Na Pisada Feminina Do Coco Cearense
Na Pisada Feminina Do Coco Cearense
Na Pisada Feminina Do Coco Cearense
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
FORTALEZA
2015
ALESSANDRA SÁVIA DA COSTA MASULLO
FORTALEZA
2015
ALESSANDRA SÁVIA DA COSTA MASULLO
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Haydée Petit (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará - UFC
______________________________________________________________
Profa. Dra. Ângela Maria Bessa Linhares
Universidade Federal do Ceará - UFC
______________________________________________________________
Profa. Dra. Cícera Nunes
Universidade Regional do Cariri - URCA
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Shara Jane Holanda Costa Adad
Universidade Federal do Piauí - UFPI
À Dindinha, D. Joana, minha bisavô, que me
contava histórias e me ensinava sobre a vida,
quando eu ainda era uma criança. Até hoje me
lembro das histórias do Pinto pelado!
À Vovó, D. Maria Augusta, meu grande amor,
que cantava para mim! A ela, com quem eu
aprendi sobre a existência humana além do
corpo, minha gratidão e minha maior saudade!
À Tia Mana, D. Nazaré, que me acolheu com
suas preciosas orientações, me deu Fortaleza, a
força e a cidade;
À Mamãe, D. Lúcia Masullo, que não mediu
esforços para que eu pudesse estudar nas
melhores escolas de Parnaíba. Mulher
guerreira! Com ela eu aprendi a ser valente.
A hora de agradecer para mim, é também uma das horas mais difíceis de uma
dissertação. Ave maria, é muita gente, mei mundo de gente pra começar e olhe lá! É muita
história, muita gente que eu não poderia deixar escapar, muita coisa vivida, tudo tão
verdadeiramente importante quanto o processo da pesquisa, quanto os aprendizados. Claro,
porque fazem dele.
Quero aqui lembrar momentos, algumas presenças marcantes, algumas passagens que
me fizeram chegar até aqui.
Quando desejei fazer um mestrado, gestei esse sonho devagarinho, bem devagarinho!
Ele foi sendo tecido com Lidiane, minha irmã e companheira do tempo da UECE e de todos
os tempos até os dias de hoje. A gente ouvia as professoras contarem de suas experiências em
Portugal, Espanha, França... A gente sonhava! Lembra Lidiane, a gente ouvindo a Carla da
Escóssia contando do mestrado, dela em Paris? Sonhamos pra valer, nossa Paris foi bem aqui,
na UFC e na UECE! E continuamos, seguimos juntas nesse sonho. Gratidão, irmã! Mas, esse
sonho foi gestado ainda com a contribuição de Marquinhos, aquele que, quando a gente tá
triste, a gente lembra dele e o sorriso toma conta da gente, imediatamente a alegria nos
invade! Só digo duas coisas, Marquinhos: Ê, ê! Querido! E esse sonho tem também e
fundamentalmente a pegada forte de Osmar, o maior de todos os amores que tenho. Sem ele,
tudo teria sido muito mais difícil ou talvez nem tivesse acontecido. Sua presença de força e
energia em minha vida me faz acreditar todos os dias que nada é impossível para nós.
Gratidão! Gratidão!
Na universidade, os caminhos foram outros, as descobertas foram muitas. Descobri
que as coisas não mudam num mestrado. Descobri que as práticas de muitas professoras e
professores são as mesmas, são ruins, são péssimas! Quis desistir logo no começo. Mas aí, me
matriculei na disciplina de Didática e conheci a professora Bernadete Porto, pronto, o
mestrado começava a fazer sentido em minha vida. Toda pessoa que deseja viver o ofício da
sala de aula deveria conhecê-la, aprender com ela o ser professora. Gratidão! Depois dela,
tudo ficou mais feliz, mas tão mais difícil, minha exigência aumentou. Mas aí, fui
encontrando pelo caminho aquelas e aqueles de minha laia. Encontrei Ângela Linhares,
pessoa linda, que eu conhecia de outras vivências, de outras cirandas! Grande professora,
talvez a mais qualificada de todas da humanidade (é, talvez mesmo!). Artista, educadora! E as
coisas foram ficando mais fáceis, encontrei Welligton Pará, pessoa especial demais, que eu já
conhecia dos traçados do Pici, através de meu trabalho em Diaconia. Essas duas pessoas
queridas foram ponte para que eu descobrisse que o mestrado tinha que potencializar em mim
aquilo que sou. Grande descoberta! Mudou tudo para mim, ali. Gratidão!
Muitas pessoas cruzaram o meu caminho nos corredores da FACED, nas salas de
aulas! Pessoas ausentes e pessoas presente, como Fernanda – a baiana mais delicada,
orientanda do professor Henrique; Luciane Goldenberg – linda, arte-educadora da
autobiografização; Maclécio – dono do olhar mais carinhoso que já vi; Jean dos Anjos, o
abraço arrebatador. A gente nunca sabe o quanto marca a vida dos outros, né? Com vocês
desejei viver grandes histórias. Gratidão!
Viver o estudar e o trabalhar foi, talvez para mim, a coisa mais difícil. Beirando o
impossível, eu poderia dizer, em se tratando do meu trabalho engajamento-milhões de coisas-
militância-não há prazos-pouco dinheiro-viagens muitas-relatórios demais-compromisso
político-educação popular-serviço social-reuniões intermináveis-Pici, Jangurussu, Bom
Jardim-Fortaleza-Recife-ufa! E acho que só sobrevivi porque tive o apoio, antes e durante,
daquela equipe: Lúcia, Margô,Verônica (Neide, Ana), também João Paulo, Luciana.
Principalmente Eliane, minha libertação e meu algoz! Gratidão! Nesse caminho a juventude
do CCJ foi minha fonte, onde bebi da alegria, do prazer de estar junto, de viver e descobrir as
africanidades presente em nós, na periferia. Gratidão, galera querida, gratidão!
Maria das Vassouras, quem me pariu coquista, a quem eu pari um grupo. Um carinho
especial para Micinete e Sáskia... uma saudade e uma vontade de carregá-las comigo.
Gratidão eterna!
A caminhada me trouxe o Maracatu Nação Iracema para vivência de minha
afrodescendência da diáspora com a Rainha, os pretos velhos, a Calunga... João do Crato e o
cantar de suas loas na Domingos Olímpio durante o carnaval, e também sua querida
contribuição com minha pesquisa no Cariri! Gratidão!
O mestrado me fez valorizar muito mais as pessoas, minha família, minhas irmãs e
irmãos queridos, minhas sobrinhas, me fez perceber que minha caminhada se torna passos na
vida delas e deles. Gratidão! Meu cumprade e minha cumadre, meu afilhado mais amado do
mundo, Mathieu, Martilene, Noahzinho, lembrança de que o amor estava ali, esperando.
Helen, minha amiga de infância, minha inspiração para ser uma pessoa melhor, evoluída.
Gratidão!
A coisa melhor dessa vida é saber que as pessoas que a gente ama estão com a gente.
Sávia e José saibam, que o que – a Diaconia, a amizade, o tambor, a música, o samba – a vida
uniu, ninguém separa! É amor grande demais! Gratidão!
Tão especial nesse momento para mim são as pessoas que escolhi estarem comigo na
banca de defesa da dissertação, em especial Cícera Nunes, por quem tenho muito respeito e
admiração (que me emocionou com seu pequeno Vitor, que me emprestou o apoio de Samuel
e Dominque, a quem também sou muito agradecida!) e Shara Jane, por quem me deixo guiar
sociopoeticamente! A elas, pelas palavras lindas de acolhida, pelo gesto de profunda
compreensão com minhas limitações, minha gratidão!
Sandra Petit, minha orientadora em tempo integral, me orienta mesmo quando não o
quer fazer. Minha referência, minha griot! A mãe do esperto Kanyn. Sem ela, eu sei não teria
chegado aqui. Somente com a sabedoria e a sensibilidade que lhe é peculiar, somente com a
generosidade e o compromisso político e amoroso que pulsa dentro dela, pessoas como eu,
chegam ao final de um mestrado dessa forma, tendo vivido o que eu vivi para além da sala de
aula, para além dos textos, dos artigos, das leituras e elaborações, desterritorializando-se
como me foi permitido, mergulhando em mim mesma, alimentando minha alma, meu bori e
meu corpo com o Saber Mestre Maior. Gratidão, minha oxum! Gratidão demais!
Gratidão às mulheres do Coco da Batateira, seu saber, sua arte, sua existência!
Gratidão pela acolhida, por me deixarem viver essa pesquisa com vocês, pelos ricos
aprendizados, por me fazerem entender o quanto são mais importantes para o Ceará e para a
humanidade, mais do que eu já imaginava. Muita gratidão!
Gratidão à Universidade Federal do Ceará, à Faculdade de Educação, a Pós-
graduação! Gratidão ao Núcleo de Africanidades Cearenses, em especial às minhas queridas
Kellynia, Calu, e aos companheiros Hélio e Rafa!
Gratidão à Fortaleza, essa cidade racista, machista, sexista, louca. Eu te amo,
Fortaleza! Amo suas ruas, periferias, suas pessoas, seus sons, a militância, seu Mar! Amo os
possíveis que me permitiu viver, meu devir progresso é você. Obrigada por me dar o Ceará,
suas artes, o Cariri, por me dar emprego e conhecimento! Fortaleza querida, como eu te amo!
Amo o carnaval dos maracatus, as praças, as pontes, o Cocó, o Pici, o Jangurussu! Fortaleza
da minha vida, meu bem, meu zem, meu mal! Gratidão!
Minha pesquisa e meu mestrado foram atravessados por momentos especiais, lindas
pessoas, por suas colaborações mais especiais, por suas marcas, pela energia que direcionaram
com grandes ou pequenos gestos. Aqui, eu sei, vou deixar escapar ainda méi mundo de gente,
mas minha gratidão ultrapassa essas palavras e vai comigo expressa no meu
comprometimento e na solidariedade das relações que construímos e fortalecemos durante
esse período. Meu muito obrigada e minha eterna gratidão!
“Quando eu ainda não sabia andar, ele me fazia
dançar sentada, e, assim que pude me sustentar
nas pernas, me convidava a me perder na
música como quem se perde num sonho”.
Dance, dance, Zarité, porque escravo que
dança é livre... enquanto dança. Eu sempre
dancei.” (Isabel Allende, A ilha sob o mar)
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar, numa perspectiva etnicorracial e de gênero, os
significados da brincadeira do Coco para as mulheres do Coco da Batateira, no Crato – CE, e
sua possível relação com as africanidades, identificando alguns marcadores dessa cultura nos
seus discursos e os confetos (conceitos carregados de afetos) elaborados por elas. As
atividades foram realizadas com o grupo-pesquisador formado por dez mulheres integrantes
do grupo “mulheres do Coco da Batateira”, todas na faixa etária entre 50 e 80 anos. A
pesquisa foi desenvolvida com a abordagem Sociopoética, onde a produção dos dados se dá
na vivência de oficinas que utilizam o corpo todo na construção do conhecimento coletivo,
através da realização de técnicas que envolvem a arte e a criatividade. Foram realizadas a
técnica do Parangolé e a Terreirada dos Quatro elementos, dispositivo criado por mim para
este trabalho. Para desenvolver as análises, dialoguei com estudiosas e estudiosos como Maria
Ignez Ayala (2000), Juliana Bittencourt Manhães (2010), como Graziela Rodrigues (1997),
Shara Jane Holanda Costa Adad (2005), Sandra Haydée Petit (2002; 2010), Cícera Nunes
(2011), Albernaz (1996; 2006), Scott (1996), Wlamira R. de Albuquerque e Valter Fraga
Filho (2006), Ninno Amorim (2007), Ridalvo Félix de Araujo (2013), Hampaté Bâ (1982),
José Jorge Carvalho (2000; 2004) Eduardo Socha (2007), Janote Pires Marques (2009),
Eurípedes Funes (2004), Eduardo Oliveira (2003; 2007), Henrique Cunha (2001; 2005),
Jacques Gauthier (2005; 2012), dentre outros. Ao final do trabalho, apresento as conclusões
da pesquisa, e, dentre elas, o reconhecimento e reafirmação da importância do Coco como
eixo de formação e estruturação da vida das mulheres que fazem, cotidianamente, o Coco da
Batateira.
This paper aims to analyze, in a racial ethnic and gender perspective, the meanings of the
Coconut game for the women from Coco da Batateira in Crato - CE, and its relation to the
Africanities, identifying some markers of this culture in their speeches and the confects
(concepts loaded of affection) prepared by them. The activities were carried out with the
researcher-group made up of ten women members of the group "Women of the Coco da
Batateira", all aged between 50 and 80 years. The research was conducted with the
Sociopoética approach, in which the production of the data occurs in the experience of
workshops that use the whole body in the construction of collective knowledge, by
performing techniques involving art and creativity. Were performed the Parangolé technique
and Terreirada of the four elements, device created by me for this work. To perform the
analyzes, a dialogue was conducted with several scholars as Maria Ignez Ayala (2000),
Juliana Bittencourt Manhães (2010), as Graziela Rodrigues (1997), Shara Jane Holanda Costa
Adad (2005), Sandra Haydée Petit (2002; 2010), Cícera Nunes (2011), Albernaz (1996;
2006), Scott (1996), Wlamira R. de Albuquerque and Valter Fraga Filho (2006), Ninno
Amorim (2007), Ridalvo Félix de Araujo (2013), Hampaté Bâ (1982), José Jorge Carvalho
(2000; 2004) Eduardo Socha (2007), Janote Pires Marques (2009), Eurípedes Funes (2004),
Eduardo Oliveira (2003; 2007), Henrique Cunha (2001; 2005), Jacques Gauthier (2005;
2012), among others. At the end of this paper, I present the research conclusions, and, among
them, the recognition and the reaffirmation of the importance of the Coconut as an axis of
formation and structure of the lives of those women that, every day, compose the Coco da
Batateira.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 15
2 EU QUERO UM COCO, SINHÁ!.................................................................. 23
3 TÁ CAINDO FULÔ......................................................................................... 30
3.1 Uma fulô chamada Sociopoética..................................................................... 30
3.2 O caminho percorrido...................................................................................... 33
3.3 O grupo-pesquisador........................................................................................ 39
3.4 A produção dos dados...................................................................................... 42
3.4.1 A primeira oficina: a técnica do Parangolé.................................................... 42
3.4.2 A segunda oficina: a técnica da Terreirada dos Quatro Elementos............... 45
3.4.3 A análise dos dados........................................................................................... 51
4 VEM, VEM MARIA! VEM MARIÁ!............................................................ 54
4.1.1 Mulher quebra pedra; Mulher cozinha feijão; Mulher a força da mulher e
Mulher coco barrim.......................................................................................... 56
4.1.2 Coco tudo na vida da gente, Coco firma a mira, Coco de aterrar a terra e
Coco tirado do tesouro....................................................................................... 62
4.1.3 A memória da escravidão; A festa, a dança e a brincadeira como expressão
do ser e do viver; A transmissão dos conhecimentos pela oralidade............... 63
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 75
REFERÊNCIAS .............................................................................................. 81
APÊNDICES..................................................................................................... 86
APÊNDICE A - Análise classificatória ............................................................. 87
APÊNDICE B - Análise Classificatória ........................................................... 94
APÊNDICE C - Sínteses sobre a produção gerada com a Terreirada dos
Quatro Elementos .............................................................................................. 98
APÊNDICE D – Coco da Contra-análise........................................................... 100
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1 INTRODUÇÃO
No ano de 2002 dei uma pausa na vida acadêmica para viver a experiência
profissional com comunidades rurais no interior do Ceará (em Granja, Parambu, Várzea
Alegre e Tejuçuoca) e depois com comunidades indígenas (também não-indígenas) no
município de Caucaia (Tapeba do Trilho, Lagoa I e Lagoa II), região metropolitana da cidade
de Fortaleza. Dois trabalhos com projetos comunitários que envolviam principalmente
crianças, adolescentes, jovens no contexto de comunidades rurais e também urbanas, devido à
proximidade de Caucaia com a capital do estado. Estas experiências me marcaram
profundamente pelo contato com os saberes do povo do campo no semiárido e na agricultura
familiar, com suas manifestações culturais; e pela aproximação com as expressões da
religiosidade Tapeba, com os cantos e danças indígenas, suas lutas, sua artesania com
sementes e com palha de carnaúba.
Nas duas experiências, a relação com a ancestralidade e com a natureza expressas
através do corpo e de seu movimento rítmico, percebo hoje, me atravessaram e me marcaram
definitivamente, me levaram para as reflexões no âmbito do ser e do tornar-se, e, de volta à
vida universitária, defendi então meu trabalho monográfico em 2007, com o tema “Os
sentidos e os significados de ser uma jovem ou um jovem diferente”, apresentado à
Universidade Estadual do Ceará - UECE, para obtenção da graduação em Serviço Social. Este
trabalho me permitiu, dentre tantas coisas, discutir a questão da diferença, nas suas interfaces
entre ser jovem e ser pobre, ser jovem e ser homossexual, ser jovem e ser índio ou índia, ser
jovem e ser negra ou negro; me possibilitou conhecer o método sociopoético de pesquisa e
experienciar a pesquisa com o corpo todo; me permitiu dialogar, a partir da relação com a
negritude dos jovens e das jovens da pesquisa, com a minha própria negritude.
Nessa busca pelos sentidos e significados de ser, fui percebendo que os tambores
sempre me arrebataram, desde pequena – quando fugia escondida de minha mãe e de minha
vó, encantada pelos batuques de uma “casa de macumba” que ficava do outro lado do muro,
no fundo do quintal de minha casa – até os dias de hoje, quando seduzida pela pancada dos
ganzás, pandeiros e alfaias, vou atrás dos cortejos, maracatus, rodas de ciranda, de sambas e,
principalmente das brincadeiras de Coco dos lugares por onde ando.
Os primeiros contatos com o Coco, dos que me lembro mais, aconteceram no final
dos anos de 1990 e comecinho de 2000, durante os encontros estudantis do curso de Serviço
Social, especialmente no Maranhão e na Paraíba. Deste último, na cidade de Campina Grande,
guardo as lembranças mais suadas de dançar Coco de umbigada, até quase o dia amanhecer.
Depois vieram Alagoas e Pernambuco, durante viagens de trabalho através das ONG´s Visão
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Mundial e Diaconia. Posso dizer que aqueles primeiros Cocos de Pernambuco, nas Terças
Negras das noites de Recife, no Pátio São Pedro, ressoam até hoje dentro de mim.
Depois de graduada, já “mergulhada” profissionalmente na atuação com
juventudes e com Educação Popular, participei no ano de 2009 de um projeto que afetaria
minha história de modo muito especial com a brincadeira do Coco. Desenvolvido com
adolescentes e jovens do Ceará, Bahia, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte, o projeto
“Caravana de Comunicação e Juventudes” foi uma experiência coletiva realizada por
Diaconia, organização não governamental- ONG, onde atualmente trabalho como assessora
político-pedagógica, e outras tantas organizações, grupos de jovens, entidades comunitárias e
organizações internacionais. A Caravana levou 200 jovens, educadores e educadoras,
adolescentes, para participar do Fórum Social Mundial, em Belém do Pará. A caminho de
Belém, passamos pelo Piauí e lá surgiu a ideia de formar um grupo de mulheres cantantes.
Éramos quatro mulheres: Auri Pereira (Auri D’Yruá), Micinete Lima (Micinete Mulher),
Edvania Ayres e eu. À princípio, a proposta era somente animar com música e batuque as
atividades da Caravana, durante o todo o percurso, mas a experiência de animação foi tão boa,
que a gente quis continuar a falar de mulheres e juntou mais gente para animar com Coco as
comunidades, as pessoas e os lugares, a nossa vida. O link https://youtu.be/SWgerMB6afQ dá
acesso ao vídeo sobre essa linda experiência da Caravana, onde aparecemos cantando no
palco do Fórum, no final do vídeo. Abaixo, as fotos, mostram, da esquerda para a direita, a
gente na Caravana e depois a gente no Grito dos Excluídos do mesmo ano.
O grupo ganhou o nome de Maria das Vassouras. Esse nome veio por causa da
luta das moradoras da comunidade Santa Maria das Vassouras, que conhecemos numa visita à
periferia de Teresina- PI, durante a Caravana, como mostra a foto abaixo. Na Associação da
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comunidade, a experiência das mulheres que faziam rifas de cartelas de ovos, cada ovo doado
por cada moradora para construir a luta popular no bairro, nos chamou a atenção. Essa
história, que não é diferente das histórias de organização de muitas associações comunitárias
desse país, nos cativou pela determinante presença das mulheres que, conciliando suas vidas
domésticas de cuidar da casa e dos filhos, se lançaram na vida comunitária, configurando a
atuação da mulher na vida cultural e política daquele lugar. Dali, saímos tocadas e tocando. O
grupo ganhou um nome, melhor dizendo, o grupo virou um grupo. E, algum tempo depois
com a entrada de Sávia Augusta e Naila Sáskia, o grupo passou a se apresentar pelas
comunidades com uma nova formação, até chegar à formação mais recente, composta por
Micinete Mulher, Sávia Augusta, Naila Sáskia e eu, como mostram a seguir as fotos no lado
direito da página.
Figura 3- Visita à Comunidade em Teresina Figura 4- Apresentações recentes do Grupo
Dali em diante meu olhar e meu ouvir passaram a buscar a vida manifestada nas
expressões da dança e da música percussiva negra, o que logo me fez chegar às africanidades.
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Então, nos anos de 2010 e 2011, fiz o curso de Especialização (Pós-graduação Lato Senso)
“História e Cultura Africana e dos Afrodescendentes para Formação de Professores de
Quilombos”, promovido pelo Núcleo das Africanidades Cearenses (NACE), da Universidade
Federal do Ceará, sob a coordenação da Professora Doutora Sandra Haydée Petit, do
Departamento de Estudos Especializados.
O curso de especialização foi mais um fio que deu sentido e beleza à tessitura de
minhas descobertas e vivências. Com ele e com a Pretagogia (referencial teórico
metodológico que fundamentou o curso) aprofundei a compreensão de que a produção de
saberes se efetiva é realmente pelo corpo, não o corpo em distinção da mente, mas o corpo
integrado, o corpo lugar que agrupa razão, emoção e intuição, ludicidade, sensação e
sentimento (PETIT&SILVA, 2011), assim como a dança não se separa da música; com ele
adentrei os conhecimentos da cosmovisão africana, seus princípios e valores, notadamente
sobre ancestralidade. No entendimento, com Eduardo Oliveira (2003; 2007), a ancestralidade
corporificada nas pessoas presentes ou antepassadas (vivas ou mortas), em suas histórias, suas
simbologias e suas relações com a natureza e com o lugar onde vivem ou viveram e sobre a
importância e o reconhecimento da sabedoria das pessoas mais velhas, pois elas guardam
consigo o acervo vivencial que caracteriza o conjunto de saberes sobre a história e os
costumes da vida de um povo, do lugar, grupo ou comunidade.
De todos os aprendizados do curso, quatro foram decisivos para minha chegada
até aqui: 1) a tradição oral, com referência nos ensinamentos de Hampate Bâ (1982), que
valorizando os conhecimentos que nos são transmitidos através da oralidade, englobando as
formas de linguagens para além da verbal, incluindo as vibrações, movimentos e/ou
expressões dos corpos a partir de mediações (por instrumentos, artefatos ou objetos
simbólicos que prolongam a sua comunicação, sua relação com a vida) valoriza também nossa
ancestralidade, a sabedoria que se alimenta na simplicidade ou na complexidade das
experiências e vivências cotidianas ou seculares; 2) o princípio da circularidade da filosofia
africana tradicional Ubuntu, nas leituras de Renato Noguera (2012) que afirma nossa
existência por meio das outras pessoas, na relação com as outras pessoas, destacando a
importância da vida em comunidade, no sentido mais amplo. É, pois, na relação com as outras
pessoas e com a natureza (e tudo que dela faz parte) que nos construímos com seres vivos,
como pessoas e que damos sentido e significado a nossa existência; 3) a perspectiva do “desde
dentro para desde fora”, nos estudos de Edileuza Souza (2005) perspectiva esta que, inclusive,
me impulsionou a refletir sobre os saberes quilombolas no artigo “Universidade Quilombola:
rompendo a cerca de fora para dentro e de dentro para fora” (2013). A experiência de
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encontro com a Sociopoética, com referência nas reflexões de Sandra Petit (2002) e Shara
Jane Holanda Costa Adad (2004), que já havia acontecido na graduação, se renovou em mim
nos aprendizados do curso: pesquisar com o corpo todo, a partir de uma relação de implicação
com a pesquisa, de interconectividade com o lugar de onde se fala. O contato com os
ensinamentos de Mãe senhora do Ilê Axé Opó Afonjá (mãe de santo de um dos terreiros mais
antigos da Bahia) a partir dos escritos de Luz (1988) em leituras durante o curso, me fez
assumir a perspectiva do “desde dentro para desde fora”, referência também para a Pretagogia
nas pesquisas das africanidades, pois:
A perspectiva “desde dentro para desde fora” e “vivido concebido” promove a
compreensão ética sobre procedimentos da pesquisa, amplia conhecimentos que
permitem ao universo pesquisado estar em constante reflexão, além de, em todo o
tempo, instigar a reestruturação do processo de questionamento da pesquisadora ou
pesquisador. Em outras palavras, essa abordagem metodológica agiliza, revisa,
modifica e até mesmo rejeita teorias acadêmicas que, em muitos casos em nome da
chamada neutralidade, não permitem que o pesquisador veja criticamente as
ideologias que deformam o complexo sistema civilizatório como fonte de sabedoria.
(LUZ, 1998a apud SOUZA; 2005: p. 12).
Assim, pesquisar “desde dentro para desde fora” é entrar no contexto das
africanidades e afrodescendências numa relação de envolvimento com aquilo que me vincula
ao que pesquiso, como de forma integrada a ele, garantindo o rigor científico do trabalho e a
postura crítico-reflexiva. Enquanto pesquisar “desde fora” nos coloca no limite analisar
criticamente aquilo que pesquiso a partir de referenciais de base teórica, pesquisar “desde
dentro” é pesquisar com o corpo todo, se percebendo na relação com aquilo que se pesquisa
de forma crítica, criativa, sensível e respeitosa. Com a perspectiva metodológica do vivido-
concebido é possível continuar o legado que nos fora deixado por nossos, nossas ancestrais,
fortalecendo a memória e “a circulação de força que propicia a harmonia cósmica, e a
linguagem onde se expressa essa forma de ser” (LUZ, 1992, p.61).
E foi na vivência desses aprendizados (a oralidade como fonte de história e de
saber, a nossa existência a partir da existência dos outros no princípio da circularidade, o
movimento do vivido-concebido na pesquisa) que durante o curso de especialização, na
relação com as comunidades quilombolas de Minador, Bom Sucesso (em Novo Oriente) e
Cercadão (em Caucaia) e na relação com mestras e mestres também da academia, eu pude
experimentar de mim mesma minha própria história afrodescendente. A história de uma
menininha desorientada que foi se percebendo no encantamento dos tambores, na força da
palavra cantada, na pancada do ganzá, se encontrando com as energias dos orixás, se
reorientando na pisada do Coco e na umbigada dos corpos:
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Esse Coco é caprichado, dengoso. Tem suingue, tem gingado gostoso. É de luta, ele
é negro, é de fé. Tem a força da maré! Esse Coco é encantado na gira, esse Coco é
pra dançar e é pra saudar Iemanjá (Alessandra Masullo).
O Coco me levou para dentro das comunidades de outra forma, com outra pisada,
para as festas de padroeiras, para apresentações nas praças, nas calçadas. O Coco deu giro as
minhas saias rodadas coloridas e as curvas do meu corpo experimentaram a energia das
umbigadas, assim como minhas pernas e braços encontraram o equilíbrio de quem buscava o
entendimento sobre a vida, a vida que pulsa e dança dentro da gente. E é o Coco que me leva
a descobrir: como se processa a construção da identidade afrodescendente e de gênero das
mulheres coquistas do Ceará, especificamente das mulheres integrantes do Coco da Batateira,
no Crato? Com essa pergunta de pesquisa me ponho no movimento e na ginga formativa da
brincadeira do Coco, tendo como objetivo geral: Analisar os significados da brincadeira do
Coco para as mulheres do Coco da Batateira, no Crato, Ceará, e sua possível relação com as
africanidades, identificando alguns marcadores dessa cultura, numa perspectiva etnicorracial e
de gênero. E como específicos: fazer um traçado histórico sobre o Coco no Nordeste,
especialmente no Ceará, situando o Coco das Mulheres da Batateira, no município do Crato,
destacando seus elementos de africanidades; perceber se as práticas e experiências de
produção de saberes, vivenciadas pelas mulheres na brincadeira do coco, apresentam ou não
elementos relativos à construção de uma identidade afrodescendente e de gênero.
É no ritmo das pisadas e das palmas de mão, que este trabalho se organiza. No
primeiro capítulo – Eu quero um coco, sinhá! – faço um traçado histórico da brincadeira do
Coco, discorrendo sobre seu surgimento no Nordeste, sobre alguns elementos de sua
afrodescendência e suas variações, dando destaque para sua expressão no Ceará, de modo
especial para o Coco das mulheres da Batateira. No segundo capítulo – Tá caindo fulô –
apresento a Sociopoética, o lócus da pesquisa, o grupo-pesquisador e a produção e análise dos
dados; No terceiro capítulo – Vem, vem Maria, vem mariá! – a partir do diálogo com a
produção de dados da pesquisa, especialmente com os confetos e os marcadores de
africanidades, trarei à cena a mulher do Coco, desvendando no movimento filosófico
sociopoético as nuances de ser mulher, de ser brincante do Coco, destacando os elementos
que apontam para a construção de uma identidade afrodescendente e de gênero das mulheres
do coco da Batateira. Nas considerações finais – Segura o Coco, não deixa o Coco cair! –
ultima parte desse trabalho, retomo o caminho trilhado na pesquisa, entoando os versos finais.
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Se existe uma coisa boa e que faz bem para a saúde, isso é o coco: coco verde,
coco maduro, água de coco, carne de coco, leite de coco, casca de coco, cocada... Quanto
mais amadurecido, maior a quantidade de gordura e quanto mais verde, maior a quantidade de
vitamina C. Na água do coco são encontradas vitaminas e nutrientes, em quantidades que
variam de acordo com o estágio de maturação da fruta (vitaminas A,C, Complexo B;
nutrientes e minerais como sódio, potássio, cálcio, manganês, magnésio, cobre, ferro). Já o
coqueiro é uma árvore litorânea que gosta de sol, areia e chuva. É uma planta tropical, mas
que tem boa adaptação no interior do continente também. Não se sabe ao certo, mas algumas
pessoas estudiosas dizem que ele veio trazido da Ásia pelos portugueses para o Brasil, outros
dizem que é próprio do nordeste da América do Sul. Há também aquelas que afirmam a
possibilidade de que a fruta tenha chegado ao nosso país boiando pelo mar. Alguns tipos de
coqueiros podem alcançar até 30 metros de altura. Por crescer tanto, subir em um pé de coco é
uma arte e uma profissão (originalmente masculina, diga-se) na qual o tirador de coco precisa
ter muita coragem e força física para ficar lá em cima, balançando com vento (Silva, 2010).
Mas, o que seria o Coco? uma dança? Um ritmo? Uma brincadeira? O Coco é
uma prática cultural brasileira presente em toda região Nordeste do país (mas, principalmente
nos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará). É possível também
encontrar o Coco nos centros urbanos como Recife, João Pessoa, Fortaleza, mas sua
procedência está nas áreas rurais, de serras e áreas litorâneas. A prática do Coco envolve a
dança – com movimentos de sapateado, ou movimentos de roda, ou movimentos de capoeira,
dança em pares ou em fileiras – batidas de palmas de mão, música cantada e tocada por seus
brincantes e mestres, que são acompanhadas por instrumentos percussivos de batuque (quase
sempre ganzá, alfaia, pandeiro e caixa) ou de cordas (viola de sete ou dez cordas) numa
atitude alegre, que agrega e envolve as pessoas, festeja, diverte e encanta, podendo ser
considerado e compreendido como um brinquedo ou uma brincadeira. E é assim que prefiro
24
a manifestação (...) em que circulam variadas linguagens como música, canto, dança,
ritmo, jogo, teatro, além de uma plasticidade marcada no colorido e brilho das
indumentárias. Faz parte de um contexto social e religioso específico, em que cada
“brincante” tem o seu compromisso e função dentro da “brincadeira”. Os brincantes
são aqueles que brincam, se divertem, são aqueles que têm o compromisso de
“segurar e sustentar” a brincadeira ano a ano, são os integrantes dessa irmandade
coletiva, são indivíduos que participam criativamente da sua atuação.
É comum nas praças públicas de Fortaleza e Teresina, como também em outros municípios
dos estados do Ceará e Piauí, encontrarmos repentistas entoando seus versos. Em Fortaleza, o
Repente também pode ser visto nas praias, quando seus tocadores visitam as barracas
apresentando sua arte para turistas.
O Coco em literatura de cordel coloca no papel o que é cantado pelos coquistas,
na maioria das vezes, o que é cantado na embolada, sendo reestruturado de acordo com as
necessidades da escrita. Embora fazer uso da literatura para uma maior expansão do Coco seja
muito interessante e louvável, se impõem a esse gênero algumas limitações. Araujo (2013,
p.38) destaca:
No momento que um embolador (a) tira seu coco embolado ao outro, este
consequentemente já tem seu tempo de resposta, imediato ao ritmo e compasso
estabelecido pelo confronto poético de cada estrofe t(r)ocada – ocasião somente
determinada pela oralidade (ARAUJO, 2013, p.38)
O coco dançado enquanto gênero, também conhecido como coco de roda, samba de
coco ou samba de pareia, abrange as seguintes variedades, a depender do local e
comunidade participante: coco de praia, coco de zambê, coco de ganzá, coco
milindô, coco de sertão e coco de usina.
Na verdade, essa definição de nomes poderá ser diferente, vai depender do lugar
ou região onde é o Coco é praticado. Assim como também vão variar os instrumentos que
acompanharão a brincadeira. Farias (2014) nos chama a atenção para que pensemos em Cocos
e não em Coco, considerando pois que os locais e os sujeitos vão produzir poéticas singulares
para cada manifestação.
Na literatura sobre a brincadeira do Coco, são muitas as explicações para seu
surgimento. Segundo Carneiro (1982), o surgimento da brincadeira do Coco circunscreve-se
aos tempos da chegada dos primeiros africanos e africanas ao Brasil, vindos, em sua maioria,
das regiões que hoje constituem o Congo e a Angola, nos meados do séc. XVI. Ele nos conta
que os grupos de africanos escravizados se reuniam nos intervalos do trabalho forçado para
lembrar a “Mãe África” tocando seus tambores, cantando e dançando a dor da saudade,
diminuindo assim a distância de casa. Dessa forma, acredita o autor, surgiram o Jongo, o
Lundu, o Samba, o Coco e outras brincadeiras, que foram assumindo características peculiares
a partir das apropriações de brincantes nos diferentes lugares onde são praticadas.
No entanto, a documentação sobre Cocos, reunida por Mário de Andrade – no
período entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929 nos estados da Paraíba e Rio Grande do
Norte – e depois por sua equipe de pesquisadoras e pesquisadores – no ano de 1938, sobre os
Cocos no Nordeste e também no Norte, realizada nos estados do Rio Grande do Norte,
Paraíba, Pernambuco, Ceará, Piauí, Maranhão e no Pará – aponta que o Coco, além de
influências africanas, tem influências também indígenas devido à presença de elementos
como os movimentos em roda e sua estrutura poético-musical (AYALA, 2000).
Muito interessante então é a abordagem trazida por Silva (2010) refletindo sobre
as influências africanas e indígenas no Coco, a partir da compreensão de que a brincadeira
surgiu nos quilombos, especialmente em Palmares (hoje estado de Alagoas, onde por dez anos
resistiu o Quilombo de Palmares, maior de todos os quilombos). Para ele, essa explicação tem
realmente coerência, pois o povo negro do Quilombo de Palmares (a África livre, como era
chamado), convivia também com os índios que ali habitavam (inclusive antes da chegada de
negras e negros) ou que para lá fugiam junto com africanos escapando da escravidão. Era para
lá que fugiam as pessoas em busca de liberdade, cuja sobrevivência passava pela alimentação
à base de coco. Silva (2010, p.8) ainda nos diz que:
27
Eu morava na Baixa Danta, em Várzea Alegre. E tinha lá um senhor, que era meu
padrinho e minha madrinha assim de fogueira, e então quando era no tempo da
tapagem de casa, do aterro pra aterrar casa, deixar assim como cimento. Não existia
cimento nessa época aí eles inventavam essa dança do coco, que eles já trouxeram
dos avôs deles, dos pais deles, aí chamava mei mundo de gente, assim como se fosse
uma festa de casamento, a sala lotava. Era homens e mulheres, criança, véi, tudo
misturado. Eu tinha 10 anos de idade nessa época. Então se a gente entrava nessa
dança, começava às seis horas da tarde pra parar às seis horas da manhã. Dava um
intervalo assim à meia-noite, pra aguar o piso, ai nós largava o pau a dançar coco de
novo. (D. Socorro, coquista)
28
Existem também hipóteses que a dança tenha surgido nos engenhos ou nas
comunidades de catadores de Coco. Fato é que, tanto no sertão como no litoral cearense, a
brincadeira do Coco está associada à pratica do trabalho, herdada das lidas diárias de negros,
negras e afrodescendentes, também indígenas, embora essa afirmação da referência indígena
no Coco (não só no Ceará) possa ter mais relação com a negação da presença do povo negro
na formação do povo cearense, pois todos os indícios apontam para a descendência africana
do Coco. É ainda Amorim (2007, p.3) que nos fala da origem do Coco no Iguape, litoral leste
do Ceará:
Isso me faz lembrar os estudos de Henrique Cunha Junior (2001). Segundo ele,
cantar e dançar são as formas máximas da expressão da vida africana cotidiana. Cantar e
dançar para motivar o trabalho, diminuir seu pesar; cantar e dançar para suportar e alegrar a
vida sofrida, como faziam negras e negros escravizados no Brasil do século XVIII. Cantavam
e dançavam não só para suportar as dores, mas cantavam e dançavam porque, para o
pensamento africano, tudo se expressa sob a forma de canto e de dança, pois “mesmo o
racionalismo matemático é representado nas formas simbólicas da dança e da arte”. (CUNHA
JR, 2001, p. 8).
É observando a vida e o viver africano, bem como a vida e viver no Brasil e em
outros países, principalmente América Latina e América Central, onde o povo africano se fez
presente na formação de suas nações, que este autor elabora seu conceito de afrodescendência
como o conjunto dos elementos que caracterizam a identidade descendente do povo africano.
Para ele, a história e a cultura de matriz africana, originária no continente africano e
reelaborada no Brasil pelos seus descendentes, são os eixos fundantes deste conceito. E
mesmo quando reelaboradas ou modificadas no Brasil pelos processos de atualização da
cultura, pelas características de regionalidade ou territorialidade, ou pela influência de outras
culturas, o resultado desse processo de atualização conserva em si os traços, os signos e suas
29
formas de constituição de base, ou seja, apesar de criarem novos universos, como afirma
Cunha Jr. (2011), as novas ou atualizadas culturas não perdem suas bases de matriz africana.
E esse jeito de manter viva e atualizada nossa cultura, criando e recriando
novos/velhos universos, contando e relembrando nossos costumes, refazendo os fazeres de
nossos antepassados, faz parte de um fazer histórico que, na sua base, traz a negra influência
africana da Tradição Oral. As civilizações africanas, na sua maioria, foram civilizações da
palavra falada. Mesmo na África ocidental, onde a escrita passou a existir no século XVI, a
oralidade era a principal forma de comunicação. Hampaté Bá,(2010, p. 167), malinense
estudioso da Tradição Oral, nos diz que
3 TÁ CAINDO FULÔ
1
Jacques Gauthier, mestre em filosofia e doutor em educação com mais 20 livros publicados. Criou a
Sociopoética nos anos de 1994 e 1995, enquanto professor na Escola de Enfermagem Anna Nery da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já participou de atividades de pesquisa e ensino na Universidade
Federal da Bahia – UFBA e Universidade Estadual da Bahia – UNEB. Atualmente, é professor do Centro
Universitário Jorge Amado – UNIJORGE, em Salvador –BA.
2
Método aqui segundo o pensamento de Edgar Morin, que se opõe à metodologia, como explica Gauthier
(2012), pois nessa perspectiva de Morin não existe um procedimento definido e seguro pronto para ser aplicado.
Ao contrário, o caminho é construindo ao mesmo tempo em que se caminha, durante e em relação com ele,
lidando com o inesperado, o incompreensível e com o caos criador.
32
se pense de outros jeitos a pesquisa e sua relação com o mundo, propiciando não
apenas a produção do conhecimento novo, mas também, criando condições para o
estranhamento do mundo e a produção de outras formas de conhecê-lo e de vivê-lo.
(ADAD, 2014, p.53).
discurso não dito, a via mais direta de acesso ao inconsciente é a linguagem não verbal do
corpo, expressa por meio das técnicas ou dispositivos artísticos. A definição das técnicas deve
levar em conta o objetivo da pesquisa, o caminho de libertação dos condicionantes racionais,
as limitações do grupo-pesquisador. As oficinas devem iniciar com um relaxamento para que
o grupo-pesquisador possa desacelerar seu nível de controle da consciência com a finalidade
trazerem à tona seus saberes mais escondidos e racionalizados pelos discursos oficiais da
sociedade. Durante as análises dos dados produzidos, a facilitadora ou facilitador deve
perceber e identificar os confetos no discurso do grupo do grupo-pesquisador acerca do tema-
gerador.
Figura 5- O caminho
ONG Beatos, do passeio guiado pelos pontos históricos do Centro da cidade – no qual pude
conhecer a história do Crato e do Cariri pelas vozes de Mateus e Catirina, contando sobre as
praças, os prédios, as pessoas e os acontecimentos do lugar – e da apresentação dos grupos
culturais, onde pude ver as Mulheres do Coco da Batateira se apresentando, e pude conhecer
outros brincantes do Cariri, vi grupos de reisado, vi os Irmãos Aniceto, respirei a atmosfera
cultural do Cariri, senti sua alegria, mergulhei no seu colorido, vibrei com seus sons e suas
histórias. Estive também no Juazeiro, visitei o Horto do Padre Cicero, lugar onde as mulheres
depositam sua fé, sua crença de que a vida vai melhorar; 3) realizei duas oficinas
sociopoéticas, desenvolvendo duas técnicas distintas, a técnica do Parangolé e a técnica da
Terreirada dos Quatro Elementos, as detalharei logo mais; 4) realizei um encontro para a
contra-análise; 5) realizei um encontro de diálogo sobre africanidades; 6) realizei as demais
análises e sistematização da pesquisa.
Na primeira viagem, quando o dia amanheceu no ônibus da Princesa do Agreste, a
noite tinha sido bem cansativa. Numa poltrona apertada estávamos a alfaia, eu e uma enorme
ansiedade pela realização do primeiro encontro com as mulheres do Coco da Batateira, no
Crato. Calu, companheira de mestrado da Universidade Federal do Ceará (UFC), e seu filho
Víctor, também me acompanhavam. Mais tarde nos encontramos com as professoras Cícera 3,
Sandra Petit 4 e com Hélio, outro companheiro da UFC e com as mulheres do Coco da
Batateira, como mostra a foto abaixo:
Figura 6 - Visitando a Batateira
3
Cícera Nunes, mestre e doutora em Educação, professora da Universidade Regional do Cariri - URCA, com
estudos na área de Africanidades e cultura popular. É autora do livro “Reisado Cearense, uma proposta para o
ensino das Africanidades”, onde apresenta sua tese de doutorado.
4
Sandra Haydée Petit, mestre e doutora em Educação, professora da Universidade Federal do Ceará – UFC,
onde já atua há 15 anos. É fundadora e coordenadora do Núcleo de Africanidades Cearenses – NACE. Participou
da primeira experiência que deu origem ao método sociopoético junto com Jacques Gauthier. É minha
orientadora no mestrado em Educação Brasileira pela UFC.
35
Foi uma viagem linda, porque no caminho se vê muitas flores, muito Ipê na
estrada, mas uma viagem longa. O Crato fica a 560 km de Fortaleza. É um município do
interior do estado do Ceará que fica no sopé da Chapada do Araripe, extremo-sul do estado e
Microrregião do Cariri. O Município possui uma área de 1.158 kme, sua população segundo o
Censo (2010) era de 121.462 habitantes. O Crato faz divisa com o estado de Pernambuco, mas
também se interliga num entroncamento rodoviário ao Piauí e à Paraíba, e à capital cearense,
Fortaleza. A cidade faz parte da região metropolitana do Cariri Cearense. É uma das cidades
mais importantes e antigas do Ceará. É a 6ª mais populosa, segundo dados do Censo (2010); a
3ª mais desenvolvida, segundo Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (2013) e tem o
9ª maior PIB do Estado, segundo IPCE (2010).
As mulheres do Coco da Batateira vivem no bairro Gizélia Pinheiro. Mas, o bairro
é conhecido mesmo pelo nome de Batateira por causa do Rio Batateira, afluente do Rio
Salgado, que deu origem à cidade.
Lá na pedreira, rola da cachoeira
Uma água forte, pra me banhar
Uma água forte, pra me banhar
Ela me enche de fé
Me dando um banho de paz
Bebo dela no coité
E vejo o bem que ela me faz
Água de beber, água de molhar
Água de benzer, água de rezar
(Jovelina Pérola Negra)
O Rio Salgado possui 308 km de extensão e seus principais afluentes são os rios
Batateira, Granjeiro, Saco/Lobo e Carás, nas regiões do Crato e Juazeiro do Norte; o
Salamanca e Santana em Barbalha; o Rio Seco em Missão Velha, também o riacho dos
Porcos, que se concentra nos municípios de Milagres, Mauriti, Brejo Santo, Porteiras, Jardim
e Jati.
O Rio Batateira, na foto abaixo, tem uma grande importância para a cidade, é um
símbolo do Crato e do Cariri,
entre as cotas de 650 e 780 metros de altitude da Chapada do Araripe jorram 254
fontes que perfazem um conjunto de nascentes da Bacia Hidrográfica do rio
Salgado. Dentre elas a mais importante é a Fonte da Batateira com uma vazão
máxima de 398,0 m3/h (COGERH, 2013)
36
Fonte: http://geoparkararipe.org.br/geossitio-batateira/
Geoparque é um território com limites definidos, que possui geossítios com grande
valor científico, histórico, cultural e ambiental. Estes apresentam raridade, riqueza
geológica e paleontológica, permitindo ampla compreensão sobre a história e
evolução da Terra e da Vida. (www.geoparkararipe.org.br)
“O Batateira no Crato
tem cascata no Lameiro
é lenda dos Kariris
povo que chegou primeiro
se for retirada a pedra
água cobre o vale inteiro”
(Domínio Público)
No ano de 1936 a cidade do Crato foi iluminada por uma hidroelétrica acionada
pelas águas do Batateira, que foi desativada em 1950, pela falta de condições de atender a
37
demanda de produção de energia. A casa antiga que sediou a usina ainda existe dentro do
Geossítio da Batateira e pode ser visitada.
como quem vive uma catarse, se preparando para o novo, coloquei pra fora todo o tormento,
vomitando o desespero do “será que vai dar certo?” e as expectativas do resultado pronto,
aquele que te diz exatamente como você quer que seja e o que você quer que aconteça. Depois
da crise de enxaqueca e do corpo renovado, já preparado para o abraço, para o choro e para os
descaminhos, o dia do encontro com as mulheres chegou.
Subimos à Batateira. Lá nos encontramos com Samuel e Dominque, estudantes da
URCA orientandos da professora Cícera Nunes, que me apoiaram nesse momento do estudo.
Na conversa, cheia de emoção pela oportunidade de conhecê-las, falamos sobre a pesquisa,
conversamos sobre a Sociopoética. Apresentei então a proposta, da qual logo aceitaram
participar como copesquisadoras, sendo eu, a facilitadora da pesquisa (membro de destaque
do grupo-pesquisador pela condução do processo) ou pesquisadora acadêmica, por estar
vinculada à universidade. Conversamos então sobre as inquietações (inicialmente minhas,
mas que foram se revelando nossas) sobre a brincadeira do coco, sobre o lugar da mulher,
sobre tempo e história. Assumimos então o desafio de construir a pesquisa. As fotos abaixo
mostram o momento de nossa conversa. Fizemos nossos acordos sobre o tema, sobre os
encontros. Trocamos olhares curiosos, sorrisos acolhedores, e sociopoetizando esse momento,
também como quem pede as bênçãos divinas para que a pesquisa ganhe passagem e nos
atravesse a alma, cantei:
Oh, beija-flor toma conta do jardim!
Oh, beija-flor toma conta do jardim!
Vai buscar nossa senhora pra tomar conta de mim!
Sinhá rainha, a sua casa cheira,
Cheira a cravo e rosa e flor de laranjeira
Levei pro rosário, um galho de manjericão
E ofereci à santa junto com meu coração.
Oh, beija-flor toma conta do jardim!
Oh, beija-flor toma conta do jardim!
Vai buscar nossa senhora pra tomar conta de mim.
(Domínio público – repertório da Maria das Vassouras)
3.3 O grupo-pesquisador
Seu Eloi (Eloi Teles) veio na nossa sala pedir pra gente levar uma apresentação para
a Praça da Sé pra comemorar a semana, o dia do folclore, aí pediu que a gente
inventasse qualquer coisa pra levar junto com os alunos. Aí, na sala tinha essa
menina aí, a Socorro (integrante do grupo) que sabia dançar o coco, tinha a mestra
(que foi a primeira do grupo) que era uma monitora e sabia cantar as toeiras, e tinha
mais um casal que mora nessa outra rua de cima, ali, que ainda hoje a mulher dança
o coco, que era o marido e a mulher, que também sabiam. A gente se juntou, as duas
salas, e fizemo os ensaio durante uns três dias, quando foi no dia do folclore a gente
levou pra Praça da Sé e foi muito bom, bem animado, bem aplaudido. Ai a gente
ficou gostando e não paremos mais (D. Edite, mestra do Coco da Batateira).
No começo eram muitas pessoas que se reuniam para cantar e dançar o Coco, D.
Edite conta que se fazia uma roda bem grande na comunidade com participação de muita
gente, homens, mulheres, adultos, jovens e crianças. Depois foi diminuindo, ficando apenas as
mulheres, os homens não quiseram participar. Então, o grupo foi se organizando e criando um
jeito muito próprio de dançar o Coco, em pares, passos lentos, com as mulheres fazendo o
papel de homem e de mulher. Já tiveram o nome de “A gente do Coco”, mas faz uns dez anos
ou mais que são “As mulheres do Coco da
40
Batateira”. Hoje são dezessete integrantes, com idades entre 50 e 90 anos, mas já
foram em número de vinte mulheres por um bom tempo. Atualmente, o grupo está organizado
em coordenadora, pandeirista, puxadora de toeiras (na figura 12), damas e cavalheiros (na
figura 13). Sete mulheres fazem as damas, outras sete fazem os cavalheiros (vestindo-se de
homem, usando calças compridas e chapéu), duas puxam as toeiras (os versos das músicas).
D. Edite é a coordenadora, ela é mestra do grupo e é também uma das fundadoras, há também
um adolescente que as acompanha tocando o pandeiro, às vezes outro instrumento de
percussão. Mas o forte do grupo é o canto, a dança e a percussão corporal das palmas de mão.
As fotos acima são de momentos de uma apresentação na ONG Beatos. Na primeira estão D.
Maria e D. Valquíria, puxadoras de toeiras, as cantoras. Na outra estão as damas e os
cavalheiros, dançando na roda.
Algumas das mulheres são agricultoras, algumas são artesãs do barro, de bonecos
de pano, costureiras. Há uma que é cuidadora, cuida de pessoas idosas ou doentes. Quase
todas são nascidas no Crato, há uma que é de Várzea Alegre no Ceará, outra que é de Baixa
Funda, em Pernambuco, mas as duas vieram para o Crato quando ainda eram crianças. Quase
todas são casadas e têm filhos ou filhas, netos ou netas, bisnetos ou bisnetas, mas algumas são
solteiras e vivem com irmãs, mãe. Duas são viúvas. A maioria tem pouco estudo, algumas são
apenas alfabetizadas, mas nem todas sabem ler e escrever. Todas tem uma religiosidade muito
forte, são católicas envolvidas com as práticas da igreja local, na qual participam das missas,
novenas, missões, encontros de renovação, e em muitos dessas atividades a participação se dá
com as apresentações ou rodas de Coco. Algumas vivem a fé sertaneja cristã com devoção aos
santos e santas católicas e ao Pe. Cícero Romão Batista, outras vivem em diálogo com
práticas de religiosidade africana, como a Umbanda. A maioria é meizinheiras e lida com a
manipulação das ervas, algumas são rezadeiras ou benzedeiras.
41
Algumas mulheres têm uma atuação política na cidade para além da ação cultural,
participam de movimentos comunitários, lutas sindicais, partidárias. D. Edite é afiliada ao
Partido Comunista do Brasil, o PC do B. Elas contam que a vivência política veio antes da
brincadeira do coco, no tempo da ditadura, quando participavam de peças teatrais que falavam
contra o sistema capitalista.
Nem todas as dezessete mulheres puderam participar da pesquisa. Ao todo, quinze
mulheres se envolveram com as atividades, mas para efeito do grupo-pesquisador
consideramos aqui somente as dez que vivenciaram as técnicas e análises. São elas:
Figura 14- D. Edite, 75 anos Figura 15- D. Valquíria, 75 anos Figura 16- D. Terezinha, 69 anos
Figura 17- D. Neide, 66 anos Figura 18- D. Lúcia, 64 anos Figura 19- D. Sebastiana, 63 anos.
Figura 20- D. Socorro, 62 anos Figura 21- D. Raimunda, 61 anos Figura 22- D. Fátima, 59 anos.
Fonte: Acervo pessoal
42
Para a produção dos dados da pesquisa, como já mencionei, realizei duas oficinas,
trabalhando com duas técnicas distintas. Outras informações foram coletadas em momentos
de observação de atividades, como na visita à ONG Beatos, também nas conversas com as
mulheres, escutando suas histórias, conhecendo seus recortes e fotografias, suas casas,
partilhando cafezinhos. Conversei ainda com outras pessoas como amigos e familiares, que se
tornaram informantes chaves da pesquisa. Todas essas informações e minhas impressões
pessoais e posicionamentos, bem como minhas memórias compuseram material do meu
diário de campo, que utilizarei em algumas reflexões durante a dissertação. A avaliação fez
parte de todo o processo da produção dos dados, no entanto, devido algumas dificuldades com
o grupo-pesquisador, entre elas o domínio da escrita, a disponibilidade de tempo e a
predisposição física e motivacional para determinadas atividades, não trabalhei com o diário
itinerante, instrumental da Sociopoética muito importante para a captura de desejos, críticas,
sentimentos, sugestões, depoimentos sobre a pesquisa.
Nossa primeira oficina com as mulheres foi realizada numa praça pública. Apesar
de termos mobilizado a Associação dos Moradores da Batateira para realizamos nossa
atividade, por dificuldades logísticas de organização e limpeza do espaço, não foi possível
realizar o encontro lá. Fizemos nossa atividade ao ar livre, em meio às pessoas que
transitavam na rua, na praça. Pela própria condição do lugar que não possibilitava um
ambiente com a privacidade necessária para a realização da atividade, a oficina foi realizada
em dois encontros, um na praça e outro na casa de D. Valquíria, coquista.
43
A técnica do Parangolé que realizei tem referência nos trabalhos de Shara Jane
Holanda Costa Adad 5 e tem inspiração na obra do artista plástico Hélio Oiticica. Santos
(2014, p.75), nos explica que
Na década de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, que ele chamava de "antiarte
por excelência" é uma pintura viva e ambulante. O Parangolé é uma espécie de capa
(ou bandeira, estandarte ou tenda) que só mostra plenamente seus tons, cores,
formas, texturas, grafismos e textos, e os materiais com o que é executado (tecido,
borracha, tinta, papel, vidro, cola, plástico, corda, palha) a partir dos movimentos de
alguém que o vista. Por isso, é considerado uma escultura móvel.
Ou seja, o Parangolé é uma vestimenta que ganha vida quando entra em contato com a pessoa
que vai vesti-lo. E isso é que o faz existir. A vida começa a surgir quando da sua construção,
pois ele deve ser confeccionado por quem vai usá-lo, intencionalmente. É nessa hora que
surge também a personagem ou o personagem que ele vai representar. Depois de prontos,
Parangolé e personagens fundem-se com os corpos das copesquisadoras ou copesquisadores
quando se encontram. E nessa hora a escultura móvel pode enfim contar sua história ou
expressar-se da forma que a facilitadora ou o facilitador da oficina planejou. O importante é
atentar para que, enquanto dispositivo sociopoético, o Parangolé acione as informações
necessárias para a produção dos dados.
Na nossa pesquisa, a técnica se dividiu em três momentos: a construção, o desfile e
a entrevista. A construção foi feita coletivamente, na praça. Levamos tecidos diversos, linhas,
agulhas, tesouras, etc. As fotos abaixo mostram momentos desse primeiro encontro, primeira
oficina. Nosso Parangolé foi o Parangolé da mulher do Coco. Enquanto construíamos
cantávamos, entoando alguns versos:
5
Professora da Universidade Federal do Piauí – UFPI, mestre e doutora em Educação, sociopoeta que
desenvolveu a técnica do Parangolé em suas pesquisas.
44
Figura 27- Desfile com o Parangolé Figura 28- Desfile com o Parangolé
O passo a passo.
um. Importante ressaltar aqui o cuidado que se deve ter ao conduzir uma pessoa de olhos
vendados. É preciso calma, mansidão na voz para que a pessoa se sinta segura, é preciso
deixar que ela se apoie em você enquanto se movimenta e é, sobretudo, necessário que se
descreva o caminho, informando a direção que a pessoa deve seguir. Esses cuidados foram
fundamentais para que as mulheres se sentissem confiantes até o final da atividade.
Ao entrar na sala, cada mulher teve contato com os elementos, um de cada vez.
Na entrada, logo depois que a porta se abria, os pés pisavam a bacia cheia de água; em
seguida, as mãos entravam em contato com o calor do fogo da vela acesa; logo depois, o
cheiro do perfume entrava pelas narinas de cada mulher convidada a inspirar levemente; e por
ultimo, cada mulher era conduzida para sentar-se à mesa, onde iria tocar e trabalhar com a
argila – o último dos elementos e que representa a terra. Com a argila dá-se a primeira
produção da técnica. A produção deve ser individual e deve responder a pergunta geradora,
que nosso caso foi: quem é a mulher do Coco?
Depois de produzir com a argila, o grupo foi convidado a tirar a venda dos olhos e
tomar contato com o que foi produzido, para analisá-lo. Em duplas, as mulheres refletiram e
analisaram o material para depois apresentarem suas análises usando uma linguagem artística.
As linguagens sugeridas por mim foram: o teatro, o repente, a poesia, a música, o gesto. Ao
final, cada dupla apresentou sua sistematização sob a forma de uma das linguagens artísticas
sugeridas. A seguir, uma sessão de fotos mostrando cada momento da técnica, relatado aqui:
Figura 34- Início Terreirada Figura 35- Elemento Água Figura 36- Elemento Fogo
6
O material das análises classificatórias e contra-análise estão apresentados no final da pesquisa, como material
anexo.
7
Para mais informações sobre as análises dos dados de uma pesquisa sociopoética é imprescindível a leitura da
obra O oco do vento – metodologia da pesquisa sociopoética e estudos transculturais, de Jacques Gauthier
(2012).
52
análise sobre a pisada feminina do Coco cearense a partir das Mulheres do Coco da Batateira
alguns marcadores de africanidades que refletirei na análise filosófica.
Um momento central da pesquisa sociopoética, do ponto de vista do compromisso
político e ético com o grupo-pesquisador, é a contra-análise. É nela que se dá a etapa mais
importante da avaliação da pesquisa, onde submetemos toda a produção tiramos nossas
dúvidas, complementamos informações. É também nela que a reflexão sobre os dados ganha a
consistência da contribuição das copesquisadoras e copesquisadores de forma mais
intencional. A contra-análise pode ser feita de forma criativa, tendo também a arte com
dispositivo que acione a apropriação e a reflexão sobre a pesquisa. Ela também pode ser feita
de maneira mais direta, com uma apresentação da reflexão da facilitadora da pesquisa para o
grupo-pesquisador, seguida do diálogo sobre o material produzido.
Na ultima visita que fiz ao Crato durante o processo da pesquisa, realizei a contra-
análise. Numa roda de diálogo, conversamos sobre os confetos. Apresentei minhas dúvidas e
as mulheres, as delas. Refletimos e ao final, construímos um Coco como resultado de nosso
diálogo. Foi um momento muito interessante, muito rico, preenchido de emoção e gratidão
por tudo o que foi vivido. Na ocasião, estavam comigo Sávia Augusta (da Maria das
Vassouras) e José Soares, que me apoiaram na realização desta atividade. Abaixo, uma foto,
um recorte desse encontro.
os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu
para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou antes, criados, e não
seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam.
8
Disponível: http://mw.pro.br/mw/antrop_africanidade_espaco_e_tradicao.pdf.
56
4.1.1 Mulher quebra pedra; Mulher cozinha feijão; Mulher a força da mulher e Mulher
coco barrim.
Surge então a mulher quebra pedra, um confeto que associa o ser feminino à
valentia, à resistência, à luta e à conquista. Ele nasce de um embate com o contexto político
vivido pelas mulheres da Batateira. Elas destacam que no começo
os maridos não deixavam as muié participar de reuniões. Aí a gente fez essa peça
(teatral) porque eles não aceitavam as mulheres sair de casa, só era pra tá da sala pra
cozinha. Aí então a gente fez essa reunião pra puder quebrar essa pedra pras mulher
também participar das reuniões (Mulher coquista).
Percebo que o confeto explica a situação da mulher que busca sua autonomia e
liberdade de participação; a mulher que fica presa em casa, impedida de exercer suas
atividades socioculturais, circunscrita às tarefas da cozinha. Há assim uma relação desigual no
campo do gênero, onde o homem pode tudo e a mulher não pode nada. “quebrar essa pedra”
parece associar-se à capacidade de fazer rompimentos diante de situações que exigem
ocupação de novos lugares de produção de si e de suas atividades socioartístico-culturais.
Esse confeto sugere uma mulher que rompe o silêncio da esfera privada, do aprisionamento
familiar, doméstico e que interfere nas formas naturalizadas, institucionalizadas e endurecidas
da vida social.
O confeto desvela a mulher de potência, cantada e visibilizada na e pela arte do
Coco:
As mulheres da Batateira, elas são umas guerreiras,
Elas fazem artesanato e são fortes rezadeiras.
[...]
As mulheres da Batateira, também são agricultoras,
E fazem sabão de aproveito
Pra mostrar sua cultura,
Elas têm garra no peito
(Trecho do Coco produzido pelas mulheres da Batateira, na contra-análise).
por muito tempo aprisionada sob o poder patriarcal. Essa compreensão leva-me a crer que
nossa cultura, fundamentalmente patriarcal, é realmente uma construção social. Portanto, ao
longo da história do feminino, deparamo-nos com diferentes produções da subjetividade.
Enquanto a mulher quebra pedra sinaliza para uma subjetividade feminina mais rebelde, que
escapa à normatividade, que questiona a ordem estabelecida, que não aceita a opressão, etc.,
como vimos anteriormente, a mulher cozinha feijão, outro confeto, apresenta uma
subjetividade 9 feminina com estreita relação com a figura nomeada por Rolnick (2006, p. 33)
de “mocinha aspirante-noivinha-que-vinga”, ou da esposa inteiramente consagrada ao lar,
presente no território matrimonial doméstico, onde, pondera a autora, essa relação não pode
ser compreendida como prisão ou como sinal de uma suposta condição de escravo.
Essa mulher cozinha feijão, na subjetividade das mulheres do Coco da Batateira
pode ser percebida na fala abaixo:
Ser mulher é assim... é difícil pelo uma parte, porque vida da mulher é sacrificosa, a
mulher faz um serviço aqui, faz ali, quando vai fazer o derradeiro que volta pra trás,
aquele primeiro que ela fez, tá desmanchado, lá se vai fazer de novo. E assim passa
o dia, e todo dia a mesma coisa. (...) E corre pra lavar roupa, e corre pra lavar prato,
e corre pro pé do fogão... E ainda tem mais aquelas coisas! A minha vida é
sacrificosa por isso. Eu vivo com um homem que é ruim feito o diacho. Eu não sou
casada com ele, vivo com ele. Mas, ali é peça ruim. Se eu amo ele? Ah, Deus me
deu ele, né? E eu tenho que aguentar até o dia que Deus quiser. (Mulher coquista)
Por que muitas mulheres sustentam por uma vida inteira situações como esta? É
como se a mulher não existisse por si própria, sendo vista como um ser naturalmente
dependente do homem, este pensado como um indivíduo livre, solto, senhor de si, em
oposição à mulher. Daí, então, que a degeneração da mulher-sujeito se dá a partir da própria
constituição da sociedade e pela afirmação cultural do homem (ARENDT, 2010).
De fato, as muitas e diferentes restrições vividas pelas mulheres traduziram-se,
historicamente, quase sempre em relações hierárquicas de desigualdade de status e de poder,
onde as mulheres são o pólo dominado (ARENDT, 2010). Porém, não se pode dizer que a
mulher cozinha feijão, em suas relações e construção de devires, não busque viver plenamente
seus afetos.
9
A noção de subjetividade está referenciada em Guatarri & Rolnick (1996, p. 31), segundo a qual não implica
uma posse, mas uma produção incessante que acontece a partir dos encontros que vivemos com a outra, com o
outro. Essa outra, esse outro pode ser compreendido como o outro social, mas também como a natureza, os
acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo que produz efeitos nos corpos e nas maneiras de viver (MANSANO,
2009). “A subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” (Idem).
59
Tem-se assim que, mesmo na condição de mulher cozinha feijão, a busca pelo
afeto, a construção do desejo são a busca pela produção do mundo – processo que envolve
movimentos de intensidade e produção de sentido, construção de laços sociais e afetivos que
provocam prazer, dor, sofrimento e liberdade, ao mesmo tempo (ROLNICK, 2006).
Na relação ou entrelaçamento entre a mulher quebra pedra e a mulher cozinha
feijão o Coco parece operar uma linha que visa à produção de afetos, que surge do encontro,
encontro que faz disparar a produção de uma subjetividade que produz essa mulher que diz
Mulher do coco é o sol quando nasce, a lua quando brilha
As pedras de Fátima, o pilão de Raimunda
E a panela de Valquíria
E resto da bolada fica na mesa para Sofia
(versos produzidos na Terreirada dos Quatro Elementos)
coquistas da Batateira para se referirem aos papéis e a sua condição em relação aos homens,
por um lado, e por outro, para destacarem em si um poder, que aparentemente é de natureza
masculina, pois está relacionado à força, à coragem, à determinação para resolver situações e
desempenhar tarefas pesadas do cotidiano. A fala a seguir é reveladora:
[...] eu com 10 anos de idade, com 8 anos eu já sameava era legume mais meu pai
pra prantar. Meu pai cavando e eu atrás dele sameando, sameando o legume pra
mode eu prantar. Ninguém num sabe disso, não. Ah, como foi? Foi todo mundo
trabaiando (Mulher coquista)
Por que é essa diferença, quando é filha mulher, quando é filho homem? Porque
quando ele tá na adolescência, muitos... tem deles que arrumar logo é amizade. E a
menina mulher é mais caseira e é mais frágil, e é mais fácil conversar com ela. E o
menino homem, quando ele tá na adolescência, nessa adolescência que tá
acontecendo agora, não tô dizendo com todos e nem tô descriminando ninguém. Tá
entendendo, não tá, como é que eu tô dizendo? E quando a mãe dá um conselho: “
home, eu não quero conversa, vai pra lá, vai te lascar, carái!”. Eu num tô dizendo
que com todos é assim. (Mulher coquista).
A indagação faz sentido, visto que essa diferença tem uma razão de ser, como
esclarece Louro (1997, p. 47): “a atribuição da diferença está sempre implicada em relações
de poder, a diferença é nomeada a partir de um determinado lugar que se coloca como
referência”. Essas diferenças quanto à organização e ao desempenho das relações e papéis
entre homens e mulheres é algo que se reproduz há séculos, onde a mulher desenvolve papéis
circunscritos ao lar e o homem, funções públicas. Tratam-se de relações que são construídas
historicamente, nas quais se deve considerar o processo dinâmico de como os indivíduos se
relacionam entre si. É no movimento entre as determinações socioestruturais, as conquistas
culturais e as iniciativas dos indivíduos em sua singularidade que se definem formas de ser e
agir quanto às relações de gênero (SANTOS, 2005). Assim, vão sendo construídos e
redefinidos papéis que mulheres e homens assumem na sociedade.
Segundo Scott (1995), gênero é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e também um modo primordial de dar
significado às relações de poder. Como referências, as representações de gênero estruturam a
percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social.
61
[...] A minha vida é devagar e meia corrida (...) eu tive quatro (filhos) aí eu arranjei
o cunhado dela e aí tive um filho. Minha fia, eu emplorei, fiquei doente,
trabalhando... as pernas, as veias estorou tudo! Num teve uma pessoa que aparecesse
para me ajudar. [...] Aí depois eu fiquei doente, passei mal, depois tive um negócio
de botar sangue pelo nariz, quase eu viajava. [...] Depois eu fiz minha casinha ...
sofri, sofri, sofri quatro anos e meio atrás do aposento dele, mas venci, aí fiz minha
casa. E hoje Deus me deu e eu tô no céu. Pronto, não tem goteira, tá lá toda
arrumadinha. Não convido pra ir lá, porque tem meu filho que não é bom da cabeça
(...) é meu mais velho. Eu cuido dele, cuido do trabalho, cuido de tudo na minha
vida. Tudo! Eu sou o homem e a mulher na minha casa (Mulher coquista)
Vê-se que essa diferença nos papéis no contexto social da família não altera
necessariamente as relações de poder exercidas pelos homens em relação às mulheres nem
mexe no lugar (de poder) que ocupa historicamente nas relações sociais. A manutenção dessa
situação pode ser esclarecida de acordo com o pensamento de Pierucci (1990), que faz uma
crítica ao discurso da defesa das diferenças apregoada pelos chamados novos movimentos
sociais, evidenciando sua sutileza. Esse autor esclarece que a certeza de que os seres humanos
não são iguais, porque não nascem iguais e como tal não podem ser tratados como iguais,
quem primeiro apregoou foi a ultradireita no final do século XVIII e nas primeiras décadas do
século XIX, como reação ao ideal de igualdade e fraternidade apresentadas pela Revolução
Francesa. Ele denuncia que a bandeira da defesa das diferenças, hoje empunhada à esquerda
62
pelos “novos” movimentos sociais (das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc.), foi na
origem – e permanece fundamentalmente – o grande signo das direitas, velhas ou novas,
extremas ou moderadas.
4.1.2 Coco tudo na vida da gente, Coco firma a mira, Coco de aterrar a terra e Coco tirado
do tesouro..
Para os índios que habitavam a região, o vale do Cariri cearense já era “território
sagrado”, bem antes que os primeiros colonizadores católicos chegassem para a
conquista, a posse e o saque. Foi em defesa dessa terra da fertilidade e da fartura,
onde se situava também o “espaço mítico”, que os índios Cariri fizeram guerras
contra os invasores brancos e mestiços colonizadores e, bem antes, contra as tribos
dos sertões que, empurradas pela escassez de víveres e pelas secas periódicas,
tentavam se estabelecer na região. Índios, negros e mestiços do Nordeste já
conheciam o Cariri cearense como “terra da fertilidade”, como “chão sagrado”, bem
antes das pregações do padre Ibiapina e de Antônio Conselheiro, do milagre da beata
Maria de Araújo e da fama do padre Cícero. O “caldo mítico” original foi propício à
fecundação e eclosão dos futuros movimentos religiosos e crenças messiânicas
populares. Os expulsos do “Paraíso” sonhavam com o retorno.
63
O Coco tudo na vida da gente fala de uma mulher brincante que ao compará-lo
com Pedra da Batateira o compara na sua importância e espiritualidade. É assim um coco-
pedra, que é igual a um tudo na vida, a um paraíso, a um lugar encantado, caldeirão de
culturas, a pedra fundante do Crato. Rosemberg Cariry (2008, p. 2) contextualiza
historicamente essa realidade e explicita sua importância na constituição da identidade do
povo da região:
O referido autor explica, em outra passagem, que não se sabe em que momento
surgiu a lenda da Pedra da Batateira, mas é possível que tenha surgido com o aldeamento dos
índios Cariri na Missão do Miranda (1740 - 1750). Esclarece que, por volta de 1779, na
mesma época em que os índios eram despojados mais uma vez das suas terras, por decisão de
José César de Meneses, governador de Pernambuco, os caboclos-cariri atribuíam a profecia de
que “o Cariri iria virar mar” ao frei Vital Frescarolo, missionário apostólico capuchinho. Em
um momento de crise, de dissolução da cultura e do sentido de “comunidade”, os caboclos-
cariri buscavam, assim, uma “autoridade” exterior para dar à lenda foros de verdade sagrada e
manter a coesão do grupo.
O Coco tudo na vida da gente remete-nos, pois, a essas mulheres brincantes,
representantes contemporâneas do processo civilizatório sertanejo caririense e nordestino, que
“gerou uma cultura original que deita raízes nas principais vertentes das culturas ocidentais,
notadamente das culturas tapuia, européias (ibéricas e mediterrâneas), norte africanas e
afrobrasileiras” (CARIRY, 2008, p.4). A mulher brincante do Coco da Batateira sabe de sua
importância para o município e para a região, sabe que carrega a força da arte e da tradição
dos povos que por lá passaram e derão origem ao lugar, ela é a prova que a grande riqueza e a
grande contribuição do Cariri ao Brasil e ao mundo, não acontece através da cultura letrada e
erudita, nem mesmo através do vigor da sua economia ou da sua importância política
regional, mas através da cultura negra.
64
Nossa aventura sociopoética produziu um confeto que nos fala de uma mulher
brincante que luta determinadamente para brincar o Coco. Trata-se do confeto Coco firma a
mira. A mulher brincante do Coco firma a mira é uma mulher que luta com todas as suas
forças para manter a tradição, para manter a alegria e a beleza da brincadeira do Coco, para
não deixar a arte, a cultura popular negra morrer; é a mulher que faz o movimento de ir em
busca do que quer, pois não é fácil manter-se na missão de guardiã da cultura; sem dinheiro,
sem patrocínio, sem amparo do estado, sem mesmo os instrumentos básicos para manter o
Coco firme e na mira. É mesmo difícil, Dona Edite, a mestra do Coco da Batateira, por
exemplo, não conseguiu um lugar no programa “Registro dos Mestres da Cultural Tradicional
Popular”, criado pelo Governo do Estado do Ceará, através da Lei 13.351/2003, a qual além
de criar um registro dos mestres da cultura tradicional popular, oferece a estes uma bolsa no
valor de hum salário mínimo. Mesmo sendo louvável a iniciativa do governo estadual
cearense, a lei não contempla todos os mestres e todas as mestras atuantes no estado,
desrespeitando a recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de
1989, que considera a cultura tradicional e popular como
pro terreiro aterrar” (Verso de Coco do repertório do grupo). Trata-se da mulher vinculada à
terra, a mulher que toca, realiza e faz. É um confeto que nos remete à história do Coco na
região do Cariri, ligada ao ofício da construção de casas de taipa e chão batido, momento em
torno do qual as famílias, vizinhos e parentes se encontravam para juntos construírem suas
moradias, ao mesmo tempo em que celebravam, dançavam e compartilhavam a alegria do
encontro, do fazer junto, da comunhão e do prazer coletivo.
Às vezes, quando assistimos ou participamos da brincadeira do Coco, em geral,
fixamo-nos na beleza da apresentação do grupo (no canto, no ritmo, na percussão, nas
pisadas, gingas e batidas, na harmonia dos instrumentos), não atentamos para os elementos
que a antecipam e a envolvem, como bem nos chama a atenção Ayla (2006), para as
motivações para a festa, as habilidades na produção do empreendimento brincante, os saberes
que são mobilizados, etc. A brincadeira do Coco pode estar ligada a uma reminiscência ou a
um ritual, que reúne e evoca memórias de grupos sociais, de valores construídos
coletivamente, ao longo de sua história (ALMEIDA, 2013). A mulher brincante do Coco de
aterrar a terra é a mulher que aglutina, que aproxima, que produz as iguais, os iguais,
vinculando-as e vinculando-os pela irmandade terrena (somos filhas e filhos da terra), pela
intimidade que se constrói na comunhão, no saber e na liberdade que se partilha.
Enquanto o confeto Coco de aterrar a terra nos chama a atenção para a nossa
vinculação com a terra, o confeto Coco tirado do tesouro traz a representação de uma mulher
brincante voltada para as tradições e para a ancestralidade, uma mulher coquista que valoriza
a sabedoria de suas antepassadas, quando afirma: “esse Coco foi minha vó Santana que
deixou pra mim”; uma mulher que procura (re) ligar o presente e o passado, o passado e o
presente; reverenciar seus ancestrais, cuidar da memória – um elemento integrante na tradição
da vida dos povos africanos. Aliás, a memória africana, segundo Hampâté Bâ (1982), é
caracterizada por um senso de unidade, de totalidade:
O confeto Coco tirado do tesouro trata exatamente dessa mulher brincante que
reconta e atualiza a memória de suas bisavós, avós, pais e mães, como mostra o depoimento
abaixo:
66
Meus pais não tinham emprego, não tinham leitura. Tinha que trabalhar era isso,
artesanato, era fazendo e cantando. Eles faziam e cantavam. Cantava moda, música
fazia panela, prato, pote, cabaça, quartinha, cangaceiro, animal com caçuá, fazia
carro, fazia gente. Quando eu fui me entendendo de gente já fui vendo eles fazendo,
eu não sei com quem aprenderam, não. Por isso que eu cresci fazendo essas coisas,
cantando. (Mulher coquista)
Percebo que se trata de uma mulher que aprende pela oralidade e pela vivência
ativa na relação com seus pais, avós e parentes, pela relação direta com a arte da criação,
como uma artesania, onde se articulam tradição, saber, técnica e memória. Constato também,
a exemplo do que revela Farias (2014), que as produtoras das danças populares advindas das
negras e negros, em sua maioria, não dominam a escrita e seus saberes são repassados por
meio da oralidade. E a oralidade, segundo Hampatê Bá (1982), é apresentada como um
conceito amplo e filosófico, destacando os seguintes elementos: o caráter sagrado da fala; a
fala como força vital; a fala como vibração que produz ritmo e música; a tradição como forma
de aprendizagem e iniciação; a importância da viagem como dimensão formadora; a
importância da genealogia; os ofícios tradicionais; a visão de totalidade e de percepção total.
porque a palavra falada e cantada tem energia transformadora, como explica Hampâté Bá
(1982), devido a sua origem divina e às forças nela depositadas. A fala, segundo o autor, é um
dom de Deus, é força vital, porque gera movimento, vida e ação. Para este autor, no universo
tudo fala; tudo é fala que ganhou corpo e forma. Assim, a mulher brincante que se revela na
vivência das mulheres da Batateira tem uma ligação muito profunda e sagrada com a palavra
cantada, porque canta tudo aquilo que vive, porque vive tudo aquilo que canta.
homens brancos apresentam um percentual de 14% maior do que o obtido pelas mulheres
brancas, 30% maior do que o obtido pelos homens negros e 60% maior do que o recebido
pelas mulheres negras; no que tange a ocupação exercida pelas mulheres trabalhadoras negras,
os autores destacam que as mulheres trabalhadoras negras arcam com o ônus da discriminação
de sexo e de cor, na medida em que possuem escolaridade menor do que as mulheres brancas,
além de sofrerem com a segregação ocupacional, pois tendem a ocupar postos de trabalhos
com piores rendimentos (SOARES, 2000).
Quando focamos no Crato, município alvo da presente pesquisa, verificamos que
os dados também revelam que a condição feminina apresenta semelhanças à analisada no
âmbito estadual. Vejamos: a População Economicamente Ativa (PEA) do município é,
segundo pesquisa realizada por Júnior Macambira (2008), do Instituto do Desenvolvimento
do Trabalho (IDT), de 44.393 trabalhadores e trabalhadoras, sendo que, deste total, 27.084
estavam ocupados naquele ano. É importante frisar que, deste total, 12.670 estão na faixa de
15 a 24 anos, e 30.160 na faixa de mais de 25 anos de idade. A grande maioria dos segmentos
ocupados, sejam homens e mulheres, concentra-se no setor de serviço, segundo a referida
pesquisa. O trecho abaixo, apesar de não mencionar a participação específica das mulheres
trabalhadoras negras do município do Crato, oferece um quadro importante para pensar essa
situação em relação ao recorte de gênero:
(...) o coco vem do negro, vem da África, da escravidão. Onde eles fica tudo
dançando, arrodeado assim de uma fogueira, tudo dançando quebrando o coco,
pisando o coco do jeito que a gente faz, cantando e dançando (Mulher coquista).
A vida dança antes mesmo de qualquer vegetal ou animal surgir no planeta. A terra
dança em torno do sol, como os astros, meteoros, cometas. A dança é parte
integrante da vida plena do universo, da luz, do vento e da chuva. Tudo está em
movimento, as matérias dançam em sequencia cósmica.
11
Disponível: http://zip.net/btqZFp. Acesso: 10/03/2014.
71
Foi através da palavra que aprenderam o a ser o que são e a fazer o que fazem.
Essa referência da palavra e da transmissão do saber pela oralidade é muito forte na vida
delas:
72
Eu tava falando da gente criar o grupo de mirim e ensinar o que nós sabe a eles pra
quando a gente não existir mais aqui eles dizerem: foi minha vó que me ensiou, foi
Tiana, foi Teresa... pra lembrarem que as primeiras fomos nós
(...) nós num sabe ler. Nós lê mas num sabe, nós vê, mas num conhece. E nós solta a
palavra e o povo acha bom, pensando que nós sabe lê (Mulher coquista).
Mesmo sem saberem ler, como afirmam, “soltam a palavra” porque são artesãs
da palavra. São mulheres filhas de artesãs e artesãos, cresceram e viveram se alimentando da
palavra que ouviram de suas mães, avós, uma palavra viva que se materializar no aprendizado
diário, na vivência, no fazer, no criar. São herdeiras e propagadoras da arte de criar, moldar o
barro e a madeira, esculpir a jarra, o pote, tirar a novena, a ladainha, cultivar a terra, fazer a
farinhada, cantar uma cantiga na beira do rio, desbravar léguas de estradas caminhando ou em
cima de um animal, fazer uma reza para curar um doente ou “tirar um mal olhado”.
Meus pais são artesãos, eu era da parte da lenha, eu era da parte da pedra e do pau,
de coisar as panelas, alisar as panelas e sei fazer manta de animal, do pé, de botar no
lombo de animal e cambitar a canga, cesta também eu sei um pouco, entrançar a
cesta, começando do fundo da cesta até o aro (Mulher coquista)
1982, p. 183).
É na e pela palavra, pela narrativa oral que toda essa riqueza e sabedoria se torna
realidade na vida cotidiana das pessoas e da comunidade, porque a
É por isso que a palavra, no contexto da cosmovisão africana, deve ser usada
com cuidado e cautela, pois, acredita-se, que uma pessoa que mente, ou seja, “pensa uma
coisa e diz outra, separa-se de si mesma. Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade
cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor de si” (BÂ, 1982, p. 187).
As mulheres coquistas da Batateira, mestras da palavra, senhoras idosas, com
média de idade em torno dos 70 anos (há entre elas mais novas e mais velhas, como explico
no capítulo II). Elas poderiam ser chamadas de griottes, e seu saber ser considerado de grande
valia, como em África, pois “ao contrário do ocidente, onde o ancião é visto como alguém que
já não tem mais nada a contribuir, na África Ocidental, quanto mais velho for o homem, mais
sua palavra terá respeito e atenção” (BERNAT, 2013, p. 32).
74
Essas mulheres, através de sua vida e de sua arte, são continuadoras da tradição
africana que, nelas e por elas, renova-se e atualiza-se, fortalecendo os laços ancestrais de
nossas raízes; continuam tecendo o fio revelador dessa memória; são mestras tecelãs dessa
memória – falada, cantada e dançada.
75
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Confesso que não deixar o Coco cair não foi tarefa fácil, e não o é agora,
chegando ao final deste trabalho. O Coco foi a porta “mágica” que mobilizou minhas forças
para construir, com as mulheres coquistas da Batateira, as reflexões e análises que ora
sistematizo. Ele foi o caminho que abriu nossa mente, nosso corpo, nossos afetos e desejos
para, com a licença das nossas ancestrais e nossos ancestrais, adentrarmos no mais profundo:
na história, nas memórias, nas criações corporais femininas - no feminino lutador, dançante e
griôt; no conjunto de saberes, práticas e experiências ligado à tradição dos povos negros, na
ancestralidade que nos conecta as nossas raízes e nos desafia a viver em afroperspectiva
(NOGUERA, 2012), ou seja, viver a interação com os outros, com as ancestrais, com os que
virão e as que virão, com o mundo, sempre fiéis à palavra (kuumba) – para criar, inventar e
usar toda nossa capacidade para deixar tudo que herdamos de nossos ancestrais (a
comunidade, os bens, o meio ambiente e toda a cultura) mais belas, belos e funcionando para
aquelas e aqueles que virão.
Como quem lança uma rede ao mar, lancei uma pergunta para a pesquisa: como
se processa a construção da identidade afrodescendente e de gênero das mulheres coquistas
do Ceará, especificamente das mulheres integrantes do Coco da Batateira, no Crato?
Para buscar caminhos de respostas para minha questão de pesquisa neste
trabalho, aventurei-me no estudo sobre o Coco no Ceará, partindo de minhas experiências, do
cultivo desta arte por mim exercida, dos agenciamentos que me assaltaram, procurando
desnudar as razões que me incitaram a pesquisar sobre o mesmo e minhas inquietações
investigativas. Imprimi um percurso no qual fiz um traçado sobre a história da brincadeira do
Coco no Nordeste e no Ceará, visando conhecer e destacar sua importância, suas raízes, suas
propagadoras e seus propagadores, suas marcas afrodescendentes, situando o Coco das
Mulheres da Batateira, no Crato (CE), foco de meu estudo (Capítulo I). Escolhi a
Sociopoética como a abordagem de pesquisa, delineando sua concepção, informando suas
técnicas e utilizando um dispositivo de pesquisa próprio, nomeado por mim de “Terreirada
dos Quatro Elementos”, e trabalhando ainda com o “Parangolé”, outra técnica de pesquisa
desta abordagem. Nesta parte ainda, fiz uma caracterização do grupo copesquisador,
76
seus antepassados, a mulher do Coco da Batateira afirma sua identidade de mulher brincante e
negra, e atualiza em si mesma o que ela é e o que a comunidade é.
Como quem se lança ao mar, me debati, fui ao fundo, perdi os pés do chão,
voltei para a praia, várias e muitas vezes, e retornei para a água. Como quem se lança ao mar
senti meus olhos arderem com o sal das águas-noites-salgadas, das águas-dias-perdidos sem
consegui navegar. Como quem se lança ao mar, pedi ajuda, alcei as velas e as preces para
Iemanjá. Como quem se lança ao mar, delirei, turvei a vista e não vi o que precisa ver,
temendo o que não queria viver. Como quem se lança ao mar virei água, misturada com as
águas de meu triste olhar. Como quem se lança ao mar, corri o risco de não emergir, de
naufragar, de não voltar, de não chegar. Mas cheguei. E como quem chega do mar, chego
cheia de maresia, chego cheirando a peixe, com as mãos carregadas de búzios e conchinhas,
as minhas mais lindas descobertas, porque minha vida veio do mar...
REFERÊNCIAS
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Maranhão. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA,26., 01 e 04 de junho 2006.,
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86
APÊNDICES
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1ª Técnica do Parangolé
CATEGORIAS DISCURSO
Beleza 1. Por que eu tô mais feia, tô mais bonita? como é que eu tô?
2. Tá muito linda, só faltou só o cigano!
3. Ciganinha, vc tá se sentido maravilhosa e eu tô com inveja de vc.
4. Porque a roupa diferente, a gente fica mais alegre, mais importante,
porque aquela roupa que nunca vestiu, na hora que vai vestir, aí todo
mundo... só ela com uma roupa bonita, uma roupa diferente!
5. Eu me sinto tão feliz, ave maria, essa roupa é maravilha mulher,
porque essa roupa foi que veio dada por Jesus, ai nosso senhor Jesus
cobriu nós tudo de felicidade e paz.
6. Porque eu tô bonita, tô bacana, ai como eu tô maravilha!
7. Tô me achando muito feliz, maravilhosa, quase cigana.
8. No coração sente muito é amor e alegria.
9. Rainha da Beleza.
10. eu sou a rainha da beleza, a bela rainha.
11. Me senti chique no meio de vocês e tá tudo bem.
2 , 3 falam da continuidade.
Falas complementares
Falas diferentes
5,11,12 são falas que diferentes entre si, que trazem informações diferentes.
93
Deixaram pra nós 1. Pra quando nós for, elas ficarem e quando chegar num canto e
perguntarem ‘quem te ensinou?’ foi aquelas pessoas de atrás que se
foram e deixaram pra nós.
2. A banda cabaçal veio dos indíos, o Coco veio dos índios, essas
coisinhas tudo veio dos índios.
3. O coco é muito bom e no coco é muito bom. Nós todas vamos
dançar e eu tenho fé em Deus, que nós que estamos aqui, nós temos
aquela fé em Deus que o Coco nunca vai se acabar e daqui pra frente
é que vai continuar.
4. Eu eu tô sabendo onde é? Mas ele veio da Palmeira e da Palmeira
caiu um coco nós começamos a dançar o Coco. Então nós pegamos o
Coco, aí fomos dançando e as É porque desde o início que foi assim,
os homens não queriam e a mulher formou-se, vestiu-se de roupa de
homem pra ser o cavalheiro, é a dama e o cavalheiro sim deu certo.
5. Nós lê mas num sabe, nós vê, mas num conhece. E nós solta a
palavra e o povo acha bom pensando que nós sabe lê.
6. E esse pessoal que ensinava nós, já morreu, quem cantava pra nós
foram morar lá pro lado de Tiradentes.
Falas diferentes 3,5 são diferentes entre si, trazem informações sobre o
coco e sobre soltar a palavra sem saber ler.
94
CATEGORIAS DISCURSO
A Mulher do Coco 24. Pronto. É o sol, que aqui é a força da mulher. A força da
mulher é o sol, é a lua, é a pedra é o mar, é tudo o que vier.
Tudo isso que nós fizemos pra poder dar a força da mulher do
coco.
25. E na mesa com aquele barrim, eu, quando falou que a gente se
sentisse assim como a mulher do Coco, eu senti logo que eu
fazia minha personagem de homem. Fiz eu como um homem
com um chapeuzim na cabeça e os dois coquim pra mim ficar
quebrando o Coco.
26. Do jeito que tem nós aqui, tem o coco de Maranhão, tem as
quebradeira de Coco, é tudo quebrando o coco e cantando, com
um machado. Bota o machado entre as pernas que é aquela
marreta de pau, e é quebrando o Coco e cantando.
27. Porque a gente sofre. Porque a minha (filha), eu já senti e já
cuidei da secura da minha dentro de casa, que eu levava ela pra
bacia, pra lavar os pé, e eu levava ela pra tomar banho. Tudo
isso aí a gente se sente e é o significado da mulher que tava
lutando com ela, que eu era a mãe dela e sou do Coco.
28. Eu sou uma moça, que eu sou da roça, sou legítima da roça
que nem escrever eu não sei. Meus pais são artesão, eu era da
parte da lenha, eu era da parte da pedra e do pau, de coisar as
panelas, alisar as panelas e sei fazer manta de animal, do pé, de
botar no lombo de animal e cambitar a canga, cesta também eu
sei um pouco, entrançar a cesta, começando do fundo da cesta
até o aro.
Significado do Coco 16. O coco é da terra porque ela era quem aterrava as casas, a
gente era quem aterrava as casas, tapava... e que exatamente
tem até dizendo: “de manhã tu molha o barro, de tarde tu vai
tapar, com a turma dançando o Coco pro terreiro aterrar”.
17. É uma física muito boa pros ossos. Vivo com problema no
joelho. Quando eu não danço o joelho incha e quando eu danço
o joelho desincha. Tava bem inchadão, eu dancei ontem e ô, o
joelho desinchou mais.
18. O Coco vem do negro, vem da África, da escravidão. Onde
eles fica tudo dançando, arrodeado assim de uma fogueira, tudo
dançando quebrando o coco, pisando o coco do jeito que a
gente faz, cantando e dançando.
19. Quando era no tempo da tapagem de casa, aterro, pra aterrar
casa, deixar assim como cimento, não existia cimento nessa
época aí eles inventavam essa dança do Coco.
20. Eu vim conhecer, eu vim conhecer que o trabalho era do coco.
E foi a coisa mais melhor que eu vi na vida.
terminou feliz
6. Então se a gente entrava nessa dança, começava as seis horas
da tarde pra parar as seis hora da manhã. Dava um intervalo
assim a meia-noite, pra aguar o piso, ai nós largava o pau a
dançar coco de novo.
APÊNDICE C - Sínteses sobre a produção gerada com a Terreirada dos Quatro Elementos
D. Edite – repente
D. Valquíria – música/coco
D. Fátima – poesia
O pilão é de pisar
O coruja é pra voar
O nego é pra ficar
E as pedras pra quebrar
O coco é pra pilar
Vamo pilar, vamo pilar, vamo pilar
Vamo quebrar as pedras!!
O Coco da Batateira
agora vai começar,
Nós vamos tirar uns versos pras mulheres apresentar!