Grupo de Estudos Esotéricos
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“Jacob Boehme e a Filosofia Hermética”
Conteúdo
Editorial ........................................................................................................................ 1
Prolegômenos a toda R+C futura................................................................................... 6
Notas sobre a Iniciação ................................................................................................. 7
De Signatura Rerum ..................................................................................................... 8
Boehme e a Sabedoria ................................................................................................. 12
Hegel, leitor de Boehme .............................................................................................. 12
Breve Análise de Aurora Consurgens ......................................................................... 13
Saint-Martin, leitor de Boehme ................................................................................... 18
Notas para Publicação ................................................................................................. 24
Editorial
bathe tou theou
I Cor. 2: 10
1
A mística de Saint-Martin, a via do sentimento e da intelectualidade santificada,
conhecera então a chave em Boehme para a compreensão dos aspectos misteriosos
relativas à narrativa dos princípios da atividade espiritual e anímica e a desconcertante
efusão de lendas e personagens míticas em uma intrigante estória de sabor humano.
Podemos dizer que o Filósofo Desconhecido viu diretamente em si a Assinatura própria
ao pensamento do mestre sapateiro e esteve mais que nunca convicto de que a via de
aproximação ao outro é uma senda pacífica e silenciosa que apenas a sintonia de
corações é capaz de provocar, já que a comunicação acerca do que ocorrera antes do
tempo da história profana permanece exterior ao entendimento em condições adversas.
Tal recuperação do conhecimento que atravessa as fábulas e alegorias antigas requer as
sublimes potências que jazem adormecidas no ser humano e não se induz seu despertar
do hábito com que se inflamam as vozes dos juízos litigantes.
Em reconhecimento a essa Luz proveniente do espelho que é o pensamento
exaltado de nossos Mestres do Passado, dedicamos ao leitor uma tradução e pequeno
comentário introdutório aos estudos do Filósofo Teutão, ao mesmo tempo em que
recomendamos a meditação sobre o livro de Eclesiastes, que em sua simbólica fornece
as chaves para a compreensão das obras da Divina Sabedoria e do Santo e Magno
Mistério.
Neste campo a assunção de pressupostos significa o reconhecimento público de
gratidão para com todos aqueles que forneceram, não pelo nosso elogio, sincera e
fraternalmente seus tesouros, conforme está escrito: onde estiver o teu coração ali
estará o teu tesouro.
Quando se trata da posse de uma chave (clavis), ela deve ser recebida em
espírito, em um estado favorável de afinação entre mente e corpo, pois advém do grande
Armazém da Sacrossanta Sabedoria Divina, sendo necessário que recebamos esse
medicinal alimento com reverência, pois está escrito: “O temor ( )י ְִר ַ ֣אתdo Senhor é o
princípio da Sabedoria” (Prov. 1: 7).
Não há de adquirir novas técnicas, persuasão alheia, nem capacidades psíquicas
incomuns e distintas daquelas que, se as dispomos é por direito e nascimento. Se tais
coisas não se deram a nós ou em nós até agora, isso nos leva a pensar o que significa
“cultura” e que tipo de cultivo aí se encontra.
Muitos são aqueles que, não tendo cuidado das coisas de que Heráclito, Boehme
e Saint-Martin se ocuparam chegam a lhes desautorizar o uso da linguagem e a taxá-los
de obscurantistas ou pedantes. Discípulos do mistério sim, e do segredo (sod), e que
ocultam propositadamente seu pensamento como um tesouro! Tal fruto, ou rosa, jaz em
nós, previsto desde a primeira célula que trouxe consigo a soma inteira das potências
inerentes a espécie. È deste manancial silencioso que certamente brotam todas as
potências e a pérola de cada delas. A Sabedoria dispôs em silêncio uma semente,
semelhante ao grão de mostarda (ver Mc 4: 30-32), ela brota, é a raiz do pensamento.
Muitas são os que batem às portas do mistério apenas para desacreditar-lhes,
cobiçosos em apossar-se deles pela força ou ai chegam pela vã curiosidade É necessário
a nós, voltar-nos das miragens de vãos esplendores, em que se mira a vaidade a si
mesma, para o nosso interior, onde o grão morre, nasce e se irradia. Aí seremos capazes
de encontrar, não como quem entra em uma sala escura para procurar uma agulha que
outro deixou cair, sem saber quantos escorpiões aguardam sua vã curiosidade, de raios
em fulgurações, a iluminação natural com que nos coroa a Inteligência.
Não, não é em uma sala qualquer, senão em um Palácio engastado em Alicerce
Perpétuo que se deve buscar a Sabedoria e as obras da Inteligência, em nosso interior,
câmara que passa secreta aos olhos da insensatez humana, sacrário onde uma única gota
de azeite é capaz de iluminar a eternidade, a multiplicar-se sem subtrair-se, em “um
2
fogo que provê delícia e êxtase àqueles que se prendem a ele com alma pura”. Este
fogo, como nos diz o rabi Gikatalia é chamado “a Lâmpada de Deus” (Sharê Orah, I).
Nessa luz desta lâmpada que adoça o suave perfume do santuário, acesa e a velar por ti
e para ver-te a ti mesmo, encontrarás alento até que se achegue ao cerne da Unidade.
Em seguida a levará a tua frente para que outros distinguido-lha, a vejam e acendam em
si o desejo de buscar a centelha oculta que nunca míngua ou falha em saciar com água
de fonte aos vasos secos daqueles que vagaram contumazes no deserto. Seu mistério é
como aquele que se celebra após a colheita da oliva, o Festival das Luzes ou Chanuká.
Foram seu coração simples e sua humilde arte credenciais para o diálogo entre
Boehme e a Divina Sabedoria? Onde ele pode receber seus ensinamentos e conservá-
los? Não é Ela sumo Arquiteto que no Princípio ergueu suas Sete Colunas e assim
sustenta a toda a criação? Ela não lhe chamou primeiro a si a sua atenção por uma
esplendente luminosidade cujo prisma inundou os vasos de sua morada? Não lhe velou
as noites os sonhos, até que as visitas do Mistério lhe conduziram pelas veredas da visão
aos planos Divinos e Espirituais em que o ser humano ainda mantém sua raiz?
No pórtico do mistério estão o cético ou agnóstico, o materialista ou cientista, e
o simples que não partilha destas crenças. Apenas um deles está disposto a iniciar a
jornada. Falíveis são decerto sua visão e sua linguagem no início dela, infalível toda
experiência mística (páthos como estado) que marcará a longa e dolorida viagem de
retorno. Pois, verá ele diante de si a Floresta de Erros e a cidadela aparentemente
inexpugnável dos poderes temporais. Verá por todos os lados desertos cheios de gentes
e espectros de ideias, concorrendo contrariamente a toda probabilidade de êxito. Onde
buscar abrigo? Muitos acham este itinerário muito incerto e outros, impossível, dados os
inúmeros dissabores que o acompanham. O filósofo depara diante de si um sonho
calcado na tecnologia e no progresso das coisas que tem por matéria o mundo visível,
estas quimeras que empurram a humanidade à frente sem saber se ao futuro que nunca
chega ou ao abismo hiante sob seus passos.
Para o iniciado que se propôs a seguir a rota, cada insucesso é análogo a
ausência de correção; cada ventura, o panegírico de sua salvação. O caminho esotérico
não é apenas uma saída do exterior ao interior, mas o iter soteriológico1 em que se
transmuta a religião dos antepassados, perdida para nossos contemporâneos, na
comunhão espiritual perfeita a que se dispõe o místico em vida: vivenciar o Mistério na
carne do tempo quer por sua gente, e enfim, por si, e para o advento da redenção que
reconduzirá a alma humana através do exílio ao Princípio. Os indivíduos realizados na
Unidade, recém ingressos, velam até que o último ser humano sensorial experimente as
Águas do Batismo e para que, com as Bodas Alquímicas, dê-se o descenso do Espírito e
a consequente elevação da Alma.
Para desvelar os segredos do caminho a alma peregrina conta apenas com o selo
da segunda visão recém aberta ante seus domínios e a confiança total em sua Instrutora,
a Sabedoria, que permite ao mystai ler a história sem véus ou vislumbrar as
consequências adversas de seus juízos e deliberações antes que se manifestem em ações
e efeitos no plano das causas. Porém nisso ele encontrará tudo o que é preciso: as
bênçãos, a lâmpada para os pés, a alma do caminho. Nada somos e nada temos, ainda
que a todos os dons recebêssemos, se não nos expuséssemos ao Seu calor e nos
puséssemos à obra.
Aqueles que desacreditam a meio caminho entre o princípio e o fim da jornada e
soltam a mão de sua Condutora para tresmalharem-se novamente na ilusão, muitas
vezes o fazem por medo da morte. Isto ocorre, mormente, quando passam a se
1
Como bem notado por Scholem no início de suas conferências de 1960.
3
identificam demasiado com seus corpos visíveis. Então, toda a visão da criança, aquela
mesma que lhe permitia adentrar a noite límpida do mistério, invisível e nua a um só
tempo, é como se embotasse, e deixasse em seu lugar apenas o simulacro do apego dos
seus olhos às miragens.
Àqueles que possuem ouvidos para ouvir, só lhes resta convir que se prepare o
terreno, semeie e regue a planta, para que decerto venha o dia da colheita. Nesse dia,
estando à mesa, o semeador reconhece seu nome inscrito no Livro da Vida. Como é o
sentimento? É como o fruto de videira que pende de um de seus ramos. Místico é
alguém que na aparente vida cega que levamos, se faz sensível ao mistério e frui de sua
fragrância, ainda que na Árvore viva como um ramo recém enxertado. Quanta água e
quanto cuidado para que amadureça o fruto, para que desabroche a rosa! Ó noite, tuas
pirâmides! Nossa centelha muito e muito longe vagou conosco, e somente aos poucos
se libera da poeira de tantos desertos e da umidade de inumeráveis pântanos.
Assim como na matéria renasce perpetuamente a Jóia no Lótus que reluz inteira,
também nós busquemos a ela em nós para que o par Amado Pai-Mãe que espera, e aos
olhos de Quem somos este filho pródigo, tão mais caro que tantas estrelas fulgurantes
que nunca abandonarão seus postos, e que nos recebe em sua mesa perpetuamente
posta… Até o dia que o Verbo novamente se pronuncie.
Embora ele sempiternamente soe a mesma nota em que toda a natureza se
conserva, a Força do Fiat é para nós a eternidade que, por sua própria potência,
transcorre inteira no presente em sua imagem cinemática, o instante, um ato único e
indivisível. Quantas vezes a região incognoscível foi trespassada pelos raios fulgurantes
de perfeitos esclarecimentos? Ora, a ideia só se dá por inteira. Porém, não se nos ocorre
pela violência do raciocínio. Tal como o significado íntimo de Pentecostes como nos
anuncia Saint-Martin: pedis, recebeis e agradeceis.
Por outro lado, toda a visão humana, mesmo aquela captada no íntimo, virá à luz
do dia no mundo manifestado, através da linguagem, ainda mais refratária, como sendo
a expressão máxima daquilo que não o vivenciando por si mesmos, os seres humanos
julgarão e não compreenderão. Se seu conhecimento, isto é, o seu pensamento particular
(idian phronesin) prevalece no espelho de sua estima, este animal humano, convirá com
o que julga já saber, não procurando mais esclarecimentos sobre isto que supõe. Além
disso, agirá com violência, pelos meios que encontrar, para eliminarem aquilo que vibra
em discordância com o que acreditam ser o seu fundamento; no que erram e caem
novamente, e assim, sucessivamente… Aquele que, ao contrário, dá ouvidos a
repreensão e a voz da Sabedoria que admoesta (Prov. 1: 8), então reconhecerá que não
sabe, e que todas as suas opiniões lhe parecem agora vaidades vãs, e que pode enfim,
desvencilhado dela navegar uma segunda vez, singrar o mar desconhecido, alumiado
por sua Estrela que brilha sempre a Oriente, ao alcance de uma límpida visão.
O método utilizado pelos filósofos herméticos atende à natureza do Mistério. A
Sabedoria eternamente presente permanece oculta; para fazer jus a tal dificuldade se
reconhece que figuras, parábolas e símiles são como sombras até que se lhe ilumine o
entendimento. O semelhante conhecerá o semelhante como adeptos de uma mesma
Escola. Isso acontece nela de modo natural, pois as outras, especialmente a escolástica e
a jesuítica soam todas dissonantes ao diapasão do saber. Afinal, a Sabedoria elege os
seus em suas humildes circunstâncias, por Amor de Seus Filhos, e os guia pelas veredas
da compreensão com penetrante intelecto e sofisticada razão, quando iluminada pela
inteligência. A virtude, ou a piedade, é a chave e o garante de ingresso à porta do
Palácio do Ancião dos Dias, ignoto e manifesto. No mundo vemos suas costas, se para
Ele não nos voltamos, até que em nosso íntimo, qual vaso inviolável, assim possamos
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receber como um raio o vislumbre de sua fulgurante Face. (veja-se a Bênção
Sacerdotal)
Tenham sempre em mente os exemplos: a Pedra Angular rejeitada pelos fariseus
do templo, Tathâgatha e seus discípulos rejeitados pelos brâmanes.
Grande e bela é a obra da retificação moral, da regeneração da mente e do corpo
e do renascimento em espírito, a partir do que se compreende novamente a linguagem
da natureza. Nela a Sabedoria postou sinais exteriores que conduzem a significação
interior de cada coisa, e que em caminho inverso, conduz à explicação perfeita em prosa
e verso. O princípio apreendido ao fim da investigação (heuresis) é trasladado ao início
de cada um dos passos de nossa experiência física e consciente, como uma pedra de
toque que a tudo prova, e substitui a outra, a de tropeço.
Três pensadores afirmam o mesmo de diferentes formas. Parmênides diz que o
pensamento se gera em nós conforme a mistura que possui nos membros errantes (B16).
Blake diz: tal como alguém é, tal ele vê. E Boehme, que cada ser humano compreende
de acordo com a sua constelação creatural, pelo arranjo de sua constituição psíquica e
física, proporcionado pela sua matriz ou primeira natureza, por suas ações, e pela
direção particular de seu éthos, a sua segunda natureza erguida sobre uma base
misteriosa, suspensa no horizonte do Sem-Fundo.
Citemos as palavras de seu editor como uma advertência antes de nos
aventurarmos no encalço dessa jóia engastada na consciência do tempo, a obra do
Filósofo Teutão, De Signatura Rerum:
“e assim Parábolas têm um uso duplo e dois aspectos diferentes,
pois assim como elas ocultam e escondem segredos do rude e
do homem vulgar, que não está preparado, ou é paciente para
deter-se em algo, mas que seguem com seus conceitos e
opiniões comuns, do mesmo modo, elas docemente conduzem a
mente do verdadeiro pesquisador às profundezas do Conselho
de Sabedoria; elas são como as Colunas nebulosas de Moisés:
possuem uma parte escura e uma parte luminosa, eram obscuras
para os Egípcios, os filhos farisaicos da sofística, mas
luminosas para o genuíno Israel, o filho do Mistério”. Prefácio a
De Signatura Rerum por J. Ellistone (1651)
5
Prolegômenos a toda R+C futura
Não se sabe exatamente quando se deu esta fusão entre a Rosa e a Cruz. Disto muito se
falou no passado. Tampouco sabemos como se estabeleceu a tradição que Jesus havia
sido pendurado em uma cruz, pois o texto traz algo como “madeiro” (stauros). O mais
sensato é tratar estas coisas do ponto de vista simbólico, visto que o juízo histórico é
impossível, e o exegético é enfadonho. Em seu sentido esotérico, alude à totalidade do
“espaço”, as quatro direções cardeais, e em suma, a tétrada é uma chave para a perfeição
da natureza, das quatro estações, dos temperamentos, etc. Não há conceito de “espaço”
no grego, e o que mais se aproxima é aquele cunhado por Platão, “região” (khôra) no
Timeu. Já os hindus, entre outras palavras, têm no sânscrito Aditi e Akasha, cujos
significados não são idênticos, as marcas do correlativo mistério, o que nos permitem
perceber a amplitude da noção aí visada. Para Buda nada há além “da Lei, do Nirvana e
do ‘Espaço’”. Já a rosa, sua história chega a nós, via tradução, da vegetação oriental dos
prados às línguas modernas. Sua difusão é consolidada pela KJV, e a passagem
paradigmática é Cânticos dos Cânticos (Shir Hashirim, 2:1): “Sou a rosa de Saron, o
lírio dos vales”. O hebraico, no entanto, é desconcertante neste ponto, pois traz “khab-
ats-tseh‘-leth” () ֲח ַב ֶצּלֶת, isto é, açafrão do prado (Colchicum autumnale). A flor lilás é
deveras similar a variante do lótus egípcio e mesmo a nossa vitória-régia. Dizem os
hindus que o lótus de incontáveis pétalas e infinita beleza nasce no úmido charco e se
ergue desperto para o Sol. Aqui o motivo torna-se universal. Já o lírio (shôshannâh:
)שׁוֹשַׁ נָּהderiva de “ser brilhante”, “alegre”, e é originariamente uma palavra egípcia. A
flor é livremente associada ao amor (ra‛yâh, 2:2) e a vida, existência (hayah) na poética
do Cântico. As flores “brotam” (ra’âh) “na terra” (b’eretz: 2: 12). O mesmo pode ser
estendido a Ruach e Havah, o Espírito e a Alma humana que emanam do centro da cruz,
e brotam no deserto da matéria, mesmo no desolado Egito, pela força da misteriosa
Água que desce dos Céus, como o orvalho que irriga a noite. Assim, a rosa floresce na
cruz, a Inteligência habita a matéria que a Ela não contém. É a imagem do sacrifício,
vigor da Vida que se transforma em doce odor, incenso e perfume, na guia do Bom
Pastor que é o Cordeiro e seu símbolo. Os Irmãos da R+C preferiram a prolífica rosa,
bela e admoestatória, a paixão figural do crucificado, que em sua forma estática
preconiza a mortalidade do homem. Eles resgataram e tornaram puro o Pelicano, pois
este verte sangue do próprio peito, para que seus filhos, análogos a Fênix retornem das
sempre cinzas e do esquecimento, obra necessária para que o esplendor da Vida não se
apague no humano coração. A Sabedoria salva a Vida de uma aparente morte, pela
retificação do erro. YHVH então envia Yah-Shuah, Sua salvação redentora. Ele repara
os danos infligidos pelas humanas faltas, e resgata as centelhas remanescentes da
Humanidade. Por isso dizem os adeptos da R+C: Iesus mihi omnia; Ex Deo nascimur,
in Iesu morimur, per Spiritum Sanctum reviviscimus. Isto diz-nos a Fama como uma
confissão e modelo. Poucos prestaram atenção ao opúsculo Speculum Sophicum
Rhodostauroticum, endereçado a turba que se debatia a procura do umbral do mistério.
Publicado treze anos após a publicação do primeiro manifesto R+C, o texto nos
apresenta um iter para o Collegium ad S. S., a semelhança daquele prefigurado por
Tomás de Kempis, cento e cinqüenta anos antes e que aponta para as preparações
(parerga) necessárias. Afirma seu autor que as Sagradas Escrituras são a “Fonte e o
Fundamento da Fraternidade” e que o neófito é admitido a ela pelo exercício da prece e
devoção. Que a Rosa (rhodos) e a Cruz (stauros) dialoguem em nós, para não estarmos
como que mortos em vida. Afinal, o que é morrer para a morte? O que são as dores que
antecedem nosso novo nascimento no Caminho e pela Verdade? Possamos beber da
Fonte que sacia e renascer a cada dia como o orvalho (ros) da manhã que dirige sua face
ao sol, e bendigamos ao Criador, desde o fundo de nossa alma, pois a Vida é Eterna.
6
Notas sobre a Iniciação
Para o iniciado aumenta gradativamente a luz. Primeiro, no vestíbulo, tem diante de si
os símbolos das duas etapas extremas de um mesmo processo. A etapa inicial é
representada pelas colunas. É aquilo que o neófito tem diante de si: a tarefa da
transmutação. Ele a tem diante de si como algo ainda não resolvido. Para que conceba
como resolvê-lo vem em auxílio o símbolo da rósea cruz, que se insinua sob seus pés
como um caminho a percorrer. Este é o símbolo da etapa final. Em um primeiro
momento o neófito observa o símbolo no chão: uma cruz vermelha e em seu centro a
pedra cúbica, que representa a consumação da tarefa. A partir da meta o caminho a
percorrer é traçado diante dele na haste vertical da cruz. Ele é levado a dar um passo
para percorrer o caminho, e eis que vê a si mesmo no centro da cruz.
São apresentadas ao neófito, portanto, as três etapas da grande arte: o ponto de
partida, que é aquilo que se pode divisar de fixo em meio à torrente, isto é, aquilo que,
como algo ainda não resolvido, nos atinge através de um apelo; em seguida, aquilo para
que o apelo convoca, tornando-se doravante o mais ardente desejo do coração e que
conduz ao ponto de chegada, à reintegração, representada pela pedra cúbica e depois
pelo neófito que assume o seu lugar, porque a reintegração é um outro que sou eu
mesmo, que fui, e que me ponho a caminho para tornar a ser, a realização do espírito.
Este é o sentido de reintegração: vir à presença de um outro que sou eu mesmo e que
por isso, não é outro, nem eu, é a rosa, símbolo da disposição interior em que os
contrários se harmonizam. A rosa não põe fim aos contrários, ela vive por eles. É por
isso que a rosa ocupa o centro da cruz. Este é o ponto em que as sombras predominam
sobre a luz.
A seguir, no poente, são ditas certas palavras, certos compromissos são
assumidos. Há tanto de luz quanto há de sombra. O neófito confia porque tem sob sua
mão direita o verbo que se fez carne e a lâmina apontada para o norte, região que o sol
não toca, e de onde vem a obscuridade que quer vencer a luz (Jeremias 1, 14). Com esta
lâmina que é verbo a obscuridade já foi vencida pelo antigo ocupante da cadeira do
poente. Sobre ela estão dispostas as suas vestes, prontas para serem usadas, porque o
ocaso adquire outra significação: não simplesmente de memória do que passou, mas de
espera do porvir. As vestes estarem prontas significa: algo que virá. A tarefa é o do
meio: torrente – desejo – espírito, si mesmo que é outro, disposto sobre a mesa de
sacrifício e refeição. O desejo é o do meio: a tarefa é transmutá-lo, isto é, realizá-lo na
esfera à qual realmente pertence e da qual foi privado. A reintegração se deixa alcançar:
o antigo ocupante da cadeira do poente o atesta, e também que a morte é uma região da
vida.
Lux ad orientem. No leste encontra-se a luz, memorial dos que já se passaram,
não ao modo de um fazer memória mas de um tornar presente. A memória é chama
sempre ardente. Os mestres do passado, do lugar onde habitam na aurora das eras
confirmam o neófito é sua decisão de tomar a via que tantos desconhecidos
percorreram. E o eu que em mim se apaga, tornando-se um desconhecido, lança-se à
jornada solitária na grande noite da alma, no caminho em que estes outros
desconhecidos tornaram-se luminares. Este é o terceiro estágio da luz, que não é, porém,
o extremo, mas o do meio. É do meio porque é a realização da reintegração entre dois, é
o último porque é aquilo que alcança aquele que se faz desconhecido pelo sinal da
caridade. Seu nome alquímico é rubedo, a toalha intermediária do altar. Por meio dela
até mesmo o norte é iluminado. Em sua chegada um povo desconhecido viu uma grande
luz. É este o caminho para o qual estou olhando, aquele que me foi indicado. A alma
farta pisa o favo de mel, mas para a alma faminta todo amargo é doce. (Provérbios 27,
7). In Cruce + Salus
7
De Signatura Rerum
Obra de Jacob Boehme, o Filósofo Teutão
CAPÍTULO I
I. O que quer que seja dito, escrito ou concebido acerca de Deus, sem o conhecimento
da Assinatura (der Signatur), é tolice e vazio de entendimento (verstand); pois isto
procede apenas de uma Conjectura Histórica, da boca do outro, em que o espírito, sem
conhecimento, é tolo; mas, se o Espírito (Geist) abrir nele a Assinatura (die Signatur),
então ele compreenderá o discurso do outro; e, além disso, compreenderá como o
Espírito se manifestou e revelou-se (a partir da Essência através do Princípio) no Som
que acompanha a voz. Pois aquilo que eu ouvi alguém dizer, ensinar, pregar e escrever a
respeito de Deus, embora eu escute e leia o mesmo, ainda assim isto não é suficiente
para que eu o entenda; mas se seu Som e espírito partir desta Assinatura e Similitude,
ingressando em minha própria Similitude, e imprimindo sua Similitude em mim, então
eu poderei compreendê-lo real e fundamentalmente, quer seja por seu discurso ou por
escritura, caso ele possua o Martelo que pode tocar o meu Sino.
II. Por este meio nós reconhecemos que todas as propriedades humanas procedem do
Uno e que tudo possui uma única Raiz e Mãe; no entanto, um homem não pode
compreender ao outro quanto ao Som, pois o Som ou a Dita Forma deve imprimir-se na
similitude do outro; um tom ou som semelhante captura e move o outro e no Som o
Espírito imprime sua própria similitude, que fora concebida na Essência e trazida à
forma no Princípio (welche er in der Essenz geschafft hat und hat sie im Principio zur
Form bracht).
III. Assim, o que na palavra pode ser entendido, quando o Espírito tiver concebido, será
bom ou mal; e com esta Assinatura ele entra na forma de outro homem e desperta
também no outro uma forma que tal na Assinatura; pois que ambas as formas se
assimilam (inqualiren) mutuamente em uma forma, e então há uma Compreensão
(Begriff), uma Vontade (Wille), um Espírito e, ainda, um Entendimento (Verstand).
8
seu conhecimento (erkenntnis); o interior revela-se no fundo da palavra, seja pois isto o
conhecimento de sua própria mente natural (das inner offenbaret sich im Halle des
Wortes, dann das ist des gemuetes naturliche Erkenntnis seiner selbst).
VI. O ser humano possui de fato todas as formas de todos os três Mundos residindo
nele; pois ele é a completa Imagem de Deus, ou do Ser de todos os Seres; o
ordenamento somente é colocado nele no momento de sua Encarnação; pois há nele três
Mestres-Operativos que preparam sua Forma [ou Assinatura], a saber, o tríplice Fiat,
relativamente aos três Mundos; eles estão em Disputa no que concerne à Forma e a
Forma é figurada (figuriret) segundo a Disputa; correspondentemente a qual dos
Mestres detém a Direção Superior (Uber-Regiment), assim se a obtém na Essência e
assim o seu Instrumento é afinado, enquanto os outros se retiram2 e retornam ao seu
âmago, como claramente se demonstra.
VII. Tão logo o homem nasce neste mundo, seu espírito toca o seu intrumento, assim
como sua Forma inata genuina [ou Assinatura] é vista no bem ou no mal por suas
palavras e Conversação; pois assim como seu Instrumento soa, os sentidos e
pensamentos procedem respectivamente da essência da mente e assim o espírito exterior
de sua vontade é levado em seu comportamento, assim como se vê tanto em humanos
quanto em feras. É porque há uma grande diferença na Procriação, que Irmão e Irmão
não agem um como o outro.
VIII. Além disso, nós estamos a reconhecer, que embora um Fiat mantenha-se a partir
de seu superior, e figure a Forma de acordo consigo, os outros dois lhe doam suas
posses, se seu Instrumento atuar sobre eles; como se vê, muitos humanos e também
muitas feras, embora estejam mui inclinadas quer para o bem quer para o mal, ainda
assim ambos são movidos para o mal ou bem por um Tom Contrário e, o mais das
vezes, deixam a sua Assinatura inata [ou Figura] decair, quando o Tom Contrário age
sobre seu Alaúde oculto, ou Forma. Assim nós vemos freqüentemente um sujeito mal
que movido por um bom sujeito se arrepende e cessa sua iniquidade, quando um bom
sujeito toca e agita seu Instrumento oculto com seu espírito manso e amoroso.
IX. E assim também acontece ao bom sujeito que quando o homem perverso abala seu
Instrumento oculto com o espírito de sua ira, a forma da Cólera se agita no bom sujeito
e, então, um ser humano se lança contra o outro, para que cada um seja a Cura ou o
Médico do outro. Pois assim como é a Assinatura Vital, ou seja, a forma da vida
figurada no Tempo do Fiat no instante da Concepção, assim é seu espírito natural, pois
este se ergue da Essência dos três Princípios, e como uma vontade ele atuará e se
manifesta a partir de suas propriedades.
X. Mas, agora a vontade pode ser quebrada; pois quando uma mais forte [vontade]
advém e estimula sua Assinatura interior com seu Som e Espírito-Voluntário insinuante,
então seu Domínio superior perte o Poder, o Direito e a Autoridade; isto é visível na
poderosa influência do Sol, que por sua força qualifica [gradua] um fruto amargo e
azedo, tornando-o doce e prazenteiro. De modo semelhante, um bom sujeito se
corrompe entre má companhia, bem como uma boa erva não pode mostrar sua virtude
2
O verbo verborgen é aqui de difícil tradução. Tem sido feita uma alusão ao caso de os mestres
que não prevalecendo, ou se subordinam e permanecem ocultos (inoperantes) ou são
simplesmente eclipsados por aquele que se torna Soberano (nota do tradutor).
9
real e genuína em um solo ruim; pois em um bom sujeito o maligno instrumento oculto
é despertado e na erva3 uma essência contrária é recebida da terra; assim é que muitas
vezes o Bem se transforma em um Mal, e o Mal em um Bem.
XI. E agora observa! Assim como algo permanece no poder e predomínio da Qualidade,
assim é assinalado e marcado externamente em sua Forma exterior, Assinatura ou
Figura; o Ser Humano em suas palavras, vontade e comportamento, também com a
forma dos membros que ele possui e deve atentar para esta Assinatura; sua forma
interior é percebida na forma de sua face 4; e assim também é com uma fera, uma erva e
a árvore; cada coisa, assim como é interiormente assim ela é exteriormente assinalada 5;
ainda que isto decaia, pois acontece que muitas vezes uma coisa é transformada de má
em boa, e de boa em má, de onde ela toma seu Caráter exterior, é daí que se pode
conhecer o bem ou o mal (que é a mudança).
XII. Pois o homem é conhecido aqui mesmo por sua prática diária, assim como por seu
curso e discurso; o Instrumento superior que é mui fortemente concebido está sempre
atuante. Assim é que com uma fera que é selvagem, mas quando há intimidade e é
domesticada adquire outra propriedade, ela não ofuscará facilmente sua primeira forma
inata, a menos que seja agitada, e então ela irrompe e aparece sobre todas as outras
formas.
XIII. Isto é semelhante a erva da Terra; se a erva for transplantada de um solo ruim para
um bom, então ela obterá rapidamente um corpo mais forte e mais aprazível odor e
poder, e mostrará a Essência interior exteriormente; nada é criado ou nasce na Natureza,
mas manifesta sua forma interior exteriormente, pois o interno continuamente opera ou
trabalha-se para a manifestação. Assim nós conhecemos o poder e a forma deste mundo,
como a única Essência se manifestou a si mesma com o Nascimento Exterior no desejo
em uma Similitude, como se manifestou a si mesma de muitas formas e figuras, que nós
vemos e conhecemos nas Estrelas e Elementos, bem como nas Criaturas viventes e
também nas Árvores e Plantas.
XV. Cada coisa tem sua boca para manifestação; e esta é a linguagem da Natureza, a
partir dela cada coisa fala de suas propriedades e manifesta continuamente, declara e
configura (darstellet) o que é bom ou proveitoso; pois cada coisa manifesta sua Mãe
(des ding offebaret seine Mutter) que lhe deu a Essência, a Vontade e a Forma.
3
Referência a parte vegetativa da alma humana.
4
Em seu aspecto, his look, como dizem os ingleses ou sua Fisionomia.
5
Isto é, em sua virtude e qualidade inata. Esta é prefigurada nos sinais que cada coisa apresenta
exteriormente.
10
CAPÍTULO II
[Da oposição e combate no Ser de todos os Seres, onde o Fundo da Antipatia e Simpatia
na Natureza pode ser visto e também a corrupção e a cura de cada coisa]
I. Vimos, então, que há tantas e diversas Formas, que cada uma deve produzir e
proporcionar a partir de suas propriedades uma vontade diferente na relação de uma
com a outra; nós agora compreenderemos a Contrariedade e Combate no Ser de todos os
Seres, como se opõem, envenenam-se e uma a outra matam, ou seja, suplantam sua
Essência e o Espírito da Essência, e introduzem-se em outra forma, quando Doença e
Dor surgem, quando uma Essência destrói a outra.
II. E, então, nós compreendemos aqui a Cura, como uma cura a outra, e traz consigo a
saúde; e se assim não fosse, não haveria Natureza e nem Vontade, mas Repouso eterno6;
pois a Vontade Contrária produz o movimento e a origem da Procura, aquele Som
oposto que procura o Repouso, e ainda na Procura apenas se eleva e inflama a si
mesmo.
III. E nós compreendemos que a Cura de cada coisa consiste na Assimilação, pois na
Assimilação surge a satisfação da Vontade, a saber, a mais alta Alegria; pois cada coisa
deseja uma Vontade com que se pareça, que pela Vontade Contrária ela é
descompensada (lit. tornada doente); mas se obtém uma Vontade com que se pareça, ela
se rejubila na Assimilação e queda em Repouso, e a Inimizade e tornada em Alegria.
IV. Pois a Natureza Eterna nada produz em seu desejo, salvo uma semelhança extraída
de si mesma; e se não houvesse uma incessante Mistura, haveria uma Paz eterna na
Natureza, mas então a Natureza não se revelaria e se tornaria manifesta, pois no
Combate ela torna-se manifesta; cada coisa, deste modo, eleva-se e sai do Combate para
o Repouso Permanente e corre para lá e para cá, e assim apenas desperta e suscita o
Combate.
BOEHME, Jacob. De Signatura Rerum: das ist Bezeichnung aller dingen wie das
Innere vom Eusseren bezeichnet wird., 1635.
_______. Signatura Rerum: or the signature of all things shewing the sign, and
signification of the severall forms and shapes in the creation: and what the beginning,
ruin, and cure of every thing is; it proceeds out of Eternity into Time, and again out of
Time into Eternity, and comprizeth all Mysteries. Tradução de J. Ellistone. London:
John Macock, 1651.
LAW, William. The Way to Divine Knowledge. Londres, M. A.,1752.
6
O mesmo argumento é atribuído por Platão a Anaxágoras no Fédon (60a-72e).
11
Boehme e a Sabedoria
Uma citação apenas será suficiente para percebemos que o Filósofo Teutão
reconcilia conceitos muito disputados e que em sua prosa poética de repente soam todos
juntos com translúcido acento:
“É necessário reconhecer que todo aquele que recebe a vida... e
que põe a vida na natureza, é filho da natureza, é uma vida só
com a natureza... O Espírito sideral ou racional cercado em sua
Magia, no seu Centrum da razão e milagre da eternidade, para
cujo fim Deus tem criado a alma no corpo da natureza eterna,
de modo que a vida seja contida no interior, e o espírito da
vontade se introduza na liberdade de Deus, donde de fato o
conduz o Espírito Santo no livre Mysterium divino; para que
através disso a divindade seja revelada no espírito da vontade e
no espírito da razão seja revelada a Magia da natureza com os
seus milagres” (Menschwerdung, III, 3, 2, in Boehme Schriften,
Leipzig, 1923).
Para o místico será este um dos grandes casos da coincidentia oppositorum que
torna possível mostrar a ação na composição discursiva dialética que as articula em
relação, opõem-nas para, a seguir, superá-las no conceito, suma dos casos cobertos por
ambos os pólos da oposição em um mesmo quadro harmonioso. São aparadas as arestas
das contrariedades e concertadas pelo liame que lhes é comum e as envolve desde os
extremos de cada par.
Para o filósofo isto é um signo do movimento do conceito, de um processo que
transcorre fulminante na compreensão e, que, muitas vezes traduzido, aí se mostra
vagaroso na expressão em que nos detemos atônitos, até que detrás das letras grandes
surja o esquema da explicação, onde cintilam interligados, como em uma constelação,
os conceitos, em um único quadro ou figura, pois que a escrita não pode fazer outra
coisa, senão seguir sua natureza sucessiva e periódica.
Hegel confessa seu espanto ante um contra senso: a fonte de grande parte de
suas percepções espirituais, a leitura de Jacob Beohme, não pode ser por ele integrada
em seu sistema filosófico, dada a extemporaneidade de seu pensamento e de sua
linguagem mística e alegórica. O filósofo do espírito lamenta ainda que a teosofia não
seja tolerada pela teologia, nem ainda pela filosofia alemã, como o será posteriormente.
Hegel, não obstante, insere o Filósofo Teutão em suas Preleções sobre História da
Filosofia, como um profeta do romantismo e do idealismo.
12
então há uma Compreensão (Begriff)". Ora esse é justamente o movimento necessário a
realização do Conceito.
A relação da unidade com a dualidade própria à natureza daquilo que se
manifesta, corresponde ao movimento da unidade para a pluralidade, cuja causa é a
contrariedade das forças inerentes ao Uno tal como é evidente nos fragmentos de
Parmênides, Heráclito e Empédocles. A superação do conflito e o retorno à unidade, ou
repouso feliz, são possíveis graças à ação do Amor que para Hegel é a força que permite
a verdadeira unificação. Diz Hegel:
“Unificação verdadeira, verdadeiro e próprio amor, ocorre
somente entre viventes iguais em potência, e que, em seguida,
em tudo e por tudo, um pelo outro dos viventes, e de nenhum
modo por um ou outro dos mortos; o amor exclui cada
oposição: isso não é intelecto, cujas relações saem cada vez
mais do múltiplo enquanto múltiplo, e cuja unidade está nestas
mesmas oposições; o amor não é razão que opõe sem o outro o
seu determinar ao determinado; o amor não é nada de limitante,
nem de limitado, nada de finito; o amor é um sentimento, mas
não um sentimento particular. O sentimento particular sai de
uma vida parcial, não da vida inteira, - a vida, mediante a
dissolução, tende à dispersão na multiplicidade dos sentimentos,
e tende a se encontrar neste inteiro da multiplicidade; este
inteiro, no amor, não é conteúdo como a soma de muitos
particulares, de muitos [entes] separados; no amor se encontra a
vida mesma em uma duplicação de si mesma, e como uma
unificação da mesmíssima; da unidade não desenvolvida à vida
que atravessa a cultura" (I Principi).
13
seu pensamento e rogou a Divina Sabedoria para que lhe orientasse em sua dicção.
Nesta visão primeira surgem ao lado do Incognoscível, Dois Mundos: o celeste e o
terrestre. É a eles que cumpre investigar.
Nestes mundos se revelam as Duas qualidades: a boa e a má, e as Quatro
qualidades: a doce e boa e três contrárias a ela, a amarga, a azeda e a adstringente.
Trata-se da Árvore da Vida e da qualidade de seus frutos. Por qualidade se entende “a
ação, a mobilidade ou a impulsão de uma coisa” (p. 45), p. ex: a luz e o calor e sua
relação recíproca.
Como encontrar Deus na Natureza? O Filósofo nos convida a perscrutar as
forças (Tkräfte) que nela e em nós residem desde a criação, estudando-as
apropriadamente em suas dinâmicas específicas e compondo o quadro geral das relações
descobertas por essa pesquisa.
“... desde o início até hoje a Natureza, secundada pelo Espírito
Santo que Deus quis lhe dar, desenvolve toda a sua atividade
para gerar e preparar sempre e em toda parte homens sábios,
santos e inteligentes, que conheceram a Natureza e seu Criador
e, através de seus escritos e instruções, foram, em todos os
tempos, a luz do mundo. Foi assim que Deus estabeleceu a sua
Igreja na terra para seu eterno louvor” (Prefácio de Aurora
Nascente, edição da Paulus, 1998, p. 24).
14
cuidava de sua Glória para esta não consumisse em Fogo abrasador de uma só vez a
criatura. Sendo a exposição a essa Luz primitiva o que permite à alma humana se elevar
ao lugar de seu esplendor no meio-dia da vida ou da plena Beleza, quando é capaz de, a
partir de certas preparações, em si expandir as potências adormecidas no corpo, antes
que estas funções decaiam, e então encontrem a cabo sua limitação. Eis a Rosa. Antes
que isso acontece chega o ser humano a acreditar que essa atividade em cujo exercício
sentia-se infatigável era mesmo a confirmação de sua essência imortal.
O seu corpo, por outro lado, provém das estrelas e dos elementos, e destes se
alimenta. Eis a Cruz. As Águas de Cima fluem até as Águas de Baixo e na Terra
formam um limo com o pó vermelho que se deposita ao longo do Rio ou do
entroncamento dos quatro rios primitivos. Mistério alusivo ao sangue 7 e ao seu tabu e
que através do vaso sanguíneo oxigenado corre em nós. Toma, pois também do ar
(pneuma) que ocupa a região mediana entre o Fogo e a Água e através do qual o
Espírito Santo governa todas as coisas que estão em Deus, isto é, que têm seus nomes
inscritos na Árvore da Vida.
Aqui está, portanto, o elo entre o ser humano e a Divindade. Quando o Espírito
se inflama a Natureza vê a Deus, pois “Ela é um membro ou filho na casa de seu Pai
celeste” (p. 41). Aqui valerá sempre a máxima com que o professor Heleno Cesarino
salmodiava o Filósofo Teutão, e junto a ele, Hegel: eis o mistério! O Absoluto está e
quer estar em nós. Mistério da Sacrossanta Vontade Divina.
Na introdução de Aurora Nascente, Boëhme nos dá as suas definições de
filosofia que abrange naturalmente a astrologia e teosofia (p. 38-39).
A sua filosofia trata:
1. Da força divina;
2. Do que Deus é;
3. “de como no início a Natureza, as estrelas e os elementos foram criados na
essência de Deus, da qual todas as coisas tiveram sua origem”;
4. De como foram criados o céu, a terra e o inferno, os anjos, Adão ou a
Humanidade como ser, e acerca do demônio, e tudo “quanto existe
criaturalmente”;
5. Do que são as qualidades da Natureza; segundo o Espírito, o impulso e o
movimento de Deus.
15
ação irrefletida de seu intelecto precipitou-lhe em sua queda até a região em que viria
habitar e onde sofreria sua provação, privado de seu corpo glorioso original e destituído
de suas armas, as potências infalíveis que espelham a Majestade do Rei Altíssimo em
seu Trono. Este episódio de amarga memória, os místicos chamam “prevaricação”
(veja-se o conceito em Martinez de Pasqually).
A queda é, na prática, um estado de separação a que os hebreus, povos errantes,
dão a conotação de exílio: do povo no deserto, do espírito na matéria. A reconquista da
própria vontade da parte de cada ser humano e a posse por dádiva da unção do Espírito
que conduz a criatura de sua condição desviada ao único culto digno do Santíssimo, ou
seja, sacrifícios pacíficos e uma alma pura, simples e quebrantada; o combatente torna-
se calejado pela dura peleja do estabelecimento do domínio de si. Com isso Sócrates
concordaria facilmente.
Para o Filósofo Teutão, o conhecimento da Palavra, ou Cabala, está unido a sua
contrapartida prática, na oração, no estudo e na ação segundo a Palavra. Tais atitudes e
ações acabam por constituir o epicentro da Magia que em seu significado etimológico
quer dizer Sabedoria e Império no âmbito relativo ao humano, ou seja, ao domínio de si.
“A Cabala, segundo Boehme, é uma espécie de Magia; reside na sexta
forma, o Som; seu centro é o Tetragrammaton, que contém as forças
verdadeiras pelas quais o inteligível age no sensível. Nesse lugar
encontra-se a Lei de Moisés, cujas transgressões recebem castigo
eterno” (Sédir, Noções Gerais sobre a Cabala, in Papus, Cabala, p. 67).
16
essa queda está ligada ao cuidado da Árvore da Vida. Essa é a história da queda de
Adão, de um estado de fruição das delícias da vida em plenitude em um estado
oscilatório em que conhece o bem e o mal, supostamente, por sua ingenuidade. Já
Boehme vê na primeira queda, a qual alude o relato indireto dos rabis, aquela dos
espíritos precipitados abaixo da Terra, nos abismos, como uma obra da malícia e como
algo que ocorrera na região simbólica do Norte.
“Por que a letra Chet é aberta? E por que seu ponto vogal é um pequeno
Patach? Disse ele: Porque todas as direções (Ruach-ot) estão fechadas,
exceto o norte, que está aberto ao bem e ao mal.” (Bahir, §34; veja-se
ainda §§162, 163 e 199).
A transgressão de Adão se dá, então, em parte pela ação sediciosa dos espíritos
prevaricadores que odeiam a Alma Humana. A região norte seria uma zona não selada
ao mal e a cólera que se abate inexoravelmente sobre o transgressor a Lei, ainda mais
aquele a quem uma advertência foi dada e ouvida, e assim Israel (Êxodo, 15: 26), e
antes Adão, todos foram postos à prova, e devia assim, o arquétipo da Humanidade
(Adão), disposto em sua genealogia (Israel), observar os limites impostos a sua ação
para que fosse pia e em conformidade com o Desígnio Divino e isto para o seu próprio
bem. Como é isso?
“Um rei tinha uma bela filha e outros a desejavam. O rei sabia disso,
mas não poderia lutar contra os que queriam conduzir sua filha a
caminhos malignos. Chegou à sua casa, e a advertiu, dizendo: ‘Minha
filha, não prestes atenção às palavras desses inimigos, e eles não serão
capazes de te subjugar. Não deixes a casa, mas faz todo o teu trabalho
em casa. Não te sintas ociosa, mesmo por um único momento. Assim,
não serão capazes de te ver, e te causar dano. Eles possuem um Atributo
que faz com que deixem de lado todos os bons caminhos, e escolham
todos os maus caminhos. Quando vêem uma pessoa caminhando por um
bom caminho, elas a odeiam.’” (Bahir, §162)
O Rei que admoesta como Pai e que não impõem a sua Vontade a Filha é
sumamente bom e magnânimo. Ele aconselha como a Sabedoria. A sua voz soa e é
recolhida pela Alma. Outras vozes parecem desejar insinuar-se ante a voz própria a
Alma a fim de captar a sua atenção, e apenas para causar-lhe dúvida e sedição interior e,
por esse meio, fazer cessar o Magistério confiado ao Homem Primitivo: a vigilância do
alto posto a ele confiado.
Essa Casa é o próprio Espírito, berço da Humanidade e por ser uma habitação
que possui por si dons graciosos, é cobiçada pelo indigno, e aí de nós se não
executarmos todo o nosso trabalho nela, sem nunca abandoná-la. Ao ocuparmos esse
posto, ocupamos o Centro de nós mesmos, o ponto em que estamos unidos com o
Divino Ser e que corresponde ao estado da Alma Humana desperta em Deus.
Por Amor é que o Criador, para o resgate da criatura, procede em sua
Magnânima Resolução, e envia a Sofia o Reparador e Redentor da Humanidade.
Quando a Noiva ergue o rosto para a Face do Altíssimo, a alma pode ver o espírito, o
Noivo, como dizem os rabinos, como duas facetas que voltadas uma para a outra,
fecham o circuito entre o Eu e o Tu, e então, vêem no meio delas uma Face maior e
compreensiva, e se vêem Nele, unos com Ele. Os alquimistas designavam tal ato de
união, Bodas ou Casamento Alquímico, como o estado da alma humana quando
iluminada pelo Espírito Divino.
O Verbo de Salvação e Resgate dos remanescentes de Adão é Caminho, Verdade
e Vida, ânfora de salvação e conforto dos viventes. É a ação do Espírito Essencial do
17
Fogo, o Fogo Central oculto no interior da Natureza (igne naturam renovantur
integram) que opera a redenção de cada centelha após a reconciliação e a regeneração
do Humano e a sua reintegração ao Arquétipo.
Sua ação é ininterrupta como a atualidade do Verbo, embora deva ser recebido
no coração pacífico. Toda a geração que não pode chegar a Canaã simboliza a demora e
resistência que a humanidade demonstra em seguir o caminho pacífico e iluminador
prefigurado na promessa do Salvador esperado ou que já veio. A história de um povo
singular torna-se ao mesmo tempo universal: um coração rebelde e contendedor, que
esquece facilmente a obra de resgate e salvação que se estende diante si e que não
escuta a voz do Senhor (Núm. 14: 9-22; שׁ ְמע֖ וּ בְּקוֹ ִל ֽי
ָ ).
Pode-se dizer que aquilo que competia a nosso ancestral comum, tal combate
pela soberania espiritual, é algo herdado pelos filhos de Adão, para o resgate de sua
honra, e para a maior glória do Soberano Árbitro dos Mundos, e que compreende a
salvação do gênero humano, em seu fim prometido que aparece aos eleitos tecido nas
pontas dos véus que o separam da consumação dos Tempos.
O combate de que aí se fala é análogo a guarda das Portas inferiores do Coração
de que nos fala Saint-Martin, e implica em um esforço em atenção e vigilância contínua
sobre si e acerca da interação de nossas naturezas divina, animal e humana. A
humanidade, estendida como um corpo coletivo em face do infinito cosmo compõe a
imagem do grande e do pequeno todo, totalidade agitada, calorosa e eletrizante, e assim
podemos dizer com Boehme que o Princípio conhecido apenas pela Sabedoria, embora
presente em nós, sendo Uno com tudo o que é nos dá a conhecer a si neste mesmo
Santuário onde reside o tesouro do coração de cada um. È como nos diz o Evangelista:
“… onde estiver o teu coração, aí estará o teu tesouro” (Mat. 6: 21)!
Como no trecho do Mistério Magno acima traduzido, o mistério da comunhão
com o Divino a que todos os místicos aspiram é análogo a compreensão que podemos
ter do que nos vai ao coração e no de outrem e que transparece na superfície da
linguagem. Se no entendimento as qualidades dos discursos se combatem não pode
haver compreensão. Ficam os interlocutores encerrados em sua inteligência particular8
em que não é raro o pensamento gentil ceder espaço ao juízo colérico que parece impor-
se às coisas e gentes que passam diante os nossos olhos.
A este respeito os cabalistas nos dizem que é necessário temperar a Severidade
com a Misericórdia e preparar o coração do ser humano através de obras de benignidade
e justiça (tsedakah), e oferecer sacrifícios pacíficos no altar da devoção.
8
Como no fragmento 2 de Heráclito de Èfeso, aquele que persiste em sua inteligência particular
(idia phronesin) permanece apartado do comum (to koinon), aquilo de que há compreensão, o
lógos, pois o lógos é o que comum.
18
com o príncipe Galitzin 9, e outros os adeptos R+C e franco-maçons russos, por
exemplo.
A sua principal tese é a de que não se deve olhar para o homem através das
coisas, mas compreender as coisas a partir do homem. Ela é já apresentada em Tableau
Naturel des Rapports qui existent entre Dieu, l’Homme et l’Univers, obra publicada em
dois tomos em Edimburgo, ano de 1782. Tudo, desde o primeiro Mobile através do qual
Deus desejou indicar e ocultar as mais sublimes verdades, “escritas em tudo que nos
circunda”, “a força vivente dos elementos”, “a ordem e a harmonia de todas as ações do
universo” estão presentes e devem ser buscadas ainda mais claramente “no caráter
distintivo que constitui o ser humano” (I, 1).
Saint-Martin pode a partir de seu convívio com as obras do Filósofo Teutão, a
que se dedicou traduzir para o francês, revisitar a herança doutrinária de sua primeira
escola e expô-la a luz vivificante dessa nova luz que lhe chegava e lhe conduzira ao
período maduro de sua reflexão filosófica.
É possível que essa nova disposição de seu espírito, tenha levado Saint-Martin a
um novo ciclo de produção intelectual, cujos primeiros indícios deixaria transparecer
em L’Homme de Desir (1790), em Le Nouvel Homme (1792), e mais decisivamente em
Le Crocodille (1798) e em Le Ministère de l’Homme Esprit (1802), obra em que o
Filósofo Desconhecido lança luz acerca do estágio de realização espiritual ou da ação
do Espírito no ser humano reconciliado, regenerado e alçado pelo desejo a comunhão
alquímica do sol com a lua, quando a alma serve como receptáculo retificado para a
habitação do Espírito Santo.
Boehme, além de seus escritos teosóficos, deixou-nos ainda uma grande obra
imagética, em que o sapateiro de Gorlitz se esforçava por figurar as suas visões segundo
as regras da antiga vidência e profecia.
Essa imagética se aliava a um procedimento comum aos filhos da Doutrina e que
se sedimentara no imaginário ocidental como um levante através da imagem contra a
profusão de escritos teológicos que se usavam da lógica e da retórica indistintamente
como um véu para a parvoíce dos súditos da teologia. È como Yates em Giordano
Bruno e a tradição hermética enfatiza acerca da idade média: nas universidades e
mosteiros falavam e escreviam naquele latim corrupto que repugnaria a inventividade
romana e que refletia sobre si mesma como uma cultura autônoma em obras disputadas
por “gramáticos pedantes” (cap. IX).
É possível ver isto nos treze diagramas de Dionysius Freher, intitulados, An
Illustration of the Deep Principles of Jacob Behmen, the Teutonic Theosopher,
publicado em 1764 por William Law; ou na adaptação do Tetragrama, segundo o esque-
9
Matter (p. 134-135; 142-145). Além de sua convivência com Chateaubriand, sua influência
sobre a senhora de Stael e os salões intelectuais franceses anteriormente à Revolução francesa.
19
ma de derivação da TeTrakTys ao movimento-ação prefigurado pelo Tetragrammaton:
10
Waite (The Secret Doctrine in Israel, p. 6) credencia Postel como o primeiro escritor europeu
a apontar que o nome hebraico de Jesus “era formado das consoantes” YOD-HÊ-VAV-HÊ
“com a adição da letra Shin = ”יהשוהque neste caso se lê “Yehoshuah”.
20
conhecimento em espírito cujo arauto é Boehme aquilo que Saint-Martin deseja
descortinar em sua obra madura.
Em L’Esprit des Choses a investigação do filósofo de Amboise nos permite
distinguir os dois temas de suas especulações: o principal que trata do homem e de sua
relação vertical com Deus, e um tema aparente (le tems apparent), tenebroso, que trata
das coisas temporais e visíveis, dados em uma direção horizontal, de que diz:
“... o próprio do tema [aparente que ocupa a atenção e cobiça
dos homens] é ser uma potência divina-horizontal, não pode,
portanto, nos oferecer o mesmo caráter que a potência divina,
direta e vertical; podemos também ressaltar que quando nos
detemos neste tema, o presente é já nulo para nosso espírito,
tanto relativamente à nossas penas quanto aos nossos deleites:
pois nós não provamos aí mais que desejos e arrependimentos, e
não nos ocupamos mais que em usufruir (poursuivre) e a perder
os objetos, e jamais a lhes possuir (posséder)”.
11
Nesta que é a página de uma filosofia de filiação platônica mais bem escrita em toda a história
da filosofia moderna. Ela é fiel em tantos pontos capitais que seria difícil expô-los a todos.
Assim como o ser eleático, o grande tema, o espírito de deus e a alma humana, são unos e
integrais, pois estão privados de contrariedades internas. A coerência de um estado intenso que
pode ser caracterizado como a presença, se define como uma atualidade viva e inteligente
(como no Timeu: 27d-29e), enquanto as coisas são oscilantes, sempre em fluxo, eivadas de
21
As coisas em constante fluxo podem levar o homem à morte, uma vez que
poucos sabem tirar proveito adequado da natureza, para fins de sua cura; a morte e o
esquecimento estarão ligados ao desejo de posse de coisas transitórias; aí não se fala de
outra coisa senão de bens e perdas; já o R+ vê uma obra de regeneração, em que atua o
fogo central da natureza (a natureza é comparada a uma mãe que gesta em seu ventre o
filho de deus, espírito, vida e consciência.
Saint-Martin (Dos Erros e da Verdade, I) alude a esse Centro misterioso onde
estava postado Adão, sobre o cerne da Criação, no meio onde as forças permanecem
equilibradas, o verdadeiro Centrum, core ou Kern da Natureza que como um grande
cadinho alquímico está escondido, sendo o mais industrioso dos segredos de Deus, a
Altura e o Abismo estão abertos à Sua Sabedoria.
Como nos diz o autor de Sharê Orah, não se pode buscar a Coroa senão através
de Adonai, até que se eleve como o cântico de elevações do rei Davi, de esfera em
esfera: “Das profundezas (ma’maq) chamo a Ti, ó Deus” (Sl. 130: 1), e isto quer dizer
que12
“Ele… está chamando Deus das profundezas Dele, isto é, da fonte
superior que é chamada de Infinito (En Soph). E esta profundidade é a
ponta superior do Yod de YHVH” (Sharê Orah, in Kaplan, 2010, parte
IV, da obra Meditation and Kabbalah de 1982)
contrários que se alternam no tempo, não são senão por participarem na Forma eterna, por
intermédio de cuja presença, elas duram sempre aspirando a ser como o original, mas falhando,
por serem carentes e privadas de uma posse efetivas das qualidades ou propriedades
comunicadas pelo princípio formal (Fédon; 72e-76e; 99e-101c). É por ser isenta de
contrariedades que a Alma sendo a Forma em si da Vida é eterna, posto que é anterior, e não
morre, pois a vida em si é, por definição e fato, privada de seu contrário a morte (101d-106b).
12
No Zohar (II 63b; III 69b) como recorda Scholem (em As Grandes Correntes… p. 35) o
sentido de “Das profundezas a Ti clamo” não é “a Ti clamo das profundezas [onde estou]”, mas
“das profundezas [onde Tu estás] a Ti clamo”.
22
Saint-Martin apresenta-nos três importantes momentos na odisséia humana: (a)
queda, ou saída do Centro ou da Fundação, com a conseqüente perda da consciência do
que se passa no alto, (b) esforço da vontade para sair a Floresta dos Erros e retornar
pela trilha duvidosa, e pelo desejo chegar ao altar da Sabedoria, (c) dedicação às coisas
santas ou o ministério do ser humano em espírito e verdade. A passagem de “b” para
“c” representa a reconquista do Centro no meio dos dois triângulos entrelaçados,
alusivos aos planos da criação e da formação em Deus.
Já a obra de Boehme pode ser compreendida em três momentos: (a) busca pela
Sabedoria, ou obra filosófica, Aurora (b) estudo das analogias e correspondências entre
Deus, o Universo e o Ser Humano, como em Signatura Rerum, e (c) o mistério da união
ou a comunhão da alma com a Vida Divina, em Von der Gnadenwahl [da Eleição da
Misericórdia], Mysterium Magnum e Von Christi Testamenten. Estas duas últimas obras
tratam, respectivamente, de um profundo comentário ao Gênesis e ao Evangelho. Em
muitas comunidades pietistas, como também entre martinistas em diferentes épocas a
leitura do Evangelho ou das obras de Boehme ou de Saint-Martin constituíra o centro
operativo em torno do qual se reuniam as afinidades eletivas dos princípios espirituais
da humanidade em comunhão ou em espírito. Aos martinistas modernos aprouve dividir
o magistério também em três períodos, a nomenclatura para a qual varia conforme a
simbólica alquímica, os comentários de Martinez ou Boehme estão implicados.
Sursum Corda
23
Notas para Publicação
Atenciosamente,
Do Conselho Editorial
João Pessoa,
Dezembro de 2017
24