nos relatos das jovens entrevistadas, a violncia ocupa um papel central, evidenciando que suas vidas foram marcadas por diferentes experincias de violncia (fsica, sexual, simblica) que discutiremos juntamente com os valores e o processo de socializao inerentes sociedade moderna. Para Bosi (1994), as lembranas no esto adstritas ao mundo individual, mas perseguem a realidade interpessoal das instituies sociais. Consideramos, neste estudo, que a memria do indivduo depende do seu relacionamento com a famlia, com as pessoas da classe social a que pertence, com a escola, com a igreja, com a profisso, enfim, com os grupos de convvio e os grupos de referncia peculiares a ele. Pollak (1989) acrescenta que no devemos nos esquecer da memria mantida pelos indivduos que foram separados de suas redes de sociabilidade, ficando, assim, impossibilitados de integrar suas lembranas na memria da famlia, do bairro, da escola, por medo ou por vergonha. Trata-se de lembranas indizveis (como no caso da prostituio), guardadas em estruturas de comunicao informais e que passam despercebidas pela sociedade englobante. Pollak (1989) realiza uma importante discusso sobre o enquadramento da memria e a funo do no dito na historiografia. Para o autor, os esforos em enquadrar12 a memria apresentam, muitas vezes, uma perspectiva uniformizadora e opressora, especialmente quando buscam a coeso e a justificativa para as instituies sociais, fechando os olhos para as injustias e a violncia. Mas claro que o trabalho de enquadramento da memria se alimenta do material fornecido pela histria, o qual pode, sem dvida, ser interpretado e combinado com inmeras referncias associadas, assim como pode ser, tambm, guiado pela preocupao no apenas de manter as fronteiras sociais, mas de modific-las. Esse enfoque reinterpreta constantemente o passado em funo das lutas do presente e do futuro, embora exista um limite para a falsificao pura e simples do passado na sua reconstruo poltica. O trabalho permanente de reinterpretao do passado contido por uma exigncia de credibilidade que depende da convergncia dos discursos que se sucedem.
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As lembranas dos indivduos ou dos grupos marginalizados so povoadas por sombras e silncios, por fatos que, mesmo no ditos oficialmente, no so esquecidos, sendo transmitidos por outras vias, por outras redes de sociabilidade, como bares, bordis, pontos de encontro. Essas memrias clandestinas e inaudveis enfrentam como primeiro obstculo encontrar quem as escute quando saem da clandestinidade e tornam pblico o que manifestar. Pollak (1989) acredita que, da mesma forma que uma memria enquadrada, uma histria de vida colhida por meio da entrevista oral, por tratar-se do resumo condensado de uma histria social individual, tambm suscetvel de ser apresentada de inmeras maneiras, em funo do contexto no qual relatada. No caso da memria coletiva, entretanto, as variaes so limitadas. Tanto individualmente quanto em grupo, uma histria de vida crvel medida que apresenta sinais de continuidade capazes de assegurar memria um sentido de identidade. Ainda de acordo com o autor, nas histrias de vida de longa durao, a mesma pessoa pode voltar vrias vezes a um nmero restrito de acontecimentos, por sua prpria iniciativa ou estimulada pelo entrevistador. A despeito de variaes importantes, encontrado um ncleo resistente, um fio condutor, uma espcie de motivo principal em cada histria de vida. Por definio, como reconstruo a posteriori, a histria de vida ordena acontecimentos que marcaram uma existncia. Alm disso, sempre que uma pessoa relata a histria de sua vida, em geral, tenta estabelecer uma certa coerncia por meio de laos lgicos entre acontecimentos-chaves, os quais resultaram numa continuidade marcada pela ordenao cronolgica. Atravs deste trabalho de reconstruo de si mesmo, o indivduo tende a definir seu lugar social e suas relaes com os outros. no lhes foi, at ento, possvel
Os captulos
No captulo 1, Modernidade e prostituio, realizamos abordagens tericas sobre a prostituio no cotidiano da sociedade moderna, a partir do pressuposto de que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico, assim como as mudanas de valores e de conduta que ocorreram nas modernas sociedades contemporneas, no tornaram obsoletas as prticas de prostituio, mediadas, muitas vezes, pela violncia fsica ou simblica. Sabe-se que a prostituio ocupou, em
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O autor utiliza a expresso memria enquadrada por consider-la mais especfica do que memria coletiva.
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tempos passados, importncia fundamental para a conservao da instituio familiar. Com a superao desse papel, a prostituio conquistou outros espaos possibilitados por novas demandas e pela utilizao de recursos tecnolgicos, tais como a internet e o telefone celular. Esses recursos, aliados indstria cultural, contribuem para a incitao ao consumo como forma de satisfao pessoal, banalizando, dessa forma, a violncia e tambm o ingresso precoce no mercado do sexo. Ainda neste primeiro captulo, dialogamos com autores que discutiram as vrias condies da modernidade e tambm retomamos as discusses feitas por pensadores clssicos e contemporneos como Adorno, Horkheimer, Berman, Pasolini e outros sobre a indstria cultural e seus efeitos na cultura dos indivduos e grupos, especialmente dos jovens. No que diz respeito indstria cultural e modernidade, as reflexes esto relacionadas com o processo de banalizao da violncia numa sociedade que vende imagens voltadas para o consumo de qualquer tipo de mercadoria, embora trabalhe a construo de um imaginrio moralista, na tentativa contraditria de criar consumidores e, ao mesmo tempo, manter cada um em seu lugar. No captulo 2, Socializao, valores e violncia, procuramos compreender de que modo a violncia atua no processo de socializao dos jovens no mundo contemporneo. Do ponto de vista terico, buscamos suporte principalmente em Peter Berger e Thomas Luckmann, autores que se debruaram no estudo dos processos de socializao; nos apoiamos tambm em Agnes Heller, cuja obra sobre o cotidiano e a histria traz uma discusso aprofundada dos valores na vida cotidiana. Na abordagem da violncia, considerando a complexidade deste fenmeno, buscamos o apoio de vrios autores, destacando, no entanto, a contribuio de Hannah Arendt, tendo em vista a importncia dada por ela fala e ao dilogo, em contraposio ao uso da violncia. No captulo 3, As narrativas, quatro autores foram fundamentais na construo da estrutura deste trabalho: Memria e sociedade: histria de velhos, de Ecla Bosi (1995); O narrador, de Walter Benjamin (1994); Memria Coletiva, de Maurice Halbwachs (2004) e Canto de morte Kaiow: histria oral de vida, de Jos Carlos Sebe Bom Meihy (1991). Esses trabalhos enfatizam a importncia e o significado de apresentar a experincia vivida e os argumentos orais dos prprios sujeitos. As narrativas nos possibilitam apreender a riqueza das experincias dos sujeitos, ao mesmo tempo que contribuem para que a cultura contempornea aceite como princpio a experincia capaz de encadear os acontecimentos e no apenas fixar fatos isolados na lembrana, os quais tendem a se perder na vivncia das grandes cidades onde os indivduos tornam-se cada vez mais incapazes
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de incorporar acontecimentos e interesses sua experincia. Os meios de comunicao de massa excluem totalmente os acontecimentos do contexto em que poderiam alcanar a experincia do leitor/ouvinte. Na avaliao de Benjamin (1996), isso ocorre devido ao fato de que a informao no participa deste encadeamento de ocorrncias e interesses que mediariam a existncia social e a histria dos indivduos. Ao contrrio, ela rompe aquela relao em que um indivduo conta ao outro fatos que fazem parte de sua vida, oferecendo-os aos ouvintes como experincia. No captulo 4, As narrativas: vestgios da violncia na memria, refletimos sobre o significado da violncia na memria dos indivduos. Neste dilogo simultneo com as narrativas e com os autores que desenvolveram estudos sobre violncia, socializao e prostituio, pretendemos compreender melhor a relao entre a escolha da prostituio pelas jovens e a memria da violncia.
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Neste captulo, tratamos da relao entre a modernidade e a prostituio de jovens na sociedade contempornea, a partir do pressuposto de que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico, bem como as mudanas de valores e de conduta que ocorreram na atualidade, no tornaram obsoletas as prticas de prostituio, mediadas, muitas vezes, pela violncia fsica ou simblica. A prostituio ocupou novos espaos, antes inviveis, por meio da utilizao de recursos tecnolgicos, tais como a internet e o telefone celular. Estes recursos, aliados indstria cultural, contribuem para a incitao ao consumo como forma de satisfao pessoal, banalizando, dessa forma, a violncia. Assim, o ingresso precoce no mercado do sexo no considerado, em si, como uma violncia, mas somente como um acontecimento do cotidiano das cidades. Antes do advento da modernidade, a condio feminina era ainda mais difcil, tanto que Beauvoir (1980), refletindo sobre a situao da mulher europia (ocidental) na Idade Mdia, lembra que uma das conseqncias da tutela da mulher honesta pela famlia foi a existncia da prostituio. Colocadas hipocritamente margem da sociedade, as prostitutas desempenharam, assim, um papel dos mais importantes. O cristianismo as desprezava, mas as aceitava como um mal necessrio. Segundo a autora, inicialmente, na Idade Mdia, por causa da ausncia de rigor em relao aos costumes, quase no havia necessidade de mulheres da vida. Mas quando a famlia burguesa se organizou, passando a exigir a monogamia, a prostituio tornou-se imprescindvel. Ao se referir sociedade daquele perodo, Beauvoir (1980) descreve as tentativas fracassadas de impedir o exerccio da prostituio: Carlos Magno, na Frana, proibiu a prostituio com rigor; S. Luiz ordenou, em primeiro lugar, a expulso das prostitutas, depois a destruio de seus locais de trabalho. Outras tentativas de eliminao da prostituio em vrios locais da Europa tambm foram inteis porque a prpria organizao da sociedade a tornava necessria.
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Numa poca de extrema opresso e violncia, no Brasil dos tempos coloniais, segundo Priore (1993), as mulheres, para quem o sexo no significava uma obrigao, (procriao) mas sim prazer, foram perseguidas e rotuladas de mundanas, lascivas e luxuriosas porque o uso autnomo da sexualidade feminina era interpretado como revolucionrio e contrariava o desejo da Igreja e do Estado de colocar o corpo feminino a servio da sociedade patriarcal e do projeto colonizador. Por isso, para entendermos a amplitude da prostituio, preciso, dentre outros aspectos, observarmos os valores culturais vigentes, bem como a mentalidade dos que a toleram ou a reprimem. Na constituio das modernas sociedades ocidentais, o sexo tinha uma funo genital procriadora, vinculada estrutura familiar de forma restrita. Segundo Chau (1984), as sociedades que partiam deste princpio eram levadas a assumirem posturas ambguas frente prostituio, que, por no possuir uma funo procriadora, tendia a ser socialmente condenada. Ao mesmo tempo, porm, era tolerada e at mesmo estimulada nas sociedades que defendiam a virgindade das meninas pberes solteiras, de um lado, conquanto precisassem, de outro lado, conter as frustraes dos jovens solteiros e dos homens que se consideravam mal casados ou que haviam sido educados para no confundirem suas esposas com amantes voluptuosas. Essas sociedades reconheciam a necessidade de mulheres que se dedicassem ao exerccio de oferecer gozo sexual aos homens jovens solteiros e aos homens mal casados. No Brasil, essa cultura integrava principalmente a histria do cotidiano das pequenas e mdias cidades, onde o bordel era considerado to indispensvel quanto a igreja, o cemitrio, a cadeia e a escola. Ainda que se localizasse em reas distantes do centro da cidade, em locais segregados, fazia parte da realidade social do lugar. Chau (1984) lembra que a prostituta se distinguia do conjunto de traos das demais mulheres, especialmente nestas cidades do interior, por meio do vesturio, da postura, da gesticulao, da linguagem, ou seja, dos cdigos de conduta. A sociedade, em suma, elaborou procedimentos de segregao visvel e de integrao invisvel, fazendo da prostituta elemento fundamental da lgica social. Assim, para Chau (1984), a prostituta tanto pode ser um caso de polcia do ponto de vista da segregao quanto pode s-lo do ponto de vista da integrao, uma vez que a palavra polcia no significa apenas vigilncia e fora da ordem, mas tambm significa civilizao, do grego polis, ou civitas, do latim, termos que remetem a cidade legislada. A modernidade assumiu, assim, a mulher prostituta como uma figura
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que representava o transitrio e o efmero13, caractersticos desta sociedade, cuja essncia, como formulou Weber, seria a desmistificao e o desencantamento do mundo social. Mas Buck-Morss (2002), como estudiosa da obra benjaminiana, mostra que o argumento central do autor14 era que, sob as condies do capitalismo, a crescente industrializao teria trazido um re-encantamento do mundo social e, atravs dele, uma reativao dos poderes mticos. Neste processo, as instituies sociais e culturais se racionalizaram na forma, permitindo, contudo, que o contedo fosse entregue s mais distintas foras. Da a insistncia de Benjamin de que o sonho era um fenmeno coletivo, de duplo sentido, de um lado pelo seu estado distrado de sonho, de outro porque era inconsciente de si mesmo, composto de indivduos atomizados, consumidores que imaginavam que o seu mundo de sonho mercadolgico fosse unicamente pessoal (a despeito das evidncias objetivas do contrrio), e que experimentavam a prpria participao como membros da coletividade apenas em um sentido alienante. Na sociedade capitalista, tudo se transforma em mercadoria. No entanto, na interpretao de Buck-Morss (2002), embora o valor social das mercadorias seja o preo, isso no impede que os consumidores se apropriem delas como imagens de desejo que representam seus sonhos particulares. claro que, neste processo, as mercadorias perdem seu significado original como valores de uso produzidos pelo trabalho humano. Depois de esvaziadas de seu significado inicial, ganham (arbitrariamente) um novo significado que pode se modificar a qualquer momento. Neste processo de alienao, os objetos se tornam vazios e atraem significados crticos, podendo a subjetividade control-los, impregnando-os de desejo e ansiedade. So essas caractersticas do capitalismo no trato com as mercadorias que possibilitaram o desenvolvimento da prostituio como um fenmeno tpico deste modelo de sociedade, que tanto no bordel quanto nas ruas das grandes cidades, carregado de ambigidade. Essas caractersticas representam a transitoriedade, pois nada pode ser mais transitrio e efmero do que o comrcio do sexo. Contraditoriamente, foi no capitalismo que se formulou o conceito de prostituio como doena, cuja dimenso fsica, moral e social constituia-se numa ameaa ordem social. Segundo Engel (1988), esta foi uma construo realizada pelo saber mdico, no final do sculo XIX. Por isso, este conceito de prostituio no pode ser utilizado para designar prticas de comercializao
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- Estas caractersticas do moderno como transitrio, efmero, contingente possuem razes na noo de modernidade de Baudelaire. (Charles BAUDELAIRE, 2002, p. 25) 14 - Segundo Buck-Morss (2002), Benjamin defendeu a tese do re-encantamento da sociedade na obra Trabalho das Passagens.
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do sexo de outras pocas ou de outras formaes sociais. Como um fenmeno essencialmente urbano, a prostituio a prpria expresso do mercado capitalista, cuja singularidade visvel. A percepo da prostituio como um tema da modernidade pode ser observada na prpria obra de Benjamin, que inovou e ampliou a noo de modernidade de Baudelaire atravs da interpenetrao do novo pelo antigo e tambm da anlise sobre o carter alegrico de seus poemas e da imagem dialtica de Paris, cuja transparncia e fragilidade semelhante do vidro envelheceria rapidamente, simbolizando o processo social regido pelas leis do modo de produo capitalista. A cidade na obra de Baudelaire representa tambm o msero, o decadente, o noturno, o artificial, provenientes das ruas e becos escuros. Foi nesse contexto de negao e, ao mesmo tempo, de fascnio pela modernidade, que Baudelaire fez da prostituio moderna um dos principais temas de sua poesia. Nesta perspectiva, emblemtico um de seus poemas, musa venal
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, cujos versos
mostram o quanto, muitas vezes, o poeta via na publicao literria uma forma de prostituio. A temtica da prostituio foi tratada por Benjamin, especificamente, na obra: Charles Baudelaire: Um lrico no auge do capitalismo. No ensaio intitulado Jogo e prostituio, Benjamin aborda, no campo da prostituio, dentre outras questes, a funo dialtica do dinheiro que compra o prazer ao mesmo tempo que se torna a expresso da vergonha. Ele se refere s iluses de Baudelaire que, embora se julgasse um grande entendedor de entorpecentes, foi incapaz de perceber a semelhana entre os reais efeitos dos entorpecentes nos viciados e os efeitos da mercadoria. Da mesma forma que os entorpecentes, a mercadoria deixa a multido inebriada a seu redor. A massificao dos clientes que forma o mercado e transforma a mercadoria em mercadoria, aumenta o encanto desta para o comprador mediano. Por isso, o sujeito que permanece annimo
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Musa do corao, amante dos palcios, Ters, quando janeiro libertar seu Breas, Durante o negro spleen das noites hiperbreas, Tio para aquecer os teus dois ps violceos? E vivificars as espduas marmreas S de exp-las aos raios dos luares frios? Se sentires a bolsa e o estmago vazios, Irs colher o ouro das manses equreas? Deves para ganhar o teu po ilusrio Ser menino de coro e mover o incensrio E cantar o Te-Deum em que no crs mais nada, Saltimbanco em jejum exibir teu encanto E teu riso molhado em invisvel pranto, Para o vulgo explodir em sua gargalhada.
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nas grandes cidades poderia ser a prpria mercadoria. Seria a santa prostituio da alma a que o poeta se refere em comparao com a qual isso que os homens chamam de amor bem pequeno, bem restrito e bem dbil (BAUDELAIRE APUD BENJAMIN, 2000, p. 53). No poderia, assim, de acordo com o autor, ser outra coisa que a prostituio da alma da mercadoria. Essa santa prostituio da alma que se daria por inteiro, misturando poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra a qualquer desconhecido. No referido trecho potico, essa a caridade que as prostitudas reivindicam para si mesmas, deixando claro que corpo e alma so inseparveis. Baudelaire acreditava que as prostitutas teriam provado os segredos do livre mercado e que a mercadoria no levava nenhuma vantagem sobre elas. Alguns de seus atrativos provinham do mercado e se tornavam instrumentos de poder. Estes atrativos j se encontravam disponveis no mercado desde o final do sculo XIX, poca abordada por Benjamin. Da a influncia da indstria no desenvolvimento da prostituio por meio da maquilagem, dos adereos, das roupas que tornavam qualquer mulher bonita e tentadora mesmo, que no possusse os atrativos considerados imprescindveis no processo de seduo. Isso porque os sentidos amortecidos dos "clientes" eram estimulados pelo "espetculo" e no por seus atributos reais. interessante que, lado a lado com a razo instrumental desta aparente racionalidade do uso da tcnica (maquiagem, cirurgias plsticas etc), permanecem velhas concepes mgicas da seduo: Existem muitas formas de agradar a pomba gira, como por exemplo, colocar bebidas e flores, como se fosse um templo, como se ela fosse uma deusa. [...] com estas simpatias, a mulher fica cada dia melhor, mais atraente. Isso puxa os homens16. Essa viso mgica da vida faz com que permaneam os mitos na construo do imaginrio das mulheres, no se constituindo numa dicotomia com a razo instrumental moderna. Tampouco pode-se dizer que seja apenas uma herana de seus antepassados, pois estas concepes so exploradas pela indstria cultural, pela cultura de massas, nos filmes, nas msicas, nas produes televisivas e servem para alimentar um imaginrio que rende milhes no mundo todo. Assim, tudo se transforma em mercadoria, inclusive a arte. Em contrapartida, uma importante fonte de pesquisa sobre o imaginrio, envolvendo a prostituio, pode ser encontrada na literatura, inclusive na literatura brasileira de autores como Jorge Amado, nos romances Tereza Batista cansada de guerra e Tieta do Agreste; em Joo
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Guimares Rosa, no conto Do-Lalalo (O devente) do livro Noites do serto; em Rubem Fonseca, no romance A grande arte e no conto Lcia Machartney; em Lgia Fagundes Telles, nos contos A Confisso de Leontina e Um corao ardente. Essas obras literrias, mesmo quando no possuem como assunto exclusivamente o tema da prostituio, do vida a personagens que se encontram nesta condio, expondo aos leitores sofrimentos, tristezas ou alegrias, angstias daquelas que vivem fora dos padres socialmente estabelecidos e que buscam sada para suas vidas, justamente da forma considerada desprezvel pela sociedade. Na trama desenvolvida em A grande arte, de Rubem Fonseca, um assassino em srie mata prostitutas e no rosto delas desenha a letra P. O personagem-narrador, um advogado que investiga o mistrio em torno das mortes, ao reconstituir a histria do assassino, revela que ele no matava movido por moralismo, tampouco por dio irracional s mulheres. Matava por prazer e, se escolhia prostitutas como objeto, era pelo fato de serem pessoas sem nenhuma importncia social, descartveis e pelas quais ningum se lembraria de procurar. Ao contrrio dessa arte que parece imitar a vida produzida por alguns literatos, muito comum a apresentao da prostituio pela indstria cultural como algo glamouroso em filmes como Uma linda mulher, dirigido por Garry Marshall, em novelas de grandes emissoras de televiso que tambm procuram retratar personagens representadas por mulheres jovens, bonitas e, muitas vezes, cultas, que vivem da prostituio. Para Lefebvre (1991), todavia, a melhor ilustrao desse imaginrio social no se encontra num determinado filme ou numa determinada obra de fico. Segundo o autor, esse simbolismo herdado de estilos j desaparecidos est presente principalmente nas publicaes da imprensa voltadas para o pblico feminino, onde permeiam o imaginrio e a prtica cotidiana, responsveis pela permanncia de cdigos que ritualizam e tornam prticas e corriqueiras mensagens as quais se destinam a programar o cotidiano. Tais mensagens contm uma retrica capaz de dotar os objetos de uma segunda existncia, de modo que cada um que as leia o faa a sua maneira, situando, assim, de acordo com seus prprios gostos, o que l no concreto ou no abstrato, no pragmtico ou no sonho. Cada um, dessa maneira, sonha com o que v e v aquilo com que sonha. Se, como ressaltou Lefebvre, cada um sonha com o que v e v aquilo com que sonha, a literatura e a publicidade, do mesmo modo, se distinguem pela montagem utilizada para chamar a ateno. Tambm a obra literria apela para os mesmos procedimentos que a escrita publicitria e
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- Trecho recortado da entrevista com Andria, realizada nos dias 16 e 20 de setembro de 2004.
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tem a mesma funo metafrica: transformar o desinteressante em interessante, transcrever o cotidiano no imaginrio, obrigar o consumidor a assumir uma aparncia de felicidade. Segundo Lefebvre (1991), os conflitos e problemas da cotidianidade remetem a solues conflitivas que se sobrepem s solues reais quando estas so ou parecem impossveis. Dessa forma, os problemas e a procura de uma soluo transpem o limiar do imaginrio. Entre a prtica e o imaginrio aparece o investimento, pois as pessoas projetam seu desejo sobre um conjunto de objetos ou sobre um conjunto de atividades no qual se inserem a residncia, a moblia, a cozinha, a viagem de frias etc. Esse investimento confere ao objeto uma existncia que real e imaginria ao mesmo tempo. Assim, a sociedade de consumo se define pela adequao a um certo estilo de vida apropriado para o conjunto da vida social e no somente pelo uso apropriado de alguns objetos de forma isolada. A possibilidade de haver consumo sem essa adequao, por correspondncia prescrita, termo a termo, entre necessidades e bens, o postulado desse modelo de sociedade, a base de sua ideologia e da publicidade como ideologia. importante notar que a trivializao de objetos e de atividades se d tambm no mbito da sexualidade. Porm, como afirmou Lefebvre (1991), alguns objetos ou atividades podem transpor o limiar que separa o nvel prtico do imaginrio j que se impregnam de afetividade e de sonho, porque, ao mesmo tempo em que so percebidos (socialmente), so falados. Dessa forma, pode- se afirmar a existncia de uma sobrecarga ideolgica, mas no se pode dizer que a publicidade ou a indstria cultural, por exemplo, induzam os jovens, diretamente, prostituio ou a outras formas de marginalidade . O imaginrio propriamente dito faz parte do cotidiano e exerce o papel de mascarar a predominncia das presses, a fraca capacidade de apropriao, a gravidade dos conflitos e os problemas reais. Ento, o imaginrio despertado por meio destes mecanismos convida e prepara os indivduos para um investimento prtico, a fim de realizarem o ato de consumir. o que, muitas vezes, acontece com as jovens que se envolvem com a prostituio. Estes mecanismos da vida moderna que forjam um imaginrio impregnado de valores voltados para o consumo foram discutidos no texto de Lefebvre (1991): sociedade burocrtica de consumo dirigido. Nele, o autor argumenta que no preciso compreender as representaes do cotidiano porque suas categorias tambm tm uma finalidade. Elas, alm de se encontrarem entre as peas de um jogo estratgico, no tm nada de espontneo e desinteressado, servem tanto prtica quanto ideologia. Para o autor, at o sculo XIX, o individualismo dominava, fornecendo aos filsofos e sbios categorias e representaes, posto que, para atingir a realidade, era preciso
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levantar o vu. Hoje, as ideologias mudaram, possuem nome (formalismo, funcionalismo, operacionalismo, cientificismo etc) e se apresentam como no-ideologias, misturando-se mais sutilmente que antes ao imaginrio. Por isso, de acordo com o autor, o cotidiano no um espao-tempo abandonado, no mais o campo livre onde impera a razo ou a bisbilhotice individual. No mais o lugar em que se confrontavam a misria e a grandeza da condio humana, justamente porque no mais um setor e tambm porque a explorao racional inventou formas mais sutis que as de outrora. O cotidiano tornou-se objeto de todos os cuidados: domnio da organizao, espao-tempo da autoregulao voluntria e planificada, com tendncia a constituir-se em um sistema com bloqueio prprio (produo consumo produo). Ao se delinearem as necessidades, procura-se tambm prev-las, encurralando o desejo. A cotidianidade tornou-se, assim, a curto prazo, o sistema nico e perfeito, dissimulado sob os outros que o pensamento sistemtico e a ao estruturante visam. Nesse sentido, o principal produto da sociedade dita organizada ou de consumo dirigido, do mesmo modo que sua moldura, a modernidade. Quanto s mulheres, Lefebvre (1991) acredita que elas sejam, ao mesmo tempo, sujeitos da cotidianidade e vtimas da vida cotidiana, portanto objetos, libis (a beleza, a feminilidade, a moda etc). E a elas que os libis maltratam, pois so igualmente compradoras, consumidoras, mercadorias e smbolos da mercadoria (na publicidade: o nu e o sorriso). A ambigidade de sua situao no cotidiano que faz parte, precisamente, da cotidianidade e da modernidade, dificultalhes o acesso compreenso. A modernidade, para elas e por elas, dissimula adequadamente a cotidianidade. Independente do gnero, at o sculo XIX, somente as elites agiam de acordo com os imperativos da moda, substituindo seus pertences em decorrncia do que era prescrito por ela. Quanto s classes trabalhadoras, suas condies objetivas, neste perodo, permitiam-lhes um consumo para mera subsistncia. Foi a partir da produo em massa no mercado capitalista que, segundo Lasch (1983), os hbitos antes considerados aristocrticos estenderam-se s massas. A publicidade, assim, passou a atuar em todos os mbitos e se aliou revoluo sexual, apoiando (aparentemente) as mulheres contra a opresso masculina e os jovens contra a autoridade dos mais velhos. Para o autor, a lgica da criao de demandas exigiu mudanas de comportamento, por isso a indstria cultural e da propaganda encorajam uma pseudo-emancipao das mulheres atravs da crena em um progresso atrelado ao consumo.
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No universo benjaminiano, esta seria considerada uma falsa noo de progresso devido primazia das coisas em relao ao indivduo. Este o modo de perceber o progresso produzido pelo fetichismo da mercadoria, o qual impe uma idia de civilizao como produto de uma razo que se contrape sensibilidade e ao sentimento. Esta foi tambm a base de dominao instaurada a partir do pressuposto da necessidade de integrao ou submisso dos mais frgeis ao projeto vitorioso. Por outro lado, a viso determinista da histria, apontando sempre para o futuro, leva a uma ausncia de viso dos fracassos e retrocessos, produzindo, assim, atravs da crena numa ordem social cujo parmetro seria o mnimo esforo, a passividade e a comodidade. Nessa viso de modernidade, no o passado que est perdido, mas o futuro, porque a coletividade no se dispe a constru-lo. Retomando Lefebvre (1991), essa sociedade reivindica o status de racional, apesar das pessoas agirem como se no tivessem nada para dar um sentido sua vida cotidiana e nem mesmo para se orientarem, posta de lado a publicidade. Recorrem, ento, s antigas magias e feitiarias, basta observar o papel das cartomantes, dos curandeiros, dos horscopos na vida real das pessoas. Em sintonia com essa anlise de Lefebvre, haveria tambm, na obra de Benjamin, vestgios dessa reinstaurao do mito sob nova roupagem, como mostrou Buck-Morss17. Tanto um autor quanto outro acreditam que, sob o capitalismo, ocorreu uma ressacralizao do mundo a qual, ao invs de abolir o religioso, tornou-se ela prpria uma nova religio sustentada no culto mercadoria exposta nas galerias do sculo XIX, precursoras dos shoppings centers, os atuais plpitos de adorao, fetiche da mercadoria. O culto mercadoria estendeu ainda mais, depois de Benjamin, seus templos e mecanismos de adorao ao deus personificado pela mercadoria. Isso ocorreu, principalmente, atravs dos meios de comunicao de massa. Nesse sentido, Pasolini (1990), em seus diversos ensaios sobre a Itlia ps-fascista, define com um rigor enftico a indstria cultural e os meios de comunicao. Para o autor, a adeso aos modelos impostos pelas chamadas potncias do mundo capitalista foi total e incondicional, pois foram renegados os autnticos valores culturais. A tolerncia da ideologia hedonista, desejada pelo novo poder, foi a pior das represses da histria humana e s se
- Na cidade moderna, assim como nos ur-bosques de outra era, a face fascinante e ameaadora do mito estava viva e em toda parte. Assomava-se para um exterior de cartazes de anncios de pasta de dentes para gigantes e murmurava sua presena nos mais racionalizados planos urbanos que, com suas ruas uniformizadas e fileiras de edifcios infinitas, realizariam a arquitetura sonhada pelos antigos: o labirinto. Ele aparecia, maneira do prottipo, nas passagens onde as mercadorias esto suspendidas e se acotovelam entre si em tal confuso ilimitada que [parecem] imagens provenientes dos sonhos mais incoerentes. (Susan BUCK-Morss, 2002, p. 303).
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tornou possvel atravs de duas revolues: a das infra-estruturas e a dos meios de informao. As estradas, a motorizao e outros meios de transporte uniram a periferia ao centro das grandes cidades, abolindo qualquer distncia material, mas a revoluo dos meios de informao foi ainda mais decisiva. Por meio da televiso, o pas inteiro, historicamente to diferenciado e rico, teve sua lngua, costumes e valores padronizados, tendo sido a autenticidade substituda por modelos projetados pela indstria, que no concebe outra ideologia que no a do consumo. O contexto sobre o qual escreve Pasolini precisamente a Itlia do incio dos anos 1970. Neste perodo, a televiso j se encontrava presente nos lares dos Italianos tendo, como nos diz o autor, substitudo com grande eficincia o catolicismo. A padronizao, antes feita pela religio, passou a refletir, deste momento em diante, um novo fenmeno cultural o hedonismo das massas. Desaparece, assim, neste novo modelo, qualquer sinal das antigas idias associadas religiosidade popular. Nas propostas para o novo modelo de homem e mulher imposto pela televiso permanece a necessidade de ir missa aos domingos, embora seja preciso ir de automvel novo e roupas da moda. Aos que no conseguem atingir, dentro da ordem, o nvel de consumo imposto e agora desejado, restam as vias transgressoras. Neste contexto, os jovens constituem-se os maiores adeptos da indstria cultural. Tornamse, como nos lembra Pasolini (1990), a caricatura dos verdadeiros consumidores: indivduos frustrados, ansiosos e neurticos, pois o acesso s mercadorias que, para eles, simboliza felicidade e aceitao, lhes negado pelas prprias condies objetivas da sociedade. claro, contudo, que no se pode creditar indstria cultural ou aos modelos impostos pela televiso responsabilidade exclusiva pela continuidade da prostituio na sociedade contempornea. Como nos lembra Marx (1983, p. 218), o concreto concreto por ser a sntese de mltiplas determinaes, logo unidade na diversidade. Embora em contradio com a perspectiva assumida pela indstria de massa, a qual insere, de forma explcita ou no, um apelo ao consumo, o que pode incluir a mercantilizao do corpo, essa prpria cultura divulga cotidianamente concepes de uma moral burguesa que censura formas no institucionalizadas de sobrevivncia. Nesse contexto, as prticas de prostituio esto parcialmente desvinculadas do controle que a sociedade exerce sobre os
indivduos. A prostituio, assim, considerada uma conduta marginal, prxima a outras prticas transgressoras como o trfico, o uso de drogas, os furtos e os roubos. Estas transgresses, como ressaltou Bataille (1987), suspendem o interdito sem, no entanto, suprimi-lo, numa espcie de cumplicidade entre a lei e sua prpria violao.
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Pasolini debita indstria cultural a responsabilidade pelo modelo consumista e a identifica como uma nova forma de fascismo, enquanto Adorno e Horkheimer (1985) lembram que tanto o consumismo como estilo de vida quanto o conhecimento fazem parte da perspectiva da sociedade moderna. Para os autores, a elevao do padro de vida das classes inferiores foi, na modernidade, materialmente considervel, mas lastimvel do ponto de vista social. Seu reflexo a difuso hipcrita do esprito que deveria negar a reificao, embora essa negao necessariamente se desfaa quando se v concretizada em um bem cultural e distribuda para fins de consumo. O novo fascismo temido por Pasolini estava em um poder capaz de determinar o comportamento consumista dos jovens, tanto formando e deformando conscincias quanto tornando-as iguais, devido nsia do consumo, uma nsia de obedincia no anunciada. Ele lembra que nunca os jovens temeram tanto a diferena, passando a fazer todos os esforos para se adequarem aos modelos impostos pelo capitalismo. Essa falsa igualdade, portanto, foi uma concesso e no uma conquista. Falsa tambm era a tolerncia a uma ideologia hedonista perfeitamente auto-suficiente, porque nenhum homem ou mulher jamais foi obrigado a ser to normal e conformista quanto o consumidor. Esse esforo em padronizar os comportamentos, ainda que de forma artesanal, iniciou-se no Brasil no sculo XIX, antes mesmo da ascenso da indstria cultural. Os estudos de Costa (1999) evidenciam os ataques moralistas s mulheres cujas vidas no se deixavam controlar. Sua obra retrata o desenvolvimento da famlia no Brasil Colnia e todas as aes realizadas pelo Estado e pelos mdicos higienistas ao longo deste perodo para enquadrar os indivduos em normas e regras. Neste sentido, as prostitutas e as mulheres consideradas mundanas, ou seja, aquelas que recusavam o matrimnio e a maternidade responsvel, estavam para a me de famlia assim como os celibatrios, os libertinos e os homossexuais estavam para o homem, pai de famlia. Elas resistiam a cumprir as tarefas sociais que lhes eram impostas para se entregarem, sem escrpulos, aos prazeres do mundo, vaidade do corpo e ao gozo do sexo. Naqueles tempos, a corrupo da moral feminina pela mulher perdida fazia-se, em primeiro lugar, pela exibio de seu comportamento sexualmente descontrolado. Ao manter relaes sexuais por dinheiro e se entregar livremente masturbao e sodomia, prticas consideradas antinaturais, este gnero de mulher constituia-se em um manual vivo da forma imoral de ser mulher. Em segundo lugar, as prostitutas ou mulheres perdidas eram tambm acusadas de amarem o luxo e a ociosidade, de no exercerem nenhuma profisso til, de serem imprevidentes consigo mesmas e desencaminharem, com o pssimo
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exemplo de seu comportamento, as filhas de famlia das classes trabalhadoras. Eram tambm acusadas de insultarem a virtude das meninas laboriosas e honestas que, atradas pelo luxo, vaidade e ociosidade, lanavam-se sem pensar no turbilho da libertinagem, abandonando a tranqilidade do lar e dos bons costumes. Esse iderio, embora distante no tempo, no desapareceu por completo, dele permanecem resqucios, restos de uma antiga moral repressora que, aos poucos, perdeu espao para outras maneiras de viver, embora no tenham desaparecido definitivamente as prticas discriminatrias. A invaso do cenrio urbano pelos meios de comunicao de massa contribuiu efetivamente para que se tornassem anacrnicos certos tipos de preconceito, surgindo, em lugar deles, novas formas autoritrias e discriminatrias de relacionamento. Se no sculo XIX o poder do Estado e o da Medicina se uniram para criar normas de comportamento, j no sculo XX e XXI estes poderes foram construdos e impostos pela indstria cultural de forma bastante eficaz, embora aparentemente neutra. As pesquisas de Margareth Rago tambm incluem a temtica da prostituio entre 1890 e 1930. Pode-se observar que, neste perodo, j eram utilizados, embora com menor intensidade, os meios de comunicao de massa como forma de produzir o consentimento das pessoas. Assim, em contradio com a perspectiva consumista da poca de expanso da prpria indstria e da produo de artigos suprfluos direcionadas especialmente s mulheres, a prostituio foi classificada pelo saber mdico e criminolgico como um vcio terrvel, capaz de contaminar todo o tecido social. Da a necessidade de reprimi-lo, bem como a outras formas de vandalismo. De acordo com Rago (1991), a moralidade reclamada pela burguesia em ascenso no Brasil, inicialmente, voltou-se para a separao entre empregadores e empregados, em nome da qual a respeitada esposa expulsou do seu ninho todos os intrusos. As empregadas domsticas, quando dormiam na casa dos patres, eram instaladas em aposentos nos fundos da residncia, longe do olhar destes. Os maridos, ento, se queriam manter um relacionamento extraconjugal, procuravam uma penso de artista ou um hotel reservado, longe da famlia. Em casa, no aconchego do larsanturio, mantinham a imagem de senhores austeros, vigilantes da moralidade dos filhos. mulher, distante de qualquer atividade pblica, coube a condio de rainha do lar, cuja nica funo era zelar pelo bem-estar da famlia. A moralidade burguesa, assim imposta pelas instituies (Estado, Igreja, Escolas), no poderia e, certamente, no foi capaz de manter esse modelo de comportamento. Mesmo as mulheres pobres, apesar de vigiadas ou at perseguidas pela
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moral higinica, precisavam sobreviver e, muitas vezes, se rebelavam pelas vias da sexualidade, do trabalho ou da violncia. A transgresso18, quando relacionada com a sexualidade, quase sempre est enredada por representaes e mitologias que constituem o imaginrio do submundo da prostituio, to dinmico quanto as prticas da prostituio, embora essa atividade permanea nas crenas populares como a profisso mais antiga do mundo, processo de naturalizao que contradiz sua historicidade. No Brasil, as prticas de prostituio vincularam-se, desde os tempos da Colnia, explorao das escravas pelos senhores de engenho, os quais constantemente cediam jovens negras e mulatas para serem prostitudas. Naqueles tempos, jovens portuguesas que, geralmente, embarcavam para o Brasil com enganosas promessas de casamento, tambm eram obrigadas a se prostiturem. Por se tratar de uma prtica que garantia lucro aos escravocratas, a prostituio no se constituiu em alvo de preocupao do Estado. Para Rago (1991), as inquietaes com a prostituio tiveram incio a partir da expanso do mercado capitalista, quando foi possvel para chefes de polcia, mdicos, higienistas e juristas isolarem esta atividade, elaborando sobre ela anlises e observaes. Para a autora, essas anlises, de um lado, silenciaram e estigmatizaram a prostituta e, de outro, ofereceram explicaes essencialmente econmicas sobre a comercializao do corpo feminino, ou seja, reduziram a prostituta condio de vtima. Nessa lgica, a prostituio focalizada tanto como resposta a uma situao de misria econmica quanto como transgresso a uma ordem moral acentuadamente rgida e castradora. Sua funo principal seria, ento, a de aliviar esporadicamente a tenso criada pela imposio de estritas regras de comportamento sexual, permitindo aos homens dar vazo aos impulsos libidinais reprimidos no interior das famlias. Por um lado, no Brasil, como j foi referido antes, o bordel, a partir do final do sculo XIX, constituiu-se em um lugar importante para as cidades, ao funcionar como o lugar de iniciao sexual dos jovens tanto da elite quanto das camadas populares. Por outro lado, no mundo contemporneo, a prpria indstria cultural aponta para um crescimento da mercantilizao do sexo, proporcionada pelo mundo globalizado que, inclusive, atende a outras exigncias e expectativas criadas pelas necessidades atuais da sociedade.
Segundo Bataille (1987), a transgresso no a negao do interdito, mas o ultrapassa e o completa. Para o autor, no existe interdito que no possa ser transgredido e, freqentemente, a transgresso admitida e at mesmo prescrita.
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Essa substituio de valores no mundo contemporneo se efetua atravs de persuases ocultas. Os processos de colonizao dos povos dos chamados pases subdesenvolvidos no ocorrem mais, como em pocas passadas, por meio de violncia explcita. Hoje, os mtodos so sutis e complexos: os jovens assumem novos valores produzidos pela propaganda, pela televiso, enfim, pela indstria cultural, passando inconscientemente a imitar um modo de vida estranho a suas condies objetivas de vida. Para Pasolini (1990), quando o indivduo assume um modelo de vida que contradiz sua real situao de classe, tambm assume frustraes bastante profundas. Ao abordar a falsa tolerncia e a permissividade, o autor lembra que vigorava, em sua poca, nas grandes cidades e na zona rural, certo tipo de moral popular, um tanto livre, verdade, mas com tabus que lhe eram prprios, uma espcie de cdigo ao qual o povo todo se atinha. Todavia chegou um momento em que o poder teve necessidade de um tipo diferente de sdito que fosse, antes de tudo, um consumidor, o qual no seria adequado se no lhe fosse concedida permissividade no campo sexual. Da o bombardeio dos meios de comunicao visando a mudanas nos hbitos e nas prticas sexuais. Mudanas que, no entanto, no buscavam a autonomia das pessoas, deixando-as ainda mais submissas aos modelos impostos pela indstria. Do perodo inicial do sculo XX at os dias atuais, a indstria cultural sofreu muitas alteraes perifricas, embora sua essncia tenha permanecido. Se com o rdio e o cinema o poder se concentrava nas mos de um grupo reduzido de empresrios, com a televiso e outros aparatos tecnolgicos surgidos posteriormente, expandiu-se um processo que Adorno chamou de pseudoindividualizao, aplicvel ao fenmeno da prostituio contempornea. Em filmes de Hollywood ou em novelas da Rede Globo, mulheres lindas e elegantes utilizam o corpo para inserirem-se no rol dos grupos de alto consumo. Ao mesmo tempo, a atividade que realizam segue a mesma lgica do trabalho em srie, organizado pelo taylorismo nas fbricas. Na lgica capitalista, prevalece uma relao de dependncia do trabalhador, pois assim que os homens passam a trabalhar uns para os outros de alguma maneira, seu trabalho adquire uma forma social (Marx, 1985). Opondo-se a isso, Marx concebe o trabalho como algo diretamente ligado existncia humana, mas que, ao invs de produzir sua liberdade, transforma o homem em mquina:
Com a valorizao do mundo das coisas, aumenta em proporo direta a desvalorizao do mundo dos homens. O trabalho no produz apenas mercadorias; produz-se tambm a si
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mesmo e ao trabalhador como uma forma de mercadoria, e justamente na mesma proporo com que produz os bens (MARX, 1991, p. 106).
Nesse sentido, o trabalho no capitalismo torna-se exteriorizao de mercadorias cuja fetichizao transforma o sujeito, neste caso, a mulher prostituta, em pura objetivao. Como afirma Resende (2003), a fetichizao atinge o ntimo do indivduo porque no apenas como produtor que ele se defronta com as formas fantasmagricas da realidade, mas como sujeito que se objetiva e no se reconhece no objeto que ganha vida prpria, e tambm como sujeito individual e coletivo que no se reconhece a si e, tampouco, aos outros indivduos. Uma das especificidades da sociedade capitalista sua capacidade em transformar tudo em mercadoria. Alm disso, o desenvolvimento moderno provoca alteraes nas necessidades sociais que repercutem nos valores, desencadeando um processo de fetichizao do corpo. Particularmente neste aspecto, a interferncia da indstria cultural visvel, pois ela apresenta opes mercadolgicas pretensamente racionais, levando o sujeito a acreditar que livre, embora acentue, cada vez mais, sua inclinao social para o uso do corpo como objeto de prazer. Corpo que passa, ento, a ser percebido como artifcio claro e que deve, necessariamente, ser consumido. Se, para Benjamin (2000), a prostituio poderia ser considerada a manifestao do aspecto revolucionrio da tcnica, ou seja, seu lado criativo e simblico, bem como a decadncia do amor, pode- se tambm dizer que esse aspecto revolucionrio vem sendo ofuscado pela tcnica. A prostituio se organiza nos mesmos moldes do trabalho fabril, obedecendo mesma lgica do trabalho fragmentado e em srie do modelo fordista: Ficamos numa casa que se chamava Selva de Pedra [...] L era to gr-fino que a mulher que mais fazia programa ganhava um premio no final do ms. Era tudo computadorizado.19 At no controle do tempo existe semelhana entre o trabalho do operrio na fbrica e a utilizao do corpo da prostituta: Na casa vip, o cliente paga o quarto e pode ficar quarenta e cinco minutos.20 Benjamin inspira-se em Baudelaire quando discute a modernidade, a prostituio, a vida nas cidades, o flneur. O poeta (2002) ressaltava a complexidade do mundo moderno desde o sculo XVIII, identificando a modernidade com o transitrio, o efmero, o contingente, como a metade da arte, sendo que a outra metade era o eterno e o imutvel. No universo baudelairiano, a modernidade
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intrnseca vida nas cidades, com suas ruas e praas, com seus teatros e bordis e, tambm, com a morte a espreitar em qualquer esquina. O paraso convive lado a lado com o inferno da solido em meio multido. A tcnica representada pelo trabalho a vapor e pela eletricidade trouxe o progresso para a humanidade, apesar de representar tambm a decadncia da alma. Mesmo a negao da modernidade algo de surpreendente fascnio, pois a decadncia, a misria, a maldade emanam matrias que percorrem as sombrias ruas da cidade, as quais so tambm paisagens e expresses do esprito puro e da liberdade, pois, para o autor, a correlao perptua entre o que se chama alma e o que se chama corpo explica perfeitamente como tudo o que material ou emanao do espiritual representa sempre o espiritual de onde provm. Marshall Berman, em sua obra Tudo que slido desmancha no ar: A aventura da modernidade, aprofunda criativamente a discusso acerca do carter niilista da modernidade. Segundo o autor, Marx foi o maior crtico da modernidade e, ao postular no Manifesto Comunista que a burguesia converteu toda a dignidade e honra pessoais em valor de troca, substituindo todas as liberdades pela livre troca, demonstrou o imenso poder do mercado na vida interior dos indivduos modernos. Estes, quando examinam a lista de preos, esto procura de respostas no somente para questes econmicas, mas tambm metafsicas: o que mais valioso ou o que mais honorvel. Essa metamorfose de todos os valores em valor de troca na interpretao que Berman (1982) faz da obra de Marx significa que a sociedade moderna no eliminou as velhas estruturas de valor, apenas as alterou. As velhas formas de honra e dignidade no morreram, foram, ao contrrio, incorporadas ao mercado, ganhando etiquetas de preo e vida nova, tornando-se, em outras palavras, mercadoria. A partir da, qualquer espcie de conduta humana permissvel, desde que se apresente economicamente vivel, valiosa. Essa a essncia do niilismo moderno que Dostoivski, Nietzsche e seus sucessores do sculo XX atribuem cincia, ao racionalismo ou morte de Deus, enquanto, para Marx, sua base bastante concreta e mundana e se ergue sobre as banais ocupaes cotidianas da ordem econmica burguesa. No mundo atual, pode-se observar nitidamente essa contnua circulao de valores. As seitas ou movimentos religiosos e msticos anunciam publicitariamente (e sem nenhum constrangimento) a realizao de curas milagrosas, mudanas radicais no cotidiano das pessoas, prometem, enfim, o paraso aqui mesmo, diferente do que se afirmava no passado: que o paraso seria uma recompensa para aqueles que renunciassem aos prazeres mundanos. Idias, crenas,
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mitos, anteriormente considerados sagrados, foram redimensionados, etiquetados e transformados em mercadoria. A modernidade desenvolveu-se no seio dos valores que permeiam a cultura de massas. Neste processo, os sonhos tornaram- se simultaneamente coletivos e inconscientes, contribuindo para formar indivduos atomizados, consumidores que imaginavam o seu mundo de sonho mercadolgico numa perspectiva absolutamente individual e que experimentavam a participao na coletividade em um sentido alienante, como um componente annimo na multido. Segundo BuckMorss (2002), esta uma das contradies fundamentais da cultura industrial que, ao privilegiar a vida privada, baseando sua concepo de sujeito no indivduo isolado, acaba por criar formas completamente novas de existncia social espaos urbanos, formas arquitetnicas, mercadorias produzidas em massa e experincias individuais infinitamente reproduzidas que engendram identidades e conformidades no cotidiano das pessoas, mas no a solidariedade social, nem um nvel novo de conscincia coletiva e, logo, nenhuma maneira de despertar do sonho que as envolve. Esse sonho mercadolgico, que no realizado pelas maiorias, suscitou inquietaes em Benjamin (1994), que descreve a genialidade e instabilidade material de Baudelaire como conseqncia das condies de trabalho na sociedade capitalista. Esse poeta vivia de uma forma potica, altamente criativa, mas, ao mesmo tempo, destrutiva, visto que se adaptava s privaes materiais, embora no se conformasse com as injustias dessa modernidade. Ele era capaz de reconhecer o quadro emocionante produzido pelo espetculo de uma multido que considerava doentia pelo fato de, cotidianamente, tragar a poeira das fbricas, aspirando partculas de algodo, deixando-se penetrar pelo alvaiade, pelo mercrio e todos os venenos usados na fabricao de obras-primas. Essa multido se consumia pelas maravilhas, as quais, no obstante, no tinha acesso. Por outro lado, a modernidade generalizou o acesso escola. Mais do que em qualquer outro perodo da histria, as sociedades liberais expandiram as oportunidades para que todos pudessem percorrer os caminhos do conhecimento, superando, assim, as vises mticas e livrandose das formas pr-modernas de viver e sobreviver. Na modernidade, a multido que produzia as maravilhas destinadas ao mercado constituia-se de heris que deveriam ir escola e, principalmente, continuar produzindo mercadorias e preparando-se continuamente para produzi-las cada vez melhor. Eis os heris oficiais da modernidade.
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Outros paradigmas, outras formas de herosmo menos submissas aos governos e ao poder, foram retratados por poetas e artistas como Baudelaire, Balzac etc. Esta rebeldia, segundo Benjamin (1994), podia ser vista no espetculo da vida mundana, nos milhares de vidas desregradas que habitavam os subterrneos de uma grande cidade que abarcava criminosos e prostitutas, mostrando que precisvamos apenas abrir os olhos para reconhecer nosso herosmo. No dilogo com a poesia de Baudelaire, Benjamin re-descobriu o amor lsbico de As Flores do Mal, lembrando que a modernidade do escritor entrelaava-se com o passado de uma antiguidade romana com resqucios da Grcia. A modernidade, na viso de Benjamin, , assim, um misto de dureza e virilidade. Alm das imagens evocadas pela viso da lsbica identificada na obra de Baudelaire, outros vnculos com a marginalidade foram percebidos no estilo de vida bomio, que se recusava ao trabalho escravo aceito pelos outros homens (e mulheres) que se fizeram detentores das condies concretas de produo de riquezas, maneira tpica da sociedade moderna. 1.1 O Flneur e a prostituta brasileira Benjamin estudou o flneur, criao baudelairiana, personagem ocioso, oposto s normas, mas estudou tambm o homem das multides, criao de Edgar Poe, que poderia tanto ser um alto funcionrio da cidade de Londres quanto um bbado que rasteja noite pelas ruas da cidade. Embora em condies diferentes, ambos tm em comum um mesmo espao social dominante - as grandes cidades que expressa, de forma singular, uma poca histrica a modernidade. Alm destes autores, Benjamin discutiu o surrealismo e sua perspectiva libertria e de renovao dos valores polticos, artsticos, morais e filosficos. Nesta discusso, o autor exps suas inquietaes decorrentes de sua proximidade com o aspecto libertrio do surrealismo, em contradio com o legado ideolgico das concepes leninistas de disciplina e organizao, as quais ele acreditava serem fundamentais para que se alcanasse xito nas aes revolucionrias. Benjamin ressaltou em seus escritos sobre arte e literatura a importncia e a necessidade de transformao social. Para ele, o potencial revolucionrio pode ser encontrado em lugares e em situaes atpicas, como na poesia e na pintura e, assim como para os surrealistas, este potencial est tambm na embriaguez, no obstante seu carter anrquico.
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Alguns marxistas, a partir da interpretao de textos escritos por Marx21, consideram lumpemproletrios os indivduos que sobrevivem na marginalidade e que, mesmo no possuindo renda alguma, tambm no se dispem a vender sua fora de trabalho no mercado. Seriam indivduos considerados perigosos, destitudos de honra e de valores e que, por isso mesmo, poderiam servir aos caprichos da classe dominante, fazendo o jogo da represso frente aos movimentos revolucionrios, j que estariam destitudos de qualquer potencialidade revolucionria. Benjamin, porm, se aproxima das concepes anarquistas, quando os percebe com capacidades transformadoras: o homem que l, que pensa, que espera, que se dedica flnerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de pio, o sonhador e o brio, galeria dos iluminados. E so iluminados mais profanos. Para no falar da mais terrvel de todas as drogas ns mesmos que tomamos quando estamos ss. (1994, p. 33). Benjamin (1994) prope que sejam mobilizadas para a revoluo as energias da
embriaguez, alm de criticar os limites das produes literrias cujas caractersticas esto relacionadas com posies burguesas de esquerda, provenientes de uma irremedivel articulao entre a moral idealista e a prtica poltica. Para ele, desde Bakunin, no havia mais na Europa um conceito radical de liberdade como o criado pelos surrealistas, que liquidaram o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e dos humanistas. Isso porque conheciam o alto preo da liberdade e lutavam por sua essncia, sem clculos pragmticos. Com essas convices, Benjamin se distanciou dos marxistas em geral e se aproximou de Bakunin que, na interpretao feita por Rago (1985), apostava muito mais nos deserdados do sistema, naqueles que nada tinham a perder. O terico do anarquismo defendia o lumpemproletariado e at o banditismo na Rssia de sua poca porque considerava o proletariado, por sua situao privilegiada em relao aos demais trabalhadores ou desempregados, vulnervel aos apelos da ideologia dominante.
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- MARX, na obra O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann (1978, pg. 70-71), analisa da seguinte forma a Frana do sculo XVIII: A pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lumpen-proletariado de Paris fora organizado em faces secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com rous decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exrcito, presidirios libertos, forados foragidos das gals, chantagistas, saltimbancos [...], trapaceiros, jogadores [...], donos de bordis, [...] trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos em suma, toda uma massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam la bohme; com esses elementos afins Bonaparte formou o ncleo da Sociedade de 10 de dezembro. Sociedade Beneficiente no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar s expensas da nao laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lumpen-proletariado, que s aqui
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Na contemporaneidade, a perspectiva de transformao social apresenta-se ainda mais complexa. As mudanas que ocorreram no mundo do trabalho restringiram quantitativa e qualitativamente a chamada classe trabalhadora, inclusive no Brasil. Diferentemente do sculo XIX e das primeiras dcadas do sculo XX, no sculo XXI diminui cada vez mais o nmero de trabalhadores que se encontram no mercado formal, paralelamente ao crescimento de homens e mulheres que sobrevivem do chamado mercado informal. Neste cabedal, encontram-se formas tradicionais de sobrevivncia, mas so tambm inventadas, a todo o momento, novas maneiras de driblar a fome e a misria, apesar da violncia institucional. As diferenas no perfil da classe trabalhadora, tecidas ao longo deste perodo, no impedem, entretanto, que haja semelhanas com as formas de representao e de represso inerentes s classes dominantes do passado ( no que concerne a homens e mulheres que sobrevivem nas cidades de forma marginalizada) que continuam, apesar de tudo, persistindo no presente. Nesse contexto do imaginrio, encontramos O cortio, de Alosio de Azevedo, um importante escritor do Realismo/Naturalismo, do final do sculo XIX e incio do sculo XX. Embora fosse considerado progressista devido a sua insero na luta contra a escravatura, as injustias sociais, o obscurantismo e o clero, criou uma representao dos pobres em meio a rudeza, selvageria, sexo e sujeira:
Durante dois anos o cortio prosperou de dia para dia, ganhando foras, socando-se de gente [...]. A noite aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando ele, recolhendose fatigado do servio, deixava-se ficar estendido numa preguiosa, junto mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exalao forte de animais cansados. No podia chegar janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito. (AZEVEDO, 1993, p. 14).
A moradia e os hbitos dos pobres estavam especialmente relacionados ao lazer e ao sexo. A insalubridade e a indecncia justificavam a interveno planejada tanto das instituies de educao e de assistncia quanto das instituies repressivas, que foram propostas por representantes do Estado, por industriais e tambm respaldadas ideologicamente por artistas e literatos como Alosio de Azevedo. Rago (1985) afirma que alguns industriais e higienistas sociais da dcada de 1920 defendiam a construo de habitaes confortveis, higinicas e baratas que fixassem o trabalhador no apenas no emprego, mas dentro do lar nos momentos de folga. O sonho
reencontra, em massa os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escria, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a nica classe em que pode apoiar-se incondicionalmente [...].
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desta classe dominante das primeiras dcadas do sculo XX era moldar os trabalhadores, tornandoos obedientes e cumpridores de seus deveres dentro de suas residncias, longe da energia revolucionria das ruas e dos bares. No Brasil do sculo passado, juntaram-se Igreja, Estado e Patres numa poderosa aliana que incentivava o trabalhador a levar uma vida sbria e regrada. Estes incentivos, evidentemente, incluam formas sutis e, s vezes, explcitas de represso aos que se insubordinassem. Segundo Rago (1985), atravs da organizao do espao urbano, a classe dominante podia vigiar e controlar o trabalhador cotidianamente, na vila e na fbrica. Certamente que aos donos das fabricas
interessava a promoo do casamento monogmico e a organizao da famlia operria fixando os trabalhadores ao redor das fbricas e evitando, assim, que eles procurassem os cabars, as penses de meretrizes estrangeiras, mestras em todas as artes do gozo e no esvaziar de garrafas de champanhe e de usque. Os trabalhadores urbanos no Brasil deste perodo (incio do sculo XX) eram vistos pela burguesia e seus idelogos como seres incivilizados e infantilizados. Da que todos os problemas de ordem material, como pobreza, mortalidade infantil, greves eram ideologicamente vinculados ao aspecto moral. Nesse sentido, a melhoria das moradias justificava-se frente necessidade de regenerar as classes populares decadas moralmente. claro que essas boas intenes da burguesia tinham origem na compreenso de que a organizao e a disciplinarizao dos operrios, dentro da fbrica e fora dela, poderiam retirar ou, no mnimo, dificultar as lutas por mudanas sociais, prejudiciais burguesia. A rua das grandes cidades, no imaginrio de alguns poetas e literatos do sculo XIX e XX, foi tambm descrita com um potencial revolucionrio. Nas obras dessa poca, aparece a rebeldia contra as leis e as normas de um poder arbitrrio que criou, na Inglaterra, a chamada Lei dos Pobres (1843), que buscava impedir a liberdade e transformar todos os seres em assalariados ou, pelo menos, em indivduos cadastrados. Benjamin (1994), pesquisando as imagens de Paris nos jornais da poca, apresenta algo muito semelhante s ruas de qualquer grande cidade do sculo XXI que retratam, por exemplo, um bomio (ou morador de rua) dormindo com a cabea inclinada para frente, a bolsa vazia entre as pernas, ao lado de seus acessrios domsticos e de toalete que, colocados em torno de si de forma organizada, sugerem intimidade. Essa ociosidade do flneur uma demonstrao pblica, uma revolta contra a diviso do trabalho.
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Benjamin (1994) encontra elementos para construir essa imagem indiferente e cruel que caracteriza as relaes sociais nas grandes cidades em diversos artistas da literatura. Baudelaire, por exemplo, em Os Foguetes, escreveu que o homem est sempre em estado selvagem e que os perigos da floresta e das grandes plancies no significam nada se comparados aos conflitos dirios do mundo civilizado. A intolerncia contra os que no se submetem alienao e diviso social do trabalho encontra-se tanto na obsesso de personalidades como Taylor e seus discpulos, como nos lembrou Benjamin (1994), quanto na ao repressiva de indivduos ou grupos que, nas sociedades capitalistas, se propem a realizar a devida assepsia nas ruas e praas das grandes cidades. Escritores contemporneos no Brasil retrataram a crueldade para com aqueles que vivem nas ruas (vagabundo, sem teto, morador de rua, desocupado). No romance A grande Arte, de Rubem Fonseca, narrada a histria de um ex-morador de rua:
Certa poca, quando eu no tinha onde morar e dormia na soleira das portas, surgiu na cidade um matador que jogava gasolina nos mendigos que dormiam e ateava fogo. Matou um monte. Eu senti que ele ia me pegar, sabe, tive aquele pressentimento. E ele quase me pegou mesmo. Acordei com o corpo todo molhado de gasolina, ele tentando acender um fsforo e jogar em cima de mim, com a cara de quem est acendendo o gs de um fogo. Corri como um louco. E depois daquele dia passei a dormir dentro de um bueiro. As baratas passeavam em cima do meu corpo, mas eu sabia que no iam me fazer nenhum mal, no mximo chupar um pedacinho de lbio aqui, uma pelinha do dedo ali, mas com elas eu estava seguro, a morte estava l fora, tinha duas pernas, dois braos, uma cabea, como eu, feita imagem e semelhana de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo. (FONSECA, 2004, p. 260).
Da mesma maneira, na vida real, em plena dcada de 1960, no ento Estado da Guanabara, governado por Carlos Lacerda, veio a pblico, segundo Pinheiro (2001), junto com a poltica de deslocamento das populaes faveladas cariocas da zona sul para zonas industriais distantes criadas com o propsito de desocupar reas j valorizadas, o caso dos mendigos jogados no rio Guandu. De acordo com um jornal da poca, apareceu boiando no rio da Guarda, perto do rio Guandu (na divisa com o antigo estado do Rio), o corpo de um homem amarrado, com perfuraes de balas na nuca, enquanto outro sobreviveu e foi delegacia de Santa Cruz relatar que a prpria polcia o tinha atirado no rio. Em busca de respostas para a denncia, os jornais da poca procuraram o Secretrio de Segurana Pblica que explicou: como vem muito mendigo para o Rio, de vez em quando do uma limpeza assim na cidade e devolvem os mendigos para as terras de origem (PINHEIRO, 2001, p. 287) Logo depois, um inqurito concluiu que, no Servio de Recuperao de Mendigos, um funcionrio havia formado um pequeno esquadro da morte que recolhia os
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mendigos e os levava para o rio da Guanabara; l, eles eram amarrados, mortos a tiros e jogados dentro dgua. Para o autor, tanto a remoo das favelas como a limpeza da cidade e os assassinatos de mendigos eram prticas que tinham como denominador comum a mesma motivao de profilaxia social. Mas o homem das multides, de Poe, no um excludo, morador de rua, ele pode ser, ao contrrio disso, um profissional altamente qualificado que contempla a multido. Os sentimentos direcionados a esse tipo de indivduo no so os mesmos que inspiram aqueles que, geralmente, so tratados como vagabundos. Aos primeiros, no se destina a hostilidade de uma sociedade que cria normas e instituies com a pretenso de manter as diferenas hierrquicas. De paradoxos como esses constituda a modernidade, onde a misria convive com a opulncia. Benjamin (1994) descobre um Baudelaire para quem a sarjeta das grandes cidades como um leito fnebre que guarda o segredo dos esgotos. Neste cenrio, as pessoas se acotovelam se esbarram, mas no se tornam amigas e nem, ao menos, se reconhecem como semelhantes. Em vez disso, se empurram e o que se v por toda parte a lama e a escurido. Por que ento falar de progresso a um mundo que se afunda na rigidez cadavrica? Esta a indagao feita por Baudelaire para quem Poe produz do mundo descries incomparveis. O conceito de progresso em Benjamin e em Baudelaire funde-se com a idia de catstrofe, cujos significantes so a injustia e a opresso. Segundo Benjamin (1989), neste ambiente, o homem adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria. Ao mesmo tempo, a propaganda ofusca o carter mercantil das coisas e a enganadora transfigurao do mundo das mercadorias contrape sua desfigurao no alegrico. A mercadoria, assim, procura olhar-se a si mesma na face, ver a si prpria no rosto. Alm disso, o misticismo permanece na modernidade, mas um encanto arisco que se apresenta na forma de um amuleto semelhante mentira entre as prostitutas. A mercadoria assumiu o lugar da forma alegrica da intuio nas grandes cidades, por isso a mulher no aparece apenas como mercadoria, mas ( moda fordista) como artigo de massa, o que se expressa por meio do disfarce artificial atravs da maquilagem. Na interpretao da obra de Baudelaire por Benjamin, este aspecto da meretriz se tornou sexualmente determinante para o artista, pois nele as mltiplas evocaes da prostituta tm como pano de fundo a rua e nunca o bordel. Embora a condio da prostituta no Brasil, em um primeiro olhar, pudesse apresentar semelhanas com essa bomia, bastaria um maior aprofundamento nesse universo para perceber
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sua desvalorizao social ao longo da constituio da modernidade, marcando profundas diferenas com o flneur. Rago (1991), que penetrou no espao ocupado pela prostituta, no perodo citado pelos referidos autores, afirma que sua apario no cabar era solene, teatralizada, exuberante, projetando-se com elegncia para a sociedade. Nesse momento histrico, o cabar e suas derivaes o bar, a penso de artistas, o bordel de luxo e, posteriormente o rendez-vous - com todos os equipamentos modernos de prazer e conforto que a cidade fornece, introduziram um nvel mais sofisticado e diversificado de vivncia ertica. A autora lembra que a poca em questo reivindicava o status de adiantada e tambm que, nesse perodo, investia-se na tecnologia e na noo de progresso, da o cabar ser considerado um empreendimento capitalista moderno que veio para suprir as exigncias da demanda por novas formas de consumo sexual. A prostituio se tornou, por isso, mais visvel, possibilitando a compra de um momento de contato fsico e de prazer sexual em suas mltiplas verses. Ao mesmo tempo, este processo, no incio do sculo XX, era mais velado e mais secreto, havendo toda uma fetichizao dessa nova mercadoria exposta no mercado. Assim, enquanto aos homens era permitido circular livremente pelas grandes avenidas ou passagens parisienses, as mulheres que tambm estavam na condio de flneur eram consideradas objeto em exibio, em busca de um novo comprador/consumidor. Diferente de Baudelaire e Benjamin, o palco privilegiado de observao de Rago (1991) o bordel e no as ruas. Neste lugar, prevalece a diviso do trabalho rejeitada pelo flneur. A autora reflete e concorda com as analogias de outros autores entre as condies do operrio na fbrica e as da prostituta no bordel. Cotidianamente, esta precisa encenar no interior do quarto a personagem que o fregus procura, precisa aprender a ler os seus desejos e preencher suas expectativas. Assim, sua disponibilidade de representao deve ser absoluta. Nesta condio, seu corpo totalmente fragmentado, sugado e esvaziado de toda subjetividade e de emoes, podendo cada parte ser utilizada como pea da engrenagem sexual, da mesma forma que, no mundo da fbrica, seu ritmo de trabalho e produtividade devem ser intensos. No obstante as profundas diferenas entre as prostitutas e o flneur, a no fixao delas em um nico bordel, sua condio nmade e sua constante mudana de identidade as aproximam dessa personagem. Rago (1991) observa que o amor da prostituta pelo cio e pelo luxo, assim como seu desejo de fuga irritaram bastante os mdicos brasileiros do passado. Eles se empenharam em definir o carter dessas mulheres, embora no o tenham conseguido devido inconsistncia de seu
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modo de vida. Mesmo que a condio nmade da prostituta fosse uma arma de seduo, atraindo o fregus em busca de novidade, assim como o flneur, ela era invisvel e, portanto, no classificvel, seja pelo saber mdico, seja por qualquer outra instituio. Em alguns aspectos, o modo de vida do prprio Baudelaire foi discutido por Benjamin, que reconhecia no poeta vestgios do flneur que o tornavam um heri pelo avesso:
Nos primeiros anos de sua existncia como literato [...], seus amigos podiam admirar a descrio com que banira de seu quarto todos os vestgios de trabalho, a comear pela escrivaninha. Naquela poca aspirava simbolicamente, conquista da rua. Mas tarde, ao abandonar paulatinamente sua existncia burguesa, a rua se tornou cada vez mais um refgio. Desde o incio, porm, havia na flnerie a conscincia da fragilidade dessa existncia. Ela faz da necessidade uma virtude e nisso mostra a estrutura que, em todas as partes, caracterstica da concepo do heri em Baudelaire. (BENJAMIN, 1994, p. 70)
Quem seriam ento, os heris da modernidade? Apenas os trabalhadores que se submeteram condio de escravos de outros homens por no possurem as condies concretas para desenvolverem autonomamente sua criao. Por isso defenderam uma ordem social que lhes era hostil, mas tambm uma bomia, um estilo de vida que, como pensava Benjamin (1994), encontrava-se em sintonia com os conceitos desenvolvidos por Marx quando este, criticamente, lembrou que, embora o trabalho fosse a fonte de toda a riqueza e de toda cultura, tanto a explorao mental quanto manual dos indivduos somente interessava aos burgueses. Segundo Benjamin (1994), Baudelaire considerou como heris os trabalhadores, sujeitos da modernidade. Por meio de metforas, Benjamin mostrou a transformao at mesmo do artista ou do gladiador em assalariado, remetendo a Engels quando este, em A situao da classe trabalhadora na Inglaterra, descreveu as condies (de sua poca) da cidade de Londres que, em sua imensido urbana, sua beleza e singularidade, escondia o reverso da civilizao: uma sociedade que se encontrava permanentemente envolvida numa guerra social de todos contra todos, tanto que as pessoas no se consideravam reciprocamente seno como sujeitos utilizveis. Na realidade das grandes cidades, reinava uma indiferena brbara, egosta de um lado, e misria indestrutvel de outro. A soluo encontrada para a guerra social que prevalece ainda hoje em toda parte foi a transformao das residncias de cada um em estado de stio. No importam as idiossincrasias, todos se consomem diante das maravilhosas mercadorias quase sempre inteis porque inacessveis, estando, por elas, dispostos a grandes sacrifcios. Por tudo isso, para viver a modernidade, preciso possuir uma natureza herica.
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Benjamin acreditava que a populao pobre era o pano de fundo no qual se destacava o perfil do heri moderno. Para o autor, infelizmente, a maioria dos poetas se ocupou de temas oficiais as vitrias e o herosmo poltico - embora sem muita convico, apenas para cumprir ordens e receber honorrios. Eles deixaram de lado temas da vida privada bem hericos, como o espetculo da vida mundana e das milhares de existncias desregradas que povoavam os subterrneos de uma cidade grande: criminosos e mulheres da vida, reconhecendo apenas o herosmo oficial. De acordo com a crtica da obra de Baudelaire realizada por Benjamin (1994), os poetas poderiam encontrar no lixo da sociedade, nas ruas e no prprio lixo a temtica herica para suas produes. Com isso, a imagem distinta do poeta parece reproduzir uma imagem mais vulgar, a qual deixa transparecer os traos do trapeiro to presentes na obra de Baudelaire. Antes mesmo do poema O Vinho dos Trapeiros, o artista descreveu em prosa essa estranha figura que habita, at os dias de hoje, nossas ruas. Aparentemente, trata-se de um trabalhador qualquer que tem de recolher na capital o refugo do dia que passou. Tudo o que a cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu reunido e registrado por ele que compila os anais da devassido, o cafarnaum da escria e faz uma seleo inteligente, procedendo como um avarento com seu tesouro. Na verdade, esta descrio refletia os sentimentos de Baudelaire em relao ao poeta de sua poca, pois, trapeiro ou poeta, ambos se encontravam na condio de escrias. Poetas que vagavam pela cidade cata de rimas eram semelhantes aos trapeiros que, a todo instante, se detinham no caminho para recolher o lixo em que tropeavam. Suas vidas eram solitrias, pois trabalhavam nas horas em que os demais se entregavam ao sono. O poeta busca no lixo da sociedade moderna sua aura perdida, sua autenticidade original. Nesta busca solitria, seus passos cruzam-se com os do trapeiro, numa sociedade que ps fim narrativa como forma tradicional de transmitir as experincias. Na abordagem sobre a morte, Benjamin identifica-se com Baudelaire, sugerindo em um de seus textos que a modernidade deve se manter sob o signo do suicdio, no como renncia, mas como uma paixo herica. Rochlitz (2003) acredita que, dessa forma, Benjamin ressalta em Baudelaire um aspecto surrealista, acentuando os limites da lucidez do poeta. O herosmo moderno caracterizado pelo trapeiro, pela lsbica e pelo dndi. Descrevendo-os, Benjamin demonstra que Baudelaire abstraiu
fenomenologicamente as figuras de quem se recusava a perceber a gnese econmica. Para Rochlitz (2003), quando Benjamin evoca o dndi, o heri em sua ltima encarnao, confronta a
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estilizao baudelairiana com suas origens histricas, reduzindo o tique mundano do dndi a uma careta satnica que perde, assim, o seu encanto. Benjamin mostrou, contudo, que todas essas encarnaes do heri so apenas papis, revelando-se a modernidade um drama no qual todos os trabalhadores so heris. Tanto em Baudelaire quanto em Benjamin, a crtica poltica e ideolgica caminham junto com a poesia, o que revela uma profunda descrena destes pensadores nas alternativas modernidade. Eles identificam nos gestos desesperados e na dignidade dos oprimidos uma grandeza sem esperana, ingrediente necessrio para a transformao social. Essa solidariedade para com os vencidos pode constituir o elo entre o flneur, a prostituta e todos os marginalizados de qualquer parte do mundo.
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semelhantes s que so tratadas nas narrativas do presente estudo j foram objeto de ateno em diferentes modalidades de literatura: A histria social da criana e da famlia, de P. ries; Casa grande e senzala, de Gilberto Freire; Los nios olvidados: relaciones entre padres y hijos de 1500 a 1900, de Pollock; Ordem mdica e norma familiar, de Jurandir Freire Costa; e mesmo na literatura de fico: Os irmos Karamazov, de Dostoivski; Carta ao pai, de Kafka; Infncia, de Graciliano Ramos; A confisso de Leontina, de Lygia Fagundes Telles. A sociedade, em regra, manteve-se em silncio nestes perodos, isto quando no aprovava explicitamente o uso da violncia, acreditando em seu poder de produzir a obedincia e, assim, afastar o perigo do caos que poderia acontecer diante da no adaptao das novas geraes s normas e valores ou, em outras palavras, diante de sua no submisso ao padro de socializao vigente. Ainda que de forma marginalizada, a criana ocupa um lugar na estrutura social do mundo moderno. Segundo Miranda (1994), independentemente de sua origem social, a criana passa por um processo de maturao biolgica, no qual imprescindvel a mediao do adulto, e que pode ocorrer de maneiras diferenciadas, dependendo da condio social da criana. A infncia do indivduo sofre influncia direta de sua origem social, no existindo, assim, uma natureza infantil,
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mas uma condio de ser criana, socialmente determinada por fatores que vo do biolgico ao social e que produzem realidades concretas. Desde que nasce, segundo Miranda (1994), a criana j sofre um processo de socializao atravs do qual sua origem social determina sua condio de ser social. Ela, no processo de formao de sua personalidade social, no passa primeiro por um estgio individual para depois se socializar, pois, mesmo possuindo caractersticas especficas, ela sempre socializada. Afirmar o contrrio acreditar numa capacidade prpria do indivduo natural - para a socializao, podendo a marginalidade social, assim, ser facilmente explicada pela incapacidade de adaptao do indivduo s normas da sociedade. Na perspectiva repressiva, conforme interpretao feita por Berger & Berger (1978), a socializao vista principalmente como uma srie de controles exercidos de fora e apoiada por um sistema de recompensas e castigos. O mesmo fenmeno, todavia, poderia ocorrer de maneira mais saudvel, constituindo-se a partir de um processo de iniciao por meio do qual a criana pode desenvolver-se e expandir-se a fim de participar de um mundo que est a seu alcance. Sob este ponto de vista, a socializao significa parte essencial do processo de humanizao integral e plena realizao do potencial do indivduo. Segundo Berger e Luckmann (1974), sociedade um empreendimento de construo do mundo, sendo ela mesma um produto humano, assim como o homem um produto da sociedade. Este mundo construdo compem-se de uma ordem significativa, nomos, que representa a ordenao dos sentidos resultante da socializao, e seu oposto, anomia, que traz implcitos a ausncia de sentido, o perigo, o medo do caos. contra o medo do perigo e a ausncia de sentido que a socializao age na tentativa de eternizar a realidade socialmente construda. Neste contexto, vrios elementos atuam no processo de nomizao, sendo a religio, por exemplo, uma poderosa fora para legitimar condutas socializantes. As condutas humanas que instituem, na vida cotidiana, a complexidade da realidade social, desenvolvem-se a partir das significaes que se constroem no senso comum. Berger e Luckmann (1974) consideram que a vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos homens e impregnada de sentido para eles, na medida em que forma um mundo coerente. Nesta vivncia do dia- a- dia, os indivduos se encontram diante de inmeras realidades, as quais se apresentam como evidentes, normais ou mesmo naturais. Dessa forma, fica oculto o fato de que,
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sendo o mundo uma criao humana, os valores culturais tambm o so e na prpria cotidianidade que a criao humana se perpetua, constituindo-se como o centro real da prxis. Evidentemente, o indivduo no nasce violento ou amvel e, embora o processo de socializao possua razes concretas em sua condio histrico-social, ele tem a possibilidade de recriar seu processo de socializao, interferindo, atravs dele, na realidade social. Isso pode ser observado nas diferentes formas (s vezes opostas) de participao da criana na vida cotidiana. Enquanto as crianas dos setores mdio e alto da sociedade dedicam-se exclusivamente aos estudos e s brincadeiras, as crianas pobres comeam a trabalhar muito cedo. Como mostrou Miranda (1994), as crianas e adolescentes representam, ainda hoje, no Brasil contemporneo, um importante contingente de trabalhadores, quase sempre subempregados e explorados. Por outro lado, as crianas dos diversos segmentos das classes mdias so consumidores bastante significativos, pois, como filhos de consumidores, so sempre lembrados pela publicidade, pela indstria de brinquedos, discos, livros etc. Assim, tanto a criana trabalhadora quanto a consumidora participam ativamente como ser social, atuando mais ou menos conforme seu estgio de desenvolvimento fsico. No interior das instituies (como a famlia e a escola), a criana internaliza padres de comportamento, normas e valores de sua realidade social. Este processo ocorre necessariamente pela mediao do outro que estabelece vnculos bsicos e essenciais entre a criana e o mundo social, de forma que ela passe a se reconhecer e a reconhecer o outro numa relao de reciprocidade. Este processo de internalizao, segundo Miranda (1994), viabilizado pela mediao do outro e possui razes concretas nas condies sociais especficas da criana. Nessa mediao, os valores exercem um papel fundamental, pois, como mostraram Ribeiro & Ribeiro (1993), todas as aes e comportamentos partilhados intersubjetivamente por um grande nmero de pessoas constituem-se como valores. Compreendemos, portanto, que as vises de mundo, os valores, as condutas constituem-se apenas aparentemente como opes isoladas ou como criaes autnomas, pois os processos de socializao e de sociabilidade desenvolvem-se em todas os campos ou setores heterogneos da sociedade. Segundo Viana (2002), os valores no so atributos inerentes aos seres humanos, ao contrrio, so atributos fornecidos a eles pelos prprios seres humanos. De acordo com o autor, os seres humanos, nesta sociedade, fornecem valoraes s coisas justamente porque estas no so consensuais, da a distino feita por ele entre valorao primria e valorao derivada. Embora
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ambas tenham como foco os seres humanos e as relaes sociais, apenas a valorao primria representa os valores fundamentais do indivduo ou grupo, enquanto que a valorao derivada constituda por ela. Segundo Heller (2000), os homens no escolhem valores, assim como no escolhem o bem ou a felicidade. Escolhem sempre idias, finalidades e alternativas concretas, estando seus atos (concretos) de escolha naturalmente relacionados com sua atitude valorativa geral, assim como seus juzos esto ligados a sua imagem do mundo. Alm disso, sua atitude valorativa, reciprocamente, se fortalece no decorrer dos atos concretos de escolha, sendo estas escolhas pautadas por normas de aes consideradas adequadas e que expressam valores, os quais no se localizam no campo da cincia ou da racionalidade, mas encontram-se em um mundo mediado por afetos e emoes. Na medida em que os valores implicam numa adeso afetiva, em outras palavras, num consentimento e numa partilha intersubjetiva que significam a obteno de um consenso, que eles se tornam fatos reais. Quando, neste estudo, nos propomos a refletir sobre as jovens prostitutas que, ainda adolescentes e, portanto, em idade escolar obrigatria, escolheram viver e sobreviver da prtica prostituinte, pressupomos que as lembranas da violncia, ou melhor, de uma socializao mediada pela violncia, atuaram na constituio de indivduos para os quais a violncia no algo anormal e perigoso que se deva temer e evitar. Ao contrrio, ela banal e corriqueira e a adeso prostituio significa somente a experincia com outras modalidades de violncia. Na perspectiva de Heller (2000), os valores podem ser compreendidos como os componentes da essncia humana: o trabalho (a objetivao), a socialidade, a universalidade, a conscincia e a liberdade uma essncia humana que no esttica, mas que est relacionada s possibilidades prprias dos setores de produo, relaes de propriedade, estrutura poltica, vida cotidiana, moral, cincia, arte, contribuindo para o enriquecimento dos componentes da vida. Desvalor seria tudo aquilo capaz de rebaixar ou inverter o desenvolvimento alcanado pela sociedade. Valor, portanto, uma categoria ontolgica social e, como tal, objetiva, ou melhor, possui objetividade social, mesmo que no independente das atividades dos homens, j que a expresso resultante de relaes e situaes sociais. Dentro deste contexto, Heller (2000) aponta para o fenmeno da discrepncia entre possibilidade e realidade, defendendo a idia de que o critrio de desenvolvimento dos valores no apenas a realidade dos mesmos, mas tambm sua possibilidade. Para a autora, os valores no so
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dotados de continuidade linear, pois, ao atingirem um determinado estgio, em algum campo da sociedade, pode ocorrer, dependendo da estrutura social, que na poca seguinte este estgio seja perdido, para iniciar-se um processo de deformao, de perda de importncia. No entanto, para Heller (2000), em nenhum campo a obteno de um valor pode vir a ser inteiramente anulada pela perda de um dos seus estgios. A realizao sempre absoluta, enquanto a perda, ao contrrio, relativa. Se fizermos uma analogia entre esta assertiva da autora e a perspectiva de se realizar a socializao das novas geraes, priorizando-se o dilogo e no a violncia, poderemos dizer que este valor existe como possibilidade, embora, para o conjunto da sociedade, no seja real. Podemos perceber que a preservao de determinados valores permanece tambm como possibilidade para as mulheres prostitutas, embora a realidade de suas existncias inviabilize sua concretizao. Essa dicotomia entre possibilidade e realidade pode ser percebida de forma expressiva em algumas importantes pesquisas realizadas no Brasil sobre a prostituio22 nas quais foram feitas referncias a uma possvel separao entre o corpo e a subjetividade das mulheres prostitutas, porque elas, ao se relacionarem com um fregus, o fazem somente com o corpo e a partir do estabelecimento de limites que lhes possibilitem preservar seu verdadeiro eu. Consideramos que essa preocupao emerge dos prprios sujeitos pesquisados, embora seja assumida pelos pesquisadores, os quais buscam demonstrar a preservao dos valores atravs de uma separao improvvel entre corpo e alma. Em outras palavras, o sujeito, ao ter o corpo separado artificialmente de sua subjetividade, espera preservar valores interiorizados. Trata-se, na verdade, de um deslocamento de valores, ou melhor, de uma inovao cultural. Fonseca (1996), por exemplo, defende a legitimidade da prostituio como qualquer outra modalidade de trabalho. Todavia ela prpria reconhece que, em suas pesquisas nos morros de Porto Alegre, no encontrou nenhuma mulher que pensasse na prostituio como eixo de um projeto de realizao pessoal. Todas elas, inclusive as empregadas domsticas e balconistas, sentiam-se desvalorizadas por no poderem realizar o sonho (o valor) de serem noiva mulher me. Assim, inspirando-nos em Heller (2000), lembramos ao leitor que uma escolha seria tanto mais valiosa em sua totalidade quanto mais valores permitisse realizar e quanto mais intensa e rica fosse a relativa esfera de possibilidades. Como os indivduos escolhem alternativas concretas, seus
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atos de escolha esto naturalmente relacionados com sua atitude valorativa, assim como seus juzos esto ligados a sua imagem do mundo. Por outro lado, sua atitude valorativa se fortalece no decorrer dos atos concretos de escolha. Segundo a autora, muitas vezes, as diferenas que compem a realidade dificultam a deciso sobre qual, dentre as alternativas dadas, a escolha que dispe de maior contedo valioso; e essa deciso, na medida em que necessria, nem sempre pode ser tomada independentemente de quem a pratica. No podemos, entretanto, nos esquecer de que, por mais que consideremos os valores dentro de um contexto genrico de valores solidificados e interiorizados por sculos de civilizao, devemos levar em conta as particularidades. Como afirmou Heller (2000), as paixes e sentimentos orientados para o eu no desaparecem, apenas se dirigem para o exterior, convertendo-se em motor da realizao do homem-genrico, ou ento permanecendo em suspenso - na medida em que inibem a ao moralmente motivada enquanto duram as aes correspondentes. Por outro lado, uma deciso moral, neste sentido, deve sempre ser avaliada como uma tendncia, pois no possvel distinguir, de modo rigoroso, as decises, as aes cotidianas e aquelas moralmente motivadas. A maioria das escolhas e aes tm motivao heterognea, sendo que as motivaes particulares e as genrico-morais encontram-se e unem-se, de modo que a elevao acima do particular-individual jamais se produz de maneira completa, nem jamais deixa de existir totalmente, ocorrendo em maior ou menor medida. No h uma distncia intransponvel entre as esferas da cotidianidade e da moral. Apenas os moralistas utilizam motivaes morais puras e, ainda assim, o fazem mais no plano terico do que no da prtica. Em um mbito diferente de escolha, Beauvoir (1980), discutindo o problema da mulher logo aps a revoluo burguesa, acredita que a mulher burguesa no se interessava em romper seus grilhes porque supunha que eles fossem a nica maneira de manter seus privilgios de classe. Para ela, as mulheres desta classe pressupunham que sua emancipao seria um enfraquecimento deste modelo de sociedade, pois, ao libertarem-se do homem, teriam, necessariamente, que trabalhar para sobreviver. Naquele perodo, a mulher ainda no tinha o direito de possuir propriedades, a no ser de forma vinculada ao homem (pai, irmo ou marido). Para Beauvoir, as reclamaes das burguesas contra a dependncia financeira do marido no as levavam, no entanto, a criticar radicalmente as relaes de poder. Suas crticas no atingiam a propriedade e, se tivessem que renunciar a ela, preferiam a prpria submisso.
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Conceituando as relaes de poder j na contemporaneidade, Maffesoli (1981), tambm descreve um profundo desejo de submisso. Por isso, para o autor, no se trata simplesmente de analisar a atomizao dos indivduos na sociedade moderna, mas de agregar as anlises sobre o conformismo coercitivo discusso da conformidade (conformismo) procurada, fenmeno que perceptvel, em particular, nos grupos de jovens ou de marginais. Dessa forma, esse processo de conformismo, no qual percebe-se um elemento importante do desejo de submisso, manifesta a necessidade do estabelecimento de relaes sociais ou a necessidade de enraizamento social que poderia impedir a quebra da segurana tradicional. Na viso de Maffesoli (1981), a relao entre proteo e submisso se sustenta na sociedade atual devido, principalmente, extrema especializao do trabalho, cuja condio de submisso autoridade garante ao poder legitimidade. Essa condio no , contudo, um privilgio apenas desta civilizao, pois bastante amplo o campo de investigao desse desejo de submisso que funda o poder. E mesmo que a fora social fosse a eterna reao a esse processo, no se pode explicar pela coero a permanncia da ordem, posto que existe uma aprovao dessa ordem que a justifica. Assim, o poder no pode ser percebido somente como abstrao legalizada. Dessa forma, para o autor, o termo relao de fora, frequentemente empregado quando fala-se de uma situao de poder, qualifica adequadamente a arte de governar, a qual pode resumir-se numa frmula simples: aplicar um sistema de foras a outro. Esta relao permite estabelecer uma passagem entre o desejo de submisso e a ordem estrita do poder, cuja preponderncia o princpio da autoridade. Na contemporaneidade, a particularidade do princpio de autoridade reside em seu carter legalista que codifica e estabelece um campo sem limites, ficando, assim, o espao-tempo, em toda a sua extenso, sob sua legislao. Trata-se, pois, do desenvolvimento de uma gesto da sociedade racional e burocrtica prpria dos especialistas. por meio deste controle generalizado que funciona, pelo prisma da racionalizao, a lgica da dominao. Guimares (1996), que se utilizou do referencial terico de Michel Maffesoli para compreender a dinmica da violncia escolar, identifica como resultado da dominao o controle do indivduo por si mesmo, o que ocorre principalmente atravs do processo educacional, quando este aprende a regular as pulses da vida, adaptando-se a normas e padres sociais, ao mesmo tempo que adquire o hbito de controlar as emoes, os impulsos e a imaginao.
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A violncia, portanto, apresenta mltiplos aspectos que nem sempre esto ligados dominao. Contraditoriamente, ela pode apresentar e, efetivamente, apresenta um carter instrumental e destrutivo; outras vezes expressa aspectos de insubordinao de indivduos em estado de total degradao, impossibilitados de se expressarem por meio da fala. Nestas condies, a violncia representa uma desobedincia, uma reao, talvez a nica possvel. Isso ocorre mesmo tendo os indivduos adquirido o hbito de controlar seus impulsos, adaptando-se aos padres de socializao que condenam atitudes de rebeldia, principalmente quando se expressa mediante a utilizao de alguma forma de violncia. Refletindo sobre o pensamento da Antiguidade, Arendt (1995) lembra que o espao pblico era considerado pelos gregos como o locus do discurso e da ao poltica, entendida como espao da palavra e da persuaso, portanto, espao pblico, onde se inscreve a histria do ser poltico, do ser histrico. A violncia, assim, refletiria uma situao de ausncia de dilogo. Para a autora, a palavra uma ao poltica que s existe como atividade de pessoas em relao umas com as outras e, para que signifique uma ao poltica vinculada esfera pblica da vida, permanecer longe da violncia. Somente a pura violncia muda, e por este motivo a violncia, por si s, jamais pode ter grandeza (ARENDT, 1995, p. 35). Advm da seu carter arbitrrio e indigno, baseado no na grandeza da ao poltica que liberta, mas na capacidade de destruio que pode se estender a todos os setores sociais, impedindo a fala, tornando-a o oposto do dilogo. Segundo Arendt (1995), o surgimento da sociedade de massas aproximou os homens entre si, embora isso tenha ocorrido numa relao de controle, numa espcie de aproximao solitria, onde as pessoas, mesmo juntas, permanecem separadas pelo hbito da ausncia de palavras, pelo comportamento conformista imposto por normas de conduta que as qualifica com uma falsa igualdade. Para a autora, nessa forma de igualdade, o comportamento substitui a ao como principal forma de relao humana. Nesta relao solitria, numa realidade vacilante, a ao e o discurso prendem-se esfera privada, numa clara manifestao de declnio da esfera pblica. Na passagem do pblico para o privado, marca-se o aniquilamento do espao onde os indivduos, anteriormente, agiam uns em relao aos outros com capacidade para verem, ouvirem e tambm serem vistos e ouvidos. Isso representa a incapacidade de homens e mulheres se relacionarem dentro de um espao visvel com relaes visveis e diversificadas - onde se articula a experincia de pessoas comuns. Esta deve
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experincia, segundo Telles (1990), seria a comunicao intersubjetiva, por meio da qual as opinies se formam e os julgamentos se constituem. Assim, quando j no se pode discernir a mesma identidade do objeto, segundo Arendt (1995), nenhuma natureza humana comum e, menos ainda, o conformismo artificial de uma sociedade de massas pode evitar a perda do mundo comum, que quase sempre precedida pela destruio dos muitos aspectos nos quais ele se apresenta pluralidade humana. Isso pode ocorrer nas condies da prpria sociedade de massas, onde comum as pessoas se comportarem como se fossem membros de uma nica famlia, cada um a manipular e prolongar a perspectiva do vizinho. Nesse contexto, os indivduos tornam-se inteiramente privados, isto , privados de verem e ouvirem os outros e privados de serem vistos e ouvidos por eles. Para a autora, todos tornam-se prisioneiros da subjetividade de sua prpria existncia singular, que permanece singular, embora a mesma experincia seja multiplicada vrias vezes. O mundo comum termina quando visto apenas sob um aspecto e s permite aos indivduos uma perspectiva. Essa privao da vida e da prpria existncia humana significa, para o individuo, um processo de desresponsabilizao de existir, de agir, revelando sua individualidade e expresso em relao a si mesmo e aos outros, de modo que ele se conforma em viver numa realidade falsa, solitria, sem dilogo. Para Almeida (2001), essa ausncia de comunicao intersubjetiva impossibilita o exerccio da ao e dos discursos prprios e criativos com importncia e conseqncia reconhecidas, ao mesmo tempo que viabiliza, cada vez mais, a linguagem codificada para cada realidade transgressora, marginalizada. Dessa forma, os indivduos perdem o interesse uns pelos outros e, principalmente, a capacidade de interagir e comunicar, a qual substituda por atos violentos, consciente ou inconscientemente utilizados para fazer valer os interesses (privados) de quem os comete. Numa abordagem que no privilegia a discusso pblico-privado da violncia denominada por Surez & Bandeira (1999) de desconstrutivista, as crticas se dirigem ao dualismo indivduo sociedade, a partir da justificativa de que o cdigo de sentir no apenas uma criao do indivduo, mas uma manifestao, nele, dos hbitos emotivos coletivos. Assim, a violncia seria um fenmeno substantivo que ocorre no lugar de encontro entre o indivduo e a sociedade, embora a complexidade do fenmeno da violncia aponte para a importncia de se procurar ampliar o mbito das discusses, evitando reducionismos que no ajudam na compreenso das mltiplas formas de manifestao da violncia.
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Nesse sentido, retomamos as anlises de Maffesoli (1981) sobre a violncia na sociedade moderna, porque, para ele, cabe burocracia o exerccio da violncia, uma violncia totalitria que se expressa pela viso de que o povo precisa ser educado por serem suas paixes e sentimentos imprevisveis, infantilizados, convindo levar-lhes de fora a conscincia das suas necessidades e aspiraes. A lgica que abarca este poder, na viso deste autor, considera que a vida uma coisa muito sria para ser deixada aos cuidados dos que a vivem, da a necessidade do controle social que pretende, nos mnimos detalhes, ocupar-se de tudo: da formao, do lazer, da cultura, do trabalho. Compreendemos, assim, que a violncia tanto fsica quanto simblica ou moral, organizada pelo Estado, existiria para enfrentar a resistncia dos oprimidos. Mas como explicar, a partir desta teoria, a violncia como forma de solucionar os conflitos que envolvem as relaes de pais e filhos, as relaes de gnero e tantas outras formas de relacionamentos interpessoais? Para alguns, esses conflitos seriam decorrentes da prpria natureza humana. Assim, a conscincia ou a razo, as idias morais e religiosas se converteriam em realidades slidas e independentes. Contrapondo-se a essas idias, Horkheimer (1990) defende que estas teorias vinculam-se aos poderes da prpria sociedade. Para ele, a chamada natureza social, o integrar-se numa ordem estabelecida, mesmo que se justifique pragmtica, moral ou religiosamente, origina-se, em essncia, da recordao de atos de coao pelos quais os homens se tornaram sociveis, civilizados, sendo ainda hoje ameaados por esses atos, caso se tornem por demais esquecidos. Essa forte relao entre socializao e violncia j havia sido refletida por Nietzsche (1999) no texto: culpa, m conscincia & companhia. Para o filsofo, o conceito de conscincia, encontrado em sua mais alta e quase surpreendente configurao, possui uma longa histria, pois, ao contrrio do que se poderia pensar, no foi com modos delicados que se tornou possvel para a humanidade contornar os problemas relacionados com a ausncia de memria dos indivduos, precisamente no que se refere a comportamentos, hbitos e valores que se quer hegemnicos. Por isso,
Imprime-se algo a fogo para que permanea na memria: somente o que no cessa de fazer mal permanece na memria. [...] Poderamos mesmo dizer que por toda parte onde agora sobre a terra h ainda solenidade, seriedade, segredo, cores sombrias na vida de homem e povo, persiste algo do efeito da terribilidade com que outrora, por toda parte sobre a terra, se prometeu, empenhou, jurou: o passado, o mais longo, mais profundo, mais duro dos passados, nos bafeja com seu sopro e ressurge em ns, quando ficamos srios. Nunca nada se passou sem sangue, martrio, sacrifcio, quando o homem achou necessrio se fazer uma memria, os mais arrepiantes sacrifcios e penhores (entre os quais o sacrifcio do primognito), as mais repugnantes mutilaes (por exemplo, as castraes), as mais cruis
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formas rituais de todos os cultos religiosos (e todas as religies so, em seu fundamento ltimo, sistemas de crueldade) tudo isso tem origem naquele instinto que advinha na dor o mais poderoso auxiliar da mnemnica. (NIETZSCHE, 1999, p. 347-348).
Na viso de Nietzsche, a violncia ocupou espao fundamental no processo pelo qual se forjou a natureza humana. Alm disso, segundo Horkheimer (1990), o papel da coao ou da violncia, que caracteriza no apenas o comeo, mas tambm a evoluo de todas as formaes polticas, no pode sequer ser subestimado quando explica a vida social ao longo da histria. Para o autor, este papel consiste no s nas punies impostas a qualquer um que fira a ordem estabelecida, mas tambm na fome do indivduo ou de seus filhos, o que o obriga a sempre sujeitar-se s condies dadas de trabalho, das quais faz parte seu bom comportamento na maioria das esferas da vida. Quanto menor era a capacidade do indivduo de guardar na memria os modos dominantes de comportamento, maior e mais cruel era a violncia23. A transformao dos valores em princpios estruturados e institucionalizados representa o prprio processo de socializao. Da que a inculcao e a disseminao dos valores deixou de se realizar pelo vis predominante da violncia. Cristalizados os valores, a violncia fsica passou ao papel de coadjuvante, sendo, ento, utilizada apenas como complemento ou considerada como desvio de conduta. A conscincia moral, o senso e a concepo do dever desenvolveram-se em ligao muito estreita com a coao, transformando-se, por isso, em foras interiorizadas que formam o ser social. Estas foras, no entanto, possuem especificidades com base nas quais os indivduos no s se submetem ao existente, mas tambm, em certas circunstncias, se opem a ele. Os mecanismos culturais de diferentes pocas tm buscado fortalecer nos prprios dominados a necessidade da dominao, tendendo estes indivduos, conseqentemente, a acreditarem nas figuras que representam autoridade. Para Horkheimer (1990), esta a condio que constituiu na histria um motor humano, em parte produtivo, em parte obstrutivo. Em pocas anteriores ao que se chama modernidade, como por exemplo, no Brasil colonial, a violncia fsica ou simblica que se exercia, em geral e em particular, contra a mulher,
- Segundo Nietzsche (1999), quanto menor era a memria (internalizao das normas e da represso), mais terrveis eram os aspectos de seus usos; a dureza das leis penais d, em particular, uma medida de quanto esforo a memria teve de fazer para chegar vitria sobre o esquecimento e manter umas tantas exigncias primitivas do convvio social.
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em nome da educao dos sentidos24, era consideravelmente superior25. Dessa forma, claro que houve mudanas que contriburam para retirar a mulher do obscurantismo a que estava condenada. No podemos, todavia, afirmar que, atravs da racionalizao do mundo moderno, foram abandonadas as formas violentas de se obter consenso, tanto que o fascismo (sem dvida, uma das formas mais violentas de exerccio do poder poltico) foi analisado por Adorno e Horkheimer (1985) como expresso da prpria racionalidade moderna. Alm disso, o contexto que envolve as prticas da prostituio, constitudo de novas caractersticas nas grandes metrpoles, por meio da apresentao da prostituta moderna como um artigo de massa viabilizado pelas modas e cosmticos, somente dissimula novas formas de violncia. Essas novas e diversificadas formas de violncia (em plena modernidade) foram identificadas na pesquisa de Engel (1988), na caracterizao desenvolvida pelo discurso dominante da atividade da prostituta como carreira da devassido, tendo por base os desarranjos das faculdades mentais, as fraquezas de esprito ou a ignorncia. Segundo a autora, o predomnio do instinto sobre a razo foi qualificado por meio de imagens simultaneamente reveladoras do delrio (loucura) e da degradao moral (pecado). No havia, contudo, uma delimitao precisa entre o pecado e a loucura, alm do que tais noes se encontravam diludas num mesmo universo semntico, definido pela idia de doena. A noo de pecado encontrava-se lado a lado com o discurso cientfico. Na classificao dos espaos da normalidade e da anomalia, o pecado era incorporado como substncia bsica para a construo do sentido moral do corpo doente. Em sintonia com a discusso sobre a perspectiva classificatria da prostituio, a pesquisa de Rago (1985) retrata a violncia simblica ou moral expressa nas atitudes dos mdicos sanitaristas brasileiros, no final do sculo XIX e incio do sculo XX. Estes profissionais, de acordo com a autora, invadiram o submundo da prostituio, classificando as mulheres como degeneradas e procedendo investigaes sobre seus hbitos e gostos para, no final, difundirem o esteretipo da puta, situado no campo da anormalidade sexual e social. Assim, os bordis foram transformados em laboratrios de estudos, semelhantes a hospitais e prises destinados s mulheres perdidas, a
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- Segundo Priore (1993) este termo foi utilizado por Peter Gay na obra A educao dos sentidos: a experincia burguesa da rainha Vitria a Freud. 25 - Recolhidas domesticidade, encolhidas em sentimentos mais piedosos do que amorosos, mergulhadas numa sexualidade fria e adormecida, as mulheres faziam bonito como vergonhosas. A pudiccia funcionava como sinnimo de prudncia e resguardo, mas tambm de obedincia, honradez e de segurana dada pelo casamento. E a sexualidade vergonhosa, tal como a mulher recatada, devia circunscrever-se casa, ao lar, famlia, abandonando a rua, a praa, as atividade fora do fogo domstico [...]. (PRIORE, 1993, p. 149).
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fim de que se pudesse elaborar simultaneamente tcnicas de saber e estratgias de poder para censurar as prticas sexuais extraconjugais. Alm da violncia simblica ou moral, a autora refere-se tambm violncia fsica utilizada pela represso policial contra as prostitutas, as quais eram frequentemente presas, espancadas e tinham suas cabeas raspadas. Estes procedimentos, de acordo com ela, eram comuns no incio do sculo XX e ainda persistiam na sociedade brasileira em plena dcada de 1980, poca em que realizou sua pesquisa. Muitas mudanas ocorreram entre o final do sculo XX e incio do sculo XXI. A prpria Constituio Brasileira em vigncia probe procedimentos como os que foram descritos por Rago. Podemos, no entanto, afirmar que a contemporaneidade redimensionou e inovou as formas de violncia contra as mulheres prostitutas, permanecendo a violncia sob nova roupagem: Uma vez, como era menor de idade fui pega pelo Juizado de Menores [...] mas a transei com o comissrio do Juizado, [...] e ele me liberou e tambm liberou a dona. Ele tinha ido l pra averiguar [...] Da ele transou comigo e o outro comissrio transou com a outra menina [...]26. evidente que a prostituio, uma atividade estigmatizada e que ainda hoje alvo da represso policial27 e da censura da sociedade, no poderia simplesmente eliminar de seu cotidiano o exerccio da violncia sem romper com a gnese desta. Defendemos, desta forma, a idia de que a prpria discriminao das mulheres prostitutas tanto quanto a discriminao de indivduos de outras categorias de trabalho28, constitui, por si, uma forma de violncia bastante comum nas sociedades contemporneas. Estas discriminaes, que so tambm violncias, no so eliminadas com a difuso de novas tecnologias (celular, internet etc) e nem, tampouco, com sua popularizao. Trata-se de uma lgica do prprio capitalismo, a qual, ao mesmo tempo, gera e mantm formas de insero marginal na diviso social do trabalho. Essas formas de trabalho, embora no sejam tipicamente capitalistas, so parte integrante do processo de acumulao.
- Trecho recortado da histria de Andria. - Embora a prostituio no Brasil no seja considerada uma atividade ilegal, outras atividades a ela vinculadas o so, tais como o lenocnio, o rufianismo e o trfico de mulheres. 28 - Existem hierarquias diferentes para a discriminao das ocupaes. Citamos, como exemplo, as empregadas domsticas, as faxineiras, os lavadores de carros etc.
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Neste captulo, apresentamos as histrias de Andria, Luana e Juliana, trs mulheres jovens, envolvidas com a prostituio num contexto tpico da modernidade29. Alm disso, elas tiveram uma socializao mediada pela violncia, pelo abandono da escola, concomitantemente ao ingresso na prostituio, e tambm vivncia no espao social da cidade de Goinia. Embora as entrevistas tenham sido realizadas dentro de um prazo relativamente pequeno, entre setembro e novembro de 2004, foi longa a trajetria anterior, ou seja, o perodo em que se deram os primeiros contatos com as jovens.30 Outras duas entrevistas foram realizadas, mas optamos por no inclu-las no trabalho, porque consideramos que elas no convergiam, em alguns aspectos, com as histrias aqui apresentadas. Esclarecemos, ainda, que as entrevistas foram realizadas com base em um roteiro semiestruturado, utilizando como eixo a histria de vida das entrevistadas, cujas narrativas tiveram como fio condutor sua insero no mundo da prostituio. Tivemos, contudo, o cuidado que, na concepo de Minayo (1996), deve-se ter na realizao de entrevistas prolongadas. Buscamos constantemente interagir com as narradoras no sentido de intercambiar experincias, de acordo com o sentido dado por Benjamin (1996) a este processo. Depois das entrevistas, realizamos a transcrio das fitas, a partir da compreenso de que transcrever passar literalmente o que foi dito pelas narradoras para a grafia. Na fase seguinte, procedemos supresso da voz do entrevistador para que permanecesse somente a voz de cada narradora, o que, na perspectiva de Meihy (1991), significa ultrapassar a mera transcrio para a
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- Defendemos neste trabalho (especialmente no primeiro captulo) a idia de que a prostituio, embora seja uma atividade que existe desde a antiguidade, possui caractersticas especficas no capitalismo. 30 - Os primeiros contatos com mulheres cujo ingresso precoce (antes dos 18 anos) e cuja trajetria de vida infantojuvenil, marcadas por vrias modalidades de violncia (fsica, simblica, sexual etc), coincidiam com as caractersticas requeridas para este trabalho foram feitas em maro de 2004.
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textualizao. Segundo este autor, textualizao um estgio mais graduado na feitura de um texto de histria oral. Consta desta tarefa a reorganizao do discurso, obedecendo estruturao requerida para um texto escrito. Procedemos tambm identificao das palavras-chave em cada histria de vida. Cada uma delas sintetiza a condio de sua narradora, e h, entre as trs histrias pontos em comum. As palavras destruio e violncia do tnica da narrativa de Andria. As palavras consumo, aventura e violncia traduzem a narrativa de Luana, cuja insero na prostituio ocorreu motivada, principalmente, pelo desejo de consumo. No que diz respeito a Juliana, sua condio fica expressa nas palavras gravidez, abandono e violncia. Optamos por no recortar as narrativas para anlise, de forma a no instrumentalizar a interpretao do leitor. Entretanto elas foram organizadas em subttulos-temticos, referentes ao ncleo narrativo, os quais delimitam acontecimentos importantes de suas vidas, pontuados por trechos de obras literrias e/ou comentrios nossos, que no se propem a um vis analtico e, sim, reflexivo. 3.1 Histria de Andria: destruio, abandono e violncia A primeira personagem que apresentamos Andria, uma jovem que, na poca da entrevista31, estava com 20 anos. De forma semelhante a tantas outras, ela tentava voltar escola depois de ter abandonado os estudos com treze anos de idade, perodo em que ingressou no mundo das drogas e da prostituio. Antes disso, sua breve infncia j fora marcada pela violncia. As primeiras experincia com a violncia: herana de famlia? Andria retrata, inicialmente, aspectos da vida cotidiana bastante comuns: um casal de namorados que teve uma filha, os conflitos que envolveram a posse da criana:
Sou filha de pais separados, alis meus pais nunca viveram juntos, s namoraram. Eles namoraram durante um tempo, a minha me engravidou e ela teve que se virar praticamente sozinha, pois meu pai nunca podia ajudar com quase nada.
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Convivi com meu pai durante um tempo, s que ele nunca acreditou que eu fosse filha dele. Ele achava que eu era filha de outra pessoa. Achava que a minha me tinha tido um outro relacionamento durante o tempo em que estava com ele. E a eu morei com a minha me durante um tempo e vivi com ele durante algum tempo tambm, ento eu ficava muito na casa de um e na casa do outro. Eu no tive quando era criana um lugar fixo pra viver. Eles brigavam muito, ento a arma que eles tinham era eu. Se meu pai me pegava na casa da minha me, minha me se revoltava. Se a minha me me pegava, meu pai se revoltava. Eu tive uma infncia complicada. A coisa que para mim era mais difcil era que a minha me bebia muito. Alm disso, por eles [meus pais] no viverem juntos, a minha me teve outros relacionamentos e todas as pessoas com quem ela se envolvia maltratavam ela muito. E, depois ela teve uma outra filha no casamento, mas no viveu com essa pessoa tambm. Ns somos de famlia muito pobre. A minha me filha de pessoas que moram no interior. Ela veio pra Goinia muito jovem, com treze anos de idade pra trabalhar de domstica.
[...] Tratei de explicar, mas ela mudou de assunto sem transio: Seja como for estou de olho em outra um pouco mais velha, bela e tambm virgem. O pai quer troc-la por uma casa, mas d para discutir algum desconto. [...] GABRIEL GARCIA MARQUES
No livro Memria de minhas putas tristes, de Gabriel Garcia Marques, o narrador, um homem no dia de seu aniversrio de 90 anos, resolve dar a si mesmo de presente uma noite de amor com uma virgem. Para tanto, solicita a colaborao de uma velha amiga, Rosa Cabarcas, uma cafetina que, embora considere essa uma tarefa difcil, se dispe a procurar uma moa nas condies solicitadas pelo fregus/narrador. Na primeira tentativa, Rosa consegue uma adolescente de 14 anos, mas, por vrias razes, o encontro parece fracassar. ento que, numa segunda tentativa, a cafetina apresenta a proposta de uma outra menina, cuja virgindade o pai pretendia trocar por uma casa.
Ela estudou pouco. Ela conta que veio pra Goinia porque quando ela tinha treze anos, o meu av queria trocar ela por uma carroa e ela no queria viver com aquele homem porque ele era muito velho. Meu av ia entregar a minha me para esse homem em troca de uma carroa e de uma gua e minha me ia ser a mulher dele. Foi por isso que ela fugiu pra Goinia. A ela morou na casa de um, na casa de outro, trabalhando de
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domstica e, a, com dezessete anos, ela engravidou de mim. Ento, da minha infncia mesmo eu no tenho muitas recordaes, muitas lembranas. At mesmo porque eu acho que eu quis esquecer muitas coisas que eu vivi. Mas eu tambm tive coisas boas na minha vida, no foi s coisas ruins, meu pai no era pobre como minha me, por isso quando eu morava como ele ganhava as coisas.
A modernidade e sua perspectiva de progresso nem sempre representaram desenvolvimento em todas as esferas da vida social. Durante os ltimos sculos, muitas vezes, a cincia ocupou o imaginrio social como um novo mito capaz de livrar a humanidade da misria e da opresso. A cultura, todavia, no isenta da barbrie, assim como tambm seus meios de transmisso. Continuam presentes no cotidiano das pessoas formas rotineiras de reproduo da violncia.
Estudei em escola particular do maternal at a 4 srie e quem pagava era meu pai. Depois fui para a escola pblica porque a escola que eu estudava s tinha at a 4 srie. Nessa poca, ele [meu pai] me dava tudo que eu precisava. S que meu pai sempre foi uma pessoa muito agressiva. Ele sempre foi uma pessoa que desconfiava at da prpria sombra e era tambm muito violento. Meu pai no bebe, no fuma, no tem vcio algum, s a violncia, s uma pessoa agressiva, ele vive para o trabalho. A vida dele trabalhar. E durante a minha infncia, como ele nunca casou e como na casa dele sempre moraram outras pessoas, irm, irmo, cunhado, sempre tinha algum na casa do meu pai, por isso eu ficava l. E assim eu lembro que naquela poca muita gente falava que eu no gostava dele, que eu gostava das coisas que ele me dava. Mas no era verdade. Era porque, sei l, ele no era um pai carinhoso, ele batia muito no meu rosto. Qualquer coisinha que acontecia ele batia no meu rosto. Tive muitas histrias de violncia, mas duas delas eu no consigo esquecer: A primeira que eu me lembro, eu vinha do colgio e parei na porta da casa de uma vizinha porque tinha uma boneca jogada no lixo. Uma boneca de porcelana que estava meio quebrada e jogada no lixo da casa de uma vizinha. A eu fui e peguei aquela boneca pra mim. Mas quando eu cheguei em casa e ele perguntou onde que eu tinha arrumado aquela boneca de porcelana eu disse onde foi que eu tinha pegado a boneca. Ele falou: Ento vamos l que eu quero saber se essa histria verdadeira. Chegando l, ele chamou a mulher e ela confirmou: Eu joguei fora mesmo, est quebrada, eu no gosto de ficar juntando lixo dentro de casa. Pode deixar a menina levar, tem outras aqui. E a ele falou: No, ela no precisa disso, no. A quando chegou em casa, ele me bateu tanto, mas ele me bateu tanto com cordas de nylon, aquelas cordas, nylon mesmo, e a ponta da corda tinha sido queimada. E nylon quando queima fica uma coisa grossa, uma textura bem forte. E ele me bateu com aquilo. E naquela poca as minhas pernas tinham ficado totalmente
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feridas. Estava na carne viva. Inchou, infeccionou todas as feridas. Ele me bateu muito, muito mesmo. Isso eu tinha uns seis anos. Eu lembro disso nitidamente e a ele disse que nunca mais ia me bater. A, algum tempo depois, ele tornou a me bater, me deu um tapa no rosto porque eu tinha sentado no colo de um primo dele, que j era um homem adulto. Ele veio me cumprimentou e ai eu fui e sentei no colo dele. Isso tambm foi numa certa idade que eu ainda era criana, s que eu no lembro direito quando. Do jeito que ele chegou, ele meteu a mo na minha cara, meu rosto inchou muito... Essas duas vezes marcaram muito a minha vida, minha infncia, sabe? Eu olhava pra ele eu no conseguia sentir nada, sentimento nenhum e a eu no conseguia viver na casa da minha me tambm, porque nessa poca a minha me j tinha um novo relacionamento com a pessoa com quem ela est vivendo at hoje, que uma pessoa muito agressiva, totalmente desestruturada. Um homem que maltrata ela constantemente. J bateu nela diversas vezes e sempre que eu conversava com ela, eu falava: Me, por que a senhora no larga dele? Por que a senhora no deixa esse homem? A, ela falava: Ah.... ele me ameaa, diz que vai me matar, que vai fazer isso e isso comigo... E eu falava pra ela que ela podia dar um jeito. E meu pai morria de antipatia por esse homem, no conseguia nem conversar com ele. Alm disso, minha me era tambm agressiva, mas s quando ela bebia. E eu me lembro que a minha me gostava muito de pinga, porque quando ela teve a minha irm, ela estava desempregada, eu tinha cinco anos e ela no tinha condies de cuidar da minha irm e nem de mim. E a ela mandou ns duas para a casa da minha av no interior. Na poca, minha irm tinha seis meses e quando ela foi buscar a gente, um ano depois, eu vim com ela pra Goinia, s que minha irm no veio, ela j estava com um ano e seis meses, muito apegada minha av. E, a, por ela no trabalhar, estar desempregada e a gente estar passando muita falta das coisas em casa, muitas vezes no tinha o que comer e meu pai, por pirraa, no ajudava, porque dizia que ela tinha que se virar. Minha irm, que hoje est com dezesseis anos, no filha do meu pai. Ento, as coisas foram acontecendo, acontecendo e ela comeou a beber muito. Ela bebia todos os dias, at que ela conseguiu emprego na COMURG32 onde ela trabalha at hoje. Ela tirava o sbado, limpava a casa, porque l em casa tinha dois cmodos, uma casa muito humilde, cho, terro mesmo, no tinha nem cimento grosso. A parede era levantada com tijolos de barro sem cimento, sem areia, nada disso, s barro, s a terra quase caindo na cabea da gente. A, ela comeou a beber e bebia, bebia. Ela me batia muito, por qualquer coisa ela me batia, porque era s eu que estava l com ela. Era como se eu estivesse atrapalhando ela a viver algo que eu no sabia definir o que era, mas hoje eu sei. Hoje, s vezes, eu questiono isso. Ser que era por que ela era muito nova e eu atrapalhava que ela sasse? Por que eu estava em casa? Ou eu atrapalhava por que ela queria namorar? Porque, nessa poca, ela j estava trabalhando. Entre minha me e meu pai, a minha me
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foi quem mais me bateu. Me bateu muito, muito, muito... Todos os dias eu apanhava da minha me, todos os dias. Minha me chegava do servio e se eu no tivesse feito o caf pra ela, ela me batia. Eu no entendo o porqu disso. Ento, eu fui ficando uma pessoa amarga, eu sempre tive objetivos, eu sempre tive ideais. Eu tinha vontade, quando eu era criana, de ser pediatra. Nossa! Minha paixo era ser mdica e cuidar de criana. E a, depois, eu comecei a ter interesse por crianas com problemas, com dependncia qumica, coisas assim do tipo. Eu falava: O dia que eu for mdica, eu vou ter que ganhar muito dinheiro e vou comprar um lugar pra mim morar e construir uma casa e encher de criana que no tem me, que no tem pai. Eu ficava viajando em novelas, em desenhos, sabe, e falava que um dia eu ia ser mdica. S que enquanto eu continuava com todos esses desejos, aconteceu de eu ser estuprada pelo meu tio, quando eu tinha sete anos de idade. Eu morava com minha me, a era frias do colgio e eu tinha viajado pra casa da minha av pra passar as frias do ms de julho, porque l tinha festa na cidade e eu gostava muito de ir pra l e, depois que isso aconteceu, eu comecei a mudar totalmente os meus objetivos, eu no queria mais ser mdica. No aconteceu nada com o meu tio. A gente denunciou ele, s que, naquela poca, as leis no eram como hoje. Para uma pessoa naquela poca responder um inqurito, ou seja, um processo, ela deveria ser pega em flagrante ou que isso tivesse acontecido a pouco tempo. Mas eu demorei muito tempo para fazer exame de corpo de delito, demorei dois anos. Eu no contei pra ningum. Eu fiquei machucada, minha vagina sangrava muito. S que eu no contei por medo, porque quando ele fez isso comigo, ele me ameaou. Ele disse que se eu chegasse a contar isso pra algum, ele ia me levar pro meio do mato e ia fazer tudo aquilo de novo e ia me matar. Ento eu tive muito medo, muito medo mesmo disso acontecer. Dois anos depois, indo pro colgio, eu passei numa banca de revista para comprar gibi, eu sempre gostei e ainda gosto muito de ler gibi. Alm disso, naquele dia tinha um trabalho da escola com gibi, era para fazer tipo uma historinha. Ento, o dono da banca comeou a pegar no meu corpo e no corpo de duas meninas que estavam comigo. S que naquela hora que ele comeou a fazer aquilo, eu senti uma coisa to estranha que eu no consegui sair l de dentro. Eu senti um medo to grande, era como se eu estivesse colocando aquela imagem do dia em que eu fui estuprada naquele momento ali. Eu fiquei paralisada e as meninas me deixaram l sozinha. Ele ficou me mostrando uma revista porn. Fiquei ali paralisada porque eu queria ver aquelas fotos que ele estava me mostrando e, ao mesmo tempo, eu queria sair, mas no conseguia. E a chegou uma senhora para comprar uma revista, eu aproveitei a oportunidade e sa junto com ela, foi quando eu tive foras. Nesse dia eu no consegui estudar, fiquei sentada no ponto de nibus das nove horas da manha at ao meio dia pra voltar pra casa. Isso foi numa quarta-feira. Quando foi no domingo, como l em casa no tinha televiso, eu fui pra casa de uma vizinha assistir o programa dos Trapalhes, e uma dessas meninas que estava comigo contou pra me dela e a me dela foi l em casa e contou pra minha me. S que esse senhor,
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apesar de tudo, ele no fez nada comigo. Ele pegou em mim, s no meu corpo, mas ele no chegou a fazer mais nada, alm disso. A a menina contou pra minha me isso que tinha acontecido e ela me bateu. Nossa! Como ela me bateu! Ela me bateu com esses fios de eletricidade. Gente, mas ela me bateu, me bateu tanto nesse dia, tanto. Primeiro, ela me colocou pra ir tomar banho e ela me bateu dentro do banheiro, eu estava pelada. Depois, ela me deitou na cama e perguntou para mim, ela veio com aquela coisa psicolgica, sabe? Quem fez isso com voc? Quem fez isso com sua vagina? S que a minha vagina estava totalmente cicatrizada, e a nica pessoa que tinha tocado na minha vagina era o meu tio, ento foi a nica pessoa que veio na minha cabea naquele momento e a eu contei pra ela: Olha, me, foi o meu tio, ele quem fez isso comigo. A ela entrou em pnico, comeou a chorar. Falou que ia vender a casa, que ia matar meu tio e perguntou por que eu no tinha contado pra ela sobre isso. Ento, eu falei que no tinha contado porque meu tio disse que se eu contasse o que aconteceu ele ia fazer isso e isso comigo.
Em Mnima Moralia, Adorno discute o embrutecimento da vida que se desenvolveu a partir da idia de privacidade. Como fruto de uma hipottica conquista dos tempos modernos, essa privacidade, entretanto, isola os indivduos e lhes subtrai a dignidade, ao mesmo tempo que coloca em seu lugar a ideologia da boa educao, que teria por base a no interferncia nos assuntos privados das famlias.
Logo depois, meu pai ficou sabendo e, a, veio, me pegou e me levou pra casa dele. Disse que minha me no tinha competncia pra me criar, que ela era totalmente irresponsvel e nisso a minha me j havia me levado na delegacia feito exame. A gente fez exame de corpo de delito no IML33 e ficou dele responder processo, s que nunca foi. Se ele recebeu alguma intimao, ele nunca compareceu. A, eu fui morar com meu pai, eu tinha nove anos. Morando com meu pai eu estudava, s que eu no tinha amizade com ningum,
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eu ficava trancada dentro de casa. Ele me levava e me buscava na escola todos os dias. Ele me trancava. Eu ficava trancada dentro de casa. Eu no podia sair, eu no podia assistir televiso, eu no podia fazer nada. Tinha que ficar dentro de casa. No sei dizer o porqu disso. Um dia, na escola, eu fui escolhida para ser a noiva da quadrilha, porque eu era magrinha e loira, dos olhos claros, meu cabelo era bem clarinho. Eu fui pra quadrilha e um dos meus colegas subiu em cima das minhas costas, que era uma brincadeira, tipo uma dana que tem na quadrilha, um passo que tem, e aquilo pro meu pai foi o fim do mundo. Ele me bateu na frente de todo mundo, gritou comigo e disse que eu era sem-vergonha igual a minha me, que eu ia ser uma prostituta igual a minha me e eu fiquei sem entender. A diretora da escola chamou ele e conversou com ele. Ele falou: Fiquei nervoso, estou passando por uma fase difcil. At que ficou tudo resolvido. S que ele, eu no sei, sabe? Eu no sei te explicar como que ele era. Meu pai me levou para fazer exame de virgindade no sei quantas vezes, mas ele sabia que eu tinha sido estuprada, sabia que eu no tinha hmen. Pra qu ele queria saber? Pois , ele me levava porque minha tia, que era tambm minha madrinha, trabalhava no CAIS34 do Setor Finsocial35. Ento, ele conversava com ela e ela entrava comigo no
consultrio do mdico pra ele dar o laudo, mas hoje eu sei que fazer isso proibido. Ento, eu associei as coisas: ela entrava comigo justamente pra isso, pra ouvir o mdico dizer que meu hmen j tinha sido rompido. E todas s vezes meu pai me batia. Ele me levou trs vezes e todas s vezes ele me batia. Eu no entendia aquilo, por que ele estava me batendo. Ele, s vezes, me batia porque ele queria ouvir uma mentira da minha boca, mas eu falava a verdade e ele falava que a minha verdade era uma verdade falsa. E eu tinha que assumir uma coisa que eu no havia feito. Eu tinha que assumir e ele acabava me batendo porque eu no assumia. Acho que ele queria me ouvir dizer que eu quis transar com meu tio, que eu gostei. Ele queria tambm ouvir eu contar pra ele que eu tinha relao com outra pessoa sendo que eu no tinha. Parece que era isso que ele queria. Eu falava pra ele: No, eu no tenho, pai, eu nunca tive relao com ningum. Ele virava pra mim e falava assim: Voc uma mentirosa, voc uma pilantra. Essa palavra eu no esqueo, ele me chamava de pilantra. Que eu era uma pilantra igual a minha me, sabe? Em casa, eu dormia na cama e ele dormia na rede ao lado da cama, como se ele fosse meu segurana. No tinha como eu descer da cama sem acordar ele, at pra ir ao banheiro eu tinha que pedir pra ele. Quando foi um dia, eu levantei da cama e acendi a luz. No que eu acendi a luz para ir fazer xixi, ele j veio com todas as pedras, me agredindo, dizendo que eu estava fugindo, que eu tinha marcado encontro com homem. So coisas to estranhas que ele fazia que eu no consigo entender.
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Um dia, eu acordei com ele tocando o meu corpo, meus seios, minha vagina. O meu pai, eu no quis acreditar naquilo e falei: Pai, o senhor est ficando louco? O que o senhor est fazendo?. A, ele falou: Desculpe o papai... Papai no quis fazer isso, no Naquela noite no dormimos mais, nem ele nem eu. No dia seguinte, ele comprou duas caixas de bombons, uma roupa que eu queria muito, um par de sapatos, um vidro de perfume e um relgio. Quando entregou os presentes, pediu que eu no contasse a ningum e prometeu nunca mais me tocar de novo. Na poca, eu tinha treze anos, ia completar quatorze anos em janeiro, e isso aconteceu no ms de outubro. Eu estava morando com meu pai desde os nove anos e nesse perodo eu no via minha me. E ele nunca mais fez isso, foi s essa vez. S que eu no queria mais morar na casa com ele. Eu queria ir embora, mas tambm no queria contar pra ningum o que tinha acontecido. Eu ia mais uma vez me calar, a eu fui morar com a minha me. Pedi para ele me deixar ir embora, mas ele no deixou porque, at ento, esse tempo todinho que eu morei com ele, dos nove aos treze, eu no via a minha me. Pra eu ver a minha me, uma amiga dele tinha que me levar no terminal pra encontrar com ela, l no terminal mesmo, porque ele no me deixava ir casa da minha me, de jeito nenhum. Ento liguei pra uma amiga minha que estudava comigo e morava onde a minha me morava pra ela falar para a minha me ligar na escola onde eu estudava, que eu estava precisando falar com ela. A minha me me ligou na escola e eu pedi para ela me buscar, que eu no queria mais ficar l. A ela foi me buscar e eu fui morar com ela e meu pai se revoltou por isso. E nisso, no que eu fui morar com ela, meu padrasto fez umas coisas, acho que um assalto, um latrocnio. Foi um homicdio duplo doloso, um negcio assim, um homicdio, ele matou uma mulher gestante, duas pessoas, tirou duas vidas e foi preso. Quando ele foi preso, eu j estava morando com a minha me. Ento comeou toda aquela histria, a minha me sempre na cadeia visitando ele e os assaltantes comearam a ameaar a gente l em casa. Porque quando ele matou essa mulher, a polcia no sabia dos assaltos que eles j haviam feito antes. Depois da priso dele descobriram os assaltos e ele denunciou todo o resto da quadrilha. Por isso, eles comearam a ir l em casa ameaar e deixar recados para ele, que se continuasse falando as coisas no ficariam boas para ele, que eles iam mandar todo mundo pro espao. Ento, minha me pediu a um dos irmos do meu pai pra mim morar com ele, ento eu fui morar com esse tio meu. Quando fui morar l, eu no tinha liberdade e era tratada feito uma empregada, mas no tinha salrio de empregada, at que consegui um emprego de domstica de verdade. Comecei a trabalhar de domstica quando ainda tinha treze anos, mas continuei estudando porque um ms depois que eu sa da casa do meu pai, meu padrasto foi preso e eu j fui morar com meu tio foi uma coisa assim bem rpida. Continuei estudando. Morei com meu tio durante trs meses. Morando com meu tio, na casa dele, eu comecei a trabalhar e, ento, quinze dias depois que eu estava trabalhando de domstica, meu pai foi l no meu servio e xingou meu patro. O homem me mandou embora na hora e falou: No, eu no quero voc aqui no.
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No sei dizer por que meu pai fez aquilo. Ele saiu puxando meus cabelos no meio da rua e chegando na casa dele, me bateu. A falei assim: Voc no nada. A gente brigou e foi a que eu contei pra todo mundo o que ele tinha feito comigo. Eu joguei na cara dele, dos irmos dele. E falei pra ele: At agora, eu prestava, pai. Eu sempre prestei, eu nunca dei motivos para o senhor reclamar, tudo que eu fiz era certo. Muitas vezes eu tinha que mentir sobre as coisas pra no apanhar. Muitas vezes eu tinha que assumir coisas que eu no tinha feito pra no apanhar do senhor. S que agora as coisas vo mudar. E um dia eu vou ficar muito mais adulta e eu vou matar o senhor e essa sua famlia todinha. Nesse dia eu estava muito revoltada. Eu falei de colocar bomba l. Ento, eu voltei pra casa da minha me e comecei a beber, comecei a fumar, comecei a usar drogas com treze anos.
Quantas Andrias perambulam pelo Brasil? O Artigo 227 da Constituio Brasileira estabelece: dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloca-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.
Sa da escola automaticamente. Neste ano, eu lembro, estava fazendo a 7 srie e passei porque eu era uma boa aluna. Eu j tinha passado no segundo bimestre, as minhas notas j davam pra passar de ano. No terceiro bimestre, eu j tinha feito as provas e os testes, ento, eu j tinha passado. Eu ia l na escola uma vez na vida, assistia uma aula s, e olha l. Na casa da minha me, eu bebia, bebia todo dia, todo santo dia. Comecei a usar droga e a transar. S que eu fiquei muito dependente da merla, e, depois que eu fiquei muito dependente dessa droga, eu conheci uma menina que me chamou pra fazer programa e eu fui. A comeou. Eu tinha treze anos.
Prostituio e sonho
Os jovens do mundo contemporneo perseguem, a todo custo, maneiras de no serem excludos, sendo smbolos de incluso as roupas de grife, as tatuagens e os piercings. A liberdade almejada, no obstante, permanece imensuravelmente presa aos objetos fabricados sob o domnio do trabalho alienado e da fetichizao. Neste contexto, as iluses no chegam, sequer, a serem
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sonhos e a juventude, que outrora se configurava pelos sempre novos impulsos para a liberdade, parece se conformar com a tica dos meios.
O primeiro programa36 que eu fiz, acho que foi no dia 20 de dezembro de 1996 ou foi 97, foi um ano desses a, no tenho certeza, mas eu lembro que foi no dia 20 de dezembro. Eu conheci muitas pessoas boas na prostituio. Eu sa de casa, comecei a usar merla, comecei a fumar maconha, usei todos os tipos de drogas que existem. Eu nunca injetei, at mesmo porque eu nunca encontrei, mas se eu tivesse visto e encontrado, eu teria injetado tambm para saber qual que era a loucura dela. Eu comecei assim e as coisas foram ficando estranhas na minha vida. Eu sa de casa e fui para o apartamento de uma dona de boate daqui de Goinia. Ela tem uma boate l na sada de So Paulo. Fiquei no apartamento dela e logo eu sa de l tambm, fiquei muito pouco tempo l. A eu comecei a ir pra casas fechadas, nunca freqentei rua, mas eu tambm nunca fiquei quieta num lugar s. Ento fui pra um prostbulo e conheci muita gente. Um dos meus primeiros programas foi o Joo Francisco, um senhor que hoje deve estar com uns setenta anos. Naquela poca, ele devia ter uns sessenta e cinco e era tudo de bom. Uma pessoa maravilhosa, tudo que eu precisava ele me dava. Todas as vezes que eu queria chorar ele me ouvia. Ele, s vezes, me tirava de dentro do salo pra me levar pro quarto e a gente passava o tempo todo conversando. Foram pessoas boas, por isso eu no julgo a prostituio como a pior coisa, eu acho que foi a melhor fase da minha vida quando eu estava me prostituindo. Melhor do que com o meu pai e com a minha me. Hoje eu consigo enxergar que minha me me ama, mas antes eu no acreditava nesse amor, no. Nem no dela, nem no do meu pai. At hoje eu no acredito no amor do meu pai. Eu fui me transformando numa pessoa amarga, sem sentimentos, eu no conseguia me apaixonar, no conseguia me envolver. E a nica forma que eu achava que tinha era a de ter relao sexual por dinheiro mesmo. Era unir o til ao agradvel. Eu tinha grana, eu tinha tudo. Eu tinha dinheiro, eu tinha droga, eu era respeitada. Meus pais e meus tios passaram a ficar com medo de mim, no sei como que eu posso te explicar esse medo. Mas eles conversavam com medo de mim, eles falavam baixinho comigo e antes no. Antes, eles gritavam comigo, eles me tratavam como se eu fosse uma burra, uma idiota que no sabia de nada. Eu lembro que uma vez passou na televiso que ia passar aquele filme A lagoa azul, a estava l assim: indito. S que eu tinha assistido em uma outra emissora. A eles comearam a curtir comigo, me chamando de burra porque indito significava que nunca tinha passado em lugar nenhum. Eu lembrava que eu j tinha assistido esse filme mas quando eu falei todo mundo comeou como diz meu pai, a mangar de mim, a curtir com a minha cara.
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- O que caracteriza um programa, segundo os sujeitos desta pesquisa, o contato sexual mediante pagamento em dinheiro.
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Por isso, at hoje, eu no sou uma pessoa totalmente amvel, eu no consigo ser, eu no consigo amar, eu no consigo gostar das pessoas. Eu consigo respeitar e brincar, ento o meu vnculo, a minha afeio com as pessoas at o momento que eu acho que elas esto me tratando bem, quando comeam a me tratar mal, a j comeo a me descontrolar totalmente. As pessoas me perguntam: Por que voc tem isso? No sei, eu no sei por que eu sou assim. E a eu passei a me sentir mais segura na rua. Eu era eu, se algum falasse alto comigo eu j caia de faca na mo e falava: E da, vai falar o qu? Ento as pessoas tinham medo de mim, as pessoas me respeitavam. Uma vez, eu que s trabalhava em boates fechadas, fui num posto de gasolina pra fazer programa e vieram trs travestis conversar comigo. E perguntaram pra mim o que eu estava fazendo ali e eu expliquei. A elas disseram: Ento t liberado, pode ficar de boa, aqui ningum pe a mo em voc. Todo lugar tem os homens que gostam de travesti e eles no ficam com mulheres e os homens que gostam de mulheres no ficam com travestis. Ento, no tem esta questo de eu tomar os fregueses delas e elas tomarem o meu. , independente. S que as mulheres no, elas queriam me bater e eu falei: Agora o seguinte: vai ficar caladinha, no vai encher o saco no! Porque se o ponto fosse seu, voc deveria ter colocado uma placa com o seu nome escrito. Voc no tem que mandar aqui. Voc tem que ficar de boa. Aqui est todo mundo lutando pela sua sobrevivncia. A, essas travestis que estavam l, todas de Goiatuba, de Morrinhos, de Rochedo, que onde tem a usina, elas todas falaram assim: Ah, Sarinha37, voc boa demais, voc tem que colocar ordem mesmo no galinheiro. A eu senti que eu era respeitada, que as pessoas se preocupavam comigo. Eu bebia e ficava muito violenta, entendeu? o mesmo perfil da minha me quando ela bebe. Eu brigava com qualquer pessoa. Uma vez, como era menor de idade, fui pega pelo Juizado de Menores de Piracanjuba38, mas a transei com o comissrio do Juizado quando ele chegou pra me buscar e ele me liberou e tambm liberou a dona. Ele tinha ido l pra averiguar se tinha menor e fechar a casa e viu que tinha eu e uma outra menina. Da ele transou comigo e o outro comissrio transou com a outra menina. A proprietria deu R$ 300,00 pra eles. Toda minha trajetria na prostituio foi antes de completar dezoito anos, eu sa da prostituio com dezessete anos. Mesmo quando eu estava casada eu ainda saia com meus clientes, s que meu marido nunca sonhou com isso. que eu fui me acostumando a ter aquele dinheiro, eu estava desempregada, precisava de grana. Depois que eu tive a minha filha eu mudei muito, eu deixei de fazer muitas coisas. Quando eu bebia, eu ficava muito violenta, at j fui presa. Eu brigava com todo mundo, eu arrancava a roupa no meio da rua, ficava louca, louca da cabea. S que eu nunca gostei de beber cerveja, minhas bebidas sempre eram whisky, conhaque, pinga, era sempre coisa forte e tudo misturado com droga. Sempre. Ento, nesse tempo, as meninas cuidavam de mim. Elas me levavam para casa, me colocavam pra dormir,
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Sarinha era o nome utilizado por Andria nas atividades de prostituio. Cidade prxima a Goinia.
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no outro dia sempre conversavam comigo. Eu me lembro que uma das mulheres com quem eu trabalhei foi a dona de um restaurante que tem aqui no trevo de Piracanjuba, e ela falava sempre assim pra mim: Andria, voc to bonita, voc j est nessa vida, junta seu dinheiro, faz alguma coisa. No fica nessa vida perdendo tempo, no, se drogando. Eu fui pra muitos lugares, eu no ficava parada. Fui pra So Paulo, conheci o Nordeste inteirinho fazendo programa. Fiquei numa boate em Pernambuco, numa em Fortaleza, fiquei numa aldeia hippie que tem em Salvador, fiquei em feira de Santana, fui pra Olinda, Aracaju. Eu ia de carona com os caminhoneiros, eu saia daqui aberta, dando pra eles at no final da BR. Quando chegava no ponto onde eu queria, eles me deixavam normalmente numa boate que eles conheciam e falavam que dia passariam pra me pegar de novo. Passavam, me pegavam, amos pra outro lugar. Eu transava na cabine do caminho, andava s com caminhoneiros, pela carona. Fui pra Mato-Grosso, conheo vrios lugares, tudo por causa da prostituio. Fui porque eu fazia programa, mas eu no me arrependo, no. Acho que fui feliz. s vezes, eu acho que a gente cria tantas expectativas em cima de uma coisa que nos faz sofrer. Eu no sei, s vezes, porque preciso fazer uma terapia ainda pra superar, porque eu no consigo lembrar do meu pai e no sentir raiva. s vezes, eu digo que no, mas est marcado dentro de mim. Da minha me no sinto raiva, porque desde aquela poca eu senti que a minha me gostava de mim. Porque eu vi que ela sofreu por me ver na situao em que eu estava. Quantas vezes eu cheguei em casa totalmente drogada e ela dizia pra mim: A culpa minha, filha. Se eu tivesse te dado um pouquinho mais de ateno, voc no estaria do jeito que voc est. Hoje em dia ns temos um relacionamento muito bom, ns conversamos sobre tudo. Hoje, ns moramos juntas. Depois que eu separei do meu marido, fui morar com a minha me, eu no quis mais morar sozinha, no gosto da solido. Quando eu sa de casa, fui trabalhar na casa de uma mulher num setor prximo a minha casa, s que, na realidade, eu no estava me prostituindo, estava s ajudando. Mas como a filha dela, que era uma menina muito linda e se chamava Cida, j tinha entrado na prostituio fazia algum tempo, ela falou que eu tinha que fazer programa tambm pra ajudar na despesa da casa. Ento, ela comeou a me levar junto com a filha dela e foi a que eu comecei a viajar. Pra Braslia eu fui com ela, agora, pra So Paulo e pro Nordeste, fui com a Jaqueline, uma outra amiga. Na viagem, ns chamvamos a Cida de Sara, foi da que eu puxei esse nome fictcio pra mim tambm. Ento, quando paramos de andar juntas, todo mundo me conhecia como Sara. Eu comecei a freqentar as casas, eu nunca consegui ficar em rua. Eu fui um pouco pela prpria questo de querer ter alguma coisa, sabe? Estava viciada em drogas, queria manter o meu vcio, queria ser independente, ter uma vida legal.
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O primeiro lugar que eu fui foi o Canto dos Caminhoneiros, que um lugar que fica em Goianira39. S que quando eu cheguei l, o cara me ofereceu R$ 20,00 pelo programa, eu entrei em desespero. Eu tinha, no sei se quatorze ou quinze anos. claro que eu no quis. Eu no vou ficar com voc por vinte reais de jeito nenhum. No fico, no fico, no fico. Ento fui pra um outro local, que era a Estncia MM, uma outra casa de prostituio que tem aqui em Goinia. Eu fui ficando l, trabalhando pra proprietria da casa, fiquei em um apartamento que ela tem aqui no Setor Bueno40. A eu tirei algumas fotos, que ela mandava pros clientes e comecei a fazer programas no apartamento. Os caras chegavam com interesse de sair comigo e ela mandava pro apartamento que ela tem, deve ser dela, eu no sei. Ento, ela comeou a pegar um pouco do meu dinheiro, Eu vi que eu no estava me saindo bem. A eu fui pra Braslia com outra garota e a gente comeou a namorar uns caras de l que roubavam carro. A gente se envolveu com essa gang e ficava na boate, mas dormia no apartamento deles, com eles. Ento, eu fiquei numa casa l muito tempo, at arrumaram a minha identidade como se eu tivesse dezoito anos e eu fiquei l alguns meses fazendo programas. Eu no gostava de ficar presa como muitas das proprietrias querem. A, aconteceu um negcio em Braslia comigo, que eu no posso falar e eu vim embora pra Goinia de novo. De Goinia, eu comecei a viajar para o interior, cidades prximas e, depois, comecei a ir mais longe, bem mais longe. Comecei a ir pra So Paulo, mas antes fui pra uma cidade chamada Professor Jamil41, fui pra uma casa de prostituio. Era poca de natal e eu conheci um homem, um fazendeiro de l, muito bom pra mim. Foi uma pessoa que passou pela minha vida e que eu considero uma pessoa maravilhosa. Ele me dava de tudo, ele me bancava de todas as formas. Sei o que ele na realidade queria de mim, mas ele me ajudava muito. Tinha noite que ele no me deixar ficar na casa, ela falava assim: Voc vai deitar e dormir. Eu estou indo embora mas voc vai dormir. Esse dinheiro aqui para voc. E me dava a quantia exata em dinheiro de uma noite fazendo programa, s para que eu pudesse dormir e descansar. Muitas vezes, ele me procurava no pra transar, mas pra conversar e me dava muitos conselhos. Ele era o Joo Francisco e devia ter uns sessenta e poucos anos, mas aparentava mais novo.
A paixo e os preconceitos
O filho da dona dessa casa era lindo e tinha dezessete anos. Me apaixonei perdidamente por ele, me apaixonei de tal maneira que chorava toda hora. A, quando comeamos a conversar, eu at me propus a no fazer mais programa pra ficarmos juntos. S que um dia eu sa com o Joo Francisco durante o dia e ele me deu trezentos reais, eu fui cidade comprei roupas, comprei sapato, ele pagou salo pra mim, eu cortei e
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Cidade pequena prxima a Goinia. - Bairro da cidade de Goinia. 41 Cidade pequena prxima a Goinia.
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pintei meu cabelo, escovei e fui para casa. Quando eu cheguei, fui com esse menino pro meu quarto e ficamos namorando. A me dele, ento, entrou e nos flagrou namorando. Ela no gostou, e por isso, mandou ele de volta pra Braslia. Eu entrei em desespero. Antes dele viajar, fomos para um crrego tomar banho. Foi maravilhoso. Acho que foi uma das poucas relaes em que eu tive afeto mesmo, afinidade e, naquele dia, ns namoramos muito na beira desse crrego, bebemos muito, tudo que podamos fazer fizemos. Eu me lembro que quando eu cheguei, esse Joo Francisco tinha deixado um presente para mim, um pedao enorme de carne pra mim e eu fiquei muito feliz com aquilo tudo. Aquilo ali era um sonho, quando voc acha que a pessoa realmente gosta de voc, voc acha que a pessoa realmente te trata daquela maneira porque tem amor por voc. Eu me lembro que ele falava das dificuldades com a famlia e s vezes me comparava com a filha dele. Falava que eu tinha idade para ser filha dele e que ele ficava me olhando, s vezes, e imaginando se fosse ela que estivesse ali. E me fez muitas propostas, mas eu estava apaixonada pelo Michel e o Michel foi embora pra Braslia. Assim que ele foi embora pra Braslia, eu comecei a usar mais drogas ainda. A famlia dele toda de Braslia, s que a me dele morava nessa cidade, Professor Jamil, pra l um pouquinho do trevo de Piracanjuba. A eu fiquei desesperada e fui pra Uberlndia com uma amiga, uma coroa que eu tinha conhecido l, ela tinha trinta e cinco anos. Eu chamava ela de coroa porque normalmente todo mundo era bem novinha. A ns fomos pra Uberlndia e l eu comecei a fumar pedra, apaixonada, apaixonada. Ento a gente voltou pra Professor Jamil. Quando viemos embora, eu tinha umas economia, que era o dinheiro que o Joo me dava, e dei o dinheiro para ela e ela alugou uma casa. Ela tinha um amante e ele mobiliou a casa. Fizemos um prostbulo para ns, s que, na realidade, era dela, porque eu sei que ela me explorava. Hoje eu sei que ela me roubava, porque eu lembro que uma vez eu fiz um swing com dois homens e eu sei que tudo ficou em cento e quarenta reais, s o meu lucro. Ento, eles assinaram um cheque e deram o cheque pra ela de duzentos e pouco, com o valor de todos os gastos da casa e ela no me passou um centavo, muito pelo contrrio, ela comprou vrias cervejas, comprou lenis, viris que a gente estava precisando e no me deu nada. Eu fiquei revoltada com aquilo. A o Michel chegou de Braslia com a namorada, uma prima dele. Um dia, ele foi l em casa pra conversarmos e eu estava com outro rapaz, o Gordinho, cheirando cocana. Ele se ofendeu e falou pra mim que tinha vindo conversar comigo, estava gostando de mim, s que eu era muito fcil. Aquilo para mim foi o cmulo. Chorei at. Eu tentei conversar com ele tambm, mas ele no quis ouvir. Eu acho que, na verdade, ele estava bem certo. s vezes isso doa. Essa relao que eu tive com ele foi a que mais me doeu, porque eu estava precisando viver aquilo e eu simplesmente perdi tudo por um programa, por causa de um programa, mas eu no sabia que ele tinha chegado de Braslia. E eu me perguntei: Por que eu sou fcil?
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A prima dele uma menina de famlia, como se diz, entre aspas. De famlia porque nunca trabalhou em prostituio. Ele j veio namorando com ela. E logo em seguida a me dele j alugou uma casa na cidade e colocou ele para morar com ela na casa pra ele cuidar das irms dele que eram crianas, hoje j so todas adolescentes. Nessa poca, eu sofri muito com isso, com essa questo das pessoas falarem. Porque lgico que o sonho que eu tinha desde criana era casar, aquele conto de fada. Mas quando eu fui abusada isso acabou para mim. Eu j no tinha esse objetivo na vida, mas eu tinha outras vontades, outros sonhos.
Esse trecho foi recortado do conto Confisses de Leontina, de Lygia Fagundes Telles, cuja protagonista, Leontina, apesar de sobreviver de atividades ligadas prostituio, sonhava secretamente em casar-se com algum que a retirasse daquela vida. Tanto fico quanto realidade se constituem a partir de valores, os quais, como ressaltou Heller (2000), dependem no s das avaliaes dos indivduos mas tambm das atividades dos homens, j que expressam e resultam de relaes e situaes sociais.
Esses dias eu estava at pensando. Sabe qual o sonho de uma mulher que trabalha numa casa de programa? O primeiro sonho que ela tem que um dia vai chegar um cara, vai fazer um programa com ela e que vai dar muita grana pra ela, uma grana alta, tanto assim que ela nunca mais vai precisar fazer programa. O outro sonho que ela vai conhecer algum l, o famoso prncipe encantado que vai se apaixonar e vai tirar ela daquela vida, vai dar tudo aquilo que ela sempre sonhou: roupas, calados, uma casa legal, comer bem, poder passear, poder sair sem precisar ter vergonha. Ento esses tambm eram os meus sonhos. Eu queria viver com ele, eu no pensaria duas vezes, naquela poca eu queria. Hoje no, mas naquela poca eu queria. Eu tambm pensava em voltar pra escola, tanto que eu cheguei a me matricular em uma das escolas de l. Eu no tinha concludo a 8 srie. S que aconteceu que quando eu fui pra a escola todo mundo sabia onde
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que eu morava. Ento os meninos sempre conversavam comigo, mas eu sabia qual era o interesse deles. As meninas no, elas no conversavam comigo. Os professores me tratavam bem, eu acho que nem todos sabiam, porque eu era nova na cidade. Os alunos eu acredito que todos sabiam porque nas festas eu sempre estava com as meninas que trabalhavam l com a gente, ento eles sabiam. Eu no sei como que era isso, eu s sei que eles me tratavam naturalmente, s que eu percebi que, dentro da sala de aula, tinha um tipo de barreira. Quando tinha trabalho em grupo, acontecia de alguns deles falar que iriam fazer comigo, outros no. Ento eu resolvi no continuar, at porque eu comeava a beber cedo, por isso sempre faltava escola. Acho que eu parei tambm por vergonha, porque embora garotas de programa como eu admitam pra todo mundo que fazem aquilo porque gosta, elas repetem pra todo mundo que no se importam com a opinio dos outros, mas no fundo todas se importam sim. No fundo, isso machuca. Lembro que quando eu saa para ir em alguma festa, ficava olhando aquelas meninas que estudavam comigo com seus namorados e aquilo me dava uma certa inveja, uma vontade de ter algum pra mim, de algum que cuidasse de mim e eu no estava vivendo desse jeito. Ento, eu bebia muito, aprontava muito. At que abandonei a escola e continuei s naquela vidinha. Um dia, o Michel brigou com a me dele e foi dormir l em casa. A Ftima, a mulher que abriu a casa junto comigo, j conhecia a me dele h muitos anos. E a me dele era a dona da outra casa, a primeira casa que eu fiquei. A Ftima era amiga da me dele h muito tempo, s que ela usava drogas, ela fumava maconha, cheirava cocana, ela era to louca que matou o primeiro marido dela e esfaqueou o segundo, e o ltimo marido ela jogou lcool e botou fogo, o rosto dele todo deformado. Esse que ela esfaqueou era o Deley, ela falava nele o tempo todo, ela esfaqueou ele porque ele tinha discutido com o pai dela em Uberlndia. At que a Ftima saiu pra casar com outro cara e eu no sei se ela matou esse. No sei como ela est hoje. Mas eu sei que essa mulher era louca e a me do Michel j tinha tido uma outra casa de prostituio no Rochedo, j viu falar na Usina? Na BR, l no Rochedo, l tem muitas casas de programa, tem uma de travestis, mais duas de mulheres. So trs casas ao todo, s do lado de fora na BR. A Ftima morou l com ela muito tempo, ento o Michel era criana na poca e, por isso tinha muito carinho pela Ftima, ele tratava ela um pouco como me. No dia em que ele brigou com a me dele e foi l pra casa, ns no abrimos a casa porque estvamos todas drogadas e cansadas, tnhamos bebido a noite inteira. Eu e a Mara bebemos pinga, depois conhaque e whisky. Ele chegou l e a Ftima estava dormindo no quarto dela com esse homem com quem ela foi morar, a Brisa estava no quarto dela dormindo com outro homem e a Betlia estava dormindo no mesmo quarto que a Baiana e a Jaqueline, porque elas estavam todas se drogando nesse dia. Ento o que aconteceu? Sobrou o meu quarto para ele dormir. Foi a ltima vez que ficamos juntos, j tinha uns quatro meses que a gente no ficava junto, que quase no conversava. Eu lembro que eu estava deitada virada pra parede e ele deitou na beirada e se virou de costas pra mim tambm. Falei assim: Deixa pra l, eu tambm no estou nem a pra voc. Ento, ele me virou de
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uma vez e comeou a me beijar e aquilo pra mim era como se fosse um sonho, como se tivesse sido a minha primeira vez. Depois disso, nunca mais, mas continuamos conversando. Hoje ele casado com uma outra menina, pai de trs filhos. Ele novinho, quase da minha idade, vinte e dois anos. Fiquei morando nessa casa, em Professor Jamil, um ano. Tenho vrias histrias pra contar dela, muita coisa, muitas brigas entre homens e mulheres. A Jaqueline louca, ela esfaqueou o namorado dela l, mas no foi uma coisa assim desesperadora, s esfaqueou. Foi l, fez um curativo e foi embora pra casa, no outro dia eles j estavam dormindo juntos. Ele com o curativo e tudo, as coisas eram assim. Nesse ano que eu morei l, fiquei um tempo em So Paulo. Depois voltei de So Paulo e a a Ftima foi embora, mas ficamos trs meses na casa. ramos cinco mulheres, mas todo mundo l dentro ajudava, no final de semana fazamos as contas com o dinheiro de todo mundo de quanto gastamos. Todo mundo ajudava, dividamos todos os gastos. Depois tivemos problema com o proprietrio que queria a casa de volta e, por isso fomos para o trevo de Piracanjuba e alugamos outra casa l, uma casa grande. Ficamos l um tempo e a Baiana tomou conta da casa, ela sempre teve a cabea muito no lugar, ela era maior de idade, mas era um pouco loucona. Ela do Par, Paragominas. Lembro que quando ela fumava maconha, ela viajava que eu era a filha que ela tinha abandonado quando ela era adolescente. Eu falava: No, Baiana, no assim, no. Ela falava:Mas por que, minha filha, por que voc est aqui ? Era coroa, uma mulher bonita, mas era muito estranha. Depois, fui com a Betlia pra Barra do Garas - MT, voltei e depois fui para o Nordeste. No Nordeste, eu vi uma menina morrer. Foi horrvel, tudo aconteceu por causa de um programa que o homem no pagou pra ela. Fomos primeiro pra Fortaleza. Por que fomos pra Fortaleza? Olha, eu nunca mais tinha visto meu pai depois que ele foi embora daqui de Goinia e eu tinha vontade de ver o jeito que ele estava. Nessa poca, eu estava andando quase nua. Saia curta, barriga toda de fora, s usava blusinha. L em Fortaleza, ficamos numa casa durante uma semana e eu conheci um homem que era de Santa Catarina, um velho e ele me deu, na poca, quatrocentos e cinqenta reais pra eu ficar dois dias s com ele, este homem era dono de uma parte do CEASA42 de l. E ele me deixou perto de onde meu pai estava. Eu no sabia o endereo dele, s a cidade. Foi to louco que pra chegarmos at onde ele morava, pegamos carona com quatro caminhes. E ns fomos, eu, a Betlia e uma outra menina, a Rita, que tnhamos conquistado l em Fortaleza e que estava vindo pra Goinia com a gente. S que depois ela roubou todas as nossas roupas nessa viagem. Malandra demais. Ela foi com a gente pra casa do meu pai, a fazenda do meu av e ns ficamos l por uns dias. Ento encontrei meu pai l na cidade dele, uma cidade pequena. Chegamos e dormimos num posto, no cho. Estava tendo uma festa nesse posto e havia muitos parentes do meu pai, porque ele cearense, natural da
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cidade. Eu cheguei nesse posto e perguntei onde que morava o Edzio Uchoa, e o homem me olhou e perguntou: O que voc quer com o Edzio Uchoa? A eu falei: Ele meu av, eu sou filha do Toninho.E ele falou assim : O Edzio meu tio. Ele me falou que ali estava tendo uma festa e que havia muitas pessoas da minha famlia, mas o meu pai no estava nesta festa. Ento, dormimos l e, no outro dia cedo, fomos procurar meu pai. Quando chegamos na fazenda, ele olhou pra mim e falou assim: O que que voc veio fazer aqui? Eu falei: Eu vim te ver. S que e minha roupa era minscula, o meu cabelo loiro curtinho, eu tinha quase rapado a cabea. E ele ento falou que tinha vergonha de mim, que eu tinha decepcionado ele. Ento eu respondi: Quer saber de uma coisa? Eu no estou nem a pra voc. Vou embora. Vamos embora, Betlia. A Betlia falou assim: Espera a, Andria, vamos conversar com seu pai. E ele ainda se envolveu com a Betlia, que era minha amiga. Ficaram os dois l namorando na minha frente. Ficamos uma semana com ele. Conversamos muito, ele comprou cigarro pra mim, coisa que ele nunca fez, eu fumei maconha perto dele, eu bebi. Ele me levou pro bar e pagou todas as cervejas pra mim. Eu falei pra ele das minhas angstias, pedi desculpas pra ele porque eu sei que muitas vezes eu decepcionei ele, mas eu falei pra ele que aquilo que tinha acontecido naquela noite, pra ele, pode ter sido uma coisa sem importncia, mas que pra mim no foi. Muitas vezes, eu deitava e lembrava daquilo. Uma semana depois, eu falei: Ah... vou embora. Eu no estava mais agentando ficar no meio do mato, cheio de mosquito, tinha que lavar as roupas no crrego, aquela coisa mais horrvel do mundo. Minha av era uma velha chata e a comida dela era horrvel. Tudo ruim. Ento ele chorou, mas ele no falou nada, ele s falou: A gente erra, minha filha. Eu falei: Pois , a gente erra, mas o senhor foi muito mau pra mim muitas vezes. O senhor nunca acreditou em mim. Ento isso que eu fiz como se eu tivesse carregando um peso nas minhas costas e eu precisava colocar o peso um pouco nas costas de algum, desabafar, dizer as coisas que eu estava precisando dizer pra ele, mas numa boa, sentada num boteco, tomando cerveja. Ele no bebe, no fuma. S pagava. Eu fui falando. E quando foi no dia de eu ir embora, ele chorou, mas levou a gente l no ponto na BR pra pegarmos carona. Ele me deu dinheiro pra vir embora. Eu falei: Eu no quero no, pai. Eu quero ir de caminho, eu vou de carona. E eu vim de carona. De l, ns fomos para Recife. Pegamos uma carona at Fortaleza e, de Fortaleza, pegamos outra carona pra Recife. Em Recife, como ns ramos trs e o caminho era pequeno, no dava pra levar as trs, s cabe uma ou duas. Ento, o que que aconteceu? Primeiro, fui eu e a Rita num caminho e a Betlia foi sozinha, depois foi a Rita e a Betlia e eu num caminho sozinha. Mas sempre marcvamos lugar de encontrar. Perguntvamos para o caminhoneiro qual o caminho que ele ia fazer e se ele poderia parar num lugar mais ou menos de duzentos quilmetros depois, por a. Ele parava e tal. Na ltima carona, a Rita, que era a menina que tnhamos conhecido em Fortaleza, foi sozinha no caminho. Ela tinha levado toda a nossa
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bagagem e marcamos de encontrar com ela num lugar e ela no apareceu l. Esse foi o percurso de Fortaleza at Recife. Quando chegamos em Recife, vimos que ela tinha sumido com tudo que tnhamos. Fomos ento de carona com um caminhoneiro, um gacho lindo e ele nos levou at Salvador. Em Salvador, fomos pra uma aldeia hippie que tem l, Arembepe. Passamos quinze dias em Arembepe. Um lugar muito bonito. Tnhamos dinheiro que ganhamos em Fortaleza e no gastvamos com besteira, s com drogas mesmo e esse caminhoneiro tinha droga e, ento, ele dava pra gente e assim, no gastvamos. Ele pagava comida, pagava tudo, mas lgico que ele tinha que receber algo em troca. Lgico que tnhamos que transar com ele, se a gente no transasse com ele nada disso acontecia. Um dia era eu, outro dia era ela, a gente revezava. Depois fomos para o centro de Salvador procurar a zona pra ficar, mas no achamos. No tnhamos comprado roupa ainda, porque tnhamos uma mochilinha menor que andava comigo e ainda tinha dois aparelhos de roupa, a que estava no corpo e a que estava dentro da mochila. Mas tem uma histria mais louca ainda. Antes de sairmos daqui de Goinia pra ir pra Fortaleza, fomos para a fazenda de um velho. Ele era velho, velho. Tnhamos vindo em Goinia pra comprar sapato e no conseguimos comprar, ento fomos para Caxambu. Ele tinha uma fazenda l, e fomos pra casa dele. Depois ia ter uma festa em Caxambu e ns no tnhamos roupa. Ento cada uma de ns vestiu uma roupa do velho, tudo at a cueca, uma cala daquelas antigas de tergal, uma camisa e, por isso, nossas roupas ficaram l, nunca mais fomos buscar e viajamos com as roupa dele. Mas voltando histria de Salvador, dentro da mochila tinha uma cueca desse velho que eu ainda estava usando. Assim que a gente parava em algum lugar, lavava e vestia de novo. Ento, quando fomos procurar boate pra trabalhar, cada uma de ns, comprou dois aparelhos de roupa com o dinheiro que tnhamos e comeamos a beber. S que em todas as boates que a gente ia em Salvador, a dona olhava nossas roupas e, como estvamos sem roupas, no deixavam a gente ficar. E eu tambm era de menor e elas [as donas] no queriam que eu ficasse l, falavam que as menores tinham que procurar fregueses na praia. Ento fomos pra praia e l samos com uns caras de Salvador mesmo, logo depois resolvemos vir embora. Mas ao invs de virmos embora, fomos pra Feira de Santana e l tinha um lugar, uma feira, onde vendia roupas bem baratas. Compramos muitas roupas, compramos toalhas, shampoo, nossa! Compramos muita coisa mesmo. Tivemos at que comprar uma bolsa para colocar tudo que compramos e ficamos mais alguns dias por l. Trabalhamos e ganhamos muito dinheiro em Feira de Santana, graas ao caminhoneiro que deixou a gente na casa de uma dona que, alm de muito bonita, era muito legal tambm. Mas depois brigamos com ela. E nesse perodo eu me apaixonei pelo gacho que conheci em Recife, ele era muito bonito, todo cheio de tatuagem. Ento eu e a Betlia fomos procurar o gacho, fomos pra BR atrs dele. Ns ficamos na casa dessa mulher uns dias e depois fomos embora. Pegamos carona com outro gacho que era amigo do gacho que eu estava apaixonada. Ele foi fazer entrega em Aracaju e em alguns outros lugares do Nordeste mesmo
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e fomos com ele. Pegamos carona com ele de Feria de Santana at uma cidade chamada Escada, no Pernambuco, prximo a Recife. Ficamos oito dias com ele andando de uma cidade pra outra e ele fazendo entregas. Ah! ele era um chato, como era! Mas ficamos porque ele jurava que nos levaria onde estava o gacho. Ele falou que Escada era a cidade onde o gacho ficava e por isso ficamos em Escada. E foi nessa cidade que eu vi essa menina morrer. Ficamos nessa casa que se chamava Selva de Pedra. Linda essa casa. muito bonita. L era to gr-fino que a mulher que mais fazia programa no ms ganhava um prmio no final do ms. L era tudo computadorizado. Eu ganhava muito dinheiro, eu sempre ganhei dinheiro demais. S que o dinheiro, do mesmo jeito que vem ele vai. Eu no sei o que aconteceu, eu no sei se era s porque eu era jovem, muito nova, mas era uma coisa diferente, uma coisa estranha. Eu gastava cem reais s em cachaa, s com coisa suprflua, coisas sem utilidade, pagava coisas pros outros. Em todo lugar que eu chegava, eu arrumava um homem que se apaixonava por mim e me dava tudo o que eu queria.
prticas consideradas pecaminosas pelas religies. Mas a idia de pecado no interfere na f, pois as mulheres buscam a ajuda dos deuses sem se preocuparem com o que as instituies religiosas consideram pecaminoso. Apesar disso, permanecem as idias relacionadas com a maldio do dinheiro ganho nestas atividades.
Quando a gente est nessa vida de mulher da vida tem muita religiosidade, tem a pomba gira que voc comea a colocar bebida pra ela, colocar flor, como se fosse um templo. Voc coloca cigarro pra ela de cabea pra baixo pro cigarro queimar, como se fosse ela fumando, s que no tinha imagem, a gente colocava no canto do quarto. Colocava tambm vodca, bacardi, coisas assim... Voc toma banho de rosas vermelhas, banho de acar. Da, voc fica cada dia melhor, mais atraente, isso puxa os homens. Ns acreditvamos muito nisso. Eu fazia isso e em todo lugar que eu chegava arrumava um velho que se apaixonava em mim. E l na Selva de Pedra conheci um coronel aposentado que me deu muitas coisas, muitas roupas... Ele me levou em Recife pra comprar roupa. Era vivo. Me deu relgio, nossa! Ele me deu tanta coisa. Eu nem sei o que eu fiz com essas coisas que ele me deu. Eu sei l, aquele lugar estava pequeno e esse gacho no chegava e at que, um dia, ele chegou com a namorada do lado. Eu queria morrer! E era sempre assim:
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quem voc queria no te queria. E quando te queria, s queria pra transar. Bem na noite em que o gacho chegou, samos juntos, conversamos e fumamos maconha. A namorada dele ficou esperando no caminho. Depois ele foi embora e eu comecei a beber, achei que ia enlouquecer. Eu estava bebendo campari e esse velho ficou comigo, esse coronel aposentado. Ele pediu a garrafa de campari e colocou na mesa e eu comecei a beber. Eu lembro que essa menina, essa que morreu, foi para o quarto com um homem. Eles fizeram o programa e, quando ela saiu, ela foi sentou-se na mesa com esse homem que depois matou ela. Eu no sei como foi que aconteceu, eu s sei que ela procurou o gerente pra conversar, mas eu no ouvi o que ele falou. Eu s vi a hora em que ela voltou pra a mesa e falou pro cliente: Voc no vai me pagar no? Voc est achando o qu? Que eu vou transar com voc de graa? Eu quero receber meu dinheiro. Paga logo meus cinqenta reais, anda logo. A eu s escutei os tiros. Ele deu trs tiros nela e ela caiu no cho. Tudo que eu tinha bebido desapareceu. Eu fiquei plida, tremia muito. No conseguia olhar todo aquele sangue no cho. Todo mundo gritando. Eu no tinha nenhuma reao. No outro dia, ficamos sabendo que ele foi para o quarto com ela, fez o programa e disse pra ela que j havia pago o programa para o gerente. E a ela foi no gerente conversar com ele pra saber do dinheiro do programa dela porque ela j ia sair com outro cara que j estava esperando pra fazer outro programa com ela. Ele disse que no, que o fregus no tinha pagado nada no e que ela tinha que resolver isso com ele porque coisa do programa dela ele no podia se responsabilizar. Ela foi tirar satisfaes com o fregus e, como o homem tinha bebido e alm disso, estava armado (pois quase todo mundo em Recife anda armado), aconteceu tudo isso. No outro dia eu vim embora pra Goinia, fiquei cinco dias na estrada, mas cheguei. Com dezessete anos, l em Hidrolndia, fiquei grvida e casei, s que no foi com o pai da minha filha, no, casei com outro rapaz. Foi assim quando voltei, fui pra Hidrolndia e a Betlia foi pra outro lado. Era sempre assim, essas amizades que a gente conquista nesse mundo sempre duram pouco tempo. So amizades que enquanto voc est junto so verdadeiras, s que simplesmente tem um momento em que cada uma vai para um lugar, cada uma procura seu espao. L em Hidrolndia, fui trabalhar na casa da Cida, ela ainda tem a casa l. A a Cida comeou a me pagar pra trabalhar no bar pra ela. Trabalhando no bar, eu ganhava 10% de tudo que vendia e tinha noite de eu tirar sessenta reais. Eu vendia seiscentos reais s de cerveja. Era assim, durante o dia as meninas subiam da boate pro bar. Em frente do bar tem o Posto Jaboticabal onde ficam os caminhoneiros. Ento eles tambm desciam pro bar para beber. As meninas l so todas muito bonitas. E eu tambm ganhava muitas gorjetas, s que eu no fazia programa. At que a Cida disse pra mim: Se rolar um convite para fazer programa aqui, voc desce pra boate e a Keila fica no seu lugar. Eu falei que estava tudo bem. E eu fiquei um tempo trabalhando pra ela. Depois, resolvi abandonar o bar porque eu tinha que ficar l o tempo todo. At no domingo eu tinha que trabalhar at tarde, ento eu no podia sair pra fazer programa. Por isso eu no quis mais e voltei para a boate. L na boate, eu engravidei. Eu fiquei enrolada com um cara
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l e enrolada tambm com a Keila que era a gerente da boate. Por isso eu tenho certeza que minha filha tambm filha dele, porque dela no pode ser. S descobri que estava grvida quando j tinha vindo embora para Goinia, eu j estava de cinco meses. Voltei pra casa da minha me. Da conheci o Marcelo que foi meu marido durante quatro anos. Nos conhecemos num show de hip-hop, ele cantava Rap. Quando eu descobri que estava grvida, j tinha trs meses que estvamos juntos, s que eu fui muito honesta com ele. Falei: No, a filha no sua, eu no posso te dizer que porque eu estou grvida de seis meses. Alm disso, contei toda a minha vida pra ele. Eu falei: Olha, eu j fiz isso, j fiz aquilo, se voc quiser ficar comigo bem, se no quiser, no posso fazer nada. Eu nunca fui dessas mulheres muito pegajosas, mas eu gostei muito dele, sofri muito, aceitei muitas coisas. Eu fui honesta com ele, mas aquilo estava me corroendo por dentro porque, se ele falasse pra mim que no me queria, eu iria me desesperar. Mas eu fui bem firme no que eu queria dizer. Me lembro que nesse dia que contei tudo, ele me mandou embora, eu estava na casa dele. Eu fui, mas quando estava na metade do caminho ele chegou, me abraou e falou que me amava. Ento eu parei de fazer programa, s que depois ainda fiz alguns quando a gente estava separado. Nos separamos algumas vezes e eu saa pra fazer programa, ganhar meu dinheiro. Porque no adianta eu disser que deixei de fazer programa de uma vez, porque no verdade, muitas vezes no saa com a inteno de fazer programa, mas acontecia. uma coisa difcil de explicar, muito difcil deixar de fazer programa. Agora j faz quase dois anos que eu no fao programa mesmo. Mas h dois anos atrs, mesmo quando estava casada, aconteceu. Sempre que eu encontrava um antigo fregus no centro de Goinia, os homens com quem antes eu saa, eles me diziam: E, a? Vamos sair, rapidinho? Ento eu ia, porque estava precisando de dinheiro, precisando das coisas, ningum agenta a presso. Mesmo estando empregada eu continuava a me prostituir, pois ganhava pouco e tinha sonhos que ainda queria realizar. Se eu tivesse ouvido as pessoas que conversaram comigo naquela poca, eu tinha um negcio prprio hoje em dia, nem que fosse um puteiro, mais eu tinha. Todo mundo falava pra mim: Andria, voc ganha dinheiro demais, o que que voc faz do seu dinheiro? Todo mundo falava, no mentira no, mas esse um dinheiro maldito. Voc no v o que voc faz. Na mesma hora que voc est com oitocentos reais no bolso, voc est sem nenhum centavo. um dinheiro maldito. um dinheiro que no rende. Eu comprava trs, quatro peas de roupa e j no tinha dinheiro. Eu no comprava roupa cara, no. A cala mais cara que eu j usei na minha vida foi de cinqenta reais. que o dinheiro no rende e no tiro s por mim. assim com todo mundo, com todas as meninas. Talvez seja porque eu gastava muito com drogas tambm. Mas as donas das casas ganhavam dinheiro. Tinha dia que eu chegava l em baixo e a Keila falava pra mim: Voc vai entrar pra dentro desse bar e no vai colocar o p do lado de fora. No mesmo minuto, eu entrava e ajudava ela. Depois eu fechava o bar e ia pra boate. Tinha dia que, quando fechvamos o caixa, tnhamos
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feito dois mil reis, isso principalmente nos sbados. A noite que rendia menos rendia mil e duzentos Reais. Tudo s de quarto, cerveja, dose, cada cerveja custava trs reais. O quarto era vinte. S que eu tambm tinha meus objetivos. Eu queria acima de tudo construir uma casa para minha me, eu tinha muita vontade de fazer isso, no s tinha como tenho at hoje. Construir uma casa boa pra minha me, ter uma casa pra mim e ter um carro futuramente e um negcio. Eu pensava em tudo, pensava em ter um salo de beleza ou montar um puteiro. Depois que eu tive a minha filha, eu fiquei preocupada com algumas coisas que haviam acontecido. Eu fiquei com um certo medo, um certo receio. Tudo tem seu lado bom, mas tambm tem aquelas partes que foram to horrveis que a gente quer esquecer. Eu lembro que numa das noites que eu estava numa boate em Escada, em Pernambuco, eu cheguei a quarenta e dois graus de febre porque eu estava com uma gripe fortssima. Me lembro que o gerente chegou no quarto e falou que ele no era obrigado a dar comida pra puta ficar dormindo e mandou eu levantar. Ento eu levantei queimando de febre porque eu estava muito gripada, talvez seja por causa da temperatura que muda totalmente daqui pra l e tambm porque eu ficava noites e noites s bebendo, bebendo. Quando ele falou isso pra mim eu comecei a chorar. Mas eu nunca sofri nenhuma violncia, s tive brigas com outras mulheres. Eu j fui ameaada vrias vezes, mas machucada no. Quando voltei pra Goinia, eu terminei a 8. srie pelo Programa de Alfabetizao de Jovens e Adultos (AJA). Eu terminei a 8 srie e fiz o 2 grau, em Curitiba-PR. Eu s ia pra l pra fazer trabalho e prova. Eu fiz tudo assim pelo ensino distncia. O rapaz ia, trazia material pra mim, eu estudava, depois fazia os trabalhos e as provas. Quando terminei, prestei vestibular na UNIP43, fui a 3 colocada. Tambm prestei vestibular na Catlica44 e fui a 11 colocada. Prestei vestibular trs vezes. Assim, comecei a ter objetivos na vida, inclusive hoje o meu dinheiro rende. Hoje eu sei cuidar dele. Eu no consegui construir a casa da minha me ainda, mas eu j tive uma casa, s que acabei tendo que vender. Eu comprei essa casa com o dinheiro que eu cheguei a depositar que foi pouca coisa e com uma parte do que o meu pai me deu. Meu pai me deu na poca dez mil e eu tinha cinco mil, s que assim... Sabe quando voc coloca dinheiro no banco e nunca vai l pra ver? Pois era desse jeito o meu dinheiro: eu nunca fui l pra ver. Eu vendi a casa quando me separei do meu marido. Porque se eu continuasse l ele iria me perseguir tanto que eu acabaria voltando a viver junto com ele. Ento eu j vendi e comprei um lote pra, se Deus quiser, construir. No final do ano, eu quero estar com a minha casa pronta. Mas eu quero ajudar a minha me. Hoje eu tenho outros objetivos: eu quero um carro, quero ser respeitada.
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Depois que eu tive minha filha eu ainda bebi, s que nunca maltratei meus filhos bbada. Depois que eu tive eles eu mudei muito. Eu bebo hoje em dia e no vou dizer que no bato nos meus filhos, no. Quando precisa, eu bato, principalmente no meu filho, que terrvel. Ele tem dois anos. Minha me hoje totalmente diferente. ela que fica com eles enquanto eu trabalho e eu fico magoada porque hoje ela faz tudo o que eles querem. Ento acaba que atrapalha tambm. Criana voc no pode maltratar, mas tambm no pode ser fazer tudo que eles querem. Ela ama muito mais os netos do que os filhos. Hoje ela no bebe, ela fuma, mas ela no bebe.
Luana tinha 18 anos quando nos concedeu esta entrevista, em 25 de outubro de 2004. Nosso primeiro contato com ela foi em seu prprio local de trabalho, um bordel, localizado em Campinas, antigo bairro de Goinia45. Em companhia de um educador, vinculado a uma Organizao No Governamental46, fui visitar a Casa Vip, onde ento trabalhava Luana. Chegamos no incio da noite, pois, nesse horrio, era pequeno o fluxo de fregueses, o que tornava mais fcil nosso acesso s meninas a quem pretendamos propor a entrevista. Apesar de nossas precaues, no tnhamos certeza de que elas se disporiam a falar conosco. A noite estava apenas comeando, mas o ambiente da Casa Vip era sombrio e a
iluminao fraca envolvia o lugar na penumbra. As meninas, cuja beleza contrastava com a decadncia do lugar, j estavam arrumadas para a noite, vestindo roupas sumrias e todas muito desconfiadas. Elas se encontravam reunidas numa sala espaosa, com vrias mesas, que lembrava um bar da periferia, embora fosse um bar privado. Tentamos iniciar um pequeno dilogo com uma das garotas. Foi intil, ela logo disse que no estava interessada. Naquele horrio, havia apenas dois homens. Um deles, provvel fregus, bebia cerveja com uma das moas. O outro, com quem tivemos a primeira conversa, era o gerente47. Ele se apresentou simplesmente como Jnior e nos explicou longamente que sua profisso no era desonrada. Alegou que sua atividade de gerente da Casa Vip em nada diferia
- Neste bairro, que antecedeu a criao da cidade de Goinia, localiza-se, ainda hoje, o baixo meretrcio, o chamado trottoir ou prostituio de rua. Mas Campinas conhecida tambm como a regio da cidade onde se concentram os bordis. 46 - Esta ONG chama-se Casa da Juventude, est vinculada Igreja Catlica, e realiza trabalhos relacionados com os problemas da juventude. 47 - O Gerente da Casa Vip informou-nos que somente um assalariado. Ele considera seu salrio bom, mas nos disse que rico o dono do lugar, proprietrio de vrias outras casas de prostituio.
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do trabalho de um gerente de supermercado. Para provar que estava certo, nos mostrou um caderno onde fazia o controle do trabalho das meninas a cada noite. Alm disso, precisava controlar o tempo que cada menina ficava no quarto com os fregueses, devendo ainda ficar atento a qualquer violncia que, eventualmente, pudesse ocorrer. Ele, veementemente, recusava o rtulo de cften ou qualquer coisa do gnero. Por fim, Jnior confessou que quase no tinha estudo. Segundo ele, embora fosse experiente e se considerasse apto a exercer a funo de gerente em qualquer estabelecimento, a ausncia de escolaridade formal o impedia de conseguir um emprego que lhe possibilitasse ganhos semelhantes aos que obtinha na Casa Vip. Depois, Jnior nos falou da perseguio aos bordis de Goinia desencadeada pelo Ministrio Pblico. Disse que seu salrio havia sido rebaixado em mais de cinqenta por cento devido perseguio sofrida. De acordo com ele, essa onda moralista era intil e apenas acabaria com a concentrao das casas de prostituio em um mesmo local, no caso, a regio de Campinas, espalhando-as dissimuladamente por toda a cidade. Nas palavras do prprio Jnior, Goinia se tornar um grande prostbulo, caso o Ministrio Pblico insista nesta poltica. A ns pareceu que Jnior tentava sondar se ramos, de fato, pesquisadores ou agentes disfarados do Ministrio Pblico. Por fim, pareceu se convencer de que nosso real propsito era mesmo a pesquisa. Explicamos-lhe por que queramos entrevistar jovens cujas histrias de vida foram marcadas pela violncia e que haviam ingressado na prostituio antes dos 18 anos. Ele, ento, pediu que deixssemos o nmero de nosso telefone, pois falaria com algumas das meninas e depois nos ligaria. Ele tambm nos deu o nmero de seu celular. Jnior nunca nos procurou e, nas vrias vezes em que lhe telefonamos, ou ele no atendia, ou atendia e nos dizia que ainda no havia falado com nenhuma garota. At que um dia nos disse que uma menina, Luana, no se importava de nos contar sua histria. Luana nos atendeu durante a tarde, em sua residncia, nas proximidades da Casa Vip. Explicou-nos que ela e as colegas haviam alugado aquela casa justamente por ficar prxima ao seu local de trabalho. Disse que no estava trabalhando naqueles dias na Casa Vip porque o namorado a estava ameaando de morte e, de forma bastante cordial, se disps a falar sobre sua vida. Contou que nasceu em Goinia e foi criada pelos pais at os cinco anos, quando eles se separaram. Comeou a estudar com apenas quatro anos de idade, na escola Aprender para Viver, no Jardim
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Curitiba48. A memria da violncia, direcionada a sua me, mas que nem por isso deixava de atingi-la, comeou a ser forjada bastante cedo:
Meu pai bebia e era violento, mas s com minha me. O meu irmo mais velho que eu, quando tinha uns oito anos, queria entrar no meio, mas o meu pai falava que se ele entrasse iria apanhar tambm e por isso ele no entrava. Eu tinha quatro anos quando eles se separaram. Nesse tempo foi muito difcil porque a minha me trabalhava e nos deixava sozinhos e ainda tnhamos que fazer os deveres de casa: eu lavava as vasilhas e o meu irmo limpava a casa. E estudava. Meu pai casou com outra mulher quando se separou da minha me e teve outra filha. Se separou desta mulher tambm nove anos depois pelos mesmos motivos, ou seja, por causa da violncia. Ele batia muito nela e eu tenho uma irm de nove anos deste outro casamento dele. E quando ns amos para casa dele no final de semana, ele sempre batia na mulher dele, na nossa frente, de mim e de minha irm. Por isso eles resolveram se separar. Depois desses nove anos, ele quis voltar pra minha me. Eu j estava com dezessete anos quando meus pais voltaram a viver junto. Mas antes teve um final de semana que ele foi buscar eu e meu irmo. A mulher dele no estava em casa e ele bebeu muito, ele sempre bebia muito. Agora ele no bebe mais. E ele s ficava violento se provocassem ele, caso contrrio, ele era normal. Fomos pra casa dele, mas a mulher dele estava viajando. Ento ficamos assistindo uns filmes e ele bebendo. Eu no me lembro o que aconteceu, s lembro que ele bateu muito em meu irmo. E isso me gerou uma mgoa to grande que, depois disso, eu no conversei com ele mais. E antes dele voltar pra minha me ele ficava assim de trs em trs meses, de dois em dois meses indo l em casa, querendo voltar e a minha me falava que ele podia voltar porque ela ainda gostava dele. S que eu falava que se ele voltasse eu saa, era ele entrar por uma porta e eu saa pela outra. Minha me no acreditou muito no. E no dia em que ele voltou, eu falei: Olha, eu sou independente e ningum manda em mim pra nada. Eu vou e volto pra onde eu quiser e, se ele entrar aqui, ele vai querer me puxar e eu no vou deixar. Nessa poca, eu ainda estava estudando, fazia o 2 ano colegial no Colgio Militar. Eu queria ser psicloga. Mas a minha me foi me mostrando que o curso era muito caro. Ento eu resolvi que queria passar pra Comunicao Social na Universidade Federal. Ento vieram as dificuldades, prestei vestibular e no passei. Por isso desisti. Bom, mas meu pai voltou e ns sentamos e conversamos. Ele falou que no ia acontecer nada, que a minha vida iria continuar normal, eu poderia ter meus namorados do mesmo jeito. Eu trabalhava de garonete num
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bar perto de casa, l no Jardim Curitiba. Antes eu j tinha trabalhado em uma loja tambm de vendedora. Como eu trabalhava s de quinta a domingo noite, nos primeiros quinze dias eu acordava e j estava tudo arrumado. O almoo pronto, o que eu quisesse tinha. Eu sempre amei batata frita e todos os dias tinha. Ele voltou desempregado, ento tinha tempo e fazia tudo o que eu queria. Depois comeou implicar com o meu namorado, dizia que ele era folgado, que isso e aquilo. Eu falei: No est do jeito combinado. Eu s conversava com a minha me, eu nunca conversava com ele. Foram tantas implicncias que acabei terminando com o meu namorado por causa disso, mas logo comecei a namorar com outro. Ento ele comeou a implicar tambm. Falei: Eu vou sair de casa. No outro dia, eu sa e fui morar com a Elizngela que tinha trabalhado junto comigo no shopping. Ns moramos nove meses juntas, at que eu engravidei desse ltimo namorado, o Rodrigo. Depois que engravidei, ele no queria que eu trabalhasse no bar porque era noite e estava me prejudicando bastante. Ento sa. Fiquei sem trabalhar. Como eu morava de aluguel e no estava podendo pagar, a minha me foi na minha casa e disse: Se voc quiser voltar, voc pode voltar. Eu voltei. Eu estava grvida de dois meses.
No comeo, eu fiquei sem graa porque eu sa e depois voltei. Nos primeiros quinze dias foi horrvel, parece que todo mundo me olhava de lado por eu estar grvida e ter voltado pra casa. A minha me no, ela era a nica que me apoiava. E por eu estar grvida de uma pessoa que o meu pai no gostava, veio a implicncia. Eu passava muito mal e queria que o meu namorado me levasse ao mdico. Mas quando ele chegava em casa o meu pai j fechava a cara, no conversava e devido a essas presses todas, faltando dois dias para completar trs meses de gravidez eu perdi o beb e a minha me me deu a maior fora. O meu pai j estava se acostumando, mas achou melhor assim. Eu recomecei a trabalhar e falei que iria sair de casa de novo. Eles no acreditaram. No voltei para o bar onde eu trabalhava. Um dia, fui casa da Elizngela e reclamei pra ela que eu estava sem trabalhar e ela falou que estava trabalhando num lugar que ganhava bem. Ns sempre conversamos sobre isso e eu sempre falava que se eu tivesse algum que fosse comigo, eu iria, porque sozinha eu no tinha coragem de fazer programa. Foi quando ela me falou: Eu estou indo ao lugar tal e se voc quiser ir comigo.... Mas eu falei: Eu no tenho dinheiro nem pra ir. Ela falou assim: Eu pago a sua passagem. Ela pagou e eu vim trabalhar, fazer programa. Nessa poca, eu estava namorando e morando na casa dos meus pais. E eu pensava: Mas como que eu vou falar que eu estou num lugar assim? Geralmente noite. Ento a Elizngela me falou que era s eu entrar a uma hora e sair cinco e meia, seis horas. No primeiro dia eu vim conhecer essa casa, a Casa Vip, noite. Eu cheguei por volta de sete e meia e fiquei at duas horas da manh e j fiz programa. Ento eu me empolguei porque no primeiro dia j ganhei dinheiro. Pensei que nos outros dias seria melhor. Eu passei a
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vir todos os dias a uma e meia da tarde e ia embora seis horas. No primeiro dia eu fiz um programa, no segundo dia eu j fiz dois, no terceiro dia eu fiz quatro programas e assim o dinheiro ia s rendendo. Ento eu fiquei empolgada porque para quem uns dias antes no tinha nem um real no bolso nem pra pagar o nibus, eu j estava com muito dinheiro. Eu me lembro que na primeira semana eu falei pra minha me que eu tinha arrumado um servio numa loja de bijuteria aqui em Campinas e para o meu ex-namorado, o pai do meu beb, eu tambm falei que estava trabalhando em loja. Mas j estava ficando difcil aquilo de fazer programa e viver se escondendo, fiquei com medo de um dos amigos dele descobrissem e contassem e, assim ele poderia at querer me matar, sei l. Eu fiquei pensando nisso e terminei com ele. Todos os dias eu ficava at sete e meia, oito horas, s vezes ficava at nove horas, eu ligava pra minha me e inventava uma desculpa. Quando eu queria ficar at de madrugada, falava que iria viajar com a minha patroa e ficava at duas, trs horas da manh e dormia l na casa mesmo. O Jnior, o gerente da casa, dormia l, dormia todo mundo l. Ento fui ganhando dinheiro e mais dinheiro e fiquei empolgada com aquilo. Foi ento que as meninas falaram que ns poderamos alugar uma casa aqui em Campinas porque ficaria mais perto. Achamos essa casa aqui e alugamos. Antes eu j tinha ficado at uma semana sem ir em casa. Eu falava pra minha me que estava na casa da minha patroa, que estava na casa das meninas, que tinha um churrasquinho tal dia, que isso e aquilo e s ia l em casa buscar roupas quando ela no estava. Eu telefonava e quando era meu pai que atendia, eu nem falava e desligava o telefone. Mas a ele arrumou um servio bem aqui pertinho. Meu pai motorista. Um dia eu falei pra minha me que a gente ia num aniversrio do primo do Jnior, s que ela sabia que a Elizngela namorava o Jnior e que ele era gerente de uma casa de programa. S que no tinha aniversrio nenhum, eu estava na casa. Da quando eu estava sentada na rea externa da casa, meu pai passou e me viu l dentro. Como eu j falei, ele trabalhava l perto, na rua Jaragu. Ele me viu s que no disse nada. Como eu estava de costas, eu no vi ele, s ele me viu. No outro dia tarde, eu estava em casa e ele me ligou: Por que voc mentiu pra sua me?. Eu falei: Menti pra minha me? Ento ele falou que tinha me visto na casa vip. Eu fiquei desesperada e na hora inventei uma desculpa, que era aniversrio realmente e que ns passamos pela casa s para esperar um rapaz que substituiria o Jnior pra ele ir festa. Ficou por isso mesmo. Umas duas semanas depois, alugamos a casa para morar, eu deixei ento de dar explicaes para os meus pais, tudo ficou mais fcil. Eu ficava na Casa Vip at de madrugada. Um dia um amigo da minha me passou e me viu l dentro. Ele contou pra ela e ela me ligou: Mas o que voc estava fazendo naquela casa? Eu falei: Eu conheo as meninas de l e s vou l pra conversar, jogar baralho e tal. Ela perguntou: Mas voc no trabalha l? Eu falei: No, eu no trabalho l. O assunto morreu. Ento eu comecei a namorar outro cara. Ele me conheceu na Casa Vip e comeamos a namorar. Ele era muito legal, brincalho, mas responsvel. Tinha 23
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anos. Levei ele pra conhecer meus pais. Foi o nico que o meu pai gostou de conversar, de cumprimentar e tal. Passamos a ir na casa dos meus pais todos os domingos. Eu continuei trabalhando. Um dia, eu estava no trabalho e ele me chamou pra sair. Eu concordei e ento ele falou: Eu vou em casa tomar banho e voc vai pra sua casa. Eu volto e te pego dez e meia. No trabalha hoje mais no. S que eu e as meninas estvamos com um plano de comprar uma geladeira e faltava a minha parte do dinheiro. Justamente quando ele foi embora, pintou um programa e eu fui fazer. Fiz o programa e assim que eu sa j tinha outro me esperando. E eu fui fazer o programa. Quando deu dez e meia, ele chegou e eu ainda estava l. Ele brigou comigo, me xingou e falou que eu nunca fazia nada que ele me pedia. Fui explicar que eu precisava do dinheiro pra comprar a geladeira e ele falou: Era s voc me pedir o dinheiro que eu dava pra voc. Falei: Mas eu nunca te pedi nada, por que eu vou pedir agora? Ento ele falou: Ah, ? Se o dinheiro vale mais do que ns dois, ento est bom. Ele tirou seiscentos e cinqenta reais do bolso e me entregou. Falou assim: Toma aqui, fica com o dinheiro. dinheiro que voc quer? Ento fica com o dinheiro e nunca mais olha na minha cara. E ns vamos sair. Eu concordei e devolvi o dinheiro dele.
Violncia e bordel
Aproximei-me dela. Comecei por arrancar-lhe das mos os pacotinhos de miangas e atirei-os longe. Em seguida, agarrei-a pelos cabelos e esmurrei-a tanto, mas tanto, que quase quebrei minha mo. Ela ps-se a gritar e s se calou no instante em que a joguei com um safano sobre a cama. Disse-lhe ento as coisas mais duras, mais cruis. Ela enrolouse nas cobertas, como um bichinho apavorado, escondendo o rosto que sangrava. E no me respondeu.. LYGIA FAGUNDES TELLES
Este um trecho do conto Um corao ardente, de Lygia Fagundes Telles. Trata-se de uma histria sobre os mistrios do corao ardente de um velho. Na narrativa, ele fala de sua angstia por ter transmitido este tipo de corao ao prprio filho que, com isso, sofreu, vindo a se suicidar. Em sua juventude, conta o velho, muitas vezes procurou salvar o mundo. Certa poca, depois de ter abandonado as iluses da luta partidria para transformar a sociedade, resolveu que sua misso seria libertar uma prostituta do inferno do mundo da prostituio. Dirigiu-se, ento, a um prostbulo, um casaro situado no alto da Ladeira da Glria, pardo, velho e cheio de ratos. Nele, conheceu Alexandra, uma jovem completamente analfabeta e, com pacincia e obstinao,
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colocou seu plano em prtica. Precisava, primeiro, prepar-la para que ela renunciasse ao comrcio maldito. Quando, por fim, Alexandra lhe disse que no queria sair, que gostava da vida que levava, o ardente corao do narrador explodiu em violncia e ele a agrediu brutalmente, pois ele no conseguia compreender como a prostituio, para sua pupila, poderia tratar-se de uma escolha. Seria assim to misterioso o corao das pessoas?
O amigo que ia sair com a gente j estava esperando. Eu fui at em casa, me arrumei e samos. No caminho do bar ele ligou pra umas quinze meninas. Vi que ele estava querendo implicar comigo e quando chegamos no bar eu comecei a fumar pra implicar com ele tambm. Ele falou assim: Se voc fumar eu vou dar um tapa na sua cara. Eu no acreditei, ento ele ergueu a mo pra me bater e eu joguei o cigarro fora. Ele ento me mandou sentar perto dele, eu sentei, e ele me disse: No trabalha mais no. Eu falei: Como que eu no vou trabalhar mais, sendo que eu tenho que comer, tenho que me vestir, tenho que pagar meu aluguel, tenho as minhas contas? Ele falou: Eu vou te dar um carro. Eu vou dar o que voc precisa pra voc no trabalhar. Com o tempo livre, voc faz uns currculos, entrega, sei l, arruma um trabalho. Enquanto voc no arruma trabalho, eu vou te bancar. Falei assim: Ento t. E ele disse: Mas eu no quero que voc coloque mais os ps naquela casa. S que ele nunca bebia e nessa noite ele j tinha bebido uma margarita e eu no acreditei muito no. Ele casado e jura pra todo mundo que no gosta da mulher dele. Mas enquanto ele est na rua ou aqui comigo, a esposa est l trabalhando mas eu sou a mulher que ele gosta. Nesse dia, ele falou pra eu dar um tempo que ele ia resolver nossa situao, ou seja, se separar dela e casar comigo. Ele dormiu l em casa nesse dia. No outro dia cedo ele falou: Aquilo que eu falei pra voc ontem eu no esqueci no. Vou cumprir minha promessa. Isso aconteceu numa sexta-feira e eu no fui trabalhar, fiquei a semana toda sem trabalhar. Na outra semana, na quinta-feira, liguei pra ele e falei: Olha eu vou descer l na Casa Vip.... Porque eu ficava em casa sozinha todos os dias, o dia inteirinho e a noite. Ele vinha aqui todos os dias, mas era coisa de meia hora, uma hora e ia embora. As meninas iam pra l e eu ficava sozinha. No tinha televiso, no tinha som, nada.... Eu expliquei pra ele: Eu vou descer l porque eu estou aqui sozinha e horrvel. S vou conversar um pouco com as meninas. Ele falou: No pra voc ir no. Eu desliguei o telefone e pensei: O que que tem eu ir l? Eu no vou fazer nada, ele tem que confiar em mim. Ento eu mandei uma mensagem para o celular dele: Estou descendo l s pra conversar, ficar em casa sozinha entediante, confie em mim. E desci. Eu fiquei l fora, na rea, conversando com o Jnior e com a Elizngela e jogando no celular. Ele chegou e olhou pra mim. No tinha ningum na casa, s tinha ns mesmo. Ele ficou plido, saiu de novo e voltou,
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pegou no meu brao e me levou pra dentro do banheiro: Eu falei que no era pra voc vir pra c. Eu respondi: Mas eu te mandei mensagem falando que eu viria porque l em casa estava ruim sozinha. Ele disse: Eu falei que no era pra voc vir pra c, voc no acredita no que eu falo?. Ele tinha me falado que se me pegasse l dentro ele iria me matar. Ele falou: No olha mais na minha cara, no me liga mais, o dia que voc me ligar eu venho e te mato. Eu sa de dentro do banheiro e sentei l fora. Ele saiu supernervoso, pegou no meu brao e falou assim: Se eu fosse voc, eu iria embora agora. Eu levantei e fui. Quando eu cheguei na primeira esquina, ele estava atrs de mim e eu mexendo no celular. Eu no me lembro no que eu pensei, mas eu ri. Pra qu? Ele atrs de mim falou: Voc est rindo de mim? Ento deu um tapa na minha cara e eu ca, meu celular caiu, minhas coisas caram. E ele: Voc no acredita no que eu falo, mas agora voc vai ver com quem voc est brincando. No com moleque no, com homem. E comeou a me puxar, a me bater, a puxar meu cabelo. Ele me levou de volta pra casa e comeou a brigar comigo, a me xingar de vagabunda. E eu falando que ele tinha me conhecido l, que eu no estava fazendo nada, estava fazendo tudo direitinho, estava at parecendo uma esposa de tanto que eu estava na linha. Ele continuou puxando meu cabelo e falou: Se arruma que vamos sair. Falei: Sair com um louco desses? Um psicopata? No vou, no. Eu estava com uma blusinha branca, com uma cala jeans e com sandlia. Quando eu disse que no ia sair com ele, ele falou: Vai, sim. Vai se arrumar ou ento voc vai desse jeito que voc est. E saiu me puxando pelos cabelos e me empurrou at na Casa Vip: Voc no quer ficar aqui? Ento voc vai ficar aqui. Tentei voltar pra casa, eu estava descala, toda suja e a minha blusa tinha ficado marrom porque eu tinha cado no cho. E ele comeou a me puxar para a avenida Castelo Branco. Ligou pro irmo dele vir trazer o carro, me ps dentro desse carro falando que ia me matar, que eu ia ver, que eu no estava brincando com moleque, era com homem e eu ligando para as meninas da Casa Vip desesperada, que ele ia me matar. Fomos para um lugar horrvel, uma escurido. Acho que era uma invaso49 que tem por ali perto do Parque Industrial. Ele me levou pra casa de um amigo dele, que um monstro de horrvel, mas no achou esse homem. Ento ligaram pra ele falando que as meninas estavam com a ROTAN50 atrs dele porque ele tinha me pegado e me levado e ningum sabia aonde que eu estava. Como ele tinha desligado meu celular, ligaram para o celular dele. Ele ligou para o irmo dele pra ele ir levar a moto. Como falaram que a polcia estava atrs do carro dele, ele quis trocar pela moto para despistar.
Ento ele disse: Agora ns vamos dar umas voltas, ns vamos sair, voc vai passar a maior vergonha da sua vida. Eu estava toda suja, descala, descabelada e ele indo para o rumo da BR. Falei: Pra onde que
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- O termo invaso, na linguagem usual dos moradores de Goinia, significa favela. - A ROTAN faz parte da corporao da polcia militar do Estado de Gois e responsvel por operaes especiais de represso ao crime.
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ns vamos? Ele apontou para o lado da Eclipse e eu falei: No vou, olha o jeito que eu estou. Ele falou: Voc vai. Eu vou te jogar l dentro. Eu quis pular da moto. Eu fiz meno de pular, mas ele me segurou pelo cabelo e eu ca de lado na moto. Ele falou: Voc monta nessa moto agora ou voc quer que eu te mate aqui?. Eu montei na moto de novo, da fomos pra uma casa que ele tem l no Setor Solar Bougainvile. Ele falou que eu iria tomar banho, trocar de roupa e ns iramos sair. Chegando l, ele j estava mais calmo e falou: Pode ficar tranqila que por enquanto eu no vou te matar no, mas voc gosta de puteiro, no ? Ento, vamos fazer de conta que voc est num puteiro. L voc bebe no bebe? A ele abriu uma latinha de cerveja e eu falei: Voc sabe que eu no bebo. Eu no bebo cerveja, s vinho muito raramente. Eu sou pirracenta tambm. Eu estava ali quase morrendo, mas no fiz o que ele queria. Ele falou: Ou voc bebe ou eu vou jogar na sua cara. Eu falei: No bebo. Ele pegou o copo pra jogar na minha cara e a eu bebi um pouquinho. Ele falou: Fuma tambm. Eu tinha parado de fumar por causa dele e falei: Voc sabe que eu parei de fumar. Ele falou: Pois agora voc vai ter de fumar. Voc no voltou para o puteiro? Ento voc bebe e voc fuma. Sorte sua que eu no comprei cigarro, seno eu ia fazer voc fumar um atrs do outro. Ento ele pegou uma coisa, acho que era mato, sei l o que e enrolou num papel. Falou: Agora voc vai fumar. Eu disse: No vou no. E ele: Ah, voc no vai fumar, no? Ento deixa que eu bebo e fumo. Eu no bebo e no fumo, se eu beber, como ser que eu vou ficar, vou ficar doido, no vou?. Eu estava chorando, desesperada, com medo dele porque eu nunca tinha visto ele daquele jeito. Ento ele apagou o cigarro que ele tinha feito e falou: Vai tomar banho. Falei: No vou. Eu vi que ele estava mais calmo. Ele pegou a toalha e levou pro banheiro para eu tomar banho. Eu tomei banho rapido mesmo, bem rpido e ele falou: Volta porque voc no tomou banho direito. Pode ir tomar banho. Pode ficar calma, eu no estou nervoso no. Tomei banho de novo. E ele: No, voc no lavou o cabelo, voc no tomou banho. Ento eu pensei que ele no estava mais nervoso no porque j est fazendo graa. Ele falou: Eu vou te ensinar como que se toma banho. Eu vou te dar banho. E ele foi tomar banho junto comigo. Eu chorando com medo dele fazer alguma coisa comigo. E se ele me matasse ali dentro do banheiro? Ningum saberia aonde que eu estava. S nisso que eu pensava. Ele foi lavar o meu cabelo. Eu comecei a chorar e ele comeou a me beijar. E eu falei: Voc doido. Ele falou: Voc que . Voc brinca com fogo. Terminei de tomar banho, vesti a roupa ele falou assim: Eu vou te levar pra sua casa. Eu falei: Mas fez essa tempestade toda e nem pra me matar? Ele me trouxe e quando chegou aqui e ele falou: Como que a gente vai ficar? Eu estava toda roxa, meu brao todo roxo. Falei: Como que a gente vai ficar? A gente no vai ficar. Eu no estou doida. Eu desci da moto rpido, vim entrando, abrindo o porto e ele: Pare a. Volte aqui. E eu com medo de voltar: Tchau, amanh a gente conversa. E ficou por isso mesmo.
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Ele foi embora e eu fiquei em estado de choque. Chorei a noite inteira desesperada. E as meninas todas me ajudando, me consolando. Dois dias depois, ele apareceu com a maior cara-de-pau e pediu desculpa, pediu perdo. Disse que eu no sabia com quem eu estava lidando e que me amava. Eu nem queria ver a cara dele. Um dia eu estava na Casa Vip, ele chegou, me viu l e no fez nada. Me cumprimentou e ficou mandando mensagem para o meu celular: Eu te amo, eu te amo, sim. E eu: Ama nada, quem ama no faz o que voc fez. Mas ele continuou insistindo e mesmo depois de tudo que ele fez comigo eu ainda gosto dele. No sei por que, mas eu ainda gosto dele. Depois disso, eu continuei fazendo programa escondido. Eu acho que se ele souber vem aqui e faz escndalo. Nessa poca, eu conheci um amigo do Jnior, o Fernando. Eu fiquei f dele, ele j era meu f e ele me chamou pra sair. A gente trocou telefone e eu sa com ele. Fiz programa com ele agora h pouco tempo, assim sem ningum saber. Ele me pagou e tal. No sbado seguinte foi aniversrio do filho da minha amiga e a gente comemorou aqui em casa. Esse meu namorado, inclusive, veio. De pirraa, eu comprei um vinho e comecei a beber. Ele deu vinho pra todo mundo e no me deixou beber. Ento comprei outro vinho. A ele viu que eu tinha dinheiro, s que tambm no me perguntou. Ontem ele veio aqui. Quando abri o porto, meu celular tocou em cima da mesa. Era o Fernando. Ele quis saber quem era. Eu falei: um amigo meu. Ele atendeu: Oi, aqui o namorado da Luana. O que voc quer?. O Fernando desligou. Meu namorado ficou bravo demais. Eu falei pra ele: Mas por que voc falou que era meu namorado? Voc no meu namorado, voc no nada meu. O que voc quer?. O Fernando ento ligou de novo e eu disfarcei. Desliguei o celular e continuamos discutindo aqui. Ele se acalmou e eu falei pra ele: Ns dois no temos nada a ver mais, eu s te chamei aqui pra te comunicar que eu vou voltar a trabalhar. Minhas contas esto vencendo, meu aluguel est vencendo, no tenho dinheiro pra pagar o aluguel, no tenho dinheiro pra fazer nada e eu no posso esperar as contas vencerem pra depois arrumar o dinheiro no. Tenho que arrumar o dinheiro antes.Ele perguntou: Que dia que o aluguel vence? Respondi: Daqui h dez dias. Ele perguntou quanto que era o aluguel, eu falei o preo e ele disse: Voc vai voltar por causa disso? Falei: Vou, vou voltar por causa disso porque l pelo menos eu ganho dinheiro. Ele falou que se eu voltasse ele me matava. Eu respondi que ele no me dava nada, no me assumia, era casado e ainda queria mandar em mim. Que isso ele no ia fazer mesmo. Ento ele falou que iria contar pra minha me que eu era puta, que eu era vagabunda e onde que ele tinha me encontrado. Falei que ele podia contar, mas fiquei morrendo de medo. No outro dia ele me ligou: A que horas sua me chega do trabalho? Eu vou l conversar com ela. Pedi pra ele no me ligar mais e liguei na mesma hora pra minha me. Ela veio aqui e contei pra ela tudo que havia acontecido. Contei que ele tinha me batido e contei que eu estava l na Casa Vip. Ela perguntou se eu estava trabalhando e eu falei que estava. Abri o jogo pra ela. Contei tudo. Ela ficou muito chateada, magoada, lgico.
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Esse meu namorado ficou sabendo pela minha amiga que eu j tinha contado tudo pra minha me. Ento ele disse que s tinha falado aquilo pra me passar medo, que no ia contar nada. Todos os dias a minha me me ligava pedindo pra eu no voltar a fazer programa e eu dizia que no tinha voltado. Mas agora, infelizmente, eu vou ter que voltar a fazer programa. At que no ruim, nunca passei nenhuma dificuldade l dentro, eu me sinto segura l. Nunca passei por nenhum transtorno, tipo algum me xingar ou me desrespeitar s porque eu estou naquele lugar. Todos os meus clientes me tratam super-bem. Eles sempre pagaram o preo que pedi, entendeu? Por isso que eu juntei uma coisa com outra: l eu me sinto bem e ganho dinheiro. Ento pra mim est sendo difcil ficar sem ir l. Eu deixei de trabalhar na Casa Vip mais por medo dele. Porque desde que a gente comeou a se envolver eu gostei dele. Se ele no interferisse de nenhuma forma, eu continuaria indo do mesmo jeito, com ele ou sem ele eu iria do mesmo jeito. Eu ainda tenho meus projetos de vida. No momento eu s queria mesmo fazer um curso de telemarketing que eu adoro. Penso tambm em fazer vestibular. Queria comear a fazer Comunicao Social, mas no momento no vai ter como. como ele falou pra mim: Voc tem que traar um plano, um objetivo e chegar nele. Mas no momento eu estou to sem esperana de vida que eu no estou nem conseguindo planejar. Eu quero s me livrar das minhas dvidas e ficar bem, comprar alguma coisa pra mim. Eu tinha um sonho de comprar uma moto Bis, ter as roupas que eu sempre quis, essas coisas mais suprfluas mesmo. Depois que eu entrei nessa vida, a moto eu no consegui comprar por lerdeza minha mesmo porque gasto muito dinheiro -toa. As meninas falam que dinheiro que vem fcil vai fcil. No questo de dinheiro fcil, que vem fcil e vai fcil. No vem fcil de maneira nenhuma. A questo que hoje a gente ganha R$100,00, a a gente v uma blusa de R$110,00, compra a blusa e fica devendo os R$10,00. S que a gente no imagina que amanh no vai ter dinheiro pra comprar. Se hoje a gente ganhou R$100,00, amanh pode ganhar R$150,00. D pra pagar tranqilamente. Por isso a gente no mede as conseqncias dos gastos. Eu, por exemplo, ganhava numa semana R$ 700,00. Se tivesse guardado uns R$ 400,00 eu j estaria andando de BIS. Mas a questo que quando eu trabalhava e ganhava um salrio mnimo, comprava blusinha de R$10,00 e uma sandlia de R$5,00 porque eu economizava. Quando passei a ganhar muito dinheiro, comecei a comprar blusinha de R$15,00 e sandlia de R$70,00. Queria andar bem vestida, bem arrumada e no media preo. Eu j gastei muito dinheiro -toa, principalmente com comida. Mas no que o dinheiro vem fcil e vai fcil. porque a gente no tem controle. Mas tudo que eu quis, assim em relao a roupa, sapato, celular, jias, eu tenho. Mas acho que vale pena. Voc no precisa pedir dinheiro para ningum. Voc quer ir comer alguma coisa, voc vai l e come. Se voc quiser sair voc sai, se tiver chovendo no lugar em que voc est e voc estiver de nibus, voc pega um txi. No precisa de ningum pagar, voc mesmo paga. a independncia que o
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dinheiro d e o conforto tambm. No momento eu estou sem planos. Eu queria era casar. Na verdade eu no queria casar, eu queria ter um filho. Mas como eu fui criada sem pai (entre aspas), ento eu no quero ter um filho sem pai. Eu queria ter o pai e o filho. Gosto dessa vida, tem aventuras, a adrenalina muita grande e, alm disso, ganho mais do que j ganhei em todos os outros trabalhos que fiz. L na Casa Vip, o preo do programa depende da pessoa. Por exemplo, se chegar uma pessoa bem arrumada, ns cobramos caro. O preo mnimo do programa R$50,00 sem a chave do quarto51. Com a chave do quarto fica R$60,00. s vezes, o cliente pechincha e a gente deixa tudo por R$50,00 mesmo e s vezes at por menos. O cliente tem que pagar o quarto e pode ficar com a garota at 45 minutos. Tem pessoas que nem perguntam o preo e j do de R$80,00 a R$100,00, depende. tipo assim, voc est l e chegam vrios homens e a voc pensa: qual ser que se interessou por mim? Ento ele chama, voc vai, fica com ele e no tem aquele envolvimento, porque no tem tempo de pensar. to rpido que voc nem se envolve. Voc mente muito tambm. Fala que sente as coisas, mas no sente nada, voc fala que foi bom, mas no foi bom nada. Fala que a pessoa tem muitas qualidades e no tem nada. A gente se sente bem de ver que eles se sentiram bem, de ter conseguido satisfazer eles. J aconteceu com uma amiga minha, comigo nunca aconteceu de ficar s conversando e no acontecer nada. E j tiveram outras que ficaram l os quarenta e cinco minutos e no conseguiram dar prazer para o homem. No primeiro programa que eu fiz, eu fiquei sete minutos no quarto, ou seja, foi to rpido que eu me senti vitoriosa por ter ganhado um dinheiro em to pouco tempo. E assim voc no se envolve e fica conhecendo vrias pessoas. Essa adrenalina que eu te falei j vem com prazer e com medo, com perigo, porque j houve comigo casos de estourar a camisinha e de eu ficar super-preocupada e logo ligar para o farmacutico e pedir o remdio porque a camisinha estourou. adrenalina porque mistura o perigo com o prazer. Voc est ali e no sabe se o cara casado, se ele solteiro, se ele tem filhos, se ele vivo. No sabe nada dele e est ficando com ele e tambm no sabe se ele tem uma doena e se vai pass-la pra voc. Eu s transo de camisinha e mesmo assim a gente corre um certo perigo. Imagine sem. Um dia, eu fui numa festa com uns amigos meus da boate. Chegando l, eu vi um ex-coordenador do colgio militar onde eu estudei. Os meus amigos todos sabiam que eu era garota de programa e esse coordenador me reconheceu: Oi, tudo bem? Eu respondi: Tudo bem. Quando eu sa, ele comentou com os meninos: Nossa! Eu conheo essa menina h tanto tempo e no sabia que ela garota de programa. Quando eu estava na escola, eu j pensava em fazer programa, eu j conhecia a Cristiane, uma amiga minha
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- A expresso chave do quarto, nas casas de prostituio, segundo as entrevistadas, significa que o fregus, alm dos servios sexuais, deve tambm arcar com o aluguel do quarto para a realizao do programa.
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que trabalha no Real Prive52. Ela no estudava l, mas ia sempre na porta do colgio. Antes ela estudava l, mas depois saiu. Mas j fazia muito tempo que ela era garota de programa. Agora ela j quebrou porque comeou a usar drogas e virou lsbica. A idia que ns temos do colgio militar que muito rigoroso, mas no tem nada a ver no, s fachada. Drogas eu nunca usei nem pretendo.
A particularidade de Juliana est na dimenso pblica que a histria de sua vida assumiu. Com apenas 12 anos, ela ficou grvida de um homem de mais de 50 anos. A imprensa local, assim que tomou conhecimento do fato, passou a persegui-la. vidos por histrias que ajudam a vender jornais, alguns meios de comunicao a assediaram, a ponto dela ter de abandonar a escola. Dessa forma, alm da gravidez de risco (pela pouca idade e por estar esperando gmeos) Juliana teve que enfrentar um julgamento moral que cerceou-lhe qualquer privacidade. Mais grave, no entanto, o fato de ter sido o prprio Conselho Tutelar53 quem forneceu o endereo de Juliana ao jornal que desencadeou o escndalo:
Eu nasci dia 26 de julho de 1985 em Goinia, tenho dezenove anos. Eu morava com meus pais e meus trs irmos. Meu pai trabalhava de enfermeiro, minha me trabalhava como gari. Vivamos muito bem. Estvamos na escola e tnhamos de tudo, no precisvamos procurar nada na rua. Mas quando eu estava com mais ou menos seis anos, quase sete, meu pai matou um homem, um colega dele e foi preso. Da ele saiu do trabalho, a minha me tambm teve que sair, vendeu nossa casa, vendeu tudo pra tirar ele da cadeia. Quando ele saiu, foi embora e deixou a gente. Ele ficou preso s dois meses e oito dias. Mas tivemos que vender tudo pra tirar ele. Ele no ficou muito tempo porque ele tem problema de hansenase e no podia ficar. Os outros presidirios no aceitam quem tem hansenase dentro da cela. Ento o meu pai foi embora morar longe, no Mato Grosso. Ns ficamos com a minha me e comeamos a passar muitas necessidades. A minha irm foi morar com a minha tia, ficamos s eu e a minha irm mais nova. Na poca eu tinha sete anos. Continuei indo pra escola e tudo, l era muito bom, eu tinha muitos amigos. Mas estava sempre faltando coisas, faltando caderno, faltando comida... A minha me no tinha condies, trabalhava mas ganhava pouco e tinha que pagar aluguel, energia, gua. A gente via as colegas andar bem
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- O Real Priv uma boate, localizada nos arredores de Goinia, onde se pratica uma prostituio considerada de alto nvel. 53 - rgo permanente e autnomo, no jurisdicional, encarregado de zelar pelos direitos da criana e do adolescente. (Estatuto da Criana e do Adolescente, Art. 9).
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arrumadas e ficava cada dia mais triste. Eu no tinha nem mochila para carregar caderno. Ns somos trs irms, s mulher. A mais velha, como eu j disse, foi morar com a minha tia e ficou s eu e a mais nova com a minha me. Quando eu estava com nove anos de idade, meu pai apareceu de novo e foi morar mais perto de ns, por isso, um irmo do homem que meu pai matou me atropelou de moto. Acho que ele queria se vingar do meu pai. Eu estava com nove anos e quebrei a perna, quebrei todos os dentes da boca. A minha me se casou com outro cara. Tem agora a casa porque este segundo marido dela, morreu e deixou a casa pra ela. Ento quando eu tinha nove anos o meu pai apareceu e tinha um amigo dele que na poca era bem velho j, acho que ele estava com uns cinqenta e oito anos mais ou menos quando eu conheci ele. E quando eu estava com onze anos eu comecei a sair com ele. Foi com ele que perdi minha virgindade. Em troca de transar com ele ganhava algumas coisas como balinha e, s vezes, uma roupa. Ele era o melhor amigo do meu pai. Ele comeou a me dar as coisas e eu comecei a ir pra a casa dele. A minha me no sabia e nem meu pai. Ele morava sozinho.
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[...] a brincadeira, e nada mais, que est na origem de todos os hbitos. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se, devem ser inculcados no pequeno ser atravs de brincadeiras, acompanhadas pelo ritmo de versos e canes. da brincadeira que nasce o hbito, e mesmo em sua forma mais rgida o hbito conserva at o fim alguns resduos da brincadeira. Os hbitos so formas petrificadas, irreconhecveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror. [...] WALTER BENJAMIN
Este trecho pertence resenha de Benjamin, intitulada Brinquedo e brincadeira, sobre a importncia do livro Brinquedos infantis dos velhos tempos: uma histria do brinquedo, do alemo Karl Grber. Nesta obra, entre outros aspectos, o autor ressalta o mundo perceptivo da criana que, segundo ele, estaria marcado pelos traos da gerao anterior e se confrontaria com eles; o mesmo ocorre com suas brincadeiras, as quais seria impossvel situar puramente num mundo de fantasias infantis. Mesmo quando no imita os utenslios dos adultos, o brinquedo uma confrontao, no tanto da criana com o adulto, como deste com a criana. A importncia do brincar tambm foi objeto de estudo de Silva & outros (1989), para quem brincar fonte de crescimento, sade, alm de conduzir a relacionamentos grupais. Segundo as autoras, ao realizar essa experincia, o indivduo pode deixar fruir sua criatividade e utilizar sua personalidade integral. Dessa forma, o brincar representa uma possibilidade da criana postular o seu eu em relao ao contexto.
Ele me dava balinha, bombom, s vezes me dava cinco reais e eu j achava bom porque eu no tinha nada. Comeou a me dar roupas, calados e a minha me me perguntava de onde aquilo vinha. Eu trabalhava numa confeco, mas no era nada da confeco. Era tudo que ele me dava mesmo. Na confeco eu ganhava pouco e o dinheiro que eu ganhava l eu dava pra minha me pra ajudar. Eu era evanglica, mas conheci esse velho e ficava com ele porque ele me dava as coisas e a minha me no sabia. s vezes eu falava que ia pra Igreja, mas eu ia era para a casa dele. Quando eu estava com doze anos, eu descobri que estava grvida e no contei nada pra minha me. E era dele. Desse velho. Eu engravidei dele. Fiquei at quase os cinco meses de gravidez sem contar nada pra minha me. Mas eram gmeos e no tinha como esconder mais a barriga. S contei pra uma vizinha. Depois que eu contei para minha me, ela me levou ao mdico e ele disse que achava que eram dois e tudo. Mas
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no quis me atender por causa da idade e mandou a gente procurar o Hospital das Clnicas. Eu procurei. Eles fizeram o ultra-som e viram que eram dois mesmo. Ento comearam a cuidar de mim. Meu pai descobriu e quis me bater, no conversava mais comigo. A famlia teve que entrar no meio. E todo mundo se afastou de ns. Famlia por parte da minha me eu no tenho. S tem a me dela, ento s tenho famlia por parte de pai. Ento todo mundo se afastou e comeou a julgar a minha me falando que ela era culpada e no sei o qu. E ela no tinha nada a ver com isso porque ela no sabia. Mas ela se recusou a me colocar pra fora de casa como eles queriam. Ela minha me. Ento, eu tambm larguei o colgio, eu queria muito estudar porque o meu sonho era ser advogada. Achava muito bonito, nossa senhora! Quando meu pai foi preso eu passei a ter esse sonho por causa dele. Porque eu via aquilo ali e pensava se eu pudesse defender o meu pai, contar o que aconteceu porque eu estava junto no dia. O amigo dele discutiu com o irmo por causa de uma mulher. O meu pai estava com uma arma, ele s andava armado. Ele estava com uma faca. O meu pai foi falar com o amigo dele pra ele no fazer aquilo, porque ele estava brigando, queria matar o irmo dele. A ele deu um tapa na cara do meu pai e meu pai falou pra ele: No faz isso no, Divino, ns dois somos muito amigos, no faz isso no E a minha me puxando de um lado com a minha irm no colo e eu falando: Vamos embora, papai. E chorando do outro. A ele deu o segundo tapa e o meu pai falou: Se voc der o terceiro eu vou te matar. E ele falou: Voc no mata no, voc no homem. A ele foi e deu o terceiro tapa e o meu pai deu trs tiros nele. Dois acertaram no brao esquerdo e o terceiro acertou em cima do peito. Ele caiu no cho e j morreu. O meu pai foi preso, ele no correu, ficou l e esperou a policia levar ele preso.
Infncia e gravidez
Existe na sua cano algo de uma infncia breve e pobre, algo de uma felicidade perdida e irrecupervel, mas tambm algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensveis mas reais, e que ningum pode extinguir. BENJAMIN APUD BUCK-MURSS
As experincias, claro, marcam a vida de uma criana. Buck-Murss (2002) acredita que, em nenhum momento, Benjamin sugeriu que a compreenso da criana fosse verdadeira. Ele sugeriu, sim, que a infncia era capaz de capturar os objetos histricos em uma rede de significados para que a gerao adulta pudesse, subsequentemente, realizar um investimento psquico neles, emprestando-lhes um grau maior de atualidade do que no passado. Para ela, em Benjamin, as imagens do inconsciente so formadas como um resultado das experincias histricas concretas, e no (como nos arqutipos de Jung) biologicamente herdadas.
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Ento, como eu estava dizendo, quando eu engravidei o meu pai no quis mais saber de ns, principalmente de mim. Ele culpava muito a minha me. Eu passei a ir ao Hospital das Clnicas e o Ministrio Pblico ficou de resolver tudo, mas nunca resolveu nada. Quando ganhei os gmeos, tinha dois meses que eu tinha completado treze. Quando o meu pai soube que eram dois meninos, ele ficou muito alegre porque ele no tem filho homem e ento ele se aproximou, no tanto por minha causa, mas por causa dos meninos. Logo em seguida, mais ou menos quinze dias depois que meus filhos nasceram, eu conhecei um cara que trabalhava com o meu pai. E quando tinha dois meses que a gente estava junto eu fui morar com ele. Quando fiquei grvida eu fazia a 5 srie no Colgio Estadual Santa Marta, l na Colnia Santa Marta.Eu parei no meio do ano porque eu no agentava mais ir para o colgio. Os professores, s vezes, at que no falavam nada, mas os meus colegas falavam muito. Ainda mais quando saiu no jornal, todo mundo ficou abusando, me criticando, me apontando o dedo na rua. Eu j nem queria mais sair na rua, s chorava. Antes disso, eu tinha o sonho de ser advogada, mas a acabou tudo. Fazer o qu? Eu estava com aquele barrigo e no podia ir pra escola. Nem tanto por causa da barriga, mas por causa das crticas, eu nem saia na rua. S saia pra ir ao hospital mesmo. Minha histria saiu no jornal, no Dirio da Manh. Acho que eles me encontraram atravs do Conselho Tutelar. Foram l em casa primeiro, mas eu estava no servio da minha me na Colnia Santa Marta. Ento eles foram l. Comearam a conversar, perguntaram como era meu nome, se eu era mesmo a Juliana. Eu respondi que sim e eles falaram assim: Tem como a gente fazer uma entrevista com voc, tirar umas fotos e tal? Eu falei: Pra qu? E eles: porque ns vamos te ajudar. Voc vai ganhar uma cesta, vai ganhar o enxoval, a gente vai te ajudar. A eu falei: Mas eu no vou sair em lugar nenhum no, n? Eles falaram: No, ningum vai te ver, ningum vai saber que voc e no vai ter nada. Ento me colocaram no carro e foram l pra casa. Chegando l em casa, mandaram que eu vestisse uma roupa bem curta e eu vesti. A eles me deram uma boneca e comearam a tirar foto de mim no quintal. Perguntaram o que tinha acontecido e eu contei tudo. Que ele me dava coisas pra eu ficar com ele, quantos anos ele tinha e que eu estava grvida de gmeos. Eles colocaram tudo no jornal e publicaram tambm muitas mentiras, muitas coisas que eu no falei. Depois disso veio o Goinia Urgente54 e eu sa no Goinia Urgente. A veio tambm o Jornal Anhanguera e o Jornal do Meio Dia55. Ento eu passei a correr deles, no queria ver ningum. Depois que eu sai no jornal, os vizinhos do bairro, da escola de todo lugar ficaram sabendo de toda minha histria. Ento aquilo estourou como uma bomba porque antes ningum sabia de quem eu estava grvida, mas depois do jornal todos ficaram sabendo, pois todo mundo onde eu moro conhecia ele, o velho, pai dos meus filhos. Quando colocaram no jornal acabaram com a minha vida porque eu no podia mais sair na rua, nem pra ir na igreja. Eu s via as pessoas me apontando o dedo, me criticando: Olha a menina grvida do
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velho Eu at falei que queria abortar, que eu no queria ter aqueles meninos, chorava bastante, queria entrar debaixo de um carro, no deixava o mdico chegar perto de mim, nem minha me. Eu s ficava em cima da cama e no queria saber de nada. Eu pensava que dois nenns dentro da minha barriga eu ia morrer, eu no sabia de nada. A comearam a me criticar demais no colgio e a eu sa. Os meus colegas falavam: Ah! Como que voc foi fazer isso? Na igreja tambm eu via assim que muita gente no falava nada, mas me olhava de lado e eu j no fui mais. Depois disso, eu tive os gmeos, conheci esse rapaz que tinha vinte anos e fui morar com ele. Quando os gmeos estavam com trs meses, eu engravidei de outra menina e quando eu estava com cinco, seis meses de gravidez, comecei a apanhar dele. Apanhei bastante dele e a minha filha nasceu com problemas cardacos. Nasceu e morreu depois de trs dias. Ela nasceu dia 31 de outubro e morreu dia 02 de novembro. Eu engravidei pela segunda vez com treze anos e ganhei minha filha com quatorze anos. Acho que ela no sobreviveu porque ele me batia muito. Ele segurava no meu pescoo e dava murro s na barriga e eu no podia sair nem ir na casa da minha me. Ficava s dentro de casa. Ele fazia por cimes, por besteira. Qualquer coisinha era motivo de briga. A me e a irm dele falavam mal de mim. Eu no podia sair de casa pra nada, no podia fazer nada. Ns morvamos na casa da me dele e ela via, s vezes, ele me bater. s vezes ele me batia escondido. Quando era na frente dela, ela se afastava, mas se ela entrasse no meio apanhava tambm. Minha filha nasceu e teve uma parada cardaca quando estava nascendo. Em seguida, deu outra parada cardaca e foi pra UTI com insuficincia respiratria. Ela morreu e a gente continuou vivendo junto do mesmo jeito ainda. Um ano depois, no dia 07 de setembro, ele me bateu tanto que estourou o meu bao e eu tive que operar. Foi ele que me levou para o hospital. Ele estourou o meu bao com um murro na costela. Os policiais vieram e me perguntaram o que era, mas eu tinha muito medo e falei que eu tinha cado e batido a costela na quina da cama. At o mdico falou: A gente sabe que mentira, voc no quer falar a verdade. Trs meses depois que eu operei, eu engravidei dele de novo, da menina que eu tenho agora, a Gabriele. Nessa gravidez ns conversvamos e eu sempre falava pra ele que depois que o beb nascesse, eu no ia mais querer ele, ia me separar. E ele no acreditava. Quando ela estava com um ms de nascida, a gente se separou, eu voltei pra casa da minha me e ele comeou a ir l falando que era pra ver a Gabriele e j queria mandar em mim. Mesmo ns estando separado ele me batia. Depois eu descobri que ele estava namorando com a minha prima e que ela estava grvida dele. Ento eu fui embora morar com meu pai, ele morava em Trindade. E quando minha filha completou dois anos, eu entreguei ela para o pai, porque eu estava sem trabalhar, morando com o meu pai que no tem muitas condies, pois ele s um aposentado. Depois de
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um tempo, eu voltei pra casa da minha me e continuei a passar muitas necessidades dentro de casa. Os meus filhos comearam a estudar, eu sem emprego at que conheci uma moa que trabalhava numa boate... Depois que eu parei de estudar, na 5 srie, no voltei mais. At tentei voltar umas duas vezes depois que eu j estava morando com o pai da minha filha, mas ele no deixava. Quando eu chegava do colgio ele at me batia. Eu ia trabalhar e quando eu chegava ele me batia. No podia fazer nada, tinha que ficar s dentro de casa. Mas com a filha ele no violento, ele no deixa ningum gritar com ela. Acho que ele ficou com medo por ter perdido a outra, porque nessa gravidez ele no me bateu, nem encostou a mo em mim. Fazia tudo que eu queria, me tratou super-bem. Foi para o hospital comigo, coisa que ele no fez com a outra. Com a outra foi a minha sogra quem me levou, me deixou l e foi embora. Com essa no, veio todo mundo, at a irm dele. Ficou todo mundo junto dessa menina. Acho que por causa do que aconteceu com a outra filha. Ele s voltou a me bater depois que ela nasceu, at depois que a gente se separou ele ainda me bateu. Mas enquanto eu estava grvida no. Me separei dele tem trs anos e o que eu mais queria era voltar a estudar. Mas eu tinha que decidir entre escola e o trabalho porque eu tenho dois meninos pra cuidar e no fcil. Eles j tm seis anos e esto estudando. Faz dois anos que eles me pedem uma bicicleta e eu no tenho condies de dar. Mas como eu ia dizendo conheci essa moa e ela falou que trabalhava numa boate e que l ganhava muito bem. E que depois que ela tinha ido pra l ela estava at morando sozinha e j tinha sado da casa da me dela, que no estava mais agentando desaforo. Voc sabe, me sempre fala as coisas. A eu falei: Ah! Ento eu vou com voc. Mas eu nunca tinha trabalhado em boate. Essa ia ser a primeira vez. Eu fui. No comeo eu chorava, eu no queria, chorava bastante. Depois, quando eu vi o dinheiro que eu estava mandando pra minha me, percebi que minha situao tinha melhorado. A boate Tropical fica em Rio Verde56. Quando comecei, fiquei morando l, fiquei trs meses sem vir em casa, s mandando dinheiro para minha me. Foi uma experincia boa e ruim porque eu acho que amadureci mais depois que eu fui trabalhar l. Eu fazia muita coisa errada. Eu usava drogas. Comecei a usar antes de ir. Eu usava muita merla e tambm cocana. Maconha eu quase no usei. A minha me j estava preocupada porque eu j estava tirando at a roupa do corpo pra vender. Eu j estava numa situao difcil sem poder fazer nada. De segunda a segunda ficava bbada e usando drogas. Os meninos ficavam com minha me. Uma vez eu cheguei em casa peguei at faca pra matar minha me de to drogada que estava. Mas na boate eu no podia. Tem as regras, entendeu? Eu passei a usar drogas depois que me separei. Meu ex-marido no usa. Comecei com as amizades. Conheci um rapaz e foi atravs dele que eu comecei a usar drogas. Tinha seis meses que ele tinha sado do
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CEPAIGO57. Com ele eu comecei at a fumar cigarro, antes eu nem sabia fumar. Aprendi tudo com ele. Me separei dele, mas a eu j estava muito viciada, ento eu tinha que comprar. Eu passei a tirar at a roupa do corpo pra vender. Da eu tambm j sa pra rua, tomava s pinga pura mesmo, no tinha outra bebida pra mim, era s pinga. Ficava bbada, cada na rua, passava at trs dias sem chegar em casa, sem falar nada pra minha me. Quando conheci essa moa, pensei assim: j que ela me chamou, vou tentar, pelo menos vou ver se saio das drogas. Agora, graas a Deus, tem quatro meses que no uso nada. Parei. Bebo assim uma cerveja, alguma coisa, mas do jeito que eu fazia no. Ento fui pra l e como eu j disse tinha as regras. E eu trabalhava a noite toda. L voc tem que entrar no salo pra trabalhar s oito horas da noite e s sai do salo depois que fechar a casa. No salo o fregus chega, voc atende e no pode tomar cerveja, s dose. L dose de whisk com gua de coco, com energtico, Keep Cooler, s essas bebidas. Voc s pode ficar na mesa com ele se ele pagar a sua dose. Se ele no pagar voc tem que levantar. O quarto o cliente quem paga, R$10,00. Uma camisinha R$2,00 e o programa da gente R$ 50,00. O quarto se paga separadamente, os R$50,00 ficam pra gente. E em cada dose que voc toma, voc ganha R$1,00. Tem muitos caras que so bons, mas muitos tambm que so muito ruins. No comeo eu at chorava porque eu no estava acostumada com aquilo. Ali tambm voc s faz o que voc quer, ningum te obriga a nada. Ningum, nenhum fregus pode te obrigar a nada. L eles me explicaram tudo direitinho, a dona muito legal. Voc no paga pra comer, cada uma tem seu quarto, cada quarto tem uma cama de casal, um banheiro e um guarda-roupas. Voc s tem que limpar seu quarto e lavar suas roupas. Comida pronta, almoo e jantar, tudo arrumadinho. Faz um ms que eu vim de l porque a cicatriz da minha cesariana infeccionou, mas eu acho que vou voltar pra l agora, dia 5, de novo pra ficar mais um tempo. Vou voltar porque meus filhos esto precisando das coisas e o dinheiro que eu ganhei foi pra pagar contas, pra dar jeito em algumas coisas. Durante o tempo que eu fiquei l quase no vi violncia. Teve um moo que invocou com uma menina, garota de programa desta boate. Ele foi l, fez programa com ela e depois ficou indo l todos os sbados e depois comeou a ir todos os dias. Depois, ele j queria mandar nela e ela sem saber o que fazer, falando que teria de dar um jeito de ir embora porque seno ele iria bater nela. Ento a dona da boate falou pra ele que no aceitaria mais ele l. Ento ele mandou ela sentar na mesa e disse que no iria pagar a dose. A dona falou pra ele que no, que ela no iria sentar. Ele levantou e deu um tapa na cara da dona e ela empurrou ele. Ele foi embora, mas o filho da dona ficou sabendo da histria, foi atrs dele e deu uma facada na barriga dele, mas no chegou a matar, s perfurou os rins. Essa menina tambm daqui de Goinia, ela mora na
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Vila Mutiro58. Por causa disso ela veio embora, ficou aqui mais ou menos um ms, e agora voltou pra l. Mas foi s essa violncia que eu vi. Mas como eu disse, dentro da casa proibido usar drogas. Quem quiser usar drogas, tem que ser fora da casa. S que l ns [as garotas de programa] no temos tempo pra sair porque trabalhamos a noite toda e durante o dia dormimos. Quando acordamos j est no final da tarde ento, assistimos um pouco de televiso e j hora de nos arrumarmos pra trabalhar. Temos folga, mas s nos dois ltimos domingos do ms. O trabalho de segunda a segunda, mas quem quiser ir embora, pode ir a hora que quiser, ningum te impede de nada, o que voc quiser fazer voc faz. Agora, se no trabalhar enquanto estiver l, se no for fazer salo, tem que pagar pela hospedagem de R$70,00 a R$100,00 dependendo da hora. Eu quero ganhar dinheiro pra comprar uma casa pra morar sozinha e ter minha independncia e pagar um colgio, fazer um supletivo, fazer um curso de computao, de enfermagem. Porque agora o que eu mais quero fazer um curso profissionalizante e pagar um supletivo que para recuperar o tempo perdido. Ficar desse jeito tambm no posso. Eu tenho muita vontade de voltar a estudar, mas do jeito que as coisas esto no d, tenho que trabalhar porque l em casa as coisas esto difceis demais. A minha me trabalha, mas ela trabalha meio perodo e ela s ganha R$90,00. Ela no mais gari, ela cuida de um senhor. Minha me tambm tem a renda cidad. Fizemos o cadastro dos meninos, mas at hoje no saiu o salrioescola. Quando sair vai ser melhor, j vai dar pra comprar mochila, o uniforme e tudo. Mas eu resolvi agora que eu no quero ficar muito tempo ainda em boate no. No quero no porque os meus filhos j esto entendendo as coisas, eles ficam perguntando o que eu fazia l. No dia que a minha colega foi l em casa eles fizeram muitas perguntas e eu no quero que eles pensem nisso. E eu tenho uma filha tambm e no quero que ela siga esse caminho. Mais tarde ela pode jogar na minha cara, ento eu no quero. Eu s quero mesmo arrumar um servio fichado e trabalhar porque agora minha vida no interessa mais, o que interessa a vida dos meus filhos e eu tenho que trabalhar por eles. Da minha famlia quem sabe do meu trabalho minha me e minhas irms. Minha me dana bastante, mas eu nunca deixei ela mandar em mim. Ela fala: Isso no vida, pra com isso. Isso no vai te levar a nada. Hoje voc est bonita, mas voc pode dormir bonita e acordar feia. Eu no quero. Pra com isso, eu estou te ajudando. Ela fala, ela briga, mas no adianta eu no escuto. No dia em que eu fui ela no queria que eu fosse de jeito nenhum. Eu esperei ela ir para o servio, arrumei um pouquinho de roupas e fui fugida dela. Quando cheguei l liguei pra ela. Nos trs meses que eu fiquei l eu tirei mais ou menos R$ 5.000,00. Toda semana eu mandava um pouquinho pra casa porque l tambm tinha as minhas necessidades, eu tinha que comprar as coisas. Eu,
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particularmente, vi que no rendeu nada, porque j teve noite de eu ficar com oitocentos e cinqenta Reais na mo. Eu j cheguei a fazer oito programas por noite. Tem caras que no te do s R$50,00, tem uns que te do mais. Tem uns que so gente boa e tal. J teve um que me deu R$200,00, teve uma vez que um l me deu R$320,00. Eu comprava roupa, calados, essas coisas. Futilidades mesmo. Saa nos dias de folga pra beber e ficava gastando -toa na rua. Lanchava quase todos os dias, mas mandava dinheiro pra minha me porque eu estava devendo aqui bastante. Paguei as dvidas todas. Isso a pelo menos o dinheiro rendeu porque eu paguei tudo. Eu mandava dinheiro, a minha me comprava as coisas, comida para os meninos. Comprou mochila porque eles estavam sem mochila, no tinham calados nem roupas. Com o dinheiro que eu mandei ela comprou o resto dos materiais de escola deles que estava faltando. As coisas foram melhorando. Eu me lembro que quando era criana, eu e minhas irms vamos os colegas todos com o pai e a me juntos. Era muito ruim. Ns pensvamos que nossa pobreza, nossas dificuldades eram por causa da separao de nossos pais. Porque quando nossos pais estavam juntos a vida era mais fcil, quando tnhamos nossos pais juntos era fcil pra ns. Depois que meu pai foi preso tudo mudou. O material escolar tnhamos que levar at em sacolas de plstico porque no tinha mochila. s vezes no tnhamos caderno, a professora quem dava caderno pra ns assim, vamos todo mundo bem vestido e no tnhamos roupas, no tnhamos nada. s vezes as crianas levavam dinheiro pra escola e compravam balinhas e no tnhamos. Ento muito ruim, eu mesma estava com os meus dentes todos estragados e no tinha condies de tratar. Todo mundo abusava da gente. Ento aquilo ali para mim era muito ruim. A eu o conheci o velho e ele comeou a me dar as coisas e eu comecei a andar bem arrumada, arrumei os dentes, comecei a ter as coisas que eu queria ter. As meninas da minha idade todas andavam bem arrumadas, todas tinham condies. No uma condio de rico, mas a de quem tem um pai e uma me que ajuda. A minha me, depois que saiu do servio, no conseguiu mais trabalhar fichada porque ela tem problema de coluna, ento ela s trabalha assim de bico. Agora ela est nesse servio j faz muito tempo, mas no fichado. Ento o que a minha me fazia era s pra comermos e pagar o aluguel, essas coisas. Depois ela se casou de novo com um homem que morreu e deixou a casa pra ela e ns deixamos de pagar aluguel. Se no fosse por causa disso, at hoje estvamos pagando aluguel porque no teramos onde morar. O meu pai fez a minha me vender tudo para tir-lo da cadeia. Vendeu casa, vendeu tudo que tinha dentro de casa. Ela ficou mesmo s com o necessrio. Depois que ele saiu da cadeia, tambm no quis mais saber dela, eles separaram.
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Ele tem hansenase. A maioria da minha famlia tem. Ele j morou na Colnia Santa Marta59, trabalhava e morava l. Agora ele mora em Trindade. Ele tambm se casou com outra mulher e quando ele casou com essa outra mulher ela tinha s dezenove anos. Agora ele tem trs filhos com ela, duas meninas e um menino. Ele nem v a gente, s se formos l ver ele. As minhas irms mesmo quase no gostam dele. Quem gosta dele s eu e a mais pequena. A mais velha nem chega perto dele. Quando eu estava grvida de cinco meses dos gmeos, eu entrei na justia. Eu no tinha nem treze anos ainda. Atravs do Conselho Tutelar, o pessoal do Ministrio Pblico foi at a minha casa me buscar para prestar depoimento. Eu fui e dei o meu depoimento para o Dr. Saulo60, falei tudo o que tinha acontecido. E ficou s nisso.Depois, em 1999, quando eu estava grvida da outra menina e os gmeos no tinham nem um ano ainda, eu fui numa audincia junto com o pai deles.. Ele estava com o advogado, eu fui com minha me e os meninos. Chegamos l, cada um falou o que tinha que falar, mas depois disso eu no fiquei sabendo de mais nada. Isso j tem seis anos e nunca aconteceu nada com ele. Ele nunca assumiu a paternidade dos meninos. Eu sei que o juiz ficou com o registro dos meus filhos. Depois eles mandaram pra mim, mas os registros foram feitos s no meu nome. No tem o nome do pai. O juiz falou pra mim que no podia obriglo a fazer exame de DNA. Eu no entendi como que fica desse jeito, seis anos sem resolver nada. Sem eu saber o que o juiz decidiu, o que aconteceu. Sinceramente eu no sei. Ele no d penso para os meninos, nunca quis ajudar. Ele no casado e uma vez a irm dele falou que ajudaria a gente, mas tnhamos que doar os gmeos pra eles. E a minha me no aceitou, a minha me falou que no, que jamais. Se Deus deu os gmeos pra ns deixa que ns vamos criar. Os gmeos j ficaram em UTI, eu j me humilhei pra ele dar o dinheiro da passagem para eu poder ir ver meus filhos e ele no deu. Ento eu mesma, at hoje, no sei porque nada foi resolvido pelo Ministrio Pblico. Eu fui l duas vezes, a primeira vez fui falar o que tinha acontecido e a segunda vez fui numa audincia em que ele tambm compareceu, mas nunca mais nos chamaram. Nunca mais eu soube de nada. E eu vejo ele andando por a tranqilamente. Ele mora no mesmo setor em que eu moro, duas ruas abaixo. Ele aposentado. E quando eu falo para os gmeos: Olha l o seu pai., eles no aceitam de jeito nenhum. Eles respondem assim: No, mame, ns no temos pai, esse velho no nosso pai Mas assim mesmo, uma experincia a mais. Eu amadureci muito cedo por causa de filho. Eu era muito nova e ainda tive dois. Deus me livre. As meninas l da boate quase todas tm filho, a maioria, tambm so bastante novas, da minha idade, dezoito ou dezenove anos. A mais velha tem vinte e seis anos. Tem uma l que tem vinte e dois anos, mas no tem nenhum filho. Ela trabalha l eu no sei nem por que, pois ela diz que o pai dela rico, que tem
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- Esta Colnia est localizada na periferia de Goinia e nela reside as pessoas que sofrem hansenase. - Promotor Pblico, responsvel pela rea da infncia e juventude do Estado de Gois do perodo referido pela narradora.
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condies, mas que ela no fica com a famlia dela de jeito nenhum porque no se do bem. Tem uma outra que tem s uma filha, mas que mora com o pai. A outra que me levou tambm tem um menino. A histria dela foi quase igual a minha, ela foi muito espancada pelo ex-marido. Minha me nunca foi de bater. Ela sempre falava, brigava, mas nunca foi de bater. Meu pai tambm no, ele no precisava nem falar, s dele olhar a gente j respeitava. Agora a minha me falava s vezes com a gente, mas a gente no se importava. At hoje minha me, coitada, fala e ns no escutamos. Mas eu apanhei demais do meu ex-marido. Eu tentava esconder, porque se o meu pai soubesse poderia at dar em morte. Nem mesmo quando eu fiz a cirurgia o meu pai ficou sabendo. Ele s soube depois que eu tive a Gabriele porque eu fui morar com ele. Ele soube da verdade, mas eu falei pra ele: Deixa pra l, eu no estou mais morando com ele, ento deixa pra l. Ele vai criar a Gabriele, j passou, passou. Mas meu pai queria matar ele. A minha me mesmo s ficou sabendo quase quinze dias depois que eu j tinha operado. Eu no falava nada. At que criei coragem e me separei. Se eu tivesse escutado a minha me antes, tantos conselhos que a minha me me deu, mas eu no escutei.
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A partir dos vestgios deixados pelas trs narrativas, pretendemos refletir sobre o significado da violncia na memria dos indivduos na sociedade contempornea. Neste dilogo simultneo com as narrativas e com os autores que se debruaram sobre a compreenso de conceitos como violncia, socializao e prostituio, pretendemos compreender melhor a relao entre as escolhas das jovens pela prostituio e a memria da violncia destas mesmas jovens. Estas narrativas so tentativas individuais de reconstruo das lembranas da infncia e da juventude, embora tenhamos claro que a memria individual, como ressaltou Halbawachs (2004), est enraizada no interior de diferentes quadros que, de forma simultnea ou eventual, reaproximam-se momentaneamente. Segundo o autor, a rememorao pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de solidariedade mltiplas dentro das quais os indivduos se engajam. Assim, a lembrana uma reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, traduzida por meio da linguagem. Essas malhas de solidariedade, nas histrias de nossas narradoras, quase no se encontram presentes na infncia, aparecendo visivelmente depois da insero na prostituio: Um dos meus primeiros programas foi com o Joo Francisco, um senhor
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que hoje deve estar com uns setenta anos. Naquela poca, ele devia ter uns sessenta e cinco e era tudo de bom. Uma pessoa maravilhosa61. A conscincia no se fecha em si mesma, tampouco um espao vazio. Os indivduos so, ao contrrio disso, arrastados em mltiplas direes, como se a lembrana fosse um ponto de referncia que lhes permitisse situarem-se em meio variao contnua dos quadros sociais e da experincia coletiva histrica. Isto talvez explique por que razo, em pocas anteriores, quando as crianas eram consideradas como folha em branco e quando a crueldade praticada contra elas no possua nenhuma relevncia social, pois os pais ou tutores eram seus proprietrios, as agressividades praticadas contra elas sequer eram avaliadas como violncia. Via de regra, no passado, os indivduos no consideravam a violncia fsica ou simblica contra a criana como violncia, tratava-se apenas de correes. Nesse sentido, elucidativa a obra Carta a meu pai, de Franz Kafka (1997) na qual o narrador, um adulto, reflete sobre seu relacionamento com o pai desde a infncia, poca em que no conseguia expressar outro sentimento que no o medo. Depois de adulto, expe os vestgios dessa violncia, pois o medo no o abandonou completamente, tanto que, literalmente, afirma que os sentimentos de mgoa e medo so maiores do que a capacidade de sua memria de recordar. Uma memria coletiva, segundo Bosi (1999), se desenvolve a partir de laos de convivncia familiares, escolares, profissionais. Ela entretm a memria de seus membros que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo. O que ela no faz apagar os vestgios da violncia na memria, como Andria gostaria: Tive muitas histrias de violncia, mas duas delas, eu no consigo esquecer. A violncia esteve presente em todas as narrativas, em todas as histrias e, s vezes, em mais de uma modalidade, deixando claro que seu carter no espontneo nem inevitvel. Como confirma Bandeira (1999), o que h so aes e significados da cultura construdos, institudos, socializados e ressignificados nas estruturas mentais e sociais, que acabam por prevalecer e incorporar-se como significaes normatizadas que determinam a constituio da relao cultura-violncia e vice-versa. Mesmo sabendo que a memria individual tambm social, no podemos nos esquecer de que o indivduo que detm a condio de memorizador e que, por intermdio dele, temos acesso a certas camadas do passado, principalmente quando se trata de fatos aparentemente insignificantes para a coletividade, como geralmente ocorre nos casos de violncia interpessoal. Isso porque a
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experincia vincula-se memria e ao fato de se poder transmiti-las. Talvez, por isso, Benjamin, no livro Rua de mo nica, compara o indivduo que se prope a recordar seu passado com o arquelogo:
Somente quem soubesse considerar o prprio passado como fruto da coao e da necessidade seria capaz de faze-lo, em cada presente, valioso ao mximo para si. Pois aquilo que algum viveu , no melhor dos casos, comparvel bela figura qual, em transportes, foram quebrados todos os membros, e que agora nada mais oferece a no ser o bloco precioso a partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro. (BENAJMIM, 1997, pgs. 41-42).
A imagem que se tem do passado na analogia construda pelo autor uma imagem mutilada, torta, quebrada, uma mistura de lembrana com ao do tempo e esquecimento, que nos remete s lembranas de Andria, quando ganhou da vizinha uma boneca de porcelana quebrada que o pai achou que ela havia roubado. No haveria nenhum motivo nesta recordao para lamentar a infncia que passou. De acordo com Seligmann-Silva (2003), este recordar no se d na cronologia, na lgica do tempo, mas, sim, no plano espacial. Nessa escavao do passado, busca-se justamente os pontos frgeis, a partir dos quais as camadas mais profundas podem ser atingidas. As lembranas de Andria, Luana e Juliana reconstroem as primeiras cenas de violncia (como fatos negativos), embora surjam tambm outras cenas que, embora efmeras, so positivas, como a escola que, frente ao contexto da violncia de outros espaos institucionais, se apresenta como um lugar tranqilo que elas abandonaram por terem mudado suas rotinas. Juliana, por exemplo, conta que mesmo depois que seu pai foi preso e comeou a faltar dinheiro at para comida em casa, mesmo quando no havia dinheiro para o lanche ou para comprar uma mochila para carregar os livros, ainda assim ela gostava de ir para escola: l era muito bom, eu tinha muitos amigos. Andria tambm recorda o quanto era boa aluna: Neste ano, eu lembro, estava fazendo a 7 srie e passei porque eu era uma boa aluna. Eu j tinha passado no segundo bimestre, as minhas notas j davam pra passar de ano. As lembranas das trs jovens constituem a base de reconstruo do passado de todas elas, pois, como ressaltou Barros (1989), no ato de lembrar nos servimos de campos de significados os quadros sociais que nos servem de referncia. As noes de tempo e de espao estruturantes dos quadros sociais da memria so fundamentais para a rememorao do passado na medida em que as localizaes espacial e temporal das lembranas so a essncia da memria.
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Para Halbawachs (2004), o indivduo somente pode ter memria de seu passado como ser social. Assim, cada memria individual um ponto de partida da memria coletiva, e esse ponto de vista varia de acordo com o lugar que o indivduo ocupa na sociedade, mudando em funo das relaes que se tem com outros meios sociais. Dessa forma, se os primeiros anos de vida do indivduo (perodo em que os primeiros processos de sua socializao eram intensos) transcorrem em um ambiente carregado de violncia (fsica, sexual, simblica etc), sua memria ou sua conscincia como ser social abarcar esta violncia como parte integrante de si mesma. A reconstruo das lembranas possui, para Halbawachs (2004), um carter social. Mesmo assim, a memria individual abarca sentimentos prprios e particulares, cuja existncia tm um aspecto que decorre da posio que o indivduo ocupa na sociedade, o que torna o nico. Segundo o autor, as lembranas se alojam no inconsciente e, embora precisemos dos outros para a reconstruo, as marcas do caminho j esto presentes no indivduo. Nesse sentido, poderamos fazer uma analogia com nosso problema de pesquisa, pois os indivduos cuja memria foi constituda por repetidos momentos de violncia tenderiam a realizar escolhas em que a presena da violncia no seria considerada empecilho porque banalizada. Segundo Beauvoir (2001), em muitos casos, a prostituta poderia ganhar a vida de outro modo, porm sua escolha decorre do fato de que a prostituio no a pior profisso nesta sociedade, ao contrrio, uma das que parecem menos desagradveis a muitas mulheres (acrescentamos que nem sempre a mais violenta). Ento, para a autora, ao invs de perguntarmos por que ela escolheu, deveramos perguntar por que no a teria escolhido? Talvez esta seja a razo pela qual nenhuma das jovens que participaram deste estudo tenham se mostrado arrependidas ou culpadas por terem escolhido a prostituio. Ao contrrio, Andria declara ter encontrado na prostituio a solidariedade que no obteve na famlia, na escola, em nenhum lugar: Foram pessoas boas, por isso eu no julgo a prostituio como a pior coisa, eu acho que foi a melhor fase da minha vida quando eu estava me prostituindo. Da mesma forma, Luana deixou claro, em vrios momentos de sua narrativa, o quanto aquela atividade melhorou sua vida: Ento eu fiquei empolgada porque para quem uns dias antes no tinha nem um real no bolso nem pra pagar o nibus, eu j estava com muito dinheiro. Juliana tambm reconhece as vantagens da prostituio: conseguiu pagar as dvidas, mandou dinheiro para a me, comprou algumas coisas para os filhos, estaria naturalizada, ou melhor,
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embora tema que eles, depois de crescidos, tomem conhecimento de suas atividades como prostituta. Os valores assimilados na infncia, entretanto, no so totalmente desprezados, pois as narrativas apresentam, em outros momentos, conscincia acerca da desvalorizao social da prostituta. Como alertaram Berger & Luckmann (1974) a socializao primria interioriza uma realidade apreendida como inevitvel e esta interiorizao s pode ser julgada bem sucedida se o sentimento de no transgresso estiver presente na maior parte do tempo, pelo menos enquanto o indivduo for ativo na vida cotidiana. Dessa forma, mesmo quando o mundo da vida cotidiana conserva sua indiscutvel realidade em ao, est ameaado pelas situaes marginais da experincia humana que no podem ser completamente includas na atividade diria. Em geral, chamam-nos ateno nas lembranas dessas jovens a sucesso de etapas na memria, que dividida por fatos que se destacam por seu significado. Andria, pelo aspecto nmade de sua vida, pois, ainda criana, j se revezava entre a casa do pai e da me e, na juventude, andava pelo pas procura do melhor bordel, do melhor lugar para se prostituir. J Luana, que tanto se ressentia da violncia do pai contra sua me, iludida pelo desejo de consumo e de independncia financeira, no se deu conta de que, ao permitir as aes de violncia do namorado no prprio espao do bordel, estava repetindo as experincias de sua me. Por fim, Juliana, grvida de gmeos quando tinha apenas 12 anos, tendo enfrentado, em decorrncia disso, uma violncia moral proveniente dos preconceitos, voltou a ficar grvida ainda na adolescncia, se submetendo a outras modalidades de violncia, especialmente a violncia fsica que, segundo ela, provocou a morte da filha que gestava. No contexto destas narrativas, embora no possamos generalizar, haveria, sem dvida, uma tendncia repetio de comportamentos gravados na memria, condizentes com a violncia. Assim, as reflexes de Arendt (1985), mesmo que voltadas para a compreenso da violncia poltica, podem contribuir com nosso desafio de entender a submisso destas jovens explorao e discriminao do mundo da prostituio, pois, para elas, a violncia j havia sido interiorizada durante o processo de socializao por meio de diferentes formas de violncia. Para Arendt, a violncia, instrumental por natureza, racional at o ponto de ser eficaz em alcanar a finalidade que deve justific-la. Nesta perspectiva, a violncia s pode manter-se racional se buscar objetivos
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a curto prazo. A longo prazo, estes objetivos podem se perder, tornando-se imprevisveis. Por isso, segundo a autora, no possvel termos certeza das conseqncias quando agimos com violncia. Sobre a relao entre prostituio e violncia, Lima (1962)62, referindo-se Inglaterra de final do sculo XIX, critica radicalmente a condio das mulheres prostitutas. Para este autor, a sociedade inglesa, adepta do liberalismo e que tanto se orgulhava de sua adeso ao conceito de liberdade secularmente fixado no inconsciente britnico, paradoxalmente, permitia que a mulher prostituta reduzisse seu prprio sexo a uma mercadoria, em condies, muitas vezes, de extrema violncia, pois nem sempre o exerccio da prostituio na Inglaterra ocorreu a partir da iniciativa pessoal e espontnea da mulher. Nesta crtica, o autor inclui o processo de recrutamento da prostituta que, segundo ele, provinha das camadas inferiores da populao tanto urbana quanto campesina, enquanto que os clientes dos bordis pertenciam, sobretudo, esfera das classes altas. Assim, grande parte do recrutamento de jovens mulheres para a prostituio realizava-se, de acordo com os jornais londrinos da poca, por meio de um violento trfico compulsrio, como se pode observar nas palavras do prprio autor:
Casas onde os exploradores vo ao ponto de se preocuparem com os mais absurdos requintes dos clientes. No gnero daqueles que se atrevem ao cmulo de exigir, antes da violao, que o responsvel pela empresa lhes apresente, devidamente autenticado, um atestado mdico que afirme a virgindade da vtima. (LIMA, 1962, p. 70).
Fundem-se, dessa forma, o velho e o novo. s antigas prticas de prostituio foram acrescentados novos artifcios que s puderam se concretizar com a produo de massa e, consecutivamente, com a transformao da prpria mulher em mercadoria, ou seja, em artigo de massa cuja produo e consumo ocorrem simultaneamente e de forma acelerada, em srie. A fonte dessa tendncia o paradoxal princpio sem princpios da livre troca. Para Berman (2003), a existncia desse incessante, irrestrito fluxo de mercadorias em circulao provoca uma contnua metamorfose dos valores de mercado que, por sua vez, tende a forar a livre entrada de novos produtos no mercado. Assim, se os membros da burguesia, de fato, desejam um mercado livre, sua opo ser forar a livre entrada de novos produtos no mercado, o que implica, em contrapartida,
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- As abordagens feitas pelo autor nesta obra (tanto da prostituio como de outros temas relacionados com a sexualidade) so acentuadamente conservadoras, o que no condiz com nossa abordagem. No entanto, especificamente quanto s relaes de violncia e prostituio na Inglaterra do sculo XIX e incio do sculo XX, suas descries so importantes para demonstrar o carter violento que, historicamente, marcou as prticas de prostituio no mundo ocidental.
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que toda a sociedade burguesa desenvolvida de maneira plena seja uma sociedade genuinamente aberta, no apenas em termos econmicos, mas tambm polticos e culturais, de modo que as pessoas possam sair livremente s compras e procura dos melhores negcios, idias, associaes, leis e compromissos sociais. Concomitantemente a essa liberdade de mercado, prevalecem na sociedade capitalista os preconceitos que, segundo Heller (2000), constituem-se em categorias do pensamento e do comportamento cotidianos. Por isso, devemos compreender os preconceitos a partir da esfera da cotidianidade, cujos traos so o carter momentneo dos efeitos, a natureza efmera das motivaes e a fixao repetitiva do ritmo, a rigidez do modo de vida. De forma anloga, o pensamento cotidiano um pensamento fixado na experincia, emprico e, ao mesmo tempo, ultrageneralizador. Segundo a autora, existem duas maneiras de chegarmos ultrageneralizao cotidiana: por um lado, assumimos esteretipos, analogias e esquemas j elaborados; por outro, eles nos so impingidos pelo meio em que crescemos ou no qual somos socializados, podendo passar muito tempo at que percebamos com atitude crtica esses esquemas recebidos, se que chega a produzir-se tal atitude. Nesta leitura que realizamos das narrativas, essa submisso aos esteretipos ocorre com muito freqncia, como, por exemplo, nesta rememorao de Andria:
Eu lembro que numa das noites que eu estava numa boate em Pernambuco, eu cheguei a 42 de febre, estava com uma gripe fortssima. [...] o gerente chegou no quarto e falou que ele no era obrigado a dar comida pra puta ficar dormindo e mandou eu levantar. [....]. Ento eu levantei queimando de febre [...] e comecei a chorar.
Diferente da memria da infncia, marcada pela espontaneidade dos relatos, nas lembranas da juventude, a leitura do passado torna-se mais rgida porque feita com os juzos de valores que buscam demarcar o lugar ocupado pelos indivduos na sociedade. Segundo Gagnebin (2004), o momento da construo consciente e tambm o momento da interveno decisiva seriam capazes de interromper as condies negativas do desenrolar histrico. De acordo com a autora, o conceito benjaminiano de rememorao exprime esta necessidade de recapitulao atenta, sem a qual os fatos seguem seu fluxo incansavelmente. A memria, na concepo de Benjamin, se pauta na dinmica infinita da memria voluntria, a qual nunca cessa e nem vai alm de seu prprio movimento. Sua dinmica submerge da memria individual e restrita, mas a concentrao da rememorao interrompe este curso que guarda, num mesmo instante privilegiado, as migalhas dispersas do passado para apresent-las ao presente. As imagens dialticas nascem da profuso da
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lembrana, mas s adquirem uma forma verdadeira atravs da intensidade imobilizadora da rememorao (GAGNEBIN, 2004, p. 25). Na memria dos fatos que marcaram sua passagem pela prostituio, Andria, mesmo insistindo que foi um tempo bom, um tempo em que cultivou muitas amizades, confessa que seu maior sonho, assim como o de qualquer mulher que trabalha numa casa de programa (segundo ela), ganhar muito dinheiro para no precisar repetir todos os dias as mesmas cenas, o mesmo ritual. Ou ento, essa mulher sonha que encontrar algum que a livre daquela situao, casando-se com ela e assumindo a responsabilidade de garantir sua sobrevivncia. Nesse contexto, o liame que se forma entre o sujeito e a sociedade est nitidamente marcado pela condio de marginalidade inerente s prticas de prostituio. No basta, por isso, obter ganhos financeiros superiores a outras atividades ou encontrar nos pares a solidariedade que antes no teve. A violncia dos esteretipos torna ambgua e incerta a perspectiva de realizao subjetiva por parte do sujeito, conforme se pode ler nas prprias palavras de Juliana:
Mas eu resolvi agora que eu no quero ficar muito tempo ainda em boate no. No quero porque os meus filhos j esto entendendo as coisas, eles ficam perguntando o que eu fazia l. No dia que a minha colega foi l em casa eles fizeram muitas perguntas e eu no quero que eles pensem nisso. E eu tenho uma filha tambm e no quero que ela siga esse caminho. Mas tarde ela pode jogar na minha cara, ento eu no quero. Eu s quero mesmo arrumar um servio fichado e trabalhar porque agora minha vida no interessa mais, o que interessa a vida dos meus filhos e eu tenho que trabalhar por eles.
Assim, no importam as propostas de regulamentao e reconhecimento da prostituio feitas por militantes ou acadmicos para legitimar o trabalho da prostituta. Ocorre que prevalece, para ela, a negao de suas prticas. Como percebeu Fonseca (1996) em suas pesquisas, na cidade de Porto Alegre, as prostitutas no planejam o futuro considerando a opo da prostituio como carreira profissional. Mesmo diante das imensas dificuldades no mercado de trabalho, mulheres de origem humilde e com baixo nvel de escolaridade esperam ingressar em um curso profissionalizante, ao mesmo tempo que sonham com a perspectiva de se tornarem esposas e mes.
Tudo isso nos indica que as mulheres que se prostituem no se orgulham do que fazem ou fizeram, seja em decorrncia dos valores interiorizados desde a infncia, seja por sofrerem com a discriminao da sociedade. Ao contrrio das narrativas apresentadas por Bosi (1999) cujos
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personagens so velhos que guardam na memria a importncia de suas existncias em momentos cruciais da histria de So Paulo, cidade onde viveram desde a infncia at a velhice, nas narrativas das jovens mulheres apresentadas neste estudo predominam a mobilidade e a contingncia de um modo de viver desenraizado, no qual as amizades so efmeras, os rostos e os nomes significam pouco, tendo a a violncia um significado profundo. Como escreveu Nietzsche (1999), s o que no cessa de doer permanece na memria. 4.1- Papis sociais, consumismo e violncia Segundo Heller (2000), mesmo a vida social mais elementar seria inimaginvel sem imitao, distinguindo-se a mimese humana da animal desde suas formas mais primitivas. O indivduo capaz de imitar no apenas momentos e funes isoladas, mas tambm todo o modo de conduta e de ao. Assim, de acordo com a autora, baseia-se na mimese a assimilao de papis, pois, sem a imitao ativa da totalidade de um comportamento, no haveria essa assimilao de papis. preciso, contudo, ressaltar que mesmo a imitao humana mais mecnica assimilao ativa e que o indivduo no pode alienar-se de sua natureza de modo absoluto. A imitao manifesta-se, segundo Heller (2000), sobretudo como imitao dos usos. O mesmo podemos dizer da assimilao da hierarquia de valores morais. At o indivduo com alto grau de autonomia e de elevada moral consciente incapaz de avaliar moralmente todos os passos que d, todas as atitudes que toma. Sempre existem na vida humana determinados pontos nevrlgicos nos quais se projetam muito intensamente os problemas da escolha moral. Mas esses problemas emergem de uma hierarquia de valores assimilada anteriormente, que afirmada ou negada pelo indivduo em questo e, apesar disso, no podem se repetir arbitrariamente sempre que se deseja. Assim, por exemplo, h decises das quais decorrem outras, de modo mais ou menos necessrio, do ponto de vista do sujeito maneira de uma rotina. No pelo fato de assumir um sistema de valores previamente construdo que o portador de um papel converte sua funo em papel. Decorrem da as ambigidades63 demonstradas pelas mulheres que assumem (provisoriamente) a prostituio como profisso.
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- Estas ambigidades ficaram patentes nos discursos feitos pelas mulheres entrevistadas. Ao mesmo tempo que diziam que a prostituio foi uma coisa boa, que no sofreram violncias, afirmavam que o sonho de toda mulher de programa sair dessa vida... Em relao violncia, ao mesmo tempo em que afirmava no ter sofrido nenhuma violncia, uma das jovens entrevistadas confessou que o dono do bordel exigiu que ela trabalhasse mesmo doente, com 42 graus de febre. Existe, portanto, nas narrativas, uma ausncia de definio clara para o conceito de violncia.
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Alguns pesquisadores ressaltam que a mulher prostituta busca resguardar sua verdadeira identidade durante o exerccio desta atividade (Gaspar, 1985; Silva, 2004). No entanto, acreditamos que se trata de uma orientao para o futuro, transformada em moda como nos alertou Heller (2000). Na interpretao desta autora, da mesma maneira como vo se estereotipando os sistemas funcionais da sociedade, os tipos de comportamento tendem a converter-se em papis. Assim, tambm a orientao para o futuro transforma-se na necessidade de no ficar atrasado com relao moda e, por isso, quem deseja desempenhar adequadamente seu papel, no pode ignorar a moda, tem de segui-la passo a passo, submetendo-se a seu arbtrio, tanto em relao aos costumes em geral, quanto no que diz respeito ao vesturio ou s esferas estticas da vida. A moda, portanto, a manifestao alienada da orientao para o futuro, encontrando-se em relao necessria com o crescimento da categoria de papel. Luana, durante os primeiros anos de sua juventude, desistiu dos estudos para perseguir o sonho imediato de comprar uma moto, roupas caras e outros objetos, o que expe sua adaptao ao mercado, uma caracterstica desta gerao. Na contemporaneidade, os indivduos tendem a se transformar naquele homo economicus que, antes, era uma mera expresso da economia poltica clssica. Assim, o fenmeno da economizao atinge todos os campos da vida, inclusive as esferas do amor e da sexualidade e, claro, a conscincia. Assim, o comrcio tanto do corpo quanto da alma no se constitui numa prtica exclusiva das mulheres assumidamente prostitutas. Esta tendncia social de primazia do aspecto econmico tem se estendido por toda a ordem social, no deixando imune o setor educacional, embora, no que se refere aos jovens pobres das periferias das grandes cidades, os apelos da moda, s vezes, os afastam da opo oferecida pela educao formal, aproximando-os, por outro lado, das vias transgressoras. Isto porque, como sustentou Jameson (2002, p. 278) os prazeres do consumo so pouco mais do que conseqncias ideolgicas de uma fantasia disponvel para os consumidores ideolgicos que compram uma teoria de mercado da qual eles mesmo no so partes. Se o valor das mercadorias, nos perodos iniciais de acumulao capitalista, estava subordinado a seu valor de troca, o capitalismo, segundo Lasch (1983), agora subordina a prpria posse aparncia e mede o valor de troca como a capacidade de uma mercadoria de conferir prestgio a iluso de prosperidade e bem-estar. Nesse contexto, claro que a publicidade sofrer profundas alteraes. Antes, como ressalta Lasch, a publicidade meramente chamava a ateno para o produto e enfatizava suas vantagens. Hoje, ela procria um produto prprio: o consumidor
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perpetuamente insatisfeito, intranqilo, ansioso e entediado. Assim, a publicidade serve no tanto para anunciar produtos, mas para promover o consumo como um modo de vida. Ela educa as pessoas para ter um apetite inesgotvel no s por bens, mas por novas experincias e satisfao pessoal, como confessou Luana: Gosto dessa vida, tem aventuras, a adrenalina muita grande e alm disso, ganho mais do que j ganhei em todos os outros trabalhos que fiz. A propaganda do consumo transforma, de acordo com Lasch (1983), a prpria alienao em uma mercadoria. At mesmo em relao solido e angustia dos indivduos, caractersticas comuns da vida moderna, a propaganda prope o consumo como alternativa, prometendo diminuir todas as velhas infelicidades, das quais o homem herdeiro; criando ou exacerbando novas formas de infelicidade insegurana pessoal, ansiedade pelo status, ansiedade dos pais sobre sua capacidade de satisfazer s necessidades dos filhos. Lasch (1983) concorda, todavia, que a publicidade tem-se identificado com uma radical mudana de valores, uma revoluo nos costumes e na moral que teria se iniciado nos primeiros anos do sculo vinte, mas continuou a provocar, na sociedade, profundas mudanas. Nesse sentido, emblemtico o exemplo da tica do trabalho, pois, se antes os defensores da moralidade pblica incitavam o indivduo a trabalhar como se fosse uma obrigao moral, passaram, ento, a ensinarlhe que, com o trabalho, poderia compartilhar os frutos do consumo, independentemente da idia de honra e de valor que antes deveria caracterizar o trabalho realizado. Da que os preconceitos em relao prostituio somente so explcitos quando se referem ao chamado baixo meretrcio. Evidentemente, a publicidade e a indstria cultural integram o processo de socializao das jovens entrevistadas neste estudo e dos demais indivduos do mundo contemporneo, por meio da identificao proporcionada pelo consumo. Subjaz ideologia do consumo a promessa de transformar o consumidor em algum que se destaca perante os outros, ou como afirmou Zuin (1995, p. 158), reala seu autntico jeito de ser. Contudo as diferenas no contedo da prpria socializao podem contribuir para o maior ou menor grau de vulnerabilidade dos indivduos frente aos apelos ao consumo. Para Berger & Berger (1978), a socializao a imposio de padres sociais conduta individual que se inicia na infncia e continua acontecendo ao longo de nossas vidas. Todavia o carter absoluto com que os padres sociais atingem a criana resulta, segundo Berger & Berger (1978), de dois fatos bastante simples: o grande poder que os adultos exercem sobre ela e sua ignorncia sobre a existncia de padres alternativos. Os adultos apresentam
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criana uma determinada realidade que passa ser, para ela, a realidade do mundo, at que descubra que existem alternativas fora desse universo. Ento ela se d conta de que o mundo de seus pais relativo no tempo e no espao e que padres diferentes podem ser adotados. Se, posteriormente, a criana descobre padres alternativos de comportamento, poder, inclusive, renunciar ao recurso da violncia que possa ter caracterizado suas primeiras experincias de vida, percorrendo outros caminhos que no aqueles que se constituram com base na violncia. Como lembrou Berger & Berger (1978), embora a socializao possa ser considerada um processo de configurao ou moldagem, importante ressaltar que esse processo no unilateral. Mesmo no incio da vida, a criana no uma vtima passiva da socializao, pois resiste a ela e dela participa de formas diversificadas. A socializao um processo recproco, visto que afeta no apenas o indivduo socializado, mas tambm os socializantes. No difcil observar esse fato na vida cotidiana, pois, geralmente, os pais alcanam um xito maior ou menor em moldar a criana de acordo com os padres gerais criados pela sociedade e desejados por eles que acabam, contudo, sendo tambm modificados por essa experincia. Alm disso, a reciprocidade da criana, isto , sua capacidade de exercer uma ao individual e independente sobre o mundo e as pessoas que o habitam cresce na razo direta da capacidade de usar a linguagem. Neste contexto, necessrio admitirmos que a jovem, quando escolhe a prostituio, mesmo que precocemente, como Andria aos 13 anos e Juliana aos 12 anos - opta por uma alternativa que, naquele momento, lhe parece ser a melhor. Isso tambm se deve, claro, ao mecanismo fundamental que conduz socializao que, de acordo com Berger & Berger (1978), consiste na interao e na identificao com os outros. Um passo decisivo dado no momento em que a criana no s aprende a reconhecer certa atitude em outra pessoa e a compreender seu sentido, aprendendo tambm a tom-la ela mesma. Assim, mesmo que nenhuma das mes das jovens que participaram deste estudo exercesse atividades vinculadas prostituio, eram submetidas a uma condio de violncia cotidiana que no se diferenciava essencialmente da condio de violncia em que se encontram as mulheres prostitutas. Um dos fatores que nos chama ateno no cotidiano das prostitutas, o qual produz e reproduz situaes de violncia est, sem dvida alguma, relacionado com sua condio humana. Beauvoir (2001) estudou a situao da mulher ocidental da dcada de 1940 e, assim como vrios pesquisadores da contemporaneidade citados neste estudo, abordou aspectos ligados s condies objetivas e subjetivas das prostitutas de sua poca. A baixa prostituio era exercida por mulheres
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entre 13 e 40 anos de idade, as quais, segundo a autora, achavam-se moralmente adaptadas sua condio, j que a situao moral e psicolgica no era um fator que dificultasse suas existncias. Na maioria das vezes, a condio material dessas mulheres que era deplorvel. Reafirmamos que anlises dessa natureza, que separam existncia material e moral, representam uma fragmentao na condio da mulher que se prostitui. No bojo de sua argumentao em defesa dessa misria material desvinculada da espiritual, Beauvoir ressalta a explorao da prostituta pelo cften, sua insegurana constante, sua exposio aos riscos de doenas. Entretanto os prprios argumentos da autora contradizem sua tese, levando-nos a questionar a possibilidade de haver indivduos que esto adaptados moralmente, ao mesmo tempo que vivem em condio de explorao e exposio violncia. Convergindo com nossos questionamentos, a pesquisa de Bataille (1987) sobre a origem da baixa prostituio mostra o vnculo entre o surgimento das classes miserveis (em si mesmas uma espcie de degradao) e esta modalidade de prostituio. Segundo o autor, a extrema misria isenta homens e mulheres dos interditos, justamente aqueles responsveis pelo desenvolvimento, em ns, da humanidade. Essa iseno, todavia, provocada pelas situaes de extrema misria, no ocorre nos casos de simples transgresso. Aqui, o rebaixamento no o retorno animalidade, pois esta condio nada tem de animal e ainda que freqentemente os outros neguem a essa prostituta a qualidade humana, na realidade, ela se encontra muitas vezes abaixo da dignidade animal. Para este autor, diferente da cortes que no estava destinada ao desprezo dos outros, gozando conseqentemente do respeito da sociedade porque mantinha resguardados certos
nveis de comportamento, a prostituta de baixo nvel estaria no ltimo grau de rebaixamento, tendo perdido completamente o sentimento de vergonha. No entanto, devido a sua humanidade,
mesmo quando ela se mostra indiferente aos interditos, tem conscincia de que encontra-se socialmente decada. preciso ainda lembrar que, historicamente, a linha divisria entre prostituio e violncia sexual bastante tnue. Vigarello (1998), que pesquisou a Histria do estupro na Frana entre os sculos XVI e XX, apresenta uma srie de dados sobre o aumento da violncia sexual e moral que teria ocorrido com o processo de urbanizao da sociedade francesa. Obras clssicas de autores como Victor Hugo e Eugne Sue so tambm utilizadas para retratar o ambiente violento e hostil das grandes cidades dos primeiros anos do sculo XIX. Segundo o autor, em Os miserveis, Hugo transforma o pardieiro dos Jondrette num antro feroz e selvagem, covil srdido, instalado no
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corao da cidade, com seus desenhos obscenos, seus cantos insondveis, suas crianas em idade tenra que todas as lamas mancham, at que uma roda venha esmag-las enquanto um pai, pronto a arriscar suas filhas por algumas moedas, completa essa abjeo. A constituio da modernidade fez emergir nveis elevados de violncia, especialmente a violncia sexual. A condio miservel dos operrios incentivou a reproduo da violncia em larga escala. Segundo Vigarello (1998), a figura do assassino passou a dominar o imaginrio do crime, tornando a ameaa mais precisa, mais localizada. Uma topografia particular transformou o perigo, focalizando um risco proveniente do pobre e do operrio. O crime, assim, deixava de ser pitoresco e excepcional para tornar-se simplesmente social, efeito de uma cidade que fabricava assassinos e estupradores. Percebemos que o isolamento e a misria material e sexual dos operrios franceses de meados do sculo XIX produziu, mesmo que temporariamente, um aumento da violncia. Contudo, de acordo com os dados estatsticos apresentados por Vigarello (1998), vinte anos depois, houve uma queda significativa nos ndices de violncia sexual e de demanda pela prostituio. Para ns, obvio que essa retrao nos ndices de violncia e de prostituio estavam relacionados com a conquista de melhoria nas condies de vida das classes trabalhadoras. Alm disso, tanto no sculo XIX quanto na contemporaneidade, situaes degradantes narradas por artistas ou por pesquisadores quase sempre dizem respeito s caractersticas dos pobres das cidades. O imaginrio da prostituio de luxo povoado por mulheres bonitas, consumismo e, s vezes, tambm por uma violncia motivada pelas paixes desenfreadas, pelo abuso das drogas, enfim, pelo descontrole emocional dos envolvidos. Essa violncia diferente da que se desenvolve em meio sujeira e doena caractersticas da narrativa sobre a prostituio e os pobres em geral. A misria material das mulheres prostitutas, em nosso estudo, encontra-se entrelaada com a misria moral, desembocando, assim, em situaes diversificadas de violncias: Ele me dava balinha, bombom, s vezes me dava cinco reais e eu j achava bom porque eu no tinha nada.[...]Depois, eu (engravidei) tive os gmeos e conheci um rapaz [...] fui morar com ele [...] engravidei de novo e quando eu estava com seis meses de gravidez, comecei a apanhar. Apanhei muito dele [..]64. Em nossa poca, so mltiplas as formas de prostituio que abarcam, desde o envolvimento de mulheres das classes mdia e alta em programas requintados, at experincias
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semelhantes que foi narrada por Juliana, cujos personagens so indivduos pertencentes s camadas mais pobres da populao, mergulhados numa condio violenta e miservel. Estas situaes nos fazem lembrar a afirmao de Arendt (2003, p. 23): O fato decisivo que o prazer e a dor, como tudo que instintivo, tendem mudez e, embora possam produzir sons, no produzem fala e, certamente, tampouco o dilogo.
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CONSIDERAES FINAIS
A terrvel solido que o homem sente nas imensas cidades populosas, nas cidades modernas to irrequietas e tentadoras; a solido, que no dissipada pela companhia de amigos e companheiros, a que impulsiona o homem a buscar, com avidez doentia, a sua ilusria alma gmea, num ser do sexo oposto, visto que s o amor possui o mgico poder de afugentar, embora momentaneamente, as angstias da solido. Alexandra Kollontai
Quando atentamos para as pesquisas realizadas no Brasil sobre a prostituio, percebemos que, em geral, os pesquisadores que escolheram esta temtica como objeto de estudo, tm se esforado para desvincular as explicaes sobre o crescimento da prostituio na sociedade contempornea do vis exclusivamente econmico. Todavia no podemos negar os efeitos de um processo de empobrecimento generalizado, desencadeado a partir da constituio da modernidade, que levou homens e mulheres a enfrentarem as coeres sobre o emprego impostas pela
modernizao. Neste contexto, os indivduos que no se inserem no mercado formal de trabalho foram se constituindo sujeitos desterritorializados, com grande mobilidade, estando entre eles as prostitutas, que tambm no encontram lugar nesse universo. Esta situao, de forma embrionria, teve incio nos sculos XV e XVI, vindo a desembocar na modernidade. Castel (1999) analisa o processo histrico da insero marginal de alguns grupos considerados inteis para o mundo do trabalho em sociedades do mundo ocidental, o que justificou, muitas vezes, medidas cruis estabelecidas pelas legislaes da poca. Segundo o autor, as tentativas de definio destes indivduos classificados como vagabundos foram relativamente tardias, pois, at o sculo XVI, termos como vagabundo e intil encontravam-se sempre associados a uma srie de qualificativos que designavam pessoas mal-afamadas: ociosos, luxuriosos, rufies, tratantes, imprestveis, indolentes e, claro, prostitutas. Permaneciam, no entanto, de acordo com o autor, as tentativas de delimitar quem eram realmente os vagabundos. Seriam perigosos predadores que vagavam pelas margens da ordem
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social, vivendo de roubos e ameaando os bens e a segurana das pessoas? Tratava-se, na verdade, de indivduos que romperam o pacto social trabalho, famlia, moralidade, religio sendo considerados, por isso, inimigos da ordem pblica. Para Castel, os vagabundos, de fato, nas sociedades pr-industriais, equivaliam aos imigrantes de hoje, os estrangeiros, porque, assim como estes, tambm procuravam meios para sobreviver fora de sua terra. Dessa forma, o aspecto nmade de indivduos como a prostituta, cuja andana deliberada no tinha destino certo, caracterizava a ruptura no s com o domiclio, mas tambm com as regras comuns da sociabilidade. A condio da prostituta nas sociedades modernas se assemelha dos miserveis estudados por Castel e, no tocante ao nosso estudo, esse paralelo suficiente para demarcarmos quem essa mulher qual nos referimos. No seriam, evidentemente, as garotas de Copacabana abordadas por Gaspar (1985) e nem, tampouco, inmeras outras mulheres de classe mdia que se inserem no mundo da prostituio em busca de carros, jias e outros objetos luxuosos ou mesmo status. As mulheres prostitutas, sujeitos desta pesquisa, vm de famlias proletrias e buscam tambm acesso ao consumo, embora este desejo seja apenas um dos motivos de suas escolhas. Alm das deficincias materiais, onipresentes em sua trajetria, encontramos a violncia em vrias modalidades influenciando diretamente a opo destas mulheres pela prostituio. Essa passagem para a marginalidade, como afirmou Castel (1999, p. 133), se d como numa gradao de cores, pois no h barreiras rgidas entre a sociedade e suas margens, entre indivduos e os grupos que respeitam as normas estabelecidas e aqueles que as infringem. O drama da misria e da violncia desemboca num processo de dessocializao que provoca o desatrelamento do indivduo de suas antigas redes de sociabilidade (famlia, amigo, emprego) e a vida, assim, assume aspectos marcados por mobilidade, brevidade e instabilidade dos vnculos, uma trade caracterstica das trs mulheres que participaram deste estudo. A modernidade forjou uma nova pobreza, esttica e politicamente diferente da antiga, e capaz de provocar horror classe dominante. Castel (1998) procura chamar nossa ateno para as apreciaes de autores que se dedicaram a analisar as caractersticas desse pauperismo. Para forjar suas idias acerca desta questo, os pensadores partiam do pressuposto de que as classes laboriosas eram bastante nocivas. De acordo com eles, havia um aspecto inovador e perturbador na condio dos pobres modernos, os quais, alm da misria material, apresentavam tambm uma profunda degradao moral. Uma espcie de condio antropolgica nova, criada pela industrializao, se evidenciava: uma espcie de nova barbrie, que menos o retorno selvageria de antes da
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civilizao do que a inveno de um estado de dessocializao prprio da vida moderna, especialmente a urbana. Neste imaginrio que emergia no perodo de constituio da modernidade, a misria era compreendida como subverso da inteligncia e aviltamento da alma, porque provocava o enfraquecimento da vontade e o torpor da conscincia, representando, de acordo com Castel (1999), uma espcie de imoralidade transformada em natureza, a partir da degradao completa dos modos de vida dos operrios e de suas famlias. No Brasil, a situao de pauperismo de vastos setores da classe trabalhadora tambm evidente. Engel (1989), pesquisando a condio de marginalidade no Rio de Janeiro do sculo XIX, mostra a ampliao e a diversificao dos segmentos sociais considerados desclassificados65 e que eram associados pela intelectualidade da poca idia de desordem. Semelhante representao dos europeus, tambm no Brasil a presena dos pobres, em geral (no s dos desclassificados), era tida como indesejvel e perigosa. Segundo a autora, as condies de sobrevivncia para estes segmentos sociais, sobretudo o das mulheres, tornavam-se cada vez mais precrias se levarmos em conta os preconceitos que restringiam as ocupaes passveis de serem desempenhadas por mulheres. No restavam, dessa forma, mulher livre e pobre, muitas alternativas, alm do servio domstico, do pequeno comrcio quitandeiras, vendedoras de doces, de artesanato, costureiras, cartomantes, feiticeiras, coristas, danarinas, cantoras, atrizes e prostitutas quase todas ocupaes depreciadas pela sociedade da poca. Todavia os problemas, tanto os do passado quanto os da contemporaneidade, enfrentados pelas mulheres, inclusive as brasileiras, no se restringem aos aspectos financeiros, como analisou Balandier (1997, p. 193) na modernidade atual:
O indivduo est exposto a dificuldades consideradas impiedosas, tenta responder a elas buscando a apropriao mais profunda de si mesmo e de suas relaes com os outros. Os mecanismos hoje so conhecidos. Os mais identificveis permanecem os processos de massificao, que operam no somente no terreno poltico onde adquiriram uma visibilidade dramatizada pelos poderes totalitrios [...].
Segundo Balandier, a interpretao destes processos de massificao est relacionada com os fenmenos de massa definidos por sua forma e simbologia. A ameaa de destruio provoca diferentes reaes nos seres humanos que tanto podem manifestar sua universalizao e se dividirem apenas para enfrentar os blocos regidos pelo Estado quanto podem se manifestar de
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forma localizada. Para o autor, a reao mais comum se d face ao desconhecido, diante de situaes arriscadas que levam o indivduo a buscar abrigo na massa. Essa modalidade de reao est sempre presente na medida em que a modernidade atual sempre esconde o imprevisvel, o indito, o risco mal identificado. Dessa forma, nos tempos modernos, so comuns as aglomeraes urbanas (que se fazem e desfazem em lugares pblicos: metr, igreja, grandes estabelecimentos comerciais etc.) abertas a mudanas rpidas de uma populao composta por indivduos com precrios vnculos de afinidade. A inflao, nas sociedades modernas e consumistas, tambm a inflao das coisas e daquilo que se converteu em mercadoria e banaliza tambm a as aspiraes e os desejos, tendendo a formar uma massa de consumidores receptiva aos apelos publicitrios e mantida, ao mesmo tempo, sob permanente influncia. Assim, a prostituio, como uma atividade que se adequou s novas demandas de sexo no mundo globalizado, no deve ser compreendida como algo estranho, anormal, mas como uma sntese de tudo isso. Essa receptividade ou inrcia, apenas aparentemente abarca a realidade em sua totalidade, pois existe uma passividade que no se integra ao institudo, mas que a ele se ope, subvertendo o poder (GUIMARES, 1996, p. 16). O banal, para a autora, pode se constituir numa forma de criao que foge de uma atividade finalizada e que tenderia a se esgotar em si mesma. Dessa forma, as submisses, muitas vezes, podem representar resistncias concretas, desde que sejam levadas em conta as atitudes que, assumidas coletivamente, interrompam ou, pelo menos, desviem imposies que visem homogeneizao. Por isso, a alienao66 na sociedade no absoluta porque a socialidade mantm permanentemente a contradio entre a aceitao e a resistncia. Na concepo de Heller (2000), socialidade significa fundamentalmente historicidade uma historicidade que tem o trabalho como seu pressuposto. Contudo no podemos compreender a socialidade de forma linear, posto que o trabalho no se reduz ao ato da produo. Precisamos considerar a tendncia constitutiva das formaes sociais, no sentido da gerao ininterrupta de novas formas de vida em sociedade que, mesmo originadas em segmentos especficos, podem ser generalizadas. Assim, mesmo levando em conta as influncias e os poderes institudos responsveis pelas continuidades conseguidas por meio da indiferenciao proporcionada pelo aprendizado do
- Este conceito utilizado pela autora numa perspectiva que ressalta o desclassificado como qualquer indivduo que no se insere no mercado de trabalho e, conseqentemente, na sociedade. 66 - Guimares (1996) inspira-se em Maffesoli e, como ele, acredita que a alienao na sociedade no absoluta porque a socialidade no significa unanimidade, uma vez que se organiza na tenso entre aceitao e resistncia, subjetividade e coletivo.
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desempenho de papis (socializao), simultaneamente, as descontinuidades e as diferenciaes, levariam aos processos de socialidade da maneira como foi analisada por Guimares, pois, como afirmou Mrkus (1973, p. 30): A socialidade um trao essencial do indivduo inteiro e penetra em todas as formas de sua atividade vital. Discutindo a violncia banal67, Guimares (1996) lembra as diferentes formas de expresso utilizadas pelas massas para fugir das imposies sociais. O conformismo, a mscara, a polidez, os costumes, enfim, tudo o que pode apresentar um duplo sentido constitui uma proteo. Nessa luta pela sobrevivncia, a astcia fundamental, por isso, para a autora, a relativizao absoluta e cnica dos valores dominantes muito mais subversiva porque utiliza a aparente submisso como escudo contra um complexo institucional que ignora as diferenas. Essa astcia popular enraizada no cotidiano permite sobreviver e resistir s imposies do social ao mesmo tempo que mantm sua soberania para alm do poltico e do econmico. Segundo a autora, a particularidade dessas resistncias a solidariedade orgnica68, que expressaria um esprito coletivo e permitiria uma convivncia feita no s de harmonia, mas tambm de excessos e de uma violncia que retorna ritualmente para reunir o que havia dispersado, isto , so momentos nos quais a vida se coloca em jogo, unificando o que est dissociado e evitando a acelerao incontrolada dos conflitos. Na literatura do sculo XIX, fazia-se uma associao entre as prostitutas, os perigos das perverses sexuais e a ameaa da destruio dos lares. O poder nefasto da meretriz era divulgado, nesta poca, pelo cinematgrafo, pelos jornais, bem como pelos discursos das elites. Acreditamos que a fora dessa representao da prostituta gradativamente diminuiu com a solidificao do mercado capitalista no Brasil. Ocorreu, a partir da, um redimensionamento dos valores, pois, assim como a sociedade capitalista tende a transformar tudo em mercadoria, ela tambm apaga todos os vestgios humanos. Como refletiu Peixoto (1982), as mercadorias no portam mais estigmas, elas tm de amoldar-se perfeitamente s mos e casa de seu eventual comprador, no guardam mais sobre si marcas de quem as possui no momento, estando sempre
- Segundo Guimares (1996, p. 16), a banalidade tudo o que est fora do alcance de todo o poder exterior, mas que alicera o prazer de estar junto. O banal aparece [...] como uma forma de criao que escapa a uma atividade finalizada e que se esgota em si mesma. 68 - Para Maffesoli, a solidariedade orgnica entendida no sentido inverso ao de mile Durkheim. na vida cotidiana que a solidariedade orgnica se manifesta, mantendo laos sociais onde a duplicidade, o riso, a tagarelice, o silncio e a astcia garantem, em forma de resistncia, a coeso do grupo. No se trata de unanimidade, nem de uma solidariedade mecnica que isola os indivduos uns dos outros e os torna dependentes de um poder desvinculado da vida social, mas de uma organicidade fundada na multiplicidade da fora coletiva que, escapando da indiferenciao que os poderes institudos tentam impor, garante a sobrevivncia do social. (cf. Guimares, 1996, p. 19).
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prontas a mudar de mos. Tanto o trabalhador assalariado como a prostituta, assim, postam-se nas ruas, prontos a se oferecerem ao desconhecido que passa. A radical transformao de todas as coisas em mercadorias tambm foi tratada por Bloch (2005), cujas reflexes sobre as imagens do desejo, refletidas no espelho, mostram homens e mulheres em busca de seus melhores ngulos. Nesta reflexo, o autor refere-se queles que, quando tratam de questes relacionadas ao vender-se, so muito eficientes. O eu, nesta condio, transmutar-se-ia em mercadoria corrente e atraente, num processo de aprendizagem, ou melhor, de socializao, que s possvel se partirmos da observao atenta da maneira como os outros se apresentam, se vestem, bem como daquilo que est exposto na vitrine, alm de ns prprios refletidos nela. Contudo, para Bloch, nenhum homem ou mulher pode fazer de si mesmo nada que j no tenha iniciado em si mesmo. Da mesma forma, o que nos atrai nas belas embalagens, gestos e coisas apenas o que h muito j habitava, ainda que vagamente, o nosso prprio desejar e, por isso, nos deixamos seduzir. Maquiagens e roupas extravagantes ajudam o sonho a respeito de ns mesmos como que a sair da toca. So acessrios que procuram realar algo que j possuamos, pois no possvel nos falsificarmos totalmente, pelo menos o nosso desejar autntico. Bloch, cuja crtica endereada ao carter individualista dos hbitos e desejos dos jovens, acredita que nossas posturas reflitam aquilo que somos e, dessa forma, mesmo quando procuramos dissimula-las, nos tramos. Beauvoir tambm fez uma abordagem da mesma natureza sobre as mulheres burguesas, as quais, segundo ela, no se contrapunham sociedade em que viviam porque, ao invs de desejarem a desagregao da ordem capitalista, temiam seu fim por suporem que terminariam tambm seus privilgios. As mulheres so formadas para assimilarem um determinado modelo feminino, construdo socialmente a fim de torn-las esposas submissas e mes dedicadas ou violentas. Apesar disso, tanto os homens quanto as mulheres participam dessa construo, condicionados pela instituio social que os moldou, sendo tambm fabricantes, participantes da auto-instituio da sociedade e assumindo, portanto, o representar e o fazer, o pensar e o agir, enfim, a criao de formas para sua condio social e de gnero. Neste contexto da instituio social, so constantemente criadas novas formas de viver e pensar o mundo, num processo de renovao, onde linguagem e memria so fundamentais. Para Comay (1997), o trabalho da memria seria como a escavao incessante de vestgios, runas,
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fragmentos partidos da cadeia de conexes anteriores, de modo a permanecer no assimilados nas sbrias alcovas da retrospeco. O prprio Benjamin ressaltou que a lngua tem indicado que a memria no um instrumento para a explorao do passado, , antes, o meio. o meio onde se deu a vivncia, da mesmo forma que o solo o meio no qual as antigas cidades esto soterradas (BENJAMIN, 1997, p. 239). Segundo o autor, aquele que procura se aproximar-se de seu prprio passado enterrado deve se conduzir como um homem que escava, pois isso determina a postura das reminiscncias autnticas. Estes indivduos no devem, portanto, temer o retorno repetido s mesmas situaes. Da mesma forma, em nosso estudo, os fatos narrados quase sempre se caracterizam por lembranas muito desagradveis, vividas por jovens mulheres que enfrentaram o desafio de revolver esse passado, no caso delas, muito recente. Em Arendt, a palavra o oposto da violncia, ao passo que, nas narrativas deste estudo, a violncia constante, tendo feito, desde sempre, parte do cotidiano dessas mulheres. Por isso, o dilogo no era considerado um valor no contexto de suas vidas. Resta-nos, assim, compreender a escolha da prostituio num horizonte limitado de perspectivas, de formao do ser social, atravs de uma violncia cotidianamente naturalizada. Alm disso, todas as entrevistadas precisaram ganhar a vida desde a infncia: Andria comeou como empregada domstica aos 13 anos; Luana, antes de entrar na prostituio, j trabalhava em um bar no bairro onde morava. Juliana, aos 11 anos, antes da gravidez, j trabalhava numa confeco para ajudar a me nas despesas domsticas. No , entretanto, a necessidade de trabalhar que carrega os vestgios de revolta nessas memrias, pois todas elas concebem o trabalho como algo to natural quanto comer e dormir, independentemente da idade em que comearam. No h nelas, em relao ao trabalho, nenhum vestgio de revolta, mesmo quando este representava explorao. na memria da violncia fsica ou sexual que se refugia o dio contra as injustias. Dessa forma, o trabalho na prostituio, em si, no considerado violncia, embora, no contexto da prostituio, tenha havido situaes de violncia. O fato que estes eventos, na viso destas mulheres, no estavam vinculados diretamente ao exerccio das prticas prostituintes. O contato com a realidade destas jovens que ingressam to cedo no mundo da prostituio representou para ns algo inusitado. Embora estivssemos acostumados a desenvolver, no espao da academia, pesquisas relacionadas com a temtica da violncia, nossa percepo deste fenmeno limitava-se compreenso do exerccio da prostituio como uma das vrias formas de manifestao de degradao das condies de vida no mundo moderno. Entretanto, os meandros
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que conduzem a esta degradao (desvelados), no decorrer da pesquisa, apresentaram uma complexidade ainda maior. A pesquisa nos mostrou que as situaes marginais e transgressoras, podem contribuir com a produo do conhecimento tanto quanto a observao do mundo do trabalho, da escola ou de outras instituies sociais, pois, como lembrou Peixoto (1982), a teoria da flnerie em Benjamin postula o divertimento como princpio do comportamento social e tambm do conhecimento. Assim, na perspectiva benjaminiana, o passeio distrado, com sua ambientao fantasmagrica, era suscetvel de tornar-se uma mera busca pela novidade, sendo que sua interrupo dependeria da interrupo do processo de transformao das coisas em mercadorias. Uma sociedade que expe a prostituta, ao mesmo tempo, como vendedora e mercadoria, assenta-se sobre uma dupla realidade pertencente s coisas e s pessoas. Essa a lgica da modernidade e qualquer interrupo dela significaria o despedaamento deste modelo de sociedade que se equilibra na seduo exercida por meio de suas mercadorias transformadas em puro fetiches.
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