Artigo Texto e Discurso

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DO TEXTO AO DISCURSO: POTENCIALIZANDO O PROCESSO DE


COMPREENSÃO DA LINGUAGEM

André Luiz Gaspari Madureira1


___________________________________________________________________
RESUMO

Neste artigo se propõe investigar as contribuições da análise discursiva para o


processo de compreensão textual. Para tanto, antes é apresentado um
posicionamento acerca da noção de texto, mediante os estudos bakhtinianos
concernentes ao dialogismo. Depois é feita uma apreciação sobre o discurso,
partindo-se da perspectiva da análise do discurso de linha francesa, fundamentada
pelo filósofo Michel Pêcheux. A proposta de conjugação dessas posições linguístico-
filosóficas se concentra na possibilidade de utilização de tais princípios para a
reflexão sobre maneiras de potencializar o processo de compreensão textual. Como
forma de aplicação desses princípios, é disposta uma análise textual presente em
um livro didático cujo papel, neste trabalho, é o de sinalizar de que maneira o
processo de compreensão é direcionado nesse tipo de suporte. A partir daí, segue-
se uma série de sugestões de como ampliar a perspectiva interpretativa diante do
texto, ancoradas nos aportes supracitados.

Palavras-chave: Análise do discurso. Dialogismo. Discurso. Linguagem. Texto.


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1 INTRODUÇÃO

Quando alguém procura interpretar um texto, normalmente o faz de maneira


intuitiva, buscando uma lógica entre o que é dito e o que se intenciona dizer. O
resultado é a impressão de se ter chegado ao seu sentido próprio, à compreensão
do significado específico, proporcionado pelo ato de enunciação.
A proposta gerada por meio dessa prática subjetiva de interpretação leva a
crer que compreender o texto significa desvendar o seu sentido. No entanto, este,
não raro, aparece como óbvio, presentificado no próprio corpo dos vocábulos, na
materialidade linguística. Em outras palavras, o sentido se apresenta como evidente,
cabendo ao leitor/ouvinte o papel de conhecer a estrutura gramatical (morfológica,
sintática, semântica...) para, a partir daí, passar a identificá-lo.
Por essa lógica, caberia ao indivíduo o papel de adquirir conhecimentos
suficientes acerca da gramática de uma língua para viabilizar a percepção do
sentido da linguagem, instituindo, assim, uma relação passiva de interpretação (o

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que é, no mínimo, contraditório). Isso porque o significado é tomado como se


realmente estivesse já lá, imutável, invariável, pronto para ser percebido, sem que
houvesse necessidade de maiores esforços para perceber sentidos alheios ao
pretendido pelo locutor.
Permeando esse campo de percepção, a prática docente por vezes instituiu,
ao processo de interpretação textual, dois objetivos básicos: primeiro, o de
reconhecer as peculiaridades linguísticas que compõem um determinado texto;
segundo, identificar, a partir do reconhecimento dessas peculiaridades, o sentido do
texto. Isso leva a perceber, por um lado, que o texto passa a ser tratado como
sequência linguística que exprime sentido e, por outro, que esse sentido lhe é
inerente, cabendo ao leitor/ouvinte decodificá-lo e identificá-lo.
Se essa forma de análise coloca a materialidade linguística e o sentido geral
do texto no centro da observação, deixa descoberto um terreno discursivo instituído
por materialidades, terreno este que fornece subsídios relevantes para o trabalho de
compreensão textual. E é justamente para projetar contribuições a esse campo de
abordagem que aqui se apresenta uma reflexão a respeito de como o texto vem
sendo abordado em livros didáticos e de como enriquecer essa prática de análise.
Mas antes é preciso pensar na relação possível entre texto e discurso.

2 DO TEXTO AO DISCURSO

Antes mesmo de a Linguística se tornar científica por meio dos postulados de


Saussure (2003), a prática de interpretação de texto levava em consideração duas
questões principais: a transparência da linguagem e o sujeito visto como único e
dono do dizer.
Nesse cenário, observava-se o sentido como produto da intenção do falante,
implicado no sistema comunicativo, e o papel de decodificação do leitor/ouvinte.
Esse processo de comunicação foi posteriormente retratado por Jakobson (2008, p.
123). Nele, o remetente codifica a mensagem e a envia ao destinatário, o qual tem,
por função, que decodificar a mensagem para atingir o sentido proposto:

O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser


eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (...),
apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de
verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao

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destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da


mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma conexão
psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a ambos a
entrarem e permanecerem em comunicação.

Se a mensagem é codificada, o que se espera do destinatário é uma


decodificação eficiente, ou seja, uma decodificação que lhe permita identificar o
sentido proposto, a mensagem remetida. Caso o sentido depreendido seja outro,
não raro é acusada uma má decodificação, uma má interpretação por parte do
destinatário.
Nesse sistema, o texto se configura como a expressão do pensamento do
indivíduo, tendo a língua como código e, por isso, transparente, já que pode ser
atravessada (decodificada) para se chegar ao sentido pretendido. Essa forma de se
pensar sobre a língua e o texto proporciona um ambiente mecanicista em que, ao
destinatário, diante de sua postura de decodificador, cabe desempenhar o papel de
chegar até a mensagem proposta. Essa, por sua vez, é a expressão do pensamento
do remetente, o que sinaliza para a existência de um locutor caracterizado por ser
dono do dizer e fonte do sentido.
Com esses conceitos de língua e texto, vislumbra-se perceber, mediante a
transparência da linguagem, o pensamento do locutor, levando a prática de leitura a
um plano subjetivo. Dessa forma, as relações entre língua, ideologia e história se
diluem em prol de uma abordagem que põe os anseios do indivíduo no centro da
questão do sentido. O resultado obtido é o silenciamento dessas relações e a
desconsideração dos efeitos de sentido que emergem do jogo da linguagem –
mesmo sem a anuência do locutor – e que passam a refletir na própria sociedade.
Diante da necessidade de repensar essas práticas e, com isso, a ideia de
texto, surge a percepção dialógica de Bakhtin ([1929]1998) sobre a linguagem e o
gênero textual. O posicionamento dialógico acerca da linguagem se coaduna à
condição de gênero textual, visto que este, nos postulados bakhtinianos, não é tido,
em sua constituição, por um viés individual, mas interindividual. Os gêneros só
existem enquanto tais na relação coletiva em determinada época, caracterizando-se
como produto social. No âmbito da comunicação, servem para estabilizá-la,
funcionando como “entidades sócio-comunicativas e formas de ação social” que não
podem ser contornadas (MARCUSCHI, 2007, p. 19).

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O texto, portanto, se caracteriza como uma realização dialógica, coletiva, e


deve ser remetido às condições sociais em que ocorre. Sob esse ponto de vista, a
análise do texto pode ser potencializada com a contribuição dos estudos oriundos da
análise do discurso de linha francesa (doravante AD), que surge com a proposta de
instituir um plano de leitura diferente, originário de rupturas voltadas principalmente à
linguagem, ao sujeito, ao discurso e à ideologia. A ideia é implementar uma teoria
não subjetiva de leitura e, com isso, aproximar a prática de observação do sentido
de um terreno mais materialista e, por consequência, menos subjetivo.
Essas rupturas – como o próprio termo já sinaliza – visam romper com certos
modos de se conceber esses termos, e não relegá-los a outro terreno de análise. Na
AD, tanto a linguagem quanto o sujeito, o discurso e a ideologia tornam-se
elementos fundamentais para a sua constituição. No entanto, não se inscrevem
como antes. A linguagem não é mais vista como transparente, e sim por meio da
opacidade que lhe é inerente; o sujeito se distancia da propriedade física – ou de ser
termo essencial da oração –, para se relacionar ao lugar social de onde emanam
dizeres; o discurso não se caracteriza mais como o produto eminentemente
linguístico do ato de fala de alguém, e sim como efeitos de sentido entre
interlocutores; a ideologia deixa de se circunscrever ao campo das ideias e passa a
ser pensada em sua condição materialista, ao remeter a relações de classe.
Nesse entremeio teórico, o texto se apresenta como lugar de interação cuja
constituição não se dá apenas por meio da linguagem, mas também da história, da
sociedade, da ideologia. Sobre sua condição dialógica, Koch (2006, p. 17) esclarece:

(...) na concepção interacional (dialógica) da língua, na qual os sujeitos são


vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser considerado o
próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que –
dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Dessa forma há
lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos,
somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto
sociocognitivo dos participantes da interação.

Por essa concepção, a análise de texto recebe contribuições da perspectiva


do discurso, propiciando uma abordagem que vai além das relações gramaticais.
Junto a aspectos da textualidade (principalmente aos que estabelecem relações de
coesão e coerência), condições sócio-históricas e ideológicas passam a permear o
plano de interpretação de texto, tornando-o, assim, um terreno fecundo e propício a

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serem estabelecidas percepções mais complexas – e, por isso, menos evidentes – a


respeito do intrincado jogo da linguagem.

3 O TEXTO NO LIVRO DIDÁTICO

Como maneira de pensar sobre propostas de intervenção na leitura,


presentes em livros didáticos, foi selecionada uma tirinha, produzida pelo cartunista
Luís Augusto Conceição Gouveia. Na narrativa, Lucas, um personagem mudo,
passa a refletir sobre uma circunstância corriqueira. A tirinha se apresenta no livro
didático Diálogo: língua portuguesa, 6º ano (BELTRÃO e GORDILHO, 2009, p. 160).
Para introduzir os quadrinhos da tirinha, no livro didático é indicado o seguinte
comando: “5. Leia esta outra tirinha. Nela, o personagem Lucas ajuda o leitor a
refletir sobre algumas das ações feitas pelo homem no cotidiano”. No decorrer da
tirinha, Lucas, ao caminhar pela rua, se depara, no primeiro quadrinho, com um
bueiro aberto. No segundo, pensa: “Como deixam um bueiro aberto?”. No último,
conclui, sempre sob forma de pensamento: “Não sabem que tem um país andando
às cegas por aí?”
Depois da apresentação da tirinha, aparecem estas perguntas:

a) O que é narrado na tirinha?


b) O que e em quem o personagem pensa nesse momento?
c) No segundo quadrinho, Lucas emprega o verbo ‘deixam’, na 3ª pessoa do
plural. É possível identificar, na oração, o que ou quem é responsável pela
ação expressa pelo verbo?
d) Que forma verbal, empregada por Lucas no terceiro quadrinho, revela
que ele não quer determinar o sujeito responsável pela ação?
(BELTRÃO e GORDILHO, 2009. p. 160).

Tendo em vista a necessidade de se observar a reflexão sugerida no livro


didático, utilizou-se o exemplar do professor. A partir daí, foi possível acessar as
propostas de resposta, as quais são apresentadas na sequência:
 Proposta de resposta para a questão a): “Lucas, ao andar na rua, vê um
bueiro sem a tampa e se surpreende, se questiona”.
 Proposta de resposta para a questão b): “Ele pensa nas pessoas que agem
de forma inconsequente e que não se preocupam com o que possa acontecer
com o seu semelhante”.

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 Proposta de resposta para a questão c): “Embora exista um sujeito


responsável pela ação expressa pelo verbo, não é possível identificá-lo na
oração”.
 Proposta de resposta para a questão d): “’Sabem’”.
A relação pergunta/resposta na questão a) evidencia a necessidade de se
estabelecer uma leitura que tome o texto em seu sentido amplo. O ato de ver o
bueiro aberto – presente no primeiro quadro – não está descrito em palavras, e sim
por meio da imagem de Lucas olhando para o bueiro, mediante o texto não-verbal.
Já a ideia de surpresa e de questionamento é percebida a partir da leitura das
próprias palavras, no texto verbal.
No par pergunta/resposta da questão b), procura-se identificar o alvo do
pensamento de Lucas, identificação esta que se direciona à circunstância prática da
vida corriqueira do ser humano. Remete-se, assim, ao comportamento
inconsequente como algo nocivo para a manutenção do bem-estar das pessoas,
como é o caso concreto de se deixar um bueiro aberto.
Já na relação pergunta/resposta na questão c), para a análise do sujeito ao
qual Lucas se refere, no segundo quadro, instaura-se o posicionamento normativo.
Diante desse ponto de vista, quando o verbo está na terceira pessoa do plural, sem
que qualquer elemento na frase se configure como núcleo do sujeito, dá-se a
ocorrência do sujeito indeterminado.
Novamente, essa perspectiva normativa da língua ocorre no par
pergunta/resposta na questão d), ratificando a posição prescritiva acerca da
identificação do sujeito indeterminado.

4 INSUFICIÊNCIAS NA RELAÇÃO PERGUNTA/RESPOSTA

Apesar da busca por certo grau de compreensão textual, as propostas de


pergunta/resposta apresentam insuficiências que devem ser evidenciadas e
discutidas para que se estabeleçam ações direcionadas à potencialização da
atividade interpretativa.
Uma dessas insuficiências se volta à ausência de uma ação efetiva que
invista no desenvolvimento da abstração por parte do leitor. O que se observa, na
análise presente no livro didático, é a evidenciação do que ocorre na prática, do

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acontecimento descrito na tirinha. Nesse sentido, a proposta é centralizada em


descrever apenas o que está posto, caracterizando a atividade de compreensão de
texto como uma tarefa de afirmação do óbvio.
A prática da afirmação do óbvio tende, por sua vez, a silenciar questões não
percebidas nesse tipo de análise e, por isso, a excluir um elemento de motivação do
ato de leitura: a percepção do que subjaz à linguagem. Tal prática leva a crer na
transparência da linguagem, na evidência do sentido e no processo de decodificação
como realidades (e não impressões), as quais influenciam na concepção de leitura,
tomando-a como um processo eminentemente mecânico de identificação do sentido.
Desse modo, se, por um lado, a primeira relação entre pergunta e resposta recobre
a circunstância da enunciação, por outro, deixa descoberto um campo abstrato do
processo interpretativo, um campo que tende a propulsionar a percepção crítica e
analítica.
Em um movimento de coesão textual, o segundo par de pergunta e resposta
ratifica os princípios descritos no primeiro. Ao se sugerir a revelação do que o
personagem pensa, a linguagem é projetada como produto do pensamento do
sujeito, tornando-o a fonte do dizer, o ponto de constituição dos sentidos. Por essa
posição, interpretar significa acessar o sentido proposto pelo sujeito, o que implica a
impossibilidade de transcender os limites subjetivos, a custo de realizar uma
interpretação equivocada. Na própria proposta sugerida, o pensamento de Lucas
sinaliza exclusivamente para a constatação da realidade circunstancial, pontuando o
comportamento inconsequente das pessoas que não pensam no próximo.
Esse pensamento está reproduzido linguisticamente. No entanto, não é
capaz, por si só, de recobrir toda a impressão que um sujeito tem acerca de uma
determinada situação. Aliás, a reprodução linguística do pensamento de Lucas se
constitui como uma imagem acústica que seria reproduzida em sua fala – mas não o
é, devido ao fato de ser mudo –, e não enquanto a totalidade de impressões que, até
certo ponto, são inacessíveis ao próprio sujeito, cuja constituição psíquica se dá não
só com o consciente, mas também com o inconsciente.
Diante disso, surgem ainda os seguintes questionamentos: primeiro, como se
pode identificar a impressão do pensamento do personagem se este é um
personagem (com perdão da repetição enfadonha!), resultado da ação inventiva de
um autor? Segundo, por que não atentar realmente para o fato de que se trata de

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um gênero textual específico (tirinha) e mobilizar parte de suas condições de


produção na análise (o fato de que a tirinha foi feita por um cartunista, que é
publicada em um site, que se destina a um público mais amplo.)?
Com as duas últimas propostas de pergunta e resposta, há a impressão de
que se busca trabalhar o conhecimento normativo de forma contextualizada, porém,
dá-se apenas atenção à estrutura do vocábulo, o que limita a interpretação à
apreciação morfológica. Nessa perspectiva, o contexto abordado se restringe ao
normativo, o que inviabiliza analisar os termos linguísticos pela função que
desempenham em determinadas estruturas. Exclui-se, assim, uma oportunidade de
transcender, na proposta do livro didático, os limites prescritivos e de oportunizar
uma análise funcional de aspectos morfossintáticos.
O que ainda se observa, nessas duas propostas, é o trabalho equivocado de
análise que, circunscrita à apresentação da forma verbal na frase, gera a ideia de
indeterminação do sujeito. No entanto, na resposta da segunda questão, determina-
se o sujeito: “pessoas que agem de modo inconsequente”. Portanto, é possível
identificar quem se responsabiliza pela ação verbal (“as pessoas que agem de modo
inconsequente”!), evidenciando uma contradição entre as respectivas respostas
sugeridas. Desse modo, fica evidente que não se trata de uma análise
contextualizada, e sim “pretextualizada”, a partir da qual o texto se torna apenas um
pretexto para a identificação do óbvio e para a apresentação de posições
normativas.
Diante das insuficiências pontuadas, é preciso buscar meios de potencializar
o processo de compreensão textual. Segue-se, pois, uma proposta de reflexão,
baseada na análise do discurso de linha francesa e de pressupostos bakhtinianos,
cujos resultados podem servir para tornar a prática de leitura um evento de
descoberta e de desenvolvimento do senso crítico.

5 PERCEPÇÕES DISCURSIVAS DO TEXTO

Tratar de percepções discursivas subjacentes ao texto implica estabelecer um


vínculo entre a linguagem e sua exterioridade, de modo que sejam percebidas as
condições a partir das quais o dizer se materializa. Por esse viés, o contexto se

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constitui como um dos elementos que propiciam a constituição de determinados


efeitos de sentido, o que o torna fundamental na atividade de compreensão de texto.
Para resgatar parte do contexto situacional, é possível recorrer ao próprio livro
didático, que apresenta informações dessa natureza, caracterizando tanto o lugar
social do autor, quanto os suportes em que as tirinhas se materializam:

Luís Augusto Conceição Gouveia nasceu em Salvador (BA) em 1971. Criou


o Fala Menino!, uma turma de personagens cujas travessuras são contadas
em tirinhas publicadas em jornais de grande circulação em alguns estados
brasileiros e, também, em seus livros. Seu trabalho foi premiado várias
vezes por apresentar uma reflexão sobre problemas da atualidade. Lucas,
personagem da tirinha, é mudo e dialoga com o mundo dos adultos de um
jeito muito especial, bem-humorado. (BELTRÃO e GORDILHO, 2009, p.
160).

No plano discursivo, a análise se distancia da percepção de pensamentos, de


intenções do indivíduo, mesmo porque não se pode garantir materialmente o valor
dessas questões (O indivíduo realmente disse o que pensou? Mas, se ele garantir
que não quis dizer? Será que o que foi dito reflete seu “real” pensamento?). Por isso,
o que interessa discursivamente não é identificar o que pensa Luís Augusto
Conceição Gouveia, mas de que lugar social ele se coloca.
Desse modo, as condições de produção destacam o lugar social de onde
emana o dizer: o lugar social de escritor, de cartunista. Os suportes em que o texto
se materializa são “jornais de grande circulação” e livros. A identificação entre texto
e gênero possibilita pensar acerca dos aspectos da textualidade, das relações de
sentido proporcionadas por critérios de coerência e de coesão, passíveis de serem
identificados na tirinha. A partir daí, tanto a funcionalidade, quanto o caráter formal
do texto passam a fazer parte dos elementos de análise. Além disso, os efeitos de
sentido que emanam se direcionam à critica social, instaurada por meio do humor,
validados no próprio contexto de premiação.
Esses dados, apesar de serem, até certa medida, mobilizados no livro
didático, não são devidamente aproveitados na análise nele apresentada. Prova
disso é que, na questão a), é simplesmente proposta a reprodução linguística da
ação narrada. O fato desses materiais – como a tirinha – permearem suportes que
os propagam nacionalmente, aliando-se a isso o fato de terem recebido vários
prêmios devido à propriedade de disseminar reflexões acerca do comportamento
social, já se coloca como um indício de problematização. Por isso, circunscrever a

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análise a um plano superficial, pautado na descrição/paráfrase do que está posto,


inviabiliza a investigação acerca dos efeitos de sentido mais reflexivos, evidenciados
pelo comportamento da própria sociedade (como, por exemplo, o de referendar o
valor crítico, sócio-político das obras por meio de premiações).
Na AD, a linguagem é o lugar de materialização do discurso. Este, por sua
vez, é onde a ideologia se materializa, tendo em vista que passa a ser tida não mais
como ideia, e sim por meio da definição de Formação Ideológica (FI). De acordo com
Pêcheux e Fuchs (1997, p. 166), “cada FI constitui um conjunto complexo de
atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se
relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com
as outras”. Por esse viés, é percebida a partir da práxis social, das relações
interpessoais, dos conflitos de classe. A conjuntura sócio-histórica, portanto, sinaliza
para a presença da ideologia. Desse modo, abordá-la implica analisar as relações
sociais, lançando-se à reflexão de como propiciam certos efeitos de sentido. É dessa
maneira que se concebe a ideologia enquanto materialidade do/no discurso.
No entanto, o acesso a esse campo de materialidades se dá por meio da
linguagem. Nessa, encontram-se pistas, indícios da presença de discursos e das
relações sociais que entram em confluência para a instauração de certos efeitos de
sentido. No plano da AD, a configuração do signo linguístico, proposta por Saussure,
recebe um deslocamento. Para Pêcheux (1995, p. 262), “uma palavra, uma
expressão ou uma proposição não têm sentido que lhes seria próprio, preso a sua
literalidade”. Não se pode, portanto, conceber a relação estrita entre significante e
significado. A palavra se torna desprovida de significado, até que esteja voltada a
uma formação discursiva. Assim, a relação entre palavra e (efeitos de) sentido se
estabelece diante do contexto em que o dizer se materializa.
Diante desses critérios de investigação, parte-se para o reconhecimento tanto
de pistas linguísticas (e, nesse caso, é interessante recorrer às condições de
textualidade), como de condições situacionais e sócio-históricas. Na tirinha, os
enunciados “Como deixam um bueiro aberto?” e “Não sabem que tem um país
andando às cegas por aí?”, aliados às imagens, revelam um contexto situacional
pelo qual passa o personagem Lucas, em que o bueiro representa um buraco escuro
no qual as pessoas podem cair. No jogo de paráfrase e polissemia, essa
circunstância (re) significa discursivamente a expressão popular “entrar pelo cano”

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que, nas condições sinalizadas, se coaduna a um efeito de sentido negativo,


remetido a um teor de insatisfação.
Ao passar para o reconhecimento de pistas linguísticas, evidencia-se que os
termos “país” e “às cegas” expandem a análise para além da mera representação
circunstancial. Depois de questionar o porquê de o bueiro ser deixado aberto, no
terceiro quadro, há a impressão de que Lucas irá pontuar que alguém pode cair
nele, a tomar pelo início do segundo enunciado: “Não sabem que (...)”. No entanto, a
expectativa é quebrada pela continuação do dizer: “(...) tem um país andando às
cegas por aí?”. Numa tentativa de paráfrase, observa-se que não se trata de
pessoas cegas andando por aí, e sim, “um país andando às cegas”.
Esse jogo de sentidos suscita a instauração de diferentes planos de leitura.
Por isso o texto pode ser lido pelo viés pontual, atribuindo-se responsabilidade a
“pessoas que agem de forma inconsequente”, ou por uma perspectiva sociopolítica,
remetendo, assim, aos dirigentes do “país” que o conduzem “às cegas” e, portanto,
ao caráter ineficiente das gestões públicas. Quando se percebe o efeito
proporcionado pelo segundo plano de leitura, instaura-se a perspectiva humorística
da tirinha. Isso se deve ao deslizamento de sentidos que ocorre, bem como à
reinscrição da ideia de comportamento inepto do político brasileiro, que está
presente no imaginário social. A própria escolha das palavras gera tal deslizamento
e se coaduna com o lugar social de onde se fala, bem como ao contexto de
instauração do dizer. Desse modo, na tirinha são instaurados efeitos de sentido
sócio-políticos, remetendo à ineficiência da gestão pública no Brasil.
Por essa análise, não está em questão se o personagem ou o autor pensaram
nesses efeitos, mas que são possíveis, devido às condições sócio-históricas e
ideológicas em que o dizer se constitui. Nessa perspectiva, apresenta-se uma
alternativa de se trabalhar com questões gramaticais de forma mais coerente, por
meio da reflexão acerca das implicações de substituir “país” por “pessoas” e “às
cegas” por “cegas”. Nesse segundo par de palavras, há, por exemplo, modificação
da classificação morfológica e sintática das expressões, causada pelas condições
em que aparecem nos dizeres (seja no estabelecido na tirinha ou no parafrástico
sugerido). Como se vê, trabalhar a variação de sentidos em conjunto com a relação
morfossintática estabelecida no dizer e com o contexto sócio-histórico é um caminho
possível para a reflexão contextualizada sobre a gramática.

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Os conhecimentos morfossintáticos, mediante essa análise, são acionados


em prol de uma abordagem funcional, relacionados ao contexto de constituição do
dizer. As condições de textualidade estabelecem um vínculo com as relações de
discursividade, proporcionando um ambiente de leitura menos óbvio e, portanto,
mais atraente para quem busca se surpreender diante do jogo da linguagem.

6 CONCLUSÃO

Ir do texto ao discurso não significa causar uma ruptura que anule uma
perspectiva de análise em favor da outra. Ao contrário, a passagem do texto ao
discurso deve integrar ambos os domínios, num movimento de complementaridade.
A integração entre estudos de texto e discurso já vem sendo debatida e
compreendida como uma postura positiva para o ensino. Ao abordar a questão
histórica da crise do ensino de língua, Gregolin (2007, p. 54) salienta que, como um
dos “principais ganhos dessa crise está a idéia, hoje, de que a língua deve ser
ensinada sob a perspectiva discursiva”. Desse modo, as condições de textualidade
recebem um acréscimo com a incorporação da ideologia, dos lugares sociais, das
arenas dialógicas em que diferentes vozes digladiam e o complexo movimento
interdiscursivo se faz presente.
Nesse cenário, compreender o texto se torna uma atividade investigativa a
partir da qual não há lugar para a mera reprodução do que está evidente na
linguagem. A percepção de aspectos formais não se encerra em si mesma, e a
pesquisa sobre o contexto ganha funcionalidade. Isso leva a potencializar a ação
interpretativa, a desenvolver no leitor a propriedade de amarrar os nós da/na
linguagem.
Ao serem identificadas as relações linguísticas que compreendem a estrutura
do dizer, sinaliza-se para indícios de silenciamentos cuja propriedade é integrar o
funcionamento interdiscursivo e, com isso, autorizar a instauração de certos efeitos
de sentido. Assim, os elementos sócio-históricos e ideológicos passam a funcionar
em conjunto com a estrutura linguística, contribuindo para se instituir uma prática de
leitura eficiente, na qual o contexto é realmente mobilizado em favor da análise, e
sem mais pretextos!

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NOTAS

1
Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), especialista em
Estudos Linguísticos e Literários, mestre em Letras e Linguística e doutor em Letras pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Linguística da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), Campus XVI.

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FROM TEXT TO SPEECH: EMPOWERING THE PROCESS OF LANGUAGE
UNDERSTANDING

ABSTRACT

In this article it is proposed the investigation of the contributions of discourse analysis


for the process of textual comprehension. For that, a concept of textual
comprehension process through Bakhtinian dialogism is presented. Then an
appreciation of the discourse is carried out through French orientation based on the
concept of the philosopher Michel Pêcheux. The proposal of the conjugation of such
philosophical, linguistic positions lays on the possibility of using those concepts to
find ways to strengthen the process of textual comprehension. In order to apply this
principle, it is made available a textual analysis of a didactic book whose role in this
article is to signal which way the process of comprehension takes by using this kind
of support. From this point on, a set of suggestions follows so as to increase the
interpretative perspective of the text based on the above supports.

Key words: Discourse analysis. Dialogism. Discourse. Language. Text.


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ANEXO

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 38, n. 64, p. 35-49, jan./jun. 2013.
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