05.O Lugar Da Ética Na Sociedade Actual
05.O Lugar Da Ética Na Sociedade Actual
05.O Lugar Da Ética Na Sociedade Actual
Pois, se 0 com-
portamento do homem de hoje fosse totalmente imoral, per-
verso e negativo, por que 0 homem estaria mantendo urn
tal est ado de coisas, que finalmente result a na constru~ao
A, etica. nao ocupa propriamente um lugar na sociedade , de seu proprio inferno? E isto significaria que 0 homem de
mas e 0 czmento da coesao social. A uerdadeira etica e hoje e sadico e masoquista, criando uma situa<;ao infernal,
opr;ao consciente num processo civilizat6rio e se consolida sem etica, para si e seus companheiros. Se fosse assim ate
na med~da em ~ue uma sociedade opta por projetos e fins a poderiamos entender que nao ha lugar para a etica na so-
perseguzr, e artzcula meios para alcanr;ar os seus objetivos. ciedade atual.
Pa-;a, ~ue se possa falar numa etica de fato existem requisitos
pre-etzcos a serem cumpridos. Quando na vida de uma pes- Julgo que uma posi<;ao destas e urn equivoco antropo-
soa, o~ de um grupo, nao existem as condir;oes minim as para logico. Por isto, para progredirmos em nossas reflexOes, sao
uma vzda humana digna, tambem nao podera existir etica. 0 necessarias algumas considera<;Oesprelirninares.
Brasil, desde as suas origens, nunca optou por uma sociedade
verdadeiramente etica. Para que isto pudesse acontecer seria
ne~ess~rio .efetivar ur:- debate filos6fico muito mais profundo, 2.1 - .De que sociedade se trata? 0 titulo de minha palestra
p~zs. so asszm ch:g~rzamos ao conhecimento de nossas poten- fala em "sociedade atual".
czalzdades ontologzcas e dos condicionamentos sist€micos de
nossa hist6ria. Este conhecimento e fundamental para criar E notorio que 0 conceito "sociedade" apresenta facet as
uma consciencia etica, onde a etica se situasse como nucleo multiplas. Perguntei a uma pessoa', fora do mundo acade-
da coesao social em nosso pais. mico, 0 que achava da sociedade atual. Explicou-me que
a "sociedade atual" continua muito conservadora, esnobe,
fechada em si, cheia de intrigas casamenteiras, fofocas e total
l.Status quaestionis Quando comecei a reunir as ideias insensibilidade social. Como se ve, esta pessoa entende por
desta palestra perguntei a urn colega 0 que ele diria do "lugar "sociedade atual" a dita "high society", que aqui no Rec.ife
da etica na sociedade atual". Simplesmente me respondeu: seria a "sociedade" dos cronistas sociais ou dos opulentos,
nada. Segundo ele a etica nao tern lugar na sociedade atual. para os quais 0 resto que se danej ainda se poderiam incluir
Uma tal posi~~o, naturalmente, reflete uma visao pessimist a, neste conceito de sociedade os "marajas", os parentes das
em que a socledade atual aparece como corrupta, imoral, "damas" da politica, ou os amigos dos parentes de politicos
perversa, sem perspectivas de reversao. Tal'visao tambem detentores do poder na "soci~dade 'brasileira" j a "sociedade" ,
assim como a entendia a minha interlocutora, seria tambem
S * Conferencia pronunciada em 07.10.1991, durante a.XII a "sociedade" das novelas da televisao: cheias de mesqui-
b emana de Filosofia da Universidade Cat6lica de Pernam. nharias e imoralidades.
uco.
** 1 ' .
U . naczo Strieder e profe330r do M estrado de Filo3ofia da Em outros sentidos poderia-se entender por "sociedade
nzversidade Federal de Pernambuco atual" a organiza<;ao social europeia, americana, brasileira,
nordestina ou recifense em geral.
etica na sociedade atual e preciso perguntar se os requisitos
Nao pretendo preocupar-me muito com bl pte-eticos ja estao postos em nossa sociedade. Nao podemos
eticos da sociedade europeia americana odspro. edmdas buscar etica num grupo humano em que os requisitos pre-
'd ' . ' , ou a SOClea e
num sentI 0 genenco. Procurarei deter-me na bl 't' eticos nao foram cumpridos.
't' d pro ema lca
e lca e nosso contexto humano E ist . 'fi .
" '" . 0 slgm ca perguntar 2.3 - A sociedade da qual devo falar esta adjetivada com 0
por nossa socledade , por nossos simbolo I
. - ., . s, va ores, normas, termo "atual". Nao se deve entender que a "sociedade
convlc~oes, prmclplOs, objetivos e sentidos T d . t
dir t t . u 0 IS 0 mexe atual" existe por si. Que ela de repente se constituiu
e amen e com nossa realidade existencial. .
assim como a identificamos. A "sociedade atual" tem
2.2 - E aqui se coloca uma segunda questao-. Se ' , raizes historicas e ideologicas, ela nao existe por acaso.
al . . raque nos
re mente nos sentImos membros de uma "soci~dade"? Por isto, mais adiante, veremos algumas provaveis raizes
de nossa situa~ao etica atual.
o
. ·fi.
conceito "sociedade" vem de "socius" d I t'
, 0 a 1m, que
slgm ca co~panhelro, socio, cumplice. Port an to, sociedade 2.4 - Quanto ao lugar que queremos encontrar para a etica
s?~ente ,exIs~e onde os, individuos possuem companheiros, na sociedade atual, nao se deve entender este "lugar"
SOClOS,cumphces c~m slmbolos, valores, normas e objetivos como algo espacial. De fato a etica nao ocupa lugar na
em c~mum, os .qUaIS buscam compartilhar. A partir deste sociedade. A presen~a da etica se manifesta e estabelece
concelto de socledade pode-se ainda aprofundar a questao na medida em que a sociedade fundament a suas bases
perguntando quando a sociedade e uma "sociedade etica". ' na racionalidade. 0 ethos e 0 conjunto de principios
e valores que dinamizam e norteiam a conduta de urn
E aqui est~ 0 "X" da questao: a sociedade brasileira nao povo. E uma determinada moral, vista do angulo so-
~e parece suficlentemente agregada para que possa ser con- cial, nada mais e do que a formula~ao teorica dos ob.;e-
slderada uma sociedade de fato. Ainda mais, 0 divorcio cul- tivos, inten~oes e meios, que as institui<;oes se propoern
tural,_econo~i:o e politico entre os varios segmentos da po- a empregar na defesa e promOC;;aodo direito das pessoas
pul~~ao br~llelra e tamanho que, em vez de uma agrega~ao e das comunidades na realizac;;ao plena de suas poten-
S?Clal,. v~r~ficamos uma terrivel desagrega~ao. Num sen- ·cialidades. A etica e como que a sintese codificada da
tldo ~lstonco, 0 Brasil nunca optou por uma sociedade ver- experiencia e sabedoria de urn povo. Por isto, antes de
~adelra, e muito menos por uma sociedade etica. Ese a par- ser doutrina e projetol. A etica, assim, nao ocupa urn
tIr de agora se conseguisse iniciar urn processo civilizatorio lugar determinado na sociedade, mas permeia todo 0
cujo objetivo fosse formar uma verdadeira sociedade brasi~ organismo social.
leira, deveriamos saber que a aceita<;ao dos pre-requisitos da
co~stru~ao de tal sociedade nao seria irnediata. lsto imp li- 3. A etica como "cimento" da coesao social
carla na mudan~a de mentalidade. E mudar uma mentali- . d' t .a da cons-
dade de quatro seculos nao e facil. Recorro aqui a uma analogia com a IIIus n
Diante disto entendo que antes de falar sobre 0 lugar cia 1 Cf. J. Marcos BACH. Uma nova moral.
Vozes, 1982, p. 11.17.
tru~ao. A funcao da etica na sociedade e semelhante a do aperfei~oamento total. Para isto possuem si~olos, valo-
cimento na constru~ao de urn predio. A etica adquire im- res normas, projetos, ideiais, esperan~as e obJetlvos que os
portancia na medida em que se agregam racionalmente os no;teiam. Como se ve, existe uma serie de exigencias pre-
.varios elementos que sustentam uma sociedade. A presen~a liminares para que os homens se possam considerar compa-
da etica pressupoe, necessariamente, que os elementos fun- nheiros e procurem contribuir para 0 bem comum.
damentais da sociedade ja existam e que possuam suficiente
consistencia. Somente assim 0 "cimento" da coesao social, a 4. Exigencias preliminares da etica
etica, produzira 0 efeito certo e encontrara a forma adequada
aos componentes sociais. Na constru~ao de urn predio, 0 me- Em primeiro lugar, cada membro da socieda?e devera
lhor cimento nada garantira se ele nao estiver bem dosado, alimentar urn conceito positivo de seu companhelro. Con-
se os tijolos nao forem bons, inteiros, do mesmo tamanhoj sidera-Io urn ser humano. Nao fazer acep~ao de pess?as.
se 0 ferro e a brita nao forem adequados para as colunas. Sem uma certa igualdade nao existe etica. Para que Isto
Assim tambem a melhor das eticas nada conseguira se nao aconte~a e necessario que nos conhe~amos a nos mesmos
existirem as condi~oes minimas para uma vida social hu- e procuremos conhecer aos outros. A analise da condi~ao
mana. Por isto, para avaliar eticamente qualquer situa~ao, etica de uma sociedade pressupOe, por isto, uma antropolo-
ou a sociedade como urn todo, e preciso deter-se primeira- gia filosofica, uma antropovisao, q,~e ~os ~e:ele e~ement~s
mente nas condi~oes pre-eticas desta situa~ao, ou desta so- essenciais da natureza humana. 0 pal da etIca oCldental ~
ciedade. Na analogia que fiz, para conhecermos a qualidade SOCrates,justamente exigia que cada urn se co~hece~se a SI
do predio seria necessario conhecer a qualidade dos tijolos, mesmo como condi~ao para uma vida verdadelramente hu-
o tipo de ferro usado, e so neste contexto entra 0 cimentoj mana. 'Afinal de contas, qualquer manifesta~ao humana no
assim, se queremos examinar eticamente a sociedade e pre- mundo fenomenico tern as suas raizes nas possibilidades on-
ciso primeiramente examinar a situa~ao do homem nesta so- tologicas do ser humano. Por isto, para saber de alguma
ciedade: sua situa~ao historica, social, cultural, economica, forma como 0 homem age e porque age desta ou daquela
psicologica. Quer dizer, e necessario primeiramente exami- forma e precise deter-se sobre as manifesta~Oes do h?~em no
nar se as condi~oes pre-eticas do hornem estao de alguma mundo fenomenico. Ali se revelam as suas potenclahdades
forma satisfeitas. A etica propriamente so entra na questao essenciais. Isto significa que uma avalia~ao etica adequa:da
quando se sabe que esta sociedade ja ultrapassou 0 limiar da atua~ao do homem na sociedade atual pre~supOe 0 :o~he-
das condi~oes pre-eticas. cimento da situa~ao historica, cultural, SOCIal,economlca,
psicologica deste homem. Da qual, por sua vez, nascem sim-
o ponto de partida e 0 proprio conceito de sociedade. bolos valores, norm,as, ideais, projetos e esperan~as. Esta
E este conceito nos ensina que sociedade somente existe mes~a situa~ao reflete tambem as perversOes e todo tipo de
onde individuos assumiram compromissos mutuos, com a mal que 0 homem e capaz de originar.
esperan~a de beneficios coletivos. Toda a verdadeira so-
ciedade possui objetivos e projetos que visam facilitar a A situa~ao etica da sociedade atual nao e algo surpreen-
realiza~ao das aspira~oes dos socios. No sentido ideal, os dente, ou totalmente novo. Em primeiro lugar ela s?ment~
homens se congregam em sociedade para melhor bus car seu e possivel porque a propria natureza humana pOSSUlem S1
potencialidades p~a q~e 0 home~ assim se comporte. Ao o homem apenas urn pouco inferior aos anjos; 0 homem
mesmo tempo a dlversldade de sltua<;oes historicas e cul- foi coroado de gloria e poder na terra; e quase'" deus"
turais nos mostra que 0 proprio homem tern a capacidade na terra. Mas em outras passagens dos mesmos tex-
de assumir as suas potencialidades ontologicas e orienta-Ias to~ biblicos mostra-'Se tambem que habita no homem
livre e racionalmente para determinados objetivos institu- uma incoerencia radical: e desleal, fratricida, homicida,
cionalizando sistemas de comportamento. ' traidor, idolatra, cruel e mentiroso. E para nao se deixar
levar pelo mal necessita de urn "salvador" e de guias que
Por isto, no meu entender, a questao etica tern dois
lhe apontem constantemente 0 caminho adequado para
niveis de enfoque antropologicos: 0 nivel ontologico e 0 nivel
sistemico. a sua realiza<;ao. Destes ens inament os biblicos 0 cris-
tianismo concluiu para a doutrina do "pecado original",
5. 0 nivel onto16gico do ser humano on de se ensina que 0 homem, em sua estrutura essen-
cial, possui uma ambiguidade, que 0 puxa para 0 mal.
Urn dos prindpios da antropologia filosofica ensina que Desta forma a humanidade em geral, e 0 homem como
o homem manifest a elementos de sua essencia por sua a<;ao individuo, tern a possibilidade de encaminhar-se em sua
(agere sequitur esse). Em outras palavras, a nossa praxis historia por dois caminhos: 0 caminho dos bons e 0 cam-
esta ancorada na natureza essencial do homem. Ou rever- inho dos maus. Na biblia estes dois caminhos nao estao
tendo esta constata<;ao para uma linguagem existencialista, radicalmente separados entre si, como no manique1smo,
no agir 0 homem constroi a sua essencia. Assim 0 homem mas se entrecruzam constantemente na historia. E 0
explicit a quem ele e at raves de seu procedimento, em seu trigo e 0 joio que crescem juntos em todos os tempos da
comportamento. E uma parcela deste comportamento se historia humana.
articula no ambito da moral, constituindo-se em objeto de
analise etica. Isto faz com que, de alguma forma, chegue- Nos ensinamentos biblicos fundamentalmente se reco-
mos ao conhecimento do homem atraves da analise de seu nhece no homem uma tendencia natural para 0 bern, contudo
comportamento moral, i.e, por sua atitude em rela<;ao aos tambem se acentua que 0 caminho do mal e mais largo, mais
conteudos do bem e do mal. facil ~ sedutor do que 0 caminho do bern, estreito e dificil.
Destes ensinamentos biblicos decorre a ideia de que a hu-
Tomando como base esta constata<;ao antropologica, te- manidade necessita constantemente de profetas, de homens
ologos e filosofos, desde a Antiguidade, tentaram explicar exemplares, que indiquem a humanidade as vantage~s do
quem e 0 homem ou desvendar em parte suas estruturas caminho do bem, 0 unico que podera levar 0 homem a sua
essenciais. Neste 'sentido encontramos na historia do pen- realiza<;ao. Mas, mesmo que 0 homem escolha 0 caminho ~o
samento ocidental uma serie de enunciados antropologicos bern, muitas vezes se surpreendera praticando 0 mal que nao
interessantes. Vejamos alguns destes enunciados, dos quais quer, e deixando de praticar 0 bem que quer.
fluem conclusoes eticas importantes.
Estes ensinamentos biblicos, que nao possuem ap,e~as
5.1 - Em textos da sabedoria biblica se ensina que 0 homem valor religioso mas revel am uma sabedoria antropologlc~
foi feito it. imagem e semelhanc;a de Deus; que Deus criou , . ue pOSSUl
profunda, caractenzam 0 homem como urn ser q
uma imperfei~o essendal. 0 homem e um ser nem born em rela<;;ooao homem, e considera 0 homem "born por na-
nem mau em sua essencia. Por natureza possui carencia de tureza", a culpada pelas perversOes e a sociedade. Em
perfeic;;ao. Em sua vida tenta suprir esta carencia. E ai se KANT 0 "born selvagem" de Rousseau se transforma no
abrem os dois caminhos. Ele podeni suprir esta carencia "homem natural", que noo e nem moral, nem imoral. 0
essencial de forma adequada, ou de forma inadequada. 0 homem concreto, em KANT, sofre de um "mal radical".
mal nao se encontra, portanto, primordialmente no homem, Por isto tudo degenera nas moos do homem no decorrer
mas na forma e nos meios que usa para preencher 0 vazio de da historia.' Para FICHTE 0 homem nao se caracteriza
sua carencia existencial. como ser racional, mas como urn ser que esta buscando
tornar-se racional; HAECKEL, disdpulo de DARWIN, con-
5.2 - Na filosofia as exigencias e os compromisssos eticos nos sider a 0 homem urn animal entre os animais, apenas mais
diversos sistemas dependem, evidentemente, da ideia evoluido; em NIETZSCHE 0 homem e descrito 'como urn
de homem que estes sistemas defendem. As propostas "animal doente"; ainda ha muito de "verme" e de "macaco" '
eticas dependem, portanto, de uma antropovisao, de em nos, continuarnos a ser mais macacos do qualquer maca-
uma antropologia filosofica. Semelhantemente it sabedo- co... 0 homem e como urn cabo suspenso entre 0 animal e
ria biblica, os filosofos em todos os tempos enunciam o super-homem. Para SCHELER 0 homem e bilogicamente
o que pensam do homem. E de suas conclusoes so- urn erro da vida - metafisicarnente e alguem capaz de dizer
bre 0 homem derivam as consequencias eticas em seus "noo", urn asceta da vida; para SARTRE 0 homem esta
sistemas. Vejamos algumas destas afirmac;;oessobre 0 "condenado a ser livre", mas, no fundo, tudo e abeurdo e 0
homem, que julgo significativas para a etica.2 homem e uma "paixoo inutil" ocultando em todas as suas
SOFOCLES, na Antiguidade, constata que no universo a<;;Oesuma "ma vontade radical"; HEIDEGGER caracteri-
hci muitas coisas terriveis, mas nada e mais terrivel do que za 0 homem como 0 "pastor do ser". JACQUES MONOD,
o homem. ARISTOTELES caracteriza 0 homem como urn premio Nobel de Fisiologia em 1965, considera 0 homem sim-
"animal racional e urn animal politico"; Santo AGOSTINHO plesmente urn "desastre da natureza", urn "cigano perdido
fala do "corac;;aohumano irrequieto, enquanto nao repousar .
no umverso "f, ruto cego d0 acMo. NIETZSCHE quer uma
no Absoluto (Deus)"; HOBBES diz que 0 "homem e 0 lobo realidade humana que esteja para alem do bem e do mal;
do proprio homem" , constantemente buscando destruir 0 seu FREUD pensa ter constat ado urn grande malestar na civi-
semelhante; para GIORDANO BRUNO 0 homem e "cidadao liza<;;aoocidental; VIKTOR FRANKL diz que 0 grande mal
de dois mundos'" para PASCAL 0 homem, por um lado, da sociedade atual e a falta de sentido. ERICH FROMM3 ,
, "
e fraco como um "canic;;o agitado pelos ventos , mas por talvez aprofundando a ideia do §:Q§. e do thanatos de Freud,
outro, pelo pensamento, e mais digno do que tod~ 0 ~ni- chega a conc1usao'de que duas tendencias fundarnentais do
verso fisico' pelo pensamento "0 homem transcende mfimta- homem podem cracterizar a sua vida individual ou em so-
mente 0 h~mem"; ROUSSEAU e exageradamente otimista ciedade: 0 arnor a vida (biofilia) e 0 amor a morte( tanatofilia).
Na predominancia do arnor a vida a sociedade se caracteri-
2 Cf. Edvino Rabu3ke.Antropoloqi!LEilo36fica. Petr6poli3, 3 Cf. /nacio Strieder. Os fundamentos do homem. Re-
Voze3, 1987, p. 8-13. cife, FASA/ UN/CAP, 1990, p. 45-49.
z~ri~ pelo_otimismo, a esperan<;a, 0 amor 00 pr6ximo e a na dimensao do Ser absoluto e buscaria as perfei<;Oesinade-
dlgmfica<;ao do homem; na predomimlncia do amor a morte quadamente no mundo finito, roubando perfei<;Oesque per-
a sociedade se caracterizaria pelos aspectos negativos da des- tencem aos seus semelhantes, ou que se encontrassem em
trui<;ao, perversao, 6dio e desumaniza<;ao. seu mundo contextual. E ai acontecem as falhas eticas. Es-
tas perfei<;Oesroubadas de seus serrielha~tes ou 00 mundo
Certamente cada uma destas afirma<;Oessobre 0 homem
finito, causarao deficiencias indevidas aos roubados, e nunca
retrata dimensOes da natureza essencial deste homem. E 0
satisfarao a busca da perfei<;ao-de-ser do homem, pois 0 que
conjunto delas e import ante que seja analisado para melhor
retira do mundo finito tambem e finito. E dois finitos so-
entendermos 0 comportamento deste homem na atualidade.
mados nunca gerarao 0 infinito, apenas intensificarao a sede
Sem duvida as consequencias eticas sao bem diferentes do infinito. Por isto, quem tern poder busea poder cada
quando se qualifica 0 homem como criado a imagem e seme- vez maior; 0 ladrao, mesmo roubando, querera roubar ainda
lhan<;a de Deus, ou quando 0 qualificamos como um macaco, mais; 0 beberrao fica com sede cada vez maior; 0 viciado
urn tanto desequilibrado e neur6tico. em drogas precisara cada vez mais drogas; 0 jogador nao
se esgota em jogar; 0 homicida, 0 pistoleiro, 0 assaltante,
Embora ainda se deva aceitar a opmlaO de ALEXIS o sequestrador acumularao crimes sobre crimes; a perversao
CARREL de que 0 "homem continua 0 seu maior descon- sexual se intensifica; 0 corrupto mergulhara em corrup<;ao
hecido" , contudo ha um consenso filos6fico que 0 homem, de mais profunda; os ditadores exigirao poderes cada vez rnais
fato, e urn ser carente de perfei<;ao, com uma razao e liber- absolutos e abusivos; tambem a curiosidade cientifica nao
dade que the imprimem uma vontade ilimitada de querer-ser possui limi tes em si mesma.
e de poder-ser. Por sua razao e liberdade 0 homem esta em
tensao de chegar a ser 0 pr6prio, Ser. Mas como criatura, Por isto Santo AGOSTINHO dizia que 0 nosso cora<;ao
necessariamente inclui em sua essencia uma imperfei<;ao'on- somente descansara se repousar em Deus. Esta, de fato, ~
tol6gica, impedindo-o de esgotar, no nivel de sua natureza, uma verdade antropol6gica profundissima.
a sua vontade de ser-mais, de poder-ser-mais. 0 homem
nunca podera atingir a perfei<;~ plena, igualando-se 00 Ser- .Ontologicamente 0 homem e urn ser aberto em todas
as suas dimensOes, com uma vontade-de:-ser insaciavel. Por
em-si, perfeito e absoluto. De fato, porem, tern em si a
isto, constantemente esta buscando ser mais. De fato pos-
vontade de ser urn "deus". A sabedoria biblica nos diz que
sui 0 poder de ser mais. It ai que se manifesta a dimensao
esta foi justamente a primeira tenta<;ao do homern: "sereis
como deuses". Como deixar a soltas esta vontade ilimitada etica do ser humano. A sua liberdade e razao sao sem limi-
de querer e poder-ser significaria a destrui<;ao das dirnensOes tes, mas se deixar livre curso a elas humanarnente entrara
humanas, 0 pr6prio homem, em sua sabedoria intuitiva, sabe em coos, por isto ele mesmo tera que escolher um cami-
que ele mesmo devera fixar-se limites. Por isto nao se en con- nho de vida e situar a sua razao num contexto: social, cul-
tra nenhuma cultura na terra que nao tenha norm as e cos- tural, hist6rico. E assim contextuado conscientemente for-
tumes que facilitem a vida do grupo. Pois se 0 horn em nao mara condi<;Oespara a realiza<;ao de suas potencialidades. A
se colocasse limites, buscaria ilimitadamente aperfei<;oar_se filosofia sempre afirmou que existe somente responsabilidade
etica onde existem pessoas conscientes das circunstancias e
das consequencias de s:uas ac;oes. Por isto a etica de urna to16gica do homem. Bem entendida, esta constituic;ao on-
sociedade nao e algo que se produz em laborat6rio, nern urn to16gica nos previne contra falsas esperanc;as de que um dia
sistema que se possa impor por decreta. E ~uita ignorancia chegaremos a. "terra sem males", sem imoralidade. 0 homem
acreditar que constituic;oes novas, emendoes, Dias "D" da possui em sua propria natureza a raiz da imoralidade, a sua
Educa<;ao, ou medidas provis6rias resolvam os problemas do vontade de poder-ser-cada-vez-mais 0 torna violento. E se
pais. 0 Presidente podera emitir mil medidas provis6rias, nos dedicamos a querer um homem mais moral e porque
decretando, por exemplo, que a 'partir de amanha ninguem admitimos que ele e imoral. Esta imoralidade e violencia
cometa mais homicidio no pais, que ninguem mais consurna do homem esta registrada na hist6ria. Ao mesmo tempo
drogas, que todos paguem seus impostos, 0 fim da inflac;ao, registra-se tambem na hist6ria 0 processo civilizat6rio de
que ninguem mais pode ser corrupto, ou "maraja" no pais. humanizac;ao do homem. Na hist6ria de todos os povos en-
De nada adiantara decretar que a partir de amanha nao contramos os elementos do bem e do mal coexis'tindo. E
havera mais analfabetos no pais, e que faremos parte do lQ no entrecruzamento do "amor a. vida" e do "amor a. morte"
Mundo. os grupos humanos, muitas vezes, devem .optar novamente
pelo caminho a seguir. Neste vai-e-vem das opc;Oeshist6ricas
Tais decretos, ou empenhos, ate podem ser fruto de boa
verifica-se se uma determinada sociedade se orienta pelos
vontade, mas de nada adiantarao se nao resultarem de um
camiilhos da dignificac;ao do homem,ou pelos caminhos da
processo civilizat6rio consensual, ancorado numa antropolo-
degradac;ao. Neste sentido, quais foram os encaminhamen~
gia filos6fica e humanitaria. E para conduzir adeq~a~a:nente
tos da sociedade brasileira ate agora?
um tal processo e precise se orientar p~la cO~~tltUl?aO,~n-
to16gica do homem, e analisar em que slstematlca hlstonca Segundo alguns relat6rios, ja antes de os portugueses
se manisfetaram os elementos constitutivos do homem. Por- pisarem no Brasil as condic;Oesestavam postas para se im-
tanto, para que possam ser propostos c.aminhos eticos ?ar,a plantar aqui um sistema imoral. Os relatos sobre a situa<;ao
uma sociedade e indispensavel 0 conhecImento de sua hlStO- moral de Portugal no tempo das descobertas dao conta de
ria e situar 0 comportamento do homem concreto na conti- que a passos agigantados se produzira a corrupc;ao dos cos-
nuidade dos elementos sistemicos de sua hist6ria. Como ja tumes. A sede de riquezas, inoculada pelos descobrimentos,
disse antes, a situac;ao etica da sociedade atual nao e fruto desenvolvera as paixOes do jogo, do luxe, da libertinagem.
de um acontecimento instantaneo, mas fruto de um contexto Mesffio nos mais inocentes jogos os viciados especulavam
sistemico hist6rico. com enormes somas.4
Antes de tentarmos fazer uma analise ~ai.s critica em Sobre 0 periodo de D. Joao III (1521-1557) Alexandre
relac;ao ao "lugar" da etica na sociedade atual e tlra~ a~g~mas Herculano relata, em sua "Hist6ria da origem e do estabe-
conclusoes praticas, vejamos alguns destes dados slstemlcoS.
6. A constitui~ao sistemica do homem lla sociedade 4 Cf. Coelho da Rocha. Ensaio sobre a Historia do Go-
brasileira verno e da Legislacao de Portugal, 94,95,126,129,220 ..,; L.
A. Rebello da Silva. Historia de Portugal dos seculos XVII
·
Ana 1lsamos a t"e aqUl a 19uns aspectos da constituic;ao on- e XVIII, Livro X, cap. 9Q.;p. 599.
lecimento da Inquisic;ao em Portugal"5 , que a imoralidade Algumas capitanias tornaram-se valhacouto de contraban-
pululava por toda parte: 0 povo ignorava a religiao. Havia distas. Criminosos havia que cometiam muitos crimes, mas
escravidao em Portugal,e as cenas mais terriveis da Cabana ficavam impunes se mudassem de uma para outra capitania ..
do Pai Tomaz nao assumiam cores tao carregadas como se-
riam as da descric;ao da escravidao dos mouros e negros, alem Anchieta, em sua "Informac;ao sobre 0 Brasil"s, escrita
dos outros trazidos de diversas regioes. Os filhos de escravos em 1584, se queixa de que os maiores impedimentos de que
eram marcados na cara com ferro em brasa. Quase todos eles sofria a catequese dos indios provinham dos pr6prios por-
nao eram cativados nas guerras ou comprados, mas homens tugueses, que nao tinham nenhum zelo pela salvac;ao deles.
livres arrebatados da patria pelos navegadores. E acrescentava, os que pior vivem sac os que mais tratam
com os portugueses, ensinados do seu mau exemplo e muitas
Em relac;ao aos mesmos tempos L.A. Rebello da Silva vezes pior doutrina.
relata6 que era profunda a ignorancia destes tempos; mesmo
na corte poucos sabiam ler e escrever. Feitic;os, benzimentos, Segundo 0 historiador Varnhagen9, nestes tempos, 0
agouros, adivinhac;oes, conjurac;oes diab6licas e as praticas "C6digo Filipino" castigava com degredo para 0 Brasil nada
mais supersticiosas constituiam 0 fundo da religiao popular. menos do que 256 crimes ou faltas. 0 result ado de tudo isto
Em relac;ao aos seculos XVII e XVIII 0 mesmo Rebello da foi, embora para ca viesse tambem gente muito boa nas ex-
Silva ainda informa que 0 pais ia-se arruinando na mesma pedic;oes, que no 1Q seculo de nossa hist6ria se apurasse aqui
progressao em que 0 luxo levantava 0 colo. Fazia-se tudo por a desmoralizac;ao. 0 mesmo Varnhagen ainda afirma que a
dinheiro: uma cobic;a insaciavel devorava a todos. Por outro depravac;ao da populac;ao se tornara tal que, as vesperas da
lade, havia muita miseria. E nunca se correra tanto atras do invasao holandesa, 0 Brasil bradava aos ceus, por causa de
dinheiro e do aura como nestes tempos de miseria. seus costumes pervertidos, pedindo uma invasao.
Segundo Oliveira Martins 7, 0 geral da populac;ao que Em 1657, em urn extenso relat6rio que Antonio Vieira
o Brasil adquiriu nos primeiros tempos foi a pior possive!. enviou do Maranhao ao Rei, ele protesta que as injustic;as e
Para ca vinham carregamentos de mulheres mais ou menos tiranias aos indios excediam as feitas peles portugueses na
perdidas. 0 Brasil era, alem· disto, asilo, couto e homisio A.frita; que em 40 anos matara-se por esta costa e sertoes
garantido a todos os criminosos que ai quisessem ir. Em mais de dois milhoes de indios, e mais de quinhentas povoa-
pouco tempo, alem da escravidao dos indios, aprisionados c;oes. Edisto nunca se vira castigo e se requeria ao Rei para
em guerra ou nao, veio tambem ados escravos africanos. continuar esta matanc;a. Em outra ocasiao Vieira ja havia
escrito que esta terrivel escravidao disfarc;ada dos indios era
5 Of. A. Herculano. HiJtoria da origem e do eJtabele. mantida pelos pr6prios governantes.
cimento da inquiJiciio em Portugal, Livro VII, tomo 9Q., p. Em 1707, no primeiro encontro dos bispos do Brasil na
10-47; livro II, 10.
6 Of. L. A. Rebello da Silva, op. cit.
8 Idem, p. 90
7 Of. Oliveira M artinJ. 0 BraJil e aJ coloniaJ portugueJaJ.
9 Of. Varnhagen. Porto Sequro, 2 ed., I, p. 146-148;
LiJboa, 1881, p. 9.
219-219; 226.
Bahia, embora nao foss~ condenado 0 sistema da escravidao, publico, "marajas", politicos e gente da elite da pior especie,
contlldo os bispos exigiam tratamento hUlIlanitario para os pistoleiros, torturadores, contrabandistas, traficantes de dro-
escravos, ameat;ando coin excomunhao os senhores de es- gas, poluidores da natureza e exterminadores de animais ...
cravos desumanos e atrozes. nao e nenhuma novidade, nem gratuito. 0 Brasil e isto
mesmo desde as suas origens.
No seculo passado, 0 frances DEBRET, urn dos fun-
dadores da Escola de Artes do Rio de Janeiro, a convite de Tudo isto, de certa forma, era ocultado a sociedade em
D. Joao VI, retratou a vida real do Brasil em pranchetas, geralj hoje ja nao e posslvel esconder toda esta realidade. 0
impressas posteriormente na Frant;a. 0 Brasil contestou, na Brasil, muitas vezes, expulsou aqueles que tentavam alertar
epoca, as cenas de Debret, afirmando que no Brasil nao havia para esta situat;ao, ou os taxava de subversivos. Hoje es-
torturas e maus tratos de escravos. Hoje os historiadores sao tamos colhendo 0 fruto desta ocultat;ao, e falta de decisao
unanimes em afirmar que Debret ainda enfeitou a realidade. para desencadear urn processo civilizat6rio, que poderia ter
revertido est as nossas falhas sistemicas, ha muito tempo.
o Conde De GOBINEAU, diplomata frances do seculo
passado no Brasil, escreve em sua ohra de Filosofia da His- A situat;ao interna do pals se reflete fortemente no exte-
t6ria, que a populat;ao brasileira nao tern estrutura para ser rior. Muitos brasileiros, quando saem do Brasil, fazem tudo
diferente do que e. para nao se identificarem como brasileiros. Em varios palses
ha. fortes preconceitos contra brasileiros. Ha, por exemplo,
Alem destes relatos podedamos mencionar a Guerra do hoteis em Orlando, nos Estados Unidos, que nao -aceitam
Paraguai, em que 0 Brasil foi parceiro de urn verdadeiro grupos de turistas brasileiros, pois nao querem baderna. Em
genoddio de urn povo. E, certamente, os soldados brasileiros, alguns lugares do mundo ha lojas que proibem a entrada de
que participaram desta guerra, nao voltaram dela mais hu- brasileiros, com medo de serem roubadas.
manizados.
Dentro da realidade brasileira formaram-se assim como
Com estas poucas referencias hist6ricas ao nosso pas- que duas sociedades: uma parcela social e composta de pes-
sado nao estou querendo dizer que devemos simplesmente sOaS simpaticas, alegres, cordiais, religiosas, pa:dficas,~ti-
aceitar 0 que os historiadores nos dizem. Mas, embora estes baderneiras, muito senslveis a qualquer crHicaj mas, ao mes-
textos sejam prioritariamente negativos, deixando de lado mo tempo, mas, burladoras das leis, corruptas, imorais, in-
muita coisa boa, contudo eles nos mostram que nao somos teressadas somente no que lhes convem e sem nenhuma not;ao
um povo tao born, compreensivo, cordial, afetivo, simpatico, de bem comum. Esta soci~dade hoje esta escandalizada com
filantr6pico, religioso como muitas vezes nos quiseram ensi- a violencia, com os'sequestros, com as greves, com os cheira-
nar. Urn estudo objetivo da hist6ria do Brasil nos mostra as cola, com a reform a agraria, com os posseiros, com os fave-
terrlveis injustit;as, crueldades e opressoes praticadas nesta lados, que consideram todos como maconheiros. Para estes
terra no decorrer dos seculos. 0 fato de hoje existirem se- o povo (eles nao saD povo) nao presta. Consideram que a
questros, estupros, assaltos, homiddios, prisoes superlotadas solut;ao para esta situat;ao e a repressao.
e desumanas, corrup~ao, perversao, esquadroes da morte,
opressao, explora~ao, ignorancia, falta de interesse pelo bem Do outro lado temos aquela sociedade que nao tem es-
cola, que da cacha~a aos bebes para dormirem ou nao sen- os filhos aparecerao nas ruas como menores abandonados,
tirem dor de barriga, que cata lixo, que aluga crian~as par::t com todas as outras consequencias sociais.
pedir esmola, que nao tein saude, que nao encontra trabalho
Se a qualidade de vida de uma popula~ao estiver abaixo
e se sujeita a qualquer coisa para sobreviver. Isto faz com
do limiar da dignidade humana, os homicidios 8e multi plica-
que se intensifique no Brasil uma sociedade sem lei, sem bon-
rao. E se mata pessoas como se mata galinha, por qualquer
dade, sem compreensao nem cordialidade, mas regida apenas
ninharia.
por uma instintiva luta pela vida.
A questao etica da sociedade brasileira atual e uma
Sera que em tudo isto ainda ha urn lugar para a etica?
questao sistemica. Mas e preciso saber que a op~ao por urn
Penso que sim. Vejamos alguns indicativos neste sentido.
sistema mais etico nao depende simplesmente da vontade de
7. Bases pre-eticas para uma etica na sociedade atual urn Presidente e sim de urn processo em que se prestigie 0
desenvolvimento das potencialidades ontol6gicas numaniza-
7.1 - Descrevi ate agora aspectos ontol6gicos e aspectos sis- doras do homem, como: a racionalidade, a sociabilidade, a
temicos do homem que forma a sociedade atual. Mais liberdade, a responsabilidade, a honestidade, etc ...
de perto, a sociedade brasileira. Evidentemente nao
podemos modificar a constitui~ao ontol6gica do homem. Embora no momento pare~a que a sociedade brasileira
Resta-nos, por isto, explicitar e desenvolver sistemati- esteja num processo de deterioriza~ao sistemica, sem pers-
camente as caracterlsticas ontoI6gicas,orientando-as, de pectivas de saida, com uma desmoraliza~ao cada vez maior,
acordo com as necessidades e aspir~Oes hist6ricas do eu estou convencido que estamos, pela primeira vez, numa
homem da sociedade atual, no senti do da dignifica~ao encruzilhada hist6rica que nos permite iniciar a constru~ao
e humaniza~ao cada vez maior deste homem. E isto de uma sociedade etica. Se este processo vai levar 10, 20, 50
se podera fazer atraves da i~plementa~ao de urn ver- ou 100 anos nao sei. Mas ha indicios de uma nova fervura.
dadeiro processo civilizat6rio. Neste processo nao existe Nao sei tambem qual a pressao que a panela suportara. Mas
uma etica pronta que se possa impor como uma carapu~a sei que sem 0 aumento das· pressOes socia!s a mentalidade
por cima das pessoas. Na medida em que este processo dos tesponsaveis pelo sistema, ate agora predominante, nao
avan~a a etica assume forma e se solidifica. Como dizia se alterara.
no inicio da palestra, a etica e como que 0 cimento que
7.2. - Certamente todos estarao de acordo que hoje ja esta-
une projetos, ideais, costumes, valores, simbolos de uma
mos mais conscientes do contexto em que vivemos. Eo
sociedade. E para que se possa constituir uma etica ver-
primeiro passo para que se possa iniciar uma mudan~a
dadeira sera preciso que 0 homem nesta sociedade ul-
e saber de que se trata. Nisto nos ajudam os meios de
trapasse 0 limiar das condi~Oes sub-humanas. Ha, por-
comunica~ao. Embora grande parte dos nossos meios de
tanto, exigencias pre-eticas para que a etica possa ser 0
comunica~ao estejam nas maos de sonegadores da ver-
referencial do comportamento humano.
dade total e manipuladores das informa~Oes, contudo a
Quando, por exemplo, urn casal nao possui as condi~Oes leitura crltica das informa~Oes que fornecem nos permite
minimas de moradia, de alimenta~ao, de estrutura familiar, criar uma imagem bast ante adequada sobre 0 que esta
ocorrendo. Vejamos aind~ algumas informa<;oes, para funcionarios fantasmas, os doentes fantasmas, os aposenta-
depois tirarmos as conclusoes. dos fantasmasj os remedios nocivos nas nossas farmaciasj as
impunidadesj a justi<;a venalj os crimes do colarinho brancoj
7.3 - Na polItica: E, pOI' exemplo, lamentavel que grande os salarios de miseriaj as torturas policiaisj as prisOes su-
parte dos cidadaos brasileiros, que se candidatam a car- perlotadas e os tratamentos desumanos dos presos, etc ... A
gos polIticos, sejam induzidos pelo pr6prio processo e- nossa indigna<;ao com tudo isto ja e urn inicio de reversao.
leitoral a exercitarem a sua dimensao ontol6gica imoral.
Pois a nossa realidade hist6rica mostra que quem quer 7.4 - Nossas elites: Grande parte das nossas'elites, em todos
conquistar uma parcela de poder pela elei<;aodeve as- os niveis, e herdeira do sistema hist6rico imoral das nos-
sumir uma atitude maniqueista e imoral: todo 0 bem sas orig;ens. No sangue desta elite ainda corre 0 sangue
esta de seu lado e todo 0 mal do lado do adversario. escravagista, opressor, desumano dos donos de escravos.
A maioria dos candidatos polIticos em seus discursos Insensiveis aos problemas sociais, crU(~is. Nunca pen-
tentam rebaixar seus adversarios, pesquisando os de- saram em indenizar aqueles que suaram 0 sangue para
feitos ou supostos defeitos de seus concorrentes. Nem gerar as suas fortunas, nem do passado, nem do pre-
sao poupados os defeitos dos pais, dos irmaos, das es- sente. E quando sac os donos dos bens economicos,
posas, dos filhos, sobrinhos ou netos. E em todas as ,pouco se-Ihes da qual e a situa<;ao de saude, habita<;ao,
campanhas ha aquela baixaria. E quanto mais alta a comida, escolaridade de seus funcionarios. 0 que lhes
pretensao do cargo, tanto mais baixo se desce. Depois interessa e 0 proveito pr6prio. A todo momento ten-
de conquistado 0 poder ate se pode supor uma con- tam neutralizar as associa<;oes de trabalhadore~, para
versao, e 0 vencedor abra<;ar a quem chamou de ladrao. nao sofrerem pressoes. Sao contra a reforma agraria, a
Mas destes encontros pode-se tambem desconfiar de que participa<;ao de lucros, etc.
nao sejam conversao, mas aproxima<;aode iguais, contra
Tambem neste nivel ha iniciativas novas na sociedade
as pr6prias leis da fisica onde polos iguais se repelem.
atual. Urn processo que, a meu vel', se fortificara no futuro.
o nosso sistema polItico desconhece as pontencialidades
ontol6gicas do homem da vontade-de-poder ilimitada, 7.5 - A escolaridade: Ha poucos anos corria nos meios. a-
com a consequente violencia e imoralidade. cademicos do Recife uma apostila de EPB em que se
dizia que 0 Mobral ja havia alfabetizado 70 milhOes de
Mas, na medida em que nos tornarmos conscientes deste
brasileiros, e que em poucos anos s6 haveria mais no
sistema, podemos esperar que nas pr6ximas elei<;oesja sur-
Brasil. 5% de analfabetos. Eram os numeros da men-
jam alternativas melhores, pois hoje mais gente con~ece os
tira. Hoje todos sabemos em que situa<;ao calamitosa
acordos escusos de cavalheiros que arrumam a republica;
se encontra 0 ensino no Brasil. Mas ao mesmo tempo
conhecemos os abusos de salarios auto-outorgadosj os benefi-
estamos conscientes que sem escolaridade para toda a
cios para alem da imagina<;aoj as verbas que desapareceramj
popula<;ao, nenhuma medida provis6ria do Presidente
os emprestimos publicos que escorregaram pOl' bolsos indi- colocara 0 Brasil no lQ Mundo.
viduaisj as torturas e desaparecimento de pessoasj os crimes
de "gente bem", ou de seus filhos, que foram silenciadosj os
tor tUrlstico afi:mam que 0 Nordeste, e 0 Recife em 7.7 - 0 transito: 0 Brasil e recordist a mundial de acidentes
particular, tern voca<;ao turlstica. Estou de acordo que de transito. Observando a agita<;ao do nosso transito
realmente a voca<;aotUrlstica exista. Mas existem certas temos a impressao que todo mundo esta fugindo das
condi<;Oespara que est a voca<;ao possa desabrochar. 0 bombas de uma guerra. Faixas de pedesttes, smalS,
que se fez ate agora foi financiar alguns empresarios, ate nada e garantia de seguran<;a.
com dinheiros da SUDENE, para melhorarem sua rede
Esta area da sociedade e certamente uma das mais ca-
hoteleira. Mas nao sao so hoteis que atraem bons tu-
rentes de racionalidade e de sistema etico. A intensidade do
ristas. Isto depende das condi<;Oesdo povo que vai aco-
transito e muito recente no Brasil, e 0 povo teve acesso aos
lher estes turistas, e do tipo de turista que procuramos
velculos velozes sem passar por urn processo educacional.
atrair. E 0 que se repara. Grande parte da propaganda
E as autoridades do transito demonstram uma ignorancia
tUrlstica feita no exterior apenas consegue afrair urn
enorme do que seria urn transito etico, por isto deixam a
pessimo turismo. Acontece que muitos promotores de
popula<;ao entregue aos assassinos do volante.
nosso turismo pens am que 0 turismo se faz it base da
safadeza, por isto incluem em suas propagandas a ideia 8. Conclusoes sugestivas em reIa~ao ao Iugar da etica
de que no Brasil ha liberdade sexual sem limites, com na sociedade
prostitutas it vontade. Por isto muitos turistas que vem
para ca se querem espaldar sexualmente. E na mesma Muitos outros aspectos de nossa realidade poderiam ser
propor<;ao em que crescem os nossos hoteis desenvolve- abordados a partir de suas condi<;oes eticas, mas se con-
se tambem a prostitui<;ao. E como, muitas vezes, este tinuassemos nossas referencias, em vez de uma conferencia,
turismo e subvencionado, nos podemos dizer que 0 nosso desenvolveriamos urn livro.
turismo inclui, de certa form~, uma escravidao subven-
Penso que por detras de toda a problematica etica no
cionada. Pois 0 que e a prostitui<;ao senao escravidao,
Brasil esta subjacente uma grande ignorancia ontologica do
em que uma pessoa compra 0 corpo de outra pessoa?
ser humano e, consequentemente, surgem as falhas na con-
Urn tal turismo, evidentemente, nao pode dar certo por du<;ap sistemica de nossa sociedade.
muito tempo. 0 turismo que' pretenda ser consistente, de-
vera ser urn turismo baseado em condi<;Oeseticas. Os paises
o Brasil nao possui, por enquanto,' estrutura filosofica
consequente em seus projetos, objetivos e ideais. Ainda nao
que acolhem maior numero de turistas, promovem urn tu-
possuimos as caracteristicas proprias de uma sociedade. Por
rismo cultural ou ludico, sem apelos it prostitlli<;ao ou ao
isto tambem nao existe uma mentalidade etica, nem poderia
homossexualismo.
existir. Os problemas e as conquistas de uma sociedade nao
Na medida em que 0 nosso sistema tUrlstico falhar ele sao problemas e conquistas isoladas. Ra uma organicidade
exigira dos responsaveis uma crltica mais acurada e compa- subjacente. Vma sociedade mio pode ser governada pela
rativa. Por isto, neste campo tambem ha uma perspectiva vontade de urn so, nem pelas noticias dos jornais. Morre
de melhoras. alguem na fila do INAMPS, 0 Presidente manda seu Minis-
tro intervir; descobre-se cocaina em alguma parte do pais, 0
Tuma esta la; ha contrabando .de carne no Porto, 0 ministro Mas, ao que parece, a unica saida para 0 crescimento de
Cabrera vai la; um cara da um tiro num prefeito em.Alagoas, uma sociedade etica e 0 incentivo a aproximac;aacomunitaria
o Presidente manda prende-Io, OU nao, de acordo com 0 caso. dos homens entre si. Somente assim se estruturara uma
Isto tudo da a impressao que 0 Brasil e governado de caso verdadeira sociedade, em que todos assumam compromis-
em caso, sem que haja um eixo central, uma coluna vertebral sos com os seus companheiros, sabendo que a dignidade de
de prindpios. Naturalmente isto faz com que tudo pare~a cada um depende da dignidade do outro. E como a teolo-
desarticulado. gia da libertac;ao esta sEmdodeslocada deste processo, seria
bom que se intensificasse uma filosofi~da libertac;ao. Esta
Se formos capazes de montar projetos, buscar fins em
filosofia teria diante de si uma enorme tarefa de mostrar que
vistas it dignific~ao do homem brasileiro tamoom saberemos
o nucleo logico de toda sociedade e a etica.
encontrar os meios para executar estes objetivos. E no uso
destes meios se encontra 0 lugar da etica. Se nao tivermos Tenho a impressao de que existe uma enorme tarefa para _
fins, nem meios adequados, tambem nao havera etica. a filosofia no sentido de criar uma sociedade etica. E neste
sentido talvez poderfamos caminhar mais depressa se a so-
Os fins e os meios mais adequados para .asociedade ape- ciedade brasileira se convencesseque the falta muita filosofia.
nas poderao ser estabelecidos por uma sociedade consciente, No Brasil os filosofos, e a sua avaliac;aoetica, deveria estar
racional e livre. E esta sociedade so conseguiremos atraves presente em todos os segmentos da sociedade, nao para mo-
da educac;ao. ralizar, mas para avaliar os projetos sociais sob 0 angulo de
sua coesao a partir dos elementos eticos inerentes ao~ proje-
Nem a moraliza~ao da sociedade se podera fazer at raves tos que se pretende desenvolver.
de campanhas, nem a educa~ao se resolvera atraves de
"DIAS D DA EDUCAQAO". Fica aqui a sujestao para que 0 Governo, os empresarios,
os politicos convoquem os filosofospara apreciarem 0 quanto
A educa~8.0de um povo, e consequentemente a sua etica, de humano, e, portanto, de etica existe em suas propostas.
somente serao fruto de um processo civilizatorio. E este pro-
Certamente nao poderemos esperar que medidas pro-
cesso civilizatorio nao se refere apenas aos analfabetos. No visorias resolvam os problemas do Brasil, que saD principal-
Brasil todos nos, politicos, empresarios, inteleetuais, elites mente civilizatorios, e por isto tambem eticos. Em vez de os
e povo, todos, sem excec;ao,devem se convencer da neces- nossos politicos e empresarios se aconselharem com maes-de-
sidade de uma mudanc;a historia, que poderia resultar na santodeveriam procurar um aconselhamento filosofico-etico-
opc;aopor uma sociedade etica e uma nova mentalidade. humanistico.
Algumas iniciativas ja estao sendo tentadas ha algumas Mesmo que 0 problema etico no Brasil se intensifique
decadas, em se constituir unidades comunitarias menores. ainda mais nao podemos emigrar aos milhoes para outros
Iniciativas articuladas, inicialmente, pela teologia da liberta- paises, pois ja nao existem paises que queiram receber tanta
<;8.0.Naturalmente aos opressores da sociedade nao interessa gente. E preciso que nos nos empenhemos em colocar a etica
tal articula<;aocomunitaria, por isto as insistentes investidas em seu devido lugar, se queremos a nossa dignificac;aoe a
contra a teologia da libertac;ao na America Latina. dignificac;aode nossos semelhantes neste nosso pais.