Paul Brunton - A Índia Secreta
Paul Brunton - A Índia Secreta
Paul Brunton - A Índia Secreta
A ÍNDIA
SECRETA
UNIVERSALISMO
Sumário
Introdução
Glossário
A Índia Secreta
O Oriente é o quadrante donde provém toda a luz que ilumina o mundo: luz do
Sol e luz do Espírito. Não é sem significação que dali vieram para o Ocidente as
grandes religiões e filosofias, e mesmo a ciência, que depois enriqueceram a
cultura de suas nações.
Entre esses investigadores está Paul Brunton, autor desta e outras obras, e que
se destaca por seu ardor e imparcialidade no trato dos problemas da cultura e
do espírito. Assim, nas páginas que seguem assistirá o leitor ao desfile dos mais
exóticos e interessantes personagens, de ambos os sexos e de diversas
categorias, uns imponentes e raros, e outros rasteiros e vulgares. E a todos o
autor inquire, analisa e compara com alta compreensividade.
É, pois, um livro útil aos estudiosos destes problemas, e de leitura atraente aos
simples curiosos. Nele cada um pode aprender, no mínimo, que os homens
buscam a Verdade por muitos caminhos, e que a Verdade é como o Sol
dadivoso, que irradia sua luz, calor e vida para todos, indistintamente, com a
única condição de buscarem seus raios benfazejos.
Nesta obra, o que menos se vê é o seu próprio autor, cujo objetivo se concentrou
exclusivamente em expor os fatos por ele observados e analisados. Como
jornalista, aprendera a empregar a técnica do hábil e impessoal redator tão só
preocupado em descobrir, observar, relacionar e expor fatos com a maior
fidelidade, a fim de que outros os lessem, estudassem e tirassem as suas ilações
próprias.
A Índia sagrada — também poderia ser o título do livro porque se trata dessa
Índia cujo segredo se mantém inviolável, devido, unicamente, ao caráter sagrado
da sua filosofia. As coisas muito sagradas da vida não são expostas aos olhos
do público. O instinto do homem o avisa da necessidade de ocultá-las nos
adentros mais inacessíveis da alma. E mesmo quando ele não as pode esconder
de todos, deixa, então, apenas entrever tais segredos somente aos poucos
escolhidos em cuja alma sente arder amor à vida espiritual.
Não obstante, em virtude do seu caráter oculto, o segredo pede a busca. Está
escrito: “Procura e acharás”. Para aquele que busca saber a Verdade com todo
o coração, com a real vontade de encontrá-la, o véu do mistério acabará sempre
por se rasgar.
O senhor Paul Brunton possuía essa energia e acabou por encontrar o que
buscava. Entretanto a tarefa não lhe foi fácil e as dificuldades foram enormes.
Na Índia, aliás como em toda parte do mundo, há muita espiritualidade espúria
através da qual se tem de forçar a passagem para atinar com a verdadeira. Há
uma vasta multidão de saltimbancos e acrobatas mentais que deverá apartar
com os cotovelos quem busca a real espiritualidade.
Esses homens são bastante interessantes nos seus diversos campos de ação,
e merecem, sem dúvida, atenção dos cientistas interessados no estudo dos
fenômenos psíquicos; mas eles não são verdadeiros espirituais; não é deles que
flui, como da fonte, a verdadeira Luz Divina. Eles não possuem o segredo nem
formam a parte sagrada da Índia que procurava o senhor Paul Brunton.
Ele passou por entre esses mercadores de ilusão, sem, todavia, demorar-se.
Buscava sempre além, procurava a espiritualidade na sua mais pura essência.
Incansável, procurava... procurava até que, finalmente, acabou encontrando o
maior tesouro que a terra pode possuir. Longe dos lugares abafados, no mais
fundo da selva agreste ou no inacessível Himalaia, onde os santos da Índia
sempre renascem, o senhor Paul Brunton encontrou a verdadeira encarnação
de um daqueles homens que a Índia considera como sua maior glória e o coloca
no pedestal da mais alta e mais pura sabedoria divina como o que há de mais
sagrado e mais santo.
Embora, Maharichi, o Grande Sábio, seja o homem que mais o atraia, não é o
único de sua classe. Podem-se encontrar outros; pouquíssimos são eles, é
verdade, mas existem, esparsos por toda a extensão da Índia — das montanhas
nevadas até às planícies tórridas do Sul. São esses homens que representam a
verdadeira alma da Índia e só através deles é que se manifesta a um grau
inconcebível toda a Poderosa Alma do Universo.
Eles são os únicos dignos de nosso maior interesse e dos excelentes estudos
que santificam e é o resultado de tais estudos que este livro nos traz.
Há sempre uma passagem obscura nas páginas consagradas, pela maioria dos
autores, à vida da Índia, que me acho no dever de esclarecer em benefício do
leitor ocidental. Os antigos viajantes e mesmo, ocasionalmente, os modernos,
transmitiam aos interessados as mais estranhas histórias sobre os faquires
indianos. Que parte da verdade se oculta por trás dessas lendas que volvem
sempre aos nossos ouvidos, referindo-se à misteriosa classe de homens
chamados Yogues, por alguns, e Faquires, por outros? Qual é a verdade das
alusões reticentes à antiga sabedoria que proporciona aos seus adeptos o mais
extraordinário desenvolvimento das faculdades humanas?
Antes de resumir os fatos nas páginas que se vão seguir, empreendi uma longa
viagem à procura desses homens estranhos, para, fielmente, poder transmitir o
resultado das minhas observações.
Pouparei ao leitor a perda de tempo que tomaria a narrativa das façanhas por
mim vistas, e sem o menor proveito para a finalidade a que me propus.
Julgo, entretanto, poder dizer, sem a menor vaidade, ter sido um privilegiado ao
descobrir um dos aspectos mais antigos da sabedoria indiana, raramente
percebido e, ainda menos, compreendido pelo comum dos visitantes. De todos
os ingleses que residem ou residiam neste vasto país, quantos são, realmente,
os que tiveram a verdadeira preocupação de tomar interesse e abrir os olhos a
esse aspecto da Índia? Bem poucos. Mesmo entre essa ínfima minoria, quais os
que tiveram a coragem de ir além das aparências e transmitir lealmente o que
constataram sob o risco de verem comprometido seu prestígio de ocidentais? A
maioria dos autores que tocaram no assunto, sem as convenientes indagações,
restringiu-se ao ceticismo zombeteiro que os desviou da fonte da sabedoria
indiana, afastando-os dos sábios hindus, únicos que realmente possuem poder
para discutir o assunto. O resultado é que, de um modo geral, o homem branco
possui conhecimento muito rudimentar dos Yogues e, mesmo, se ouvisse falar
de alguns deles, por certo, esses não seriam dos melhores. E há razão para isso:
é que seu pequeno grupo se tornou raro, mesmo no país de origem, e o cuidado
com que eles escondem do público sua verdadeira qualidade é que ocasionou a
preferência para que se acredite em sua ignorância, para não serem expostos à
agressão e vexação do vulgo.
Na Índia, de fato, como no Tibete ou na China, eles se livram dos ocidentais que
invadem seus retiros sem a mínima deferência, fechando-se propositadamente
sob a máscara da indolência ou da estupidez. Se os Yogues conhecessem o
sentido profundo da célebre citação de Emerson: “Ser grande é ser
incompreendido” — poderiam, talvez, senti-la melhor do que nós. Seja como for,
eles são, na maioria, os reclusos voluntários que não desejam misturar-se com
o comum dos mortais. E, mesmo, se eles permitissem uma aproximação, não se
deve esperar vê-los saírem da sua reserva, sem a certeza de uma prévia
preparação adequada do postulante.
Essa a explicação para o fato de quase nada ter sido escrito, no Ocidente, sobre
a vida estranha dos homens denominados Yogues e, do pouco que foi revelado,
tudo parecer tão impreciso e tão vago.
A narrativa dos autores que escreveram sobre o assunto não deixa de merecer
crédito, mas também não se pode aceitá-la sem reserva, porque os orientais,
comumente, confundem os fatos reais com a fantasia, sem o mínimo
discernimento. Este defeito tende a despojar qualquer narrativa, que diz respeito
aos Yogues, de todo valor documentário.
Por todos os lugares por onde andei, sempre mantive os olhos abertos para a
crítica honesta, sem que houvesse qualquer espírito de hostilidade da minha
parte. Não faltaram pessoas que, logo ao saberem que além do conceito
filosófico, também me interessavam os fatos místicos e milagrosos, não
tratassem de sofisticar e, com um verniz abundante de sabedoria, cobrir sua
magra bagagem de sapiência. Alguns pensaram que me deixaria seduzir pelos
seus contos maravilhosos mas inverossímeis, ou pelo brilho dos seus milagres.
Não adiantava lhes dizer que a Verdade é forte por si mesma, sem o apoio dos
argumentos, porque tinha algo maior a fazer.
Estou certo, porém, de que jamais poderia ter chegado ao ponto que cheguei,
se não tivesse, na minha qualidade de ocidental, os dois elementos tão
frequentemente em conflito: um ceticismo científico e uma sensibilidade
receptiva sempre alerta.
Se eu intitulei este livro A Índia secreta é porque ele é consagrado a um país que
soube se retrair durante milênios a toda e qualquer investigação. A obstinação
em que se firmaram os Yogues, entrincheirando-se atrás de um esoterismo tão
absoluto, pode parecer egoísmo em nosso século de democracia excessiva; em
todo caso, essa atitude nos ajuda a compreender: eles se tinham visto
gradualmente rejeitados do curso normal dos acontecimentos que constituem a
história do mundo.
A ignorância seria perdoável num homem que nunca tivesse deixado sua terra
natal, nem houvesse esquecido o som dos sinos da sua igreja, mas tendo
residido vinte e seis anos no país, tanta ingenuidade surpreendia! Tive o cuidado
de não destruí-la...
Por outro lado, eu havia sempre vivido uma vida totalmente livre de
compromissos; consagrei a maior parte dos meus lazeres aos estudos das
ciências herméticas, dirigindo ardorosamente meus passos pelos caminhos
escabrosos das experiências psicológicas. Mergulhei-me nos assuntos que
sempre foram encobertos pelo véu de mistério cimeriano, com uma atração inata
por tudo que toca ao Oriente. Já antes da minha primeira viagem, a Índia lançava
sobre minha alma poderosos tentáculos que finalmente, levaram-me ao estudo
dos livros sagrados da Ásia. Devorei os sábios comentários dos doutos
Brâmanes, bebi os axiomas dos mestres orientais, à medida que ia adquirindo
as traduções.
* * *
Que o Ocidente tenha muito a aprender da Índia atual, é coisa que nego; porém,
que nós temos bastante que aprender dos sábios hindus de outrora e daqueles
que ainda vivem, não tenho nenhuma hesitação em afirmar. O turista ocidental
que visita as grandes cidades da Índia e lugares históricos, embarca satisfeito
ao virar as costas a uma civilização que julga, na certa, atrasada; mas, um dia
outros virão que, ao invés de explorar ruínas esboroadas dos templos ou
palácios de mármore dos reis mortos, irão ver os sábios bem vivos, capazes de
lhes revelar a fonte da sabedoria desconhecida em nossas universidades.
Serão esses Yogues simplesmente homens ociosos bocejando ao sol tórrido dos
trópicos? Criaturas indolentes que nada produzem? Nunca teriam eles pensado
em coisa alguma que pudesse ser útil ao resto da humanidade? O viajante de
visão curta não perceberá nada, além de decadência e preguiça. Não obstante,
um pouco de consideração para com eles bastaria para tirar-lhes o selo dos
lábios e ver abrirem-se as portas dos tesouros eternos. Admitimos que a Índia,
há séculos, curvou a cabeça entorpecida pela inércia. Admitimos que milhões de
camponeses indianos não ultrapassaram no que diz respeito à instrução e
cultura, imersos nas superstições pueris e religião infantil, o nível do camponês
inglês do século XIV. Reconhecemos também que, embora os eruditos
Brâmanes passem a vida a esticar, em vão, o fio metafísico tão sutilmente quanto
os nossos escolásticos medievais, os centros de ensino filosófico continuam a
ser um núcleo de cultura, restritos porém inestimáveis, firmados sobre os termos
genéricos da Yoga, proporcionando à humanidade o conhecimento de uma
doutrina tão valiosa, talvez maior do que todos os progressos da ciência
ocidental.
Maior sábio será aquele que se der ao trabalho de percorrer as feitas poeirentas
do Oriente, na esperança de ver alguma coisa estranha, de encontrar um grão
esquecido da misteriosa sabedoria, pois assim a sua procura não terá sido em
vão.
* * *
Parti então ao encontro dos Yogues e suas ciências herméticas. Preciso
confessar que a idéia de encontrar a luz espiritual e a vida divina, embora não
fosse meu propósito essencial, também brotava em mim. Caminhei ao longo das
margens de rios sagrados da Índia: do calmo Ganges de ondas esverdeadas, do
largo Jumna e da encantadora Godavari; dei a volta ao país e recebi a minha
recompensa: a Índia estendeu-me os braços, apertou-me no seu coração e os
últimos sobreviventes dos Grandes Sábios abriram a porta secreta ao ocidental
desambientado.
Não havia muito tempo, porém, era eu um daqueles que consideram Deus uma
criação do espírito humano; a Verdade espiritual, uma nebulosa sem a menor
consistência e a Justiça como uma invenção para uso dos idealistas infantis.
Encarava com enorme paciência os construtores do paraíso teológico, que me
enchiam a cabeça, dando-se ares importantes, julgando-se corretores de
locação da divindade! Senti apenas piedade desses edificadores de quimeras e
de seus fúteis, bem como fanáticos esforços.
E quem operou essa revolução capital foi um sábio da selva, um humilde eremita
que vivia há seis anos no fundo de uma caverna; é quase certo que ele não seria
capaz de passar no mais elementar exame escolar, mas mesmo assim, não senti
a menor vergonha em reconhecer humildemente, no fim deste livro, a imensa
dívida que contraí para com ele. O país que produz tais homens merece, ao
menos, uma especial atenção por parte dos ocidentais, picados pela varejeira da
inteligência! Embora secreta, a vida espiritual da Índia não é um mito; existe e
existirá sempre, apesar de tempestades políticas e agitações subterrâneas.
Esforço-me por transmitir neste livro os fatos autênticos sobre mais de um adepto
da Yoga, que atingiram a serenidade e a iluminação, dádivas a que nós, pobres
mortais, aspiramos hoje tão desesperadamente. Transmito também outras
coisas tão maravilhosas quanto desconcertantes, que me parecem ainda
inacreditáveis, enquanto trabalho sentado diante de minha máquina de escrever,
no ambiente prosaico da campina inglesa. Eu mesmo me admiro da minha
coragem ao escrevê-las para serem lidas pelo mundo cético e corrompido.
Todavia, não creio que as idéias materialistas, que nos regem atualmente, sejam
eternas. Parece-me já perceber os indícios da próxima evolução do pensamento
humano. Evidentemente, como a maioria da minha geração, não acredito em
milagres; pois creio, firmemente, que o conhecimento das leis da natureza é
ainda incompleto. Mas, quando uma vanguarda de sábios, avançando passo a
passo nesse campo, ainda inexplorado, chegar a descobrir, um dia, algumas
dessas leis, nós, então, acharemos muito natural a manifestação de coisas que
poderão parecer, ainda hoje, verdadeiros milagres.
2
Prelúdios da busca
Sua infância passou, mas seu amor pela Índia ficou inalterado. De modo mais
amplo, ele abraça toda a Ásia com os tentáculos do desejo que o obseda. Ele se
exalta, imagina poder fugir pelo mar; faz planos malucos, pensa que, uma vez
embarcado, não seria nada difícil ver seu sonho realizar-se. Não pode deixar de
fazer participar dos seus planos os colegas, até que um dia um deles cai no
contágio do seu jovem entusiasmo.
* * *
— Queira desculpar-me, caro amigo, por interrompê-lo, mas não pude conter-
me ao ouvi-lo falar de assunto que tem, para mim, tão grande interesse. O senhor
cita os antigos filósofos gregos, norte-africanos e certos Pais da Igreja, como se
fossem eles os primeiros a sustentar a doutrina do contínuo retorno da alma
humana à terra. Eu julgo, entretanto, que as mais profundas inteligências da
antiguidade já sabiam do assunto muito bem; porém, em que país pretende o
senhor que esta doutrina realmente tenha tido origem?
Cala-se um momento, mas sem nos dar tempo para uma réplica...
— Não pode ser! o senhor pretende seriamente que essa filosofia tenha o
Ocidente progressista recebido de um Oriente atrasado? Mas, isto é impossível,
senhor!
— Por que impossível? Releia Apuleio 1 e veja como Pitágoras se dirigiu à Índia
onde foi instruído pelos Brâmanes, pois desde sua volta à Europa começou a
ensinar a doutrina da metempsicose. Isto é apenas um exemplo, entre muitos.
Um Oriente atrasado? Deixe-me rir! Há milhares de anos os nossos sábios
debruçaram-se sobre os mais intrincados problemas da metafísica, num tempo
em que os seus patrícios nem imaginavam a existência desses problemas.
Quanto a mim, escuto calado sem mesmo tentar uma réplica. A conversa cai de
repente por si própria; nenhum de nós se atreve a romper o silêncio. O hindu
volta à sala contígua e reaparece pouco depois, trazendo na mão um caríssimo
in folio. Paga a importância e prepara-se para retirar-se. Já está a um passo da
porta; sigo-o com o olhar, incapaz de dar uma palavra.
Aceito com alegria, mas muito maior é minha surpresa quando ele me entrega,
juntamente com o cartão, um convite para jantar naquela mesma noite.
* * *
Ao chegar diante de uma grande porta maciça, que parece emergir subitamente
do nevoeiro, termina o incômodo da perambulação. Dois grandes lampiões,
sustentados por um par de consolos de ferro batido, parecem dois braços
estendidos para acolher-me. Entro e, desde então, minha surpresa começa a
crescer.
Nunca esperava encontrar interior tão requintado, que desde a entrada traía o
gosto fino e a apurada sensibilidade do seu dono, visivelmente zeloso de um
conforto fora do comum. Entro num vasto aposento que poderia servir de sala a
algum palácio asiático, tanto pela riqueza do seu exótico mobiliário, como pela
sua fina decoração. Ao fechar a porta, sinto-me de repente transportado para
muito longe da umidade gelada e fosca do nosso Ocidente brumoso.
Num dos cantos, vejo uma pequena mesa laqueada de preto e sobre ela um
oratório de marfim com as portas douradas. No fundo desse templo em miniatura
destaca-se a imagem esculpida de um dos deuses indianos, sem dúvida Buda,
a julgar pela expressão calma e enigmática da face e dos olhos imóveis sob as
pálpebras caídas.
O criado que nos serve dá uma nota pitoresca em volta da mesa; traja calças e
jaquetão brancos, cinturão dourado e um imaculado turbante.
— Meu amigo, outrora houve Grandes Videntes em meu país, homens que
penetraram os mistérios da vida. Seus conselhos eram ouvidos por reis e o
comum do povo também respeitava suas palavras. Sob a inspiração desses
homens, atingiu a Índia o apogeu de sua civilização. Hoje, quantos são eles e
onde se escondem? Talvez restem dois ou três, mas dos quais ninguém sabe,
nem se houve mais falar, pois estão afastados das correntes da vida moderna.
Quando esses Grandes Sábios (nós os chamamos Richis) começaram a retirar-
se do mundo, também nossa decadência começou.
Inclinou a cabeça para o peito. Sua última frase foi dita com um acento tão
doloroso que por um momento ele fica como que ausente, a alma inteiramente
mergulhada na abstração melancólica. Sua personalidade impressiona-me cada
vez mais; ela força o interesse, exerce um encanto irresistível. Os olhos escuros,
cheios de luz, revelam uma intensa vida interior e o suave calor da sua voz
denota um coração generoso. Decididamente, sinto que gosto desse homem
estranho.
— Não lhe disse que ainda ficaram dois ou três? pergunta com voz grave.
Eu tive o privilégio — continua — de conhecer um desses Sábios, a respeito do
qual falo raramente, hoje. Possuidor da sabedoria divina, ele era para mim como
meu próprio pai, meu guia, meu mestre e meu amigo. Eu não poderia tê-lo
amado mais se fosse seu filho; nos momentos felizes que passei ao seu lado,
convenci-me de que a felicidade ali estava, junto dele. O ar que o envolvia,
operava milagres. Eu, que por inclinação inata tinha feito da arte meu
passatempo favorito e da beleza, meu ideal, aprendi a ver a beleza divina nos
leprosos, aleijados e enfermos, homens dos quais, antes de conhecê-lo, fugia
com horror.
O mestre vivia num eremitério agreste, longe da cidade; eu descobri seu retiro
por acaso, ou pelo que me parecia, então, ter sido um acaso. Desde esse dia
comecei a visitá-lo amiúde e junto a ele permaneci horas ouvindo palavras
sagradas. Com ele aprendi muito, e digo-lhe, pois, que um país que produz tais
homens é um grande país.
— Mas então, por que ele não serviu seu país, participando da vida pública?
pergunto.
* * *
— Com a maior boa vontade — responde-me sorrindo — mas não será fácil dar-
lhe numa só definição a noção real do Yogue. Pergunte a doze dos meus
patrícios e cada um lhe dará uma descrição diferente.
Há, por exemplo, milhares de mendigos que se fazem passar por Yogues. Eles
vão de aldeia em aldeia pelas estradas e, literalmente, invadem as festas
religiosas. A maioria é de vagabundos, outros são viciados, mas todos eles,
igualmente analfabetos e ignorantes, nada sabem das doutrinas da filosofia da
Yoga, sob o manto da qual se abrigam.
Mas, se o senhor, por exemplo, for a um lugar como Richikesch, que é protegido
pela possante muralha do nevoso Himalaia, o senhor encontrará ali uma classe
de homens totalmente diversa. Eles vivem em humildes choupanas ou nas
cavernas, comendo pouco e passando a vida em orações. A religião para eles é
uma necessidade tal como o ar que respiram e os alimentos que comem — ela
toma conta dos seus pensamentos dia e noite. São, na maioria, homens de
grande bondade, estudam os livros sagrados e entoam preces. Também se
chamam Yogues, embora não tenham nada em comum com os mendigos que
se lançam, como a uma prêsa, sobre a multidão simplória e ignorante.
Eu observo:
— Oh! Para isso tenho uma outra explicação em reserva, diz o meu amigo,
sorrindo. — Existem ainda nos retiros solitários, longe da povoação, confinados
no coração da selva ou nas grutas das montanhas, os estranhos indivíduos que
passam a vida em práticas de exercícios ainda mais estranhos, com os quais
esperam obter, como resultado, tais poderes maravilhosos. Alguns deles
desprezam a religião, rejeitando tudo o que a ela se refere, enquanto outros são
profundamente religiosos. Todos eles, entretanto, são unidos na luta com a
Natureza da qual procuram arrancar o segredo das forças ocultas. Fique
sabendo que a Índia sempre possuiu tradicionais conhecimentos a respeito do
mistério e do oculto, e essas crenças sempre tiveram seus adeptos. Ouve-se
contar muitas histórias sobre esses homens estranhos e dos milagres que
produzem; eles também são chamados Yogues.
Enquanto isso, meus olhos se voltam para o oratório que está sobre a mesa
laqueada e imagino ver, na penumbra, Buda olhando-me, a sorrir, do seu trono
esculpido em forma de lótus de madeira dourada. Sinto um encantamento no ar,
que insensivelmente me penetra. Mas, neste momento, a voz clara do hindu
interrompe meus pensamentos, detendo o impulso da minha imaginação.
— Olha! — diz, mostrando alguma coisa que tira de sob seu colarinho. — Sou
um Brâmane e este é o meu cordão sagrado. Milhares de anos de rigorosa
clausura tornam instintivas e, como que congênitas, certas particularidades da
casta. Nem a instrução ocidental, nem minha permanência na Europa puderam
suprimi-las. A fé num Poder Superior, a crença na existência das forças
sobrenaturais e no progresso espiritual da humanidade, tudo isso é inato em
mim, dentro de minha qualidade de Brâmane. Não posso destruir essas idéias
mesmo querendo e, nos conflitos que surgem entre a fé e a razão, é sempre a
razão que sucumbe. Assim, embora respeite os princípios e métodos da ciência
moderna, que outra resposta lhe posso dar senão esta: eu creio!
— Não lhe posso também negar que encontrei tais homens. Uma, duas, três
vezes. Não é muito fácil achá-los no nosso caminho. Outrora, deixavam-se
encontrar mais facilmente, porém, hoje chego a crer que estão quase totalmente
desaparecidos.
— Não; ele pertencia a uma ordem ainda mais elevada; não lhe falei que era um
Richi?
— Evidentemente, ele é capaz, porém com uma diferença: o milagre, para ele,
não possui o valor que a maioria dos Yogues taumaturgos lhe atribui ao realizá-
lo. Esse poder se desenvolve naturalmente em um Richi como fruto da sua
intensa concentração; para ele o milagre não é o fim, é apenas um meio de que
ele geralmente se serve pouco, quando não o abandona por completo. Sua
finalidade essencial é atingir a perfeição dos seres divinos como Buda no Oriente
e Cristo no Ocidente — os mais vivos exemplos.
Sem dúvida, mas o senhor pensa que Ele os fez para se vangloriar? Não, em
absoluto. Os milagres eram para Ele o meio de convencer as almas dos
pequenos e dos humildes para trazê-los à fé.
— Mas, se existem, realmente, na Índia, homens como os Richis, por que não
se atira a seus pés e não os segue?
— Esteja certo de que isso acontecerá, algum dia, com toda a certeza, assegura-
me ele.
— Sabia por uma espécie de intuição, não é assim que vocês dizem? Bem, o
nome não importa; é uma espécie de mensagem profundamente sentida, mas
inexplicável para tornar-se evidente. Meu mestre ensinou-me a treinar e
aperfeiçoar em mim esta faculdade. Por experiência aprendi a confiar nela, sem
reservas.
— Não insisto, embora sentindo que ele poderia dizer-me muito mais, se
quisesse. Depois de haver pensado um pouco, apresento-lhe uma sugestão:
— Suponhamos que um dia o senhor volte ao seu país. Se por acaso eu estiver
livre nessa ocasião, não será possível viajarmos juntos? Não gostaria o senhor
de ajudar-me a encontrar as pegadas de um desses homens?
— Não, meu amigo, o senhor deve ir sozinho, buscar e achar por si próprio.
* * *
Uma noite vamos jantar num pequeno restaurante cigano onde, ao encanto da
luz suave se alia a qualidade da mesa. Terminada a refeição, saímos. A lua cheia
brilha no zênite e a noite encantadora convida-nos a caminhar. A conversa fora
superficial e fútil ao jantar, mas o passeio incita-nos a falar sobre coisas mais
sérias. Andamos lentamente pelas ruas silenciosas da cidade, mergulhamos em
temas filosóficos. Nossa conversação se torna tão alta e abstrata que
subitamente penso nos clientes do meu amigo, cujos cabelos se teriam arrepiado
unicamente por ouvirem a difícil nomenclatura referente à metafísica. Diante da
sua porta estende-me a mão. Quando aperto a dele, repentinamente sua voz
toma um tom grave; quase sussurrando, e lentamente, deixa cair as palavras:
Mas, não! Estou enganado, certamente. O destino lança novas ordens cada dia,
e ainda que nem sempre tenhamos compreensão necessária para ouvi-las,
dirigimo-nos inconscientemente para o fim assinalado. Doze meses depois,
desembarco nas Docas Alexandra de Bombaim. Perdido no labirinto colorido da
grande cidade, escuto a cacofonia dos dialetos asiáticos que se cruzam.
3
O Mago Egípcio
O que mais nos intriga é o fato de não ser hindu nem europeu. É um estrangeiro
da margem do Nilo, um mago chegado do Egito! A aparência de Mahmud Bey
não se concilia com os sombrios poderes que lhe são atribuídos. Espera-se ver
um rosto sinistro e emaciado e, no entanto, aparece uma face rechonchuda e
sorridente. Pensa-se vê-lo embuçado num amplo traje branco, porém, ele usa
um terno do melhor alfaiate; de talhe bem posto, ombros largos, com a
vivacidade do homem de ação, mais parecendo um francês da alta sociedade,
frequentador dos grandes restaurantes parisienses.
O dia todo pensei no assunto. Na manhã seguinte tomei uma resolução: Mahmud
Bey deve ser, imediatamente, entrevistado, como dizem os meus confrades de
imprensa. Rabisco algumas palavras no dorso do meu cartão de visita e marco
no ângulo direito um sinal, pensando que talvez me ajudasse a obter uma
entrevista, e pelo qual ele veria que não sou totalmente leigo no assunto. Passo-
o furtivamente para as mãos do servente, apoiando o argumento com uma rupia
e cinco minutos depois recebo a resposta: “Mahmud Bey pode recebê-lo neste
instante. Ele vai tomar seu café da manhã e convida-o a acompanhá-lo”.
Traja um chambre cinza; seus cabelos são escuros e abundantes e uma mecha
ondulada cai-lhe na testa; quando fala, sorrindo, descobre os dentes de
imaculada brancura.
— Não, eu vim à Índia com o intuito pessoal de estudar certos aspectos da vida
espiritual do país, e de colher algumas impressões para um livro que tenciono
escrever sobre o assunto.
— Eu também estou, por assim dizer, em visita prolongada. Um ano, talvez dois;
depois vou seguir para o Extremo-Oriente. Gostaria de fazer a volta ao mundo,
antes de voltar para o Egito, se Alá assim o quiser.
Comprimo a mão tanto quanto posso. O egípcio cerra os olhos; parece estar
muito longe de mim, absorvendo-se em profunda meditação; pouco depois, suas
pálpebras pesadas se abrem e os olhos cinza-escuros fixam-me novamente.
Ouço-o dizer com voz sonora:
— A pergunta que o senhor escreveu não é, mais ou menos, esta: “onde estive
morando há quatro anos?”
— Olho e... não posso acreditar, atônito, com o que vejo! Uma mão invisível
traçou a lápis o nome da cidade onde eu morava há quatro anos! A resposta está
escrita embaixo da minha pergunta.
— Sua segunda pergunta é esta: “Em que jornal era eu redator há dois anos?”
É ainda certo! Pela segunda vez desdobro o papel e vejo, rabiscado a lápis, o
nome do meu jornal!
1. Guardei o papel vários meses; a escrita não se apagou durante todo esse tempo; mostrei-o a
duas ou três pessoas e todas elas leram as respostas facilmente. Evidentemente não se tratava
de alucinação.
Nunca fiquei tão perplexo! No entanto, não se pode negar a evidência dos fatos.
Sem dúvida, ele deve ter lido no meu pensamento; não vejo outra explicação.
Suponho que tenha usado uma espécie de magia que desconheço. Pela terceira
vez peço ao egípcio para recomeçar a experiência.
Concorda e conclui com êxito. Ele me abafa! Meu cérebro trabalha febrilmente,
imagino ter uma mão invisível escrito as respostas sobre a folha que segurei na
mão... Procuro as palavras que me possam fornecer a solução do enigma. Penso
bastante, mas sinto a presença de forças desconhecidas. Para o bom senso
comum a coisa é absurda e inadmissível; desafia a razão, e sinto-me sufocado.
— O senhor conhece alguém na Inglaterra que possa fazer outro tanto? Pergunta
o mago interrompendo meus pensamentos.
— Compreendo; mas o senhor deve ter notado que não sou inteiramente leigo
no estudo dos fenômenos psíquicos.
— Não poderia o senhor, pelo menos, expor em linhas gerais a teoria, sem
comprometer seus segredos?
— Sim, posso fazer isso para o senhor, responde com voz suave.
* * *
— Sim, é verdade.
— Pois bem. Sou natural do Alto-Egito, fui educado no Cairo e era um aluno
como os outros, sem mais pretensões nem zelos, mas entusiasta, e trabalhava
muito. Um dia, um velhote veio morar na casa onde eu residia; era um judeu de
sobrancelhas grossas, de barba comprida e grisalha, que andava sempre sério
e silencioso. Seu traje fora da moda impressionava, lembrando uma aparição
dos séculos passados; era tão reservado nas suas maneiras que os outros
inquilinos guardavam distância dele. Para mim, porém, longe de me afastar,
aquela reserva intrigava-me e excitava cada vez mais minha curiosidade. Sendo
jovem, isento de timidez, desejava só uma oportunidade e persistia em querer
conhecê-lo. Suas primeiras recusas grosseiras aumentaram minha impaciência
e avivaram meu interesse pelo mistério em que se envolvia. Pouco a pouco,
entretanto, foi cedendo e acabou abrindo-me a porta, deixando-me entrar na sua
intimidade. Fiquei sabendo, assim, que havia dedicado uma grande parte da sua
existência às ciências ocultas e à magia, fazendo buscas ininterruptas referentes
às coisas sobrenaturais da vida.
Avalie só! Até então minha vida havia seguido um curso banal, rotineiro, os
esportes e as aulas eram minha única preocupação e, repentinamente, enfrento
alguma coisa tão diferente, mas que me atraía fortemente. O sobrenatural não
me causava medo, como acontecia à maioria dos meus colegas. Realmente,
fascinava-me a idéia das possibilidades das grandes aventuras que o
sobrenatural poderia me proporcionar. Implorei ao velho judeu que me ensinasse
um pouco da sua arte; finalmente, ele acabou por me atender. Assim, achei-me
subitamente introduzido noutro círculo de interesse e de amizade. O judeu levou-
me a uma Sociedade do Cairo onde se faziam investigações práticas de
espiritismo, magia, e tratava-se de ocultismo e teosofia. O grupo compunha-se
de filósofos, médicos, funcionários do governo e pessoas da alta sociedade, aos
quais meu velho judeu dava aulas. Assim que atingi a maioridade, obtive
permissão para frequentar as reuniões.
Mahmud Bey pára, sacode a cinza do cigarro com o dedo, cuja unha, observei,
era muito bem tratada.
— O mais misterioso crime, por mais perfeito que seja, não pode escapar aos
meus espíritos auxiliares que mo revelavam, reconstituindo a cena do crime na
minha visão interior.
— Vou dizer-lhe: um deles é meu próprio irmão. Ele morreu há alguns anos.
Contudo, preste bem atenção, eu não sou médium, pois nenhum espírito se
incorpora em mim e não está autorizado a controlar-me de maneira alguma. Meu
irmão se comunica comigo imprimindo as idéias na minha mente ou transmitindo
as cenas por imagens, na minha visão interior. Foi assim que pude saber das
suas perguntas escritas ontem.
— E os jinns?
— Cada espírito possui sua função própria e não pode executar nenhuma outra.
Assim, os jinns que escreveram as palavras na sua folha não são capazes de
ajudar-me a adivinhar a natureza das suas perguntas.
Sorrindo, deixa à mostra todos os seus dentes. Inclino a cabeça num gesto de
despedida, compreendendo que é inútil insistir.
* * *
O mosquiteiro, como mortalha branca, envolve minha cama. Pela janela aberta,
que dá para o terraço, suave luar entra no quarto, banhando em luz prateada os
objetos mergulhados na sombra.
Volto a pensar em minha entrevista com Mahmud Bey nessa manhã e nos
estranhos fenômenos da véspera; procuro encontrar uma outra solução além
daquela que me fora dada, mas em vão. Ou os seus trinta espíritos devotados
eram fantasmas da sua imaginação, ou retrocedemos à plena Idade Média,
época em que feiticeiros e magos, de negros intentos, floresciam em todas as
cidades européias, apesar das perseguições da Igreja e do Estado.
Qual pode ser seu segredo? Por que Mahmud Bey fez tanta questão que eu
segurasse o lápis e o papel juntos? Será que os espíritos escreveram as
respostas com átomos de grafite?
Não é de meu interesse reabrir polêmicas, pois essa brilhante mulher há muito
tempo está noutro mundo onde ela deve se sentir muito mais à vontade que no
nosso.
Não vou negar os fatos que vi com meus próprios olhos, e tenho que aceitar
como autêntica a experiência, ainda que me reserve o direito de sua explicação.
Por fim, chegamos à colônia de Meher Baba, cujo aspecto se salienta no meio
do campo pelas construções espalhadas e três edifícios extravagantes, de
pedra. (Soube mais tarde que são os restos de antigo campo militar.) No terreno
vizinho, três bangalôs rústicos de madeira e à distância de um quarto de milha,
um lugarejo ao qual se dá o nome de Arangaon. O conjunto faz impressão de
lugar vazio e deserto, como que abandonado. Meu guia parse, visivelmente
confuso, esclarece-me que ali é apenas o quartel general de veraneio do mestre,
mas que o centro fica na proximidade de Násique, cidade onde reside a maioria
dos discípulos e onde, habitualmente, são recebidos os visitantes.
O interior da caverna, voltada para o sul, é banhado pelo sol da manhã. Olho em
volta e contemplo a vasta extensão de terra cultivada; a leste a cadeia de colinas
cujas demarcações beiram o horizonte, e ao fundo, uma aldeia encolhida sob as
árvores. Este santo parse é, sem dúvida, um amante da natureza, por ter
construído seu eremitério neste asilo de paz! Por mim, sinto-me satisfeito em
poder respirar tão puro ar, depois de sair do bulício de Bombaim.
— Apaga o cigarro — diz baixinho um dos meus guias — Baba não gosta do
fumo. Jogo fora o cigarro e eis-me, um instante depois, na augusta presença do
homem chamado “O novo Messias”.
Vejo-o acocorado no fundo da gruta, cujo solo é todo coberto de tapetes persas
de lã grossa. Veste dos pés à cabeça uma ampla túnica imaculada que me faz
pensar nas camisolas de dormir que se usavam antigamente em nosso país. Ele
não é exatamente a pessoa que eu imaginei; seus olhos não são penetrantes e
falta-lhe força na expressão do rosto. Se bem que algo de calmo e de ascético,
de sobre-humano, se sinta na atmosfera que ele respira, fico surpreso, pois não
sinto, como esperava, nenhuma vibração maior na presença do homem que se
propõe nada menos que subjugar as multidões. Fito-lhe o rosto aureolado por
longos cabelos afeminados. Tem o nariz aquilino, os olhos escuros e francos que
parecem, todavia, esconder a expressão íntima; forte bigode negro guarnece-lhe
o lábio superior; a tez cor de azeitona trai-lhe a origem persa. De fato, seu pai
era um súdito do Xá. É moço ainda, não lhe dou mais de trinta anos; sua testa,
porém, é notável: baixa e fugidia. Existe, ou não, uma relação de qualidade entre
a superfície do crânio e a faculdade de raciocínio? Talvez, mas um messias está
além de todas as comparações e pesquisas!
“Muito prazer em vê-lo” — diz-me, então, mas não na linguagem de todo mundo:
segura no colo uma tabuinha com as letras do alfabeto, sobre a qual mostra com
o dedo indicador, uma após outra, a letra apropriada, e seu intérprete traduz em
palavras essa linguagem muda. O santo homem não pronuncia sequer uma
palavra desde junho de 1925. Seu irmão caçula assegurou, todavia, que no
momento em que o novo messias resolver abrir a boca, o mundo inteiro
estremecerá! Mas, por enquanto, envolve-se no mais absoluto silêncio.
Correndo, assim, seu dedo pela tabuinha, Meher Baba informa-se de minha
saúde, de minha vida e, visivelmente satisfeito, agradece-me o interesse que
tenho por seu país. Ele conhece muito bem o inglês, o que facilitará a nossa
entrevista, mas quando a solicito, adia-a para a tarde, dizendo:
Este iria ser o meu lar por mais de uma semana! Olho, curioso, pela janela sem
vidraças e sinto-me recompensado ao ver amplo panorama de campos
verdejantes, semeados de arbustos e cactos.
— Do mesmo modo que Jesus veio para renovar a vida espiritual numa época
de materialismo corrompido, eu vim para dar um novo impulso espiritual à
humanidade de hoje. Há sempre oportunidades para as ações divinas, e quando
a hora chegar, eu revelarei ao mundo minha real natureza. Os grandes
fundadores das religiões, como Buda, Maomé, Zoroastro e Jesus, não
diferenciam, em essência, suas doutrinas; todos esses profetas são
mensageiros de Deus. Seus principais mandamentos fluem através de seus
ensinamentos como um filão de ouro. Esses seres divinos encarnaram-se entre
os homens no momento exato em que sua ajuda era mais necessária,
justamente quando o espírito estava no seu mais baixo nível e a matéria parecia
ser triunfante em volta! Ora! Nós caminhamos a grandes passos para a mesma
época. O mundo atual está submerso pelas ondas da corrupção, desejos
sexuais, ambições, preconceito racial e dominado pelo culto do ouro. Deus está
esquecido, a religião pervertida; o homem aspira à vida e os sacerdotes lhe dão
pedra inanimada. Deus precisa, pois, mais uma vez, enviar um profeta entre os
homens, para restabelecer o verdadeiro culto e sacudir do torpor os povos
entregues à matéria. Eu sigo apenas a via traçada pelos antigos profetas. Tal é
a minha missão, o mandato que Deus me deu.
Meher Baba cala-se, sem dúvida deixando-me tempo para assimilar suas
palavras. De repente, a conversa toma um aspecto totalmente inesperado.
— Não tem o senhor notado o rápido progresso das comunicações nos tempos
modernos? Veja como as estradas de ferro, navios a vapor, telefones, telégrafos
e estações radiofônicas fazem do mundo inteiro uma gigantesca rede de malhas
cerradas. Um acontecimento produzido onde quer que seja, é conhecido no
mesmo dia e levado a milhares de quilômetros de distância; de modo que, se um
homem é portador de uma importante mensagem, doravante terá a humanidade
toda a ouvi-lo. Isto não é sem razão, pois os tempos que estão prestes a chegar
vão dar à humanidade um culto universal, válido para todos os povos e todas as
raças. Em outras palavras: estando a via preparada, ser-me-á permitido dirigir,
com êxito, minha mensagem ao mundo!
Esta afirmação, bem o senti, diz bastante para deixar transparecer a confiança
absoluta que Meher Baba possui em sua missão, como, aliás, toda sua atitude
o confirma. Pelo seu próprio julgamento, seus valores subirão um dia, muito
acima do comum.
— Quando vir por toda parte o reino do caos e da confusão, pois esse será o
momento propício em que os povos terão maior necessidade de minha ajuda;
quando o mundo estremecer nos seus fundamentos, abalado pelas catástrofes
e inundações, terremotos, erupções e flagelos; quando o Oriente e o Ocidente
se levantarem, um contra o outro, e o mundo ferver em fogo e sangue, então
romperei o silêncio e levarei minha mensagem. Em verdade o mundo deve sofrer
para poder ser redimido.
— Sim. Ela não está longe mas... não me é permitido revelar a data.
— Eu não terei paz enquanto o pernicioso sistema de castas não for abolido.
Precisamente esse regime foi o que levou a Índia ao nível de rebaixamento em
que hoje se encontra. Quando os “intocáveis” párias, homens excluídos da
sociedade, puderem levantar-se, a Índia recobrará seu antigo prestígio e o seu
lugar no mundo.
Por mais que me esforce, não posso imaginar nossas grandes nações ocidentais
curvando-se aos pés desses mansos homenzinhos bronzeados; parece-me, no
entanto, que a figura acocorada diante de mim percebe meu embaraço, pois
Meher Baba acrescenta:
A sutileza dessa asserção vai além do meu entender. Assim, acho melhor voltar
ao tema inicial.
— É que as minhas palavras são como eco das verdades eternas! Meu poder
místico é tal que trará um novo elemento para a Humanidade.
— É que o senhor não tem a menor idéia da mudança que, nessa ocasião, já se
terá operado no mundo...
— Por exemplo...?
— Eu posso fazer qualquer milagre, se for preciso; é fácil para quem já atingiu o
meu estado de divindade.
Prometo a mim mesmo tirar proveito, no dia seguinte, da companhia do
secretário e colher da sua boca alguns pormenores sobre esses pretensos
milagres. Sou um investigador circunspecto e tudo é grão para o meu moinho.
Novo silêncio. Pergunto, então ao santo homem, alguns fatos sobre sua infância.
* * *
O que se passou em seguida é ainda menos claro. Pelo que eu entendi, Meher
voltou à casa, visivelmente perturbado, como que louco, e durante oito meses
seguidos suas faculdades mentais desequilibraram-se de tal maneira que
impossível lhe foi continuar os estudos, deixando, finalmente, o colégio. Seu
estado agravou-se, beirando à loucura; seus olhos tornaram-se fixos, o olhar
distante e embaciado; não era capaz do menor esforço, nem mesmo para
satisfazer as necessidades fisiológicas, nem cumprir os deveres mais
elementares, como lavar-se ou tomar alimentos. Seu pai forçava-o a comer, ele
obedecia como um autômato, sem compreender, todavia, porque colocavam os
pratos diante dele. Tinha então vinte anos e deixava-se tratar como se fora
criança. O pobre pai receava que o rapaz estivesse com um esgotamento
nervoso ou anemia cerebral, mas vários médicos consultados opinaram tratar-
se de um caso de regressão mental, receitando-lhe injeções. Ao fim de nove
meses, ele obteve uma melhora e começou a participar, novamente, da vida
familiar; seu comportamento parecia mais ou menos normal, porém quando a
cura se tornou radical, o caráter de Meher havia mudado completamente. Suas
ambições escolares, seu desejo de vencer, o gosto pelos esportes, foram
substituídos por uma ardente sede de vida espiritual.
Uma noite chamou trinta dos seus colegas de turma e levou-os a Sacori.
Fechadas as portas do pequeno templo, Upasani Maharaj levantou-se e,
tomando a palavra, começou a falar-lhes de Deus e recomendou-lhes que
procurassem a virtude. Em seguida, revelou-lhes que Meher seria o sucessor
dos seus conhecimentos e poderes místicos, e ao terminar, para grande
surpresa de todos, comunicou-lhes que Meher havia chegado à perfeição divina
e aconselhou-os a tornarem-se seus discípulos, pois alcançariam grandes
benefícios neste mundo e no outro.
Em 1924, Meher, pela primeira vez, deixou a Índia e embarcou para a Pérsia,
acompanhado de meia dúzia de discípulos, comunicando-lhes seu desejo de
conhecer o país de seus antepassados. Mas quando o navio fez escala em
Buchir, mudou subitamente de idéia, desembarcou e voltou à Índia no primeiro
navio pronto a largar. Três meses depois as forças rebeldes apoderaram-se de
Teerã, destituíram o Xá, e novo soberano subiu ao trono da Pérsia. Nessa
ocasião, Meher Baba disse aos seus discípulos:
— Agora vocês vêem o resultado do meu poder! É pela minha influência mística
que essas coisas acontecem...
Alguns anos depois dessa misteriosa viagem, Meher Baba inaugurou um centro
de estudos muito singular. Sugestionado por Meher, um discípulo comprou um
terreno, a atual colônia de férias, adjacente à aldeia de Arangaon, e vários
bangalôs foram construídos ao lado de cabanas de palha. Uma escola livre foi
aberta; recrutaram professores entre os discípulos já instruídos, e alunos entre
a mocidade das famílias amigas. Tudo era gratuito: ensino, manutenção e
alojamento. Entre outras matérias ensinadas, como em todas as escolas, uma
aula de religião não especificada era ministrada por Meher, em pessoa.
Condições tão atraentes não podiam deixar de interessar muitos alunos, que
rapidamente formaram uma centena, com uma dúzia de rapazes chegados da
Pérsia. Ensinavam-se aos alunos os ideais, mais ou menos comuns a todas as
religiões, e também a vida e a história dos grandes profetas. Naturalmente a aula
de religião não tardou em tornar-se uma atração especial do período de estudos
e, nesse ambiente, os alunos mais velhos começaram a ser dominados por um
estado bastante confuso de devoção religiosa. Meher excitava-lhes a
imaginação passando por um personagem divino, e fez-se adorar como Deus.
Alguns deles manifestaram sinais de histeria mística e, frequentemente, cenas
extravagantes se repetiam.
Era uma das características dessa escola de novo gênero a admissão de alunos
sem distinção de casta, de raça e de credo religioso. Hindus, muçulmanos
cristãos e parses, acotovelavam-se livremente, mas isso não era, ainda,
suficiente aos olhos de Meher, cujas ambições eram mais amplas. Mandou à
Inglaterra seu principal discípulo para lá recrutar alguns alunos brancos. O
emissário, porém, chocou-se com dificuldades muito naturais, pois os pais
relutavam em confiar seus filhos a um estranho que não escondia seu intuito de
levá-los para os confins da Ásia distante. A idéia de uma escola onde se fundiam
todas as religiões não lhes significava coisa alguma; ademais há muitas escolas
na Inglaterra onde os alunos de diversos credos se misturam da maneira mais
natural do mundo. O mesmo não acontece na Índia, onde as crenças são
mutuamente inimigas, e quando acontece um caso excepcional como esse da
escola do Meher, é também muito natural que haja clamor justificável para os
hindus — incompreensível para os ingleses.
Um outro campo de ação foi criado paralelo à escola. Um hospital foi aberto e
vários discípulos, entre os mais ardorosos, percorriam o país em busca de
doentes, cegos, paralíticos e aleijados, que necessitassem de cuidados. O
tratamento, alimentação e alojamento eram gratuitos, sem falar do conforto
espiritual em que era pródigo o parse.
Das informações que respiguei, soube que o pobre diabo não sentia a menor
vocação para a vida errante. Conseguiu recrutar alguns prosélitos em Madras,
mas ficou logo doente, e voltou para morrer.
Isto é o que, em linhas gerais, consegui saber sobre a carreira desse santo
homem.
* * *
Depois de alguns encontros familiares com Meher Baba ainda tive o desejo de
obter informações mais definidas sobre a natureza da missão que se impunha a
si próprio. Solicitei, então, e obtive, uma última entrevista.
Encontro-o com uma espécie de xale azul-claro nos ombros, e sobre os joelhos
o seu alfabeto, pronto para a conversação. Atrás, os discípulos formam um
complacente auditório. Eles se entreolham, sorrindo, até que minha audaciosa
pergunta rompe o silêncio:
— Eu sei! E muito bem até! Como o senhor sabe que é um homem, eu sei que
sou um messias. Isso é a minha vida, cheia de beatitude infinita. O senhor nunca
se toma por um outro, não é? Permita-me o mesmo; não posso, pois, me
enganar sobre o que sou! Tenho uma missão divina a cumprir e a cumprirei!
— Sim. Até então eu era mundano como eram todos os meus colegas. Hazrat
Babajan abriu-me o caminho; seu beijo decidiu da minha vida, senti o universo
absorver-me e fiquei só — só com Deus. Durante meses fiquei privado do sono
e apesar disso não enfraqueci; minhas forças permaneceram as mesmas; meu
pai, que nada compreendia, pensou que eu acabasse enlouquecendo, chamou
um médico, depois outro; os doutores prescreveram-me remédios, davam-me
injeções, mas como se enganavam! Nada havia a curar, pois eu estava com
Deus! O que podiam eles fazer? Apenas eu perdera o contato com a existência
normal, e precisei bastante tempo para voltar de tão longe, o senhor me
compreende?
— E, então?
— Minha tarefa neste mundo durará trinta e três anos; passado esse tempo,
morrerei tragicamente, e meus correligionários, os parses, ficarão com a
responsabilidade da minha morte. Os outros, todavia, continuarão minha obra.
Houve outras afirmações não menos estranhas durante este último encontro;
curiosa mistura de ingênuas asserções surge, letra por letra, da ponta dos
delgados dedos do messias: “A América tem um grande futuro... um dia esta
nação se tornará um valor espiritual...” “Eu sei que aquele que colocar sua fé em
mim será socorrido...” “Não adianta quererem compreender meus atos, pois
ninguém jamais poderá alcançar-lhes o significado profundo...” “Onde quer que
eu esteja, logo a atmosfera do ambiente se espiritualizará...” “Darei ao mundo
um novo impulso e de uma tal força, que todos os problemas materiais,
econômicos, políticos, sexuais e sociais serão, finalmente, solucionados, e o
egoísmo individual, nessa ocasião, dará lugar à fraternidade universal...” “Sivagi
está aqui — foi ele quem edificou o Império dos Maratas no século XVII”. (Ao
dizer essas palavras ele aponta seu peito, querendo significar, suponho, que é
uma encarnação de Sivagi...) Alguns planetas são habitados; assemelham-se à
nossa terra em cultura e progresso material, porém, em relação ao espírito, o
nosso orbe leva vantagem...
Meher Baba, como se vê, não peca pelo excesso da modéstia quanto à sua
missão. Eu estava ainda pouco surpreso, quando — palavra de honra — com
um tom de ordem mal dissimulado, concluiu ele, assim, essa memorável
entrevista:
* * *
Parece-me que este último recurso foi o escolhido por Meher Baba.
No dia seguinte, preparo-me para ir-me embora. Havia absorvido grande dose
de sapiência e advertências proféticas, suficientes no momento. Eu não vim aos
confins do mundo para ouvir declarações de fé e afirmações grandíloquas;
preciso de fatos, ainda que estranhos e inconcebíveis, mas que possam ser
aceitos; necessito de uma prova que possa testemunhar, de alguma experiência
extraordinária, pessoal, que possa satisfazer meu desejo latente...
Resolvo voltar com vagar e passar um mês com ele. Apesar de tudo o que há de
teatral na atitude desse santo homem e na fantástica natureza de sua missão,
vale a pena investigar tudo com plena liberdade de espírito.
* * *
Após uma curta estada em Bombaim, ponho-me a caminho de Puna, atraído
pela fama da velha muçulmana, cuja brusca intervenção mandou a vida de
Meher, fazendo-o virar seu leme de maneira tão radical. Tenho a impressão de
que minha viagem não será tempo perdido; colhi algumas informações sobre ela
em Bombaim, com o juiz honorário Khandalavalla, que a conhece há cinquenta
anos e me assegurou que ela é, de fato, quase centenária — deve ter noventa e
cinco ou noventa e seis anos. Os discípulos de Meher disseram-me cento e
trinta, exagero que creditei na conta do entusiasmo deles. O juiz narra-me,
resumidamente, a história da muçulmana:
Pergunto ao magistrado sua opinião sobre ela; o juiz não duvida da qualidade de
faquir que, de fato, possui essa mulher; como ele é parse também, faço-lhe
perguntas sobre Meher Baba, e por fim o que acha de Upasani Maharaj,
inspirador atual do santo homem. Khandalavalla, juiz aposentado, homem de
idade e de experiência, faz-me então um resumo das suas desgraças, motivadas
pelas relações que manteve com Upasani. Vou citar apenas dois casos que o
juiz me narrou:
Finalmente, ela retira sua mão passando-a várias vezes na testa; depois, volta-
se na direção do meu guia e diz-lhe alguma coisa, que ele sussurrando-me ao
ouvido, traduz: — Ele está sendo chamado à Índia... ele vai brevemente. Ela
articula ainda uma frase, cujos termos será melhor gravar na memória do que
imprimi-los. Sua voz é extremamente fraca e as palavras saem-lhe lentamente e
com tremenda dificuldade. Será possível que esse corpo esquelético, essa forma
ressequida seja suporte de uma autêntica alma de faquir, dotada de poderes
maravilhosos? Mas não é pela forma do corpo que se consegue saber os
mistérios da alma... Como essa pobre mulher se aproxima dos cem anos,
aconselham-me a poupá-la, pois está fraca demais para suportar uma conversa
prolongada. Preparo-me para a despedida, fortemente impressionado com a
idéia de que esses olhos vidrados e turvos parecem traduzir um sinal de morte
iminente. O espírito, pronto a deixar o corpo já quase sem vida, parece voltar
através de seus olhos apagados e conceder, ao mundo que vai abandonar, um
resto de atenção. 2
2. Tornei a vê-la alguns meses depois e tive de novo a mesma impressão de que a sua morte
não devia tardar. Ela faleceu, efetivamente, pouco tempo depois.
Percebo com deslumbrante clareza que os cientistas que nos pretendem revelar
os segredos fundamentais deste vasto labirinto, que é o nosso orbe, em
realidade não conseguem senão levantar apenas a ponta do misterioso véu. O
que eu não compreendo é como um instantâneo contato com essa estranha
mulher fosse suficiente para abalar até às bases a minha formação mental!
Eis que um dia resolvo viajar de trem para Madras, levando a intenção de, nessa
cidade, permanecer por mais tempo. Viajo à noite; incapaz de dormir, tento
rememorar e reunir a colheita dos fatos ocorridos, e confesso que o resultado é
medíocre. Não posso felicitar-me, pois não encontrei ainda nem as pegadas de
um Yogue sequer; quanto à esperança de encontrar um Richi, autêntico Sábio,
essa então, deixo-a para o final das minhas aspirações!
Por uma cálida manhã, lembro-me, passeava ao longo desse rio encantador,
acompanhado de um Brâmane, cujo conhecimento tinha feito pouco antes, e ao
qual acabei confiando o objeto das minhas buscas. De repente, ele, agarrando
meu braço, exclama:
— Olhe! — Veja o jovem que vem ali, em nossa direção; é um Yogue. Ele poderia
interessar o senhor, mas lamentavelmente não há meios de fazê-lo falar.
— Não conheço homem mais reservado; apenas sei onde ele mora.
O hindu está a alguns passos de nós, com um corpo de atleta, aparentando ter
trinta e cinco anos, sua estatura é acima da mediana. O que me impressiona
mais é o seu rosto, que revela os traços característicos da raça negra: a pele
muito escura, o nariz achatado, os lábios grossos, constituição musculosa. Nada
tem de ariano. Os cabelos são bem tratados, presos no alto da cabeça; um par
de brincos, de forma extravagante e tamanho incomum, guarnece-lhes as
orelhas; um xale branco caindo sobre o ombro esquerdo, cobre-lhe o busto. As
pernas e pés estão nus.
Ele cruza conosco a passos lentos e parece nem reparar em nós; traz os olhos
baixos e as pálpebras caídas, como que procurando alguma coisa na rua
poeirenta. Tem-se nitidamente a impressão de que por trás desses olhos brilha
uma inteligência, e parece estar absorvido em pensamentos profundos. Gostaria
de saber qual seria o motivo dessa meditação ambulatória...
— Pergunta-lhe, por favor, se posso falar-lhe — peço a meu amigo que vacila,
sacode a cabeça e responde com a voz frouxa:
— Eu não me atrevo...
Felizmente meu Brâmane percebe que já é tempo de vir em meu socorro e, com
sua voz hesitante, diz algumas palavras de desculpas. O Yogue não responde;
seu rosto se endurece, o olhar fica frio e distante. O Brâmane olha-me bastante
confuso... o silêncio torna-se penoso. Como sair disso?
Embaraçado, reconheço que não é uma tarefa fácil decidir um Yogue a desatar
a língua. Evidentemente, eles não apreciam ser entrevistados e, ainda menos,
abrirem-se a um estranho, curioso por saber algo das suas experiências íntimas;
desagrada-lhes, sobretudo, verem-se obrigados a romper o silêncio em favor de
um inglês, isto é, de um indivíduo de que se ouve falar que, sob o capacete
colonial, não alimenta simpatia nem compreensão pelas sutilezas da Yoga.
Todavia, esta impressão dá logo lugar a outra. Sinto, nitidamente, ser objeto de
uma penetrante inspeção da parte do Yogue; tenho certeza de que, por trás
dessa máscara de indiferença, ele está penetrando no meu pensamento mais
secreto. Será que me engano? Mas não posso me livrar desta chocante
impressão: sou uma cobaia humana sob um microscópio!
Aquele momento foi decisivo! O Yogue faz um gesto, mostrando com o dedo
uma grande palmeira ali perto de nós, fazendo-nos sinal para sentarmos à sua
sombra; ele mesmo senta cruzando as pernas, por último, trocando algumas
palavras, em tâmil, com o Brâmane. Ouço a ressonância toda particular de sua
voz musical.
— O Yogue está disposto a falar-lhe — traduz meu companheiro — ele diz que
durante vários anos percorre essa parte pouco frequentada do rio e conhece
bem a região. Começo por perguntar o nome do nosso novo companheiro e ouço
uma tal ladainha de apelidos que logo o crismo à minha maneira. Seu nome à
Bramasugananda, mas tem ainda quatro outros, tão complicados que parece
mais cômodo chamá-lo, simplesmente, Brama. Pois se eu fosse chamá-lo pelos
seus cinco nomes, ocuparia uma linha inteira da página! Uma tal abundância de
patronímicos espanta-me, mas impõe respeito. 1 Assim, para facilitar a leitura
nós o chamaremos — Brama.
1. A língua tâmil, idioma do sudeste da Índia, possui as mesmas particularidades que o alemão
pela formação das palavras compostas. Ao passar pela estação ferroviária: pode-se notar o
nome: KULASEKPARAPATNAM. Poupo o leitor de outros exemplos do mesmo gênero.
— Sim, mas ainda não alcancei o grau máximo, embora me esforce diariamente
com toda a perseverança, há doze anos, praticando nossos exercícios.
Ele compreendeu, suponho, que minhas perguntas tinham um motivo mais sério
do que a mera curiosidade, puramente acadêmica. Escondendo as mãos sob o
xale, torna a fixar os olhos em não sei que objeto do outro lado do rio, e começa
assim:
Cheguei à maioridade. Resolvi então deixar para sempre a casa de meus pais e
renunciar à vida mundana, para ir em busca do mestre, custasse o que custasse!
Parti. Já era a décima primeira viagem, ou peregrinação, como vocês prefiram.
Sempre andando, andando, até que um belo dia cheguei a uma grande aldeia
do distrito de Tanjore. Desci à margem do rio, para fazer minhas abluções
matinais, e depois fiquei vagando sem destino, ao longo da ribanceira.
Subitamente surgiu à minha vista um pequeno edifício de pedras vermelhas,
assemelhando-se a um templo em miniatura. Lancei um olhar ao interior, por
mera curiosidade, e parei surpreso, vendo um homem seminu, rodeado de
pessoas. Trajava uma espécie de cinta ou tanga, e todos o olhavam com
expressão de profundo respeito. Algo de misterioso, de venerável, emanava de
sua face. Fiquei parado à porta, mudo de admiração, como que fascinado. Logo
tinha a certeza de que os assistentes recebiam um ensinamento de grande valor
e tive a intuição clara de que esse homem não era um pedante recheado de
teorias, mas desta vez era um Yogue verdadeiro, um autêntico mestre! Por que
tive eu essa impressão não lhes sei dizer.
— Afinal, você chegou! Há seis meses que uma instrução me foi transmitida para
recebê-lo como discípulo.
Exatamente seis meses se tinham passado desde que deixara a casa. Assim
encontrei meu mestre. Em seguida acompanhei-o por toda parte, algumas vezes
à cidade, outras às profundezas da mata ou selva agreste e, a partir desse
momento, comecei a fazer rápidos progressos no caminho da Yoga. Em breve
havia razão de sobra para considerar-me satisfeito, pois meu mestre era um
Yogue de alta experiência, embora adotasse o método chamado Controle do
Corpo.
— A vida da renúncia total ao mundo ainda não é para você. Volte para os seus
e retome as atividades normais; você se casará e terá um filho. Quando atingir
trinta e nove anos, certos sinais lhe serão dados pelos quais você terá liberdade
de ação e, se quiser retirar-se então, novamente, do mundo, voltará à selva e
praticará a meditação, até chegar ao ideal que se propõe todo verdadeiro Yogue.
Poderá então voltar a mim, eu o esperarei:
Obedeci e voltei à minha cidade natal. Casei-me com uma moça fiel e devotada
que me deu um filho, exatamente como meu mestre me havia predito, mas minha
esposa morreu. Pouco tempo depois meus pais faleceram; então compreendi, e
deixei mais uma vez minha cidade para vir para cá, onde moro na casa de uma
viúva idosa, conterrânea minha, que me conhece desde o berço; ela toma conta
da casa e, como a idade fê-la discreta, deixa-me viver em paz a existência
reservada que nossa regra nos impõe.
Brama cala-se. Tão impressionado fico, que não me atrevo a formular novas
perguntas. Depois de um curto silêncio, o Yogue se levanta e começa a andar a
passos lentos na direção de sua morada. O Brâmane e eu seguimo-lo.
Sinto-me triste por ter que deixar o passeio pelas margens, para tomar a
poeirenta estrada na primeira encruzilhada do caminho. Ao nosso lado passa
uma vara de porcos conduzida por uma mulher humilde de cabelos grisalhos,
que distribui golpes com um pedaço de bambu nos animais que se afastam do
grupo.
* * *
Para agradar Brama, ofereço-lhe uma pequena refeição, que ele aceita e toma
em silêncio. Ao terminar, sinto-me na obrigação de falar-lhe um pouco de mim,
nem que seja para justificar minha brusca intromissão na sua vida, e conto-lhe
resumidamente o estranho entrechoque de imprevistas coincidências que me
levaram à Índia. Quando acabo de falar, Brama, até então reservado, levanta-
se, pôs-se diante de mim e coloca, amistosamente, a mão no meu ombro.
— Quem poderá dizer de que remoto passado, nos vem este sistema chamado
Controle do Corpo, o objeto dos meus estudos? Os textos sagrados dizem que
foi revelado pelo deus Siva ao sábio Gheranda; o sábio Marteyanda colheu a
doutrina dos lábios de Gheranda e por sua vez ensinou-a aos discípulos que a
transmitiram, inalterada, através de milênios, até nós. Quantos foram os milênios
não o sabemos, nem há o menor interesse em sabê-lo. Naqueles tempos
imemoráveis, a Humanidade já era de tal maneira decaída, que os deuses
precisavam dar um meio de salvação espiritual através de uma técnica que se
referisse exclusivamente ao corpo. Esta Yoga não era compreendida senão por
poucos adeptos que se haviam aprofundado na doutrina; o vulgo possui hoje, a
seu respeito, idéias completamente errôneas. Como, lamentavelmente, esses
adeptos tornam-se cada vez mais raros, as mais estúpidas e distorcidas práticas
são atribuídas, ao nosso sistema, sem o menor desmentido. Vá a Benares, e o
senhor verá um homem que passa dias sentado e noites deitado sobre um leito
crivado de pregos, ou um outro com o braço levantado, já meio atrofiado pela
posição, e as unhas crescidas de várias polegadas. Dirão ao senhor que esses
homens praticam a Yoga; entretanto, isso não é a verdade, pois tais homens
somente a desonram! O nosso objetivo não é torturar o corpo, só com o fim de
pasmar o público. Esses ascetas são pobres diabos que ouviram falar alguma
coisa de nossos métodos e, nada sabendo da doutrina, nem da finalidade da
Yoga, deformam as práticas e usam-nas contra a natureza e o bom senso. No
entanto, gozam de veneração da multidão simplória que lhes distribui alimentos
e dinheiro.
— Serão eles tão culpados, se os verdadeiros Yogas são muito raros hoje e
mostram-se tão avaros de seus segredos? Não é natural que tais equívocos se
tornem inevitáveis?
Brama dá de ombros e um leve sorriso de compaixão lhe passa pelos lábios.
Julga o senhor que um Rajá colocaria suas jóias na estrada para uma exibição
pública? Não, ele as conserva escondidas na câmara do tesouro, no fundo do
seu palácio. Ora! qual é o tesouro que possa valer nossa ciência? Vamos então
expor deliberadamente no mercado as jóias mais preciosas que temos? Aquele
que aspira possuí-las, que se dê também ao trabalho de buscá-las. É o único
caminho, mas é o certo. Nossos textos sagrados não se cansam de repetir que
se guarde segredo, e nossos mestres revelam os mais importantes
ensinamentos somente aos discípulos comprovados, que conviveram com eles
por muitos anos. Nossa doutrina é a mais secreta, precisamente porque é cheia
de perigos, não somente para os discípulos, mas também para os profanos.
Avalie então se, nessas condições, estou autorizado a revelar-lhe algo mais do
que os rudimentos da doutrina, e mesmo esses com extrema prudência?
— Começo a perceber...
— Não há nenhum segredo neste que lhe vou mostrar, responde Brama,
sorrindo.
— Comecemos, então, pela posição de repouso; neste ponto temos muito que
aprender do gato. Um dia o mestre trouxe um gato e fez-nos observar a graça e
a perfeição do repouso neste felino especialmente quando a sesta do meio-dia
convida ao sono, ou quando ele fica em expectativa diante dos movimentos de
um rato. Nessas ocasiões o gato oferece um perfeito exemplo de repouso e
absorção total colhendo e armazenando toda e qualquer parcela de energia. O
senhor pensa que sabe descansar, mas garanto-lhe: o senhor não o sabe.
Quando sentado na cadeira, fica o senhor balançando-se de um lado para o
outro, mexendo as pernas, com um corpo continuamente em movimento; o
senhor tem aparência de repouso, mas seu espírito está ativo, com um
pensamento a puxar outro, no seu cérebro que não descansa. O senhor pode
chamar a isso repouso? Ou será apenas uma forma de atividade atenuada?
— Esta posição é muito repousante, depois de se ter ficado longo tempo de pé.
Descarregue o mais possível o peso do corpo na parte posterior. Pratique esse
exercício durante alguns minutos toda vez que se sentir cansado; ele
proporciona uma ação calmante a importantes centros nervosos.
— E pensa o senhor que isso não tem valor? Vocês ocidentais vivem em
constante atividade, mas isso implica em desprezar o repouso? O descanso dos
nervos, então, nada significa? O repouso é a base da doutrina da Yoga, mas se
nós precisamos dele, o seu agitado mundo ocidental tem muito mais
necessidade ainda do que nós.
— Esses ensinamentos são suficientes por hoje. Tenho que ir-me embora.
Pondo seu xale nos ombros, ele junta as palmas das mãos em sinal de
despedida e afasta-se, rapidamente, deixando-me perplexo pela interessante
entrevista, tão bruscamente interrompida.
* * *
Um dia faço-lhe uma pergunta sobre um ponto que desde o início excitava minha
curiosidade. Eu sei que a raça hindu tem pele escura, azeitonada, mas a pele do
Brama é negra. Por quê? indago.
Como não tenho intenção de escrever uma tese sobre cultura física dos Yogues,
restrinjo-me apenas a falar aqui de alguns exercícios que parecem ocupar uma
parte considerável da doutrina da Yoga. As vinte posições que me demonstrou
Brama à sombra das palmeiras, ou no ambiente mais prosaico da minha casa,
necessitam de tais contorções que não podem deixar de parecer, para um
ocidental comum, ridículas ou impossíveis, ou ambas as coisas, às vezes.
Uns exercícios consistem em balançar-se sobre os joelhos com a planta dos pés
virada para cima, ou balançar o corpo nas extremidades dos dedos. Outros, em
levar os braços para trás das costas, abraçar o corpo, e voltar as mãos para
frente; ou entrelaçar todos os membros numa espécie de nó complicado. Há
ainda uma outra, em que se põem as pernas em torno do pescoço e sobre os
ombros, parecendo verdadeiras acrobacias. No quinto grupo de exercícios, tem-
se que voltar o tronco para trás, para em seguida tomar as atitudes mais
extravagantes e impossíveis de ser executadas por homem comum. Ao ver
Brama fazer essas poses, começo a ter uma vaga noção das dificuldades da
Yoga.
— E os exercícios respiratórios?
— O senhor deve saber que os centros nervosos estão distribuídos por todo
nosso corpo, e cada posição afeta diretamente um centro nervoso particular.
Pelo influxo nervoso podemos influenciar o funcionamento dos órgãos internos,
bem como a evolução dos nossos pensamentos. Esses movimentos de torções
permitem-nos ativar certos centros que não podem ser atingidos de outra
maneira.
A luz começa a brotar na minha mente, a respeito dos princípios dessa estranha
cultura física da Yoga. Seria interessante confrontá-la com o nosso sistema
ocidental.
— Não conheço os vossos métodos ocidentais, responde Brama, mas pelo que
vi em Madras, quando os soldados brancos treinavam, creio ter compreendido a
finalidade dos seus monitores. Parece-me que eles visavam, antes de tudo,
fortalecer os músculos porque, suponho, é à atividade e ao trabalho físico que
vocês dão maior importância. E por isso preocupam-se, sobretudo, com os
movimentos do corpo, gastando assim grande parte de energia, esperando obter
em troca maior eficiência em todos os setores de trabalho. Não duvido da
excelência de tais métodos, cuja finalidade só é útil em vossos países
setentrionais.
— Pelo que pude compreender, o senhor quer dizer que as diversas posturas da
Yoga, quando firmam o corpo do homem imóvel, proporcionam-lhe o estado de
equilíbrio e de tranquilidade, enquanto que nossos exercícios, pela sua violência,
deixam-no ainda mais agitado?
Um dos exercícios que escolhi do seu repertório, talvez seja mais fácil de
compreender. Nessa postura, o Yogue, sentado com as pernas esticadas,
levanta os braços acima da cabeça curvando as primeiras falanges dos dedos
formando um gancho, avança o tronco para frente, faz expiração e agarra os
dedos dos pés com os dedos, assim curvados; depois, lentamente inclina a
cabeça até ficar entre os braços estendidos, com a testa tocando as coxas.
Guarda essa curiosa posição alguns minutos, para voltar à atitude inicial.
O inglês comum, que possui uma errônea capacidade, aliás hereditária, para
considerar o hindu como MINUS HABENS, como um produto enfermiço,
resultante do sol ardente dos trópicos e da subnutrição secular, teria uma grande
surpresa se conhecesse na Índia a existência de um método de cultura física tão
sabiamente elaborado, desde os tempos mais remotos.
Não obstante, é preciso reconhecer que embora uma dúzia dessas posturas seja
bastante fácil e valha a pena ser estudada e praticada, as outras setenta e tantas,
cada uma mais difícil e mais extravagante do que a outra, só poderiam ser
tentadas por alguns entusiastas ainda jovens e flexíveis.
Brama concorda.
— Eu não duvido, porém não é menos certo que para tornar flexíveis as
articulações e os músculos são necessários anos de prática contínua; os
acrobatas chegam a um bom resultado treinando desde a infância. Torna-se
evidente que os Yogues devem começar as práticas das asanas antes do fim do
seu desenvolvimento físico ou, pelo menos, antes dos vinte e cinco anos. Mas
duvido que um ocidental, chegado à idade adulta, possa começar essa ginástica
sem o risco de quebrar os ossos.
Tento imitar Brama e... ai! A recompensa do meu esforço é uma dor violenta no
tornozelo. Decididamente isso não me é possível! Tantas vezes admirei a graça
desembaraçada dos Budas, nas vitrinas das lojas de antiguidade no meu país,
e quando eu tento fazer a pose que parece tão natural, meu fracasso é
completo!...
— Não ache impossível! Talvez leve algum tempo, mas tenho certeza que o
senhor chegará ao fim. O êxito vem sempre quando menos se espera!
2. Obcecado pela harmoniosa postura de Buda, consegui afinal o êxito, depois de oito meses de
perseverantes esforços. Depois passei a usá-la naturalmente.
— A dor vai diminuindo, decrescendo, até o senhor conseguir essa pose sem o
menor sofrimento.
Brama expressa-me o desejo de que lhe faça uma visita. Atualmente ele deixou
de morar em casa; fez um barracão no fundo do quintal para ter maior
independência, como me disse.
Uma tarde, com ansiedade que não escondo, faço-me anunciar. A casa fica no
fim de uma rua poeirenta e de aspecto pobre; paro um instante e fito as velhas
paredes caiadas de branco, de sobrado de madeira e janelão saliente, a lembrar
nossas moradas medievais.
Empurro a pesada porta e ouço o barulho dos gonzos ressoar por toda casa.
Uma mulher idosa, com sorriso maternal, aparece e, curvando-se várias vezes
ante mim, leva-me através de um corredor escuro até a cozinha que dá para o
quintal.
A primeira coisa que noto é um grande pé de fícus, cuja frondosa folhagem cobre
com sua sombra um velho poço. Do outro lado deste surge uma cabana, bem
perto da árvore, aproveitando também seu frescor. É uma construção leve, feita
de bambus, de vigotes, e coberta de palha.
A velha senhora, cujo rosto é tão escuro como o do Brama, está visivelmente
excitada e, em palavras desconexas, dirige-se, suponho, ao habitante invisível
da choupana. Uma voz sonora, bem conhecida, responde do interior; a porta se
abre lentamente, o Yogue aparece, e com viva satisfação introduz-me no interior.
Ele não fechou a porta, e a mulher fica na entrada algum tempo, o olhar preso
no meu, o rosto refletindo uma felicidade extática.
A choupana está quase vazia; vejo só um divã sem almofadas, que toma todo o
comprimento da parede do fundo, e num canto, um tamborete de madeira tosca,
coberta de papéis. Noto uma moringa de cobre amarelo, com água, suspensa
por meio de uma corda fixada a uma das vigas. Uma grande esteira trançada
cobre todo o chão de terra batida.
— Sente-se — diz Brama, mostrando a esteira. Não temos cadeiras para lhe
oferecer; queira desculpar. Acocoramo-nos então, Brama, eu e um jovem novato
que se ligou a mim e me serve de intérprete. Alguns minutos depois a mulher
sai, e volta com um bule de chá quente que põe sobre uma toalha, à guisa de
mesa, e torna a sair; reaparece com biscoitos e uma bandeja de cobre cheia de
frutas diversas do país.
Começo a protestar de novo, mas ele não quer ouvir nada, forçando-me a ficar
com a grinalda de flores sobre meu casaco. Felizmente meus amigos europeus
não me vêem com esse adorno! Como haviam de rir...
— Agora, lamento, mas não vejo como poderei dar-lhe maiores esclarecimentos
sem transgredir os meus juramentos.
Sinto-me frustrado. Um conhecimento que com tanto cuidado deve ser mantido
em segredo, sem dúvida possui um valor inestimável. Se essa é a verdade,
compreende-se que os depositários de tamanho tesouro façam todo o possível
para protegê-lo dos profanos e dos curiosos. Se eu estou classificado entre
esses últimos, por que hei de teimar em querer saber mais? Brama interrompe
meus pensamentos:
— Você acha? — Veja, ponha sua mão no meu peito no lugar do coração.
Dizendo isso, Brama toma uma pose esquisita, cerrando os olhos. Obedeço e
espero. Durante alguns minutos nada reparo de anormal; gradualmente, porém
sinto as batidas de seu coração diminuírem, e tornarem-se mais lentas, mais
lentas ainda e... um arrepio de pavor apodera-se de mim, quando sinto parar
completamente o seu ritmo cardíaco. O fenômeno dura mais de sete segundos.
Será uma alucinação? Apalpo-me, estou bem acordado, alerta como nunca.
Sinto um alívio quando as batidas do coração de Brama tornam a voltar,
aumentando o ritmo, como se o órgão renascesse, até voltar ao normal. Mas só
após alguns minutos o Yogue reabre os olhos, voltando do seu absorvimento.
— Sim, distintamente.
O que irá ele inventar ainda? pondero. De fato, como se tivesse lido meu
pensamento, Brama prossegue:
— Isso não é nada, comparado com que pode meu mestre, que é capaz de isolar
uma artéria e controlar o fluxo de sangue, parando totalmente a circulação;
cheguei a certo resultado neste sentido, mas não consigo fazer tanto quanto o
mestre.
— Está bem, mas vai ser a última; depois disso você tem que se dar por
satisfeito. Agora vou suspender a respiração.
— Certamente que não, mas também não é a verdade. Posso reter minha
respiração por duas, três horas, se assim me aprouver; tenho frequentemente
feito essa prática, e no entanto não estou morto, como vê! responde Brama
sorrindo.
— Pois não. Podemos tomar como exemplo, certos animais, e isto, como já lhe
disse, foi um dos métodos favoritos do meu mestre. Um elefante, que respira
muito mais lentamente do que um macaco, vive também muito mais tempo; o
mesmo acontece com certos grandes répteis, em relação ao cachorro. Parece
então que há uma conexão entre a função respiratória e a longevidade. Vamos
mais adiante. Encontram-se no Himalaia morcegos que dormem durante todo o
inverno; ficam meses assim, suspensos nas paredes das grutas da montanha, e
sua respiração conserva-se inteiramente parada até o despertar. Os ursos do
Himalaia, algumas vezes, durante o inverno, apresentam uma rigidez
cadavérica, sem nenhum sintoma da vida, e nos covis de certas regiões, também
do Himalaia, encontram-se ouriços-cacheiros que, quando não podem nutrir-se
durante o rigoroso inverno, dormem um sono profundo em que a respiração fica
totalmente suspensa. Por que então você acha impossível que o homem realize
aquilo que o animal faz normalmente?
— Nem por isso alguma coisa muda. A vida continua sempre, responde Brama;
a morte é apenas uma outra forma da existência.
Brama fixa-me com o olhar estranho, sem todavia deixar de ser benevolente.
— Promete você não tentar a prática de outros exercícios, além desses que lhe
posso ensinar?
— Prometo.
— Então mantenha sua palavra! Você imaginava, até este momento, que a
respiração suspensa traz rapidamente a morte, não é?
— Sim, é claro.
— Pois bem. Você não acha, então, que no momento em que haja possibilidade
de retenção do alento no corpo, retemos nele a vida? E quando um dos nossos
adeptos consegue reter a respiração, não está retendo nele o fluido vital? Você
está seguindo meu raciocínio?
— Imagine agora um adepto da Yoga que consiga reter sua respiração, não
apenas por algum tempo, mas durante meses e mesmo durante anos? Desde
que você admite que onde há o alento deve haver a vida, você terá que aceitar
que — nesse caso — surge uma possibilidade para os homens de prolongar a
vida à vontade, não é?
Fico atônito, atordoado; não sei mais o que dizer, nem se posso tachar tal
asserção de absurda. Na Idade Média, os nossos alquimistas já haviam
idealizado esse sonho; a morte os surpreendia, uns após outros,
invariavelmente, diante de suas retortas, nas quais eles buscavam o elixir da
longa vida.
Estará Brama abusando da minha ignorância? Não pode ser; ele não tem
intenção de iludir — é mais do que certo — não procurou a minha companhia e
nem faz questão de adquirir discípulos. Seria Brama um louco? Também não,
pois ele raciocina sobre todas as coisas com perfeita clareza. Abusa de mim,
simplesmente; alguma coisa me diz que não. Francamente, não sei o que
pensar...
— Você não está ainda convencido? diz Brama, rompendo minhas reflexões.
Você não ouviu falar de um faquir, que foi sepultado por Ranjie Singh, no túmulo
em Lahore? O enterro teve lugar na presença do último dos reis Sikhis e dos
oficiais ingleses; a sepultura foi vigiada por soldados, durante seis semanas, no
fim das quais, ao abrirem o túmulo, viram sair o faquir são e salvo. Você pode
tomar informações, pois me disseram que este fato foi objeto de um relatório que
se acha depositado nos arquivos do seu governo.
— Mas que quer você? Quando vivemos como nós, em turbulenta vida diária,
não sobra mais tempo para as atividades que não nos proporcionem lucro
imediato.
* * *
De outra vez, é Brama que vem jantar em minha casa; terminada a refeição,
sentamo-nos na varanda suavemente iluminada pelo luar; eu, na poltrona, e
Brama acha a esteira mais cômoda. Ficamos alguns minutos em silêncio,
gozando o encanto da noite, mas obcecado pela lembrança de minha última
visita, volto a falar a respeito dos homens que riem da morte e nos quais não
posso acreditar.
— Por que não? — Brama faz sua pergunta favorita — Um dos adeptos da Yoga
do Domínio do Corpo vive na solidão das montanhas de Nilgiíris, no sul da Índia,
e nunca sai de seu retiro; um outro, no norte, mora numa caverna no Himalaia.
Você não encontrará jamais esses homens, pois eles desprezam todo o contato
humano; a existência deles é uma verdadeira tradição entre nós e, segundo se
diz, eles vivem há centenas de anos.
— No Sul, seus discípulos o chamam Swami Yerumbu, quer dizer o mestre das
formigas.
— É por uma razão muito simples. Meu mestre ama as formigas e guarda sempre
um pacote de arroz reduzido a pó para nutri-las. Mas, no norte do país, nas
aldeias do Himalaia, onde ele permanece, às vezes, usa outro nome.
Brama diz isso num tom de voz firme e com a maior naturalidade do mundo.
Fixando-me percebe o assombro no meu olhar. Depois de um prolongado
silêncio retoma:
— Muitas vezes ele falava de acontecimentos dos quais foi testemunha e que se
passaram sob o reinado dos imperadores mongóis. Ele me narrava mesmo
histórias que datam da época em que vossa Companhia das Índias se instalou
em Madras.
— Durante mais de doze anos meu mestre foi o conselheiro espiritual de um dos
antigos Marajás do Nepal, o Estado que fica, como você deve saber, entre o
Tibete e a Índia, e onde ele é conhecido e venerado pela maioria dos habitantes
da região. Eles o adoram como um Deus, e o mestre os trata como um pai trata
seus filhos. Ignora todo preconceito de castas, e não se alimenta de carne nem
de peixe.
Com o olhar perdido no espaço, como que esquecido da minha presença, Brama
prossegue:
— Asseguro-lhe que não, pois tenho o maior respeito pelas suas revelações.
— Então escute:
Existe no cérebro humano uma pequena cavidade que é a sede da alma. 3 Uma
espécie de válvula protege a abertura da passagem. Na base da espinha dorsal,
nasce um fluido vital do qual já tivemos oportunidade de falar. O escoamento
constante desse fluido causa a velhice e a morte; seu controle é uma fonte de
vida. Quando o homem adquire absoluto domínio de si mesmo, ele pode então
começar a treinar esse controle por meio de certas práticas, só conhecidas pelos
mais perfeitos Yogues da nossa escola. Se ele consegue fazer subir esse fluido
invisível até a parte superior da coluna vertebral, então será preciso que se
esforce para concentrá-lo nessa cavidade do cérebro da qual já lhe falei. Torna-
se indispensável, porém, que um mestre o ajude a abrir essa válvula protetora.
Se ele encontrar um mestre capaz, esse fluido vital, ao penetrar na cavidade,
transformar-se-á em verdadeiro elixir de longa vida.
3. Suponho, sem ter certeza, que Brama se referiu à cavidade formada pelo encontro dos quatro
ventrículos cerebrais que se comunicam entre si.
— Aquele que deseja ser um adepto deve, primeiro, aprender a andar antes de
correr.
— Como poderei adivinhar suas intenções? Ele pode demorar-se no Nepal ainda
por muitos anos, como pode também retomar suas peregrinações. Tem
preferência pelo Nepal, porque foi lá que nossa escola mais floresceu. Os ramos
da doutrina da Yoga diferem entre as escolas e a nossa, que é consagrada ao
domínio das funções corporais, a chamada Tantra, é mais facilmente aceita no
Nepal do que entre os hindus.
Brama recai no silêncio; seus pensamentos devem estar longe, certamente perto
da enigmática figura do seu mestre venerado.
Oh! se o que acabo de ouvir não é fruto de uma vã quimera, que novo e
maravilhoso horizonte se abrirá sobre o mistério e sobre o nosso sonho de
imortalidade!
* * *
— Você seria capaz de abandonar a vida das cidades e retirar-se para a solidão
das montanhas?
— Não... eu creio que não; não estou suficientemente preparado. Pode ser que
um dia... talvez...
— Então não posso guiá-lo mais adiante. A Yoga não é um esporte para horas
vagas.
— Evidentemente. É uma doutrina que tem por finalidade tornar a mente humana
numa espécie de farol a iluminar as profundezas do puro espírito...
— Meu irmão, quando sentimos fome, procuramos alimentos, mas aqueles que
estão morrendo de fome são capazes de tudo para saciá-la. Se você anseia tanto
encontrar um mestre, como o homem que morre de fome deseja alimento, você
vai acabar por encontrá-lo, pois aqueles que buscam o mestre com toda
sinceridade, é mais do que certo que serão guiados a ele na hora certa.
— Você acredita então, que o destino tem alguma coisa a ver com isso?
— Sem o mestre, seus livros nada valem; são apenas meros farrapos de papel.
Chamamos nosso mestre de GURU — palavra que significa “aquele que dissipa
as trevas”. O homem que por seu próprio esforço, ou pelo favor do destino,
consegue encontrar um verdadeiro mestre, caminha direto à luz, pois o discípulo
participa dos dons sublimes do mestre, estando sob sua aura.
— À noite passada estive preparando isto para você. Quando nos separarmos,
coloque uma fotografia minha no centro desse desenho. Bastará fixar seu
pensamento durante cinco minutos antes de deitar-se, concentrando-se sobre
essa folha, para sonhar comigo, com perfeita clareza. Então, mesmo que as
milhas separem nossos corpos, nossos espíritos encontrar-se-ão à noite, e
esses encontros serão dotados de tanta realidade quanto as visitas que
trocamos.
Ao ouvir essa última frase, digo-lhe que tenho que deixá-lo e pergunto, com certa
tristeza, se jamais nos tornaremos a ver.
— Ponhamos isso na mão do destino; não acho possível que falhe. Quanto a
mim, partirei daqui na primavera para o distrito de Tanjore, onde dois discípulos
me esperam. Não sei o que irá acontecer depois, pois, como é do seu
conhecimento, estou sempre na expectativa do apelo do meu mestre.
— Você não me havia dito que seu mestre mora longe daqui, no Nepal?
pergunto-lhe, num tom pelo qual logo me arrependo, por ter deixado transparecer
nele minha dúvida.
— Mas como pode falar-lhe a essa distância, quando duzentas milhas o separam
daqui?
— Meu mestre sempre me aparece quando o chamo, ainda que nossos corpos
estivessem separados por toda a extensão da Índia, não há necessidade de
correios nem de portadores para receber sua mensagem. Seu pensamento vem
a mim através do espaço, claro e inteligível aos meus olhos.
— Isso é telepatia?
— Como queira!
Levanto-me, é tempo de ir embora; chega a hora do nosso último passeio ao
luar. Andamos ao longo da muralha do templo vizinho da casa de Brama,
paramos sob o gracioso tufo de palmeiras cuja abundante folhagem vela o brilho
da lua. Brama se despede, sussurrando-me as seguintes palavras:
— Você já deve ter notado que sou pobre; não possuo grande coisa, eis o que
tenho de mais precioso, aceite-o.
Dizendo isso, tira do dedo um anel, usado no anular esquerdo, e o põe na palma
aberta da mão, onde vejo brilhar ao luar uma pedra verde, com veios castanho-
dourados, encastoada em ouro. Brama coloca-o no meu dedo, apertando-me a
mão num gesto de despedida. Como me recuso a aceitar tão valioso presente,
ele continua a pressão de sua mão forçando-me, assim, a aceitá-lo.
— Não é exatamente isso, porém o poderoso encanto que está encerrado nessa
pedra ajudá-lo-á a entrar em contato com os sábios e despertará seus próprios
poderes latentes. A experiência lho dirá; use-o quando for em busca das
realidades sublimes!
No céu de um azul profundo, Vênus brilha com tal fulgor que parece estar perto
de mim. Uma imensa paz envolve a natureza adormecida; o silêncio torna-se
absoluto, não se ouvem nem as batidas das asas dos grandes morcegos que
esvoaçam por cima da minha cabeça. Surge um transeunte, que parece deslizar
como uma sombra, na luz difusa do luar. Abandono-me ao feitiço da noite
tropical, deslumbrado.
Chegando em casa, não consigo adormecer; a aurora já vem despontando no
horizonte quando o sono, como um bálsamo, vem acalmar, finalmente, a febre
de meus pensamentos tumultuosos.
7
O Sábio que nunca fala
Nesses dias de busca, não colhi senão bisbilhotices sem importância, lendas
tolas ou às vezes desfeitas em grosserias. Um dia encontro um santo homem
cujo rosto parecido com o de Cristo provocaria sensação em Picadili; confessa
estar percorrendo a Índia à procura de uma vida mais sublime; renunciara a
todos os seus bens, mendigando seu sustento ao longo das estradas. Ofereceu-
me generosamente suas propriedades, caso eu queira morar nelas, sob a
condição de cultivá-las em proveito dos seus compatriotas menos favorecidos
pelo destino. Ai de mim! Quem sou eu senão um pobre mortal que luta nas
trevas! Espero que ele já tenha encontrado alguém a quem interesse a maneira
de usar sua liberalidade!
De outra vez indicam-me um Yogue célebre, que mora, parece, a meia milha de
Madras, mas que foge de toda curiosidade e só é conhecido por muito pouca
gente. Para mim, tal informação basta para despertar a curiosidade, e logo
decido pedir-lhe audiência. A casa fica protegida por uma cerca viva de bambus,
plantados em quadrado em volta do terreno, isolando-a completamente da
estrada. Meu guia comenta, apontando com o dedo o cercado:
— Disseram-me que esse Yogue permanece em êxtase a maior parte do dia;
podemos bater à porta e gritar à vontade, ele não ouvirá. Se acontecer ouvir-
nos, passaremos, na certa, por indelicados.
Uma porta toscamente talhada dá acesso a uma espécie de pátio, mas está tão
bem aferrolhada e trancada que pergunto a mim mesmo se conseguiremos
transpô-la.
Suplico ao criado uma exceção a meu favor, mas decididamente, ele não
transige. Meu guia emprega, então, um bom recurso; ameaça-o com todas as
fúrias do governo, caso não nos faça uma concessão. Isto, bem entendido, é um
blefe que nada justifica e não hesito em fazer-lhe algumas caretas significativas.
Segue-se uma discussão animada, no decorrer da qual uso como isca uma boa
gorjeta para apoiar nossos argumentos. O homem se decide, afinal, e meu
companheiro conclui que se trata, realmente, de um criado, pois jamais um
discípulo se deixaria seduzir por ameaças ou vantagens.
— Há alguns anos o Sábio vivia neste cercado, sem fechaduras nem ferrolhos
de espécie alguma. Por infelicidade, um dia um ébrio entrou na casa, e vendo-o
só e sem defesa, o atacou, puxou-o pela barba e deu-lhe uma surra de pauladas,
acompanhada de injúrias de baixo calão. Felizmente, alguns rapazes brincavam
no terreno vizinho, soltando papagaios. Ao ouvirem o barulho acorreram a livrar
o Sábio das mãos do agressor, enquanto um deles apressou-se em dar alarma
nas redondezas.
O vadio teria sido, sem dúvida, linchado por ter se atrevido a atacar o santo
homem, se não fosse a intervenção do Sábio que, com a calma estóica que não
o abandonou durante toda essa lastimável ocorrência, escreveu em defesa do
ébrio: “Se vocês baterem nesse homem, é o mesmo que baterem em mim.
Deixem-no ir em paz, pois eu já o perdoei”.
Como a menor palavra do Sábio constitui lei, o bêbado foi solto e deixado livre,
embora a contragosto, evidentemente.
* * *
É um homem de tez bronzeada, de porte ereto e solene; está numa pose que
logo reconheço por ser uma daquelas que Brama já me havia ensinado: a perna
esquerda dobrada para trás, o pé sob o corpo, a perna direita apoiada na coxa
esquerda; as costas, a nuca e a cabeça formam uma linha reta. Os cabelos
caem-lhe; em longos cachos negros, quase até os ombros, emoldurando-lhe a
cabeça; uma grande barba negra cobre-lhe o queixo, as mãos rígidas agarram
os joelhos. Como ele não usa outra roupa, além de uma pequena tanga, noto as
formas firmes e musculosas do corpo, evidentemente sadio; o rosto exprime
serenidade e os lábios parecem prontos a abrir-se num sorriso. Vê-se pela
fisionomia que ele triunfou sobre a vida e livrou-se do fardo que nós, pobres
mortais, carregamos, mesmo reconhecendo a futilidade mundana.
Observo o nariz curto e reto, quase grego, os olhos muito abertos, o olhar
fixamente para frente; o conjunto dá perfeita impressão da imobilidade de uma
estátua. O guia diz que o Sábio, quando mergulha em êxtase comungando com
a Consciência Universal, fica num estado em que a natureza parece diluir-se, e
afunda-se num extraordinário arroubamento, perdendo, por completo, a noção
do ambiente. Observo-o mais atentamente. Não há dúvida sobre a autenticidade
da crise, e o que me causa maior impressão são as pálpebras imóveis, abertas
durante horas sem o mínimo cansaço aparente. Os olhos, apesar de estarem
abertos não vêem; mesmo que o espírito esteja desperto, a impressão que se
tem é que está muito longe de nós e do nosso mundo sublunar. Quanto às
funções corporais, elas parecem completamente adormecidas, embora de vez
em quando uma lágrima corra-lhe ao longo da face, devido, forçosamente, à
imobilidade das pálpebras.
Um pequeno lagarto verde desce do teto, atravessa o tapete e entra sob a perna
dobrada do Yogue, que nem se move; numa insensibilidade de pedra,
permanece firme. Moscas pousam e passeiam-lhe pelo rosto, sem que o menor
movimento traia a persistência de imobilidade nessa figura de bronze. A
respiração é lenta e regular, embora apenas perceptível. No entanto, ela é o
único indício de vida naquele corpo imóvel.
Para encurtar a espera, bato uma ou duas chapas, mas a luz fraca obriga-me a
focalizar em pose. Olho o relógio: há exatamente duas horas que estamos
esperando e a rigidez escultural do corpo se mantém sem o menor
desfalecimento. Ficaria ali o dia inteiro, se isso fosse necessário para chegar ao
fim a que me proponho, isto é, obter uma entrevista desse homem extraordinário;
o criado, porém, nos desaponta, dizendo que é inútil esperar; se quiséssemos
poderíamos voltar dentro de um ou dois dias. Talvez então tivéssemos mais
sorte, embora nada nos prometa.
Magoados, deixamos a sala, eu, mais do que nunca, intrigado com o que vi.
Nos dias seguintes esforço-me para obter algumas informações sobre o curioso
asceta que representa um gênero novo para mim, e nas minhas investigações
emprego a astúcia e a paciência de um detetive; começo por indagações junto a
um criado e acabo por ouvir informações do chefe de polícia, conseguindo assim
obter, embora fragmentada, pelo menos parte da história do santo homem.
Faz oito anos — disseram-me — que ele chegou a estas paragens. Quem era
ele, e donde vinha, ninguém o sabia. Escolheu para morada um terreno inculto,
próximo do lugar onde fica atualmente seu bangalô. Curiosos se aproximaram,
tentando ouvir algumas palavras, mas como ficaram desapontados! Ele não lhes
dirigiu sequer uma palavra, nem quis ouvir ninguém; foi impossível fazê-lo falar.
De quando em vez estendia uma cuia, feita de casca de côco, pedindo alimento,
e passava dias e noites acocorado no terreno baldio, sem abrigo de espécie
alguma que o protegesse da inclemência do sol tórrido, tempestade da monção,
poeira e picadas dos insetos. Parecia totalmente ausente do mundo exterior,
permanecendo horas e horas na mesma posição, e durante todas as estações
do ano usava apenas uma tanga.
As redondezas de uma grande cidade como Madras, devido ao seu bulício não
são absolutamente indicadas nem propícias à meditação de um eremita que
pretende fugir à vista do público. Isso só seria possível nos tempos da Índia
antiga, mas para um Yogue de hoje obter perfeita meditação, é indispensável o
retiro nas cavernas das montanhas ou, ao menos, na solidão da cela de um
mosteiro. Por que, então, esse singular asceta escolheu um lugar tão pouco
favorável à meditação?
Soube, em seguida, a lamentável história que lhe ocorreu, e o desfecho tão
imprevisto: Uma vez, um bando de jovens vagabundos, ao descobrir o Yogue,
tomou-o para alvo de suas brincadeiras e, com uma insistência pouco
recomendável, vinha insultá-lo, atirando pedras e lixo na sua cabeça.
Disseram-me que o Sábio não tem discípulos, não procura nem aceita ninguém;
fechando-se numa completa solidão, julga chegar mais rápido à sua “libertação
espiritual”.
Esta atitude pode parecer egoísta, aos olhos do ocidental; no entanto, torna-se
difícil tachar de egoísmo a atitude de um homem que revelou tanta mansidão
com o ébrio e recusou vingar-se dos vagabundos que o perseguiam
impiedosamente.
* * *
Voltei ainda para tentar entrevistar o “Sábio que nunca fala”, mas desta vez
acompanhado de duas pessoas: uma, o meu intérprete habitual, e a outra, o
Yogue a quem devo tantos conhecimentos preciosos, o meu bom amigo Brama,
o anacoreta de Adyar. Evidentemente Brama não aprecia muito o bulício da
cidade, mas ao saber do objetivo da minha jornada, aceitou logo acompanhar-
me.
Não, nada disso, meu desencanto é prematuro, pois eis que o Sábio retoma o
lápis e escreve algo no papel; curvo-me para apanhá-lo de sua mão, passando-
o ao intérprete.
Nossos olhares se encontram. Ele está me fixando com seu estranho olhar; sinto
por trás desse olhar um mundo de pensamentos ocultos, segredos ciosamente
guardados.
— Estou ainda tão confuso... não acho nada melhor para responder-lhe.
— Por que voar, então, feito abelha que enquanto voa colhe apenas uma gota
de mel, quando todo o mel da mais pura sabedoria o está esperando?
Fico encabulado. Tal resposta poderia ter sentido para uma mente oriental; para
mim, a sibilina sutileza da sentença tem o suave encanto da poesia mas me
confunde literalmente, e não contribui em nada para solucionar o problema que
me absorve.
— Perdoe-me, mestre, mas suas respostas não fazem senão aumentar minha
confusão.
O Yogue, vendo-me cada vez mais confuso, faz sinal para retomar o papel e
escreve, depois de ter levantado o lápis no ar durante um momento:
Volto a cabeça; vejo que o recém-chegado é homem dos seus quarenta anos e,
à maneira dos Yogues errantes, usa um manto amarelo. É de compleição forte,
ombros largos, tez de bronze polido e um nariz fino, aquilino, dominando o rosto;
os olhos muito pequenos, parecem pregueados nos cantos, em perpétuo sorriso.
Como ele é descortês, e mesmo saliente, querendo conversar na presença do
Sábio! Assim, não lhe dou mais atenção e torno a voltar ao meu pensamento
anterior e ao meu interlocutor silencioso.
Uma outra pergunta vem cruzar minha mente. Mas, penso: não serei atrevido
demais e talvez impertinente? Ora...
— Mestre, o mundo clama por socorro; assim sendo, será conveniente que
sábios como o senhor se fechem em semelhante solidão e silêncio, perdidos
para a Humanidade?
Por sinal, com essas palavras, o Sábio nos deu a compreender que gostaria de
ficar só, para voltar ao seu êxtase. Peço-lhe então uma última mensagem.
— Fico satisfeito por você ter vindo. Tome isto como sua iniciação.
Apenas acabo de ouvir estas palavras, sinto uma força estranha penetrar-me;
ela aflui ao longo da coluna vertebral, endurece meu pescoço e obriga-me a
levantar a cabeça. Sinto um poder desconhecido nascer e crescer com uma
singular potência. Adquiro uma sensação, bem nítida, de que um dinamismo
interior exige a conquista de mim mesmo e põe meu corpo em obediência, a
serviço da mente, pronto a realizar seu mais alto ideal. E, por intuição repentina,
compreendo que esse ideal é a sintonização das vozes da consciência, é a
essência daquilo que há de melhor em mim, é a verdadeira felicidade prometida
ao homem, mas que não se encontra em parte alguma, a não ser em nós
mesmos. Tenho certeza de que essa estranha mensagem que recebo, e a
sensação que não posso dominar, são uma força invisível irradiada do Yogue e
projetada em minha mente por uma espécie de telepatia misteriosa. Será
possível que ele empregue esse meio para me transmitir um pouco de sua alta
sabedoria?
Seu olhar torna-se fixo, os olhos parecem atingir aos poucos esferas inacessíveis
para nós, o corpo retoma sua rigidez escultural. Sem equívoco, sente-se que o
Yogue transporta sua alma além de todo pensamento e mergulha nas
profundezas ocultas de seu ser, nesse âmbito íntimo que ele ama acima de todas
as coisas do mundo.
— Há alguns anos o encontrei num campo baldio, onde vivia desabrigado; logo
o reconheci pelo que ele é, quero dizer um irmão em Yoga. Disse-me,
escrevendo, é claro, que quando moço foi soldado e, ao terminar o serviço
militar, sentiu-se cansado desse mundo e retirou-se para a solidão. Foi
exatamente nessa época que encontrou o famoso faquir Marakayar e tornou-se
seu discípulo.
Nunca mais vi o Sábio. Como ele não deseja e não tolera intromissão na sua
vida solitária, preciso respeitar essa vontade, deixo-o então envolto no seu manto
de impenetrabilidade, entregue aos seus êxtases.
Ele não tem interesse em fundar escola nem juntar discípulos, e não parece
alimentar outras ambições, além de passar sua vida em silêncio.
Acho também que ele não teria mais nada a acrescentar ao que já me disse. Por
causa disso ele não desenvolve um artifício de conversação, como é tão em
voga entre nós, ocidentais.
8
Com o chefe espiritual
da Índia meridional
Não havíamos ainda chegado à estrada, que nos leva a Adyar, quando ouço
alguém se aproximar. Voltando-me, vejo o mesmo Yogue de manto amarelo,
com sua boca talhada até às orelhas e suas pálpebras franzidas. Continua com
aquele mesmo risinho que me aborrece.
— Entretanto, pelo que vejo, o senhor se interessa muito por nossos santos
homens.
Sorrio a esse auto-elogio. Afinal, aqui está alguém a quem não preciso rogar que
fale.
— Faça suas perguntas a meu mestre — eis o que eu lhe queria dizer, porque
ele é o maior sábio das Índias e o mais sábio de todos os Yogues...
— Não diga!
— Sim senhor, e digo-lhe, não há outro Yogue igual a ele. É uma grande alma e
quero que o senhor o conheça.
— Foi ele quem me mandou falar-lhe; pois pela força do seu poder foi que o
senhor veio à Índia!
Esta afirmação é forte demais! Começo a desconfiar... não aprecio muito o modo
exagerado de falar das pessoas demasiadamente exaltadas, e o entusiasmo do
meu Yogue de manto amarelo é levado ao extremo. Sente-se o exagero em tudo:
em sua voz, no seu ar, no menor dos seus gestos.
Respondo friamente:
— Não o entendo...
Eis que ele continua a ser mais loquaz, submergindo-me em ondas de
explicações:
— Faz oito meses que encontrei meu mestre; ele me deixou ficar cinco meses
em sua companhia; em seguida ordenou-me que começasse a vida errante.
Garanto-lhe, o senhor jamais encontrará um ser mais sublime; suas faculdades
espirituais são tão extraordinárias que poderá responder aos seus pensamentos,
antes mesmo de serem formulados. Uma breve estada em sua companhia
convencê-lo-á do grau de perfeição que ele alcançou.
— O senhor tem a certeza de que ele faz tanta questão de minha visita?
— Estou absolutamente certo, senhor! Não lhe disse que foi ele quem me
conduziu até o senhor?
— Onde fica?
— Sinto muito, mas não posso, é tarde demais. Já tomei todas as providências
e não vejo possibilidade de mudá-las. Irei ao Sul com o maior prazer, mas não
agora.
— Eu não aceito sua recusa. Visitá-lo-ei amanhã à noite e espero que o senhor
mude de idéia.
Não temos nada mais a dizer. Sigo com o olhar sua alta e forte silhueta, de manto
amarelo, atravessando a estrada, para logo após desaparecer.
Em chegando à casa, raciocino: terei eu respondido irrefletidamente? Mesmo se
o valor do seu mestre fosse a metade do que ele pretende, e apesar de ser tão
longa a viagem para encontrá-lo, nunca seria esforço totalmente perdido.
Entretanto, começo a ficar farto desses devotos simplórios que cantam louvores
à glória do seu mestre, a maioria dos quais não resiste à mais leve crítica. Além
disso, tantas noites passadas em claro e tantos dias tórridos fizeram dos meus
nervos uma pilha e, se ainda por cima esse Yogue me propõe gastar energias à
toa... não, muito obrigado, não quero!
* * *
Na hora do tiffim — como nós diríamos — na hora do chá com biscoitos, o criado
me anuncia uma visita. É meu confrade, o escritor Venkataramani.
Todavia, há entre nós idéias em comum, suficientes para nos sentirmos logo à
vontade. Depois de confrontarmos nossas impressões sobre diversos assuntos,
criticando os políticos e elogiando nossos autores favoritos, vem-me a
necessidade de confiar-lhe o real objetivo de minha viagem. Pergunto se
conhece os autênticos Yogues, possuidores de reais poderes, pois não me
interessam os anacoretas, cuja única originalidade consiste em lambuzar-se de
lixo, nem os faquires pelotiqueiros e saltimbancos. Meu interlocutor sacode a
cabeça:
— Infelizmente não, pois a Índia deixou de ser a pátria dos Grandes Sábios; com
a invasão do materialismo e da cultura sem alma, emprestada do Ocidente, o
declínio do nosso país começou e nossos grandes mestres de outrora
desapareceram. Creio, porém, que nos restam alguns; mas hoje eles se
enclausuram em profundo retiro e, penso, o senhor jamais terá oportunidade de
encontrá-los. Meus próprios conterrâneos, quando se põem em busca desses
homens, não poupam seus passos nem seus esforços; imagino quanta
dificuldade terá o senhor, um europeu!
— O senhor não ouviu falar de um sábio que mora nas montanhas do Arcot do
Norte?
Quando, tendo se despedido, ele me deixa, sigo com o olhar seu vulto elegante
até desaparecer na esquina da rua, e fico pensando...
— Que há?
A multidão se aglomera à sua passagem, todos vêm implorar sua graça com os
intuitos mais diversos, quer espirituais quer materiais, ou mesmo financeiros.
Não se passa um dia sem que os ricaços e potentados não venham depositar
milhões de rupias a seus pés, porém como ele fez voto de pobreza, todo esse
dinheiro é empregado em obras de caridade. Alivia os aflitos, subvenciona
escolas, restaura templos, constrói e aperfeiçoa reservatórios para a água de
chuva, por serem raros os ribeirões no sul da Índia. Mas tudo isso é apenas
acessório; sua missão é, antes de tudo, puramente espiritual.
Em todo o lugar em que pára, esforça-se por levar à população indiana uma
compreensão de sua herança ancestral, bem como elevar seus corações e
mentes. Habitualmente ele pronuncia uma alocução no templo da localidade e,
em seguida, recebe em audiência particular a multidão que vem vê-lo na sua
passagem.
O primeiro Shankara viveu há mais de dois mil anos; foi um dos maiores sábios
Brâmanes da história; grande filósofo, era uma espécie de racionalista místico.
Na sua época, o hinduísmo já estava em franca decadência e toda a sua vida
espiritual parecia estar em completa aniquilação. Com apenas dezoito anos de
idade, andava a pé pelas estradas, percorrendo o país; discutia com os filósofos
e sacerdotes, ensinando sua doutrina, e os fiéis sempre mais numerosos,
curvavam-se aos seus pés. Sua inteligência lhe permitia concorrer com as
maiores sumidades da ciência, e ainda em vida era considerado e venerado
como um profeta. Suas idéias eram muito liberais; embora partidário da religião
oficialmente reconhecida, condenou muitas superstições que se escondiam sob
seu manto e esforçava-se por dirigir o povo pela senda da virtude, expondo ao
seu auditório a inutilidade de uma religião baseada apenas no culto dos rituais,
e não acompanhada pelo esforço individual. Fez pouco caso das leis da sua
casta, tomando parte ativa nas exéquias de sua mãe, proceder que lhe valeu a
excomunhão dos sacerdotes. Mostrou-se digno sucessor de Buda, que foi o
primeiro a atacar o espírito partidário das castas; contradisse os sacerdotes,
ensinando que todo ser humano, sem distinção de casta ou de cor, podia gozar
da graça divina e chegar ao conhecimento das verdades mais sublimes. Não
fundou nenhuma religião; contudo, doutrinava que não importava qual fosse o
credo adotado, pois qualquer deles, irrefutavelmente, levaria os homens a Deus,
sob a condição de que fosse respeitado na sua pureza primitiva e no seu
conteúdo místico. Para apoiar seus argumentos, elaborou um sistema filosófico
completo, deixando uma importante herança literária, que ainda hoje é
respeitada nos centros de estudos religiosos de todo o país. Os doutos
Brâmanes dão grande valor à sua obra religioso-filosófica, embora vivam
discutindo, sempre em controvérsias, quanto à interpretação das idéias nela
contidas. Com o manto amarelo e um bastão de peregrino, Shankara percorria
a Índia; humilde e inteligente, por uma hábil tática fundou quatro grandes
instituições, nos quatro pontos cardiais do país. A fundação do norte ficava em
Badrinath ao norte, outra em Puri, a leste da Índia, e seu quartel general, que se
compunha de um templo e um mosteiro, foi estabelecido no sul, onde proferiu
seu primeiro sermão. Até os nossos dias essa fundação permanece e o Sul é
considerado como o santuário do Hinduísmo. As instituições cresceram no país
e sua doutrina espalhou-se levando a toda a parte as palavras de Shankara.
Esse homem extraordinário morreu, ou conforme a lenda, desapareceu na idade
de trinta e três anos.
O que dá valor a esta narrativa é o fato de saber que o mestre Shankara que
devo ver agora, continua a obra do seu fundador, sem se desviar em nada do
ensino do primeiro Shankara. Uma estranha tradição enraizou-se nesse sistema
doutrinário. O primeiro Shankara prometeu aos seus discípulos ficar em espírito
com eles e zelar pelos seus sucessores. Note-se que essa mesma tradição está
ligada à sucessão do mais elevado cargo do Tibete, mantida pelo Grande Lama.
O Shankara em exercício escolhe, no momento de sua morte, o discípulo mais
digno de sucedê-lo; como de modo geral é escolhido um jovem, fica ele entregue
aos grandes mestres, dos quais recebe uma instrução adequada às altas
funções que foi chamado a assumir. Esse ensino não é puramente intelectual e
religioso, pois também inclui o estudo da Yoga nos graus superiores e a prática
de meditação; após esse período de estudos, segue-se um tempo de vida ativa,
inteiramente consagrada pelo neófito ao serviço do povo. Isso é, evidentemente,
uma tarefa singular, executada em respeito a uma ordem estabelecida e
perpetuada através dos séculos, sem que um só titular haja falhado à prova de
abnegação, na sua essência mais elevada e mais pura.
Disse também que ele pode ler os pensamentos, dom no qual Venkataramani
acredita piamente.
* * *
— Sua Santidade vai fazer uma exceção e nos receberá dentro de uma hora.
Nesse ínterim, perambulando sem destino, passeio pelas ruas pitorescas que
desembocam no templo. Vejo os palafreneiros levarem ao bebedouro uma tropa
de elefantes e camelos andando em fila. Alguém me aponta a passagem de um
belo animal destinado à Sua Santidade nas viagens; de fato, é montaria digna
de um rei! O suntuoso palanquim está todo coberto de ouro e esplêndidas
tapeçarias trabalhadas; o elefante, como se tivesse consciência da sua alta
função, balança majestosamente a cabeça, ao passar à minha frente.
Não sabendo o que fazer deles, deixo-os simplesmente na rua, fazendo votos
para encontrá-los ao sair.
Shri Shankara não é o Papa, pois tal posto não há no Indostão; entretanto, é o
pastor de um vasto rebanho — o pai espiritual de toda a Índia Meridional.
* * *
Ele se volta na direção do meu companheiro, dizendo-lhe alguma coisa que não
compreendo, mas adivinho. Venkataramani traduz:
— Sua Santidade entende seu idioma, mas não tem hábito de falá-lo; prefere
que eu traduza as respostas.
— Quando Vossa Santidade julga que vai melhorar nossa situação política e
econômica?
— Não vejo mudança para breve. Isso é uma questão de tempo. Como podem
as coisas melhorar se as nações gastam em armamento a maior parte de suas
rendas?
— Pois bem; podem demolir os couraçados e pôr os canhões no ferro velho, isso
não impedirá a guerra. Os povos continuarão se batendo, mesmo com paus, se
não houver nada de melhor para ser usado como arma.
— Teremos ainda muito que esperar, então. Conforme o senhor está dizendo,
nossas perspectivas não parecem atraentes.
— Se resta Deus, então Ele parece estar bem longe — retruco, secamente.
— Deus não tem senão amor pelos homens — responde com sua voz suave.
Mas ante o sentimento de censura, que percebo nos olhos de Sua Santidade,
sinto logo arrependimento de minhas palavras.
— Na sua opinião, por que estará ele caindo cada vez mais em estado de
degradação?
— Não, não é a isso que me refiro. A alma divina que habita o homem, acabará
finalmente por levá-lo a Deus.
— Não obstante, nossas cidades ocidentais estão povoadas por tal quantidade
de velhacos, patifes e criminosos que mais fazem crer que uma alma do demônio
está morando neles.
— Não censure o povo. O meio, as circunstâncias fazem-no piores do que na
verdade ele é, tanto no Oriente como no Ocidente. É a sociedade que deve se
levantar, despertar espiritualmente e substituir seu desastroso materialismo por
um ideal qualquer. Não há outro remédio para sarar as chagas purulentas do
mundo. Essa agitação tumultuosa das nações, a corrução, a agonia da
sociedade, são justamente os males dos quais sairá uma solução; é assim
também em relação ao indivíduo: quando uma série de desgraças nos cerca, é
uma advertência de que chegou o momento de tomarmos outro rumo na vida!
Fico satisfeito por saber que Shri Shankara, ao contrário da maioria dos seus
patrícios, não exalta seu país em detrimento do Ocidente; ele admite que tanto
um como outro têm seu caráter próprio, feito de vícios e de virtudes, mas se
equiparam em conjunto; acredita que uma geração mais sábia fundirá num plano
mais elevado o que as duas civilizações possuem de melhor.
— Desde 1907. Tinha então apenas doze anos. Quatro anos depois, retirei-me
para as margens de Cauveri, dedicando-me aos estudos e à meditação. Foi
depois de então que comecei a aparecer em público.
— Até agora sempre fui meu próprio guia e jamais contei a não ser comigo
mesmo. Os vossos sábios de outrora doutrinam que não há outro Deus senão
Aquele que possuímos em nós.
— Deus está em toda parte. Ele sustenta o universo, como estaria contido nos
limites do nosso ego?
— Neste caso, continue sozinho até que Deus mesmo o inspire; pratique
regularmente a meditação. Os melhores momentos pata a prática desses
exercícios são a hora de acordar e a do crepúsculo, pois a quietude que então
se espalha sobre a natureza favorece a meditação.
Tanta benevolência me comove; chego a invejar essa paz inabalável que ilumina
sua face.
Com toda a certeza, esse coração jamais conheceu os horrores que devastaram
o meu! Cedendo a um impulso mais forte que a minha vontade, pergunto:
— Sem dúvida, mas a Verdade deve estar em alguma parte. Quando alguém a
procura, deve forçosamente acabar por achá-la.
— Com todo prazer; conheço dois que poderiam satisfazê-lo. Um deles mora em
Benares, escondido no fundo de uma chácara; poucas pessoas têm sido
admitidas ou têm podido aproximar-se dele. Um ocidental, ainda menos do que
qualquer outro, e não creio mesmo que um só o tivesse conseguido. Contudo,
poderei recomendá-lo, mas receio que ele recuse recebê-lo.
— O outro mora no interior do país, muito longe, lá no sul. Visitei-o uma única
vez e reconheço-o grande mestre; recomendo-lhe que vá vê-lo.
— Quem é ele?
— Neste caso, tenho que pedir-lhe que me prometa não deixar o sul da Índia,
antes de ver o Maharichi.
Leio no seu olhar tanta sinceridade e tão leal desejo de ajudar-me, que lho
prometo sem vacilações.
— Não se atormente mais, pois vai encontrar o que o senhor está buscando.
Mas, não. Shri Shankara está sorrindo e me acompanha até à porta, sussurrando
alguma coisa no ouvido do meu companheiro. Ouço meu nome na conversa.
Volto-me, para uma última reverência, e Sua Santidade ainda me fala com
suavidade:
Com essas enigmáticas palavras, retiro-me, pesaroso por deixar esse homem,
cuja vida toda está entregue ao culto do divino. Não ligando ao poder desse
mundo e a tudo renunciando. Aquilo que recebe, bondosamente dá.
Evidentemente, essa bela alma, bem como sua nobre personalidade, jamais se
apagarão de minha memória.
Deixamos Chingleput sob o céu cor de anil semeado de estrelas; uma brisa
inesperada perfuma o ar, balouçando os topos das palmeiras.
Meu companheiro rompeu esse encantador silêncio, visivelmente muito
satisfeito:
— O senhor pode vangloriar-se de ter sorte! É a primeira vez que Sua Santidade
concede uma entrevista a um escritor ocidental.
— É verdade mesmo?
* * *
— É exato.
Ouço em sua voz uma nota de censura, mas agora sei como acalmá-la.
Pouco importa. Mudei de idéia; desejo vê-lo. Vamos partir amanhã de manhã.
Estou exausto, penso somente em dormir, mas Subramanya é tão feliz que não
quer me deixar; põe uma esteira no chão e deita-se, cobrindo-se com um pano
felpudo que lhe serve de colchão, de lençol e de cobertor, recusando minha
oferta de um pouco mais de conforto.
Não pode ser! Deixei-o em Chingleput, como seria possível? Fecho os olhos, a
aparição está lá, como uma presença amiga, benévola. Torno a abrir os olhos:
vejo-o, nitidamente, embuçado em seu traje ocre.
Não posso dormir mais essa noite. Acordado o resto das horas, ponho-me a
repassar na memória os pormenores da inesquecível entrevista com Sua
Santidade, o representante de Deus para a humilde população do Sul da Índia,
o Shri Shankara de Kumbakonam.
9
A Colina do Santo Lume
Quantas aventuras sucederam desde que Brama me deu este anel! Todos os
meus planos ficaram desde então transtornados; uma corrente estranha de
forças ocultas, as circunstâncias criadas lançam-me para o sul, enquanto sou
chamado para o leste. Será possível que essa pedra engastada num aro possua,
realmente, o poder que lhe atribui o Yogue? Preciso conservar minha mente
lúcida para poder julgar os fatos com toda clareza, pois para um europeu
acostumado aos métodos de investigação da ciência moderna é difícil formular
uma hipótese. Também não a procuro, e há para isso uma razão encoberta: não
posso duvidar mais de que houve forte e estranha coincidência no conjunto de
circunstâncias imprevistas, guiando meus passos a esse eremitério nas
montanhas.
Adormeço. Caio mesmo num sono agitado, cortado por sonhos; ao cabo de
algumas horas, meu companheiro me sacode. Saltamos numa estaçãozinha de
aldeia, que entra em silêncio e escuridão logo que a locomotiva se afasta levando
sua luz e seu bafejo, dissipando-se dentro da noite. Outra vez somos forçados a
acomodar-nos na sala de espera escura e sem conforto, onde acendemos a sua
única lamparina a querosene.
Subramanya vai dar uma espiada à procura de condução e descobre logo, pelo
barulhento roncar, um cocheiro adormecido no assento de uma pequena carroça
de bois. Aos nossos apelos estridentes, o espírito comercial do negociante o
desperta rapidamente. Ao saber de nosso destino ainda mais se excita o seu
zelo, apesar do meu olhar um tanto desconfiado, ao examinar o estreito veículo
de duas rodas que nos iria servir de transporte. Enquanto o homem ajeita nossa
bagagem na traseira da carroça, instalamo-nos o melhor possível. Meu santo
companheiro se faz o menor que pode para deixar-me maior espaço livre. Subo
ligeiro para baixo do baldaquim e sento-me com as pernas balançando no ar.
Quanto ao cocheiro, ele toma o lugar entre as traseiras dos bois, no varal, o
queixo tocando os joelhos. Assim acomodados, partimos.
Esses belos animais são aqui muito mais úteis do que os cavalos, sobretudo
como bestas de carga, porque são mais resistentes ao calor e muito menos
dispendiosos. A vida nos pequenos lugarejos e aldeias do interior da Índia não
evoluiu; é a mesma dos séculos passados. Essa carroça de bois que nos leva
agora é do mesmo gênero das que transportavam os viajantes há cem anos ou
mais, antes da Era Cristã. Nosso cocheiro, um rapagão de face bronzeada,
sente-se orgulhoso dos seus zebus que estão com os longos cornos, em forma
de lira, enfeitados com adornos dourados. Levam sinetas de cobre, amarradas
nas pernas, que tilintam ao andar monótono dos animais; são conduzidos por
meio de uma corda que lhes atravessa as narinas, e seus cascos mergulham na
poeira fulva da estrada.
O sol tropical, depois de uma rápida aurora, já se vai levantando no céu cor-de-
rosa. Uma luxuriante paisagem se descortina ao nosso olhar. Não é uma planície
monótona; a região é montanhosa e serras onduladas se estendem até onde a
vista pode alcançar no horizonte. A terra é roxa, semeada de pequenos arbustos
e arrozais, cujo verde vivo repousa o olhar.
Vejo um caboclo de face sulcada de rugas, certamente gasto pelo labor, indo
para os afazeres cotidianos. Uma jovem caminha com um cântaro de cobre
amarelo posto graciosamente na cabeça, um sari vermelho envolve-lhe o corpo
airoso, uma pedra cor de sangue orna-lhe uma das narinas e um par de pulseiras
douradas brilha-lhe nos pulsos, aos reflexos do sol. A tez escura de sua pele lhe
trai a origem dravidiana. Aliás, é essa a raça da região. Os Dravidianos são
alegres e brincalhões por natureza, mais sociáveis e faladores do que os da raça
morena e possuem também voz mais harmoniosa. Pelo olhar de surpresa que a
jovem nos lança, suponho que a aparição de um homem branco não deve ser
uma coisa comum nestas redondezas.
Ao passarmos diante de um dos portões que, por si só, dão idéia da gigantesca
arquitetura, faço parar um pouco o veículo, pois desejo ter uma rápida visão do
lugar. O conjunto é tão imponente quanto grandioso. Nunca eu vira antes uma
construção igual: o interior é formado por um vasto pátio em forma quadrilátera,
onde a vista, constantemente presa, fica como num verdadeiro labirinto. Quatro
gigantescos portais das fachadas exteriores estão cobertos de ornamentos e
esculturas batidos pelos séculos e dourados pelo sol tropical. Este imenso portal
com a base de pedra talhada e a parte superior revestida de estuque, está
sobreposto por pagodes em forma de pirâmide, que também, apresentam uma
variedade infinita de baixos relevos e esculturas. Além dessas quatro torres dos
portais, percebo ainda cinco outras, balizadas no interior do templo. Todas elas
têm o mesmo perfil, o que me faz lembrar as pirâmides Egito. O último lance de
vista revela-me um imenso pátio central, fileiras de colunas, claustros cercados
por sombrios santuários, passagens escuras e uma quantidade de pequenas
construções abrangendo incalculáveis oratórios.
Os zebus continuam seu andar plácido e outra vez estamos em pleno campo. A
paisagem é encantadora; a estrada é coberta por uma espessa camada de pó
fulvo. Aos lados enfileiram-se os arbustos baixos em cujos galhos devem-se
aninhar milhares de pássaros, a julgar pelo ruflar das asas e pela sinfonia dos
coros matutinos que chegam aos nossos ouvidos.
— Uma vez por ano, numa festa religiosa cuja cerimônia é celebrada no templo,
os sacerdotes acendem uma grande fogueira no topo da montanha; o fogo é
alimentado por tão grande quantidade de manteiga e cânfora, que arde durante
dias e sua chama é visível a várias milhas em redor. Ao vê-la, todo o povo se
prosterna em veneração, pois esse fogo simboliza que a montanha é uma terra
sagrada, sob a proteção de grande divindade poderosa.
A montanha aparece cada vez mais em toda sua massa volumosa. É de fato
imponente, esse pico solitário, matizado de cores vermelha, castanha e cinza,
erguendo sua cabaça a milhares de pés acima da planície para o céu cor de
pérola. Seja por causa das palavras do Yogue, ou por uma outra razão que
ignoro, é com um sentimento de sagrado respeito que meus olhos percorrem as
encostas íngremes da montanha.
Vinte rostos bronzeados e negros nos fixam. Seus donos, acocorados de pernas
cruzadas em meio círculo no chão de ladrilhos vermelhos, ficam a respeitável
distância do ponto para o qual seus rostos estavam voltados. Logo, esse ponto
atrai meu olhar; vejo uma figura sentada no divã comprido e branco, e não
preciso mais perguntar a ninguém, tanta certeza tenho de que é Maharichi em
pessoa. Subramanya se aproxima e prosterna-se no chão, cobrindo os olhos
com as mãos. Uma alta e larga janela está a alguns passos do divã; a luz viva
que cai sobre o asceta permite-me distinguir-lhe bem os traços.
Reparo seu olhar fixo na direção do caminho pelo qual nós chegamos; a cabeça
está em absoluta imobilidade; inclino-me e deposito na janela minha oferenda,
recuando um passo.
Meu guia não me tinha avisado que iria ter uma recepção igual àquela de
Madras, recepção característica pela sua total indiferença à minha pessoa.
Ao ver o homem sentado, imóvel, minha primeira idéia deve ser a mesma de
qualquer ocidental: essa atitude, será simplesmente uma atitude fingida? — Não,
o homem está em êxtase! Tenho certeza, embora meu guia não me explicasse
nada. Aí vem uma outra hipótese: será que esse estado de contemplação mística
é apenas um vácuo da mente? — fico pensando. Finalmente, afasto também
essa idéia, por uma razão muito simples: acho-me incapaz de responder.
Contudo, alguma coisa neste homem me atrai como imã; não posso desviar dele
meus olhos e, pouco a pouco, com minha surpresa, a confusão que senti ao
chegar aqui desapareceu e cedeu lugar a uma muito estranha, mas imperiosa
fascinação. Duas horas se passam. Começo a notar uma mudança singular a
efetuar-se em mim. As perguntas, que meticulosamente elaborei no trem,
começam a cair, uma após outra. Acho-as tão fúteis para formulá-las. Os
problemas que me assediavam parecem tão insignificantes!... Começo a sentir
uma imensa quietude, uma paz infinita a envolver-me como se ela fosse vinda
das partículas do ar que respiro aqui. Não compreendo como se pode dar isto,
mas sinto minha mente, torturada pela tirania dos pensamentos, acalmar-se,
como que perder-se no esquecimento.
Percebo agora quão fúteis são, de fato, essas perguntas! Quão mesquinha é a
fuga dos anos perdidos... Com nitidez concebo de súbito que a mente cria seus
próprios problemas, torturando-se em vão para resolvê-los. Para quem, até
agora, dava valor soberano ao intelecto, a idéia é de fato nova. Abandono-me a
ela com tanto prazer que me dá essa sensação de repouso — eis que duas horas
se haviam passado sem que me sentisse aborrecido ou irritado! A corrente
pesada de problemas à qual estava amarrada minha mente parece afrouxar-se
e largar-me.
Pouco a pouco todavia, uma nova pergunta me invade: qual será o mecanismo
desse fenômeno? A sensação de paz que sinto, emana desse homem, como
perfume da flor? Não acho resposta. No entanto, sinto minhas próprias reações!
Essa suspeita vem crescendo: será que essa paz divina que nasce em mim é o
resultado da minha situação geográfica atual, ou quiçá um reflexo natural da
minha mente, perante a forte personalidade do Maharichi? Essa quietude que se
segue ao bulício da minha alma, será obra sua? Como a consegue? Por algum
processo telepático ainda desconhecido? — Não sei, mas por incrível que
pareça, ele ali está, quietinho, completamente absorto e, na certa, nem sabendo
da minha existência.
Subramanya, na certa pensa que eu não lhe respondi por não tê-lo ouvido bem
e repete a pergunta em voz alta. Não obstante, leio nos luminosos olhos do
Maharichi, cujo olhar sereno me penetra, uma outra pergunta bem mais
eloquente: “será que você ainda se tortura com dúvidas depois de haver sentido
na sua própria carne o efeito dessa paz profunda de espírito, acessível tanto a
eles todos quanto a você?”
Contudo, sei que se espera de mim uma explicação qualquer, não o Maharichi,
é claro, mas o seu pequeno rebanho que, animado, conversa em volta. Conforme
o que me disse Subramanya, alguns deles são discípulos titulares, outros,
apenas visitantes fortuitos. Meu guia, surpreso, encarrega-se da apresentação,
falando em tâmil com palavras desconexas e grande profusão de gestos —
parece exagerar um pouco, a julgar pelo clamor de admiração que suas palavras
provocam.
* * *
O mestre, depois de alguns minutos, põe seu caderno de lado e chama um dos
discípulos, com quem troca algumas palavras em tâmil; o discípulo se volta para
mim, dizendo:
— O mestre lamenta muito que o senhor possa não gostar da nossa refeição
toda frugal, mas como nós nunca tivemos hóspedes ocidentais, não sabemos do
que eles se nutrem.
Prossigo então:
Três ou quatro discípulos que nos ouvem parecem chocados com minha
audácia. Será que fiz alguma coisa errada? Infringi alguma etiqueta ou ofendi o
mestre pela minha franqueza? Não sei; a amargura de tantos anos de vã
esperança, decepções contínuas, abriram-me os lábios dos quais saíam
palavras sem que as pudesse frear. Não importa! Se o Maharichi for o homem
que suponho ser, ele deve então estar além das convenções e vai me
compreender! No entanto, ele não me respondeu; imutável, parece seguir o
curso dos seus próprios pensamentos.
Agora que minha língua se desatou, não me retenho mais, e não vou parar tão
facilmente. Continuo falando:
— O senhor disse — eu — “eu quero saber” — diga-me, por favor, quem é esse
eu?
— E o senhor o conhece?
Maharichi insiste:
— Como o pode o senhor saber? Não é uma coisa fácil notar seu próprio
progresso na senda espiritual, como se nota na matéria.
— É necessário um mestre?
— Depende...
— Sim, ele pode proporcionar tudo o que for preciso nessa via, porém a questão
de que se trata aqui é puramente da experiência pessoal.
— E, com auxílio do mestre, quanto tempo levará para, pelo menos, aproximar-
se da Luz?
— Isso depende do grau de preparo de cada um; a pólvora pega fogo num
instante, no entanto, é necessário muito tempo para acender o carvão.
Vagamente percebo que o Sábio não aprecia muito falar de mestres, nem de
métodos. Faço como se não entendesse e insisto. Vejo, porém, seu rosto
desviar-se, firmando o olhar na floresta que se descortina da janela aberta. Mas,
onde está a resposta? Vou me considerar satisfeito? Não!
— Não se preocupe com o futuro! Porventura, sabe o senhor tudo que toca ao
presente? Cuide do presente e deixe o futuro por conta dos deuses.
Mas, que resposta! Desta vez não vou largar a presa tão facilmente, porque sou
deste mundo, onde as tragédias da vida pesam bem mais do que neste tranquilo
eremitério perdido na selva.
— Mestre, talvez o senhor possa dizer-me, então, se o mundo entrará
brevemente na era de paz e de ajuda mútua, ou se está, mesmo, condenado a
afundar-se na desordem e o caos tomará conta da terra?
— Existe um Ser que governa o mundo; é a cargo d’Ele que está essa
preocupação. Este que criou o universo sabe melhor do que nós o que há de
fazer; é Ele quem carrega o peso do mundo e não o senhor.
— Pois não. Mas, mesmo assim, olhando bem, é difícil de enxergar que parte do
globo se beneficia com Sua benevolência.
* * *
Na porteira aparece um cabriolé de duas rodas; não há assento mas não acho
que isso seja grande incômodo; aos poucos estou esquecendo o gosto do luxo.
O cocheiro, um rapagão forte, com um turbante sujo enrolado na cabeça, de
olhar vivaz, traja, por toda roupa, um pano de algodão preso à cintura, as pontas
passam-lhe entre as pernas, formando uma espécie de calça.
Desse pátio tem-se uma visão geral dos cinco pagodes menores, balizados no
interior do templo, e que são uma réplica exata dos quatro que já notei ao chegar,
destacando-se com seu gigantesco volume em forma de pirâmides; observo com
maior atenção e reparo que eles são de tijolos, e não como pensei, talhados na
pedra. Estes baixos-relevos são gravados numa espécie de estuque; algumas
das esculturas são pintadas, mas estão desbotadas pelo tempo.
Mais uma vez tiro os sapatos e penetro nesse encantador recinto de imaculada
brancura. Sob seus arcos, tudo parece ser calculado pelo divino arquiteto com a
intenção de exaltar as almas. Vejo alguns fiéis ajoelhados, outros sentados ou
prosternados nos coloridos tapetes de oração. Aqui não há santuários
misteriosos, nem estátuas ou imagens, porque o Profeta disse que nada se deve
interpor entre o homem e Deus; todos os sequazes de Alá são iguais diante d’Ele
e nenhuma hierarquia sacerdotal deve-se impor aos fiéis que rezam à sua
maneira e voltam, livremente, os pensamentos à Meca.
Agora só penso em voltar ao Maharichi. Lanço meu último olhar às nove torres
esculpidas do templo de Arunachala. Quantas gerações se teriam consumido na
sua construção? Não sei por que este templo me faz pensar no Egito. Mesmo as
ruas se assemelham às desse país; as baixas moradas de paredes grossas
parecem possuir caráter egípcio muito marcado. Será que um dia, como no
Egito, esses templos abandonados se tornarão pó vermelho e cinzas, donde a
fé humana os tirou? Ou talvez o homem vá edificar novos santuários, para
abrigar os novos deuses ainda inexistentes? Quem sabe?
Absorto em pensamentos, acalentado pelo galope monótono de nosso pônei,
quase me esqueço de olhar o magnífico panorama da mãe natureza, que se
descortina à nossa vista. Quantas vezes, nas Índias, esperei por esse momento,
único em beleza, quando o sol menos tórrido põe-se no horizonte e atira-se no
domínio misterioso da noite.
* * *
Maharichi, sentado no divã, está com os pés cruzados sob o corpo e as mãos
pousadas nos joelhos. Seu rosto, como sempre, me impressiona vivamente pelo
seu ar de dignidade altiva, mas que não exclui a simplicidade e a modéstia; a
cabeça de porte majestoso, tal como devia ser a dos sábios no tempo de
Homero; o olhar fixo se mantém num ponto, sempre o mesmo, na extremidade
oposta da sala; essa fixidez também representa para mim, sempre, o mesmo
enigma: estará ele se voltando a algum objeto exterior, como por exemplo, ao
último raio de sol, à primeira estrela que aparece no horizonte, no momento de
iniciar a meditação, ou bem estará o Sábio mergulhado em abstração absoluta
e não vê nada do que se passa em volta dele?
Sinto que estou voltando à infância; devo ter meus cinco anos. Vou andando por
esses rudes e escarpados atalhos que serpenteiam a colina sagrada de
Arunachala, segurando a mão do Maharichi. Mas ele é tão alto que parece um
gigante, comparado com a minha minúscula pessoa. Saímos da ermida e
seguimos pelos abruptos flancos da montanha; apesar da escuridão completa,
o Sábio conduz-me com a mão firme. Súbito, aparecem a lua e as estrelas
iluminando o difícil caminho com sua luz fria, e então percebo que Maharichi me
faz evitar, cuidadosamente, as fendas enormes e os blocos gigantes de pedras
que pendem ali, prontos para nos esmagar. Escalamos lentamente a colina
escarpada e sua encosta rude e áspera. As cavernas de anacoretas e grutas de
solitários, escondidas entre as estreitas veredas, cavadas na rocha de vez em
quando, surgem pelo nosso caminho; seus moradores saem para cumprimentar-
nos quando passamos, e embora o luar lhes dê a aparência de fantasmas,
reconheço-os como Yogues de várias espécies. Contudo, não nos demoramos,
antes de haver atingido o ápice; aí paramos, e meu coração bate com força, na
esperança de uma revelação inevitável que se aproxima.
Maharichi me olha, e eu, tão pequenino diante dele, levanto os olhos cheios de
súplica.
— Quando voltares ao meio deles, guardarás esta paz em ti, mas com a
condição de rejeitares a idéia de que és um corpo e um cérebro determinado.
Quando sentires correr em ti essa onda benévola do espírito, vais esquecer tua
própria personalidade, pois terás volvido tua vida para AQUÊLE (Deus).
Ao voltar a mim, embebido nessa sublime visão, meu olhar encontra os olhos do
Maharichi. Não, eu não me engano; sua face está dirigida para mim e é a mim
que ele está olhando.
Qual pode ser o significado profundo que se encobre nesse sonho vívido?
Desejos, amarguras do passado, tudo se desvanece como uma miragem
ilusória; o estado de sublime indiferença para comigo e a profunda piedade para
com os homens persistem em mim. Quão apaziguadora é essa sensação! Como
posso explicá-la? Sinto, todavia, que o efeito não é duradouro; é belo demais;
ainda não pode ser para mim...
Tenho que imitá-los, mas a sala é tão abafada, insuficientemente arejada, que
prefiro mesmo me deitar ao relento, em algum canto do pátio. Um discípulo de
barba grisalha me traz uma lanterna, recomendando deixá-la acesa, pois é de
recear uma visita de hóspedes insólitos tais como cobra, chacal ou tigre, e a luz
acesa será suficiente para ficarem a respeitável distância.
Deitado na terra, o corpo dolorido, fico acordado horas sem conciliar o sono, mas
não me aborreço; tenho bastante que pensar, pois sinto que encontrei em
Maharichi a mais misteriosa personalidade que a vida até agora colocou na órbita
de minha existência. A coisa é mais estranha ainda, porque o próprio destino me
pôs no caminho; sinto estar na véspera de grande momento, sem poder, no
entanto, determinar o que irá acontecer exatamente. Sinto que o Sábio me
prepara para algo imponderável... será algo que espero?... Cada vez que torno
a pensar em Maharichi, lembro-me desse sonho vívido, e estranhas emoções
me penetram, fazendo meu coração estremecer na esperança do mistério mais
sublime que sinto aproximar-se.
* * *
Não me é tão fácil transpor essas três barreiras. Cada vez que estou decidido
falar, uma dessas três razões surge para o impedir e condenar-me ao silêncio.
Tomei as disposições para passar um fim de semana, e eis aí uma semana
inteira que passou. A primeira tentativa de falar com o Mestre vai ser a última?
Salvo duas ou três conversações, todas convencionais, e algumas palavras
trocadas fortuitamente, ficamos, ele e eu, em nossas posições.
Quinze dias se passaram. Sinto cada vez mais e mais profundamente o bem-
estar, a paz, a serenidade que parecem vir do próprio ar que respiro aqui. Vem
o último dia. Minha visita se resume a uma sublime exaltação entremeada de
desânimo. Sinto-me deprimido; a maioria desses homens fala uma linguagem
por demais diferente da minha, tanto no seu exterior quanto no seu mais íntimo.
Como esperar, então, uma possível aproximação. Observo o Sábio. Ele paira
nas alturas olímpicas e julga a vida humana de ponto de vista tão alto, que ele
me foge; não consigo segui-lo. Não há dúvida de que ele não é como nós outros.
Ele não é da nossa espécie. É um elemento da natureza, como esse pico solitário
que se ergue por trás do seu eremitério, qual essa imensa selva virgem que
circunda seu retiro, como esse céu impenetrável. Algo dessa solidão terrível e
petrificante deve ter passado na alma inacessível do Maharichi.
Há trinta anos que ele viera para Arunachala — disseram-me — e nunca deixara
sua colina. Uma ligação tão forte deve haver influído no caráter do Sábio. Sei
que ele ama essa colina, porque alguém me traduziu os versos cheios de
emoção e encanto, escritos pela mão do Mestre, onde ele dá expansão ao seu
amor.
Como a montanha que se destaca da selva e se ergue solitária para o céu, assim
o Sábio levanta a cabeça acima da selva humana, porque sua grandeza também
é solitária e sem par. Como a Montanha do Santo Lume faz um pico isolado no
cinturão da serra, assim o Maharichi, por não sei que poder misterioso, domina
com sua grandeza o rebanho de fiéis que o amam e cercam. De uma maneira
ou da outra, ele faz parte do caráter impessoal e sagrado dessa natureza
soberba e, ainda mais, dessa colina santa. Ele é sozinho, destacando-se na
dianteira, e seus companheiros da vida, mais fracos, não podem segui-lo. Faço
votos para que ele se torne um pouco mais humano, mais acessível ao que para
nós é normal e natural, mas que, junto à sua augusta individualidade, parecem
fraqueza e desgraça.
Contudo, como poderia ele atingir essa grandeza de perfeição espiritual, se não
tivesse deixado a humanidade longe, muito longe, na sua retaguarda, e não
tivesse renunciado para sempre às criaturas mundanas? Sinto, todavia, uma
promessa no seu olhar, a promessa de uma extraordinária revelação...
Até agora, entretanto, nada além dessa inalterável serenidade e desse sonho,
que brilha na minha memória como estrela no céu. O tempo vai se escoando.
Em quinze dias, uma única entrevista, da qual nada entendi, por mais que me
esforçasse. A expressão rude do seu rosto fechado basta, por si só, para me
afastar. Nunca esperei ser recebido dessa forma, pois devo dizer que, ao chegar
aqui, estava na expectativa de algo brilhante, que o homem de manto amarelo
me fez vislumbrar. E, no entanto, é ao Maharichi que me obstino agora em fazer
falar, porque não posso deixar a idéia de que ele é único, entre todos aqueles
que me foi dado encontrar, que resolveu o enigma da vida e ao qual nenhum
sofrimento pode atingir mais.
Vou tentar mais uma vez! Resolvo procurar um dos discípulos mais antigos do
Mestre, atarefado em algum trabalho na proximidade do eremitério. Era sempre
muito amável para comigo, o que me faz perder meu acanhamento. Digo-lhe,
sem embargo, que gostaria imensamente de ter uma última entrevista com o
Mestre, mas não me atrevo a pedi-la pessoalmente. O discípulo me compreende,
pois sorri e afasta-se; volta minutos depois e comunica:
Apresso-me, todo feliz, em retomar meu lugar aos pés do Mestre. O Sábio se
volta para mim e põe-me logo à vontade, cumprimentando-me com a cortesia
habitual dele.
— O senhor verá, por experiência própria, que sua atitude para com as coisas e
os seres e até para com os acontecimentos modificar-se-á aos poucos.
— Mestre, o senhor então não concorda com os Yogues, pelo menos, nesse
ponto!
— É o egoísmo pessoal que põe o homem prisioneiro deste mundo. Que ele
procure libertar-se! A verdadeira renúncia está no abandono voluntário de nosso
ego ilusório e enganador.
— O senhor quer dizer que se pode continuar a exercer uma profissão, por
exemplo, e alcançar a Sabedoria?
— E por que não? Mas neste caso não será mais a mesma personalidade de
homem que prossegue sua vida ativa, porque a consciência vai se
transformando, aos poucos, até chegar ao foco espiritual que está além da
pequenez do eu.
— Mas quando se tem uma vida ativa, pouco tempo nos sobra para a meditação
necessária.
Enquanto suas mãos estão atarefadas no trabalho, sua mente paira nas solidões
infinitas.
— Vou tentar fazer-me compreender melhor e ser mais claro. Todos os seres
vivem constantemente na busca da felicidade, de uma felicidade que eles
pudessem pegar com as mãos e que jamais tivesse fim. Esse instinto é bom e
natural. Entretanto, ao senhor nunca ocorreu a idéia de que acima de tudo eles
se amam a si mesmos?
— E daí?
— Não... eu não compreendo, não sei bem onde o Mestre quer chegar...
A voz anima-se:
Meu interlocutor faz um sinal de que sim. Pela janela sem vidraça, um raio de
sol, subitamente, vem iluminar o rosto do Maharichi. Sua fronte nobre reflete
serenidade; a boca de contornos firmes exprime perfeita satisfação de si mesmo;
os olhos brilhantes, como uma chama do santuário de paz inabalável, transmitem
mensagem do infinito. Nada em sua atitude desmente suas palavras. Acaso
essas palavras ocultam outra coisa, além do seu significado aparentemente
simples? O intérprete traduziu palavra por palavra. Talvez algo mais profundo
tivesse escapado da sua interpretação? Esse algo é para eu descobrir,
evidentemente. O Sábio, porém, não parecia se exprimir como filósofo nem como
doutrinador, mas como um homem que fala com o coração; não se expressava
como quem vive sua própria e feliz experiência?
— Que é exatamente esse eu do qual o Mestre falou? Se isso que o senhor diz
for verdade, então é necessário que haja dois eus no homem? pergunto,
perplexo.
Parou, como se quisesse deixar-me tempo para assimilar suas palavras. Fico
calado, aguardando o que se vai seguir.
— O Mestre acha então possível tal investigação no nosso íntimo e que possa
ser facilmente praticada?
— Certamente; essa investigação pode nos levar até o ponto onde o ego
gradualmente desaparece.
— Mas então o que será de nós nesse momento? O homem ficará em estado de
inconsciência ou se tornará idiota?
Quando o homem, pela primeira vez, reconhece seu Eu real, uma força vem do
seu íntimo e apodera-se dele; essa força é a inteligência transcendente; ela é
incriada, infinita, divina e perene. Alguns a chamam o Reino do Céu, outros,
Nirvana; os hindus a denominam Libertação. Pode-se-lhe dar o nome que se
quiser — isso não influi. Quando essa força toma posse do homem — o homem
então se perde realmente, ou melhor, ele se encontra.
Essa última frase me faz pensar nas mesmas palavras proferidas pela boca do
Galileu, muito embora permaneçam, ainda hoje, um enigma para muitos: “Aquele
que procurar salvar sua vida, perdê-la-á — e aquele que a perder, conservá-la-
á.”
Trata-se aqui de criar uma corrente espiritual obtida pela prática da meditação
constante, mantida pelo hábito diário. Pode-se então continuar seus afazeres
sem que haja um choque entre a meditação e a atividade física. Quando o senhor
for meditar sobre a pergunta: “QUEM SOU?” — começará a compreender que
nem o corpo, nem a mente, nem os desejos dos sentidos são realmente o que o
senhor considera ser o seu ego; basta só essa atitude para fazer surgir a
resposta do recôndito do seu ser, aparecendo-lhe como uma profunda
realização. Aprenda a conhecer-se a si mesmo e a Verdade brilhará em sua alma
como um raio fulgente do sol; sua mente estará em paz e as ondas de felicidade
o submergirão e o inebriarão, pois o Eu real e a felicidade são termos idênticos,
e no momento em que conseguir a percepção direta do Ser, suas dúvidas se
dissiparão, porque saberá tudo.
Com essas palavras, Maharichi desviou a cabeça, seu olhar voltou a fixar o
mesmo ponto do lado oposto da sala. Compreendo, então que isso é o sinal por
ele marcado para o fim da entrevista.
Saio com a satisfação de tê-lo arrancado, mais uma vez, do seu mutismo.
* * *
Ao deixar a sala, refugio-me na mata, numa clareira bem tranquila, onde passo
o resto do dia, redigindo notas. Voltei quando o crepúsculo estava a se
aproximar, algumas horas antes de minha partida. A carroça de bois levar-me-ia
para longe desse asilo de paz. Retomo meu lugar na sala carregada do perfume
de incenso. Maharichi, semi-inclinado sob o ondulante “punkah”, mas no
momento em que entro, endireita-se e toma sua pose favorita: o pé direito posto
na coxa esquerda, e o pé esquerdo, dobrado, está apoiado na coxa direita.
Lembro-me da demonstração de Brama que chama essa posição de “cômoda”.
É realmente parecida com a pose de Buda, e relativamente fácil de ser tomada.
Com a mão direita segurando o queixo e o cotovelo apoiado no joelho, o Mestre
silencioso fixa-me atentamente; ao seu lado percebo um jarro com água e um
bastão de bambu. — Eis toda a riqueza que possui no mundo! — resposta
bastante expressiva à nossa sede insaciável de posses! Seus olhos brilhantes,
muito abertos, com o escoar do tempo tornam-se mais fixos, o corpo retoma sua
rigidez, a cabeça, antes de imobilizar-se, cambaleia ligeiramente; mais uns
minutos e tenho a certeza de que Maharichi está absorto em êxtase, igual àquele
em que o vi à minha chegada. Alguém se aproxima, sussurrando: “não se deve
falar mais, Maharichi está em êxtase.”
Quantas vezes observei, surpreso, todos esses discípulos, pensando: por que
eles ficam assim, anos e anos aos pés desse Sábio, sem nenhum conforto,
satisfeitos com tão poucas palavras, nada para distraí-los, nenhuma atividade
exterior que os possa prender; por quê? Agora começo a compreender — não
pela especulação cerebral, mas pela iluminação interior, bruscamente sentida,
que cada dia que passa lhes traz sua própria recompensa!
Deu-se então um fenômeno estranho: seu olhar muda de expressão, vejo suas
retinas se contraírem como se fossem um diafragma de objetiva fotográfica e a
agudeza do olhar intensificar-se entre as pálpebras, quase cerradas.
Subitamente meu corpo torna-se leve, airoso, e paira junto ao seu, flutuando no
espaço infinito. A sensação é de uma agudeza tão violenta que, amedrontado,
resolvo romper seu encanto. Acho coragem na minha própria decisão, e no
mesmo momento sinto-me reintegrado no corpo, sentado na sala. Não houve
palavras trocadas. Volto a mim, coordeno as idéias, espio o relógio na parede da
sala, e levanto-me em silêncio. É o momento de ir-me embora. Inclino a cabeça
em sinal de despedida — o Sábio silencioso responde-me com o mesmo gesto.
Digo algumas palavras de gratidão — ele as aceita sem nada dizer. Hesito, ainda
um pouco, no limiar da porta, quando ouço de fora o tilintar das sinetas da
carroça de bois. Pela última vez levanto as mãos, juntando as palmas, e curvo a
cabeça em reverência. Assim nos separamos.
10
Entre Magos e Santos
Ainda me lembro desse ambiente abafado, onde havia velhos acocorados nas
portas das vendas e crianças brincando no lixo; um rapazola todo nuzinho sair
de casa e reentrar, precipitadamente, ao ver um estranho; lembro-me do bazar
buliçoso e turbulento, onde vendilhões, sentados à porta das barracas,
acariciavam suas barbas, à espera dos eventuais fregueses; dos vendedores de
comestíveis, acocorados na terra ao lado das mercadorias, sem o menor cuidado
para afastar os enxames de moscas que as assaltavam.
Oh! não, eu dificilmente poderei servir como exemplo aos turistas da agência
Cook Ltda.!
Noto com grande satisfação que ele não se absorveu na política, como acontece,
lamentavelmente, com a maioria dos seus colegas, desde que Gandhi, por sua
infelicidade, incitou a Índia a levantar o seu povo contra a dominação branca.
É um homem forte, embuçado num amplo traje branco. Logo desconfio, tanto ele
fala de suas qualidades, mas quando acrescento algumas moedas ao monte aos
seus pés, mostra-nos um desses espetáculos que me deixa perplexo.
— Tudo isso — anuncia o Yogue com a voz triunfante — saiu da semente que
vocês me viram plantar!
É muito interessante, sem dúvida, mas minha formação ocidental não me deixa,
evidentemente, aceitar semelhante afirmação, a não ser sob os refletores da
investigação direta; receio que isso não passe de um simples truque de
saltimbanco. Meu companheiro, entretanto, se mostra menos exigente:
Vem-me, então, uma idéia; quando ficamos a sós com o faquir, apanho no meu
bolso uma nota de cinco rupias, dizendo ao jovem:
— Faça o obséquio de dizer-lhe que essa soma será dele, contanto que consinta
em explicar a sua arte.
Tomei aposento numa casa avarandada, cujo balcão envidraçado dava para um
parque. Numa dessas tardes particularmente tórridas, refugiei-me na sua
sombra, apreciando da minha poltrona o jogo da luz, através da vegetação
frondosa do jardim.
Num dado momento ouço um chiado de passos descalços nas lajes do pátio.
Logo vejo um homem de ar hirsuto, carregando na mão uma pequena cesta de
bambu. Num rápido olhar noto-lhe os longos cabelos ondulados e negros e os
olhos ligeiramente injetados de sangue. Silencioso, avança, põe sua cesta na
areia e cumprimenta-me, levantando as mãos à altura do rosto. Começa a falar
num idioma que julgo reconhecer como télugo, misturado com um horroroso
inglês, mas sua pronúncia é tão execrável que apenas consigo pegar três ou
quatro palavras. Esforço-me por responder-lhe em algumas palavras em télugo,
mas como o sei tanto quanto ele o inglês, tenho que renunciar a me fazer
entender. Finalmente, pelos gestos do homem adivinho que ele tem alguma
coisa na cesta e por força quer mostrá-la.
Para tirar-nos do embaraço, chamo meu criado, que também não sabe grande
coisa do inglês, e isso o incomoda muito, dada a sua costumeira prolixidade.
— Pois não, que mostre; só quero saber quanto isso vai me custar.
— Então vamos!
— Faquir nada querer dizer, sahib, somente pai ao filho, somente família saber...
* * *
Lembro-me do suave marulho das ondas de Puri, sob o leve carinho da brisa do
golfo de Bengala, enquanto perambulava pelas praias desertas, contemplando,
através das vibrações do ar em brasa, a fita da areia dourada que se estendia
no horizonte; o mar era como uma safira líquida; o vidro do meu relógio refletia
clarões de fogo. Voltando à cidade, ainda cheio dessa refulgência esplendorosa
de cores deslumbrantes, fui testemunha de um mistério que, sem dúvida, ficará
para mim um enigma nunca esclarecido.
Entro num cubículo quadrilátero, sem teto, feito de lona e sustentado por meio
de paus.
Como um regente de orquestra com a batuta na mão, ele marca o ritmo e fá-las
dançar com uma perfeição estupenda. As bonecas animadas com movimentos
graciosos, evitam a queda, afastando-se precavidamente da borda da mesa.
Fico boquiaberto! É demais! Isso se passa em plena luz, às quatro horas da
tarde!
No momento de reaver meu anel, não percebo nele nenhuma mudança. Mais
uma vez o faquir desfaz seu embrulho, do qual tira uma barra de ferro
enferrujada, cerca de duas polegadas e meia de comprimento e meia polegada
de largura. Peço ao assistente permissão para examiná-la. Sem a menor
objeção, ele me deixa fazê-lo; não percebo nenhum fio, como também não vejo
nada de suspeito em volta.
Uma vez a barra posta na mesa, o faquir, esfregando com vigor suas mãos
durante um bom minuto, curva-se ligeiramente sobre a mesa e fica com as mãos
levantadas acima da barra a uma certa distância. Observo com atenção cada um
dos seus gestos: lentamente, ele levanta as mãos, conservando os dedos
voltados para a barra. Com grande assombro, vejo a barra levantar-se à altura
mais ou menos de cinco polegadas, e seguir os movimentos dos dedos, paralela
às mãos do faquir!
Procuro uma explicação; talvez um longo cabelo, invisível pela sua finura, seja
ligado ao objeto; mas o meu anel? Ele dançava, enquanto o faquir estava longe,
com as mãos presas tocando acordeão! O assistente não podia ser cúmplice,
pois estava fora da tenda durante a dança das bonecas... Jogo verde para colher
maduro, e felicito-o por ser prestidigitador tão habilidoso. Seu olhar se entristece,
por ser julgado apenas um ilusionista.
— Não julgue, sobretudo, que estou juntando dinheiro por espírito de ganância;
preciso de uma certa quantia para erguer um mausoléu em memória de meu
velho mestre. Entreguei-me a essa tarefa com toda minha alma, e não
descansarei enquanto não tiver completado a soma indispensável.
“Aos treze anos era eu ainda um pastor de cabritos, de meu pai. Um belo dia
chegou à nossa aldeia um asceta de esqualidez tão assustadora que os olhos
pareciam sair-lhes das órbitas. Ele nos pediu um pouco de alimento e pouso para
a noite; meu pai lhos concedeu imediatamente, sempre possuído do mais
profundo respeito pelos santos homens. Não obstante, um ano depois, ele ainda
permanecia lá em casa, por ter conquistado a afeição de minha família, e meu
pai não o deixava partir, pedindo-lhe e rogando-lhe que ficasse. Ele era um
homem excepcional, possuidor de estranhos poderes. Um dia, quando sentados
à mesa diante de nossas cuias de arroz e legumes, percebi, várias vezes, seu
olhar fixar-se em mim. No dia seguinte, ele veio me procurar no curral, onde
pastavam cabritos, e sentou-se ao meu lado.
Pouco sabia eu, então, o que isso queria dizer, porém essa palavra abria na
minha mente horizontes sedutores e perspectivas de liberdade e de mistério.
Respondi-lhe que gostaria, e com muito prazer. Em seguida ele falou com meus
pais e, ao despedir-se, assegurou-lhes que dentro de três anos voltaria para me
levar consigo. Coisa estranha, pois dentro desse período meu pai e minha mãe
faleceram; portanto, quando ele voltou eu estava completamente livre. Pusemo-
nos a errar de aldeia em aldeia — ele era mestre e eu, seu discípulo; foi ele quem
me ensinou todas essas maravilhas que acabei de mostrar ao senhor.”
Isso me soa verdadeiro e sincero. Cético por natureza, sinto que minha
desconfiança se torna inútil aqui. Ao sair da tenda, ainda não tenho certeza se
não estou sonhando; o frescor da brisa, estremecendo os topos das palmeiras
no pátio vizinho, faz-me voltar à realidade. Mais me afasto, mais os fatos me
parecem absurdos: obstino-me a descobrir algum embuste, mas também não
posso duvidar da honestidade desse homem. Como acreditar, todavia, que os
objetos inanimados possam mudar de lugar sem serem tocados? Como pode o
homem chegar a tal prodígio, como se estivesse rindo das leis da natureza? Ou
talvez existam infinitamente mais coisas na natureza, que nós ignoramos?
* * *
Puri é uma das cidades santas da Índia, que abriga grande quantidade dos
templos e mosteiros desde os tempos mais remotos. Os peregrinos que a ela
afluem nos anos de festas religiosas, ajudam a puxar o gigantesco Carro
alegórico de Juggernaut, no seu percurso de duas milhas. Aproveito a
oportunidade para estudar os santos personagens; eis aí o momento único de
obter impressões de primeira mão, que espero sejam mais interessantes do que
as anteriores.
Começo por travar conhecimento com um peregrino, cujo inglês mais ou menos
correto posso entender, e que me revela, com o convívio, ser homem honesto e
de caráter nobre; aproxima-se dos seus quarenta anos, usa no pescoço um colar
fino de caroços e traja um simples manto de romeiro. Narra-me que está viajando
em visita a santuários e percorrendo todos os lugares santos de leste ao sul,
mendigando seu pão nas estradas. Dou-lhe uma oferenda em troca da qual ele
me mostra um pequeno volume tâmil que, a julgar pelas folhas amarelas e pela
encadernação roída pelas traças, deve ter mais de cem anos. Entre as páginas,
percebo gravuras muito curiosas; lentamente e com extremo cuidado, meu
peregrino, tirando duas dessas gravuras, mas oferece.
Meu encontro com Sadu, o homem letrado — como o batizei — é mais divertido.
Encontrei-o certa manhã ao meu lado quando, sentado na areia, estava lendo
as páginas rescendendo a rosa de Omar Khayyám. O Rubá’yát é um poema que
sempre me fascina, mas desde o dia em que um jovem escritor persa me iniciou
no seu significado mais profundo, entrego-me à sua leitura com prazer ainda
maior. Tão absorto estava, que nem percebi a forma humana atravessar a praia,
vindo ao meu encontro. O desconhecido já se havia acocorado, quando a
sensação de uma presença inesperada me incita a levantar os olhos. O homem,
com roupa dos santos homens, põe na areia seu bastão de peregrino e uma
trouxa de linho, da qual vejo despontar livros.
— Não quis ofendê-lo, senhor, mas não pude resistir ao prazer de falar-lhe.
— O senhor é um turista?
— O menos possível...
— Olha, senhor, tenho aqui os Ensaios de lorde Macaulay; que estilo admirável,
que inteligência! — lamentavelmente, tão cheios de materialismo!
Com essas palavras o santo homem torna a pôr seus tesouros literários dentro
da trouxa, tão rapidamente quanto os havia tirado, e virando-se para mim:
— Não seria indiscreto perguntar-lhe o título do livro que o senhor estava lendo?
— Não, ele é um poeta. O senhor é um homem muito curioso, quer saber tudo...
é uma esmola que vem me pedir?
— Oh! não, eu não vim por dinheiro, senhor! O que eu quero é que o senhor me
dê um livro. Gosto tanto de ler, senhor!
— Pois não! O senhor terá seu livro; acompanhe-me até casa e dar-lhe-ei alguma
coisa da boa época vitoriana, que lhe dará, sem dúvida, muito prazer.
— Mas, espere, eu vou lhe dar um presente, porém gostaria antes que o senhor
me mostrasse qual é o terceiro volume que tem em seu embrulho.
— Essa brochura contém uma curta biografia de um santo indiano, mas redigida
em bengali.
— Oh! muito pouco, senhor, muito pouco! Pretendo ir um dia ao Ocidente e julgar
por mim...
— O Autor Supremo montou o cenário: quem somos nós, pobres mortais, senão
atores que entram e saem, conforme a Sua vontade? — como disse o vosso
famoso Shakespeare.
* * *
Cheguei à conclusão de que os santos da Índia se compõem de classes
extremamente heterogêneas. Muitos são pessoas de boa índole, inofensivas,
mas ignorantes e incapazes de realizar qualquer coisa. Outros são
desclassificados, ou melhor, indivíduos que não gostam de nenhum esforço que
lhes possa causar o menor cansaço.
Menos comuns são esses pobres loucos, que torturam seus corpos à vista do
público; um daqueles que ficam com o braço levantado até que as unhas lhes
cresçam uns cinquenta centímetros e rivalizam com os que permanecem de pé
numa só perna, durante anos a fio. Não vejo absolutamente qual é o benefício
que eles podem obter dessas horríveis exibições, exceto alguns anás que o
público entusiasta vem depositar nas suas tigelas.
Entre todos esses santos, ainda alguns praticam abertamente a bruxaria. Isso é
a macumba da Índia. Geralmente eles operam nas aldeias, e em troca de
pequena remuneração, são capazes de fazer qualquer feitiço a nosso inimigo:
vender-lhe a mulher ou desgraçar nosso rival com algum mal estranho e
misteriosa doença, favorecendo nossas ambições. Ouvem-se casos estranhos
e as mais escabrosas histórias sobre os magos negros, que também desfrutam
do nome de yoguis ou de faquires.
Quando se acaba de analisar toda essa variedade de santos homens, sobra uma
ínfima parcela para os verdadeiros ascetas que se enclausuraram, retirando-se
em meditação solitária, condenando-se voluntariamente à penosa segregação,
banindo-se de todo contacto humano, sem outra intenção a não ser a busca da
Verdade. Sentem por instinto que, uma vez atingida a Verdade, lograrão a
felicidade sem limites, e ainda que nos fosse permitido duvidar desse
procedimento, tão estimado pelos hindus, tornar-se-ia impossível criticar a
legitimidade do fim almejado, que os impulsiona a semelhante proceder.
Nós, ocidentais, não dispomos do tempo necessário para tal busca e há uma
desculpa para essa indiferença: sabemos que se nos enganamos — enganamo-
nos em massa. Nossa época, febril e cética, considera a busca da Verdade como
uma superfetação desnecessária, sem parecer duvidar da vaidade e da futilidade
das coisas às quais entregamos nossa maior energia.
Nem nos ocorre a idéia de que esses solitários, passando sua vida na ânsia de
encontrar o real e mais profundo sentido da existência, têm maior visão para
formar uma opinião exata sobre os problemas da vida corrente, do que a
multidão que às cegas gasta suas energias em diversos interesses
contraditórios, sem dar a menor atenção a todo pensamento mais sutil, que a
possa aproximar da descoberta final, permanecendo imune.
Existem ainda entre os sábios de nossos dias, alguns que dão a vida para manter
a chama do idealismo e da sublimidade e o país inteiro os considera como seu
maior tesouro. Mesmo que a maioria deles seja constituída de impostores, o que
é bem provável, isso é apenas um deplorável resultado da decadência dos
tempos. Mas não devemos vendar a vista ao ponto de não enxergar a existência
de alguns redentores inspirados. É de lastimar, mas pela qualidade tão diversa
dos santos homens, nenhuma fórmula de elogio ou de censura pode ser aplicada
a todos eles. Aliás, isso também explica a atitude de certos cérebros de curta
visão, ou demasiadamente precipitados, quando nos propõem a exterminação
desses santos parasitas, como eles os chamam, em benefício da Índia. Os
espíritos mais ponderados, ou talvez mais esclarecidos, são aqueles que dizem
que a Índia perecerá no dia em que perder a noção do tesouro que possui.
Esses homens são motivo de exaltação do povo, por onde passam; os esforços
que fazem para elevar sua alma e ajudar os outros a se elevarem, valem um
pedaço de pão ou uma cuia de arroz, pois é tudo o que pedem. Não se deve fiar
nas aparências, mas também precisamos raspar bem a casca antes de julgar a
árvore pelos frutos.
* * *
Durante a noite, nossa máquina pegou e esmagou uma dessas feras, entrando
na estação de Hovrah toda ensanguentada, e os destroços de carne só puderam
ser removidos à custa de grandes esforços dos trabalhadores.
É evidente que logo pedi o seu endereço; meu companheiro não opôs dificuldade
e, entregando-me o cartão, acrescentou:
Eis a razão pela qual cheguei hoje a Calcutá, procurando a casa do mestre
Mahasaya, um dos discípulos do famoso Ramakrishna. Andando, atravesso a
rua que dá acesso ao pátio e no fundo tomo uma escadaria que me leva a um
grande casarão de construção antiga; subo os degraus sombrios, atravesso a
porta baixa, tenho de subir ainda um andar, abro uma porta do pequeno recinto
que dá para o terraço, no telhado da casa e, ao entrar, vejo duas das paredes
tomadas por sofás baixos; aliás, a peça não possui outro mobiliário, salvo uma
lâmpada e um monte de livros. Um jovem aparece e pede-me para aguardar. Ao
fim de dez minutos, ouço alguém sair da sala no andar inferior e,
instantaneamente, sinto um impulso incontido; tenho a impressão nítida de que
alguém fixou seu pensamento em mim. Ouço nos degraus os passos lentos de
quem se aproxima, e quando aparece, não preciso ninguém para mo apresentar.
Surge uma figura de verdadeiro patriarca, como o deveriam ser aquelas do
tempo de Moisés, repentinamente, saído das páginas da velha Bíblia. Esse
ancião de cabeça calva, de longa barba, como neblina branca cobrindo-lhe o
peito, de ar solene e olhar profundo, de ombros curvados sob o peso dos anos,
quem podia ser senão o mestre Mahasaya?!
— Seja bem-vindo.
Depois convida-me para me aproximar e sentar ao seu lado; toma minhas mãos
nas suas e guarda-as algum tempo. Julgo o momento oportuno para me
apresentar e expor o objeto da minha visita; quando acabei de falar, ele,
acentuando suavemente o aperto das mãos, diz:
— Uma força superior lhe inspirou essa viagem, pondo-o em contacto com os
santos do meu país — isso não é sem razão, espere com paciência e o futuro o
fará compreender.
— Não seria abusar da sua bondade, pedir-lhe que me conte alguma coisa sobre
seu mestre Ramakrishna?
— Oh! sabe o senhor que esse assunto é o mais querido para mim, aquele de
que mais gosto de falar?
Há quase meio século que ele nos deixou, porém sua memória sempre perdura,
toda viva em mim!... Quando o conheci, eu tinha vinte e sete anos; os últimos
cinco anos da sua vida passei-os ao seu lado. Graças a ele tornei-me outro
homem, e toda minha atitude para com a vida se transformou, tão grande e
profunda era a influência desse homem divino. Aos que iam visitá-lo, ele
espalhava a sedução do seu espírito, tão profunda que os fascinava, literalmente
os encantava. Os incrédulos, que vinham só com o intuito de zombaria, calavam-
se na sua presença.
— Mas como é possível aos que não acreditam, inclinarem-se diante de uma
influência puramente espiritual?
— Sim; e mais ainda, a meu ver. Era homem muito simples, sem vastos
conhecimentos, nem instrução; não sabia assinar seu nome e ainda menos
escrever uma carta. Pobre, era humilde na aparência, e mais humilde ainda pelo
seu modo de viver; no entanto, os homens mais ricos e mais cultos da Índia
vinham reverenciá-lo. Não podiam deixar de se curvar ante sua alta
espiritualidade, tão evidentemente soberana e tão irradiante que literalmente os
deslumbrava. Ensinava que, orgulho, riquezas, honras, posições sociais, são
apenas vaidades, e comparados aos tesouros do espírito, ilusões mentirosas e
falsas. Oh! esses dias abençoados! Frequentemente ele se afundava em êxtase
de natureza tão evidentemente divina, que nós que o rodeávamos julgávamos
estar na presença de um Deus, mais do que na de um homem. É muito estranho,
mas ele possuía o poder de induzir os discípulos a estado semelhante ao seu,
pelo simples toque da sua mão, e eles concebiam então, pela percepção direta,
os mais profundos mistérios da Consciência Cósmica. Agora lhe vou contar
como ele me prendeu:
— “Uma vez deram ópio para um pavão provar; no dia seguinte, ainda sob o
efeito do narcótico, a ave voltou exatamente na mesma hora a buscar uma outra
dose”.
— Estou lendo por certos sinais dos teus olhos que tu és um Iogue — continua
a cumprir tua tarefa diária, mas tem a mente voltada para Deus. Mulher, filhos,
parentes, — vive com todos eles, servindo-os como a ti próprio. A tartaruga, nada
na água, mas tem a mente fixa no lugar onde pôs seus ovos; portanto, cumpre
o teu dever para com o mundo, mantendo o espírito em Deus.
E assim foi. Desde que o Mestre deixou nossa terra, e enquanto a maioria dos
seus discípulos renunciou ao mundo, adotando vestes amarelas e espalhando
pela Índia as palavras de Ramakrishna, eu continuei a exercer minha profissão.
Porém, de então em diante tomei a decisão de não mais pertencer ao mundo,
embora vivendo entre os homens. Algumas vezes, todavia, refugio-me no pátio
que fica aí, em frente ao Senado, onde os mendigos e desabrigados da cidade
pernoitam e, juntando-me a eles, animo em mim o sentimento de pobreza; sinto-
me desligado, quanto eles, de todos os bens transitórios.
— Gostaria de saber o que Ramakrishna diria ao homem que não pudesse viver
exclusivamente com a fé, por que também tem a inteligência e a razão para
satisfazer?...
— Ele lhe teria respondido para orar — sussurra-me baixinho — a oração é uma
força tremenda. Ramakrishna rezava a Deus para mandar-lhe homens de
inclinação espiritual e logo aqueles que depois se tornaram seus discípulos,
começaram a vir.
— Pois não, mas se alguém vem dizer-lhe que não é do seu temperamento rezar,
que conselho o senhor lhe daria?
— Nesse caso ele tem que se pôr em contato assíduo com os verdadeiros
mestres, santos dotados de alto grau de espiritualidade, pois além de estimular
nosso anseio pela vida espiritual, tais homens orientam nossa mente e
despertam nossos poderes latentes, dirigindo-nos à percepção indubitável do
Divino. Frequentá-los é o primeiro passo a dar nessa via e, às vezes o último,
como dizia frequentemente Ramakrishna.
Na última noite esqueço a fuga do tempo, sentado perto dele no sofá, abismado
em plena felicidade. As horas se passam em prolongado diálogo, depois o
silêncio cai entre nós. O bondoso Mestre se levanta e me leva pela mão,
dirigindo-se ao terraço banhado pelo luar, entre vidas silenciosas das plantas e
flores que cultiva. Em baixo, Calcutá fulge com milhares de luzes. A lua é cheia.
Mahasaya, fixando-a, cai em curta, porém, profunda meditação. Depois,
voltando-se para mim, faz um gesto de bênção, tocando suavemente minha
fronte. O cético endurecido inclina humildemente a cabeça diante desse homem
verdadeiramente angélico. Após alguns minutos de silêncio, ele me sussurra
baixinho:
— Minha tarefa está quase cumprida; o corpo em breve vai pôr um ponto final
na obra para a qual Deus me havia chamado à terra, mas antes de minha partida
receba minha bênção. 1
1. De fato, soube da sua morte pouco tempo depois.
Tomado pela emoção, esqueço o sono e vou andando noite afora, pelas ruas da
cidade adormecida, pensando. Em frente de uma mesquita refreio os passos:
ouço a voz do muezim entoar, no silêncio da meia-noite, o hino solene ao
Senhor: Alá é grande! Então me vem uma reflexão: se há alguém capaz de me
livrar do meu ceticismo intelectual e me encaminhar para a senda da pura fé,
esse será indubitavelmente o Mestre Mahasaya.
* * *
Por longo tempo não se falava na cidade senão dele. Foi descoberto há um ou
dois meses em Madhupore, pelo doutor Neoghy, professor de Química na
Universidade de Calcutá, que o vira ingerir algumas gotas de ácido
extremamente tóxico e também pôr na boca um carvão em brasa e segurá-lo até
se apagar. O professor, vivamente interessado, convenceu-o a vir a Calcutá para
repetir a experiência em sessão pública, na Universidade, perante uma
assembléia composta exclusivamente de médicos e cientistas. Eu estava entre
os convidados. A demonstração teve lugar no anfiteatro de Física. Nós éramos
um grupo de pessoas cujo espírito crítico estava alerta, e por minha parte, como
o senhor sabe, nunca havia prestado a menor atenção às coisas da religião, da
Yoga, nem a qualquer doutrina desse gênero, tendo bastante o que fazer com
minhas ocupações profissionais.
“Seja qual for a violência do veneno, não pode afetar o Yogue que praticou o
grande exercício que consiste, em suma, de diversas práticas, tais como a
postura, respiração, concentração da vontade e poder da mente. Praticado
conforme manda nossa tradição, imuniza nossos adeptos contra qualquer objeto
nocivo, veneno, etc... Sua prática é bastante delicada e só possui suas virtudes
quem a exercita com regularidade. Um ancião me falou uma vez de um Yogue
que podia absorver grandes quantidades de veneno sem o menor risco. Era
então muito conhecido em Benares, chamava-se Trailingya Swami, já falecido
há bastante tempo. Trailingya era também adepto fervoroso do Controle do
Corpo; ficava quase desnudo durante anos, sentado nas margens do Ganges e
infelizmente ninguém podia gozar da sua palestra, pois ele se havia imposto o
voto de silêncio.”
E eu não acreditei nada quando pela primeira vez Brama me falou de tudo isso.
Agora, minhas idéias preconcebidas começam a modificar-se...
11
O Taumaturgo de Benares
Não vou me deter sobre minhas jornadas através de Bengala, nem falar do
encontro inesperado que tive, perto de Buda-Gaya, com três lamas tibetanos que
me convidaram a visitar seu mosteiro, perdido no seio da montanha, pois estou
impaciente para entrar na cidade sagrada de Benares.
Nosso trem atravessa, barulhento, uma grande ponte de ferro que é como um
símbolo de irreverente indiferença para com os usos e costumes de uma
sociedade imutável através dos séculos. Como se pode manter a ficção de
santidade de um rio, quando as vias férreas com suas pontes, lançadas por mãos
ímpias, atravessam desrespeitosamente suas águas sagradas?
Eis Benares!
Pois bem, ela está cheirando muito mal! O mau cheiro continua tão forte que
chega a ser nauseante. Dizem que Benares é o mais antigo centro povoado do
Indostão; se isso não se percebe, pelo menos se sente. Perdendo o ânimo, já
estou pensando em voltar à estação. Não é melhor respirar o ar puro do que
ganhar a fé ao preço de tamanha penitência? Mas, refletindo bem, chego à
conclusão de que o homem acaba por acostumar-se a tudo; assim também eu
tenho que me aclimatar com as coisas mais inesperadas neste estranho país.
Mas, Benares! Pode ser a capital da cultura e civilização mais antiga das Índias,
pode ser a mais santa das santas, mas deve aprender alguma coisa dos infiéis
e temperar sua santidade com um pouco mais de higiene! Acabo de saber que
esse ar empestado vem das ruas, calçadas de um composto feito de terra e
estrume de vaca, e também das velhas trincheiras que circundam a cidade, que
gerações sucessivas utilizavam como esgoto.
A acreditar nas antigas crônicas, Benares já era um centro edificado há mil e
duzentos anos antes da Era Cristã. Desde aquele tempo, os hindus já faziam
contínuas peregrinações, como os ingleses na Idade Média a Cantuária. Ricos
e pobres, quando a doença ou a idade os curvava à aproximação da morte,
afluíam a Benares, pois é comumente conhecido que se alguém tivesse o
privilégio de morrer na cidade santa, iria direto ao Paraíso. No primeiro dia
exploro o labirinto complicado de ruas encaracoladas das quais se compõe o
velho Kachi, nome indígena de Benares. Aliás, não é sem propósito que passeio
feito turista pelas suas vielas buliçosas. No meu bolso tenho o guia da cidade,
que marca o lugar da casa onde mora um Yogue fabricante de milagres, e cujo
discípulo encontrei em Bombaim.
Passo por alamedas tão estreitas que não permitem acesso aos carros; corto o
caminho através de barulhentos mercados, onde o povo multicolor (pelo menos
uma dúzia de raças) se acotovela, sem contar os sarnosos vira-latas e o enxame
de moscas, que aumentam a confusão. Velhas mulheres de cabelos grisalhos,
jovens de pele aveludada com corpos bronzeados e graciosos; peregrinos que
passam por entre os dedos as contas do rosário, repetindo pela quinquagésima
vez as mesmas palavras sagradas; ascetas esquálidos de rostos sujo e cinza;
todo esse povo que se compõe dos mais extravagantes tipos, raças e trajes, se
acotovela nessas vielas estreitas, formando assim a cor local de Benares.
Prossigo meu caminho e vejo um outro templo onde se adora Krishna; no interior,
diante do ídolo, todo de ouro, a chama de cânfora se consome. Os sinos
badalam, o som rouco dos toques de campa levanta-se aos ouvidos do deus;
percebo um sacerdote de face emaciada lançar-me um olhar desconfiado. Quem
pode compreender a alma desse povo, sempre tão sério, frequentemente
superficial e tão sábio às vezes? Quem pode calcular os milhares de imagens e
ídolos de que estão repletos os templos e palácios de Benares?...
Vishudhananda deve ter mais de setenta anos; feições regulares, nariz pequeno
e barba comprida. Impressionam-me, sobretudo, seus grandes olhos,
profundamente encovados nas órbitas; no pescoço o cordão sagrado dos
Brâmanes.
Que fazer nessas condições? Retiro-me com reverências, chamo um táxi e peço
levar-me ao Colégio. Ali não encontro o diretor; disseram-me que nesta hora ele
deve estar em casa. O motorista torna a correr pelas ruas da cidade e,
finalmente, encosta o carro junto a um velho casarão, cujo andar superior
saliente assemelha-se a uma casa italiana da Idade Média.
Devemos culpar o sol dos trópicos por tamanha loucura? Uma temperatura de
cerca de cinquenta graus à sombra, sem dúvida pode acabar por transtornar os
cérebros que já estão naturalmente predispostos à histeria mística.
* * *
Apanhando a lente, o mestre diz que, devido à inclinação do astro, a sala ficou
na penumbra, e não podendo captar os raios diretamente, vai mandar um dos
seus discípulos ao pátio, a fim de captá-los por meio de um espelho e refleti-los
pela janela aberta.
— Agora vou extrair do ar desta sala um perfume do seu agrado. Qual deles o
senhor prefere?
— O jasmim.
Vishudhananda toma meu lenço na mão esquerda e com a mão direita segura a
lente; durante dois segundos percebo um minúsculo orbe desenhar-se num
canto do lenço; depois de retirar a lente, entrega-mo. Levo-o às narinas: é
impossível duvidar! O lenço está deliciosamente impregnado com a fragrância
forte do jasmim!
Não percebo nenhum sinal de humidade; é evidente que não foi derramado
nenhum líquido.
Concentrou algum raio da luz solar sobre o canto do lenço que sobrara e fez
surgir um perfume, dessa vez desconhecido para mim. Não há dúvida, isso
parece milagre! Pois se ele ocultasse o perfume na roupa teria que carregar
sobre si todas as essências. Aliás, eu não deixei de olhar suas mãos durante a
experiência. Peço-lhe para ver a lente; examino seu vidro grosso, comum a todas
as lentes, seu aro metálico, prolongando-se em braço também de metal. Os
discípulos que o cercam são também uma garantia, vale quanto vale! O pandit
havia me informado que todos eles são homens cultos e pertencem à alta classe
da sociedade. O hipnotismo talvez seja uma explicação. Pode ser, mas vou
comprová-lo: em chegando à casa, farei com que pessoas desprevenidas
cheirem o meu lenço.
* * *
Estou novamente diante do taumaturgo; logo que cheguei, ele me avisa que
agora só pode ressuscitar um pequeno animal, um pássaro, de preferência.
Estrangulam um pardal e deixam-no exposto à nossa vista durante uma hora,
para ter a certeza de que ele está bem morto. Os olhos do passarinho se turvam
e o pequeno corpo rígido não aparenta mais nenhum sinal de vida.
O mestre toma sua lente e concentra um raio do sol no olho do pardal. Minutos
se passam.
O ancião está de olhos fixos, curvado na sua misteriosa tarefa, com expressão
fria e indiferente, sem o menor traço de emoção; súbito, a modulação de um
canto estranho e rouco, em desconhecido idioma sai-lhe dos lábios. O corpo do
pardal começa a estremecer espasmodicamente, da mesma maneira como já
observei na agonia de um cão. Um momento depois as asas começam a bater
e o passarinho se põe em pé, saltitando nos ladrilhos. Ele está vivo, não se tem
a menor dúvida!
Na fase seguinte, o pardal retoma bastante força para voar, procurando pousar
no poleiro. Isso é de tal forma inacreditável e estupendo, que preciso concentrar
minhas idéias para convencer-me de que o que vejo é bem real e não sou vítima
de uma alucinação!
Meia hora se passa. De repente, para minha grande surpresa, o pardal recai
inanimado aos nossos pés. Abaixo-me para examiná-lo: ele não respira mais,
está morto.
— Mestre, o senhor não pode prolongar a vida por mais tempo? pergunto ao
sábio.
É tudo que lhe posso mostrar no momento — responde com ligeiro movimento
de ombros.
Outra vez sinto no ar o mistério que vibra em volta do mestre; os milagres que
presenciei e os esclarecimentos do pandit tornam o mistério inexplicável, e mais
ainda, quando o pandit acrescenta que o mestre pode fazer aparecer uvas
maduras com a maior naturalidade e confeccionar bolos à vista de todos, sem
ter o menor ingrediente para isso. É suficiente para ele segurar uma flor murcha
para que ela retome logo toda a sua frescura.
* * *
Qual pode ser seu segredo? Esforço-me para desvendar o enigma, mas a
explicação que encontro é sempre aquela que não esclarece nada; o mistério
perdura oculto na fronte teimosa do taumaturgo de Benares, que jamais o teria
revelado, mesmo aos mais íntimos dos seus discípulos.
Alguns anos se passaram e ele, sempre insistindo, até que pela força de
atormentar sua mãe acabou por obter seu consentimento. Na mesma hora
deixou a casa e pôs-se em busca dos adeptos da Yoga. Viajou para o Tibete na
esperança de encontrar entre os eremitas e taumaturgos o mestre que lhe fora
marcado pelo destino.
Há na mente indiana uma idéia bem enraizada de que o aspirante nunca poderá
alcançar os mistérios da Yoga se não se tornar discípulo de um mestre que já os
alcançou. O jovem bengalês andava à procura desses solitários que vivem nas
ermidas isoladas ou nas cavernas inacessíveis; afrontou ventos, desafiou
tempestades nas planícies geladas e... voltou desapontado.
Dez anos se passaram sem se lhe apagar esse desejo ardente. Tornou a partir,
mas dessa vez percorrendo o deserto do Sul do Tibete. E lá, numa humilde
cabana, perdida entre os gigantescos rochedos, praticamente invioláveis,
acabou por encontrar o mestre tão obstinadamente procurado.”
Chegando a essa altura da história narrada, ouço uma dessas afirmações que
dantes me teriam provocado um riso irônico, e hoje a aceito, embora sem
compreender, mas também sem protestar.
Deixava perceber dons excepcionais, muito acima do comum, que lhe permitiam
assimilar simultâneamente os arcanos da ciência chamada Ciência Solar.
Durante doze anos, apesar do rigoroso inverno, ele perseverou nessa espécie
de noviciado aos pés do tibetano que era detentor do segredo da imortalidade.
Ao terminar sua instrução, o mestre mandou-o de volta para a Índia; por sua vez,
Vishudhananda tornou-se mestre em Yoga. Algum tempo viveu em Puri, onde
ainda possui uma casa. O grupo de seus discípulos pertence exclusivamente à
classe rica, comerciários, fazendeiros, funcionários e mesmo um Marajá. Talvez
me engane, mas tenho a impressão de que as pessoas humildes não são muito
favorecidas.
— O que o senhor acabou de testemunhar não tem nada a ver com a prática da
Yoga, e sim com a Ciência Solar. O objetivo essencial da Yoga está no
desenvolvimento da vontade e concentração da mente, enquanto que a Ciência
Solar, composição de fórmulas secretas, uma vez conhecida, não necessita
treino especial e pode ser estudada como qualquer filosofia ocidental.
O pandit completa essa informação dizendo que essa ciência é a parenta mais
próxima da eletricidade e do magnetismo. Contudo, não estou ainda muito
esclarecido mas, o mestre adianta:
— Essa ciência Solar nos vem atualmente do Tibete, mas na realidade não
representa nada de novo. Já era conhecida dos Grandes Yogues da Índia desde
os tempos mais remotos; com o correr dos anos, acabou ficando quase
totalmente perdida. Os raios do sol contêm os elementos vitais, e se o senhor
possuísse o poder de selecioná-los e isolá-los, fique certo que conseguiria os
mesmos milagres que eu. Há também na luz solar forças etéricas que contêm,
para aquele que possui seu controle, um poder surpreendente.
— Ainda não, mas estou me preparando para isso; farei uma escolha de alguns
deles para transmitir-lhes meus segredos. Neste momento estamos atarefados
na construção de um grande laboratório, onde serão dadas aulas, feitas
experiências e demonstrações.
— A Yoga.
Subitamente, saem de sua boca estas palavras, que eu jamais poderia imaginar:
— Mas como pode o senhor comunicar-se com seu mestre, que mora tão longe
daqui? indago.
Eu o ouvi bem, mas não posso compreender. Pouco importa. Sua resposta
afasta-me para longe dos milagres. Fico pensativo... meditando.
Espontaneamente, uma pergunta me vem aos lábios:
— Reserve cada dia uma parte do seu tempo e empregue-o ficando quieto, em
posição muito simples, como vou lhe mostrar. Tome cuidado com suas paixões,
refreando-as, e domine a ira.
— Sim; e não imagine que a Yoga do Controle da Mente seja superior a ela. Da
mesma forma que todo ser humano se compõe, em parte de pensamento e em
parte de ação, assim não devemos olvidar nenhum dos dois lados da nossa
natureza. O corpo age sobre a mente como a mente sobre o corpo; na prática, o
desenvolvimento de ambos deve ser paralelo.
Sinto que além disso não vou conseguir mais nada; confirma-me o ar de frieza e
falta de entusiasmo da entrevista. Penso em retirar-me, mas vou tentar mais uma
pergunta:
* * *
Volto a pensar no meu taumaturgo que brinca com éter e ressuscita pássaros
mortos. Sua história da Ciência dos Raios Solares não me convence;
evidentemente seria estúpido demais pretender que nossa ciência moderna
tivesse dito a última palavra em análise dos raios solares e suas possibilidades
latentes, e isso torna a explicação mais difícil ainda. Já me falaram de dois
Yogues que extraíam, como Vishudhananda, perfume do ar, infelizmente ambos
já morreram no século passado; todavia, posso me fiar nos meus informantes.
Nos dois casos, um extrato de óleo aparecia na palma da mão em forma de
sudação e, frequentemente, era tão concentrado que perfumava todo o
ambiente. Se o poder de que se serve Vishudhananda fosse o mesmo, ele então
poderia muito bem transportar o perfume de sua mão para o lenço e a lente lhe
serviria apenas de pretexto. Nesse caso, a concentração dos raios solares seria
um subterfúgio. Essa suposição me faz crer que o Yogue ainda não transmitiu a
ninguém o seu segredo e, ludibriando a confiança dos seus discípulos, finge
construir esse laboratório de preço exorbitante, interrompido pela
impossibilidade de conseguir as vidraças que ele acha indispensável e assim os
discípulos, aguardando, esperam sempre. Se a concentração dos raios do sol é
um blefe, a que processo, então, ele recorre para conseguir esses prodígios?
Quiçá, isso não faz parte dos mistérios da Yoga? Mas, afinal, por que estou
quebrando a cabeça? Minha tarefa consiste em expor os fatos que tenho visto,
e não em explicá-los.
Há um lado da vida indiana que para nós ocidentais está sempre fechado, porque
mesmo que esse homenzinho gorducho ou um dos seus discípulos se tivesse
arriscado a fazer uma demonstração pública que atraísse a atenção dos
cientistas, o mistério permaneceria inexplicado. Isso é tudo o que posso dizer,
mas ainda me obstino em perguntar: como pôde ele ressuscitar o passarinho
morto? O que há de verdadeiro nessa história de Yogue perfeito, capaz de
prolongar a vida indefinidamente? Existem, de fato, ho mens da Índia que
descobriram o segredo da imortalidade?
Poderia eu calar essas perguntas insidiosas, mas esta noite a imensidão vazia
do infinito me espanta e amesquinha; sob a abóbada celeste, cujo brilho
intensifica a cálida noite tropical, que papel fazem exatamente essas massas
amorfas de palácios e templos e a multidão anônima dos meus companheiros
de existência? Que poder misterioso os rege e move?
— Vou me retirar dos negócios exatamente na idade que me havia predito Sudei
Babu — vira-se para mim o comerciante, sorrindo.
— Mas então, como explicaria o senhor o que ele me predisse? Como podia ele
adivinhar que vou me retirar dos negócios apenas com quarenta e um anos?
— Pode ser, como queira, mas deixe-me contar-lhe uma outra história:
Ao meu gesto de surpresa, que deve dizer bastante para exprimir o tamanho da
minha incredulidade, acrescento:
— Pode ser, mas não se deve confundir um sábio como Sudei Babu, com esses
pobres coitados que o senhor encontrou. O senhor teve o azar de cair nas mãos
de charlatães, eis tudo. Sudei Babu é um Brâmane culto, mora numa casa
própria, possui uma biblioteca riquíssima, composta de volumes raros de grande
valor, e dedicou sua vida aos estudos da astrologia.
Encolho os ombros; não sei o que responder, mas ele continua falando, tomando
o tom de apologista.
— Meu caro senhor, por que não vai fazer uma experiência? Não dizem em seu
país que é preciso primeiro provar pudim antes de apreciá-lo? Vá consultar Sudei
Babu e o senhor verá o que ele vai lhe dizer. Eu também não dou confiança aos
charlatães, mas acredito nesse homem.
— Bem, sou cético quanto aos que fazem a adivinhação, comércio de feirantes.
Contudo, aceito sua sugestão e, se quiser, pode me levar a esse astrólogo.
— Como, se eu quiser? Venha amanhã tomar chá comigo e nós iremos visitá-lo.
* * *
Meu companheiro o chama, mas só o eco das velhas paredes lhe responde. O
cão Iate desesperadamente. O silêncio é tal que parece que todos os moradores
desertaram da casa. Já começo a pensar se nós não perdemos nosso tempo,
quando ouço alguém descer a escada. Os passos se aproximam e aparece um
rosto emaciado, uma forma esguia segurando, numa mão, um castiçal e na
outra, uma penca de chaves. Depois de algumas palavras trocadas na
penumbra, o astrólogo abre a outra porta e convida-nos a entrar. Afastando
cortinas, abre as persianas de duas das aberturas acima do balcão. A luz forte
que irrompe na sala ilumina violentamente o rosto do astrólogo. É uma face
descorada de fantasma, cujo sangue e vida parecem ter-se retirado! Só os olhos
brilham, ardentes, consumidos pela chama devoradora do pensamento. Essa
aparência cadavérica, a incrível esqualidez, os movimentos de lentidão quase
irreal, todo seu aspecto pode impressionar o visitante desprevenido. O branco
dos seus olhos reforça ainda mais essa aparência assustadora, pelo contraste
que apresenta com as pupilas, de um negro de carvão. O astrólogo toma lugar
na cadeira, que aproxima da grande mesa coberta de papéis, e oferece-me a
outra. Ele fala bastante bem o inglês, embora um pouco lento, para manter uma
palestra sem ajuda de intérprete.
— Pois não, à vontade. Vou estabelecer seu horóscopo e o senhor julgará por si
mesmo da sua exatidão.
— Não tenho tarifa. Há pessoas que me pagam até sessenta rupias, outras vinte.
Eu confio no senhor.
Exponho-lhe então que gostaria de, antes de saber do futuro, pôr sua ciência à
prova e ouvir meu passado.
Mas uma vez, Sudei Babu torna a folhear sua papelada, para em seguida falar
sobre meu caráter, com uma exatidão relativa, e de minhas faculdades
intelectuais em relação à escolha da ninha profissão; neste ponto não há uma
objeção de minha parte. Deixando seus papéis, torna a estudar a carta do céu e
começa a vaticinar o futuro:
— O mundo inteiro vai ser o seu lar; fará o senhor longas viagens, e viajando
sempre, escrevendo, nunca deixará sua profissão de escritor. Continua falando,
mas como não tenho aqui nenhum critério de julgamento de suas profecias,
contento-me em deixá-las onde as encontrei — escritas nas estrelas. 1
1. Uma dessas predições, que afastei logo como impossível e ridícula, veio a se realizar
ultimamente. Num outro caso, houve um equívoco de data. Quanto às outras, não sei dizer, pois
o tempo as confirmou ainda.
Sua descrição dos meus primeiros quarenta anos, mais ou menos correta, e sua
análise referente ao meu caráter, relativamente certa, reduzem meu ceticismo e
minha crítica ao silêncio. Mas, quanto ao futuro, sou obrigado a confessar, sem
a menor vergonha, que fiquei impressionado. Como consegue ele saber? Tira
as revelações do vácuo, por acaso? Limita-se a adivinhar? Só o tempo provará
a veracidade das suas profecias. E o que vai acontecer com meu ceticismo?
Cairá ao chão como um castelo de cartas? Não sei o que posso responder... e
sinto-me fortemente confuso; levanto-me, vou à janela, espio a rua, faço soar
maquinalmente as moedas de prata no bolso. Penso que espécie de pergunta
poderia formular ainda, quando o astrólogo vem romper o silêncio, com sua voz
macia:
— É por causa da distância que essa influência das estrelas lhe parece
impossível?
Mas então o que podemos dizer da influência da lua sobre as marés, do ciclo
lunar sobre o organismo feminino ou da ausência do sol, que provoca
melancolia?
— Considere as estrelas simplesmente como sinais no céu; aliás, não são elas
que nos influenciam, e sim o nosso próprio passado. O senhor jamais
compreenderá a astrologia, enquanto não acreditar na doutrina, cujos
ensinamentos revelam que o homem nasce e renasce e seu destino o segue de
um nascimento a outro. Se escapar das consequências de uma má ação,
durante uma das vidas, tem que a pagar na próxima encarnação e, se não
receber a recompensa de boas ações nesta vida, recebê-la-á indubitavelmente
na outra. Sem essa doutrina de contínuo retorno da alma humana à terra até
atingir a perfeição, a sorte dos homens, que muda constantemente, parecer-lhe-
á, sempre, como o efeito de um capricho ou de um azar cego. Como, então,
Deus, que é todo Justiça, permitiria que isso acontecesse? Impossível! Assim,
nós acreditamos que depois da morte a alma continua a existir, com toda
personalidade, até o momento da entrada no seu novo invólucro carnal. Boas ou
más ações na sua existência anterior, acharão seu equivalente durante essa vida
ou vidas vindouras. É isso exatamente que nós entendemos como destino.
Quando lhe disse que o senhor sofrerá um naufrágio e ficará em perigo de vida,
queria dizer que Deus, na sua justiça e misericórdia, lhe reservou esse destino
em consequência de alguma falta cometida na sua existência anterior. Não são
os planetas, mas suas próprias ações, que apresentarão as condições propícias
para levá-lo ao naufrágio. Os astros apenas registram esse destino. Por quê?
Não sei. Jamais um cérebro humano poderia ter inventado a astrologia; é uma
ciência que vem de muito longe e foi revelada, para nossa felicidade, por sábios
de outrora.
— Lê-se num dos nossos livros antigos, o Hitopadesa que nosso destino está
escrito em nossa fronte, e lutar seria inútil. Que posso fazer? Carregamos em
nós o fruto das nossas próprias ações...
Não escondo minhas dúvidas. O profeta se levanta; compreendo que já é o sinal
de despedida. Ouço-o então sussurrar baixinho:
— Tudo está nas mãos de Deus e nada Lhe escapa. Quem de nós poderia julgar-
se livre?
* * *
Não faltei à hora marcada. Embora não pretendendo aderir cegamente a tudo
que ele me expuser, não tenho nenhuma razão para rejeitar tudo a priori. Vim
para ouvir, para aprender talvez, ponderando que só pela própria existência se
pode adquirir conhecimentos; nunca recuso submeter-me a experiências, desde
que haja motivos assaz convincentes. Ora! o horóscopo de Sudei Babu
convenceu-me bastante de que a astrologia hindu não é uma superstição e
justifica uma investigação minuciosa.
Eis-nos de novo frente a frente, separados pela grande mesa, iluminada por um
candieiro a óleo de parafina, semelhante aos candieiros que iluminam, neste
momento, todos os lares indianos.
Nesta casa tenho catorze quartos — diz-me o astrólogo — todos eles estão
repletos de antigos manuscritos, na maioria em sânscrito; isso talvez lhe explique
porque necessito uma casa tão grande, embora morando só. Venha ver minha
biblioteca.
— Oh! não, não é questão de dinheiro; minha cozinheira está doente, há seis
dias que ela não aparece.
— Não, é impossível. Minha alimentação não pode ser preparada por uma
mulher de baixa classe. Prefiro não comer durante um mês, esperando que
minha cozinheira se restabeleça; acho que deve voltar dentro de dois ou três
dias.
Noto no seu pescoço o cordão sagrado dos Filhos do Brama — esse tríplice
cordão de linho trançado, que é usado por todo Brâmane, do nascimento até a
morte.
— Então, por um preconceito de casta, o senhor quer ficar doente? Sua saúde
não vale mais?
—Oh! Compreendo...
— Oh! não, não sou viúvo. Não sei como explicar-lhe... enfim:
— Aos treze anos já orava a Deus para que me concedesse a sabedoria. Minha
sede de conhecimento era tal que me levou a vários instrutores, bem como aos
livros de filosofia que me abriram os horizontes. Estava tão fascinado pelos
estudos que passava os dias estudando e lendo até altas horas da noite. Meus
pais me casaram. Estávamos casados há apenas alguns dias, quando minha
esposa ficou zangada comigo e disse furiosa: “Parece que me casei com um
livro e não com um homem!” No oitavo dia de nossas núpcias, ela fugiu com o
cocheiro!...
Silêncio. Não posso deixar de sorrir a esse fim tragicômico; esse abandono da
casa conjugal devia ter provocado um grande escândalo, mormente neste país
tão ligado às tradições! O espírito da mulher, não obstante, é cheio de malícia e
vai além de nosso entender...
— Foi para mim um choque violento — prossegue Sudei Babu — mas recuperei-
me e esqueci rapidamente todas essas emoções, mergulhando mais do que
nunca nos estudos de astrologia e nos livros que tratavam dos mistérios da vida.
Foi então que descobri, por acaso, um volume de Brama Chinta que devia decidir
minha vida.
— Não creio; nunca ouvi falar. Essa obra é conhecida apenas por poucos hindus,
que sempre zelosamente a mantinham em segredo. Oriunda do Tibete, onde é
considerada como sagrada, é transmitida somente a uma elite de estudantes.
— Foi escrita há milhares de anos pelo sábio Bhrigu que viveu em tempos tão
remotos que não se conhece mais a data. É uma doutrina que ensina um método
da Yoga totalmente diverso daquele que está em uso na Índia. O senhor está
interessado em Yoga, não é?
Como resposta, Sudei Babu mostra-me a carta do céu traçada conforme a data
do meu nascimento e, com a ponta do lápis, contorna as formas estranhas que
aos seus olhos representam constelações planetárias e signos do Zodíaco.
Aqui pára, e fixa-me bem nos olhos. Que mistérios de minha vida íntima vai ele
me revelar ainda, pondero, quando o astrólogo prossegue:
Fico um pouco confuso, atônito com essa brusca reviravolta da situação. Vim
para acabar de vez com essas pretensões absurdas da astrologia indiana. Voltei
para ouvir a tese dessa chamada ciência e sua defesa e eis que agora o
astrólogo se propõe ser meu mestre de Yoga! Isso não!
— Mas, o senhor toma os astros como guia e não sua alma, não é?
— Mas, suponhamos que o senhor fosse ameaçado de morte, também diria que
isso é vontade de Deus, e não faria nada para se defender?
— Sim; certo, porque em caso do perigo basta orar para imediatamente estar
sob a proteção do Todo-Poderoso. A oração é necessária, o medo é supérfluo;
rezo frequentemente e o Senhor sempre me protege. Isso não quer dizer que eu
não tivesse tido grandes dissabores, sempre porém com plena consciência da
Sua proteção. Nele deposito toda minha confiança, aconteça o que acontecer.
Para o senhor também chegará o dia em que não se preocupará mais com seu
futuro, adquirindo uma indiferença total pelo que lhe possa advir.
— Tenho sim, porque não se foge do seu próprio destino. Esse renascimento
espiritual é uma ocorrência que nos vem de Deus, prevista ou não.
— Vamos falar de outra coisa, sim? Porque Deus e eu nunca andamos pelos
mesmos caminhos; assim, nunca nos podemos encontrar.
— Nem por isso seu horóscopo pode mentir. Se não fosse assim, jamais
ofereceria meus ensinamentos a uma mente mal preparada. As estrelas, porém,
seguem sua invariável trajetória e, o que o senhor não é capaz de compreender
agora, um dia ocupará todos os seus pensamentos e o impulsionará com uma
força arrebatadora. Repito-lhe mais uma vez: estou pronto a iniciá-lo nos
métodos de Brama Chinta.
* * *
Noite após noite volto ao velho casarão para tomar minhas aulas. A luz pálida do
candieiro desenha sombras fugitivas na face de cera do astrólogo, enquanto ele
me desvenda os- arcanos da mais antiga doutrina da Yoga tibetana. 2
2. Seria sem proveito para o leitor entrar em pormenores dessa doutrina. Em resumo, ela consiste
numa série de meditações que têm por finalidade produzir o que meu astrólogo chamou “O vácuo
da mente”. O estudo consiste em seis sistemas, sendo que o principal se compõe de dez etapas,
porém, não seria aconselhável a um ocidental comum praticá-lo, pois este método só é possível
quando levado a efeito na solidão de selva ou nos retiros das montanhas. Poderia ser perigoso
em certos casos e a loucura espera o amador inexperiente.
Em nenhum dos momentos ele faz ressaltar sua superioridade espiritual, não se
vangloriando de seu saber intelectual e nada de pedante se nota em seu ensino;
Sudei Babu é a humildade personificada, começando sempre seus
ensinamentos pela mesma frase: “Nessa doutrina de Brama Chinta está escrito
que...”. Uma noite, faço-lhe uma pergunta:
— O senhor está bem certo de que isso não seja uma forma particularmente
intensa de auto-sugestão?
— Quando uma mulher dá à luz um nenê, acha o senhor que ela duvida da
realidade do fato? E, mais tarde, quando a mãe se lembra do parto, será que lhe
ocorre a idéia de que isso foi uma auto-sugestão? Quando ela se debruça no
berço, vendo-o crescer, duvidará por um instante da realidade da sua existência?
Da mesma forma é a mente. O esforço do renascimento espiritual provoca um
tão tremendo transtorno que jamais poderá ser esquecido da pessoa saindo dele
transfigurada. Quando alguém entra em transe sagrado, uma espécie de vácuo
se faz na sua mente; Deus ou — como o senhor não gosta dessa palavra —
digamos Alma ou Força Suprema entra e toma o lugar desse vácuo. A essa
mudança segue-se uma intensa felicidade, um imenso amor por todas as coisas
criadas e, nesse momento, para um observador, o corpo parece morto, porque
no auge da crise até mesmo a respiração fica suspensa.
O silêncio cai entre nós. Meu amigo parece absorver-se em meditação; minutos
depois, sem perder a calma habitual, a humildade costumeira, dos lábios do meu
estranho professor saem estas extraordinárias palavras:
Impassível, ele nem se apressa a dar-me uma explicação sequer. Seus olhos se
voltam para dentro e, confesso, sinto um pouco de medo, sossegando depois
quando o vejo reabri-los voltar ao normal e reiniciar a conversa com seu meigo
e enigmático sorriso nos lábios:
— O êxtase é uma força tão tremenda que a morte não pode surpreender o
homem quando nele está mergulhado. Os Yogues que vivem nos vértices
tibetanos do Himalaia atingiram essa perfeição; — esses homens
voluntariamente se retiraram para as cavernas, a fim de se dedicarem a essas
práticas e levam-nas ao mais alto grau. No transe, o pulso fica parado por
completo, o coração cessa de bater e o sangue não circula — o corpo parece
estar morto, qualquer médico ter-se-ia enganado no diagnóstico. Não imagina,
todavia, tratar-se de uma forma de sono; esses sábios são tão conscientes
quanto o senhor ou eu neste momento. Somente eles entraram num plano em
que vivem uma vida mais intensa que a nossa, onde o espírito não está mais
subordinado aos limites que lhe impõe a carne. Todo o Universo está neles.
Algum dia, ao saírem do êxtase, estarão envelhecidos algumas centenas de
anos!
Eis aí! Mais uma vez ouço essa enraizada tradição! Será que ela vai me
perseguir por toda parte da Índia? Poderei eu encontrar um dia esses imortais
da lenda e contemplá-los com meus próprios olhos?
* * *
Termina minha última aula. Consegui convencer meu amigo astrólogo, que leva
uma vida sedentária, a fazer um pouco de exercício. Escolhemos as ruas de
menor movimento, evitando os barulhentos mercados e a multidão que se
empurra no caminho do Ganges.
— O senhor sabe, a Índia é um país pobre e seus habitantes não têm mais força
de reagir; os ingleses não são tão maus assim, e acredito que Deus os mandou
para nossa felicidade. Antes a vida era incerta, a lei e a justiça quase não
existiam; faço votos para que eles não nos abandonem tão cedo, pois ainda
precisamos deles; a meu ver, porém, essa ajuda deve expandir-se daqui por
diante, amigavelmente, e não pela violência. Enfim, o destino é que vai decidir!
— Cada povo, como cada homem, tem seu próprio destino e deve obedecer,
queira ou não.
— O senhor não acredita então que Deus está muito longe de nós, e indiferente
ao sofrimento dos homens?
— Por que singular? Essas doutrinas não foram inventadas por mim, elas nos
vêm de tempos imemoriais. O poder invencível do destino, o culto da criatura
para com seu Criador, a ciência das influências planetárias já eram conhecidos
dos povos que não são tão selvagens como vossos cientistas se comprazem em
clamar. Mas, não esqueça, há uma coisa que vou lhe adiantar como certa: antes
do fim deste século o Ocidente tornará a reconhecer a realidade dessas forças
invisíveis que animam os seres.
— Não seria uma coisa fácil aos homens do Ocidente renunciar à noção ingênita
do livre arbítrio — garanto-lhe.
— Tudo que acontece, acontece pela vontade de Deus, e aquilo que parece livre,
é movido pela força do seu Poder. O Todo-Poderoso devolve aos homens os
frutos, bons ou maus, de pensamentos e ações das suas vidas passadas.
Submetamo-nos à Sua vontade, pois aquele que fixa seu olhar n’EIe, rogando-
Lhe força para suportar o infortúnio, não perecerá sob seu jugo.
— Oxalá fosse verdade o que o senhor vem me dizendo; pelo menos, seria um
grande consolo para aqueles pobres mendigos que acabamos de encontrar.
— A única resposta que lhe posso dar é: recolha-se em si mesmo, siga as vias
de Brama Chinta e todos os problemas se tornarão claros, à proporção que a luz
se faça na sua consciência.
Acho que ele não tem nada mais a acrescentar, e doravante hei de prosseguir
só, e encontrar meu próprio caminho. Recebi um telegrama, chamando-me para
longe de Benares.
— Para quê? — responde — este rosto tão feio, esta roupa surrada?
Meu amigo se levanta; percebo perto de nós uma figura sentada de pernas
cruzadas, protegida por grande guarda-sol de bambu. O homem parece
abismado em meditação; reconheço, pela cor da sua roupa, um santo homem
da Ordem Superior dos Swamis. Mais adiante, uma vaca; uma das vacas
sagradas, — suponho que abundam em Benares — fica deitada no meio do
caminho com as pernas dobradas sob o abdômen.
* * *
Nos dias que se seguem, abandono-me a uma orgia de viagens. Passo as noites
nesses albergues construídos pelo governo para uso dos seus funcionários e
turistas.
Essa lembrança, porém, traz-me, logo em seguida, uma outra: a desses infelizes
esfomeados carregando seus ossos e seus trapos ao longo do caminho
poeirento; a vida não lhes permite viver, mas também não os deixa morrer. O
rico usurário, insolente no seu magnífico carro, enlamea-os na passagem; eles
aceitam isso como aceitam a fome, a miséria e o desprezo, sem revolta. Neste
país tórrido, onde o mais miserável leproso está resignado com a sua sorte, o
fatalismo indiano faz indubitavelmente efeito de entorpecente que acalma sua
carne dolorida.
Para que discutir o livre arbítrio com gente curvada sob o punho de ferro de um
impiedoso destino? Para um oriental isso não é um problema: o destino governa
a ele e à sua prole e, com isso, tudo está dito. Porém, que ocidental consentiria
em ser um fantoche, movido por fios puxados pelas mãos invisíveis do destino?
Não, isso está além das minhas forças! Quando a agência Cook vender
passagens para a Lua, Marte ou Vênus, será mais fácil a influência dos astros
tornar-se evidente. Esperando porém, pode-se consultar os astrólogos, sem
esquecer que eles não são infalíveis, pois como me avisou Sudei Babu, a ciência
é ainda fragmentária.
Fico preocupado com o meu astrólogo, sobretudo por ser dificílimo obter notícias,
porque nenhum carteiro se teria atrevido a tentar a sorte nas ruas de Benares,
durante esse triste período.
Visitamos os antigos haréns, onde as favoritas dos reis Oudh exibiam sua beleza
cor de azeitona nos terraços de mármore, e se lavavam em banheiras de ouro.
Hoje os palácios estão vazios, mas o perfume dos seus jovens corpos ainda
recende, impregnando com seu aroma as salas, desde então sempre desertas.
Tornei a voltar amiúde, fascinado pela beleza da mesquita perto da Ponte dos
Macacos, que com seu alvor imaculado ofusca, brilhando deslumbrantemente, o
sol, e cujos esbeltos minaretes se elevam ao céu como uma oração silenciosa.
No interior uma grande massa de fiéis prosternada no chão, num ritmo monótono
invoca o nome de Alá. Berrantes tapetes, sobre os quais os fiéis se prosternam
para a oração, acrescentam uma nota alegre ao encantamento do cenário. Quem
duvidaria do fervor dos sequazes do Profeta, cuja religião é uma força viva e
fecunda?
A segunda pista que me levou à Dayalbagh foi indicada por um certo Malik, um
outro membro da Fraternidade; grande rapagão, fino, de tez clara, como há
muitos hindus nordestinos. Durante séculos seu povo vivia nas adjacências das
tribos montanhesas da fronteira, que observavam com inveja as possessões dos
seus vizinhos mais favorecidos. Mas o sábio governo inglês domestica esses
irrequietos briguentos, não como antigamente, pelas armas, mas assalariando-
os a seu serviço. Malik tem sob suas ordens alguns desses ariscos nômades,
hoje domesticados pelo trabalho; ao longo da fronteira do nordeste do país, eles
constroem pontes, estradas, casernas e fortes. A maioria conservou suas armas,
mais por hábito do que por necessidade, e Malik trabalha arduamente, fazendo
proveitoso e bom serviço perto de Dera Ismail Khan, posto mais avançado do
Império. Seu caráter harmonioso combina uma grande confiança em si, um
espírito sadio e prático com a nobreza da alma e a profundidade do pensamento,
que denotam o homem notavelmente bem equilibrado.
* * *
Graças aos esforços amigáveis desses dois homens, Nigam e Malik, vou ser
hóspede de Sua Santidade o Marajá Sahabji, o rei sem coroa de Dayalbagh, a
própria cidade de Radha Soamis.
— Deus não é somente amor, mas também beleza. Quem cultiva o espírito deve
cultivar o belo, não apenas em si, mas em tudo que o rodeia.
Seu inglês é regular, a voz clara e calorosa. Depois de uma pequena pausa,
continua:
— O homem possui um duplo etérico mais sutil do que seu corpo físico; nele
existem centros de ação correspondentes aos órgãos sensoriais. Por intermédio
deles se podem perceber as forças invisíveis que, quando despertadas,
proporcionam uma visão psíquica e espiritual.
Um curto silêncio, e depois ele me pergunta quais são minhas impressões sobre
a Índia.
— Não lhe escondo nada do que penso a respeito da negligência dos seus
compatriotas em assimilar as descobertas da ciência moderna e o progresso que
suavizam nossa curta passagem sobre a terra, o desprezo pela higiene, seu
agarramento fanático aos costumes estúpidos e às mais cruéis práticas, tudo
encoberto pelo manto da religião. Falo-lhe com toda franqueza que a influência
dos sacerdotes parece esterilizar seu país; dou-lhe alguns exemplos do que se
faz de absurdo em nome da religião, apesar de que Deus nos deu a capacidade
de raciocinar. Sahabji Maharaj é totalmente de minha opinião:
— É exatamente o meu programa de reforma o que o senhor acaba de me expor.
— Em conclusão, acho que a maioria dos hindus espera passivamente que Deus
faça por eles o que eles mesmos seriam capazes de fazer.
— Não há a menor dúvida. É certo que para a maioria dos hindus a religião é
uma proteção bem cômoda, um abrigo que cobre um monte de coisas que nada
tem a ver com ela. O pior de tudo é que a religião não se mantém na sua pureza
original e não guarda sua força viva senão durante meio século depois da morte
do seu fundador, para em seguida degenerar em simples filosofia. Seus adeptos
não conservam mais o espírito religioso, convertem-se em charlatães; no último
estado, e essa fase é mais duradoura, ela cai nas mãos dos pretensos
sacerdotes e, então, a hipocrisia é que passa a ser aceita como religião.
— Para que discutir o céu e o inferno, falar de Deus e dos seus atributos? A
humanidade não vive no plano da metafísica, mas na realidade; vamos pois nos
esforçar, antes de mais nada, e fazer essa vida mais sadia e mais bela!
— É por isso precisamente que queria conhecê-lo. Seus discípulos são pessoas
excelentes e tão práticas como os ocidentais de hoje, não se exibindo com sua
religião, vivendo uma vida sadia, observando as práticas da Yoga com uma
sincera fidelidade e devoção.
Minhas palavras provocam um sorriso nos lábios de Marajá Sahabji e faz brilhar
seus dentes.
— Considero-me feliz pelo fato do senhor ter notado. Pondo em prática essa
concepção da vida ativa em Dayalbagh, esforço-me por provar ao mundo que o
homem pode gozar de todos os efeitos benéficos da vida espiritual sem ser
obrigado a retirar-se para as cavernas, e pode atingir a mais alta perfeição da
Yoga sem ter necessidade de fugir aos deveres do mundo.
Quando cheguei aqui para inaugurar minha colônia, meu maior desejo era
plantar muitas árvores, mas vieram me dizer que seria tempo perdido nesta terra
árida e arenosa. O Jumna não corre muito longe daqui e Dayalbagh está
construída sobre um de seus antigos leitos. Não tínhamos então muita
experiência e só depois de várias tentativas infrutíferas é que achamos as
espécies capazes de se fixar nesta terra ingrata. A maioria das árvores plantadas
no primeiro ano pereceu; uma, todavia, resistiu. Mesmo assim, não
desanimamos; prosseguimos com nossos esforços e, hoje, veja! Temos nove mil
árvores em pleno desenvolvimento. Eu lhe conto isso apenas como símbolo da
concepção que temos da nossa tarefa. Encontramos aqui uma terra tão seca e
árida, e de tão pouco valor comercial, que se não tivesse sido nossa coragem,
jamais acharia um comprador. Veja o que temos realizado!
— Será que o senhor quer edificar uma nova Arcádia nas portas de Agra?
Enquanto ele ri dessa alusão, aproveito para perguntar se podia visitar a cidade.
— Pois não, vou providenciar isso e já. Depois que o senhor tiver visitado
Dayalbagh e visto as coisas na prática, minhas teorias o esclarecerão, e o senhor
me compreenderá melhor.
Meu guia me diz que essas plantações devem ter sido conquistadas, à força de
muita perseverança, de uma terra deserta. Uma amoreira plantada por Marajá
Sahabji em 1915, na época em que ele inaugurou a colônia, é um símbolo vivo
de sua concepção de urbanismo.
* * *
Não direi que os operários estão felizes, mas sim, entusiasmadíssimos! Eles não
são sindicalizados e, ainda, se o espírito sindicalista aqui surgisse, seria
considerado uma monstruosidade. Cada um cumpre a tarefa que lhe é
designada, não como uma obrigação, mas como um prazer.
A cidade tem sua própria usina elétrica, que distribui força motriz às fábricas,
aciona ventiladores e ilumina todas as casas, sem possuir um medidor por menor
que seja, pois o consumo da luz corre por conta do condomínio.
A colônia tem seu próprio banco, o Radha Swami General Bank, que possui um
capital autorizado de dois milhões de rupias, e administra as finanças da cidade
e as contas particulares. O Instituto Universitário Radha Swami está situado no
centro de Dayalbagh e talvez seja o mais belo edifício do Jardim do Senhor; um
arquiteto ocidental nada encontraria a criticar na sua fachada de tijolos
vermelhos, de duzentos pés de comprimento, com suas janelas bem aprumadas
e emolduradas de mármore branco. Esta escola moderna está recebendo várias
centenas de alunos por ano. O ensino aí é feito por trinta e dois professores,
todos jovens, entusiastas e inteiramente devotados à sua tarefa e ao seu mestre.
O nível de ensino é muito elevado. A doutrinação religiosa, sem ser filiada a
nenhum dogma, caracteriza seu lema que é a elevação da alma. Marajá Sahabji
visita frequentemente a escola, e todos os domingos faz uma alocução aos
alunos. A prática dos esportes é estimulada, tem uma biblioteca de sete mil
volumes, como também um curioso pequeno museu que completam a
instituição.
* * *
Aproveito a primeira oportunidade que o Marajá Sahabji me concede para ir lhe
pagar meu tributo de admiração.
— Mas como o senhor chegou a financiar uma obra tão grandiosa no coração
de um país tão atrasado?
— Mas, o senhor deve ter, com certeza, o apoio dos ricos, não?
— Que nada, nem pense em tal! Os Radha Soamis ricos podem ser contados
nos dedos; nossos membros são quase todos de condição modesta, e a maioria
deu mostras de muita abnegação chegando até nós. Pela graça de Nosso Pai
Supremo, agora podemos dispor de centenas de milhares de rupias com nossa
obra, e o porvir da colônia está assegurado, visto que sua renda cresce
proporcionalmente aos seus membros; assim, temos a certeza de jamais nos
faltar dinheiro.
— Mais de 110.000, porém, apenas alguns milhares vieram morar aqui. Nossa
Fraternidade, que tem mais de setenta anos de atividade, realmente não se
desenvolveu senão no decorrer dos últimos vinte anos, e sem a menor
propaganda, pois como o senhor deve saber, a sociedade é semi-secreta. Por
meio de atividades públicas e uma publicidade adequada, poderíamos multiplicar
o número de nossos membros que estão espalhados por toda a Índia, e
consideram Dayalbagh como sendo sua metrópole, aparecendo por aqui tanto
quanto possível. Estão organizados em grupos locais e reúnem-se todos os
domingos no mesmo horário, que corresponde às nossas reuniões dominicais
em Dayalbagh.
— Imagine só! Quando inauguramos esta colônia, tínhamos apenas cinco mil
rupias ao nosso dispor, economizadas para esse fim; iniciamos adquirindo só
quatro acres de terra, e hoje Dayalbagh se estende por vários milhares de acres!
Isto então não pode ser considerado êxito?
— Compreendo.
— No entanto, não nos considere como socialistas, no sentido europeu da
palavra, só porque nossas indústrias e nossas escolas são propriedade comum.
Esta forma de propriedade estende-se mesmo na área das terras e dos imóveis.
O senhor pode construir uma casa; ela será sua, enquanto nela estiver morando.
É por isso que estamos radicalmente separados na tirania do socialismo à moda
ocidental; todos os nossos bens são comuns e todos os donativos voluntários
são considerados como um depósito e administrados desinteressadamente.
Tudo está subordinado ao nosso alvo espiritual; a administração é controlada
por um corpo de quarenta e cinco membros representando as diversas
províncias da Índia. Reúnem-se duas vezes por ano para examinar as contas e
revisar os orçamentos; o despacho de contas-correntes, como também o
controle geral, é confiado a um Comitê Executivo de onze membros.
— Avalio, pelo que o senhor acaba de dizer, que um dia Dayalbagh poderá dar,
efetivamente, uma solução dos muitos problemas de nosso tempo. Ora! Mas eu
não vejo ainda como sua obra possa resolver o problema econômico, que
representa em nossos dias a base de tudo!
— A Índia pode trazer sua contribuição bastante útil, também neste ponto. Deixe-
me expor um plano que foi recentemente posto em prática com a finalidade de
adiantar a realização de nossos projetos. Esse plano, a meu ver, condensa todos
os princípios econômicos e sociais de capital importância. Organizamos um
fundo sucessorial que solicita os donativos de nossos membros capazes de
subscrever somas de mil rupias ou mais e todo subscritor recebe juros de 5% ao
ano; com sua morte, os mesmos juros serão pagos à viúva e seus filhos ou a
qualquer outra pessoa indicada. O beneficiário terá os mesmos direitos que o
subscritor, e o pagamento da anuidade só extinguirá na terceira geração. Assim,
centenas de milhares de rupias afluirão às nossas caixas sem ser demais pesado
aos membros da nossa Fraternidade, pois uma renda razoável está garantida
em troca dessa subscrição. 1
— Pelo que vejo, o senhor está se esforçando por procurar o meio termo entre
as inconveniências do capitalismo e o sonho dos socialistas, não é assim? Em
todo caso, desejo-lhe muita sorte, tanta quanto o senhor merece.
Agora se torna claro para mim que Dayalbagh, de fato, tem seu futuro garantido
graças aos recursos desse fundo sucessorial que tende a aumentar
constantemente com os donativos que continuarão a afluir, e também com os
benefícios de suas indústrias, quando chegar a fase de produção.
— Os políticos indianos, os mais conhecidos, observam a nossa experiência com
muito interesse — continua o Marajá — vieram aqui vários; alguns, contrários às
nossas idéias, com seu espírito crítico deixaram-nos alertas e vigilantes. No
mundo moderno os hindus constituem o povo mais pobre do mundo, e seus
líderes, embora pessoas muito positivas, são de pouca visão. Gandhi esteve aqui
e nós conversamos longamente; ele queria que eu me aliasse à sua política.
Recusei então, pois não se faz política em Dayalbagh. Nós acreditamos nos
meios práticos e eficazes; não queremos nada com os planos políticos de
Gandhi, com quem não concordo, e considero suas idéias econômicas pura
fantasia, despidas de todo valor prático.
— Ele é, creio eu, o inimigo da máquina que, conforme suas idéias, é boa para
ser jogada no mar.
— Sim, mas a Índia não pode nem deve voltar atrás. Ela nunca recuperará a
prosperidade, enquanto não desenvolver os elementos sadios da civilização e
do progresso mundial. Meus patrícios fariam melhor seguindo o exemplo dos
americanos ou dos japoneses. Como quer o senhor que o velho tecelão ou a
indústria caseira lutem contra a concorrência das máquinas, oriunda do
progresso moderno?
— O senhor viu apenas dois aspectos de nossa vida. Ora! a natureza é tripla: há
corpo, mente e alma. Temos oficiais e fazendas agrícolas para o corpo, escolas
para a mente e, por fim, nossas assembléias espirituais para as atividades
espirituais. Assim, visamos o crescimento harmonioso e integral do indivíduo —
bem entendido, damos primazia ao lado espiritual — e todos os membros da
Fraternidade fazem práticas individuais da Yoga, onde quer que estejam.
* * *
Vejo Sua Santidade Marajá Sahabji sentado sobre uma plataforma, erguida no
centro desse ambiente improvisado; centenas de fiéis acocorados em volta dele
formam um tapete movediço cobrindo o chão, e todos os olhares estão fixos no
mestre. Abrindo caminho com dificuldade até ao pé do estrado, acomodo-me
nesse pequeno espaço, da melhor maneira possível.
Dou um rápido olhar em volta de mim. Toda a assembléia está imóvel, como que
entregue à meditação; dos lábios de Sahabji ainda não saiu uma palavra; seu
semblante é mais grave do que de costume, seu ar bonachão e alerta
desapareceu, seu espírito parece estar mergulhado em contemplação serena.
O profundo silêncio continua por mais de meia hora; não houve nada mais além
dessa muda contemplação. Calçamos os sapatos e dispersamo-nos.
À noite há uma terceira reunião; tudo está fechado na cidade. A imensa tenda
novamente está lotada, e Marajá Sahabji está no seu lugar sobre o estrado. Vejo
uma fila de seguidores depositar a seus pés as contribuições para o fundo
administrativo, e dois membros da comunidade registram os donativos. O
momento mais importante é quando o chefe da Fraternidade pronuncia uma
alocução. Os devotos escutam-no com profunda atenção: ele é eloquente, sua
linguagem é viva e colorida, sua voz quente vem do coração, seu entusiasmo é
contagioso, noto a emoção dominar aos poucos os ouvintes extasiados...
— Mesmo que minha busca tivesse levado vinte anos, não seria tempo perdido.
Eu nem sempre fui crente; no princípio era tão cético como o senhor, porém meu
desejo de encontrar um mestre que me mostrasse o caminho era tão forte que
quase desesperei. Era jovem e alucinado por encontrar a Verdade; perguntei à
luz, ao céu, interroguei a natureza, indaguei aos objetos inanimados se a
Verdade existia. Chorei como uma criança, finalmente não aguentei mais, resolvi
não me alimentar, ainda que morresse, até o Todo-Poderoso me mostrar o
caminho da Verdade. Cheguei a não poder executar o menor trabalho; na noite
que se seguiu à minha decisão, apareceu-me a figura de um mestre. Perguntei-
lhe onde vivia. — Respondeu: “Allahabad! Depois você saberá meu endereço
completo”.
No dia seguinte, fui falar a um amigo que supunha ser dessa cidade e contei-lhe
a extraordinária vidência que tive. Sem dizer nada, ele saiu e voltou com uma
fotografia, representando um grupo de pessoas, entre as quais reconheci sem
hesitar aquela que me tinha aparecido. Meu amigo disse, então, que de fato
existia em Allahabad uma sociedade meio secreta, cujo mestre era esse homem.
Imediatamente me pus em contato com ele e me tornei seu discípulo.
— Mesmo que o senhor empreenda o estudo da Yoga por seus próprios meios,
escute bem! o dia em que suas preces forem atendidas, elas o levarão
inevitavelmente a um mestre: não há por onde escapar; o senhor deve ter um
guia e o achará, se tiver vontade e desejo de procurá-lo.
Não estamos mais a sós. Pessoas de aspecto mais variado se agrupam em volta
de nós e, aos poucos, Marajá não tem um ouvinte só, mas várias dezenas... Fui
eu que tomei a palavra:
Esforcei-me sinceramente para formar uma idéia clara de vossa doutrina, porém,
não é uma tarefa tão fácil assim. Um dos seus discípulos emprestou-me os
escritos de seu predecessor na Fraternidade, Sua Santidade Sankar Misra, mas
minha cabeça parece estourar de tanto pensar.
— Os livros que estudei dizem, de fato, que o som é uma força criadora que
chamou o universo à existência.
— Este som, não será simplesmente a pulsação do sangue nas artérias? Que
outro som poderia ser ouvido por nós, interiormente?
— O senhor esquece que não se trata aqui de som material, mas unicamente
espiritual. A energia, percebida como som no plano material, é apenas reflexo
de uma força sutil cuja ação criou o universo. Da mesma forma como vossos
cientistas transformam a matéria em eletricidade, assim podemos seguir, no
plano material, a força percebida sob a forma de som, até um grau de vibração
que não é mais perceptível ao ouvido, porque foi transposto para o plano
espiritual. O som condensa em si as propriedades
— Para o Ocidente, sim, mas não para a Índia. O som da Yoga já o ensinava
Kabir em Benares, no século XV. 2
2. Kabir foi um renovador religioso. Segundo seus discípulos, nasceu em 1398 e morreu em
1518, no entanto, geralmente se aceita o ano de 1440 como data real do seu nascimento. Suas
idéias se assemelhavam às doutrinas de Maomé e do cristianismo, harmonizando os elementos
contraditórios. (N. da T.)
— É certo, mas ainda seria preciso provar que essa música interior existe.
— Sim, em parte; porém, esses centros não são como os órgãos físicos que
apenas servem de suporte aos centros mais sutis que, na verdade, ativam o
corpo. O mais importante desses centros é a glândula pineal, que é a sede da
entidade espiritual do homem. Experimente dar uma picada no ponto situado
entre as duas sobrancelhas, e a morte ocorre instantaneamente. As correntes
espirituais convergem a essa glândula, afluindo pelos nervos óticos, olfativos,
auditivos e outros.
— Não tanto, basta pedir sua admissão à nossa Fraternidade, ser recebido, e
em seguida iniciado em nossos métodos.
— O senhor não poderia dar alguma prova da sua própria experiência? Não
desejo outra coisa, senão crer.
— Sinto muito, mas não posso; é o meu feitio, preciso ver antes de crer.
— O que posso fazer, então? Estou nas mãos do nosso Pai Supremo.
* * *
— O senhor tem toda razão, e fico triste por não poder livrar-me, tão facilmente
quando o senhor, da dúvida que me sufoca!
Todo pensamento indiano é colorido pela fé, sábia ou ingênua, e apóia-se num
postulado inflexível de religião, crença, ou revelação qualquer. Contudo, não
podendo dispensar a religião, também não faz a mínima discriminação entre
elas; todas são representadas no Panteão indiano, desde as mais grosseiras até
as mais sublimes. Lembro-me de um pequeno templo, encontrado um dia na orla
do Ganges, onde vi as colunas e as paredes todas cobertas de afrescos e
baixos-relevos, representando cenas eróticas a ponto de fazerem recuar de
espanto um padre ocidental. Sim, mesmo essas coisas têm seu lugar na religião
hindu! É verdade que os cultos fálicos são de antiquíssima tradição, e seria
injusto e ilógico expurgar da religião esse lado essencial da nossa natureza, pois
também, ao lado dele, se encontram na Índia as mais altas abstrações que a fé
jamais inspirou ao homem e, assim, temos que aceitá-la como ela é.
No entanto, em nenhum lugar encontrei uma tão estupenda doutrina, quanto
essa do Radha Soami; ela é mais de que original, pois é única! Que outro
cérebro, a não ser o do Marajá Sahabji, jamais poderia ter sonhado enfrentar
essa combinação paradoxal da mais antiga ciência do mundo com as mais
modernas conquistas da civilização? Dayalbagh será, irrefutavelmente,
ressaltada um dia nas Índias, embora sua pouca importância atual não lhe
permita ser apreciada. A Índia é um enigma cuja solução ninguém parece ter
achado, e será preciso esperar ainda muito tempo!
Marajá Sahabji tinha rido da pregação medievalista de Gandhi, e esse riso ainda
ressoa em Ahmedabad, quartel general do mesmo Gandhi! Nas margens de
Sabarmati, um viajante encontra, porém, como um desafio, umas cinquenta
chaminés de fábricas, cuja fumaça se espalha em direção ao céu, pequeno
grupo de casinhas alvas onde o evangelho do trabalho caseiro e do artesanato
rural renasce das suas cinzas...
Há uma coisa da qual estou absolutamente certo: a Índia sofrerá o efeito da ação
dissolvente dos elementos, de maneira precoce e desconhecida nesse país.
Milhares de anos de uma sociedade imersa nas tradições caducas, encarcerada
nas superstições insustentáveis, vão desaparecer antes de duas ou três
gerações, da memória dos homens; isso pode parecer um milagre, porém esse
milagre produzir-se-á, indubitavelmente, e o Marajá Sahabji vai merecê-lo, por
ter compreendido a situação.
Ele compreendeu que as coisas do passado devem ser condenadas nas Índias,
como o foram em outra parte do mundo, mas também gostaria de saber se essa
sonolência dos asiáticos e o pragmatismo europeu continuarão a ser
incompatíveis. Efetivamente, por que um Yogue de hoje não poderia se vestir
como todo mundo o faz? Por que não sair do seu insulamento secular para se
misturar na multidão? Não seria melhor que entrasse nas fábricas, nos
escritórios, nas escolas, não para ministrar sermões, mas para dar um exemplo
vivo de uma ação inspirada, transformando a via do trabalho produtivo numa
subida para o céu? A vida de pura contemplação não será doravante, aos olhos
do trabalhador incauto, uma forma lamentável de estúpida auto-suficiência. Se a
Yoga não fosse mais do que uma inocente mania de alguns privilegiados,
solitários retrógrados, o mundo moderno, não logrando proveito dela, a teria
rapidamente relegado ao rol das ciências caducas, e seus últimos vestígios
rapidamente desapareceriam. Se ela fosse apenas uma regalia saborosa, só
para um punhado de anacoretas descarnados, então, esses que manejam a
pena ou um arado, que manobram máquinas ou sufocam no tumulto da bolsa ou
dos armazéns nas docas, afastar-se-iam fatalmente, por não terem muito tempo
a perder e a Índia moderna não tardaria a imitá-los.
Seu esforço será apenas uma quimera. Tal como ele é, desperta admiração. Em
nossos dias, o túmulo de Maomé está iluminado com luz elétrica, o camelo foi
expulso de seu domínio milenar pelo luxuoso automóvel. Como então conceber
que a Índia escape a essa evolução?
Este vasto país, despertado de sua letargia secular pelo domínio de uma
civilização diametralmente oposta, deve acabar por descerrar os olhos. Os
ingleses fizeram mais do que transformar em terras férteis os desertos de areia,
abrir canais, construir represas favorecendo a agricultura, regularizar o curso das
águas e treinar nas fronteiras as tropas de elite, assegurando a paz e a
prosperidade. Fizeram muito mais, pois sopraram no país uma brisa salutar que
lhe trouxe idéias racionais e construtivas.
O destino colocou a Índia aos pés dos brancos vindos do longínquo Ocidente,
que não fizeram grande esforço para conquistá-la.
* * *
Refleti o dia todo sobre os efeitos da minha estadia em Dayalbagh e sou forçado
a constatar, com pesar, que nenhuma experiência notável, nenhuma visão que
elevasse a alma, ou ajudasse a penetrar o sentido real da vida, me foi concedida.
Esperei uma revelação, mesmo que fosse breve, mas que me permitisse seguir
a via da Yoga à luz da razão, e não nas pegadas da fé cega. Essa graça, no
entanto, não me foi reservada, talvez por que tenha pedido demais? ou não
mereci... não sei.
De quando em vez volto para perto da figura sentada no círculo dos seus íntimos.
Também estou fascinado pelo poder magnético desse homem formidável, que
realizou uma curiosa mescla com o sentido prático do americano, o amor pelo
fair play do inglês e o espírito contemplativo e devoto do hindu. É uma classe de
homem completo, que não se encontra mais, infelizmente, no mundo moderno;
mais de cem mil homens lhe confiaram a conduta de suas vidas; não obstante
ele continua modesto, humildemente sentado entre os seus discípulos, sem a
menor sombra de orgulho.
* * *
O trem parou. O Marajá Sahabji vai descer. Ocorre-me então uma idéia que me
faz esquecer minha reserva, todo meu orgulho de europeu, quebrar meu
ceticismo inveterado e meu gênio anti-religioso... Rápido, antes que os
discípulos apareçam e apoderem-se dele:
O mestre me olha com seu bom e franco sorriso, e dando pancadinhas no meu
ombro, responde:
Embora seja grande a distância entre Agra e Násique e o tempo que corre me
obrigue sempre a acelerar os passos, eis-me de novo no caminho que, pela
segunda vez, me leva a Meher Baba, o santo parse que se batizou a si mesmo
o Novo Messias.
Não me entusiasma muito fazer essa viagem. A serpente da dúvida, que gelou
meu espírito, não me deixa largar a idéia de que essa visita será tempo perdido,
pois, por muito bom homem que seja, Meher tem muito estranhas ilusões a
respeito da importância da sua missão.
* * *
— Penso em meia dúzia ou mais de messias que encontrei nas Índias, desde
que o deixei.
Meher Baba não parece absolutamente surpreso e seus dedos ágeis já correm
pelo alfabeto:
— Não se preocupe com isso! Essa gente me serve sem querer. Eu sei quem
sou e, quando o tempo vier para anunciar minha missão perante a Humanidade,
o mundo também saberá. Percebo que será inútil insistir. Após algumas
banalidades de cortesia, Meher Baba termina a entrevista, despedindo-me sem
mais nem menos.
Instalo-me num dos bangalôs situados a dois ou três minutos de sua sede. Tomo
a decisão de afastar todas as minhas prevenções e aceitar, durante as semanas
que se vão seguir, os acontecimentos que possam surgir, sem o menor
preconceito. Irei ver Meher sem qualquer pensamento de hostilidade e sem
minha desconfiança habitual; ficarei apenas na expectativa.
* * *
Nos últimos dias tenho a impressão de que Meher Baba está me evitando.
Quando consigo aproximar-me dele, sempre tem outra coisa mais urgente a
fazer, aproveitando a primeira oportunidade para se afastar. Sinto que minha
posição é falsa e, provavelmente, o Meher deve sentir meu constrangimento.
Estou sempre esperando os milagres prometidos, ou melhor, não os espero
mais.
Eis aí todo o resultado de minha teimosia tola em não faltar à palavra! Ele me
prometeu delícias de êxtases e deixou-me exasperado.
* * *
Que explicação carece tão estranha vida e não menos singular conduta? Já
trataram esse homem de impostor, mas também, isso não explica tudo e seria
injusto. Por minha parte prefiro manter-me na opinião do juiz Khandalavalla, que
conheceu Meher desde a infância e o considera um homem honesto, porém
desajustado. A explicação vale quanto vale, mas merece ser tomada em
consideração.
Uma breve análise de seu caráter ajudaria talvez a compreendê-lo melhor. Por
ocasião do nosso primeiro encontro em Ahmednagar, fiquei impressionado pela
serenidade e extrema meiguice; os dias passados em Násique, revelaram-me, à
luz da vida diária, que essa calma não era senão fraqueza e a meiguice um
indício de saúde precária. É um homem indeciso, influenciável e particularmente
emotivo. Sua paixão infantil, mas muito oriental, por tudo o que é teatral e
espetacular, sua tendência a dramatizar, indicam que ele vive principalmente
para a platéia. É muito compenetrado do seu papel de redentor, mas quem vê
nele apenas um comediante, também não se engana totalmente.
Não sei que idéia teve a Hazrat Babajan de mudar o curso des sa jovem vida,
para lançá-la em direção desconhecida, e cujos resultados veremos brevemente
se desenrolarem: um acontecimento extraordinário ou um fracasso ridículo!
Estou certo, porém, de que ela era perfeitamente capaz de afundar o chão sob
seus pés, e ainda não ultrapassar os limites dos seus poderes!
Seu beijo foi uma transmissão dos seus próprios poderes psíquicos. O choque
cerebral que resultou esse transtorno foi singular. “Meu espírito — disse-me
Meher um dia — recebeu um choque tão violento que repercutiu em todo o corpo
em vibrações fortíssimas e ressentidas por muito tempo.” Evidentemente, ele
não estava preparado para essa iniciação, ignorando tudo sobre os métodos e
disciplina da Yoga. “Eu era amigo de turma de Baba — disse-me seu discípulo
Abdullah — e jamais o tinha visto interessar-se particularmente por assuntos
religiosos ou filosóficos; gostando muito mais de jogos e esportes, tomava parte
bastante ativa nas competições escolares. Nós todos ficamos muito
surpreendidos com essa súbita conversão.”
Faço uma idéia do que será, quando ele romper o silêncio! Duvido, porém, que
ele se arrisque. Não precisa ser profeta para adivinhar que sua voz, se um dia
se levantar, não ressoará no mundo senão como um sussurro inaudível e
longínquo. Não se faz milagres com a lábia! Que suas profecias se realizem ou
não, pouco importa, quando o profeta não merece confiança! Isso não é uma
questão de profecias realizadas ou não, nem de promessas cumpridas ou não,
quando ele é apenas um lunático, presunçoso cheio de sua pessoa!
Pretende levar uma mensagem à Humanidade, muito bem! Mas, então, tem que
dar um testemunho vivo das suas palavras, senão receio muito que ele não será
ouvido!
Não vou entrar em pormenores, mas é um fato inegável que Meher cometeu
numerosos erros no decorrer da sua jovem vida. Eu também os cometi, mas não
tenho pretensão a Messias!
Ora! seus fiéis, por exemplo, jamais admitirão que ele cometa erros; se lhes
disserem que Meher não sabe o que faz ou o que diz, eles atribuirão sempre
algum sentido oculto às palavras e aos atos do mestre. Acho que eles
continuarão a obedecê-lo cegamente e, talvez, seja melhor para eles, pois se um
dia sua mente despertar desse torpor, ficarão rebeldes. Para mim essa
experiência reforçou ainda mais meu ceticismo, que fiz calar ao chegar aqui. Mas
também há uma certa dose de displicência no fato de esbanjar meu tempo com
tamanha leviandade!
1. Meher Baba realmente foi à Europa e ali fundou um culto. Ele continua a pretender que suas
profecias se realizarão, quando romper o silêncio. Esteve várias vezes na Inglaterra e acabou
recrutando discípulos na França, Espanha e na Turquia. Por duas vezes foi à Pérsia;
empreendeu um circuito espetacular através do continente Norte-Americano, seguido por um
séquito entusiástico. Em Hollywood fizeram-lhe uma recepção triunfal. Mary Pickford o recebeu
em sua residência e Tallulah Bankhead testemunhou-lhe um grande interesse. Milhares de
estrelas de cinema e personalidades locais foram-lhe apresentadas na ocasião de uma grande
recepção que lhe fizeram no maior dos hotéis de Hollywood, em que então se hospedou. Um
grande terreno foi adquirido nos Estados Unidos para estabelecer o quartel general ocidental.
15
Um estranho encontro
À sua volta, soube, entre outros pormenores banais, que de fato são mestre e
discípulo; o mestre chama-se Chandi Das e, segundo informações de seu
discípulo, é um Yogue dotado de faculdades excepcionais; há dois anos eles
deixaram Bengala, seu país natal, percorrendo milhares de milhas de estradas,
em parte a pé, em parte de trem, parando em lugarejos, andando de aldeia em
aldeia.
Ofereço-lhes lugar no carro, o que aceitam; o Yogue, sem perder sua calma
indiferença, e o discípulo, com um clarão de alegria no olhar.
Meu criado faz alguns preparativos para nos servir chá; depois afasta-se em
procura do chefe da aldeia. O Yogue e o discípulo acocorados na poeira
descansam em silêncio; o santo homem conhece algumas palavras de inglês,
porém insuficientes para manter uma conversação, e eu que faço questão da
minha entrevista, conto com meu rapaz indiano para servir-me de intérprete
quando estivermos mais ou menos instalados.
Fico deveras surpreendido. Como pode ele saber que estive em Bengala e vi
Mahasaya em Calcutá? Tão grande é minha surpresa que só lhe respondo
depois de me recompor um pouco.
Parece não ter ouvido, o que me obriga romper outra vez o silêncio:
— Sinto vontade de revê-lo quando voltar a Calcutá; pelo que vejo, o senhor o
conhece; se quiser transmitir-lhe-ei saudações suas.
— Não, o senhor não vai rever mais Mahasaya. Neste momento Yama, o deus
da morte, o chamou para si.
— Tenho um grande interesse pela doutrina e vida dos Yogues. Poderia o senhor
dizer-me como se tornou um Yogue e que sabedoria adquiriu?
— O tempo? Tem o senhor tanta certeza de que existe algo com esse nome?
Fico confuso. Será que este homem possui realmente os dons que lhe atribui o
discípulo?
Arrisco objetar:
— Sem dúvida, mas francamente, o senhor pretende dizer que a sua experiência
é diferente?
— Eu vivo no eterno. Não procuro saber dos fatos que o porvir possa me
proporcionar.
— Se eu quiser, sim.
— Faz tanta questão de saber? Se Deus o cobriu com o véu, acredita que isso
seja sem razão?
— Não sou um grande erudito, ornado das jóias da sabedoria vã. Volte à cidade
pela qual entrou na Índia e antes da próxima lua seu desejo será plenamente
satisfeito.
— Sim.
Não compreendo. Bombaim, essa cidade cuja metade é ocidental, que haverá
nela para mim?
— Mas não achei ali nada que pudesse guiar minha busca — respondo,
perplexo.
— No entanto, é lá que o senhor encontrará sua via. Vá quanto antes, não perca
tempo, parta amanhã mesmo!
Calou-se novamente, e seu olhar, como água estagnada, fica sem expressão.
Depois prossegue:
O resto não vale a pena transmitir. Chandi Das é refratário a toda conversa que
diz respeito à sua pessoa, de modo que não sei o que pensar dessas estranhas
profecias. Sinto, porém, que há ainda um mar de coisas que ele não quis me
revelar.
* * *
Embora não seguindo estritamente os conselhos de Chandi Das, mudo o
itinerário e volto a Bombaim. Apenas instalado, caio doente. Exausto, limitado às
quatro paredes do quarto do hotel, o espírito luta no corpo enfraquecido,
combatendo o desânimo que se apodera de mim.
Sinto-me mal, fisicamente; meu moral, abando, também não é dos melhores.
Tenho impressão de fracasso. Evidentemente, não posso negar que encontrei
homens de alto valor espiritual, homens que faziam coisas estupendas;
entretanto, não encontrei o super-homem que estava buscando, um Mestre que
satisfizesse o apelo, tanto do meu intelecto quanto do meu coração. Numerosos
discípulos entusiastas tentaram em vão atrair-me à órbita dos seus mestres.
Compreendo-os perfeitamente; como na mocidade se julga o primeiro namoro,
um amor de toda a vida, assim esses excelentes jovens tomaram suas primeiras
experiências espirituais por um achado final. Então, para que teimar em ser um
depositário passivo de uma doutrina estranha, quando não posso ter nenhuma
revelação pessoal, viva, original, uma iluminação que seja minha e não luz
emprestada! Mas afinal, quem sou eu, pobre escriba, em face dessas grandiosas
aspirações, senão um ambicioso desenfreado! Que direito teria eu de conquistar
tão grande favor do destino?! De todos os lados só vejo motivos de desânimo...
Meia hora depois, num táxi, estou a correr na Estrada Hornby através de Hornby
Road, o bairro das agências de navegação. Reservo minha passagem com
sentimento de resignação. Acho que partir o mais rápido possível é o que tenho
de melhor a fazer. Volto ao meu quarto de hotel, sem mais me preocupar de
olhar as lojas, palácios, templos e imponentes edifícios que compõem Bombaim
e me entrego à minha ruminação.
A noite cai. O garçom serve na mesa um delicioso curry, mas não tenho vontade
de comer; um refresco gelado me satisfaz. Chamo um táxi, faço-o parar diante
de um desses estabelecimentos profusamente iluminados (um cine-teatro), cuja
posse a Índia deve ao Ocidente e que esta noite parece oferecer um brinde de
boas-vindas em sua taça de Letes. Não me darei por completamente perdido
enquanto puder obter por uma rupia ou seu equivalente uma macia poltrona em
qualquer cidade do mundo. Gosto de cinemas.
— A vida nada mais é que uma fita de cinema, uma ilusão traiçoeira que se
desenrola sucessivamente do berço ao túmulo. Onde estão as lembranças do
passado? Pudeste tu retê-las? Onde estão as imagens do futuro? Acreditas
poder invocá-las? Em vez de te esforçares no caminho da Verdade, tu estás
sentado aqui, estupidamente, a perder tempo com uma imagem ainda mais
enganadora que a própria vida, com uma história imaginária — uma ilusão dentro
de uma grande ilusão!
* * *
Finalmente, faltam alguns dias apenas, e meu navio levantará ferros, navegando
no Mar Arábico em direção à velha Europa. Chega de metafísica. Tudo que havia
a oferecer — tempo, entusiasmo, dinheiro — ofereci, e não me sacrificarei mais
no altar de superstições e de hipóteses inverificáveis à procura do mestre.
Deveras!... talvez pensarei assim a bordo do navio, mas agora, a voz interior me
persegue cruelmente:
— Insensato que és! Este então é o fruto de tuas aspirações e de tantos anos
perdidos? Queres mesmo seguir o caminho traçado, viver uma vida banal,
esquecer tudo que acabas de aprender, e afogar no tumulto do egoísmo e da
sensualidade mundanos, olvidando aquilo que era o melhor em ti?! Porém, toma
cuidado, teu aprendizado da vida foi preparado por terríveis mestres: a solidão
que modelou tua alma e a intensidade do pensamento que fez estalar o verniz
que cobre o homem de sensibilidade comum. Obedeceste ao apelo imperioso
da intuição e agora pensas poder tão facilmente fugir das obrigações de uma tal
vocação? Não, não te iludas! Elas são como algemas presas aos teus pés!
Sozinho, sob o céu imenso pontilhado de estrelas, combato em vão essa voz
impiedosa que acusa de impotência minha fraqueza para lutar contra o
sentimento de angústia que me invade. Mas a voz insonora me responde:
— Indiferente? Estás bem certo disso? Não foi por que tu o deixaste
precipitadamente demais?
— Sim; talvez me tivesse precipitado. Mas, pensei no meu itinerário, poderia agir
de outra maneira?
— Que importa? Não te preocupes com isso; só a vit6ria final tem valor. Vai,
volta ao Maharichi!
— Não posso, ele mora na outra extremidade da Índia, e estou tão cansado e
abatido para fazer ainda essa viagem; é impossível.
— Que importa também isso? Se queres um mestre não deves poupar esforços!
Sinto-me tão esgotado e tão fraco para querer ainda qualquer coisa! Aliás, já
reservei minha passagem; só faltam três dias para eu deixar a Índia. É tarde
demais, não posso fazer nada, não posso mudar.
— Nunca é tarde demais! Que aconteceu ao teu senso de valores? Dizes que
Maharichi é o homem mais extraordinário que já viste e queres te afastar apenas
o encontraste? Vai, volta depressa!
A voz surge das profundezas de todo meu ser, tal como uma ordem. O que
importa minha lógica, o que importa a revolta do meu corpo exausto? Sinto-me
como criança, sem poder reagir. No momento em que o apelo se torna mais
imperioso, a imagem de Maharichi surge diante dos meus olhos, viva, irresistível.
Portanto, não reluto mais. Voltarei, e se ele consentir, entregar-me-ei em suas
mãos. A sorte está lançada; estou vencido. Embora não o compreenda, sinto
que não me pertenço mais. Volto ao hotel e tomo uma chávena de chá;
subitamente me dou conta de que sou um homem diferente; sinto uma sensação
de alívio quando tenho consciência de que as trevas que me encobriam
começam a dissipar-se, como na aproximação da aurora.
No dia seguinte, desperto fresco e bem disposto, sorrindo pela primeira vez
desde que voltei a Bombaim. O Sikh que me serve, elegante, vestido de jaquetão
imaculado, uma larga cinta dourada apertando-lhe a cintura, de calças coladas
às pernas, está sorrindo ao perceber-me entrar na sala do almoço.
“Seu amigo Brunton vai palmilhar a Índia em busca do mestre; encontrará vários
Yogues e instrutores; finalmente, porém, voltará ao Maharichi, pois é o único
Mestre que lhe convém”.
Fico pasmo:
Vejo-o sentado na sua magnífica pele de tigre, sereno e calmo como sempre; à
sua frente as varetas de incenso consomem-se lentamente, rescendendo seu
terso aroma. Neste momento o sábio não está em êxtase, seus olhos luminosos
estão abertos para o nosso mundo e seus lábios se abrem num sorriso
acolhedor, quando me inclino para cumprimentá-lo. Em respeitosa distância, os
discípulos estão acocorados; de pernas cruzadas; um deles manobra o “punkah”
Desta vez vim também como postulante, querendo tornar-me seu discípulo; meu
espírito não conhecerá sossego enquanto não souber da sua decisão. No
entanto, tenho esperanças, tão imperiosa era a voz que soava como uma ordem
ao me chamar aqui. Após algumas palavras banais, apresento-lhe minha
solicitação da maneira mais breve possível, dispensando todo fraseado
supérfluo. Maharichi continua sorrindo, olhando-me, calado. Repito minha
pergunta com a maior ênfase, ele então se decide a responder-me em excelente
inglês, diretamente:
Como devo interpretar suas palavras? Não sei o que pensar; esforço-me em
expor minha petição de outra maneira e espero. Finalmente obtenho a resposta:
— O chá está pronto — avisa-me o Raju, um rapazinho que não sabia uma
palavra de inglês quando o tomei aos meus serviços. Raju é a pérola dos
domésticos, é capaz de percorrer a cidade toda só para descobrir um objeto mais
bizarro ou os mais caprichosos petiscos para satisfazer o desejo do seu amo
europeu, que se compraz em inventá-los; ou, sentado na soleira da porta,
esperar por mim nas horas de meditação, sempre paciente e dócil às minhas
ordens. No assunto da cozinha, infelizmente, meu paladar ocidental dá-lhe a
impressão de uma mania inofensiva; após algumas tentativas infrutíferas,
desisto, encarregando-me da maior tarefa, resignando-me a fazer uma só
refeição substancial, satisfazendo meu apetite com o chá. Raju assiste à minha
desenvoltura culinária, sem, todavia, procurar compreendê-la; seu corpo brilha
no sol, qual o ébano polido; é um puro drávida, descendente dos habitantes
autóctones da Índia.
A presença do Maharichi basta por si só para encher a alma e fazer nascer uma
serenidade inefável. Analisando bem, constato e tenho certeza de que há uma
corrente sutil e poderosa vibrando entre nós, quando estamos na presença um
do outro. Compreenda-o quem puder! pois para mim não há mais dúvida.
De maneira que eu também me calei, esperando. Meia hora se passa sem que
o Maharichi se mova, impassível como se tivesse esquecido a minha presença.
No entanto, tenho absoluta certeza de que essa revelação que acabo de
conceber é obra sua e uma excelente lição para mim; sinto-me penetrado por
uma espécie de telepatia, devido ao efeito dessa misteriosa irradiação que
emana do seu ser.
— É facílimo para o senhor encontrar a serenidade num retiro como este onde
nada lhe perturba nem distrai.
Ainda um outro dia, quando critiquei ao povo hindu seu pouco interesse pelo
progresso material, disse-me:
— É verdade, nós somos uma dessas raças que vocês chamam de atrasadas;
mas vivemos assim mesmo sem grandes necessidades. Muitas das vossas
invenções modernas, frutos do progresso da ciência, são para nós
desconhecidas, porque nos satisfazemos com pouco, muito menos do que vocês
precisam. De maneira que o sermos menos avançados não quer dizer que
somos menos felizes.
* * *
Como Maharichi conseguiu chegar a esse elevado grau de força moral e, por
assim dizer, sublimidade? De grão em grão, pelas informações tomadas dos
seus discípulos, ou pelos pormenores que escapam às vezes dele mesmo,
embora não goste de falar de si, acabo por esboçar, mais ou menos, a história
da sua vida:
Nasceu em 1879 numa aldeia, cerca de trinta milhas distante de Madura, cidade
do sul da Índia, famosa pelo seu templo. Seu pai era Brâmane; desempenhava
um cargo de magistrado ou algo semelhante. Gozava da fama de ser muito
caridoso, por ter sustentado numerosos indigentes. Zeloso pela instrução de seu
filho, mandou-o estudar no colégio mantido por missionários americanos, onde
ele aprendeu os rudimentos de inglês. No princípio, o jovem Ramana gostava
somente de jogos e esportes, praticando luta livre, natação e boxe. Era excelente
nadador e mergulhava nas correntes mais perigosas. Naquela época, a religião
ou a filosofia não lhe interessavam; sua única singularidade se manifestava em
acessos de sonambulismo, uma espécie de sono tão profundo que nada podia
acordá-lo. Ao saber disso, seus colegas de turma, que temiam durante o dia pela
sua prontidão na estocada, vingavam-se dele aproveitando as noites. Entravam
no quarto, tiravam-no da cama e, levando-o ao pátio, davam-lhe murros e
surravam-no à vontade. Satisfeitos, levavam-no de volta sem que ele acordasse;
no dia seguinte, ele não se lembrava de coisa alguma. Era como se nada tivesse
acontecido, mas, para um psicólogo atento, já eram os indícios evidentes do
êxtase místico. Um dia, um parente veio visitá-lo em casa falando que vinha de
uma peregrinação que fizera a Arunachala. Esse nome soou estranhamente aos
ouvidos do garoto, sem que ele compreendesse a razão. Foi indagar sobre a
Arunachala e, ao saber que se tratava de um templo, uma idéia fixa apoderou-
se da sua mente. Por que exatamente Arunachala lhe interessava mais do que
inúmeros outros santuários da Índia, ele não era capaz de responder. Prosseguia
seus estudos na escola dos missionários. Embora sem manifestar aptidões
especiais, era inteligente e bom aluno; aos dezessete anos o destino falou. De
repente deixou os estudos, abandonou o colégio, sem ter avisado aos mestres
nem à família. Qual seria o motivo dessa brusca mudança, que destruía sua
futura carreira? Devia ser muito importante aos seus olhos; dava, porém,
bastante que pensar aos seus, essa singular e inexplicável conduta. O maior
Instrutor da vida lançava o jovem Ramana num caminho jamais previsto pelos
missionários, seus instrutores da escola. Seis semanas depois dessa súbita
revelação, ele deixou Madura e a casa dos pais para nunca mais voltar.
Não falava a ninguém. De fato, durante os três primeiros anos do seu retiro, ele
nem abria a boca; não porque tivesse feito voto de silêncio, mas em obediência
às ordens da voz interior que lhe mandava concentrar toda a atenção à vida do
espírito. Somente ao atingir a finalidade que se propusera, rompeu o silêncio,
mesmo assim nunca falando muito.
Pode ser que a beleza do lugar também tenha influído em Ramana para a
escolha do seu retiro. Das escarpas adjacentes descortina-se uma vista
deslumbrante sobre a pequena cidade e seu gigantesco templo, encolhidos aos
pés da montanha. Ao longe, a planície e a cordilheira suavemente ondulada, em
declínio, fecham o horizonte e limitam o encantador panorama natural.
Ramana ficou anos vivendo nessa caverna, entregue a constantes êxtases. Ele
não era um Yogue, no sentido próprio da palavra, pois nunca estudara a doutrina
Yoga nem praticara os exercícios sob a vigilância de um mestre. Seguia
individualmente a vereda sublime que leva ao conhecimento de si próprio, guiado
por um apelo interior do seu Mestre Divino.
Em 1905, a peste fez sua aparição na cidade, trazida sem dúvida por algum
peregrino. Ela acabou fazendo tal destruição que os moradores apavorados
abandonaram-na, refugiando-se nas aldeias vizinhas. Tigres e leopardos, saídos
dos seus covis da selva, andavam à solta pelas ruas da cidade abandonada.
Forçosamente, ao descer a montanha eles tinham que passar diante da caverna
do Sábio; aconselharam Maharichi a mudar, mas ele recusou, calmo e
indiferente como sempre.
O pandit, que viera morar nas redondezas do templo para entregar-se aos
estudos e meditações, ouviu falar do jovem Yogue; a curiosidade fê-lo escalar a
montanha e, chegando, achou Ramana de olhos arregalados, contemplando o
sol — um dos exercícios ao qual o jovem, frequentemente, se entregava. Um
ocidental não pode avaliar o que representa esse exercício! A intensidade dos
raios solares é tremenda! Lembro-me de um dia em que, escalando a encosta
da colina, fui apanhado de surpresa pelo sol do meio-dia; cambaleei por muito
tempo, como se estivesse embriagado.
Desde então, o título de Maharichi começou a ser dado pela classe culta ao
jovem Ramana; entretanto, o comum do povo o adorava como a um ser inspirado
por Deus, embora Maharichi repelisse com toda força qualquer manifestação
desse gênero na sua presença. Entre os hindus e nas nossas conversações,
muitos dos seus devotos e conterrâneos dizem que ele é Deus.
Um pequeno grupo de discípulos começou a formar-se ao seu redor; foram eles
que construíram essa ermida na encosta da colina, convencendo-o finalmente a
vir morar nela. Sua mãe, que o visitava regularmente, acabou reconhecendo a
santa vocação de Ramana. Quando a morte levou seu filho primogênito e todos
os parentes, ela veio pedir ao Sábio a permissão de com ele viver, pedido que
Maharichi aprovou. Seis anos viveu no eremitério e acabou sendo a mais
fervorosa entre os discípulos do seu próprio filho. Em troca da hospitalidade,
tomava conta da cozinha, e quando a velha senhora faleceu, suas cinzas foram
inumadas na encosta da colina sagrada, onde mais tarde uma capela foi erigida
pelos devotos do Maharichi. Ela atraía multidões, e luzes permanentemente
acesas ardem em memória da mãe que deu à humanidade seu grande Sábio.
De então em diante, sempre ramos de jacintos e heliotrópios e grinaldas de flores
coloridas são depositados pelos fiéis, num altar, em sua homenagem.
Uma vez, faz pouco tempo, um bando de ladrões penetrou na sala onde o
Maharichi estava só. Os malfeitores, por não haverem quase nada encontrado
senão algumas rupias confiadas ao discípulo, encarregado da despensa do
eremitério, acabaram batendo no Maharichi a pauladas. O Sábio, não somente
sofreu com paciência, mas ofereceu-lhes de comer. Sendo incapaz de ódio,
cheio de piedade para com eles, deplorando sua ignorância espiritual, deixou
que saíssem livremente. Por sorte foram apanhados cometendo outros crimes,
em outros lugares, e severamente punidos.
Não faltarão argumentos aos ocidentais para objetar que semelhante vida é
esbanjada em pura perda. Porém, raciocinando bem, a presença desses poucos
homens que escapam à febre de atividade que devora nosso mundo moderno,
zelando por nós e despertando o sentido da infinita vida espiritual, não será de
grande proveito para a humanidade? O observador imparcial está melhor
colocado para julgar: em que será inferior um sábio da selva a um insensato que
se deixa levar ao capricho das circunstâncias sem saber por que, nem para onde
vai?
* * *
Cada dia que passa me convenço mais da grandeza sublime desse homem.
Dentre as pessoas de todas as condições sociais, castas ou raças, que vi desfilar
no eremitério, destaca-se o exemplo de um pobre pária que passou, visivelmente
aflito, por grandes angústias da alma, aliviando-as aos pés do Maharichi. O Sábio
não lhe responde; aliás é muito raro que saia da sua reserva habitual e podem-
se contar as palavras que por ele são pronunciadas no decorrer do dia.
Entretanto, quando fixa seu olhar no aflito, é o suficiente para acalmar suas
mágoas; duas horas depois, vejo-o sair serenado. Evidentemente, esse é todo o
segredo do Maharichi: silencioso, com uma espécie de estranha telepatia que a
ciência moderna não pode deixar de esclarecer um dia, ele emite fluidos cujas
vibrações acalmam os aflitos e curam os doentes desenganados.
De outra vez, um Brâmane, diplomado e culto, vem lhe expor seu caso. Contudo,
como acabo de dizer, nunca se sabe quando o Sábio responderá ou não por
palavras, mas, francamente, ele não precisa abrir os lábios para ser loquaz. Com
o Brâmane é um pouco mais comunicativo por se tratar do assunto abstrato e
idéias altamente filosóficas; em algumas sentenças ricas de sentido, revela
pensamentos profundos, capazes de abrir ao postulante visões insuspeitas.
— Pois sim; mas ele era muito limpo, tomava banho duas ou três vezes por dia.
Um camponês analfabeto com sua família, sem saber nada além do seu labor
cotidiano, rudimentos da sua religião e superstições ancestrais, percorreu mais
de cem milhas pelas estradas poeirentas, só para vir homenagear o Sábio.
Alguém lhe dissera que Deus, revestido de forma humana, vivia no vale da
Colina do Lume Sagrado. Humilde, prosternou-se três vezes no chão e, sem uma
palavra, acocorou-se em silêncio; ele acredita que o esforço da viagem será
amplamente recompensado pelo efeito dessa presença divina. Sua mulher está
ao seu lado, graciosamente envolvida dos pés à cabeça num sari púrpura
formando um nó na cintura; e seu cabelo está untado de óleo de sândalo. Uma
filha, que a acompanha, é uma finda menina com anéis nos tornozelos, que
tilintam a cada passo. Segundo um bonito costume indiano, usa uma flor branca
atrás da orelha. Em contemplação silenciosa, a família toda fica acocorada
durante horas. Por paradoxal que pareça, é evidente que Maharichi, só com sua
presença, fortifica-lhes a fé, restaura-lhes confiança, insuflando-lhes renovada
felicidade! O Sábio não faz diferença entre as crenças e vê todas elas, desde
que sinceras, como expressão da única Grande Verdade; da mesma forma como
venera Jesus, tem veneração por Krishna.
Catorze anos passou viajando por todas as regiões da Índia, visitando sábios,
ascetas, ermitões e Yogues dos quais ouvia falar, na esperança de encontrar
entre eles um mestre, cujo ensinamento ou personalidade o atraísse ou
correspondesse às suas aspirações. Devia possuir idéias bem definidas, pois
não achou o mestre antes de vir para cá. Quando o encontrei, contou-me seus
dissabores; não era um falador, e gostei dele pela expressão de sinceridade no
rosto marcado de rugas e pelo frescor natural de seus sentimentos puros. Sendo
muito mais moço do que ele, não sabia que conselho dar-lhe, quando, para
minha grande surpresa, perguntou se eu consentiria em aceitá-lo como
discípulo. “O mestre que o senhor procura não está longe daqui” — respondi-lhe
— e levei-o direto ao Maharichi.
Não demorou muito para me dar razão e tornar-se um dos fiéis mais devotos do
Grande Sábio.
A alguns passos dele está sentado um personagem com aspecto de homem que
tem posses; usando óculos, vestido de seda, é um magistrado em gozo de férias,
um dos maiores entusiastas do Maharichi. Pode-se ter certeza de vê-lo aparecer,
pelo menos uma vez por ano, para visitar o Sábio, aproveitando as férias. Esse
cavalheiro, culto e fino, de gosto apuradíssimo, não despreza, no entanto,
acocorar-se democraticamente, misturando-se aos pobres, gente maltrapilha ou
nua até à cintura, tâmiles de corpos untados de óleo, que brilham como
jacarandá polido. O sentimento que os une faz-lhe esquecer esnobismo e
preconceitos de casta, como dantes igual abnegação levava príncipes e marajás
aos pés dos Richis, nas montanhas ou na selva. A Sabedoria Divina estabelece
a harmonia e a igualdade entre os homens.
Vejo entrar uma jovem mulher carregando nos braços um nenê; prosterna-se
humildemente e, como neste momento se comenta um dos problemas filosóficos
dos mistérios da natureza humana, silenciosamente ela se afasta para não
perturbar a polêmica. A instrução não é um apanágio da mulher indiana; ela sabe
pouca coisa além da cozinha, seus afazeres domésticos e criação dos filhos.
Essa grande presença, porém, basta para fazê-la sentir o Amor, a Sabedoria e
a Felicidade, cujas ondas, oriundas da aura do Mestre, a penetram.
— Quem sou?
“Sem se dar tréguas, faça esta pergunta: quem sou? Analise seu eu até o âmago,
procure seguir seu pensamento até onde começa a raiz do eu, mantendo nele
sua atenção introvertida. Um dia virá em que os pensamentos caóticos que,
como uma roda, giram incessantemente, acabarão parando, levando-o ao ponto
onde a intuição direta surge espontaneamente das profundezas do seu ser;
continue a segui-la, abandone todo pensamento; entregue-se. Se for bem
sucedido, alcançará a nossa meta suprema.”
Eu me submeto a esses ensinamentos, combato cada dia meu intelecto; aos
poucos abre-se um novo caminho e desço às profundidades inexploradas da
mente. Graças à benfazeja presença do Maharichi, essa meditação, esse
diálogo comigo mesmo prosseguem sem canseira e com uma eficiência
inesperada. A grande expectativa, apoiada pela sensação de poderosa ajuda,
me estimula e mantém meus esforços. Vivo horas estranhas nas quais,
nitidamente, tenho a consciência de uma força desconhecida que me penetra e
guia meus passos ainda trêmulos e vacilantes pela fronteira misteriosa do ser.
A grande sala fica vazia, quando o Maharichi, seus discípulos e visitantes vão
jantar no refeitório. Como não faço questão dos alimentos deles e, ainda menos,
de preparar os meus, fico aguardando sua volta. Há, todavia, uma coisa que
aprecio muito no regime do eremitério: é a deliciosa coalhada; como Maharichi
descobriu meu gosto, manda trazer-me toda noite uma grande caneca cheia.
Uma tarde, percebo um visitante, que ainda não conhecia, entrar na sala com
andar digno e tomar lugar perto do divã do Maharichi. Seu rosto é fino, embora
sua tez seja muito escura. O recém-chegado não diz palavra, mas vi logo que
Maharichi o conhece, pois o cumprimenta com seu sorriso alegre e acolhedor. A
personalidade do visitante faz grande impressão; sua aparência é a de um Buda
esculpido e seus traços respiram serenidade e introspecção profunda.
Durante toda a noite, não deu uma única palavra, e quando nossos olhares se
cruzam, seu olhar é tão penetrante que, confuso, desvio o meu.
Tornei a vê-lo no dia seguinte da maneira mais imprevista. Raju tinha ido à
cidade fazer algumas compras. Entro na cabana vazia para cuidar do preparo do
meu chá, e ao passar a soleira da porta, percebo alguma coisa se mexer e tenho
a impressão de uma presença insólita; um deslizamento, um sopro leve, avisam-
me, antes de eu ter percebido, que uma cobra estava no quarto.
Via a língua bífida da cobra vibrar na boca escancarada, mas ela não tentava
atacá-lo. Aos meus berros os banhistas da lagoa vizinha acorreram, mas sua
intervenção não era mais necessária, pois no momento em que chegaram, o
estranho visitante estava ao lado da cobra, cuja cabeça inclinada ele acariciava
suavemente.
Os colmilhos cessam seus movimentos convulsivos, a serpente fica imóvel e
dócil, até que a chegada de dois homens rompe o encanto da cena. Nesse
momento, virando-se bruscamente sob os olhares que a fixavam, a cobra
escapou-se da cabana e, com um rápido rastejo, perdeu-se na selva.
Fico assombrado.
Desejaria imensamente entrar em contato com ele, mas avalio a dificuldade, pois
soube que Ramiah fez voto de silêncio e vem do Distrito onde se fala o télugo.
Suponho que ele sabe tanto falar o inglês como eu o télugo. Há dez anos é
discípulo do Maharichi, não gosta de sair da sua reserva, não visita ninguém e
mora em um pequeno abrigo de pedras que ele mesmo construiu à sombra de
um dos blocos erectos que estão esparsos do outro lado da lagoa.
Um dia, encontro-o à margem da lagoa onde ele veio apanhar água com um
cântaro de cobre. Apesar do silêncio que o envolve, suponho que não haja
impedimento para um contato amável, e atrevo-me, com minha Kodak na mão,
a pedir-lhe por gestos que se deixe fotografar. Não encontrando objeção ao meu
intento, e feita a pose, ele me acompanha à choupana. Aí achamos o ex-chefe
da estação que, sentado diante da porta, me esperava.
Por sorte esse bom homem sabe o télugo tão bem quanto o inglês, e vem-me a
esperança de que ele possa nos servir de intérprete. Ele se prontifica com prazer;
bastará um papel e um lápis.
Ramiah comunica-me, escrevendo, que vem passar dois meses aqui e está
acompanhado de seu próprio criado. Exprime a alegria de ver um europeu tomar
interesse pela antiga sabedoria do Oriente. Quando folheava uma revista
inglesa, fiquei impressionado pelo curioso comentário que uma dessas
ilustrações lhe inspirou:
— Eu acho que o povo de seu país seria bem mais feliz se fizesse um estudo de
si mesmo, ao invés de elucubrar inventos e máquinas sempre mais
aperfeiçoadas. Que felicidade pode haver, por exemplo, em descobrir meios de
locomoção cada vez mais rápidos?
— Não havia nada a temer — escreve, sorrindo — pois me aproximei sem ódio;
meu coração transborda de amor por todos os seres viventes.
Não insisto, embora julgue que isso não explica bastante. Andando em direção
de sua solitária morada, ele me deixa pensativo.
Sua personalidade atrai-me cada vez mais. As semanas que se seguem ajudam-
me a conhecê-lo melhor; encontramo-nos frequentemente na clareira perto da
lagoa ou, às vezes, na soleira da sua ermida. Entendemo-nos muito bem. A
serenidade do seu olhar profundo faz-me um bem enorme; uma estranha
espécie de amizade instala-se entre nós, uma amizade sem palavras, que atinge
o seu auge no dia em que ele me abençoa, acariciando-me a testa e segurando
minhas mãos nas suas.
Guardei dele apenas algumas notas em télugo, traduzidas pelo velho amigo que
nos serviu de intérprete e, apesar de não trocarmos uma palavra, surgiu entre
nós algo de sólido, de perdurável, que jamais poderia se extinguir. Andamos
sempre juntos. Algumas vezes damos longos passeios na orla da selva ou
escalamos rochedos no alto da colina, e nunca o vi sair da sua calma serena,
que admiro tanto.
O Yogue escolhe uma árvore, cujos galhos caídos dão uma sombra agradável,
e senta-se, convidando-me a tomar lugar ao seu lado. A copa maciça do plátano
nos cobre como uma grande barraca-de-sol; a solidão completa do lugar acentua
mais a impressão constrangedora do deserto, onde a terra nua e abandonada
estende-se numa distância de cerca de duas milhas, antes de embrenhar-se,
novamente, na mata virgem.
Ramiah acocora-se com as pernas cruzadas, na posição já tão familiar para mim;
os olhos, fixos na superfície espelhada do lago, imobilizam-se aos poucos e vejo
que se entrega a profunda reflexão. Minutos se escoam lentamente. Imóvel como
uma pedra, a face serena tornada tão calma como o espelho das águas, tão
absorto em contemplação introvertida como se estivesse encaixado na
paisagem, qual árvore vigorosa cuja folhagem nenhuma brisa agita. Meia hora
se passa. Ele continua parado, o olhar perdido no horizonte da colina ou bem
mais além... transfigurado talvez por essa paz infinita da natureza ou por
iluminação interior, como que fundido com o silêncio universal.
Quando o sábio Galileu disse a seus discípulos que não se preocupassem com
o dia de amanhã, foi por que Ele sabia que um poder Superior os protegia.
Percebo, num vislumbre, que desde que o homem siga essa voz interior, que
não é outra senão o apelo da voz divina, estará certo de suportar, sem
desfalecer, os reveses da vida.
Existe em alguma parte dentro de nós um elemento básico que dá todo o valor
à existência, elemento de valor fundamental na vida, que transforma as
vicissitudes em vãs quimeras, fazendo com que os homens atravessem a
existência sem medo e sem dúvidas.
Percebo isso agora e estou livre do peso que me oprimia. O tempo deixou de ter
significação, sem que eu pudesse compreender e avaliar o mistério dessa
presença interior e da sua total independência do tempo e do espaço.
Em qualquer outro momento eu teria tido medo, pois em nenhuma outra hora a
criatura humana se sente tão envolta no mistério das sombras que se movem
como fantasmas. Penso no meu cachorro Jackie, o fiel companheiro dos meus
passeios e refeições solitárias, que voltou um dia, do combate com um leopardo,
com a garganta aberta, e no seu infeliz irmão, que jamais voltou. Quem sabe se
não vou ver surgir o clarão verdejante dos olhos do tigre esfomeado, pisar uma
cobra, ou tocar com a sandália um escorpião real, esse pequeno monstro pálido,
cuja picada é irremediavelmente mortal? Tenho vergonha de tais pensamentos
ao lado do meu impávido amigo, estando sob a proteção de sua aura, na qual
me sinto envolvido.
O coro noturno rivaliza com o da natureza matinal, mais profundo, talvez, e mais
misterioso; ao longe ouvem-se os urros dos chacais, uivos estranhos de animais
lhes fazem eco, e perto da lagoa, o coaxar dos sapos, o rastejar silencioso dos
lagartos e o esvoaçar dos morcegos, acompanham o ciciar dos insetos.
* * *
Quantas coisas poderia dizer ainda sobre as minhas entrevistas com Maharichi,
sobre a vida do eremitério, a vida dos discípulos, pacata e sem imprevistos, se
não fosse tempo de pôr ponto final à minha narrativa!
Quanto mais observo Maharichi, mais vejo nele o herdeiro de um passado, para
quem a descoberta da Verdade tem, evidentemente, maior valor do que uma
mina de ouro.
Doravante sinto e tenho certeza de que, enfim, encontrei neste canto perdido da
Índia um dos últimos Super-Homens que a terra possuiu; esta face deve ser a
dos antigos Richis, cuja lembrança ficou viva neste país. Não obstante o que sei
dele, sinto que o mais íntimo, o mais maravilhoso da sua alma, ainda me estão
velados; o tesouro da sabedoria, do qual cada átomo do seu ser está
impregnado, ainda não está ao meu alcance. O Mestre parece pairar,
transportado a alturas aonde não posso segui-lo. E, quando espalha sobre mim
sua graça com tanta benevolência, ligando-me a si com laços inquebrantáveis,
submeto-me sem restrições ao enigma da sua personalidade.
Parece-me que a presença em nosso orbe de homens tais como Maharichi não
pode ser o efeito de um capricho do destino. Mensageiro do Divino, ele é a
continuação desses Seres que aparecem no decorrer dos séculos para
assegurar a continuidade e a permanência do Espírito na terra; é portador da
Revelação que incita à Fé, repelindo as argumentações e polêmicas estéreis.
O que dá ao seu ensinamento uma tão grande força de atração é que é inspirado
em razões desinteressadas, paralelo ao espírito prático e que, analisado de
perto, é perfeitamente científico. Ele não invoca nenhum poder sobrenatural e
não pede uma fé cega. A atmosfera de sublime santidade que irradia dele não
se encontra no templo vizinho, cujo emanação de grandeza secular faz débil eco
aos seus métodos de introspecção racional. A palavra Deus não sai senão
raramente dos seus lábios; ele não se lança às cegas no oceano da magia, onde
numerosas investidas cheias de promessas terminam em naufrágio. Propõe
simplesmente um método de auto-análise, que pode ser praticado, independente
de qualquer sistema filosófico ou crença religiosa, método que deve levar o
homem ao conhecimento de si próprio, e daí ao Ser puro.
Estou cada vez mais convencido de que, mesmo que não tivesse havido troca
de palavras, algo do espírito de Maharichi penetraria em mim. A sombra da
iminente partida, infelizmente, me persegue e magoa profundamente; transfiro a
partida tanto quanto posso, mas a doença me espreita de novo, e toda minha
força de vontade, receio muito, será ainda impotente para se impor ao meu corpo
combalido. Não se abusa da natureza impunemente; e a iminência da crise é por
demais evidente.
Esta noite, porém, consigo chegar neste ponto quase na primeira tentativa.
Depois de um curto combate contra o assalto dos pensamentos inoportunos,
meu desejo é coroado de êxito, e um poder soberano, uma espécie de
dinamismo interior, jamais ainda sentido, ajuda-me a triunfar, guiando-me
velozmente, à finalidade anelada.
Venço a primeira batalha sem muita luta. Esse estado de tensão se transforma
em seguida num sentimento de calma, de tranquila felicidade. Percebo que estou
separado da minha faculdade de pensar; assisto de fora, como um espectador,
ao seu funcionamento, e algo me adverte que a mente é apenas um instrumento
exterior do Eu. Aí há uma espécie de desligamento da mente. A faculdade de
raciocínio não é mais um privilégio do qual o homem deve se orgulhar, é uma
coisa totalmente comum, da qual ele pode e deve se libertar, pois nesse
momento concebo claramente que, até agora, eu era seu prisioneiro. Um súbito
desejo me impele a situar-me além do intelecto e a ESTAR fora dele, penetrando
num plano ainda mais além e mais profundo do que o próprio pensamento. A
vontade de saber o que irá acontecer quando estiver livre da tutela habitual do
cérebro e do raciocínio, estimula essa ânsia e mantém toda minha atenção alerta
e vigilante.
Isso é exatamente o que se passa. Sinto haver atingido a raiz, a origem mesmo
dos pensamentos. Relaxo então o esforço positivo e entrego-me à mais completa
passividade, concentrando toda atenção nesse ponto, e não obstante mantendo-
me tão vigilante como uma serpente sobre sua presa.
Esse algo que faz parte do divino se eleva além da consciência e torna-se Eu.
Surge então o sentimento da liberdade, porque o pensamento que estava
submisso a um movimento de vaivém, liberta-se: ficar livre do seu mecanismo
equivale a respirar o ar puro ao sair de um cárcere.
* * *
* * *
* * *
Há no homem um elemento perene onde reside seu verdadeiro ser; ele quase o
ignora, mas essa ignorância não altera nem afeta em nada sua divina origem;
ele pode até esquecê-lo e embriagar-se com o prazer dos sentidos, mas no dia
do seu despertar, quando se volver ansioso para seu verdadeiro Eu, lembrar-se-
á do que ele é. Tornará, então, a descobrir sua alma.
* * *
O homem Pertence à eternidade, mas não se estima no seu próprio valor, porque
perdeu a noção do divino que nele está encoberto. Julga cômodo submeter-se à
opinião alheia, embora fosse mais acertado encontrar a certeza plena no centro
espiritual autônomo do seu próprio ser. A esfinge não tem, como se crê
comumente, o olhar dirigido para horizontes terrestres, mas voltado em
contemplação interior; o enigma do seu sorriso está no conhecimento de si
mesmo.
* * *
Aquele que, apesar de olhar para dentro de si, não encontrar senão trevas,
dissabores, fraquezas e vaidade, não deve trocar sua decepção por ceticismo
amargo; ele tem que se olhar sem tréguas, sempre mais além, sempre mais
profundamente no âmago do seu ser, até que comece a perceber, por indícios
muito suaves, um sopro leve que nasce quando cessa o turbilhão dos sentidos.
Esses sinais devem ser recolhidos preciosamente, pois tomarão corpo,
crescerão e transformar-se-ão em pensamentos elevados que transporão o
limiar da mente, como missionários celestes, anunciadores da voz que se fará
ouvir, voz de um ser oculto, misterioso, que vive dentro de nós e que não é outra
coisa senão o Eu real.
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O homem imagina poder viver livremente ao sabor dos seus desejos, sem avaliar
que entrega sua vida a uma quimera; todo aquele que peca contra seus irmãos
ou contra si mesmo, assina sua própria condenação; pode ocultar seus pecados
à vista do mando, mas não poderá jamais escondê-los ao olhar dos deuses. A
balança inexorável da justiça divina governa o mundo, embora seu julgamento
passe frequentemente despercebido, não gozando da publicidade dos pretórios.
Quem escapa à justiça da terra, não escapará nunca à justiça dos deuses, pois
a implacável Nêmesis a mantém a todo momento suspensa sobre a sua cabeça.
* * *
Aqueles que navegam num mar de amarguras, cuja vida é órfã de sol, e
caminham anos embebidos de lágrimas, estão mais chegados a ouvir no fundo
dos seus corações sangrentos o murmúrio discreto da verdade eterna; se eles
não ouvem, ao menos, vêem o sentido trágico das voltas da fortuna. Aqueles
que não se deixarem cegar nas horas de sol deslumbrante, sofrerão menos a
dor nas horas amargas. Não há uma vida humana que não seja urdida de
alegrias e dores e nenhum homem deve dizer-se feliz antes da hora da morte
chegar. Portanto não deve contemplar seus irmãos das alturas do seu orgulho,
como se estivesse andando nas nuvens, pois o abismo lhe está perto. A
humildade é a única roupagem que o homem deve vestir na presença dos
deuses invisíveis que podem num golpe privá-lo dos bens conquistados; todas
as coisas se movem segundo um ciclo ordenado pelo destino; é cego aquele que
não as percebe. Assim, após o apogeu, o perigeu; após o fluxo, o refluxo; depois
da abundância, privações e carência; a saúde é um hóspede inconstante e o
amor que surge não tarda a desaparecer. Mas a noite de lenta agonia da morte
cede à alvorada da sabedoria reencontrada. O maior ensinamento a tirar dessas
leis é o seguinte: quer ele sinta ou não, quer ele queira ou não, o supremo refúgio
do homem está nele mesmo. Ele deve voltar a ser aquilo que foi, senão a
angústia das decepções e a dor conspirarão periodicamente para trazê-lo de
qualquer maneira. Não há um homem, por mais feliz que seja, que os deuses
permitam escapar a esses dois grandes redentores da humanidade.
* * *
* * *
Seja quem for, uma vez que se contemplou no espelho do seu interior, despojar-
se-á de todo ódio para com seu semelhante; não há pecado pior que o ódio, não
há maior desgraça do que o sangue derramado pela guerra, que embebe léguas
de terra, não há castigo mais certo do que aquele que golpeará os que provocam
flagelos no mundo; que ninguém tenha esperança de escapar ao olhar dos
deuses, testemunhas ocultas e mudas dos crimes humanos. Os gemidos dos
povos ressoam no mundo enquanto a paz estende os braços; os homens
estraçalhados de dor, torturados pela dúvida, procuram, tateando às cegas, o
caminho da escuridão, enquanto a luz sublime está aí para iluminá-los, mas eles
não a vêem. O ódio não desaparecerá da superfície da terra enquanto o homem
não tiver aprendido a olhar a face dos seus irmãos, não à luz do dia que ilumina
indiferente todas as criaturas, mas transfigurados pela luz interior que é o reflexo
do divino, e enquanto ele não os fixar com o respeito a que tem direito o ser em
cujo coração habita um elemento da mesma essência daquele Poder chamado
Deus.
* * *
Tudo que é realmente grande na Natureza, e belo na arte, revela ao homem sua
origem divina. Onde o sacerdote desaponta o devoto, o artista inspirado desperta
emoções capazes de levar o homem a Deus. Aquele que gravou os raros
momentos em que a beleza deixou suspender o véu do limiar das profundezas
eternas, pode sempre, nas horas sombrias, refugiar-se no santuário interior.
Nesse santuário gozará paz, renovará forças, encontrará o raio de luz, confiante
em que no momento que atingir o umbral da sua real natureza, terá um amparo
infinito e tona compensação perfeita. Os eruditos inutilmente cavarão, feito
toupeiras, nos montões de volumes que atulham as paredes da sala do saber;
não desvendarão jamais verdades mais profundas do que essa verdade
suprema: O Eu é de essência divina! As mais ardentes aspirações do homem
passam com o decorrer dos anos, mas a esperança de vida eterna, a esperança
do amor perfeito, a esperança da felicidade infinita — essas, infalivelmente,
realizar-se-ão porque nos foram prometidas pelo destino, que não se engana
nem se deixa enganar.
* * *
O homem pergunta aos seus antigos profetas o segredo dos altos pensamentos;
busca, em longínquo passado, regras de conduta nos dogmas cobertos de
poeira dos tempos, mas não sabe que é em si mesmo, na sua própria natureza,
que guarda a augusta revelação que procura. É suficiente encontrá-la para
sentir-se imerso em luz, e tudo que é realmente digno de ser pensado ou sentido
vem se pôr, sem esforço, a seus pés. Em meditação profunda, na paz do
santuário da sua mente concentrada, surgirão visões nobres e santas, como as
que foram reveladas aos grandes profetas hebreus e árabes que clamavam aos
povos sua origem divina. A mesma aura inundava Buda de luz, quando recebeu
e transmitiu aos seus adeptos a revelação do Nirvana; é a mesma em que estava
oculto o germe de amor infinito que jogou aos pés do Jesus, Maria Madalena,
lamentando sua vida dissipada.
* * *
A poeira dos tempos não pode encobrir essas verdades eternas, vivas através
dos séculos, desde o primeiro homem na terra. Não há um povo que no seu
nascimento não tenha recebido a revelação, mais ou menos velada, dessa vida
profunda acessível ao homem. Aquele que estiver pronto para recebê-la, não
deve interpretá-la apenas com o intelecto, mas concebê-la em seu coração, onde
ela brilhará entre as idéias como um astro no seio da nebulosa, inspirando-lhe o
desejo da realização suprema.
* * *
Nesse momento, sinto uma presença muda ao meu lado; volto-me e vejo meu
velho amigo que ficou sozinho perto de mim, olhando-me com sua inalterável
ternura.
— O Maharichi o observou durante todo esse tempo; creio que o espírito dele o
guiava nessas horas abençoadas.
* * *
Dois dias seguidos combato a febre que aumenta. Meu amigo, ex-chefe da
estação, vem me visitar à tarde, tristonho:
— Sua estada perto de nós chega ao seu fim, meu irmão, mas o senhor voltará,
não é?
Chega ao seu fim o belo sonho do qual acordo transfigurado. Certo de que a
roda incansável do destino tornará a me trazer a este retiro, levanto as mãos
juntando as palmas em sinal de adeus, balbuciando algumas palavras banais. O
Sábio sorri, olhando fixamente, sem dizer uma palavra.
ARYA (Sânsc.) — Santo, nobre, de nobre raça. Nome de uma raça (aria) que
invadiu a Índia no Período Védico.
BABA — Termo hindustani-urdo, derivado de uma raiz turca que significa pai.
Um tratamento respeitoso aplicado a pessoas notáveis por sua ciência.
HASHISH, hachich ou axis (Aráb.) — Erva seca; extrato das folhas de uma
variedade do cânhamo (Cannabis indica), especialmente preparadas para
mascar ou fumar. É um tóxico.
LAKH — Raiz hindustani do sânscrito laksha, com o mesmo significado: 100 000
ou o seu equivalente.
SHAH (Pérs.) — Designativo dos reis da Pérsia. Traduzido ao vernáculo por Xá.
SHIVA — Terceira pessoa da Trimurti ou Trindade hindu. Grafado em português
Xiva.
TÂMIL — Nome que se dão a si mesmos e ao seu idioma alguns povos do sul
da Índia.
ZEN — Seita budista, segundo a qual a iluminação lograda por Buda só pode
ser obtida pela realização do Eu Superior, e não por meios externos, como ritos,
erudição, cultos, etc.