Um Retorno Aoracy Nogueira - 2022

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Revista do PPGCS – UFRB – Novos Olhares Sociais | Vol. 5 – n.

1 – 2022

UM RETORNO A ORACY NOGUEIRA? A HETEROIDENTIFICAÇÃO


FENOTÍPICA NAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS

A RETURN TO ORACY NOGUEIRA? PHENOTYPIC HETEROIDENTIFICATION


IN AFFIRMATIVE POLICIES

Bruno de Oliveira Ribeiro1

RESUMO
O objetivo deste artigo é avaliar a apropriação do conceito de preconceito de marca, de
Oracy Nogueira, como justificativa acadêmica na defesa da heteroidentificação
fenotípica nos procedimentos de seleção de negros por ação afirmativa. O texto articula
resultados de uma tese de doutorado em Ciências Sociais e discute o uso do
conhecimento científico na construção de um consenso social sobre como definir quem
é negro no Brasil. Verifica-se um uso estratégico do conceito de preconceito de marca
em detrimento de uma apropriação limitada da obra de Oracy Nogueira e uma
contribuição para um fechamento discursivo em torno da objetividade das relações
raciais brasileiras.

PALAVRAS-CHAVE: heteroidentificação fenotípica; Oracy Nogueira; ação


afirmativa; identidade negra.

ABSTRACT
The goal here is to evaluate the concept appropriation of brand prejudice, by Oracy
Nogueira, as an academic justification for the defense of phenotypic hetero-
identification in the procedures for the selection of blacks by affirmative action. This
article articulates results from a doctoral thesis in Social Sciences and it discuss the use
of scientific knowledge in building a social consensus on how to define who is black in
Brazil. There is a strategic use of the concept of brand prejudice over a limited
appropriation of the work of Oracy Nogueira and also a contribution to a discursive
closure around the objectivity of Brazilian race relations.

KEYWORDS: phenotypic heteroidentification; Oracy Nogueira; affirmative action;


black identity.

1
Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília (2020) e professor na Universidade de Rio Verde, Goiás
(UniRV). E-mail: [email protected] e ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0757-0415.
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INTRODUÇÃO

A maior parte das universidades públicas brasileiras adotou a heteroidentificação


fenotípica como técnica de seleção do sujeito de direito negro das políticas afirmativas.
Os procedimentos estão normatizados, em especial, pela Portaria Normativa (PN) n.º 4,
de 6 de abril de 2018, que regulamenta o procedimento de heteroidentificação
complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das
vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei n.º 12.990, de 9 de
junho de 2014. Essa lei reserva 20% das vagas a negros em concursos públicos federais.
As universidades públicas, no geral, adotaram procedimentos similares aos indicados
pela PN n.º 4.
A construção do discurso de legitimação da heteroidentificação fenotípica como
alternativa técnica e política viável para solução do “problema” de identificação racial
nas políticas afirmativas do Brasil deve ter, no mínimo, três direcionamentos. Primeiro,
os vínculos entre a heteroidentificação e a metodologia de pesquisa do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE; segundo, a judicialização das políticas
afirmativas na intenção de gerar maior segurança jurídica por parte das instituições
afetadas e do Movimento Negro; por fim, a referência teórica/estratégica mais
recorrente na defesa da heteroidentificação como procedimento padrão nas ações
afirmativas (AAs): Oracy Nogueira e sua concepção de preconceito de marca, como
modelo típico-ideal brasileiro. Este artigo dedica-se a esse terceiro ponto e articula
resultados de uma pesquisa de doutorado de escopo maior2 (RIBEIRO, 2020).
A discussão sobre heteroidentificação fenotípica no Brasil está ancorada, em
parte, em fundamentos jurídicos, cuja necessidade de maior objetividade na definição
das identidades negras exige maior padronização e, invariavelmente, neste caso, a cor
torna-se o signo por excelência do pertencimento racial e dos modelos de validação
aceitos como legítimos. No geral, são subjetivamente despolitizantes e simplificadores
das identidades raciais e revelam aspectos da razão negra (MBEMBE, 2014) brasileira e
seu processo de racialização, que, sob o efeito da judicialização burocratizante das
identidades negras nas AAs, preservam mais do que contestam esses valores e práticas.
2
A tese investiga e analisa a ascensão à condição de consenso nacional sobre o procedimento de
heteroidentificação fenotípica nas políticas de ações afirmativas das Instituições Públicas de Ensino
Superior – IPES e, especialmente, seus impactos sobre o conceito de identidade negra no Brasil
contemporâneo.
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Entendemos que o fundamento do direito e da justiça está nas relações sociais e


seus conflitos pela hegemonia que institui os quadros normativos. As AAs são reflexos
de disputas entre grupos sociais de posicionamentos distintos que não se encerraram
com a garantia de constitucionalidade dessa política. Essa decisão é sintomática de uma
compreensão que rompe com a neutralidade do Estado em face das desigualdades
raciais e demonstra, ao mesmo tempo, a produção social de um entendimento de justiça
mais intervencionista.
Essa compreensão que reconhece o papel do social/cultural na construção da
realidade e do conhecimento também deve impactar a compreensão sobre a natureza.
Interessam-nos os efeitos recíprocos entre conhecimento científico e realidade. A
discussão sobre a heteroidentificação fenotípica nos levará, invariavelmente, a uma
reflexão sobre a relação entre ciência, natureza e cultura, pois pretendemos avaliar como
a heteroidentificação fenotípica vem sendo defendida no âmbito científico no Brasil, ou
seja, de que forma intelectuais vêm defendendo o modelo procedimental entre seus
pares. Diante da notoriedade das referências que vêm sendo feitas a Oracy Nogueira,
pretendemos, primeiro, comentar aspectos relevantes da obra desse sociólogo brasileiro
e, posteriormente, a apropriação de parte dessa obra para defender a heteroidentificação
fenotípica nas políticas afirmativas no Brasil.
Utilizamos o conceito de fechamento discursivo, de Stuart Hall, para uma crítica
à noção de Oracy Nogueira acerca das relações raciais. Segundo Stuart Hall (2003), a
prática discursiva do racismo possui lógica própria, legitimando e justificando
diferenças e exclusões por meio dos termos biológicos e naturalizantes, que, por sua
vez, geram um efeito de fechamento discursivo, um enclausuramento da situação. Na
percepção do autor, “em termos discursivos o racismo possui uma estrutura metonímica
– as diferenças genéticas ocultas são deslocadas ao longo da cadeia de significantes
através de sua inscrição na superfície do corpo, o qual é visível” (HALL, 2003, p. 102,
nota 16).
Neste trabalho, defendemos que o fechamento discursivo é fruto da afirmação
categórica que se materializa nas afirmações: “raça é uma construção social/cultural” e
“o racismo brasileiro é de marca”. A “marca”, sobretudo o fenótipo, é um dado também
de origem biológica e não desaparece a partir da afirmação, verdadeira, de que é a
sociedade que atribui significado social de inferioridade a uma “marca”.

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ORACY NOGUEIRA: TRAJETÓRIA E CONCEITO

Filho de professores, Oracy Nogueira (1917-1996) nasceu em Cunha, São Paulo.


Formou-se na Escola Livre de Sociologia e Política da USP nos anos 1940, onde e
quando se aproxima do sociólogo Donald Pierson3 (1900-1995), um dos doutorandos de
Robert Park, da famosa Escola de Chicago. Oracy Nogueira vincula-se teoricamente aos
estudos de comunidade, o que o distingue dos que fizeram maior sucesso no projeto
Unesco, em especial Florestan Fernandes e Roger Bastide, ambos vinculados ao estudo
das relações raciais, que entendiam ser uma maneira de entender e estudar as estruturas
das classes sociais brasileiras e sua história. Foram eles os coordenadores da pesquisa
em São Paulo. A cidade também foi lócus das pesquisas de Oracy Nogueira, que
também participou do Projeto Unesco (CAVALCANTI, 1999).
Oracy Nogueira e sua obra escapam à crítica mais comum direcionada aos
autores ligados ao Projeto Unesco: a submissão das diferenças raciais à proeminência da
classe social, ou seja, a subsunção da raça à estrutura social. Nogueira distingue e
intersecciona ambas as relações, destacando aspectos específicos dos negros para
ascensão social, como demonstra a seguinte citação:

Se, em última instância, é a estrutura que engendra ou dá margem à


elaboração da ideologia – de que o preconceito racial é parte – a
ideologia, por sua vez, constitui um dispositivo sustentador da
estrutura, com a qual coexiste em relações dialéticas, ou seja, de
influências recíprocas (NOGUEIRA, 1985, p. 24).

No entanto, a presença marcante de Oracy Nogueira na defesa da


heteroidentificação fenotípica é certamente devida à distinção entre preconceito de
marca e preconceito de origem (NOGUEIRA, 2006), construída num quadro
comparativo entre Brasil e Estados Unidos e seus tipos diferentes de preconceito. Esses
conceitos emergem como tipos ideais, no sentido weberiano, a serem testados na
realidade. Tradicionalmente, ao se traçarem quadros comparativos semelhantes entre
Brasil e EUA, há uma tendência a suavizar o racismo brasileiro em face do racismo
estadunidense, a exemplo da obra de Gilberto Freyre, mas Nogueira esforça-se para
3
Donald Pierson (1900-1995) permaneceu na Bahia entre 1935 e 1937, período em que produziu sua tese
de doutoramento, Negroes in Brazil: A study of race contact at Bahia, publicada no Brasil em 1943 com o
título Brancos e Pretos na Bahia, no ano de 1942. Pierson é reconhecido no Brasil pelas teses desse livro
sobre as relações raciais e pelas inovações metodológicas trazidas da Escola de Chicago.
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distanciar-se dessa perspectiva, sobretudo ao apresentar as especificidades de ambos os


preconceitos.
Oracy Nogueira (1985; 2006) defende que o Brasil é caracterizado pelo
preconceito de marca, no qual a identificação racial baseia-se principalmente na
aparência, na marca, e não na descendência. A “marca” é, simbolicamente,
representativa de um dos componentes de status no Brasil, mas, se somada a outros
indicadores favoráveis, especialmente classe social, ela ainda é um “fator de
incongruência de status”. Sua postura comparativa reconhece a necessidade da crítica à
democracia racial brasileira4 e distingue fatores raciais e fatores de classe social no
racismo brasileiro. Evocando pesquisas de dois antropólogos norte-americanos (Harris e
Kottak) que identificaram “definições oficiais e oficiosas de ‘negro’” em diferentes
estados dos Estados Unidos, Nogueira (1985, p. 35) aponta que “todas são, no fundo,
variações da clássica definição de ‘negro’ como ‘todo indivíduo que, na sua
comunidade, é conhecido como tal’”. Para ele, trata-se de uma definição que, por ser
alijada de traços físicos, não é concebível no Brasil. Em sua concepção, as definições de
pertencimento racial nas quais o preconceito é de marca, são mediadas pelo critério
fenotípico, e nas quais o preconceito é de origem, a ascendência é o definidor
pertencimento ao grupo.
No Brasil, a compreensão da cor como um conceito racial (GUIMARÃES,
2005) está atrelada aos traços físicos, que, segundo Nogueira (1985), são marcantes para
uma significação de raça e para a noção de relações raciais. Ou seja: apesar de nossa
falta de consciência racial, a nossa consciência de cor legitima o estudo de relações
raciais no Brasil, pois, segundo Banton (2010, p. 10), “Quando um grupo começa a
conceber as suas relações com outro grupo como ‘raciais’, isso pressagia uma
modificação da natureza dessas relações (...)”. Essa especificidade de relação é apontada
por Nogueira ao identificar na raça um mecanismo de preterição social, cujo fenótipo é
a marca primordial.
Esse autor está, no entanto, entre aqueles que, no século XX, traçam quadros
comparativos entre duas sociedades, a brasileira e a estadunidense. Destacam-se, nesse
modelo de pesquisa, além de Oracy Nogueira, Carl Degler (1976), Marvin Harris (1967)

4
Essa crítica é realizada apesar de um reconhecimento do “sentido positivo” da ideologia da democracia
racial brasileira “quando tomado como a proclamação de um ideal ou valor em contraste com qual ou
inspirado no qual se pode criticar a realidade e tentar melhorá-la (...)” (NOGUEIRA, 1985, p. 26).
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e Donald Pierson (1971), com predomínio da interpretação do paradigma das relações


raciais como “relações entre grupos que empregam a ideia de raça na estruturação de
suas ações e reações entre si” (CASHMORE, 2000). Nossa primeira questão seria
então: Por que a opção por Oracy Nogueira em detrimento dos outros autores?
Vejamos.
Marvin Harris, em Padrões raciais nas Américas (1967), após afirmar a
inviabilidade de o conceito de raça ser pensado biologicamente, aponta também que, no
Brasil, não há uma regra de hipodescendência5como nos EUA; logo, a identidade racial
brasileira não é governada por nenhuma regra rígida de descendência e nossas fronteiras
raciais podem ser mais facilmente ultrapassadas: “A passagem se faz conseguindo êxito
financeiro ou educação de nível superior” (HARRIS, 1967, p. 93). Harris afirma que, no
Brasil, “não há grupos raciais”, porque, apesar dos estereótipos depreciativos sobre os
negros presentes no país, não há um papel real a negros e brancos pelo simples fato de
serem negros ou brancos; existem papéis de classe, e a “côr é um dos critérios para
identidade de classe; mas não é o único” e, somado a isso, “não há grupos sociais
brasileiros subjetivamente significativos baseados exclusivamente no critério racial”
(HARRIS, 1967, p. 96).
O argumento de Harris dialoga com a negação de relações raciais no sentido
conceitual trabalhado na Escola de Chicago: torna raça uma categoria, um critério de
definição sociológico num dado contexto social específico e, ao fazer isso, ignora a raça
como um discurso maior e disseminado por séculos a partir da experiência europeia
com ênfase no período das colonizações. Sua ênfase na indiferença racial em detrimento
da classe social é outra característica importante de nossas discussões sobre relações
raciais no Brasil, com isso, argumenta-se a ausência de identidade racial no Brasil: “não
há grupos raciais no Brasil” (HARRIS, 1967, p. 96).
Carl Degler (1976, p. 113), fazendo referência à obra de D. Pierson (1971),
argumenta em prol de uma diferença regional entre as relações raciais e (o mais
importante neste momento) de uma forma distinta de definição de quem é negro, pois
“os brasileiros não são cegos à côr”. Segundo Degler (1976, p. 113): “Os brasileiros não

5
Harris define a hipodescendência da seguinte maneira: “ocorre quando: a) a linha de descendência
governa a categoria de membro de um dos dois grupos que se defrontam numa relação de supra-ordenado
para subordinado; b) um indivíduo que tem um ancestral linear, materno ou paterno, que é, ou era
membro de um grupo subordinado é, consequentemente, membro dêsse grupo subordinado” (HARRIS,
1967, p. 88).
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se preocupam com o fundamento genético de uma pessoa e, quando qualificam alguém,


olham para o cabelo e os lábios e para a cor da pele”. O autor também aponta distinções
entre um EUA marcado por dois padrões raciais e um Brasil marcado por um gradiente
de cores entre o branco e preto. Em sua concepção, nos EUA a diferença reside na
importância da ascendência, ao passo que, no Brasil, tanto a cor como a classe são
marcadores do status social e, “Embora os brasileiros levem em consideração a cor ao
classificar as pessoas, como vimos, eles não se referem às origens genéticas ou
biológicas” (DEGLER, 1976, p. 121).
As conclusões de Degler o aproximam da divisão entre preconceito de marca e
preconceito de origem preconizados por Oracy Nogueira. A vantagem de seu conceito
de preconceito de marca, como típico do Brasil, reside em articular os elementos raciais
com elementos de classe social e status. A síntese presente nos dois conceitos de Oracy
Nogueira parece tanto abarcar as conclusões mais gerais dos outros autores (Harris,
Degler e Pierson) quanto “simplificar”, em um conceito compreensível, uma distinção
entre Brasil e Estados Unidos quanto às relações raciais.
As conclusões de Degler também permitem visualizar melhor algo presente no
conjunto desses autores: eles operam uma espécie de ruptura entre os elementos
genéticos (ancestralidade ou hipodescendência) e os fenotípicos (aparência, cabelo,
lábios etc.), de modo a apresentar um discurso no qual apenas os primeiros possuem
uma origem biológica e natural, enquanto os fenotípicos seriam apenas simbólicos:
marcadores de diferença social e racial por excelência.
Donald Pierson, autor de Brancos e Prêtos na Bahia (1971, p. 352)6, destaca o
fator da miscigenação na inibição de preconceitos raciais como uma tendência à
“incorporação final de todas as minorias raciais ao grupo dominante”. Em comparação
aos EUA, a trajetória é bem diferente. Lá, a conquista do Sul pelo Norte alimentou
ódios e ressentimentos, além de abalar o status de antiga elite; no Brasil, a ausência de
algo parecido (e especificamente na Bahia) faz com que as relações raciais sejam
“íntimas e cordiais” apesar da manutenção, tanto de uma desigualdade social e racial,
quanto de uma noção de superioridade preservada. Ele define a Bahia como uma
sociedade multirracial de classes:

6
É sua tese de doutoramento, produzida entre 1935 e 1937, período que esteve em Salvador, e
posteriormente publicada como livro em 1942, sob o título Negroes in Brazil: A study of race contact at
Bahia. No Brasil, sairia, no ano seguinte, com título Brancos e pretos na Bahia.
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Estas classes estão ainda consideravelmente identificadas com a côr, é


verdade, mas apesar disto, são classes e não castas. A tendência mais
característica da ordem social baiana tem sido a redução gradual, mas
contínua, de todas as distinções culturais e raciais, e para fusão
biológica e cultural do africano e do europeu em uma raça e cultura
comuns (PIERSON, 1971, p. 358).

Na introdução à segunda edição do livro, em 1965, Pierson fez um balanço da


trajetória da obra e das mudanças sociais pelas quais o Brasil passou. Destacamos, dessa
introdução, sua interpretação de “pretos” e “brancos” como “mais categorias de
aparência física do que de raça” (PIERSON, 1971, p. 33). Segundo o autor, nossa
classificação dos indivíduos assenta-se na aparência física e na posição social e,
somando-se a isso a ausência de indivíduos conscientes das diferenças raciais, torna-se
impossível caracterizar tais relações como raciais. Em seu entender, a substituição de
raça por cor preservaria a mesma ambiguidade solucionada pelo termo “marca”, como
empregado por Oracy Nogueira, pois articula elementos de raça e posição social.
Há certa convergência para o termo “preconceito de marca” de Oracy Nogueira
como a forma mais assertiva de demonstrar as articulações entre raça e status como
típicas da cultura brasileira. Da mesma maneira, sua utilização da cor (marca) como um
recurso teórico para a conclusão de que há relações raciais no Brasil compensa a
ausência de consciência individual da raça como organizadora das relações sociais,
mediada pela compreensão da cor como uma categoria de classificação racial e social
que autoriza a mobilização de ferramentas teóricas do campo das relações raciais.
Oracy Nogueira reconhece, assim como os outros autores mencionados, a
ausência de uma consciência racial, porém atesta a presença do preconceito racial como
parte integrante da ideologia dominante, no mínimo caracterizando a marca com
implicações de preterição em condições de igualdade. Mesmo em Preconceito de
marca: as relações raciais em Itapetininga (1998 [1955]), é possível perceber tais
características:

O preconceito racial, tal como aqui se apresenta, não tem o mesmo


poder que nos Estados Unidos, de dividir a sociedade com dois grupos
com consciência própria, como duas castas ou dois sistemas sociais
paralelos, em simbiose, porém, impermeáveis um ao outro, apesar de
participarem, fundamentalmente da mesma cultura. Aqui, o
preconceito tende, antes, a situar os indivíduos, uns em relação aos
outros, ao longo de um continuun que vai do extremamente

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“negróide”, de um lado, ao completamente “caucasoide”, de outro


(NOGUEIRA, 1998, p. 239).

Nogueira destaca que a forma individual com que os sujeitos têm de lidar com o
preconceito de marca dificulta o surgimento de relações de solidariedade racial. Tanto a
questão da solidariedade quanto a da ausência de consciência racial fazem parte, com
protagonismo, das reflexões sobre identidade racial. Com efeito, as reflexões de Oracy
Nogueira operam uma migração do debate em torno de identidade para um debate sobre
preconceito, propondo articulações distintas daquelas que possibilitaram as AAs
comporem, durante mais de uma década, a agenda política do Estado brasileiro. De todo
modo, Oracy Nogueira é a referência mais constante nos artigos acadêmicos que
assumem uma postura de defesa das bancas de heteroidentificação fenotípica para as
políticas de AA. É dessa apropriação da obra de Oracy Nogueira que trataremos no
próximo item.

O RETORNO A ORACY NOGUEIRA

Temos hoje duas coletâneas importantes para refletir sobre os processos de


heteroidentificação fenotípica. A primeira, Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas
metodologias e procedimentos, de 2018, foi organizada pelos professores Gleidson
Renato Martins Dias e Paulo Roberto Faber Tavares Junior; o primeiro com formação
jurídica e o segundo, em Educação. O livro contém nove artigos mais um prefácio de
Frei David dos Santos e alguns anexos. A segunda coletânea é um dossiê temático da
Revista da ABPN: A importância das Comissões de Heteroidentificação para a garantia
das Ações Afirmativas destinadas aos Negros e Negras nas Universidades Públicas
Brasileiras, de 2019. O dossiê temático é composto por oito artigos e um prefácio de
Nilma Lino Gomes; outros artigos, documentos e resenhas compõem o conteúdo
integral dessa edição da revista.
Algumas outras publicações acadêmicas são encontradas de modo mais esparso,
merecendo destaque três artigos: “Autodeclaração e heteroidentificação racial no
contexto das políticas de cotas: quem quer (pode) ser negro no Brasil?”, de Rodrigo
Ednilson de Jesus (2018), posteriormente expandido para um livro (JESUS, 2021); “A
banca examinadora de fenótipo para o acesso à educação superior na UEMS: um

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mecanismo para garantia de direitos”, de Eugenia Portela de Siqueira Marques e Ireni


Aparecida Moreira Brito; e, por fim, “As políticas de ações afirmativas e as fraudes:
uma reflexão sobre as iniciativas do estado e sua eficácia inclusiva”, publicado como
um boletim do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, de importância
crucial para compreender os debates e as questões técnicas em torno da
heteroidentificação fenotípica.
A busca de pontos de convergência a partir dessas referências aponta para a
centralidade de Oracy Nogueira e sua distinção entre preconceito de marca e
preconceito de origem. Em seis dos nove artigos do livro Heteroidentificação e cotas
raciais (2018), Oracy Nogueira e/ou o preconceito de marca são citados7 para justificar
o fenótipo como critério para verificação de autodeclaração; dos oito artigos do dossiê
da Revista da ABPN (2019), três contêm citações diretas a obras do autor8, além de
outras duas referências indiretas (DIAS; MOREIRA; FREITAS, 2019; FONSECA;
COSTA, 2019)9, pela distinção entre preconceito de marca e de origem tão caras ao
autor. O artigo de Rodrigo E. de Jesus também cita Oracy Nogueira e Eugênia P. S.
Marques possui um artigo no dossiê temático que se refere ao preconceito de marca,
assim como o artigo do IPEA.
A partir dessa referência comum a Oracy Nogueira e às categorias cunhadas por
ele para se referir à situação racial brasileira em contraposição à estadunidense e, em
especial, como argumento de autoridade intelectual na defesa das bancas de

7
São estes os artigos que mencionam Oracy Nogueira e/ou preconceito de marca na coletânea: 1.
Autodeclarações e comissões: responsabilidade procedimental dos/as gestores/as de ações afirmativas, de
Georgina Helena Lima Nunes; 2. As comissões de verificação e o direito à (dever de) proteção contra a
falsidade de autodeclarações raciais, de Lívia Maria Santana e Sant'Anna Vaz; 3. A implementação da lei
de cotas raciais nos concursos públicos federais: análises dos processos de execução da ação afirmativa
80 de Najara Lima Costa; 4. Considerações à Portaria Normativa n.º 4, de 6 abril de 2018, do Ministério
do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, de Gleidson Renato Martins Dias; 5. Heteroidentificação e
quotas raciais: o papel do Ministério Público, de Enrico Rodrigues de Freitas; e 6. Pretos e pardos nas
ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação, de Roger Raupp Rios.
8
1. A atuação da comissão de validação de autodeclarados negros na UFSC: uma experiência político-
pedagógica, de Joana Célia dos Passos; 2. Políticas afirmativas em curso na Universidade Federal da
Grande Dourados e a implantação da comissão geral de heteroidentificação, de Eugenia Portela de
Siqueira Marques, Aline dos Anjos Rosa e Fabiana Corrêa Garcia Pereira de Oliveira; 3. Histórico e
desafios no processo de implementação das comissões de heteroidentificação na Universidade Federal de
Uberlândia, de Régis Rodrígues Elísio, Antônio Cláudio Moreira Costa e Guimes Rodrigues Filho; e 4. A
heteroidentificação na UFOP: o controle social impulsionando o aperfeiçoamento da política pública, de
Adilson Pereira dos Santos, Bruno Camilloto e Hermelinda Gomes Dias.
9
1. A experiência da Universidade Federal do Paraná nos processos de bancas de validação de
autodeclaração, de Lucimar Rosa Dias, Laura Ceretta Moreira e Ana Elisa de Castro Freitas; e 2. As
comissões de aferição de autodeclaração na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, de
Maria Goretti da Fonseca, Thiala Pereira Lordello Costa.
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heteroidentificação fenotípica, passamos a considerá-lo como uma escolha discursiva e


estratégica que provoca um deslizamento da discussão sobre identidades raciais para
uma discussão sobre preconceito de cor.
O livro Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e
procedimentos foi publicado em 2018 e traz, majoritariamente, um enfoque em questões
procedimentais e de jurisprudência envolvendo procedimentos das comissões de
verificação de autodeclaração, avaliação jurídica de normativas das AAs, análise dos
posicionamentos do Ministério Público e processos de implementação institucionais das
bancas de heteroidentificação fenotípica. No mínimo, desde 2016, por meio da ON n.º
3, vinculada à lei de cotas no serviço público (12.990/2014), há dúvidas instauradas
sobre os procedimentos de comprovação da veracidade nos concursos públicos, e esse
livro dialoga diretamente com tais dúvidas procedimentais. Ou seja: o caráter jurídico
da identidade racial é objeto de maior ênfase e com maior permeabilidade entre os
artigos que compõem a coletânea.
Não podemos dizer que outros textos, em especial a edição de junho e agosto de
2019 da Revista ABPN, não tragam as mesmas preocupações, no entanto há uma maior
densidade político-representativa. O dossiê temático A importância das Comissões de
Heteroidentificação para a garantia das Ações Afirmativas destinadas aos Negros e
Negras nas Universidades Públicas Brasileiras foi proposto e organizado pelo Grupo
de Trabalho em Educação e Relações Étnico-Raciais, o Grupo de Trabalho 21 (Gestão
2017-2019) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(Anped). A maior parte dos autores do dossiê também são pesquisadores membros da
Associação Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN. Esse dossiê apresenta uma
defesa das bancas de heteroidentificação fenotípica e algumas experiências
institucionais com tais bancas, justificando a necessidade de o procedimento ser parte
dos editais de processos seletivos das Instituições Públicas de Ensino Superior (IPES).
As fraudes são, sem dúvida, um dos elementos centrais sobre a defesa de tais
procedimentos, mas também merece igual destaque a segurança jurídica gerada pelas
regulamentações e decisões jurídicas tomadas pelo Ministério Público e pelo STF ao
garantirem a legitimidade constitucional das AAs, por abrirem possibilidades para
sistemas de controle social da política, como, por exemplo, as bancas de

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heteroidentificação fenotípica, e a consolidação legal do fenótipo como critério de


seleção.
Junto com esse dossiê, há a divulgação da “Carta de Campo Grande (MS)”, um
documento construído coletivamente no final do I Seminário Nacional Políticas de
Ações Afirmativas nas Universidades Brasileiras e a Atuação das Bancas Verificadoras
de Autodeclaração na Graduação, ocorrido, em Campo Grande, entre 29/08 e
31/08/2018. Entre as conclusões aprovadas, destacamos:

1. REAFIRMAR a necessidade e urgência da implementação das


bancas de heteroidentificação de candidatos/as autodeclarados/as
pretos/as e pardos/as em todas as instituições de ensino superior
públicas.
14. ALERTAR para os casos de denúncias infundadas de fraudes que
visam desacreditar o sistema de cotas e a atuação das bancas.
17. REIVINDICAR ao MEC e SEPPIR que juntamente com a ABPN
e o GT21 da ANPED, elabore portaria normativa, análoga à do
MPOG, a ser aplicada nas reservas de vagas para PPI instituídas pela
Lei nº 12.711/2012, alterada pela Lei nº 13.409/2016. Tal portaria
deverá fixar os parâmetros mínimos para o funcionamento das
comissões, respeitadas as especificidades de cada instituição.
26. GARANTIR o sigilo dos membros das bancas de
heteroidentificação, nos moldes da orientação normativa n. 04/2018
(ÉTNICO-RACIAIS, GT21, 2019, grifos do autor).

As referências à PN n.º 4 de 2018 são diretas, sobretudo por esta direcionar-se


somente aos concursos públicos e, consequentemente, não gerar a obrigatoriedade do
modelo de bancas de heteroidentificação fenotípica para confirmação da veracidade da
autodeclaração para as vagas nas IPES. A demanda por padronização está na Resolução
21: “PADRONIZAR os procedimentos para casos dos alunos PPIs (Pretos, Pardos e/ou
Indígenas) em trânsito visando garantir o direito a vaga”.
Precisamos entender a ABPN como uma associação de pesquisadores e,
também, em sua representação política, à medida que suas reivindicações são
significativas para o entendimento do debate racial brasileiro contemporâneo. Uma
padronização federal do modelo de definição de quem é negro no Brasil, com caráter
fenotípico e como uma demanda oriunda de pesquisadores de uma instituição
reconhecida por suas pesquisas sobre questões raciais, fortalece e demonstra que certa
“essencialização” da identidade racial brasileira corresponde tanto aos desejos
burocráticos do Estado moderno, quanto a anseios da sociedade civil organizada.

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No prefácio, Nilma Lino Gomes indica que o ponto de convergência dos artigos
do dossiê é a articulação de “igualdade, equidade e diversidade”, e argumenta que:

A sociedade e as IPES estão sendo reeducadas na compreensão da


raça como uma importante categoria de análise e como um critério a
ser utilizado para fazer justiça social e garantir a equidade e a
igualdade. O direito a diversidade passou a ser mais uma das funções
socialmente exigidas da universidade e a sua garantia faz parte das
demandas e iniciativas de garantia do acesso e da permanência das
negras e dos negros, principalmente os jovens, no seu interior
(GOMES, 2019, p. 13).

O caráter pedagógico das AAs na sociedade brasileira é imenso e é destacado


pela própria autora em outra obra, O movimento negro educador (2017), embora o
sentido de raça torne-se cada vez mais fenotípico e jurídico. Essas reivindicações são
importantes quando se trata de políticas públicas do Estado, mas insuficientes se
olharmos para outros fenômenos menos institucionalmente organizados, mas
igualmente racializados.
Uma proposta diferente de bancas de heteroidentificação fenotípica é parte da
proposta de Rodrigo Ednilson de Jesus, no artigo “Autodeclaração e heteroidentificação
racial no contexto das políticas de cotas: quem quer (pode) ser negro no Brasil?”.
Utilizando sua experiência, centrada principalmente na Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, defende que as bancas cumpram um papel distinto do caráter
puramente objetivo, como defendido no conjunto dos outros artigos. Na UFMG, a
autodeclaração é acompanhada de uma carta consubstanciada, na qual os candidatos
expressam e defendem sua autodeclaração como negros; a banca ocorreria como um
momento posterior. No entendimento do pesquisador:

Nesse caso em específico, a criação das comissões não estaria


orientada pela busca da objetividade, mas na construção de um
consenso subjetivo em torno da identidade racial dos candidatos. Este
princípio, aliás, é o mesmo que vigora nos momentos de composições
de júris populares ou de juris técnicos, compostos por julgadores
comprometidos com a garantia da justiça (JESUS, 2018, p. 139).

Há uma vantagem nesse modelo: a de reconhecer a dimensão subjetiva e


ultrapassar os limites puramente fenotípicos da definição do sujeito de direito das AAs

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nos procedimentos de heteroidentificação fenotípica10. Circunscrever a identidade racial


ao fenótipo racial é uma simplificação muito grande dos problemas oriundos da
racialização que a sociedade brasileira produz, ou seja, a busca de um consenso
subjetivo insere menos segurança jurídica apesar de produzir maior conformidade com
as premissas acadêmicas sobre a construção de identidades culturais.
O artigo do IPEA, “As políticas de ações afirmativas e as fraudes: uma reflexão
sobre as iniciativas do estado e sua eficácia inclusiva”, é resultante do Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI) instituído pela Portaria Conjunta MP/MJC n.º 11, de 26
de dezembro de 2016, para regulamentar os procedimentos de heteroidentificação
previstos na Lei n.º 12.990, de 9 de junho de 2014. O texto é o que melhor detalha o
percurso histórico da heteroidentificação fenotípica no Brasil, cujo conceito foi trazido
das metodologias de IBGE, com mais de 40 anos de utilização para definição do item
raça/cor nos censos nacionais e, ainda, é um dos documentos11 que sintetizam a
interpretação do GTI quanto à temática.
O artigo assume uma perspectiva da administração pública que escapa à pura
burocratização ou juridiquês da linguagem, permitindo uma interação entre os conceitos
acadêmicos, jurídicos e administrativos, necessários à interpretação das políticas
públicas. Preocupações apontadas no parecer do Ministro Ricardo Lewandowski na
ADPF 18612 (relator responsável pelo reconhecimento do STF sobre a
constitucionalidade das políticas afirmativas), como o risco de desmoralização da
política, parecem permear as preocupações dos autores, que justificam, repetidamente,

10
Em seu conjunto, os procedimentos propostos seriam compostos por quatro momentos: “1.
Explicitação, nos editais e outros materiais de divulgação do concurso, de que as vagas reservadas para
pretos e pardos são destinadas a negros e negras, deixando evidente, portanto, que não é possível
concorrer às vagas destinadas a pardos e a pretos sem se reconhecerem, e serem reconhecidos, como
negros; 2. Disponibilização e divulgação de documento próprio no qual os(as) candidatos(as) possam
assinalar, dentre as categorias raciais utilizadas pelo IBGE, em qual categoria se reconhecem; 3.
Disponibilização de Carta Consubstanciada, para que os(as) candidatos(as) possam registrar, de próprio
punho, os elementos que eles mobilizam para se auto-reconhecerem [sic] como negros(as); 4. Instituição
de comissão complementar à autodeclaração para que, baseando-se no fenótipo perceptível dos
candidatos, seja possível em prática a heteroidentificação racial” (JESUS, 2018, p. 139-140).
11
A este artigo se somam: a Portaria n.º 4 de 2018, o Relatório do seminário jurídico sobre a política de
cotas no serviço público: avanços e desafios, o Relatório final do Grupo de Trabalho Interministerial
Cotas Raciais e as Orientações Comentadas da Portaria n.º 4 de 2018. Tivemos acesso a todos esses
documentos graças a Eduardo Gomor, a quem agradecemos.
12
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 foi um recurso impetrado pelo
Partido Democratas (DEM) para que o STF julgasse a constitucionalidade de programa de ação
afirmativa da Universidade de Brasília (UnB). O julgamento foi em 2012 e precedeu a promulgação da
Lei Federal 12.711, do mesmo ano, que institui a política de AA para todas as universidades e institutos
federais do país.
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as decisões materializadas na Portaria n.º 4 de 2018, nas dimensões acadêmica, jurídica


e de administração pública:

Quanto aos critérios, é necessário lembrar que não há uma verdade


objetiva ou científica sobre o fenótipo e as identidades a elas
relacionadas. O negro, como sujeito subordinado, é produzido em uma
relação social, e é somente através dessa que a atribuição de valores e
qualidades a um padrão fenotípico ganha sentido. Sendo assim, essa
identidade pode variar no espaço social, motivo pelo qual a lei,
quando fala da diversidade das bancas de verificação, defende que
entre os seus membros deve haver não apenas uma diversidade de
gênero e cor, mas também uma diversidade regional deve ser
garantida. Esse item mostra que a legislação reconhece o caráter
contextual a partir do qual a identidade de raça/cor se forma (IPEA,
2019, p. IX).

Sobre o fenótipo residem as justificativas acadêmicas da raça como socialmente


construída e sua contextualidade, encapsulada na normativa jurídica pela orientação de
uma diversidade regional para a obtenção e ampliação do sucesso nas finalidades da
política pública em questão. Essa preocupação constante com as três dimensões e os
efeitos de analogia de umas sobre as outras, se retroalimentando em justificativas, gera a
convicção de que os resultados em questão, no caso a Portaria n.º 4 de 2018,
materializam a solução possível e satisfatória para a problemática da heteroidentificação
fenotípica como procedimento. E, mais uma vez, Oracy Nogueira, o fenótipo e o
preconceito de marca ressurgem como parte das justificativas para heteroidentificação
fenotípica.
Provavelmente, o principal legado de Oracy Nogueira seja refletir sobre a
complexidade do preconceito como fenômeno. Sua definição de preconceito é
suficientemente abrangente para que essa complexidade possa ser percebida, pois é,
segundo ele, uma atitude13 que envolve aspectos cognitivos, afetivos e
comportamentais.

13
Para uma compreensão do sentido de atitude empregado nessa definição, recorremos à obra Atitudes
raciais de pretos e mulatos em São Paulo, de Virginia Bicudo, orientanda de Donald Pierson, mesmo
orientador de Oracy Nogueira. Assim como Nogueira, Virginia Bicudo teve atuação no Projeto Unesco e
sofreu do mesmo silenciamento que Oracy Nogueira. “A atitude é um elemento da personalidade
adequado ao estudo de relações raciais. Sendo atitude determinada pela natureza original do homem e
pelas condições sociais em que vive (...). As atitudes sociais expressam o aspecto subjetivo da cultura e
conduzem ao conhecimento das condições sociais que concorreram para sua formação (...) é um modo de
conceber um objeto” (BICUDO, 2010, p. 63).
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Ao tipificar o preconceito brasileiro como sendo de marca, ele não inviabiliza a


ambivalência e, sem suavizar o racismo nacional em face do preconceito de origem,
possibilita uma articulação cultural maior, assim como amplia a autonomia do
significado racial dentro da estrutura social. Oracy Nogueira compreende, assim, como
o grupo hegemônico que compôs o Projeto Unesco defende a primazia da estrutura
sobre a ideologia. Isso é mais evidente em Preconceito de marca: as relações raciais
em Itapetininga (1998), embora haja uma relação de maior autonomia entre as relações
ideológicas e as estruturais em Oracy Nogueira.
O retorno a Oracy Nogueira pode ser compreendido a partir de dois mecanismos
discursivos apresentados por Foucault (2011): tanto o “comentário” quanto o “autor”
(mecanismos de rarefação internos do discurso) visam reforçar um conjunto discursivo
que ambiciona preservar as regularidades e continuidades sociais dos sistemas culturais.
No caso do “comentário”, tende a ser mais presente em textos religiosos, jurídicos,
literários e científicos. O “comentário”, em boa parte das vezes, é a reaparição, via
paráfrase e comentador (autor), com o objetivo de ordenar a realidade, conferindo a ela
uma continuidade. No caso em estudo, as menções recorrentes ao preconceito de marca
cumprem essa função.
O mecanismo do “autor”, descrito como um “princípio de agrupamento do
discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”
(FOUCAULT, 2011, p. 26), produz um elo de continuidade que, ao marcar o ponto de
origem de um discurso, gera na realidade o efeito de uma constância e estabilidade
sobre algumas significações. Em nosso caso, a retomada aos textos de Oracy Nogueira
visa reforçar o fenótipo/marca como principal marcador do racismo brasileiro – e, se
assim o caracterizamos, a principal maneira de combater essa forma de racismo é
utilizando os mesmos marcadores fenotípicos em nossas políticas de promoção da
igualdade racial.
O “autor” e o “comentário”, como mecanismos, são elementos que estabelecem
ordem ao discurso, transferindo parcela do status ou do saber a uma continuidade
discursiva que limita as possibilidades de reenquadramento da realidade, ou quebra da
continuidade. São, portanto, mecanismos que impedem os deslocamentos dos
significantes sociais. O retorno a Oracy Nogueira a que nos referimos não se traduz em
críticas sobre sua obra. Os textos que compõem o eixo desta reflexão, como já

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informado, vão encontrar nesse autor um ponto seguro de articulação para um discurso
político que visa orientar decisões governamentais.
Apesar de ser uma referência recorrente, apenas em um outro trabalho
conseguimos verificar uma reflexão mais profunda sobre Oracy Nogueira: a dissertação
de mestrado de Luiz Carlos Keppe Nogueira (2017), que é a reflexão de maior fôlego a
avaliar o legado de Oracy Nogueira e sua contribuição para enfrentar os dilemas
contemporâneos, com destaque ao procedimento de heteroidentificação fenotípica nas
políticas de AA. Duas caracterizações são importantes para compreendermos a
afirmação de Keppe Nogueira (2017, p. 90) de que “O conceito de preconceito de
marca, no entanto, parece ter resistido melhor à passagem do tempo que o de
preconceito de origem”.
A primeira é referente à dinâmica de preterição. A polarização entre preconceito
de marca e preconceito de origem revela estruturas de funcionamento distintas, sendo a
primeira por preterição e a segunda por exclusão. “A dinâmica da preterição (...), torna-
se mais complexa em suas intersecções com a classe, a educação e a profissão”
(NOGUEIRA, 2017, p. 90); logo, as afirmações de Oracy Nogueira ainda se revelam
fundamentais para hoje. O assimilacionismo da cultura brasileira evidencia melhor “as
marcas” e, portanto, a reprodução dos nossos preconceitos se revela nos sinais
diacríticos, leia-se, fenótipo. Ainda assim, é importante chamar a atenção para o fato de
que as formas contemporâneas de articulações e intersecções são derivadas,
primordialmente, do avanço das reflexões em torno do conceito de identidade cultural e
não de preconceito, como sugere Keppe Nogueira. Ao retornarmos a uma centralidade
do conceito de preconceito, em detrimento do conceito de identidade, se retira dos
sujeitos uma potencialidade de agência que o conceito de identidade pressupõe, assim
como uma maior politização, que é inerente ao conceito de identidade em diversas
abordagens contemporâneas.
A segunda caracterização de Keppe Nogueira (2017) é a de apresentar o
fenômeno do preconceito racial no Brasil com um fato social total14 devido à sua
capilaridade social em diferentes esferas, como economia, política ou cultura. Com

14
Segundo M. Mauss (2003, p. 187): “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los,
exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo
políticas e familiares ao mesmo tempo –; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e
do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição –; sem contar os fenômenos estéticos em que
resultam estes fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam”.
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efeito, produz-se uma maior guinada ao culturalismo do que o próprio Oracy Nogueira
(1985) pretendia assumir. Ao rever sua tipificação e as críticas que lhe foram atribuídas,
uma delas é particularmente importante. Ele sofreu críticas no sentido de que suas
categorias seriam demasiadamente culturalistas, e essa “acusação foi interpretada por
ele como significando: 1. Uma ênfase na cultura em detrimento de fatores estruturais e;
2. Dar explicações em termos culturais quando são plausíveis outros fatores”. Ele se
defende da acusação, dizendo reconhecer no preconceito racial uma manifestação
ideológica hegemônica em proveito da classe dominante e, invocando Antonio Gramsci
(1891 1937), argumenta que essa ideologia cumpre o papel de acimentar as estruturas
sociais, constituídas através do “controle dos meios de produção e o exercício do poder
em suas diferentes formas e esferas” (NOGUEIRA, 1985, p. 23).
Keppe Nogueira (2017), ao realizar um cruzamento entre suas reflexões sobre
Oracy Nogueira e a discussão sobre autodeclaração e heteroidentificação fenotípica nas
políticas afirmativas, tanto em universidades, quanto nos concursos públicos, defende o
seguinte:

Com base na teoria do reconhecimento de Honneth, podemos afirmar


que uma identidade racial é formada de modo intersubjetivo, de modo
que status racial do indivíduo resulta da combinação entre a
autoidentificação e a identificação pela sociedade. Para discutirmos a
pertinência dos critérios da autodeclaração e da heterodeclaração,
podemos tomar como ponto de partida a seguinte pergunta: existe, no
Brasil, uma correspondência entre ser considerar-se e ser considerado
negro pela sociedade? A resposta é positiva. Duas parecem ser as
razões para isso. A primeira razão é a de que o fenótipo, o qual pauta a
identificação da afrodescendência em um contexto de relações raciais
de marca, é igualmente perceptível por aquele que o possui e por
observadores externos. Em segundo lugar, podemos empregar a
análise de Axel Honneth a respeito da autoidentificação: devido ao
racismo, o indivíduo considerado preto pela sociedade vê frustradas
suas buscas de reconhecimento, o que, ao despertar-lhe sentimentos
negativos (indignação, vergonha), fortalece sua consciência de
pertencer a uma minoria racial. Essa correspondência foi comprovada
por estudos que compararam a percepção do próprio indivíduo a
respeito de sua raça com a percepção de outras pessoas (NOGUEIRA,
2017, p. 125-126).

Essa reflexão diferencia o processo de autoidentificação do processo de


reconhecimento e, mesmo admitindo a correspondência entre ambos, encontrada, nesse
caso, no fenótipo como marca do reconhecimento exterior e interior, faz dele um signo

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de valor equivalente entre os elementos a princípio dissociados. Essa dissociação


permite inserir mediações culturais que podem produzir desencontros entre a
autoimagem de si e o reconhecimento dos “outros”. E, a partir do efeito de nossas
ideologias, em especial, nesse caso, do embranquecimento, faz da autoimagem de si
uma construção alienada, uma subjetividade “branca” como efeito de sociedade racista,
reconhecida por autores como Frantz Fanon, Florestan Fernandes e Oracy Nogueira,
entre tantos outros.
Apesar de sua imersão na obra de Oracy Nogueira, a conclusão do autor segue as
mesmas premissas dos demais autores aqui tratados:

Os critérios de definição da categoria de raça dos candidatos aos


benefícios devem estar de acordo com o caráter “de marca” das
relações raciais nacionais. No Brasil, a sociedade identifica a raça das
pessoas com base no fenótipo. Esse, portanto, deve ser o critério
principal usado na verificação da autodeclaração. É importante que
sejam estabelecidos parâmetros objetivos para determinação do
fenótipo (NOGUEIRA, 2017, p. 128).

Ao atestar a “marca” como a característica do preconceito racial nacional, que


assume o fenótipo como símbolo social primordial da raça15 e, consequentemente, o
torna elemento central na identificação racial, conclui que a forma de definição de quem
é negro de direito para as políticas de AA deve pautar-se no fenótipo.
Num esquema pensado a partir das possibilidades abertas pelo uso somente da
autodeclaração como critério nas políticas afirmativas e, somando a isso, a dissociação
entre autodeclaração e reconhecimento, aponta-se para uma justificativa em defesa da
heteroidentificação fenotípica nos procedimentos de validação da autodeclaração racial.

Portanto, um processo que faça uso da autodeclaração como critério


exclusivo selecionará os seguintes indivíduos: os que se consideram e,
sempre ou quase sempre, são considerados negros (hipótese 1); os que
se consideram, mas não são nunca ou quase nunca considerados
negros (hipótese 2); os que se consideram e, com frequência
intermediária, são considerados negros (hipótese 3); e os que não se
consideram (mas declaram considerar-se) e não são nunca ou quase
nunca considerados negros (hipótese 5). Ela excluirá: os que não se
consideram, mas, com frequência intermediária ou alta, são
considerados negros (hipótese 4) (NOGUEIRA, 2017, p. 128).

15
Como critérios complementares devem ser aventados: “A origem, a história e a cultura negras também
são consideradas na autoidentificação dos indivíduos” (NOGUEIRA, 2017, p. 129).
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Há uma injustiça aparente em não adotar medidas de heteroidentificação


fenotípica, consideradas as possibilidades daqueles que rara ou intermitentemente são
vistos socialmente de maneira racializada na sociedade brasileira, excetuando-se os
casos de intenção fraudulenta óbvia. Esses argumentos revisitam a importância do
combate às fraudes nas políticas afirmativas e fornecem um modelo jurídico e social
aceitável para as instituições públicas, capaz de gerar segurança jurídica e consensos
hegemônicos entre Estado e Sociedade civil. A isso se somam os resultados da Lei
12.711/2012: redução, na esfera pública, do debate racial, com aumento do debate
especializado, gerando uma limitação aos questionamentos de caráter político da
fundamentação do Estado-Nação brasileiro. Em conjunto, o resultado pode ser
sintetizado pela definição de Stuart Hall de fechamento discursivo16, retomado no
tópico final do artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As AAs geram uma demanda de identificações individuais e coletivas. A


autodeclaração surge em meio a essas discussões sobre a formação de identidades
culturais e políticas e da força de movimentos sociais, enquanto a heteroidentificação
fenotípica torna-se uma demanda de origem jurídico-burocrática e, em menor medida,
também militante, mas o conceito que a fortalece é o de preconceito de marca. Com ele
se pode realizar um fechamento discursivo. Uma vez que definimos como negros os
sujeitos que se autodeclaram e são reconhecidos como tais, a discussão se encerra,
criando critérios objetivos, garantindo respostas às demandas recursais e socializando,
entre diversas áreas sociais, a responsabilidade sobre a definição do sujeito de direito
das AAs.
O retorno contemporâneo a Oracy Nogueira pelos defensores da
heteroidentificação fenotípica como parte dos processos de AAs é, no geral, a sua
caracterização do preconceito de marca e ao efeito de sua tipificação em nossa cultura
nacional. Então, a finalidade desse retorno é prática: cientificamente carimbar o
fenótipo como parte inerente da maneira nacional de classificação racial na sociedade e
16
A unidade, a homogeneidade interna que o termo “identidade” assume como fundacional não é uma
forma natural, mas uma forma construída de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que lhe
“falta” – mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado (HALL, 2007, p.
110).
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possibilitar critérios relativamente objetivos para definição de quem é negro. O mesmo


conjunto de finalidades é citado, sem referências a Oracy Nogueira, por Maria José
Cordeiro (2008) ao mencionar, em 2002, na UEMS, os debates sobre a escolha do
fenótipo como critério de AAs, nesse caso, como uma exigência do movimento negro
regional:

Quanto aos negros, os representantes traziam como proposta o


fenótipo mesmo sabendo da impossibilidade científica de se definir
raças. O que justificava era o fato de que quem possuía a pele escura
(preta) era mais discriminado, ou seja, o conceito de raça adotado foi
o social e não o biológico (CORDEIRO, 2008, p. 61, grifos da
autora).

Há convergência entre, de um lado, a necessidade jurídica de maior objetividade


e clareza quanto aos procedimentos técnico-administrativos, o desejo militante expresso
em Mato Grosso do Sul e também por lideranças nacionais17 e, de outro, a necessidade
de manutenção do discurso acadêmico encontrado tanto na citação quanto na
recorrência a Oracy Nogueira, mas sintetizado pelos preceitos: “raça é uma construção
social/cultural” e “o racismo brasileiro é de marca”.
O fechamento discursivo é fruto da afirmação categórica entre os preceitos “raça
é uma construção social/cultural” e “o racismo brasileiro é de marca”. A “marca”,
sobretudo o fenótipo, é um dado também de origem biológica, no mínimo, tanto quanto
o genótipo; ambos não desaparecem a partir da afirmação, verdadeira, de que é a
sociedade que atribui significado social de inferioridade a uma “marca”. A isso, opõe-se
o conceito de racialização como um discurso que fundamenta os meios pelos quais, em
nossa cultura, a cor passa a receber o significado de raça, mas destacando que os
processos de racialização ampliam os horizontes para muito além da relação raça e cor
e, justamente por isso, ele é capaz de criar possibilidades para o novo, uma medida
antifechamento discursivo, assim como corrobora o entendimento do par conceitual
Natureza/Cultura, tão caro a essa distinção. No conjunto dos artigos aferidos, essa
questão é posta à margem, provavelmente pelo recorte dos autores e por estarem a
responder demandas urgentes das universidades e das novas normativas.

17
Entendimento similar foi defendido nacionalmente na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa no Senado Federal no dia 14/09/2015; entre as propostas também há a de aumento no rigor
punitivo aos sujeitos que tentam fraudar as políticas de AA. Disponível em: https://goo.gl/2Hnbm2.
Acesso em: 20 mar. 2020.
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Cabe ainda destacarmos que a crítica que se constrói ao longo desse artigo é
contra a essencialização da cor e da raça e, em momento algum deve ser lido como
crítica às políticas de ação afirmativa. Trata-se, na verdade, do uso estratégico de Oracy
Nogueira para justificar uma decisão política de tratar a raça em sua dimensão objetiva,
especialmente o fenótipo, como fundamental para um procedimento técnico para
definição dos sujeitos de direito negro da política afirmativa e, com isso, produzir
segurança jurídica para as decisões institucionais, mas também, essencializar a categoria
raça nas políticas afirmativas.

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 07/12/2022


Aprovado em: 26/02/2022

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