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“IDEOLOGIA DE GÊNERO” ENQUANTO DISCURSO DE ÓDIO E A OFENSA

AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE

“GENDER IDEOLOGY” AS HATE SPEECH AND THE OFFENSE TO THE


PERSONALITY RIGHTS

DOI: XXXXXXX

INGRID GILI MARTINS


Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM). Advogada em Santa Catarina.
Email: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5901-0631

VALÉRIA SILVA GALDINO CARDIN


Pós-Doutorada em Direito pela Universidade de
Lisboa; Doutora e Mestre em Direito das Relações
Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUCSP); Docente da Universidade Estadual de
Maringá (UEM) e no Doutorado e Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em ciências Jurídicas da
Universidade Cesumar (UNICESUMAR). Pesquisadora
pelo Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e
Inovação (ICETI); Advogada no Paraná.
Email: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8603-054X

RESUMO Este artigo tem por escopo analisar o termo “ideologia de gênero” nas políticas
públicas no âmbito educacional brasileiro. Identificado enquanto uma categoria do discurso de
ódio, o termo contempla uma lógica de colonialidade de gênero. Analisar-se-á a importância
dos estudos de gênero para a ampliação de espaços democráticos, em cooperação com um
processo de interculturalidade das diversas vivências dentro de instituições de ensino,
proposta fundamentada na Constituição Federal, bem como nas diretrizes do Plano Nacional
de Educação. O trabalho possui abordagem indutiva, de cunho descritivo-explicativo, pelo
método de procedimento de revisão bibliográfica narrativa. O artigo não pretende esgotar o
assunto, tendo em vista sua complexidade, mas levantar reflexões necessárias a partir de
teóricos de estudos feministas e queer.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso de ódio; Gênero; Ideologia de gênero; Violação dos Direitos da


Personalidade.

ABSTRACT: This article aims to analyze the term “gender ideology” in public policies in the
Brazilian educational field. Identified as a category of hate speech, the term contemplates a
logic of gender coloniality. The importance of gender studies will be analyzed for the
expansion of democratic spaces, in cooperation with a process of interculturality of the
different experiences within educational institutions, a proposal based on the Federal
Constitution, as well as on the guidelines of the National Education Plan. The work has an
inductive approach, of a descriptive-explanatory nature, by the method of narrative
bibliographic review procedure. The article does not intend to exhaust the subject, given its
complexity, but to raise necessary reflections from feminist and queer studies theorists.

KEY-WORDS: Hate speech; Gender; Gender ideology; Violation of Personality Rights.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Do discurso da “ideologia de gênero”; 3 Do discurso de ódio; 4 Do


discurso da “ideologia de gênero” enquanto discurso de ódio; 5 Discurso da “ideologia de
gênero” e a ofensa aos direitos da personalidade das minorias sexuais; 6 Conclusão;
Referências.

1. INTRODUÇÃO
O termo “ideologia de gênero” surgiu no vocabulário da população brasileira
como um discurso de resistência de grupos políticos após a formulação do Plano
Nacional de Educação, pelo qual foram apresentadas metas a serem alcançadas pela
educação básica nacional, estadual e municipal entre os anos de 2014 e 2024, tais
como a garantia do direito à educação básica, a redução das desigualdades e a
valorização da diversidade, dos profissionais da educação e de metas para o ensino
superior (BRASIL, 2014).
A mudança no Plano Nacional de Educação desencadeou uma série de
alterações nos demais planos estaduais e municipais da Educação no ano de 2015, o
que ocasionou a retirada das questões relativas ao tema “gênero” e “sexualidade” das
discussões educacionais. Posteriormente, houve intensa propagação do termo
“ideologia de gênero” no ambiente político, disseminado por candidatos de diferentes
partidos, bem como por diversos grupos religiosos.
No primeiro capítulo o presente trabalho analisará como se propagou esse
discurso, seu objetivo, possíveis efeitos e consequências ou sequelas à população
brasileira e grupos alvo. No segundo capítulo examinará o significado de discurso e
ódio, para, posteriormente, definir o direito à liberdade de expressão, que é utilizado
como escusa por sujeitos que manifestam discursos de ódio, tendo em vista a
controvérsia acerca do limite entre a liberdade de expressão e tal discurso.
O terceiro capítulo abordará a disseminação do discurso da “ideologia de
gênero” enquanto uma categoria de discurso de ódio no ambiente educacional,
observando as narrativas dos agressores e o relato das vítimas. Assim, traça-se uma
linha de comunicação entre a epistemologia decolonial e o Direito, a fim de melhor
demonstrar o uso do discurso de ódio da “ideologia de gênero” enquanto uma forma
de colonização de gênero.
Desse modo, o presente trabalho apresenta abordagem indutiva, de cunho
descritivo-explicativo, pelo método de procedimento de revisão bibliográfica narrativa,
com levantamento de legislação e documentos pertinentes ao tema. O artigo não
pretende esgotar o assunto, tendo em vista sua complexidade e dimensão teórica, mas
levantar reflexões necessárias acerca do fenômeno estudado a partir de teóricos de
estudos feministas e queer.

2. DA IDEOLOGIA DE GÊNERO.

O termo “gênero” é complexo e possui diversas conceituações teórico-


científicas, que variam de acordo com o referencial teórico, o momento histórico, o
contexto geopolítico, as teorias epistemológicas e, até mesmo, metodológicas. Inexiste
a intenção de obter um conceito final e engessado acerca do termo, apenas há a
intenção de contribuir com uma “sumarização” de algumas das principais
contribuições de conceitos propostos por perspectivas feministas, já que o conceito de
gênero está diretamente ligado à história do movimento feminista contemporâneo e
com os estudos sobre mulheres (WEEKS, 2000).
Suas propostas de definição datam desde a década de 1940, com as
precursoras dos estudos sobre mulheres – Simone de Beauvoir (1949), Betty Friedan
(1963) e Kate Millett (1969) – as quais ganharam destaques nas universidades
contrapondo as teorias científicas dominantes que utilizavam a diferença biológica
reprodutora como explicação para as diversas desigualdades sociais entre homens e
mulheres (WEEKS, 2000).
Por mais que Beauvoir não tenha até aquela época utilizado o termo “gênero”
em suas obras, a autora foi fundamental para a construção do conceito, contribuindo
de forma significativa com a obra “O segundo sexo”, na qual propõe reflexões sobre a
categoria “mulher” enquanto sujeito de análise e sobre o chamado “eterno feminino”
– visto pela sociedade como natural e inerente à mulher, dada a subordinação
histórico-social desta em relação ao homem (SOUSA, 2016).
De acordo com a teoria de Simone de Beauvoir (1967, p. 10) historicamente a
mulher “determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a
ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela
é o Outro”. Para Beauvoir, não é o fator biológico que determina se uma pessoa é
homem ou mulher. Logo, “ser homem ou ser mulher consiste numa aprendizagem. As
pessoas aprendem a se conduzir como homem ou como mulher, de acordo com a
socialização que receberem, não necessariamente de acordo com o seu sexo”
(SAFFIOTI, 2000, p. 23).
Seguindo a lógica de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, o “tornar-
se” não está relacionado simplesmente a uma escolha do sujeito, mas corresponde a
um conjunto de normas que coagem o sujeito a se comportar de forma tal (BEAUVOIR,
1967, p. 9), isto é:

[...] há no sujeito que nasce com vagina, por exemplo, um tornar-se que
parece sugerir uma escolha, mas que no contexto da heterossexualidade
compulsória será apresentada ao sujeito como um imperativo, uma ordem:
‘torna-se mulher!’ (FIRMINO; PORCHAT, 2017, p. 55).

Em razão de suas reflexões acerca da imposição de um papel cultural ao


homem e à mulher, Beauvoir é considerada uma das filósofas precursoras do estudo
de gênero, a qual agregou a reflexão de que “as ideias pré-formadas e conceitos
estabelecidos acerca dos homens e mulheres devem fazer na sociedade não são
naturais” (RIBEIRO; FRANÇA, 2014, p. 4). Contudo, “é de autoria da historiadora norte-
americana Joan Scott o texto que marcou visivelmente a produção acadêmica que
utiliza o conceito de gênero” (TONELI, 2012) dado que, na década de 1990, a cientista
Joan Scott inseriu o termo “gênero” enquanto uma categoria de análise científica em
suas pesquisas como um instrumento metodológico (BENTO, 2017).
O conceito de gênero para Scott é acadêmico, “criado para opor-se a um
determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter
fundamentalmente social” (SOUZA FILHO, 2005, p. 129).
Nesse caso, para a autora, o termo gênero:

[...] é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso
rejeita explicitamente explicações biológicas, como aquelas que encontram
um denominador comum, para diversas formas de subordinação feminina,
nos fatos de que as mulheres têm a capacidade para dar à luz e de que os
homens têm uma força muscular superior. Em vez disso, o termo "gênero"
torna-se uma forma de indicar "construções culturais" - a criação
inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às
mulheres (SCOTT, 1995, p. 75).
De acordo com a análise científica de Joan Scott (1995, p. 72) o gênero é uma
“maneira de se referir à organização social de relações entre os sexos”, assim como na
“gramática, o gênero é compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um
sistema socialmente consensual de distinções e não uma descrição objetiva de traços
inerentes”. Para Scott (1995, p. 75) gênero “trata-se de uma forma de se referir às
origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres”,
“assim, refletir sobre o gênero significa pensar sobre como construímos as
representações culturais e simbólicas de ser masculino e de ser feminino” (ABREU,
2014). Scott (1995, p. 72) ressalta que a palavra “gênero” não exclui “possibilidades
não-examinadas”, tendo em vista a existência de diversos gêneros que não são
contemplados pela categoria binária homem/mulher, como por exemplo os chamados
“sem sexo ou o neutro”. Dessa forma:

[...] eliminando as diferenças entre mulheres e homens, encontramos já um


primeiro ponto constitutivo do conceito de gênero. O gênero transcende
esses dois termos, pois indica uma construção social, como uma criação do
social em cima dos papéis respectivos de homem e mulher. Gênero seria,
então, uma categoria social, que se constrói a partir de um corpo assexuado,
vai além de definições biológicas (ABREU, 2014, p. 3).

O termo gênero abrange outras formas de vivências de gênero, sendo


fundamental para construir “um novo olhar aberto às diferenças” e para que atender
“à necessidade de ampliação de *...+ vocabulário” acerca “da multiplicidade das
dimensões constitutivas das práticas sociais e individuais” (RAGO, 1998, p. 98).
No contexto brasileiro, os estudos de gênero alertam quanto à urgência de
discutir a relação de poderes entre gêneros, uma vez que o Brasil é o país que mais
mata transexuais no mundo, conforme os dados evidenciados pela ONG Transgender
Europe (TGEU, 2021), e o quinto país que mais mata mulheres, de acordo com
pesquisas da Organização Mundial da Saúde (ONU BRASIL, 2016).
Na década de 1990, tendo em vista a pesquisa sobre violências vinculada aos
estudos de gênero, instituições de diversos países passaram a promover eventos com
o fim de discutir políticas públicas para combater esses índices, como por exemplo, a
“Conferência Internacional sobre População”, no Cairo, e a “Conferência Mundial
sobre as Mulheres”, em Pequim, conferências em que foram discutidas políticas
públicas para o combate da opressão sexual e de gênero.
Como reação às deliberações aprovadas nessas conferências emergiu um
discurso antigênero, disseminado por grupos religiosos (JUNQUEIRA, 2019) e que
afirmava que os estudos de gênero afrontavam o dogma da existência de apenas um
único modelo de família como correta – a família heterocisnormativa, composta por
uma relação entre um homem cisgênero e uma mulher cisgênero, a qual deve
submissão ao homem, bem como possui um único objetivo: a prole, e, qualquer
postura que foge a essa norma é vista como aversiva, merecendo ser corregida.
Portanto, os estudos que apontavam a desigualdade entre gêneros e as violências
geradas a partir disso correspondiam a um afronte à igreja (JUNQUEIRA, 2019). Os que
defendiam o discurso antigênero denominaram os estudos de gênero como “ideologia
de gênero”.
Conforme o levantamento da origem do discurso da “ideologia de gênero” feito
por Junqueira (2019), a primeira vez que o termo foi empregado foi em um documento
eclesiástico, no ano de 1998, na Conferência Episcopal do Peru, em uma nota
publicada com o título “A ideologia de gênero: seus perigos e seus alcances”, escrita
pelo bispo auxiliar de Lima. No Brasil, a partir do ano de 2014, o termo “ideologia de
gênero” também emergiu no vocabulário da população como discurso de resistência
de grupos religiosos e de grupos políticos em razão da formulação do Plano Nacional
de Educação (PNE), o qual apresentava metas a serem alcançadas entre os anos de
2014 e 2024 – tais como a garantia do direito à educação básica, a redução das
desigualdades e a valorização da diversidade, a valorização dos profissionais da
educação e de metas para o ensino superior (BRASIL, 2014).
Em razão da presença dos termos “gênero” e “orientação sexual” no PNE, uma
parcela da população passou a chamar de “ideologia de gênero” o conteúdo contido
na apresentação da proposta da diretriz para a redução das desigualdades a partir da
promoção da “igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” (BORGES;
BORGES, 2018).
De acordo o que chamavam de “ideologia de gênero”, havia uma tentativa de
conversão das crianças em crianças trans e gays a partir da proposta de ensino sobre
violência sexual, LGBTfobia, racismo e violência contra a mulher, diversidade de
gêneros e diversidade sexual. Esses grupos reacionários passaram a reclamar por
alterações no texto do PNE e pedir por leis que proibissem a abordagem destes temas
nas escolas (BORGES; BORGES, 2018). Não resistindo à pressão social, o Plano Nacional
de Educação sofreu alterações em seu texto, passando a apresentar em sua proposta a
promoção de “cidadania e da erradicação de todas as formas de discriminação”
(BRASIL, 2014).
Com a mudança no Plano Nacional de Educação houve a retirada das questões
relativas a gênero e às sexualidades das discussões educacionais, dando início a caça a
materiais didáticos utilizados em escolas públicas que apresentavam conteúdos sobre
identidades/expressão de gênero, diversidade e respeito, sendo genericamente
rotulados como conteúdo de “ideologia de gênero” – a exemplo da Lei nº 6.496/2015,
do Município de Cascavel, da Lei nº 3.468/2015, do Município de Paranaguá e da Lei
Orgânica Municipal de nº 47/2018 do Município de Foz do Iguaçu, cidades do Estado
do Paraná, que proibiram a “ideologia de gênero” nas escolas (CASCAVEL, 2015;
PARANAGUÁ, 2015; FOZ DO IGUAÇU, 2018).
Em setembro de 2019, o Governador do Estado de São Paulo, João Doria,
ordenou o recolhimento de materiais didáticos utilizados em escolas estaduais
paulistas. De acordo com o Governador, os materiais faziam apologia à “ideologia de
gênero” por trazer conceitos de “gênero” e “sexo biológico”. Após a determinação de
Doria, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, que já havia discursado em sua
campanha eleitoral sobre um suposto kit gay que seria distribuído nas escolas
públicas, solicitou ao Ministério da Educação a elaboração de um projeto de lei contra
a “ideologia de gênero” no Ensino Fundamental (Beatriz JUCÁ, 2019).
O que o discurso da “ideologia de gênero” propaga sobre os estudos de gênero
não corresponde aos estudos de gênero, pelo contrário, o primeiro consiste na
deturpação do segundo, já que, de acordo com o que chamam de “ideologia de
gênero”, existe o objetivo de determinados grupos de corromper o gênero “natural” e
a sexualidade das crianças e dos adolescentes por meio da educação pública.
Os estudos acerca das questões de gênero correspondem uma proposta que
contribui para a construção de uma educação pública antidiscriminatória, que coopere
para um processo de interculturalidade das diversas vivências e saberes dentro das
instituições de ensino, proposta essa fundamentada na Constituição Federal de 1988,
em seu art. 3º, inc. I1, art. 5º caput2, inc. IX3, inc. LIV4, art. 19, inc. I5, art. 22, inc. XXIV6,
art. 206, inc. I e II7, art. 226, §5º8 (BRASIL, 1988) e nas diretrizes do Plano Nacional de
Educação (Lei nº 13.005, de 2014). Os estudos de gênero consistem em:

[...] um importante instrumento político e analítico, posto que a


compreensão mais aprofundada de suas múltiplas dimensões, incluindo a
heteronormatividade, conduz à necessidade de políticas educacionais
incisivas que assegurem medidas de subversão à ordem dos gêneros, por
meio de práticas pedagógicas inclusivas, solidárias, emancipatórias,
capazes de promover uma educação (formal e não formal) que conduza à
equidade entre as pessoas, independentemente do sexo, gênero,
orientação sexual, raça, geração (FAGUNDES, 2019, p. 93).

A partir dessa comparação entre o que chamam de “ideologia de gênero” e os


estudos de gênero é possível observar que o discurso da “ideologia de gênero” possui
o animus de obstaculizar as discussões sobre as violências aqui mencionadas nos
planos educacionais.
Verifica-se que esse discurso amedronta as pessoas, criando no imaginário da
sociedade o temor de que haverá crianças se “transformando” em LGBTQA+ por meio
da implementação dos estudos gênero e sexualidade nas escolas. Esses argumentos
situam o sujeito LGBTQA+ na categoria de um “não-ser”, como contrário do “ser”, ou
seja, neste discurso há construção da existência de uma única forma possível de ser: o
branco, heterossexual-cisgênero (CARNEIRO, 2005), enquanto os que pertencem a tal

1
“Art. 3º, inc. I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988).
2
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]” (BRASIL, 1988).
3
“IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença; [...]” (BRASIL, 1988).
4
“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; [...]” (BRASIL,
1988).
5
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhe o funcionamento ou manter
com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a
colaboração de interesse público; [...]” (BRASIL, 1988).
6
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: [...]
XXIV – diretrizes e bases da educação nacional; [...]” (BRASIL, 1988).
7
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; [...]” (BRASIL,
1988).
8
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[...] § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e
pela mulher (BRASIL, 1988).
subjugação são alvo de exclusão, discriminação e extermínio, contexto que caracteriza,
assim, um discurso de ódio.

3. DO DISCURSO DE ÓDIO

Ao definir discurso de ódio, Samantha Ribeiro Mayer-Pflug (2009, p. 97)


ressalta que esse tem como alvo de discriminação grupos minoritários, a exemplo do
grupo LGBTQA+, e “não se confunde com o insulto individual, ou seja, com a
difamação de um determinado indivíduo em particular, mas sim com o insulto a um
determinado grupo ou classe”. Salienta-se que um simples discurso se diferencia do
discurso de ódio, dado que o último, de acordo com Renata Machado da Silveira
(2007) consiste em manifestações de pensamento que buscam transmitir e alimentar o
ódio, de forma a desvalorizar, menosprezar, desqualificar e inferiorizar o ser humano à
condição de objeto. Além disso, o autor explica que o ódio social não é apenas o
motivo de conflitos entre os indivíduos isoladamente considerados, mas também
daqueles que envolvem o coletivo, os grupos e as classes sociais.
Usado como ferramenta de dominação, esse tipo de manifestação pública de
pensamento possui potencial ofensivo ainda mais exorbitante quando proferida
por líderes políticos, tendo em vista que esses sujeitos possuem uma enorme
influência sobre inúmeras instituições, que reproduzem o discurso de forma
materializada, com o escopo de calar ou excluir minorias sociais.
O discurso de ódio se difere de uma mera manifestação de opinião por possuir
capacidade de lesar os direitos de outras pessoas, uma vez que:

[...] ele é uma ação com viés comunicativo que, quando assume ênfase no
ato de desvalor da vítima, deixa de ser uma mera opinião, configurando-se
como um discurso de incitação ao ódio, já que acarreta efeitos materiais
lesivos a seus destinatários (CAZELATTO; CARDIN, 2018, p. 99).

A manifestação de ódio não se confunde com o direito à liberdade de


expressão, pois, apesar de que não haver possibilidade de censura à liberdade de
expressão, isso não exclui a aplicação de punições quando o abuso desse direito
extrapolar as garantias constitucionais e ameaçar outros bens jurídicos. O argumento
de que quem dissemina o discurso de ódio está no seu direito à liberdade de expressão
é uma alegação baseada na própria perspectiva do opressor.
No que tange à restrição da liberdade de expressão, a própria Constituição
limita o direito à liberdade de expressão, tendo em vista que “o primeiro limite
constitucional explícito ao direito de liberdade de expressão é que ele não produza
dano material, moral ou à imagem (art. 5º, V, CF)”, pois nessas situações garante-se “o
direito de indenização ao ofendido, deixando claro que o ato não é lícito” (SILVA, 2012,
p. 51).
O discurso de ódio, portanto, possui capacidade de propagar e legitimar a
violência, o que reflete diretamente nos casos de violências nos demais espaços
públicos, impactando a vida de mulheres, pessoas não brancas e LGBTQ+ em
ambientes públicos e privados, o que reflete não apenas a desestruturação social em
caráter coletivo, mas também legitima atentados aos direitos individuais de pessoas
pertencentes aos grupos alvo de discriminação.

4. DA IDEOLOGIA DE GÊNERO ENQUANTO DISCURSO DE ÓDIO.

O discurso da “ideologia de gênero” tem caráter de discurso de ódio, uma vez


que humilha e discrimina pessoas em razão de identidade de gênero e orientação
sexual que se diferenciam da heterossexualidade e cisgeneridade; traz como
consequência uma dominação de gênero pela cisheteronorma – instrumento de
manutenção do colonialismo do ser, do saber e do poder, o qual mantém enraizado
um único modelo de ser como “normal” na sociedade.
O discurso da “ideologia de gênero” dificulta o acesso da minoria sexual a
direitos básicos, como o direito ao nome e à identidade para pessoas trans, o direito a
não-discriminação, ao reconhecimento social e o direito à educação, tornando o
ambiente de ensino desfavorável à permanência de jovens LGBTQA+. Um exemplo das
consequências do discurso de ódio contra pessoas LGBTQA+ é a marginalização dos
indivíduos subjugados, o que corrobora para a evasão escolar deste grupo.
Conforme afirma Rodrigo Janot Monteiro de Barros, então Procurador-Geral da
República, no parecer de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com
pedido de medida cautelar, contra os artigos 2º, caput, e 3º, caput, da Lei nº 3.491, de
28 de agosto de 2015, do Município de Ipatinga (MG), os quais excluem da política
municipal de ensino qualquer referência à diversidade de gênero e orientação sexual:

[...] se a igualdade é virtude soberana de um estado, a vida de todos e de


cada um importa. Todos os corpos precisam encontrar não apenas a mesma
proteção, como a mesma representação nos espaços públicos.
Representação da diversidade de corpos e sexualidade é ferramenta
indispensável na prevenção da discriminação sexual e no combate à evasão
escolar das pessoas que não se identifiquem com o padrão heteronormativo
9
(BRASIL, 2017) .

Em uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,


Bissexuais, Travestis e Transexuais (AGBLT) e pela Secretaria de Educação do Estado do
Paraná (BRASIL, 2016), no ano de 2015, 1.016 adolescentes, com idade entre 13 a 21
anos, foram entrevistados e questionados sobre a segurança nas instituições
educacionais de modo geral, considerando suas características pessoais de orientação
sexual, gênero e identidade/expressão de gênero, bem como o tamanho ou o peso
corporal.
Como resposta da pesquisa, os dados apontam que muitos estudantes
LGBTQA+ se sentem inseguros e vulneráveis a diversos tipos de violência, sendo que
60,2% afirmaram se sentir inseguros/as na instituição em razão de sua orientação
sexual e 42,8% se sentiam inseguros/as por causa da maneira como expressavam o
gênero (BRASIL, 2016).
Assevera Oliva que:

[...] o reproduzir de forma extrema a ideologia do heterossexismo, o


discurso do ódio funciona como forma de exteriorização da homofobia.
Deste modo, contribui para a sua propagação e para a formação de uma
atmosfera ameaçadora e intimidatória contra a população LGBT (OLIVA,
2015, p. 58).

De acordo com pesquisa realizada pelo Defensor Público João Paulo Carvalho
Dias, ex-presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do
Brasil - Seccional do Mato Grosso, há estimativa de que o país concentre 82% de
9
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Nº 144.923/2017-
AsJConst/SAJ/PGR. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Lei 3.491/2015 do
Município de Ipatinga (MG). Vedação de diretrizes, estratégias ou ações de promoção à diversidade de
gênero, “ideologia de gênero” e orientação sexual. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/adpf-467-ideologia-de-genero-ipatinga.pdf. Acesso em: 2 abr.
2019.
evasão escolar de travestis e transexuais, uma situação que aumenta a vulnerabilidade
dessa população e favorece os altos índices de violência (CUNHA; HANNA, 2017).
De acordo com entrevista concedida pelo professor Fabricio Ricardo Lopes
(2020), as histórias de escolarização não se separam das histórias de vida, uma
alimenta a outra, nós somos muito marcados subjetivamente pela forma que somos
tratados em ambiente escolar, portanto, quando há risco à vida ou à integridade física
do indivíduo se torna praticamente impossível sua permanência neste espaço.
A imposição de um ser “normal” (o ser branco, hetero e cisgênero) e o
“anormal” (o outro) pelo discurso da “ideologia de gênero”, como se existisse apenas
uma forma universal do ser, de modo que os que não se enquadrarem neste normal
serão alvo de violência e/ou invisibilidade trata-se de apenas uma das partes de:

[...] uma longa história de colonização pelo preconceito, praticada sobre o


imaginário de diversas sociedades, representando a homossexualidade
como uma exceção ou como um desvio ou inversão no quadro de uma
pretendida normalidade heterossexual (SOUZA FILHO, 2009, p. 95).

Para Boaventura de Souza Santos (2010) o colonialismo persiste nos tempos


atuais por meio de políticas de Estado. Quanto ao objeto de estudo aqui tratado, é
possível citar como exemplo as medidas tomadas orientadas pelo discurso da
“ideologia de gênero”. Para o autor, é necessário a superação do paradigma
universalista, tendo em vista que a sua imposição consiste em uma violência não só
política, mas também em violência às subjetividades dos colonizados:

[...] la dificultad de imaginar la alternativa al colonialismo reside em que el


colonialismo interno no es solo ni principalmente uma política de Estado,
como sucedía durante el colonialismo de ocupación extranjera; es uma
gramática social muy vasta que atraviesa la sociabilidade, el espacio
público y el espacio privado, la cultura, las mentalidades y las
subjetividades (SANTOS, 2010, p. 15).

Há uma dimensão de gênero no sistema moderno colonial e este utiliza práticas


discursivas para colonizar os nativos, impondo condutas consideradas corretas e
normais para definir um padrão de normalidade do que pode ser homem e do que
pode ser mulher (LUGONES, 2008). Assim, o discurso que se volta contra uma alegada
“ideologia de gênero” é um discurso de ódio, um instrumento da colonialidade de
gênero do ser. Em outras palavras, há imposição de apenas uma teoria intelectual,
considerada como hegemônica/universal, que acaba por definir a construção do
indivíduo e de sua subjetividade com base em padrões universais (do masculino, da
heterocisnormatividade e da branquitude etc.), em razão da dominação do “outro”,
definida a partir da fronteira do gênero.

5. DISCURSO DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO” E A OFENSA AOS DIREITOS DA


PERSONALIDADE DAS MINORIAS SEXUAIS

O discurso reacionário que denomina “ideologia de gênero” a discussão de


questões essenciais e necessárias sobre gênero e sexualidade nas escolas não deve
prosperar, uma vez que ofende os direitos fundamentais e da personalidade de grupos
minoritários.
Conforme Elimar Szaniawski (2002) a personalidade representa o conjunto
de características únicas e inerentes ao indivíduo, sendo por meio desta que é possível
adquirir e defender bens e direitos, como a vida, a honra, a liberdade etc. Portanto, diz
respeito aos padrões, pensamentos, autopercepção e expressão da pessoa,
distinguindo-a dos demais em sociedade.
Como pontua Carlos Alberto Bittar (2008) os direitos da personalidade são
direitos inatos, absolutos, intransmissíveis, impenhoráveis, vitalícios,
extrapatrimoniais, necessários e oponíveis erga omnes. São direitos da pessoa
considerada em si mesma e anteriores ao Estado.
Na visão de Adriano de Cupis (1967, p. 17) existem certos direitos sem os quais
a personalidade “restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de
todo o valor concreto: direitos sem os quais todos os outros direitos subjetivos
perderiam todo o interesse para o indivíduo”. Isto é, caso não existissem, o indivíduo
não existiria como tal. São, portanto, direitos essenciais.
Os direitos da personalidade são tratados em capítulo próprio pelo Código Civil
de 2002, entre os arts. 11 e 2110 (BRASIL, 2002). Segundo o diploma legal, os direitos

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Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e
danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
da personalidade são intransferíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício
sofrer limitação voluntária. Contudo, autores como Szaniawski (2002), Maria Celina
Bodin de Moraes (2002) e Gustavo Tepedino (2006) compreendem que o rol de
direitos da personalidade disposto no Código Civil não é taxativo, de forma que outros
direitos, não contemplados pelo codex, também são fundamentais para o
desenvolvimento da personalidade, sobretudo diante da evolução social e da
dificuldade de o Direito acompanhar e regular todas as esferas e temáticas da ordem
social ao tempo que estas são identificadas e reconhecidas.
Parte da doutrina compreende que a dignidade humana, prevista no art. 1º,
inc. III, da Constituição Federal de 1988 seria uma cláusula geral de proteção da
personalidade, protegendo o ser em sua totalidade (BRASIL, 1988; SZANIAWSKI, 2002).
Verifica-se que a tutela da dignidade humana pressupõe uma série de garantias e
direitos que proporcionem ao indivíduo um mínimo capaz de balizar uma existência
que pudesse ser considerada digna (SARLET, 2009), sob diversos aspectos (políticos,
sociais, econômicos, educacionais, individuais etc.).
Neste sentido, a educação de gênero é um direito humano essencial à
“formação da personalidade do indivíduo; logo, é crucial para uma vida saudável, para
a inclusão social, para a capacidade de autoaceitação, de tolerância e de respeito à
diferença” (TOBBIN; CARDIN, 2020, p. 31).

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o
cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar
diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida
em lei especial.
Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo
ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a
intervenção cirúrgica.
Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a
exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.
Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem
pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização
da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que
couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção
o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as
providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma (BRASIL, 2002).
Para Tobbin e Cardin (2020, p. 30) a:

[...] escola também não pode ceder às exigências de setores mais


conservadores da sociedade e deixar de propor o diálogo quanto ao gênero
e à sexualidade, visto que o meio escolar, por vezes, é o único local detentor
de capacidade de confronto e de combate a concepções e ideais
preconceituosos e discriminatórios. A diversidade sexual de gênero não é
fenômeno controlável por vias segregatórias ou marginalizantes, visto que
persiste mesmo diante da falta de proteção jurídica e da omissão estatal,
especialmente legislativa. Logo, é realidade que se impõe e que se sobrepõe
aos padrões e aos estereótipos sociais que não condizem com o Estado
Democrático de Direito ou com a aceitação da diferença. A escola da pós-
modernidade é laica e deve ser orientada por ideais inclusivos e nunca por
aqueles que privilegiem apenas um viés de discurso, em detrimento de
outros menos aceitos pela moral hetero-cis-normativa (TOBBIN; CARDIN,
2020, p. 30).

Na visão de Valéria Silva Galdino Cardin, Caio Eduardo Costa Cazelatto e Luiz
Augusto Ruffo (2019, p. 430) “a proibição de discriminação se fundamenta na ideia de
que a sexualidade é um dos componentes da personalidade do indivíduo e serve como
raiz para os direitos da personalidade”, entre eles, “o direito à própria identidade e à
sua identificação, que são tutelados pelo ordenamento jurídico”.
A escola é um ambiente fundamental para garantir dignidade à vida do
indivíduo, de modo que deve ser pautada no reconhecimento da diversidade e na
concessão de instrução que garanta igualdade de oportunidades a todas as pessoas.
Logo, é contexto que não pode compactuar com a discriminação, os efeitos do
patriarcado e combater as nuances da desigualdade.
A tentativa de proibição de discussão acerca de questões de gênero nas escolas
é uma ofensa aos direitos humanos, fundamentais e de personalidade do indivíduo,
sobretudo porque a expressão da sexualidade e o debate acerca dos papéis
designados aos gêneros sob a perspectiva binária e cisheteronormativa são essenciais
para que o indivíduo seja inserido em sociedade.

6. CONCLUSÃO

Apesar do direito à liberdade de expressão possuir garantia constitucional,


tendo em vista ser um direito essencial à realização do ser humano, há uma tênue
linha entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio, sendo que este último é
entendido como a manifestação de pensamento que possui o fim de violar os bens
jurídicos de pessoas que pertencem, na maioria das vezes, a grupos minoritários.
Verificou-se que houve uma intensa disseminação do discurso da “ideologia de
gênero” por parte de políticos e de grupos religiosos nos últimos anos, os quais
utilizaram argumentos LGBTfóbicos para proibir a discussão de questões de gênero na
educação pública e que denunciam diversos tipos de violências e formam jovens mais
responsáveis para com o direito de outras sujeitos, independente da orientação
sexual, da identidade/expressão de gênero, da cor etc.
Esse discurso corrobora para a evasão escolar de pessoas LGBTQA+,
especialmente pessoas transgênero e travestis, que encontram na escola um ambiente
ameaçador, inseguro, e deixam de frequentar esse espaço, já que quando esse cenário
representa risco à vida ou à integridade física se torna impossível a sua permanência. A
falta de educação de gênero nas escolas ofende a personalidade do indivíduo,
sobretudo porque é óbice ao enfrentamento de questões essenciais que impedem o
indivíduo que exercer livremente sua sexualidade e identidade de gênero.
Dessa forma, tendo em vista as características do discurso de ódio, como a
discriminação, o ataque a bens jurídicos de grupo minoritários, características essas
trazidas no desenvolvimento desta pesquisa, foi possível observar o discurso da
“ideologia de gênero” enquanto uma categoria do discurso de ódio, dado que o
primeiro possui os mesmos atributos do segundo.
A exclusão dos termos “gênero” e “orientação sexual” do Plano Nacional de
Educação, em razão da disseminação do discurso de ódio da “ideologia de gênero”,
contribui para um ambiente excludente e hostil na rede pública de educação, uma vez
que esse discurso está pautado em argumentos de opressão que constroem uma
imagem do sujeito LGBTQA+ enquanto um “não-ser”, ou seja, o que as crianças não
devem ser, refletindo diretamente nos direitos fundamentais e de personalidade
desses sujeitos.

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Como citar:
GILI, Ingrid Martins. GALDINO, Valéria Silva Cardim. “IDEOLOGIA DE GÊNERO” ENQUANTO
DISCURSO DE ÓDIO E A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, Salvador-ba, v.32, ano 2022:
pág(1-20). DOI: (endereço do DOI desse artigo). Disponível em: endereço eletrônico. Acesso
em: xx mês abreviado. xxxx.

Originais recebido em: 18/05/2022.


Texto aprovado em: 19/08/2022.

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