A CONSTRUÇÃO DO PÂNICO MORAL A PARTIR DAS

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A CONSTRUÇÃO DO PÂNICO MORAL A PARTIR

DAS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NOS


DISCURSOS ULTRACONSERVADORES NO BRASIL
Cleide Ester de Oliveira*, Nadir de Fátima B. Bittencourt**,
Veralúcia G. de Souza***, Paulo Sesar Pimentel****,
Kátia Terezinha P. Ormond*****, Isabel Cristina Silva******

Resumo
A discursividade de líderes políticos e religiosos brasileiros a respeito de gênero e sex-
ualidades contribuiu para levar o pânico moral à sociedade, levando-a a reproduzir esses
discursos. O objetivo deste artigo é analisar, a partir do aporte teórico da arqueogenealogia
de Foucault, como esses discursos são reproduzidos. As categorias abordadas são: discurso,
poder/saber/verdade e normatização. Com uma abordagem qualitativa, foram anali-
sados vídeos do YouTube com pronunciamentos de líderes políticos religiosos brasileiros.
Ancorados na Análise do Discurso, a partir das categorias: Quem fala? De onde fala? Que
efeitos de sentido geram? podemos perceber que os sujeitos são atravessados por discursos
de cunho moral, religioso e pseudocientífico que sustentam a heteronormatividade e os
grupos que não se enquadram nesse padrão são excluídos.
Palavras-chave: Gênero, sexualidades, educação, pânico moral, exclusão.

Abstract
Gender and sexualities used in construction of moral panic in ultraconservative
political speeches in Brazil
The discourse of Brazilian political and religious leaders regarding gender and sex-
ualities contributed to bring moral panic to society, leading it to reproduce these discourses.
The aim of this paper is to analyze, based on the theoretical contribution of Foucault’s
archeo-genealogy, how theses discourses are reproduced. The addressed categories are dis-
course/power/truth and normatization. With a qualitative approach, YouTube videos with
statements of Brazilian religious political leaders were analyzed. Anchored in Discourse
Analysis, from the categories: Who speaks? Where are you talking from? What effects of

* Grupo de Pesquisa em Humanidades e Sociedade Contemporânea. Instituto Federal de Educa-


ção, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT), Brasil.
Endereço postal: Av. Sen. Filinto Müller, 953 – Quilombo, Cuiabá – MT, 78043-400, Brasil.
Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https//orcid.org/0000-0002-5094-235X
** Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https//orcid.org/0000-0002-0021-5437
*** Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https//orcid.org/0000-0003-1038-7387
**** Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https//orcid.org/0000-0002-2233-3100
***** Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https//orcid.org./0000-0002-0118-023X
****** Endereço eletrónico: [email protected]
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0280-1322

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Souza, Paulo Sesar Pimentel, Kátia Terezinha P. Ormond, Isabel Cristina Silva

meaning do they generate? we can notice that the subjects are crossed by moral, religious
and pseudoscientific discourses that support heteronormativity and the groups that do not
fit this pattern are excluded.
Keywords: Keywords: gender; sexuality, education, moral panic, exclusion.

Resumen
Género y sexualidades utilizados en la construcción del pánico moral en los discur-
sos ultraconservadores en Brasil
El discurso de los líderes políticos y religiosos brasileños sobre género y sexualidades
contribuyó a llevar el pánico moral a la sociedad, llevándola a reproducir estos discursos.
El objetivo de este artículo es analizar, con base en la contribución teórica de la arqueo-ge-
nealogía de Foucault, cómo se reproducen estos discursos. Las categorías abordadas son:
discurso, poder/saber/verdad y normatización. Con un enfoque cualitativo, se analizaron
videos de YouTube con declaraciones de líderes políticos y religiosos brasileños. Anclado
en el análisis del discurso, a partir de las categorías: ¿Quién habla? ¿De dónde habla? ¿Qué
efectos de sentido generan? podemos percibir que los sujetos están atravesados por discur-
sos de naturaleza moral, religiosa y pseudocientífica que sostienen la heteronormatividad y
los grupos que no se ajustan a este patrón están excluidos.
Palabras-clave: Género, sexualidades, educación, pánico moral, exclusión.

Introdução

As discussões sobre gênero e sexualidades têm-se tornado assunto polêmico


na sociedade brasileira. Este tema fez parte de embates no campo da política na
última década (Oliveira 2014) e, em 2018, deu a vitória a um candidato ultracon-
servador que se utilizou destes tópicos para criar pânico moral na sociedade, ao
distorcer projetos e propostas educacionais que visavam combater a LGBTfobia e
trazer as discussões sobre gênero para o interior das escolas.
Determinados setores de nossa sociedade – hoje representados politicamente
no executivo federal – exigem que nossa identidade seja única, fixa, estável e em
acordo com a biologia, ou seja, que mostremos um sexo verdadeiro, ajustado à
norma heterossexual. Como característica desta exigência, há o estabelecimento
de um padrão de normalidade, resumido ao conjunto binário: mulher=feminina,
homem=masculino. Essa construção tem origem em um possível determinismo
biológico, cujos corpos são compreendidos no dismorfismo macho-fêmea. Isso
significa que homens e mulheres são representados em suas anatomias de forma
estável e delimitada em papéis sociais masculinos e femininos. Ser homem corres-
ponde a rejeitar todo e qualquer traço que identifique o universo feminino (Reis e
Pinho 2016).
Para este segmento social, não há outra possibilidade fora desse modelo dua-
lista e hierarquizado. Ainda hoje, identidades e sexualidades que fogem a esse
padrão são consideradas algum tipo de perturbação ou patologia mental, emocio-
nal ou física. Estudos, no entanto, apontam para o fato de que considerar o sexo, o

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desejo, o gênero e as sexualidades como fixos e indiscutíveis provoca atitudes de


violência, exclusão e torna difícil – ou impossível – a vida de muitos indivíduos
(Junqueira 2009; Borillo 2010; Oliveira 2014).
O Grupo de Pesquisa em Humanidades e Sociedade Contemporânea (GPHS-
C),1 do qual fazemos parte, conta com pesquisadores das várias áreas das ciências
humanas e sociais. Os pesquisadores buscam interpretar a sociedade contemporâ-
nea, a partir de diferentes concepções teóricas e autores, descrevendo e analisando
através de diferentes ângulos os mesmos fenômenos: violência, discriminação,
preconceito, xenofobia, direitos humanos e bullying.
A partir do ano 2000 – em função da organização e mobilização de grupos
representantes do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) rei-
vindicando seus direitos de cidadania –, foi identificada, por parte dos gestores
públicos, a necessidade de elaborar um programa de combate à LGBTfobia mais
consistente. Para dar início a esse programa, a UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em parceria com o MEC (Ministé-
rio da Educação e Cultura), realizou uma pesquisa sobre o «Perfil dos Professores
Brasileiros», entre abril e maio de 2002, com cinco mil professores da rede pública e
privada. Os dados indicaram que 59,7% deles não admitem que uma pessoa tenha
relações homossexuais e 21,2% deles não gostariam de ter vizinhos homossexuais
(Abramovay, Castro e Silva 2004).
Entre os anos de 2016 e 2018, um grupo de pesquisa de Mato Grosso/Brasil,
composto por pesquisadores de diversas áreas e formações, realizou um estudo
qualitativo, através de questionário online, com a temática: Bullying e Violação dos
Direitos Humanos. Nessa pesquisa, foram entrevistados 615 estudantes do ensino
médio. Desse total, aproximadamente 5% afirmaram que já sofreram humilhação
por sua orientação sexual. Nas questões propostas no questionário, os pesquisa-
dores solicitavam aos/às discentes sugestões para acabar com o bullying. Dentre
as respostas, muitos enxergam a violência como alternativa para a solução do pro-
blema, como é possível perceber nas seguintes falas dos estudantes: «‘Caso con-
tinuar, revidar violentamente’, ou ainda, ‘Violência se combate com violência’»
(Silva, Silva, e Mota 2018).
Para romper com essa lógica de naturalização da exclusão de determinados
grupos sociais, no ano de 2004, o MEC, em parceria com a UNESCO, lançou a
Coleção Educação para Todos, inaugurando um espaço para divulgação de textos,
documentos, relatórios de pesquisas e eventos, estudos de pesquisadores, acadê-
micos e educadores nacionais e internacionais que têm por finalidade aprofundar
o debate em torno da busca de uma educação abrangente e democrática (Oliveira
2014).
Esse material, chamado por seus detratores de kit gay, suscitou polêmicas de
ordem social, religiosa e política bastante complexas e de repercussão nacional,

1
CAAE: 60165016.0.0000.5165/ Número do Parecer do Comitê de Ética: 1.773.781.

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gerando reações de pânico moral no país inteiro. O confronto se estabeleceu de


forma acirrada nos meios de comunicação: de um lado, alguns religiosos e políti-
cos com características conservadoras e também cidadãos brasileiros que apoiam
a ideologia LGBTfóbica; do outro, o Ministro da Educação e uma parte da socie-
dade que acompanha as transformações e reivindicações dos direitos das minorias
como um exercício democrático cidadão. Nessa queda de braço, por forte pressão
da bancada religiosa, que é formada por parlamentares de diferentes denomina-
ções religiosas no Congresso Nacional, o projeto foi engavetado em 2011 com o
veto da Presidente Dilma, que cedeu às pressões (Oliveira 2014).
Sobre orientação sexual e gênero, o Conselho Nacional de Educação (CNE)
acatou a sugestão do MEC e excluiu da Base Nacional Curricular Comum (BNCC)
os termos relacionados à questão de gênero e orientação sexual. No parecer, a jus-
tificativa é que a temática «gênero» foi objeto de muitas controvérsias durante os
debates públicos da BNCC.
Como reação, houve a utilização do termo «ideologia de gênero», criado
recentemente no interior de alguns discursos religiosos e políticos, que não reflete
o entendimento de «gênero» presente no contexto educacional, nas práticas docen-
tes ou na formação de professores (Borges e Borges 2018). A «ideologia de gênero»,
segundo seus defensores, portanto, levaria à destruição da família tradicional, à
legalização da pedofilia, do aborto, incentivaria o homossexualismo [sic], anularia
a diferença entre homem e mulher, etc. Enfim, levaria ao fim a ordem natural e as
relações entre os sexos.
Os bispos da regional Sul da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) emitiram nota em que destacam os riscos da inclusão da ideologia de
gênero nos planos estadual e municipal de educação. Segundo a nota:

a ideologia de gênero sustenta que a pessoa humana é sexualmente indefinida e inde-


finível. Elimina-se a ideia de que os seres humanos se dividem em homem e mulher.
Para além das evidências anatômicas, entendem que esta não é uma determinação
fixa da natureza, mas resultado de uma cultura ou de uma época. Para a ideologia de
gênero, o «natural» não é tido como valor humano e é preciso superar até mesmo a
distinção da natureza masculina e feminina das pessoas. Com o intuito de superar
discriminações, desconsideram-se as diferenças. Acusa-se que as explicações naturais
são formulações ideológicas para manter determinada posição social. Como conse-
quência da questão de gênero, promove-se a desvalorização da família em favor da
liberdade individual, desconsidera-se a maternidade natural e o matrimônio, e des-
prezam-se os valores religiosos. (apud Borges e Borges 2018, 15)

A imagem que se faz é que todo menino/menina poderia se tornar transgê-


nero (a), segundo essa ideologia, seria ensinado nas escolas que ser menino ou
menina são construções culturais e sociais. No entanto, o discurso sobre igual-
dade de gênero presente nas diretrizes curriculares de muitas escolas brasileiras

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não deve ser tratado como ideologia de gênero, uma vez que igualdade de gênero
sempre ressaltou a importância da igualdade das condições de gênero, ou seja,
que homens e mulheres tenham as mesmas condições em todos os espaços sociais
(Ministério da Educação, 2012).
Aqueles que apregoam a existência de uma ideologia de gênero utilizam
argumentos sem fundamentos científicos, replicando-os nas mídias sociais para
persuadir a população que os aceitam como verdades inquestionáveis, o que causa
o pânico moral.
O termo pânico moral é associado a Stanley Cohen, que, em 1972, o utilizou em
referência aos confrontos e episódios de vandalismo protagonizados por grupos
de jovens rivais na Inglaterra, na década de 1960, o que levou o autor a formular
a primeira teoria do pânico moral. Seu estudo consistiu em analisar a reação das
pessoas diante de situações em que se sentiam ameaçadas por alguns grupos ou
tipos sociais. Diante dessas situações de perigo, «desencadeia-se um processo de
sensibilização social que resulta em forte reação coletiva contra o(s) agente(s) que
causa(m) o medo coletivo» (Barros e Lemos 2018, 293). A partir daí, há uma dis-
puta em nome do restabelecimento da ordem e da moral, em que se tenta atribuir
a culpa da desordem a um grupo específico, estigmatizando-o negativamente.
Segundo Miskolci, «o conceito de pânico moral permite lidar com proces-
sos sociais marcados pelo temor e pela pressão por mudança social» (2007, 112),
que pode ser estruturado por políticas simbólicas, sempre ancorado em valores
e visões de mundo do grupo que se sente ameaçado. Ou seja, reflete anseios de
poder entre grupos sociais. O pânico é moral porque aciona uma suposta ameaça
à ordem social. Desse modo, questiona-se, no contexto contemporâneo brasileiro,
se há nos discursos proferidos por algumas personalidades políticas e religiosas a
subversão dos conceitos de gênero e sexualidades – tratados como «ideologia de
gênero» [sic] – na instauração de um regime de saber, poder e verdade atravessado
pelo pânico moral.

Fundamentação teórica: O edifício da teoria – Discurso

No edifício teórico da análise do discurso, é ponto fundamental trazer os


conceitos formulados por Michel Foucault ([1969] 2000) no plano discursivo. Fou-
cault define discurso como «práticas que obedecem regras». Ao aprofundar essa
definição, estabelece-se que discurso é um conjunto de enunciados que foram pra-
ticados ao longo do tempo e estão sob uma determinada formação discursiva.
Essa formação é «uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcio-
namentos, transformações)» (Foucault [1969] 2000, 43) que existe. Se não for pos-
sível encontrar um sistema, uma regularidade na dispersão desses enunciados,
para Foucault, não há um discurso. O autor também argumenta que, no discurso,
há uma luta pelo poder na sociedade. Nele, também se traduzem os embates que

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engendram sistemas de dominação. Há, ainda, nos discursos, a luta pelo poder
que se quer conquistar.
Nesse sentido, o que está na base desse conceito é a ideia de que em toda
sociedade há um certo número de procedimentos que controlam, selecionam, orga-
nizam e redistribuem simultaneamente a produção do discurso (Foucault [1969]
2000). A função desses procedimentos é a de «conjurar seus poderes e perigo,
dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materiali-
dade» (Foucault [1970] 2013, 9). Em nossa sociedade, os procedimentos de exclu-
são, externos ao discurso, mas em atuação sobre eles, são a palavra proibida, a
segregação da loucura e a vontade de verdade. O primeiro desses procedimentos,
que se constitui como a interdição, segundo Foucault ([1969] 2000), é o mais conhe-
cido. O filósofo argumenta que nem tudo pode ser dito em qualquer circunstância
e não é qualquer um que pode falar de qualquer coisa. Nesse processo de interdi-
tar o que se diz, Foucault aponta três manifestações: o tabu do objeto; o ritual da
circunstância; e o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito. A sexualidade e a
política são o alvo dessas interdições.
Nessa perspectiva, para justificar certas práticas, circula um discurso e certos
procedimentos que permitem controlar e impor certas regras, de forma que se
estabelece quem tem acesso a esses discursos (Foucault [1969] 2000). Nesse caso,
há uma ordem do discurso e, para entrar nela, há certas exigências, atendidas no
entrecruzamento das categorias internas e externas com o terceiro grupo de pro-
cedimentos, formado pelos rituais da palavra, pelas sociedades do discurso, pela
doutrina e pelas apropriações sociais. Destaca-se, nesse grupo de procedimentos, o
ritual e as sociedades do discurso. O primeiro determina propriedades singulares
e papéis preestabelecidos para os sujeitos que falam; de acordo com Foucault, os
vários tipos de discursos, como os religiosos, judiciários, terapêuticos e, de certa
forma, também o discurso político exigem ritual específico. Para que o controle
funcione, entra em cena o segundo: é preciso uma «Sociedade do Discurso» que
carregue a função de produzir, conservar e distribuir os discursos de acordo com
regras estritas (Foucault [1969] 2000).
É importante destacar que, para Foucault ([1970] 2013), o poder não existe em
si. Ele está sempre em relação. Todos os atores envolvidos nas relações de poder
nelas agem e por elas são afetados. Desse modo, nas sociedades, os processos de
subjetivação – ou seja, de formação dos sujeitos – são resultado das relações de
poder. Deleuze ([1986] 2005), ao analisar as teorias foucaultianas, na proposta de
tratar de elementos e relações, mutáveis e móveis, diferencia violência, força – ou
poder – e saber. Na violência, há ação sobre um corpo, sobre determinadas coisas,
que «ela força, dobra, quebra, destrói» (Foucault [1982] 2013, 287; Deleuze 2005,
38). Já nas relações de poder, há um modo de ação que não age diretamente e ime-
diatamente sobre os outros, mas uma ação que age sobre ações. Os deslocamen-
tos nesta vontade de verdade continuaram no corpo da história. Foucault cita as
mudanças promovidas pela ciência, que podem ser vistas como descobertas, mas

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também como o aparecimento de novas formas de verdade. Como exemplo, há a


Inglaterra dos séculos XVI e XVII. A vontade de saber ordenava ao sujeito «certa
posição, certo olhar e certa função (ver, em vez de ler, verificar, em vez de comen-
tar)» (Foucault [1976] 2011, 16). Este empirismo possui um suporte institucional,
reforçado e movido por «um conjunto de práticas que vão desde a pedagogia até a
sistematização do conhecimento, na forma como se organizam os livros, as biblio-
tecas, os laboratórios, etc.» (Foucault [1976] 2011, 17).
Diante da perspectiva sustentada pela «hipótese repressiva», que considera
que o poder é um instrumento repressivo e sua função seria o de bloquear ou
distorcer a verdade, Foucault ([1976] 2011) sugere uma proposta resolutiva entre
poder, sexo e verdade e introduz o tema da biopolítica e do biopoder. Esse último
se constituiria como poder sobre a vida (políticas de sexualidade), mas também
como poder sobre a morte (racismo moderno). Em última instância, trata-se da
estatização da vida, considerada em temos biológicos. A biopolítica nomeia uma
forma de poder que, no fim do século XVIII e no início do século XIX, se trans-
forma com o objetivo de governar não só o indivíduo, mas o coletivo, a população,
a sociedade. Esse controle se manifestaria através não apenas da disciplinarização
dos corpos, mas das mentes.

Metodologia

Nesta pesquisa, adotou-se a abordagem qualitativa, uma vez que, segundo


Minayo, essa abordagem «se aplica ao estudo da história, das relações, das repre-
sentações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpreta-
ções que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem artefatos e a
si mesmos, sentem e pensam» (2010, 57). De acordo com essa autora, o método
qualitativo é o que se adapta às investigações de grupos e segmentos delimitados
e focalizados, de histórias sociais sob a ótica dos atores, de relações, de discur-
sos e de documentos. Sendo assim, esta pesquisa classifica-se como descritivo/
interpretativa.
Para este estudo, utilizou-se como corpus os vídeos transcritos do site You-
Tube contendo pronunciamentos de líderes (deputados federais e senadores) con-
trários às políticas de combate à LGBTfobia em exercício do mandato Legislativo
no período de 2010 a 2012 e os pronunciamentos de posse do atual presidente e
dois de seus ministros – em janeiro de 2019 –, estes como reverberações daqueles.
A partir do site de buscas www.google.com.br, foram colocadas as palavras-chave:
homofobia, kit gay, preconceito, discriminação, pregação, ideologia de gênero,
educação, seguidas das palavras vídeos YouTube. Foram escolhidos os vídeos com
maior número de acessos, considerando as personalidades políticas e/ou religio-
sas de maior destaque em cada período.

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O primeiro grupo de participantes foi selecionado devido à repercussão de


seus pronunciamentos na sociedade e, também, por estar entre os primeiros a uti-
lizar, publicamente, no Brasil, os termos «Kit gay» e «Ideologia de gênero», relacio-
nando-os a um discurso religioso moralizante para a incitação de Pânico Moral a
partir da escola; o segundo, em consonância com o primeiro grupo, pela relevância
dos cargos que ocuparam em 2019.
O presente estudo tem como pressupostos teóricos e metodológicos a Análise
do Discurso (AD). No livro Arqueologia do Saber, Michel Foucault ([1969] 2000) con-
cebe que é preciso acolher o discurso em sua dimensão de acontecimento, isto é,
cada texto, cada palavra, por mais que se aproxime de outros, nunca é idêntico ao
que o precede. Segundo Gregolin (2007), Michel Foucault delineia as questões no
interior das quais uma teoria de análise do discurso é pensada e tem como pontos
fundamentais os seguintes conceitos:

a) o discurso é uma prática que provém da formação dos saberes e que se articula com
outras práticas não discursivas; b) os dizeres e fazeres se inserem em formações dis-
cursivas, cujos elementos são regidos por determinadas regras de formação; c) o dis-
curso é um jogo estratégico e polêmico, por meio do qual constituem-se os saberes de
um momento histórico; d) o discurso é o espaço em que saber e poder se articulam
(quem fala, fala de algum lugar, baseado em um direito reconhecido institucional-
mente); e) a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e redistri-
buída por procedimentos que visam a determinar aquilo que pode ser dito em um
certo momento histórico. (Gregolin 2007, 14-15)

Essa perspectiva, conforme Gregolin, tem como objetivo «analisar as condi-


ções que permitem o aparecimento de certos enunciados e a proibição de outros»
(2007, 15). Nesse sentido, para a análise do discurso, neste trabalho, toma-se Gre-
golin, que usa Foucault como a referência para proceder à análise dos dados, além
do próprio Foucault, que, embora não proponha um método, tece em Arqueolo-
gia do Saber e A ordem do discurso um percurso teórico e metodológico acerca do
discurso.
Nesse sentido, Foucault ([1969] 2000) propõe um trabalho de descrição sobre
o arquivo entendido por ele, não a massa de textos recuperados de uma época,
mas o conjunto das regras que em um tempo e em um lugar definem sobre o que
se pode falar, quais discursos circulam e quais se excluem, quais são válidos, quem
os faz circular e através de que canais. A análise arqueológica focaliza na dimensão
de exterioridade dos discursos e busca suas condições de existência nas práticas
discursivas, que são também práticas sociais. As práticas discursivas produzem
saberes de diferentes tipos que as caracterizam e delimitam suas especificidades
(Foucault [1969] 2000).
De acordo com esse autor, para compreender por que apareceram em certo
tempo e lugar uma ciência, uma teoria, um conceito, valores, verdades, etc. é pre-

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ciso atentar para as relações sociais que os tornaram discursos enunciáveis e visí-
veis, ou seja, situá-los em determinadas relações de poder. Nesse sentido, o saber
se liga ao poder. Analisar discursos significa, para Gregolin, «tentar compreen-
der a maneira como as verdades são produzidas e enunciadas» (2007, 15). Para
analisar o pronunciamento dos líderes políticos e religiosos, utilizamos, neste
trabalho, a Análise do Discurso (AD) (Gregolin 2006), cuja proposta de análise
tem como base as seguintes categorias: Quem fala? De onde fala? Que efeitos de
sentido geram? Que discursos aparecem (enunciados, contradições, repetições,
regularidades e dispersões)? A partir de que grande acontecimento os discursos
emergem?
De acordo com Gregolin (2006), o sujeito do enunciado, sendo historicamente
determinado, não pode ser reduzido aos elementos gramaticais. Sendo assim, o
sujeito não é o mesmo de um enunciado a outro e a função enunciativa pode ser
desempenhada por diferentes sujeitos. Foucault explica que

não é preciso, na verdade, reduzir o sujeito do enunciado aos elementos gramaticais


de primeira pessoa que estão presentes no interior da frase: inicialmente, porque o
sujeito do enunciado não está dentro do sintagma linguístico; em seguida, porque um
enunciado que não comporta a primeira pessoa tem, ainda assim, um sujeito; enfim e
sobretudo, todos os enunciados que têm uma forma gramatical fixa (quer seja em
primeira pessoa ou em segunda pessoa) não têm um único e mesmo tipo de relação
com o sujeito do enunciado. (Foucault [1969] 2000, 104)

Isso significa que o autor da formulação pode não ser o mesmo sujeito do
enunciado, já que esse lugar é determinado e vazio. Sendo assim, indivíduos
diferentes podem ocupá-lo. Mas é também variável e pode continuar idêntico
a si mesmo por meio de várias frases, assim como para se modificar cada uma
(Foucault [1969] 2000). Sendo assim, o sujeito é uma posição. O mesmo indiví-
duo pode assumir várias posições de sujeito em um conjunto de enunciados, ou
seja, na categoria de análise Quem fala? o sujeito pode não ser o mesmo autor da
formulação.
Cabe destacar, também, o lugar social de onde o sujeito fala. É esse lugar que
define o que pode e deve ser dito, pois é governado por regras anônimas. O sujeito
é definido pelo lugar de onde ele fala. Foucault explica que «não importa quem
fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessaria-
mente, no jogo de uma exterioridade» ([1969] 2000, 139). Sendo assim, também se
analisa a categoria De onde ele fala?
Ainda que palavras e textos se aproximem de outros, eles não são idênticos
aos que os precedem. O enunciado produz um efeito de sentido pela sua correla-
ção com um conjunto de formulações que coexistem com ele em um espaço deli-
mitado historicamente. Isso significa dizer que o efeito de sentido de um enun-
ciado deve ser visto dentro de uma historicidade.

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Esta análise é um recorte de uma pesquisa intitulada Discursos, Homofobia


e Políticas de Direitos Humanos (Oliveira 2014), realizada entre 2010 e 2014, com a
inclusão de alguns dados atuais.

Análise e discussão dos dados

Deputado Federal Jair Bolsonaro

Pronunciamento sobre o Projeto Escola sem Homofobia (Kit gay) do Depu-


tado Jair Bolsonaro em 2010. Ele foi reeleito Deputado Federal, já pertenceu a
vários partidos e esse era o seu quinto mandato como deputado. O seu pronun-
ciamento foi proferido no espaço destinado à sessão plenária da Câmara Federal.
Esses discursos emergiram a partir de um acontecimento, a iniciativa do MEC em ela-
borar um kit de material educativo, abordando aspectos da homo-lesbo-transfobia
no espaço escolar, direcionado para gestores, educadores e estudantes do Ensino
Médio.
No pronunciamento do Deputado Jair Bolsonaro, quem fala é um parlamen-
tar que ocupa o lugar de representante da casa e expressa, com sentimentos de
revolta e indignação, suas opiniões a respeito do tema com o objetivo de convencer
os colegas da sua luta para impedir que o Projeto Escola sem Homofobia siga em
frente. Ao identificar-se, o «eu» é predominante no sujeito da enunciação. O «eu»
que fala mostra a sua indignação em relação à proposta do kit gay que pode ser vista
nos seguintes trechos:

Eu quero tratar de um assunto aqui que no meu entender, pra mim, em 20 anos de
congresso é o maior escândalo que eu tomei conhecimento até hoje. [...] eu não sei pra
não ser advertido nesse discurso, eu vou poupar o adjetivo pra essa comissão.2

No entanto, quando aparece como «nós», quem fala pode ser identificado,
também, no trecho seguinte, como fazendo parte da sociedade, ou seja, a maioria
que estaria sendo afrontada pela minoria:

Esses gays, lésbicas querem que nós, a maioria, entubemos como exemplo de compor-
tamento a sua promiscuidade. [...] que nós não podemos nos submeter ao escárnio da
sociedade. Pelo amor de Deus, meus colegas que estão nos gabinetes! Pelo amor de
Deus, daqui a pouco vem um cidadão dizer que eu estou mentindo. [...] Atenção pais!
Os seus filhos vão receber no ano que vem um kit, esse kit tem o título: combate à
homofobia, mas na verdade esse kit é um estímulo ao homossexualismo, é um

2
 onforme vídeo com o pronunciamento do deputado federal Jair Bolsonaro disponível em
C
<https://www.youtube.com/watch?v=ONfPCxKdGT4&feature=player_embedded>.

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GÊNERO, SEXUALIDADES E PÂNICO MORAL 37

incentivo à promiscuidade, [...]. Atenção pais! A tua filha de sete, oito, nove, dez anos
vai assistir esse filmete que já está sendo licitado.3

No conjunto de enunciados acima, identifica-se que o espaço do dizer é ocu-


pado por diferentes sujeitos, uma vez que a concepção com a qual se opera neste
artigo não é a de sujeito unificante, pois o discurso é atravessado pela dispersão
que decorre das várias posições discursivas que o sujeito do discurso assume (Gre-
golin 2007). O Deputado fala do lugar de parlamentar que tem 20 anos de carreira e
por isso classifica o projeto Escola sem Homofobia como o maior escândalo já visto
durante os seus 20 anos com tal função. Esse lugar de parlamentar ocupado por ele é
atravessado por um sujeito que ocupa o lugar de maioria da sociedade e que con-
cebe o grupo LGBT como uma minoria sem direito a voz. Ao enunciar que a pla-
teia é composta 100% de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgê-
neros e que essa turma toda reunida tomou decisões que a casa desconhece (essas
decisões referem-se ao kit que faz parte do projeto Escola sem Homofobia) revela
um sujeito indignado com fato de um grupo com essa qualificação tomar decisões
que interferirão na educação de crianças em relação à sexualidade, incentivando-
-as a tornarem-se homossexuais e promíscuos. Esse discurso heterossexista vem
ao encontro do que afirma Borillo (2010) sobre o fato de que a heterossexualidade
é vista como possibilidade única e verdadeira e a relação entre pessoas do mesmo
sexo é caracterizada como uma doença degenerativa da sociedade. Além disso,
o discurso que o Deputado dirige aos pais das crianças que frequentam a escola
pública tem o objetivo de causar o pânico moral, fazendo com que a sociedade em
geral alimente ainda mais o ódio e a rejeição aos indivíduos homossexuais. O seu
modo de olhar a figura humana do homossexual é estigmatizante, já que defende
uma concepção que considera o tema da diversidade sexual como um assunto
proibido. O lugar discursivo que o Deputado ocupa é usado para legitimar o ódio
aos homossexuais. Nesse sentido, encontramos uma correlação com que o aponta
Foucault ([1970] 2013) sobre o fato de que há um certo número de procedimentos
que controlam, selecionam, organizam e redistribuem simultaneamente a produ-
ção do discurso em toda sociedade. Segundo o autor, em nossa sociedade, existem
procedimentos de exclusão, sendo que a interdição é a mais conhecida. Há que se
considerar que a ação do parlamentar visa proibir qualquer discussão referente ao
combate ao preconceito e à discriminação. Segundo o deputado, em apelo à socie-
dade e, em especial, aos pais, nem tudo se pode dizer, não são todas as palavras
permitidas em quaisquer circunstâncias. Estes «tabus da palavra», chamados por
Foucault de «direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala» (Foucault [1976]
2011, 9), tentam reafirmar uma soberania no discurso heterossexual e um silencia-
mento de qualquer discurso destoante. Desse modo, com a palavra proibida, o

3
 onforme vídeo com o pronunciamento do deputado federal Jair Bolsonaro disponível em
C
<https://www.youtube.com/watch?v=ONfPCxKdGT4&feature=player_embedded>.

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Souza, Paulo Sesar Pimentel, Kátia Terezinha P. Ormond, Isabel Cristina Silva

poder se exerce de forma mais intensa. Há, também, na fala do parlamentar, mais
do que um embate que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, uma verdade
– construída e sustentada por instituições como a religião – que indica a tentativa
de se apoderar ainda mais dos discursos – que estarão presentes na escola – e, con-
sequentemente, do poder (Foucault [1976] 2011).

Senador Magno Malta

O Senador Magno Malta foi reeleito em 2010. Além de político, é também


pastor evangélico. O seu pronunciamento, ora em apreciação, foi proferido na tri-
buna do Senado. Nele, quem fala é alguém que tem o poder político de aprovar
ou não projetos de interesse da população, seja ela minoria ou maioria. Ao se pro-
nunciar, identifica-se, a partir dos enunciados, a posição de diferentes sujeitos. O
Senador ora se apresenta como «eu» ora como «nós», sendo que o «nós» refere-se
à instituição que ele integra como Senador da República:

o que nós queremos discutir com ele – a Frente da Família – é esse kit. [...]
[…]
O que nós precisamos resgatar é valor de família, Presidente Dilma. [...].
[…]
Então nós temos que resistir ao Governo, nós temos que resistir ao Sr. Haddad com
esse kit […].
[…]
[…] de fato nós não podemos criminalizar um país inteiro.
[…]
[...] o que nós precisamos dar em relação à Constituição é respeito a todos os cida-
dãos.4

Já quando utiliza a primeira pessoa do singular, quem fala expressa sua indig-
nação e opiniões pessoais:

Eu estou vindo de uma reunião na Câmara, [...].


[…]
Eu estou olhando para o Brasil para afirmar o seguinte, Senador […]: esse kit homos-
sexual nas escolas fará das escolas do Brasil verdadeiras academias de homossexuais.
[...]. Agora nada mais do que o respeito, estão passando do limite.
Senador [dirige-se a outro senador], V. Exª é católico praticante e sabe que Deus criou
macho e fêmea. Esta Casa não fará um terceiro sexo com uma lei porque há de esbar-

4
« Pronunciamento de Magno Malta em 24/05/2011», Senado Federal. Disponível em <https://
www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/388285>.

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rar nos homens e mulheres que acreditam em princípios, e uma minoria barulhenta
jamais se sobreporá a uma grande maioria, que é a família neste País.
[...]
Eu tenho uma criança de nove anos em casa. Ela perguntou: Pai, então, agora, quer
dizer que [...].5

Em relação ao sujeito do enunciado, ele é diferente do autor do texto ou do


sujeito que enuncia. Foucault o define como «um lugar determinado e vazio que
pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes» ([1969] 2000, 108). A
análise do sujeito no desempenho da função enunciativa exige não a verificação de
alguém que a proferiu, mas a determinação da posição «que pode e deve ocupar
todo indivíduo para ser ([..] sujeito» ([1969] 2000, 108). A relação da posição do
sujeito com os lugares institucionais, conforme explica Foucault ([1969] 2000), é
que define o sujeito, ou seja, o lugar de onde fala. O lugar social de onde o Senador
Magno Malta fala possibilita-lhe um empoderamento como sujeito do discurso
que se inscreve em uma determinada formação discursiva e, por isso, se apropria
de um poder/saber que se materializa na sua prática discursiva como um discurso
de verdade.
A afirmação do Senador de que o kit homossexual fará das escolas do Brasil
verdadeiras academias de homossexuais, que Deus criou macho e fêmea e que a
Casa não fará um terceiro sexo mostra que o lugar de onde o Senador fala produz efei-
tos de sentido por apropriações de regiões do saber/poder/dizer, os quais atuam
de maneira constitutiva na sedimentação da formação discursiva na qual se ins-
creve. Identifica-se uma dispersão de enunciados, ou seja, há uma interdiscursividade,
pois o sujeito, sendo uma função, assume vários papéis sociais (Gregolin 2006). A
análise do sujeito integra o reconhecimento de relações entre vários enunciados e
sistemas de enunciabilidade que definem os regimes de saber e verdade de uma
época. Como Senador da República, ele constrói um discurso que é atravessado
por outros discursos de cunho moral e religioso que sustentam a heteronormativi-
dade, já que ele também ocupa o lugar de sujeito pastor evangélico e de cidadão
pai de família que tem filhos na escola. O Projeto Escola sem Homofobia, apeli-
dado por seus detratores de «kit gay», e o termo «ideologia de gênero» na voz de
políticos e religiosos foram as estratégias discursivas que prepararam o terreno,
que teve início em 2010, e que serviram de alicerce para criar o pânico moral na
sociedade brasileira, o que culminou com as eleições presidenciais em 2018. Toda a
campanha do candidato eleito foi baseada nesses discursos e alimentada por eles.
Seu discurso de posse reiterou a agenda ultraconservadora gestada desde 2010,
com vistas a interditar discussões de gênero e sexualidades a partir do ambiente
escolar, chegando a toda a sociedade.

5
« Pronunciamento de Magno Malta em 24/05/2011», Senado Federal. Disponível em <https://
www25.senado.leg.br/web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/388285>.

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Souza, Paulo Sesar Pimentel, Kátia Terezinha P. Ormond, Isabel Cristina Silva

Discurso de posse do Presidente em janeiro de 2019

Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e a nossa tradição judaico-
cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará
a ser um país livre das amarras ideológicas.6 (destaque acrescentado)

Nesses discursos, emerge um sentido de que discutir as questões de gênero e


diversidades no âmbito da escola é visto como uma espécie de peste que necessita
de combate para que não se prolifere. Desde seu surgimento, a expressão «ideo-
logia de gênero» carrega em seu bojo um sentido pejorativo. Por meio dela, setores
mais conservadores da sociedade protestam contra atividades que buscam falar
sobre a questão de gênero e assuntos relacionados – como sexualidade – nas esco-
las. Boa parte da sociedade concorda com o sentido negativo empregado no termo
«ideologia de gênero» e, geralmente, teme que, ao falar sobre as questões mencio-
nadas, a escola vá contra os valores da família (Oliveira et al. 2019).

Discurso de posse do ministro da Educação, janeiro de 2019

À agressiva promoção da Ideologia de Gênero, somou-se a tentativa de derrubar as


nossas mais caras tradições pátrias. Essa tresloucada onda globalista, tomando carona
no pensamento Gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico, passou a
destruir, um a um, os valores culturais em que se sedimentam as nossas instituições
mais caras: a família, a Igreja, a escola, o Estado e a Pátria, numa clara tentativa de
sufocar os valores fundantes da nossa vida social.7

Nesse discurso, emerge a ideia da existência de uma conspiração, cujo obje-


tivo do plano seria destruir o patrimônio cultural e moral do cristianismo. Esses
líderes constroem suas verdades intencionalmente com a finalidade de provocar
certo pânico moral na população que, sendo religiosa, acredita que isso possa acon-
tecer. Essa constatação encontra consonância nos postulados de Foucault ([1976]
2011), em relação à ideia de que a verdade pertence a este mundo, pois há uma
multiplicidade de coerções e efeitos regulamentados de poder que produzem as
verdades. As verdades produzidas por esses líderes têm como consequência gerar
mais ódio ao grupo LGBT.

6
«Discurso proferido pelo Sr. Jair Messias Bolsonaro, por ocasião de sua posse no cargo de Presi-
dente da República Federativa do Brasil», Sessão Conjunta do Congresso Nacional, em 1 de janeiro
de 2019. Disponível em <https://escriba.camara.leg.br/escriba-servicosweb/pdf/54479>.
7
Disponível em <https://novaescola.org.br/conteudo/14877/discurso-de-ricardo-velez-rodri-
guez-que-mudancas-esperar-no-mec>.

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GÊNERO, SEXUALIDADES E PÂNICO MORAL 41

No pronunciamento de posse, em janeiro de 2019, a ministra da Mulher,


Família e Direitos Humanos deu o seu recado

Acabou a doutrinação ideológica de crianças e adolescentes no Brasil. Neste governo,


menina será princesa e menino será príncipe. Está dado o recado. Ninguém vai nos
impedir de chamar nossas meninas de princesas e nossos meninos de príncipes.8 [...]
No Brasil tem meninos e meninas.

Quando uma ministra aborda que acabou a doutrinação ideológica, ela


afirma que neste governo será diferente. Homem será homem e mulher será
mulher, assim não se respeitarão outras expressões de sexualidade, configura-se
desta forma o não reconhecimento da diversidade sexual, excluindo milhões de
pessoas que fogem ao padrão heteronormativo.
Os excertos acima mostram que a discussão sobre gênero e diversidades na
escola se traduz em sentidos de desconforto e indignação por parte desses líderes.
Os efeitos de sentidos que emergem desses discursos em relação às ações educativas
que abordam estes temas constituem, na visão deles, um péssimo exemplo para
as famílias e uma ameaça de destruição dos pilares da sociedade atual regida por
uma moral conservadora. Essas reflexões revelam que esse é o pensamento que
está refletido na instituição escolar, ou seja, as verdades únicas, os modelos hege-
mônicos da sexualidade «normal», mostrando o jogo de poder e interesses envol-
vidos na intencionalidade de sua construção.

Conclusões

No contexto contemporâneo brasileiro, pode-se concluir que há nos discur-


sos proferidos por algumas personalidades políticas e religiosas a subversão dos
conceitos de gênero e sexualidades – tratados como «ideologia de gênero» (sic).
Isso contribui para a instauração de um regime de saber, poder e verdade atra-
vessado pelo pânico moral. «Ideologia de gênero», «imposição das minorias»,
«ataque às instituições família e igreja», «degenerescência da sociedade», pânico
moral, coincidência entre sexo biológico e gênero, orientação sexual única e opres-
sora às demais, dentre outros pontos, são elementos característicos nos discursos
aqui apresentados. Vale destacar que esses elementos podem ser caracterizados
como discursos, pois são práticas que obedecem a regras. Também atendem, de
acordo com a teoria foucaultiana, a dois princípios, regularidade e dispersão, for-
mando um sistema. Entendemos importante essa caracterização, pois, para Fou-


8
Disponível em <https://www.plural.jor.br/colunas/caixa-zero/meninos-vestem-azul-meninas-
vestem-rosa-esta-e-a-verdadeira-ideologia-de-genero>.

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cault, onde houver discurso, há estratégias e a tentativa de se apoderar mais das


relações de saber e poder.
A estratégia é o mais importante elemento na manipulação de forças das rela-
ções de saber e poder. As ações no interior de uma sociedade são formadas a partir
delas e por elas se manifestam. Por estratégia, em consonância com a obra fou-
caultiana, entende-se desde a escolha dos meios empregados para se chegar a um
fim (uma racionalidade empregada para se atingir um objetivo), passando pela
maneira pela qual se tenta ter uma vantagem sobre o outro, até ao conjunto dos
procedimentos que são utilizados num confronto com o objetivo de privar o opo-
nente dos seus meios de luta e reduzi-lo a ponto de renunciar ao embate. Os dis-
cursos selecionados para esta análise são exemplares da estratégia de aniquilar o
outro, o divergente. Ainda que não haja qualquer sustentação teórica que justifi-
que a ação dos parlamentares em análise, como estratégia, constitui-se o discurso,
com sua regularidade e dispersão, num continuum que intenta, no corpo das rela-
ções de saber e poder, formar sujeitos que reproduzam ainda mais a opressão.
Considera-se de grande relevância estudar sobre o tema por se entender que
a exclusão fere a dignidade da pessoa humana. A LGBTfobia é naturalizada dis-
cursivamente e se fundamenta em discursos de verdades sobre a sexualidade,
atravessadas pelas relações de poder/saber, representadas pelas instituições reli-
giosas e políticas que legitimam a violência e reforçam as atitudes de intolerância.

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Cleide Ester de Oliveira. Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal da


Paraíba (UFPB). Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT). Participa do Grupo de Pesquisa em Humanidades e Sociedade
Contemporânea.
Endereço eletrónico: [email protected]

ex æquo, n.º 41, pp. 27-44. DOI: https://doi.org/10.22355/exaequo.2020.41.02


44 Cleide Ester de Oliveira, Nadir de Fátima B. Bittencourt, Veralúcia G. de
Souza, Paulo Sesar Pimentel, Kátia Terezinha P. Ormond, Isabel Cristina Silva

Nadir de Fátima Borges Bittencourt. Doutora em Psicologia Social pela Universidade


Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Letras pela Universidade de Nancy II, França.
Coordenadora do grupo de pesquisa GEEJA/IFMT – Grupo de Estudos sobre Educa-
ção de Jovens e Adultos. Membro dos grupos de pesquisa GELLI/IFMT – Grupo de
Estudos em Ensino de Línguas e Literatura; Núcleo de Pesquisa em Geoprocessa-
mento Ambiental-IFMT; Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre o Desenvolvimento da
Infância e Adolescência (NUPEDIA/UFPB).
Endereço eletrónico: [email protected]

Veralúcia Guimarães de Souza. Doutora em Linguística pela Universidade de Brasí-


lia, participa do Grupo de Pesquisa em Humanidades e Sociedade Contemporânea e
da Rede Latino-Americana de Analista de Discurso. Atua com pesquisa na área de
Análise de Discurso Crítica e Gramático-Sistêmico Funcional.
Endereço eletrónico: [email protected]

Paulo Sesar Pimentel. Doutor em Psicologia (UFF). Mestre em Estudos da Lingua-


gem (UFMT). Professor no Instituto Federal de Mato Grosso. Pesquisador na Univer-
sidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Endereço eletrónico: [email protected]

Kátia Terezinha Pereira Ormond. Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea


pela Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO). Mestre em História pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em História pela mesma universidade (2011). Pesquisadora
em História da Alimentação e gastronomia em Mato Grosso, com ênfase em hábitos
alimentares e sociabilidades.
Endereço eletrónico: [email protected]

Isabel Cristina Silva. Mestre em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino


(PPGEn) – IFMT/UNIC – Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato
Grosso/Universidade de Cuiabá. Grupo de Pesquisa em Humanidades e Sociedade
Contemporânea (GPHSC).
Endereço eletrónico: [email protected]

Artigo recebido a 02 de fevereiro e aceite para publicação a 08 de maio de 2020.

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