Um Retorno Aoracy Nogueira - 2022
Um Retorno Aoracy Nogueira - 2022
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1 – 2022
RESUMO
O objetivo deste artigo é avaliar a apropriação do conceito de preconceito de marca, de
Oracy Nogueira, como justificativa acadêmica na defesa da heteroidentificação
fenotípica nos procedimentos de seleção de negros por ação afirmativa. O texto articula
resultados de uma tese de doutorado em Ciências Sociais e discute o uso do
conhecimento científico na construção de um consenso social sobre como definir quem
é negro no Brasil. Verifica-se um uso estratégico do conceito de preconceito de marca
em detrimento de uma apropriação limitada da obra de Oracy Nogueira e uma
contribuição para um fechamento discursivo em torno da objetividade das relações
raciais brasileiras.
ABSTRACT
The goal here is to evaluate the concept appropriation of brand prejudice, by Oracy
Nogueira, as an academic justification for the defense of phenotypic hetero-
identification in the procedures for the selection of blacks by affirmative action. This
article articulates results from a doctoral thesis in Social Sciences and it discuss the use
of scientific knowledge in building a social consensus on how to define who is black in
Brazil. There is a strategic use of the concept of brand prejudice over a limited
appropriation of the work of Oracy Nogueira and also a contribution to a discursive
closure around the objectivity of Brazilian race relations.
1
Doutor em Ciências Sociais pela Unesp-Marília (2020) e professor na Universidade de Rio Verde, Goiás
(UniRV). E-mail: [email protected] e ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0757-0415.
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INTRODUÇÃO
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Essa crítica é realizada apesar de um reconhecimento do “sentido positivo” da ideologia da democracia
racial brasileira “quando tomado como a proclamação de um ideal ou valor em contraste com qual ou
inspirado no qual se pode criticar a realidade e tentar melhorá-la (...)” (NOGUEIRA, 1985, p. 26).
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Harris define a hipodescendência da seguinte maneira: “ocorre quando: a) a linha de descendência
governa a categoria de membro de um dos dois grupos que se defrontam numa relação de supra-ordenado
para subordinado; b) um indivíduo que tem um ancestral linear, materno ou paterno, que é, ou era
membro de um grupo subordinado é, consequentemente, membro dêsse grupo subordinado” (HARRIS,
1967, p. 88).
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É sua tese de doutoramento, produzida entre 1935 e 1937, período que esteve em Salvador, e
posteriormente publicada como livro em 1942, sob o título Negroes in Brazil: A study of race contact at
Bahia. No Brasil, sairia, no ano seguinte, com título Brancos e pretos na Bahia.
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Nogueira destaca que a forma individual com que os sujeitos têm de lidar com o
preconceito de marca dificulta o surgimento de relações de solidariedade racial. Tanto a
questão da solidariedade quanto a da ausência de consciência racial fazem parte, com
protagonismo, das reflexões sobre identidade racial. Com efeito, as reflexões de Oracy
Nogueira operam uma migração do debate em torno de identidade para um debate sobre
preconceito, propondo articulações distintas daquelas que possibilitaram as AAs
comporem, durante mais de uma década, a agenda política do Estado brasileiro. De todo
modo, Oracy Nogueira é a referência mais constante nos artigos acadêmicos que
assumem uma postura de defesa das bancas de heteroidentificação fenotípica para as
políticas de AA. É dessa apropriação da obra de Oracy Nogueira que trataremos no
próximo item.
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São estes os artigos que mencionam Oracy Nogueira e/ou preconceito de marca na coletânea: 1.
Autodeclarações e comissões: responsabilidade procedimental dos/as gestores/as de ações afirmativas, de
Georgina Helena Lima Nunes; 2. As comissões de verificação e o direito à (dever de) proteção contra a
falsidade de autodeclarações raciais, de Lívia Maria Santana e Sant'Anna Vaz; 3. A implementação da lei
de cotas raciais nos concursos públicos federais: análises dos processos de execução da ação afirmativa
80 de Najara Lima Costa; 4. Considerações à Portaria Normativa n.º 4, de 6 abril de 2018, do Ministério
do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, de Gleidson Renato Martins Dias; 5. Heteroidentificação e
quotas raciais: o papel do Ministério Público, de Enrico Rodrigues de Freitas; e 6. Pretos e pardos nas
ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação, de Roger Raupp Rios.
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1. A atuação da comissão de validação de autodeclarados negros na UFSC: uma experiência político-
pedagógica, de Joana Célia dos Passos; 2. Políticas afirmativas em curso na Universidade Federal da
Grande Dourados e a implantação da comissão geral de heteroidentificação, de Eugenia Portela de
Siqueira Marques, Aline dos Anjos Rosa e Fabiana Corrêa Garcia Pereira de Oliveira; 3. Histórico e
desafios no processo de implementação das comissões de heteroidentificação na Universidade Federal de
Uberlândia, de Régis Rodrígues Elísio, Antônio Cláudio Moreira Costa e Guimes Rodrigues Filho; e 4. A
heteroidentificação na UFOP: o controle social impulsionando o aperfeiçoamento da política pública, de
Adilson Pereira dos Santos, Bruno Camilloto e Hermelinda Gomes Dias.
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1. A experiência da Universidade Federal do Paraná nos processos de bancas de validação de
autodeclaração, de Lucimar Rosa Dias, Laura Ceretta Moreira e Ana Elisa de Castro Freitas; e 2. As
comissões de aferição de autodeclaração na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, de
Maria Goretti da Fonseca, Thiala Pereira Lordello Costa.
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No prefácio, Nilma Lino Gomes indica que o ponto de convergência dos artigos
do dossiê é a articulação de “igualdade, equidade e diversidade”, e argumenta que:
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Em seu conjunto, os procedimentos propostos seriam compostos por quatro momentos: “1.
Explicitação, nos editais e outros materiais de divulgação do concurso, de que as vagas reservadas para
pretos e pardos são destinadas a negros e negras, deixando evidente, portanto, que não é possível
concorrer às vagas destinadas a pardos e a pretos sem se reconhecerem, e serem reconhecidos, como
negros; 2. Disponibilização e divulgação de documento próprio no qual os(as) candidatos(as) possam
assinalar, dentre as categorias raciais utilizadas pelo IBGE, em qual categoria se reconhecem; 3.
Disponibilização de Carta Consubstanciada, para que os(as) candidatos(as) possam registrar, de próprio
punho, os elementos que eles mobilizam para se auto-reconhecerem [sic] como negros(as); 4. Instituição
de comissão complementar à autodeclaração para que, baseando-se no fenótipo perceptível dos
candidatos, seja possível em prática a heteroidentificação racial” (JESUS, 2018, p. 139-140).
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A este artigo se somam: a Portaria n.º 4 de 2018, o Relatório do seminário jurídico sobre a política de
cotas no serviço público: avanços e desafios, o Relatório final do Grupo de Trabalho Interministerial
Cotas Raciais e as Orientações Comentadas da Portaria n.º 4 de 2018. Tivemos acesso a todos esses
documentos graças a Eduardo Gomor, a quem agradecemos.
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A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 foi um recurso impetrado pelo
Partido Democratas (DEM) para que o STF julgasse a constitucionalidade de programa de ação
afirmativa da Universidade de Brasília (UnB). O julgamento foi em 2012 e precedeu a promulgação da
Lei Federal 12.711, do mesmo ano, que institui a política de AA para todas as universidades e institutos
federais do país.
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Para uma compreensão do sentido de atitude empregado nessa definição, recorremos à obra Atitudes
raciais de pretos e mulatos em São Paulo, de Virginia Bicudo, orientanda de Donald Pierson, mesmo
orientador de Oracy Nogueira. Assim como Nogueira, Virginia Bicudo teve atuação no Projeto Unesco e
sofreu do mesmo silenciamento que Oracy Nogueira. “A atitude é um elemento da personalidade
adequado ao estudo de relações raciais. Sendo atitude determinada pela natureza original do homem e
pelas condições sociais em que vive (...). As atitudes sociais expressam o aspecto subjetivo da cultura e
conduzem ao conhecimento das condições sociais que concorreram para sua formação (...) é um modo de
conceber um objeto” (BICUDO, 2010, p. 63).
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informado, vão encontrar nesse autor um ponto seguro de articulação para um discurso
político que visa orientar decisões governamentais.
Apesar de ser uma referência recorrente, apenas em um outro trabalho
conseguimos verificar uma reflexão mais profunda sobre Oracy Nogueira: a dissertação
de mestrado de Luiz Carlos Keppe Nogueira (2017), que é a reflexão de maior fôlego a
avaliar o legado de Oracy Nogueira e sua contribuição para enfrentar os dilemas
contemporâneos, com destaque ao procedimento de heteroidentificação fenotípica nas
políticas de AA. Duas caracterizações são importantes para compreendermos a
afirmação de Keppe Nogueira (2017, p. 90) de que “O conceito de preconceito de
marca, no entanto, parece ter resistido melhor à passagem do tempo que o de
preconceito de origem”.
A primeira é referente à dinâmica de preterição. A polarização entre preconceito
de marca e preconceito de origem revela estruturas de funcionamento distintas, sendo a
primeira por preterição e a segunda por exclusão. “A dinâmica da preterição (...), torna-
se mais complexa em suas intersecções com a classe, a educação e a profissão”
(NOGUEIRA, 2017, p. 90); logo, as afirmações de Oracy Nogueira ainda se revelam
fundamentais para hoje. O assimilacionismo da cultura brasileira evidencia melhor “as
marcas” e, portanto, a reprodução dos nossos preconceitos se revela nos sinais
diacríticos, leia-se, fenótipo. Ainda assim, é importante chamar a atenção para o fato de
que as formas contemporâneas de articulações e intersecções são derivadas,
primordialmente, do avanço das reflexões em torno do conceito de identidade cultural e
não de preconceito, como sugere Keppe Nogueira. Ao retornarmos a uma centralidade
do conceito de preconceito, em detrimento do conceito de identidade, se retira dos
sujeitos uma potencialidade de agência que o conceito de identidade pressupõe, assim
como uma maior politização, que é inerente ao conceito de identidade em diversas
abordagens contemporâneas.
A segunda caracterização de Keppe Nogueira (2017) é a de apresentar o
fenômeno do preconceito racial no Brasil com um fato social total14 devido à sua
capilaridade social em diferentes esferas, como economia, política ou cultura. Com
14
Segundo M. Mauss (2003, p. 187): “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los,
exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo
políticas e familiares ao mesmo tempo –; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e
do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição –; sem contar os fenômenos estéticos em que
resultam estes fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam”.
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efeito, produz-se uma maior guinada ao culturalismo do que o próprio Oracy Nogueira
(1985) pretendia assumir. Ao rever sua tipificação e as críticas que lhe foram atribuídas,
uma delas é particularmente importante. Ele sofreu críticas no sentido de que suas
categorias seriam demasiadamente culturalistas, e essa “acusação foi interpretada por
ele como significando: 1. Uma ênfase na cultura em detrimento de fatores estruturais e;
2. Dar explicações em termos culturais quando são plausíveis outros fatores”. Ele se
defende da acusação, dizendo reconhecer no preconceito racial uma manifestação
ideológica hegemônica em proveito da classe dominante e, invocando Antonio Gramsci
(1891 1937), argumenta que essa ideologia cumpre o papel de acimentar as estruturas
sociais, constituídas através do “controle dos meios de produção e o exercício do poder
em suas diferentes formas e esferas” (NOGUEIRA, 1985, p. 23).
Keppe Nogueira (2017), ao realizar um cruzamento entre suas reflexões sobre
Oracy Nogueira e a discussão sobre autodeclaração e heteroidentificação fenotípica nas
políticas afirmativas, tanto em universidades, quanto nos concursos públicos, defende o
seguinte:
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Como critérios complementares devem ser aventados: “A origem, a história e a cultura negras também
são consideradas na autoidentificação dos indivíduos” (NOGUEIRA, 2017, p. 129).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Entendimento similar foi defendido nacionalmente na Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa no Senado Federal no dia 14/09/2015; entre as propostas também há a de aumento no rigor
punitivo aos sujeitos que tentam fraudar as políticas de AA. Disponível em: https://goo.gl/2Hnbm2.
Acesso em: 20 mar. 2020.
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Cabe ainda destacarmos que a crítica que se constrói ao longo desse artigo é
contra a essencialização da cor e da raça e, em momento algum deve ser lido como
crítica às políticas de ação afirmativa. Trata-se, na verdade, do uso estratégico de Oracy
Nogueira para justificar uma decisão política de tratar a raça em sua dimensão objetiva,
especialmente o fenótipo, como fundamental para um procedimento técnico para
definição dos sujeitos de direito negro da política afirmativa e, com isso, produzir
segurança jurídica para as decisões institucionais, mas também, essencializar a categoria
raça nas políticas afirmativas.
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