À Cabeça Carrego A Identidade
À Cabeça Carrego A Identidade
À Cabeça Carrego A Identidade
orí como um
problema de pluralidade teológica
João Ferreira Dias
Investigador do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Este texto é dedicado a José da Silva Horta, pela orientação. E-
mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo pretende observar o sentido do orí, a cabeça, entre
os yorùbá da África Ocidental, dando conta do complexo problema de
natureza teológica subjacente à pluridimensionalidade discursiva dentro de
um quadro cultural descrito como yorùbá, quadro esse que compreende a
diáspora afro-brasileira com o Candomblé. Tal pluridimensionalidade - em
matéria de predestinação, fabricação e natureza do orí e, bem assim, pela
diversidade de entidades religiosas para as quais o bọrí, o ritual de
alimento à cabeça mítica, se realiza - se inscreve na dimensão proposta
por Berliner e Sarró de aprendizado e transmissão religiosas.
Palavras-chave: orí - predestinação - yorùbá - Candomblé - complexidade
teológica
ABSTRACT
This article intends to observe the meaning of orí (the head, among
the Yorùbá people of West Africa). The orí will be the point of departure of a
theological complex problem, which expresses plural discourses in the middle of the
so-called Yorùbá framework; in fact, a framework where Afro-Brazilian Candomblé
takes an important role. Such pluridimensionality is an "all-in-one" in the matter of
orí: predestination, fabrication and nature of orí, and the plurality of religious
entities quoted in the bọrí - the ritual of 'feeding' the mythical head. Thereby,
dealing with plural discourses in a same and specific matter means dealing with the
idea of learning and transmission of religion, as presented by Berliner and Sarró.
Keywords: orí - predestination - Yorùbá people - Candomblé - theological
complexity
O que fica do que passa
Não é por acaso que Stephan Palmié começa o seu artigo, "O trabalho cultural da
globalização iorubá",1 por perguntar se Samuel Johnson era, de facto, yorùbá, na
medida em que Johnson não passou, ipso facto, de um Sàró cristianizado que
somente em retrospetiva é passível de ser entendido como yorùbá, uma vez que
toda a sua vivência foi pautada pela cristianização dos povos falantes da língua
de Ọ̀yọ́ e suas derivadas e similares. Como Palmié demonstra, a partir do caso
dos Lucumí de Cuba, a pergunta é de extrema importância, na medida em que a
"iorubidade" (como ele chama) ou a "yorùbánidade" em termos nossos, é de facto
resultante de um processo intenso de laboração intelectual e, naturalmente, de um
processo de alteridade2 que infere na constituição do "eu" yorùbá, quer face aos
seus vizinhos africanos, quer face aos missionários cristãos, islâmicos do norte e
povos de destino da trata de escravos. Enquanto pastor da Church Missionary
Society (doravante CMS), Samuel Johnson observou e formulou a
identidade yorùbá em função de uma utopia cristã. Jamais foi seu intento construir
uma identidade africana em torno de padrões religiosos autóctones. Como J. D. Y.
Peel3 bem denota, a agenda político-cultural-religiosa de Samuel Johnson era fruto,
também, da necessidade de um africano cristão se sentir em casa numa terra da
qual os seus pais haviam sido levados como escravos. Johnson era um estranho na
sua terra ancestral.
Mas Samuel Johnson não é caso singular. Samuel Ajayi Crowther deve ser descrito
nos mesmos moldes. O primeiro bispo anglicano africano foi, a par de Johnson,
um proto-yorùbá, na verdade um Sàró inscrito no imaginário yorùbá pelo mesmo
processo de Johnson (a que Arthur Danto chama de "alinhamento retrospetivo" 4).
Educado em Inglaterra, Crowther é celebrado como um yorùbá, hoje em dia.
Todavia, tal como o seu contemporâneo Johnson, Crowther foi um missionário
cristão em terras africanas que, por mero acaso, era também africano.
Com Vocabulary of the Yoruba Language de 1843, Crowther dá um impulso
significativo à assunção do termo yorùbá como designador de identidade. Todavia,
o processo que o termo haveria de tomar nada teria a ver com os propósitos da
CMS. A "comunidade imaginada" 5 que Sigismund Köelle6 também preconizava, e
que, no fundo, era a aspiração da CMS, era dimensionalmente diferente do que
esta se tornaria. Uma Roma africana enquanto projeto ideológico estava muito
distante da intensa dinâmica das sociedades proto-yorùbá e daomeanas. Em
derradeira análise, a CMS teve o condão de dar o mote a um projeto de
reconfiguração identitária africanista (num sentido de valorização do "eu" africano).
O velho Eyo Country7 dá lugar ao território yorùbá. Aos poucos, as populações vão
assumindo para si essa nova identidade, cuja longa marcha Peel 8 bem palmilhou, o
que torna desnecessário o ato de caminhar sobre as mesmas pegadas.
A meios de todo um intenso processo de autopercepção e autofabricação, foi-se
dando uma maturação cultural comumente descrita como lagosian renaissance9 que
se expressava em contraponto com o avanço do Cristianismo e dos ideais da CMS,
ou seja, pela valorização da negritude e dos seus aspetos mais expressivos: os
trajes, a gastronomia, a língua e, necessariamente, a religião. É precisamente
quando o Império de Ọ̀yọ́ era já inexistente - Matory chama-lhe com sentido
poético de "O Império que já não é" (tradução do autor) - que a valorização do seu
ideal melhor se expressa. A nostalgia por uma "idade de ouro" em boa medida tão
utópica quanto o referencial cristão face a Jerusalém, 10 reflete bem, em todo o
caso, a procura por uma identidade alternativa em que a alteridade estava bem
patente.
Todavia, o que aqui importa, reconhecendo a construção histórica da
identidade yorùbá, é observar que tal se fez acompanhar de um processo análogo
em relação à religião. Ou seja, importa ter presente que o que constitui a "religião
tradicional yorùbá" é, na verdade, uma "tradição inventada", no verdadeiro sentido
hobsbawmiano.11 Dessa forma, o presente trabalho pretende dar conta de uma
pluralidade discursiva, no constante face ao orí, elemento de vitalidade religiosa em
ambos os lados do Atlântico. Tal pluralidade discursiva esbarra em certa tradição
quer académica quer presente no discurso das comunidades religiosas yorùbá-
descendentes, que é a ideia de que a ẹ̀sìn ìbílẹ̀,12 a "religião tradicional" nos termos
de Matory,13 oferece um discurso coerente e conceptualmente unitário. 14 Observar-
se-á tal facto a partir do complexo problema do orí, cujos contornos poder-se-iam
inscrever como neotradicionais.15 No seio do imenso diálogo necessário, procurar-
se-á dar resposta à questão: "Afinal, para quem é o bọrí?". Tal pergunta é, pois,
uma alegoria para a já mencionada pluridimensionalidade discursiva própria de
uma religiosidade dinâmica e fluida.
A vasilha da identidade e o complexo discurso teológico
No interior do Candomblé, religião brasileira de matriz africana (mas não só 54) que
resulta das reconfigurações e interpenetrações culturais africanas no Brasil, 55 a
pluralidade interpretativa está também patente, não estando independente da
própria dinâmica de "reafricanização" do Candomblé. 56 Antes de mais, observem-se
as palavras da Ìyálóòrìṣà57 Sussu, matriz kétu da Casa Branca do Engenho
Velho, que nos disse:
O bọrí é um ritual muito importante, é um começo no Candomblé,
representando uma ligação entre o "filho de santo" e o seu Òrìṣà, entre o
"filho de santo" e Òòṣàálá que é quem faz as cabeças. O "eborizado" passa
a ter um vínculo com o Òrìṣà, mas não tão forte como a iniciação, pois essa
tem o ẹ̀jẹ̀ e a navalha à cabeça. O bọrí é algo que deve acontecer algumas
vezes ao longo da vida, porque a cabeça precisa ir comendo para que a
vida do "filho de santo" vá correndo bem, para que ele esteja em paz e
harmonia com os Òrìṣà, em particular com Òòṣàálá, que é quem faz as
cabeças.58
Sua resposta é particularmente interessante porque reforça a ideia de destino já
conhecida, mas traz a ideia de que os orís são moldados por Òòṣàálá e, assim, de
que o bọrí é uma cerimónia para essa divindade, vulgarmente conhecida por Bàbá,
'pai', tomada como pai místico de todos os Òrìṣàs e elementos existentes no àiyé, a
terra-mundo. Ao mesmo tempo, coloca o bọrí como uma etapa dentro da vida
religiosa, o que confere um sentido diferente ao bọrí em contexto autóctone
africano, no qual o bọrí se expressa per se.59 Em contexto afro-brasileiro, surge
antes da iniciação propriamente dita, descrita na linguagem corrente do Candomblé
como "feitura" ou "fazer a cabeça", embora o bọrí esteja também nela presente. No
nível ritual, o bọrí foi pormenorizadamente analisado por Arno Vogel e
colaboradores,60 em contexto kétu,61 não sendo necessária sua descrição. Importa
ainda ver, nas declarações da interlocutora, a componente partilhada
no bọrí entre Òòṣàálá e o Òrìṣà do sujeito. Nesse sentido, pode-se considerar
que o bọrí no Candomblé apresenta uma quádrupla inscrição de natureza
religiosa:
Mas a pluralidade interpretativa não fica por aqui. Ao ser questionado sobre o que é
o bọrí, o Ògán Alágbé63 Vinicius de Santana, filho carnal do
falecido Bàbálóòrìṣà José Carlos Ibùalámo, natural da Bahia, e grande símbolo do
Candomblé paulista, respondeu:
Bọrí é o ritual específico para alimentar o orí, que é a Divindade que rege a cabeça
das pessoas. Na Sociedade Ilé Alákétu Asè Ibùalámo, o Bọrí é realizado com
algumas finalidades, sendo que, para cada uma dessas finalidades, os elementos
necessários que compõem o Bọrí podem variar.
Há Bọrí que tem por finalidade acalmar a cabeça de uma pessoa ou, por exemplo,
o Bọrí que é realizado em pessoas já iniciadas, antes de essas realizarem oferendas
para os seus Òrìsà. Sobre o último caso, o Bọrí sempre é realizado antes da
oferenda para o Òrìsà, pois acreditamos que, para o Òrìsà receber uma oferenda, é
necessário que antes o orí tenha sido alimentado. Essa premissa ocorre também
quando da iniciação, que, antes de o Òrìsà ser sacralizado na cabeça de uma
pessoa por meio do Osu, ela terá passado por um Bọrí, para que sua cabeça esteja
apta para receber a energia do Òrìsà.
O Bọrí é de fundamental importância no Candomblé, sendo que ele alimenta a
Divindade responsável por nossas escolhas, pelos caminhos que vamos seguir,
etc.64