Paul Brunton - A Índia Secreta

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Paul Brunton

A ÍNDIA
SECRETA

UNIVERSALISMO
Sumário

Introdução

Capítulo 1 — Donde saúdo o leitor

Capítulo 2 — Prelúdios da busca

Capítulo 3 — O Mago Egípcio

Capítulo 4 — Encontro um Messias

Capítulo 5 — O Anacoreta do rio Adyar

Capítulo 6 — A Yoga que vence a Morte

Capítulo 7 — O Sábio que nunca fala

Capítulo 8 — Com o chefe espiritual da Índia meridional

Capítulo 9 — A Colina do Santo Lume

Capítulo 10 — Entre Magos e Santos

Capítulo 11 — O Taumaturgo de Benares

Capítulo 12 — Escrito nas Estrelas!

Capítulo 13 — O Jardim do Senhor

Capítulo 14 — No quartel-general do Messias parse

Capítulo 15 — Um estranho encontro

Capítulo 16 — Num eremitério da selva

Capítulo 17 — Tabuinhas de verdades esquecidas

Glossário
A Índia Secreta

O Oriente é o quadrante donde provém toda a luz que ilumina o mundo: luz do
Sol e luz do Espírito. Não é sem significação que dali vieram para o Ocidente as
grandes religiões e filosofias, e mesmo a ciência, que depois enriqueceram a
cultura de suas nações.

Mas o país oriental mais especialmente apontado como a pátria da verdadeira


espiritualidade e mistérios, é a Índia, berço dos maiores pensadores da
antiguidade. Mercê de seus antepassados gloriosos, ainda hoje tudo ali respira
e transpira religiosidade, misticismo, filosofia, não obstante algumas de suas
modalidades envoltas em formas aparentemente grosseiras. Eis porque aquele
país, desde a segunda metade do século dezenove, tem se tornado o ponto de
convergência dos estudos e pesquisas dos maiores orientalistas ocidentais, que
desse modo enriqueceram a cultura deste hemisfério.

Entre esses investigadores está Paul Brunton, autor desta e outras obras, e que
se destaca por seu ardor e imparcialidade no trato dos problemas da cultura e
do espírito. Assim, nas páginas que seguem assistirá o leitor ao desfile dos mais
exóticos e interessantes personagens, de ambos os sexos e de diversas
categorias, uns imponentes e raros, e outros rasteiros e vulgares. E a todos o
autor inquire, analisa e compara com alta compreensividade.

É, pois, um livro útil aos estudiosos destes problemas, e de leitura atraente aos
simples curiosos. Nele cada um pode aprender, no mínimo, que os homens
buscam a Verdade por muitos caminhos, e que a Verdade é como o Sol
dadivoso, que irradia sua luz, calor e vida para todos, indistintamente, com a
única condição de buscarem seus raios benfazejos.

Nesta obra, o que menos se vê é o seu próprio autor, cujo objetivo se concentrou
exclusivamente em expor os fatos por ele observados e analisados. Como
jornalista, aprendera a empregar a técnica do hábil e impessoal redator tão só
preocupado em descobrir, observar, relacionar e expor fatos com a maior
fidelidade, a fim de que outros os lessem, estudassem e tirassem as suas ilações
próprias.

Aqui, pois, não se tropeça com nenhum preconceito, nenhuma superstição,


nenhum intuito proselitista. Apenas uma lúcida exposição de fatos e
acontecimentos com inteira isenção de ânimo — alguns dos quais o autor
experimentou em si mesmo — visando ampliar e aprofundar a cultura de seu
país e de seus leitores de todo o mundo. O leitor tem, pois, em mãos uma obra
que se recomenda por sua honesta objetividade, e digna de ocupar lugar de
destaque em qualquer biblioteca, seja grande ou pequena.
Introdução

A Índia sagrada — também poderia ser o título do livro porque se trata dessa
Índia cujo segredo se mantém inviolável, devido, unicamente, ao caráter sagrado
da sua filosofia. As coisas muito sagradas da vida não são expostas aos olhos
do público. O instinto do homem o avisa da necessidade de ocultá-las nos
adentros mais inacessíveis da alma. E mesmo quando ele não as pode esconder
de todos, deixa, então, apenas entrever tais segredos somente aos poucos
escolhidos em cuja alma sente arder amor à vida espiritual.

O que é certo para um indivíduo, do mesmo modo o será para as nações. As


coisas muito sagradas de uma nação são envoltas num véu de mistério. Que
estrangeiro poderia descobrir o que a Inglaterra possui de mais sagrado? Não
seria fácil! Assim também a Índia; o que ela tem de mais sagrado está envolvido
no maior segredo.

Não obstante, em virtude do seu caráter oculto, o segredo pede a busca. Está
escrito: “Procura e acharás”. Para aquele que busca saber a Verdade com todo
o coração, com a real vontade de encontrá-la, o véu do mistério acabará sempre
por se rasgar.

O senhor Paul Brunton possuía essa energia e acabou por encontrar o que
buscava. Entretanto a tarefa não lhe foi fácil e as dificuldades foram enormes.
Na Índia, aliás como em toda parte do mundo, há muita espiritualidade espúria
através da qual se tem de forçar a passagem para atinar com a verdadeira. Há
uma vasta multidão de saltimbancos e acrobatas mentais que deverá apartar
com os cotovelos quem busca a real espiritualidade.

Com seu poder de concentração perfeitamente treinada, esses indivíduos


conseguem o controle quase absoluto dos seus reflexos mentais, e a maioria
desenvolve forças que nós ainda chamamos ocultas.

Esses homens são bastante interessantes nos seus diversos campos de ação,
e merecem, sem dúvida, atenção dos cientistas interessados no estudo dos
fenômenos psíquicos; mas eles não são verdadeiros espirituais; não é deles que
flui, como da fonte, a verdadeira Luz Divina. Eles não possuem o segredo nem
formam a parte sagrada da Índia que procurava o senhor Paul Brunton.

Ele passou por entre esses mercadores de ilusão, sem, todavia, demorar-se.
Buscava sempre além, procurava a espiritualidade na sua mais pura essência.
Incansável, procurava... procurava até que, finalmente, acabou encontrando o
maior tesouro que a terra pode possuir. Longe dos lugares abafados, no mais
fundo da selva agreste ou no inacessível Himalaia, onde os santos da Índia
sempre renascem, o senhor Paul Brunton encontrou a verdadeira encarnação
de um daqueles homens que a Índia considera como sua maior glória e o coloca
no pedestal da mais alta e mais pura sabedoria divina como o que há de mais
sagrado e mais santo.

Embora, Maharichi, o Grande Sábio, seja o homem que mais o atraia, não é o
único de sua classe. Podem-se encontrar outros; pouquíssimos são eles, é
verdade, mas existem, esparsos por toda a extensão da Índia — das montanhas
nevadas até às planícies tórridas do Sul. São esses homens que representam a
verdadeira alma da Índia e só através deles é que se manifesta a um grau
inconcebível toda a Poderosa Alma do Universo.

Eles são os únicos dignos de nosso maior interesse e dos excelentes estudos
que santificam e é o resultado de tais estudos que este livro nos traz.

SIR FRANCIS YOUNGHUSBAND


1
Donde saúdo o leitor

Há sempre uma passagem obscura nas páginas consagradas, pela maioria dos
autores, à vida da Índia, que me acho no dever de esclarecer em benefício do
leitor ocidental. Os antigos viajantes e mesmo, ocasionalmente, os modernos,
transmitiam aos interessados as mais estranhas histórias sobre os faquires
indianos. Que parte da verdade se oculta por trás dessas lendas que volvem
sempre aos nossos ouvidos, referindo-se à misteriosa classe de homens
chamados Yogues, por alguns, e Faquires, por outros? Qual é a verdade das
alusões reticentes à antiga sabedoria que proporciona aos seus adeptos o mais
extraordinário desenvolvimento das faculdades humanas?

Antes de resumir os fatos nas páginas que se vão seguir, empreendi uma longa
viagem à procura desses homens estranhos, para, fielmente, poder transmitir o
resultado das minhas observações.

Eu bem disse “resumir” — pois a inexorável exigência de tempo e espaço


constrangeu-me a selecionar e tomar, apenas, alguns dos Yogues que
despertavam mais entusiasmo e que me pareciam apresentar maiores
possibilidades para interessar o mundo ocidental. É comum ouvir falar na Índia
dos chamados “santos homens” cujos supostos poderes misteriosos e o
conhecimento da mais antiga sabedoria do mundo a tantos atraem. Resolve-se,
então, partir à procura deles, passando dias escaldantes nos trópicos e noites
de insônia e... o que se vê ao chegar? Um comentador servil ou piedoso ignaro,
prestidigitador bastante hábil a repetir eternamente os mesmos truques, ou caça-
níqueis fraudulentos!...

Pouparei ao leitor a perda de tempo que tomaria a narrativa das façanhas por
mim vistas, e sem o menor proveito para a finalidade a que me propus.

Julgo, entretanto, poder dizer, sem a menor vaidade, ter sido um privilegiado ao
descobrir um dos aspectos mais antigos da sabedoria indiana, raramente
percebido e, ainda menos, compreendido pelo comum dos visitantes. De todos
os ingleses que residem ou residiam neste vasto país, quantos são, realmente,
os que tiveram a verdadeira preocupação de tomar interesse e abrir os olhos a
esse aspecto da Índia? Bem poucos. Mesmo entre essa ínfima minoria, quais os
que tiveram a coragem de ir além das aparências e transmitir lealmente o que
constataram sob o risco de verem comprometido seu prestígio de ocidentais? A
maioria dos autores que tocaram no assunto, sem as convenientes indagações,
restringiu-se ao ceticismo zombeteiro que os desviou da fonte da sabedoria
indiana, afastando-os dos sábios hindus, únicos que realmente possuem poder
para discutir o assunto. O resultado é que, de um modo geral, o homem branco
possui conhecimento muito rudimentar dos Yogues e, mesmo, se ouvisse falar
de alguns deles, por certo, esses não seriam dos melhores. E há razão para isso:
é que seu pequeno grupo se tornou raro, mesmo no país de origem, e o cuidado
com que eles escondem do público sua verdadeira qualidade é que ocasionou a
preferência para que se acredite em sua ignorância, para não serem expostos à
agressão e vexação do vulgo.

Na Índia, de fato, como no Tibete ou na China, eles se livram dos ocidentais que
invadem seus retiros sem a mínima deferência, fechando-se propositadamente
sob a máscara da indolência ou da estupidez. Se os Yogues conhecessem o
sentido profundo da célebre citação de Emerson: “Ser grande é ser
incompreendido” — poderiam, talvez, senti-la melhor do que nós. Seja como for,
eles são, na maioria, os reclusos voluntários que não desejam misturar-se com
o comum dos mortais. E, mesmo, se eles permitissem uma aproximação, não se
deve esperar vê-los saírem da sua reserva, sem a certeza de uma prévia
preparação adequada do postulante.

Essa a explicação para o fato de quase nada ter sido escrito, no Ocidente, sobre
a vida estranha dos homens denominados Yogues e, do pouco que foi revelado,
tudo parecer tão impreciso e tão vago.

A narrativa dos autores que escreveram sobre o assunto não deixa de merecer
crédito, mas também não se pode aceitá-la sem reserva, porque os orientais,
comumente, confundem os fatos reais com a fantasia, sem o mínimo
discernimento. Este defeito tende a despojar qualquer narrativa, que diz respeito
aos Yogues, de todo valor documentário.

Quando verifiquei, à luz da investigação, os fatos idealizados, dei graças à


experiência adquirida pela disciplina ocidental que me forneceu a preciosa pedra
de toque ao senso comum, lograda na profissão de jornalista. É verdade; mas,
no Oriente, existe sempre um dado autêntico sob o monte de superstições e só
se pode discerni-lo com a vigilância constantemente alerta.

Por todos os lugares por onde andei, sempre mantive os olhos abertos para a
crítica honesta, sem que houvesse qualquer espírito de hostilidade da minha
parte. Não faltaram pessoas que, logo ao saberem que além do conceito
filosófico, também me interessavam os fatos místicos e milagrosos, não
tratassem de sofisticar e, com um verniz abundante de sabedoria, cobrir sua
magra bagagem de sapiência. Alguns pensaram que me deixaria seduzir pelos
seus contos maravilhosos mas inverossímeis, ou pelo brilho dos seus milagres.
Não adiantava lhes dizer que a Verdade é forte por si mesma, sem o apoio dos
argumentos, porque tinha algo maior a fazer.

Dei-me os parabéns por preferir receber de primeira mão meus conhecimentos


a respeito do sobrenatural do Oriente, como prefiro beneficiar-me diretamente
com a sabedoria do Cristo, em vez de atordoar-me com a ignorância dos seus
comentadores. Procurei investigar em inverossímil conjunto de grosseiras
pretensões entre as lendas inverificáveis, enfim, em tudo que trouxesse o menor
sinal de Verdade, como em tudo que pudesse resistir à prova da investigação.

Estou certo, porém, de que jamais poderia ter chegado ao ponto que cheguei,
se não tivesse, na minha qualidade de ocidental, os dois elementos tão
frequentemente em conflito: um ceticismo científico e uma sensibilidade
receptiva sempre alerta.

Se eu intitulei este livro A Índia secreta é porque ele é consagrado a um país que
soube se retrair durante milênios a toda e qualquer investigação. A obstinação
em que se firmaram os Yogues, entrincheirando-se atrás de um esoterismo tão
absoluto, pode parecer egoísmo em nosso século de democracia excessiva; em
todo caso, essa atitude nos ajuda a compreender: eles se tinham visto
gradualmente rejeitados do curso normal dos acontecimentos que constituem a
história do mundo.

Milhares de ingleses moram na Índia, outras centenas visitam-na cada ano.


Poucos são, todavia, os que têm a mínima noção do tesouro que ali se oculta,
muito mais valioso e mais real do que as pérolas e pedras preciosas. Reduzido
ainda é o número daqueles que se decidem a deixar seu caminho já feito na vida
e saem à procura dos adeptos da Yoga, porque, com toda certeza, nem mesmo
um inglês entre mil ousaria curvar-se diante de uma figura bronzeada, seca e
seminua, sentada solitária no encovado da rocha ou num recinto onde os
discípulos se oprimem. Tão intransponível é a barreira imposta pelos
preconceitos de raça, que os homens mais liberais e mais esclarecidos,
subitamente transportados das suas residências britânicas à caverna funda da
selva, achariam perfeitamente absurda a obrigação de partilhar da companhia
do Yogue, por falta total de compreensão das idéias do homem.

Não se pode censurar o inglês militar, funcionário público, homem de negócio ou


simples turista, por sentir seu orgulho revoltado à idéia de acocorar-se numa
esteira do Yogue. Além da preocupação de manter seu prestígio britânico, que
exige uma certa atitude necessária e justificada, é preciso também reconhecer
que, pelo aspecto, o santo homem está sujeito a despertar mais repulsa do que
atração. Certamente eles pensam nada perderem por evitar tais pessoas.

No entanto, é de lastimar que no fim de alguns anos de permanência na Índia, a


maioria dos ingleses deixe o país na maior ignorância ou com idéias ingênuas a
respeito da grandeza espiritual oculta na mente do sábio indiano. Tenho ainda
presente na memória a conversa que tive com um cidadão londrino, à sombra
do gigantesco forte de Trichinópoli. Há mais de vinte anos que ele ocupava um
cargo de responsabilidade no Departamento de Estradas de Ferro, na Índia. Não
pude deixar passar a oportunidade de crivá-lo de perguntas sobre os pormenores
da vida diária naquela região tórrida. No fim da conversa, arrisquei-me a fazer a
pergunta que me queimava os lábios:

— O senhor nunca encontrou os Yogues?

Sem nenhum brilho no olhar, respondeu-me, surpreso:

— Yogues? É uma espécie de animal? perguntou-me.

A ignorância seria perdoável num homem que nunca tivesse deixado sua terra
natal, nem houvesse esquecido o som dos sinos da sua igreja, mas tendo
residido vinte e seis anos no país, tanta ingenuidade surpreendia! Tive o cuidado
de não destruí-la...

Se hoje sou capaz de escrever esta narrativa, é porque eu havia,


deliberadamente, posto de lado meu orgulho de homem branco, ao viajar no
meio da população tão heterogênea do Industão, aproximando-me dos nativos
com espírito de simpatia e compreensão, livre de preconceitos mesquinhos, não
achando que o caráter dependesse da cor da pele. Tenho passado a vida em
busca da Verdade — fui preparado para aceitar tudo aquilo que a Verdade,
finalmente percebida, quisesse transmitir-me. Trilhei meu caminho através de
uma multidão de simplórios e de impostores, a fim de um dia poder sentar-me
aos pés de um autêntico Sábio, do qual pudesse receber, como da fonte
cristalina, a verdadeira doutrina da Yoga. Acocorei-me no solo dos longínquos
eremitérios, rodeado das mais estranhas figuras, ouvindo não menos estranhos
dialetos. Pus-me em busca dos anacoretas reclusos e reservados, dos grandes
Yogues cujos ensinamentos sagrados escutei humildemente. Passei horas
conversando com os doutos Brâmanes de Benares, discutindo os problemas da
filosofia e da fé; problemas tão velhos como o mundo, mas que sempre
atormentarão o espírito e perturbarão corações, enquanto existirem na terra
homens que pensem.

No caminho, passei por entre magos, pelotiqueiros e fabricantes de milagres, e


estranhos incidentes marcaram minha viagem. Como já disse, eu queria, pelo
método de investigação direta, chegar a saber qual é o conteúdo da verdade
sobre os Yogues, tão comentados em nossos dias. Felicitei-me a mim mesmo
porque minha experiência de jornalista se revelou uma grande utilidade para
extrair dos fatos o máximo de informação no mínimo de tempo. O hábito de
manejar o lápis azul no escritório da redação me havia treinado a separar a boa
semente do joio. Os contatos que nossa profissão nos proporciona com gente,
homens e mulheres de toda condição social, seja um pobre diabo ou um
milionário, ajudaram a mover-me à vontade por entre a multidão matizada da
Índia, onde queria descobrir os rastros desses homens chamados Yogues.

Por outro lado, eu havia sempre vivido uma vida totalmente livre de
compromissos; consagrei a maior parte dos meus lazeres aos estudos das
ciências herméticas, dirigindo ardorosamente meus passos pelos caminhos
escabrosos das experiências psicológicas. Mergulhei-me nos assuntos que
sempre foram encobertos pelo véu de mistério cimeriano, com uma atração inata
por tudo que toca ao Oriente. Já antes da minha primeira viagem, a Índia lançava
sobre minha alma poderosos tentáculos que finalmente, levaram-me ao estudo
dos livros sagrados da Ásia. Devorei os sábios comentários dos doutos
Brâmanes, bebi os axiomas dos mestres orientais, à medida que ia adquirindo
as traduções.

Essa dupla experiência se revelou como grande ajuda para a realização da


minha tarefa. Ela me ensinou a nunca permitir que minha simpatia ingênita pelos
métodos aplicados no Oriente, para o conhecimento dos mistérios da vida,
confundisse o espírito crítico de investigador imparcial. No entanto, sem essa
simpatia eu jamais poderia ter vivido no meio desse povo ou permanecido em
lugares que o inglês comum evitaria, sem dúvida, frequentar. Se eu não tivesse
adotado a tática estritamente científica, eu me teria desviado do caminho,
perdido no labirinto de superstições, como já havia acontecido a muitos hindus.
Nem sempre é fácil conciliar as qualidades geralmente consideradas
contraditórias. Todavia, esforcei-me sinceramente para manter os pratos da
balança sempre em equilíbrio.

* * *

Que o Ocidente tenha muito a aprender da Índia atual, é coisa que nego; porém,
que nós temos bastante que aprender dos sábios hindus de outrora e daqueles
que ainda vivem, não tenho nenhuma hesitação em afirmar. O turista ocidental
que visita as grandes cidades da Índia e lugares históricos, embarca satisfeito
ao virar as costas a uma civilização que julga, na certa, atrasada; mas, um dia
outros virão que, ao invés de explorar ruínas esboroadas dos templos ou
palácios de mármore dos reis mortos, irão ver os sábios bem vivos, capazes de
lhes revelar a fonte da sabedoria desconhecida em nossas universidades.

Serão esses Yogues simplesmente homens ociosos bocejando ao sol tórrido dos
trópicos? Criaturas indolentes que nada produzem? Nunca teriam eles pensado
em coisa alguma que pudesse ser útil ao resto da humanidade? O viajante de
visão curta não perceberá nada, além de decadência e preguiça. Não obstante,
um pouco de consideração para com eles bastaria para tirar-lhes o selo dos
lábios e ver abrirem-se as portas dos tesouros eternos. Admitimos que a Índia,
há séculos, curvou a cabeça entorpecida pela inércia. Admitimos que milhões de
camponeses indianos não ultrapassaram no que diz respeito à instrução e
cultura, imersos nas superstições pueris e religião infantil, o nível do camponês
inglês do século XIV. Reconhecemos também que, embora os eruditos
Brâmanes passem a vida a esticar, em vão, o fio metafísico tão sutilmente quanto
os nossos escolásticos medievais, os centros de ensino filosófico continuam a
ser um núcleo de cultura, restritos porém inestimáveis, firmados sobre os termos
genéricos da Yoga, proporcionando à humanidade o conhecimento de uma
doutrina tão valiosa, talvez maior do que todos os progressos da ciência
ocidental.

A Yoga restitui ao nosso corpo as condições de saúde que nossa própria


natureza deve possuir; ensina a nossa civilização moderna como adquirir uma
das qualidades de que ela mais precisa: a serenidade! E abre aos esforçados,
na conquista da Verdade, as portas perenes do espírito. Admito ainda que estes
inestimáveis tesouros de sabedoria pertencem mais à Índia do passado. Hoje,
não estamos mais na época em que a ciência florescente da Yoga fazia com que
se reunissem à volta do mestre, digno e sábio, discípulos totalmente dedicados.

Será que o próprio segredo em que os mestres, propositadamente, se envolviam,


tenha acabado por matar o entusiasmo pelas investigações de sua antiga
sabedoria? Não sei. Seria, entretanto, oportuno convidar os ocidentais a
voltarem seus olhares para o Oriente. Não para que adquirissem uma religião
nova, mas para beberem algumas gotas preciosas de sabedoria e aprenderem
a esclarecer o amontoado confuso dos seus dogmas. Foi preciso que
orientalistas modernos como Burnoff, Colebrooke e Max Muller, aparecessem
diante do mundo, segurando nas mãos alguns dos tesouros da literatura indiana,
pan que os sábios ocidentais começassem a compreender que os pretensos
pagãos que vivem neste país não eram talvez tão estúpidos, como nossa própria
ignorância se comprazia em imaginar. Os ilustres doutos e professores que nos
dizem que a ciência asiática é desprovida de todo pensamento útil ao ocidental,
comprovam apenas a sua própria ignorância do assunto. Essa gente prática, não
achando outro epíteto além de “estúpido” para qualificar o estudo, não faz senão
salientar sua própria mesquinhez.

Seremos dignos do nome de civilizados se nossa concepção da vida deve


depender, para sempre, do fato de que tenhamos nascido em Bristol e não em
Bombaim? Aqueles que fecham sua mente a toda influência asiática, fecham-na
a uma quantidade de pensamentos sutis às verdades profundas e ao sentido
psicológico — coisas para as quais valeria a pena que voltassem a atenção.

Maior sábio será aquele que se der ao trabalho de percorrer as feitas poeirentas
do Oriente, na esperança de ver alguma coisa estranha, de encontrar um grão
esquecido da misteriosa sabedoria, pois assim a sua procura não terá sido em
vão.

* * *
Parti então ao encontro dos Yogues e suas ciências herméticas. Preciso
confessar que a idéia de encontrar a luz espiritual e a vida divina, embora não
fosse meu propósito essencial, também brotava em mim. Caminhei ao longo das
margens de rios sagrados da Índia: do calmo Ganges de ondas esverdeadas, do
largo Jumna e da encantadora Godavari; dei a volta ao país e recebi a minha
recompensa: a Índia estendeu-me os braços, apertou-me no seu coração e os
últimos sobreviventes dos Grandes Sábios abriram a porta secreta ao ocidental
desambientado.

Não havia muito tempo, porém, era eu um daqueles que consideram Deus uma
criação do espírito humano; a Verdade espiritual, uma nebulosa sem a menor
consistência e a Justiça como uma invenção para uso dos idealistas infantis.
Encarava com enorme paciência os construtores do paraíso teológico, que me
enchiam a cabeça, dando-se ares importantes, julgando-se corretores de
locação da divindade! Senti apenas piedade desses edificadores de quimeras e
de seus fúteis, bem como fanáticos esforços.

Se, todavia, comecei a sentir e pensar diferentemente no assunto da religião, é


preciso que saibam que não foi sem uma causa. Embora eu não chegasse a me
converter a nenhuma crença oriental, cujo conteúdo concebi na medida do meu
intelecto, cheguei a uma nova concepção do Divino. Pode isso parecer coisa
insignificante ou de caráter pessoal, mas, como filho da nossa geração, eu ligava
apenas aos fatos concretos e ao raciocínio puro; as coisas da religião nunca me
provocavam entusiasmo, pois me pareciam quase caducas. A fé foi restaurada
pela única maneira capaz de convencer um cético: não foram os argumentos
enfadonhos, mas uma eficaz experiência pessoal que desmoronou as dúvidas!

E quem operou essa revolução capital foi um sábio da selva, um humilde eremita
que vivia há seis anos no fundo de uma caverna; é quase certo que ele não seria
capaz de passar no mais elementar exame escolar, mas mesmo assim, não senti
a menor vergonha em reconhecer humildemente, no fim deste livro, a imensa
dívida que contraí para com ele. O país que produz tais homens merece, ao
menos, uma especial atenção por parte dos ocidentais, picados pela varejeira da
inteligência! Embora secreta, a vida espiritual da Índia não é um mito; existe e
existirá sempre, apesar de tempestades políticas e agitações subterrâneas.

Esforço-me por transmitir neste livro os fatos autênticos sobre mais de um adepto
da Yoga, que atingiram a serenidade e a iluminação, dádivas a que nós, pobres
mortais, aspiramos hoje tão desesperadamente. Transmito também outras
coisas tão maravilhosas quanto desconcertantes, que me parecem ainda
inacreditáveis, enquanto trabalho sentado diante de minha máquina de escrever,
no ambiente prosaico da campina inglesa. Eu mesmo me admiro da minha
coragem ao escrevê-las para serem lidas pelo mundo cético e corrompido.

Todavia, não creio que as idéias materialistas, que nos regem atualmente, sejam
eternas. Parece-me já perceber os indícios da próxima evolução do pensamento
humano. Evidentemente, como a maioria da minha geração, não acredito em
milagres; pois creio, firmemente, que o conhecimento das leis da natureza é
ainda incompleto. Mas, quando uma vanguarda de sábios, avançando passo a
passo nesse campo, ainda inexplorado, chegar a descobrir, um dia, algumas
dessas leis, nós, então, acharemos muito natural a manifestação de coisas que
poderão parecer, ainda hoje, verdadeiros milagres.
2
Prelúdios da busca

Meu professor de geografia, com a régua na mão, dirige-se para a turma


sonolenta e com a ponta, mostra num grande mapa envernizado, um vasto
triângulo vermelho cuja extremidade avança quase até o Equador. Sentindo
necessidade de estimular o interesse, visivelmente enfraquecido dos alunos, fala
com voz monótona e lânguida, como a querer revelar-lhes uma verdade
desconhecida: “Dizem que a Índia é a mais bela jóia da Coroa Britânica!”

Ao ouvir essa frase, um aluno de testa pensativa, subitamente arrancado dos


seus devaneios, faz um esforço para fazer voltar a sua imaginação vadia e trazê-
la novamente para dentro das quatro paredes da classe. A força evocadora da
palavra, bem como a letra impressa na página, evocam no seu espírito um
encanto e provocam a febre de mistério do mundo desconhecido; a onda
inexplicável dos pensamentos traz-lhe, obstinadamente, a palavra mágica diante
dos seus olhos: ÍNDIA!

E o professor de matemática que vê seu aluno laboriosamente curvado sobre


um problema de álgebra, poderá supor que o patife utiliza a escrivaninha para
um fim muito diferente do dos cálculos? Protegido por uma pilha de livros
colocados em ordem de batalha, ele desenha cabeças com turbantes, faces
bronzeadas e navios, junto dos quais os largos juncos atracam, carregados de
especiarias.

Sua infância passou, mas seu amor pela Índia ficou inalterado. De modo mais
amplo, ele abraça toda a Ásia com os tentáculos do desejo que o obseda. Ele se
exalta, imagina poder fugir pelo mar; faz planos malucos, pensa que, uma vez
embarcado, não seria nada difícil ver seu sonho realizar-se. Não pode deixar de
fazer participar dos seus planos os colegas, até que um dia um deles cai no
contágio do seu jovem entusiasmo.

Em silêncio e segredo, eles conspiram: o plano é atravessar a Europa e, pela


Ásia Menor, atingir o porto de Aden. Não se ria, leitor! Eles acreditam, na sua
impetuosidade juvenil, que o capitão do navio ancorado no porto, se deixará
convencer... ele será, é claro, um homem bom, recebê-los-á a bordo e, oito dias
depois, desembarcarão na costa encantada da Índia...
Preparam-se lentamente, e em grande segredo, juntam uma pequena quantia
em dinheiro e um equipamento que, candidamente, imaginam indispensável a
um explorador digno deste nome. Consultam mapas e guias cujas cores e
ilustrações aceleram o pulso e o entusiasmo do seu ardor aventureiro. Ei-los
prontos para fixar a data, confiando em seu destino, sem suspeitar que a
catástrofe os aguarda na primeira esquina...

Tanta energia jovem e ingênuo entusiasmo esbanjados em pura perda! Vem um


triste dia em que o professor do colega, descobrindo os preparativos, não teve
muito trabalho para saber os pormenores. Toda a empresa foi por terra; a mão
severa se abateu no momento exato. Vale a pena dizer quanto as crianças
sofreram?...

O desejo de ver a Índia nunca abandonou o promotor dessa expedição frustrada.


Porém, se ele o relega a segundo plano, é que, na aurora da vida, o homem traz
consigo uma série de obrigações diversas, de interesses múltiplos, de deveres
imperiosos que retêm seus passos.

Muitas páginas se voltam no calendário dos anos, antes de um encontro


inesperado com um homem que vem reavivar a ambição malograda de uma
criança. O desconhecido é um estrangeiro de pele bronzeada, a cabeça envolta
num turbante e... vem da longínqua terra do Industão!

* * *

Deixo todas as lembranças do passado ceder lugar, aqui, às imagens do dia em


que esse homem entrou na minha vida.

O outono está no seu fim; o ar é brumoso e um frio violento penetra-me através


do agasalho. Sinto-me deprimido e sem coragem. Fantasma invisível alonga sua
mão gelada, angustiando meu coração desfalecido.

Entro num café profusamente iluminado, para fugir à obsessão e procurar, no


calor brando do ambiente, um pouco de conforto; mas, a xícara de chá quente,
sempre eficaz para me devolver a serenidade, torna-se sem efeito esta noite.
Não posso livrar-me do peso da opressão; até quando me perseguirá a
melancolia com seus negros intentos? Véus sombrios parecem cobrir minha
alma, fechando-a a toda alegria.

O estado de insuportável inquietação acaba por afastar-me da sala acolhedora.


Estou novamente na rua, andando sem rumo definido; levado, porém, por
instinto, ao itinerário habitual, dirijo-me à livraria de um velho amigo. A casa é
tão velha como os livros que comporta. Seu dono (está morto hoje e sua loja
desapareceu) é um ser esquisito, uma relíquia humana, sobrevivente do século
passado. Nossa época febril lhe é tão pouco útil quanto ele para ela. Interessam-
lhe somente obras raras e edições originais, enquanto se especializa em
assuntos curiosos e abstrusos. Possui notável cultura livresca, desde os
currículos da erudição até os conhecimentos esparsos.

Sempre gostei de entrar na livraria, detendo-me, às vezes, a discutir qualquer


problema metafísico. Entro e cumprimento o livreiro; logo meus dedos se perdem
maquinalmente entre as páginas amareladas do volume encadernado em couro
de bezerro, enquanto meus olhos percorrem os dorsos murchos e antiquíssimos
in folio. Para examiná-los mais de perto, tomo um que me chama a atenção. O
velhote, por trás dos óculos, nota o meu interesse e puxa logo um tema para
argumentação, com relação ao conteúdo da obra que trata de metempsicose.

O livreiro, seguindo a natural inclinação do seu hábito, leva vantagem. Fala à


vontade, visivelmente sabedor do assunto, que diz respeito a essa estranha
doutrina, talvez melhor que o autor do livro, conhecendo em substância, os
filósofos clássicos, na ponta da língua. Escuto-o em silêncio, assim colhendo as
mais curiosas informações, que me interessam sobremaneira.

A um dado momento, ouço alguém movimentar-se no fundo da loja. Voltando-


me, percebo o vulto esguio de um homem sair da penumbra da sala contígua,
onde dormem os volumes mais preciosos. O desconhecido é um hindu. Ele vem
em nossa direção num porte aristocrático e pára diante do livreiro:

— Queira desculpar-me, caro amigo, por interrompê-lo, mas não pude conter-
me ao ouvi-lo falar de assunto que tem, para mim, tão grande interesse. O senhor
cita os antigos filósofos gregos, norte-africanos e certos Pais da Igreja, como se
fossem eles os primeiros a sustentar a doutrina do contínuo retorno da alma
humana à terra. Eu julgo, entretanto, que as mais profundas inteligências da
antiguidade já sabiam do assunto muito bem; porém, em que país pretende o
senhor que esta doutrina realmente tenha tido origem?

Cala-se um momento, mas sem nos dar tempo para uma réplica...

— Permitam-me, então, dizer-lhes, prossegue sorrindo; foi precisamente a Índia


que, na antiguidade, concebeu primeiro a teoria da metempsicose. Os diferentes
povos do meu país, desde os tempos mais remotos, haviam-na considerado uma
verdade essencial.

A fisionomia do homem me fascina. Poderia ser distinguida, num olhar, no meio


de centenas de hindus; possuidor de uma força de atração concentrada — tal
me parece neste momento; os olhos penetrantes, queixo enérgico, a testa
extraordinariamente alta, logo o caracterizam. Sua tez é mais bronzeada do que
habitualmente a têm os hindus; na cabeça, um magnífico turbante, ornado com
uma gema lançando faíscas na sombra, molda-lhe o corpo um terno europeu de
corte impecável.

Sua afirmação, um pouco pedante, visivelmente não é do gosto do livreiro; o


velhote, atrás do seu balcão, toma vigorosamente a ofensiva:
— Como o senhor explicaria então, porque as cidades do Oriente Médio foram
os centros da cultura e civilização que mais floresceram antes da Era Cristã? Os
maiores expoentes da inteligência de outrora encontravam-se na zona da costa
Mediterrânea, desde Atenas até Alexandria. Fique certo, é a filosofia deles,
ganhando progressivamente o Sul, passando pelo Leste, que finalmente acabou
tocando a Índia.

— Mas, não! Deu-se exatamente o contrário! exclama o hindu, sorrindo com


indulgência.

— Não pode ser! o senhor pretende seriamente que essa filosofia tenha o
Ocidente progressista recebido de um Oriente atrasado? Mas, isto é impossível,
senhor!

— Por que impossível? Releia Apuleio 1 e veja como Pitágoras se dirigiu à Índia
onde foi instruído pelos Brâmanes, pois desde sua volta à Europa começou a
ensinar a doutrina da metempsicose. Isto é apenas um exemplo, entre muitos.
Um Oriente atrasado? Deixe-me rir! Há milhares de anos os nossos sábios
debruçaram-se sobre os mais intrincados problemas da metafísica, num tempo
em que os seus patrícios nem imaginavam a existência desses problemas.

1. Apuleio — escritor latino do II século (N. da T.).

Pára um momento e fixa-nos intensamente, como para observar a impressão em


nosso olhar surpreso. O velhote está perplexo; nunca o vi tão encabulado,
silencioso e visivelmente impressionado ante a autoridade intelectual do
contraditor.

Quanto a mim, escuto calado sem mesmo tentar uma réplica. A conversa cai de
repente por si própria; nenhum de nós se atreve a romper o silêncio. O hindu
volta à sala contígua e reaparece pouco depois, trazendo na mão um caríssimo
in folio. Paga a importância e prepara-se para retirar-se. Já está a um passo da
porta; sigo-o com o olhar, incapaz de dar uma palavra.

Neste momento, ele se volta e se aproxima de mim. Tira do bolso a carteira,


estende-me seu cartão de visita e sorrindo diz:

— Gostaria o senhor de continuar a conversa em minha residência?

Aceito com alegria, mas muito maior é minha surpresa quando ele me entrega,
juntamente com o cartão, um convite para jantar naquela mesma noite.

* * *

Ao entardecer apresso-me a fim de dirigir-me à residência do desconhecido. O


nevoeiro londrino, que tomou conta da cidade a ponto de não se poder enxergar
as luzes, torna difícil o trânsito. Um artista poderá achar até um certo toque de
beleza em nossa famosa neblina, mas meu espírito está longe e indiferente ao
que me cerca. Não vejo a beleza nem sinto nenhuma impressão desagradável.

Ao chegar diante de uma grande porta maciça, que parece emergir subitamente
do nevoeiro, termina o incômodo da perambulação. Dois grandes lampiões,
sustentados por um par de consolos de ferro batido, parecem dois braços
estendidos para acolher-me. Entro e, desde então, minha surpresa começa a
crescer.

Nunca esperava encontrar interior tão requintado, que desde a entrada traía o
gosto fino e a apurada sensibilidade do seu dono, visivelmente zeloso de um
conforto fora do comum. Entro num vasto aposento que poderia servir de sala a
algum palácio asiático, tanto pela riqueza do seu exótico mobiliário, como pela
sua fina decoração. Ao fechar a porta, sinto-me de repente transportado para
muito longe da umidade gelada e fosca do nosso Ocidente brumoso.

Reconheço a mistura esquisita dos estilos indiano e chinês. O vermelho, preto e


dourado predominam; as paredes são ornadas de esplêndidas tapeçarias
representando dragões. Cabeças de dragões verdes, de olhos glaucos e fixos,
sustentam em cada canto da sala os consolos repletos de preciosas peças
ornamentais e bibelôs; dois quimonos de mandarim, de seda bordada, estão
colocados de cada lado da porta; espessos tapetes indianos cobrem o chão e os
pés se afundam deliciosamente na sua lã macia. Uma gigantesca pele de tigre
toma toda a frente da lareira.

Num dos cantos, vejo uma pequena mesa laqueada de preto e sobre ela um
oratório de marfim com as portas douradas. No fundo desse templo em miniatura
destaca-se a imagem esculpida de um dos deuses indianos, sem dúvida Buda,
a julgar pela expressão calma e enigmática da face e dos olhos imóveis sob as
pálpebras caídas.

Meu anfitrião entra e me cumprimenta cordialmente. Traja impecavelmente a


rigor; tal homem, penso, estaria bem na mais alta classe de qualquer sociedade.
Minutos depois, dirigimo-nos à mesa. Os pratos são requintadíssimos e nessa
noite fui iniciado nas delícias do curry 2 cujo paladar, desde então, jamais deixei
de apreciar.

2. Curry — especiaria tipicamente indiana, de gosto picante (N. da T.).

O criado que nos serve dá uma nota pitoresca em volta da mesa; traja calças e
jaquetão brancos, cinturão dourado e um imaculado turbante.

Durante a refeição, a conversa é superficial e não passa de generalidades,


embora em qualquer coisa que ele diga, ou assunto que aborde, o sentido das
palavras assuma algo de peremptório, sem haver uma deixa sequer para
argumentações; há uma tal confiança em tudo que ele afirma, que parece ter
sempre a última palavra no assunto. Seu ar de calma segurança impressiona.
Na hora do café, ele se decide, afinal, a falar um tanto de si mesmo. Muito viajado
e de grandes posses, regala-me com suas vivas impressões da China, onde
passara um ano; do Japão, cujo futuro predisse sem vacilar; da América, da
Europa, e o que menos esperei, do retiro que tinha feito num mosteiro católico
da Síria. No momento de acendermos os cigarros, volta ao tema tratado na
livraria, mas insensivelmente, passa ao assunto da antiga sabedoria indiana e
estende-se, dizendo:

— Algumas das doutrinas de nossos sábios já atingiram o Ocidente, mas na


maioria dos casos seus ensinamentos foram mal compreendidos e, mesmo,
deturpados. Contudo, não me cabe lamentar. Mas a Índia de hoje, renegando a
alta cultura do seu passado, despojou-se da sua grandeza, isso é triste,
profundamente triste. As massas, agarradas a algumas idéias restritas, estão se
arriscando a perder-se pouco a pouco no montão das tolices de pseudo-religiões
e superstições insustentáveis.

— A que causa atribui o senhor esta decadência? pergunto.

Meu anfitrião não me responde. Passa-se um momento; suas pálpebras caem e


fica com os olhos semicerrados, como se tivesse medo de romper o silêncio,
depois diz:

— Meu amigo, outrora houve Grandes Videntes em meu país, homens que
penetraram os mistérios da vida. Seus conselhos eram ouvidos por reis e o
comum do povo também respeitava suas palavras. Sob a inspiração desses
homens, atingiu a Índia o apogeu de sua civilização. Hoje, quantos são eles e
onde se escondem? Talvez restem dois ou três, mas dos quais ninguém sabe,
nem se houve mais falar, pois estão afastados das correntes da vida moderna.
Quando esses Grandes Sábios (nós os chamamos Richis) começaram a retirar-
se do mundo, também nossa decadência começou.

Inclinou a cabeça para o peito. Sua última frase foi dita com um acento tão
doloroso que por um momento ele fica como que ausente, a alma inteiramente
mergulhada na abstração melancólica. Sua personalidade impressiona-me cada
vez mais; ela força o interesse, exerce um encanto irresistível. Os olhos escuros,
cheios de luz, revelam uma intensa vida interior e o suave calor da sua voz
denota um coração generoso. Decididamente, sinto que gosto desse homem
estranho.

O criado entra com os passos macios e aproxima-se da mesa laqueada,


acendendo as varinhas do incenso. A fumaça azul sobe lentamente; o suave
aroma de âmbar envolve o aposento.

Subitamente, meu anfitrião ergue a cabeça e fixa-me o olhar:

— Não lhe disse que ainda ficaram dois ou três? pergunta com voz grave.
Eu tive o privilégio — continua — de conhecer um desses Sábios, a respeito do
qual falo raramente, hoje. Possuidor da sabedoria divina, ele era para mim como
meu próprio pai, meu guia, meu mestre e meu amigo. Eu não poderia tê-lo
amado mais se fosse seu filho; nos momentos felizes que passei ao seu lado,
convenci-me de que a felicidade ali estava, junto dele. O ar que o envolvia,
operava milagres. Eu, que por inclinação inata tinha feito da arte meu
passatempo favorito e da beleza, meu ideal, aprendi a ver a beleza divina nos
leprosos, aleijados e enfermos, homens dos quais, antes de conhecê-lo, fugia
com horror.

O mestre vivia num eremitério agreste, longe da cidade; eu descobri seu retiro
por acaso, ou pelo que me parecia, então, ter sido um acaso. Desde esse dia
comecei a visitá-lo amiúde e junto a ele permaneci horas ouvindo palavras
sagradas. Com ele aprendi muito, e digo-lhe, pois, que um país que produz tais
homens é um grande país.

— Mas então, por que ele não serviu seu país, participando da vida pública?
pergunto.

— Os motivos de um homem tão excepcional não são fáceis de ser


compreendidos por nós; com maior razão, ainda, por vocês, ocidentais. À sua
pergunta, o mestre teria respondido, provavelmente, que se pode também servir,
em segredo, pelo poder telepático da mente que, embora praticado à distância,
não deixa de ser eficiente. Ele poderia ter dito, também, que uma sociedade
degenerada como a nossa, deve suportar o destino que merece, até a hora
marcada para sua renovação.

— Confesso que não esperava tal resposta.

— Calculava já que me dissesse isto, meu amigo — responde meu anfitrião.

* * *

Depois desta memorável noite, volto frequentemente à casa do meu hindu,


atraído tanto pelos seus vastos conhecimentos, como pelo estranho encanto da
sua personalidade. Ele toca de leve a mola de minhas ambições e estimula-me,
sobretudo, o desejo de penetrar o sentido mais profundo da vida. Refratário à
minha curiosidade intelectual, leva-me, aos poucos, para a senda da plena
felicidade e para a devida compreensão do seu valor.

Uma noite, a palestra toma um aspecto novo, destinado a imprimir em minha


vida uma direção fecunda em resultados. Descrevendo os estranhos costumes
e tradições dos seus conterrâneos, salienta alguns dos tipos que se encontram,
ainda, nesse surpreendente país; falando desses homens, escapou-lhe a
palavra Yogue.
Tinha eu uma idéia muito vaga e incoerente do real significado desse termo.
Ainda que o houvesse encontrado, várias ocasiões, no curso de minhas leituras,
suas características eram, de cada vez, tão diferentes que, sem poder formar
uma idéia exata do verdadeiro sentido, permaneciam em confusão. Ao ouvir meu
amigo pronunciar a palavra Yogue, interrompo-o de repente, na qualidade de
jornalista, para obter as informações suplementares.

— Com a maior boa vontade — responde-me sorrindo — mas não será fácil dar-
lhe numa só definição a noção real do Yogue. Pergunte a doze dos meus
patrícios e cada um lhe dará uma descrição diferente.

Há, por exemplo, milhares de mendigos que se fazem passar por Yogues. Eles
vão de aldeia em aldeia pelas estradas e, literalmente, invadem as festas
religiosas. A maioria é de vagabundos, outros são viciados, mas todos eles,
igualmente analfabetos e ignorantes, nada sabem das doutrinas da filosofia da
Yoga, sob o manto da qual se abrigam.

Interrompe-se um momento para sacudir a cinza do cigarro, e retoma:

Mas, se o senhor, por exemplo, for a um lugar como Richikesch, que é protegido
pela possante muralha do nevoso Himalaia, o senhor encontrará ali uma classe
de homens totalmente diversa. Eles vivem em humildes choupanas ou nas
cavernas, comendo pouco e passando a vida em orações. A religião para eles é
uma necessidade tal como o ar que respiram e os alimentos que comem — ela
toma conta dos seus pensamentos dia e noite. São, na maioria, homens de
grande bondade, estudam os livros sagrados e entoam preces. Também se
chamam Yogues, embora não tenham nada em comum com os mendigos que
se lançam, como a uma prêsa, sobre a multidão simplória e ignorante.

Então, está percebendo o senhor como é grande a elasticidade desta palavra?


Isto sem levar em conta, entre os dois extremos, o lugar para o meio termo, isto
é, para os que participam da natureza de um e de outro.

Eu observo:

— Contudo, parece que ainda despertam bastante interesse os misteriosos


poderes atribuídos aos Yogues?

— Oh! Para isso tenho uma outra explicação em reserva, diz o meu amigo,
sorrindo. — Existem ainda nos retiros solitários, longe da povoação, confinados
no coração da selva ou nas grutas das montanhas, os estranhos indivíduos que
passam a vida em práticas de exercícios ainda mais estranhos, com os quais
esperam obter, como resultado, tais poderes maravilhosos. Alguns deles
desprezam a religião, rejeitando tudo o que a ela se refere, enquanto outros são
profundamente religiosos. Todos eles, entretanto, são unidos na luta com a
Natureza da qual procuram arrancar o segredo das forças ocultas. Fique
sabendo que a Índia sempre possuiu tradicionais conhecimentos a respeito do
mistério e do oculto, e essas crenças sempre tiveram seus adeptos. Ouve-se
contar muitas histórias sobre esses homens estranhos e dos milagres que
produzem; eles também são chamados Yogues.

— O senhor já encontrou alguns deles? Acredita nessas tradições? pergunto,


intrigado.

Meu interlocutor fica silencioso e parece ponderar sobre a forma a dar à


resposta.

Enquanto isso, meus olhos se voltam para o oratório que está sobre a mesa
laqueada e imagino ver, na penumbra, Buda olhando-me, a sorrir, do seu trono
esculpido em forma de lótus de madeira dourada. Sinto um encantamento no ar,
que insensivelmente me penetra. Mas, neste momento, a voz clara do hindu
interrompe meus pensamentos, detendo o impulso da minha imaginação.

— Olha! — diz, mostrando alguma coisa que tira de sob seu colarinho. — Sou
um Brâmane e este é o meu cordão sagrado. Milhares de anos de rigorosa
clausura tornam instintivas e, como que congênitas, certas particularidades da
casta. Nem a instrução ocidental, nem minha permanência na Europa puderam
suprimi-las. A fé num Poder Superior, a crença na existência das forças
sobrenaturais e no progresso espiritual da humanidade, tudo isso é inato em
mim, dentro de minha qualidade de Brâmane. Não posso destruir essas idéias
mesmo querendo e, nos conflitos que surgem entre a fé e a razão, é sempre a
razão que sucumbe. Assim, embora respeite os princípios e métodos da ciência
moderna, que outra resposta lhe posso dar senão esta: eu creio!

Seus olhos fixam-me em silêncio; depois continua:

— Não lhe posso também negar que encontrei tais homens. Uma, duas, três
vezes. Não é muito fácil achá-los no nosso caminho. Outrora, deixavam-se
encontrar mais facilmente, porém, hoje chego a crer que estão quase totalmente
desaparecidos.

— Mas, existem ainda alguns deles, não é?

— É muito provável, meu amigo; quanto a encontrá-los, isso é outra coisa.


Seriam precisos muitos esforços e buscas prolongadas, isto é certo.

— Seu mestre era um deles?

— Não; ele pertencia a uma ordem ainda mais elevada; não lhe falei que era um
Richi?

— Desse termo desejo alguns esclarecimentos. Peço-lhe os pormenores para


que possa compreendê-lo.
— Pois não. Os Richis estão um grau acima dos Yogues. Transporte o senhor a
teoria de Darwin para o campo do espírito e procure compreender os
ensinamentos dos Brâmanes, segundo os quais a evolução do ser espiritual se
processa a par da evolução do ser físico. Considere, então, os Richis como
homens que alcançaram o ápice desta evolução e o senhor terá, ainda, uma
idéia muito imperfeita da sua grandeza.

— Um Richi é capaz também de realizar esses prodígios de que falamos?

— Evidentemente, ele é capaz, porém com uma diferença: o milagre, para ele,
não possui o valor que a maioria dos Yogues taumaturgos lhe atribui ao realizá-
lo. Esse poder se desenvolve naturalmente em um Richi como fruto da sua
intensa concentração; para ele o milagre não é o fim, é apenas um meio de que
ele geralmente se serve pouco, quando não o abandona por completo. Sua
finalidade essencial é atingir a perfeição dos seres divinos como Buda no Oriente
e Cristo no Ocidente — os mais vivos exemplos.

— Mas Cristo fez milagres! exclamo.

Sem dúvida, mas o senhor pensa que Ele os fez para se vangloriar? Não, em
absoluto. Os milagres eram para Ele o meio de convencer as almas dos
pequenos e dos humildes para trazê-los à fé.

— Mas, se existem, realmente, na Índia, homens como os Richis, por que não
se atira a seus pés e não os segue?

— Indubitavelmente. Mas seria necessário, antes de mais nada, que eles se


mostrassem em público e se deixassem reconhecer tal como realmente são!
Ora! são raríssimos os casos em que os Richis têm adotado semelhante atitude.
Eles mesmos preferem ficar afastados do mundo. Aqueles que desejam fazer
uma caridade pública surgem da obscuridade por um tempo limitado, para depois
nela mergulharem novamente.

— Nesse caso, qual a utilidade deles, se persistem em ser inacessíveis?

O hindu sorri com indulgência:

— Dizem no Ocidente: “Não se fie nas aparências”... a impossibilidade de


conhecê-los intimamente não permite ao mundo julgá-los corretamente, perdoe-
me dizer-lhe isso de maneira um tanto brusca. Como já mencionei, os Richis
nem sempre desprezaram viver, ainda que ocasionalmente, nas cidades e
circular entre o povo. Antigamente, quando isso acontecia mais frequentemente,
sua sabedoria, sua perfeição e seus extraordinários poderes eram evidentes
para o público. Sua influência era reconhecida e compreendida. Até mesmo
Marajás dignavam-se homenageá-los e consultá-los sobre assuntos políticos da
nação. Todavia, é certo que os Richis preferem exercer sua influência em
silêncio e em segredo.
— Como eu gostaria de encontrar um desses homens — murmuro para mim
mesmo — gostaria, pelo menos, de achar-me um dia na presença de um
autêntico Yogue.

— Esteja certo de que isso acontecerá, algum dia, com toda a certeza, assegura-
me ele.

— Mas como pode o senhor saber? pergunto, surpreso.

— Eu já sabia desde o primeiro momento em que nos encontramos, foi a sua


surpreendente resposta.

— Sabia por uma espécie de intuição, não é assim que vocês dizem? Bem, o
nome não importa; é uma espécie de mensagem profundamente sentida, mas
inexplicável para tornar-se evidente. Meu mestre ensinou-me a treinar e
aperfeiçoar em mim esta faculdade. Por experiência aprendi a confiar nela, sem
reservas.

— Um Sócrates moderno, guiado pelo seu demônio — observo meio brincando


meio sério. E, quando pensa o senhor que sua profecia será realizada?

Ele encolhe os ombros.

— Não sou um profeta; não posso fixar-lhe uma data.

— Não insisto, embora sentindo que ele poderia dizer-me muito mais, se
quisesse. Depois de haver pensado um pouco, apresento-lhe uma sugestão:

— Suponhamos que um dia o senhor volte ao seu país. Se por acaso eu estiver
livre nessa ocasião, não será possível viajarmos juntos? Não gostaria o senhor
de ajudar-me a encontrar as pegadas de um desses homens?

— Não, meu amigo, o senhor deve ir sozinho, buscar e achar por si próprio.

— Vai ser dificílimo para um estrangeiro — respondo, desapontado.

— Evidentemente, muito difícil. Mas, vá sozinho e o senhor compreenderá que


eu tinha razão.

* * *

Desde aquele momento tive a certeza de que um dia chegará, inevitavelmente,


em que eu me verei a bordo, ancorando, cheio de esperança, num porto banhado
de sol indiano. Pensei então que, se a Índia abrigara no passado homens da
envergadura espiritual dos Richis e se, ainda, como meu amigo afirmava,
existem alguns deles, o esforço de descobri-los seria amplamente
recompensado pela vantagem de colher dos seus lábios algumas migalhas de
sua alta sabedoria.
Quem sabe teria eu a sorte de ver minha vida enriquecer-se, ampliar-se de um
conteúdo de compreensão mais profunda, de uma espiritualidade mais sublime,
dádivas que até agora me foram negadas. Mesmo se eu falhar, minha viagem
não será empreendida em vão, pois, embora desconhecidos, os homens
chamados Yogues excitam minha curiosidade e sobremaneira despertam o meu
interesse pela singular magia de sua personalidade, por suas misteriosas
práticas e tão estranho modo de viver.

A mó do jornalismo afiou, a um grau quase anormal, a minha paixão por tudo


que toca ao extraordinário. Fascina-me a perspectiva de explorar caminhos
desconhecidos. Tomo a decisão de dar, doravante, livre curso à minha
imaginação e, tão logo se apresente oportunidade, tomar o primeiro navio para
a Índia.

Minha determinação de ir ao país do sol nascente permanece viva, alimentada


pelas profecias do meu distinto amigo, que continua a me receber na sua
residência durante vários meses. Ele ajuda a orientar-me no oceano movediço
da minha vida, sem todavia pretender servir-me de piloto nas águas revoltas que
me arrastam. No entanto, ajuda-me a descobrir minha própria posição, facilita a
revelação de minhas possibilidades latentes e a concretização de idéias ainda
mal definidas, fatos que são, na realidade, benefícios enormes para um jovem
inexperiente. Assim, é com sincera emoção que pago meu tributo de gratidão ao
meu primeiro instrutor — o amigo sábio e bom. Um dia, porém, a roda do destino,
no seu contínuo girar, separou-nos para sempre. Alguns anos depois soube, por
acaso, da sua morte.

Mas, nem o tempo nem as circunstâncias do momento parecem propícias à


realização da minha viagem. Ambições e desejos surgem e escravizam o homem
moderno; criam responsabilidades e constroem empecilhos dos quais não é fácil
a criatura libertar-se. Tenho que curvar-me ante as exigências da vida que me
sufocam; mal me resigno, porém, espero e vigio. Contudo, continua viva minha
esperança na profecia do meu amigo hindu e nada pode abalar essa fé,
fortalecida, certo dia, por um fato inesperado.

O exercício da minha profissão aproxima-me durante alguns meses de um


homem por quem passo a alimentar profundo respeito e amizade. Conhecedor
invulgar da natureza humana e dotado de um espírito vivo, ocupara ele, há
muitos anos, a cadeira de professor de Psicologia em uma de nossas
universidades. A vida acadêmica, porém, não era do seu agrado. Abandonou-a,
então, e empregou sua atividade em um novo campo, onde pôs em prática seus
vastos conhecimentos, tornando-se o conselheiro de vários magnatas do mundo
dos negócios. Quantas oportunidades teve ele de vangloriar-se dos honorários
que lhe pagavam os chefes das maiores empresas mundiais! Possuidor de um
dom inato para inspirar confiança a todos quantos dele se aproximavam, todas
as pessoas, desde o vadio da rua até ao chefe milionário, encontram sempre
uma ajuda e um novo entusiasmo ao seu contacto e, algumas vezes, sugestões
que valem ouro.

Habituo-me a observar cuidadosamente os conselhos que me prodigaliza o


professor e vejo sempre se confirmarem seus prognósticos, quer em negócios,
quer em circunstâncias banais da vida. Gosto da companhia dele e admiro a
extrema facilidade com que concilia o subjetivo e o objetivo em sua natureza, a
ponto de ser capaz de abordar os mais árduos e elevados problemas filosóficos
logo após uma polêmica sobre negócios. Jamais foi visto tristonho ou aborrecido,
mas sempre transbordante de alegria, irradiando vivacidade e bom humor. Ele
me admite na sua intimidade e assim passamos juntos horas deliciosas, em
trabalho ou lazeres. Não me canso de ouvi-lo; tantos conhecimentos me
confundem. Sempre me pergunto como pode uma pequena cabeça conter
semelhante bagagem de sabedoria!

Uma noite vamos jantar num pequeno restaurante cigano onde, ao encanto da
luz suave se alia a qualidade da mesa. Terminada a refeição, saímos. A lua cheia
brilha no zênite e a noite encantadora convida-nos a caminhar. A conversa fora
superficial e fútil ao jantar, mas o passeio incita-nos a falar sobre coisas mais
sérias. Andamos lentamente pelas ruas silenciosas da cidade, mergulhamos em
temas filosóficos. Nossa conversação se torna tão alta e abstrata que
subitamente penso nos clientes do meu amigo, cujos cabelos se teriam arrepiado
unicamente por ouvirem a difícil nomenclatura referente à metafísica. Diante da
sua porta estende-me a mão. Quando aperto a dele, repentinamente sua voz
toma um tom grave; quase sussurrando, e lentamente, deixa cair as palavras:

— O senhor jamais deveria ter adotado a profissão de jornalista. O senhor é um


filósofo apaixonado pela evolução das idéias e, no entanto, fica preso na rede da
sua tarefa, escravizado à atualidade. Por que não se dedicou às pesquisas
herméticas? Sinto que o senhor gosta, acima de tudo, de calçar os chinelos e
calmamente pensar, dando voltas ao cérebro a fim de encontrar e atingir a fonte
genetriz da mente. O senhor aspira aproximar-se do foco da alma. Estou certo,
porém, de que um dia o senhor irá em busca dos Yogues, na Índia, dos Lamas
no Tibete e dos monges Zen do Japão. Então, o senhor terá material bastante
vasto para escrever algumas estranhas recordações. Boa-noite!

— O que pensa o senhor a respeito dos Yogues?

Meu interlocutor se aproxima de mim, sussurrando ao ouvido:

— Esses são homens que sabem! Meu amigo. Que sabem...

Sigo meu caminho profundamente confuso. A viagem para o Oriente não me


parece, por enquanto, realizável. Enterro-me mais e mais fundo nas obrigações
diárias, das quais não vejo possibilidade de me libertar. Passo momentos de
desânimo. Serei eu um eterno condenado de um destino complexo e tirano?
Prisioneiro de amarras pessoais e ambições desenfreadas?

Mas, não! Estou enganado, certamente. O destino lança novas ordens cada dia,
e ainda que nem sempre tenhamos compreensão necessária para ouvi-las,
dirigimo-nos inconscientemente para o fim assinalado. Doze meses depois,
desembarco nas Docas Alexandra de Bombaim. Perdido no labirinto colorido da
grande cidade, escuto a cacofonia dos dialetos asiáticos que se cruzam.
3
O Mago Egípcio

Coisa curiosa e talvez significativa! Eu não começara ainda a tentar a sorte na


minha busca quando a fortuna veio a mim. Não usei o privilégio de turista que
logo à chegada começa a explorar os logradouros públicos de Bombaim. Tudo
que sei da cidade pode ser resumido num cartão postal. Minhas malas, à
exceção de uma, não foram abertas. Restrinjo minhas atividades procurando me
familiarizar com os hóspedes do Hotel Majestic, recomendado por uma senhora
que conheci a bordo, como um dos mais confortáveis hotéis da cidade. E isso foi
suficiente para levar-me a uma surpreendente descoberta: entre os hóspedes há
um taumaturgo, urdidor de encantamentos, um mago em carne e osso! Não
daqueles prestidigitadores que fazem fortuna exibindo-se nas ribaltas e
mergulhando no espanto as multidões, êmulos de Devant ou de Robert Houdine,
em ambientes menos prosaicos do que o meio da rua.

Não! O homem é da raça dos feiticeiros medievais; ele mantém um comércio


diário com seres misteriosos, invisíveis para o comum dos mortais, embora bem
visíveis para ele! Tem, pelo menos, esta fama. O pessoal do hotel lhe tem pavor,
e falam a respeito dele em voz baixa; as conversas param à sua passagem e os
olhos se enchem de lampejos de inquietação. Aliás, ele mesmo, evitando se
expor, pede frequentemente para ser servido no quarto.

O que mais nos intriga é o fato de não ser hindu nem europeu. É um estrangeiro
da margem do Nilo, um mago chegado do Egito! A aparência de Mahmud Bey
não se concilia com os sombrios poderes que lhe são atribuídos. Espera-se ver
um rosto sinistro e emaciado e, no entanto, aparece uma face rechonchuda e
sorridente. Pensa-se vê-lo embuçado num amplo traje branco, porém, ele usa
um terno do melhor alfaiate; de talhe bem posto, ombros largos, com a
vivacidade do homem de ação, mais parecendo um francês da alta sociedade,
frequentador dos grandes restaurantes parisienses.

O dia todo pensei no assunto. Na manhã seguinte tomei uma resolução: Mahmud
Bey deve ser, imediatamente, entrevistado, como dizem os meus confrades de
imprensa. Rabisco algumas palavras no dorso do meu cartão de visita e marco
no ângulo direito um sinal, pensando que talvez me ajudasse a obter uma
entrevista, e pelo qual ele veria que não sou totalmente leigo no assunto. Passo-
o furtivamente para as mãos do servente, apoiando o argumento com uma rupia
e cinco minutos depois recebo a resposta: “Mahmud Bey pode recebê-lo neste
instante. Ele vai tomar seu café da manhã e convida-o a acompanhá-lo”.

Tal começo é animador! O criado introduz-me na sala e vejo Mahmud Bey


sentado à mesa diante de um bule de chá, torradas e geléia. O egípcio
cumprimenta-me sentado, com voz clara e ressonante e diz, mostrando-me a
cadeira:

— Sente-se e perdoe-me; eu nunca aperto a mão de outrem.

Traja um chambre cinza; seus cabelos são escuros e abundantes e uma mecha
ondulada cai-lhe na testa; quando fala, sorrindo, descobre os dentes de
imaculada brancura.

— O senhor está servido?

Agradeço. Enquanto tomamos o chá, falo de sua reputação no hotel e de minha


prolongada meditação antes de abordá-lo tão temerariamente. O mago acha
muita graça e, rindo, faz um gesto como quem diz: “que posso fazer?” Depois de
um silêncio, pergunta:

— O senhor representa algum jornal?

— Não, eu vim à Índia com o intuito pessoal de estudar certos aspectos da vida
espiritual do país, e de colher algumas impressões para um livro que tenciono
escrever sobre o assunto.

— Quanto tempo pretende demorar-se aqui?

— Depende das circunstâncias. Não me limito ao tempo e não fixei o período,


respondo, com um sentimento um pouco confuso, porque o entrevistador estava
prestes a se tornar o entrevistado. Mas o que Mahmud Bey me diz em seguida,
sossega-me:

— Eu também estou, por assim dizer, em visita prolongada. Um ano, talvez dois;
depois vou seguir para o Extremo-Oriente. Gostaria de fazer a volta ao mundo,
antes de voltar para o Egito, se Alá assim o quiser.

Terminamos o chá. O criado entra e limpa a mesa. Sinto que já é tempo de


encarar assuntos mais sérios.

— É verdade o que dizem? O senhor possui, realmente, poderes sobrenaturais?

Calmamente, como homem senhor de si próprio e que adquiriu o domínio das


suas paixões, responde:

— Sim. Alá Todo-Poderoso mos deu.


Hesito. Seus olhos escuros e francos fixam-me intensamente.

— Creio que o senhor gostaria que eu fizesse uma demonstração, não é?

Ele antecipou o meu desejo! Faço sinal que sim.

— Muito bem. O senhor tem papel e lápis?

Rasgo apressadamente uma folha de caderneta e apanho um lápis.

— Bem; agora escreva uma pergunta qualquer. Falando, dirige-se à pequena


mesa no canto da janela, senta-se, vira as costas, olhando para a rua. Assim,
nós ficamos a vários metros um do outro.

— Que gênero de pergunta? Interrogo.

— Qualquer; a que o senhor quiser.

Algumas idéias me ocorrem. Finalmente escrevo uma linha: “Onde estive


morando há quatro anos?”

— Agora dobre o papel várias vezes, em quadradinhos, o menor possível.

Obedeço. Ele aproxima sua cadeira, sem deixar de fixar-me e diz;

— Faça o obséquio, segure o papel e o lápis na sua mão direita.

Comprimo a mão tanto quanto posso. O egípcio cerra os olhos; parece estar
muito longe de mim, absorvendo-se em profunda meditação; pouco depois, suas
pálpebras pesadas se abrem e os olhos cinza-escuros fixam-me novamente.
Ouço-o dizer com voz sonora:

— A pergunta que o senhor escreveu não é, mais ou menos, esta: “onde estive
morando há quatro anos?”

— É exato, respondo assombrado. Como leitura do pensamento, de fato, é


surpreendente!

— Agora desdobre o papel, por favor.

Cuidadosamente abro a folha colocando-a na mesa.

— Examine-a! diz em tom do comando.

— Olho e... não posso acreditar, atônito, com o que vejo! Uma mão invisível
traçou a lápis o nome da cidade onde eu morava há quatro anos! A resposta está
escrita embaixo da minha pergunta.

— Eis a resposta; está correta?

Mahmud Bey, triunfante, sorri:


Ensurdeço de estupefação. É a tal ponto inacreditável que lhe peço para repetir
a experiência.

Concorda e volta à janela, enquanto escrevo uma outra pergunta. Impossível, à


distância em que estamos, supor que ele possa lê-la. Não o perco de vista, e
noto que ele está atento unicamente ao movimento da rua. Dobro o papel e, junto
com o lápis, fecho-os na palma da mão. Ao sinal dado, ele volta à mesa e
absorve-se novamente em concentração, com os olhos semicerrados, mais um
minuto e ouço-o dizer:

— Sua segunda pergunta é esta: “Em que jornal era eu redator há dois anos?”

É ainda certo! Pela segunda vez desdobro o papel e vejo, rabiscado a lápis, o
nome do meu jornal!

Isto é alguma coisa mais de que simples leitura de pensamento! — calculo;


sugestão? Não, isso também é inadmissível. Estou bem acordado; tirei o papel
de minha caderneta e o lápis do meu bolso, escolhi as perguntas por acaso e
Mahmud Bey ficou distante de mim vários metros, no momento em que escrevia.
Não houve ninguém, além de nós, e tudo se passou em plena luz do dia.

Hipnotismo? Estudei o assunto e sei como afastar a menor tentativa hipnótica e


proteger-me da sua influência. Mas o testemunho está aí, com todas as letras na
folha! 1

1. Guardei o papel vários meses; a escrita não se apagou durante todo esse tempo; mostrei-o a
duas ou três pessoas e todas elas leram as respostas facilmente. Evidentemente não se tratava
de alucinação.

Nunca fiquei tão perplexo! No entanto, não se pode negar a evidência dos fatos.
Sem dúvida, ele deve ter lido no meu pensamento; não vejo outra explicação.
Suponho que tenha usado uma espécie de magia que desconheço. Pela terceira
vez peço ao egípcio para recomeçar a experiência.

Concorda e conclui com êxito. Ele me abafa! Meu cérebro trabalha febrilmente,
imagino ter uma mão invisível escrito as respostas sobre a folha que segurei na
mão... Procuro as palavras que me possam fornecer a solução do enigma. Penso
bastante, mas sinto a presença de forças desconhecidas. Para o bom senso
comum a coisa é absurda e inadmissível; desafia a razão, e sinto-me sufocado.

— O senhor conhece alguém na Inglaterra que possa fazer outro tanto? Pergunta
o mago interrompendo meus pensamentos.

Sou obrigado a admitir que não, pois os prestidigitadores profissionais que vi


realizar algo parecido, serviam-se dos seus próprios acessórios.

Arrisco uma pergunta:


— Consentiria o senhor em explicar-me seu método? Indago no tom de um
homem que sabe ser melhor perguntar à lua.

Mahmud Bey dá de ombros.

— Ofereceram-me somas consideráveis para revelar os meus segredos, mas


não estou disposto ainda a fazê-lo e não tenho intenção de revelá-los no
momento.

— Compreendo; mas o senhor deve ter notado que não sou inteiramente leigo
no estudo dos fenômenos psíquicos.

— Sem dúvida e, mesmo se eu for um dia à Europa, coisa bem provável, o


senhor poderá prestar-me certos serviços; neste caso, prometo iniciá-lo e o
senhor ficará apto a fazer tanto quanto eu fiz hoje.

— Precisaria de muito tempo para chegar a um resultado satisfatório?

— Isto depende da capacidade individual. Trabalhando firme, empregando todo


seu tempo, três meses serão suficientes para a teoria mas, para adquirir prática,
o senhor precisaria de anos.

— Não poderia o senhor, pelo menos, expor em linhas gerais a teoria, sem
comprometer seus segredos?

Eu insisto, é claro. Mahmud Bey hesita um pouco, e...

— Sim, posso fazer isso para o senhor, responde com voz suave.

Apanho meu caderno de estenografia e pego o lápis prontamente.

— Não; esta manhã, não. Tenho compromisso; queira desculpar-me. Venha


amanhã às onze horas, e nós continuaremos nossa palestra.

* * *

Imaginem se eu ia me fazer de rogado! No dia seguinte, à hora marcada toquei


a campainha do aposento de Mahmud Bey. Depois, trocados os cumprimentos,
ele me oferece um cigarro egípcio e apanhando um isqueiro, acende-o, dizendo:

— Eles são excelentes, vêm do meu país — o fumo é suave e aromático.

Lembro-me ainda, apoiado no dorso da poltrona, tirava as primeiras baforadas,


quando Mahmud Bey, virando-se para mim, fixa-me com seu olhar estranho:

— Vou expor-lhe agora o que os seus amigos ingleses chamam de minhas


teorias, que, no entanto, são para mim a maior certeza! — Com um sorriso
afetuoso continua falando:
— Talvez o senhor se surpreenda se eu lhe contar que sou engenheiro
agrônomo diplomado, profissão que não parece ajustar-se muito bem com...
digamos, a magia, não é?

Levanto os olhos; ele continua a fixar-me, e um sorriso demora-se nos seus


lábios.

Eis uma fantástica reportagem, penso ou não me conheço mais!

— Mas o senhor é um jornalista que gosta de tudo saber, e mormente como me


tornei feiticeiro, não é?

— Sim, é verdade.

— Pois bem. Sou natural do Alto-Egito, fui educado no Cairo e era um aluno
como os outros, sem mais pretensões nem zelos, mas entusiasta, e trabalhava
muito. Um dia, um velhote veio morar na casa onde eu residia; era um judeu de
sobrancelhas grossas, de barba comprida e grisalha, que andava sempre sério
e silencioso. Seu traje fora da moda impressionava, lembrando uma aparição
dos séculos passados; era tão reservado nas suas maneiras que os outros
inquilinos guardavam distância dele. Para mim, porém, longe de me afastar,
aquela reserva intrigava-me e excitava cada vez mais minha curiosidade. Sendo
jovem, isento de timidez, desejava só uma oportunidade e persistia em querer
conhecê-lo. Suas primeiras recusas grosseiras aumentaram minha impaciência
e avivaram meu interesse pelo mistério em que se envolvia. Pouco a pouco,
entretanto, foi cedendo e acabou abrindo-me a porta, deixando-me entrar na sua
intimidade. Fiquei sabendo, assim, que havia dedicado uma grande parte da sua
existência às ciências ocultas e à magia, fazendo buscas ininterruptas referentes
às coisas sobrenaturais da vida.

Avalie só! Até então minha vida havia seguido um curso banal, rotineiro, os
esportes e as aulas eram minha única preocupação e, repentinamente, enfrento
alguma coisa tão diferente, mas que me atraía fortemente. O sobrenatural não
me causava medo, como acontecia à maioria dos meus colegas. Realmente,
fascinava-me a idéia das possibilidades das grandes aventuras que o
sobrenatural poderia me proporcionar. Implorei ao velho judeu que me ensinasse
um pouco da sua arte; finalmente, ele acabou por me atender. Assim, achei-me
subitamente introduzido noutro círculo de interesse e de amizade. O judeu levou-
me a uma Sociedade do Cairo onde se faziam investigações práticas de
espiritismo, magia, e tratava-se de ocultismo e teosofia. O grupo compunha-se
de filósofos, médicos, funcionários do governo e pessoas da alta sociedade, aos
quais meu velho judeu dava aulas. Assim que atingi a maioridade, obtive
permissão para frequentar as reuniões.

Devorava os alfarrábios que me emprestava o judeu e exercitava-me nas


práticas e rituais. Fiz tal progresso que não demorei a descobrir coisas que ele
mesmo ignorava; em breve, tornei-me mestre no assunto e era considerado
particularmente versado. Por minha vez fiz conferências e realizei sessões
experimentais perante a Sociedade do Cairo, da qual fui eleito presidente e à
testa do cargo permaneci durante doze anos. Ao fim desse tempo pedi
exoneração para deixar o Egito, no intuito de viajar e, devo confessar, também
para fazer fortuna.

Mahmud Bey pára, sacode a cinza do cigarro com o dedo, cuja unha, observei,
era muito bem tratada.

— Mas isso não é uma coisa fácil! atrevo-me a interromper.

— Para mim é simples — responde-me sorrindo — necessito apenas, de alguns


clientes entre os muitos ricaços dispostos a recorrer aos meus poderes mágicos.
Alguns ricos parses da seita do Zoroastro e os nababos hindus, já me conhecem,
e vêm me consultar sobre seus problemas de vida ou dificuldades em negócios.
Uns desejam aprender certas coisas que escapam ao seu entendimento; outros
precisam informações que só as ciências ocultas lhes podem fornecer. Meus
honorários são naturalmente muito elevados. Não cobro nunca menos de cem
rupias; desejo juntar bastante dinheiro para poder deixar a magia e voltar a algum
canto tranquilo do meu país, comprar uma plantação de laranjeiras e retornar ao
trabalho de agricultor.

— O senhor vem diretamente do Egito?

— Não; depois de ter deixado o Cairo, passei algum tempo na Síria e na


Palestina. A polícia síria, ao saber das minhas faculdades, ia procurar-me
querendo o auxílio dos meus poderes, nos inquéritos difíceis de casos criminais.
Quase sempre obtive êxito em descobrir os culpados.

— Mas como era o senhor capaz de fazer tal prodígio?

— O mais misterioso crime, por mais perfeito que seja, não pode escapar aos
meus espíritos auxiliares que mo revelavam, reconstituindo a cena do crime na
minha visão interior.

Mahmud Bey pára um momento, integrado nas suas reminiscências.


Pacientemente fico esperando atento ao que vai seguir:

— Suponho que o senhor está a considerar-me um espírita praticante porque


evoco os espíritos, não é? É quase uma verdade; todavia não esqueça que sou
também um mago, no real sentido da palavra, e não um exorcista, nem leitor de
pensamentos; seria demais.

— Sua confissão já é bastante fantástica e dá para empolgar a imaginação!


Poderia dizer-me alguma coisa sobre seus auxiliares invisíveis? pergunto ao
mago.
— Os espíritos? Bem; precisei nada menos que três anos para dominá-los, e
não foi sem um tremendo esforço. No mundo que escapa às nossas percepções
sensoriais, existem os espíritos, maus ou bons. Nunca me sirvo dos espíritos
maus. Alguns são homens que já viveram e que passaram pela prova que em
nosso mundo chamamos de morte, porém, a maioria dos meus auxiliares são
jinns, quero dizer, entes originários diretamente do mundo dos espíritos e que
jamais encarnaram. Alguns são como animais, enquanto outros possuem a
sagacidade do homem. Os maus jinns 2 — nós os chamamos jinns no Egito e
não conheço nenhum outro termo ocidental que possa substituí-lo — são
empregados pelos feiticeiros de baixa classe, especialmente pelos curandeiros
da África. Evidentemente, eu recuso todo o contato com eles; são entes
perigosos, capazes às vezes de se voltarem contra aquele que os emprega e de
o matarem.

2. Jinns — os elementais, espíritos da natureza (N. da T.).

— E os espíritos humanos aos quais o senhor se referiu, quem são eles?

— Vou dizer-lhe: um deles é meu próprio irmão. Ele morreu há alguns anos.
Contudo, preste bem atenção, eu não sou médium, pois nenhum espírito se
incorpora em mim e não está autorizado a controlar-me de maneira alguma. Meu
irmão se comunica comigo imprimindo as idéias na minha mente ou transmitindo
as cenas por imagens, na minha visão interior. Foi assim que pude saber das
suas perguntas escritas ontem.

— E os jinns?

— Tenho, pelo menos, trinta à minha disposição. Depois de conseguir amestrá-


los, tive que ensiná-los a obedecer-me, exatamente como vocês fazem ao
ensinar uma criança a dançar. É necessário, todavia, conhecê-los por seus
próprios nomes, para chamá-los quando desejo obter seus serviços. Alguns
desses nomes eu já conhecia dos velhos livros bolorentos que me emprestava
o velho judeu.

Mahmud Bey estende-me seu estojo de cigarros, e acendendo um continua:

— Cada espírito possui sua função própria e não pode executar nenhuma outra.
Assim, os jinns que escreveram as palavras na sua folha não são capazes de
ajudar-me a adivinhar a natureza das suas perguntas.

— Como consegue o senhor entrar em contato com eles?

— Concentrando meu pensamento sobre aquele que eu quero atrair; geralmente


escrevo o seu nome em letras árabes e ele vem quase instantaneamente.

O egípcio consulta seu relógio e diz, levantando-se:


— Agora, meu amigo, sinto muito não lhe poder dizer algo mais sobre o assunto.
O senhor me compreende, eu devo guardar os meus métodos secretos. Talvez,
um dia, nos encontraremos novamente, se Alá assim o quiser. Adeus.

Sorrindo, deixa à mostra todos os seus dentes. Inclino a cabeça num gesto de
despedida, compreendendo que é inútil insistir.

* * *

Noite de Bombaim. Embora me deite tarde, não consigo dormir. Sufoco-me. O


ar é tão pesado como se lhe faltasse oxigênio, o calor torna-se insuportável. O
ventilador, suspenso no teto, proporciona um ligeiro alívio, mas seu ruído
monótono não me permite adormecer. O ar é tão quente que magoa os pulmões
a cada respiração, e o simples ato de respirar é um árduo trabalho. Meu pijama
está encharcado de suor, como se meu corpo se tivesse dissolvido em água, e
o pior de tudo é que meu cérebro não sossega. Será que o demônio da insônia
vai me dominar até meu último dia no solo indiano? Por certo preciso aclimatar-
me. Esta noite começo a pagar o inevitável tributo de minha permanência nos
trópicos.

O mosquiteiro, como mortalha branca, envolve minha cama. Pela janela aberta,
que dá para o terraço, suave luar entra no quarto, banhando em luz prateada os
objetos mergulhados na sombra.

Volto a pensar em minha entrevista com Mahmud Bey nessa manhã e nos
estranhos fenômenos da véspera; procuro encontrar uma outra solução além
daquela que me fora dada, mas em vão. Ou os seus trinta espíritos devotados
eram fantasmas da sua imaginação, ou retrocedemos à plena Idade Média,
época em que feiticeiros e magos, de negros intentos, floresciam em todas as
cidades européias, apesar das perseguições da Igreja e do Estado.

Quanto mais procuro, mais me vejo obrigado a desistir de qualquer


compreensão.

Qual pode ser seu segredo? Por que Mahmud Bey fez tanta questão que eu
segurasse o lápis e o papel juntos? Será que os espíritos escreveram as
respostas com átomos de grafite?

Procuro rememorar os fatos já acontecidos. Não relata Marco Polo, em alguma


parte das suas aventuras escritas, que havia encontrado na China, Tartária e no
Tibete, magos capazes de escrever sem se servirem de lápis? E esses feiticeiros
asiáticos não lhe informaram que essa arte já era conhecida e praticada entre o
seu povo, desde séculos? Lembro-me também de Helena Petrovna Blavatsky, a
enigmática russa, fundadora da Sociedade Teosófica, que fez as mesmas
experiências há cerca de cinquenta anos. Alguns membros favorecidos recebiam
longas comunicações por seu intermédio; eles faziam perguntas de caráter
filosófico e as respostas vinham escritas, mensagens, como eram chamadas,
sobre a mesma folha na qual as perguntas estavam. Coisa curiosa a notar é que
a senhora Blavatsky dizia estar em relações íntimas com os mesmos países
onde o Marco Polo havia observado os mesmos fenômenos. No entanto, a
senhora Blavatsky nunca se arrogou controle, nem poderes sobre nenhum dos
espíritos misteriosos, fenômenos esses alardeados por Mahmud Bey! Conforme
a opinião dela, essa misteriosa escrita provinha dos mestres tibetanos, mestres
em carne e osso, inspiradores presentes, porém invisíveis, da sua Sociedade.
Aparentemente, eles se revelavam muito mais habilidosos do que os espíritos
do egípcio, porque produziam as escritas a centenas de quilômetros do Tibete.

Discutia-se muito, na época, sobre a natureza e a origem desses fenômenos e


duvidava-se que os mestres tibetanos, invocados pela senhora Blavatsky,
realmente existissem e que os fenômenos fossem reais.

Não é de meu interesse reabrir polêmicas, pois essa brilhante mulher há muito
tempo está noutro mundo onde ela deve se sentir muito mais à vontade que no
nosso.

Não vou negar os fatos que vi com meus próprios olhos, e tenho que aceitar
como autêntica a experiência, ainda que me reserve o direito de sua explicação.

Não há dúvida nenhuma de que Mahmud Bey seja um mago, um feiticeiro,


perdido em pleno século vinte! Encontrá-lo, logo depois do meu desembarque,
parece-me ser um bom sinal, prometedor de descobertas maiores e mais
estranhas.

Metaforicamente falando, coloco meu primeiro marco no solo da tetra misteriosa


e escrevo na página, ainda virgem, da minha caderneta, uma nota de algum
modo preciosa.
4
Encontro um Messias

“Muito prazer em vê-lo” — por essa frase, bastante convencional, começou


minha entrevista com Meher Baba. Eu não sabia então que ele estava destinado
a passar como um meteoro brilhante no céu ocidental e a despertar a curiosidade
de milhões de europeus e americanos, mas também, como um meteoro, a cair
e apagar-se inglório no solo.

Eu era o primeiro jornalista europeu a entrevistá-lo, por tê-lo perseguido até ao


fundo de sua cova, no tempo em que sua fama não ultrapassava ainda o círculo
estreito de celebridade local. Havendo feito conhecimento com um dos seus
discípulos, estava curioso por saber de que espécie era o homem que, vinha
engrossar as fileiras dos que se arrogam a título de redentores da humanidade

Dois discípulos parses vieram propositadamente a Bombaim para acompanhar-


me; antes de deixar a cidade eles me falam do hábito usado no país de levar um
presente à pessoa que nos recebe; paramos então no mercado, onde faço uma
boa escolha de flores e frutas que devem ser oferecidas ao mestre.

Passamos a noite toda no trem, para chegar na manhã seguinte a Ahmednagar.


É essa a cidade histórica, onde o cruel imperador Aurungzeeb, ornamento do
trono dos Mongóis e protetor da Fé, vela última vez acariciou a barba espessa
dentro da sua tenda, quando a morte veio buscá-lo.

Um velho Ford, a serviço do Meher, espera-nos na estação. A rodovia de sete


milhas, em cujas margens, em parte, alinham-se azadaracas, 1 estende-se pela
planície. Passamos por uma aldeia cujos telhados castanho-escuros agrupam-
se em volta do templo com sua torre finamente esculpida; corremos pelos
campos cobertos de flores cor-de-rosa e amarelas, e atravessamos as águas
calmas da região, agitadas pelo folguedo dos búfalos.
1. Azederaque ou Azadraca — chamado também árvore do rosário. É uma árvore da Índia cujo
caroço da fruta é usado na confecção de rosários (N. da T.).

Por fim, chegamos à colônia de Meher Baba, cujo aspecto se salienta no meio
do campo pelas construções espalhadas e três edifícios extravagantes, de
pedra. (Soube mais tarde que são os restos de antigo campo militar.) No terreno
vizinho, três bangalôs rústicos de madeira e à distância de um quarto de milha,
um lugarejo ao qual se dá o nome de Arangaon. O conjunto faz impressão de
lugar vazio e deserto, como que abandonado. Meu guia parse, visivelmente
confuso, esclarece-me que ali é apenas o quartel general de veraneio do mestre,
mas que o centro fica na proximidade de Násique, cidade onde reside a maioria
dos discípulos e onde, habitualmente, são recebidos os visitantes.

Alguns homens saem de um dos bangalôs no momento em que passamos e


param ao nos ver, na entrada da porta; fazem gestos, riem entre eles e parecem
felizes pela chegada de um estranho. Atravessamos um campo e chegamos
perto de uma construção de aspecto ainda mais estranho. É uma gruta artificial,
feita de pedras e cascalho cimentado, com cerca de oito pés de profundidade.

O interior da caverna, voltada para o sul, é banhado pelo sol da manhã. Olho em
volta e contemplo a vasta extensão de terra cultivada; a leste a cadeia de colinas
cujas demarcações beiram o horizonte, e ao fundo, uma aldeia encolhida sob as
árvores. Este santo parse é, sem dúvida, um amante da natureza, por ter
construído seu eremitério neste asilo de paz! Por mim, sinto-me satisfeito em
poder respirar tão puro ar, depois de sair do bulício de Bombaim.

Dois homens, sentinelas postadas aos lados da entrada da gruta, desaparecem


ao verem-me aproximar; na certa foram consultar o mestre.

— Apaga o cigarro — diz baixinho um dos meus guias — Baba não gosta do
fumo. Jogo fora o cigarro e eis-me, um instante depois, na augusta presença do
homem chamado “O novo Messias”.

Vejo-o acocorado no fundo da gruta, cujo solo é todo coberto de tapetes persas
de lã grossa. Veste dos pés à cabeça uma ampla túnica imaculada que me faz
pensar nas camisolas de dormir que se usavam antigamente em nosso país. Ele
não é exatamente a pessoa que eu imaginei; seus olhos não são penetrantes e
falta-lhe força na expressão do rosto. Se bem que algo de calmo e de ascético,
de sobre-humano, se sinta na atmosfera que ele respira, fico surpreso, pois não
sinto, como esperava, nenhuma vibração maior na presença do homem que se
propõe nada menos que subjugar as multidões. Fito-lhe o rosto aureolado por
longos cabelos afeminados. Tem o nariz aquilino, os olhos escuros e francos que
parecem, todavia, esconder a expressão íntima; forte bigode negro guarnece-lhe
o lábio superior; a tez cor de azeitona trai-lhe a origem persa. De fato, seu pai
era um súdito do Xá. É moço ainda, não lhe dou mais de trinta anos; sua testa,
porém, é notável: baixa e fugidia. Existe, ou não, uma relação de qualidade entre
a superfície do crânio e a faculdade de raciocínio? Talvez, mas um messias está
além de todas as comparações e pesquisas!

“Muito prazer em vê-lo” — diz-me, então, mas não na linguagem de todo mundo:
segura no colo uma tabuinha com as letras do alfabeto, sobre a qual mostra com
o dedo indicador, uma após outra, a letra apropriada, e seu intérprete traduz em
palavras essa linguagem muda. O santo homem não pronuncia sequer uma
palavra desde junho de 1925. Seu irmão caçula assegurou, todavia, que no
momento em que o novo messias resolver abrir a boca, o mundo inteiro
estremecerá! Mas, por enquanto, envolve-se no mais absoluto silêncio.
Correndo, assim, seu dedo pela tabuinha, Meher Baba informa-se de minha
saúde, de minha vida e, visivelmente satisfeito, agradece-me o interesse que
tenho por seu país. Ele conhece muito bem o inglês, o que facilitará a nossa
entrevista, mas quando a solicito, adia-a para a tarde, dizendo:

— Agora descanse e coma alguma coisa.

Ao deixá-lo, dirijo-me a um dos edifícios de pedra, que vai me servir de


alojamento. O interior é triste, lúgubre e vazio, sem outros adornos além de um
estrado de madeira à guisa de cama, sem nenhum dos seus pertences; uma
banca e uma cadeira que, provavelmente, já serviram em 1857, na época da
civilização de Bengala.

Este iria ser o meu lar por mais de uma semana! Olho, curioso, pela janela sem
vidraças e sinto-me recompensado ao ver amplo panorama de campos
verdejantes, semeados de arbustos e cactos.

Quatro longas horas se passam em sonolenta moleza, antes que me veja


novamente sentado no tapete persa, em frente do homem que arroga, para si
próprio, a imensa pretensão de trazer à humanidade a luz espiritual e a regra de
uma conduta prática. Esta pretensão é sustentada desde a primeira frase que
forma na tabuinha do alfabeto.

— Eu quero mudar a história do mundo!

Ele se opõe que eu tome notas.

— O senhor não poderá redigi-las só depois de me haver deixado?

Obedeço, e somente escrevo as suas palavras nas páginas de minha memória.

— Do mesmo modo que Jesus veio para renovar a vida espiritual numa época
de materialismo corrompido, eu vim para dar um novo impulso espiritual à
humanidade de hoje. Há sempre oportunidades para as ações divinas, e quando
a hora chegar, eu revelarei ao mundo minha real natureza. Os grandes
fundadores das religiões, como Buda, Maomé, Zoroastro e Jesus, não
diferenciam, em essência, suas doutrinas; todos esses profetas são
mensageiros de Deus. Seus principais mandamentos fluem através de seus
ensinamentos como um filão de ouro. Esses seres divinos encarnaram-se entre
os homens no momento exato em que sua ajuda era mais necessária,
justamente quando o espírito estava no seu mais baixo nível e a matéria parecia
ser triunfante em volta! Ora! Nós caminhamos a grandes passos para a mesma
época. O mundo atual está submerso pelas ondas da corrupção, desejos
sexuais, ambições, preconceito racial e dominado pelo culto do ouro. Deus está
esquecido, a religião pervertida; o homem aspira à vida e os sacerdotes lhe dão
pedra inanimada. Deus precisa, pois, mais uma vez, enviar um profeta entre os
homens, para restabelecer o verdadeiro culto e sacudir do torpor os povos
entregues à matéria. Eu sigo apenas a via traçada pelos antigos profetas. Tal é
a minha missão, o mandato que Deus me deu.

Ouço em silêncio o secretário traduzir-me, numa voz monótona, essas


audaciosas afirmações. Afasto todo espírito crítico e concentro-me em estado de
pura receptividade. Não que as aceite indiscriminadamente, mas porque bem sei
como é preciso saber escutar, no Oriente. Por falta dessa precaução, um
ocidental muitas vezes não aproveita grande coisa deste país, arriscando-se a
perder preciosas sementes que se podem encontrar entre as palavras. A
verdade resiste à mais severa investigação, mas ainda assim é necessário
adaptar nossos métodos ocidentais ao ambiente espiritual da Índia.

Meher Baba prossegue com um sorriso de iluminado:

— Os profetas ensinam um conjunto de leis que ajudam as massas a viverem


num plano mais sublime, aproximando-as de Deus. Aos poucos, porém, essas
regras se transformam em artigos de fé de uma religião organizada e num
ambicioso e servil sacerdócio. Enquanto seu fundador está vivo, a força
propulsora e o idealismo dominam, mas, depois de sua morte, a conduta se
modifica e a religião decai gradualmente. Essa é a razão pela qual tais
organizações não podem, de modo contínuo, aproximar-nos da Verdade, e por
isso a verdadeira religião é uma questão de foro íntimo. As organizações
religiosas acabam sempre nos museus arqueológicos, esforçando-se em vão por
reviver um passado extinto. Um dogma pregado vários séculos depois da morte
de seu fundador, quase sempre se diferencia, radicalmente, dos seus
ensinamentos; no entanto, as bases de todas as religiões são idênticas, porque
procedem da mesma fonte que é Deus. Não tenho nenhuma intenção de fundar
nenhuma nova religião, nem novo culto, mas revigorar a idéia espiritual entre os
povos, transmitindo-lhes uma compreensão mais elevada da vida. Quando tiver
então de aparecer em público, não abolirei nenhuma religião existente, mas
também não sustentarei nenhuma delas; pelo contrário, quero afastar os homens
de todo espírito sectário a fim de pô-los de acordo sobre o essencial da Verdade.
Entretanto, não esqueça que todo profeta, antes de aparecer em público, tem
que tomar em consideração não só a época e o meio, como também o estado
de espírito das massas. Ele deve saber pregar as doutrinas no momento exato
e melhor apropriado às circunstâncias.

Meher Baba cala-se, sem dúvida deixando-me tempo para assimilar suas
palavras. De repente, a conversa toma um aspecto totalmente inesperado.

— Não tem o senhor notado o rápido progresso das comunicações nos tempos
modernos? Veja como as estradas de ferro, navios a vapor, telefones, telégrafos
e estações radiofônicas fazem do mundo inteiro uma gigantesca rede de malhas
cerradas. Um acontecimento produzido onde quer que seja, é conhecido no
mesmo dia e levado a milhares de quilômetros de distância; de modo que, se um
homem é portador de uma importante mensagem, doravante terá a humanidade
toda a ouvi-lo. Isto não é sem razão, pois os tempos que estão prestes a chegar
vão dar à humanidade um culto universal, válido para todos os povos e todas as
raças. Em outras palavras: estando a via preparada, ser-me-á permitido dirigir,
com êxito, minha mensagem ao mundo!

Esta afirmação, bem o senti, diz bastante para deixar transparecer a confiança
absoluta que Meher Baba possui em sua missão, como, aliás, toda sua atitude
o confirma. Pelo seu próprio julgamento, seus valores subirão um dia, muito
acima do comum.

— E quando pretende o senhor proclamar sua missão ao mundo? pergunto.

— Quando vir por toda parte o reino do caos e da confusão, pois esse será o
momento propício em que os povos terão maior necessidade de minha ajuda;
quando o mundo estremecer nos seus fundamentos, abalado pelas catástrofes
e inundações, terremotos, erupções e flagelos; quando o Oriente e o Ocidente
se levantarem, um contra o outro, e o mundo ferver em fogo e sangue, então
romperei o silêncio e levarei minha mensagem. Em verdade o mundo deve sofrer
para poder ser redimido.

— E conhece o senhor a época dessa guerra?

— Sim. Ela não está longe mas... não me é permitido revelar a data.

— Mas, isso é uma terrível profecia!...

— De fato é assustadora. Esta guerra será pavorosa, causada pelos engenhos


inventados por vossos cientistas, aos quais ela deverá seu poder de destruição
e cujos efeitos serão tremendos, e se comparados com os da última guerra,
estes dão uma idéia bem fraca. Porém, será curta, alguns meses apenas;
quando atingir seu paroxismo, aparecerei então, proclamando minha missão em
face do mundo; meu esforço pessoal e meu poder espiritual serão suficientes
para apressar o fim do conflito e restabelecer a paz entre as nações. Mas não
haverá somente a guerra que devastará a humanidade; grandes mudanças
produzir-se-ão simultaneamente na superfície do globo. Em vários lugares o
homem sofrerá, tanto na sua própria existência quanto nos seus bens, e devido
às condições do mundo, tornar-se-á necessário que eu aceite o papel de
Redentor. O senhor pode ter certeza de que não falharei em minha missão!

Seu secretário, o homenzinho de face bronzeada e cabeça coberta por um


turbante negro, à moda dos maratas, fita-me como querendo dizer: “Olá! o que
me diz disso? Você vê como nós sabemos coisas importantes aqui, não? Mas
os dedos do Messias correm de novo habilmente sobre a tabuinha e o intérprete
já está pronto para me comunicar novas revelações:

— Depois dessa guerra virá uma longa época da paz imperturbável e


tranquilidade mundial; o desarmamento não será apenas um simples pretexto
para polêmicas e, sim, uma realidade. Não existirão mais conflitos raciais,
sectarismos, nem lutas de classes, nem ódio entre os diversos cultos religiosos,
desde então reconciliados. Quando eu percorrer o mundo, os povos vão acorrer
à minha voz, e minha mensagem espiritual atingirá todas as nações, todas as
cidades, até a mais humilde aldeia. Fraternidade entre os homens, paz na terra,
piedade para os pobres e oprimidos, amor divino, tudo isso será obra minha.

— E o que vai ser da Índia em tudo isso? pergunto.

— Eu não terei paz enquanto o pernicioso sistema de castas não for abolido.
Precisamente esse regime foi o que levou a Índia ao nível de rebaixamento em
que hoje se encontra. Quando os “intocáveis” párias, homens excluídos da
sociedade, puderem levantar-se, a Índia recobrará seu antigo prestígio e o seu
lugar no mundo.

— Qual será então o papel dela?

— Apesar das suas falhas, a Índia sempre se manteve como centro de


espiritualidade. Ela voltará a ser o guia moral de todas as nações. Saiba que
todos os grandes fundadores de religiões nasceram no Oriente e é para o Oriente
que os povos sedentos de luz continuarão a voltar-se.

Por mais que me esforce, não posso imaginar nossas grandes nações ocidentais
curvando-se aos pés desses mansos homenzinhos bronzeados; parece-me, no
entanto, que a figura acocorada diante de mim percebe meu embaraço, pois
Meher Baba acrescenta:

— O estado de escravidão da Índia é apenas aparente; toca somente o corpo


perecível; a alma do país permanece imortal, mesmo ao ver-se despojada do
seu poder.

A sutileza dessa asserção vai além do meu entender. Assim, acho melhor voltar
ao tema inicial.

— Mas não há nada de novo na sua mensagem; nós no Ocidente já ouvimos


tudo isso de outras fontes também.

— É que as minhas palavras são como eco das verdades eternas! Meu poder
místico é tal que trará um novo elemento para a Humanidade.

Hesito um pouco. O que posso perguntar depois disso? Caímos em silêncio.


Volto a cabeça e dou um rápido olhar pela janela aberta. Por ali se descortina a
suave ondulação de campos cultivados e, no horizonte, os picos abruptos da
serra estendem-se imponentes. O sol, já majestosamente alto no céu, queima
indistintamente a criatura e a terra. Os minutos passam sonolentos. Reflito que
neste lugar isolado, sob o céu escaldante, rodeado apenas de alguns cérebros
receptivos, é trabalho fácil edificar os planos grandiosos da redenção universal,
cuja extravagância acabei de ouvir; mas lá fora, no mundo da cruel realidade,
em meio ao árduo labor das cidades tentaculares, todas essas divagações se
fundirão como a neve ao sol.

— A Europa é cética e indiferente — observo, voltando-me para o Novo Messias


— como poderá o senhor convencer-nos de que sua inspiração é de fonte
divina? Como conseguirá converter, pelas palavras, pessoas inteiramente
alheias às suas concepções e ao seu modo de pensar? O ocidental gritará contra
o absurdo e o senhor colherá, apenas, o ridículo!

— É que o senhor não tem a menor idéia da mudança que, nessa ocasião, já se
terá operado no mundo...

Meher Beba esfrega as mãos pálidas e finas e, com imperturbável calma,


continua a emitir mais algumas reivindicações, cujo único enunciado ressoará
fantasticamente aos ouvidos do ocidental:

— O dia em que eu me apresentar publicamente como messias, nada resistirá


ao meu poder. Provarei, apoiado por milagres, a verdade da minha missão. Darei
vista aos cegos, curarei os enfermos, ressuscitarei os mortos. Tudo isso será
simples para mim! Farei esses milagres à vista das multidões; assim as forçarei
a crerem em mim, e minha mensagem então lançada ao mundo não será para
satisfazer a vã curiosidade, mas pata converter os céticos.

Suspendo a respiração. A entrevista agora ultrapassa os limites do senso


comum. Meu espírito cambaleia; vamos, então, entrar no campo da fantasia! Eis
bem o Oriente!

— Contudo, não se engane — continua o parse — eu já preveni aos meus


discípulos de que esses milagres são destinados ao mundo e não a eles. Por
mim, nem teria a preocupação de fazê-los, mas, o senhor compreende, esse é
o melhor meio de forçar a atenção das massas; pasmarei as multidões, para
depois espiritualizá-las.

— Baba já fêz milagres — frisa o secretário. Imediatamente indago, alerta:

— Por exemplo...?

O mestre sorri, como para defender-se:

— Tu dirás isso a ele em outra ocasião, Vixnu; e, virando-se para mim:

— Eu posso fazer qualquer milagre, se for preciso; é fácil para quem já atingiu o
meu estado de divindade.
Prometo a mim mesmo tirar proveito, no dia seguinte, da companhia do
secretário e colher da sua boca alguns pormenores sobre esses pretensos
milagres. Sou um investigador circunspecto e tudo é grão para o meu moinho.

Novo silêncio. Pergunto, então ao santo homem, alguns fatos sobre sua infância.

— Tu dirás isso também, Vixnu — responde Meher dirigindo-se ao secretário.

— O senhor terá muitas oportunidades de conversar com meus discípulos, pois


vai ficar algum tempo entre nós; assim, eles lhe dirão tudo que o senhor gostaria
de saber.

A palestra torna-se geral e, pouco depois, todos se dispersaram. Meu primeiro


cuidado, uma vez fora, é de acender um cigarro, cuja espiral de fumaça azul,
olho, pensando...

* * *

Ao anoitecer, assisto a um curioso espetáculo. Algumas estrelas começam


apenas a cintilar; a noite ainda não caíra por completo, e as lanternas de
querosene aparecem, iluminando com luzes fracas o crepúsculo envolvente.

Meher Baba está acocorado no fundo da gruta onde se agrupam em meio


círculo, em volta da entrada, a multidão matizada dos seus discípulos, visitantes,
e o povo da aldeia vizinha. Essa cerimônia parece repetir-se diariamente.

Um dos discípulos balança, sete vezes, em torno da cabeça do mestre, uma


espécie de taça de metal, à guisa de lamparina, cuja mecha está mergulhada
em óleo de sândalo, enquanto a assistência canta, em coro, ladainhas
entremeadas de orações em dialeto dos maratas. Ouço várias vezes o nome do
Meher se repetir. Não há dúvida que eles cantam de modo hiperbólico o louvor
ao mestre, pois todos os olhares nele se fixam em adoração extática. O irmão
caçula do mestre acompanha o canto no pequeno órgão portátil.

Durante a cerimônia, os devotos entram em fila e prosternam-se diante de


Meher, beijando-lhe o pé descalço; alguns, transbordantes de emoção,
prolongam esse contato por mais de um minuto. Disseram-me que a bênção do
mestre é dotada de uma particular eficácia: proporciona aos seus fiéis redenção
de grande parte dos seus pecados!

Voltando ao alojamento, pergunto a mim mesmo que novidade iria me trazer o


dia seguinte.

O silêncio noturno é interrompido pelos uivos do chacal que se elevam, em


intervalos, de algum canto da selva.

Na manhã seguinte, convido o secretário e alguns dos discípulos que falam o


inglês a sentarem-se comigo diante de um dos bangalôs. Queria extrair daqueles
cérebros tudo o que desconhecia ainda do passado do mestre. Os discípulos
que não entendem o idioma, ficam a observar-nos à distância, com interesse
vivo nos olhares e rostos sorridentes. Seu nome é simplesmente Meher, mas ele
o completa com mais dois: Sadguru Baba. Sadguru quer dizer Mestre Perfeito
— Baba é um termo de afeição, bastante comum na Índia. É por esse nome que
seus discípulos o tratam, de preferência. Seu pai é persa. Adepto de Zoroastro,
emigrou para a Índia, quando ainda jovem e pobre. Meher, seu filho primogênito,
nasceu em Puna, em 1894. Mandaram-no à escola com a idade de cinco anos.
Mostrou-se um excelente aluno, e aos dezessete anos, já no Deccan College de
Puna, recebeu durante dois anos uma boa instrução moderna.

Nessa época começou a fase obscura e incompreensível da sua carreira. Uma


tarde, voltando do colégio de bicicleta, passou diante da casa de uma velha
muçulmana, famosa então em toda a redondeza, como faquir. Chamava-se ela
Hazrat Babajn e passava por ter mais de cem anos. Naquele momento, ela
estava recostada em uma cama turca, colocada na varanda que prolongava a
única peça de sua pobre morada. Vendo o jovem ciclista passar em frente dela,
a velha levantou a cabeça a fez-lhe um sinal. Percebendo-o, o moço desceu da
bicicleta e aproximou-se, curioso. Ela tomou-lhe as mãos e, abraçando-o, deu-
lhe um beijo na testa.

O que se passou em seguida é ainda menos claro. Pelo que eu entendi, Meher
voltou à casa, visivelmente perturbado, como que louco, e durante oito meses
seguidos suas faculdades mentais desequilibraram-se de tal maneira que
impossível lhe foi continuar os estudos, deixando, finalmente, o colégio. Seu
estado agravou-se, beirando à loucura; seus olhos tornaram-se fixos, o olhar
distante e embaciado; não era capaz do menor esforço, nem mesmo para
satisfazer as necessidades fisiológicas, nem cumprir os deveres mais
elementares, como lavar-se ou tomar alimentos. Seu pai forçava-o a comer, ele
obedecia como um autômato, sem compreender, todavia, porque colocavam os
pratos diante dele. Tinha então vinte anos e deixava-se tratar como se fora
criança. O pobre pai receava que o rapaz estivesse com um esgotamento
nervoso ou anemia cerebral, mas vários médicos consultados opinaram tratar-
se de um caso de regressão mental, receitando-lhe injeções. Ao fim de nove
meses, ele obteve uma melhora e começou a participar, novamente, da vida
familiar; seu comportamento parecia mais ou menos normal, porém quando a
cura se tornou radical, o caráter de Meher havia mudado completamente. Suas
ambições escolares, seu desejo de vencer, o gosto pelos esportes, foram
substituídos por uma ardente sede de vida espiritual.

Convencido de que sua transformação tivera origem no beijo da muçulmana,


voltou a vê-la, solicitando seus conselhos, e ela lhe disse que procurasse um
mestre. O rapaz perguntou-lhe de que modo poderia encontrá-lo; como única
resposta a muçulmana fez um gesto vago, mostrando-lhe o espaço.
Meher procurou, então, vários santos homens da redondeza; depois foi mais
adiante, a aldeias distantes cem milhas da sua cidade natal; um belo dia, entrou
num pequeno templo nas imediações de Sacori. Esse templo era um pobre
santuário, mas servia de morada a um homem muito santo, no dizer dos aldeões,
e desde o momento em que Meher se achou frente a frente com Upasani
Maharaj, compreendeu haver encontrado seu mestre e seu caminho.

O jovem prosélito passou a fazer periodicamente a viagem de Puna a Sacori.


Geralmente ficava alguns dias com seu mestre; de uma vez, porém, permaneceu
quatro meses na companhia dele e foi nesse período de aperfeiçoamento que
Meher sentiu, por fim, estar maduro espiritualmente, pronto para sua missão.

Uma noite chamou trinta dos seus colegas de turma e levou-os a Sacori.
Fechadas as portas do pequeno templo, Upasani Maharaj levantou-se e,
tomando a palavra, começou a falar-lhes de Deus e recomendou-lhes que
procurassem a virtude. Em seguida, revelou-lhes que Meher seria o sucessor
dos seus conhecimentos e poderes místicos, e ao terminar, para grande
surpresa de todos, comunicou-lhes que Meher havia chegado à perfeição divina
e aconselhou-os a tornarem-se seus discípulos, pois alcançariam grandes
benefícios neste mundo e no outro.

Uns ouviram o conselho e seguiram Meher, outros ficaram em dúvida. Um ano


depois, Meher, que estava então com vinte e sete anos, disse a seu pequeno
rebanho que recebera a revelação de uma missão divina: Deus lhe reservara
uma tarefa de capital importância para benefício da humanidade. Ele, porém,
não lhes revelou a natureza exata dessa missão. Só alguns anos depois deixou
perceber seu segredo: na revelação que tivera lhe fora prometido que se tornaria
um novo Messias!

Em 1924, Meher, pela primeira vez, deixou a Índia e embarcou para a Pérsia,
acompanhado de meia dúzia de discípulos, comunicando-lhes seu desejo de
conhecer o país de seus antepassados. Mas quando o navio fez escala em
Buchir, mudou subitamente de idéia, desembarcou e voltou à Índia no primeiro
navio pronto a largar. Três meses depois as forças rebeldes apoderaram-se de
Teerã, destituíram o Xá, e novo soberano subiu ao trono da Pérsia. Nessa
ocasião, Meher Baba disse aos seus discípulos:

— Agora vocês vêem o resultado do meu poder! É pela minha influência mística
que essas coisas acontecem...

Contaram-me os discípulos que a Pérsia era mais feliz com a soberania do Xá


atual. Os muçulmanos, persas, judeus e cristãos vivem agora em boa paz,
enquanto sob o antigo regime só havia conflitos e dissenções.

Alguns anos depois dessa misteriosa viagem, Meher Baba inaugurou um centro
de estudos muito singular. Sugestionado por Meher, um discípulo comprou um
terreno, a atual colônia de férias, adjacente à aldeia de Arangaon, e vários
bangalôs foram construídos ao lado de cabanas de palha. Uma escola livre foi
aberta; recrutaram professores entre os discípulos já instruídos, e alunos entre
a mocidade das famílias amigas. Tudo era gratuito: ensino, manutenção e
alojamento. Entre outras matérias ensinadas, como em todas as escolas, uma
aula de religião não especificada era ministrada por Meher, em pessoa.
Condições tão atraentes não podiam deixar de interessar muitos alunos, que
rapidamente formaram uma centena, com uma dúzia de rapazes chegados da
Pérsia. Ensinavam-se aos alunos os ideais, mais ou menos comuns a todas as
religiões, e também a vida e a história dos grandes profetas. Naturalmente a aula
de religião não tardou em tornar-se uma atração especial do período de estudos
e, nesse ambiente, os alunos mais velhos começaram a ser dominados por um
estado bastante confuso de devoção religiosa. Meher excitava-lhes a
imaginação passando por um personagem divino, e fez-se adorar como Deus.
Alguns deles manifestaram sinais de histeria mística e, frequentemente, cenas
extravagantes se repetiam.

Era uma das características dessa escola de novo gênero a admissão de alunos
sem distinção de casta, de raça e de credo religioso. Hindus, muçulmanos
cristãos e parses, acotovelavam-se livremente, mas isso não era, ainda,
suficiente aos olhos de Meher, cujas ambições eram mais amplas. Mandou à
Inglaterra seu principal discípulo para lá recrutar alguns alunos brancos. O
emissário, porém, chocou-se com dificuldades muito naturais, pois os pais
relutavam em confiar seus filhos a um estranho que não escondia seu intuito de
levá-los para os confins da Ásia distante. A idéia de uma escola onde se fundiam
todas as religiões não lhes significava coisa alguma; ademais há muitas escolas
na Inglaterra onde os alunos de diversos credos se misturam da maneira mais
natural do mundo. O mesmo não acontece na Índia, onde as crenças são
mutuamente inimigas, e quando acontece um caso excepcional como esse da
escola do Meher, é também muito natural que haja clamor justificável para os
hindus — incompreensível para os ingleses.

Contudo, um dia o esforçado missionário encontrou um Inglês que, depois de


algumas palestras, declarou estar pronto a ligar-se ao novo messias. Era um
homem de gênio entusiasta, conhecia todos os cultos existentes, em profusão,
em Londres, e tinha suficiente maturidade para aderir ao que lhe parecia uma
mensagem sublime. Pôs-se a ajudar o representante do Meher na procura de
alunos brancos e, finalmente, conseguiu três crianças, cujos pais, gente humilde,
consentiram que levassem os filhos, satisfeitos por serem aliviados do peso da
carga da família, embora ao preço da separação. Mas, quando o Ministério da
Índia, alarmado, abriu inquérito, interditou a saída das crianças. O agente do
parse voltou então à Índia, levando apenas o inglês que, recém-casado, foi
acompanhado de sua esposa e de uma cunhada. Cinco ou seis meses depois
que chegaram, Meher Baba mandou-os de volta, às custas do discípulo.
Soube isso do próprio Meher Baba: sua finalidade ao fundar uma escola era
dupla; antes de mais nada, ele queria abolir, acabar de vez, todas as barreiras
religiosas e raciais entre os alunos; em segundo lugar, ele procurava formar da
elite os futuros embaixadores para sua causa e, logo ao atingir o grau de
preparação suficiente, Meher os mandaria pelos cinco continentes pregar em
público, como apóstolos, o novo evangelho, destinado a espiritualizar a
humanidade, preparando o caminho do Messias.

Um outro campo de ação foi criado paralelo à escola. Um hospital foi aberto e
vários discípulos, entre os mais ardorosos, percorriam o país em busca de
doentes, cegos, paralíticos e aleijados, que necessitassem de cuidados. O
tratamento, alimentação e alojamento eram gratuitos, sem falar do conforto
espiritual em que era pródigo o parse.

— Cinco leprosos foram curados pelo simples toque! — disse-me um devoto


entusiasta. — Lamento, mas sou obrigado a permanecer descrente: ninguém
pode dizer onde eles estão, nem que fim levaram! Ainda um exemplo de exagero
oriental! Um, pelo menos, desses leprosos, levado pela gratidão, não poderia ter
engrossado as fileiras dos discípulos do santo homem? E assim a notícia desse
milagre ter-se-ia espalhado como o fogo na floresta, mormente neste país,
devastado pelo flagelo da lepra; e não poderia ter sido, então, encaminhada ao
hospital de Arangaon uma multidão dessas vítimas?!

Contudo, um vasto núcleo cresceu, aumentado por centenas de fiéis, visitantes


e famintos das aldeias vizinhas, e esta colônia, um tanto singular, vibrava de
intenso fervor religioso, cujo foco espiritual era Meher Baba, é claro. Mas dezoito
meses não se haviam passado desde a sua fundação, quando tudo foi fechado,
escola, hospital e abandonadas todas as atividades; os alunos foram mandados
de volta às suas famílias e os doentes às suas respectivas casas, sem que
Meher se dignasse fornecer a mínima explicação dessa brusca reviravolta.
Soube que as súbitas desigualdades de humor e os inexplicáveis impulsos eram
comuns em sua conduta. Na primavera de 1929, ele ordenou ao seu primeiro
apóstolo, chamado Sadu Leik, viajar pela Índia, espalhando o nome do Meher, e
antes de partir deu-lhe a seguinte ordem: “Você, que tem o privilégio de trabalhar
para um messias, seja o cidadão do mundo! Não abale nenhuma religião e não
se deixe dominar pela crítica. Saberei tudo de você e vou guiá-lo mas não siga
outro mestre além de mim!”

Das informações que respiguei, soube que o pobre diabo não sentia a menor
vocação para a vida errante. Conseguiu recrutar alguns prosélitos em Madras,
mas ficou logo doente, e voltou para morrer.

Isto é o que, em linhas gerais, consegui saber sobre a carreira desse santo
homem.

* * *
Depois de alguns encontros familiares com Meher Baba ainda tive o desejo de
obter informações mais definidas sobre a natureza da missão que se impunha a
si próprio. Solicitei, então, e obtive, uma última entrevista.

Encontro-o com uma espécie de xale azul-claro nos ombros, e sobre os joelhos
o seu alfabeto, pronto para a conversação. Atrás, os discípulos formam um
complacente auditório. Eles se entreolham, sorrindo, até que minha audaciosa
pergunta rompe o silêncio:

— Como sabe o senhor que é o messias?

Meu atrevimento confunde os discípulos. O mestre ergue as sobrancelhas mas


não fica perturbado e, sorrindo para o ocidental curioso responde sem hesitar:

— Eu sei! E muito bem até! Como o senhor sabe que é um homem, eu sei que
sou um messias. Isso é a minha vida, cheia de beatitude infinita. O senhor nunca
se toma por um outro, não é? Permita-me o mesmo; não posso, pois, me
enganar sobre o que sou! Tenho uma missão divina a cumprir e a cumprirei!

— O que realmente se passou, quando a mulher muçulmana, a mulher-faquir o


beijou — o senhor se recorda?

— Sim. Até então eu era mundano como eram todos os meus colegas. Hazrat
Babajan abriu-me o caminho; seu beijo decidiu da minha vida, senti o universo
absorver-me e fiquei só — só com Deus. Durante meses fiquei privado do sono
e apesar disso não enfraqueci; minhas forças permaneceram as mesmas; meu
pai, que nada compreendia, pensou que eu acabasse enlouquecendo, chamou
um médico, depois outro; os doutores prescreveram-me remédios, davam-me
injeções, mas como se enganavam! Nada havia a curar, pois eu estava com
Deus! O que podiam eles fazer? Apenas eu perdera o contato com a existência
normal, e precisei bastante tempo para voltar de tão longe, o senhor me
compreende?

— Compreendo-o, sim. Mas agora que o senhor já voltou, quando pretende se


manifestar em público?

— O dia se aproxima, mas não lhe posso revelar a data...

— E, então?

— Minha tarefa neste mundo durará trinta e três anos; passado esse tempo,
morrerei tragicamente, e meus correligionários, os parses, ficarão com a
responsabilidade da minha morte. Os outros, todavia, continuarão minha obra.

— Seus discípulos, suponho?

— Sim, do meu círculo de doze discípulos escolhidos, um deles será o mestre


quando o tempo chegar; é para eles que hoje faço jejum e guardo silêncio.
Redimo-os, assim, dos pecados, tornando-os capazes de atingir a perfeição.
Eles já foram meus companheiros em vidas anteriores e assumi o compromisso
de ajudá-los. Também formarei um grupo externo, composto de quarenta e
quatro membros, homens e mulheres em grau de espiritualidade menos elevado;
quando esses chegarem à perfeição suficiente, tornar-se-ão auxiliares dos meus
doze principais discípulos.

— Alguém mais, além do senhor, arroga-se o direito a um título de messias? —


arrisco perguntar.

— Sim... Há Krishnamurti, protegido de Annie Besant. Os teosofistas se iludem:


querem que seus mestres ocultos estejam em alguma parte do Himalaia ou do
Tibete. Lá o senhor não achará nada senão pedras e pó em lugar de supostos
santuários. Além disso, jamais um verdadeiro mestre espiritual exigiu que o
corpo de outra pessoa fosse preparado e treinado para os fins que tem em vista.
Essa pretensão é ridícula!

Houve outras afirmações não menos estranhas durante este último encontro;
curiosa mistura de ingênuas asserções surge, letra por letra, da ponta dos
delgados dedos do messias: “A América tem um grande futuro... um dia esta
nação se tornará um valor espiritual...” “Eu sei que aquele que colocar sua fé em
mim será socorrido...” “Não adianta quererem compreender meus atos, pois
ninguém jamais poderá alcançar-lhes o significado profundo...” “Onde quer que
eu esteja, logo a atmosfera do ambiente se espiritualizará...” “Darei ao mundo
um novo impulso e de uma tal força, que todos os problemas materiais,
econômicos, políticos, sexuais e sociais serão, finalmente, solucionados, e o
egoísmo individual, nessa ocasião, dará lugar à fraternidade universal...” “Sivagi
está aqui — foi ele quem edificou o Império dos Maratas no século XVII”. (Ao
dizer essas palavras ele aponta seu peito, querendo significar, suponho, que é
uma encarnação de Sivagi...) Alguns planetas são habitados; assemelham-se à
nossa terra em cultura e progresso material, porém, em relação ao espírito, o
nosso orbe leva vantagem...

Meher Baba, como se vê, não peca pelo excesso da modéstia quanto à sua
missão. Eu estava ainda pouco surpreso, quando — palavra de honra — com
um tom de ordem mal dissimulado, concluiu ele, assim, essa memorável
entrevista:

— Volte ao Ocidente como meu representante! Propague o meu nome como o


de um mensageiro divino e proclame que a época de minha missão se aproxima!
Trabalhe para mim, preparando boa receptividade no mundo ocidental; desse
modo o senhor estará cooperando para o bem de toda a humanidade...

— Mas pensarão que estou louco — respondo um pouco constrangido — pois


confesso que tal empresa confunde minha imaginação.
Meher não é dessa opinião. Eu lhe respondo que precisaria realizar uma série
de milagres bastante evidentes para poder convencer o Ocidente, pois só assim
o povo acreditaria que de fato alguém é super-homem ou, mais ainda, um
messias, e como pessoalmente não posso nem sonhar em fazer milagres, digo-
lhe que não vejo como poderia levar sua mensagem ao Ocidente com qualquer
probabilidade de êxito.

— Está bem! Então o senhor fará os milagres — responde-me com toda


segurança.

Fico calado. Meher interpreta mal o meu silêncio.

— Fique comigo e o senhor verá quantos e quais poderes sou capaz de


transmitir-lhe. O senhor é um privilegiado por ter-me encontrado! Ajudá-lo-ei a
obter bastante poderes eficazes e o senhor poderá, assim, prestar grandes
serviços ao Ocidente.

* * *

Dispensar-me-ei de descrever o fim dessa inacreditável entrevista. Certos


homens nascem grandes, outros alcançam a grandeza, ainda outros recorrem a
uma agência de publicidade.

Parece-me que este último recurso foi o escolhido por Meher Baba.

No dia seguinte, preparo-me para ir-me embora. Havia absorvido grande dose
de sapiência e advertências proféticas, suficientes no momento. Eu não vim aos
confins do mundo para ouvir declarações de fé e afirmações grandíloquas;
preciso de fatos, ainda que estranhos e inconcebíveis, mas que possam ser
aceitos; necessito de uma prova que possa testemunhar, de alguma experiência
extraordinária, pessoal, que possa satisfazer meu desejo latente...

Com as mochilas prontas, estou quase de saída e vou despedir-me do Meher.


Ao ver-me, ele diz que passará algum tempo no seu quartel-general em Násique,
e pede-me que vá visitá-lo e fique um mês em sua companhia.

— Faça o favor, venha quando puder; poderá observar-me pôr-me em prova, e


garanto-lhe que depois não duvidará mais de minha missão, pois será uma
testemunha do meu poder, por sua própria experiência, e quando voltar à
Europa, estou certo, não hesitará em conquistar para mim as multidões.

Resolvo voltar com vagar e passar um mês com ele. Apesar de tudo o que há de
teatral na atitude desse santo homem e na fantástica natureza de sua missão,
vale a pena investigar tudo com plena liberdade de espírito.

* * *
Após uma curta estada em Bombaim, ponho-me a caminho de Puna, atraído
pela fama da velha muçulmana, cuja brusca intervenção mandou a vida de
Meher, fazendo-o virar seu leme de maneira tão radical. Tenho a impressão de
que minha viagem não será tempo perdido; colhi algumas informações sobre ela
em Bombaim, com o juiz honorário Khandalavalla, que a conhece há cinquenta
anos e me assegurou que ela é, de fato, quase centenária — deve ter noventa e
cinco ou noventa e seis anos. Os discípulos de Meher disseram-me cento e
trinta, exagero que creditei na conta do entusiasmo deles. O juiz narra-me,
resumidamente, a história da muçulmana:

Nascida em Balochistão, território mal definido entre a Índia e o Afeganistão,


fugiu, mocinha ainda, da casa paterna, e depois de errar muito tempo pelos
caminhos da aventura, chegou a Puna no começo deste século para nunca mais
sair. Instalou sua moradia sob um azadaraca, teimando em ficar sob sua
folhagem durante todas as estações do ano. Sua reputação, bem como o boato
do seu estranho poder, espalharam-se rapidamente entre a população
muçulmana dos arredores — tanto que, no fim de pouco tempo, conquistou a
confiança e a veneração dos hindus. Como ela se recusasse obstinadamente a
morar numa casa, seus correligionários construíram sob aquela árvore uma
espécie de bangalô aberto, mas que a abrigava contra a inclemência da monção.

Pergunto ao magistrado sua opinião sobre ela; o juiz não duvida da qualidade de
faquir que, de fato, possui essa mulher; como ele é parse também, faço-lhe
perguntas sobre Meher Baba, e por fim o que acha de Upasani Maharaj,
inspirador atual do santo homem. Khandalavalla, juiz aposentado, homem de
idade e de experiência, faz-me então um resumo das suas desgraças, motivadas
pelas relações que manteve com Upasani. Vou citar apenas dois casos que o
juiz me narrou:

— Upasani cometeu erros chocantes; um dia chamou-me a Benares onde estava


morando naquela época; fui, e estava lá há algum tempo, quando tive o
pressentimento de uma morte e quis voltar a Puna, onde deixara minha família.
Upasani impediu-me que regressasse, assegurando que tudo ia bem por lá. Dois
dias depois, recebi um telegrama com notícias da morte da criança que viveu
apenas alguns minutos, após ter minha nora dado à luz. De outra vez, meu genro
o consultou sobre uma operação bancária que tencionava fazer na bolsa de
Bombaim. Upasani estimulou-o, prognosticando um ótimo negócio. Na boa-fé
deste conselho, meu genro fez o negócio, mas... voltou quase arruinado!

O juiz Khandalavalla impressiona-me pela clareza e imparcialidade de seus


pareceres. Ele diminuiu o valor de Upasani que Meher descreveu como “uma
das maiores espiritualidades da nossa época”, mas também não hesitou em
afirmar que acreditava sinceramente na honestidade do anseio espiritual de
Meher, embora sua missão não se apoiasse sobre nada de sério. Assim que
chego a Puna, procuro a moradia de Hazrat Babajan. Um guia me acompanha;
ele a conhece pessoalmente e poderia servir-me de intérprete, em caso de
necessidade. Achamos a anciã no fundo de uma pequena rua, iluminada ainda
pelas antigas lamparinas que fazem um anacronismo chocante ao lado dos
globos elétricos. Recostada sobre um leito baixo, e separada da rua apenas por
um gradil de arame, pode facilmente ver os transeuntes. Por cima de seu abrigo
de madeira estende-se a majestosa folhagem do azadaraca, cujas flores brancas
exalam suave e doce aroma.

— Precisa tirar os sapatos — avisa-me o guia — pois usá-los ao entrar é


considerado como falta de respeito.

Obedeço e entramos. A anciã está deitada de costas, com a cabeça ligeiramente


levantada pelas almofadas; a brancura radiosa dos seus cabelos contrasta com
a face descorada e sulcada pelas rugas. Faço apelo a todos os meus recursos
linguísticos para apresentar-me. Ela se volta na minha direção e estende-me um
braço, tomando uma das minhas mãos na sua, segura-a por um momento, e fixa-
me com o olhar que já não é mais deste mundo. Seus olhos perturbam-me,
parecem vazios e privados de compreensão; durante três ou quatro minutos,
sem dar uma palavra, continua a segurar minha mão, fixando-me intensamente
com seu olhar profundo. Tenho a impressão de que esse olhar me penetra e vai
até o âmago da alma. É bem estranha essa sensação... Fico parado, calado,
sem saber exatamente o que fazer...

Finalmente, ela retira sua mão passando-a várias vezes na testa; depois, volta-
se na direção do meu guia e diz-lhe alguma coisa, que ele sussurrando-me ao
ouvido, traduz: — Ele está sendo chamado à Índia... ele vai brevemente. Ela
articula ainda uma frase, cujos termos será melhor gravar na memória do que
imprimi-los. Sua voz é extremamente fraca e as palavras saem-lhe lentamente e
com tremenda dificuldade. Será possível que esse corpo esquelético, essa forma
ressequida seja suporte de uma autêntica alma de faquir, dotada de poderes
maravilhosos? Mas não é pela forma do corpo que se consegue saber os
mistérios da alma... Como essa pobre mulher se aproxima dos cem anos,
aconselham-me a poupá-la, pois está fraca demais para suportar uma conversa
prolongada. Preparo-me para a despedida, fortemente impressionado com a
idéia de que esses olhos vidrados e turvos parecem traduzir um sinal de morte
iminente. O espírito, pronto a deixar o corpo já quase sem vida, parece voltar
através de seus olhos apagados e conceder, ao mundo que vai abandonar, um
resto de atenção. 2
2. Tornei a vê-la alguns meses depois e tive de novo a mesma impressão de que a sua morte
não devia tardar. Ela faleceu, efetivamente, pouco tempo depois.

Chegando ao hotel, esforço-me por recapitular minhas impressões. Tenho


certeza que naquele ser decadente brilha a ciência profunda da sabedoria da
alma, e respeitosamente curvo-me diante do fato. Acho também que o breve
toque dessa estranha mulher fez desviar o curso normal dos meus pensamentos
e despertar em mim um sentido, ainda indefinível, do mistério que continua a
envolver nossa vida terrestre, a despeito de todas as descobertas e das
especulações mais audaciosas da ciência moderna.

Percebo com deslumbrante clareza que os cientistas que nos pretendem revelar
os segredos fundamentais deste vasto labirinto, que é o nosso orbe, em
realidade não conseguem senão levantar apenas a ponta do misterioso véu. O
que eu não compreendo é como um instantâneo contato com essa estranha
mulher fosse suficiente para abalar até às bases a minha formação mental!

Procuro em vão entender o sentido profético das suas palavras. Ninguém me


chamou aqui... Não vim então livremente, arrastado por minha própria
inspiração? Somente agora, no momento em que escrevo estas linhas, começo
a entrever, vagamente, o profundo sentido daquilo que ela desejava dizer-me
então.

Ponho-me a pensar... decididamente, este mundo é cheio de mistério...


5
O Anacoreta do rio Adyar

Nas semanas seguintes, prossigo minha viagem em direção ao sul, através do


planalto de Decão; visito lugares maravilhosos, templos históricos, mas em
nenhum deles encontro vestígios daqueles homens excepcionais que procuro.
Entretanto, uma força imperiosa à qual obedeço cegamente, sem a
compreender, acelera meus passos e obriga-me, às vezes, a correr para diante
como se fosse um simples turista.

Eis que um dia resolvo viajar de trem para Madras, levando a intenção de, nessa
cidade, permanecer por mais tempo. Viajo à noite; incapaz de dormir, tento
rememorar e reunir a colheita dos fatos ocorridos, e confesso que o resultado é
medíocre. Não posso felicitar-me, pois não encontrei ainda nem as pegadas de
um Yogue sequer; quanto à esperança de encontrar um Richi, autêntico Sábio,
essa então, deixo-a para o final das minhas aspirações!

Em compensação, sobrava-me um desanimador conhecimento de sufocantes


superstições e costumes caducos. Como compreendo agora o sorriso irônico e
as advertências dos meus amigos de Bombaim! Pela primeira vez avalio a
imensa dificuldade de minha tarefa. Encontram-se aqui piedosos e santos
personagens, tanto quanto se queira; são eles bem numerosos e de uma
variedade infinita, mas se vale a pena que se lhes dê maior atenção, isso já é
uma opinião toda individual. Quando passamos diante dos templos cujo interior
severo parece estar cheio de promessas, entramos; com respeito sagrado
avançamos até o átrio, damos um rápido olhar ao santuário e vemos o quê? —
Ingênuos devotos que oram, sacudindo campainhas para terem maior certeza
de que suas preces não escaparão aos ouvidos das divindades da sua escolha!
Essa é a verdade.

Fiquei satisfeito ao chegar a Madras, cujo aspecto colorido deslumbra e fascina.


Ao invés de instalar-me no bairro europeu, escolhi um pitoresco subúrbio a duas
milhas distante da cidade, para poder estar em contato mais direto com o
elemento indígena do país. Fixo-me na rua dos Brâmanes, avenida em cuja
espessa camada de pó afundam-se meus sapatos. A rua é de terra batida, não
há nela o menor vestígio de revestimento, que é o orgulho de nosso século; as
casas são pintadas a cal, com as varandas abertas e portões gradeados. No
interior da minha morada há uma galeria coberta de telhas, que contorna o pátio
onde fica um velho poço que abastece a casa.

Há duas ou três dessas ruas, e depois uma luxuriante paisagem tropical se


desdobra para o gozo do olhar extasiado. Perto dali corre, suavemente, o rio
Adyar, e ao largo das suas margens há algumas palmeiras que encantam minha
imaginação. Sempre que tiver um momento livre, hei de parar sob a sombra
delas ou repousar à margem do rio de águas claras e serenas. Adyar tem sua
foz em Madras, onde forma o limite ao sul, antes de desembocar nas águas
espumosas do Golfo de Coromandel.

Por uma cálida manhã, lembro-me, passeava ao longo desse rio encantador,
acompanhado de um Brâmane, cujo conhecimento tinha feito pouco antes, e ao
qual acabei confiando o objeto das minhas buscas. De repente, ele, agarrando
meu braço, exclama:

— Olhe! — Veja o jovem que vem ali, em nossa direção; é um Yogue. Ele poderia
interessar o senhor, mas lamentavelmente não há meios de fazê-lo falar.

— Mas por que não?

— Não conheço homem mais reservado; apenas sei onde ele mora.

O hindu está a alguns passos de nós, com um corpo de atleta, aparentando ter
trinta e cinco anos, sua estatura é acima da mediana. O que me impressiona
mais é o seu rosto, que revela os traços característicos da raça negra: a pele
muito escura, o nariz achatado, os lábios grossos, constituição musculosa. Nada
tem de ariano. Os cabelos são bem tratados, presos no alto da cabeça; um par
de brincos, de forma extravagante e tamanho incomum, guarnece-lhes as
orelhas; um xale branco caindo sobre o ombro esquerdo, cobre-lhe o busto. As
pernas e pés estão nus.

Ele cruza conosco a passos lentos e parece nem reparar em nós; traz os olhos
baixos e as pálpebras caídas, como que procurando alguma coisa na rua
poeirenta. Tem-se nitidamente a impressão de que por trás desses olhos brilha
uma inteligência, e parece estar absorvido em pensamentos profundos. Gostaria
de saber qual seria o motivo dessa meditação ambulatória...

Súbito, um desejo de romper as barreiras que me separam desse homem se


apodera de mim.

Ele passa, sereno, à nossa frente.

— Eu quero falar com ele — digo ao meu companheiro — voltemos.

O senhor vai perder seu tempo — respondeu-me o Brâmane, procurando


convencer-me.
— Este homem é tão pouco sociável que nós não sabemos quase nada a seu
respeito; mantém-se sempre à distância, mesmo com seus vizinhos; acredite-
me, é melhor deixá-lo em paz.

Mas eu já tinha voltado, forçando meu companheiro a seguir-me; alcançamos as


pegadas do homem que continua andando, sem parecer notar nossa presença,
e logo o ultrapassamos um pouco.

— Pergunta-lhe, por favor, se posso falar-lhe — peço a meu amigo que vacila,
sacode a cabeça e responde com a voz frouxa:

— Eu não me atrevo...

A oportunidade, prestes a se escapar, impele a minha audácia. Não tenho outra


alternativa; ponho de lado as convenções, volto-me resolutamente e barro o
caminho ao Yogue, parando diante dele digo uma curta frase com meu ligeiro
conhecimento de hindustani. O homem levanta as pálpebras, sua boca esboça
um sorriso, mas sacode a cabeça em sinal de negação.

Naquela época eu conhecia apenas uma ou duas palavras de tâmil, o dialeto de


Madras, mas o Yogue, na certa conhecia ainda menos o inglês. Poucas pessoas
falam hindustani no Sul da Índia, mas eu então não sabia disso.

Felizmente meu Brâmane percebe que já é tempo de vir em meu socorro e, com
sua voz hesitante, diz algumas palavras de desculpas. O Yogue não responde;
seu rosto se endurece, o olhar fica frio e distante. O Brâmane olha-me bastante
confuso... o silêncio torna-se penoso. Como sair disso?

Embaraçado, reconheço que não é uma tarefa fácil decidir um Yogue a desatar
a língua. Evidentemente, eles não apreciam ser entrevistados e, ainda menos,
abrirem-se a um estranho, curioso por saber algo das suas experiências íntimas;
desagrada-lhes, sobretudo, verem-se obrigados a romper o silêncio em favor de
um inglês, isto é, de um indivíduo de que se ouve falar que, sob o capacete
colonial, não alimenta simpatia nem compreensão pelas sutilezas da Yoga.
Todavia, esta impressão dá logo lugar a outra. Sinto, nitidamente, ser objeto de
uma penetrante inspeção da parte do Yogue; tenho certeza de que, por trás
dessa máscara de indiferença, ele está penetrando no meu pensamento mais
secreto. Será que me engano? Mas não posso me livrar desta chocante
impressão: sou uma cobaia humana sob um microscópio!

O Brâmane, impaciente e nervoso, cotuca-me como para dizer que é preferível


irmos embora. Ele me irrita; mais um minuto e serei obrigado a ceder e retirar-
me, com o sentimento de derrota.

Aquele momento foi decisivo! O Yogue faz um gesto, mostrando com o dedo
uma grande palmeira ali perto de nós, fazendo-nos sinal para sentarmos à sua
sombra; ele mesmo senta cruzando as pernas, por último, trocando algumas
palavras, em tâmil, com o Brâmane. Ouço a ressonância toda particular de sua
voz musical.

— O Yogue está disposto a falar-lhe — traduz meu companheiro — ele diz que
durante vários anos percorre essa parte pouco frequentada do rio e conhece
bem a região. Começo por perguntar o nome do nosso novo companheiro e ouço
uma tal ladainha de apelidos que logo o crismo à minha maneira. Seu nome à
Bramasugananda, mas tem ainda quatro outros, tão complicados que parece
mais cômodo chamá-lo, simplesmente, Brama. Pois se eu fosse chamá-lo pelos
seus cinco nomes, ocuparia uma linha inteira da página! Uma tal abundância de
patronímicos espanta-me, mas impõe respeito. 1 Assim, para facilitar a leitura
nós o chamaremos — Brama.

1. A língua tâmil, idioma do sudeste da Índia, possui as mesmas particularidades que o alemão
pela formação das palavras compostas. Ao passar pela estação ferroviária: pode-se notar o
nome: KULASEKPARAPATNAM. Poupo o leitor de outros exemplos do mesmo gênero.

— Diga-lhe, peço ao Brâmane, que sou interessado em Yoga e gostaria saber


alguma coisa sobre essa doutrina.

O Yogue faz sinal de consentimento, e retruca sorrindo:

— Sim, isso se percebe claramente. O Sahib quer me fazer perguntas? Posso


responder-lhe.

— De que categoria de Yoga o senhor é adepto?

— O sistema que adotei é chamado Controle do Corpo; é o mais difícil das


Yogas. O corpo, e em particular a função respiratória, devem ser domados e
treinados como os cavalos. Obtido tal resultado, o domínio sobre os nervos e o
cérebro torna-se, em seguida, absoluto.

— E quais são os benefícios que o senhor obtém desse controle? Pergunto.

— Alcançar uma perfeita saúde, dominar os sentidos, impedir a decadência do


corpo e conservar a mocidade até idade avançada são alguns dos benefícios,
responde Brama com o olhar perdido no espaço. Um Yogue, pelo sábio
treinamento do corpo, consegue dominá-lo dando-lhe resistência de ferro. Os
mestres são insensíveis à dor; conheci um deles que se submeteu a uma
intervenção cirúrgica sem anestesia — sofreu sem gemer! outros podem
aguentar o frio, por mais intenso que seja, e não sentem mal nenhum, mesmo
que estejam despidos.

Apanho meu caderno de notas, pois a conversa começa a tornar-se interessante;


minha estenografia faz sorrir Brama, sem, todavia, provocar nenhum comentário.

— Poderia o senhor estender-se um pouco mais sobre esse sistema? peço ao


Yogue.
— Pois não. Meu mestre, quando morava nas montanhas do Himalaia, cobertas
de neves eternas, estava apenas agasalhado por um burel, e ficava sentado
horas, em lugar onde a água instantaneamente gelava, sem sentir incômodo
nenhum. Tal é o poder da nossa doutrina.

— E o senhor é seu discípulo?

— Sim, mas ainda não alcancei o grau máximo, embora me esforce diariamente
com toda a perseverança, há doze anos, praticando nossos exercícios.

— Mas, o senhor, com certeza, alcançou alguns desses poderes


extraordinários?

Brama faz sinal que sim, mas conserva-se em silêncio.

O estranho jovem intriga-me cada vez mais. Hesito em prosseguir e,


timidamente, pergunto:

— É permitido saber como o senhor tornou-se Yogue?

Não obtenho resposta. Há um silêncio constrangedor entre nós, acocorados sob


a palmeira. Ouço o grasnar dos corvos aninhados nos coqueiros, à margem
oposta do rio, misturado aos gritos estridentes dos macacos, que exploram as
copas das árvores. Um suave marulho levanta-se das ondas tranquilas do Adyar.

— Com muito prazer, diz Brama, repentinamente, rompendo o silêncio.

Ele compreendeu, suponho, que minhas perguntas tinham um motivo mais sério
do que a mera curiosidade, puramente acadêmica. Escondendo as mãos sob o
xale, torna a fixar os olhos em não sei que objeto do outro lado do rio, e começa
assim:

— Eu era criança pacata e solitária, não encontrando nenhum prazer nos


folguedos dos meus companheiros, fugindo até da companhia deles, preferindo
passear sozinho pelos bosques ou sentar-me na relva dos campos. Bem pouca
gente sabe o que se passa na alma fechada de uma criança; vivia afastado e
não me sentia feliz. Aos doze anos ouvi, por acaso, uma conversa entre adultos
que falavam sobre a doutrina Yoga; pela primeira vez ouvia essa palavra, mas o
que eu compreendi foi o suficiente para provocar o desejo de querer saber mais.
Comecei a indagar de várias pessoas e consegui, finalmente, encontrar livros
que revelaram tanta coisa fascinante sobre a doutrina que, como um cavalo
galopante no deserto aspira à fonte fresca do oásis, assim meu espírito
impaciente tinha sede de conhecimento. Chegara, porém, a um ponto em que
me parecia impossível, sozinho como estava, ir mais além, e um dia, ao abrir por
acaso um dos meus livros li esta frase: “para fazer progresso no caminho da
Yoga, precisa o discípulo ser chamado pelo mestre”. Essas palavras me
transtornaram. Um mestre! Compreendi que, para encontrá-lo, não havia outra
solução senão deixar a casa e viajar. Naturalmente não pude contar com a
autorização dos meus pais, e não sabendo de pronto como agir, pus-me a fazer,
em segredo, alguns dos exercícios respiratórios sobre os quais havia adquirido
alguma noção. Essas práticas, em vez de me fazerem bem, fizeram-me mal. Não
me dava conta de que elas poderiam ser prejudiciais, se praticadas sem a
vigilância de um monitor experimentado, e minha impaciência era de tal ordem
que não queria perder tempo em esperar. No fim de alguns anos, as
consequências se manifestaram por um rompimento no ápice do crânio, como
se o mal tivesse se localizado na parte de menor resistência. Minhas forças
esmoreciam, o sangue escorria da ferida, senti meu corpo resfriar-se, pensei que
estivesse morrendo. Duas ou três horas depois, tive uma estranha visão —
flutuava ante meus olhos o rosto de um Yogue venerável que me dizia: “Você
está vendo em que perigoso estado puseram-no essas práticas proibidas aos
profanos? Que isso lhe sirva de lição!” A visão desapareceu e, coisa curiosa, no
mesmo instante senti-me melhor e aos poucos voltei a mim, para depois
recuperar logo a saúde abalada. Pode-se, ainda hoje, ver a cicatriz que aqui
ficou.

Brama abaixa a cabeça e mostra-nos, de fato, um pequeno sinal perfeitamente


visível, no couro cabeludo.

— Após esta infeliz experiência, desisti dos exercícios respiratórios, esperando


pacientemente que os laços familiares se relaxassem com o correr do tempo. No
momento em que me senti mais livre, deixei a casa e pus-me em busca do
mestre. Sabia que a melhor maneira de pôr à prova aquele que se escolhe, é
viver com ele algum tempo. Encontrei vários instrutores e comecei por dividir
meu tempo, passando parte com eles e parte em casa, à qual sempre voltava,
desapontado, pois todos eles, apesar de estarem à testa de mosteiros ou
instituições religiosas, não conseguiram satisfazer-me. De filosofia, sim, aprendi
o quanto quis, mas sobre suas experiências íntimas, nada. A maioria não fazia
outra coisa senão repetir o que estava escrito nos livros, mas para guiar-me nas
práticas espirituais, mostravam-se totalmente incapazes. Ora! eu estava farto de
teorias; eram as práticas da Yoga que buscava! Cheguei a conhecer uns dez
desses instrutores, mas nenhum me parecia digno do nome de mestre. Não
desesperei; meu ardor juvenil entusiasmava-me cada vez mais e essas
decepções sucessivas aumentavam minha ânsia.

Cheguei à maioridade. Resolvi então deixar para sempre a casa de meus pais e
renunciar à vida mundana, para ir em busca do mestre, custasse o que custasse!
Parti. Já era a décima primeira viagem, ou peregrinação, como vocês prefiram.
Sempre andando, andando, até que um belo dia cheguei a uma grande aldeia
do distrito de Tanjore. Desci à margem do rio, para fazer minhas abluções
matinais, e depois fiquei vagando sem destino, ao longo da ribanceira.
Subitamente surgiu à minha vista um pequeno edifício de pedras vermelhas,
assemelhando-se a um templo em miniatura. Lancei um olhar ao interior, por
mera curiosidade, e parei surpreso, vendo um homem seminu, rodeado de
pessoas. Trajava uma espécie de cinta ou tanga, e todos o olhavam com
expressão de profundo respeito. Algo de misterioso, de venerável, emanava de
sua face. Fiquei parado à porta, mudo de admiração, como que fascinado. Logo
tinha a certeza de que os assistentes recebiam um ensinamento de grande valor
e tive a intuição clara de que esse homem não era um pedante recheado de
teorias, mas desta vez era um Yogue verdadeiro, um autêntico mestre! Por que
tive eu essa impressão não lhes sei dizer.

Bruscamente o Yogue voltou o rosto para a porta, nossos olhares se


encontraram e eu, obedecendo a um irresistível impulso, entrei no interior do
templo, andando em direção dele. O Yogue cumprimentou-me afetuosamente,
convidou-me a sentar e disse:

— Afinal, você chegou! Há seis meses que uma instrução me foi transmitida para
recebê-lo como discípulo.

Exatamente seis meses se tinham passado desde que deixara a casa. Assim
encontrei meu mestre. Em seguida acompanhei-o por toda parte, algumas vezes
à cidade, outras às profundezas da mata ou selva agreste e, a partir desse
momento, comecei a fazer rápidos progressos no caminho da Yoga. Em breve
havia razão de sobra para considerar-me satisfeito, pois meu mestre era um
Yogue de alta experiência, embora adotasse o método chamado Controle do
Corpo.

Existem de fato vários sistemas de Yoga, diferenciando-se entre si por suas


doutrinas e práticas, porém o sistema que me foi transmitido é o único que, em
primeiro lugar, tende a controlar o corpo e, em seguida, a mente. O controle da
respiração faz parte do seu ensinamento; uma vez jejuei quarenta dias,
preparando-me para ser digno de receber um dos poderes da Yoga.

Assim imaginem a minha estupefação quando, um dia, meu mestre mandou


chamar-me e disse:

— A vida da renúncia total ao mundo ainda não é para você. Volte para os seus
e retome as atividades normais; você se casará e terá um filho. Quando atingir
trinta e nove anos, certos sinais lhe serão dados pelos quais você terá liberdade
de ação e, se quiser retirar-se então, novamente, do mundo, voltará à selva e
praticará a meditação, até chegar ao ideal que se propõe todo verdadeiro Yogue.
Poderá então voltar a mim, eu o esperarei:

Obedeci e voltei à minha cidade natal. Casei-me com uma moça fiel e devotada
que me deu um filho, exatamente como meu mestre me havia predito, mas minha
esposa morreu. Pouco tempo depois meus pais faleceram; então compreendi, e
deixei mais uma vez minha cidade para vir para cá, onde moro na casa de uma
viúva idosa, conterrânea minha, que me conhece desde o berço; ela toma conta
da casa e, como a idade fê-la discreta, deixa-me viver em paz a existência
reservada que nossa regra nos impõe.

Brama cala-se. Tão impressionado fico, que não me atrevo a formular novas
perguntas. Depois de um curto silêncio, o Yogue se levanta e começa a andar a
passos lentos na direção de sua morada. O Brâmane e eu seguimo-lo.

Passamos duas ou três horas em agradável passeio através de lindos bosques


de altas palmeiras, ao longo das margens do Adyar, o rio brilhando ao sol. Os
pescadores chafurdam na água, pois eles não pescam com barcos, nem na beira
do rio, mas entram até à cintura na água, à moda tradicional do país. Afinal,
avistamos as primeiras moradias dos pescadores, pobres mas pitorescas. Para
animar a paisagem, pássaros de brilhantes plumagens escrevem arabescos
acima do rio; uma brisa leve e perfumada sopra do mar e nos acaricia o rosto.

Sinto-me triste por ter que deixar o passeio pelas margens, para tomar a
poeirenta estrada na primeira encruzilhada do caminho. Ao nosso lado passa
uma vara de porcos conduzida por uma mulher humilde de cabelos grisalhos,
que distribui golpes com um pedaço de bambu nos animais que se afastam do
grupo.

Brama se volta para despedir-se. Expresso-lhe meu desejo e minha esperança


de revê-lo. Ele consente. Estimulado, pergunto-lhe se pode dar-me a honra de
sua visita, e para grande surpresa do meu companheiro, o Yogue agradece e
promete visitar-me nessa mesma noite.

* * *

À tardinha espero a chegada do Brama com a impaciência que bem se pode


adivinhar. As perguntas que tenciono fazer-lhe acumuIam-se-me no cérebro,
porque o pouco que ele me havia dito de sua vida deixara-me perplexo e excitara
a minha curiosidade.

Quando o criado vem avisar-me de uma visita, desço rapidamente os quatro


degraus de minha varanda e levanto as mãos, juntando as palmas, em sinal de
cumprimento. Conheço o simbolismo oculto nesse gesto, que diz: “Minha alma
e a tua são uma só”. O ocidental, o acharia esquisito, ainda que seja um simples
substituto do nosso aperto de mãos; no entanto, agrada ao hindu, principalmente
quando vem de um europeu. Com essa saudação procuro expressar minhas
boas intenções, esforçando-me sempre em respeitar os costumes do país, todas
as vezes que tenho conhecimento deles. Não pela idéia de tornar-me nativo, mas
por cortesia, sabendo que se precisa tratar o próximo como se quer ser tratado.

Brama, segue-me; entramos na sala, e ele imediatamente se acocora no chão,


com as pernas cruzadas.
— O senhor não prefere o divã? pergunto, seria mais cômodo. Não, ele prefere
sentar-se nos ladrilhos (não se conhecem assoalhos na Índia).

Para agradar Brama, ofereço-lhe uma pequena refeição, que ele aceita e toma
em silêncio. Ao terminar, sinto-me na obrigação de falar-lhe um pouco de mim,
nem que seja para justificar minha brusca intromissão na sua vida, e conto-lhe
resumidamente o estranho entrechoque de imprevistas coincidências que me
levaram à Índia. Quando acabo de falar, Brama, até então reservado, levanta-
se, pôs-se diante de mim e coloca, amistosamente, a mão no meu ombro.

— Como me alegra ouvir que há realmente homens como o senhor, no Ocidente;


o senhor não perdeu seu tempo e vai aprender muito. Este é um dia feliz para
mim, porque o destino aproximou nossos passos; pergunte-me o que quiser;
terei a máxima satisfação em responder-lhe, na medida do possível, até onde
meu juramento permita.

Que palavras de bom presságio! Pergunto-lhe então sobre a natureza, a história


e a finalidade exata da sua Yoga. Ele começa:

— Quem poderá dizer de que remoto passado, nos vem este sistema chamado
Controle do Corpo, o objeto dos meus estudos? Os textos sagrados dizem que
foi revelado pelo deus Siva ao sábio Gheranda; o sábio Marteyanda colheu a
doutrina dos lábios de Gheranda e por sua vez ensinou-a aos discípulos que a
transmitiram, inalterada, através de milênios, até nós. Quantos foram os milênios
não o sabemos, nem há o menor interesse em sabê-lo. Naqueles tempos
imemoráveis, a Humanidade já era de tal maneira decaída, que os deuses
precisavam dar um meio de salvação espiritual através de uma técnica que se
referisse exclusivamente ao corpo. Esta Yoga não era compreendida senão por
poucos adeptos que se haviam aprofundado na doutrina; o vulgo possui hoje, a
seu respeito, idéias completamente errôneas. Como, lamentavelmente, esses
adeptos tornam-se cada vez mais raros, as mais estúpidas e distorcidas práticas
são atribuídas, ao nosso sistema, sem o menor desmentido. Vá a Benares, e o
senhor verá um homem que passa dias sentado e noites deitado sobre um leito
crivado de pregos, ou um outro com o braço levantado, já meio atrofiado pela
posição, e as unhas crescidas de várias polegadas. Dirão ao senhor que esses
homens praticam a Yoga; entretanto, isso não é a verdade, pois tais homens
somente a desonram! O nosso objetivo não é torturar o corpo, só com o fim de
pasmar o público. Esses ascetas são pobres diabos que ouviram falar alguma
coisa de nossos métodos e, nada sabendo da doutrina, nem da finalidade da
Yoga, deformam as práticas e usam-nas contra a natureza e o bom senso. No
entanto, gozam de veneração da multidão simplória que lhes distribui alimentos
e dinheiro.

— Serão eles tão culpados, se os verdadeiros Yogas são muito raros hoje e
mostram-se tão avaros de seus segredos? Não é natural que tais equívocos se
tornem inevitáveis?
Brama dá de ombros e um leve sorriso de compaixão lhe passa pelos lábios.

Julga o senhor que um Rajá colocaria suas jóias na estrada para uma exibição
pública? Não, ele as conserva escondidas na câmara do tesouro, no fundo do
seu palácio. Ora! qual é o tesouro que possa valer nossa ciência? Vamos então
expor deliberadamente no mercado as jóias mais preciosas que temos? Aquele
que aspira possuí-las, que se dê também ao trabalho de buscá-las. É o único
caminho, mas é o certo. Nossos textos sagrados não se cansam de repetir que
se guarde segredo, e nossos mestres revelam os mais importantes
ensinamentos somente aos discípulos comprovados, que conviveram com eles
por muitos anos. Nossa doutrina é a mais secreta, precisamente porque é cheia
de perigos, não somente para os discípulos, mas também para os profanos.
Avalie então se, nessas condições, estou autorizado a revelar-lhe algo mais do
que os rudimentos da doutrina, e mesmo esses com extrema prudência?

— Começo a perceber...

— No entanto — continuou Brama — há um lado de nossa filosofia de que


poderia falar-lhe mais abertamente; trata-se do método pelo qual fortalecemos a
vontade e enrijecemos o corpo dos neófitos, de maneira a torná-los capazes de
iniciar as práticas mais difíceis da verdadeira Yoga.

— Oh! Isso interessaria ao Ocidente!

— Temos vinte exercícios corporais — continua Brama — que têm a finalidade


de fortalecer diferentes partes do corpo e dos órgãos, como também a de curar
ou antecipar a cura de certas doenças. Uns consistem em posições que fazem
pressão sobre certos centros nervosos que afetam, por sua vez, certos órgãos
cujo funcionamento é defeituoso, ajudando, assim, a restabelecer o corpo
afetado.

— Usam vocês também remédios? pergunto.

— Recorremos, ocasionalmente, a certas ervas colhidas na lua crescente, mas


temos quatro exercícios para o primeiro trabalho de corpo em perfeita saúde. Em
primeiro lugar aprendemos, em quatro movimentos, a arte do repouso para
acalmar os nervos; em segundo, aprendemos a arte de ficar sentado, em
exercício que apenas copia as posições naturais que o animal toma em repouso;
em terceiro lugar, purificamos o corpo por métodos que parecerão a vocês
ocidentais, esquisitos, sem dúvida, mas cujos efeitos são excelentes. E, por fim,
praticamos a arte de respirar para obter o controle da respiração.

— Poderia o senhor ensinar-me alguns desses exercícios? pergunto com


interesse.

— Não há nenhum segredo neste que lhe vou mostrar, responde Brama,
sorrindo.
— Comecemos, então, pela posição de repouso; neste ponto temos muito que
aprender do gato. Um dia o mestre trouxe um gato e fez-nos observar a graça e
a perfeição do repouso neste felino especialmente quando a sesta do meio-dia
convida ao sono, ou quando ele fica em expectativa diante dos movimentos de
um rato. Nessas ocasiões o gato oferece um perfeito exemplo de repouso e
absorção total colhendo e armazenando toda e qualquer parcela de energia. O
senhor pensa que sabe descansar, mas garanto-lhe: o senhor não o sabe.
Quando sentado na cadeira, fica o senhor balançando-se de um lado para o
outro, mexendo as pernas, com um corpo continuamente em movimento; o
senhor tem aparência de repouso, mas seu espírito está ativo, com um
pensamento a puxar outro, no seu cérebro que não descansa. O senhor pode
chamar a isso repouso? Ou será apenas uma forma de atividade atenuada?

— Confesso que nunca me havia ocorrido essa idéia.

— Os animais sabem descansar, todavia poucas pessoas possuem essa arte. E


isso acontece porque o animal é guiado pelo instinto, que é a voz da natureza,
enquanto que o homem é levado pela inteligência. Por haver perdido o controle
do seu cérebro, de seus nervos e do seu corpo, o homem não sabe mais
repousar realmente.

— Mas como se pode remediar, então?

— Em primeiro lugar é necessário aprender, ou reaprender, a sentar-se à


maneira oriental, porque as cadeiras podem ser muito boas no Ocidente, porém
o senhor não deve usá-las mais, no período preparatório da Yoga. A nossa
maneira de sentar proporciona o verdadeiro descanso. Depois do trabalho ou
marcha prolongada restabelece a calma no corpo inteiro. O meio mais fácil de
aprender é colocar um pequeno tapete ou esteira no chão do seu quarto e sentar-
se o mais comodamente possível, apoiando as costas contra a parede; ou
colocar a esteira no meio do quarto, apoiando-se contra um divã ou uma poltrona
qualquer. Isto feito, dobre as pernas, os joelhos lhe servem de apoio; cruze os
pés; evite todo o esforço e afrouxe os músculos. Eis aí o seu primeiro exercício.
Fique sentado nessa posição, dando ao corpo um relaxamento total, diminua a
respiração, afaste de sua mente toda preocupação material e concentre-se sobre
um objeto agradável, como, por exemplo, uma bonita paisagem ou uma flor.

Imediatamente deixo a cadeira e sento no chão, em frente a Brama, na posição


descrita, que não é outra senão a dos alfaiates dos tempos passados, em nosso
país.

— Bem; executou-a sem dificuldade — observa Brama — mas muitos ocidentais


a achariam incômoda por falta de hábito. Todavia, há uma falha na sua
execução: o senhor deve endireitar sua coluna vertebral, ela está curva. Agora
vou-lhe mostrar um outro exercício.
Brama levanta os joelhos à altura do queixo, conservando os pés cruzados, mas
afastados do tronco, fechando as mãos sobre os joelhos.

— Esta posição é muito repousante, depois de se ter ficado longo tempo de pé.
Descarregue o mais possível o peso do corpo na parte posterior. Pratique esse
exercício durante alguns minutos toda vez que se sentir cansado; ele
proporciona uma ação calmante a importantes centros nervosos.

— Realmente os acho muito simples.

— Para praticar a arte do repouso, evita-se precisamente tudo o que é


complicado, pois os exercícios mais fáceis são os que dão os melhores
resultados. Agora deite-se de costas, as pernas esticadas, os pés voltados para
os lados, as mãos abertas ao lado do corpo; relaxe todos os músculos, feche os
olhos, descarregue todo o peso no chão. Este exercício não deve ser feito na
cama, onde a coluna vertebral nunca pode ficar completamente reta. Coloque
uma esteira nos ladrilhos e deite-se sobre ela; nessa posição as forças benéficas
da natureza vão concorrer para seu repouso. Com a prática, o senhor conseguirá
ficar em qualquer dessas posições uma hora, ou mais, se assim lhe aprouver;
elas o livrarão da tensão muscular causada pela fadiga, acalmando-lhe os
nervos. O repouso dos músculos é essencial e antecipador do repouso da mente.

— Em suma, seus exercícios consistem em sentar-se quieto, de uma forma ou


de outra!

— E pensa o senhor que isso não tem valor? Vocês ocidentais vivem em
constante atividade, mas isso implica em desprezar o repouso? O descanso dos
nervos, então, nada significa? O repouso é a base da doutrina da Yoga, mas se
nós precisamos dele, o seu agitado mundo ocidental tem muito mais
necessidade ainda do que nós.

— Neste ponto não estou longe de dar razão a Brama.

— Esses ensinamentos são suficientes por hoje. Tenho que ir-me embora.

Agradeço ao ermitão e peço-lhe que continue as aulas.

— O senhor me encontrará amanhã de manhã, à margem do rio.

Pondo seu xale nos ombros, ele junta as palmas das mãos em sinal de
despedida e afasta-se, rapidamente, deixando-me perplexo pela interessante
entrevista, tão bruscamente interrompida.

* * *

Voltei a encontrar o Yogue em várias ocasiões. Como ele já me autorizara,


interrompo-o com prazer nas suas perambulações matinais, mas fico mais
entusiasmado quando o convenço a passar as noites em casa, pois essas horas
são extremamente proveitosas, tanto para mim quanto para o progresso da
minha investigação, visto que o Yogue externa suas confidências com maior
prodigalidade sob a suave luz do luar do que nas horas ardentes de sol.

Um dia faço-lhe uma pergunta sobre um ponto que desde o início excitava minha
curiosidade. Eu sei que a raça hindu tem pele escura, azeitonada, mas a pele do
Brama é negra. Por quê? indago.

— É simples. Sou originário de um povo indígena, considerado autóctone da


Índia. Há vários milênios, quando os invasores arianos subiram as montanhas,
ao descer para a planície chocaram-se com os drávidas, forçando-os a recuar
para o sul. Os drávidas formaram até hoje um povo à parte, exceto quanto à
religião, que assimilaram dos seus conquistadores. O sol tórrido dos trópicos
pigmentou-lhes a pele, o que faz crer, a certos etnologistas, que eles descendem
de alguma tribo africana. Como na época longínqua em que eram os donos
absolutos do país, os drávidas usam ainda hoje os cabelos amarrados atrás da
cabeça e falam dialetos dos quais o mais importante é o tâmil.

Brama está convencido de que os conquistadores da Índia adquiriram de sua


raça, além de muitas outras coisas, o conhecimento da Yoga, porém os hindus
cultos, aos quais indaguei sobre o assunto, acharam tais informações absurdas.
Deixo então aos outros o trabalho de estudarem o problema.

Como não tenho intenção de escrever uma tese sobre cultura física dos Yogues,
restrinjo-me apenas a falar aqui de alguns exercícios que parecem ocupar uma
parte considerável da doutrina da Yoga. As vinte posições que me demonstrou
Brama à sombra das palmeiras, ou no ambiente mais prosaico da minha casa,
necessitam de tais contorções que não podem deixar de parecer, para um
ocidental comum, ridículas ou impossíveis, ou ambas as coisas, às vezes.

Uns exercícios consistem em balançar-se sobre os joelhos com a planta dos pés
virada para cima, ou balançar o corpo nas extremidades dos dedos. Outros, em
levar os braços para trás das costas, abraçar o corpo, e voltar as mãos para
frente; ou entrelaçar todos os membros numa espécie de nó complicado. Há
ainda uma outra, em que se põem as pernas em torno do pescoço e sobre os
ombros, parecendo verdadeiras acrobacias. No quinto grupo de exercícios, tem-
se que voltar o tronco para trás, para em seguida tomar as atitudes mais
extravagantes e impossíveis de ser executadas por homem comum. Ao ver
Brama fazer essas poses, começo a ter uma vaga noção das dificuldades da
Yoga.

— Existem muitas dessas posições? pergunto, curioso.

— Oitenta e quatro — responde Brama, mas eu conheço apenas sessenta e


quatro das práticas chamadas Controle do Corpo. Ao falar, ele toma uma das
posturas descritas, tão facilmente quanto eu ao sentar-me numa poltrona,
posição, aliás, que é uma das suas favoritas. Não a acho difícil, mas que é pouco
confortável é certo! A perna esquerda fica dobrada até tocar a virilha com o
calcanhar, e o pé direito, que é posto em baixo do corpo, sustenta a maior parte
do seu peso.

— Qual é a utilidade dessa postura? pergunto novamente.

— Acompanhada de certos exercícios respiratórios, fará o Yogue rejuvenescer-


se.

— E os exercícios respiratórios?

— Isso não me é permitido revelar.

— Mas, enfim, qual é a utilidade de tudo isso?

O simples fato de ficar sentado ou em pé, durante um tempo determinado, em


certas posturas, pode parecer de ínfima importância: no entanto, a concentração
da vontade exigida pelo exercício, quando bem executado, desperta em nós as
forças latentes, forças essas que fazem parte dos segredos da natureza. Elas
serão totalmente desenvolvidas, quando acrescidas dos exercícios respiratórios,
pois a respiração possui valores específicos inestimáveis. Despertar essas
forças é a verdadeira finalidade das práticas. Temos também uns vinte
exercícios, especialmente destinados a prevenir e a curar certas doenças, ou
ainda a livrar o corpo de suas toxinas. Não é já alguma coisa? Outras posições
têm por objeto ajudar-nos a dominar nossos próprios sentidos, a mente e a alma,
pois é um fato sabido e comprovado que o corpo influencia os pensamentos,
tanto quanto o pensamento age sobre o corpo. Em graus mais adiantados da
Yoga, quando se mergulha, durante horas, em êxtase místico, essas posições
ajudam o aspirante e impedem a invasão de pensamentos alheios, fortificando-
o no seu afã espiritual. Acrescente-se a tudo isso o tremendo desenvolvimento
da força de vontade, que esses exercícios proporcionam a quem os pratica com
perseverança, e o senhor começará a compreender a virtude de nossos
métodos.

— Mas por que todas essas contorções?

— O senhor deve saber que os centros nervosos estão distribuídos por todo
nosso corpo, e cada posição afeta diretamente um centro nervoso particular.
Pelo influxo nervoso podemos influenciar o funcionamento dos órgãos internos,
bem como a evolução dos nossos pensamentos. Esses movimentos de torções
permitem-nos ativar certos centros que não podem ser atingidos de outra
maneira.

A luz começa a brotar na minha mente, a respeito dos princípios dessa estranha
cultura física da Yoga. Seria interessante confrontá-la com o nosso sistema
ocidental.
— Não conheço os vossos métodos ocidentais, responde Brama, mas pelo que
vi em Madras, quando os soldados brancos treinavam, creio ter compreendido a
finalidade dos seus monitores. Parece-me que eles visavam, antes de tudo,
fortalecer os músculos porque, suponho, é à atividade e ao trabalho físico que
vocês dão maior importância. E por isso preocupam-se, sobretudo, com os
movimentos do corpo, gastando assim grande parte de energia, esperando obter
em troca maior eficiência em todos os setores de trabalho. Não duvido da
excelência de tais métodos, cuja finalidade só é útil em vossos países
setentrionais.

— Qual é a maior diferença que o senhor notou?

— Nossos exercícios, em realidade, são apenas as poses e não exigem nenhum


movimento, uma vez a pose tomada. Ao invés de procurar um suplemento de
energia, preocupamo-nos mais com a faculdade de resistência. Qual é a utilidade
de desenvolver os músculos? Importa menos, ao nosso ver, do que a força que
os move. Assim, quando lhe digo para sustentar o peso do corpo sobre os
ombros, de uma certa maneira, o senhor está dirigindo o fluxo do sangue ao
cérebro, limpando-o e acalmando os nervos; resultado dessa prática manifesta-
se na cura de certas debilidades orgânicas. No Ocidente, se tiver vontade,
poderá o senhor repetir o exercício várias vezes, às pressas. Chegará talvez a
fortalecer os músculos que participam dessa ginástica, mas o senhor não obterá
o mesmo benefício que o Yogue, porque este o executa da maneira como lhe é
prescrita.

E como o executa o Yogue?

— Lentamente, pausadamente, aplicando na execução toda sua atenção,


mantendo pacientemente a posição tomada, durante alguns minutos. Antes, olhe
e repare como executo esta posição em que participa o “corpo todo”; aliás é
assim que nós denominamos.

Brama deita-se de costas, as pernas juntas, as mãos ao longo do corpo, as


palmas viradas para o chão. Levanta as pernas esticadas até formarem um
ângulo de sessenta graus; em seguida, com os cotovelos apoiados no chão,
levanta as costas com as mãos. Nessa posição, o corpo do Brama fica
completamente no ar; o tronco e as coxas verticais, o peito tocando o queixo, as
mãos servindo-lhe de apoio, seguram o tronco. Todo o peso do corpo repousa
nos ombros e na nuca. Ficando cinco bons minutos nessa posição, o Yogue
levanta e explica os benefícios oriundos dessa pose:

— Na posição normal, o sangue é levado para o cérebro pelo esforço do coração,


que trabalha como uma bomba, enquanto que nesta postura, o sangue aflui para
o cérebro só por efeito da gravidade. O benefício se manifesta pela influência
calmante sobre o cérebro e os nervos; para os intelectuais, cientistas e
estudantes, sua prática traz alívio imediato nos casos de esgotamento cerebral.
E não é a sua única virtude, pois também fortalece os órgãos sexuais, mas é
eficaz somente quando executado com precisão e não às pressas, como tudo o
que vocês fazem no Ocidente.

— Pelo que pude compreender, o senhor quer dizer que as diversas posturas da
Yoga, quando firmam o corpo do homem imóvel, proporcionam-lhe o estado de
equilíbrio e de tranquilidade, enquanto que nossos exercícios, pela sua violência,
deixam-no ainda mais agitado?

— É exatamente — reafirma Brama.

Um dos exercícios que escolhi do seu repertório, talvez seja mais fácil de
compreender. Nessa postura, o Yogue, sentado com as pernas esticadas,
levanta os braços acima da cabeça curvando as primeiras falanges dos dedos
formando um gancho, avança o tronco para frente, faz expiração e agarra os
dedos dos pés com os dedos, assim curvados; depois, lentamente inclina a
cabeça até ficar entre os braços estendidos, com a testa tocando as coxas.
Guarda essa curiosa posição alguns minutos, para voltar à atitude inicial.

É difícil obter êxito na primeira tentativa — objeta Brama — deve-se aproximar


mui lentamente a cabeça dos joelhos. Talvez tenha que repetir o exercício várias
semanas antes de sair-se bem, mas uma vez dominada a posição, o senhor
poderá repeti-la durante anos. Saiba que esse exercício fortifica a coluna
vertebral e, agindo sobre ela, alivia os distúrbios gástricos, nervosismo e tem
efeito maravilhoso sobre a circulação sanguínea. No exercício seguinte, Brama,
sempre sentado, dobra e cruza as pernas, com as plantas dos pés tocando as
nádegas; deixa cair lentamente o tronco para trás, até que os ombros toquem o
chão. Cruzando os braços, põe cada mão no omoplata oposto, as mãos assim
cruzadas. Essa postura, acho-a graciosa e Brama conserva-a algum tempo.

— Os centros nervosos do pescoço, dos braços e das pernas são


favoravelmente afetados por essa posição, que também influi e beneficia o tórax
— explica Brama.

O inglês comum, que possui uma errônea capacidade, aliás hereditária, para
considerar o hindu como MINUS HABENS, como um produto enfermiço,
resultante do sol ardente dos trópicos e da subnutrição secular, teria uma grande
surpresa se conhecesse na Índia a existência de um método de cultura física tão
sabiamente elaborado, desde os tempos mais remotos.

Nossos métodos ocidentais já adquiriram, de fato, indiscutível valor prático, e


isso ninguém poderá negar. Mas poderemos daí deduzir que nossos métodos
sejam perfeitos? E a última palavra já foi pronunciada no campo da cultura física,
da profilaxia e da terapêutica? Quem sabe se o Ocidente, aplicando seus
métodos de investigação científica, não conseguiria tirar do ensino tradicional da
Yoga, doutrina na aparência caduca, as noções capazes de enriquecer nossos
conhecimentos do corpo humano, o método que nos faria dar um grande passo
à frente, encaminhando-nos à vida sadia?

Não obstante, é preciso reconhecer que embora uma dúzia dessas posturas seja
bastante fácil e valha a pena ser estudada e praticada, as outras setenta e tantas,
cada uma mais difícil e mais extravagante do que a outra, só poderiam ser
tentadas por alguns entusiastas ainda jovens e flexíveis.

Brama concorda.

— Durante doze anos, rigorosamente, cada dia pratiquei os exercícios e só


assim consegui dominar a sessenta e quatro asanas, como nós as chamamos,
e que hoje pratico. E houve para mim uma boa oportunidade de começar jovem
ainda, pois o homem maduro não poderá iniciar essa Yoga sem perigo. Com a
idade, os músculos e ossos não podem ser movimentados sem dor; no entanto,
com perseverança o homem maduro também pode obter resultados
surpreendentes.

— Eu não duvido, porém não é menos certo que para tornar flexíveis as
articulações e os músculos são necessários anos de prática contínua; os
acrobatas chegam a um bom resultado treinando desde a infância. Torna-se
evidente que os Yogues devem começar as práticas das asanas antes do fim do
seu desenvolvimento físico ou, pelo menos, antes dos vinte e cinco anos. Mas
duvido que um ocidental, chegado à idade adulta, possa começar essa ginástica
sem o risco de quebrar os ossos.

Brama não é totalmente desta opinião; sustenta que um esforço contínuo, na


maioria dos casos deve levar ao êxito, admitindo somente que, para um
ocidental, a tarefa seja mais difícil. Acrescenta ainda:

— Nós, orientais, temos a vantagem de estar acostumados, desde a infância, à


posição elementar de cruzar as pernas; o cruzamento das pernas constitui a
base de diferentes posturas e nós a consideramos como particularmente
benéfica. O senhor quer ver? Brama toma a mesma pose que vemos nas
inumeráveis representações de Buda, e senta-se com o corpo perfeitamente
reto, dobra primeiro a perna esquerda de maneira a colocar o pé esquerdo sobre
a coxa direita e o pé da perna direita sobre a coxa esquerda, a planta dos pés
fica virada para cima, mantendo o tronco e a cabeça eretos. Esta posição é
equilibrada e bonita. Vale a pena experimentá-la!

Tento imitar Brama e... ai! A recompensa do meu esforço é uma dor violenta no
tornozelo. Decididamente isso não me é possível! Tantas vezes admirei a graça
desembaraçada dos Budas, nas vitrinas das lojas de antiguidade no meu país,
e quando eu tento fazer a pose que parece tão natural, meu fracasso é
completo!...

Brama anima-me com seu sorriso, mas prefiro adiar a experiência.


— Suas articulações já estão rígidas, esfregue-as com azeite. O hábito de
sentar-se nas cadeiras deu a seus membros uma conformação da qual eles não
podem livrar-se sem esforço. Alguns minutos de prática diária resolverão a
dificuldade.

— Tenho minhas dúvidas se poderei fazê-lo um dia...

— Não ache impossível! Talvez leve algum tempo, mas tenho certeza que o
senhor chegará ao fim. O êxito vem sempre quando menos se espera!

— Mas isso é uma verdadeira tortura! 2

2. Obcecado pela harmoniosa postura de Buda, consegui afinal o êxito, depois de oito meses de
perseverantes esforços. Depois passei a usá-la naturalmente.

— A dor vai diminuindo, decrescendo, até o senhor conseguir essa pose sem o
menor sofrimento.

— É possível. Mas, francamente, isso valerá a pena?

— Se vale! A asana do Lótus, como nós a chamamos, é tão importante, a nosso


ver, que nenhum dos novatos está excluído de sua prática. É uma atitude do
Yogue em meditação; ela proporciona ao corpo uma base firme, evitando uma
queda eventual, coisa possível de acontecer ao se entrar inopinadamente em
êxtase, embora isso dependa, de modo geral, da própria vontade do adepto.
Repare bem: na asana do Lótus, o cruzar das pernas dá ao corpo uma base
sólida, o Yogue sente-se seguro, senhor de si, enquanto que com um corpo mal
sentado a mente se turva, causando irritação. A asana do Lótus ajuda-nos,
ainda, a adquirir a força de concentração que representa para nós uma conquista
inestimável. É nessa mesma posição que praticamos, de preferência, os
exercícios respiratórios, pois a junção das duas práticas reanima a chama
adormecida do espírito. Quando essa chama invisível desperta, o sangue
aquecido corre com um vigor renovado e a força nervosa aflui a certos centros
importantíssimos. Ao terminar nossa entrevista, sinto-me satisfeito. Brama
esclareceu-me suficientemente, na sua demonstração de contorções e atitudes
convulsivas, de modo a não restar a menor dúvida sobre o seu completo domínio
do corpo.

Qual é o ocidental que possui uma dose bastante de paciência, de força de


vontade, de resistência e perseverança para chegar ao fim almejado, mediante
exercícios tão extravagantes? Qual é o ocidental que tem, pelo menos, tempo e
calma para executá-los? 3
3. É de meu dever avisar o leitor sobre o risco que corre ao querer experimentar a maioria dessas
poses. Um médico, com quem falei a respeito, afirmou que um tornozelo torcido, ou um tendão
luxado, são acidentes graves.
6
A Yoga que vence a Morte

Brama expressa-me o desejo de que lhe faça uma visita. Atualmente ele deixou
de morar em casa; fez um barracão no fundo do quintal para ter maior
independência, como me disse.

Uma tarde, com ansiedade que não escondo, faço-me anunciar. A casa fica no
fim de uma rua poeirenta e de aspecto pobre; paro um instante e fito as velhas
paredes caiadas de branco, de sobrado de madeira e janelão saliente, a lembrar
nossas moradas medievais.

Empurro a pesada porta e ouço o barulho dos gonzos ressoar por toda casa.
Uma mulher idosa, com sorriso maternal, aparece e, curvando-se várias vezes
ante mim, leva-me através de um corredor escuro até a cozinha que dá para o
quintal.

A primeira coisa que noto é um grande pé de fícus, cuja frondosa folhagem cobre
com sua sombra um velho poço. Do outro lado deste surge uma cabana, bem
perto da árvore, aproveitando também seu frescor. É uma construção leve, feita
de bambus, de vigotes, e coberta de palha.

A velha senhora, cujo rosto é tão escuro como o do Brama, está visivelmente
excitada e, em palavras desconexas, dirige-se, suponho, ao habitante invisível
da choupana. Uma voz sonora, bem conhecida, responde do interior; a porta se
abre lentamente, o Yogue aparece, e com viva satisfação introduz-me no interior.
Ele não fechou a porta, e a mulher fica na entrada algum tempo, o olhar preso
no meu, o rosto refletindo uma felicidade extática.

A choupana está quase vazia; vejo só um divã sem almofadas, que toma todo o
comprimento da parede do fundo, e num canto, um tamborete de madeira tosca,
coberta de papéis. Noto uma moringa de cobre amarelo, com água, suspensa
por meio de uma corda fixada a uma das vigas. Uma grande esteira trançada
cobre todo o chão de terra batida.

— Sente-se — diz Brama, mostrando a esteira. Não temos cadeiras para lhe
oferecer; queira desculpar. Acocoramo-nos então, Brama, eu e um jovem novato
que se ligou a mim e me serve de intérprete. Alguns minutos depois a mulher
sai, e volta com um bule de chá quente que põe sobre uma toalha, à guisa de
mesa, e torna a sair; reaparece com biscoitos e uma bandeja de cobre cheia de
frutas diversas do país.

Contudo, antes de começar essa frugal e agradável refeição, meu anfitrião


apanha uma coroa de flores amarelas e coloca-a no meu pescoço. Protesto
vivamente, pois sei que o hábito indiano manda reservar essa honra às pessoas
de destaque, e eu nunca tive a menor pretensão a ser classificado como tal.

— Meu irmão! exclama Brama sorrindo, você é o primeiro ocidental a visitar


minha casa e o primeiro a tornar-se meu amigo; honrando-o assim, não faço
nada mais do que exprimir a grande alegria que sinto, aliás, que nós sentimos,
a senhora e eu.

Começo a protestar de novo, mas ele não quer ouvir nada, forçando-me a ficar
com a grinalda de flores sobre meu casaco. Felizmente meus amigos europeus
não me vêem com esse adorno! Como haviam de rir...

Tomamos o chá e saboreamos as frutas, tagarelando; Brama me diz que


construiu essa casa e confeccionou a mobília com suas próprias mãos! Os
papéis, que ao primeiro relance vi sobre o banquinho, chamam minha atenção;
reparo que as folhas são cor-de-rosa, escritas com tinta verde. Brama passa-me
algumas, e nelas reconheço, facilmente, os caracteres do tâmil. Ao vê-las,
imagino quanta dificuldade encontrará aquele que desejar estudá-las.
Lamentavelmente, acrescenta Brama, os grandes clássicos da filosofia e da
literatura tâmil, que era uma língua literária há vários séculos, mas hoje não é
mais compreendida senão por alguns eruditos, substituíram essa forma arcaica
por um dialeto moderno, chamado alto tâmil, que é mais complicado para os que
o lêem, do que o dialeto inglês da Idade Média para um inglês de hoje.

— Escrevo essas folhas à noite — acrescenta Brama — às vezes são curtas


sentenças resumindo minhas experiências da Yoga, outras, verdadeiros poemas
nos quais deixo meu coração expandir-se à vontade, na devoção ao divino.
Alguns jovens que gostam de se dizer meus discípulos, vêm aqui para lê-las em
voz alta.

Enquanto fala, Brama apanha um rolo, artisticamente decorado, contendo


algumas folhas de papel cor-de-rosa escritas com tinta vermelha e verde,
amarradas por uma fita também verde. Sorrindo, estende-me o rolo:

— Escrevi isto em sua intenção.

Junto as palmas das mãos, agradecendo.

O jovem intérprete me informa que se trata de um poema composto de oitenta e


quatro versos, que começam e acabam pelo meu nome. Isso é mais ou menos
o que ele sabe me dizer; todavia se esforça e consegue traduzir algumas
palavras, acrescentando que o poema representa uma espécie de apologia, uma
mensagem pessoal dirigida a mim, mas que não é capaz de traduzir o alto tâmil,
em sua forma mais antiga.

Pouco importa! O presente encanta-me, como primeiro sinal de afeição que


recebo de um verdadeiro Yogue.

Após homenagear-me com sua presença, a velha senhora afasta-se, e nós


abordamos então assuntos mais sérios. Torno a voltar à questão dos exercícios
respiratórios, aos quais os Yogues dão tamanha importância, envolvendo-os,
porém, em tão absoluto segredo, Brama me interrompe, dizendo que não lhe é
permitido dar-me mais exercícios, por enquanto, mas pode me dar alguns
pormenores sobre a teoria da Yoga a esse respeito.

A natureza fixou em 21 600 o número de trocas respiratórias para cada homem,


no período que vai de um nascer do sol a outro. Uma respiração rápida,
barulhenta e agitada, acelera o ritmo cardíaco, e por conseguinte, encurta a vida.
Ao contrário, uma respiração lenta, profunda e calma, economiza e diminui o
trabalho do coração, prolongando-a. As respirações economizadas acumulam-
se e formam um imenso reservatório, do qual o homem se aproveita para usufruir
alguns anos suplementares da vida. Os Yogues respiram muito mais lentamente
do que o comum dos homens, sem que por isso se sintam mal.

— Agora, lamento, mas não vejo como poderei dar-lhe maiores esclarecimentos
sem transgredir os meus juramentos.

Sinto-me frustrado. Um conhecimento que com tanto cuidado deve ser mantido
em segredo, sem dúvida possui um valor inestimável. Se essa é a verdade,
compreende-se que os depositários de tamanho tesouro façam todo o possível
para protegê-lo dos profanos e dos curiosos. Se eu estou classificado entre
esses últimos, por que hei de teimar em querer saber mais? Brama interrompe
meus pensamentos:

— Nossos mestres possuem a chave do mecanismo respiratório; eles sabem


que a circulação do sangue e a respiração se acham em estreita conexão, como
também sabem que o espírito está em relação direta com essas funções. Assim,
possuem o segredo de despertar a consciência espiritual, controlando a
respiração, pois convém acrescentar que a respiração é apenas uma expressão
física de uma força sutil que é, de fato, o verdadeiro sustentáculo do corpo. Essa
força é precisamente aquela que se oculta, invisível, em todos os órgãos vitais.
Quando ela deixa o corpo, a respiração pára, e com isso sucede então o que nós
chamamos morte. O controle da respiração permite dominar, até certo ponto,
essa corrente invisível. Mas embora levemos ao extremo o controle do corpo,
até mesmo o controle dos movimentos do coração, não imagine por isso que
quando nossos sábios da antiguidade começaram a ensinar o nosso sistema,
tivessem em vista apenas o controle dos órgãos.
O que os antigos sábios pensavam ou queriam não me interessa no momento;
fico a pensar numa das últimas frases de Brama, e levado por intensa
curiosidade, pergunto:

— Você pode, realmente, controlar os movimentos do coração?

— Sim. Os nossos órgãos vegetativos, como coração, estômago, rins, podem


ser reduzidos a um certo grau de obediência.

— Mas como você consegue isso?

— Simplesmente por ação da vontade e exercícios respiratórios, em combinação


mútua. E saiba que esses exercícios são muito difíceis e fazem parte do grau
superior da Yoga; bem poucos são aqueles que conseguem executá-los
devidamente. Graças a todas as minhas práticas, cheguei a controlar os
músculos cardíacos, e agindo sobre o coração, consigo dominar também os
outros órgãos.

— Mas isso é verdadeiramente fantástico!

— Você acha? — Veja, ponha sua mão no meu peito no lugar do coração.

Dizendo isso, Brama toma uma pose esquisita, cerrando os olhos. Obedeço e
espero. Durante alguns minutos nada reparo de anormal; gradualmente, porém
sinto as batidas de seu coração diminuírem, e tornarem-se mais lentas, mais
lentas ainda e... um arrepio de pavor apodera-se de mim, quando sinto parar
completamente o seu ritmo cardíaco. O fenômeno dura mais de sete segundos.
Será uma alucinação? Apalpo-me, estou bem acordado, alerta como nunca.
Sinto um alívio quando as batidas do coração de Brama tornam a voltar,
aumentando o ritmo, como se o órgão renascesse, até voltar ao normal. Mas só
após alguns minutos o Yogue reabre os olhos, voltando do seu absorvimento.

— Você sentiu o coração parar?

— Sim, distintamente.

O que irá ele inventar ainda? pondero. De fato, como se tivesse lido meu
pensamento, Brama prossegue:

— Isso não é nada, comparado com que pode meu mestre, que é capaz de isolar
uma artéria e controlar o fluxo de sangue, parando totalmente a circulação;
cheguei a certo resultado neste sentido, mas não consigo fazer tanto quanto o
mestre.

— Você pode demonstrar-me? pergunto, ansioso.

O Yogue estende-me a mão, dizendo para tomar-lhe o pulso. Alguns minutos se


passam; aos poucos sinto nitidamente as pulsações diminuírem até parar por
completo. Espero, nervoso, que tornem a bater. Um, dois minutos escoam, dos
quais tenho consciência de cada segundo. Três minutos... três minutos e meio,
até que percebo um ligeiro retorno à vida. A tensão diminui e logo o pulso torna
a bater normalmente.

— É maravilhoso, digo involuntariamente.

— Isso não é nada, responde-me, sem a menor fanfarronice.

— Parece ser um dia de estranhos acontecimentos. Você pode mostrar-me mais


outras coisas?

Brama hesita, desta vez:

— Está bem, mas vai ser a última; depois disso você tem que se dar por
satisfeito. Agora vou suspender a respiração.

— Mas você pode morrer... exclamo, assustado; minha observação o diverte.

— Ponha sua mão sob minhas narinas.

Obedeço, hesitando. Sinto na pele da mão o sopro do ar exalado. Brama fecha


os olhos, imobilizando-se em rigidez de mármore, e parece estar se absorvendo
numa espécie de transe. Não tenho coragem de tirar a mão. Pouco a pouco o
sopro diminui, chega a ser quase imperceptível, até parar totalmente. Observo-
lhe as narinas, os lábios, os braços, o tórax, nenhum movimento, não vejo
nenhum sinal externo de respiração; mesmo assim, acho que estas não são
ainda provas absolutas e gostaria de ter outro comprovante. Não há um espelho
por ali; o que fazer? Percebo um cinzeiro de cobre polido, que pode servir para
a experiência. Seguro-o sob as narinas, passo-o diante dos lábios... nada,
nenhum empanamento, nenhum vapor turva a superfície do metal.

Parece-me impossível! Nesta casa singela, neste subúrbio pacato, encontrara


eu alguma coisa totalmente inédita, um fenômeno cujo mistério nossa ciência
será forçada a reconhecer um dia, querendo-o ou não, pois a evidência está
aqui, diante de mim, clara, deslumbrante, inegável! A Yoga não é um mito!

Finalmente Brama volta desse estado de aparente catalepsia; parece um pouco


cansado.

— Você está satisfeito? pergunta-me com um sorriso um tanto forçado.

— Mais do que satisfeito, porém renuncio a compreender.

— Também não tenho direito de explicar-lhe. A suspensão momentânea da


respiração é uma das práticas que faz parte do grau superior da Yoga. Para um
homem branco ela pode parecer uma loucura, mas para nós ela é da maior
importância.
— No Ocidente nos ensinam, porém, que o homem não pode viver sem respirar.
Acho que isso não é uma loucura.

— Certamente que não, mas também não é a verdade. Posso reter minha
respiração por duas, três horas, se assim me aprouver; tenho frequentemente
feito essa prática, e no entanto não estou morto, como vê! responde Brama
sorrindo.

— Não posso conter minha admiração. Você nada me pode explicar,


compreendo, mas talvez me possa dizer algo sobre a teoria em que se baseiam
suas práticas, sim?

— Pois não. Podemos tomar como exemplo, certos animais, e isto, como já lhe
disse, foi um dos métodos favoritos do meu mestre. Um elefante, que respira
muito mais lentamente do que um macaco, vive também muito mais tempo; o
mesmo acontece com certos grandes répteis, em relação ao cachorro. Parece
então que há uma conexão entre a função respiratória e a longevidade. Vamos
mais adiante. Encontram-se no Himalaia morcegos que dormem durante todo o
inverno; ficam meses assim, suspensos nas paredes das grutas da montanha, e
sua respiração conserva-se inteiramente parada até o despertar. Os ursos do
Himalaia, algumas vezes, durante o inverno, apresentam uma rigidez
cadavérica, sem nenhum sintoma da vida, e nos covis de certas regiões, também
do Himalaia, encontram-se ouriços-cacheiros que, quando não podem nutrir-se
durante o rigoroso inverno, dormem um sono profundo em que a respiração fica
totalmente suspensa. Por que então você acha impossível que o homem realize
aquilo que o animal faz normalmente?

— Tudo isso é muito interessante e maravilhoso, não há a menor dúvida, porém


menos convincente do que as suas demonstrações de há pouco.

Você compreende — digo eu — há em nós uma noção tão enraizada de que a


respiração é uma função essencial à vida, que não é tão fácil mudá-la nem
renunciar a ela, assim, de um momento para outro. Acho que nós ocidentais
jamais chegaremos a compreender que a vida possa continuar após a parada
da respiração.

— Nem por isso alguma coisa muda. A vida continua sempre, responde Brama;
a morte é apenas uma outra forma da existência.

— Em todo caso, você não pretende vencer a morte, creio eu?

— E por que não?

Brama fixa-me com o olhar estranho, sem todavia deixar de ser benevolente.

— A possibilidade que leio em você é a razão que me leva a revelar-lhe um dos


nossos segredos, mas com uma condição...
— Qual é?...

— Promete você não tentar a prática de outros exercícios, além desses que lhe
posso ensinar?

— Prometo.

— Então mantenha sua palavra! Você imaginava, até este momento, que a
respiração suspensa traz rapidamente a morte, não é?

— Sim, é claro.

— Pois bem. Você não acha, então, que no momento em que haja possibilidade
de retenção do alento no corpo, retemos nele a vida? E quando um dos nossos
adeptos consegue reter a respiração, não está retendo nele o fluido vital? Você
está seguindo meu raciocínio?

— Faço todo o esforço para isso, Brama.

— Imagine agora um adepto da Yoga que consiga reter sua respiração, não
apenas por algum tempo, mas durante meses e mesmo durante anos? Desde
que você admite que onde há o alento deve haver a vida, você terá que aceitar
que — nesse caso — surge uma possibilidade para os homens de prolongar a
vida à vontade, não é?

Fico atônito, atordoado; não sei mais o que dizer, nem se posso tachar tal
asserção de absurda. Na Idade Média, os nossos alquimistas já haviam
idealizado esse sonho; a morte os surpreendia, uns após outros,
invariavelmente, diante de suas retortas, nas quais eles buscavam o elixir da
longa vida.

Estará Brama abusando da minha ignorância? Não pode ser; ele não tem
intenção de iludir — é mais do que certo — não procurou a minha companhia e
nem faz questão de adquirir discípulos. Seria Brama um louco? Também não,
pois ele raciocina sobre todas as coisas com perfeita clareza. Abusa de mim,
simplesmente; alguma coisa me diz que não. Francamente, não sei o que
pensar...

— Você não está ainda convencido? diz Brama, rompendo minhas reflexões.
Você não ouviu falar de um faquir, que foi sepultado por Ranjie Singh, no túmulo
em Lahore? O enterro teve lugar na presença do último dos reis Sikhis e dos
oficiais ingleses; a sepultura foi vigiada por soldados, durante seis semanas, no
fim das quais, ao abrirem o túmulo, viram sair o faquir são e salvo. Você pode
tomar informações, pois me disseram que este fato foi objeto de um relatório que
se acha depositado nos arquivos do seu governo.

A explicação é simples: o faquir havia adquirido um absoluto domínio da função


respiratória e podia suspendê-la à vontade, sem o risco de morte. Aliás, nem era
um adepto da Yoga e, como também ouvi dizer, não gozava de boa reputação;
não era, portanto, uma pessoa particularmente recomendável; chamava-se
Haridas e morava no Norte do país. Então, se esse homem podia viver tanto
tempo num cubículo fechado sem respirar, o que pensa você que podem fazer
nossos mestres que não buscam a publicidade, nem fama, nem tampouco
dinheiro, e cujo desinteresse é indubitável e real. 1
1. Verifiquei esta história; o fato realmente se passou em Lahore, em 1837; o faquir Haridas foi
enterrado na presença do rei Ranjie Singh, de sir Claude Wade, do médico Honigberger e de
várias outras testemunhas; os soldados sikhs lhe faziam guarda dia e noite. O faquir foi
desenterrado quarenta e oito dias depois, vivo. Para mais pormenores consultar os arquivos de
Calcutá.

Profundo silêncio cai entre nós.

— Aliás, nossa doutrina — prossegue Brama, rompendo o silêncio —


proporciona-nos, além desses, ainda outros poderes não menos
surpreendentes. Mas quem, em nossa época de decadência, dar-se-ia ao
trabalho de empregar o esforço necessário para obter esses bens?

— Mas que quer você? Quando vivemos como nós, em turbulenta vida diária,
não sobra mais tempo para as atividades que não nos proporcionem lucro
imediato.

— É verdade, mas também por isso a senda do controle do corpo é hoje


apanágio de uns poucos. Você compreende agora porque os mestres da Yoga
se foram fechando em silêncio e segredo através dos séculos; compete aos
discípulos ir procurá-los.

* * *

De outra vez, é Brama que vem jantar em minha casa; terminada a refeição,
sentamo-nos na varanda suavemente iluminada pelo luar; eu, na poltrona, e
Brama acha a esteira mais cômoda. Ficamos alguns minutos em silêncio,
gozando o encanto da noite, mas obcecado pela lembrança de minha última
visita, volto a falar a respeito dos homens que riem da morte e nos quais não
posso acreditar.

— Por que não? — Brama faz sua pergunta favorita — Um dos adeptos da Yoga
do Domínio do Corpo vive na solidão das montanhas de Nilgiíris, no sul da Índia,
e nunca sai de seu retiro; um outro, no norte, mora numa caverna no Himalaia.
Você não encontrará jamais esses homens, pois eles desprezam todo o contato
humano; a existência deles é uma verdadeira tradição entre nós e, segundo se
diz, eles vivem há centenas de anos.

— E você realmente acredita nisso?

— Forçosamente, pois tenho como prova meu próprio mestre.


Esse mestre já me intrigava há dias, mas ainda não ousara indagar nada sobre
ele. Agora, pela intimidade que se criou entre nós, arrisco a pergunta:

— Brama, quem é seu mestre?

Constrangido, hesita um pouco, depois, com sua voz melodiosa, responde:

— No Sul, seus discípulos o chamam Swami Yerumbu, quer dizer o mestre das
formigas.

— Que apelido singular! exclamo sem querer.

— É por uma razão muito simples. Meu mestre ama as formigas e guarda sempre
um pacote de arroz reduzido a pó para nutri-las. Mas, no norte do país, nas
aldeias do Himalaia, onde ele permanece, às vezes, usa outro nome.

— E atingiu a perfeição dentro da Yoga?

— Sem a menor dúvida.

— E você acredita que ele vive há...

— Sim, há mais de quatrocentos anos.

Brama diz isso num tom de voz firme e com a maior naturalidade do mundo.
Fixando-me percebe o assombro no meu olhar. Depois de um prolongado
silêncio retoma:

— Muitas vezes ele falava de acontecimentos dos quais foi testemunha e que se
passaram sob o reinado dos imperadores mongóis. Ele me narrava mesmo
histórias que datam da época em que vossa Companhia das Índias se instalou
em Madras.

É difícil dar-se crédito a isso, sobretudo em se tratando de um cético da minha


espécie.

— Mas, Brama, qualquer escolar que aprendeu um pouco de história poderia


dizer tudo isso que seu mestre contou.

Brama fez como se não se ouvisse e prossegue:

— Meu mestre se lembra, perfeitamente, da primeira batalha de Panipate, e


nunca se esqueceu dos dias da batalha de Plassey, 2 como também lembro-me
de um dia tê-lo ouvido referir-se a um dos seus condiscípulos, Beshudananda,
então com oitenta anos, como se fosse uma criança.

2. Em 1526, as hordas bárbaras de Baber, descendentes de Tamerlan, chocaram-se em


Panipate com as tropas do rei de Agra. Quanto à famosa batalha do Plassey, em 1757, foi ela
que deixou a Índia sob a dominação inglesa.
Distingo muito bem, ao luar, a calma imperturbável com que são afirmadas essas
fantásticas asserções. Como poderia um cérebro ocidental, acostumado aos
métodos racionais da ciência moderna, endossá-las? Apesar de tudo, Brama é
um hindu e deve partilhar, sem dúvida, do gosto dos seus conterrâneos pelas
lendas mais absurdas. Qualquer discussão sobre o assunto seria inútil; assim,
deixo-o falar à vontade.

— Durante mais de doze anos meu mestre foi o conselheiro espiritual de um dos
antigos Marajás do Nepal, o Estado que fica, como você deve saber, entre o
Tibete e a Índia, e onde ele é conhecido e venerado pela maioria dos habitantes
da região. Eles o adoram como um Deus, e o mestre os trata como um pai trata
seus filhos. Ignora todo preconceito de castas, e não se alimenta de carne nem
de peixe.

— Mas, Brama, como pode um homem viver tanto tempo? A advertência


escapou-me involuntariamente.

Com o olhar perdido no espaço, como que esquecido da minha presença, Brama
prossegue:

— Existem três maneiras para alcançar a longevidade: a primeira consiste em


treinar todas as posições e praticar todos os exercícios respiratórios,
conjuntamente com as práticas secretas que constituem nosso sistema de
Controle do Corpo; essas práticas devem ser, bem entendido, levadas ao
extremo da perfeição, o que não é possível senão com o treinamento sob o
vigilante controle de um mestre, capaz de provar a sua teoria no seu próprio
corpo. A segunda maneira consiste em fazer uso regular de certas ervas raras,
conhecidas apenas por alguns dos adeptos que as colhem em segredo e as
guardam sob suas vestes, mesmo viajando; quando se aproxima o tempo de um
mestre deixar este mundo, ele escolhe entre seus discípulos aquele que julga
mais digno de lhe suceder e lhe revela o segredo dessas plantas. Este será, de
então em diante, o único conhecedor do segredo. A terceira é mais difícil de ser
explicada.

— Tente sempre, Brama.

— Você vai rir, talvez.

— Asseguro-lhe que não, pois tenho o maior respeito pelas suas revelações.

— Então escute:

Existe no cérebro humano uma pequena cavidade que é a sede da alma. 3 Uma
espécie de válvula protege a abertura da passagem. Na base da espinha dorsal,
nasce um fluido vital do qual já tivemos oportunidade de falar. O escoamento
constante desse fluido causa a velhice e a morte; seu controle é uma fonte de
vida. Quando o homem adquire absoluto domínio de si mesmo, ele pode então
começar a treinar esse controle por meio de certas práticas, só conhecidas pelos
mais perfeitos Yogues da nossa escola. Se ele consegue fazer subir esse fluido
invisível até a parte superior da coluna vertebral, então será preciso que se
esforce para concentrá-lo nessa cavidade do cérebro da qual já lhe falei. Torna-
se indispensável, porém, que um mestre o ajude a abrir essa válvula protetora.
Se ele encontrar um mestre capaz, esse fluido vital, ao penetrar na cavidade,
transformar-se-á em verdadeiro elixir de longa vida.
3. Suponho, sem ter certeza, que Brama se referiu à cavidade formada pelo encontro dos quatro
ventrículos cerebrais que se comunicam entre si.

Evidentemente esse empenho não é coisa fácil e o audacioso que a isso se


arriscar sozinho, concorre, indubitavelmente, para sua própria perda. Aquele que
for bem sucedido pode realizar, à vontade, as condições de uma morte aparente,
e assim triunfar sobre o poder da própria morte, quando ela vier buscá-lo.
Também pode escolher à vontade o momento de seu traspasse, em qualquer
época, e os exames mais rigorosos efetuados por médicos atestarão morte
natural. O Yogue que disponha desses três métodos pode viver, se isto lhe
convém, várias centenas de anos e, e ainda que venha a falecer, os vermes não
atacarão seu corpo que, imputrescível, pode desafiar os séculos.

Intimamente agradeço a Brama, mas, embora muito interessado, não estou


convencido. A anatomia ignora este fluido vital, e receio muito que essas
maravilhas só existam na imaginação fértil dessa boa gente que nos leva à idade
das bruxarias e do elixir da longa vida. No entanto, conforme testemunhei, o
controle da respiração e da circulação sanguínea são bastante convincentes
para provar que os poderes dos Yogues não são quimeras e que, por suas altas
faculdades, são capazes de realizações fabulosas, pelo menos aos olhos dos
não iniciados. 4
4. Todas essas afirmações são estupendas, tanto por si mesmas, quanto pela calma certeza com
que me foram reveladas. No entanto, no momento em que escrevo essas linhas, aparecem-me
como uma fantasmagoria, como algo de impossível, e quase cedo ao impulso de deixá-las em
silêncio, como já fiz com muitas outras coisas extraordinárias que vi e ouvi. Sei que os homens
com pretensão a intelectuais as tacharão de absurdas superstições asiáticas, e entrevejo seu
sorriso irônico ao lerem estas páginas. Mas se tomei a decisão de publicá-las, foi apenas por ter
sido estimulado por pessoas mais qualificadas do que eu e altamente capazes de julgá-las.

Sinceramente não sei o que dizer; guardo silêncio e controlo-me


cuidadosamente, para não deixar transparecer minha luta interior.

— Todos nós, evidentemente, queremos adquirir o poder de desafiar, assim a


morte — conclui Brama — mas não devemos olvidar que a aplicação desse
sistema é muito perigoso. Portanto não é de estranhar que nossos mestres
guardem em sigilo essas práticas que devem continuar rigorosamente secretas,
pois sempre nos recomendam silenciá-las e cuidá-las como o mais precioso
diamante.
— Então você não mas pode revelar?

— Aquele que deseja ser um adepto deve, primeiro, aprender a andar antes de
correr.

— Uma última pergunta Brama: onde vive seu mestre, atualmente?

— No Nepal, retirou-se para um templo, no coração das montanhas, na orla da


selva do Terai.

— Espera você que ele desça um dia ao vale?

— Como poderei adivinhar suas intenções? Ele pode demorar-se no Nepal ainda
por muitos anos, como pode também retomar suas peregrinações. Tem
preferência pelo Nepal, porque foi lá que nossa escola mais floresceu. Os ramos
da doutrina da Yoga diferem entre as escolas e a nossa, que é consagrada ao
domínio das funções corporais, a chamada Tantra, é mais facilmente aceita no
Nepal do que entre os hindus.

Brama recai no silêncio; seus pensamentos devem estar longe, certamente perto
da enigmática figura do seu mestre venerado.

Oh! se o que acabo de ouvir não é fruto de uma vã quimera, que novo e
maravilhoso horizonte se abrirá sobre o mistério e sobre o nosso sonho de
imortalidade!

* * *

Se não moderar o impulso da minha pena, jamais chegarei a concluir este


capítulo. Passo então sem mais divagações à última dessas memoráveis
entrevistas, ocasionadas pelo encontro com o anacoreta de cinco nomes, meu
bom amigo Brama.

A noite cai bruscamente, sem ser precedida de crepúsculo demorado, como se


dá na Europa, e a escuridão desce sobre a rústica choupana de Brama; o Yogue
acende uma lâmpada a óleo, que suspende à viga do teto mediante uma corda,
e nos sentamos, cruzando as pernas, nas esteiras sob sua luz trêmula.

A velha senhora afasta-se discretamente e ficamos sós com meu jovem


intérprete, enquanto o incenso perfuma o recinto com seu místico aroma. A idéia
de breve separação magoa-me profundamente; procuro em vão libertar-me
desse sombrio sentimento e, obrigado que sou a exprimir-me somente com ajuda
de um terceiro, fico impossibilitado de dizer as palavras de ternura que
transbordam de meu coração.

Pouco importa, neste momento, a parte de verdade ou de fantasia contida em


suas estranhas teorias, pois o que me comove, e aprecio tanto, é sua afetuosa
diligência, a grande bondade de Brama em permitir que eu penetrasse em sua
existência solitária. Senti a aproximação de nossas almas e avalio agora quanto
devia sacrificar-se um homem da espiritualidade de Brama para sair de sua
reserva habitual em favor de um desconhecido, e ainda mais de um inglês.
Pouco a pouco minha ânsia de saber prevalece: alegando minha despedida,
tento obter a revelação de mais alguns segredos.

Mas meu amigo Brama está na defensiva:

— Você seria capaz de abandonar a vida das cidades e retirar-se para a solidão
das montanhas?

— Isto exige ponderação, Brama.

— Você estaria pronto a renunciar a todas as atividades, ao trabalho, aos


prazeres, e dedicar-se exclusivamente às práticas de exercícios de nosso
sistema, não somente por uns dias, mas por longos anos?

— Não... eu creio que não; não estou suficientemente preparado. Pode ser que
um dia... talvez...

— Então não posso guiá-lo mais adiante. A Yoga não é um esporte para horas
vagas.

Vejo claramente que a oportunidade de tornar-me um Yogue está reduzida a


nada. Constato com tristeza que semelhante doutrina, que exige anos de
disciplina tão rigorosa, não é para um cético da minha espécie. No entanto, sinto
que deve haver uma coisa capaz de prender-me mais profundamente que os
estranhos poderes oriundos do Controle do Corpo. Confio isso a meu anacoreta:

Brama, todos esses poderes são, inegavelmente, maravilhosos e fascinantes;


gostaria de aprofundar-me na sua doutrina, mas diga-me, enfim, que felicidade
duradoura pode trazer o domínio do corpo? Não há no seu conhecimento algo
mais elevado? Não sei se estou exprimindo bem o que sinto; você me
compreende?

Brama sorri, mostrando seus dentes belos e sadios:

— Sim, é claro que eu o compreendo. Nossos textos sagrados dizem que o


Controle do Corpo deve acompanhar o Controle da Mente, pois seu objetivo, na
realidade, é o preparo do neófito para a Verdade Real. Quando nossos sábios
de outrora receberam a doutrina das mãos do deus Siva, souberam de fonte
certa que ela não tinha uma finalidade material. Eles sabiam que a conquista do
corpo era apenas o primeiro passo a dar para a conquista da mente, cujo domínio
colocaria o discípulo no caminho da perfeição divina. Você pode ter certeza de
que nosso sistema não trata das realidades sensoriais a não ser como meio para
chegar, através delas, ao governo da mente e daí às profundezas do puro
espírito. Vou dizer-lhe as palavras pelas quais me ensinava meu próprio mestre:
“Em primeiro lugar, não perca a oportunidade de treinar o Controle do Corpo, em
seguida, poderá aproximar-se da ciência verdadeiramente real, isso é o Controle
da Mente. Lembre-se que o corpo, quando dominado, fica automaticamente
desligado de todas as distrações exteriores; são muito poucos aqueles que
conseguem diretamente o domínio da mente. No entanto, se um homem se sentir
bastante forte para trilhar o caminho do Controle da Mente, nós não
interferiremos, pois ele encontrou intuitivamente sua própria via”.

— Existe então a Yoga puramente espiritual?

— Evidentemente. É uma doutrina que tem por finalidade tornar a mente humana
numa espécie de farol a iluminar as profundezas do puro espírito...

— E como se principia o treinamento dessa doutrina?

— Ligando-se a um mestre, bem entendido.

— A um mestre! Mas onde encontrá-lo?

Brama encolhe os ombros.

— Meu irmão, quando sentimos fome, procuramos alimentos, mas aqueles que
estão morrendo de fome são capazes de tudo para saciá-la. Se você anseia tanto
encontrar um mestre, como o homem que morre de fome deseja alimento, você
vai acabar por encontrá-lo, pois aqueles que buscam o mestre com toda
sinceridade, é mais do que certo que serão guiados a ele na hora certa.

— Você acredita então, que o destino tem alguma coisa a ver com isso?

— Não há dúvida nenhuma.

— Tenho lido alguns livros...

— Sem o mestre, seus livros nada valem; são apenas meros farrapos de papel.
Chamamos nosso mestre de GURU — palavra que significa “aquele que dissipa
as trevas”. O homem que por seu próprio esforço, ou pelo favor do destino,
consegue encontrar um verdadeiro mestre, caminha direto à luz, pois o discípulo
participa dos dons sublimes do mestre, estando sob sua aura.

A essas palavras, Brama se levanta, aproxima-se do tamborete coberto de


papéis e apanha uma folha na qual vejo desenhados, com muito capricho, sinais
cabalísticos e figuras simbólicas em forma espiral; aos lados, o sol, a lua e o olho
humano. No centro, um espaço vazio. Estendendo-me a folha diz:

— À noite passada estive preparando isto para você. Quando nos separarmos,
coloque uma fotografia minha no centro desse desenho. Bastará fixar seu
pensamento durante cinco minutos antes de deitar-se, concentrando-se sobre
essa folha, para sonhar comigo, com perfeita clareza. Então, mesmo que as
milhas separem nossos corpos, nossos espíritos encontrar-se-ão à noite, e
esses encontros serão dotados de tanta realidade quanto as visitas que
trocamos.

Ao ouvir essa última frase, digo-lhe que tenho que deixá-lo e pergunto, com certa
tristeza, se jamais nos tornaremos a ver.

— Ponhamos isso na mão do destino; não acho possível que falhe. Quanto a
mim, partirei daqui na primavera para o distrito de Tanjore, onde dois discípulos
me esperam. Não sei o que irá acontecer depois, pois, como é do seu
conhecimento, estou sempre na expectativa do apelo do meu mestre.

Brama cala-se novamente. Faz-se um prolongado silêncio, interrompido afinal


pela sua voz baixa que vem a mim sussurro concentrado, surdo:

Voltando-me na direção do intérprete à espera de novas revelações, ouço:

— Na última noite meu mestre me apareceu. Falou-me de você: “Seu amigo


sahib — disse-me — tem sede de conhecimento, ele já era um dos nossos em
sua existência anterior e seguia as práticas da Yoga, mas não da nossa escola.
Ora ele torna a voltar ao Indostão na pele de um inglês; tudo o que ele sabia,
esqueceu, mas não será por muito tempo. Todavia, enquanto o mestre não lhe
tiver concedido sua graça, não recobrará a consciência de sua sabedoria.
Bastará, porém, o mestre tocá-lo de leve, para despertar o que nele está
adormecido. Diga-lhe que em breve encontrará esse mestre, que o ajudará em
sua busca, e a luz penetrará em sua mente. Diga-lhe que pare de se lamentar;
é coisa certa, pois antes de deixar nossa terra isto vai acontecer. Está escrito
que não partirá de mãos vazias...

Recuo estupefato; meu assombro chega ao auge. O rosto do jovem intérprete


parece transfigurado, sob a luz amarelada da lâmpada.

— Você não me havia dito que seu mestre mora longe daqui, no Nepal?
pergunto-lhe, num tom pelo qual logo me arrependo, por ter deixado transparecer
nele minha dúvida.

— Sim; e ele continua morando lá.

— Mas como pode falar-lhe a essa distância, quando duzentas milhas o separam
daqui?

— Meu mestre sempre me aparece quando o chamo, ainda que nossos corpos
estivessem separados por toda a extensão da Índia, não há necessidade de
correios nem de portadores para receber sua mensagem. Seu pensamento vem
a mim através do espaço, claro e inteligível aos meus olhos.

— Isso é telepatia?

— Como queira!
Levanto-me, é tempo de ir embora; chega a hora do nosso último passeio ao
luar. Andamos ao longo da muralha do templo vizinho da casa de Brama,
paramos sob o gracioso tufo de palmeiras cuja abundante folhagem vela o brilho
da lua. Brama se despede, sussurrando-me as seguintes palavras:

— Você já deve ter notado que sou pobre; não possuo grande coisa, eis o que
tenho de mais precioso, aceite-o.

Dizendo isso, tira do dedo um anel, usado no anular esquerdo, e o põe na palma
aberta da mão, onde vejo brilhar ao luar uma pedra verde, com veios castanho-
dourados, encastoada em ouro. Brama coloca-o no meu dedo, apertando-me a
mão num gesto de despedida. Como me recuso a aceitar tão valioso presente,
ele continua a pressão de sua mão forçando-me, assim, a aceitá-lo.

— Recebi-o de um homem famoso por sua sabedoria; ele me deu na ocasião


em que eu andava ansioso, em busca do conhecimento da Verdade. Agora é a
sua vez de usá-lo.

Agradecendo, pergunto meio brincalhão:

— Trar-me-á, ao menos, felicidade?

— Não é exatamente isso, porém o poderoso encanto que está encerrado nessa
pedra ajudá-lo-á a entrar em contato com os sábios e despertará seus próprios
poderes latentes. A experiência lho dirá; use-o quando for em busca das
realidades sublimes!

Um último adeus e nossos passos se distanciam na noite. Vou andando,


lentamente, enquanto os mais estranhos pensamentos invadem meu cérebro
febril. Essa extraordinária mensagem do mestre longínquo é demais fantástica
para ser comentada. Meu espírito assiste, impassível, ao combate que se trava
em minha alma: combate entre o ateísmo e a fé. E este anel? Como acreditar
que um simples aro possa determinar o destino das criaturas, influenciar-me ou
influir os outros com seu poder misterioso? Não será pura superstição? Todavia,
Brama parece realmente acreditar e acabo admitindo que tudo é possível neste
estranho país. Mas logo em seguida surge a razão, que se opõe com uma
barreira de argumentos. Fico tão absorto, que perco o caminho e esbarro contra
um tronco de palmeira, cuja delicada folhagem está toda iluminada por
pirilampos que dançam, rondam ao luar.

No céu de um azul profundo, Vênus brilha com tal fulgor que parece estar perto
de mim. Uma imensa paz envolve a natureza adormecida; o silêncio torna-se
absoluto, não se ouvem nem as batidas das asas dos grandes morcegos que
esvoaçam por cima da minha cabeça. Surge um transeunte, que parece deslizar
como uma sombra, na luz difusa do luar. Abandono-me ao feitiço da noite
tropical, deslumbrado.
Chegando em casa, não consigo adormecer; a aurora já vem despontando no
horizonte quando o sono, como um bálsamo, vem acalmar, finalmente, a febre
de meus pensamentos tumultuosos.
7
O Sábio que nunca fala

Peço permissão ao leitor para interromper por um instante a ordem cronológica


dos acontecimentos, e falar de um encontro que tive, o qual me parece ser de
algum modo interessante. Desde a minha estada no subúrbio de Madras, não
perdi uma só oportunidade e travei relações com diversas personalidades,
algumas capazes de favorecer meu inquérito. Procurei ministros, homens de lei,
professores, homens de negócios, enfim cidadãos notáveis do lugar. Entrevistei
os próprios repórteres, passando horas agradáveis com meus colegas de
imprensa, e acabei por descobrir o redator de um jornal, que me confessou ter
sido, nos tempos da sua mocidade, um zeloso discípulo da Yoga. Disse que
escutara as palavras sagradas, sentado aos pés de um mestre, grande adepto
do Controle da Mente, mas que, lamentavelmente, há dez anos esse mestre
falecera. O ex-estudante da Yoga, embora um hindu culto e amável, não soube
informar como e onde poderia eu encontrar Yogues da mais alta sabedoria
espiritual.

Nesses dias de busca, não colhi senão bisbilhotices sem importância, lendas
tolas ou às vezes desfeitas em grosserias. Um dia encontro um santo homem
cujo rosto parecido com o de Cristo provocaria sensação em Picadili; confessa
estar percorrendo a Índia à procura de uma vida mais sublime; renunciara a
todos os seus bens, mendigando seu sustento ao longo das estradas. Ofereceu-
me generosamente suas propriedades, caso eu queira morar nelas, sob a
condição de cultivá-las em proveito dos seus compatriotas menos favorecidos
pelo destino. Ai de mim! Quem sou eu senão um pobre mortal que luta nas
trevas! Espero que ele já tenha encontrado alguém a quem interesse a maneira
de usar sua liberalidade!

De outra vez indicam-me um Yogue célebre, que mora, parece, a meia milha de
Madras, mas que foge de toda curiosidade e só é conhecido por muito pouca
gente. Para mim, tal informação basta para despertar a curiosidade, e logo
decido pedir-lhe audiência. A casa fica protegida por uma cerca viva de bambus,
plantados em quadrado em volta do terreno, isolando-a completamente da
estrada. Meu guia comenta, apontando com o dedo o cercado:
— Disseram-me que esse Yogue permanece em êxtase a maior parte do dia;
podemos bater à porta e gritar à vontade, ele não ouvirá. Se acontecer ouvir-
nos, passaremos, na certa, por indelicados.

Uma porta toscamente talhada dá acesso a uma espécie de pátio, mas está tão
bem aferrolhada e trancada que pergunto a mim mesmo se conseguiremos
transpô-la.

Do interior não sai nenhum ruído. Damos volta ao cercado, em desespero de


causa, e encontramos, no terreno vizinho da cerca, um rapazola que sabe onde
mora o criado do Yogue. Apressamo-nos, então, a procurá-lo.

O homem é um simples assalariado; sua mulher e uma porção de crianças


seguem-lhe os calcanhares. Expomos-lhe a razão da nossa visita; logo ele se
nega ao nosso pedido, esforçando-se por nos explicar que, estando o Yogue
isolado em completa reclusão e permanecendo em êxtase o dia todo, ficaria
muito ofendido se alguém se atrevesse a interromper-lhe o silêncio.

Suplico ao criado uma exceção a meu favor, mas decididamente, ele não
transige. Meu guia emprega, então, um bom recurso; ameaça-o com todas as
fúrias do governo, caso não nos faça uma concessão. Isto, bem entendido, é um
blefe que nada justifica e não hesito em fazer-lhe algumas caretas significativas.
Segue-se uma discussão animada, no decorrer da qual uso como isca uma boa
gorjeta para apoiar nossos argumentos. O homem se decide, afinal, e meu
companheiro conclui que se trata, realmente, de um criado, pois jamais um
discípulo se deixaria seduzir por ameaças ou vantagens.

Voltamos à porta do cercado; o homem, abrindo um grande cadeado de ferro,


conta-nos que o Sábio possui tão pouca coisa de seu que nem tem a chave da
porta. Fecham-no do exterior, e se por acaso o criado deixasse de abrir a porta,
seria o Yogue incapaz de sair por si mesmo. Ficamos sabendo também que o
Sábio permanece em êxtase durante o dia, mas à noite toma um pouco de
alimento, que se compõe de frutas, doces e um copo de leite. Mas, às vezes, a
refeição posta diante dele fica sem ser tocada. Ocasionalmente sai ao cair da
tarde, mas não conhece outro exercício além dos passeios ao campo.
Atravessamos o pátio e aproximamo-nos do bangalô moderno, construído de
pedra com vigas de madeira; o criado, apanhando outra chave, abre uma porta
pesada. Estranho tanta precaução da parte de um homem que tem fama de nada
possuir e o criado explica-nos a razão de tais cuidados:

— Há alguns anos o Sábio vivia neste cercado, sem fechaduras nem ferrolhos
de espécie alguma. Por infelicidade, um dia um ébrio entrou na casa, e vendo-o
só e sem defesa, o atacou, puxou-o pela barba e deu-lhe uma surra de pauladas,
acompanhada de injúrias de baixo calão. Felizmente, alguns rapazes brincavam
no terreno vizinho, soltando papagaios. Ao ouvirem o barulho acorreram a livrar
o Sábio das mãos do agressor, enquanto um deles apressou-se em dar alarma
nas redondezas.

O vadio teria sido, sem dúvida, linchado por ter se atrevido a atacar o santo
homem, se não fosse a intervenção do Sábio que, com a calma estóica que não
o abandonou durante toda essa lastimável ocorrência, escreveu em defesa do
ébrio: “Se vocês baterem nesse homem, é o mesmo que baterem em mim.
Deixem-no ir em paz, pois eu já o perdoei”.

Como a menor palavra do Sábio constitui lei, o bêbado foi solto e deixado livre,
embora a contragosto, evidentemente.

* * *

Antes de entrar, o criado dá um rápido olhar ao interior e recomenda-nos silêncio,


vendo que o Sábio está em êxtase. Tiro os sapatos, conforme o hábito,
colocando-os na varanda, onde percebo uns dizeres em tâmil, gravados numa
pedra encaixada na parede: AQUI É A MORADA DO SÁBIO QUE NUNCA FALA,
traduz meu companheiro. Entramos. A sala é ampla e de meticulosa limpeza; no
centro, uma base de mármore, de cerca de um pé de altura, coberta por um
tapete persa sobre o qual, como uma estátua de pedra, o Sábio está sentado de
pernas cruzadas.

É um homem de tez bronzeada, de porte ereto e solene; está numa pose que
logo reconheço por ser uma daquelas que Brama já me havia ensinado: a perna
esquerda dobrada para trás, o pé sob o corpo, a perna direita apoiada na coxa
esquerda; as costas, a nuca e a cabeça formam uma linha reta. Os cabelos
caem-lhe; em longos cachos negros, quase até os ombros, emoldurando-lhe a
cabeça; uma grande barba negra cobre-lhe o queixo, as mãos rígidas agarram
os joelhos. Como ele não usa outra roupa, além de uma pequena tanga, noto as
formas firmes e musculosas do corpo, evidentemente sadio; o rosto exprime
serenidade e os lábios parecem prontos a abrir-se num sorriso. Vê-se pela
fisionomia que ele triunfou sobre a vida e livrou-se do fardo que nós, pobres
mortais, carregamos, mesmo reconhecendo a futilidade mundana.

Observo o nariz curto e reto, quase grego, os olhos muito abertos, o olhar
fixamente para frente; o conjunto dá perfeita impressão da imobilidade de uma
estátua. O guia diz que o Sábio, quando mergulha em êxtase comungando com
a Consciência Universal, fica num estado em que a natureza parece diluir-se, e
afunda-se num extraordinário arroubamento, perdendo, por completo, a noção
do ambiente. Observo-o mais atentamente. Não há dúvida sobre a autenticidade
da crise, e o que me causa maior impressão são as pálpebras imóveis, abertas
durante horas sem o mínimo cansaço aparente. Os olhos, apesar de estarem
abertos não vêem; mesmo que o espírito esteja desperto, a impressão que se
tem é que está muito longe de nós e do nosso mundo sublunar. Quanto às
funções corporais, elas parecem completamente adormecidas, embora de vez
em quando uma lágrima corra-lhe ao longo da face, devido, forçosamente, à
imobilidade das pálpebras.

Um pequeno lagarto verde desce do teto, atravessa o tapete e entra sob a perna
dobrada do Yogue, que nem se move; numa insensibilidade de pedra,
permanece firme. Moscas pousam e passeiam-lhe pelo rosto, sem que o menor
movimento traia a persistência de imobilidade nessa figura de bronze. A
respiração é lenta e regular, embora apenas perceptível. No entanto, ela é o
único indício de vida naquele corpo imóvel.

Para encurtar a espera, bato uma ou duas chapas, mas a luz fraca obriga-me a
focalizar em pose. Olho o relógio: há exatamente duas horas que estamos
esperando e a rigidez escultural do corpo se mantém sem o menor
desfalecimento. Ficaria ali o dia inteiro, se isso fosse necessário para chegar ao
fim a que me proponho, isto é, obter uma entrevista desse homem extraordinário;
o criado, porém, nos desaponta, dizendo que é inútil esperar; se quiséssemos
poderíamos voltar dentro de um ou dois dias. Talvez então tivéssemos mais
sorte, embora nada nos prometa.

Magoados, deixamos a sala, eu, mais do que nunca, intrigado com o que vi.

Nos dias seguintes esforço-me para obter algumas informações sobre o curioso
asceta que representa um gênero novo para mim, e nas minhas investigações
emprego a astúcia e a paciência de um detetive; começo por indagações junto a
um criado e acabo por ouvir informações do chefe de polícia, conseguindo assim
obter, embora fragmentada, pelo menos parte da história do santo homem.

Faz oito anos — disseram-me — que ele chegou a estas paragens. Quem era
ele, e donde vinha, ninguém o sabia. Escolheu para morada um terreno inculto,
próximo do lugar onde fica atualmente seu bangalô. Curiosos se aproximaram,
tentando ouvir algumas palavras, mas como ficaram desapontados! Ele não lhes
dirigiu sequer uma palavra, nem quis ouvir ninguém; foi impossível fazê-lo falar.
De quando em vez estendia uma cuia, feita de casca de côco, pedindo alimento,
e passava dias e noites acocorado no terreno baldio, sem abrigo de espécie
alguma que o protegesse da inclemência do sol tórrido, tempestade da monção,
poeira e picadas dos insetos. Parecia totalmente ausente do mundo exterior,
permanecendo horas e horas na mesma posição, e durante todas as estações
do ano usava apenas uma tanga.

As redondezas de uma grande cidade como Madras, devido ao seu bulício não
são absolutamente indicadas nem propícias à meditação de um eremita que
pretende fugir à vista do público. Isso só seria possível nos tempos da Índia
antiga, mas para um Yogue de hoje obter perfeita meditação, é indispensável o
retiro nas cavernas das montanhas ou, ao menos, na solidão da cela de um
mosteiro. Por que, então, esse singular asceta escolheu um lugar tão pouco
favorável à meditação?
Soube, em seguida, a lamentável história que lhe ocorreu, e o desfecho tão
imprevisto: Uma vez, um bando de jovens vagabundos, ao descobrir o Yogue,
tomou-o para alvo de suas brincadeiras e, com uma insistência pouco
recomendável, vinha insultá-lo, atirando pedras e lixo na sua cabeça.

O eremita continuava impassível, embora só dependesse dele administrar-lhes


uma boa correção; no entanto, como tinha feito voto de silêncio, nem os
repreendia. Essa brincadeira poderia, assim, continuar por muito tempo, se não
fosse um transeunte que apanhou esses jovens brutos em flagrante e, revoltado
com o espetáculo, correu a avisar a polícia de Madras, que os dispersou,
admoestando-os severamente.

Em seguida a esse incidente, um oficial da polícia tomou a decisão de obter


algumas informações sobre o singular solitário, mas não encontrou ninguém que
soubesse informá-lo sobre a vida do asceta. Não havendo outro recurso,
resolveu indagar pessoalmente ao Yogue, sob a autoridade da lei. Após muitas
reticências, o eremita apanhou uma lousa e escreveu o seguinte:

“Sou um discípulo de Marakayar; meu mestre me deu ordem para atravessar a


planície e chegar a Madras. Depois designou-me este pedaço de terra, dizendo-
me onde e de que maneira o acharia. Ordenou que me estabelecesse neste lugar
para que pudesse continuar as práticas da Yoga até atingir a perfeição.
Renunciei à vida deste mundo e não peço outra coisa senão que me deixem em
paz; não tenho nenhum interesse pessoal em Madras, e não aspiro a nada que
não seja a via da iluminação”.

O oficial da polícia, satisfeito com a resposta, reconheceu no solitário um faquir


de grande classe e retirou-se, assegurando-lhe sua proteção. Sabia que
Marakayar era um famoso faquir maometano que havia morrido recentemente.

“Após a miséria, a bonança” — diz o provérbio. Assim, o caso chegou ao


conhecimento de um piedoso cidadão de Madras, que ofereceu ao faquir uma
residência na cidade; o eremita, porém, não quis por nada desobedecer às
instruções do seu mestre. Finalmente, o bom homem encontrou outra solução e
construiu um bangalô no terreno vizinho. O Yogue acabou aceitando morar ali;
daí em diante ficou abrigado da inclemência das estações, e dos vexames. O
caridoso homem tornou-se protetor do solitário, contratou um criado para seu
serviço, poupando-lhe assim não só a necessidade de mendigar seu sustento,
como, também, o trabalho de manter limpo o ambiente.

Pergunto a mim mesmo: teria o seu mestre previsto a reviravolta da prova


imposta ao discípulo?

Disseram-me que o Sábio não tem discípulos, não procura nem aceita ninguém;
fechando-se numa completa solidão, julga chegar mais rápido à sua “libertação
espiritual”.
Esta atitude pode parecer egoísta, aos olhos do ocidental; no entanto, torna-se
difícil tachar de egoísmo a atitude de um homem que revelou tanta mansidão
com o ébrio e recusou vingar-se dos vagabundos que o perseguiam
impiedosamente.

* * *

Voltei ainda para tentar entrevistar o “Sábio que nunca fala”, mas desta vez
acompanhado de duas pessoas: uma, o meu intérprete habitual, e a outra, o
Yogue a quem devo tantos conhecimentos preciosos, o meu bom amigo Brama,
o anacoreta de Adyar. Evidentemente Brama não aprecia muito o bulício da
cidade, mas ao saber do objetivo da minha jornada, aceitou logo acompanhar-
me.

Perto do cercado encontramos um outro visitante, que deixara seu carro


estacionado na estrada e vinha atravessando o campo a pé, sem dúvida também
desejoso de contemplar o Sábio. Acaba por narrar-me que é irmão da rainha de
Gadwal, um pequeno estado tributário do Nizam de Hyderabad, e arroga-se a
generosidade de também ser protetor do Yogue, contribuindo para sustentar o
bangalô. Estando de passagem em Madras, não quer regressar à sua terra antes
de homenagear o Sábio e solicitar sua bênção. Quanto ao valor dessa ação de
graça, o irmão da rainha cita a seguinte história: “Uma dama da Corte da rainha
de Gadwal vivia em desespero por ter um filho atacado por uma perniciosa
doença. Um dia, ouvindo por acaso uma conversa, soube da existência do Sábio
que nunca fala, e apesar de ser muito longa a viagem até Madras, não hesitou,
e veio suplicar ao Sábio que lhe salvasse a criança. O Yogue cedeu às lágrimas
da mãe e, no mesmo instante, o milagre se fez: o enfermo incurável e condenado
à morte foi salvo! O fato chegou aos ouvidos da rainha que fez questão de vir
agradecer ao eremita; sua Majestade ofereceu-lhe a soma de seiscentas rupias
que ele não quis aceitar. Finalmente, ao ver a devoção e a insistência da rainha,
o asceta consentiu que empregasse o dinheiro na construção de um cercado em
volta da casa, que o protegesse dos curiosos e evitasse que tão frequentemente
ele fosse interrompido durante a meditação. A rainha satisfez-lhe a vontade.”

Eis-nos, afinal, os quatro, diante do bangalô. O criado deixa-nos entrar; como da


primeira vez, achamos o Yogue em êxtase e acocoramo-nos em silêncio,
formando meio círculo em volta dessa estátua majestosa e grave, ereta no seu
suporte de mármore.

No fim de uma hora e meia, começamos a perceber os primeiros sinais de


retorno à vida, a respiração vem mais funda, mais perceptível, as pálpebras
começam a bater, os globos oculares se revolvem e voltam ao lugar na órbita.
Os músculos se distendem, a posição do corpo toma uma atitude mais frouxa e,
no fim de cinco minutos, uma expressão diferente no seu olhar deixa perceber
que o Sábio voltou à consciência do meio que o rodeia. Com atenção ele olha
meu intérprete, volta a cabeça para o lado de Brama, para o irmão da rainha e
por fim para mim. Aproveitando o interesse, coloco aos seus pés um bloco de
papel e um lápis; por um momento ele vacila, depois os toma e escreve com letra
elegante, em tâmil:

— Quem foi que um dia destes quis tirar-me fotografias?

Sou obrigado a confessar minha ousadia, embora minhas chapas não


estivessem boas por faltar-lhes nitidez.

Ele retoma o lápis e escreve:

— Quando o senhor for visitar Yogues em êxtase, não os incomode, jamais,


dessa forma; é arriscado interromper bruscamente uma meditação; no meu caso
não houve maior importância, mas eu lhe digo, apenas para avisá-lo, a não
proceder assim por ocasião das visitas que pretende futuramente fazer aos
Yogues. Tal interrupção pode ser perigosa para eles, e também atrair maldição
sobre o senhor.

É bem evidente que cometi um sacrilégio em querer tirar fotografias e a única


coisa que posso fazer é pedir-lhe desculpas.

O irmão da rainha de Gadwal exprime-lhe sua devoção e faz as reverências;


quando ele termina, chego mais perto e apresento-me como viajante que
atravessou os mares em busca da antiga sabedoria indiana e se sente ansioso
por encontrar alguns desses sábios que atingiram a perfeição pela Yoga e dos
quais tanto ouvira falar no Ocidente. Acrescento que me consideraria feliz e
favorecido se o Sábio pudesse me fornecer alguns esclarecimentos que julgasse
convenientes.

O Yogue continua impassível, sem que um músculo da face escultural se mova;


e após dez minutos de espera, acabo pensando que talvez ele não me tivesse
ouvido, ou que novamente eu houvesse cometido outra falta. Aos seus olhos,
suponho, um ocidental deve parecer um materialista incorrigível, por quem não
há nada mais a fazer; ou quem sabe, talvez, não me houvesse perdoado o
sacrilégio cometido? Não sei o que pensar. Será que peço demais a esse asceta
solitário, fazendo-o descer das alturas e quebrar seu silêncio e sua altiva reserva,
em favor de um descrente infiel?

Não, nada disso, meu desencanto é prematuro, pois eis que o Sábio retoma o
lápis e escreve algo no papel; curvo-me para apanhá-lo de sua mão, passando-
o ao intérprete.

— Sinto dificuldade em decifrar a caligrafia, que é difícil de ser lida — diz o


intérprete, voltando-se para mim.

— O universo é tão cheio de mistérios... balbucio, perplexo. Mas ao ouvir essas


palavras, percebo um leve sorriso irônico passar nos lábios do Sábio.
— Se o senhor não se entende a si mesmo, como quer compreender o universo?

Nossos olhares se encontram. Ele está me fixando com seu estranho olhar; sinto
por trás desse olhar um mundo de pensamentos ocultos, segredos ciosamente
guardados.

— Estou ainda tão confuso... não acho nada melhor para responder-lhe.

— Por que voar, então, feito abelha que enquanto voa colhe apenas uma gota
de mel, quando todo o mel da mais pura sabedoria o está esperando?

Fico encabulado. Tal resposta poderia ter sentido para uma mente oriental; para
mim, a sibilina sutileza da sentença tem o suave encanto da poesia mas me
confunde literalmente, e não contribui em nada para solucionar o problema que
me absorve.

— Mas, mestre, onde buscar, aonde ir?

— Procure em si próprio, pois só em si achará a Verdade que aí se oculta


profundamente.

— Procurei em mim e não achei senão ignorância.

— A ignorância existe só em seus pensamentos — escreve laconicamente.

— Perdoe-me, mestre, mas suas respostas não fazem senão aumentar minha
confusão.

O Sábio, sorrindo da minha temeridade, hesita um pouco e acrescenta:

— Isso acontece porque o senhor está raciocinando em seu atual estado de


ignorância. Volte ao ponto de partida e comece a pensar com sabedoria que, na
realidade, não é outra coisa senão o autoconhecimento. O pensamento é como
uma carroça de bois que leva o homem à escuridão de uma gruta funda
encravada na rocha. Volte para trás e o senhor verá novamente a luz.

O Yogue, vendo-me cada vez mais confuso, faz sinal para retomar o papel e
escreve, depois de ter levantado o lápis no ar durante um momento:

— Esse retorno do pensamento é a Yoga em sua essência — o senhor me


compreende agora? Efetivamente, entrevejo um pouco de claridade, porém isso
não é ainda a luz. Preciso tempo para pensar; no momento acho que seria mais
conveniente, não continuar insistindo. Tão absorto estou que não percebo a
chegada de um novo visitante que se senta atrás de mim, e só tenho consciência
da sua presença quando ouço sussurrar-me ao ouvido algumas estranhas
palavras. Abstraído, pensava no sentido oculto da sentença do Sábio, um pouco
desapontado por não ter conseguido apreender o valor real que aí devia se
ocultar, quando ouço, em voz baixa, em excelente inglês, esta frase:
— Meu mestre pode dar-lhe a resposta daquilo que o senhor procura.

Volto a cabeça; vejo que o recém-chegado é homem dos seus quarenta anos e,
à maneira dos Yogues errantes, usa um manto amarelo. É de compleição forte,
ombros largos, tez de bronze polido e um nariz fino, aquilino, dominando o rosto;
os olhos muito pequenos, parecem pregueados nos cantos, em perpétuo sorriso.
Como ele é descortês, e mesmo saliente, querendo conversar na presença do
Sábio! Assim, não lhe dou mais atenção e torno a voltar ao meu pensamento
anterior e ao meu interlocutor silencioso.

Uma outra pergunta vem cruzar minha mente. Mas, penso: não serei atrevido
demais e talvez impertinente? Ora...

— Mestre, o mundo clama por socorro; assim sendo, será conveniente que
sábios como o senhor se fechem em semelhante solidão e silêncio, perdidos
para a Humanidade?

Percebo novamente um leve sorriso de ironia no rosto imperturbável do eremita.

— Meu filho, se você não se conhece a si mesmo, como pode querer


compreender-me? Fazer polêmica com assuntos espirituais é de pouco proveito.
Esforce-se a fim de recolher-se em si, pela prática da Yoga; persevere nesse
caminho e a solução se lhe apresentará espontaneamente.

Faço a última tentativa:

— O mundo tem sede de Luz; também eu gostaria de encontrá-la para


caridosamente difundi-la. Que devo fazer, mestre?

— Quando o senhor conhecer a Verdade, saberá também o que há de fazer para


ser útil à Humanidade, e as possibilidades não lhe faltarão; quando alguém
possui sabedoria e força espiritual, não precisa mais procurar servir, pois os
homens virão por si mesmos e se aproximarão, atraídos pela necessidade da
sua ajuda. Saiba: a flor que possui mel tem certeza que a abelha virá distingui-
la entre todas as outras. A única coisa que o senhor deve fazer é cultivar seu ser
íntimo e nenhum outro ensino lhe será necessário.

Por sinal, com essas palavras, o Sábio nos deu a compreender que gostaria de
ficar só, para voltar ao seu êxtase. Peço-lhe então uma última mensagem.

O olhar do Sábio parece perder-se no espaço e flutuar acima de minha cabeça.


Depois escreve algo e entrega-me o bloco.

— Fico satisfeito por você ter vindo. Tome isto como sua iniciação.

Apenas acabo de ouvir estas palavras, sinto uma força estranha penetrar-me;
ela aflui ao longo da coluna vertebral, endurece meu pescoço e obriga-me a
levantar a cabeça. Sinto um poder desconhecido nascer e crescer com uma
singular potência. Adquiro uma sensação, bem nítida, de que um dinamismo
interior exige a conquista de mim mesmo e põe meu corpo em obediência, a
serviço da mente, pronto a realizar seu mais alto ideal. E, por intuição repentina,
compreendo que esse ideal é a sintonização das vozes da consciência, é a
essência daquilo que há de melhor em mim, é a verdadeira felicidade prometida
ao homem, mas que não se encontra em parte alguma, a não ser em nós
mesmos. Tenho certeza de que essa estranha mensagem que recebo, e a
sensação que não posso dominar, são uma força invisível irradiada do Yogue e
projetada em minha mente por uma espécie de telepatia misteriosa. Será
possível que ele empregue esse meio para me transmitir um pouco de sua alta
sabedoria?

Seu olhar torna-se fixo, os olhos parecem atingir aos poucos esferas inacessíveis
para nós, o corpo retoma sua rigidez escultural. Sem equívoco, sente-se que o
Yogue transporta sua alma além de todo pensamento e mergulha nas
profundezas ocultas de seu ser, nesse âmbito íntimo que ele ama acima de todas
as coisas do mundo.

Será ele um verdadeiro Yogue? Estará mesmo no caminho das conquistas


misteriosas, capazes de florescer no campo insuspeito da sabedoria, em
proveito da nossa pobre Humanidade? Quem o sabe?

Ao sairmos, Brama se aproxima, falando com sua voz melodiosa:

— Esse Yogue já atingiu um mui alto grau de sabedoria da nossa doutrina e,


mesmo assim, não alcançou o auge. Possui vastos poderes, porém seu maior
esforço consiste em aperfeiçoar-se a si mesmo. Tem excelentes condições
físicas, que atribui à longa prática do Controle do Corpo, porém ainda está mais
adiantado em Yoga do Controle da Mente. Há bastante tempo o conheço.

— Desde quando? pergunto.

— Há alguns anos o encontrei num campo baldio, onde vivia desabrigado; logo
o reconheci pelo que ele é, quero dizer um irmão em Yoga. Disse-me,
escrevendo, é claro, que quando moço foi soldado e, ao terminar o serviço
militar, sentiu-se cansado desse mundo e retirou-se para a solidão. Foi
exatamente nessa época que encontrou o famoso faquir Marakayar e tornou-se
seu discípulo.

Continuamos andando em silêncio através dos campos e aproximamo-nos da


estrada poeirenta. Não digo a ninguém da inesperada e estranha experiência por
que passei na cabana. Preciso pensar isolado, enquanto o eco ainda ressoa no
mais íntimo do meu ser.

Nunca mais vi o Sábio. Como ele não deseja e não tolera intromissão na sua
vida solitária, preciso respeitar essa vontade, deixo-o então envolto no seu manto
de impenetrabilidade, entregue aos seus êxtases.
Ele não tem interesse em fundar escola nem juntar discípulos, e não parece
alimentar outras ambições, além de passar sua vida em silêncio.

Acho também que ele não teria mais nada a acrescentar ao que já me disse. Por
causa disso ele não desenvolve um artifício de conversação, como é tão em
voga entre nós, ocidentais.
8
Com o chefe espiritual
da Índia meridional

Não havíamos ainda chegado à estrada, que nos leva a Adyar, quando ouço
alguém se aproximar. Voltando-me, vejo o mesmo Yogue de manto amarelo,
com sua boca talhada até às orelhas e suas pálpebras franzidas. Continua com
aquele mesmo risinho que me aborrece.

Começo por perguntar-lhe:

— O senhor tem alguma coisa a me dizer?

— Exatamente, senhor — responde-me em bom inglês — que está fazendo


neste país?

Mas que audácia!

— Bem, simplesmente, viajo...

— Entretanto, pelo que vejo, o senhor se interessa muito por nossos santos
homens.

— Sim, às vezes... mais ou menos...

— Eu também sou Yogue, senhor.

Para um Yogue ele não parece passar mal, penso comigo.

— Faz muito tempo? pergunto.

— Três anos, senhor.

— Sua aparência, apesar disso, não é das piores — permita dizê-lo.

Visivelmente lisonjeado, ergue-se, põe-se em posição de sentido e com os pés


descalços bate os calcanhares.

— Servi sete anos no Exército da Sua Majestade, o Imperador e Rei!


— Não diga!...

— Sim, senhor. Tomei parte na guerra da Mesopotâmia; ao terminá-la, graças à


minha inteligência superior, fui admitido nos serviços de contabilidade militar!

Sorrio a esse auto-elogio. Afinal, aqui está alguém a quem não preciso rogar que
fale.

— Deixei o serviço por motivos de família e conheci então um período de grande


aflição moral, que me levou, irrevogavelmente, a abraçar o caminho da renúncia
e a tornar-me Yogue.

Dou-lhe meu cartão de visita, apresentando-me.

— Meu nome é Subramanya, da casta de Aiyar.

— Muito prazer, senhor Subramanya; agora espero que me explique sua


intromissão de há pouco, durante minha entrevista com o Sábio silencioso.

— Eu também, só esperei por este momento, para falar-lhe.

— Faça suas perguntas a meu mestre — eis o que eu lhe queria dizer, porque
ele é o maior sábio das Índias e o mais sábio de todos os Yogues...

— Pois bem... e o senhor já percorreu todas as Índias, e conhece todos os


grandes Yogues?

— Pelo menos encontrei alguns, e conheço o país do cabo Camorim até os


Himalaias...

— Não diga!

— Sim senhor, e digo-lhe, não há outro Yogue igual a ele. É uma grande alma e
quero que o senhor o conheça.

— O senhor quer, por quê?

— Foi ele quem me mandou falar-lhe; pois pela força do seu poder foi que o
senhor veio à Índia!

Esta afirmação é forte demais! Começo a desconfiar... não aprecio muito o modo
exagerado de falar das pessoas demasiadamente exaltadas, e o entusiasmo do
meu Yogue de manto amarelo é levado ao extremo. Sente-se o exagero em tudo:
em sua voz, no seu ar, no menor dos seus gestos.

Respondo friamente:

— Não o entendo...
Eis que ele continua a ser mais loquaz, submergindo-me em ondas de
explicações:

— Faz oito meses que encontrei meu mestre; ele me deixou ficar cinco meses
em sua companhia; em seguida ordenou-me que começasse a vida errante.
Garanto-lhe, o senhor jamais encontrará um ser mais sublime; suas faculdades
espirituais são tão extraordinárias que poderá responder aos seus pensamentos,
antes mesmo de serem formulados. Uma breve estada em sua companhia
convencê-lo-á do grau de perfeição que ele alcançou.

— O senhor tem a certeza de que ele faz tanta questão de minha visita?

— Estou absolutamente certo, senhor! Não lhe disse que foi ele quem me
conduziu até o senhor?

— E onde mora seu mestre?

— Em Arunachala, na colina do Santo Lume.

— Onde fica?

— No território de Arcot do Norte, no sul do país. Permita-me acompanhá-lo.


Meu mestre resolverá todas as suas dúvidas, pois conhece a verdade máxima.

— Tudo isso é muito interessante, senhor Subramanya (sou obrigado a admitir)


mas não me é possível no momento; tenho minhas malas prontas, pois estou de
partida para o Nordeste, onde assumi um importante compromisso.

— O que eu lhe estou propondo é de muito maior importância.

— Sinto muito, mas não posso, é tarde demais. Já tomei todas as providências
e não vejo possibilidade de mudá-las. Irei ao Sul com o maior prazer, mas não
agora.

O Yogue está visivelmente desapontado...

— O senhor está perdendo uma oportunidade, e...

Prevendo uma argumentação inútil, corto bruscamente:

— Agora tenho que deixá-lo, senhor Subramanya, de qualquer modo; muito


obrigado.

— Eu não aceito sua recusa. Visitá-lo-ei amanhã à noite e espero que o senhor
mude de idéia.

Não temos nada mais a dizer. Sigo com o olhar sua alta e forte silhueta, de manto
amarelo, atravessando a estrada, para logo após desaparecer.
Em chegando à casa, raciocino: terei eu respondido irrefletidamente? Mesmo se
o valor do seu mestre fosse a metade do que ele pretende, e apesar de ser tão
longa a viagem para encontrá-lo, nunca seria esforço totalmente perdido.
Entretanto, começo a ficar farto desses devotos simplórios que cantam louvores
à glória do seu mestre, a maioria dos quais não resiste à mais leve crítica. Além
disso, tantas noites passadas em claro e tantos dias tórridos fizeram dos meus
nervos uma pilha e, se ainda por cima esse Yogue me propõe gastar energias à
toa... não, muito obrigado, não quero!

Nenhum argumento prevalece contra essa impressão, mas um instinto imperioso


me leva a crer que talvez haja alguma coisa no fundo de sua insistência. Sinto-
me atônito e perplexo.

* * *

Na hora do tiffim — como nós diríamos — na hora do chá com biscoitos, o criado
me anuncia uma visita. É meu confrade, o escritor Venkataramani.

Tempos atrás, havia eu escrito algumas cartas de apresentação, mas, pensando


que me podiam prejudicar ao invés de me ajudar, guardei-as no fundo da mala;
não pensei em usá-las. Porém, uma certa ocasião tive a idéia de que talvez fosse
bom reconciliar-me com os deuses e mandei uma a Bombaim. A outra em que
me incumbia de transmitir um recado pessoal, enviei-a a Madras e ela me trouxe
o dito escritor. Membro da Reitoria da Universidade de Madras, ele é famoso
como autor de romances bucólicos, e o primeiro escritor hindu de língua inglesa,
condecorado pelas autoridades locais com a medalha de marfim, por serviços
prestados à causa literária. Sua sutileza de estilo e de pensamento valeu-lhe, na
Índia, grande estima do poeta Rabindranath Tagore, e na Inglaterra, os elogios
do falecido Iord Haldane. Possuidor de um talento invulgar, sabe,
particularmente, pintar bem as imagens melancólicas, descrevendo a vida das
aldeias abandonadas.

Vejo-o entrar; rosto fino e emaciado, abundantes cabelos, queixo delicado,


óculos cobrindo grandes olhos de sonhador, idealista e poeta. Contudo, suas
tristes íris parecem refletir os sofrimentos aldeões.

Todavia, há entre nós idéias em comum, suficientes para nos sentirmos logo à
vontade. Depois de confrontarmos nossas impressões sobre diversos assuntos,
criticando os políticos e elogiando nossos autores favoritos, vem-me a
necessidade de confiar-lhe o real objetivo de minha viagem. Pergunto se
conhece os autênticos Yogues, possuidores de reais poderes, pois não me
interessam os anacoretas, cuja única originalidade consiste em lambuzar-se de
lixo, nem os faquires pelotiqueiros e saltimbancos. Meu interlocutor sacode a
cabeça:
— Infelizmente não, pois a Índia deixou de ser a pátria dos Grandes Sábios; com
a invasão do materialismo e da cultura sem alma, emprestada do Ocidente, o
declínio do nosso país começou e nossos grandes mestres de outrora
desapareceram. Creio, porém, que nos restam alguns; mas hoje eles se
enclausuram em profundo retiro e, penso, o senhor jamais terá oportunidade de
encontrá-los. Meus próprios conterrâneos, quando se põem em busca desses
homens, não poupam seus passos nem seus esforços; imagino quanta
dificuldade terá o senhor, um europeu!

— Não há, então, nenhuma esperança de êxito, a seu ver?

— Meu Deus, nunca se sabe! É uma questão de sorte.

— O senhor não ouviu falar de um sábio que mora nas montanhas do Arcot do
Norte?

Ele sacode a cabeça negativamente. Voltamos a palestrar sobre literatura;


ofereço-lhe um cigarro, ele não fuma. Acendo um, e o suave aroma de fumo
turco espalha-se na sala, em espirais.

Venkataramani, cujo coração transborda de compaixão, começa o elogio


apaixonado da antiga civilização indiana e do idealismo desaparecido. Esse
ideal, ele somente o concebe na simplicidade do viver, na doçura da mente a
vagar, na dedicação à vida espiritual e no amor ao próximo. Gostaria de varrer a
onda de tolices que ameaça afogar toda a sociedade indiana; o que a seus olhos
mais importa é salvar as aldeias, reduzidas a serem os centros de recrutamento
para as oficinas das cidades industriais. Talvez seja apenas uma ameaça, mas
o exemplo do Ocidente mostra claramente a finalidade das tendências atuais.

Venkataramani continua narrando que é oriundo de abastada família possuidora


de propriedades perto de uma das mais antigas aldeias do Sul. Era de lamentar
a miséria material e o declínio moral que arrastaram essa pobre aldeia a uma
triste decadência e ele só pensa em fazer alguma coisa para aliviar a vida desses
humildes aldeões, recusando aceitar a felicidade, se eles também dela não
puderem gozar.

Ouço-o atentamente, sem nada dizer, esforçando-me por compreender seu


ponto de vista.

Quando, tendo se despedido, ele me deixa, sigo com o olhar seu vulto elegante
até desaparecer na esquina da rua, e fico pensando...

Na madrugada do dia seguinte, meu amigo surpreende-me com sua visita


inesperada, dizendo-me haver tomado um táxi e corrido à disparada, receando
não me encontrar mais.
— Recebi ontem à noite uma mensagem de que meu grande protetor — diz-me
todo ofegante — Sua Santidade Shri Shankara Acharia de Kumbakonam, o chefe
espiritual da Índia Meridional, permanecerá um dia em Chingleput. Milhões de
homens o veneram como um enviado de Deus. Sempre se interessou por mim
e estimulou minha carreira literária; não faço nada sem lhe pedir conselhos. Não
julguei oportuno falar-lhe ontem à noite, entretanto digo-lhe agora: ele é um
mestre da mais alta realização, verdadeiro santo e grande filósofo, embora não
sendo Yogue. É o mais alto dignitário de todo o sul da Índia e conhece todos os
grandes movimentos espirituais do nosso tempo; em virtude mesmo da sua
perfeição, deve saber melhor do que ninguém algo sobre os verdadeiros Yogues
e, como está fazendo uma viagem pastoral através do país, é também o mais
indicado do que ninguém para saber os acontecimentos da vida espiritual da
Índia. Por ocasião de sua passagem acorrem de toda parte os santos do país
para homenageá-lo. Creio que ele poderá dar-lhe a informação que pretende.
Quer ir vê-lo?

— É o que mais desejo! É muita amabilidade sua. Chingleput é longe daqui?

— Não, trinta e cinco milhas apenas; mas espere...

— Que há?

— Não sei se Sua Santidade consentirá em recebê-lo e permitir-lhe uma


audiência. Farei todo o possível, mas...

— Por eu ser europeu? Oh! compreendo...

— Aceita o risco da recusa?

— Sem dúvida, vamos já.

Como se pode imaginar, durante a viagem crivei meu companheiro de perguntas;


assim, soube que Shri Shankara vive com uma simplicidade quase monástica no
que toca à sua própria pessoa, mas a dignidade de seu cargo o obriga a ter um
padrão de vida principesco. Durante suas viagens, uma verdadeira escolta de
elefantes e camelos montados o segue; uma procissão de doutos Brâmanes com
seus estudantes, de arautos e adeptos o acompanha.

A multidão se aglomera à sua passagem, todos vêm implorar sua graça com os
intuitos mais diversos, quer espirituais quer materiais, ou mesmo financeiros.
Não se passa um dia sem que os ricaços e potentados não venham depositar
milhões de rupias a seus pés, porém como ele fez voto de pobreza, todo esse
dinheiro é empregado em obras de caridade. Alivia os aflitos, subvenciona
escolas, restaura templos, constrói e aperfeiçoa reservatórios para a água de
chuva, por serem raros os ribeirões no sul da Índia. Mas tudo isso é apenas
acessório; sua missão é, antes de tudo, puramente espiritual.
Em todo o lugar em que pára, esforça-se por levar à população indiana uma
compreensão de sua herança ancestral, bem como elevar seus corações e
mentes. Habitualmente ele pronuncia uma alocução no templo da localidade e,
em seguida, recebe em audiência particular a multidão que vem vê-lo na sua
passagem.

Shri Shankara é o sexagésimo sexto titular da sua dignidade hierárquica, desde


o primeiro Shankara. Isso me leva a perguntar a Venkataramani algumas
minúcias sobre o fundador dessa linhagem.

O primeiro Shankara viveu há mais de dois mil anos; foi um dos maiores sábios
Brâmanes da história; grande filósofo, era uma espécie de racionalista místico.
Na sua época, o hinduísmo já estava em franca decadência e toda a sua vida
espiritual parecia estar em completa aniquilação. Com apenas dezoito anos de
idade, andava a pé pelas estradas, percorrendo o país; discutia com os filósofos
e sacerdotes, ensinando sua doutrina, e os fiéis sempre mais numerosos,
curvavam-se aos seus pés. Sua inteligência lhe permitia concorrer com as
maiores sumidades da ciência, e ainda em vida era considerado e venerado
como um profeta. Suas idéias eram muito liberais; embora partidário da religião
oficialmente reconhecida, condenou muitas superstições que se escondiam sob
seu manto e esforçava-se por dirigir o povo pela senda da virtude, expondo ao
seu auditório a inutilidade de uma religião baseada apenas no culto dos rituais,
e não acompanhada pelo esforço individual. Fez pouco caso das leis da sua
casta, tomando parte ativa nas exéquias de sua mãe, proceder que lhe valeu a
excomunhão dos sacerdotes. Mostrou-se digno sucessor de Buda, que foi o
primeiro a atacar o espírito partidário das castas; contradisse os sacerdotes,
ensinando que todo ser humano, sem distinção de casta ou de cor, podia gozar
da graça divina e chegar ao conhecimento das verdades mais sublimes. Não
fundou nenhuma religião; contudo, doutrinava que não importava qual fosse o
credo adotado, pois qualquer deles, irrefutavelmente, levaria os homens a Deus,
sob a condição de que fosse respeitado na sua pureza primitiva e no seu
conteúdo místico. Para apoiar seus argumentos, elaborou um sistema filosófico
completo, deixando uma importante herança literária, que ainda hoje é
respeitada nos centros de estudos religiosos de todo o país. Os doutos
Brâmanes dão grande valor à sua obra religioso-filosófica, embora vivam
discutindo, sempre em controvérsias, quanto à interpretação das idéias nela
contidas. Com o manto amarelo e um bastão de peregrino, Shankara percorria
a Índia; humilde e inteligente, por uma hábil tática fundou quatro grandes
instituições, nos quatro pontos cardiais do país. A fundação do norte ficava em
Badrinath ao norte, outra em Puri, a leste da Índia, e seu quartel general, que se
compunha de um templo e um mosteiro, foi estabelecido no sul, onde proferiu
seu primeiro sermão. Até os nossos dias essa fundação permanece e o Sul é
considerado como o santuário do Hinduísmo. As instituições cresceram no país
e sua doutrina espalhou-se levando a toda a parte as palavras de Shankara.
Esse homem extraordinário morreu, ou conforme a lenda, desapareceu na idade
de trinta e três anos.

O que dá valor a esta narrativa é o fato de saber que o mestre Shankara que
devo ver agora, continua a obra do seu fundador, sem se desviar em nada do
ensino do primeiro Shankara. Uma estranha tradição enraizou-se nesse sistema
doutrinário. O primeiro Shankara prometeu aos seus discípulos ficar em espírito
com eles e zelar pelos seus sucessores. Note-se que essa mesma tradição está
ligada à sucessão do mais elevado cargo do Tibete, mantida pelo Grande Lama.
O Shankara em exercício escolhe, no momento de sua morte, o discípulo mais
digno de sucedê-lo; como de modo geral é escolhido um jovem, fica ele entregue
aos grandes mestres, dos quais recebe uma instrução adequada às altas
funções que foi chamado a assumir. Esse ensino não é puramente intelectual e
religioso, pois também inclui o estudo da Yoga nos graus superiores e a prática
de meditação; após esse período de estudos, segue-se um tempo de vida ativa,
inteiramente consagrada pelo neófito ao serviço do povo. Isso é, evidentemente,
uma tarefa singular, executada em respeito a uma ordem estabelecida e
perpetuada através dos séculos, sem que um só titular haja falhado à prova de
abnegação, na sua essência mais elevada e mais pura.

Venkataramani dá colorido à sua narrativa com fatos destinados a realçar os


excepcionais dons de Shri Shankara, o sexagésimo sexto da dinastia. Entre
outros casos interessantes, narrou-me a cura milagrosa feita pelo mestre em um
dos seus primos, paralítico há muitos anos em consequência de reumatismo.
Shri Shankara, pelo simples toque da mão, fê-lo andar em menos de três horas
e curou-o completamente, no fim de pouco tempo.

Disse também que ele pode ler os pensamentos, dom no qual Venkataramani
acredita piamente.

* * *

Chegamos a Chingleput pela estrada bordejada de altas palmeiras, que


desaparecem ao se entrar no labirinto complicado das ruas estreitas,
marginadas de casinhas brancas, cujos telhados castanho-escuros formam
como que um bloco, uns ao lado dos outros. Deixamos o automóvel e andamos
até o centro da cidade, regorgitante de povo.

Entramos numa casa onde um grupo de secretários se absorve, atarefado, no


exame do volumoso correio que sempre segue Sua Santidade, do seu quartel
general de Kumbakonam. Fico esperando numa sala sem cadeiras, enquanto
Venkataramani envia um recado a Shri Shankara. No fim de meia hora, um
funcionário aparece para nos dizer que a audiência não pode ser concedida, pois
para Sua Santidade não há, no momento, possibilidade de receber os ocidentais;
ademais, perto de duzentas pessoas o esperam, e a maioria passou a noite
inteira na rua, ao relento, na expectativa de ser recebida. O secretário,
visivelmente embaraçado, confunde-se em desculpas.

— Aceito a situação com estoicismo, mas Venkataramani não se deixa derrotar.


Quer mesmo esforçar-se em prol de minha causa, lembrar a Shri Shankara a
amizade que os une e insistir para que eu seja admitido à sua presença. Quando
o vejo querendo passar antes da sua vez, ouço um murmúrio na multidão;
usando, porém, de diplomacia, consegue atravessar. Minutos depois, volta
risonho e triunfante, para anunciar a boa nova:

— Sua Santidade vai fazer uma exceção e nos receberá dentro de uma hora.

Nesse ínterim, perambulando sem destino, passeio pelas ruas pitorescas que
desembocam no templo. Vejo os palafreneiros levarem ao bebedouro uma tropa
de elefantes e camelos andando em fila. Alguém me aponta a passagem de um
belo animal destinado à Sua Santidade nas viagens; de fato, é montaria digna
de um rei! O suntuoso palanquim está todo coberto de ouro e esplêndidas
tapeçarias trabalhadas; o elefante, como se tivesse consciência da sua alta
função, balança majestosamente a cabeça, ao passar à minha frente.

Lembro-me de que o costume do país manda que se leve à personalidade que


nos recebe, uma oferenda de frutas, flores e doces; aproveito, então, para
providenciar o presente, adquirindo tanto quanto posso decentemente levar.
Infelizmente, não se pode pensar em tudo; imprensado que fico pela multidão,
esqueço de tirar os sapatos.

— Tira depressa e vamos! — diz Venkataramani.

Não sabendo o que fazer deles, deixo-os simplesmente na rua, fazendo votos
para encontrá-los ao sair.

Atravessamos um vasto corredor e entramos numa grande sala vazia. Ao fundo,


numa espécie de alcova, apenas iluminada por uma luz embrionária, percebo
uma figura erguida na penumbra. Aproximo-me e deposito minha oferenda,
fazendo reverências. Sempre apreciei o caráter verdadeiramente estético dessa
cerimônia, além do respeito e da cortesia que por dever me cabem.

Shri Shankara não é o Papa, pois tal posto não há no Indostão; entretanto, é o
pastor de um vasto rebanho — o pai espiritual de toda a Índia Meridional.

* * *

Observo-o em silêncio. Envolto em ampla túnica ocre, apoiado no seu bastão de


peregrino, parece não ter mais de quarenta anos, mas já tem os cabelos
encanecidos. Sua nobre face de tez castanho-cinza, gravou-se na minha
memória, de modo a nunca mais esquecê-la, dentre a considerável galeria das
fisionomias já vistas por mim.
Um francês chamá-lo-ia de spirituel; não sei se o termo é adequado, pois a
expressão geral dos seus traços denota tanta humildade e doçura quanta é
grande a beleza dos seus negros e meigos olhos; o nariz é reto e de uma
regularidade clássica, a barba curta e a boca de uma seriedade notável. Tal
como o vejo, parece mais um santo da Idade Média, acrescido de um toque
intelectual. Um ocidental talvez julgasse seus olhos um pouco sonhadores: para
mim, porém, sem saber por que, sinto que há algo mais do que um sonho, oculto
atrás dessas pálpebras pesadas.

— Vossa Santidade é muito bondoso por me ter recebido, digo, à maneira de


introdução.

Ele se volta na direção do meu companheiro, dizendo-lhe alguma coisa que não
compreendo, mas adivinho. Venkataramani traduz:

— Sua Santidade entende seu idioma, mas não tem hábito de falá-lo; prefere
que eu traduza as respostas.

Passo rapidamente sobre a primeira parte da entrevista, que trata de minha


pessoa e das minhas experiências neste país. Ele se mostra curioso de saber
minhas impressões sobre as coisas e o povo da Índia, e assim começo a contar-
lhe tudo o que penso, misturando louvores e críticas. Daí a conversa se estende
e fico surpreso ao notar que este Prelado oriental lê diariamente os jornais
ingleses e está a par de tudo o que se passa no mundo. Se houver, por acaso,
uma sessão tempestuosa no Parlamento, ele sabe qual é o motivo do tumulto,
como também não ignora quão doloroso esforço empregou a Europa para dar à
luz a democracia.

Lembrei-me que Venkataramani me disse que Shri Shankara possui o dom da


profecia. Eis, penso, este é o melhor momento de perguntar sua opinião sobre o
próximo futuro de nosso planeta.

— Quando Vossa Santidade julga que vai melhorar nossa situação política e
econômica?

— Não vejo mudança para breve. Isso é uma questão de tempo. Como podem
as coisas melhorar se as nações gastam em armamento a maior parte de suas
rendas?

— Entretanto, fala-se muito em desarmamento; será sempre conversa vã?

— Pois bem; podem demolir os couraçados e pôr os canhões no ferro velho, isso
não impedirá a guerra. Os povos continuarão se batendo, mesmo com paus, se
não houver nada de melhor para ser usado como arma.

— Mas então qual é a solução?


— Nenhuma. É o espírito que precisa mudar. Somente a mútua compreensão
das nações e das classes trará a confiança, estabelecendo a paz e a
prosperidade na terra.

— Teremos ainda muito que esperar, então. Conforme o senhor está dizendo,
nossas perspectivas não parecem atraentes.

Sua Santidade se apóia um pouco mais no bastão e suavemente responde:

— Ainda nos resta Deus.

— Se resta Deus, então Ele parece estar bem longe — retruco, secamente.

— Deus não tem senão amor pelos homens — responde com sua voz suave.

Esforço-me por conter o sentimento de amarga ironia que me invade:

— A julgar pelas nossas infelicidades e desgraças, mais depressa acredito que


Deus não tem senão indiferença para conosco.

Mas ante o sentimento de censura, que percebo nos olhos de Sua Santidade,
sinto logo arrependimento de minhas palavras.

— Com um pouco de paciência o senhor mais tarde compreenderá melhor. Deus


restabelece as coisas na hora por Ele marcada. O estado permanente de
agitação, de decadência moral dos povos, os sofrimentos de milhões de
indivíduos farão com que o homem inspirado por Deus venha em nosso socorro.
Cada século possui seu redentor. Isso é como uma lei física: quanto maior for a
decadência causada pelo materialismo e pela ignorância das forças mentais,
maior será o homem que se levantará para socorrer a Humanidade.

— O senhor, então, aguarda que o homem se levante espiritualmente, ainda em


nossos dias?

— Em nosso século, mais exatamente, não resta a menor dúvida. A angústia do


mundo é tão grande, tão profunda é a noite em que a humanidade se debate,
que o homem inspirado por Deus tem que se levantar.

— Na sua opinião, por que estará ele caindo cada vez mais em estado de
degradação?

— Não, não é a isso que me refiro. A alma divina que habita o homem, acabará
finalmente por levá-lo a Deus.

— Não obstante, nossas cidades ocidentais estão povoadas por tal quantidade
de velhacos, patifes e criminosos que mais fazem crer que uma alma do demônio
está morando neles.
— Não censure o povo. O meio, as circunstâncias fazem-no piores do que na
verdade ele é, tanto no Oriente como no Ocidente. É a sociedade que deve se
levantar, despertar espiritualmente e substituir seu desastroso materialismo por
um ideal qualquer. Não há outro remédio para sarar as chagas purulentas do
mundo. Essa agitação tumultuosa das nações, a corrução, a agonia da
sociedade, são justamente os males dos quais sairá uma solução; é assim
também em relação ao indivíduo: quando uma série de desgraças nos cerca, é
uma advertência de que chegou o momento de tomarmos outro rumo na vida!

— Então, se é que eu o compreendo, o senhor quer que os povos introduzam


princípios morais na base das relações internacionais?

— É exatamente isso. Não é impossível; é, sim, a única solução que pode


beneficiar cada qual de maneira mais estável. E, se houvesse mais homens de
realização divina dispostos a divulgar a Luz, o resultado seria bem mais rápido.
A Índia tem a honra de possuir alguns desses sábios, não tanto como no passado
remoto; mesmo assim, não deixa de tê-los e guardá-los com veneração e
respeito. Se o mundo inteiro fizesse o mesmo e aceitasse conselhos dos Sábios
que vêem com os olhos do espírito, não haveria conflitos, e, sim, a paz na terra
e prosperidade crescente em volta.

Fico satisfeito por saber que Shri Shankara, ao contrário da maioria dos seus
patrícios, não exalta seu país em detrimento do Ocidente; ele admite que tanto
um como outro têm seu caráter próprio, feito de vícios e de virtudes, mas se
equiparam em conjunto; acredita que uma geração mais sábia fundirá num plano
mais elevado o que as duas civilizações possuem de melhor.

Deixando esse assunto, peço à Sua Santidade permissão para fazer-lhe


algumas perguntas de ordem pessoal, o que me foi concedido facilmente.

— Há quanto tempo Vossa Santidade está de posse do seu título?

— Desde 1907. Tinha então apenas doze anos. Quatro anos depois, retirei-me
para as margens de Cauveri, dedicando-me aos estudos e à meditação. Foi
depois de então que comecei a aparecer em público.

— Vossa Santidade não costuma permanecer no seu quartel general em


Kumbakonam, presumo?

— A razão é muito simples: em 1918 o Marajá de Nepal convidou-me a fazer


uma visita ao seu palácio. Aceitei, e desde aquela ocasião estou a caminho para
seu Estado, no extremo norte do país. Veja só, desde aquela época não avancei
mais do que algumas centenas de milhas, pois a tradição do meu cargo obriga-
me a parar em todas as cidades e aldeias por onde passo, e mesmo naquelas
que ficam perto da minha rota. Sou obrigado a fazer um sermão no templo da
localidade e ministrar alguns ensinamentos aos habitantes que desejem ouvir-
me.
Passo ao objeto das minhas buscas e Sua Santidade pergunta sobre os Yogues
e ermitões que encontrei; não lhe escondo nada e com toda franqueza respondo:

— Gostaria tanto de encontrar um homem que, dentro da doutrina, já tivesse


atingido uma suficiente perfeição e fosse capaz de dar-me uma espécie de prova
convincente. Muitos dos vossos santos homens, quando lhes peço que
comprovem o que dizem, respondem com torrentes de palavras de pura lábia.
Será que peço demais?

Seus olhos meigos me escrutam; em silêncio, Sua Santidade acaricia a barba e


diz:

— Se o senhor busca a iniciação na Yoga real, do tipo superior, não pede


demais, não. Sua sinceridade ajudá-lo-á, porque sinto a força do seu
empreendimento, e a luz que começa a despertar em seu espírito guiá-lo-á ao
objetivo dos seus esforços, sem a menor dúvida.

Não sei se o entendi bem.

— Até agora sempre fui meu próprio guia e jamais contei a não ser comigo
mesmo. Os vossos sábios de outrora doutrinam que não há outro Deus senão
Aquele que possuímos em nós.

— Deus está em toda parte. Ele sustenta o universo, como estaria contido nos
limites do nosso ego?

Sinto que estou escorregando em terreno perigoso e mudo a pergunta:

— Qual, para mim, a diretriz mais prática a tomar?

— Continue sua peregrinação. Ao terminá-la, pense nos diferentes Yogues e


santos homens que encontrou; escolha então um deles, aquele que mais o tenha
atraído; volte para ele e o senhor receberá, sem dúvida, a iniciação que tanto
anela.

Admiro a perfeita serenidade dessas palavras e a paz imperturbável do seu


semblante.

— Mas se nenhum deles preencher essa condição?

— Neste caso, continue sozinho até que Deus mesmo o inspire; pratique
regularmente a meditação. Os melhores momentos pata a prática desses
exercícios são a hora de acordar e a do crepúsculo, pois a quietude que então
se espalha sobre a natureza favorece a meditação.

Tanta benevolência me comove; chego a invejar essa paz inabalável que ilumina
sua face.
Com toda a certeza, esse coração jamais conheceu os horrores que devastaram
o meu! Cedendo a um impulso mais forte que a minha vontade, pergunto:

— Se fracassar, poderei implorar a sua ajuda?

Shri Shankara meneia suavemente a cabeça:

— Estou à testa de uma instituição de ordem geral e o tempo não me pertence;


meu cargo absorve-o quase que inteiramente; durante anos dormi apenas três
horas por noite; nestas condições como poderei tomar discípulos? Procure um
mestre que lhe possa consagrar seu tempo.

— Disseram-me que os mestres dignos desse nome são raros e que um


ocidental tem muito pouca probabilidade de encontrá-lo.

— Sem dúvida, mas a Verdade deve estar em alguma parte. Quando alguém a
procura, deve forçosamente acabar por achá-la.

— Não poderia Vossa Santidade indicar-me algum mestre capaz de provar a


verdade da sua doutrina?

— Com todo prazer; conheço dois que poderiam satisfazê-lo. Um deles mora em
Benares, escondido no fundo de uma chácara; poucas pessoas têm sido
admitidas ou têm podido aproximar-se dele. Um ocidental, ainda menos do que
qualquer outro, e não creio mesmo que um só o tivesse conseguido. Contudo,
poderei recomendá-lo, mas receio que ele recuse recebê-lo.

— E o outro? pergunto ansioso.

— O outro mora no interior do país, muito longe, lá no sul. Visitei-o uma única
vez e reconheço-o grande mestre; recomendo-lhe que vá vê-lo.

— Quem é ele?

— Chama-se Maharichi. 1 Vive em Arunachala, nas colinas do Santo Lume, no


território de Arcot do Norte. Deseja mais informações a respeito?
1. Título derivado do sânscrito. Maha significa grande; richi significa sábio ou vidente. Portanto
Maharichi significa Grande Sábio.

Repentinamente essas palavras tornam-se para mim como um raio de luz.


Revejo em pensamento uma espécie de frade, em vestes de cor amarela que
em vão tanto se esforçou para levar-me ao seu mestre longínquo. Não, eu não
me engano, eu bem o ouvi dizer: “A colina do Santo Lume”.

— Muito obrigado à Vossa Santidade; tenho precisamente alguém que me dará


todas as informações suplementares.

— Então o senhor irá?


Ainda meio hesitante, digo:

— Tomei todas as providências para viajar ao sul amanhã...

— Neste caso, tenho que pedir-lhe que me prometa não deixar o sul da Índia,
antes de ver o Maharichi.

Leio no seu olhar tanta sinceridade e tão leal desejo de ajudar-me, que lho
prometo sem vacilações.

— Não se atormente mais, pois vai encontrar o que o senhor está buscando.

Ouço atrás de mim as vozes da multidão, que começa a perder a paciência.

— Receio ter abusado do seu tempo, Santidade. Perdoe-me.

Mas, não. Shri Shankara está sorrindo e me acompanha até à porta, sussurrando
alguma coisa no ouvido do meu companheiro. Ouço meu nome na conversa.
Volto-me, para uma última reverência, e Sua Santidade ainda me fala com
suavidade:

— O senhor sempre se lembrará de mim, como eu também nunca o esquecerei.

Com essas enigmáticas palavras, retiro-me, pesaroso por deixar esse homem,
cuja vida toda está entregue ao culto do divino. Não ligando ao poder desse
mundo e a tudo renunciando. Aquilo que recebe, bondosamente dá.
Evidentemente, essa bela alma, bem como sua nobre personalidade, jamais se
apagarão de minha memória.

Até ao anoitecer, estive vagando pelas ruas de Chingleput, apreciando seu


secular encanto, mas antes de deixar a cidade, e na esperança de rever pela
última vez o Shri Shankara, dirijo-me ao templo. Encontro-o falando a uma
multidão de homens, mulheres e crianças; sua voz ressoa no mais absoluto
silêncio. Embora compreender as palavras, sinto que todo aquele rebanho,
desde o douto Brâmane, até o camponês analfabeto, está suspenso de seus
lábios. Pelo que já sei da sua personalidade, adivinho que ele expõe, em
palavras muito singelas, as verdades mais profundas. Mais ainda do que a
nobreza da sua grande alma, invejo a fá daqueles que o ouvem, porque jamais
conheceram o horror da dúvida; eles simplesmente crêem, nada mais. Parecem
nada saber do que é atravessar sombrias noites de desespero de alma, quando
não se percebe o mundo senão como uma selva, onde feras famintas se
despedaçam, donde Deus se afastou para esferas longínquas e inacessíveis, e
onde a própria existência humana parece nada mais ser que o efeito de um
capricho do universo indiferente.

Deixamos Chingleput sob o céu cor de anil semeado de estrelas; uma brisa
inesperada perfuma o ar, balouçando os topos das palmeiras.
Meu companheiro rompeu esse encantador silêncio, visivelmente muito
satisfeito:

— O senhor pode vangloriar-se de ter sorte! É a primeira vez que Sua Santidade
concede uma entrevista a um escritor ocidental.

— É verdade mesmo?

— E, de agora em diante, sua bênção o acompanhará e iluminará o caminho da


sua busca.

* * *

Era quase meia-noite quando chegamos em casa. As estrelas brilhavam em


cintilações magníficas, num extraordinário esplendor, de que não se tem a menor
idéia no Ocidente.

Subindo os degraus de minha varanda, percebo um vulto acocorado, surgindo


da penumbra.

— Subramanya! — exclamei surpreso. — Que está o senhor fazendo aqui?

O Yogue embuçado de amarelo acolhe-me com seus risos trejeitosos:

— Não havia prometido visitá-lo, senhor?

— É exato.

Ouço em sua voz uma nota de censura, mas agora sei como acalmá-la.

— Seu mestre não se chama Maharichi?

— Como o sabe, senhor? Quem lho disse?... exclama, quase fulminado de


surpresa.

Pouco importa. Mudei de idéia; desejo vê-lo. Vamos partir amanhã de manhã.

— Isso é que se chama uma boa notícia!

— Sim, mas talvez só possa ficar lá alguns dias.

Estou exausto, penso somente em dormir, mas Subramanya é tão feliz que não
quer me deixar; põe uma esteira no chão e deita-se, cobrindo-se com um pano
felpudo que lhe serve de colchão, de lençol e de cobertor, recusando minha
oferta de um pouco mais de conforto.

Adormeci aparentemente; em todo caso perdi a consciência. Bruscamente


acordo. Que horas são? Consulto o quadrante luminoso do meu relógio: faltam
quinze para as três. A escuridão é completa. Sinto meus nervos extremamente
tensos, como se o ar estivesse carregado de eletricidade. Nesse momento, com
os olhos semicerrados, tenho consciência de alguma coisa luminosa estar
brilhando nos pés da minha cama. Levanto a cabeça e sento-me de um salto.
Para meu grande assombro, vejo os olhos de Shri Shankara, sua face, e o corpo
de Sua Santidade! Estou bem desperto, isso não é uma ilusão. Não o vejo como
uma sombra ou um fantasma transparente e fluido, mas sim como um ser real,
dotado de vida. Seu rosto está nimbado por uma espécie de auréola
fosforescente; foi, aliás, essa aura que me deu a impressão de luminosidade.

Não pode ser! Deixei-o em Chingleput, como seria possível? Fecho os olhos, a
aparição está lá, como uma presença amiga, benévola. Torno a abrir os olhos:
vejo-o, nitidamente, embuçado em seu traje ocre.

O rosto parece animar-se, os lábios sorriem e se movem, parece que eles me


falam: “Sê humilde e acharás o que buscas!”

Essas palavras eu não as ouço senão um mim mesmo; no entanto, tenho a


certeza de que isso não é uma alucinação; há realmente diante de mim um ser
humano que me fala! A visão desaparece tão misteriosamente como veio. Sinto-
me transbordante de exaltação e felicidade e, apesar de tudo ser tão
extraordinariamente fantástico, fico num estado de calma que me surpreende.

Não posso dormir mais essa noite. Acordado o resto das horas, ponho-me a
repassar na memória os pormenores da inesquecível entrevista com Sua
Santidade, o representante de Deus para a humilde população do Sul da Índia,
o Shri Shankara de Kumbakonam.
9
A Colina do Santo Lume

Em Madras, onde termina a ferrovia do Sul da Índia, tomamos, Subramanya e


eu, o trem especial para os passageiros que devem tomar o navio para Ceilão.
Tínhamos já rodado horas agradáveis por entre a pitoresca e variada paisagem
da região, descortinando os arrozais, alternados de colinas arroxeadas de
aspecto tristonho e abandonado, as plantações de coqueiros entremeadas de
campos de arroz nos quais vimos penar os camponeses, curvados sobre o sulco
do arado, quando bruscamente cai o crepúsculo. A paisagem começa a ficar
velada e eu deixo então de olhar pela janela e retorno aos pensamentos que me
obsedam.

Quantas aventuras sucederam desde que Brama me deu este anel! Todos os
meus planos ficaram desde então transtornados; uma corrente estranha de
forças ocultas, as circunstâncias criadas lançam-me para o sul, enquanto sou
chamado para o leste. Será possível que essa pedra engastada num aro possua,
realmente, o poder que lhe atribui o Yogue? Preciso conservar minha mente
lúcida para poder julgar os fatos com toda clareza, pois para um europeu
acostumado aos métodos de investigação da ciência moderna é difícil formular
uma hipótese. Também não a procuro, e há para isso uma razão encoberta: não
posso duvidar mais de que houve forte e estranha coincidência no conjunto de
circunstâncias imprevistas, guiando meus passos a esse eremitério nas
montanhas.

Parece-me que esses dois homens desconhecidos, de surrão amarelo, são os


instrumentos na mão do destino que me leva a um outro desconhecido chamado
Maharichi. Não entendo o destino, no sentido banal da palavra, mas não
encontro um outro termo, e por experiência sei como às vezes um incidente,
aparentemente insignificante, faz parte da vida do homem. E quem não o sabe?

A quarenta milhas de Pondicheri, esse comovente vestígio do que foram as


antigas possessões francesas na Índia, deixamos o trem especial e baldeamos
para um outro, suburbano, numa linha que se perde no interior do país. Mas
soubemos que o trem não iria chegar tão cedo e isso obriga-nos a passar duas
horas na semi-obscuridade da sala de espera vazia, da pequena estação
ferroviária. Eu fico na sala enquanto Subramanya prefere andar num vaivém pelo
cais deserto. Sigo com o olhar seu vulto esguio, que parece um fantasma sob o
céu escuro. Finalmente o pequeno trem aparece. Somos quase os únicos
passageiros.

Adormeço. Caio mesmo num sono agitado, cortado por sonhos; ao cabo de
algumas horas, meu companheiro me sacode. Saltamos numa estaçãozinha de
aldeia, que entra em silêncio e escuridão logo que a locomotiva se afasta levando
sua luz e seu bafejo, dissipando-se dentro da noite. Outra vez somos forçados a
acomodar-nos na sala de espera escura e sem conforto, onde acendemos a sua
única lamparina a querosene.

Quando, ao despontar da alvorada, os primeiros raios de sol penetram pelo gradil


de estreita janela, procuro orientar-me. A algumas milhas de distância perfila-se
o contorno, ainda vago, de uma elevação isolada; sua base é imponente, mas o
vértice, por aquela manhã brumosa, está coberto de nuvens.

Subramanya vai dar uma espiada à procura de condução e descobre logo, pelo
barulhento roncar, um cocheiro adormecido no assento de uma pequena carroça
de bois. Aos nossos apelos estridentes, o espírito comercial do negociante o
desperta rapidamente. Ao saber de nosso destino ainda mais se excita o seu
zelo, apesar do meu olhar um tanto desconfiado, ao examinar o estreito veículo
de duas rodas que nos iria servir de transporte. Enquanto o homem ajeita nossa
bagagem na traseira da carroça, instalamo-nos o melhor possível. Meu santo
companheiro se faz o menor que pode para deixar-me maior espaço livre. Subo
ligeiro para baixo do baldaquim e sento-me com as pernas balançando no ar.
Quanto ao cocheiro, ele toma o lugar entre as traseiras dos bois, no varal, o
queixo tocando os joelhos. Assim acomodados, partimos.

Avançamos lentamente, apesar do consciencioso esforço de um bonito par de


zebus brancos.

Esses belos animais são aqui muito mais úteis do que os cavalos, sobretudo
como bestas de carga, porque são mais resistentes ao calor e muito menos
dispendiosos. A vida nos pequenos lugarejos e aldeias do interior da Índia não
evoluiu; é a mesma dos séculos passados. Essa carroça de bois que nos leva
agora é do mesmo gênero das que transportavam os viajantes há cem anos ou
mais, antes da Era Cristã. Nosso cocheiro, um rapagão de face bronzeada,
sente-se orgulhoso dos seus zebus que estão com os longos cornos, em forma
de lira, enfeitados com adornos dourados. Levam sinetas de cobre, amarradas
nas pernas, que tilintam ao andar monótono dos animais; são conduzidos por
meio de uma corda que lhes atravessa as narinas, e seus cascos mergulham na
poeira fulva da estrada.

O sol tropical, depois de uma rápida aurora, já se vai levantando no céu cor-de-
rosa. Uma luxuriante paisagem se descortina ao nosso olhar. Não é uma planície
monótona; a região é montanhosa e serras onduladas se estendem até onde a
vista pode alcançar no horizonte. A terra é roxa, semeada de pequenos arbustos
e arrozais, cujo verde vivo repousa o olhar.

Vejo um caboclo de face sulcada de rugas, certamente gasto pelo labor, indo
para os afazeres cotidianos. Uma jovem caminha com um cântaro de cobre
amarelo posto graciosamente na cabeça, um sari vermelho envolve-lhe o corpo
airoso, uma pedra cor de sangue orna-lhe uma das narinas e um par de pulseiras
douradas brilha-lhe nos pulsos, aos reflexos do sol. A tez escura de sua pele lhe
trai a origem dravidiana. Aliás, é essa a raça da região. Os Dravidianos são
alegres e brincalhões por natureza, mais sociáveis e faladores do que os da raça
morena e possuem também voz mais harmoniosa. Pelo olhar de surpresa que a
jovem nos lança, suponho que a aparição de um homem branco não deve ser
uma coisa comum nestas redondezas.

Finalmente chegamos a uma pequena povoação, cuja aparência próspera pode


ser atribuída à imensidade de um gigantesco templo que aí se levanta, tomando
vários quarteirões com seu volumoso tamanho.

Ao passarmos diante de um dos portões que, por si só, dão idéia da gigantesca
arquitetura, faço parar um pouco o veículo, pois desejo ter uma rápida visão do
lugar. O conjunto é tão imponente quanto grandioso. Nunca eu vira antes uma
construção igual: o interior é formado por um vasto pátio em forma quadrilátera,
onde a vista, constantemente presa, fica como num verdadeiro labirinto. Quatro
gigantescos portais das fachadas exteriores estão cobertos de ornamentos e
esculturas batidos pelos séculos e dourados pelo sol tropical. Este imenso portal
com a base de pedra talhada e a parte superior revestida de estuque, está
sobreposto por pagodes em forma de pirâmide, que também, apresentam uma
variedade infinita de baixos relevos e esculturas. Além dessas quatro torres dos
portais, percebo ainda cinco outras, balizadas no interior do templo. Todas elas
têm o mesmo perfil, o que me faz lembrar as pirâmides Egito. O último lance de
vista revela-me um imenso pátio central, fileiras de colunas, claustros cercados
por sombrios santuários, passagens escuras e uma quantidade de pequenas
construções abrangendo incalculáveis oratórios.

Prometo a mim mesmo explorar todas essas maravilhas quando tiver um


momento livre.

Os zebus continuam seu andar plácido e outra vez estamos em pleno campo. A
paisagem é encantadora; a estrada é coberta por uma espessa camada de pó
fulvo. Aos lados enfileiram-se os arbustos baixos em cujos galhos devem-se
aninhar milhares de pássaros, a julgar pelo ruflar das asas e pela sinfonia dos
coros matutinos que chegam aos nossos ouvidos.

De vez em quando, de ambos os lados da estrada surge algum santuário cuja


variedade de estilos denota diversas épocas de construção; uns com excesso
de ornamentos bem à moda indiana; outros possuem colunas de pedra polida
como se podem encontrar somente no Sul. Dois ou três desses templos têm uma
sobriedade de perfil clássico, assemelhando-os pela sua pureza aos templos
gregos.

Depois de percorrer mais cinco milhas, chegamos à primeira elevação da serra


que vagamente percebi da estação. Agora vejo-a erguer-se diante de mim, na
limpidez da luz matinal, em toda sua forma gigantesca, castanho-escura. A
neblina dissipou-se, e do conjunto se destaca uma montanha isolada, de terra
avermelhada, cuja rocha castanho-metálica, em maior parte nua, é um
amontoado de enormes pedras esboroadas, espargidas em caótica desordem.

— Arunachala! a sagrada montanha vermelha! — exclama Subramanya com


uma expressão de fervor e exaltação tão profunda, que seu rosto iluminado
assemelhava-o a um santo medieval.

— O nome dela possui uma significação especial? pergunto.

— Acabo de dizer: compõe-se de duas palavras: Aruna e Achala, isto é, a


montanha vermelha. Mas é também o nome da divindade do templo, por isso, a
chamamos “Sagrada Montanha Vermelha”.

— E o que vem a ser santo lume?

— Uma vez por ano, numa festa religiosa cuja cerimônia é celebrada no templo,
os sacerdotes acendem uma grande fogueira no topo da montanha; o fogo é
alimentado por tão grande quantidade de manteiga e cânfora, que arde durante
dias e sua chama é visível a várias milhas em redor. Ao vê-la, todo o povo se
prosterna em veneração, pois esse fogo simboliza que a montanha é uma terra
sagrada, sob a proteção de grande divindade poderosa.

A montanha aparece cada vez mais em toda sua massa volumosa. É de fato
imponente, esse pico solitário, matizado de cores vermelha, castanha e cinza,
erguendo sua cabaça a milhares de pés acima da planície para o céu cor de
pérola. Seja por causa das palavras do Yogue, ou por uma outra razão que
ignoro, é com um sentimento de sagrado respeito que meus olhos percorrem as
encostas íngremes da montanha.

Sussurra-me o meu companheiro:

— Convém notar que essa montanha não é apenas um desses venerados


lugares, consagrado a uma divindade; conforme a tradição, os deuses queriam
que ela marcasse ali o centro espiritual do universo!

É bastante ousada a concepção; não posso conter o sorriso. O que me interessa


no momento é a notícia de que estamos quase chegando. Deixamos a estrada
e descemos pelo caminho em franco declive; passamos a floresta de coqueiros
e mangueiras e chegamos ao lugar onde a vereda acaba bruscamente diante de
um portão. O cocheiro desce e abre a porteira; paramos no centro de um vasto
pátio. Afrouxo um pouco minhas pernas dormentes e procuro orientar-me.

A ermida de Maharichi está cercada, em frente, por árvores plantadas em fila


fechada e por um jardim de vegetação; por trás e dos lados, protege-a uma cerca
viva de arbustos e cactos gigantes. Mais além, uma selva densa de silvas e tojos
estende-se para terminar em copada e sombria mata. Embora a ermida esteja
construída nas escarpas mais acessíveis, parece perdida na solidão, isolada do
mundo; nenhum outro lugar poderia ser mais indicado para a meditação do que
este.

Dois pavilhões com telhados de palha ficam do lado esquerdo do pátio;


alargando-se, acabam na fachada de uma construção comprida e moderna,
revestida de tijolos, e coberta por telhas; uma pequena varanda toma uma parte
da fachada; no meio do pátio, um poço, onde percebo um rapazola seminu, de
pele quase negra, enchendo um balde de água, mediante uma roldana que
range.

A notícia de nossa chegada atrai a atenção de alguns moradores da casa. Fico


chocado ao ver a maneira com que eles se vestem: uns têm por toda roupa um
pano em volta dos rins, outros trajam magníficos indumentos brancos de seda
pura! Todo esse povo nos olha com ar de surpresa. Subramanya se aproxima
falando-lhes alguma coisa em tâmil, acompanha-o esse riso que parece mais
uma chacota, mas com o qual felizmente, acabei por acostumar-me. Os rostos
se iluminam, e eu já os amo, essas faces bronzeadas de homens francos e
sorridentes.

— Vamos nos apresentar — diz Subramanya — convidando-me a segui-lo.


Antes de entrar ainda paro à porta para tirar os sapatos e pôr um pouco de ordem
na cesta de frutas que trouxe em oferenda.

Vinte rostos bronzeados e negros nos fixam. Seus donos, acocorados de pernas
cruzadas em meio círculo no chão de ladrilhos vermelhos, ficam a respeitável
distância do ponto para o qual seus rostos estavam voltados. Logo, esse ponto
atrai meu olhar; vejo uma figura sentada no divã comprido e branco, e não
preciso mais perguntar a ninguém, tanta certeza tenho de que é Maharichi em
pessoa. Subramanya se aproxima e prosterna-se no chão, cobrindo os olhos
com as mãos. Uma alta e larga janela está a alguns passos do divã; a luz viva
que cai sobre o asceta permite-me distinguir-lhe bem os traços.

Reparo seu olhar fixo na direção do caminho pelo qual nós chegamos; a cabeça
está em absoluta imobilidade; inclino-me e deposito na janela minha oferenda,
recuando um passo.

Um pequeno braseiro de cobre fica em frente do divã, um agradável aroma de


âmbar sobe das brasas acesas, rescendendo no ambiente como num santuário.
Mais perto ainda, um defumador com varetas de incenso; uma leve fumaça azul
se levanta das pontas, oscilante, espalhando um perfume penetrante, mas
diferente do outro.

Ponho no chão um cobertor de algodão e sento-me para contemplar a figura


silenciosa e rígida, acocorada no divã. O corpo está nu, uma pequena tanga
cobre-lhe as partes mais íntimas; é o modo muito natural de vestir-se nessa
região tórrida. A pele é ligeiramente bronzeada, mas muito clara em comparação
à dos moradores, originários do Sul. Deve ser alto, aparenta uns cinquenta anos;
a cabeça bem torneada, de cabelos encanecidos que são cortados muito rente;
a testa denota uma grande inteligência; seus traços se assemelham mais aos de
um europeu que aos de um hindu. Essa é minha primeira impressão. O divã está
coberto por travesseiros alvos, e aos pés, uma magnífica pele de tigre cobre o
chão de ladrilhos.

Não se ouve nada — na sala reina um silêncio mortal; o sábio continua


majestosamente imóvel, aparentemente inconsciente. Gostaria eu de saber se,
todavia, ele nos percebeu entrar! Minutos se passam. Um discípulo de tez
morena vem romper o silêncio, puxando a corda que move uma ventarola feita
de tiras de bambu entrelaçadas. A ventarola está suspensa a uma das vigas,
abanando a cabeça do Sábio.

Olho o Maharichi, fixando-lhe bem os olhos, esperando chamar-lhe a atenção;


seus olhos, de cor castanho-escuro, são muito abertos. Não sei se ele tem, ou
não, consciência da minha presença, pois nenhum sinal exterior o denota; o
corpo conserva a rigidez de estátua. Essa imobilidade, acho-a sobrenatural. Não,
ele não pode me ver porque seus olhos estão parados num vácuo, fixos e
ausentes como se estivessem em esferas longínquas, onde não se tem acesso.
Mas eu já vi uma atitude parecida! Não preciso andar muito longe através das
galerias de minhas lembranças para ver o retrato do Sábio que nunca fala, o
Yogue do subúrbio de Madras, cujo corpo parecia ser esculpido em pedra. Era
a mesma rigidez, a mesma imobilidade assustadora. Na Europa tomei como
axioma a idéia comumente conhecida de que pela leitura dos olhos é possível
chegar à análise da alma, mas diante dos olhos do Maharichi, hesito e me perco.

Minutos se escoam vagarosamente. O relógio suspenso na parede marcou


meia-hora, depois uma, mas ninguém se move, ninguém fala. Cheguei até a
esquecer a existência dos homens que me rodeiam. Todo meu poder visual se
concentrou nessa figura imóvel, sentada com as pernas cruzadas no divã.

Minha oferenda ficou onde a coloquei, ninguém dela tomou conhecimento.

Meu guia não me tinha avisado que iria ter uma recepção igual àquela de
Madras, recepção característica pela sua total indiferença à minha pessoa.
Ao ver o homem sentado, imóvel, minha primeira idéia deve ser a mesma de
qualquer ocidental: essa atitude, será simplesmente uma atitude fingida? — Não,
o homem está em êxtase! Tenho certeza, embora meu guia não me explicasse
nada. Aí vem uma outra hipótese: será que esse estado de contemplação mística
é apenas um vácuo da mente? — fico pensando. Finalmente, afasto também
essa idéia, por uma razão muito simples: acho-me incapaz de responder.

Contudo, alguma coisa neste homem me atrai como imã; não posso desviar dele
meus olhos e, pouco a pouco, com minha surpresa, a confusão que senti ao
chegar aqui desapareceu e cedeu lugar a uma muito estranha, mas imperiosa
fascinação. Duas horas se passam. Começo a notar uma mudança singular a
efetuar-se em mim. As perguntas, que meticulosamente elaborei no trem,
começam a cair, uma após outra. Acho-as tão fúteis para formulá-las. Os
problemas que me assediavam parecem tão insignificantes!... Começo a sentir
uma imensa quietude, uma paz infinita a envolver-me como se ela fosse vinda
das partículas do ar que respiro aqui. Não compreendo como se pode dar isto,
mas sinto minha mente, torturada pela tirania dos pensamentos, acalmar-se,
como que perder-se no esquecimento.

Percebo agora quão fúteis são, de fato, essas perguntas! Quão mesquinha é a
fuga dos anos perdidos... Com nitidez concebo de súbito que a mente cria seus
próprios problemas, torturando-se em vão para resolvê-los. Para quem, até
agora, dava valor soberano ao intelecto, a idéia é de fato nova. Abandono-me a
ela com tanto prazer que me dá essa sensação de repouso — eis que duas horas
se haviam passado sem que me sentisse aborrecido ou irritado! A corrente
pesada de problemas à qual estava amarrada minha mente parece afrouxar-se
e largar-me.

Pouco a pouco todavia, uma nova pergunta me invade: qual será o mecanismo
desse fenômeno? A sensação de paz que sinto, emana desse homem, como
perfume da flor? Não acho resposta. No entanto, sinto minhas próprias reações!
Essa suspeita vem crescendo: será que essa paz divina que nasce em mim é o
resultado da minha situação geográfica atual, ou quiçá um reflexo natural da
minha mente, perante a forte personalidade do Maharichi? Essa quietude que se
segue ao bulício da minha alma, será obra sua? Como a consegue? Por algum
processo telepático ainda desconhecido? — Não sei, mas por incrível que
pareça, ele ali está, quietinho, completamente absorto e, na certa, nem sabendo
da minha existência.

Na superfície da minha mente, como na água parada, um leve sopro faz o


primeiro sulco.

Alguém se aproxima, cochichando-me ao ouvido:

— Não tens perguntas a fazer ao Maharichi?


Possivelmente, Subramanya perdeu a paciência. Ou talvez ele imagine que o
agitado europeu já ultrapassou o limite da própria paciência. Sinto muito, meu
curioso amigo, mas embora seja evidente que eu vim aqui para interrogar seu
mestre, na hora em que me sinto em paz com a humanidade e comigo mesmo,
por que iria me atormentar com perguntas tolas? Meu navio ia içar a vela no mar
encantado e você quer retê-lo no limiar da aventura, neste porto barulhento e
empestado que acabo de deixar?

Mas, infelizmente o encanto se rompeu. Como se a intervenção malograda fosse


o sinal esperado, as formas humanas, sentadas à minha volta, levantam
movimentando-se. Vozes ressoam ao meu ouvido e, ó milagre dos milagres! As
pálpebras do Maharichi começam a mover-se, uma, duas vezes; o rosto se volta
lentamente em torno da sala, lentamente... e... mais um pouco, fico no seu
campo visual. Seu olhar firma-se no meu. Agora não há mais dúvida: ele está
desperto do seu longo êxtase e ciente de tudo o que se passa.

Subramanya, na certa pensa que eu não lhe respondi por não tê-lo ouvido bem
e repete a pergunta em voz alta. Não obstante, leio nos luminosos olhos do
Maharichi, cujo olhar sereno me penetra, uma outra pergunta bem mais
eloquente: “será que você ainda se tortura com dúvidas depois de haver sentido
na sua própria carne o efeito dessa paz profunda de espírito, acessível tanto a
eles todos quanto a você?”

Em verdade, sinto uma paz benfazeja inundar-me. Volto-me para o meu


companheiro, dizendo:

— Não, obrigado, não quero fazer agora perguntas... outra vez...

Contudo, sei que se espera de mim uma explicação qualquer, não o Maharichi,
é claro, mas o seu pequeno rebanho que, animado, conversa em volta. Conforme
o que me disse Subramanya, alguns deles são discípulos titulares, outros,
apenas visitantes fortuitos. Meu guia, surpreso, encarrega-se da apresentação,
falando em tâmil com palavras desconexas e grande profusão de gestos —
parece exagerar um pouco, a julgar pelo clamor de admiração que suas palavras
provocam.

* * *

Acabamos de almoçar. O sol efervescente faz subir o termômetro a graus que


nunca se teria imaginado possíveis, mesmo no Equador. Mais uma vez, porém,
sou grato à Índia, tanto por gozar do frescor sombrio do arvoredo na hora da
sesta, quanto por seus diversos modos de agir...

Eu posso agora aproximar-me do Maharichi à maneira que gosto, isto é, partilhar


sua vida diária, normalmente, e com a maior simplicidade.
Ao entrar na grande sala, vejo o Maharichi sentado, apoiando-se no monte de
almofadas brancas, e seus pés repousam na pele macia de tigre, aproximo-me
e acocoro-me perto do divã quase tocando seus pés. Nesse momento ele está
atarefado, escrevendo algo no caderno com extrema aplicação, enquanto um
servente, puxando a corda, manobra o “punkah” que, com ruído surdo e ritmado,
espalha o ar abafado da sala, proporcionando um pouco de alívio.

O mestre, depois de alguns minutos, põe seu caderno de lado e chama um dos
discípulos, com quem troca algumas palavras em tâmil; o discípulo se volta para
mim, dizendo:

— O mestre lamenta muito que o senhor possa não gostar da nossa refeição
toda frugal, mas como nós nunca tivemos hóspedes ocidentais, não sabemos do
que eles se nutrem.

Agradeço a atenção e asseguro que com o maior prazer partilharei de seus


alimentos sem condimento e, se por acaso sentisse falta de alguma coisa, não
seria difícil procurá-la na aldeia vizinha. Aliás, acrescento, essa questão é para
mim totalmente secundária, diante do objetivo que me trouxe aqui.

Maharichi me ouve atentamente, mas conserva-se impassível; durante algum


tempo ele me fita com seus olhos penetrantes, e finalmente diz:

— Esse objetivo é digno de louvor.

Sua resposta me estimula a continuar:

— Mestre, dediquei-me aos estudos filosóficos da ciência ocidental; misturei-me


entre a multidão das grandes cidades, participei de seu labor, gozei de seus
prazeres e deixei-me levar pelas ambições. Todavia, fui também a lugares
solitários e me perdi em profundas meditações. Interroguei os sábios do
Ocidente, procurando saber; agora é para o Oriente que volto minha face,
ansioso, em busca de luz.

Maharichi faz um gesto como quem diz: “sim, eu o compreendo...”

Prossigo então:

— Ouvi muitas opiniões; atentei a diversas teorias. Forneceram-me a prova


racional de um conceito, depois de um outro... meu gabinete de trabalho está
atulhado deles; estou cansado e farto dos argumentos livrescos e das teorias
cabais! Cético de tudo que não pode ser comprovado; só uma experiência
pessoal pode convencer-me ainda. Perdoe-me, Mestre, por eu ser franco, mas
não tenho o que se diria, espírito religioso. Existe algo além da matéria? E se
existe, como posso prová-lo a mim mesmo?

Três ou quatro discípulos que nos ouvem parecem chocados com minha
audácia. Será que fiz alguma coisa errada? Infringi alguma etiqueta ou ofendi o
mestre pela minha franqueza? Não sei; a amargura de tantos anos de vã
esperança, decepções contínuas, abriram-me os lábios dos quais saíam
palavras sem que as pudesse frear. Não importa! Se o Maharichi for o homem
que suponho ser, ele deve então estar além das convenções e vai me
compreender! No entanto, ele não me respondeu; imutável, parece seguir o
curso dos seus próprios pensamentos.

Agora que minha língua se desatou, não me retenho mais, e não vou parar tão
facilmente. Continuo falando:

— Os nossos cientistas, os sábios do Ocidente, embora cheios de honrarias por


sua alta sabedoria, confessaram não possuir nenhum conhecimento sobre o
mistério do além-túmulo, nem poder desvendar o sentido oculto da vida.
Disseram-me que neste país ainda existem homens que podem responder àquilo
em que a ciência do Ocidente é omissa.

Eu quero saber, mestre! — Pode o senhor ajudar-me a desvendar a verdade


velada e alcançar a Luz? Ou talvez seja essa busca mera ilusão, e a Verdade,
uma miragem? Terminei, e fiquei esperando ansiosamente a resposta. Maharichi
continua a fitar-me; raciocina ele sobre minhas perguntas? Não sei. Dez minutos
se passam. Finalmente, seus lábios começam a mexer-se e ouço-o dizer com
voz muito suave:

— O senhor disse — eu — “eu quero saber” — diga-me, por favor, quem é esse
eu?

Que quer ele insinuar? Dispensou o intérprete, falando-me diretamente em


inglês, porém não consigo entendê-lo, não posso seguir seu raciocínio.

— Receio não o ter compreendido — respondo com a voz trêmula.

— Minha pergunta não é bastante clara? Pense um pouco!

Raciocino novamente, tentando decifrar as suas palavras. De repente uma idéia


me atravessa a cabeça: aponto o dedo para mim mesmo e digo o meu nome.

— E o senhor o conhece?

Toda a minha vida! — replico sorrindo.

— Bem; mas isso é apenas o seu corpo! Repito-lhe a pergunta: quem é o


senhor?

Que resposta eu posso dar a tão incrível pergunta?

Maharichi insiste:

— Aprenda primeiro a conhecer esse eu e o senhor conhecerá a Verdade.


Minha mente se turva e não dissimulo meu assombro; sem dúvida o Sábio já
atingiu o limite do conhecimento do idioma, pois, voltando-se para o intérprete,
disse-lhe algumas palavras, que ele traduz assim:

— Há apenas uma única coisa a fazer: olhar o íntimo de si mesmo. Se o senhor


o fizer adequadamente, achará a resposta a todos os seus problemas, em si
próprio!

— Mas como se deve fazer?

— Pensando no âmago mais profundo da sua natureza e mantendo essa


meditação ininterruptamente — eis o caminho que o pode levar à luz.

— Meditei sobre todas essas coisas sem perceber o menor progresso.

— Como o pode o senhor saber? Não é uma coisa fácil notar seu próprio
progresso na senda espiritual, como se nota na matéria.

— É necessário um mestre?

— Depende...

— Quero dizer, pode um mestre guiar o homem nessa introspecção?

— Sim, ele pode proporcionar tudo o que for preciso nessa via, porém a questão
de que se trata aqui é puramente da experiência pessoal.

— E, com auxílio do mestre, quanto tempo levará para, pelo menos, aproximar-
se da Luz?

— Isso depende do grau de preparo de cada um; a pólvora pega fogo num
instante, no entanto, é necessário muito tempo para acender o carvão.

Vagamente percebo que o Sábio não aprecia muito falar de mestres, nem de
métodos. Faço como se não entendesse e insisto. Vejo, porém, seu rosto
desviar-se, firmando o olhar na floresta que se descortina da janela aberta. Mas,
onde está a resposta? Vou me considerar satisfeito? Não!

— Mestre, vivemos em tempos críticos; ou tem o senhor uma opinião sobre o


porvir do mundo?

— Não se preocupe com o futuro! Porventura, sabe o senhor tudo que toca ao
presente? Cuide do presente e deixe o futuro por conta dos deuses.

Mas, que resposta! Desta vez não vou largar a presa tão facilmente, porque sou
deste mundo, onde as tragédias da vida pesam bem mais do que neste tranquilo
eremitério perdido na selva.
— Mestre, talvez o senhor possa dizer-me, então, se o mundo entrará
brevemente na era de paz e de ajuda mútua, ou se está, mesmo, condenado a
afundar-se na desordem e o caos tomará conta da terra?

Maharichi parece não gostar.

— Existe um Ser que governa o mundo; é a cargo d’Ele que está essa
preocupação. Este que criou o universo sabe melhor do que nós o que há de
fazer; é Ele quem carrega o peso do mundo e não o senhor.

— Pois não. Mas, mesmo assim, olhando bem, é difícil de enxergar que parte do
globo se beneficia com Sua benevolência.

Visivelmente, o Sábio não apreciou, mas deu a resposta:

— Assim como o senhor é, o mundo lhe parece; se o senhor não se compreende


a si mesmo, como pode compreender o universo? Aquele que busca a Verdade
não se importa com coisa alguma e não faz perguntas, gastando energia à toa.
Antes de mais nada, procure esforçar-se a fim de encontrar a Verdade em si,
para em seguida poder colocar-se melhor para perceber a Verdade, que se
encobre por trás desse mundo que o rodeia.

Silêncio. Um servente se aproxima e acende uma vareta de incenso. Maharichi,


depois de ter fixado o volutear da fumaça azul, retoma seu caderno e se põe a
escrever, dando-me claramente a entender que se ocupou bastante de mim. Fico
ainda sentado mais uns quinze minutos e percebo que Maharichi não está
disposto a me dar mais atenção. Que fazer, senão levantar-me, reverenciar o
Sábio, com as palmas das mãos juntas, e sair?

* * *

Mandei chamar na cidade o meio de condução para ir visitar o templo de


Arunachala. Pedi que fosse a cavalo, pois a carroça de boi, embora pitoresca,
falta-lhe velocidade e conforto.

Na porteira aparece um cabriolé de duas rodas; não há assento mas não acho
que isso seja grande incômodo; aos poucos estou esquecendo o gosto do luxo.
O cocheiro, um rapagão forte, com um turbante sujo enrolado na cabeça, de
olhar vivaz, traja, por toda roupa, um pano de algodão preso à cintura, as pontas
passam-lhe entre as pernas, formando uma espécie de calça.

O caminho longo e poeirento acaba por levar-nos à encosta de altos terraços


sobrepostos e de baixos-relevos sobrecarregadíssimos de esculturas. Começo
por visitar, rapidamente, o conjunto.

— Eu não sei lhe informar a época exata da construção do templo — responde-


me Subramanya quando o interrogo — porém, como o senhor pode notar, ele
deve ser várias vezes secular!
Ao redor dos portais e nas adjacências do templo, as barracas rústicas de paus
e vime espalham-se e abrigam-se à sombra de palmeiras. Os vendedores,
pobremente vestidos, trocam imagens santas e estatuetas fundidas em cobre
amarelo, e que representam toda a quantidade numerosa das divindades
indianas. Nota-se aqui a primazia do deus Shiva; não obstante, em diversos
lugares que visitei, observei a predominância de Krishna ou Rama. Meu guia
acaba de contar-me uma lenda, segundo a qual, o deus Shiva apareceu, um dia,
no topo da sagrada montanha vermelha sob o aspecto de uma coluna de fogo.
Em memória dessa data, cada ano, numa certa época, os sacerdotes acendem
a grande fogueira no alto da colina. Conforme a lenda, embora o fato tenha
acontecido há milhares de anos, o espírito de Shiva, ainda hoje, paira nas
montanhas e santifica o templo.

Vejo alguns peregrinos fazerem suas escolhas nas barracas; aí se podem


comprar, além de estatuetas de cobre, muito curiosas estampas coloridas que
representam episódios da história sacra indiana, os livros de caráter religioso
redigidos em tâmil ou télugo, e tintas destinadas a pintar sinais distintivos de
casta ou símbolos da seita. Um leproso avança a passos lentos, as chagas do
seu corpo, quase desnudo, estão em carne viva; o pobre desgraçado deve
pensar se vai ser ignorado ou causar-me piedade. A terrível doença imobilizou e
desfigurou os músculos de sua face. Envergonho-me de mim mesmo ao
depositar no chão uma esmola, com medo de tocá-lo.

O gigantesco portal assemelha-se a uma pirâmide do Egito, toda a sua superfície


é ornada com baixos-relevos gravados na pedra, antes de se acabar em pico
cortado. Noto quatro deles todos iguais, que com seu gigantesco volume
dominam a região. Vêem-se a várias milhas de distância, antes de se aproximar
deles.

Os baixos-relevos e curiosas estatuetas, tiradas da mitologia sagrada ou de


lendas do Panteão indiano, ornam suas fachadas. O conjunto forma um
pandemônio bem singular. Algumas das divindades estão solitárias, acocoradas
e absortas em meditação; outras, de pé, dois corpos entrelaçados em amoroso
abraço; como se sabe, na mitologia indiana há de tudo e para todos os gostos,
porque ela tem a pretensão de abranger o universo inteiro em seus dogmas.

Atravesso o adro do templo, e me detenho num canto do enorme quadrilátero.


Aquela vasta estrutura compreende um labirinto de colunatas, claustros,
galerias, altares, habitações, corredores, espaços cobertos e descobertos. Não
se trata de um edifício de pedra cuja beleza colunaria nos prenda por instantes
as emoções de silenciosa admiração, como ocorre com os átrios das divindades
perto de Atenas; trata-se, antes, de um tenebroso santuário de obscuros
mistérios. Aqueles vastos recintos me impressionam com seu frio ambiente de
solidão. É um autêntico labirinto, mas o meu companheiro o percorre com
segurança. De fora, o templo tem um aspecto atraente, pela cor avermelhada de
suas pedras, mas por dentro é todo cinzento-chumbo.

Transpomos um vasto claustro de paredes grossas e lisas, cujas colunas, que


sustentam o teto, estão cobertas das mais extravagantes esculturas. Passamos
pelos corredores escuros e suas celas sombrias, para chegar diante de outro
amplo pórtico, que dá acesso a outro pátio interno, formado por um antigo
templo.

— A Nave de mil colunas — anuncia-me Subramanya.

Vejo descortinarem-se avenidas, ladeadas de gigantescas colunas de pedra.


Umas com seu simples aspecto, outras ricamente esculpidas; esse lugar dá uma
impressão de abandono e solidão petrificante. As colunas monstruosas surgem
da sombra, como gigantes. Aproximo-me mais para examiná-las melhor; cada
coluna é feita de um só bloco; o teto que ela sustenta é formado por um
alinhamento de enormes blocos de pedra achatada. Noto, de novo, os mesmos
deuses e deusas em todas as posições em que a fantasia do escultor os colocou,
circundados de rebanhos de animais, tanto fantásticos quanto familiares.

Atravessamos as avenidas de colunas, aprumadas como soldados em ordem de


batalha, para novamente entrar nos corredores, apenas iluminados por
lâmpadas em forma de taça, com as mechas mergulhadas em óleo de rícino. Por
fim, chegamos diante de um outro pátio que atravessamos com alegria, para
gozar do sol, ao sair dessa escuridão gelada.

Desse pátio tem-se uma visão geral dos cinco pagodes menores, balizados no
interior do templo, e que são uma réplica exata dos quatro que já notei ao chegar,
destacando-se com seu gigantesco volume em forma de pirâmides; observo com
maior atenção e reparo que eles são de tijolos, e não como pensei, talhados na
pedra. Estes baixos-relevos são gravados numa espécie de estuque; algumas
das esculturas são pintadas, mas estão desbotadas pelo tempo.

Ao passar a muralha, novamente entramos na escuridão; estamos atravessando


longos corredores sombrios desse templo, raro em sua espécie, quando meu
companheiro me avisa que está próximo o santuário central, cujo acesso, porém,
não é permitido aos ocidentais. Embora o Santo dos Santos seja proibido aos
ímpios, dar-se-ia uma espiada, pela abertura, no adro.

Ouço o barulho dos gongos e tambores, as encantações monótonas de hinos


entoados por sacerdotes misturarem-se ao ritmo estranho de tocar os
instrumentos; a escuridão densa do santuário realça mais ainda a estranheza do
ofício. Aos poucos meu olhar se acostuma e vejo uma chama dourada consumir-
se diante de um ídolo, dois ou três castiçais no altar de mármore, ricamente
esculpido, e alguns fiéis cumprindo um ritual misterioso. Não percebo os
músicos, mas ouço o som das trompas e címbalos acompanhar o coro, com suas
notas graves e estridentes.

Subramanya sussurra-me que seria preferível irmo-nos embora, porque minha


presença poderia chocar os sacerdotes, em ofício. Voltamos pelo outro caminho,
deixando o santuário e a escuridão, ao entrar na parte exterior do templo onde
reina o silêncio da morte e aí dei por terminada a minha inspeção.

Quando tornamos a passar sob o gigantesco pórtico, afasto-me para não


esbarrar num velho Brâmane, sentado no meio do caminho; vejo uma cuia ao
seu lado; segurando um pedaço de espelho na mão, ele está pintando na sua
testa um tridente vermelho e branco, o sinal distintivo dos hindus ortodoxos do
Sul. Isso lhe dá um aspecto grotesco, mas evidentemente, ele não tem, como
nós, o senso do ridículo. Um velho, todo encarquilhado e murcho pela idade,
acocorado no abrigo do pórtico, troca imagens de Shiva. Ao ver-me passar,
levanta os olhos com uma expressão tão sugestiva, que paro um momento para
satisfazê-lo...

Dos confins da cidade destaca-se um esguio e alvo minarete de mármore. Nunca


pude olhar, sem sentir uma singular emoção, os delicados arcos e as cúpulas
graciosas de uma mesquita. Peço ao nosso cocheiro para levar-me até lá.

Mais uma vez tiro os sapatos e penetro nesse encantador recinto de imaculada
brancura. Sob seus arcos, tudo parece ser calculado pelo divino arquiteto com a
intenção de exaltar as almas. Vejo alguns fiéis ajoelhados, outros sentados ou
prosternados nos coloridos tapetes de oração. Aqui não há santuários
misteriosos, nem estátuas ou imagens, porque o Profeta disse que nada se deve
interpor entre o homem e Deus; todos os sequazes de Alá são iguais diante d’Ele
e nenhuma hierarquia sacerdotal deve-se impor aos fiéis que rezam à sua
maneira e voltam, livremente, os pensamentos à Meca.

Voltamos pela rua principal da cidade, ladeada de casas bancárias, confeitarias,


lojas de tecidos e vendas de sementes e de arroz, cuja quantidade se justifica
pela avalanche de peregrinos, atraídos pelo templo secular, e também por
inúmeros habitantes que moram nos arredores de suas possantes muralhas.

Agora só penso em voltar ao Maharichi. Lanço meu último olhar às nove torres
esculpidas do templo de Arunachala. Quantas gerações se teriam consumido na
sua construção? Não sei por que este templo me faz pensar no Egito. Mesmo as
ruas se assemelham às desse país; as baixas moradas de paredes grossas
parecem possuir caráter egípcio muito marcado. Será que um dia, como no
Egito, esses templos abandonados se tornarão pó vermelho e cinzas, donde a
fé humana os tirou? Ou talvez o homem vá edificar novos santuários, para
abrigar os novos deuses ainda inexistentes? Quem sabe?
Absorto em pensamentos, acalentado pelo galope monótono de nosso pônei,
quase me esqueço de olhar o magnífico panorama da mãe natureza, que se
descortina à nossa vista. Quantas vezes, nas Índias, esperei por esse momento,
único em beleza, quando o sol menos tórrido põe-se no horizonte e atira-se no
domínio misterioso da noite.

No Oriente, o crepúsculo encanta pelo seu espetáculo de deslumbrante


harmonia de colorido incomparável; mais precioso ainda por ser tão rápido, não
leva mais do que meia hora! Os intermináveis crepúsculos europeus são
desconhecidos aqui.

Vejo o enorme disco em brasa deslizar no horizonte e mergulhar nas


profundezas da selva que passa, então por todos os matizes da cor-de-laranja,
enquanto o céu resplandece de todas as cores do arco-íris, oferecendo ao olhar
deslumbrado uma gama de colorido vibrante, que nenhuma paleta será capaz
de imitar. Os campos e a floresta põem-se uníssonos com esse silêncio de
encantamento. A chilreada dos pássaros calou-se, como se calaram também as
parolagens intermináveis dos macacos da selva. O globo gigantesco,
rapidamente cortado, desaparece no horizonte; a escuridão cai cada vez mais
densa. A magia das cores apaga-se lentamente e, logo mais, a paisagem toda
se esfuma por trás do véu da noite, sob o céu salpicado das primeiras estrelas.

A paz profunda da natureza penetra meu coração e envolve meus pensamentos


em infinita ternura. Jamais poderei esquecer esses inefáveis momentos que o
destino nos prodigaliza tão generosamente, quando nos deixa manter a
esperança, a despeito da enfadonha e cruel fachada da vida, encobrindo uma
fôrça benigna que reduz ao seu justo valor nossas mesquinhezas de cada dia.
Tais instantes surgem da imensidão tenebrosa da existência como os meteoros
brilhantes, que apesar de se apagarem tão rapidamente, ainda nos deixam a
esperança.

* * *

Quando o nosso cabriolé parou na entrada, sob as palmeiras, os inumeráveis


pirilampos faziam rondas pelo jardim do eremitério, desenhando caprichosos
arabescos na vegetação negra da noite.

Entramos na grande sala e sentamo-nos nos ladrilhos cruzando as pernas. O


silêncio sublime da natureza parece penetrar o ambiente, e impregnar de paz o
ar que o envolve. Nenhuma conversa rompe o encanto; a assembléia,
acomodada em meio círculo em volta da sala, está mergulhada em meditação.

Maharichi, sentado no divã, está com os pés cruzados sob o corpo e as mãos
pousadas nos joelhos. Seu rosto, como sempre, me impressiona vivamente pelo
seu ar de dignidade altiva, mas que não exclui a simplicidade e a modéstia; a
cabeça de porte majestoso, tal como devia ser a dos sábios no tempo de
Homero; o olhar fixo se mantém num ponto, sempre o mesmo, na extremidade
oposta da sala; essa fixidez também representa para mim, sempre, o mesmo
enigma: estará ele se voltando a algum objeto exterior, como por exemplo, ao
último raio de sol, à primeira estrela que aparece no horizonte, no momento de
iniciar a meditação, ou bem estará o Sábio mergulhado em abstração absoluta
e não vê nada do que se passa em volta dele?

A fumaça do incenso sobe lentamente, acumulando-se nas vigas do teto.


Esforço-me por fixar esses olhos vidrados, mas logo os meus se fecham e uma
estranha sonolência me invade, acalentada por essa paz indizível, que parece
ser inseparável deste lugar privilegiado. Mo quero dormir, porém no fim de alguns
minutos as pálpebras se tornam mais pesadas, até que um vácuo se faz na
minha mente e, encantado, penetro numa estranha espécie de sono.

Sinto que estou voltando à infância; devo ter meus cinco anos. Vou andando por
esses rudes e escarpados atalhos que serpenteiam a colina sagrada de
Arunachala, segurando a mão do Maharichi. Mas ele é tão alto que parece um
gigante, comparado com a minha minúscula pessoa. Saímos da ermida e
seguimos pelos abruptos flancos da montanha; apesar da escuridão completa,
o Sábio conduz-me com a mão firme. Súbito, aparecem a lua e as estrelas
iluminando o difícil caminho com sua luz fria, e então percebo que Maharichi me
faz evitar, cuidadosamente, as fendas enormes e os blocos gigantes de pedras
que pendem ali, prontos para nos esmagar. Escalamos lentamente a colina
escarpada e sua encosta rude e áspera. As cavernas de anacoretas e grutas de
solitários, escondidas entre as estreitas veredas, cavadas na rocha de vez em
quando, surgem pelo nosso caminho; seus moradores saem para cumprimentar-
nos quando passamos, e embora o luar lhes dê a aparência de fantasmas,
reconheço-os como Yogues de várias espécies. Contudo, não nos demoramos,
antes de haver atingido o ápice; aí paramos, e meu coração bate com força, na
esperança de uma revelação inevitável que se aproxima.

Maharichi me olha, e eu, tão pequenino diante dele, levanto os olhos cheios de
súplica.

De repente, sinto uma estranha mudança operar-se em mim; a antiga razão de


ser parece abandonar minha mente. Ambições, desejos nos quais me baseei até
agora, se desvanecem, assim como se desligam de mim, antipatias, mal-
entendidos, discussões, insensibilidades, retraimento, indiferença e egoísmo,
coisas que me ligavam aos meus semelhantes, afrouxaram-se, largam-me e
tornam-se inexistentes. Uma indescritível paz se apodera de todo meu ser.
Adquiro, subitamente, a consciência e a certeza de que tudo que me for permitido
pedir à vida, basta só estender a mão para possuí-lo.

Maharichi convida-me a dar uma olhadela abaixo da colina. Obedeço e vejo


nosso hemisfério ocidental estender-se a meus pés; posso distinguir vagamente
as massas confusas de corpos amontoados, imersos nas trevas.
A voz do Maharichi faz-me ouvir as palavras:

— Quando voltares ao meio deles, guardarás esta paz em ti, mas com a
condição de rejeitares a idéia de que és um corpo e um cérebro determinado.
Quando sentires correr em ti essa onda benévola do espírito, vais esquecer tua
própria personalidade, pois terás volvido tua vida para AQUÊLE (Deus).

Com essas palavras, o Sábio me põe na mão a extremidade de uma luz


prateada.

Ao voltar a mim, embebido nessa sublime visão, meu olhar encontra os olhos do
Maharichi. Não, eu não me engano; sua face está dirigida para mim e é a mim
que ele está olhando.

Qual pode ser o significado profundo que se encobre nesse sonho vívido?
Desejos, amarguras do passado, tudo se desvanece como uma miragem
ilusória; o estado de sublime indiferença para comigo e a profunda piedade para
com os homens persistem em mim. Quão apaziguadora é essa sensação! Como
posso explicá-la? Sinto, todavia, que o efeito não é duradouro; é belo demais;
ainda não pode ser para mim...

Quanto tempo fico sentado assim? Vejo todos se levantarem, aprontando-se


para dormir.

Tenho que imitá-los, mas a sala é tão abafada, insuficientemente arejada, que
prefiro mesmo me deitar ao relento, em algum canto do pátio. Um discípulo de
barba grisalha me traz uma lanterna, recomendando deixá-la acesa, pois é de
recear uma visita de hóspedes insólitos tais como cobra, chacal ou tigre, e a luz
acesa será suficiente para ficarem a respeitável distância.

Deitado na terra, o corpo dolorido, fico acordado horas sem conciliar o sono, mas
não me aborreço; tenho bastante que pensar, pois sinto que encontrei em
Maharichi a mais misteriosa personalidade que a vida até agora colocou na órbita
de minha existência. A coisa é mais estranha ainda, porque o próprio destino me
pôs no caminho; sinto estar na véspera de grande momento, sem poder, no
entanto, determinar o que irá acontecer exatamente. Sinto que o Sábio me
prepara para algo imponderável... será algo que espero?... Cada vez que torno
a pensar em Maharichi, lembro-me desse sonho vívido, e estranhas emoções
me penetram, fazendo meu coração estremecer na esperança do mistério mais
sublime que sinto aproximar-se.

* * *

Entretanto, durante os dias que se seguem, em vão me esforço por entrar em


contato com Maharichi. Há três razões para isso: em primeiro lugar, sua reserva
inata e pouca apreciação de polêmicas e discussões, devido à sua completa
indiferença em relação a credos e opiniões. É mais do que evidente que ele não
tem a mínima preocupação, nem o menor interesse, em converter quem quer
que seja e, ainda menos, aumentar o rebanho de seus discípulos. A segunda
razão pode parecer estranha, porém sinto-a claramente: desde a noite desse
sonho estranho, quando me acho na sua presença, sinto-me penetrado por
sagrado respeito; as perguntas que se teriam acumulado em outras ocasiões,
não me assaltam mais. Calaram-se. Julgo também um sacrilégio discutir, igual
para igual, com o homem que se elevou a tal ponto acima do comum dos mortais,
e sinto-me diminuto, na presença dessa sublimidade. A terceira razão é mais
simples: há sempre povo ao seu redor e desagrada-me profundamente expor em
público o mais íntimo de mim mesmo. Afinal, eu não sou senão um estranho para
toda essa gente; não é tanto a diferença de idiomas que influi, mas meu
ceticismo ocidental, a ausência total de sentimento religioso na expressão de
minhas idéias; eu me arriscaria a ofendê-los; simular, entretanto, não é do meu
feitio.

Não me é tão fácil transpor essas três barreiras. Cada vez que estou decidido
falar, uma dessas três razões surge para o impedir e condenar-me ao silêncio.
Tomei as disposições para passar um fim de semana, e eis aí uma semana
inteira que passou. A primeira tentativa de falar com o Mestre vai ser a última?
Salvo duas ou três conversações, todas convencionais, e algumas palavras
trocadas fortuitamente, ficamos, ele e eu, em nossas posições.

Quinze dias se passaram. Sinto cada vez mais e mais profundamente o bem-
estar, a paz, a serenidade que parecem vir do próprio ar que respiro aqui. Vem
o último dia. Minha visita se resume a uma sublime exaltação entremeada de
desânimo. Sinto-me deprimido; a maioria desses homens fala uma linguagem
por demais diferente da minha, tanto no seu exterior quanto no seu mais íntimo.
Como esperar, então, uma possível aproximação. Observo o Sábio. Ele paira
nas alturas olímpicas e julga a vida humana de ponto de vista tão alto, que ele
me foge; não consigo segui-lo. Não há dúvida de que ele não é como nós outros.
Ele não é da nossa espécie. É um elemento da natureza, como esse pico solitário
que se ergue por trás do seu eremitério, qual essa imensa selva virgem que
circunda seu retiro, como esse céu impenetrável. Algo dessa solidão terrível e
petrificante deve ter passado na alma inacessível do Maharichi.

Há trinta anos que ele viera para Arunachala — disseram-me — e nunca deixara
sua colina. Uma ligação tão forte deve haver influído no caráter do Sábio. Sei
que ele ama essa colina, porque alguém me traduziu os versos cheios de
emoção e encanto, escritos pela mão do Mestre, onde ele dá expansão ao seu
amor.

Como a montanha que se destaca da selva e se ergue solitária para o céu, assim
o Sábio levanta a cabeça acima da selva humana, porque sua grandeza também
é solitária e sem par. Como a Montanha do Santo Lume faz um pico isolado no
cinturão da serra, assim o Maharichi, por não sei que poder misterioso, domina
com sua grandeza o rebanho de fiéis que o amam e cercam. De uma maneira
ou da outra, ele faz parte do caráter impessoal e sagrado dessa natureza
soberba e, ainda mais, dessa colina santa. Ele é sozinho, destacando-se na
dianteira, e seus companheiros da vida, mais fracos, não podem segui-lo. Faço
votos para que ele se torne um pouco mais humano, mais acessível ao que para
nós é normal e natural, mas que, junto à sua augusta individualidade, parecem
fraqueza e desgraça.

Contudo, como poderia ele atingir essa grandeza de perfeição espiritual, se não
tivesse deixado a humanidade longe, muito longe, na sua retaguarda, e não
tivesse renunciado para sempre às criaturas mundanas? Sinto, todavia, uma
promessa no seu olhar, a promessa de uma extraordinária revelação...

Até agora, entretanto, nada além dessa inalterável serenidade e desse sonho,
que brilha na minha memória como estrela no céu. O tempo vai se escoando.
Em quinze dias, uma única entrevista, da qual nada entendi, por mais que me
esforçasse. A expressão rude do seu rosto fechado basta, por si só, para me
afastar. Nunca esperei ser recebido dessa forma, pois devo dizer que, ao chegar
aqui, estava na expectativa de algo brilhante, que o homem de manto amarelo
me fez vislumbrar. E, no entanto, é ao Maharichi que me obstino agora em fazer
falar, porque não posso deixar a idéia de que ele é único, entre todos aqueles
que me foi dado encontrar, que resolveu o enigma da vida e ao qual nenhum
sofrimento pode atingir mais.

Vou tentar mais uma vez! Resolvo procurar um dos discípulos mais antigos do
Mestre, atarefado em algum trabalho na proximidade do eremitério. Era sempre
muito amável para comigo, o que me faz perder meu acanhamento. Digo-lhe,
sem embargo, que gostaria imensamente de ter uma última entrevista com o
Mestre, mas não me atrevo a pedi-la pessoalmente. O discípulo me compreende,
pois sorri e afasta-se; volta minutos depois e comunica:

— O Maharichi tem muita satisfação em conceder-lhe a entrevista desejada.

Apresso-me, todo feliz, em retomar meu lugar aos pés do Mestre. O Sábio se
volta para mim e põe-me logo à vontade, cumprimentando-me com a cortesia
habitual dele.

— Mestre, os Yogues dizem que para encontrar a Verdade é necessário


renunciar ao mundo e retirar-se para as profundezas da selva ou para as
cavernas da montanha. No Ocidente isso é uma coisa praticamente impossível,
de tal modo nossa existência é diferente. Qual é sua opinião nesse sentido,
Mestre?

Maharichi se volta para um discípulo, um Brâmane muito cortês, pede-lhe


traduzir-me a resposta:
— Não é absolutamente indispensável renunciar à vida ativa. Faça uma hora ou
duas por dia de meditação, continuando seus afazeres. Precisa saber meditar.
Quando se faz meditação perfeita, cria-se uma corrente espiritual cujos
benefícios o senhor poderá sentir até no seu labor cotidiano. Isso será, em outras
palavras, como duas maneiras de expressão de uma única idéia, sua atividade
prosseguirá paralela à sua meditação.

— E qual será o resultado?

— O senhor verá, por experiência própria, que sua atitude para com as coisas e
os seres e até para com os acontecimentos modificar-se-á aos poucos.

— Mestre, o senhor então não concorda com os Yogues, pelo menos, nesse
ponto!

Eu queria provocá-lo, mas ele evita dar uma resposta direta.

— É o egoísmo pessoal que põe o homem prisioneiro deste mundo. Que ele
procure libertar-se! A verdadeira renúncia está no abandono voluntário de nosso
ego ilusório e enganador.

— Mas, Mestre! como despojar-se de todo egoísmo e viver no mundo?

— Não há conflito essencial entre a vida ativa e a sabedoria.

— O senhor quer dizer que se pode continuar a exercer uma profissão, por
exemplo, e alcançar a Sabedoria?

— E por que não? Mas neste caso não será mais a mesma personalidade de
homem que prossegue sua vida ativa, porque a consciência vai se
transformando, aos poucos, até chegar ao foco espiritual que está além da
pequenez do eu.

— Mas quando se tem uma vida ativa, pouco tempo nos sobra para a meditação
necessária.

Maharichi não parece chocado com meu raciocínio.

— Reservar algum tempo para a meditação pertence apenas aos principiantes


na vida espiritual. O homem avançado começará a gozar a beatitude mais
profunda, esteja em atividade ou não.

Enquanto suas mãos estão atarefadas no trabalho, sua mente paira nas solidões
infinitas.

— Mas isso não é mais a Yoga! exclamo, surpreso.


— O Yogue se esforça por impelir a mente para o ideal, como um vaqueiro impele
o touro com uma vara, mas neste caminho o buscador atrai o touro com um
punhado de feno.

— Como devo compreender, Mestre, como então se deve fazer?

— Fazendo a pergunta a si mesmo: quem sou? — Essa busca o levará,


finalmente, a descobrir, em seu mais íntimo, algo que se oculta além da mente.
Quando o senhor resolver este maior problema, todos os outros estarão
resolvidos e não haverá mais dúvidas.

Esforço-me por compreendê-lo. Pela abertura retangular, que na Índia substitui


a janela, percebo os primeiros atalhos da colina sagrada, banhada de luz matinal.
O Maharichi, depois de uma curta pausa, retoma:

— Vou tentar fazer-me compreender melhor e ser mais claro. Todos os seres
vivem constantemente na busca da felicidade, de uma felicidade que eles
pudessem pegar com as mãos e que jamais tivesse fim. Esse instinto é bom e
natural. Entretanto, ao senhor nunca ocorreu a idéia de que acima de tudo eles
se amam a si mesmos?

— E daí?

— Aproxime esse fato do outro: para chegar à felicidade, os homens agarrados


a si mesmos provam-na mediante todos os meios; uns escolhem a bebida, outros
se entregam à religião. Relacionando esses fatos, o senhor pode ter a chave da
verdadeira natureza do homem.

— Não... eu não compreendo, não sei bem onde o Mestre quer chegar...

A voz anima-se:

— A verdadeira natureza do homem é a felicidade! A felicidade é inata no


homem; a busca da felicidade é busca inconsciente do Eu absoluto e eterno.
Portanto, o homem que consegue elevar-se por seu próprio esforço para
alcançá-lo — atinge a felicidade que também jamais perece.

— Mas, Mestre! Há tanta infelicidade no mundo...

— Certamente; mas isso acontece porque a ignorância veda ao homem a noção


da sua verdadeira natureza; no entanto, todos os seres, sem exceção,
conscientemente ou não, estão à sua procura.

— Mesmo os mais indignos, miseráveis, brutos e criminosos?

— Sim; somente se enganam quando julgam ter achado em suas falhas e


fraquezas o segredo da felicidade. Essa ânsia é instintiva, mas, por ignorância,
eles não sabem que, na realidade, é o seu verdadeiro Eu que buscam, e por isso
procuram o caminho da felicidade na ignomínia e na baixeza. Seus próprios erros
lhes são fatais, porque a conduta do homem, irremediavelmente, recai sobre ele
mesmo.

— O senhor quer dizer, Mestre, que se tivermos o conhecimento do nosso


Verdadeiro Eu, conheceremos a felicidade sem limites?

Meu interlocutor faz um sinal de que sim. Pela janela sem vidraça, um raio de
sol, subitamente, vem iluminar o rosto do Maharichi. Sua fronte nobre reflete
serenidade; a boca de contornos firmes exprime perfeita satisfação de si mesmo;
os olhos brilhantes, como uma chama do santuário de paz inabalável, transmitem
mensagem do infinito. Nada em sua atitude desmente suas palavras. Acaso
essas palavras ocultam outra coisa, além do seu significado aparentemente
simples? O intérprete traduziu palavra por palavra. Talvez algo mais profundo
tivesse escapado da sua interpretação? Esse algo é para eu descobrir,
evidentemente. O Sábio, porém, não parecia se exprimir como filósofo nem como
doutrinador, mas como um homem que fala com o coração; não se expressava
como quem vive sua própria e feliz experiência?

— Que é exatamente esse eu do qual o Mestre falou? Se isso que o senhor diz
for verdade, então é necessário que haja dois eus no homem? pergunto,
perplexo.

Seus lábios esboçam um leve sorriso.

— Como poderia o homem estar na posse de dois eus? Para compreender


melhor, precisa analisar-se a si mesmo. O hábito de pensar como todo mundo
pensa, faz com que o homem não se veja mais tal qual ele é de verdade; sua
própria imagem não é mais exata. Por tempo demais ele se identifica com seu
corpo e com seu cérebro. É por isso que lhe aconselho buscar a solução da
questão na pergunta: “quem sou eu?”

Parou, como se quisesse deixar-me tempo para assimilar suas palavras. Fico
calado, aguardando o que se vai seguir.

— O senhor me pergunta pela verdadeira definição do eu. Como posso dá-la? É


aquilo do qual nasce o senso do “eu” pessoal e em que ele terá de desaparecer.

— Desaparecer? Perde-se, então, a noção da personalidade?

— O pensamento predominante no homem é o do eu — também é o primeiro


sentido humano a aparecer no espírito. O eu vem sempre antes do tu. Seguindo
o pensamento do eu pela introspecção mental, descobre-se que, como foi o
primeiro a aparecer — também será o último a dissolver-se. Pode-se, aliás, fazer
essa experiência por si mesmo.

— O Mestre acha então possível tal investigação no nosso íntimo e que possa
ser facilmente praticada?
— Certamente; essa investigação pode nos levar até o ponto onde o ego
gradualmente desaparece.

— Mas então o que será de nós nesse momento? O homem ficará em estado de
inconsciência ou se tornará idiota?

— De maneira alguma; dá-se precisamente o contrário. Ele vai atingir a vida


consciente, a única que é imortal. Ao despertar da vida do seu verdadeiro Ser,
que de fato é sua Real natureza, o homem tornar-se-á o Sábio.

— Mas, o senso do eu deve participar, evidentemente, dessa natureza?


pergunto.

— O senso do eu parte da pessoa; esse senso é ligado ao corpo e ao cérebro.

Quando o homem, pela primeira vez, reconhece seu Eu real, uma força vem do
seu íntimo e apodera-se dele; essa força é a inteligência transcendente; ela é
incriada, infinita, divina e perene. Alguns a chamam o Reino do Céu, outros,
Nirvana; os hindus a denominam Libertação. Pode-se-lhe dar o nome que se
quiser — isso não influi. Quando essa força toma posse do homem — o homem
então se perde realmente, ou melhor, ele se encontra.

Essa última frase me faz pensar nas mesmas palavras proferidas pela boca do
Galileu, muito embora permaneçam, ainda hoje, um enigma para muitos: “Aquele
que procurar salvar sua vida, perdê-la-á — e aquele que a perder, conservá-la-
á.”

A analogia é surpreendente! E esse Sábio chegou a isso sem o apoio da idéia


do Cristo. Apenas servindo-se de intensa concentração interior.

A voz do Maharichi vem interromper a fuga dos meus pensamentos:

— Enquanto o homem não se tiver comprometido nessa busca, seguindo esse


caminho, a dúvida e a incerteza sempre seguirão seus passos. Os grandes reis
e os maiores estadistas lutam para governar os demais; no entanto, sabem muito
bem no seu íntimo que são incapazes de se dirigir a si mesmos; porque o
verdadeiro poder pertence ao homem que penetrou no âmago mais profundo da
sua alma! O cientista que passa a vida acumulando conhecimentos terá que
baixar a cabeça quando lhe perguntarem se resolveu o mistério do homem e
conquistou-se a si próprio. Ora! Para que serve saber todas essas coisas quando
o senhor não sabe nada de si? Que adianta conhecer o que se passa fora de
nós se ficamos na ignorância do que se passa dentro de nós? Evitamos pensar.
No entanto, qual conhecimento é mais digno da nossa atenção e do nosso
empenho?

— Talvez o empreendimento seja quase sobre-humano.

— Minha observação provoca um ligeiro encolher de ombros.


— É indispensável tentar; a dificuldade é menor do que se supõe.

— Para nós, ocidentais, ativos e práticos, essa introspecção desinteressada...


hesito, sem saber como terminar a frase.

— O conhecimento da Verdade, bem como a ação da mente são iguais para


todos e representam as mesmas dificuldades, tanto para os hindus como para
os ocidentais. Admito que seja mais difícil para aquele que se debate nas
amarras da vida agitada, mas num caso, como no outro, pode-se e deve-se
alcançar o bom êxito.

Trata-se aqui de criar uma corrente espiritual obtida pela prática da meditação
constante, mantida pelo hábito diário. Pode-se então continuar seus afazeres
sem que haja um choque entre a meditação e a atividade física. Quando o senhor
for meditar sobre a pergunta: “QUEM SOU?” — começará a compreender que
nem o corpo, nem a mente, nem os desejos dos sentidos são realmente o que o
senhor considera ser o seu ego; basta só essa atitude para fazer surgir a
resposta do recôndito do seu ser, aparecendo-lhe como uma profunda
realização. Aprenda a conhecer-se a si mesmo e a Verdade brilhará em sua alma
como um raio fulgente do sol; sua mente estará em paz e as ondas de felicidade
o submergirão e o inebriarão, pois o Eu real e a felicidade são termos idênticos,
e no momento em que conseguir a percepção direta do Ser, suas dúvidas se
dissiparão, porque saberá tudo.

Com essas palavras, Maharichi desviou a cabeça, seu olhar voltou a fixar o
mesmo ponto do lado oposto da sala. Compreendo, então que isso é o sinal por
ele marcado para o fim da entrevista.

Saio com a satisfação de tê-lo arrancado, mais uma vez, do seu mutismo.

* * *

Ao deixar a sala, refugio-me na mata, numa clareira bem tranquila, onde passo
o resto do dia, redigindo notas. Voltei quando o crepúsculo estava a se
aproximar, algumas horas antes de minha partida. A carroça de bois levar-me-ia
para longe desse asilo de paz. Retomo meu lugar na sala carregada do perfume
de incenso. Maharichi, semi-inclinado sob o ondulante “punkah”, mas no
momento em que entro, endireita-se e toma sua pose favorita: o pé direito posto
na coxa esquerda, e o pé esquerdo, dobrado, está apoiado na coxa direita.
Lembro-me da demonstração de Brama que chama essa posição de “cômoda”.
É realmente parecida com a pose de Buda, e relativamente fácil de ser tomada.
Com a mão direita segurando o queixo e o cotovelo apoiado no joelho, o Mestre
silencioso fixa-me atentamente; ao seu lado percebo um jarro com água e um
bastão de bambu. — Eis toda a riqueza que possui no mundo! — resposta
bastante expressiva à nossa sede insaciável de posses! Seus olhos brilhantes,
muito abertos, com o escoar do tempo tornam-se mais fixos, o corpo retoma sua
rigidez, a cabeça, antes de imobilizar-se, cambaleia ligeiramente; mais uns
minutos e tenho a certeza de que Maharichi está absorto em êxtase, igual àquele
em que o vi à minha chegada. Alguém se aproxima, sussurrando: “não se deve
falar mais, Maharichi está em êxtase.”

Todos se calam ao redor, e à proporção que os minutos estão passando, o


silêncio envolve o ambiente, mais e mais profundo...

Embora não sendo religioso, abandono-me ao sentimento de sagrado respeito


que me inunda com força tão irresistível quanto a de uma abelha quando atraída
pelo perfume da flor. Uma força sutil, impalpável, indefinida, parece flutuar no
ambiente e penetrar-me. Agora não duvido mais que o Maharichi seja o operante
desse prodígio. Seus olhos brilham com estranho fulgor; sensações
desconhecidas despertam em mim, sinto-me atingido pelo raio que emana desse
olhar flamejante e penetrando no mais íntimo e mais secreto da minha alma.
Tenho certeza de que ele vê tudo em mim; nada lhe escapa dos meus
pensamentos, emoções, desejos secretos; fico como que despido e impotente
diante desse olhar. Tenho uma sensação de mal-estar, pois sei que nada lhe
foge das páginas vividas do meu passado e mesmo que fossem esquecidas por
mim, ele as sabe todas, tenho certeza. E é em vão que procuro reagir, tentando
esquivar-me; para dizer a verdade, não penso em ocultá-las, porque um
sentimento vago do benefício futuro força-me a submeter-me a essa
investigação impiedosa.

Todo o meu passado, forças a fraquezas, pecados e virtudes em conjunto,


desfilam em minha mente. Segue-se então um sentimento de sossego, quando
compreendo que ele sabe que eu fui impelido e arrastado por um impulso
irresistível que me afastou da vida comum, forçou-me a deixar os caminhos
batidos, lançando-me em busca de homens tais como ele.

Pouco a pouco, nitidamente, sinto a evolução dessa corrente telepática entre


seus olhos firmes e meu olhar inseguro, e que pelo suave mas imperioso lance
do seu espírito, transmite-me o fluxo dos seus pensamentos e convida minha
alma a entrar nesse estado de paz inabalável, da qual ele parece gozar
perpetuamente. Esta quietude extraordinária é acompanhada de uma sensação
de alívio que me submerge em ondas de serenidade inigualável. O tempo
suspende a sua marcha. Sinto meu coração aliviado despojar-se do seu fardo
caótico e turbulento, não se afligir mais por amarguras, decepções ilusórias, nem
se atormentar com a melancolia dos desejos insatisfeitos. Com clareza
deslumbrante, concebo que o instinto que força o homem a levantar os olhos e
esperar, a despeito de toda a desesperança, é o que o sustenta nas horas
amargas, um instinto que não se engana, porque é de essência divina. Nesse
silêncio sagrado, onde o tempo perde seu valor soberano, onde a dor, o pecado,
as ilusões e as falhas do passado parecem banais, sinto todo meu ser fundir-se
em Maharichi, cuja sabedoria atingiu ao auge. Esse olhar fulgente aparece diante
dos meus olhos profanos como uma vara mágica, evocadora de um mundo de
esplendor insuspeito.

Quantas vezes observei, surpreso, todos esses discípulos, pensando: por que
eles ficam assim, anos e anos aos pés desse Sábio, sem nenhum conforto,
satisfeitos com tão poucas palavras, nada para distraí-los, nenhuma atividade
exterior que os possa prender; por quê? Agora começo a compreender — não
pela especulação cerebral, mas pela iluminação interior, bruscamente sentida,
que cada dia que passa lhes traz sua própria recompensa!

Após algumas horas de silêncio mortal, um dos discípulos se levanta


discretamente e, nas pontas dos pés descalços, sai; depois um outro, e ainda
um outro o segue até que todos se vão. Por fim, acho-me só, pela primeira vez
estou só diante do Maharichi!

Deu-se então um fenômeno estranho: seu olhar muda de expressão, vejo suas
retinas se contraírem como se fossem um diafragma de objetiva fotográfica e a
agudeza do olhar intensificar-se entre as pálpebras, quase cerradas.
Subitamente meu corpo torna-se leve, airoso, e paira junto ao seu, flutuando no
espaço infinito. A sensação é de uma agudeza tão violenta que, amedrontado,
resolvo romper seu encanto. Acho coragem na minha própria decisão, e no
mesmo momento sinto-me reintegrado no corpo, sentado na sala. Não houve
palavras trocadas. Volto a mim, coordeno as idéias, espio o relógio na parede da
sala, e levanto-me em silêncio. É o momento de ir-me embora. Inclino a cabeça
em sinal de despedida — o Sábio silencioso responde-me com o mesmo gesto.
Digo algumas palavras de gratidão — ele as aceita sem nada dizer. Hesito, ainda
um pouco, no limiar da porta, quando ouço de fora o tilintar das sinetas da
carroça de bois. Pela última vez levanto as mãos, juntando as palmas, e curvo a
cabeça em reverência. Assim nos separamos.
10
Entre Magos e Santos

O tempo e o espaço, esses dois inimigos indomáveis do homem, obrigam-me a


acelerar minha pena e a restringir à narrativa os fatos mais dignos de serem
memorizados.

O faquir de poucos recursos, o mágico das ruas, interessam-me, como a


qualquer pessoa, mas apenas de relance, pois sei que não é deles que pode vir
alguma luz sobre os grandes mistérios da vida, únicos que merecem os mais
profundos pensamentos do homem. Mas afinal suas constantes aparições no
caminho do viajante oferecem tão curiosa diversão, que me forçam a tomar
algumas notas. A variedade de tipos que eles representam era de tal espécie,
que não posso resistir ao prazer de esboçar, pelo menos alguns deles, que
ficaram na tela de minhas lembranças.

Um deles era um pelotiqueiro vulgar que encontrei em Rajahmundry, cidade


pacata do distrito de Madras. Perambulando pelas ruas, sem alvo, afundando
meus sapatos nas calçadas cobertas de poeira fofa, apreciando o colorido
incomparável e típico do Oriente, vejo-me numa dessas ruas que desembocam
na praça do mercado.

Ainda me lembro desse ambiente abafado, onde havia velhos acocorados nas
portas das vendas e crianças brincando no lixo; um rapazola todo nuzinho sair
de casa e reentrar, precipitadamente, ao ver um estranho; lembro-me do bazar
buliçoso e turbulento, onde vendilhões, sentados à porta das barracas,
acariciavam suas barbas, à espera dos eventuais fregueses; dos vendedores de
comestíveis, acocorados na terra ao lado das mercadorias, sem o menor cuidado
para afastar os enxames de moscas que as assaltavam.

Lembro-me de chegar a um templo de arquitetura um pouco pesada, e perceber


um grupo de homens e mulheres se levantarem da poeira, ao notar minha
chegada. Na Índia, as entradas dos templos e as estações ferroviárias servem
para o encontro dos leprosos, aleijados e mendigos de toda a espécie. Vejo os
fiéis a entrar e a sair, sem perceberem a poeira na qual se afundam seus pés
descalços. Devo juntar-me a eles e assistir aos ofícios dos sacerdotes? —
pondero. Não, não me decido, e continuo andando, aproximando-me de um
moço que ia na mesma direção. Traja uma camisa européia, embora usando-a
à moda hindu, isto é, de frente para trás e apertada por uma corda frouxa; sob
seu braço vejo um maço de livros; deve ser um aluno do colégio local. Enquanto
meus passos o seguem, ele volta instintivamente a cabeça, nossos olhares se
cruzam e, pronto — o conhecimento está feito!

As exigências da minha profissão me ensinaram a respeitar, tanto quanto


possível, as conveniências, mas, também a rejeitá-las, quando se tornam
incômodas nas investigações.

Oh! não, eu dificilmente poderei servir como exemplo aos turistas da agência
Cook Ltda.!

O jovem, aluno de um grande colégio local, parece ser inteligente e demonstra


interesse pela filosofia antiga do seu país. Quando soube do pendor que tenho
pelo mesmo assunto, transbordou de alegria.

Noto com grande satisfação que ele não se absorveu na política, como acontece,
lamentavelmente, com a maioria dos seus colegas, desde que Gandhi, por sua
infelicidade, incitou a Índia a levantar o seu povo contra a dominação branca.

Após meia hora de conversa, chegamos a uma praça, onde um punhado de


gente rodeava um homem que, com voz de falsete, articulava palavras
incompreensíveis para mim. Conforme o que o moço me traduz, ele está se
elogiando de forma a ressaltar todos os poderes maravilhosos dos quais dispõe
e se gabando sem a menor vergonha.

É um homem forte, embuçado num amplo traje branco. Logo desconfio, tanto ele
fala de suas qualidades, mas quando acrescento algumas moedas ao monte aos
seus pés, mostra-nos um desses espetáculos que me deixa perplexo.

Acocorado na poeira, começa por colocar diante de si um grande jarro cheio de


terra e mostra-nos um caroço de manga que planta, em seguida, no vaso. Da
sua mala tira um longo pedaço de pano, com que cobre o vaso e as pernas.
Durante alguns minutos o espetáculo prossegue, acompanhado de encantações
estranhas. Ao tirar o pano, vejo uma pequena muda de mangueira brotar, da
terra! Cobrindo-a novamente, apanha uma flauta de bambu e começa a tocar
sons esquisitos, tomando-os, sem dúvida, por música. Alguns minutos depois,
retira o pano para mostrar uma planta já crescida de algumas polegadas! A
operação se repete, várias vezes, segundo os mesmos intervalos musicais, até
que um pequeno pé, de nove a dez polegadas, brota do vaso e... uma pequena
manga dourada pende no galho superior da mangueira!

— Tudo isso — anuncia o Yogue com a voz triunfante — saiu da semente que
vocês me viram plantar!
É muito interessante, sem dúvida, mas minha formação ocidental não me deixa,
evidentemente, aceitar semelhante afirmação, a não ser sob os refletores da
investigação direta; receio que isso não passe de um simples truque de
saltimbanco. Meu companheiro, entretanto, se mostra menos exigente:

— Sahib, ele é um Yogue. Esses homens são capazes de coisas


extraordinárias!

Sim; mas eu persisto na minha conclusão: esse homem é simplesmente um


êmulo da fraternidade Maskelyne e Devant. O Yogue fecha sua sala e a multidão
se dispersa a contragosto.

Vem-me, então, uma idéia; quando ficamos a sós com o faquir, apanho no meu
bolso uma nota de cinco rupias, dizendo ao jovem:

— Faça o obséquio de dizer-lhe que essa soma será dele, contanto que consinta
em explicar a sua arte.

O moço traduz-lhe, o homem faz um gesto de recusa, mas percebo também, no


seu olhar, um clarão de cobiça. “Ofereço-lhe sete rupias” — Mesmo jogo. —
“Bem, diga-lhe que nós vamos embora”. Fingimos que íamos, porém sem
pressa. Como eu esperava, o faquir nos chama:

— Cem rupias e dir-lhe-ei tudo o que quiser.

— Não, sete, ou nada. — Vamos. Começamos a andar, quando pela segunda


vez o homem nos chama:

— Está bem, aceito as sete rupias.

— Eis aí a explicação: o homem reabre sua mala da qual tira os apetrechos,


compostos de um caroço, uma manga e três ramos de mangueira de diversos
tamanhos. Comprime o ramo menor numa espécie de concha, empurrando-a na
terra do vaso. Para obter a primeira muda, ele tem que mergulhar o dedo na
terra, abrir a concha e endireitar a planta. Os dois ramos maiores estão
dissimulados sob a manta, que está enrolada em volta da cintura. Durante os
intervalos do canto ou de tal música, ele apanha um desses ramos e, plantando-
o, põe o anterior dissimulado sob a manta.

Eis a fraude descoberta! Dou-me por satisfeito, mas um pouco desiludido.


Lembro-me, felizmente, das advertências de Brama quando me alertava contra
esses faquires de baixa classe e os pseudo Yogues, cujos alegados milagres
não passam de vulgares truques de pelotiqueiros. Evidentemente, ele
acrescentava, “tais homens desvirtuam o título de Yogue tanto no espírito da
mocidade, quanto no da classe culta”.

Afinal, esse homem é apenas um falso Yogue. Eis tudo.


* * *

Existem, entretanto, os verdadeiros faquires, cuja magia não deixa dúvida. Vi um


em Berhampur no caminho de Puri, cidade onde as tradições ancestrais e a
poeira secular não vão desaparecer tão cedo!

Tomei aposento numa casa avarandada, cujo balcão envidraçado dava para um
parque. Numa dessas tardes particularmente tórridas, refugiei-me na sua
sombra, apreciando da minha poltrona o jogo da luz, através da vegetação
frondosa do jardim.

Num dado momento ouço um chiado de passos descalços nas lajes do pátio.
Logo vejo um homem de ar hirsuto, carregando na mão uma pequena cesta de
bambu. Num rápido olhar noto-lhe os longos cabelos ondulados e negros e os
olhos ligeiramente injetados de sangue. Silencioso, avança, põe sua cesta na
areia e cumprimenta-me, levantando as mãos à altura do rosto. Começa a falar
num idioma que julgo reconhecer como télugo, misturado com um horroroso
inglês, mas sua pronúncia é tão execrável que apenas consigo pegar três ou
quatro palavras. Esforço-me por responder-lhe em algumas palavras em télugo,
mas como o sei tanto quanto ele o inglês, tenho que renunciar a me fazer
entender. Finalmente, pelos gestos do homem adivinho que ele tem alguma
coisa na cesta e por força quer mostrá-la.

Para tirar-nos do embaraço, chamo meu criado, que também não sabe grande
coisa do inglês, e isso o incomoda muito, dada a sua costumeira prolixidade.

— É um faquir, sahib; ele quer mostrar sua magia.

— Pois não, que mostre; só quero saber quanto isso vai me custar.

— Ele diz que o sahib lhe pagará o que julgar melhor.

— Então vamos!

O aspecto do faquir não me inspira confiança, repugna-me e repele-me. Há nele,


em todo seu modo de ser, alguma coisa lúgubre, sinistra, sem todavia nada em
que possa discernir qualquer má intenção; sinto-o como se fosse envolvido em
aura obscura de forças ocultas.

Ele não tenta subir os degraus da varanda, mas afastando-se discretamente,


acocora-se à sombra do fícus, e abrindo a cesta, com ajuda de dois pauzinhos
de madeira, tira um escorpião vivo. O animal venenoso se torce para escapar-
lhe, enquanto o faquir, rapidamente, traça com o dedo um círculo na areia fofa
do jardim. O escorpião, posto em liberdade, gira em volta do círculo traçado, e
de cada vez, ao chocar-se com a circunferência, hesita como se fosse diante de
uma barreira intransponível, recua e volta na direção oposta. Isso leva dois ou
três minutos; a um sinal meu de satisfação, o faquir põe o escorpião na cesta,
da qual tira, desta vez, um par de espetos de pau. Fecha os olhos injetados de
sangue e fica imóvel como se meditasse; abre-os e, compenetrado, introduz o
punhal na boca, de ponta para dentro, forçando até que ela sai pela face. Como
se não fosse bastante essa nojenta demonstração, ele a repete do outro lado do
rosto com o outro espeto. Sinto tanta admiração como repugnância. Afinal ele
julga ter mostrado o suficiente; retira-os um após outro e inclina-se em
reverência. Desço os degraus da varanda e examino-lhe o rosto. Além de ínfimas
marcas de sangue, vejo dois buraquinhos, apenas perceptíveis. Com um gesto,
o homem convida-me a sentar. De novo, preparando sua atitude, tranquilamente,
como quem tira o botão da sua roupa, ele agarra com os dedos seu globo ocular
direito, tirando-o inteiramente fora da órbita! Recuo com horror, mas ele,
imperturbável, continua puxando até que o órgão lhe cai na face, suspenso
apenas pela extremidade dos nervos e das veias. Isso é horrível! Tenho vontade
de vomitar; sinto-me aliviado vendo-o pôr, tranquilamente, todo o órgão no lugar.
É suficiente para mim; não quero mais. Agradeço-lhe com algumas moedas.
Ainda sob o efeito desse horror, peço ao meu criado perguntar ao homem se
consente em dar uma explicação do mecanismo desses horrores anatômicos.

— Faquir nada querer dizer, sahib, somente pai ao filho, somente família saber...

Não me atormento com essa recusa; ademais a explicação pertence ao setor da


medicina.

O faquir torna a cobrir sua face com as mãos e, cumprimentando-me, despede-


se. Passa pelo portão e desaparece virando a esquina da rua poeirenta.

* * *

Lembro-me do suave marulho das ondas de Puri, sob o leve carinho da brisa do
golfo de Bengala, enquanto perambulava pelas praias desertas, contemplando,
através das vibrações do ar em brasa, a fita da areia dourada que se estendia
no horizonte; o mar era como uma safira líquida; o vidro do meu relógio refletia
clarões de fogo. Voltando à cidade, ainda cheio dessa refulgência esplendorosa
de cores deslumbrantes, fui testemunha de um mistério que, sem dúvida, ficará
para mim um enigma nunca esclarecido.

Aproximando-me, vejo um grupo formado em volta de um homem, cujos trajes


um tanto extravagantes chamaram minha atenção. Pelo seu turbante e calças
de pijama, reconheço logo um muçulmano, aparição bastante rara na cidade, tão
profundamente indiana. O homem aguça ainda mais minha curiosidade, por
estar acompanhado de um macaco amestrado, que veste calcinhas listadas em
cores; o animal obedece cegamente às ordens do amo e parece possuir uma
inteligência quase humana. Ao perceber-me, o homem sussurra não sei o quê
ao pobre bichinho que, imediatamente, afastando a multidão, vem a mim
ganindo, curva-se, tirando seu minúsculo chapéu e o estende com gesto de
imploração. Dou-lhe uma moeda de quatro anás, agradece curvando-se, e volta
ao seu amo que, munido de um velho acordeão, o faz executar uma dança. O
símio faz piruetas ao som da música, com ritmo tão perfeito e tal graça que mais
de um mestre de ballet poderia tê-lo invejado.

Ao terminar a apresentação pública, o homem vira-se para seu ajudante, um


jovem também muçulmano, e diz-lhe alguma coisa em urdu. Ele se aproxima de
mim e me convida a entrar na tenda, sob o pretexto de alguma coisa especial
que o amo quer me mostrar. Enquanto sigo o homem, o moço fica fora,
guardando a entrada da tenda, dos curiosos.

Entro num cubículo quadrilátero, sem teto, feito de lona e sustentado por meio
de paus.

Uma mesa de madeira grosseira compõe todo o mobiliário. O homem,


desfazendo um embrulho, tira de um pano, uma após outra, pequenas bonecas
de cera de duas polegadas. Reparo as cabeças de cera pintada e as pernas de
palha torcida, armadas com ferro achatado. O homem coloca essas figurinhas
graciosas na mesa, uma ao lado da outra; e ao pronunciar algumas palavras em
urdu... vejo as bonecas estremecerem e movimentarem-se em cadência!

Como um regente de orquestra com a batuta na mão, ele marca o ritmo e fá-las
dançar com uma perfeição estupenda. As bonecas animadas com movimentos
graciosos, evitam a queda, afastando-se precavidamente da borda da mesa.
Fico boquiaberto! É demais! Isso se passa em plena luz, às quatro horas da
tarde!

Suspeitando de alguma fraude, aproximo-me da mesa e inspeciono atentamente


todos os lados; passo a mão por cima e por baixo à procura de fios invisíveis,
mas não descubro nada de suspeito. Será que, afinal, tenho diante de mim um
faquir único no gênero? Aí vem ainda o melhor: por gestos, ele me convida a
marcar pontos na mesa, a meu gosto, e cada vez que as bonecas andam em
cadência, juntam-se nos pontos por mim marcados. O faquir, apanhando uma
moeda, diz alguma coisa que interpreto como sendo um convite a imitá-lo. Tiro
do bolso também uma, e coloco-a na mesa. Logo a moeda de prata se põe a
dançar, girando na direção do faquir; chegando à borda da mesa cai, rolando até
parar exatamente aos seus pés. O homem se abaixa, apanha-a e agradece-me
com grandes salamaleques.

Isso é prestidigitação ou verdadeira magia da Yoga? pondero. O Faquir deve ter


lido, na certa minhas dúvidas em meu olhar incrédulo, pois chama o assistente,
que pergunta se eu quero que seu amo prossiga nas demonstrações. À minha
resposta afirmativa, ele passa ao faquir o velho acordeão, convidando-me a pôr
na mesa o meu anel. Obedeço. É o mesmo anel que Brama, o ermitão de Adyar,
me tinha dado como presente de despedida. Eu não o perco de vista; vejo os
veios dourados da pedra esverdeada brilhar, enquanto o faquir, recuando,
pronuncia algumas palavras acompanhadas de gestos. A cada palavra, o anel
se levanta no ar e recai. E quando ele começa a tocar o acordeão, eis o anel que
se põe a dançar em cadência! É mais do que evidente que o faquir não o tocou;
não sei o que pensar. Como pode ele, num segundo, obrigar o objeto inanimado
a obedecer ao comando do homem?

No momento de reaver meu anel, não percebo nele nenhuma mudança. Mais
uma vez o faquir desfaz seu embrulho, do qual tira uma barra de ferro
enferrujada, cerca de duas polegadas e meia de comprimento e meia polegada
de largura. Peço ao assistente permissão para examiná-la. Sem a menor
objeção, ele me deixa fazê-lo; não percebo nenhum fio, como também não vejo
nada de suspeito em volta.

Uma vez a barra posta na mesa, o faquir, esfregando com vigor suas mãos
durante um bom minuto, curva-se ligeiramente sobre a mesa e fica com as mãos
levantadas acima da barra a uma certa distância. Observo com atenção cada um
dos seus gestos: lentamente, ele levanta as mãos, conservando os dedos
voltados para a barra. Com grande assombro, vejo a barra levantar-se à altura
mais ou menos de cinco polegadas, e seguir os movimentos dos dedos, paralela
às mãos do faquir!

Quando se abaixam as mãos, a barra também se deita na mesa. Peço permissão


para examiná-la de novo: não percebo nada de especial, é um simples pedaço
de ferro enferrujado. O faquir repete a mesma experiência com o canivete.

Recompenso-o liberalmente e tento obter algumas informações. O faquir


consente em esclarecer-me apenas que é preferível que o objeto seja de ferro
ou contenha ferro cujas propriedades particulares sejam favoráveis à
experiência, mas, já obteve êxito também com diversos outros metais, como
ouro, prata e cobre.

Procuro uma explicação; talvez um longo cabelo, invisível pela sua finura, seja
ligado ao objeto; mas o meu anel? Ele dançava, enquanto o faquir estava longe,
com as mãos presas tocando acordeão! O assistente não podia ser cúmplice,
pois estava fora da tenda durante a dança das bonecas... Jogo verde para colher
maduro, e felicito-o por ser prestidigitador tão habilidoso. Seu olhar se entristece,
por ser julgado apenas um ilusionista.

— Mas afinal, quem é o senhor?

— Sou um autêntico faquir — responde-me orgulhosamente, por intermédio de


seu assistente — sou um sábio na prática da arte do...

A última palavra, sem dúvida de raiz urdu, me escapa; confio-lhe o grande


interesse que tenho por tudo que toca o sobrenatural.

— Sim, eu sei, logo percebi, mesmo antes de o senhor se aproximar da multidão,


e aliás, foi por essa mesma razão que o convidei a entrar em minha tenda.
— Não diga! Mas como podia sabê-lo? — pergunto incrédulo.

— Não julgue, sobretudo, que estou juntando dinheiro por espírito de ganância;
preciso de uma certa quantia para erguer um mausoléu em memória de meu
velho mestre. Entreguei-me a essa tarefa com toda minha alma, e não
descansarei enquanto não tiver completado a soma indispensável.

Fortemente interessado, pergunto se consentiria em contar alguns pormenores


de sua vida. Muito relutantemente ele concorda, e começa a narrativa:

“Aos treze anos era eu ainda um pastor de cabritos, de meu pai. Um belo dia
chegou à nossa aldeia um asceta de esqualidez tão assustadora que os olhos
pareciam sair-lhes das órbitas. Ele nos pediu um pouco de alimento e pouso para
a noite; meu pai lhos concedeu imediatamente, sempre possuído do mais
profundo respeito pelos santos homens. Não obstante, um ano depois, ele ainda
permanecia lá em casa, por ter conquistado a afeição de minha família, e meu
pai não o deixava partir, pedindo-lhe e rogando-lhe que ficasse. Ele era um
homem excepcional, possuidor de estranhos poderes. Um dia, quando sentados
à mesa diante de nossas cuias de arroz e legumes, percebi, várias vezes, seu
olhar fixar-se em mim. No dia seguinte, ele veio me procurar no curral, onde
pastavam cabritos, e sentou-se ao meu lado.

— Meu filho — disse-me — você desejaria ser um faquir?

Pouco sabia eu, então, o que isso queria dizer, porém essa palavra abria na
minha mente horizontes sedutores e perspectivas de liberdade e de mistério.
Respondi-lhe que gostaria, e com muito prazer. Em seguida ele falou com meus
pais e, ao despedir-se, assegurou-lhes que dentro de três anos voltaria para me
levar consigo. Coisa estranha, pois dentro desse período meu pai e minha mãe
faleceram; portanto, quando ele voltou eu estava completamente livre. Pusemo-
nos a errar de aldeia em aldeia — ele era mestre e eu, seu discípulo; foi ele quem
me ensinou todas essas maravilhas que acabei de mostrar ao senhor.”

— São elas tão fáceis de ser aprendidas?

O faquir desata a rir:

— Digo-lhe que são necessários anos de duro labor para se chegar a um


resultado!

Isso me soa verdadeiro e sincero. Cético por natureza, sinto que minha
desconfiança se torna inútil aqui. Ao sair da tenda, ainda não tenho certeza se
não estou sonhando; o frescor da brisa, estremecendo os topos das palmeiras
no pátio vizinho, faz-me voltar à realidade. Mais me afasto, mais os fatos me
parecem absurdos: obstino-me a descobrir algum embuste, mas também não
posso duvidar da honestidade desse homem. Como acreditar, todavia, que os
objetos inanimados possam mudar de lugar sem serem tocados? Como pode o
homem chegar a tal prodígio, como se estivesse rindo das leis da natureza? Ou
talvez existam infinitamente mais coisas na natureza, que nós ignoramos?

* * *

Puri é uma das cidades santas da Índia, que abriga grande quantidade dos
templos e mosteiros desde os tempos mais remotos. Os peregrinos que a ela
afluem nos anos de festas religiosas, ajudam a puxar o gigantesco Carro
alegórico de Juggernaut, no seu percurso de duas milhas. Aproveito a
oportunidade para estudar os santos personagens; eis aí o momento único de
obter impressões de primeira mão, que espero sejam mais interessantes do que
as anteriores.

Começo por travar conhecimento com um peregrino, cujo inglês mais ou menos
correto posso entender, e que me revela, com o convívio, ser homem honesto e
de caráter nobre; aproxima-se dos seus quarenta anos, usa no pescoço um colar
fino de caroços e traja um simples manto de romeiro. Narra-me que está viajando
em visita a santuários e percorrendo todos os lugares santos de leste ao sul,
mendigando seu pão nas estradas. Dou-lhe uma oferenda em troca da qual ele
me mostra um pequeno volume tâmil que, a julgar pelas folhas amarelas e pela
encadernação roída pelas traças, deve ter mais de cem anos. Entre as páginas,
percebo gravuras muito curiosas; lentamente e com extremo cuidado, meu
peregrino, tirando duas dessas gravuras, mas oferece.

Meu encontro com Sadu, o homem letrado — como o batizei — é mais divertido.
Encontrei-o certa manhã ao meu lado quando, sentado na areia, estava lendo
as páginas rescendendo a rosa de Omar Khayyám. O Rubá’yát é um poema que
sempre me fascina, mas desde o dia em que um jovem escritor persa me iniciou
no seu significado mais profundo, entrego-me à sua leitura com prazer ainda
maior. Tão absorto estava, que nem percebi a forma humana atravessar a praia,
vindo ao meu encontro. O desconhecido já se havia acocorado, quando a
sensação de uma presença inesperada me incita a levantar os olhos. O homem,
com roupa dos santos homens, põe na areia seu bastão de peregrino e uma
trouxa de linho, da qual vejo despontar livros.

— Peço-lhe perdão, senhor — diz, em excelente inglês — sou um estudante de


literatura inglesa; e começa a desfazer o nó do seu embrulho.

— Não quis ofendê-lo, senhor, mas não pude resistir ao prazer de falar-lhe.

— Mas por que acha o senhor que ia me ofender — pergunto sorrindo.

— O senhor é um turista?

— O menos possível...

— Não obstante, o senhor não está há muito em nosso país?


Inclino a cabeça em sinal afirmativo.

Ele começa a tirar do embrulho três livros de encadernação roída e cantos


esfarrapados, alguns folhetos e folhas de papel em branco.

— Olha, senhor, tenho aqui os Ensaios de lorde Macaulay; que estilo admirável,
que inteligência! — lamentavelmente, tão cheios de materialismo!

Essa é boa! Então, tenho diante de mim um crítico literário!

— Este outro — continua falando — é A História de duas Cidades de Dickens;


que patética, senhor! Que sentimento! É de arrancar lágrimas!

Com essas palavras o santo homem torna a pôr seus tesouros literários dentro
da trouxa, tão rapidamente quanto os havia tirado, e virando-se para mim:

— Não seria indiscreto perguntar-lhe o título do livro que o senhor estava lendo?

— São poesias de Omar Khayyám.

— O senhor Khayyám? Nunca tinha ouvido falar nele. É um dos vossos


romancistas?

Não pude deixar de rir.

— Não, ele é um poeta. O senhor é um homem muito curioso, quer saber tudo...
é uma esmola que vem me pedir?

— Oh! não, eu não vim por dinheiro, senhor! O que eu quero é que o senhor me
dê um livro. Gosto tanto de ler, senhor!

— Pois não! O senhor terá seu livro; acompanhe-me até casa e dar-lhe-ei alguma
coisa da boa época vitoriana, que lhe dará, sem dúvida, muito prazer.

— Oh! Como lhe fico agradecido, senhor.

— Mas, espere, eu vou lhe dar um presente, porém gostaria antes que o senhor
me mostrasse qual é o terceiro volume que tem em seu embrulho.

— Oh! senhor, ele não é nada interessante.

— Não faz mal — diga-me, ao menos, o título.

— Mas não vale a pena, senhor.

— Afinal, o senhor quer meu livro ou não quer?

Dessa vez o homem se assusta:


— Sim, senhor, eu quero, vou então lhe mostrar, porque o senhor insiste — o
título dele é Monismo e Materialismo — é um estudo sobre o Ocidente, obra de
um filósofo nosso.

Finjo ficar chocado:

— Oh! essa a literatura que lhe interessa...

— Foi um vendedor ambulante que mo deu — disse — como para se desculpar


e explicar sua posse.

— Deixe-mo ver, então.

Leio os cabeçalhos, percorro rapidamente algumas páginas; o ensaio está


escrito em estilo pomposo, cheio de ênfase, provavelmente por algum babu
bengalês e publicado em Calcutá à custa do autor. Os títulos, mencionados em
seguida ao seu nome, denotam sua prosa mas, pouco conhecimento do assunto.
Em esboço grotesco, faz uma pintura sombria da Europa e da América, como
uma espécie de inferno moderno, sinistro e bárbaro, povoado só de proletariado
martirizado e de plutocratas endinheirados. Entrego-lhe o livro sem comentários.
O santo homem guarda-o apressadamente e tirando um dos folhetos, comenta:

— Essa brochura contém uma curta biografia de um santo indiano, mas redigida
em bengali.

— Agora, diga-me, o senhor concorda com o autor de Monismo?

— Oh! muito pouco, senhor, muito pouco! Pretendo ir um dia ao Ocidente e julgar
por mim...

— Para fazer o quê no Ocidente?

— Fazer conferências para iluminar as trevas em que está mergulhada a mente


do povo. Eu gostaria de seguir o exemplo do nosso grande Swami Vivekananda,
que ministrou tão eloquentes palestras em vossas cidades ocidentais. Mas que
pena ele falecer, abandonando o mundo tão jovem! Sua voz de ouro calou-se
para sempre!...

— Bem, como santo, o senhor é um santo muito singular!

O Yogue, levantando o dedo à altura do nariz, replica com ar sabido:

— O Autor Supremo montou o cenário: quem somos nós, pobres mortais, senão
atores que entram e saem, conforme a Sua vontade? — como disse o vosso
famoso Shakespeare.

* * *
Cheguei à conclusão de que os santos da Índia se compõem de classes
extremamente heterogêneas. Muitos são pessoas de boa índole, inofensivas,
mas ignorantes e incapazes de realizar qualquer coisa. Outros são
desclassificados, ou melhor, indivíduos que não gostam de nenhum esforço que
lhes possa causar o menor cansaço.

Um dia um desses homens vem me pedir uma esmola; os cabelos eriçados, o


corpo coberto de cinzas, a face com expressão canalha lhe dão um aspecto
repugnante. Estou decidido a passar sem nem mesmo olhar o homem, só para
ver sua reação. Minha indiferença o provoca e, agarrando-se a mim, não quer
me deixar. Na falta de argumentos, acaba por oferecer-me um objeto imundo,
mas que deve ter um grande valor para ele, a julgar pelo preço exorbitante que
pede; evidentemente, mando-o embora.

Menos comuns são esses pobres loucos, que torturam seus corpos à vista do
público; um daqueles que ficam com o braço levantado até que as unhas lhes
cresçam uns cinquenta centímetros e rivalizam com os que permanecem de pé
numa só perna, durante anos a fio. Não vejo absolutamente qual é o benefício
que eles podem obter dessas horríveis exibições, exceto alguns anás que o
público entusiasta vem depositar nas suas tigelas.

Entre todos esses santos, ainda alguns praticam abertamente a bruxaria. Isso é
a macumba da Índia. Geralmente eles operam nas aldeias, e em troca de
pequena remuneração, são capazes de fazer qualquer feitiço a nosso inimigo:
vender-lhe a mulher ou desgraçar nosso rival com algum mal estranho e
misteriosa doença, favorecendo nossas ambições. Ouvem-se casos estranhos
e as mais escabrosas histórias sobre os magos negros, que também desfrutam
do nome de yoguis ou de faquires.

Quando se acaba de analisar toda essa variedade de santos homens, sobra uma
ínfima parcela para os verdadeiros ascetas que se enclausuraram, retirando-se
em meditação solitária, condenando-se voluntariamente à penosa segregação,
banindo-se de todo contacto humano, sem outra intenção a não ser a busca da
Verdade. Sentem por instinto que, uma vez atingida a Verdade, lograrão a
felicidade sem limites, e ainda que nos fosse permitido duvidar desse
procedimento, tão estimado pelos hindus, tornar-se-ia impossível criticar a
legitimidade do fim almejado, que os impulsiona a semelhante proceder.

Nós, ocidentais, não dispomos do tempo necessário para tal busca e há uma
desculpa para essa indiferença: sabemos que se nos enganamos — enganamo-
nos em massa. Nossa época, febril e cética, considera a busca da Verdade como
uma superfetação desnecessária, sem parecer duvidar da vaidade e da futilidade
das coisas às quais entregamos nossa maior energia.

Nem nos ocorre a idéia de que esses solitários, passando sua vida na ânsia de
encontrar o real e mais profundo sentido da existência, têm maior visão para
formar uma opinião exata sobre os problemas da vida corrente, do que a
multidão que às cegas gasta suas energias em diversos interesses
contraditórios, sem dar a menor atenção a todo pensamento mais sutil, que a
possa aproximar da descoberta final, permanecendo imune.

Em época longínqua chegou às planícies de Banjab um dos nossos


antepassados com finalidade diferente da minha. Lá ele encontrou homens que
o desviaram do caminho, a ponto de fazê-lo esquecer, perigosamente o
verdadeiro objetivo da sua expedição. Alexandre, o Grande, veio para conquistar
o vasto Império, entrando nas Índias como soldado, porém parecia estar
marcado pelo destino para sair como filósofo.

Às vezes pergunto-me a mim mesmo: que pensamentos assediavam o cérebro


do rei da Macedônia, enquanto sua carruagem real percorria as montanhas
nevadas e os desertos tórridos da Índia? Em vez de conquistar, foi conquistado
pelos sábios que encontrou na sua rota. Dia após dia passou a questioná-los e
a debater a filosofia deles. Se tivesse demorado mais alguns anos entre eles,
talvez resolvesse lançar o Ocidente em outra direção à daquela que havia
escolhido e então... Quem sabe?

Existem ainda entre os sábios de nossos dias, alguns que dão a vida para manter
a chama do idealismo e da sublimidade e o país inteiro os considera como seu
maior tesouro. Mesmo que a maioria deles seja constituída de impostores, o que
é bem provável, isso é apenas um deplorável resultado da decadência dos
tempos. Mas não devemos vendar a vista ao ponto de não enxergar a existência
de alguns redentores inspirados. É de lastimar, mas pela qualidade tão diversa
dos santos homens, nenhuma fórmula de elogio ou de censura pode ser aplicada
a todos eles. Aliás, isso também explica a atitude de certos cérebros de curta
visão, ou demasiadamente precipitados, quando nos propõem a exterminação
desses santos parasitas, como eles os chamam, em benefício da Índia. Os
espíritos mais ponderados, ou talvez mais esclarecidos, são aqueles que dizem
que a Índia perecerá no dia em que perder a noção do tesouro que possui.

Para a Índia o problema é importante, também sob um outro ponto de vista. No


caso de um abalo econômico que obrigue a fazer uma revisão de valores, os
santos homens não exercem, como se deve supor, nenhuma função
propriamente útil à sociedade. Milhares de vagabundos assaltam, feito moscas,
aldeias e cidades, aguardando festas religiosas.

Esses indivíduos, na maioria impertinentes, sempre inoportunos e enfadonhos,


tornam-se para a sociedade indiana uma carga sem contrapeso. Não obstante,
por outro lado existem grandes e nobres seres que tudo sacrificam a fim de
caminhar na senda da Verdade e encontrar Deus.

Esses homens são motivo de exaltação do povo, por onde passam; os esforços
que fazem para elevar sua alma e ajudar os outros a se elevarem, valem um
pedaço de pão ou uma cuia de arroz, pois é tudo o que pedem. Não se deve fiar
nas aparências, mas também precisamos raspar bem a casca antes de julgar a
árvore pelos frutos.

* * *

O véu da noite vem cobrindo a cidade, enquanto perambulo pelas ruazinhas


estreitas da antiga Calcutá. Tenho ainda diante dos meus olhos o horrível
espetáculo desta manhã. O trem em que viajei atravessava uma selva perigosa,
formigante de onças e tigres reais.

Durante a noite, nossa máquina pegou e esmagou uma dessas feras, entrando
na estação de Hovrah toda ensanguentada, e os destroços de carne só puderam
ser removidos à custa de grandes esforços dos trabalhadores.

O trem estava superlotado, como aliás quase todos os trens de grandes


percursos na Índia. No compartimento, onde tive a sorte de encontrar um leito
vago, meus companheiros de viagem formavam um grupinho muito
heterogêneo. De modo geral, os viajantes têm por hábito falar tão livremente da
sua vida e dos seus negócios que se torna praticamente impossível ignorar o
que eles representam e donde vêm. Um deles era um genuíno filho do Islam,
vestido numa longa túnica toda de seda preta, abotoada sob o queixo, um
chapéu redondo da mesma cor, ricamente bordado de ouro, e uma espécie de
calça branca de pijama; para terminar, um par de sandálias artisticamente
trançadas com tiras vermelhas e verdes. Havia também um marata do leste, de
sobrancelhas grossas, um marvari de turbante dourado que, como muitos de sua
raça, era também usurário. Por fim, um advogado, rapagão forte, e um brâmane
ruivo. Todas essas pessoas deviam ser importantes, a julgar por seus criados
pessoais que em cada estação de parada maior, saíam de seus carros de
terceira classe para se informarem dos desejos dos seus amos.

O muçulmano, depois de me ter honrado com um olhar, cerrou os olhos e dormiu


o sono dos justos. O marata estava em conversação animada com o marvari. O
brâmane acabava de subir. Por minha parte, embora seja de gênio comunicativo,
não via ninguém a quem pudesse falar. Parecia-me haver uma barreira invisível
separando-me dos outros viajantes, a natural barreira entre o Oriente e o
Ocidente.

Senti, portanto, um verdadeiro alívio, quando percebi o brâmane ruivo apanhar


um livro, cujo título inglês se impunha aos meus olhos, tão audaciosamente ele
saltava da capa: A Vida de Ramakrishna. A oportunidade de entrar em conversa
era bela demais! Já não ouvira eu falar que Ramakrishna foi o último desses
famosos super-homens chamados Richis? Logo percebi que também meu
companheiro de viagem só esperava uma oportunidade para me abordar. Assim,
não se passou muito e eis-nos subindo os atalhos escarpados de especulação
mental ou simplesmente averiguando os aspectos familiares da vida indiana.
Cada vez que ele pronunciava a palavra Rich, sua voz refletia amor, e tão
profundo respeito, que uma chama viva se acendia em seu olhar; não havia
dúvida que sua emoção era sincera. Duas horas não se passaram e eu já sabia
que o brâmane era seguidor de um desses dois ou três sobreviventes, discípulos
do grande Ramakrishna. Esse mestre, Mahasaya, beirando seus oitenta e cinco
anos, não morava em nenhum retiro, e sim, no coração de Calcutá, no bairro
indiano da cidade.

É evidente que logo pedi o seu endereço; meu companheiro não opôs dificuldade
e, entregando-me o cartão, acrescentou:

— Aliás, o senhor não- precisa de apresentação de espécie alguma, basta


exprimir o desejo de vê-lo.

Eis a razão pela qual cheguei hoje a Calcutá, procurando a casa do mestre
Mahasaya, um dos discípulos do famoso Ramakrishna. Andando, atravesso a
rua que dá acesso ao pátio e no fundo tomo uma escadaria que me leva a um
grande casarão de construção antiga; subo os degraus sombrios, atravesso a
porta baixa, tenho de subir ainda um andar, abro uma porta do pequeno recinto
que dá para o terraço, no telhado da casa e, ao entrar, vejo duas das paredes
tomadas por sofás baixos; aliás, a peça não possui outro mobiliário, salvo uma
lâmpada e um monte de livros. Um jovem aparece e pede-me para aguardar. Ao
fim de dez minutos, ouço alguém sair da sala no andar inferior e,
instantaneamente, sinto um impulso incontido; tenho a impressão nítida de que
alguém fixou seu pensamento em mim. Ouço nos degraus os passos lentos de
quem se aproxima, e quando aparece, não preciso ninguém para mo apresentar.
Surge uma figura de verdadeiro patriarca, como o deveriam ser aquelas do
tempo de Moisés, repentinamente, saído das páginas da velha Bíblia. Esse
ancião de cabeça calva, de longa barba, como neblina branca cobrindo-lhe o
peito, de ar solene e olhar profundo, de ombros curvados sob o peso dos anos,
quem podia ser senão o mestre Mahasaya?!

Antes de se dirigir a mim, ele se senta lentamente no sofá. Diante dessa


venerável presença, sinto logo que aqui não há lugar para brincadeiras e o meu
ceticismo seria totalmente fora de propósito; mesmo o visitante menos prevenido
poderia ler nessa face a nobreza de caráter e a pureza de sua fé inabalável. O
mestre, em excelente inglês, é o primeiro a cumprimentar:

— Seja bem-vindo.

Depois convida-me para me aproximar e sentar ao seu lado; toma minhas mãos
nas suas e guarda-as algum tempo. Julgo o momento oportuno para me
apresentar e expor o objeto da minha visita; quando acabei de falar, ele,
acentuando suavemente o aperto das mãos, diz:
— Uma força superior lhe inspirou essa viagem, pondo-o em contacto com os
santos do meu país — isso não é sem razão, espere com paciência e o futuro o
fará compreender.

— Não seria abusar da sua bondade, pedir-lhe que me conte alguma coisa sobre
seu mestre Ramakrishna?

— Oh! sabe o senhor que esse assunto é o mais querido para mim, aquele de
que mais gosto de falar?

Há quase meio século que ele nos deixou, porém sua memória sempre perdura,
toda viva em mim!... Quando o conheci, eu tinha vinte e sete anos; os últimos
cinco anos da sua vida passei-os ao seu lado. Graças a ele tornei-me outro
homem, e toda minha atitude para com a vida se transformou, tão grande e
profunda era a influência desse homem divino. Aos que iam visitá-lo, ele
espalhava a sedução do seu espírito, tão profunda que os fascinava, literalmente
os encantava. Os incrédulos, que vinham só com o intuito de zombaria, calavam-
se na sua presença.

— Mas como é possível aos que não acreditam, inclinarem-se diante de uma
influência puramente espiritual?

Como se pode dar isso? indago, perplexo.

Os lábios do Mahasaya esboçam um ligeiro sorriso:

— O senhor experimente dar a provar pimenta vermelha a duas pessoas. —


Uma não sabe o que é isso, a outra, ao contrário, tem por hábito usá-la. O gosto
da pimenta não será o mesmo, tanto para uma como para outra pessoa? — Dois
paladares terão uma sensação diferente? Não. Assim acontece com os
descrentes. Eles ignoravam a grandeza espiritual de Ramakrishna; no entanto
experimentaram o efeito de irradiante espiritualidade que ele emana.

— Era ele, realmente, um super-homem?

— Sim; e mais ainda, a meu ver. Era homem muito simples, sem vastos
conhecimentos, nem instrução; não sabia assinar seu nome e ainda menos
escrever uma carta. Pobre, era humilde na aparência, e mais humilde ainda pelo
seu modo de viver; no entanto, os homens mais ricos e mais cultos da Índia
vinham reverenciá-lo. Não podiam deixar de se curvar ante sua alta
espiritualidade, tão evidentemente soberana e tão irradiante que literalmente os
deslumbrava. Ensinava que, orgulho, riquezas, honras, posições sociais, são
apenas vaidades, e comparados aos tesouros do espírito, ilusões mentirosas e
falsas. Oh! esses dias abençoados! Frequentemente ele se afundava em êxtase
de natureza tão evidentemente divina, que nós que o rodeávamos julgávamos
estar na presença de um Deus, mais do que na de um homem. É muito estranho,
mas ele possuía o poder de induzir os discípulos a estado semelhante ao seu,
pelo simples toque da sua mão, e eles concebiam então, pela percepção direta,
os mais profundos mistérios da Consciência Cósmica. Agora lhe vou contar
como ele me prendeu:

Eu fora educado segundo os métodos ocidentais. Orgulhoso de meu saber,


lecionara durante alguns anos nos colégios de Calcutá, Literatura Inglesa,
História e Economia Política. Nessa época, Ramakrishna vivia no templo de
Dakshineswar, subúrbio distante algumas milhas de Calcutá. Foi nesse templo
que o encontrei, numa inesquecível manhã de primavera onde, empolgado, eu
o ouvi falar pela primeira vez. Com palavras muito singelas e sem ênfase, as
idéias corriam de seu espírito como da fonte cristalina. Muito embora sem grande
convicção, tentei, em várias ocasiões, discutir com ele. Fiquei tão assombrado
pelo efeito que produzia sua presença toda divina que, pouco a pouco, me senti
reduzido ao silêncio. Subjugado pela individualidade desse homem pobre e
humilde, mas de grandeza tão soberana, de então em diante foi impossível me
privar do seu contato... até que certo dia Ramakrishna veio me dizer, com humor:

— “Uma vez deram ópio para um pavão provar; no dia seguinte, ainda sob o
efeito do narcótico, a ave voltou exatamente na mesma hora a buscar uma outra
dose”.

Compreendi o sentido simbólico dessa parábola e como nunca me sentira tão


feliz, continuei... e continuei a vir tão assiduamente que o Mestre acabou por me
aceitar entre os seus discípulos mais íntimos. Um dia, Ramakrishna virou-se para
mim e disse:

— Estou lendo por certos sinais dos teus olhos que tu és um Iogue — continua
a cumprir tua tarefa diária, mas tem a mente voltada para Deus. Mulher, filhos,
parentes, — vive com todos eles, servindo-os como a ti próprio. A tartaruga, nada
na água, mas tem a mente fixa no lugar onde pôs seus ovos; portanto, cumpre
o teu dever para com o mundo, mantendo o espírito em Deus.

E assim foi. Desde que o Mestre deixou nossa terra, e enquanto a maioria dos
seus discípulos renunciou ao mundo, adotando vestes amarelas e espalhando
pela Índia as palavras de Ramakrishna, eu continuei a exercer minha profissão.
Porém, de então em diante tomei a decisão de não mais pertencer ao mundo,
embora vivendo entre os homens. Algumas vezes, todavia, refugio-me no pátio
que fica aí, em frente ao Senado, onde os mendigos e desabrigados da cidade
pernoitam e, juntando-me a eles, animo em mim o sentimento de pobreza; sinto-
me desligado, quanto eles, de todos os bens transitórios.

Ramakrishna nos deixou, mas ao percorrer a Índia, vêem-se no caminho todas


as obras filantrópicas, hospitais e escolas, fundados sob a inspiração do espírito
do Mestre e por seus discípulos, lamentavelmente, também falecidos. O que não
se percebe tão facilmente são os corações, mentes, e vidas humanas que foram
transformadas por esse homem maravilhoso, pois os discípulos transmitiam sua
mensagem sem poupar energias para espalhar o evangelho do Mestre; quanto
a mim, tive o privilégio de redigir em bengali a maioria dos seus ensinamentos;
meus livros penetraram cm quase todos os lares indianos e suas traduções em
diversos idiomas foram publicadas no estrangeiro. Assim a influência de
Ramakrishna espalhou-se pelo mundo afora, além do pequeno círculo dos seus
discípulos imediatos.

Mahasaya calou-se; levanto os olhos e fico impressionado pela expressão do


seu semblante, que não lembra em nada as feições nem a tez de um hindu.
Meus pensamentos se transportam a esse pequeno reino da Ásia Menor onde
os filhos de Israel acharam um abrigo provisório contra as inclemências do
destino. Imagino muito bem o Mahasaya entre eles, como um patriarca
venerável, falando a seu povo amado. Quanta nobreza nos seus traços! Tanta
bondade, piedade e sinceridade não podem mentir! Há nele uma dignidade
singela do homem que jamais obedeceu a não ser à sua própria consciência.
Emocionado, balbucio como se estivesse falando comigo.

— Gostaria de saber o que Ramakrishna diria ao homem que não pudesse viver
exclusivamente com a fé, por que também tem a inteligência e a razão para
satisfazer?...

— Ele lhe teria respondido para orar — sussurra-me baixinho — a oração é uma
força tremenda. Ramakrishna rezava a Deus para mandar-lhe homens de
inclinação espiritual e logo aqueles que depois se tornaram seus discípulos,
começaram a vir.

— Mas quando nunca se orou, o que fazer, então?

— A oração é o último recurso, a última possibilidade oferecida ao homem. Onde


o intelecto falha, a oração pode salvar.

— Pois não, mas se alguém vem dizer-lhe que não é do seu temperamento rezar,
que conselho o senhor lhe daria?

— Nesse caso ele tem que se pôr em contato assíduo com os verdadeiros
mestres, santos dotados de alto grau de espiritualidade, pois além de estimular
nosso anseio pela vida espiritual, tais homens orientam nossa mente e
despertam nossos poderes latentes, dirigindo-nos à percepção indubitável do
Divino. Frequentá-los é o primeiro passo a dar nessa via e, às vezes o último,
como dizia frequentemente Ramakrishna.

O tempo se escoava e nós ficamos conversando à vontade, acerca dos mais


profundos pensamentos humanos, entre os quais a afirmação de que a paz só
existe em Deus. Começam a afluir visitantes a cada instante e logo a modesta
sala vai se lotar com discípulos. Eles chegam à noite e sobem as escadas dos
quatro andares, aguardando a palavra do Mestre.
Durante algum tempo, compareci todas as noites, não tanto para ouvi-lo, mas
para sentir o efeito da sua presença, aquecendo-me o coração e a mente. É o ar
de amor e de infinita doçura, impregnado de espiritual beleza interior, cujas
irradiações são quase palpáveis. Se às vezes esqueço as palavras, guardo
preciosamente essa influência apaziguadora. O que o atraiu a Ramakrishna,
prende-me hoje a Mahasaya. O que devia ser então a influência do Mestre, se a
do discípulo exerce sobre mim tão irresistível fascinação?

Na última noite esqueço a fuga do tempo, sentado perto dele no sofá, abismado
em plena felicidade. As horas se passam em prolongado diálogo, depois o
silêncio cai entre nós. O bondoso Mestre se levanta e me leva pela mão,
dirigindo-se ao terraço banhado pelo luar, entre vidas silenciosas das plantas e
flores que cultiva. Em baixo, Calcutá fulge com milhares de luzes. A lua é cheia.
Mahasaya, fixando-a, cai em curta, porém, profunda meditação. Depois,
voltando-se para mim, faz um gesto de bênção, tocando suavemente minha
fronte. O cético endurecido inclina humildemente a cabeça diante desse homem
verdadeiramente angélico. Após alguns minutos de silêncio, ele me sussurra
baixinho:

— Minha tarefa está quase cumprida; o corpo em breve vai pôr um ponto final
na obra para a qual Deus me havia chamado à terra, mas antes de minha partida
receba minha bênção. 1
1. De fato, soube da sua morte pouco tempo depois.

Tomado pela emoção, esqueço o sono e vou andando noite afora, pelas ruas da
cidade adormecida, pensando. Em frente de uma mesquita refreio os passos:
ouço a voz do muezim entoar, no silêncio da meia-noite, o hino solene ao
Senhor: Alá é grande! Então me vem uma reflexão: se há alguém capaz de me
livrar do meu ceticismo intelectual e me encaminhar para a senda da pura fé,
esse será indubitavelmente o Mestre Mahasaya.

* * *

— Houve um desencontro, ou talvez, não estivesse escrito que vocês se


encontrassem. Quem o sabe?

Quem me fala assim é o doutor Bandyopadhya, o cirurgião chefe de um dos


hospitais de Calcutá, o maior operador da cidade. Possui no seu ativo mais de
dez mil operações e seu nome nos cartões de visita é seguido por uma tal fileira
de títulos e distinções que acho uma verdadeira sorte poder confrontar, à luz da
sua crítica esclarecida, algumas noções da Yoga que havia adquirido, o
chamado Controle do Corpo. Seus conhecimentos profissionais ajudaram-me
bastante a transpor para o plano puramente racional os princípios da Yoga.
— Acredite-me — confessa-me o cirurgião — sei ainda menos do que o senhor
de tudo o que me está dizendo; eu nunca encontrei um verdadeiro Yogue, à
exceção de um, Narasinha Swami, que esteve em Calcutá faz pouco tempo.

Logo me informo sobre o paradeiro desse Yogue e fico desapontado com a


resposta:

— Narasinha Swami surgiu no céu de Calcutá, como um verdadeiro meteoro,


provocando uma grande sensação, para depois desaparecer, tão rapidamente
como viera. Ouvi dizer que ele, vivendo num retiro no interior do país,
repentinamente saíra para aparecer por aqui, mas soube também que ele já
regressara, não sei bem para onde.

— Gostaria de saber como isso se deu.

— Com todo prazer lhe contarei o fato, tal qual se passou:

Por longo tempo não se falava na cidade senão dele. Foi descoberto há um ou
dois meses em Madhupore, pelo doutor Neoghy, professor de Química na
Universidade de Calcutá, que o vira ingerir algumas gotas de ácido
extremamente tóxico e também pôr na boca um carvão em brasa e segurá-lo até
se apagar. O professor, vivamente interessado, convenceu-o a vir a Calcutá para
repetir a experiência em sessão pública, na Universidade, perante uma
assembléia composta exclusivamente de médicos e cientistas. Eu estava entre
os convidados. A demonstração teve lugar no anfiteatro de Física. Nós éramos
um grupo de pessoas cujo espírito crítico estava alerta, e por minha parte, como
o senhor sabe, nunca havia prestado a menor atenção às coisas da religião, da
Yoga, nem a qualquer doutrina desse gênero, tendo bastante o que fazer com
minhas ocupações profissionais.

O Yogue subiu ao palco e começou as experiências. Trouxeram-lhe os venenos,


emprestados do laboratório da Universidade. Calmo e sereno, iniciou por uma
empola de ácido sulfúrico, derramando algumas gotas na palma da mão,
chupou-as; repetiu o mesmo com o ácido fênico. Apresentamos-lhe então o mais
terrível dos venenos: o cianureto de potássio, que ingeriu sem vacilar. É uma
coisa absolutamente assombrosa, mas não nos restava nada a fazer senão nos
curvarmos ante a evidência, pois ele absorveu uma dose suficiente para matar
um homem em menos de três minutos; no entanto estava lá no palco, sorrindo e
calmo como se nada tivesse acontecido!

Em seguida um dos cirurgiões quebrou uma garrafa, cujos cacos foram


reduzidos a pó. Narasinha Swami o engoliu sem hesitar! O pó age,
habitualmente, como veneno lento; três horas depois, um dos meus colegas
introduziu-lhe uma sonda no estômago, onde achou o pó e os venenos, tais
como os havia absorvido, e no dia seguinte o vidro pulverizado achava-se na
desassimilação.
Eu lhe repito, temos que nos inclinar! O ácido sulfúrico foi anteriormente
experimentado numa peça de cobre, mostrando-nos seu efeito destruidor. Entre
os assistentes estava presente sir C. V. Raman, célebre cientista e prêmio Nobel
de física, que não hesitou em fazer uma declaração pública, dizendo que essas
experiências punham em desafio os resultados das pesquisas científicas mais
recentes.

Quando perguntamos a Narasinha Swami como havia conseguido chegar a


imunizar assim o seu corpo, ele nos respondeu que voltando à casa
imediatamente punha-se em transe, e pela concentração intensa,
contrabalançava os efeitos mortais do veneno. 2
2. Narasinha Swami apareceu novamente em Calcutá. Algum tempo depois voltou a Rangoon,
em Burma, onde fez uma demonstração igual. Porém a invasão inesperada de espectadores
provocou um atraso na sua entrada em êxtase no tempo observado pela Yoga. Morreu das
trágicas consequências.

— Doutor, pela sua própria experiência profissional poder-se-ia dar uma


explicação desse fenômeno?

O médico sacode a cabeça:

— Não, é impossível, isso é francamente desconcertante.

Ao chegar em casa, ponho-me a procurar numa das malas o caderno de notas


de minhas entrevistas com Brama, e acho o seguinte:

“Seja qual for a violência do veneno, não pode afetar o Yogue que praticou o
grande exercício que consiste, em suma, de diversas práticas, tais como a
postura, respiração, concentração da vontade e poder da mente. Praticado
conforme manda nossa tradição, imuniza nossos adeptos contra qualquer objeto
nocivo, veneno, etc... Sua prática é bastante delicada e só possui suas virtudes
quem a exercita com regularidade. Um ancião me falou uma vez de um Yogue
que podia absorver grandes quantidades de veneno sem o menor risco. Era
então muito conhecido em Benares, chamava-se Trailingya Swami, já falecido
há bastante tempo. Trailingya era também adepto fervoroso do Controle do
Corpo; ficava quase desnudo durante anos, sentado nas margens do Ganges e
infelizmente ninguém podia gozar da sua palestra, pois ele se havia imposto o
voto de silêncio.”

E eu não acreditei nada quando pela primeira vez Brama me falou de tudo isso.
Agora, minhas idéias preconcebidas começam a modificar-se...
11
O Taumaturgo de Benares

Não vou me deter sobre minhas jornadas através de Bengala, nem falar do
encontro inesperado que tive, perto de Buda-Gaya, com três lamas tibetanos que
me convidaram a visitar seu mosteiro, perdido no seio da montanha, pois estou
impaciente para entrar na cidade sagrada de Benares.

Nosso trem atravessa, barulhento, uma grande ponte de ferro que é como um
símbolo de irreverente indiferença para com os usos e costumes de uma
sociedade imutável através dos séculos. Como se pode manter a ficção de
santidade de um rio, quando as vias férreas com suas pontes, lançadas por mãos
ímpias, atravessam desrespeitosamente suas águas sagradas?

Eis Benares!

Uma multidão de peregrinos se empurra na saída da estação. Liberto-me e entro


num carro de praça que dispara através do labirinto das ruas poeirentas da
cidade.

Há alguma coisa nova no ar que se respira aqui e que se impõe obstinadamente


aos sentidos, apesar dos esforços que faço para desviar a atenção.

É essa a cidade santa da Índia!

Pois bem, ela está cheirando muito mal! O mau cheiro continua tão forte que
chega a ser nauseante. Dizem que Benares é o mais antigo centro povoado do
Indostão; se isso não se percebe, pelo menos se sente. Perdendo o ânimo, já
estou pensando em voltar à estação. Não é melhor respirar o ar puro do que
ganhar a fé ao preço de tamanha penitência? Mas, refletindo bem, chego à
conclusão de que o homem acaba por acostumar-se a tudo; assim também eu
tenho que me aclimatar com as coisas mais inesperadas neste estranho país.

Mas, Benares! Pode ser a capital da cultura e civilização mais antiga das Índias,
pode ser a mais santa das santas, mas deve aprender alguma coisa dos infiéis
e temperar sua santidade com um pouco mais de higiene! Acabo de saber que
esse ar empestado vem das ruas, calçadas de um composto feito de terra e
estrume de vaca, e também das velhas trincheiras que circundam a cidade, que
gerações sucessivas utilizavam como esgoto.
A acreditar nas antigas crônicas, Benares já era um centro edificado há mil e
duzentos anos antes da Era Cristã. Desde aquele tempo, os hindus já faziam
contínuas peregrinações, como os ingleses na Idade Média a Cantuária. Ricos
e pobres, quando a doença ou a idade os curvava à aproximação da morte,
afluíam a Benares, pois é comumente conhecido que se alguém tivesse o
privilégio de morrer na cidade santa, iria direto ao Paraíso. No primeiro dia
exploro o labirinto complicado de ruas encaracoladas das quais se compõe o
velho Kachi, nome indígena de Benares. Aliás, não é sem propósito que passeio
feito turista pelas suas vielas buliçosas. No meu bolso tenho o guia da cidade,
que marca o lugar da casa onde mora um Yogue fabricante de milagres, e cujo
discípulo encontrei em Bombaim.

Passo por alamedas tão estreitas que não permitem acesso aos carros; corto o
caminho através de barulhentos mercados, onde o povo multicolor (pelo menos
uma dúzia de raças) se acotovela, sem contar os sarnosos vira-latas e o enxame
de moscas, que aumentam a confusão. Velhas mulheres de cabelos grisalhos,
jovens de pele aveludada com corpos bronzeados e graciosos; peregrinos que
passam por entre os dedos as contas do rosário, repetindo pela quinquagésima
vez as mesmas palavras sagradas; ascetas esquálidos de rostos sujo e cinza;
todo esse povo que se compõe dos mais extravagantes tipos, raças e trajes, se
acotovela nessas vielas estreitas, formando assim a cor local de Benares.

No meio desse emaranhado e dessa confusão, numa das ruas turbulentas,


vibrantes de cores e dialetos, caio por acaso no famoso Templo de Ouro, célebre
entre a população ortodoxa da Índia.

Os ascetas cobertos de cinza, grotescos e repugnantes aos olhos ocidentais,


ficam acocorados sob seus portais. Torrentes de fiéis entram e saem
ininterruptamente e passam surpresos ao ver um estranho; alguns deles trazem
no pescoço grinaldas de flores coloridas que lhes caem no peito, dando uma
nota alegre a esse conjunto matizado. Os devotos, ao sair do templo, tocam com
a testa as colunas de pedra na entrada e param, chocados por ver um infiel os
ter surpreendido nesse ato de devoção; tenho novamente a impressão de uma
barreira a erguer-se, separando-me desse povo.

O céu é de um azul límpido; duas cúpulas folheadas a ouro cintilam ao sol


refulgente.

Os periquitos chilreiam invadindo a torre, o ar ressoa com o som alegre. O


Templo de Ouro é consagrado ao deus Shiva; pergunto-me, onde está esse
deus, cujas imagens são adoradas, diante de cujos ídolos de pedra os fiéis se
lamentam e oram, e aos quais trazem em oferenda flores e arroz cozido?...

Prossigo meu caminho e vejo um outro templo onde se adora Krishna; no interior,
diante do ídolo, todo de ouro, a chama de cânfora se consome. Os sinos
badalam, o som rouco dos toques de campa levanta-se aos ouvidos do deus;
percebo um sacerdote de face emaciada lançar-me um olhar desconfiado. Quem
pode compreender a alma desse povo, sempre tão sério, frequentemente
superficial e tão sábio às vezes? Quem pode calcular os milhares de imagens e
ídolos de que estão repletos os templos e palácios de Benares?...

Sozinho em desconhecida cidade, ando pelas ruas sombrias à procura da casa


do taumaturgo. Logo mais as ruelas começam a alargar-se; um grupo de
moleques em trapos, magros e pálidos, dirigido por homens, desfila barulhento
à minha frente. Um dos que os precedem segura um estandarte toscamente
confeccionado, cujo letreiro não consigo decifrar. Eles gritam e cantam de
romper os ouvidos, lançando-me olhares cheios de hostilidade. Oh! trata-se
então de política! Lembro-me que um dia, na praça do mercado repleta de
multidão, onde nenhum policial nem homem branco estavam à vista, ouvi proferir
às minhas costas uma ameaça. Voltei-me, instintivamente, mas não percebi
nada, os rostos eram amáveis e sorridentes; o jovem fanático (a voz era jovem)
que me ameaçou escondeu-se, na certa, em algum canto escuro. Agora os vejo
com piedade desaparecerem cantando, infelizes vítimas inocentes de agitadores
perigosos.

Finalmente, entro numa rua com casas maiores e de construção aprimorada,


cercadas de espaçosos jardins bem tratados. Acelero os passos, pois nessa
mesma rua deve estar a casa que procuro.

Vejo gravado na pedra da parede, o nome Vishudhananda; entro e pergunto em


hindustani à primeira pessoa que encontro, espreguiçando-se na varanda, um
jovem de rosto pateta.

— Onde posso encontrar o mestre?

Ele sacode a cabeça dando a compreender que nenhuma pessoa dessa


qualidade é conhecida nessa casa. Repito a pergunta — mesmo efeito. Fico
desapontado, mas não desanimado; alguma coisa me está dizendo que esse
jovem julga, na certa, que um ocidental não tem nada a procurar nessa casa, ou
então, simplesmente, tomei endereço errado. Ele tem o ar tão abobalhado que
sem fazer caso de sua gesticulação, entro na casa.

Na sala vejo algumas pessoas sentadas no chão, formando meio círculo,


vestidas de seda e de aparência fina. No fundo percebo um homem idoso, semi-
recostado no divã. Seu venerável aspecto e o lugar de honra que ocupa dizem
bastante que é a pessoa que procuro.

Levanto as mãos de palmas juntas e digo, seguindo o costume indiano:

— Paz seja convosco!

Apresento-me como um escritor inglês em circuito pela Índia, querendo estudar


certos aspectos da filosofia mística do seu país. Acrescento também que o
discípulo que encontrei em Bombaim me dissera que seu mestre nunca faria
uma demonstração pública dos seus poderes milagrosos e que mesmo à sombra
do sigilo, ele raramente os exibia a estranhos. No entanto, em consideração ao
profundo interesse que tenho pela antiga sabedoria indiana, permito-me solicitar
uma exceção a meu favor.

Os estudantes me olham, olham-se e fitam seu mestre, evidentemente curiosos


de saber a reação do sábio.

Vishudhananda deve ter mais de setenta anos; feições regulares, nariz pequeno
e barba comprida. Impressionam-me, sobretudo, seus grandes olhos,
profundamente encovados nas órbitas; no pescoço o cordão sagrado dos
Brâmanes.

O ancião me fita como quem olha um exemplar de uma espécie desconhecida.


Oh! que sensação estranha! Um poder oculto parece impregnar o ambiente; sinto
mal-estar. Afinal, o mestre dirige algumas palavras em bengali a um discípulo
que as traduz:

— A audiência não pode ser concedida senão na presença de pandit Kavir, 1


diretor do Colégio de Sânscrito, um dos mais antigos discípulos do mestre e cujo
perfeito conhecimento de inglês lhe permitirá servir-me de intérprete.
1. Pandit — um douto Brâmane (N. da T.).

— Volte com ele amanhã — acrescenta o mestre — esperá-los-ei às quatro


horas da tarde.

Que fazer nessas condições? Retiro-me com reverências, chamo um táxi e peço
levar-me ao Colégio. Ali não encontro o diretor; disseram-me que nesta hora ele
deve estar em casa. O motorista torna a correr pelas ruas da cidade e,
finalmente, encosta o carro junto a um velho casarão, cujo andar superior
saliente assemelha-se a uma casa italiana da Idade Média.

Encontro o pandit num quarto de altas paredes, forradas de prateleiras


amontoadas de livros, sentado nos ladrilhos juncados de papéis e acessórios
escolares. Tem um rosto fino de pele clara, a cabeça de fronte alta e um nariz
pequeno, conservando todas as características dos Brâmanes e professores.

Exponho-lhe a razão da minha visita; vacila um pouco, depois aceita. Fica


combinada a entrevista para o dia seguinte. Saindo, deixo-me levar até o
Ganges, onde vagueio sem rumo ao longo das margens bordejadas de
escadarias seculares, feitas para o conforto dos peregrinos que mergulham nas
águas sagradas: os degraus de pedras roídas pelo tempo caracterizam Benares,
mas também dão uma impressão de desleixo e de imundície. Templos de
cúpulas brilhantes parecem deslizar na água tocando-lhe a margem; encostam-
se aos palácios de várias alturas, uns acaçapados, outros altos,
sobrecarregados de ornamentos, o estilo antigo e o moderno misturam-se sem
a mínima deferência.

Sacerdotes e peregrinos andam por toda parte, misturando-se livremente; nos


pequenos pátios cobertos, e caiados de branco, os pandits dão aulas. O mestre
no meio, acocorado na esteira, os discípulos em volta, no chão, absorvem
passivamente os dogmas mais caducos. Vejo passar um asceta barbudo, cujo
ar estranho desperta meu interesse; dão-me a informação de que ele percorreu,
a pé, mais de quatrocentas milhas para vir a Benares, peregrinando. Mais
adiante, quase esbarro com um homem de triste aspecto, que (conforme me
disseram) estava com o braço levantado durante anos a fio; como resultado
dessa mortificação, o braço ficou totalmente atrofiado, os músculos e tendões
encarquilhados, a pele ressequida parece pergaminho.

Devemos culpar o sol dos trópicos por tamanha loucura? Uma temperatura de
cerca de cinquenta graus à sombra, sem dúvida pode acabar por transtornar os
cérebros que já estão naturalmente predispostos à histeria mística.

* * *

No dia seguinte, o pandit e eu chegamos à casa do mestre. Encontramo-lo na


sala rodeado de seis discípulos. Quando ele pede para me aproximar, acocoro-
me a alguns passos do divã.

— Deseja assistir ao que vocês ocidentais chamam milagre? começa por


perguntar.

— Considerar-me-ei feliz — seria um favor para mim.

— Empreste-me então seu lenço, de seda, se possível; vou perfumá-lo com o


aroma de sua escolha, concentrando apenas os raios solares e servindo-me de
uma lente.

Apanhando a lente, o mestre diz que, devido à inclinação do astro, a sala ficou
na penumbra, e não podendo captar os raios diretamente, vai mandar um dos
seus discípulos ao pátio, a fim de captá-los por meio de um espelho e refleti-los
pela janela aberta.

— Agora vou extrair do ar desta sala um perfume do seu agrado. Qual deles o
senhor prefere?

— O jasmim.

Vishudhananda toma meu lenço na mão esquerda e com a mão direita segura a
lente; durante dois segundos percebo um minúsculo orbe desenhar-se num
canto do lenço; depois de retirar a lente, entrega-mo. Levo-o às narinas: é
impossível duvidar! O lenço está deliciosamente impregnado com a fragrância
forte do jasmim!
Não percebo nenhum sinal de humidade; é evidente que não foi derramado
nenhum líquido.

O mestre, decerto, vendo minhas dúvidas no olhar, propõe repetir a experiência.


Escolho a rosa. Fico espiando cada gesto seu; observando com toda atenção o
espaço que o cerca, vigio as mãos e sua ampla roupa branca e não percebo
nada de suspeito. Ao devolver-me o lenço, reconheço, sem equívoco possível,
no canto oposto ao do jasmim, o perfume da rosa! Contudo não estou satisfeito
e peço-lhe a violeta. Novo êxito.

Vishudhananda exterioriza um triunfo moderado, considera suas experiências


como uma coisa banal, sem maior importância, e a gravidade dos seus traços
não desmente suas palavras.

— Agora eu é que vou escolher um perfume — diz o mestre — trar-lhe-ei o de


uma flor que cresce só no Tibete.

Concentrou algum raio da luz solar sobre o canto do lenço que sobrara e fez
surgir um perfume, dessa vez desconhecido para mim. Não há dúvida, isso
parece milagre! Pois se ele ocultasse o perfume na roupa teria que carregar
sobre si todas as essências. Aliás, eu não deixei de olhar suas mãos durante a
experiência. Peço-lhe para ver a lente; examino seu vidro grosso, comum a todas
as lentes, seu aro metálico, prolongando-se em braço também de metal. Os
discípulos que o cercam são também uma garantia, vale quanto vale! O pandit
havia me informado que todos eles são homens cultos e pertencem à alta classe
da sociedade. O hipnotismo talvez seja uma explicação. Pode ser, mas vou
comprová-lo: em chegando à casa, farei com que pessoas desprevenidas
cheirem o meu lenço.

Vishudhananda promete me mostrar, além disso, alguma coisa ainda mais


interessante, algo que parece fazer raramente; todavia, como já é quase noite,
e sendo preciso um raio de sol na sua maior força, devo voltar uma outra vez,
antes do meio-dia, para ver... ressuscitar um animal morto.

Chegando em casa, dou a cheirar o lenço a três pessoas, em diversas ocasiões,


todas elas reconhecem os perfumes. Não havia então sugestão. Francamente
não sei o que pensar...

* * *

Estou novamente diante do taumaturgo; logo que cheguei, ele me avisa que
agora só pode ressuscitar um pequeno animal, um pássaro, de preferência.
Estrangulam um pardal e deixam-no exposto à nossa vista durante uma hora,
para ter a certeza de que ele está bem morto. Os olhos do passarinho se turvam
e o pequeno corpo rígido não aparenta mais nenhum sinal de vida.
O mestre toma sua lente e concentra um raio do sol no olho do pardal. Minutos
se passam.

O ancião está de olhos fixos, curvado na sua misteriosa tarefa, com expressão
fria e indiferente, sem o menor traço de emoção; súbito, a modulação de um
canto estranho e rouco, em desconhecido idioma sai-lhe dos lábios. O corpo do
pardal começa a estremecer espasmodicamente, da mesma maneira como já
observei na agonia de um cão. Um momento depois as asas começam a bater
e o passarinho se põe em pé, saltitando nos ladrilhos. Ele está vivo, não se tem
a menor dúvida!

Na fase seguinte, o pardal retoma bastante força para voar, procurando pousar
no poleiro. Isso é de tal forma inacreditável e estupendo, que preciso concentrar
minhas idéias para convencer-me de que o que vejo é bem real e não sou vítima
de uma alucinação!

Meia hora se passa. De repente, para minha grande surpresa, o pardal recai
inanimado aos nossos pés. Abaixo-me para examiná-lo: ele não respira mais,
está morto.

— Mestre, o senhor não pode prolongar a vida por mais tempo? pergunto ao
sábio.

É tudo que lhe posso mostrar no momento — responde com ligeiro movimento
de ombros.

O pandit sussurra-me ao ouvido que se esperam resultados bem maiores de


futuras experiências. O mestre é capaz de fazer muitas outras coisas, porém, é
preferível não abusar da sua benevolência, pois ele não é um prestidigitador, e
por tudo que eu já vi devo considerar-me satisfeito.

Outra vez sinto no ar o mistério que vibra em volta do mestre; os milagres que
presenciei e os esclarecimentos do pandit tornam o mistério inexplicável, e mais
ainda, quando o pandit acrescenta que o mestre pode fazer aparecer uvas
maduras com a maior naturalidade e confeccionar bolos à vista de todos, sem
ter o menor ingrediente para isso. É suficiente para ele segurar uma flor murcha
para que ela retome logo toda a sua frescura.

* * *

Qual pode ser seu segredo? Esforço-me para desvendar o enigma, mas a
explicação que encontro é sempre aquela que não esclarece nada; o mistério
perdura oculto na fronte teimosa do taumaturgo de Benares, que jamais o teria
revelado, mesmo aos mais íntimos dos seus discípulos.

Tudo que ele consentiu em dizer-me, resume-se no seguinte:


“Nasceu em Bengala. Aos treze anos de idade foi mordido por uma cobra
venenosa; sua mãe, aflita, queria que ao menos ele morresse na orla do Ganges,
pois pata os hindus não há morte mais bela e mais santa do que perecer nas
suas ondas sagradas. Levaram então o menino e o mergulharam no rio; a família
reunida na margem aguardava a cerimônia fúnebre. E então se deu o milagre:
cada vez que mergulhavam o garoto, a água recuava como se o Ganges
recusasse aceitar o menino no seu seio sagrado.

Um Yogue, que estava sentado à beira, percebendo o que se passava, levantou-


se e disse que a morte ainda não estava destinada ao menino, pois a grande
ventura de tornar-se um famoso Yogue o esperava. O asceta esfregou-lhe a
ferida com certas plantas e sumiu, para aparecer uma semana depois e dizer
aos pais que o garoto estava curado; porém durante essa semana uma coisa
estranha aconteceu: o caráter do menino modificou-se tanto que parecia não
mais gostar da casa paterna e não pensar em outra coisa senão em tornar-se
um Yogue.

Alguns anos se passaram e ele, sempre insistindo, até que pela força de
atormentar sua mãe acabou por obter seu consentimento. Na mesma hora
deixou a casa e pôs-se em busca dos adeptos da Yoga. Viajou para o Tibete na
esperança de encontrar entre os eremitas e taumaturgos o mestre que lhe fora
marcado pelo destino.

Há na mente indiana uma idéia bem enraizada de que o aspirante nunca poderá
alcançar os mistérios da Yoga se não se tornar discípulo de um mestre que já os
alcançou. O jovem bengalês andava à procura desses solitários que vivem nas
ermidas isoladas ou nas cavernas inacessíveis; afrontou ventos, desafiou
tempestades nas planícies geladas e... voltou desapontado.

Dez anos se passaram sem se lhe apagar esse desejo ardente. Tornou a partir,
mas dessa vez percorrendo o deserto do Sul do Tibete. E lá, numa humilde
cabana, perdida entre os gigantescos rochedos, praticamente invioláveis,
acabou por encontrar o mestre tão obstinadamente procurado.”

Chegando a essa altura da história narrada, ouço uma dessas afirmações que
dantes me teriam provocado um riso irônico, e hoje a aceito, embora sem
compreender, mas também sem protestar.

Foi-me informado, imperturbavelmente, que esse tibetano atingiu mais de mil e


duzentos anos de idade! E isso me foi dito com uma voz calma e indiferente,
como quem diz no Ocidente que o fulano tem quarenta anos! Já pela terceira
vez ouço um exemplo de longevidade; Brama me afirmara que seu mestre no
Nepal tem mais de quatrocentos anos; um outro santo homem que encontrei no
oeste do país, assegurou-me que há um Yogue vivendo no isolamento quase
inacessível do Himalaia, que tem mais de mil anos; é tão velho que suas
pálpebras flácidas pela idade caem-lhe nos olhos.
Rejeitei esses absurdos como a mais pura fantasia e eis aí, novamente diante
de mim, um homem que busca o elixir da longa vida a caminho de achá-lo!

O mestre tibetano iniciou o jovem Vishudhananda na doutrina e na prática do


Controle do Corpo e sob sua vigilância o neófito desenvolvia faculdades
corporais e mentais.

Deixava perceber dons excepcionais, muito acima do comum, que lhe permitiam
assimilar simultâneamente os arcanos da ciência chamada Ciência Solar.
Durante doze anos, apesar do rigoroso inverno, ele perseverou nessa espécie
de noviciado aos pés do tibetano que era detentor do segredo da imortalidade.
Ao terminar sua instrução, o mestre mandou-o de volta para a Índia; por sua vez,
Vishudhananda tornou-se mestre em Yoga. Algum tempo viveu em Puri, onde
ainda possui uma casa. O grupo de seus discípulos pertence exclusivamente à
classe rica, comerciários, fazendeiros, funcionários e mesmo um Marajá. Talvez
me engane, mas tenho a impressão de que as pessoas humildes não são muito
favorecidas.

Faço-lhe uma pergunta à queima-roupa:

— Como consegue o senhor fazer milagres?

Vishudhananda, calmamente, cruza as mãos e diz:

— O que o senhor acabou de testemunhar não tem nada a ver com a prática da
Yoga, e sim com a Ciência Solar. O objetivo essencial da Yoga está no
desenvolvimento da vontade e concentração da mente, enquanto que a Ciência
Solar, composição de fórmulas secretas, uma vez conhecida, não necessita
treino especial e pode ser estudada como qualquer filosofia ocidental.

O pandit completa essa informação dizendo que essa ciência é a parenta mais
próxima da eletricidade e do magnetismo. Contudo, não estou ainda muito
esclarecido mas, o mestre adianta:

— Essa ciência Solar nos vem atualmente do Tibete, mas na realidade não
representa nada de novo. Já era conhecida dos Grandes Yogues da Índia desde
os tempos mais remotos; com o correr dos anos, acabou ficando quase
totalmente perdida. Os raios do sol contêm os elementos vitais, e se o senhor
possuísse o poder de selecioná-los e isolá-los, fique certo que conseguiria os
mesmos milagres que eu. Há também na luz solar forças etéricas que contêm,
para aquele que possui seu controle, um poder surpreendente.

— Ensina o senhor essa ciência aos seus discípulos?

— Ainda não, mas estou me preparando para isso; farei uma escolha de alguns
deles para transmitir-lhes meus segredos. Neste momento estamos atarefados
na construção de um grande laboratório, onde serão dadas aulas, feitas
experiências e demonstrações.

— Mas então o que lhes está ensinando agora?

— A Yoga.

O pandit leva-me a visitar o laboratório. É um edifício de vários andares, de


concepção européia, de tijolos vermelhos, com largos vãos abertos à guisa de
janela. Esses vãos devem ser guarnecidos de imensas vidraças, pois as
experiências que aí serão feitas exigem os raios solares refletidos através de
vidro branco e de vidro colorido. O pandit me diz que nenhuma vidraçaria indiana
pode fornecer vidraças de tamanha dimensão. E essa foi a dificuldade que lhes
impediu a conclusão do edifício. Ele indaga se eu não posso me informar na
Inglaterra a respeito, avisando-me, no entanto, que Vishudhananda faz questão
de que suas especificações sejam rigorosamente respeitadas; o fabricante deve
garantir que as vidraças sejam completamente isentas de bolhas de ar e a
transparência dos vidros coloridos seja perfeita. Cada chapa deve medir doze
pés de comprimento e oito de largura, com uma polegada de espessura. 2

2. Escrevi aos maiores fabricantes de vidraças na Inglaterra. Eles recusaram aceitar a


encomenda. As condições impostas eram tecnicamente irrealizáveis. Declararam-me, além
disso, que nenhum dos fabricantes está apto a colorir vidraças sem prejuízo da transparência;
para obter bons resultados, os vidros deveriam ser fabricados na grossura pouco maior de um
quarto de polegada. Enfim, as chapas, para evitar a quebra no transporte, deveriam ser
despachadas, cortadas em duas.

O edifício está cercado de espaçoso parque, onde uma fileira de palmeiras o


protege de olhares indiscretos. Voltamos à casa do taumaturgo.

Os discípulos já se foram; ficaram apenas dois ou três. Acocoro-me no chão e o


pandit toma lugar ao meu lado; seu rosto, com visível ar de cansaço, se fixa no
mestre com devoção beata. Vishudhananda honra-me com o olhar, para, em
seguida, desviá-lo; sua face exprime reserva, seu ar de dignidade majestosa é
quase sobrenatural. Tento em vão penetrar, através dessa máscara circunspecta
e grave, a alma desse homem — tão fechada para o ocidental que sou, e tão
misteriosa como o santuário do Templo de Ouro de Benares, envolta no nimbo
da magia do Oriente. Sinto que, desde minhas primeiras palavras, levantou-se
como que uma muralha invisível entre nós, e que nunca conseguirei transpô-la;
os poderes milagrosos que ele se dignou demonstrar-me, foi pura cortesia; sua
acolhida era toda superficial; parecia dizer-me: “Aqui não é lugar para os
investigadores curiosos, nem discípulos ocidentais.”

Subitamente, saem de sua boca estas palavras, que eu jamais poderia imaginar:

— Eu não posso iniciá-lo sem a autorização do meu mestre, e só nessa condição


poderei agir.
Será que ele leu meus pensamentos? Sua testa se enruga ligeiramente. O que
ele quer insinuar com isso? — pondero — não lhe pedi para ser seu discípulo!
Não tenho o menor desejo de tornar-me discípulo de quem quer que seja. Mas
há uma coisa da qual estou absolutamente certo: um pedido dessa natureza
chocar-se-ia com um não bem decidido.

— Mas como pode o senhor comunicar-se com seu mestre, que mora tão longe
daqui? indago.

— Nós estamos em contacto permanente no plano espiritual — sussurra-me.

Eu o ouvi bem, mas não posso compreender. Pouco importa. Sua resposta
afasta-me para longe dos milagres. Fico pensativo... meditando.
Espontaneamente, uma pergunta me vem aos lábios:

— Mestre, como conseguir a Iluminação?

— Fora da prática da Yoga, como esperar atingi-la?

— Compreendo, mas sempre ouvi dizer que sem um mestre é extremamente


difícil iniciar-se na Yoga, e mais ainda praticá-la. Encontrar um autêntico mestre,
também não é coisa fácil.

Seu semblante continua impassível e indiferente:

— Quando aquele que busca está espiritualmente amadurecido, o mestre


sempre aparece.

Acometido de dúvidas, atrevo-me a objetar.

Ele continua impassível, depois retorna:

— Ouça, e saiba uma coisa: o homem deve estar em condições de receber a


Luz para suportá-la. Então, onde ele estiver, o mestre esperado aparece por si
mesmo, se não em carne e osso, ao menos, diante dos olhos do espírito.

— Mas como se deve principiar para chegar a ficar preparado?

— Reserve cada dia uma parte do seu tempo e empregue-o ficando quieto, em
posição muito simples, como vou lhe mostrar. Tome cuidado com suas paixões,
refreando-as, e domine a ira.

Ao dizer isso, Vishudhananda toma a postura do Lótus que já me é familiar; não


compreendo, porém, como ele a julga tão simples!

— Para um adulto ocidental, esta posição representa uma verdadeira acrobacia


e é dificílima de ser feita com êxito — comento.

— O mais difícil é o começo; faça regularmente, todas as manhãs e à noite, e o


senhor verá como se tornará fácil a prática. E o importante, contudo, é a escolha
do tempo, pois o exercício deve sempre ser iniciado à mesma hora. Cinco
minutos serão suficientes no começo. No fim de um mês, dez minutos; no fim de
três meses, vinte minutos, e assim por diante. A coluna vertebral tem que ser
absolutamente ereta; esse exercício proporcionar-lhe-á equilíbrio físico, em
seguida levá-lo-á à quietude mental, indispensável ao progresso.

— Então é a Yoga do Controle do Corpo que o senhor está ensinando?

— Sim; e não imagine que a Yoga do Controle da Mente seja superior a ela. Da
mesma forma que todo ser humano se compõe, em parte de pensamento e em
parte de ação, assim não devemos olvidar nenhum dos dois lados da nossa
natureza. O corpo age sobre a mente como a mente sobre o corpo; na prática, o
desenvolvimento de ambos deve ser paralelo.

Sinto que além disso não vou conseguir mais nada; confirma-me o ar de frieza e
falta de entusiasmo da entrevista. Penso em retirar-me, mas vou tentar mais uma
pergunta:

— O senhor já descobriu alguma finalidade na vida?

Os discípulos esquecem toda a seriedade e desatam a rir às gargalhadas de


tanta candura. É mesmo; precisa ser um ocidental para não crer em nada, e nada
saber, para formular semelhante pergunta! Todos os livros sagrados hindus
estão cheios de referências e não há um que não diga que Deus segura o mundo
nas mãos para atender a Seus propósitos.

O mestre não me responde, mas lança um olhar furtivo a Kaviry, que se


encarrega da resposta:

— Evidentemente, a vida tem um propósito: atingir a perfeição e a união com


Deus.

Uma hora se passa em silêncio. Vishudhananda está folheando um grosso


volume, e a julgar pelo título, deve ser escrito em bengali. Os discípulos parecem
dormir ou meditar; uma atmosfera magnética, estranha e insinuante, me penetra;
sinto que se ficar mais algum tempo, vou adormecer ou cair numa espécie de
transe. Prefiro então reagir, agradecer ao mestre e retirar-me.

* * *

Eis-me novamente perambulando pelas ruas tortuosas da cidade colorida, centro


de atração dos santos como dos pecadores; ainda que suas moradas estejam
repletas de peregrinos, nela também ferve uma multidão de vagabundos,
malfeitores e ateus, sem falar dos santos parasitas que se alimentam das
migalhas dos templos. O badalar monótono dos sinos anuncia o ofício da noite;
a escuridão cai rapidamente do céu cor de chumbo; o pôr-de-sol vem levantar
uma nota diferente nessa sinfonia noturna: os muezins chamam para a oração
os sequazes do Profeta. Sento-me à margem do rio e escuto o marulho suave
das ondas sagradas e o murmúrio das folhas das palmeiras acariciadas pela
brisa.

Um mendigo lambuzado de cinzas aproxima-se de mim; este deve ser um


peregrino de nova espécie: nos seus olhos ardentes vejo brilhar uma chama que
não parece ser deste mundo. Oh! como estou longe de compreender tudo que
este país secular encobre de mistérios! Apalpo os bolsos, pensando se o abismo
que me separa desse povo poderá ser um dia preenchido? Ele aceita minha
esmola com uma calma dignidade; levanta as mãos até as sobrancelhas,
também salpicadas de cinzas, e desaparece.

Volto a pensar no meu taumaturgo que brinca com éter e ressuscita pássaros
mortos. Sua história da Ciência dos Raios Solares não me convence;
evidentemente seria estúpido demais pretender que nossa ciência moderna
tivesse dito a última palavra em análise dos raios solares e suas possibilidades
latentes, e isso torna a explicação mais difícil ainda. Já me falaram de dois
Yogues que extraíam, como Vishudhananda, perfume do ar, infelizmente ambos
já morreram no século passado; todavia, posso me fiar nos meus informantes.
Nos dois casos, um extrato de óleo aparecia na palma da mão em forma de
sudação e, frequentemente, era tão concentrado que perfumava todo o
ambiente. Se o poder de que se serve Vishudhananda fosse o mesmo, ele então
poderia muito bem transportar o perfume de sua mão para o lenço e a lente lhe
serviria apenas de pretexto. Nesse caso, a concentração dos raios solares seria
um subterfúgio. Essa suposição me faz crer que o Yogue ainda não transmitiu a
ninguém o seu segredo e, ludibriando a confiança dos seus discípulos, finge
construir esse laboratório de preço exorbitante, interrompido pela
impossibilidade de conseguir as vidraças que ele acha indispensável e assim os
discípulos, aguardando, esperam sempre. Se a concentração dos raios do sol é
um blefe, a que processo, então, ele recorre para conseguir esses prodígios?
Quiçá, isso não faz parte dos mistérios da Yoga? Mas, afinal, por que estou
quebrando a cabeça? Minha tarefa consiste em expor os fatos que tenho visto,
e não em explicá-los.

Há um lado da vida indiana que para nós ocidentais está sempre fechado, porque
mesmo que esse homenzinho gorducho ou um dos seus discípulos se tivesse
arriscado a fazer uma demonstração pública que atraísse a atenção dos
cientistas, o mistério permaneceria inexplicado. Isso é tudo o que posso dizer,
mas ainda me obstino em perguntar: como pôde ele ressuscitar o passarinho
morto? O que há de verdadeiro nessa história de Yogue perfeito, capaz de
prolongar a vida indefinidamente? Existem, de fato, ho mens da Índia que
descobriram o segredo da imortalidade?

Poderia eu calar essas perguntas insidiosas, mas esta noite a imensidão vazia
do infinito me espanta e amesquinha; sob a abóbada celeste, cujo brilho
intensifica a cálida noite tropical, que papel fazem exatamente essas massas
amorfas de palácios e templos e a multidão anônima dos meus companheiros
de existência? Que poder misterioso os rege e move?

Sentado às margens do rio sagrado, vejo na escuridão da noite os objetos mais


banais tomarem aparência irreal; os transeuntes passam como fantasmas, e as
barcas, como sombras, deslizam na água tenebrosa, essa noite... enfim, tudo
começa por nublar-se e sinto-me transportado para longe de toda a realidade,
no país do encanto de algum continente de sonho.

A antiga doutrina filosófica hindu, de que o universo é, na essência, apenas uma


fantasia, invade-me a mente e começa a insinuar a destruição deste meu senso
da realidade. Começo a perceber mais profundamente o mistério recôndito do
universo; sinto que estou amadurecido para viver as mais estranhas
experiências que me possa trazer esse planeta, que se move tão rapidamente
pelos abismos do espaço.

Mas o ritmo nostálgico de um canto indiano, bruscamente acorda-me do sonho


e torno a mergulhar nessa singular mistura de prazer e de dor que os homens
chamam — vida.
12
Escrito nas Estrelas!

As cúpulas dos palácios e templos brilham sob o sol resplendente e o ar ressoa


de gritos alegres de banhistas atarefados com suas abluções matinais. Mais uma
vez o feitiço do colorido oriental desenrola-se diante dos meus olhos
deslumbrados. Descendo o Ganges num junco em cuja proa se ergue esculpida
uma cabeça de cobra, estou sentado no telhado da cabine e espio embaixo três
remadores movimentando-se em cadência. Tenho por companheiro de jornada
um rico comerciante de Bombaim que acaba de me contar sua história, dizendo
que pretende, ao regressar da viagem, retirar-se dos negócios.

Associando uma extrema religiosidade ao espírito prático de comerciante,


enquanto assegura um tesouro eterno no céu, possui também um outro, embora
provisório, depositado em casa bancária! Há uma semana que o conheço; acho-
o muito simpático, cordial e prestativo.

— Vou me retirar dos negócios exatamente na idade que me havia predito Sudei
Babu — vira-se para mim o comerciante, sorrindo.

— Quem é Sudei Babu? pergunto.

— Como, o senhor não o conhece? É o maior astrólogo de Benares!

— Apenas um astrólogo... retruco com desdém mal dissimulado. Já conheço


essa raça de homens, que fica acocorada na poeira da estrada pelo caminho de
Maidan a Bombaim, nos bazares de Calcutá; por menor que seja o lugarejo, eles
estão ali para assediar os viajantes. Imundos, maltrapilhos, de cabelos hirsutos,
suas faces porejam estupidez e superstição. Toda a sapiência deles se resume
a um ou dois almanaques repugnantes de páginas cobertas de sinais
cabalísticos, tão misteriosos quanto eles. Têm a imensa pretensão de
administrar os bens alheios, sem, ao que parece, perceberem seu próprio
fracasso, nem assegurarem os favores da fortuna para lhes amenizar a miséria.

— O senhor me surpreende. Seria prudente para um comerciante como o


senhor, submeter aos astros a direção dos seus negócios? Um pouco de bom
senso comum não faria melhor?
Meu interlocutor, com um sorriso de indulgência, volta-se para o pobre ignorante
que sou.

— Mas então, como explicaria o senhor o que ele me predisse? Como podia ele
adivinhar que vou me retirar dos negócios apenas com quarenta e um anos?

— Não seria uma mera coincidência?

— Pode ser, como queira, mas deixe-me contar-lhe uma outra história:

Há alguns anos atrás, conheci um astrólogo célebre em Laore. Guiado pelos


seus conselhos, lancei-me num grande negócio. Era, então, associado a um
homem mais velho do que eu, que achou o negócio por demais arriscado e
recusou-se a tomar parte comigo nas transações; assim nossa associação se
desfez. Prossegui o negócio por minha conta própria e obtive êxito, ficando com
uma pequena fortuna. Sem o conselho desse astrólogo, jamais teria coragem de
arriscar-me.

— Então o senhor acredita que...

— Perfeitamente, acredito que a nossa vida é determinada pelo destino e este


está escrito nas estrelas!

Ao meu gesto de surpresa, que deve dizer bastante para exprimir o tamanho da
minha incredulidade, acrescento:

— Infelizmente, os astrólogos que encontrei eram todos ignorantes e tão


estúpidos, que não posso dar crédito ao valor dos seus conselhos.

— Pode ser, mas não se deve confundir um sábio como Sudei Babu, com esses
pobres coitados que o senhor encontrou. O senhor teve o azar de cair nas mãos
de charlatães, eis tudo. Sudei Babu é um Brâmane culto, mora numa casa
própria, possui uma biblioteca riquíssima, composta de volumes raros de grande
valor, e dedicou sua vida aos estudos da astrologia.

Evidentemente, meu companheiro não é um bobalhão; pertence a essa classe


de hindus que possuem espírito prático e não desprezam o gozo das nossas
mais modernas invenções técnicas. Nesse ponto ele é mais forte do que eu; no
seu ombro carrega um magnifico aparelho de filmagem, ao lado do qual minha
simples Kodak faz bem triste figura; seu criado nos serve uma bebida refrigerante
de uma garrafa térmica — sinto-me um pouco envergonhado, mas esqueci por
completo essa comodidade indispensável nas viagens. No decorrer da conversa,
soube que ele usa seu telefone em Bombaim, mais do que eu em todas as partes
do mundo. E ele acredita em astrologia! Não consigo conciliar os traços tão
contraditórios de seu caráter.
— Vamos nos entender melhor, sim? Pelo que o senhor acaba de dizer, a vida
do homem, bem como todos os acontecimentos do mundo, estão sob o controle
dos astros, cuja distância, todavia, é tal que confunde a imaginação, não é?

— Exatamente, é isso o que estou pensando.

Encolho os ombros; não sei o que responder, mas ele continua falando, tomando
o tom de apologista.

— Meu caro senhor, por que não vai fazer uma experiência? Não dizem em seu
país que é preciso primeiro provar pudim antes de apreciá-lo? Vá consultar Sudei
Babu e o senhor verá o que ele vai lhe dizer. Eu também não dou confiança aos
charlatães, mas acredito nesse homem.

— Bem, sou cético quanto aos que fazem a adivinhação, comércio de feirantes.
Contudo, aceito sua sugestão e, se quiser, pode me levar a esse astrólogo.

— Como, se eu quiser? Venha amanhã tomar chá comigo e nós iremos visitá-lo.

Ao longe, vejo os palácios, templos antigos, pequenos santuários


sobrecarregados de flores amarelas, passarem lentamente diante de nós. Fito
com indiferença os pisos das escadarias de pedra repletas de banhistas e de
peregrinos; fico pensando e raciocino que embora nossa ciência se lisonjeie em
derrotar a superstição, eu nunca ouvi falar que uma atitude científica tivesse
derrotado investigações. Se meu companheiro me coloca diante de fatos que
corroboram o fatalismo dos seus patrícios, então terei, pelo menos, o espírito
livre para estudar o assunto com toda a imparcialidade.

* * *

No dia seguinte, meu amável companheiro e eu percorremos as ruas estreitas e


antiquíssimas, marginadas de casas de telhados achatados. Paramos diante de
um casarão antigo de pedra, seguimos pela entrada baixa e escura, subimos
escadas tão estreitas que não permitem a passagem de duas pessoas,
atravessamos ainda um corredor, entrando finalmente na galeria de um grande
pátio interno, que forma o centro da casa.

À nossa aproximação, um cão Iate furioso. Os vasos com plantas tropicais de


viçosa folhagem estão postos em ordem ao longo da parede. Sigo meu
companheiro e entramos numa peça tão escura que escorrego nos ladrilhos
descolados; abaixo-me e vejo terra espalhada pelo chão da sala e também pela
varanda. Será que o astrólogo planta flores descansando dos seus rigorosos
estudos?

Meu companheiro o chama, mas só o eco das velhas paredes lhe responde. O
cão Iate desesperadamente. O silêncio é tal que parece que todos os moradores
desertaram da casa. Já começo a pensar se nós não perdemos nosso tempo,
quando ouço alguém descer a escada. Os passos se aproximam e aparece um
rosto emaciado, uma forma esguia segurando, numa mão, um castiçal e na
outra, uma penca de chaves. Depois de algumas palavras trocadas na
penumbra, o astrólogo abre a outra porta e convida-nos a entrar. Afastando
cortinas, abre as persianas de duas das aberturas acima do balcão. A luz forte
que irrompe na sala ilumina violentamente o rosto do astrólogo. É uma face
descorada de fantasma, cujo sangue e vida parecem ter-se retirado! Só os olhos
brilham, ardentes, consumidos pela chama devoradora do pensamento. Essa
aparência cadavérica, a incrível esqualidez, os movimentos de lentidão quase
irreal, todo seu aspecto pode impressionar o visitante desprevenido. O branco
dos seus olhos reforça ainda mais essa aparência assustadora, pelo contraste
que apresenta com as pupilas, de um negro de carvão. O astrólogo toma lugar
na cadeira, que aproxima da grande mesa coberta de papéis, e oferece-me a
outra. Ele fala bastante bem o inglês, embora um pouco lento, para manter uma
palestra sem ajuda de intérprete.

— O senhor tem que compreender — digo logo ao sentar-me — eu vim como


investigador, e não como crente.

— Pois não, à vontade. Vou estabelecer seu horóscopo e o senhor julgará por si
mesmo da sua exatidão.

— Qual é a quantia que o senhor pede?

— Não tenho tarifa. Há pessoas que me pagam até sessenta rupias, outras vinte.
Eu confio no senhor.

Exponho-lhe então que gostaria de, antes de saber do futuro, pôr sua ciência à
prova e ouvir meu passado.

Concorda. Durante uns dez minutos se põe a fazer cálculos complicados,


baseando-se na minha data de nascimento, abaixa-se atrás da cadeira para
examinar montes de papéis amarelados e alfarrábios, apanha uma folha especial
gasta pelo tempo, desenha um diagrama, inteirando seu trabalho. Assim que
termina, diz:

— Aqui está a carta do céu da época em que o senhor nasceu. Os textos


sânscritos dão o significado de diversos sinais da carta; agora lhe direi o que
declaram as estrelas.

Examinando ainda o diagrama, consulta os papéis e começa a falar com a voz


baixa e desprovida de emoção.

— O senhor é um escritor europeu. É exato?

Faço sinal que sim.


Ele continua a falar da minha juventude, descrevendo alguns fatos marcantes da
minha vida e, entre sete pontos importantes do meu passado, cinco são certos,
dois errados. Tenho então uma escala suficiente de apreciação; sua probidade
é evidente. É um homem incapaz de ludibriar conscientemente, seja quem for.
Os 75% de êxito, do início, permitem concluir que a astrologia hindu, embora não
seja das ciências mais positivas, merece atenção.

Mas uma vez, Sudei Babu torna a folhear sua papelada, para em seguida falar
sobre meu caráter, com uma exatidão relativa, e de minhas faculdades
intelectuais em relação à escolha da ninha profissão; neste ponto não há uma
objeção de minha parte. Deixando seus papéis, torna a estudar a carta do céu e
começa a vaticinar o futuro:

— O mundo inteiro vai ser o seu lar; fará o senhor longas viagens, e viajando
sempre, escrevendo, nunca deixará sua profissão de escritor. Continua falando,
mas como não tenho aqui nenhum critério de julgamento de suas profecias,
contento-me em deixá-las onde as encontrei — escritas nas estrelas. 1

1. Uma dessas predições, que afastei logo como impossível e ridícula, veio a se realizar
ultimamente. Num outro caso, houve um equívoco de data. Quanto às outras, não sei dizer, pois
o tempo as confirmou ainda.

Ao terminar, vira-se para mim e pergunta se estou satisfeito. O que responder?

Sua descrição dos meus primeiros quarenta anos, mais ou menos correta, e sua
análise referente ao meu caráter, relativamente certa, reduzem meu ceticismo e
minha crítica ao silêncio. Mas, quanto ao futuro, sou obrigado a confessar, sem
a menor vergonha, que fiquei impressionado. Como consegue ele saber? Tira
as revelações do vácuo, por acaso? Limita-se a adivinhar? Só o tempo provará
a veracidade das suas profecias. E o que vai acontecer com meu ceticismo?
Cairá ao chão como um castelo de cartas? Não sei o que posso responder... e
sinto-me fortemente confuso; levanto-me, vou à janela, espio a rua, faço soar
maquinalmente as moedas de prata no bolso. Penso que espécie de pergunta
poderia formular ainda, quando o astrólogo vem romper o silêncio, com sua voz
macia:

— É por causa da distância que essa influência das estrelas lhe parece
impossível?

Mas então o que podemos dizer da influência da lua sobre as marés, do ciclo
lunar sobre o organismo feminino ou da ausência do sol, que provoca
melancolia?

— Sem dúvida, porém daí a sustentar as pretensões da astrologia, vai grande


distância, — objeto — pois se eu conseguir chegar a salvo a um ponto
determinado ou, ao contrário, naufragar, que relação pode ter com isto Júpiter
ou Marte?
As meigas feições do astrólogo permanecem impassíveis. Olhando-me
calmamente responde:

— Considere as estrelas simplesmente como sinais no céu; aliás, não são elas
que nos influenciam, e sim o nosso próprio passado. O senhor jamais
compreenderá a astrologia, enquanto não acreditar na doutrina, cujos
ensinamentos revelam que o homem nasce e renasce e seu destino o segue de
um nascimento a outro. Se escapar das consequências de uma má ação,
durante uma das vidas, tem que a pagar na próxima encarnação e, se não
receber a recompensa de boas ações nesta vida, recebê-la-á indubitavelmente
na outra. Sem essa doutrina de contínuo retorno da alma humana à terra até
atingir a perfeição, a sorte dos homens, que muda constantemente, parecer-lhe-
á, sempre, como o efeito de um capricho ou de um azar cego. Como, então,
Deus, que é todo Justiça, permitiria que isso acontecesse? Impossível! Assim,
nós acreditamos que depois da morte a alma continua a existir, com toda
personalidade, até o momento da entrada no seu novo invólucro carnal. Boas ou
más ações na sua existência anterior, acharão seu equivalente durante essa vida
ou vidas vindouras. É isso exatamente que nós entendemos como destino.
Quando lhe disse que o senhor sofrerá um naufrágio e ficará em perigo de vida,
queria dizer que Deus, na sua justiça e misericórdia, lhe reservou esse destino
em consequência de alguma falta cometida na sua existência anterior. Não são
os planetas, mas suas próprias ações, que apresentarão as condições propícias
para levá-lo ao naufrágio. Os astros apenas registram esse destino. Por quê?
Não sei. Jamais um cérebro humano poderia ter inventado a astrologia; é uma
ciência que vem de muito longe e foi revelada, para nossa felicidade, por sábios
de outrora.

Ouço em silêncio. Que comentário acrescentar? Que ocidental, dotado de mente


sadia, se deixaria despojar com entusiasmo do seu livre arbítrio em proveito do
destino? Com que surpresa fito esse sonhador exangue, passeando pelos
signos do Zodíaco como em sua própria casa.

— Como o senhor deve saber — digo-lhe — em certas regiões do Sul da Índia


os astrólogos são tão considerados que tomam lugar imediato após sacerdotes,
e nada de importante se faz sem seus conselhos. — Nós, ocidentais, rimo-nos
simplesmente de tais costumes, porque não podemos acreditar em predições.
Nosso sentido de liberdade individual é forte demais para nos julgarmos vítimas
indefesas de um destino implacável.

O astrólogo encolhe os ombros:

— Lê-se num dos nossos livros antigos, o Hitopadesa que nosso destino está
escrito em nossa fronte, e lutar seria inútil. Que posso fazer? Carregamos em
nós o fruto das nossas próprias ações...
Não escondo minhas dúvidas. O profeta se levanta; compreendo que já é o sinal
de despedida. Ouço-o então sussurrar baixinho:

— Tudo está nas mãos de Deus e nada Lhe escapa. Quem de nós poderia julgar-
se livre?

— Como poderíamos viver sem Deus?

Voltando-se para mim, acrescenta:

— Venha amanhã, se quiser poderemos continuar nossa conversa.

Agradeço e aceito com prazer.

— Bem, então esperá-lo-ei depois do pôr do sol, cerca das 18 horas.

* * *

Não faltei à hora marcada. Embora não pretendendo aderir cegamente a tudo
que ele me expuser, não tenho nenhuma razão para rejeitar tudo a priori. Vim
para ouvir, para aprender talvez, ponderando que só pela própria existência se
pode adquirir conhecimentos; nunca recuso submeter-me a experiências, desde
que haja motivos assaz convincentes. Ora! o horóscopo de Sudei Babu
convenceu-me bastante de que a astrologia hindu não é uma superstição e
justifica uma investigação minuciosa.

Eis-nos de novo frente a frente, separados pela grande mesa, iluminada por um
candieiro a óleo de parafina, semelhante aos candieiros que iluminam, neste
momento, todos os lares indianos.

Nesta casa tenho catorze quartos — diz-me o astrólogo — todos eles estão
repletos de antigos manuscritos, na maioria em sânscrito; isso talvez lhe explique
porque necessito uma casa tão grande, embora morando só. Venha ver minha
biblioteca.

Segurando o candeeiro, leva-me ao quarto vizinho cujas paredes estão todas


tomadas por prateleiras entulhadas de classificadores sem tampas. Examino o
conteúdo de um deles, cheio de livros e de papéis; o chão está juncado de
montes de folhas, rolos, manuscritos e livros de capas roídas pelo tempo. De um
monte, tomo um folheto de páginas amareladas e cobertas de caracteres que de
tão velhos, se tornaram ilegíveis. Os outros quartos se assemelham; parece que
toda a sabedoria antiga e todos os conhecimentos indianos estão reunidos nesta
casa.

Terminada a inspeção retomamos nosso lugar à mesa.

— Gastei na compra desses volumes e manuscritos quase tudo que possuía —


adianta o astrólogo — alguns deles custaram-me uma fortuna; é a razão pela
qual o senhor me vê hoje tão pobre.
— De que tratam esses livros? pergunto.

— Uns tratam de astrologia, outros de mistérios da vida humana e divina.

— Então, o senhor também é um filósofo?

Seus lábios finos esboçam um leve sorriso:

— Um mau filósofo fará um medíocre astrólogo.

— Não me queira mal e perdoe minha liberdade, mas o senhor tem um ar de


esgotamento tão profundo, causado sem dúvida por todas essas leituras, que
desde minha primeira visita fiquei impressionado, vendo sua palidez.

— Isso não é nada surpreendente; há seis dias que não me alimento.

Apanho minha carteira.

— Oh! não, não é questão de dinheiro; minha cozinheira está doente, há seis
dias que ela não aparece.

— Mas por que o senhor não providencia outra?

Ele sacode a cabeça:

— Não, é impossível. Minha alimentação não pode ser preparada por uma
mulher de baixa classe. Prefiro não comer durante um mês, esperando que
minha cozinheira se restabeleça; acho que deve voltar dentro de dois ou três
dias.

Noto no seu pescoço o cordão sagrado dos Filhos do Brama — esse tríplice
cordão de linho trançado, que é usado por todo Brâmane, do nascimento até a
morte.

— Então, por um preconceito de casta, o senhor quer ficar doente? Sua saúde
não vale mais?

— Mas isso não é um preconceito. Todos nós emitimos um fluido que é de


matéria física, embora vossa ciência ocidental não conseguisse ainda descobri-
lo. A cozinheira, preparando o alimento, transmite seu fluido, inconscientemente,
é claro, à alimentação que prepara; se ela for de caráter vil, o fluido infectará o
alimento e, por conseguinte, a pessoa que vai comê-lo.

— Eis uma teoria bastante audaciosa!

— Sim, mas é verdadeira.

Prefiro mudar de assunto.

— Há quanto tempo o senhor é astrólogo?


— Dezenove anos. Tornei-me astrólogo logo após o casamento.

—Oh! Compreendo...

— Oh! não, não sou viúvo. Não sei como explicar-lhe... enfim:

— Aos treze anos já orava a Deus para que me concedesse a sabedoria. Minha
sede de conhecimento era tal que me levou a vários instrutores, bem como aos
livros de filosofia que me abriram os horizontes. Estava tão fascinado pelos
estudos que passava os dias estudando e lendo até altas horas da noite. Meus
pais me casaram. Estávamos casados há apenas alguns dias, quando minha
esposa ficou zangada comigo e disse furiosa: “Parece que me casei com um
livro e não com um homem!” No oitavo dia de nossas núpcias, ela fugiu com o
cocheiro!...

Silêncio. Não posso deixar de sorrir a esse fim tragicômico; esse abandono da
casa conjugal devia ter provocado um grande escândalo, mormente neste país
tão ligado às tradições! O espírito da mulher, não obstante, é cheio de malícia e
vai além de nosso entender...

— Foi para mim um choque violento — prossegue Sudei Babu — mas recuperei-
me e esqueci rapidamente todas essas emoções, mergulhando mais do que
nunca nos estudos de astrologia e nos livros que tratavam dos mistérios da vida.
Foi então que descobri, por acaso, um volume de Brama Chinta que devia decidir
minha vida.

— De que tratava ele?

— O título pode ser traduzido assim: Meditação sobre a Divindade ou A Busca


de Brama ou ainda O Conhecimento de Deus. É uma obra que, quando
completa, compõe-se de vários milhares de páginas, das quais até agora só
estudei uma parte. Aliás, precisei nada menos de vinte anos para juntar estes
fragmentos esparsos, e continuamente recorria às livrarias que os procuravam,
por minha conta, em todas as províncias da Índia. O livro se compõe de doze
grandes divisões e inúmeras subdivisões; as partes principais, além da Filosofia,
tratam também da Astrologia, da Yoga, da vida futura e outros assuntos sutis.

— Existe em tradução inglesa?

— Não creio; nunca ouvi falar. Essa obra é conhecida apenas por poucos hindus,
que sempre zelosamente a mantinham em segredo. Oriunda do Tibete, onde é
considerada como sagrada, é transmitida somente a uma elite de estudantes.

— De que época ela é?

— Foi escrita há milhares de anos pelo sábio Bhrigu que viveu em tempos tão
remotos que não se conhece mais a data. É uma doutrina que ensina um método
da Yoga totalmente diverso daquele que está em uso na Índia. O senhor está
interessado em Yoga, não é?

— Sim; como o senhor sabe?

Como resposta, Sudei Babu mostra-me a carta do céu traçada conforme a data
do meu nascimento e, com a ponta do lápis, contorna as formas estranhas que
aos seus olhos representam constelações planetárias e signos do Zodíaco.

— Seu horóscopo me surpreende. Para um ocidental destaca-se do comum e


não é vulgar nem nas Índias. Ele indica, invariavelmente, que o senhor possui
predisposição para os estudos da Yoga e terá o favor dos sábios que o iniciarão
e ajudarão a adquirir o conhecimento. O senhor não se limitará à Yoga, pois
brevemente terá o conhecimento de outros arcanos da vida mística.

Aqui pára, e fixa-me bem nos olhos. Que mistérios de minha vida íntima vai ele
me revelar ainda, pondero, quando o astrólogo prossegue:

— Há duas qualidades de sábios; uns guardam egoisticamente a sabedoria


adquirida para si próprios, outros partilham-na generosamente com todos os que
têm sede de conhecimento. Seu horóscopo revela que o senhor está chegando
ao limiar da iluminação e minhas palavras não caem em ouvidos surdos. Se
quiser, estou pronto a transmitir-lhe meus conhecimentos.

Fico um pouco confuso, atônito com essa brusca reviravolta da situação. Vim
para acabar de vez com essas pretensões absurdas da astrologia indiana. Voltei
para ouvir a tese dessa chamada ciência e sua defesa e eis que agora o
astrólogo se propõe ser meu mestre de Yoga! Isso não!

— Se o senhor consentir em praticar os métodos de Brama Chinta, não será


preciso ter um mestre, pois sua própria alma vai ser seu melhor guia.

Percebo meu engano e pergunto-me se ele não leu meus pensamentos.

— O senhor me tomou de surpresa!...

É tudo que acho para lhe responder...

— Já instruí algumas pessoas e nunca me considerei mestre, e sim irmão ou


amigo delas. Não tenho pretensão de ser seu mestre, no sentido próprio da
palavra; o espírito do sábio Bhrigu utilizará, meramente, meu corpo e meu
cérebro como veículo para lhe transmitir seus ensinamentos.

— Não compreendo como pode o senhor conjugar a profissão de astrólogo com


os ensinamentos da Yoga!

— É muito simples. Estou vivendo no mundo e o sirvo com meu conhecimento,


que é a astrologia, e não admito ser tratado como mestre de Yoga, porque o
único mestre reconhecido pelo nosso Brama Chinta é Deus. Ele é a Alma do
Universo que está em nós e pode nos ensinar. Considere-me como seu próprio
irmão ou amigo, mas nunca como seu instrutor espiritual; aqueles que têm um
mestre estão sobremaneira predispostos a nele se apoiar e dele depender, ao
invés de dependerem da sua alma individual.

— Mas, o senhor toma os astros como guia e não sua alma, não é?

— Não, o senhor se engana; jamais tomei em consideração meu próprio


horóscopo e há bastante tempo o destruí, pois achei a luz e não tenho mais
necessidade da astrologia para me guiar. Só é proveitoso para aqueles que
andam na noite da ignorância. Eu entreguei minha vida nas mãos de Deus. A
consequência natural desse ato foi o sentir-me livre de toda preocupação e de
todo receio do que me possa advir no presente ou no futuro — que a vontade de
Deus seja feita! Entreguei-Lhe todo o meu ser.

— Mas, suponhamos que o senhor fosse ameaçado de morte, também diria que
isso é vontade de Deus, e não faria nada para se defender?

— Sim; certo, porque em caso do perigo basta orar para imediatamente estar
sob a proteção do Todo-Poderoso. A oração é necessária, o medo é supérfluo;
rezo frequentemente e o Senhor sempre me protege. Isso não quer dizer que eu
não tivesse tido grandes dissabores, sempre porém com plena consciência da
Sua proteção. Nele deposito toda minha confiança, aconteça o que acontecer.
Para o senhor também chegará o dia em que não se preocupará mais com seu
futuro, adquirindo uma indiferença total pelo que lhe possa advir.

— Eu não posso imaginar modificar-me a esse ponto.

— No entanto, essa mudança se efetuará, sem a menor dúvida.

— O senhor tem tanta certeza disso?

— Tenho sim, porque não se foge do seu próprio destino. Esse renascimento
espiritual é uma ocorrência que nos vem de Deus, prevista ou não.

— Tudo é muito estranho, Sudei Babu!

A idéia de Deus é uma incógnita que se introduz em tantas de minhas


conversações neste país. Os hindus são essencialmente religiosos, e eu me
sinto amiúde torturado pela sem-cerimônia com que eles mencionam Deus.
Serão eles capazes de apreciar o ponto de vista do ocidental que rejeitou a fé
cega por motivos complexos? Avalio a inutilidade de expor esse problema em tal
momento, pois o astrólogo não deixaria de me doutrinar com toda sua
argumentação teológica, pela qual não sinto a menor atração.

— Vamos falar de outra coisa, sim? Porque Deus e eu nunca andamos pelos
mesmos caminhos; assim, nunca nos podemos encontrar.
— Nem por isso seu horóscopo pode mentir. Se não fosse assim, jamais
ofereceria meus ensinamentos a uma mente mal preparada. As estrelas, porém,
seguem sua invariável trajetória e, o que o senhor não é capaz de compreender
agora, um dia ocupará todos os seus pensamentos e o impulsionará com uma
força arrebatadora. Repito-lhe mais uma vez: estou pronto a iniciá-lo nos
métodos de Brama Chinta.

— E eu estou pronto a receber seus ensinamentos.

* * *

Noite após noite volto ao velho casarão para tomar minhas aulas. A luz pálida do
candieiro desenha sombras fugitivas na face de cera do astrólogo, enquanto ele
me desvenda os- arcanos da mais antiga doutrina da Yoga tibetana. 2
2. Seria sem proveito para o leitor entrar em pormenores dessa doutrina. Em resumo, ela consiste
numa série de meditações que têm por finalidade produzir o que meu astrólogo chamou “O vácuo
da mente”. O estudo consiste em seis sistemas, sendo que o principal se compõe de dez etapas,
porém, não seria aconselhável a um ocidental comum praticá-lo, pois este método só é possível
quando levado a efeito na solidão de selva ou nos retiros das montanhas. Poderia ser perigoso
em certos casos e a loucura espera o amador inexperiente.

Em nenhum dos momentos ele faz ressaltar sua superioridade espiritual, não se
vangloriando de seu saber intelectual e nada de pedante se nota em seu ensino;
Sudei Babu é a humildade personificada, começando sempre seus
ensinamentos pela mesma frase: “Nessa doutrina de Brama Chinta está escrito
que...”. Uma noite, faço-lhe uma pergunta:

— Em suma, qual é a finalidade suprema da Yoga de Brama Chinta?

— Nós procuramos as condições favoráveis para alcançar o êxtase sagrado,


porque nele e só nele é que o homem pode perceber sua alma como um ser real;
em seguida, esforçamo-nos para chegar ao desprendimento das coisas do
mundo dos fenômenos, pois quando obtivemos um estado em que tudo parece
desvanecer-se, nesse momento a alma surge dotada de uma vida transcendente
e nos submerge numa imensidão de paz e felicidade. Uma única experiência é
suficiente para que o homem tenha plena convicção de que nele há realmente
uma vida divina e eterna, e essa noção jamais se afastará da sua consciência.

— O senhor está bem certo de que isso não seja uma forma particularmente
intensa de auto-sugestão?

Seus lábios se abrem num leve sorriso:

— Quando uma mulher dá à luz um nenê, acha o senhor que ela duvida da
realidade do fato? E, mais tarde, quando a mãe se lembra do parto, será que lhe
ocorre a idéia de que isso foi uma auto-sugestão? Quando ela se debruça no
berço, vendo-o crescer, duvidará por um instante da realidade da sua existência?
Da mesma forma é a mente. O esforço do renascimento espiritual provoca um
tão tremendo transtorno que jamais poderá ser esquecido da pessoa saindo dele
transfigurada. Quando alguém entra em transe sagrado, uma espécie de vácuo
se faz na sua mente; Deus ou — como o senhor não gosta dessa palavra —
digamos Alma ou Força Suprema entra e toma o lugar desse vácuo. A essa
mudança segue-se uma intensa felicidade, um imenso amor por todas as coisas
criadas e, nesse momento, para um observador, o corpo parece morto, porque
no auge da crise até mesmo a respiração fica suspensa.

— Isso não é perigoso?

— Não; absolutamente. O êxtase é, de modo geral, obtido quando praticado na


solidão ou na presença de um amigo que passa a assistir à pessoa. De minha
parte, entro frequentemente em transe e saio sempre quando o desejo;
abandono-me por duas ou três horas, marcando o tempo à minha vontade. É
uma maravilhosa vivência, na qual percebo meu íntimo ser, como o senhor
percebe as coisas do mundo exterior. E por isso eu lhe digo que tudo o que o
senhor aprende no mundo dos fenômenos, pode aprender de sua própria Alma!
Quando o senhor tiver adquirido o total dos ensinamentos da Yoga de Brama
Chinta, terá a certeza da inutilidade de um mestre ou de um guia, porque será
seu próprio mestre e guia!

— O senhor já teve um mestre?

— Nunca. A descoberta dos ensinamentos secretos de Brama Chinta dispensou-


me de procurá-lo. Mesmo assim, mais de uma vez, os Grandes Seres aparecem-
me durante os êxtases, os Grandes Sábios em suas formas fluídicas vêm
abençoar-me. Portanto, torno a repetir-lhe: não tenha outro guia a não ser sua
própria alma e os mestres lhe aparecerão, no plano espiritual, é claro.

O silêncio cai entre nós. Meu amigo parece absorver-se em meditação; minutos
depois, sem perder a calma habitual, a humildade costumeira, dos lábios do meu
estranho professor saem estas extraordinárias palavras:

— Um dia, quando mergulhado em êxtase, eu vi Cristo.

— Oh! Não, o senhor quer iludir-me! exclamo assombrado.

Impassível, ele nem se apressa a dar-me uma explicação sequer. Seus olhos se
voltam para dentro e, confesso, sinto um pouco de medo, sossegando depois
quando o vejo reabri-los voltar ao normal e reiniciar a conversa com seu meigo
e enigmático sorriso nos lábios:

— O êxtase é uma força tão tremenda que a morte não pode surpreender o
homem quando nele está mergulhado. Os Yogues que vivem nos vértices
tibetanos do Himalaia atingiram essa perfeição; — esses homens
voluntariamente se retiraram para as cavernas, a fim de se dedicarem a essas
práticas e levam-nas ao mais alto grau. No transe, o pulso fica parado por
completo, o coração cessa de bater e o sangue não circula — o corpo parece
estar morto, qualquer médico ter-se-ia enganado no diagnóstico. Não imagina,
todavia, tratar-se de uma forma de sono; esses sábios são tão conscientes
quanto o senhor ou eu neste momento. Somente eles entraram num plano em
que vivem uma vida mais intensa que a nossa, onde o espírito não está mais
subordinado aos limites que lhe impõe a carne. Todo o Universo está neles.
Algum dia, ao saírem do êxtase, estarão envelhecidos algumas centenas de
anos!

Eis aí! Mais uma vez ouço essa enraizada tradição! Será que ela vai me
perseguir por toda parte da Índia? Poderei eu encontrar um dia esses imortais
da lenda e contemplá-los com meus próprios olhos?

Acabará nossa orgulhosa ciência moderna por descobrir esse mistério e


classificar entre os fenômenos da vida, esses fantasmas surgidos da magia dos
picos gelados do Himalaia? Quem o sabe?

* * *

Termina minha última aula. Consegui convencer meu amigo astrólogo, que leva
uma vida sedentária, a fazer um pouco de exercício. Escolhemos as ruas de
menor movimento, evitando os barulhentos mercados e a multidão que se
empurra no caminho do Ganges.

A despeito da sua imundície ancestral e ausência total de higiene, Benares


oferece ao viajante uma variedade de panoramas e um colorido que deslumbra.

A tarde é linda. Meu amigo, carregando um imenso guarda-sol, com ar lânguido


e frágil, avança tão devagar, que tomo a liberdade de encurtar o caminho.

Passamos pela rua de Batedores de Cobre, onde o ar ressoa de golpes de


marteladas.

Os objetos confeccionados brilham ao sol abrasador. Observo, entre objetos de


toda espécie, pequenas imagens de cobre repuxado, representando os variados
e tão numerosos deuses do Panteão indiano.

Do lado da sombra, um velho mendigo anda a passos medrosos roçando as


paredes; meu aspecto deve tranquilizá-lo, pois toma coragem e vem pedir-me
uma esmola. Continuamos andando pela Rua dos Comerciantes de Cereais,
onde grãos dourados se espalham por todos os cantos. Os vendedores,
acocorados ou sentados, vigiam mercadorias e lançam um olhar furtivo à dupla
esquisita que, na certa, formamos, meu companheiro e eu, para depois voltar à
sua indiferença costumeira.
Cheiros de todas as espécies penetram em nossas narinas. Aproximando-nos
do Ganges caímos em verdadeiro Pátio dos Milagres, onde os mendigos
esquálidos, em farrapos, andam de pés descalços na poeira; um deles se
aproxima de nós e vejo suas feições refletirem uma aflição tão profunda, que me
causa dó. Um pouco adiante quase piso numa velha mulher, tão magra que não
tem senão pele e ossos; levanta os olhos para mim; no seu olhar apagado não
percebo sequer uma censura, expressando apenas uma muda resignação. Meu
porta-níqueis provoca um clarão de vida no seu olhar, estende-me seu braço
descarnado e apanha vorazmente a moeda que lhe ofereço. Sinto vergonha de
possuir tudo: um abrigo, roupas e todas essas benfeitorias que se acaba por não
apreciar mais, por hábito de gozá-las. Quando penso, obcecado pelos olhares
desses pobres desventurados, sinto-me quase culpado; com que direito tenho
eu fortuna, quando esses deserdados da sorte possuem por únicos bens, trapos
imundos? E, se por algum capricho do destino estivesse eu no lugar deles?...
Nem quero pensar! Mas, enfim, por que um azar de nascimento põe esses
infortunados arrastando-se na poeira e os outros, ricos, cobertos de jóias e
roupas de seda, morando em palácios, ao lado dessa miséria? Por quê? A vida,
decididamente, é um enigma incompreensível!

— Sentemos aqui — diz o astrólogo — aproximando-se da margem do Ganges.


Acocoramo-nos à sombra, contemplando o alinhamento interminável das
escadarias de pedra, do cais, dos terraços suspensos, onde a multidão de
peregrinos passeia em vaivém contínuo. Dois delicados minaretes se destacam
graciosamente no céu cor de pérola; eles indicam o lugar da encantadora
mesquita de Aurungzeeb, que sobreviveu como um anacronismo chocante no
coração da cidade mais ortodoxa do Indostão.

Sudei Babu, sem dúvida, percebeu a impressão penosa que me causaram os


mendigos, pois começa a falar, como querendo se desculpar por eles:

— O senhor sabe, a Índia é um país pobre e seus habitantes não têm mais força
de reagir; os ingleses não são tão maus assim, e acredito que Deus os mandou
para nossa felicidade. Antes a vida era incerta, a lei e a justiça quase não
existiam; faço votos para que eles não nos abandonem tão cedo, pois ainda
precisamos deles; a meu ver, porém, essa ajuda deve expandir-se daqui por
diante, amigavelmente, e não pela violência. Enfim, o destino é que vai decidir!

— Outra vez com seu fatalismo!

Meu amigo cala-se ou finge não me ouvir. Depois de um curto silêncio


prossegue:

— Como poderiam dois povos subtrair-se à vontade de Deus? Assim como a


noite segue o dia e o dia segue a noite, assim é a história das nações. Grandes
mudanças estão por vir no mundo inteiro. A Índia, caindo em estado de profundo
torpor e apatia, não se levantará senão no dia em que forem despertadas suas
antigas aspirações, o que constitui sempre a vanguarda de todo renascimento.
O materialismo que devora a Europa levantou uma onda de atividade febril que
acabará por diminuir naturalmente, mais cedo ou mais tarde, dando lugar a um
ideal mais nobre; a Europa tornará a procurar os valores espirituais e a América
vai acompanhá-la.

Ouço, atento, num silêncio que o estimula a continuar.

— Nossos ensinamentos e as doutrinas filosóficas penetrarão no Ocidente e a


Índia voltará a ser o guia espiritual da Humanidade. Vossos eruditos já
traduziram alguns dos nossos manuscritos e livros sagrados, porém inúmeros
textos antigos dormem ainda nas cavernas da Índia, do Nepal e do Tibete;
quando a hora chegar, eles serão também, por sua vez, revelados ao mundo.
Os tempos virão em que a mais antiga filosofia do Oriente fundir-se-á com a
ciência utilitária do Ocidente e o mistério do passado deixará então de ser um
segredo para nosso século. Sinto-me feliz porque sei que isso vai acontecer.

Escuto, contemplando as águas esverdeadas do Ganges; o rio sagrado é tão


calmo que parece apenas mover-se; sua superfície, espalhada como prata
líquida, brilha ao sol. O astrólogo, integrado nas suas idéias, prossegue:

— Cada povo, como cada homem, tem seu próprio destino e deve obedecer,
queira ou não.

Deus é onipotente, nem os homens nem as nações escapam da sorte que


merecem; entretanto, podem ser poupados em suas tribulações e salvos, na
hora em que parece não haver mais esperança e a perdição parece soar.

— Mas, essa proteção, como obtê-la? pergunto.

— Orando, entregando-nos ao Todo-Poderoso, fazendo-nos pequeninos e


dirigindo-nos a Ele, não apenas com os lábios, mas com todo coração, sobretudo
antes de agir; recebendo dias felizes como uma dádiva de Deus e aceitando as
aflições como uma prova da qual nós sairemos vencedores. Não tenha temor
nem receio, pois Ele é todo Bondade!

— O senhor não acredita então que Deus está muito longe de nós, e indiferente
ao sofrimento dos homens?

— Não, Deus é Espírito e está em todos os seres e em todas as coisas, dentro


e fora do universo. Como então pode ser indiferente? Quando o senhor
contempla uma bela paisagem no seu caminho, não pensa que essa beleza vem
Dele? Ela não seria bonita se não deixasse transparecer a divindade nela oculta.
Não se deixe seduzir pelas aparências, não pense senão no Espírito que está
presente em todas as coisas e as anima, não veja senão o divino em tudo!
— O senhor tem uma singular maneira de fazer convergir suas doutrinas com a
religião e a astrologia, Sudei Babu!

— Por que singular? Essas doutrinas não foram inventadas por mim, elas nos
vêm de tempos imemoriais. O poder invencível do destino, o culto da criatura
para com seu Criador, a ciência das influências planetárias já eram conhecidos
dos povos que não são tão selvagens como vossos cientistas se comprazem em
clamar. Mas, não esqueça, há uma coisa que vou lhe adiantar como certa: antes
do fim deste século o Ocidente tornará a reconhecer a realidade dessas forças
invisíveis que animam os seres.

— Não seria uma coisa fácil aos homens do Ocidente renunciar à noção ingênita
do livre arbítrio — garanto-lhe.

— Tudo que acontece, acontece pela vontade de Deus, e aquilo que parece livre,
é movido pela força do seu Poder. O Todo-Poderoso devolve aos homens os
frutos, bons ou maus, de pensamentos e ações das suas vidas passadas.
Submetamo-nos à Sua vontade, pois aquele que fixa seu olhar n’EIe, rogando-
Lhe força para suportar o infortúnio, não perecerá sob seu jugo.

— Oxalá fosse verdade o que o senhor vem me dizendo; pelo menos, seria um
grande consolo para aqueles pobres mendigos que acabamos de encontrar.

— A única resposta que lhe posso dar é: recolha-se em si mesmo, siga as vias
de Brama Chinta e todos os problemas se tornarão claros, à proporção que a luz
se faça na sua consciência.

Acho que ele não tem nada mais a acrescentar, e doravante hei de prosseguir
só, e encontrar meu próprio caminho. Recebi um telegrama, chamando-me para
longe de Benares.

Pergunto ao meu amigo astrólogo se consentirá em deixar-se fotografar. Ele


recusa polidamente este meu último pedido.

— Para quê? — responde — este rosto tão feio, esta roupa surrada?

— Gostarei de ter uma lembrança sua quando estiver longe.

— A melhor lembrança estará no seu pensamento puro e em sua ação


desinteressada.

Embora magoado e desapontado, obedeço, pondo minha câmara no bolso.

Meu amigo se levanta; percebo perto de nós uma figura sentada de pernas
cruzadas, protegida por grande guarda-sol de bambu. O homem parece
abismado em meditação; reconheço, pela cor da sua roupa, um santo homem
da Ordem Superior dos Swamis. Mais adiante, uma vaca; uma das vacas
sagradas, — suponho que abundam em Benares — fica deitada no meio do
caminho com as pernas dobradas sob o abdômen.

Ao chegar perto da loja do cambista chamo um táxi, despeço-me do astrólogo,


e nós nos separamos.

* * *

Nos dias que se seguem, abandono-me a uma orgia de viagens. Passo as noites
nesses albergues construídos pelo governo para uso dos seus funcionários e
turistas.

Lembro-me de uma dessas hospedarias! Um pesadelo! Sem conforto e cheia de


formigas. Após duas horas de vãos esforços para livrar-me dos seus ataques,
torturado, deixo minha cama, decidido a passar a noite em claro, sentado na
cadeira. As horas pareciam-me intermináveis. Finalmente, fugindo dessa
impressão desagradável, esqueço o lugar onde estou e volto a pensar em meu
astrólogo de Benares.

Essa lembrança, porém, traz-me, logo em seguida, uma outra: a desses infelizes
esfomeados carregando seus ossos e seus trapos ao longo do caminho
poeirento; a vida não lhes permite viver, mas também não os deixa morrer. O
rico usurário, insolente no seu magnífico carro, enlamea-os na passagem; eles
aceitam isso como aceitam a fome, a miséria e o desprezo, sem revolta. Neste
país tórrido, onde o mais miserável leproso está resignado com a sua sorte, o
fatalismo indiano faz indubitavelmente efeito de entorpecente que acalma sua
carne dolorida.

Para que discutir o livre arbítrio com gente curvada sob o punho de ferro de um
impiedoso destino? Para um oriental isso não é um problema: o destino governa
a ele e à sua prole e, com isso, tudo está dito. Porém, que ocidental consentiria
em ser um fantoche, movido por fios puxados pelas mãos invisíveis do destino?

Lembro-me, agora, desse dito famoso de Napoleão, quando seu glorioso


exército atravessava os Alpes: “Impossível? Não existe essa palavra em meu
dicionário!” Porém, estudei e reli sua vida fascinante e recordo também outros
pensamentos estranhos que escreveu em Santa Helena, onde seu espírito
condenado à inação, ruminava sem parar seu passado de glórias: “Fui sempre
fatalista. O que está escrito no céu — está escrito... Minha estrela empalideceu...
Senti as rédeas me escaparem das mãos sem poder nada fazer”.

O homem, que talvez por amor ao paradoxo alimentava pensamentos


contraditórios, certamente não resolveu o mistério, e quem poderá resolvê-lo?
Quem sabe de quantas polêmicas e discussões este mistério foi objeto de um
poló a outro, desde que há na terra homens que pensam?
O imbecil não se teria preocupado, mas o sábio hesitará sempre em pronunciar
a última palavra entre tantas opiniões controversas.

Volto a pesar no meu horóscopo; há momentos em que me pergunto a mim


mesmo se porventura algumas células do meu cérebro não foram impregnadas
por esse fatalismo oriental. Quando lembro a maneira simples desse homem
humilde que trouxe à tona da minha memória fatos há muito tempo esquecidos,
tenho até vontade de escrever um tratado sobre determinismo. No entanto, sei
que o esforço será inútil e o meu prefácio, bem como a minha conclusão, não
esclarecerão melhor o assunto.

Não, isso está além das minhas forças! Quando a agência Cook vender
passagens para a Lua, Marte ou Vênus, será mais fácil a influência dos astros
tornar-se evidente. Esperando porém, pode-se consultar os astrólogos, sem
esquecer que eles não são infalíveis, pois como me avisou Sudei Babu, a ciência
é ainda fragmentária.

Felizmente adormeço no momento em que já ia me perguntar: mesmo que nosso


futuro estivesse escrito nos astros, seria de grande proveito para a nossa ventura
tentar levantar a ponta do misterioso véu?

Alguns dias depois estava a várias centenas de milhas de Benares, quando


soube dos distúrbios que ali estalaram. É sempre a mesma história: os hindus e
muçulmanos passam seu tempo brigando. No início, aparentemente, os
acontecimentos não têm maior gravidade, mas, vem um dia em que eles se
precipitam uns sobre os outros, agitados por indivíduos sem escrúpulos, para os
quais a religião é apenas um pretexto fácil para assassinato e saque. O terror
reina alguns dias. Essa lamentável ocorrência é semeada de boatos de cabeças
quebradas, corpos torturados e assassinatos indiscriminados.

Fico preocupado com o meu astrólogo, sobretudo por ser dificílimo obter notícias,
porque nenhum carteiro se teria atrevido a tentar a sorte nas ruas de Benares,
durante esse triste período.

Forçado a esperar que a população consinta a ceder, mando meu telegrama, um


dos primeiros que foram despachados para a Cidade Santa. Recebi em resposta
uma simples carta de agradecimento, onde meu amigo diz que está são e salvo,
atribuindo tal fato à “proteção do Todo-Poderoso”.

Fiel ao seu apostolado, acrescenta, no verso da carta, um post-scriptum —


resumindo dez artigos de doutrina da Yoga de Brama Chinta!
13
O Jardim do Senhor

No meu circuito através do norte da Índia, duas pistas me levaram à pequena


colônia pouco conhecida que tem o nome poético de Dayalbagh, o Jardim do
Senhor. Uma que delas começou em Lucknow, um pitoresco lugarejo, onde tive
a sorte de aproveitar os bons ofícios de Sunderlal Nigam, um guia amigável e
filósofo, de apenas vinte e um ou vinte e dois anos, mas que, como muitos dos
seus irmãos hindus nesta idade, já é um homem maduro. Passeamos
filosofando, entre os antigos palácios dos mongóis, meditando sobre o destino
dos seus antigos reis e encantados com a magnífica arquitetura indo-persa,
vislumbrando seus contornos graciosos e delicado colorido, que revelam o gosto
aprimorado dos seus criadores. Como esquecer os dias abençoados passados
nos jardins dos imperadores, assombreados de laranjeiras, orgulho de Lucknow?

Visitamos os antigos haréns, onde as favoritas dos reis Oudh exibiam sua beleza
cor de azeitona nos terraços de mármore, e se lavavam em banheiras de ouro.
Hoje os palácios estão vazios, mas o perfume dos seus jovens corpos ainda
recende, impregnando com seu aroma as salas, desde então sempre desertas.

Tornei a voltar amiúde, fascinado pela beleza da mesquita perto da Ponte dos
Macacos, que com seu alvor imaculado ofusca, brilhando deslumbrantemente, o
sol, e cujos esbeltos minaretes se elevam ao céu como uma oração silenciosa.
No interior uma grande massa de fiéis prosternada no chão, num ritmo monótono
invoca o nome de Alá. Berrantes tapetes, sobre os quais os fiéis se prosternam
para a oração, acrescentam uma nota alegre ao encantamento do cenário. Quem
duvidaria do fervor dos sequazes do Profeta, cuja religião é uma força viva e
fecunda?

Embora obcecado pela contemplação dessas maravilhas, ouço atento as


observações inteligentes e sábias do meu jovem guia, que alia uma atitude
objetiva à profundidade da alma, impregnada do misticismo de um estudante de
Yoga. Foram, todavia, necessários numerosos encontros e calorosas discussões
(no decorrer das quais senti seu olhar escrutar meu pensamento, procurando
sondar-me para saber minhas idéias e crenças) antes que eu soubesse que ele
era um membro da Fraternidade semi-secreta de Radha Soamis.
* * *

A segunda pista que me levou à Dayalbagh foi indicada por um certo Malik, um
outro membro da Fraternidade; grande rapagão, fino, de tez clara, como há
muitos hindus nordestinos. Durante séculos seu povo vivia nas adjacências das
tribos montanhesas da fronteira, que observavam com inveja as possessões dos
seus vizinhos mais favorecidos. Mas o sábio governo inglês domestica esses
irrequietos briguentos, não como antigamente, pelas armas, mas assalariando-
os a seu serviço. Malik tem sob suas ordens alguns desses ariscos nômades,
hoje domesticados pelo trabalho; ao longo da fronteira do nordeste do país, eles
constroem pontes, estradas, casernas e fortes. A maioria conservou suas armas,
mais por hábito do que por necessidade, e Malik trabalha arduamente, fazendo
proveitoso e bom serviço perto de Dera Ismail Khan, posto mais avançado do
Império. Seu caráter harmonioso combina uma grande confiança em si, um
espírito sadio e prático com a nobreza da alma e a profundidade do pensamento,
que denotam o homem notavelmente bem equilibrado.

Reservado no começo, como o exigem as tradições da Yoga, ele não confia em


ninguém, e só após muita reticência acabou confessando ter um mestre e que
vai vê-lo quando seu serviço permite. Esse mestre, um certo Marajá Sahabji
Maharaj, é precisamente o chefe de Radha Soamis que, como já me disse
Sunderlal Nigam, teve a engenhosa idéia de conciliar a disciplina da Yoga com
as exigências da vida diária e organizá-la em molde ocidental.

* * *

Graças aos esforços amigáveis desses dois homens, Nigam e Malik, vou ser
hóspede de Sua Santidade o Marajá Sahabji, o rei sem coroa de Dayalbagh, a
própria cidade de Radha Soamis.

Depois de percorrer de automóvel algumas milhas que separam Agra de colônia,


descortina-se ao meu olhar deslumbrado a cidade-jardim do Senhor! Constata-
se à primeira vista como foi grande a preocupação do seu fundador em mantê-
la em estado digno do seu nome. Em chegando, logo fui conduzido a uma casa
que pelo aspecto parece ser o escritório particular do mestre.

A sala de espera está mobiliada à moda européia e com uma simplicidade


apurada. Esta modernização será na realidade uma reação contra o modo de
viver dos homens santos da Índia? Havia encontrado Yogues em cavernas,
cabanas de terra, nos paióis úmidos à margem dos rios, mas nunca num
ambiente tão moderno! Que espécie de homem seria o chefe dessa singular
Fraternidade? Não fico muito tempo em dúvida, pois vejo a porta abrir-se
lentamente e esse grande personagem aparecer diante de mim; de porte
mediano, com um turbante imaculado envolvendo a cabeça, rosto de traços
finos, sem serem especificamente indianos, e a pele, um pouco mais clara do
que a dos hindus, poderia ser a de um sul-americano. Usa óculos de lentes
grossas, seus bigodes são aparados à moderna, veste uma espécie de redingote
cinza de gola alta, abotoada com uma fileira de botões — traje que os alfaiates
indianos acharam a melhor adaptação à nossa moda ocidental.

Sua acolhida é amável, cheia de dignidade e cortesia. Saudações trocadas,


espero-o sentar-se para cumprimentá-lo pelo bom gosto na escolha do
mobiliário. Um franco sorriso ilumina sua face:

— Deus não é somente amor, mas também beleza. Quem cultiva o espírito deve
cultivar o belo, não apenas em si, mas em tudo que o rodeia.

Seu inglês é regular, a voz clara e calorosa. Depois de uma pequena pausa,
continua:

— Aliás, há na decoração do ambiente uma outra coisa que não se percebe,


porém é bem mais importante. O senhor sabe, os objetos como cadeira, mesa,
paredes, conservam traços dos sentimentos dos seus possuidores e emitem, por
sua vez, radiações invisíveis que afetam, até certo ponto, as pessoas.

— Se eu bem o entendo, deve haver então no contato desses objetos eflúvios


magnéticos e irradiações que podem influir sobre o caráter dos seus
possuidores?

— Exatamente. O pensamento humano, sendo de natureza material, no seu


próprio plano, adere de modo mais ou menos prolongado, nas coisas das quais
nos servimos habitualmente.

— Isso é uma teoria interessante, que pode servir de apoio.

— É mais do que uma teoria, é um fato! — exclama. Depois prossegue:

— O homem possui um duplo etérico mais sutil do que seu corpo físico; nele
existem centros de ação correspondentes aos órgãos sensoriais. Por intermédio
deles se podem perceber as forças invisíveis que, quando despertadas,
proporcionam uma visão psíquica e espiritual.

Um curto silêncio, e depois ele me pergunta quais são minhas impressões sobre
a Índia.

— Não lhe escondo nada do que penso a respeito da negligência dos seus
compatriotas em assimilar as descobertas da ciência moderna e o progresso que
suavizam nossa curta passagem sobre a terra, o desprezo pela higiene, seu
agarramento fanático aos costumes estúpidos e às mais cruéis práticas, tudo
encoberto pelo manto da religião. Falo-lhe com toda franqueza que a influência
dos sacerdotes parece esterilizar seu país; dou-lhe alguns exemplos do que se
faz de absurdo em nome da religião, apesar de que Deus nos deu a capacidade
de raciocinar. Sahabji Maharaj é totalmente de minha opinião:
— É exatamente o meu programa de reforma o que o senhor acaba de me expor.

— Em conclusão, acho que a maioria dos hindus espera passivamente que Deus
faça por eles o que eles mesmos seriam capazes de fazer.

— Não há a menor dúvida. É certo que para a maioria dos hindus a religião é
uma proteção bem cômoda, um abrigo que cobre um monte de coisas que nada
tem a ver com ela. O pior de tudo é que a religião não se mantém na sua pureza
original e não guarda sua força viva senão durante meio século depois da morte
do seu fundador, para em seguida degenerar em simples filosofia. Seus adeptos
não conservam mais o espírito religioso, convertem-se em charlatães; no último
estado, e essa fase é mais duradoura, ela cai nas mãos dos pretensos
sacerdotes e, então, a hipocrisia é que passa a ser aceita como religião.

Eis, pelo menos, palavras com as quais concordo plenamente.

— Para que discutir o céu e o inferno, falar de Deus e dos seus atributos? A
humanidade não vive no plano da metafísica, mas na realidade; vamos pois nos
esforçar, antes de mais nada, e fazer essa vida mais sadia e mais bela!

— É por isso precisamente que queria conhecê-lo. Seus discípulos são pessoas
excelentes e tão práticas como os ocidentais de hoje, não se exibindo com sua
religião, vivendo uma vida sadia, observando as práticas da Yoga com uma
sincera fidelidade e devoção.

Minhas palavras provocam um sorriso nos lábios de Marajá Sahabji e faz brilhar
seus dentes.

— Considero-me feliz pelo fato do senhor ter notado. Pondo em prática essa
concepção da vida ativa em Dayalbagh, esforço-me por provar ao mundo que o
homem pode gozar de todos os efeitos benéficos da vida espiritual sem ser
obrigado a retirar-se para as cavernas, e pode atingir a mais alta perfeição da
Yoga sem ter necessidade de fugir aos deveres do mundo.

— Se o senhor for bem sucedido, os seus ensinamentos elevarão a Índia na


estima do mundo.

— E nós conseguiremos, acredite-me. Vou-lhe contar minha história:

Quando cheguei aqui para inaugurar minha colônia, meu maior desejo era
plantar muitas árvores, mas vieram me dizer que seria tempo perdido nesta terra
árida e arenosa. O Jumna não corre muito longe daqui e Dayalbagh está
construída sobre um de seus antigos leitos. Não tínhamos então muita
experiência e só depois de várias tentativas infrutíferas é que achamos as
espécies capazes de se fixar nesta terra ingrata. A maioria das árvores plantadas
no primeiro ano pereceu; uma, todavia, resistiu. Mesmo assim, não
desanimamos; prosseguimos com nossos esforços e, hoje, veja! Temos nove mil
árvores em pleno desenvolvimento. Eu lhe conto isso apenas como símbolo da
concepção que temos da nossa tarefa. Encontramos aqui uma terra tão seca e
árida, e de tão pouco valor comercial, que se não tivesse sido nossa coragem,
jamais acharia um comprador. Veja o que temos realizado!

— Será que o senhor quer edificar uma nova Arcádia nas portas de Agra?

Enquanto ele ri dessa alusão, aproveito para perguntar se podia visitar a cidade.

— Pois não, vou providenciar isso e já. Depois que o senhor tiver visitado
Dayalbagh e visto as coisas na prática, minhas teorias o esclarecerão, e o senhor
me compreenderá melhor.

Tocou a campainha, como nos mais modernos escritórios. Alguns instantes


depois começo minha ronda de inspeção pelas ruas em acabamento, e nas
fábricas.

Meu guia é o capitão Sharma, ex-médico do Exército, que pediu exoneração


para se entregar integralmente à obra do seu mestre. Ele também, percebo logo,
apresenta uma feliz associação de realismo ocidental e profunda e sincera
espiritualidade.

Uma luxuriante avenida dá acesso a Dayalbagh, vejo toda a cidade


extremamente limpa; as ruas assombreadas por grandes árvores, e belos jardins
ornam a praça central.

Meu guia me diz que essas plantações devem ter sido conquistadas, à força de
muita perseverança, de uma terra deserta. Uma amoreira plantada por Marajá
Sahabji em 1915, na época em que ele inaugurou a colônia, é um símbolo vivo
de sua concepção de urbanismo.

Um quarteirão industrial está formado pelo conjunto de fábricas que receberam


o nome de Indústria Modelo, e suas oficinas claras, espaçosas e bem arejadas,
testemunham um grande zelo pela higiene.

* * *

Em primeiro lugar visitamos a indústria de sapatos. Os operários de tez


bronzeada trabalham num ambiente ensurdecedor, devido ao zunzum da intensa
atividade das máquinas e correias, e parecem ser tão eficientes quanto os seus
irmãos longínquos de Northampton. Um chefe esclarece-me haver feito o estágio
na Europa, para se iniciar nos métodos modernos de fabricação, e
posteriormente formar os aprendizes. Os produtos fabricados satisfazem,
primeiramente, as necessidades de Dayalbagh e Agra, e o que sobra é
exportado. Foram abertas casas em outras cidades, à maneira das grandes
casas do Ocidente, possuidoras de sucursais.
Em seguida vem a indústria de tecelagem que fabrica uma série de algodão e a
seda; mais adiante uma indústria de ferramentas, uma forja e uma fornalha de
fundição, onde um enorme pilão-martelo cadencia o ritmo da cidade industrial.
Depois vem uma fábrica de balanças, de instrumentos científicos e aparelhos de
laboratório, que obtiveram, pela qualidade dos seus produtos, o patrocínio do
governo da Índia. Ao passar, assisto às delicadas operações de douração e
niquelagem, feitas mediante eletrólise. Outros departamentos da Indústria
Modelo produzem ventiladores, fonógrafos, cutelaria e móveis. Um dos
mecânicos inventou um novo tipo de fonógrafo, que será fabricado e posto em
uso futuramente.

Surpreso, encontro uma fábrica de canetas-tinteiro! Esta é a primeira que existe


nas Índias, e não foi senão após inúmeras tentativas que eles conseguiram
lançar o primeiro modelo. Apesar dos esforços, não foram bem sucedidos na
fixação das pontas de irídio; no entanto não perderam a coragem e a esperança
de descobrir um método certo; enquanto isso, são obrigados a mandar as
canetas para serem terminadas na Europa.

A tipografia de Dayalbagh satisfaz todas as exigências comerciais e culturais da


Fraternidade. Uma gráfica, donde saem os impressos em hindi, urdu e inglês,
como também, um pequeno semanário o Prem Pracharak são aí editados e
distribuídos a todos os Radha Soamistas que moram nas diferentes províncias
do país.

Não direi que os operários estão felizes, mas sim, entusiasmadíssimos! Eles não
são sindicalizados e, ainda, se o espírito sindicalista aqui surgisse, seria
considerado uma monstruosidade. Cada um cumpre a tarefa que lhe é
designada, não como uma obrigação, mas como um prazer.

A cidade tem sua própria usina elétrica, que distribui força motriz às fábricas,
aciona ventiladores e ilumina todas as casas, sem possuir um medidor por menor
que seja, pois o consumo da luz corre por conta do condomínio.

A seção agrícola se compõe de uma fazendola organizada em moldes


modernos, cujo desenvolvimento está ainda no início; possuindo um trator e um
arado a vapor, produz principalmente legumes e forragem. O que me parece
fantástico é a indústria leiteira (jamais tinha visto coisa parecia nas Índias), uma
verdadeira Fazenda Modelo, digna de uma exposição! O gado faz um contraste
chocante com as pobres vacas esquálidas que encontrei além de Agra; os
estábulos são de meticuloso asseio, e o rendimento também é superior às
demais indústrias de laticínio nas Índias. Uma usina de pasteurização e um
frigorífico estão anexos a ela. Uma batedeira elétrica completa esse formidável
conjunto, cujo mérito se deve a um filho do Marajá Sahabji, um jovem ativo e
enérgico que visitou os centros mais modernos de produção agrícola na
Inglaterra, Holanda, Dinamarca e Estados Unidos, antes de organizar estas
instalações.
O aprovisionamento de água potável foi, desde o início, um problema de capital
importância. Um canal de irrigação e um reservatório de água foram construídos,
mas a necessidade sempre crescente forçou o Marajá Sahabji a pedir auxílio dos
engenheiros do governo que perfuram poços com êxito.

A colônia tem seu próprio banco, o Radha Swami General Bank, que possui um
capital autorizado de dois milhões de rupias, e administra as finanças da cidade
e as contas particulares. O Instituto Universitário Radha Swami está situado no
centro de Dayalbagh e talvez seja o mais belo edifício do Jardim do Senhor; um
arquiteto ocidental nada encontraria a criticar na sua fachada de tijolos
vermelhos, de duzentos pés de comprimento, com suas janelas bem aprumadas
e emolduradas de mármore branco. Esta escola moderna está recebendo várias
centenas de alunos por ano. O ensino aí é feito por trinta e dois professores,
todos jovens, entusiastas e inteiramente devotados à sua tarefa e ao seu mestre.
O nível de ensino é muito elevado. A doutrinação religiosa, sem ser filiada a
nenhum dogma, caracteriza seu lema que é a elevação da alma. Marajá Sahabji
visita frequentemente a escola, e todos os domingos faz uma alocução aos
alunos. A prática dos esportes é estimulada, tem uma biblioteca de sete mil
volumes, como também um curioso pequeno museu que completam a
instituição.

O colégio das moças é baseado nos mesmos princípios. A mestra se esforça


procurando reagir contra a ignorância em que ficou presa a mulher indiana, no
transcurso dos séculos até os nossos dias. Uma escola técnica, recentemente
inaugurada, compõe-se de seções de mecânica, eletricidade e automobilismo,
formando bons mecânicos e contra-mestres. Os alunos fazem os estágios nas
fábricas, onde as máquinas especiais e as bancas de experiência foram feitas
em sua intenção. Modernas acomodações foram anexadas aos três colégios,
arejadas, limpas e providas de todo conforto.

O Building Department projeta as plantas, organiza as construções dos edifícios


públicos; cada rua possui seu caráter arquitetural próprio, pois o zelo pelo
urbanismo é evidente. O futuro proprietário é livre na escolha do estilo da sua
casa, dentro das normas preestabelecidas e aprovadas pelo departamento,
supervisionado por quatro membros, cujos orçamentos estão previamente
calculados.

É inútil acrescentar que existe em Dayalbagh um hospital e uma maternidade. O


espírito coletivo está tão bem coadunado que o próprio policial, aliás muito bem
adestrado, é também um membro da fraternidade Radha Soami! Sua presença
pode parecer chocante numa cidade, cuja moral é de tão alto nível, mas soube
dele próprio que está aí para defendê-la contra a intrusão possível dos
vagabundos e dos curiosos.

* * *
Aproveito a primeira oportunidade que o Marajá Sahabji me concede para ir lhe
pagar meu tributo de admiração.

— Mas como o senhor chegou a financiar uma obra tão grandiosa no coração
de um país tão atrasado?

— Nossos membros financiam sua colônia e o senhor terá muitas ocasiões de


verifica-lo pessoalmente. Eles não sofrem nenhuma pressão e não são
obrigados a contribuir com taxa alguma; entretanto, consideram como seu dever
contribuir, cada qual conforme suas posses, para o bem-estar de Dayalbagh. No
início, naturalmente, nós dependíamos das contribuições voluntárias, porém
nosso intento é chegarmos a ser auto-suficientes, e não terei descanso enquanto
não conquistarmos nossa completa independência.

— Mas, o senhor deve ter, com certeza, o apoio dos ricos, não?

— Que nada, nem pense em tal! Os Radha Soamis ricos podem ser contados
nos dedos; nossos membros são quase todos de condição modesta, e a maioria
deu mostras de muita abnegação chegando até nós. Pela graça de Nosso Pai
Supremo, agora podemos dispor de centenas de milhares de rupias com nossa
obra, e o porvir da colônia está assegurado, visto que sua renda cresce
proporcionalmente aos seus membros; assim, temos a certeza de jamais nos
faltar dinheiro.

— Quantos membros o senhor calcula atualmente?

— Mais de 110.000, porém, apenas alguns milhares vieram morar aqui. Nossa
Fraternidade, que tem mais de setenta anos de atividade, realmente não se
desenvolveu senão no decorrer dos últimos vinte anos, e sem a menor
propaganda, pois como o senhor deve saber, a sociedade é semi-secreta. Por
meio de atividades públicas e uma publicidade adequada, poderíamos multiplicar
o número de nossos membros que estão espalhados por toda a Índia, e
consideram Dayalbagh como sendo sua metrópole, aparecendo por aqui tanto
quanto possível. Estão organizados em grupos locais e reúnem-se todos os
domingos no mesmo horário, que corresponde às nossas reuniões dominicais
em Dayalbagh.

Sahabji parou para enxugar seus óculos — depois prossegue:

— Imagine só! Quando inauguramos esta colônia, tínhamos apenas cinco mil
rupias ao nosso dispor, economizadas para esse fim; iniciamos adquirindo só
quatro acres de terra, e hoje Dayalbagh se estende por vários milhares de acres!
Isto então não pode ser considerado êxito?

— Até onde o senhor almeja chegar?


— Quando tivermos dez a doze mil habitantes, então pararemos por aí, pois não
tenho ambições de imitar vossas monstruosas aglomerações ocidentais, onde a
qualidade é forçosamente sacrificada em benefício da quantidade. O que eu
quero edificar é uma cidade-jardim, cujos moradores possam trabalhar felizes e
viver em paz, com espaço e ar suficientes. Dentro de alguns anos, Dayalbagh
será uma comunidade-modelo, um pouco semelhante à República de Platão,
onde encontrei, agradavelmente surpreendido, uma grande parte das idéias que
estou tentando realizar. Ela servirá, doravante, de modelo às outras
comunidades que tenho intenção de fundar em diversas partes da Índia, a à
razão de uma, pelo menos, em cada Província. Terei contribuído, assim, com
uma solução aos nossos muitos problemas sociais.

— O senhor então está orientando a Índia para se desenvolver como um país


industrial?

— Certamente, porque isto é necessário; somente não o deixarei afundar-se até


o pescoço no materialismo, como fazeis no Ocidente. A Índia deve ser
reedificada sobre uma base econômica sadia, que possa salvá-la da miséria,
mas sempre excluindo a luta entre o capital e o trabalho que acompanha, no
Ocidente, o progresso social.

— E como conseguirá o senhor fazê-lo?

— Visando o bem-estar do indivíduo, sem prejuízo da comunidade, mas sim,


tendo como consequência o bem-estar coletivo. Nós trabalhamos seguindo os
princípios da cooperação em que cada qual coloca o interesse de Dayalbagh
acima do seu próprio. Nossos pioneiros trabalham por um salário menor do que
obteriam em qualquer outro lugar, e eles o fazem voluntária e alegremente, pois
não são operários ignaros, mas homens conscientes e cultos. O rendimento do
trabalho é melhor, porque não nos baseamos em lucros materiais, e sim,
visamos nosso lema espiritual, que orienta todos os nossos esforços. Alguns
entre nós dão seus serviços gratuitamente, quando a situação lhes permite fazê-
lo; isso é suficiente para provar o ardor do seu entusiasmo. Espero, todavia,
poder dispensá-los desse sacrifício quando tivermos concluído nossa obra.
Porém, o senhor deve levar em conta que eles ainda vivem aqui só com a única
preocupação de elevar-se espiritualmente, e nunca perdem de vista o ideal que
é o nosso fundamental empenho. Suponhamos que o senhor venha aqui juntar-
se a nós, deveria ganhar, digamos, mil rupias por mês, mas o senhor só
receberia a terça parte, porque não estamos em condições de lhe pagar um
salário alto. Pouco a pouco o senhor chegaria a construir uma casa, fundar um
lar, não obstante, se a sua preocupação fosse unicamente de ordem material e
não prestasse atenção ao ideal que nos anima, que é essencialmente espiritual;
desviar-se-ia de nós e fracassaria.

— Compreendo.
— No entanto, não nos considere como socialistas, no sentido europeu da
palavra, só porque nossas indústrias e nossas escolas são propriedade comum.
Esta forma de propriedade estende-se mesmo na área das terras e dos imóveis.
O senhor pode construir uma casa; ela será sua, enquanto nela estiver morando.
É por isso que estamos radicalmente separados na tirania do socialismo à moda
ocidental; todos os nossos bens são comuns e todos os donativos voluntários
são considerados como um depósito e administrados desinteressadamente.
Tudo está subordinado ao nosso alvo espiritual; a administração é controlada
por um corpo de quarenta e cinco membros representando as diversas
províncias da Índia. Reúnem-se duas vezes por ano para examinar as contas e
revisar os orçamentos; o despacho de contas-correntes, como também o
controle geral, é confiado a um Comitê Executivo de onze membros.

— Avalio, pelo que o senhor acaba de dizer, que um dia Dayalbagh poderá dar,
efetivamente, uma solução dos muitos problemas de nosso tempo. Ora! Mas eu
não vejo ainda como sua obra possa resolver o problema econômico, que
representa em nossos dias a base de tudo!

Marajá Sahabji sorri à minha pergunta um tanto apreensiva.

— A Índia pode trazer sua contribuição bastante útil, também neste ponto. Deixe-
me expor um plano que foi recentemente posto em prática com a finalidade de
adiantar a realização de nossos projetos. Esse plano, a meu ver, condensa todos
os princípios econômicos e sociais de capital importância. Organizamos um
fundo sucessorial que solicita os donativos de nossos membros capazes de
subscrever somas de mil rupias ou mais e todo subscritor recebe juros de 5% ao
ano; com sua morte, os mesmos juros serão pagos à viúva e seus filhos ou a
qualquer outra pessoa indicada. O beneficiário terá os mesmos direitos que o
subscritor, e o pagamento da anuidade só extinguirá na terceira geração. Assim,
centenas de milhares de rupias afluirão às nossas caixas sem ser demais pesado
aos membros da nossa Fraternidade, pois uma renda razoável está garantida
em troca dessa subscrição. 1

1. Os economistas europeus já cuidaram de um plano semelhante, elaborado pelo professor


italiano Rignano, com a finalidade de estabelecer uma lei sucessorial que fosse mais acessível,
diminuindo os sacrifícios que dela advêm.

— Pelo que vejo, o senhor está se esforçando por procurar o meio termo entre
as inconveniências do capitalismo e o sonho dos socialistas, não é assim? Em
todo caso, desejo-lhe muita sorte, tanta quanto o senhor merece.

Agora se torna claro para mim que Dayalbagh, de fato, tem seu futuro garantido
graças aos recursos desse fundo sucessorial que tende a aumentar
constantemente com os donativos que continuarão a afluir, e também com os
benefícios de suas indústrias, quando chegar a fase de produção.
— Os políticos indianos, os mais conhecidos, observam a nossa experiência com
muito interesse — continua o Marajá — vieram aqui vários; alguns, contrários às
nossas idéias, com seu espírito crítico deixaram-nos alertas e vigilantes. No
mundo moderno os hindus constituem o povo mais pobre do mundo, e seus
líderes, embora pessoas muito positivas, são de pouca visão. Gandhi esteve aqui
e nós conversamos longamente; ele queria que eu me aliasse à sua política.
Recusei então, pois não se faz política em Dayalbagh. Nós acreditamos nos
meios práticos e eficazes; não queremos nada com os planos políticos de
Gandhi, com quem não concordo, e considero suas idéias econômicas pura
fantasia, despidas de todo valor prático.

— Ele é, creio eu, o inimigo da máquina que, conforme suas idéias, é boa para
ser jogada no mar.

— Sim, mas a Índia não pode nem deve voltar atrás. Ela nunca recuperará a
prosperidade, enquanto não desenvolver os elementos sadios da civilização e
do progresso mundial. Meus patrícios fariam melhor seguindo o exemplo dos
americanos ou dos japoneses. Como quer o senhor que o velho tecelão ou a
indústria caseira lutem contra a concorrência das máquinas, oriunda do
progresso moderno?

— Exemplo dos Estados Unidos? Pois não é um verdadeiro americano, no corpo


bronzeado de um bom hindu, que tenho diante de mim? Um espírito vivo,
temperamento de negociante, positivo e prático! Como não ficar encantado por
esse bom senso, esse equilíbrio sadio, qualidades tão raras neste continente!
Sua personalidade é toda contraditória: de um lado, guia e chefe espiritual de
mais de cem mil pessoas que praticam, sob sua vigilância espiritual, a mais
curiosa forma de Yoga, e do outro lado, grande administrador e animador de uma
cidade industrial, regorgitante de atividades. Gênio luminoso e fecundo, não
creio que possa haver outro igual nas Índias, quiçá no mundo inteiro! Sua voz
quente vem romper minhas reflexões:

— O senhor viu apenas dois aspectos de nossa vida. Ora! a natureza é tripla: há
corpo, mente e alma. Temos oficiais e fazendas agrícolas para o corpo, escolas
para a mente e, por fim, nossas assembléias espirituais para as atividades
espirituais. Assim, visamos o crescimento harmonioso e integral do indivíduo —
bem entendido, damos primazia ao lado espiritual — e todos os membros da
Fraternidade fazem práticas individuais da Yoga, onde quer que estejam.

— Posso assistir a uma de vossas assembléias?

— Com todo prazer — responde o mestre, sorrindo.

* * *

As atividades de Dayalbagh começam cedo, à hora em que os pássaros cantam


os primeiros hinos ao Criador. Às seis horas da manhã sigo meu guia em direção
a uma grande tenda, onde já uma multidão apressada deixa na entrada seus
sapatos e sandálias.

Faço como eles e entro, quando chega minha vez.

Vejo Sua Santidade Marajá Sahabji sentado sobre uma plataforma, erguida no
centro desse ambiente improvisado; centenas de fiéis acocorados em volta dele
formam um tapete movediço cobrindo o chão, e todos os olhares estão fixos no
mestre. Abrindo caminho com dificuldade até ao pé do estrado, acomodo-me
nesse pequeno espaço, da melhor maneira possível.

Logo após, dois homens se levantam no fundo da tenda e ouço-os entoarem


durante cerca de dois minutos, um canto monótono, mas agradável aos ouvidos,
que vai decrescendo até se apagar por completo, deixando o auditório numa
atmosfera apaziguadora.

Dou um rápido olhar em volta de mim. Toda a assembléia está imóvel, como que
entregue à meditação; dos lábios de Sahabji ainda não saiu uma palavra; seu
semblante é mais grave do que de costume, seu ar bonachão e alerta
desapareceu, seu espírito parece estar mergulhado em contemplação serena.

Ponho-me a refletir... Que espécie de pensamentos cruzam sob esse alvo


turbante? Que responsabilidade deve pesar nos seus ombros, perante esse
povo que vê nele o laço sagrado que o liga às esferas da vida mais sublime? A
que regiões fechadas ao nosso ceticismo ocidental a mente desses orientais se
entrega? Contudo, sei que este estado de contemplação é o prelúdio de uma
atividade intensa e fecunda, cuja febre recrudescedora atingirá logo mais a
cidade.

O profundo silêncio continua por mais de meia hora; não houve nada mais além
dessa muda contemplação. Calçamos os sapatos e dispersamo-nos.

A manhã toda passei conversando com numerosos Radha Saomistas,


moradores da cidade, ou visitantes fortuitos; a maioria deles fala bom inglês;
pessoas com turbantes, vindas do nordeste, os tâmiles do Sul com cabelos
traçados, os vivazes e pequenos bengaleses do leste e os barbudos da Índia
Central. Todos estes homens têm o ar de dignidade consciente de quem soube
conciliar suas aspirações espirituais com as exigências de uma vida laboriosa e
prática. Seus espíritos pairam nas alturas sublimes, enquanto seus pés estão
solidamente apoiados na terra. Não há um país que não se orgulharia de possuir
tais cidadãos. Gosto deles e os admiro; eis, afinal, gente que sabe o que quer!

Uma reunião de menor importância tem lugar à tarde, especialmente oferecida


em benefício dos membros que por aí estão de passagem. Ali se discutem
assuntos pessoais, como também se responde a perguntas individuais e se trata
de questões de ordem geral.
Marajá Sahabji é um homem de recursos, nunca se atrapalha, e enfrenta sem
hesitar os problemas materiais e espirituais os mais variados e mais imprevistos.
Pode-se confiar, sem receio, nas suas sugestões — ele sabe aliar uma perfeita
humildade a uma grande confiança em si, uma sabedoria e senso de humor,
surpreendentes num homem dessa espécie.

À noite há uma terceira reunião; tudo está fechado na cidade. A imensa tenda
novamente está lotada, e Marajá Sahabji está no seu lugar sobre o estrado. Vejo
uma fila de seguidores depositar a seus pés as contribuições para o fundo
administrativo, e dois membros da comunidade registram os donativos. O
momento mais importante é quando o chefe da Fraternidade pronuncia uma
alocução. Os devotos escutam-no com profunda atenção: ele é eloquente, sua
linguagem é viva e colorida, sua voz quente vem do coração, seu entusiasmo é
contagioso, noto a emoção dominar aos poucos os ouvintes extasiados...

O ofício noturno prolonga-se quase duas horas e o mesmo programa se repete


diariamente. Marajá Sahabji dá-me a perceber, por alto, a inesgotável e imensa
reserva de forças mentais que lhe permitem manter sua alocução sem
dificuldade nem falhas.

Ninguém conhece, antecipadamente, o tema do seu discurso, e surpreso com


essa vibrante prolixidade de idéias, não pude deixar de falar-lhe a respeito.

— No momento em que tomo o lugar no estrado, ignoro totalmente o que vou


dizer. Quando pronuncio uma frase, não sei como será a próxima e, ainda
menos, como irei concluí-la; entrego-me todo ao Pai Supremo, espero Suas
inspirações, ouço Suas ordens, em verdade me entrego em Suas mãos.

O assunto da sua primeira palestra perseguiu-me dias seguidos. Parecia


exatamente feito sob medida para mim, pois se tratava da necessidade de
encontrar um mestre. Um dia, em que estávamos sentados juntos, na grama, foi-
me impossível deixar de confiar-lhe meu problema.

— Deveras; um guia é absolutamente indispensável — frisa — contar apenas


consigo no plano transcendente é uma coisa praticamente impossível.

— E o senhor já teve um mestre?

— Evidentemente; passei nada menos do que catorze anos a procurá-lo.

— Catorze anos! E o senhor não está lamentando esse tempo?

— Mesmo que minha busca tivesse levado vinte anos, não seria tempo perdido.
Eu nem sempre fui crente; no princípio era tão cético como o senhor, porém meu
desejo de encontrar um mestre que me mostrasse o caminho era tão forte que
quase desesperei. Era jovem e alucinado por encontrar a Verdade; perguntei à
luz, ao céu, interroguei a natureza, indaguei aos objetos inanimados se a
Verdade existia. Chorei como uma criança, finalmente não aguentei mais, resolvi
não me alimentar, ainda que morresse, até o Todo-Poderoso me mostrar o
caminho da Verdade. Cheguei a não poder executar o menor trabalho; na noite
que se seguiu à minha decisão, apareceu-me a figura de um mestre. Perguntei-
lhe onde vivia. — Respondeu: “Allahabad! Depois você saberá meu endereço
completo”.

No dia seguinte, fui falar a um amigo que supunha ser dessa cidade e contei-lhe
a extraordinária vidência que tive. Sem dizer nada, ele saiu e voltou com uma
fotografia, representando um grupo de pessoas, entre as quais reconheci sem
hesitar aquela que me tinha aparecido. Meu amigo disse, então, que de fato
existia em Allahabad uma sociedade meio secreta, cujo mestre era esse homem.
Imediatamente me pus em contato com ele e me tornei seu discípulo.

— O que o senhor está me contando é surpreendentemente maravilhoso!

— Mesmo que o senhor empreenda o estudo da Yoga por seus próprios meios,
escute bem! o dia em que suas preces forem atendidas, elas o levarão
inevitavelmente a um mestre: não há por onde escapar; o senhor deve ter um
guia e o achará, se tiver vontade e desejo de procurá-lo.

— Pois não, mas como se reconhece o mestre?

Minha pergunta parece diverti-lo.

— O mestre reconhece de antemão o discípulo chamado a vir; ele o atrai pelo


seu poder magnético e o põe no caminho traçado pelo seu destino; o resultado
não pode falhar.

Não estamos mais a sós. Pessoas de aspecto mais variado se agrupam em volta
de nós e, aos poucos, Marajá não tem um ouvinte só, mas várias dezenas... Fui
eu que tomei a palavra:

Esforcei-me sinceramente para formar uma idéia clara de vossa doutrina, porém,
não é uma tarefa tão fácil assim. Um dos seus discípulos emprestou-me os
escritos de seu predecessor na Fraternidade, Sua Santidade Sankar Misra, mas
minha cabeça parece estourar de tanto pensar.

Marajá Sahabji riu-se muito com esta declaração espontânea.

— Para compreender a veracidade de nossos métodos é preciso, em primeiro


lugar, que o senhor estude a doutrina, praticando a Yoga, pois as práticas diárias
são de infinitamente maior importância do que os ensinamentos teóricos. Sinto
muito não lhe poder pormenorizar nossos métodos de meditação, que só podem
ser transmitidos aos neófitos aceitos, que fizerem voto de segredo, mas vou lhe
esclarecer alguma coisa a esse respeito:
— As práticas da nossa doutrina possuem como base o Som da Yoga ou como
nós chamamos A arte de ouvir nosso íntimo.

— Os livros que estudei dizem, de fato, que o som é uma força criadora que
chamou o universo à existência.

— Materialmente falando, sua interpretação é correta. Porém, dir-se-ia melhor


que o som foi a primeira manifestação da obra do Ser Supremo na criação do
mundo. O universo não é o resultado de forças cegas. Esse Som Divino é
conhecido pela nossa Fraternidade e pode ser transcrito foneticamente. Nós
cremos que os sons são sinais da fonte que os emitiu e da força original que os
criou. Portanto, se um dos nossos adeptos presta atenção ao som divino que
está dentro dele — corpo, vontade e mente controlados — no momento em que
ele o perceba, adquire o conhecimento do Ser e atinge a felicidade.

— Este som, não será simplesmente a pulsação do sangue nas artérias? Que
outro som poderia ser ouvido por nós, interiormente?

— O senhor esquece que não se trata aqui de som material, mas unicamente
espiritual. A energia, percebida como som no plano material, é apenas reflexo
de uma força sutil cuja ação criou o universo. Da mesma forma como vossos
cientistas transformam a matéria em eletricidade, assim podemos seguir, no
plano material, a força percebida sob a forma de som, até um grau de vibração
que não é mais perceptível ao ouvido, porque foi transposto para o plano
espiritual. O som condensa em si as propriedades

da região donde foi emitido. Por conseguinte, concentrando de uma certa


maneira toda sua atenção, o senhor chegará um dia a ouvir esse verbo místico
que representa o verdadeiro nome de Criador, emitido desde aqueles tempos
primordiais — tempos de levantamento dos mundos do caos primitivo. O eco
desse Verbo repercute na alma do homem, que se esforça em captá-lo por meio
de nossa prática secreta da Yoga. Chegar ao ponto da sua origem é,
propriamente dito, transportar-se ao Paraíso. O homem que observa,
rigorosamente, as regras de Radha Soami, imergir-se-á em êxtase total, até
chegar o momento em que ressoará no íntimo do seu ser a vibração desse Som
Divino.

— Eis ainda uma coisa nova!

— Para o Ocidente, sim, mas não para a Índia. O som da Yoga já o ensinava
Kabir em Benares, no século XV. 2
2. Kabir foi um renovador religioso. Segundo seus discípulos, nasceu em 1398 e morreu em
1518, no entanto, geralmente se aceita o ano de 1440 como data real do seu nascimento. Suas
idéias se assemelhavam às doutrinas de Maomé e do cristianismo, harmonizando os elementos
contraditórios. (N. da T.)

— Francamente, não sei o que dizer...


— Onde o senhor vê a dificuldade? Provavelmente, o senhor admite que certas
formas de som, a música, por exemplo, podem provocar no homem o estado
meio extático; por que, então, não o afetaria, e com maior razão, a música
interior, a música mística?

— É certo, mas ainda seria preciso provar que essa música interior existe.

Sahabji encolhe os ombros.

— Argumentos não me faltarão para convencê-lo, porém julgo que precisaria


muito mais do que isso, pois como provar, pelo simples raciocínio, um fato
metafísico? Como também é muito natural que o cérebro humano não possa
perceber nada, além do mundo sensorial, sem uma preparação adequada. A
melhor prova, a prova da verdade espiritual, pode ser comprovada pelos
ensinamentos e as práticas da Yoga. Eu lhe garanto que o corpo humano é
capaz de funções muito mais elevadas do que essas que lhe damos comumente
a executar. Os centros cerebrais estão em relação estreita com os mundos sutis
do ser. Um treinamento adequado torna possível estimular esses centros a ponto
de fazê-los perceber diretamente os mundos mais sutis. Ademais, o que importa,
sobretudo, é que esses centros nos capacitam a atingir a consciência divina —
a Consciência Cósmica.

— O senhor está se referindo aos centros cerebrais conhecidos dos nossos


anatomistas.

— Sim, em parte; porém, esses centros não são como os órgãos físicos que
apenas servem de suporte aos centros mais sutis que, na verdade, ativam o
corpo. O mais importante desses centros é a glândula pineal, que é a sede da
entidade espiritual do homem. Experimente dar uma picada no ponto situado
entre as duas sobrancelhas, e a morte ocorre instantaneamente. As correntes
espirituais convergem a essa glândula, afluindo pelos nervos óticos, olfativos,
auditivos e outros.

— Sim, já me é conhecido que as funções dessa glândula ainda são um enigma


para os nossos fisiologistas.

— Não é nada surpreendente, pois ela é considerada como um foco do ser


espiritual, proporcionando vida ao corpo e personalidade ao espírito. Quando
essa centelha espiritual se afasta da glândula pineal, ocorre o fenômeno do sono
profundo e do êxtase místico, e quando ela a abandona definitivamente, é a
morte que sobrevém. Sendo o corpo humano um universo em miniatura, no
sentido de que todos os elementos empregados na criação estão aí
representados, possui, além desses elementos, as ligações espirituais com a
esfera mais sutil da mente. Portanto, não é nada impossível que essa entidade
atingisse o mais alto vértice do mundo espiritual e fosse capaz de nos levar ao
auge. No momento em que ela deixa a glândula pineal, sua passagem através
da substância cinzenta do cérebro provoca um contato com a esfera da
Consciência Universal; sua passagem através da substância branca exalta a
faculdade consciente até à percepção das mais altas realidades espirituais.
Contudo, para atingir esse estado de consciência, é necessário que todas as
atividades físicas sejam suspensas, a fim de que o acesso à mente fique fechado
a todo e qualquer estímulo exterior. E por isso o essencial da nossa prática da
Yoga consiste num esforço de concentração inversa à das ondas do
pensamento, afastando-o do meio ambiente, até que o estado de pura
contemplação seja obtido.

Ouço com o olhar perdido, procurando compreender e assimilar essa avalanche


de idéias abstratas, expressas por uma voz meiga e quente. Agora todo esse
povo se juntou em volta do mestre e parece tomar grande interesse na conversa.

A tranquila segurança do Sahabji impressiona-me, mas...

— O senhor disse que o único meio de verificar suas asserções é a prática de


sua doutrina, mas os senhores a guardam em segredo tão zelosamente!

— Não tanto, basta pedir sua admissão à nossa Fraternidade, ser recebido, e
em seguida iniciado em nossos métodos.

— O senhor não poderia dar alguma prova da sua própria experiência? Não
desejo outra coisa, senão crer.

— Venha a nós, em primeiro lugar.

— Sinto muito, mas não posso; é o meu feitio, preciso ver antes de crer.

Marajá Sahabji faz um gesto evasivo.

— O que posso fazer, então? Estou nas mãos do nosso Pai Supremo.

* * *

Todos os dias assisto às reuniões, como se fosse um membro da Fraternidade.


Ouço e medito. Interrogo a quem quer que seja e aproveito, na medida que me
é possível, assimilar a doutrina de Radha Soami e seus ensinamentos
concernentes ao homem e ao universo. Frequentemente, à tarde, dou um
passeio com um dos discípulos, a uma ou duas milhas distantes de Dayalbagh,
onde começa a selva. Sentamo-nos, às vezes, na beira do Jumna. Ao alto,
escalando os atalhos íngremes, descortinamos a planície e o curso das águas
tranquilas. De quando em vez, um abutre vem, com suas grandes asas abertas,
voando por cima de nossas cabeças. Oh! Jumna! nas tuas margens o deus
Krishna brincava entre as pastoras e as encantava com sua flauta e seus
galanteios. Compreende-se, pois, facilmente, que ele se tenha tornado um dos
deuses mais queridos do Panteão indiano.
— Até esses últimos anos — diz meu companheiro, rompendo o silêncio — estes
lugares, onde hoje se ergue Dayalbagh, serviam de refúgio a bestas ferozes;
agora, essas feras se esquivam cuidadosamente, nem à noite aparecem.

Após uma curta pausa, continua falando:

— O senhor é o primeiro ocidental que assiste às nossas reuniões, porém não


será o último. Apreciamos muito a simpatia e a compreensão que o senhor nos
tem testemunhado. Por que não vem resolutamente a nós?

— Porque não tenho fé e sei que, fatalmente, acaba-se acreditando no que se


tem vontade de crer.

— Enfim, o senhor sempre aproveitou alguma coisa da sua estada em


companhia do mestre. Não quero fazer pressão. Não procuramos discípulos e,
mesmo, nossos membros não estão autorizados a fazer proselitismo.

— Então, como foi que o senhor chegou a conhecer a existência da


Fraternidade?

— Simplesmente; meu pai é membro. Embora não morando em Dayalbagh,


aparece por aqui frequentemente. Levava-me às vezes consigo, sem todavia
tentar converter-me. Há mais de dois anos me pus a refletir sobre esse assunto;
indaguei dos amigos, perguntei ao meu pai e o que ele me disse dos
ensinamentos de Radha Soami fez-me decidir a favor dessa doutrina. Fui
recebido, iniciado, e com o tempo terminei firmando-me na fé. Acho que foi uma
grande ventura para mim, considerando que outros têm vindo a nós só depois
de um longo período de vida cheio de dúvidas.

— O senhor tem toda razão, e fico triste por não poder livrar-me, tão facilmente
quando o senhor, da dúvida que me sufoca!

Meu companheiro não me responde. Sigo com o olhar as águas serenas do


Jumna, de um azul profundo, e aos poucos abandono-me ao devaneio.

Todo pensamento indiano é colorido pela fé, sábia ou ingênua, e apóia-se num
postulado inflexível de religião, crença, ou revelação qualquer. Contudo, não
podendo dispensar a religião, também não faz a mínima discriminação entre
elas; todas são representadas no Panteão indiano, desde as mais grosseiras até
as mais sublimes. Lembro-me de um pequeno templo, encontrado um dia na orla
do Ganges, onde vi as colunas e as paredes todas cobertas de afrescos e
baixos-relevos, representando cenas eróticas a ponto de fazerem recuar de
espanto um padre ocidental. Sim, mesmo essas coisas têm seu lugar na religião
hindu! É verdade que os cultos fálicos são de antiquíssima tradição, e seria
injusto e ilógico expurgar da religião esse lado essencial da nossa natureza, pois
também, ao lado dele, se encontram na Índia as mais altas abstrações que a fé
jamais inspirou ao homem e, assim, temos que aceitá-la como ela é.
No entanto, em nenhum lugar encontrei uma tão estupenda doutrina, quanto
essa do Radha Soami; ela é mais de que original, pois é única! Que outro
cérebro, a não ser o do Marajá Sahabji, jamais poderia ter sonhado enfrentar
essa combinação paradoxal da mais antiga ciência do mundo com as mais
modernas conquistas da civilização? Dayalbagh será, irrefutavelmente,
ressaltada um dia nas Índias, embora sua pouca importância atual não lhe
permita ser apreciada. A Índia é um enigma cuja solução ninguém parece ter
achado, e será preciso esperar ainda muito tempo!

Marajá Sahabji tinha rido da pregação medievalista de Gandhi, e esse riso ainda
ressoa em Ahmedabad, quartel general do mesmo Gandhi! Nas margens de
Sabarmati, um viajante encontra, porém, como um desafio, umas cinquenta
chaminés de fábricas, cuja fumaça se espalha em direção ao céu, pequeno
grupo de casinhas alvas onde o evangelho do trabalho caseiro e do artesanato
rural renasce das suas cinzas...

O império do Ocidente derrubou na Índia suas antiquíssimas tradições


econômicas. Os primeiros europeus que surgiram ao largo da sua costa não
desembarcaram somente os fardos de conteúdo anônimo, mas trouxeram
também idéias novas. O dia em que Vasco da Gama, no comando dos seus
rudes marinheiros, desceu no porto letárgico de Calicut, marcou o início do
progresso que devia crescer continuadamente, de modo acelerado, até os
nossos dias. A industrialização da Índia começou e ela não vai parar. A Europa
passou pela Renascença do intelecto, pela reforma da religião e pela revolução
industrial, e deixou estas coisas para trás. A Índia ainda está empenhada na luta
para conquistá-las; para ela são ainda problemas atuais. Vai imitar servilmente
os europeus ou encontrará sua própria solução? E essa solução, será a que o
Marajá Sahabji vai fornecer?

Há uma coisa da qual estou absolutamente certo: a Índia sofrerá o efeito da ação
dissolvente dos elementos, de maneira precoce e desconhecida nesse país.
Milhares de anos de uma sociedade imersa nas tradições caducas, encarcerada
nas superstições insustentáveis, vão desaparecer antes de duas ou três
gerações, da memória dos homens; isso pode parecer um milagre, porém esse
milagre produzir-se-á, indubitavelmente, e o Marajá Sahabji vai merecê-lo, por
ter compreendido a situação.

Ele compreendeu que as coisas do passado devem ser condenadas nas Índias,
como o foram em outra parte do mundo, mas também gostaria de saber se essa
sonolência dos asiáticos e o pragmatismo europeu continuarão a ser
incompatíveis. Efetivamente, por que um Yogue de hoje não poderia se vestir
como todo mundo o faz? Por que não sair do seu insulamento secular para se
misturar na multidão? Não seria melhor que entrasse nas fábricas, nos
escritórios, nas escolas, não para ministrar sermões, mas para dar um exemplo
vivo de uma ação inspirada, transformando a via do trabalho produtivo numa
subida para o céu? A vida de pura contemplação não será doravante, aos olhos
do trabalhador incauto, uma forma lamentável de estúpida auto-suficiência. Se a
Yoga não fosse mais do que uma inocente mania de alguns privilegiados,
solitários retrógrados, o mundo moderno, não logrando proveito dela, a teria
rapidamente relegado ao rol das ciências caducas, e seus últimos vestígios
rapidamente desapareceriam. Se ela fosse apenas uma regalia saborosa, só
para um punhado de anacoretas descarnados, então, esses que manejam a
pena ou um arado, que manobram máquinas ou sufocam no tumulto da bolsa ou
dos armazéns nas docas, afastar-se-iam fatalmente, por não terem muito tempo
a perder e a Índia moderna não tardaria a imitá-los.

Marajá Sahabji previu essa inevitável evolução e fez um esforço hercúleo e


decisivo para salvar a antiga sabedoria, tornando-a útil ao mundo moderno. Esse
grande entusiasmo não pode deixar de marcar com seu cunho seu país de
origem; ele compreendeu que o Ocidente, sendo todo vibrante de atividade, leva
uma vida confortável. A cultura da Yoga, a mais preciosa herança que a Índia
recebeu dos seus sábios antepassados, está prestes a desaparecer. Ele sabe
também que alguns dos poucos solitários que mantêm essa cultura intacta em
longínquos eremitérios, estão no caminho de rápida desaparição, e com eles os
segredos da Yoga, se alguns homens, tais como ele, não descerem das alturas
rarefeitas, para vir respirar o ar febril das cidades modernas.

Seu esforço será apenas uma quimera. Tal como ele é, desperta admiração. Em
nossos dias, o túmulo de Maomé está iluminado com luz elétrica, o camelo foi
expulso de seu domínio milenar pelo luxuoso automóvel. Como então conceber
que a Índia escape a essa evolução?

Este vasto país, despertado de sua letargia secular pelo domínio de uma
civilização diametralmente oposta, deve acabar por descerrar os olhos. Os
ingleses fizeram mais do que transformar em terras férteis os desertos de areia,
abrir canais, construir represas favorecendo a agricultura, regularizar o curso das
águas e treinar nas fronteiras as tropas de elite, assegurando a paz e a
prosperidade. Fizeram muito mais, pois sopraram no país uma brisa salutar que
lhe trouxe idéias racionais e construtivas.

O destino colocou a Índia aos pés dos brancos vindos do longínquo Ocidente,
que não fizeram grande esforço para conquistá-la.

— Mas, com que fim?

Talvez a Providência, unindo a antiga sabedoria asiática à civilização ocidental,


faça nascer um dia uma nova forma de sociedade que, substituindo um passado
obsoleto, dará ventura às gerações futuras? Quem sabe?

Mas já é tempo de voltar. Levanto a cabeça e digo alguma coisa ao meu


companheiro, que não parece me ouvir; seu olhar parado continua fixo no
espelho das águas, onde vejo se refletir o último raio do sol. O enorme disco em
brasa desce rapidamente no horizonte; o silêncio se apodera da natureza, que
parece dormitar, indiferente à beleza desse espetáculo; minha alma se
abandona no apaziguamento universal. Finalmente, ele se levanta e
acompanha-me em silêncio a Dayalbagh sob a abóbada resplandecente de
estrelas.

* * *

O Marajá Sahabji resolve deixar Dayalbagh para se retirar, para um merecido


repouso, a uma das Províncias da Índia Central. Interpreto o acontecimento
como sendo o sinal do destino para nossa despedida, e tomo a liberdade de
acompanhá-lo até Tamarni, uma bifurcação onde nossos caminhos vão
forçosamente, se separar.

Chegamos à estação de Agra a uma hora da madrugada. Vinte dos seus


discípulos acompanham o mestre que, esperando o trem, está sentado entre os
fiéis, enquanto eu percorro o cais meio obscuro.

Refleti o dia todo sobre os efeitos da minha estadia em Dayalbagh e sou forçado
a constatar, com pesar, que nenhuma experiência notável, nenhuma visão que
elevasse a alma, ou ajudasse a penetrar o sentido real da vida, me foi concedida.
Esperei uma revelação, mesmo que fosse breve, mas que me permitisse seguir
a via da Yoga à luz da razão, e não nas pegadas da fé cega. Essa graça, no
entanto, não me foi reservada, talvez por que tenha pedido demais? ou não
mereci... não sei.

De quando em vez volto para perto da figura sentada no círculo dos seus íntimos.
Também estou fascinado pelo poder magnético desse homem formidável, que
realizou uma curiosa mescla com o sentido prático do americano, o amor pelo
fair play do inglês e o espírito contemplativo e devoto do hindu. É uma classe de
homem completo, que não se encontra mais, infelizmente, no mundo moderno;
mais de cem mil homens lhe confiaram a conduta de suas vidas; não obstante
ele continua modesto, humildemente sentado entre os seus discípulos, sem a
menor sombra de orgulho.

O trem, finalmente, entra na estação. Marajá Sahabji toma lugar no


compartimento reservado, enquanto nós nos instalamos nos outros vagões da
melhor forma possível. Acomodo-me para dormir e em breve perco a noção de
tudo que me cerca, até a manhã seguinte. Desperto com a garganta
horrivelmente seca. Em cada estação, os discípulos que moram na região
apressam-se em homenagear o mestre; suponho que eles foram avisados da
sua passagem, pois se diz na Índia que um só contacto com o mestre é fecundo
em benefícios materiais e espirituais.
Solicito e obtenho a permissão de passar as últimas três horas no seu
compartimento.

Elas resumem em uma longa entrevista sobre a situação política e econômica


do mundo, especialmente da Europa, o porvir da Índia em geral, e da sua
doutrina em particular. Concluindo, ele me fala com seu tom quente da voz:

— Acredite-me, eu não me sinto limitado pelas fronteiras do meu país; sou


cosmopolita e considero todos os homens meus irmãos.

Tanta simplicidade e tanta franqueza comovem; aliás é assim em todas as suas


asserções que vão direto ao alvo! Cada uma das suas sentenças vale ouro e a
coragem das suas convicções causa admiração. Conversar com ele, ouvir suas
opiniões, são coisas das quais nunca se pode cansar. Em cada momento surge
uma idéia nova, um ponto de vista inesperado, inédito.

O sol já está tórrido; levanto as cortinas de madeira, essas curiosas persianas


dos trens indianos, que me fazem pensar em nossas venezianas metálicas, e
ponho o ventilador em funcionamento, mas a quentura dessa manhã abrasadora
é tal que não sinto o menor alívio.

Marajá Sahabji, percebendo meu mal-estar, apanha algumas laranjas de uma


das malas.

— Aceita partilhá-las comigo? Elas lhe matarão a sede. E começando a


descascar uma delas, acrescenta:

— O senhor tem toda a razão de ponderar, antes de tomar uma decisão na


escolha de um mestre. O ceticismo é necessário, no entanto, não se esqueça de
que um mestre é indispensável para guiá-lo na senda espiritual. Não descanse
enquanto não o encontrar; quando o senhor tiver escolhido, então lhe dê sua
inteira confiança.

* * *

Ouve-se um silvo estridente e alguém grita: “Timarni!”

O trem parou. O Marajá Sahabji vai descer. Ocorre-me então uma idéia que me
faz esquecer minha reserva, todo meu orgulho de europeu, quebrar meu
ceticismo inveterado e meu gênio anti-religioso... Rápido, antes que os
discípulos apareçam e apoderem-se dele:

— Será um favor Vossa Santidade me conceder sua bênção.

O mestre me olha com seu bom e franco sorriso, e dando pancadinhas no meu
ombro, responde:

— Mas você já a tem, meu filho!


Volto ao meu compartimento. O trem se põe a correr novamente, através dos
campos amarelados, donde os animais, em pequenos grupos, tiram sua magra
ração. Meus olhos vêem sem enxergar, meus pensamentos voltam
obstinadamente ao homem que acabo de deixar, que amo e admiro porque,
prático e inspirado, soube aliar à serenidade da Yoga a encantadora cortesia de
um perfeito cavalheiro.
14
No quartel-general
do Messias parse

Embora seja grande a distância entre Agra e Násique e o tempo que corre me
obrigue sempre a acelerar os passos, eis-me de novo no caminho que, pela
segunda vez, me leva a Meher Baba, o santo parse que se batizou a si mesmo
o Novo Messias.

Não me entusiasma muito fazer essa viagem. A serpente da dúvida, que gelou
meu espírito, não me deixa largar a idéia de que essa visita será tempo perdido,
pois, por muito bom homem que seja, Meher tem muito estranhas ilusões a
respeito da importância da sua missão.

Durante minhas voltas, por acaso, tive a oportunidade de averiguar essas


supostas curas milagrosas que seus devotos lhe atribuem. Uma delas, era um
caso de apendicite; segundo os boatos, a simples fé do doente em Meher o
curou, mas o médico que o tratara não diagnosticou nada, além de uma forte
indigestão! Num outro caso, um velho foi curado, em algumas horas, de uma
porção de doenças das quais se queixava, mas as informações tomadas
revelaram, apenas, um edema de tornozelo!

O menos que se pode dizer é que os discípulos haviam exagerado um pouco os


maravilhosos poderes do mestre e, mesmo assim, compreende-se tal exagero,
tomando em consideração o país onde a fábula grosseira encontra mais
facilmente crédito do que um fato concreto e comprovado. Como, nessas
condições, acreditar em promessas feitas de ser testemunha dos seus milagres?
Porém, como também da minha parte havia prometido passar um mês em sua
companhia, julgo que não devo faltar à palavra. É nesse estado de espírito que
tomo o trem para Násique porque não quero ser acusado de não lhe dar
oportunidade de mostrar seus alegados poderes.

* * *

Num dos modernos edifícios, no subúrbio de Násique, Meher instalou seu


quartel-general, cercado, pelos menos, de uns quarenta discípulos sorridentes e
atenciosos como sempre.
— A que ponto chegou o senhor? Pergunta-me logo o Messias, quando me
apresento para cumprimentá-lo.

Sinto-me abatido e cansado da viagem e ele toma a minha palidez como a


consequência de meditações ininterruptas. Respondo, mordaz:

— Penso em meia dúzia ou mais de messias que encontrei nas Índias, desde
que o deixei.

Meher Baba não parece absolutamente surpreso e seus dedos ágeis já correm
pelo alfabeto:

— Mas como explica o senhor esse fenômeno? Pergunto inocentemente.

Sua testa se enruga ligeiramente mas continua sorrindo, dando-se ares de


superioridade:

— Se eles são honestos, estão enganados. Se eles são desonestos, abusam


dos outros; esses santos homens fazem uma idéia muito exagerada das
perfeições possuídas e se deixam dominar pelo orgulho. Para aqueles que não
tiveram um mestre que pudesse guiá-los na senda, é uma consequência triste e
inevitável, tornando-se um ponto crítico na vida do Yogue, dificílimo de superar.
Isso acontece frequentemente, quando eles julgam atingir algo mais, e pensam
ter chegado ao fim: daí a se convencerem que são messias é apenas um passo!

— Uma excelente e lógica explicação. Infelizmente já ouvi falar a mesma coisa


dos outros santos homens! Cada qual tem a pretensão ao título de messias,
afirmando ter chegado à perfeição e, naturalmente, achando imperfeitos seus
concorrentes, difamam-nos!

— Não se preocupe com isso! Essa gente me serve sem querer. Eu sei quem
sou e, quando o tempo vier para anunciar minha missão perante a Humanidade,
o mundo também saberá. Percebo que será inútil insistir. Após algumas
banalidades de cortesia, Meher Baba termina a entrevista, despedindo-me sem
mais nem menos.

Instalo-me num dos bangalôs situados a dois ou três minutos de sua sede. Tomo
a decisão de afastar todas as minhas prevenções e aceitar, durante as semanas
que se vão seguir, os acontecimentos que possam surgir, sem o menor
preconceito. Irei ver Meher sem qualquer pensamento de hostilidade e sem
minha desconfiança habitual; ficarei apenas na expectativa.

Junto-me diariamente ao séquito dos seus fiéis; no entanto, observo


atentamente seu modo de viver e seu estado de alma, e indago sempre a origem
de suas relações com Meher. O messias parse agracia-me com sua atenção
diariamente. Conversamos sobre muitas coisas, ele me responde às perguntas
com muita amabilidade, sem todavia fazer alusão às promessas feitas em
Ahmednagar. Teria esquecido? Não farei nada para lhe refrescar a memória.
Entretanto, a chuva torrencial de perguntas desabava sobre ele e seus
discípulos, tanto por curiosidade de jornalista, quanto pelo sincero desejo de ver
minhas suposições confirmadas ou desmentidas. Pelo menos, minhas perguntas
obtiveram algum resultado. Os discípulos consentiram-me a leitura de um diário
secreto, escrito por ordem de Meher. Suas páginas contêm o histórico dos
principais acontecimentos da vida do mestre, um resumo dos seus
ensinamentos, profecias, ditos memoráveis e mensagens, colhidos dia após dia,
pelos discípulos, durante alguns anos. Compõe-se de cerca de duas mil páginas,
escritas com letra miúda e redigidas quase todas em inglês. Embora fossem
concebidas no espírito da fé cega, nem por isso deixam de revelar algumas notas
preciosas sobre o caráter do Meher. A sinceridade dessas páginas, as quais
transmitem fielmente os pormenores da vida diária, para um leitor indiferente
parecerão banais, mas para mim representam um tesouro sem par! Dois
discípulos, encarregados da sua redação, são jovens e sem nenhuma
experiência da vida, além do círculo estreito dos seus afazeres. Levados pela
ingenuidade, e cegos pela fé em Meher, chegaram a registrar, sem
discernimento, fatos que não são exatamente a favor do mestre. Por que relatam
eles, por exemplo, que quando Meher ia tomar um trem para Mutra deu uma
bofetada tão violenta num discípulo que o pobre rapaz foi obrigado a recorrer
aos cuidados médicos? E eles acrescentam, candidamente, que o Messias,
quando corrige assim qualquer discípulo, na mesma hora, o redime dos seus
pecados! Um outro incidente não é menos engraçado: um belo dia, um dos seus
discípulos faltou à reunião; Meher mandou uma patrulha à sua procura e esta
voltou sem descobrir o rapaz. Finalmente, o moço se apresentou sozinho,
desculpando sua falta, dizendo haver sofrido várias noites de insônia e ter
adormecido, inesperadamente, na casa vizinha do Meher. Assim um mestre, que
se diz nada menos do que ser admitido no conselho dos deuses, e que pretende
desvendar o futuro da Humanidade, perde um discípulo e não é capaz de
localizá-lo na casa pegada à sua!

Há, portanto, nessas memórias, um material bastante farto para alimentar


minhas dúvidas crescentes. Sem querer, também descubro nessas páginas, as
provas de que Meher Baba não é infalível. Possui um gênio versátil, e um
egoísmo que exige completa obediência da parte de seus estupefatos discípulos.
Quanto às suas profecias, estou à altura de apreciá-las no seu próprio valor, pois
frequentemente não se realizam!

Na ocasião de nosso primeiro encontro, perto de Ahmednagar, ele vaticinou uma


próxima guerra mundial; recusou-se porém a fixar uma data, fazendo questão de
acrescentar que a conhecia. Agora estou descobrindo, nesse jornal, que ele já
fez a mesma profecia para seus discípulos, e não somente uma vez, mas várias
vezes. Em cada momento tornava a adiar o acontecimento, pois a data indicada
passara sem nada ocorrer; quando a tempestade parecia desabar na Ásia, então
ele situava a guerra na Ásia; no ano seguinte, o horizonte negro cobria a Europa,
ele, esquecendo o fracasso da profecia do ano passado, dizia, na Europa é que
vai rebentar.

Agora compreendo sua prudência em Ahmednagar!... Assim, não deixei de


comentar essa série de derrotas com um discípulo, que parecia inteligente.
Respondeu-me com toda a ingenuidade: “Pois não, as profecias do mestre
podem parecer inexatas, mas também pode tratar-se de uma guerra econômica!”

No entanto, sejamos justos. Ao voltar as últimas páginas desse surpreendente


diário, apesar de às vezes sua leitura provocar-me um riso desenfreado,
confesso que também achei pensamentos de alta elevação moral e discursos
bastante edificantes, e que Meher em assunto de religião é indubitavelmente um
gênio! Se um dia ele chegar a realizar alguma coisa, será inegavelmente devido
a essa qualidade genial. Porém, não olvido também um dos seus ditos, que
talvez já tenha citado: “O dom de guiar os outros no caminho da virtude não é
uma prova de santidade, nem marca de sabedoria.”

* * *

É preferível guardar um discreto silêncio sobre o resto de minha permanência


ali.

Se realmente tenho o privilégio de viver na companhia de um libertador do


mundo e redentor da humanidade, confesso que pouca coisa há que me faça
perceber minha boa fortuna. Será porque tenho mais interesse pelo que vejo
com meus próprios olhos do que pelas lendas que me contam ou por fatos
inverificáveis? Passemos. Não quero entrar aqui em pormenores das criancices,
das predições falhadas, dos exemplos de obediência passiva dos discípulos às
ordens mais absurdas do mestre, das sentenças apocalípticas que, em vez de
espalhar luz, somente aumentam a confusão, perturbando a mente.

Nos últimos dias tenho a impressão de que Meher Baba está me evitando.
Quando consigo aproximar-me dele, sempre tem outra coisa mais urgente a
fazer, aproveitando a primeira oportunidade para se afastar. Sinto que minha
posição é falsa e, provavelmente, o Meher deve sentir meu constrangimento.
Estou sempre esperando os milagres prometidos, ou melhor, não os espero
mais.

Durante minha estada, não se passou nada de extraordinário e nem sombra de


milagre! Reclamá-los seria, evidentemente, tempo perdido. No entanto, ao
escoar-se um mês, anuncio minha próxima partida e reclamo-lhe o cumprimento
de sua promessa. Meher, sem se deixar perturbar, simplesmente adia por mais
alguns meses os prometidos milagres, e considera o assunto encerrado!

Ou muito me engano, ou de fato minha presença o põe nervoso, irritado; isso


não se percebe, é claro, mas sente-se. Contudo, não tento mais entrar em
discussão, pois sei que perderia meu tempo, entrando num combate desigual
com seu espírito fugidio e tão profundamente oriental.

Mesmo no momento da despedida, ao cumprimentá-lo com toda a cordialidade


que me é possível, ele ainda me fala da sua missão redentora, como de uma
questão já decidida, que não se discute mais. Teve até a audácia de frisar que,
quando for viajar para a Europa, a fim de espalhar seu evangelho, vai procurar-
me para, nessa ocasião, prosseguirmos viagem juntos! Ele pode ir ao Ocidente
quando quiser, e de fato foi, mas quanto ao que me toca, sua profecia não se
realizará jamais!

Eis aí todo o resultado de minha teimosia tola em não faltar à palavra! Ele me
prometeu delícias de êxtases e deixou-me exasperado.

* * *

Que explicação carece tão estranha vida e não menos singular conduta? Já
trataram esse homem de impostor, mas também, isso não explica tudo e seria
injusto. Por minha parte prefiro manter-me na opinião do juiz Khandalavalla, que
conheceu Meher desde a infância e o considera um homem honesto, porém
desajustado. A explicação vale quanto vale, mas merece ser tomada em
consideração.

Uma breve análise de seu caráter ajudaria talvez a compreendê-lo melhor. Por
ocasião do nosso primeiro encontro em Ahmednagar, fiquei impressionado pela
serenidade e extrema meiguice; os dias passados em Násique, revelaram-me, à
luz da vida diária, que essa calma não era senão fraqueza e a meiguice um
indício de saúde precária. É um homem indeciso, influenciável e particularmente
emotivo. Sua paixão infantil, mas muito oriental, por tudo o que é teatral e
espetacular, sua tendência a dramatizar, indicam que ele vive principalmente
para a platéia. É muito compenetrado do seu papel de redentor, mas quem vê
nele apenas um comediante, também não se engana totalmente.

Conforme minha própria teoria, essa extraordinária mulher-faquir teria realmente


provocado distúrbio na sua mente, um transtorno geral, cujo resultado se
manifestou em desequilíbrio profundo, e que nem ele nem os que o cercam
jamais compreenderam. Minha própria experiência com essa fantástica anciã,
rapidamente me convenceu que, de fato, ela possuía um poder oculto
suficientemente capaz de fazer recuar de espanto os maiores entusiastas do
racionalismo.

Não sei que idéia teve a Hazrat Babajan de mudar o curso des sa jovem vida,
para lançá-la em direção desconhecida, e cujos resultados veremos brevemente
se desenrolarem: um acontecimento extraordinário ou um fracasso ridículo!
Estou certo, porém, de que ela era perfeitamente capaz de afundar o chão sob
seus pés, e ainda não ultrapassar os limites dos seus poderes!
Seu beijo foi uma transmissão dos seus próprios poderes psíquicos. O choque
cerebral que resultou esse transtorno foi singular. “Meu espírito — disse-me
Meher um dia — recebeu um choque tão violento que repercutiu em todo o corpo
em vibrações fortíssimas e ressentidas por muito tempo.” Evidentemente, ele
não estava preparado para essa iniciação, ignorando tudo sobre os métodos e
disciplina da Yoga. “Eu era amigo de turma de Baba — disse-me seu discípulo
Abdullah — e jamais o tinha visto interessar-se particularmente por assuntos
religiosos ou filosóficos; gostando muito mais de jogos e esportes, tomava parte
bastante ativa nas competições escolares. Nós todos ficamos muito
surpreendidos com essa súbita conversão.”

Persevero na minha opinião e julgo que Meher saiu dessa experiência


completamente desequilibrado. A melhor prova disso é o estado de meio idiotice
que o beirava da loucura e que o forçará a comportar-se por muito tempo como
um rebotalho humano, deixando-o em completa decadência. Ainda não está
provado, porém, que ele ficou livre do mal. Por minha parte não creio que tenha
voltado ao equilíbrio.

Há indivíduos nos quais, metaforicamente falando, uma dose de religiosidade ou


êxtase místico, aplicado em excesso, pode agir à maneira de certos
entorpecentes. Acho que Meher Baba ficou intoxicado e o desequilíbrio
resultante dessa aventura da juventude ainda nele persiste. Não vejo outra
explicação que possa justificar sua conduta tão fantasista.

Ele apresenta todas as características do místico: amenidade, meiguice,


devoção, mas também todos os sintomas da doença mental conhecida pelo
nome de paranóia. Como todo paranóico, dá uma atenção exagerada a tudo que
nele se passa; esses sintomas também se encontram nos grandes místicos;
alguns, quando voltam do êxtase, estão convencidos de que algo de enorme
lhes aconteceu, e daí nada lhes falta para imaginarem ter atingido a realização
espiritual ou serem eleitos para altas missões, desejando logo fundar uma
religião, ou uma fraternidade, a cuja testa começam, naturalmente, por se
colocarem. Para alguns audaciosos, a fase final é a autodeificação, crentes de
serem messias, destinados a salvar a Humanidade.

Observei na Índia a existência de homens que andam ansiosos por alcançar o


estado de êxtase prometido aos adeptos da Yoga, porém que não querem arcar
com o ônus do treinamento e disciplina que ela pede. Assim, recorrem aos
entorpecentes, tais como ópio, haxixe ou morfina, que lhes provocam uma
imitação desse estado de consciência transcendental. Observei o teor da vida e
a reação desses adeptos da droga e constatei em todos eles o mesmo
fenômeno: exageram tudo de maneira fantástica, desde o menor incidente que
lhes ocorre e, geralmente, mentem relatando os fatos, convencidos de dizer a
verdade.
Isso é o ponto de partida da paranóia, que é uma hipertrofia da consciência
individual, chegando até certo grau de auto-sugestão. Um paranóico arquitetará
um romance, apenas pelo olhar despreocupado de uma mulher, convencido de
seu poder de sedução tão irresistível, que nos perguntamos se ele não é maluco!
Como também é capaz de obedecer, sem resistência, a impulso inesperados,
repentinos, seguidos de ações inexplicáveis, e sempre convencido de seu poder
maravilhoso.

Ora! achei no Meher numerosos sinais do desequilíbrio que se observa nesses


infelizes, mas com uma diferença: ele não cairá jamais no vício, pois a origem
do seu desequilíbrio não foram os entorpecentes, mas uma inocente mania.
Conforme a palavra de Nietzsche o parse é “humano, demais humano”.

Faço uma idéia do que será, quando ele romper o silêncio! Duvido, porém, que
ele se arrisque. Não precisa ser profeta para adivinhar que sua voz, se um dia
se levantar, não ressoará no mundo senão como um sussurro inaudível e
longínquo. Não se faz milagres com a lábia! Que suas profecias se realizem ou
não, pouco importa, quando o profeta não merece confiança! Isso não é uma
questão de profecias realizadas ou não, nem de promessas cumpridas ou não,
quando ele é apenas um lunático, presunçoso cheio de sua pessoa!

Pretende levar uma mensagem à Humanidade, muito bem! Mas, então, tem que
dar um testemunho vivo das suas palavras, senão receio muito que ele não será
ouvido!

Que se pode dizer a respeito dos seus discípulos? O futuro os desapontará?


Pode-se duvidar! A história do Meher é mais uma prova da incurável credulidade
oriental, que é uma falha característica dos hindus, uma falha que lhes vem da
sua religiosidade excessiva, da falta de cultura e da ignorância dos métodos
científicos de discriminação, que nos ocidentais permite distinguir a história da
lenda, um fato concreto, da ficção, e estabelecer a diferença entre a sensibilidade
emocional e a razão pura.

É sempre facílimo, nas Índias, uma pessoa atrair a si um rebanho de discípulos


entusiastas, frequentemente ignorantes, velhacos às vezes, julgando-se
espertos por terem ligado seus destinos aos astros de primeira grandeza, ou
tidos como tais.

Não vou entrar em pormenores, mas é um fato inegável que Meher cometeu
numerosos erros no decorrer da sua jovem vida. Eu também os cometi, mas não
tenho pretensão a Messias!

Ora! seus fiéis, por exemplo, jamais admitirão que ele cometa erros; se lhes
disserem que Meher não sabe o que faz ou o que diz, eles atribuirão sempre
algum sentido oculto às palavras e aos atos do mestre. Acho que eles
continuarão a obedecê-lo cegamente e, talvez, seja melhor para eles, pois se um
dia sua mente despertar desse torpor, ficarão rebeldes. Para mim essa
experiência reforçou ainda mais meu ceticismo, que fiz calar ao chegar aqui. Mas
também há uma certa dose de displicência no fato de esbanjar meu tempo com
tamanha leviandade!

Uma grande esperança percorre o Oriente: a profecia da vinda de um Messias,


em nosso século, faz levantar as cabeças de todo seu povo. Faces morenas dos
hindus, homens baixotes do Tibete, barbas grisalhas do povo da África e olhares
contidos dos Filhos do Céu da China. Na imaginação fecunda e fervorosa desses
homens, os tempos estão chegando. O que seria mais natural para um Meher
do que gozar os benefícios da sua própria proclamação? Essa milagrosa
mudança que nele se efetuou, por que não seria um sinal do destino? E, não
seria também muito natural ver seus discípulos clamarem ao mundo assombrado
a vinda do Messias?! O menos que se pode reprovar são os seus modos por
demais teatrais. Um profeta que se respeita, rompe a tal ponto os ditames da
etiqueta?

Resta saber que forma tomarão, futuramente, as divagações deste santo


espetacular. O tempo terá o cuidado de nos informar devidamente. Entretanto,
tudo isso não exclui o valor inegável dos seus elevados pensamentos e
parábolas sublimes, que me foram comunicadas pela ponta do fino dedo do
Meher. Mas, quando ele desce dos vértices da inspiração, faz, infelizmente, para
falar da sua grandeza e da sua missão divina; pode-se então calçar os sapatos,
o Redentor não é mais do que um pobre homem. 1

1. Meher Baba realmente foi à Europa e ali fundou um culto. Ele continua a pretender que suas
profecias se realizarão, quando romper o silêncio. Esteve várias vezes na Inglaterra e acabou
recrutando discípulos na França, Espanha e na Turquia. Por duas vezes foi à Pérsia;
empreendeu um circuito espetacular através do continente Norte-Americano, seguido por um
séquito entusiástico. Em Hollywood fizeram-lhe uma recepção triunfal. Mary Pickford o recebeu
em sua residência e Tallulah Bankhead testemunhou-lhe um grande interesse. Milhares de
estrelas de cinema e personalidades locais foram-lhe apresentadas na ocasião de uma grande
recepção que lhe fizeram no maior dos hotéis de Hollywood, em que então se hospedou. Um
grande terreno foi adquirido nos Estados Unidos para estabelecer o quartel general ocidental.
15
Um estranho encontro

Sem plano bem definido, percorro novamente o oeste da Índia. Cansado da


fumaça dos trens e das vagarosas carretas de boi, aluguei um automóvel de
turismo e contratei um rapaz hindu, cujos serviços de motorista, criado e
companheiro de viagem muito apreciei.

Rodamos pelas estradas poeirentas, vislumbrando a variedade infinita da


paisagem, descortinando a campina indiana. Ao cair da noite, ao não avistarmos
nenhum lugarejo por perto, meu companheiro acende uma grande fogueira para
afastar as feras. Parece que nessas florestas pululam tigres reais e leopardos, e
a chama da fogueira que acendemos os mantém à distância; quanto aos chacais,
seus urros lúgubres e penetrantes ouvimos vir do fundo da selva. Durante o dia,
no céu esbraseado, os abutres, silenciosamente, fazem rondas assustadoras,
voando baixinho, quase tocando nossas cabeças.

Num bonito entardecer, enquanto rodávamos, levantando atrás de nós uma


grossa nuvem de poeira fulva, cruzamos com um par muito estranho sentado à
beira do caminho. Um dos homens, evidentemente um santo, está com as
pernas cruzadas sentado à sombra de um arbusto, imóvel como uma estátua de
pedra; parece contemplar seu umbigo; o outro é, provavelmente, seu discípulo.
À nossa passagem, o mais velho continua parado, sem demonstrar o mínimo
interesse; pois nenhum traço do seu rosto grave mudou de expressão; de mãos
cruzadas no colo, e os olhos meio cerrados, está perdido em meditação, ainda
que certamente o discípulo nos tenha notado.

Contudo, há alguma coisa estranha que me atrai neste homem, e me obriga a


parar o carro. Resolvo mandar meu companheiro indagar a seu respeito.
Nervoso, observo-o conversar animadamente com o jovem.

À sua volta, soube, entre outros pormenores banais, que de fato são mestre e
discípulo; o mestre chama-se Chandi Das e, segundo informações de seu
discípulo, é um Yogue dotado de faculdades excepcionais; há dois anos eles
deixaram Bengala, seu país natal, percorrendo milhares de milhas de estradas,
em parte a pé, em parte de trem, parando em lugarejos, andando de aldeia em
aldeia.
Ofereço-lhes lugar no carro, o que aceitam; o Yogue, sem perder sua calma
indiferença, e o discípulo, com um clarão de alegria no olhar.

Prosseguimos o caminho e aproximamo-nos da aldeia, onde resolvemos


pernoitar. Na estrada, além do jovem boiadeiro que pastoreava um pequeno
rebanho de vacas esquálidas, não se percebe ninguém. A tarde está no seu
declínio, quando paramos ao lado de um poço para saciar a sede; a água é
duvidosa mas fresca. A aldeia não é atraente, não deve ter mais do que quarenta
ou cinquenta miseráveis casebres formando uma única avenida; os telhados de
palha torcida, as fachadas de barro ressequido, cercas de bambu toscamente
talhadas, dão ao conjunto um aspecto lastimável. Vejo alguns moradores
acocorados à sombra das suas pobres moradas; uma velha de seios flácidos
aproxima-se do poço, enche sua moringa, lançando-nos um olhar triste e
profundo para logo após se afastar sem dar uma palavra.

Meu criado faz alguns preparativos para nos servir chá; depois afasta-se em
procura do chefe da aldeia. O Yogue e o discípulo acocorados na poeira
descansam em silêncio; o santo homem conhece algumas palavras de inglês,
porém insuficientes para manter uma conversação, e eu que faço questão da
minha entrevista, conto com meu rapaz indiano para servir-me de intérprete
quando estivermos mais ou menos instalados.

Pouco a pouco um pequeno grupo de homens, mulheres e crianças juntou-se


em volta de nós.

O povo do interior raramente tem oportunidade de ver um ocidental; portanto,


olha-me com tanta curiosidade como se nunca tivesse visto um estrangeiro. É
muito interessante conversar com eles, são tão naturais e possuem idéias sobre
a vida tão ingênuas e inesperadas! Para as crianças devo ser um bicho-papão,
mas com alguns anás conquisto-as facilmente; elas se interessam e demonstram
grande admiração por seu relógio despertador, duvidando dos seus próprios
ouvidos quando faço bater horas para as divertir.

Uma mulher se aproxima e no meio da rua prosterna-se diante do Yogue cujos


pés descalços toca com os dedos e leva-os à testa em sinal de profunda
veneração e respeito. Meu criado volta acompanhado do chefe da aldeia, e tendo
aprontado o chá, convida-nos para a pequena refeição. Muito embora graduado
no curso secundário, ele não se incomoda de ser doméstico, carregador, chofer
ou interprete, pois seu interesse está em tudo que vem do Ocidente e nutre
esperanças de que um dia vou levá-lo comigo à Europa. De minha parte trato-o
com toda a camaradagem e como merecem sua comprovada inteligência e boa
índole.

Nesse ínterim alguém se apoderou do Yogue e seu discípulo para hospedá-los.


Assim, tiro minhas conclusões de que os camponeses são mais caridosos e
hospitaleiros do que os habitantes das grandes aglomerações indianas.
No caminho para casa do chefe, vejo o sol deitar-se rapidamente atrás das
colinas, no céu cor de púrpura. Paramos ante uma casinha de aspecto um pouco
mais cuidado do que as outras; ao entrar, acho de meu dever expressar algumas
palavras de gratidão ao dono da casa, pela hospedagem.

— Sua visita me honra — responde-me com toda simplicidade.

A sombra de um breve crepúsculo envolve a planície; ouve-se o rebanho entrar


lentamente nos estábulos vizinhos. Mando meu criado à procura do Yogue a fim
de obter uma audiência; volta sem demora e me conduz a uma humilde
choupana. Entro num recinto quadrado de teto baixo e chão de terra batida. Além
de alguns vasos de barro em volta da lareira, não percebo nenhum mobiliário;
só um pau de bambu fixo na parede à guisa de armário, a julgar pelas vestes
que aí estão penduradas e um cântaro de cobre amarelo que brilha num canto
da sala escura apenas iluminada por uma pequena lamparina de primitivo
aspecto. É um desses pobres lares indianos sem conforto e sem alegria.

O discípulo me acolhe com palavras pronunciadas em péssimo inglês. O mestre


está ausente; foi chamado à cabeceira de um moribundo mas não deve demorar-
se. Passados alguns minutos de espera, vejo seu magro perfil desenhar-se no
quadro da porta. Seu rosto grave. Ao perceber-me, junta as palmas das mãos
num gesto que já é tão familiar para mim, e diz algo que meu intérprete traduz:

— Saúdo-o Sahib! Que os deuses o protejam.

Ofereço-lhe uma manta de algodão, que recusa, e acocora-se cruzando as


pernas diretamente no chão. Sentado em sua frente, levo vantagem para
observá-lo; a barba em desalinho o envelhece; no entanto, não lhe dou mais do
que cinquenta anos; os cabelos em mechas embaraçadas descem-lhe na nuca;
a boca séria parece não ter o hábito de sorrir. O que me impressiona mais e já
me chamou atenção na estrada, é o brilho estranho dos seus olhos negros; esse
olhar não é deste mundo, e sinto que ele vai me perseguir durante dias.

— Tem viajado muito? — pergunta-me tranquilo.

Faço sinal que sim.

— Qual é sua opinião sobre o mestre Mahasaya?

Fico deveras surpreendido. Como pode ele saber que estive em Bengala e vi
Mahasaya em Calcutá? Tão grande é minha surpresa que só lhe respondo
depois de me recompor um pouco.

— Ele conquistou meu coração, em verdade, mas por que o senhor mo


pergunta?

Parece não ter ouvido, o que me obriga romper outra vez o silêncio:
— Sinto vontade de revê-lo quando voltar a Calcutá; pelo que vejo, o senhor o
conhece; se quiser transmitir-lhe-ei saudações suas.

— Não, o senhor não vai rever mais Mahasaya. Neste momento Yama, o deus
da morte, o chamou para si.

Caímos em prolongado silêncio. Depois atrevo-me a falar:

— Tenho um grande interesse pela doutrina e vida dos Yogues. Poderia o senhor
dizer-me como se tornou um Yogue e que sabedoria adquiriu?

Chandi Das não é expansivo:

— O passado é um monte de cinzas. Não pretendo mergulhar nele para retirar


os fatos que se foram. Não vivo no passado nem no futuro; nas profundezas do
espírito humano, essas coisas não são mais do que sombras. O senhor queria
conhecer a sabedoria que proporcionou a Yoga? Ei-la!

— Mas nós, que vivemos medindo o tempo, como poderemos deixar de


considerá-lo?

— O tempo? Tem o senhor tanta certeza de que existe algo com esse nome?

Fico confuso. Será que este homem possui realmente os dons que lhe atribui o
discípulo?

Arrisco objetar:

— Se o tempo não existe, o passado e o futuro deveriam então estar sempre


presentes. A experiência do mundo, porém, nos convence do contrário...

— Bem. Quer dizer o senhor que é a sua experiência e a experiência do mundo


que ensinam o contrário?

— Sem dúvida, mas francamente, o senhor pretende dizer que a sua experiência
é diferente?

— Sim, esta é a verdade. — É a estranha resposta que vem.

— Devo concluir, então, que o futuro representa o presente para o senhor?

— Eu vivo no eterno. Não procuro saber dos fatos que o porvir possa me
proporcionar.

— Mas, para outrem, o senhor pode saber?

— Se eu quiser, sim.

Torno a expressar-me mais claramente.

— Pode o senhor, realmente, prever os acontecimentos futuros?


— Em parte, pois a vida dos homens não está a tal ponto determinada que os
menores detalhes lhe sejam ordenados de antemão.

— Contudo, o senhor pode desvendar, em parte, meu futuro e dizer-mo?

— Faz tanta questão de saber? Se Deus o cobriu com o véu, acredita que isso
seja sem razão?

O que posso dizer depois disso? Súbito, vem-me uma inspiração:

— Graves problemas que obsedam; é para esclarecê-los que venho pedir-lhe


um pouco de luz. Pode ser que isso que o senhor vai me revelar esclareça um
pouco meu caminho ou me faça saber quão inútil é minha busca.

O Yogue fixa-me com seus olhos negros e brilhantes, que me fascinam;


impressionam-me seu ar de profunda dignidade e a magna sabedoria que
iluminam essa pobre cabana perdida no meio da selva. Do alto da parede um
lagarto nos observa, atento; parece zombar de nós como um pequeno demônio
malicioso, abrindo a boca num sorriso.

Chandi Das, falou, afinal:

— Não sou um grande erudito, ornado das jóias da sabedoria vã. Volte à cidade
pela qual entrou na Índia e antes da próxima lua seu desejo será plenamente
satisfeito.

— O senhor quer dizer que eu devo voltar a Bombaim?

— Sim.

Não compreendo. Bombaim, essa cidade cuja metade é ocidental, que haverá
nela para mim?

— Mas não achei ali nada que pudesse guiar minha busca — respondo,
perplexo.

— No entanto, é lá que o senhor encontrará sua via. Vá quanto antes, não perca
tempo, parta amanhã mesmo!

— Isso é tudo que o senhor tem a dizer-me?

— Se o senhor faz tanta questão, posso dizer-lhe mais...

Calou-se novamente, e seu olhar, como água estagnada, fica sem expressão.
Depois prossegue:

— O senhor deixará a Índia e voltará ao Ocidente antes do próximo equinócio.


No momento em que deixar nossa terra, cairá gravemente doente, o espírito
lutará em seu corpo, depauperado; contudo, a hora da sua libertação ainda não
chegou. E então a intenção oculta do destino lhe será revelada, porque o
mandará de volta a Ariavarta (Índia). Um sábio o está esperando, os liames
antiquíssimos que vos prendiam tornarão a atar-se e o senhor nos visitará três
vezes e, finalmente, voltará a viver entre nós. 1
1. A primeira parte da profecia se realizou ulteriormente.

Calou-se. Um fraco tremor parece agitar suas pálpebras; fixando-me novamente,


diz:

— Ouviu? É tudo o que havia a lhe dizer.

O resto não vale a pena transmitir. Chandi Das é refratário a toda conversa que
diz respeito à sua pessoa, de modo que não sei o que pensar dessas estranhas
profecias. Sinto, porém, que há ainda um mar de coisas que ele não quis me
revelar.

Achei graça quando, no decorrer da conversa, o discípulo me perguntou com o


ar mais sério do mundo, se os Yogues da Inglaterra eram capazes de dizer tanto
quanto o mestre dizia.

Com grande esforço, consegui convencê-lo de que não há Yogues na Inglaterra!

Assim passamos a noite, cortada por longos intervalos de silêncio. Quando o


Yogue nos deu a entender que a entrevista estava no fim, o pobre camponês
aparece e convida-nos a partilhar de sua modesta refeição. Agradeço-lhe,
dizendo que temos no carro tudo o que precisamos, e vamos cuidar do jantar na
casa do chefe da aldeia, que nos ofereceu um quarto para dormir, mas o bom
homem responde que nunca se permitiria faltar ao dever da hospitalidade e
continua insistindo tanto, que por fim torna-se impossível recusar. Satisfeito,
coloca diante de nós, no chão, um prato de cereais fritos na caçarola.

Quedo a observar o céu pelo orifício gradeado servindo de janela. A opala


crescente da lua projeta uma pálida luz através do orifício, enquanto eu medito
no caráter superior e na bondade, tão frequentes nestes camponeses simples e
analfabetos. Nem a educação colegial nem a sagacidade profissional podem
compensar a degeneração de caráter, tão frequente nos habitantes das cidades.

Enquanto me despeço de Chandi Das e seu discípulo, o homem desprende das


vigas do teto a lamparina e acompanha-nos até à rua; aí, levanta a mão à testa,
seguindo-nos com o olhar até desaparecermos. Seguimos o caminho à luz de
uma tocha que meu criado teve o cuidado de acender.

Durmo mal, ponho-me a pensar no estranho encontro e nas não menos


estranhas palavras do Yogue misterioso, perturbado pelos urros das hienas e
latidos contínuos de um cão, uivando à lua.

* * *
Embora não seguindo estritamente os conselhos de Chandi Das, mudo o
itinerário e volto a Bombaim. Apenas instalado, caio doente. Exausto, limitado às
quatro paredes do quarto do hotel, o espírito luta no corpo enfraquecido,
combatendo o desânimo que se apodera de mim.

Decididamente, estou farto da Índia! Percorri, em condições precárias, milhares


de milhas para vir encalhar finalmente neste bairro europeu de cidade turbulenta!
Eis todo o resultado do meu esforço! É certo que nos bares e nos bailes, jogando
bridge ou bebendo uísque com soda, nunca acharia os sábios da Índia que
procurava. O tempo que passei nos bairros das cidades indianas forçosamente
favoreceu a busca, mas ao preço de minha saúde. Quanto às minhas voltas
pelas montanhas ou aldeias da selva, pagueia-as com má alimentação e água
duvidosa. Durante essa corrida sem tréguas, de noites de insônia e dias
escaldantes dos trópicos, esgotei-me, e agora o resultado é tal que arrasto meu
corpo como um fardo. Quanto tempo poderei aguentar semelhante vida? Minhas
pálpebras chegam a doer da insônia que, desde o começo da minha viagem, se
apoderou de mim como um polvo com seus tentáculos horripilantes. A obrigação
de viver entre o povo de outra raça e a ficar com a balança sempre igual entre o
sentido aguçado de espírito crítico e a receptividade alerta, sem a qual não se
pode passar neste país, que se esquiva continuamente, acabaram com os meus
nervos. Fui forçado a aprender como fazer distinção entre os sábios autênticos
e os loucos, que confundem suas fantasias com a inspiração divina, entre os
místicos comprovados e os traficantes do mistério, entre Yogues e charlatões,
magos negros e santos. Tudo isso em tempo relativamente curto, pois não posso
passar minha vida numa simples reportagem!

Sinto-me mal, fisicamente; meu moral, abando, também não é dos melhores.
Tenho impressão de fracasso. Evidentemente, não posso negar que encontrei
homens de alto valor espiritual, homens que faziam coisas estupendas;
entretanto, não encontrei o super-homem que estava buscando, um Mestre que
satisfizesse o apelo, tanto do meu intelecto quanto do meu coração. Numerosos
discípulos entusiastas tentaram em vão atrair-me à órbita dos seus mestres.
Compreendo-os perfeitamente; como na mocidade se julga o primeiro namoro,
um amor de toda a vida, assim esses excelentes jovens tomaram suas primeiras
experiências espirituais por um achado final. Então, para que teimar em ser um
depositário passivo de uma doutrina estranha, quando não posso ter nenhuma
revelação pessoal, viva, original, uma iluminação que seja minha e não luz
emprestada! Mas afinal, quem sou eu, pobre escriba, em face dessas grandiosas
aspirações, senão um ambicioso desenfreado! Que direito teria eu de conquistar
tão grande favor do destino?! De todos os lados só vejo motivos de desânimo...

Sentindo-me um pouco melhor, desço ao refeitório e tomo um lugar na mesa dos


hóspedes, ao lado de um oficial do exército, que me fala de sua mulher doente,
da convalescença prolongada, da sua licença anulada, e me desanima ainda
mais. Ao terminar o almoço, acendendo um grosso charuto, acrescenta:
— Um jogo, a vida... não?

— Sim, um tanto — concordo laconicamente.

Meia hora depois, num táxi, estou a correr na Estrada Hornby através de Hornby
Road, o bairro das agências de navegação. Reservo minha passagem com
sentimento de resignação. Acho que partir o mais rápido possível é o que tenho
de melhor a fazer. Volto ao meu quarto de hotel, sem mais me preocupar de
olhar as lojas, palácios, templos e imponentes edifícios que compõem Bombaim
e me entrego à minha ruminação.

A noite cai. O garçom serve na mesa um delicioso curry, mas não tenho vontade
de comer; um refresco gelado me satisfaz. Chamo um táxi, faço-o parar diante
de um desses estabelecimentos profusamente iluminados (um cine-teatro), cuja
posse a Índia deve ao Ocidente e que esta noite parece oferecer um brinde de
boas-vindas em sua taça de Letes. Não me darei por completamente perdido
enquanto puder obter por uma rupia ou seu equivalente uma macia poltrona em
qualquer cidade do mundo. Gosto de cinemas.

Então e tão logo me sento, vejo inevitavelmente uma esposa alucinada e um


marido infiel no cenário de um luxuoso palácio. O espetáculo me aborrece. Será
que perdi também o gosto pelo cinema? Esse melodrama de paixões não tem
mais o poder de me fazer rir ou chorar. Não se passou ainda a metade do filme,
quando tudo que me rodeia, a sala, a tela, o público, parecem dissipar-se num
mundo irreal, e meus pensamentos tornam a voltar ao assunto que me obseda.

Peregrino sem Deus, percorri, de cidade em cidade, de aldeia em aldeia,


incansável, buscando lugar onde pudesse repousar meu espírito e não o achei.
Para que servia, afinal, ter escrutado a face de tantos homens. Só para ver neles
o reflexo de um pensamento mais sublime que o do meu país? Para que ter
procurado nos seus olhares ardentes a resposta ao enigma que me atormenta?

Subitamente noto uma singular tensão apoderar-se do meu cérebro; os nervos


parecem condensar-se e tenho a sensação de que o ar que me envolve está
vibrando carregado de eletricidade; estranha metamorfose sinto operar-se em
mim. Que voz é esta que se levanta, forçando minha atenção? Donde vem?

— A vida nada mais é que uma fita de cinema, uma ilusão traiçoeira que se
desenrola sucessivamente do berço ao túmulo. Onde estão as lembranças do
passado? Pudeste tu retê-las? Onde estão as imagens do futuro? Acreditas
poder invocá-las? Em vez de te esforçares no caminho da Verdade, tu estás
sentado aqui, estupidamente, a perder tempo com uma imagem ainda mais
enganadora que a própria vida, com uma história imaginária — uma ilusão dentro
de uma grande ilusão!

Sim; decididamente estou farto desses dramalhões de amor humano. Prefiro


sair, respirar um pouco o ar fresco da noite.
Vagueio sem rumo pelas ruas, sob o suave luar crescente que parece estar tão
perto do homem, nas Índias. Na esquina da rua, um mendigo me aborda. Um
ruído indefinível saía da sua boca à guisa de palavras, tentando fazer-me
compreender; levanto os olhos e recuo horrorizado: seu rosto, desfigurado por
terrível doença, deixa aparecer a carne viva até os ossos. Mas a piedade cede
lugar à repulsa e ponho todas as moedas que levo no bolso, na mão estendida
do leproso. Vou seguindo pelas ribanceiras, à procura de um canto solitário para
ficar longe dessa multidão colorida que, risonha e alegre, passeia agora, à noite,
pela Back-Bey da cidade. Mirando estrelas, semeadas na cúpula negra, penso
na crise que acabo de sofrer e abandono-me, aos poucos, a uma doce
melancolia...

* * *

Finalmente, faltam alguns dias apenas, e meu navio levantará ferros, navegando
no Mar Arábico em direção à velha Europa. Chega de metafísica. Tudo que havia
a oferecer — tempo, entusiasmo, dinheiro — ofereci, e não me sacrificarei mais
no altar de superstições e de hipóteses inverificáveis à procura do mestre.
Deveras!... talvez pensarei assim a bordo do navio, mas agora, a voz interior me
persegue cruelmente:

— Insensato que és! Este então é o fruto de tuas aspirações e de tantos anos
perdidos? Queres mesmo seguir o caminho traçado, viver uma vida banal,
esquecer tudo que acabas de aprender, e afogar no tumulto do egoísmo e da
sensualidade mundanos, olvidando aquilo que era o melhor em ti?! Porém, toma
cuidado, teu aprendizado da vida foi preparado por terríveis mestres: a solidão
que modelou tua alma e a intensidade do pensamento que fez estalar o verniz
que cobre o homem de sensibilidade comum. Obedeceste ao apelo imperioso
da intuição e agora pensas poder tão facilmente fugir das obrigações de uma tal
vocação? Não, não te iludas! Elas são como algemas presas aos teus pés!

Sozinho, sob o céu imenso pontilhado de estrelas, combato em vão essa voz
impiedosa que acusa de impotência minha fraqueza para lutar contra o
sentimento de angústia que me invade. Mas a voz insonora me responde:

— Estás absolutamente certo de que nenhum desses homens que encontraste


era o mestre que buscavas?

Toda galeria daquelas faces bronzeadas desfilou novamente ante mim: os


prestativos e vivazes homens do norte, os homens plácidos do sul, os nervosos
e emotivos do leste, os Maratas do oeste, compenetrados em silêncio; rostos
amigos ou hostis, loucos ou sábios, complacentes ou malévolos, mas todos eles
igualmente impenetráveis. Uma face, todavia, se destaca das outras; lembro-me
dos seus olhos obstinadamente fixos nos meus. É um semblante calmo de
Esfinge — o do Grande Sábio de Arunachala, Maharichi da Colina Sagrada do
Santo Lume, lá muito longe, no sul. Jamais pude esquecê-lo e frequentemente
sua lembrança refloresceu em mim. Mas em razão das contínuas mudanças
desse caleidoscópio de seres e de coisas, as diversas impressões acumuladas
desde então acabaram por afastar para o último plano as imagens impressas
durante minha breve pousada no seu eremitério. Avalio agora que, de fato, ele
passou na noite tenebrosa da minha vida como um meteoro vibrante de luz, e
sou forçado a reconhecer que nenhum outro ser humano me atraiu tanto quanto
ele. Parecia-me, porém, tão inalcançável, pairando em alturas tão longínquas, e
tão indiferente em saber se vou ou não me tornar seu discípulo!

A voz estranha não deixa de argumentar:

— Indiferente? Estás bem certo disso? Não foi por que tu o deixaste
precipitadamente demais?

— Sim; talvez me tivesse precipitado. Mas, pensei no meu itinerário, poderia agir
de outra maneira?

— Mas há uma coisa que podes fazer: voltar a procurá-lo.

— Voltar? Não iria eu importuná-lo?

— Que importa? Não te preocupes com isso; só a vit6ria final tem valor. Vai,
volta ao Maharichi!

— Não posso, ele mora na outra extremidade da Índia, e estou tão cansado e
abatido para fazer ainda essa viagem; é impossível.

— Que importa também isso? Se queres um mestre não deves poupar esforços!

Sinto-me tão esgotado e tão fraco para querer ainda qualquer coisa! Aliás, já
reservei minha passagem; só faltam três dias para eu deixar a Índia. É tarde
demais, não posso fazer nada, não posso mudar.

— Nunca é tarde demais! Que aconteceu ao teu senso de valores? Dizes que
Maharichi é o homem mais extraordinário que já viste e queres te afastar apenas
o encontraste? Vai, volta depressa!

Sim, responde a mente, mas o corpo se revolta.

A voz silenciosa insiste:

— Não vaciles! Muda as providências tomadas! Tens que voltar a Maharichi!

A voz surge das profundezas de todo meu ser, tal como uma ordem. O que
importa minha lógica, o que importa a revolta do meu corpo exausto? Sinto-me
como criança, sem poder reagir. No momento em que o apelo se torna mais
imperioso, a imagem de Maharichi surge diante dos meus olhos, viva, irresistível.
Portanto, não reluto mais. Voltarei, e se ele consentir, entregar-me-ei em suas
mãos. A sorte está lançada; estou vencido. Embora não o compreenda, sinto
que não me pertenço mais. Volto ao hotel e tomo uma chávena de chá;
subitamente me dou conta de que sou um homem diferente; sinto uma sensação
de alívio quando tenho consciência de que as trevas que me encobriam
começam a dissipar-se, como na aproximação da aurora.

No dia seguinte, desperto fresco e bem disposto, sorrindo pela primeira vez
desde que voltei a Bombaim. O Sikh que me serve, elegante, vestido de jaquetão
imaculado, uma larga cinta dourada apertando-lhe a cintura, de calças coladas
às pernas, está sorrindo ao perceber-me entrar na sala do almoço.

— Uma carta para o senhor.

Passo rapidamente o olhar no envelope; a carta viajou muito; duas vezes já me


foi reendereçada. Abro-a e, com grande surpresa, vejo que foi escrita em
Arunachala por um homem eminente, membro do Conselho Legislativo de
Madras, que, em consequência de tragédia familiar, afastou-se do mundo e
tornou-se discípulo de Maharichi. Fizemos amizade e correspondemo-nos
amiúde. Nessa carta ele escreve, entre outros pensamentos elevados, que se
eu voltar ao eremitério serei sempre bem-vindo. A última frase torna-se para mim
como um feixe de luz: “É uma grande sorte para o senhor ter encontrado o mestre
que buscava.”

Considero a carta um sinal do destino, e imediatamente corro à Companhia de


Navegação e cancelo minha passagem.

Pela segunda vez me despeço de Bombaim. Atravesso centenas de milhas da


campina indiana, a planície monótona de Deccan; a vista desliza, por não ter
onde parar, a não ser algumas moitas esparsas de bambus. Queria que o trem
corresse mais rápido, pois sinto que estou voando para a iluminação espiritual,
para o homem mais extraordinário que jamais encontrei na vida. Contemplando
as paisagens através da janela encortinada de meu carro, finalmente
compreendo ter achado um Super-Homem, o autêntico Richi que desejei tanto
encontrar!

Sinto-me feliz quando no segundo dia da viagem entramos na calma paisagem


do sul, descortinando colinas arroxeadas e, ainda mais, ao sair da planície árida,
respiro o calor úmido de Madras, onde termina a primeira etapa da viagem. Aí,
para baldear, tenho que atravessar a cidade; aproveito então essas horas
perdidas à espera do trem para fazer algumas compras necessárias e
cumprimentar o escritor indiano que me apresentou à Sua Santidade Shri
Shankara. Ele me acolhe calorosamente, e ao saber que estou a caminho para
Arunachala, exclama sorrindo:

— O senhor não me surpreende; era bem isso o que eu esperava!

— Mas o que foi que lhe deu tanta certeza?


— Ora, meu caro amigo! o senhor não se recorda do momento da nossa
despedida de Sua Santidade, em Chingleput? O senhor não reparou que ele me
cochichou algo no ouvido, quando estávamos na saída?

— Sim; agora me lembro, efetivamente...

— Pois bem! Sua Santidade me disse isto:

“Seu amigo Brunton vai palmilhar a Índia em busca do mestre; encontrará vários
Yogues e instrutores; finalmente, porém, voltará ao Maharichi, pois é o único
Mestre que lhe convém”.

Fico pasmo:

— Não diga! Mas isso é francamente impressionante!

Essas palavras me confirmam que Shri Shankara possui, de fato, o dom da


profecia; tornam-me mais firme e reforçam a decisão tomada, pois desta vez, sei
que estou seguindo um rumo certo.

Mas quão diversos e estranhos foram os caminhos que os astros me impuseram


para eu chegar ao meu destino!
16
Num eremitério da selva

Há momentos tão inesquecíveis em nossa vida que ficam gravados no


calendário dos anos com letras de ouro. Assim foi o momento que me reservou
o destino, quando pela segunda vez pisei no recinto de Maharichi.

Vejo-o sentado na sua magnífica pele de tigre, sereno e calmo como sempre; à
sua frente as varetas de incenso consomem-se lentamente, rescendendo seu
terso aroma. Neste momento o sábio não está em êxtase, seus olhos luminosos
estão abertos para o nosso mundo e seus lábios se abrem num sorriso
acolhedor, quando me inclino para cumprimentá-lo. Em respeitosa distância, os
discípulos estão acocorados; de pernas cruzadas; um deles manobra o “punkah”

Desta vez vim também como postulante, querendo tornar-me seu discípulo; meu
espírito não conhecerá sossego enquanto não souber da sua decisão. No
entanto, tenho esperanças, tão imperiosa era a voz que soava como uma ordem
ao me chamar aqui. Após algumas palavras banais, apresento-lhe minha
solicitação da maneira mais breve possível, dispensando todo fraseado
supérfluo. Maharichi continua sorrindo, olhando-me, calado. Repito minha
pergunta com a maior ênfase, ele então se decide a responder-me em excelente
inglês, diretamente:

— Por que falar tanto de mestre e de discípulos? Essa diferença só existe do


ponto de vista do discípulo. Para aquele que alcançou a fonte do Ser, realizando-
se a si próprio, não há mestre nem discípulo — existem apenas homens.

Como devo interpretar suas palavras? Não sei o que pensar; esforço-me em
expor minha petição de outra maneira e espero. Finalmente obtenho a resposta:

— O senhor tem de encontrar o mestre em si, quero dizer, em seu próprio Eu


espiritual. Considere seu corpo como ele merece ser considerado, mas saiba
que seu corpo não é o seu verdadeiro Ego.

Começo a compreender. Maharichi não quer me responder claramente, tenho


que procurar a resposta na sutileza oculta em sua palavra enigmática. Desisto
de insistir e conversamos sobre as ocorrências da minha viagem. Passo a tarde
providenciando minha nova instalação.
* * *

Durante as semanas que se seguem levo uma vida estranha e desambientada.


Passo os dias na sala junto ao Maharichi, esforçando-me por respigar as
migalhas da sua alta sabedoria, e colher algum indício que seja da resposta que
aguardo. As noites, lamentavelmente, são torturadas pela insônia, ainda que eu
esteja bem acobertado e acomodado no chão da minha recém-construída
cabana, a cem metros de distância do próprio eremitério. Levantada às pressas
a fachada da cabana, é de barro ressequido, só a cobertura é de telhas, para
melhor resistir à monção. Arbustos espinhosos e densos, tufos de cactos
gigantes, separam-na da orla da selva. Essa acerba paisagem revela a natureza
virgem, em toda sua primitiva grandeza; do lado do norte, a mata fechada
continua até os primeiros atalhos da montanha, cuja massa gigantesca de rochas
basálticas cobre a terra arroxeada; ao sul, uma grande lagoa de águas
espelhadas, que me atrai diariamente, e cujas margens estão rodeadas de
arvoredos, em cujas copas se abrigam numerosas famílias de macacos. Os dias
seguem e assemelham-se; levanto-me cedo, antes mesmo do sol nascer sobre
a selva. Assim posso contemplar o céu passar por todos os matizes, de cinza a
verde, de róseo a amarelo, até o ouro brilhante. Depois dou um rápido mergulho
na lagoa, tomando cuidado para afastar as serpentes com bastante barulho.
Voltando do banho me visto e delicio-me com três chávenas de chá perfumado
que, aliás, é o meu único luxo, vivendo nesse lugar austero e longínquo.

— O chá está pronto — avisa-me o Raju, um rapazinho que não sabia uma
palavra de inglês quando o tomei aos meus serviços. Raju é a pérola dos
domésticos, é capaz de percorrer a cidade toda só para descobrir um objeto mais
bizarro ou os mais caprichosos petiscos para satisfazer o desejo do seu amo
europeu, que se compraz em inventá-los; ou, sentado na soleira da porta,
esperar por mim nas horas de meditação, sempre paciente e dócil às minhas
ordens. No assunto da cozinha, infelizmente, meu paladar ocidental dá-lhe a
impressão de uma mania inofensiva; após algumas tentativas infrutíferas,
desisto, encarregando-me da maior tarefa, resignando-me a fazer uma só
refeição substancial, satisfazendo meu apetite com o chá. Raju assiste à minha
desenvoltura culinária, sem, todavia, procurar compreendê-la; seu corpo brilha
no sol, qual o ébano polido; é um puro drávida, descendente dos habitantes
autóctones da Índia.

Depois do chá, dirijo-me devagar para o recinto do eremitério. Antes de entrar


na sala, paro, contemplando os canteiros de roseiras, ou sento-me um pouco
sob os coqueiros carregados com enormes cachos. Como são lindos esses
passeios matinais antes que o sol se torne mais cálido; como é bom poder
respirar as flores cobertas de orvalho e gozar do frescor da natureza ao
despertar!
Entro na sala, cumprimento o sábio e acocoro-me à indiana. Tenho liberdade de
fazer o que bem me parece: ler ou escrever, animar uma conversa com um ou
outro discípulo, dirigir-me ao Maharichi, debatendo um ponto qualquer de
doutrina, ou meditar durante uma hora sobre o tema orientado pelo sábio, apesar
de serem as noites reservadas à meditação em comum. Seja qual for minha
ocupação, sinto os efeitos benfazejos do ambiente, os eflúvios misteriosos, mais
salutares, penetrarem insensivelmente no meu cérebro.

A presença do Maharichi basta por si só para encher a alma e fazer nascer uma
serenidade inefável. Analisando bem, constato e tenho certeza de que há uma
corrente sutil e poderosa vibrando entre nós, quando estamos na presença um
do outro. Compreenda-o quem puder! pois para mim não há mais dúvida.

Às onze horas volto à minha cabana para um almoço, seguido da sesta. À


tardinha retomo meu lugar aos pés do Mestre. De vez em quando, para quebrar
um pouco a monotonia, dou uma rápida escapada para explorar os arredores ou
descer à cidade, revendo um canto qualquer do seu gigantesco templo. Às
vezes, o Maharichi, na hora da sesta, aparece na minha choupana, sem se
anunciar, para visitar-me. Como se pode adivinhar, aproveito logo para crivá-lo
de perguntas; ele me ouve com toda paciência, e responde com sua placidez
habitual, embora em termos elíticos, raramente formando uma frase completa.
Uma vez, entretanto, aconteceu uma coisa curiosa. Quando ele apareceu para
visitar-me, tento abordar um novo assunto e não recebo resposta. O olhar
distante do sábio parece perder-se nas colinas que fecham o horizonte; fica
parado como se estivesse ausente. Alguns minutos se passam. Não sei se teria
ouvido minha pergunta; estará mergulhado em meditação, ou contemplando
algum ser invisível, visível somente para ele? Não importa o que haja, pois algo
forte, tão forte que, vencendo minha lógica se apodera do meu ser subitamente,
e me incita a compreender, desperta minha atenção e me faz ponderar: para que
servem, de fato, fórmulas, perguntas e discutir eternamente — quando tenho em
mim mesmo um poço inesgotável de afirmações, e basta um pequeno esforço
para trazê-las à tona! Não é melhor acabar de vez com raciocínios silogísticos,
com vãs argumentações, polêmicas estéreis, e esforçar-me para pôr em ação
tudo o que a minha própria natureza possui em potência?

De maneira que eu também me calei, esperando. Meia hora se passa sem que
o Maharichi se mova, impassível como se tivesse esquecido a minha presença.
No entanto, tenho absoluta certeza de que essa revelação que acabo de
conceber é obra sua e uma excelente lição para mim; sinto-me penetrado por
uma espécie de telepatia, devido ao efeito dessa misteriosa irradiação que
emana do seu ser.

Outra vez, no decorrer dessas visitas, vendo-me em estado de profunda


melancolia, me conforta falando da finalidade gloriosa prometida ao homem que
adota a via da Yoga.
— Mas, Mestre, é um caminho cheio de obstáculos e eu tenho tanta consciência
da minha fraqueza!

— É uma razão a mais para ficar na senda — responde-me calmamente — pois


a falta de confiança, esse receio de fracasso, acabam paralisando o espírito.

— E, se tais receios têm fundamento?

— Não, isso não é verdade. O maior erro do homem é julgar-se naturalmente


fraco e mau por natureza. A natureza do homem é divina, por conseguinte forte
em essência. O que nele é fraco e mau, são seus hábitos, desejos e paixões,
mas não ele!

Essas palavras como estimulante maravilhoso me refrescam e animam. Teriam


sido rapidamente rejeitadas se provenientes de outros lábios. Agora sou vencido,
pois a voz interior me clama que a Verdade fala por essa boca, que esse homem
não é um filósofo perorando sobre teorias de especulação mental, e sim, um
sábio cujas palavras vêm das profundezas da alma e estão apoiadas pela sua
própria e longa experiência.

Uma outra ocasião, quando falamos do Ocidente, eu não pude me conter em


fazer objeção:

— É facílimo para o senhor encontrar a serenidade num retiro como este onde
nada lhe perturba nem distrai.

— Parece-lhe assim, mas, uma vez a finalidade obtida, quando o senhor


conhecer Aquele que sabe, pouco lhe importará onde vá viver — no turbilhão
das cidades ou num retiro da selva.

Ainda um outro dia, quando critiquei ao povo hindu seu pouco interesse pelo
progresso material, disse-me:

— É verdade, nós somos uma dessas raças que vocês chamam de atrasadas;
mas vivemos assim mesmo sem grandes necessidades. Muitas das vossas
invenções modernas, frutos do progresso da ciência, são para nós
desconhecidas, porque nos satisfazemos com pouco, muito menos do que vocês
precisam. De maneira que o sermos menos avançados não quer dizer que
somos menos felizes.

* * *

Como Maharichi conseguiu chegar a esse elevado grau de força moral e, por
assim dizer, sublimidade? De grão em grão, pelas informações tomadas dos
seus discípulos, ou pelos pormenores que escapam às vezes dele mesmo,
embora não goste de falar de si, acabo por esboçar, mais ou menos, a história
da sua vida:
Nasceu em 1879 numa aldeia, cerca de trinta milhas distante de Madura, cidade
do sul da Índia, famosa pelo seu templo. Seu pai era Brâmane; desempenhava
um cargo de magistrado ou algo semelhante. Gozava da fama de ser muito
caridoso, por ter sustentado numerosos indigentes. Zeloso pela instrução de seu
filho, mandou-o estudar no colégio mantido por missionários americanos, onde
ele aprendeu os rudimentos de inglês. No princípio, o jovem Ramana gostava
somente de jogos e esportes, praticando luta livre, natação e boxe. Era excelente
nadador e mergulhava nas correntes mais perigosas. Naquela época, a religião
ou a filosofia não lhe interessavam; sua única singularidade se manifestava em
acessos de sonambulismo, uma espécie de sono tão profundo que nada podia
acordá-lo. Ao saber disso, seus colegas de turma, que temiam durante o dia pela
sua prontidão na estocada, vingavam-se dele aproveitando as noites. Entravam
no quarto, tiravam-no da cama e, levando-o ao pátio, davam-lhe murros e
surravam-no à vontade. Satisfeitos, levavam-no de volta sem que ele acordasse;
no dia seguinte, ele não se lembrava de coisa alguma. Era como se nada tivesse
acontecido, mas, para um psicólogo atento, já eram os indícios evidentes do
êxtase místico. Um dia, um parente veio visitá-lo em casa falando que vinha de
uma peregrinação que fizera a Arunachala. Esse nome soou estranhamente aos
ouvidos do garoto, sem que ele compreendesse a razão. Foi indagar sobre a
Arunachala e, ao saber que se tratava de um templo, uma idéia fixa apoderou-
se da sua mente. Por que exatamente Arunachala lhe interessava mais do que
inúmeros outros santuários da Índia, ele não era capaz de responder. Prosseguia
seus estudos na escola dos missionários. Embora sem manifestar aptidões
especiais, era inteligente e bom aluno; aos dezessete anos o destino falou. De
repente deixou os estudos, abandonou o colégio, sem ter avisado aos mestres
nem à família. Qual seria o motivo dessa brusca mudança, que destruía sua
futura carreira? Devia ser muito importante aos seus olhos; dava, porém,
bastante que pensar aos seus, essa singular e inexplicável conduta. O maior
Instrutor da vida lançava o jovem Ramana num caminho jamais previsto pelos
missionários, seus instrutores da escola. Seis semanas depois dessa súbita
revelação, ele deixou Madura e a casa dos pais para nunca mais voltar.

Naquele dia, estava só no quarto, quando uma repentina e inexplicável angústia


se apoderou dele; embora gozando boa saúde, sentiu que ia morrer. Obcecado
pela idéia da morte, estava se preparando como se o acontecimento fosse
iminente. Deitou-se no chão, inteiriçou os membros, fechou os olhos e
suspendeu a respiração. “Bem, disse então a si mesmo, esse corpo que era meu
está morto. Vão levá-lo ao pátio de cremação e vai ser reduzido a cinzas. No
entanto, eu teria morrido com meu corpo? Acaso esse corpo sou eu? Meu corpo
é rígido e silencioso, mas continuo a sentir meu ser com toda sua força vibrante.”

É nesses termos que Maharichi descreve essa estranha experiência. O que


aconteceu exatamente é difícil compreender, se não for contado. Ele julgava ter
entrado numa espécie de êxtase consciente, havia atingido a fonte do Eu, a
verdadeira origem do Ser. Nesse momento ele concebeu que o corpo era apenas
o invólucro, um objeto à parte, e que o Eu ficava imutável na morte. O verdadeiro
Ser lhe surgia dotado de realidade absoluta, embora tão profundamente oculto
nas regiões inexploradas da natureza humana, que ele mesmo ignorava, como
o ignoram os demais.

Essa revelação transformou Ramana por completo; perdeu todo o interesse


pelos estudos, esportes e camaradas; ficou substituído pela sublime noção do
Eu que o conquistou de maneira tão repentina e radical. Todo o pavor da morte
desaparecera. Adquirira a serenidade interior e a força de espírito que desde
então jamais o abandonara. Tanto quanto antigamente estava sempre pronto a
vingar-se dos colegas que tomavam liberdade com ele, depois só a meiguice e
a doçura foram suas réplicas aos ofensores; sofria a injustiça com indiferença, e
sua humildade era notável para com todas as coisas. Renunciou a seus hábitos
antigos, buscando a solidão a fim de entregar-se livremente à meditação e
dedicar-se plenamente à interior na qual se absorvia.

Tamanha mudança de seu caráter não ia passar despercebida. Um dia, o irmão


mais velho se dirigiu ao quarto de Ramana, onde o supunha atarefado com os
deveres escolares e, ao entrar, encontrou-o de olhos fechados, preso em
profunda meditação; os livros e cadernos rolavam, juncando o chão, como se ele
os tivesse rejeitado com repulsa. O irmão admoestou-o severamente: “Que estás
tu fazendo aqui? Se for tua idéia tornar-te um Yogue, por que então estudar,
visando uma carreira?”

O jovem Ramana sentiu vivamente a verdade dessas palavras e silenciosamente


tomou as providências necessárias. Perdera seu pai, mas sabia poder contar
com a ajuda do tio e dos seus irmãos para tomar conta da mãe; percebeu com
toda a evidência que não tinha mais nada a fazer em casa. Naquele momento,
um nome passou como um raio pela sua mente, o nome que o obcecava durante
anos seguidos: ARUNACHALA! Iria até ali, precisava ir! No entanto não seria
capaz de dar uma explicação do porquê desta escolha, obedecendo a um apelo
imperioso infenso a qualquer raciocínio.

Ao contar-me essa passagem, Maharichi se exprimia nestes termos:

— Estava literalmente como que sob o domínio de um encanto; a força


misteriosa que de Bombaim o trouxe aqui, afastou-me definitivamente de
Madura.

O jovem Ramana deixou tudo: parentes, amigos, estudos, e tomou o rumo


desconhecido, marcado pelo seu destino. Ao abandonar a casa, deixou uma
carta escrita em tâmil, que depois ficou guardada no eremitério, e dizia: “Parto
em procura de meu Pai, e pelo fato de obedecer ao Seu apelo, meu
empreendimento é sagrado; que ninguém se atormente — será inútil gastar
dinheiro em me encontrar.”
Com três rupias no bolso, ignorando o mundo, ele deixou a casa paterna, guiado
pela força misteriosa que o chamava a Arunachala, lugar que lhe era estranho.
A chama da renúncia, que o iluminava, animava-o a despojar-se do resto; tal era
seu desprezo pelos bens terrestres que, logo ao entrar no templo, tirou as vestes
e prosternou-se completamente despido. Um sacerdote fez-lhe observações em
vão, outros se lhe juntaram e, finalmente, conseguiram que o jovem vestisse uma
tanga e, desde então, nunca usou outro traje.

Durante seis meses permaneceu no templo, às vezes mudando de lugar, mas


nunca deixando os limites do santuário. Diariamente um sacerdote, surpreendido
com tão precoce fervor, trazia-lhe um pouco de arroz. Passava horas e dias em
êxtase tão profundo que perdia por completo a noção do mundo exterior e,
quando os moleques muçulmanos lhe atiravam lama, zombando dele, nem os
percebia, a não ser algumas horas depois, e não guardava rancor.

Contudo, as ondas intermináveis de peregrinos, que não cessavam de afluir ao


templo, não eram muito compatíveis com a solidão à qual aspirava. Deixou
portanto o santuário, para se retirar a uma pequena ermida tranquila, em pleno
campo, um pouco afastada da cidade. Lá viveu um ano e meio, satisfazendo-se
com um pouco de alimento, que alguns piedosos visitantes lhe levavam.

Não falava a ninguém. De fato, durante os três primeiros anos do seu retiro, ele
nem abria a boca; não porque tivesse feito voto de silêncio, mas em obediência
às ordens da voz interior que lhe mandava concentrar toda a atenção à vida do
espírito. Somente ao atingir a finalidade que se propusera, rompeu o silêncio,
mesmo assim nunca falando muito.

Encobria precavidamente sua identidade, mas, por uma série de coincidências,


dois anos depois de sua fuga, sua mãe acabou descobrindo o seu retiro. Ela veio
com seu filho primogênito, querendo pelas lágrimas comover Ramana da sua
indiferença, suplicando-lhe voltar para casa. Ele escreveu num pedaço de papel
que uma força superior dirige o destino do homem e não é da competência das
mães mudá-lo. Ela acabou cedendo.

A fama dessa história espalhou-se pelas redondezas, e os visitantes, cada vez


mais numerosos, começaram a chegar para contemplá-lo em sua solidão, fato
que o constrangeu mais uma vez a mudar de lugar, retirando-se para a colina do
Santo Lume. Só então, numa gruta cavada na rocha, acabou vivendo alguns
anos sem ser assediado.

Há muitas dessas cavernas na colina, que servem de abrigo aos Yogues e


ascetas, mas a sua possuía uma virtude especial: servia de túmulo a um grande
Yogue que aí estava enterrado. A cremação dos corpos é um hábito que
permanece nas Índias, mas às vezes se foge desse costume em favor de um
Yogue famoso que atingiu a Realização Suprema. Acredita-se geralmente,
nesse caso, que o sopro da vida, ou corrente vital, continua a existir no corpo
durante milhares de anos, tornando-o assim indecomponível. Antes de colocar o
Yogue na tumba, banha-se-lhe o corpo que, depois de ungido, é colocado
sentado, com as pernas cruzadas em pose de meditação. A entrada do túmulo
é então fechada com uma pedra pesada e cimentada depois, e o mausoléu se
torna, frequentemente, um lugar de devoção. Há também outra razão por que os
grandes Yogues são inumados em vez de queimados: conforme a crença geral,
eles não precisam de purificação pelo fogo, sendo já suficientemente purificados
pelo seu modo de vida.

É interessante notar que as grutas das montanhas sempre foram as residências


favoritas dos Yogues e eremitas. Os antigos as destinavam aos deuses.
Zoroastro, profeta dos parses, se entregava à meditação numa caverna; também
numa gruta Maomé recebia as suas revelações. Os Yogues indianos ainda têm
outras boas razões para preferir as cavernas, pois suas pedras não só os
protegem das inclemências de monção, como também os abrigam das bruscas
mudanças de temperatura ao levantar e ao pôr do sol; o frescor da sombra, seu
silêncio, são favoráveis à meditação, e o ar rarefeito atenua as necessidades
fisiológicas, reduzindo ao mínimo os cuidados de higiene indispensáveis ao
corpo.

Pode ser que a beleza do lugar também tenha influído em Ramana para a
escolha do seu retiro. Das escarpas adjacentes descortina-se uma vista
deslumbrante sobre a pequena cidade e seu gigantesco templo, encolhidos aos
pés da montanha. Ao longe, a planície e a cordilheira suavemente ondulada, em
declínio, fecham o horizonte e limitam o encantador panorama natural.

Ramana ficou anos vivendo nessa caverna, entregue a constantes êxtases. Ele
não era um Yogue, no sentido próprio da palavra, pois nunca estudara a doutrina
Yoga nem praticara os exercícios sob a vigilância de um mestre. Seguia
individualmente a vereda sublime que leva ao conhecimento de si próprio, guiado
por um apelo interior do seu Mestre Divino.

Em 1905, a peste fez sua aparição na cidade, trazida sem dúvida por algum
peregrino. Ela acabou fazendo tal destruição que os moradores apavorados
abandonaram-na, refugiando-se nas aldeias vizinhas. Tigres e leopardos, saídos
dos seus covis da selva, andavam à solta pelas ruas da cidade abandonada.
Forçosamente, ao descer a montanha eles tinham que passar diante da caverna
do Sábio; aconselharam Maharichi a mudar, mas ele recusou, calmo e
indiferente como sempre.

Naquela época um discípulo, que se ligou espontaneamente ao jovem


anacoreta, providenciava seu sustento. Esse homem já faleceu, mas antes
transmitiu essa história aos outros discípulos:

“Todas as noites um enorme tigre ia à caverna e lambia as mãos de Ramana,


que lhe respondia com festas acariciando-lhe o pêlo macio. O felino ficava a noite
toda aos pés do Sábio e somente o deixava ao amanhecer. É uma crença
enraizada nas Índias que, quando os Yogues ou os Faquires adquirem os
poderes da Yoga, podem viver no fundo da selva ou nas montanhas sem receio,
pois os leões, tigres, répteis ou outras feras não os atacam. Conheço também
uma outra história a respeito de Ramana: um dia, quando estava acocorado na
entrada da sua caverna, uma grande cobra, deslizando das rochas, veio parar à
sua frente. A naja ergueu a cabeça, puxou sua língua bífida, pronta para atacar,
sem que o ermitão fizesse um movimento de defesa. O homem e o réptil ficaram
a olhar-se, fixando-se mutuamente; minutos depois a cobra se retirou sem lhe
fazer o menor dano!”

Quando o jovem Ramana julgou dominar sua mente e chegar ao conhecimento


e à realização do Eu, terminou a fase de austeridades. A vida de reclusão não
era mais necessária; mesmo assim continuou vivendo na gruta, até que um belo
dia recebeu a visita de um ilustre pandit, Ganapati Shastri, visita que inaugurou,
por assim dizer, a vida social de Ramana.

O pandit, que viera morar nas redondezas do templo para entregar-se aos
estudos e meditações, ouviu falar do jovem Yogue; a curiosidade fê-lo escalar a
montanha e, chegando, achou Ramana de olhos arregalados, contemplando o
sol — um dos exercícios ao qual o jovem, frequentemente, se entregava. Um
ocidental não pode avaliar o que representa esse exercício! A intensidade dos
raios solares é tremenda! Lembro-me de um dia em que, escalando a encosta
da colina, fui apanhado de surpresa pelo sol do meio-dia; cambaleei por muito
tempo, como se estivesse embriagado.

O pandit estudou durante doze anos o compêndio de filosofia hindu e submeteu-


se a todas as espécies de mortificações. Malogrado em seus intentos,
continuava sempre assediado por dúvidas e perplexidades; isso o levou a fazer
perguntas a Ramana e recebeu uma resposta cuja sabedoria literalmente o
assombrou. Continuou a fazer outras perguntas referentes aos problemas
filosófico-religiosos, que o atormentavam, e não precisou esperar muito para
sentir-se aliviado das suas angústias; ficou a tal ponto impressionado, que se
prosternou diante do jovem, implorando ser aceito como discípulo.

Shastri, que possui seus próprios discípulos em Vellore, regressando ao vale,


comunicou-lhes a descoberta fantástica que tinha feito de um Maharichi, quer
dizer, um Grande Sábio, descoberta de um homem, enfim, cuja perfeição
espiritual ultrapassava tudo o que havia lido ou pensado ao se referir ao assunto.

Desde então, o título de Maharichi começou a ser dado pela classe culta ao
jovem Ramana; entretanto, o comum do povo o adorava como a um ser inspirado
por Deus, embora Maharichi repelisse com toda força qualquer manifestação
desse gênero na sua presença. Entre os hindus e nas nossas conversações,
muitos dos seus devotos e conterrâneos dizem que ele é Deus.
Um pequeno grupo de discípulos começou a formar-se ao seu redor; foram eles
que construíram essa ermida na encosta da colina, convencendo-o finalmente a
vir morar nela. Sua mãe, que o visitava regularmente, acabou reconhecendo a
santa vocação de Ramana. Quando a morte levou seu filho primogênito e todos
os parentes, ela veio pedir ao Sábio a permissão de com ele viver, pedido que
Maharichi aprovou. Seis anos viveu no eremitério e acabou sendo a mais
fervorosa entre os discípulos do seu próprio filho. Em troca da hospitalidade,
tomava conta da cozinha, e quando a velha senhora faleceu, suas cinzas foram
inumadas na encosta da colina sagrada, onde mais tarde uma capela foi erigida
pelos devotos do Maharichi. Ela atraía multidões, e luzes permanentemente
acesas ardem em memória da mãe que deu à humanidade seu grande Sábio.
De então em diante, sempre ramos de jacintos e heliotrópios e grinaldas de flores
coloridas são depositados pelos fiéis, num altar, em sua homenagem.

A fama de Maharichi com o correr do tempo se espalhava por todo o país; os


peregrinos, depois de visitarem o templo, antes de voltar aos seus lares,
escalavam a Colina Sagrada para contemplar o Sábio; foi recentemente que
Maharichi consentiu em morar na grande sala do eremitério, cedendo assim às
súplicas constantes dos discípulos que a haviam construído para sua residência.
O Sábio aceita alimentos, mas nunca dinheiro. Tudo o que possui, deve-o à
assistência afetuosa dos seus discípulos devotados. Durante os primeiros anos
da sua reclusão atrás da muralha de silêncio que o separava do mundo, não
desdenhava de descer à aldeia e não teve vergonha de mendigar seu pão,
andando com a cuia na mão, de porta em porta, pedindo mantimento. Uma velha
mulher apiedou-se então do jovem asceta e passou a subir a montanha levando
o pouco de que ele precisava para se manter. A fé que o levara a abandonar a
confortável casa paterna, foi assim recompensada por essa providência
benévola. Ele rejeita todos os donativos de outra espécie que o povo vem
depositar aos seus pés.

Uma vez, faz pouco tempo, um bando de ladrões penetrou na sala onde o
Maharichi estava só. Os malfeitores, por não haverem quase nada encontrado
senão algumas rupias confiadas ao discípulo, encarregado da despensa do
eremitério, acabaram batendo no Maharichi a pauladas. O Sábio, não somente
sofreu com paciência, mas ofereceu-lhes de comer. Sendo incapaz de ódio,
cheio de piedade para com eles, deplorando sua ignorância espiritual, deixou
que saíssem livremente. Por sorte foram apanhados cometendo outros crimes,
em outros lugares, e severamente punidos.

Não faltarão argumentos aos ocidentais para objetar que semelhante vida é
esbanjada em pura perda. Porém, raciocinando bem, a presença desses poucos
homens que escapam à febre de atividade que devora nosso mundo moderno,
zelando por nós e despertando o sentido da infinita vida espiritual, não será de
grande proveito para a humanidade? O observador imparcial está melhor
colocado para julgar: em que será inferior um sábio da selva a um insensato que
se deixa levar ao capricho das circunstâncias sem saber por que, nem para onde
vai?

* * *

Cada dia que passa me convenço mais da grandeza sublime desse homem.
Dentre as pessoas de todas as condições sociais, castas ou raças, que vi desfilar
no eremitério, destaca-se o exemplo de um pobre pária que passou, visivelmente
aflito, por grandes angústias da alma, aliviando-as aos pés do Maharichi. O Sábio
não lhe responde; aliás é muito raro que saia da sua reserva habitual e podem-
se contar as palavras que por ele são pronunciadas no decorrer do dia.
Entretanto, quando fixa seu olhar no aflito, é o suficiente para acalmar suas
mágoas; duas horas depois, vejo-o sair serenado. Evidentemente, esse é todo o
segredo do Maharichi: silencioso, com uma espécie de estranha telepatia que a
ciência moderna não pode deixar de esclarecer um dia, ele emite fluidos cujas
vibrações acalmam os aflitos e curam os doentes desenganados.

De outra vez, um Brâmane, diplomado e culto, vem lhe expor seu caso. Contudo,
como acabo de dizer, nunca se sabe quando o Sábio responderá ou não por
palavras, mas, francamente, ele não precisa abrir os lábios para ser loquaz. Com
o Brâmane é um pouco mais comunicativo por se tratar do assunto abstrato e
idéias altamente filosóficas; em algumas sentenças ricas de sentido, revela
pensamentos profundos, capazes de abrir ao postulante visões insuspeitas.

De uma feita, quando um grupo de visitantes e discípulos estavam reunidos na


sala grande, alguém veio anunciar a morte de um malfeitor, cuja má fama era
conhecida em toda a redondeza. Logo se iniciou uma discussão; examinaram-
se traços do seu caráter e de suas más ações, cuja lembrança estava ainda
presente na memória de todos. Quando a conversa se acalmou, o Sábio, que
não dissera nada até então, deixou cair estas simples palavras:

— Pois sim; mas ele era muito limpo, tomava banho duas ou três vezes por dia.

Um camponês analfabeto com sua família, sem saber nada além do seu labor
cotidiano, rudimentos da sua religião e superstições ancestrais, percorreu mais
de cem milhas pelas estradas poeirentas, só para vir homenagear o Sábio.
Alguém lhe dissera que Deus, revestido de forma humana, vivia no vale da
Colina do Lume Sagrado. Humilde, prosternou-se três vezes no chão e, sem uma
palavra, acocorou-se em silêncio; ele acredita que o esforço da viagem será
amplamente recompensado pelo efeito dessa presença divina. Sua mulher está
ao seu lado, graciosamente envolvida dos pés à cabeça num sari púrpura
formando um nó na cintura; e seu cabelo está untado de óleo de sândalo. Uma
filha, que a acompanha, é uma finda menina com anéis nos tornozelos, que
tilintam a cada passo. Segundo um bonito costume indiano, usa uma flor branca
atrás da orelha. Em contemplação silenciosa, a família toda fica acocorada
durante horas. Por paradoxal que pareça, é evidente que Maharichi, só com sua
presença, fortifica-lhes a fé, restaura-lhes confiança, insuflando-lhes renovada
felicidade! O Sábio não faz diferença entre as crenças e vê todas elas, desde
que sinceras, como expressão da única Grande Verdade; da mesma forma como
venera Jesus, tem veneração por Krishna.

À minha esquerda está acocorado um velhote de setenta e cinco anos, que


masca bétele enchendo as bochechas; suas mãos trêmulas seguram um livro
sânscrito, sobre o qual se abaixam suas pálpebras cansadas. É um Brâmane
que durante muitos anos foi chefe de estação ferroviária no Distrito de Madras.
Aposentou-se aos sessenta anos e perdeu sua esposa pouco tempo depois. A
oportunidade se apresentou, portanto, de satisfazer um desejo por muito tempo
recalcado.

Catorze anos passou viajando por todas as regiões da Índia, visitando sábios,
ascetas, ermitões e Yogues dos quais ouvia falar, na esperança de encontrar
entre eles um mestre, cujo ensinamento ou personalidade o atraísse ou
correspondesse às suas aspirações. Devia possuir idéias bem definidas, pois
não achou o mestre antes de vir para cá. Quando o encontrei, contou-me seus
dissabores; não era um falador, e gostei dele pela expressão de sinceridade no
rosto marcado de rugas e pelo frescor natural de seus sentimentos puros. Sendo
muito mais moço do que ele, não sabia que conselho dar-lhe, quando, para
minha grande surpresa, perguntou se eu consentiria em aceitá-lo como
discípulo. “O mestre que o senhor procura não está longe daqui” — respondi-lhe
— e levei-o direto ao Maharichi.

Não demorou muito para me dar razão e tornar-se um dos fiéis mais devotos do
Grande Sábio.

A alguns passos dele está sentado um personagem com aspecto de homem que
tem posses; usando óculos, vestido de seda, é um magistrado em gozo de férias,
um dos maiores entusiastas do Maharichi. Pode-se ter certeza de vê-lo aparecer,
pelo menos uma vez por ano, para visitar o Sábio, aproveitando as férias. Esse
cavalheiro, culto e fino, de gosto apuradíssimo, não despreza, no entanto,
acocorar-se democraticamente, misturando-se aos pobres, gente maltrapilha ou
nua até à cintura, tâmiles de corpos untados de óleo, que brilham como
jacarandá polido. O sentimento que os une faz-lhe esquecer esnobismo e
preconceitos de casta, como dantes igual abnegação levava príncipes e marajás
aos pés dos Richis, nas montanhas ou na selva. A Sabedoria Divina estabelece
a harmonia e a igualdade entre os homens.

Vejo entrar uma jovem mulher carregando nos braços um nenê; prosterna-se
humildemente e, como neste momento se comenta um dos problemas filosóficos
dos mistérios da natureza humana, silenciosamente ela se afasta para não
perturbar a polêmica. A instrução não é um apanágio da mulher indiana; ela sabe
pouca coisa além da cozinha, seus afazeres domésticos e criação dos filhos.
Essa grande presença, porém, basta para fazê-la sentir o Amor, a Sabedoria e
a Felicidade, cujas ondas, oriundas da aura do Mestre, a penetram.

O pôr do sol avisa a hora de meditação em comum. Muitas vezes, Maharichi,


entrando em transe tão discretamente que nem é notado, dá o sinal para nós
todos o seguirmos, ficando num estado semelhante ao êxtase, que põe uma
barreira entre si e o mundo externo. No decorrer dessas meditações diárias, sob
a poderosa tutela do Sábio, aprendo a penetrar cada vez mais profundamente
em mim, logrando uma espécie de iluminação, como se fosse um raio, oriundo
da órbita espiritual em que vive o Maharichi. Cada vez mais adquiro consciência
de que meu espírito se torna mais receptivo a essa forma de atração que
deslumbra.

É nessas horas que avalio quanto os silêncios de um homem de tal envergadura


são profundos em significado e muito mais eloquentes do que as próprias
palavras. Seu inalterável equilíbrio oculta um dinamismo de tal força que afeta
as pessoas presentes, sem necessidade de recorrer a palavras ou atos. Há
horas em que sinto tão intensamente o poder dessa força que se ele me desse
uma ordem, tenho certeza de que cegamente lhe obedeceria, sem objetar.
Porém o Maharichi é, de certo, o último homem que exigiria dos seus discípulos
uma obediência servil; deixa a cada um maior liberdade de ação, no que difere
muito da maioria dos mestres de Yoga que encontrei nas Índias.

Minhas meditações prosseguem naturalmente, orientadas nas diretrizes que ele


me havia indicado desde minha primeira visita e que, então, me pareceram
vagas e imprecisas, devido a não ter podido entendê-lo. Começo a olhar para
dentro de mim mesmo.

— Quem sou?

Sou um corpo feito de carne, ossos e sangue? Será o espírito, a mente, os


pensamentos, este complexo de sensações que formam minha personalidade
que me distingue dos outros?

Temos por hábito responder afirmativamente a cada uma dessas perguntas: o


Maharichi, porém, me fez observar a necessidade de olhar mais além, sem
todavia forçar seu ensinamento, tornando-o um sistema.

Aqui está o essencial:

“Sem se dar tréguas, faça esta pergunta: quem sou? Analise seu eu até o âmago,
procure seguir seu pensamento até onde começa a raiz do eu, mantendo nele
sua atenção introvertida. Um dia virá em que os pensamentos caóticos que,
como uma roda, giram incessantemente, acabarão parando, levando-o ao ponto
onde a intuição direta surge espontaneamente das profundezas do seu ser;
continue a segui-la, abandone todo pensamento; entregue-se. Se for bem
sucedido, alcançará a nossa meta suprema.”
Eu me submeto a esses ensinamentos, combato cada dia meu intelecto; aos
poucos abre-se um novo caminho e desço às profundidades inexploradas da
mente. Graças à benfazeja presença do Maharichi, essa meditação, esse
diálogo comigo mesmo prosseguem sem canseira e com uma eficiência
inesperada. A grande expectativa, apoiada pela sensação de poderosa ajuda,
me estimula e mantém meus esforços. Vivo horas estranhas nas quais,
nitidamente, tenho a consciência de uma força desconhecida que me penetra e
guia meus passos ainda trêmulos e vacilantes pela fronteira misteriosa do ser.

A grande sala fica vazia, quando o Maharichi, seus discípulos e visitantes vão
jantar no refeitório. Como não faço questão dos alimentos deles e, ainda menos,
de preparar os meus, fico aguardando sua volta. Há, todavia, uma coisa que
aprecio muito no regime do eremitério: é a deliciosa coalhada; como Maharichi
descobriu meu gosto, manda trazer-me toda noite uma grande caneca cheia.

Meia hora depois, os moradores e visitantes que pernoitam enrolam-se nos


lençóis ou cobertores de algodão e deitam-se nas esteiras da sala. O Sábio
dorme no divã; seu criado faz-lhe massagens nas pernas, antes de se cobrir, por
sua vez, com o lençol.

Apanho então uma lanterna e vou andando, lentamente, sozinho, em direção à


minha cabana. Milhares de pirilampos fazem do jardim um tapete de luz
movediça. Arbustos e cactos se assemelham a massas gigantes, fosforescentes,
na cortina de sombra da noite. No dia em que me demoro e saio quase à meia-
noite, vejo esses estranhos insetos apagarem simultaneamente suas luzes
enfeitiçadoras. Deve-se andar cautelosamente para não pisar em algum
escorpião ou mesmo numa cobra; pois me acontece frequentemente estar tão
absorto em meditação profunda, que esqueço os perigos do lugar; só fixo a faixa
estreita da luz oriunda da minha lanterna.

Chegando à choupana, fecho cuidadosamente a porta pesada, como também


os postigos da janela, pois como aqui não se usam vidraças, a prudência
aconselha essa defesa contra uma possível intrusão das feras noturnas. Lanço
meu último olhar às folhas das palmeiras, cuja leve trepidação sob o luar
prateado desenha nas paredes sombras dançantes.
17
Tabuinhas de verdades
esquecidas

Uma tarde, percebo um visitante, que ainda não conhecia, entrar na sala com
andar digno e tomar lugar perto do divã do Maharichi. Seu rosto é fino, embora
sua tez seja muito escura. O recém-chegado não diz palavra, mas vi logo que
Maharichi o conhece, pois o cumprimenta com seu sorriso alegre e acolhedor. A
personalidade do visitante faz grande impressão; sua aparência é a de um Buda
esculpido e seus traços respiram serenidade e introspecção profunda.

Durante toda a noite, não deu uma única palavra, e quando nossos olhares se
cruzam, seu olhar é tão penetrante que, confuso, desvio o meu.

Tornei a vê-lo no dia seguinte da maneira mais imprevista. Raju tinha ido à
cidade fazer algumas compras. Entro na cabana vazia para cuidar do preparo do
meu chá, e ao passar a soleira da porta, percebo alguma coisa se mexer e tenho
a impressão de uma presença insólita; um deslizamento, um sopro leve, avisam-
me, antes de eu ter percebido, que uma cobra estava no quarto.

Não consegui dominar um movimento de pavor, apesar da real beleza dessa


cabeça imóvel e erguida, cujos olhos me fascinam. Não sabia o que fazer; o réptil
continua a fixar-me com seu olhar sinistro e frio, atemorizante; esforço-me pata
dominar os nervos extremamente tensos e, recuando, saio rapidamente em
busca de um pau. Nesse momento o rosto do visitante desconhecido aparece na
clareira.

A calma nobreza dos seus traços tranquiliza-me totalmente; ele se aproxima da


cabana e, compreendendo logo o que se passa, imperturbável, sem arma, entra
no quarto, apesar dos gritos que dou para avisá-lo.

Via a língua bífida da cobra vibrar na boca escancarada, mas ela não tentava
atacá-lo. Aos meus berros os banhistas da lagoa vizinha acorreram, mas sua
intervenção não era mais necessária, pois no momento em que chegaram, o
estranho visitante estava ao lado da cobra, cuja cabeça inclinada ele acariciava
suavemente.
Os colmilhos cessam seus movimentos convulsivos, a serpente fica imóvel e
dócil, até que a chegada de dois homens rompe o encanto da cena. Nesse
momento, virando-se bruscamente sob os olhares que a fixavam, a cobra
escapou-se da cabana e, com um rápido rastejo, perdeu-se na selva.

Fico assombrado.

— É uma cobra nova — diz um dos homens, grande negociante da localidade,


que vinha frequentemente visitar o Sábio, gostando de se demorar em conversa
comigo. Como lhe exprimisse minha surpresa pela intrepidez demonstrada pelo
desconhecido, fornece-me esclarecimentos suplementares:

— Não é de estranhar, tratando-se do Yogue Ramiah; ele é formidável, é um dos


discípulos mais adiantados do Mestre.

Desejaria imensamente entrar em contato com ele, mas avalio a dificuldade, pois
soube que Ramiah fez voto de silêncio e vem do Distrito onde se fala o télugo.
Suponho que ele sabe tanto falar o inglês como eu o télugo. Há dez anos é
discípulo do Maharichi, não gosta de sair da sua reserva, não visita ninguém e
mora em um pequeno abrigo de pedras que ele mesmo construiu à sombra de
um dos blocos erectos que estão esparsos do outro lado da lagoa.

Não vejo, pois, possibilidade de aproximação; no entanto, sinto que o aparente


abismo que há entre nós será rapidamente transposto. Assim foi.

Um dia, encontro-o à margem da lagoa onde ele veio apanhar água com um
cântaro de cobre. Apesar do silêncio que o envolve, suponho que não haja
impedimento para um contato amável, e atrevo-me, com minha Kodak na mão,
a pedir-lhe por gestos que se deixe fotografar. Não encontrando objeção ao meu
intento, e feita a pose, ele me acompanha à choupana. Aí achamos o ex-chefe
da estação que, sentado diante da porta, me esperava.

Por sorte esse bom homem sabe o télugo tão bem quanto o inglês, e vem-me a
esperança de que ele possa nos servir de intérprete. Ele se prontifica com prazer;
bastará um papel e um lápis.

O Yogue é refratário, evidentemente, a qualquer espécie de entrevista, mas aos


poucos, acaba por revelar-me alguns pormenores da sua existência estranha.

Ramiah não tem ainda quarenta anos, e é possuidor de bens no distrito de


Nallore. Ainda que não tenha definitivamente renunciado ao mundo, abandonou
sua família e a administração dos seus bens para dedicar mais tempo às
meditações. Em Vallore, ele possui discípulos, mas deixa-os uma vez por ano,
para visitar o Sábio em companhia do qual fica, habitualmente, dois ou três
meses. Na sua mocidade fez a volta da Índia em busca de um mestre; seguiu
vários, e pode orgulhar-se de possuir faculdades excepcionais. Os exercícios
respiratórios e a prática da meditação não têm segredos para ele, e até parece
ir além dos seus instrutores, porquanto eles não lhe podiam explicar, de maneira
satisfatória, certos resultados das experiências, obtidas sem a ajuda deles. Só o
Maharichi lhe forneceu esses esclarecimentos, de modo que ele veio ao Sábio
e, graças a ele, progrediu no caminho da Yoga.

Ramiah comunica-me, escrevendo, que vem passar dois meses aqui e está
acompanhado de seu próprio criado. Exprime a alegria de ver um europeu tomar
interesse pela antiga sabedoria do Oriente. Quando folheava uma revista
inglesa, fiquei impressionado pelo curioso comentário que uma dessas
ilustrações lhe inspirou:

— Eu acho que o povo de seu país seria bem mais feliz se fizesse um estudo de
si mesmo, ao invés de elucubrar inventos e máquinas sempre mais
aperfeiçoadas. Que felicidade pode haver, por exemplo, em descobrir meios de
locomoção cada vez mais rápidos?

Pergunto-lhe o que se passou exatamente com a cobra.

— Não havia nada a temer — escreve, sorrindo — pois me aproximei sem ódio;
meu coração transborda de amor por todos os seres viventes.

Não insisto, embora julgue que isso não explica bastante. Andando em direção
de sua solitária morada, ele me deixa pensativo.

Sua personalidade atrai-me cada vez mais. As semanas que se seguem ajudam-
me a conhecê-lo melhor; encontramo-nos frequentemente na clareira perto da
lagoa ou, às vezes, na soleira da sua ermida. Entendemo-nos muito bem. A
serenidade do seu olhar profundo faz-me um bem enorme; uma estranha
espécie de amizade instala-se entre nós, uma amizade sem palavras, que atinge
o seu auge no dia em que ele me abençoa, acariciando-me a testa e segurando
minhas mãos nas suas.

Guardei dele apenas algumas notas em télugo, traduzidas pelo velho amigo que
nos serviu de intérprete e, apesar de não trocarmos uma palavra, surgiu entre
nós algo de sólido, de perdurável, que jamais poderia se extinguir. Andamos
sempre juntos. Algumas vezes damos longos passeios na orla da selva ou
escalamos rochedos no alto da colina, e nunca o vi sair da sua calma serena,
que admiro tanto.

Uma vez tive a revelação do extraordinário poder da sua perspicácia


adivinhatória. Acabava de receber más notícias de Londres. Minha situação
parecia ameaçada, forçando-me a interromper bruscamente minha permanência
nas Índias. No eremitério estava gozando da mais ampla hospitalidade; contudo,
não queria ficar numa posição delicada, pois isso não é do meu caráter. Há
situações que não posso evitar e que talvez cheguem a exigir minha volta à
Europa.
Conquanto isso seja uma provação, não posso me orgulhar de que tenha feito
progresso.

Estou completamente aniquilado; nem me atrevo a passar as tardes ao lado de


Maharichi.

Vagueio o resto do dia, melancólico, amaldiçoando a sorte que, de um só golpe,


parece querer arrebatar-me o fruto de meus esforços.

Chego a um tal desânimo que, ao regressar à cabana, deixo me cair na esteira,


preso de profundo desalento. Alguém, batendo levemente na porta, me faz voltar
do meu devaneio de sobressalto. A porta se abre lentamente, e qual é a minha
surpresa quando vejo entrar meu amigo Ramiah!

Levanto-me às pressas e, vendo-o acocorar-se, tomo a mesma posição ao seu


lado. Ele me fixa atentamente; estou lendo nos seus olhos uma pergunta muda,
não sei nada do seu idioma e ele também não fala o inglês; entretanto, alguma
coisa me obriga a lhe falar na minha língua materna, na esperança de que, talvez
mesmo não entendendo minhas palavras, possa ler os pensamentos nos meus
lábios. Em algumas frases curtas e estacadas com gestos de desânimo, conto-
lhe o aborrecimento que acaba de se abater sobre mim.

Ramiah escuta-me calmamente. Por fim me faz sinal que me compreende e


convida-me com o gesto a segui-lo. Saímos; vamos andando pelo atalho sombrio
da selva e chegamos rapidamente a um lugar deserto, poeirento e ensolarado.
Por mais de meia hora prosseguimos nosso caminho, sempre subindo. Paro um
momento à sombra de uma bananeira, não podendo mais aguentar o calor; após
esse curto descanso, continuamos nossa escalada através dos arbustos até
chegarmos à margem de um lago. O caminho parecia ser conhecido de Ramiah.
Nossos pés se afundavam na terra fofa, enquanto estávamos subindo até um
pequeno areal que rodeava um pequeno charco coberto de flores de lotus de
cores variadas.

O Yogue escolhe uma árvore, cujos galhos caídos dão uma sombra agradável,
e senta-se, convidando-me a tomar lugar ao seu lado. A copa maciça do plátano
nos cobre como uma grande barraca-de-sol; a solidão completa do lugar acentua
mais a impressão constrangedora do deserto, onde a terra nua e abandonada
estende-se numa distância de cerca de duas milhas, antes de embrenhar-se,
novamente, na mata virgem.

Ramiah acocora-se com as pernas cruzadas, na posição já tão familiar para mim;
os olhos, fixos na superfície espelhada do lago, imobilizam-se aos poucos e vejo
que se entrega a profunda reflexão. Minutos se escoam lentamente. Imóvel como
uma pedra, a face serena tornada tão calma como o espelho das águas, tão
absorto em contemplação introvertida como se estivesse encaixado na
paisagem, qual árvore vigorosa cuja folhagem nenhuma brisa agita. Meia hora
se passa. Ele continua parado, o olhar perdido no horizonte da colina ou bem
mais além... transfigurado talvez por essa paz infinita da natureza ou por
iluminação interior, como que fundido com o silêncio universal.

Subitamente começo a experimentar essa paz de perene doçura que


imperceptivelmente penetra minha alma. Sim! Por incrível que pareça, sinto
minha angústia dissipar-se, minha aflição acalmar-se. Qual é a fonte donde
emana esta benéfica irradiação? Não duvido mais que devo essa mudança, essa
graça, a alguma manifestação misteriosa, cujo segredo meu companheiro
possui.

O calor torna-se mais suave, à aproximação da noite; a areia começa a resfriar-


se. Um último raio dourado vem iluminar a face do Yogue, assemelhando-o a um
ídolo santo, aureolado por um nimbo. Uma paz indizível me inunda. As
vicissitudes da vida reduzem-se às suas proporções verdadeiras e recuam,
diante da imensidão da existência profunda e divina, na qual sinto
irresistivelmente que vou também me afundar. Percebo neste momento, e com
uma clareza deslumbrante, que o homem pode aceitar, sem se perturbar, os
dissabores mundanos, se porventura conseguir encontrar o centro de gravidade
do seu ser. É uma loucura querer basear sua vida e suas aspirações nos bens
efêmeros da nossa existência, quando a certeza da proteção divina está dentro
de nós mesmos.

Quando o sábio Galileu disse a seus discípulos que não se preocupassem com
o dia de amanhã, foi por que Ele sabia que um poder Superior os protegia.
Percebo, num vislumbre, que desde que o homem siga essa voz interior, que
não é outra senão o apelo da voz divina, estará certo de suportar, sem
desfalecer, os reveses da vida.

Existe em alguma parte dentro de nós um elemento básico que dá todo o valor
à existência, elemento de valor fundamental na vida, que transforma as
vicissitudes em vãs quimeras, fazendo com que os homens atravessem a
existência sem medo e sem dúvidas.

Percebo isso agora e estou livre do peso que me oprimia. O tempo deixou de ter
significação, sem que eu pudesse compreender e avaliar o mistério dessa
presença interior e da sua total independência do tempo e do espaço.

O crepúsculo cai; algo brota repentinamente das minhas reminiscências,


avisando que a noite tropical surge com uma surpreendente rapidez,
acompanhada por seu cortejo de terror. Mas nessa noite não receio nada, basta
que esse homem extraordinário esteja perto de mim e eu o tenha como guia para
o bem supremo — a serenidade.
Quando afinal ele me toca no braço, num convite para levantar-me, a escuridão
é completa. Seguimos o caminho de volta de mãos dadas, sem luz, e sem outro
guia senão o sentido de direção, que meu companheiro parece possuir.

Em qualquer outro momento eu teria tido medo, pois em nenhuma outra hora a
criatura humana se sente tão envolta no mistério das sombras que se movem
como fantasmas. Penso no meu cachorro Jackie, o fiel companheiro dos meus
passeios e refeições solitárias, que voltou um dia, do combate com um leopardo,
com a garganta aberta, e no seu infeliz irmão, que jamais voltou. Quem sabe se
não vou ver surgir o clarão verdejante dos olhos do tigre esfomeado, pisar uma
cobra, ou tocar com a sandália um escorpião real, esse pequeno monstro pálido,
cuja picada é irremediavelmente mortal? Tenho vergonha de tais pensamentos
ao lado do meu impávido amigo, estando sob a proteção de sua aura, na qual
me sinto envolvido.

O coro noturno rivaliza com o da natureza matinal, mais profundo, talvez, e mais
misterioso; ao longe ouvem-se os urros dos chacais, uivos estranhos de animais
lhes fazem eco, e perto da lagoa, o coaxar dos sapos, o rastejar silencioso dos
lagartos e o esvoaçar dos morcegos, acompanham o ciciar dos insetos.

Na manhã seguinte, quando desperto, abro minha alma serena ao universo


deslumbrante de sol.

* * *

Quantas coisas poderia dizer ainda sobre as minhas entrevistas com Maharichi,
sobre a vida do eremitério, a vida dos discípulos, pacata e sem imprevistos, se
não fosse tempo de pôr ponto final à minha narrativa!

Quanto mais observo Maharichi, mais vejo nele o herdeiro de um passado, para
quem a descoberta da Verdade tem, evidentemente, maior valor do que uma
mina de ouro.

Doravante sinto e tenho certeza de que, enfim, encontrei neste canto perdido da
Índia um dos últimos Super-Homens que a terra possuiu; esta face deve ser a
dos antigos Richis, cuja lembrança ficou viva neste país. Não obstante o que sei
dele, sinto que o mais íntimo, o mais maravilhoso da sua alma, ainda me estão
velados; o tesouro da sabedoria, do qual cada átomo do seu ser está
impregnado, ainda não está ao meu alcance. O Mestre parece pairar,
transportado a alturas aonde não posso segui-lo. E, quando espalha sobre mim
sua graça com tanta benevolência, ligando-me a si com laços inquebrantáveis,
submeto-me sem restrições ao enigma da sua personalidade.

Eu sei que, materialmente falando, se ele quisesse isolar-se de todo contato e


toda intromissão, bastaria que eu encontrasse um fio de Ariadne puramente
espiritual, para me ligar à sua alma. Eu o amo, porque ele soube conservar nesse
ambiente de sublime grandeza uma humilde simplicidade que fascina; não pensa
vangloriar-se de poderes ocultos para deles fazer, mais seguramente, impressão
sobre seus patrícios apaixonados pelo mistério que o canonizariam ainda em
vida, se ele não fosse tão completamente despido de pretensões.

Parece-me que a presença em nosso orbe de homens tais como Maharichi não
pode ser o efeito de um capricho do destino. Mensageiro do Divino, ele é a
continuação desses Seres que aparecem no decorrer dos séculos para
assegurar a continuidade e a permanência do Espírito na terra; é portador da
Revelação que incita à Fé, repelindo as argumentações e polêmicas estéreis.

O que dá ao seu ensinamento uma tão grande força de atração é que é inspirado
em razões desinteressadas, paralelo ao espírito prático e que, analisado de
perto, é perfeitamente científico. Ele não invoca nenhum poder sobrenatural e
não pede uma fé cega. A atmosfera de sublime santidade que irradia dele não
se encontra no templo vizinho, cujo emanação de grandeza secular faz débil eco
aos seus métodos de introspecção racional. A palavra Deus não sai senão
raramente dos seus lábios; ele não se lança às cegas no oceano da magia, onde
numerosas investidas cheias de promessas terminam em naufrágio. Propõe
simplesmente um método de auto-análise, que pode ser praticado, independente
de qualquer sistema filosófico ou crença religiosa, método que deve levar o
homem ao conhecimento de si próprio, e daí ao Ser puro.

Estou cada vez mais convencido de que, mesmo que não tivesse havido troca
de palavras, algo do espírito de Maharichi penetraria em mim. A sombra da
iminente partida, infelizmente, me persegue e magoa profundamente; transfiro a
partida tanto quanto posso, mas a doença me espreita de novo, e toda minha
força de vontade, receio muito, será ainda impotente para se impor ao meu corpo
combalido. Não se abusa da natureza impunemente; e a iminência da crise é por
demais evidente.

Por lamentável ironia do destino, no momento em que minha vida espiritual


parece estar perto da realização é que minha saúde se sente abalada. Algumas
horas antes da minha experiência culminante na presença do Maharichi, senti
calafrios seguidos de transpiração anormal, anunciando o acesso de febre que
eu temia já há algum tempo.

Ao voltar do templo, onde queria visitar um santuário habitualmente fechado aos


estrangeiros, entro na grande sala, no momento em que já estava em meio a
meditação da noite. Contudo, tomo ainda a posição exigida, fecho os olhos e
concentro-me.

Aos poucos começo a dominar meus pensamentos vadios e obtenho intensa


interiorização de consciência. A forma física do Maharichi flutua, distintamente,
diante da minha visão interior. Dócil às instruções do mestre, esforço-me para
sobrepujar essa imagem sutil e perceber, além dela, o ser puro, sem forma, sua
alma — digamos. Com grande surpresa, quase instantaneamente o consigo. A
imagem desaparece e surge um sentido muito nítido de sua presença interior,
real, irresistível.

As objeções que eu me tinha feito até agora quando me martelava de perguntas,


todas as sensações, emoções, decepções sucessivas, são definitivamente
afastadas. Esforço-me agora para atingir a fonte mesma, o foco de ação da
consciência, e dirigir sobre ela toda minha atenção.

E então, vem um momento supremo. Neste estado de concentração mental,


recolhido em mim mesmo, tudo que me circunda começa a esfumar-se numa
sombra indecisa; a mente adquire uma impressão de estar reduzida a nada, de
ter chegado a uma espécie de vácuo. Procuro manter minha atenção presa
nesse estado de introversão, esforço que exige uma disciplina mental intensa. A
vida lá está, com suas tentações, seus problemas de indolência e sonhos —
como é difícil não se deixar distrair por eles!

Esta noite, porém, consigo chegar neste ponto quase na primeira tentativa.
Depois de um curto combate contra o assalto dos pensamentos inoportunos,
meu desejo é coroado de êxito, e um poder soberano, uma espécie de
dinamismo interior, jamais ainda sentido, ajuda-me a triunfar, guiando-me
velozmente, à finalidade anelada.

Venço a primeira batalha sem muita luta. Esse estado de tensão se transforma
em seguida num sentimento de calma, de tranquila felicidade. Percebo que estou
separado da minha faculdade de pensar; assisto de fora, como um espectador,
ao seu funcionamento, e algo me adverte que a mente é apenas um instrumento
exterior do Eu. Aí há uma espécie de desligamento da mente. A faculdade de
raciocínio não é mais um privilégio do qual o homem deve se orgulhar, é uma
coisa totalmente comum, da qual ele pode e deve se libertar, pois nesse
momento concebo claramente que, até agora, eu era seu prisioneiro. Um súbito
desejo me impele a situar-me além do intelecto e a ESTAR fora dele, penetrando
num plano ainda mais além e mais profundo do que o próprio pensamento. A
vontade de saber o que irá acontecer quando estiver livre da tutela habitual do
cérebro e do raciocínio, estimula essa ânsia e mantém toda minha atenção alerta
e vigilante.

Sensação muito estranha, aliás, essa que consiste em se colocar à distância e


observar a função cerebral como se fosse objeto de uma experiência, e assistir,
assim, ao nascimento e ao desenrolar das idéias. Não menos estranho aquele
sentimento que acabo de perceber, intuitivamente, quando me sinto aproximar-
me do limiar do mistério que permite o acesso ao tesouro oculto da alma. Sinto-
me um Cristóvão Colombo no momento de atracar numa terra desconhecida, e
essa expectativa dirigida em perfeita consciência, é a antecipação de algo
inconcebível.
Mas, como me separar radicalmente da antiga tirania dos pensamentos? Nunca
o Maharichi me aconselhou a forçar a detenção do pensamento. “Investigue a
origem do pensamento — é o seu reiterado conselho — vele pela revelação do
seu verdadeiro eu, e então seus pensamentos se extinguirão por si”.

Isso é exatamente o que se passa. Sinto haver atingido a raiz, a origem mesmo
dos pensamentos. Relaxo então o esforço positivo e entrego-me à mais completa
passividade, concentrando toda atenção nesse ponto, e não obstante mantendo-
me tão vigilante como uma serpente sobre sua presa.

Domino esta condição de equilíbrio, até que verifico a exatidão dos


ensinamentos do Sábio. As ondas do pensamento se acalmam gradativamente;
o trabalho da faculdade racional atinge o ponto morto. Essa é bem a maior e a
mais estranha sensação que vivi. O tempo parece hesitar na sua marcha, à
proporção que a faculdade intuitiva penetra mais fundo e coloca suas antenas
no mundo inexplorado. Os sentidos deixam de ser percebidos, e até mesmo a
sua lembrança. Tenho a sensação de que posso, de um momento para outro,
ficar além das coisas e atingir o umbral do mistério do universo.

E esse momento vem. O pensamento se extingue como um fogo que se apaga,


e recua ao seu próprio lugar, isto é, onde a consciência não é mais interrompida
na sua ação pela intervenção do raciocínio. Reconheço a verdade das palavras
do Maharichi, quanto à origem transcendental do espírito. A mente está em
estado de suspensão, num vácuo, como num sono sem sonhos, porém sem a
menor perda de consciência. Estou perfeitamente calmo, absolutamente cônscio
do que sou e de tudo o que se passa em mim; todavia, essa consciência está
liberta dos limites da personalidade, perde-se no sublime infinito, abrangendo
todas as coisas criadas. O eu subsiste, porém uma existência transfigurada,
irradiante, algo infinitamente superior à minha insignificante personalidade que
era e que interpretava até agora como meu eu.

Esse algo que faz parte do divino se eleva além da consciência e torna-se Eu.
Surge então o sentimento da liberdade, porque o pensamento que estava
submisso a um movimento de vaivém, liberta-se: ficar livre do seu mecanismo
equivale a respirar o ar puro ao sair de um cárcere.

Agora ultrapasso os limites da consciência cósmica. O mundo terrestre, que era


tudo para mim, desaparece. Estou submerso na imensidão da luz, e sinto atingir
à quintessência primordial donde surgem os mundos, e a matéria no seu estado
primitivo, infinito, incriado, indivisível, perene, a fonte inesgotável da vida. Com
a velocidade de relâmpago, adquiro a noção do mistério do drama que se
desenrola no espaço sideral. Tenho a consciência de chegar à substância
original, à fonte mesmo do ser. Este Eu, esse Eu transfigurado, está envolto num
mar de inexprimível felicidade; bebo da taça platônica de Letes!
Névoas e amarguras do passado, brumas e incertezas do futuro, tudo está
esquecido. É a liberdade plena em sua divina essência. Abraço, num impulso de
amor sem reserva, a criação inteira, e compreendo agora, plenamente, que
conhecer tudo não é somente tudo perdoar mas também tudo amar. Minha alma
está deslumbrada, em êxtase...

Como resumir tamanha experiência através de uma pena que se recusa a


transmitir em palavras sutilezas tão delicadas? É mister, portanto, procurar
amoldá-las para exprimir essas verdades eternas em idioma terrestre, e tenho
certeza de que não será um esforço perdido. Tentemos, então, trazer à memória,
mesmo em termos inábeis, algumas gotas da fonte do mundo inexplorado que
se estende além das fronteiras do espírito.

* * *

O homem pode se orgulhar da sua alta linhagem: um Ser infinitamente maior


que sua mãe lhe deu vida; ele pode chegar a esse conhecimento nas horas em
que o amor divino lhe abrir a porta do saber.

* * *

Na época longínqua, em sua preexistência, o homem fez um juramento de


obediência e fidelidade ao seu criador, e andava envolto em luz nas pegadas
dos deuses. Se hoje alguns obedecem a esse mundo terrestre que os submete
à ação material, ainda ficaram aqueles que não esqueceram da sua promessa
de outrora, a qual lhes será lembrada, quando a hora chegar.

* * *

Há no homem um elemento perene onde reside seu verdadeiro ser; ele quase o
ignora, mas essa ignorância não altera nem afeta em nada sua divina origem;
ele pode até esquecê-lo e embriagar-se com o prazer dos sentidos, mas no dia
do seu despertar, quando se volver ansioso para seu verdadeiro Eu, lembrar-se-
á do que ele é. Tornará, então, a descobrir sua alma.

* * *

O homem Pertence à eternidade, mas não se estima no seu próprio valor, porque
perdeu a noção do divino que nele está encoberto. Julga cômodo submeter-se à
opinião alheia, embora fosse mais acertado encontrar a certeza plena no centro
espiritual autônomo do seu próprio ser. A esfinge não tem, como se crê
comumente, o olhar dirigido para horizontes terrestres, mas voltado em
contemplação interior; o enigma do seu sorriso está no conhecimento de si
mesmo.

* * *
Aquele que, apesar de olhar para dentro de si, não encontrar senão trevas,
dissabores, fraquezas e vaidade, não deve trocar sua decepção por ceticismo
amargo; ele tem que se olhar sem tréguas, sempre mais além, sempre mais
profundamente no âmago do seu ser, até que comece a perceber, por indícios
muito suaves, um sopro leve que nasce quando cessa o turbilhão dos sentidos.
Esses sinais devem ser recolhidos preciosamente, pois tomarão corpo,
crescerão e transformar-se-ão em pensamentos elevados que transporão o
limiar da mente, como missionários celestes, anunciadores da voz que se fará
ouvir, voz de um ser oculto, misterioso, que vive dentro de nós e que não é outra
coisa senão o Eu real.

* * *

Há momento na vida em que o homem desfruta da revelação de sua natureza


divina, mas se passar indiferente, esta revelação será como um grão semeado
na rocha. Nenhum homem está excluído dessa consciência divina; é ele que se
exclui por si próprio. O homem busca no mistério o segredo da vida; no entanto,
cada passarinho pousado no galho, cada criança segurando a mão de sua mãe
— resolveram o enigma e trazem a resposta escrita na fronte. O ser que te deu
a vida, ó homem! é mais grandioso e mais nobre do que teu pensamento jamais
possa imaginar; crê em sua benevolência e obedece aos seus mandamentos
para que possas ouvi-los no íntimo da tua alma e compreender, pela intuição,
esse sussurro, discreto como o murmúrio da folhagem acalentada pela brisa.

* * *

O homem imagina poder viver livremente ao sabor dos seus desejos, sem avaliar
que entrega sua vida a uma quimera; todo aquele que peca contra seus irmãos
ou contra si mesmo, assina sua própria condenação; pode ocultar seus pecados
à vista do mando, mas não poderá jamais escondê-los ao olhar dos deuses. A
balança inexorável da justiça divina governa o mundo, embora seu julgamento
passe frequentemente despercebido, não gozando da publicidade dos pretórios.
Quem escapa à justiça da terra, não escapará nunca à justiça dos deuses, pois
a implacável Nêmesis a mantém a todo momento suspensa sobre a sua cabeça.

* * *

Aqueles que navegam num mar de amarguras, cuja vida é órfã de sol, e
caminham anos embebidos de lágrimas, estão mais chegados a ouvir no fundo
dos seus corações sangrentos o murmúrio discreto da verdade eterna; se eles
não ouvem, ao menos, vêem o sentido trágico das voltas da fortuna. Aqueles
que não se deixarem cegar nas horas de sol deslumbrante, sofrerão menos a
dor nas horas amargas. Não há uma vida humana que não seja urdida de
alegrias e dores e nenhum homem deve dizer-se feliz antes da hora da morte
chegar. Portanto não deve contemplar seus irmãos das alturas do seu orgulho,
como se estivesse andando nas nuvens, pois o abismo lhe está perto. A
humildade é a única roupagem que o homem deve vestir na presença dos
deuses invisíveis que podem num golpe privá-lo dos bens conquistados; todas
as coisas se movem segundo um ciclo ordenado pelo destino; é cego aquele que
não as percebe. Assim, após o apogeu, o perigeu; após o fluxo, o refluxo; depois
da abundância, privações e carência; a saúde é um hóspede inconstante e o
amor que surge não tarda a desaparecer. Mas a noite de lenta agonia da morte
cede à alvorada da sabedoria reencontrada. O maior ensinamento a tirar dessas
leis é o seguinte: quer ele sinta ou não, quer ele queira ou não, o supremo refúgio
do homem está nele mesmo. Ele deve voltar a ser aquilo que foi, senão a
angústia das decepções e a dor conspirarão periodicamente para trazê-lo de
qualquer maneira. Não há um homem, por mais feliz que seja, que os deuses
permitam escapar a esses dois grandes redentores da humanidade.

* * *

O homem jamais se sentirá seguro, a não ser protegido por pensamentos


sublimes. Enquanto ele se compraz nas trevas, teimando em não aceitar a luz,
suas mais engenhosas descobertas científicas afundá-lo-ão no abismo; cada vez
mais profunda será a noite, quanto maior o apego às coisas da matéria que ele
deve deixar um dia, e não fazem mais do que criar empecilhos ao homem, que
está ligado, de maneira indissolúvel, ao seu passado divino. Ele é, respira e age
na presença do seu íntimo ser, presença que não pode negar! Que ele entregue
então, incondicionalmente, todos os seus pensamentos, alegrias e dores a essa
melhor parcela de si próprio, se quiser viver em paz e morrer em dignidade.

* * *

Seja quem for, uma vez que se contemplou no espelho do seu interior, despojar-
se-á de todo ódio para com seu semelhante; não há pecado pior que o ódio, não
há maior desgraça do que o sangue derramado pela guerra, que embebe léguas
de terra, não há castigo mais certo do que aquele que golpeará os que provocam
flagelos no mundo; que ninguém tenha esperança de escapar ao olhar dos
deuses, testemunhas ocultas e mudas dos crimes humanos. Os gemidos dos
povos ressoam no mundo enquanto a paz estende os braços; os homens
estraçalhados de dor, torturados pela dúvida, procuram, tateando às cegas, o
caminho da escuridão, enquanto a luz sublime está aí para iluminá-los, mas eles
não a vêem. O ódio não desaparecerá da superfície da terra enquanto o homem
não tiver aprendido a olhar a face dos seus irmãos, não à luz do dia que ilumina
indiferente todas as criaturas, mas transfigurados pela luz interior que é o reflexo
do divino, e enquanto ele não os fixar com o respeito a que tem direito o ser em
cujo coração habita um elemento da mesma essência daquele Poder chamado
Deus.

* * *
Tudo que é realmente grande na Natureza, e belo na arte, revela ao homem sua
origem divina. Onde o sacerdote desaponta o devoto, o artista inspirado desperta
emoções capazes de levar o homem a Deus. Aquele que gravou os raros
momentos em que a beleza deixou suspender o véu do limiar das profundezas
eternas, pode sempre, nas horas sombrias, refugiar-se no santuário interior.
Nesse santuário gozará paz, renovará forças, encontrará o raio de luz, confiante
em que no momento que atingir o umbral da sua real natureza, terá um amparo
infinito e tona compensação perfeita. Os eruditos inutilmente cavarão, feito
toupeiras, nos montões de volumes que atulham as paredes da sala do saber;
não desvendarão jamais verdades mais profundas do que essa verdade
suprema: O Eu é de essência divina! As mais ardentes aspirações do homem
passam com o decorrer dos anos, mas a esperança de vida eterna, a esperança
do amor perfeito, a esperança da felicidade infinita — essas, infalivelmente,
realizar-se-ão porque nos foram prometidas pelo destino, que não se engana
nem se deixa enganar.

* * *

O homem pergunta aos seus antigos profetas o segredo dos altos pensamentos;
busca, em longínquo passado, regras de conduta nos dogmas cobertos de
poeira dos tempos, mas não sabe que é em si mesmo, na sua própria natureza,
que guarda a augusta revelação que procura. É suficiente encontrá-la para
sentir-se imerso em luz, e tudo que é realmente digno de ser pensado ou sentido
vem se pôr, sem esforço, a seus pés. Em meditação profunda, na paz do
santuário da sua mente concentrada, surgirão visões nobres e santas, como as
que foram reveladas aos grandes profetas hebreus e árabes que clamavam aos
povos sua origem divina. A mesma aura inundava Buda de luz, quando recebeu
e transmitiu aos seus adeptos a revelação do Nirvana; é a mesma em que estava
oculto o germe de amor infinito que jogou aos pés do Jesus, Maria Madalena,
lamentando sua vida dissipada.

* * *

A poeira dos tempos não pode encobrir essas verdades eternas, vivas através
dos séculos, desde o primeiro homem na terra. Não há um povo que no seu
nascimento não tenha recebido a revelação, mais ou menos velada, dessa vida
profunda acessível ao homem. Aquele que estiver pronto para recebê-la, não
deve interpretá-la apenas com o intelecto, mas concebê-la em seu coração, onde
ela brilhará entre as idéias como um astro no seio da nebulosa, inspirando-lhe o
desejo da realização suprema.

* * *

Uma força irresistível, contudo, traz-me novamente a noção deste mundo e


pouco a pouco, retomo a consciência daquilo que me rodeia. Vejo-me sentado
de pernas cruzadas na sala do Maharichi, agora deserta. Meu olhar pousa
instintivamente no relógio do eremitério e, pela hora que marca, compreendo que
os moradores da casa foram tomar a refeição da noite.

Nesse momento, sinto uma presença muda ao meu lado; volto-me e vejo meu
velho amigo que ficou sozinho perto de mim, olhando-me com sua inalterável
ternura.

— O senhor ficou em êxtase quase duas horas — disse-me — e seu rosto


sulcado pela idade, devastado pela dor, me sorri, como querendo compartilhar
da minha própria felicidade. Eu queria responder-lhe, mas percebo que minha
faculdade de falar desapareceu momentaneamente. Só no fim de uns quinze
minutos retomei a palavra, e o velhote aproveita para continuar:

— O Maharichi o observou durante todo esse tempo; creio que o espírito dele o
guiava nessas horas abençoadas.

Alguns instantes depois, o Sábio entra na sala e os discípulos o seguem,


tomando seus lugares em volta, enquanto não chega a hora do recolhimento.
Ele se senta no diva, as pernas cruzadas, com o cotovelo apoiado no joelho, o
queixo na mão, dois dedos cobrindo a face. Nossos olhos se encontram; ele não
os desvia, continua fitando-me com extraordinária intensidade. Quando o
servente vem diminuir as luzes, conforme o hábito da noite, estou impressionado,
novamente, pelo contraste que faz esse brilho estranho do seu olhar, com a
calma imperturbável dos seus traços. Os olhos brilham no claro-escuro da sala
como duas estrelas gêmeas, e com tal fulgor que eu nunca tinha visto olhos
iguais aos deste último descendente dos antigos Richis. Se realmente o divino é
suscetível de refletir-se nos olhos humanos, isso é evidente nesses olhos que
refletem o poder do Altíssimo.

A fumaça do incenso se ergue em pesadas espirais. Três quartos de hora se


passam em profundo silêncio. Para que servem as palavras? Qual é a
necessidade delas, agora, para nós, quando nos compreendemos melhor sem
elas? Quando suave e bela harmonia aproximou nossas almas, quando recebo
diretamente do seu olhar uma mensagem inexpressa, mas de perfeita clareza?
O Maharichi abriu para mim o acesso à sua alma; doravante elas se comunicarão
em perfeita ressonância.

* * *

Dois dias seguidos combato a febre que aumenta. Meu amigo, ex-chefe da
estação, vem me visitar à tarde, tristonho:

— Sua estada perto de nós chega ao seu fim, meu irmão, mas o senhor voltará,
não é?

— Certamente que voltarei!


Não havia necessidade de refletir; a resposta saiu-me dos lábios como um eco
à sua pergunta. Quando ele me deixa, saio para contemplar pela última vez a
colina do Santo Lume, Arunachala, a Santa Montanha Vermelha, como os
habitantes locais gostam de chamá-la. A montanha se impõe; é impossível
conceber esse lugar sem ela, como é impossível fugir ao encanto que dela
emana. Acaso, também eu terei sucumbido ao feitiço desse pico solitário?

No momento em que escrevo, ela se destaca clara e luminosa; tenho-a sempre


presente na retina, seu contorno gracioso, a linha suavemente ondulada da sua
encosta e seu cume altivo. Segundo a tradição local, ela é completamente oca,
e habitada por grandes espíritos invisíveis aos olhos mortais. É uma lenda, eu
sei. Entretanto, essa montanha tem qualquer coisa de singular. Por efeito de
alguma magia? Não sei. Tenho visto centenas de outras, infinitamente mais
belas e mais atraentes. Devemos admitir que essa áspera paisagem, com seus
enormes rochedos ameaçadores, avermelhados pelo sol tropical, engloba uma
poderosa característica de personalidade que se impõe pela sua influência
misteriosa e que os antigos chamavam “Terror Sagrado”.

Quando vem o crepúsculo, despeço-me de todos os moradores do eremitério, à


exceção de Maharichi. Despedi-me com um sentimento de tranquila satisfação,
resultante da vitória conquistada com tamanho esforço. Pela bem-aventurada
vivência, logrei a certeza, sem nada sacrificar do meu racionalismo, do qual
tentava, sempre em vão, libertar-me. Essa satisfação, porém, cede lugar à
intensa melancolia, quando mais tarde atravesso pela última vez o pátio, em
companhia do Sábio. Esse homem me conquistou de maneira singular e me
afeta profundamente a idéia de deixá-lo. O Mestre ligou-me ao seu espírito com
laços indesatáveis sem nada pedir em troca, se não ver a alegria de o homem
encontrar-se a si mesmo e libertar-se. Ele me levou à presença do meu ser íntimo
e ajudou o ocidental desgarrado que eu era, a compreender essa palavra que
hoje é tão vazia de sentido quanto cheia de potência, de felicidade vibrante e
fecunda.

Retardo a partida, incapaz de expressar minha emoção crescente. O céu, de um


azul profundo, resplandece de milhares de estrelas. A lua em ascensão é um
semicírculo crescente de prateada luz. Os inumeráveis pirilampos guarnecem o
jardim com um tapete cintilante de lantejoulas. As copas de palmeiras
estremecem suavemente, balouçadas pela brisa noturna.

Chega ao seu fim o belo sonho do qual acordo transfigurado. Certo de que a
roda incansável do destino tornará a me trazer a este retiro, levanto as mãos
juntando as palmas em sinal de adeus, balbuciando algumas palavras banais. O
Sábio sorri, olhando fixamente, sem dizer uma palavra.

Um último olhar a Maharichi, contemplando pela última vez à tênue luz da


lanterna, sua alta figura, de pele cor de cobre e olhos todos brilhantes, um último
gesto, ao qual responde com um movimento leve da sua mão, e separamo-nos.
Subo no carro de bois, à espera; o cocheiro estala o chicote, e os dóceis animais
dão volta no pátio, e lentamente, mergulham na noite tropical perfumada de
jasmins.
Glossário

ANNA — Moeda hindu correspondente a 1/16 da rupia.

ARYA (Sânsc.) — Santo, nobre, de nobre raça. Nome de uma raça (aria) que
invadiu a Índia no Período Védico.

ARYAVARTA (Sânsc.) — “A terra dos Áryas”, ou seja, a Índia. Antigo nome da


Índia do Norte, onde se estabeleceram os primeiros invasores bramânicos.

BABA — Termo hindustani-urdo, derivado de uma raiz turca que significa pai.
Um tratamento respeitoso aplicado a pessoas notáveis por sua ciência.

BANJAN ou BANIANA — Árvore própria da Índia (Ficus Indica ou Bengalensis),


da família da figueira comum da Europa.

BRÂHMAN (Sânsc.) — A mais elevada das quatro castas da Índia. Sacerdote ou


brâmane: indivíduo pertencente à casta sacerdotal.

CHEETAH — Animal carnívoro (Acimonix venaticus) do sul da Índia, de pele


amarela ou clara e manchas negras.

CURRY — Termo anglo-hindu, derivado do tâmil kari, salsa. É um prato de arroz,


simples ou com carne, temperado com cúrcuma, uma planta oriental de
propriedades medicinais.

GURU (Sânsc.) — Instrutor espiritual; mestre ou preceptor em doutrinas éticas


e metafísicas. Também significa mestre de uma ciência qualquer; pai ou mãe;
superior; pessoa digna de veneração e respeito; chefe de uma seita.

HASHISH, hachich ou axis (Aráb.) — Erva seca; extrato das folhas de uma
variedade do cânhamo (Cannabis indica), especialmente preparadas para
mascar ou fumar. É um tóxico.

HINDUSTÃO — Terra ou pais dos hindus.

HINDUSTANI — Um dos idiomas da Índia.

HOWDAH — Liteira que se coloca no lombo de um elefante ou camelo, para


transportar pessoas.
JAGGERNAUT — Epíteto honorífico com que alguns designam Vishnu e
Krishna. Nome de um dos maiores templos da Índia construído beirando o ano
de 1.100 de nossa era, na cidade de Puri.

JINN (Aráb.) — Entre os maometanos é plural, designativo de uma classe de


seres de hierarquia menor que a dos anjos. O singular é jenni.

LAKH — Raiz hindustani do sânscrito laksha, com o mesmo significado: 100 000
ou o seu equivalente.

MAHA (Sânsc.) — Grande, magno.

MAHARAJ ou MAHARAJÁ (Sânsc.) — Grande rei ou soberano.

MAHARISHEE, Maharichi, Maharchi (Sânsc.) — Grande Richi, iluminado ou


profeta. O dotado de visão espiritual.

MAHASAYA (Sânsc.) — Grande receptáculo, e por extensão, pessoa de grande


coração, muito acolhedora.

MAHATMA (Sânsc.) — Grande Espírito ou Grande Alma.

MAHRATTA — Grande império. Diz-se de uma casta guerreira do sul e sudoeste


da Índia.

MAHRATTI — Gentílico do povo mahratta.

NEEM — Árvore asiática e do sul da Europa (Melia Azadirachta ou Azadirachta


indica). Particularmente abundante na índia, Ceilão e Java.

PANDIT, Pandita ou Pundit (Sânsc.) — Sábio, doutor, letrado, professor.


Também título concedido pelas universidades hindus.

PEEPUL — Árvore da Índia (Ficus religiosa), da família da figueira européia.

PUNKAH — Peça plana de bambu, colocada verticalmente em relação ao teto,


a qual se move mediante uma corda para produzir corrente de ar.

RAJÁ ou Rajan — Um príncipe ou rei da Índia.

RISHEE ou Richi — Iluminado, sábio, inspirado; profeta.

SADGURU — Mestre perfeito.

SADHU — Bom, puro, justo, reto, virtuoso, agradável e excelente.

SAHIB — Tratamento respeitoso usado pelos hindus, mormente para com os


estrangeiros.

SHAH (Pérs.) — Designativo dos reis da Pérsia. Traduzido ao vernáculo por Xá.
SHIVA — Terceira pessoa da Trimurti ou Trindade hindu. Grafado em português
Xiva.

SHRI — Prosperidade, fortuna; felicidade; bem-aventurança. Anteposto ao nome


de pessoa ou coisas, é sinal de respeito, equivalente a divino, santo, venerável,
glorioso, bendito. Ex.: Shri Krishna.

SIKH — Membro de uma comunidade militar de Punjab, estabelecida no começo


do século XVI, a princípio como seita religiosa, fundada por Nanak, de Lahore.

SWAMI ou Swamin (Sânsc.) — Senhor, mestre; pandit.

TÂMIL — Nome que se dão a si mesmos e ao seu idioma alguns povos do sul
da Índia.

TÉLUGO — Idioma dos dravianos do sul da Índia, da família do tâmil.

TIFFIN — Chá com biscoitos a tomar em horas aprazadas.

URDO (Turco) — Acampamento; nome dos hindustanos entre os hindus.

VUDU — Variante do francês falado em Haiti, vaudoux, feiticeiro negro.


Denominação dada a certas práticas, superstições e ritos secretos dos negros
do Caribe e do sul dos Estados Unidos.

YAMA (Sânsc.) — Na mitologia pós-védica, é o rei e juiz dos mortos.

YOGA (Sânsc.) — União do inferior com o superior, do humano com o divino,


principalmente por meio da meditação e de práticas disciplinares. Nome de uma
das seis principais escolas filosóficas da Índia, que foi fundada pelo famoso
filósofo Patanjali, autor da obra Yoga Sutras, traduzida em muitas línguas
ocidentais.

ZEN — Seita budista, segundo a qual a iluminação lograda por Buda só pode
ser obtida pela realização do Eu Superior, e não por meios externos, como ritos,
erudição, cultos, etc.

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