A Origem Da Arte e o Gosto Estetico Entr-2
A Origem Da Arte e o Gosto Estetico Entr-2
A Origem Da Arte e o Gosto Estetico Entr-2
ISBN: 978-85-7621-028-3
APRESENTAÇÃO 5
Os Organizadores
9
A criança primeiro assume papéis ligados àquelas pessoas que Mead chama
de seus ‘outros significativos’, isto é, aquelas que lidam com ela mais de
perto e cujas atitudes são decisivas para a concepção que a criança faz de si
mesma. Mais tarde, a criança aprende que os papéis que representa são
relevantes não só para seu círculo íntimo, como também se relacionam
com as expectativas da sociedade em geral (BERGER, 1986, p.113).
Pesquisa-ação
Pesquisa participante
abordagens metodológicas.
A pesquisa participante é uma metodologia “que combina
investigação social, trabalho educacional e ação” (HALL citado por
DEMO, 2004, p.93). Tanto na pesquisa participante quanto na pesquisa-
ação, a modificação da realidade social aparece como um princípio
metodológico de intervenção. A diferença entre ambas está no
“compromisso político” que conduz a prática do/a investigador/a. Na
pesquisa participante, o/a cientista social precisa mobilizar a comunidade
para transformar a realidade (DEMO, 2004). Neste sentido, o/a
pesquisador/a envolve-se politicamente nas práticas sociais da
comunidade.
O conhecimento tem um caráter instrumental na pesquisa
participante, pois o saber produzido pelo cientista pode ser aproveitado
pela comunidade. Não há neutralidade, segundo a abordagem teórica da
pesquisa participante. O/a pesquisador/a leva para a análise da realidade os
seus valores, ou a sua ideologia. Na pesquisa participante, o/a
investigador/a utiliza o conhecimento para sugerir melhorias nas
condições de vida da comunidade.
Ao ressaltar o aspecto colaborativo da pesquisa participante e a
noção de contra-ideologia, Demo (1995) destaca a correlação entre a
pesquisa participante e a construção da noção de intelectual orgânico,
mostrando que:
Considerações Finais
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EXPERI ÊNCI A LI MI TE E PENSAMENTO: A FI CÇÃO
COMO SABER1
1 Texto elaborado como parte da pesquisa de doutorado do autor intitulada Entre história e
liberdade: a ontologia do presente em Michel Foucault.
28
[...] prefiro me apoiar sobre as análises de obras literárias mais do que sobre
obras filosóficas. Por exemplo, as escolhas realizadas por Sade são bem
mais importantes para nós do que elas eram para o século XIX. E é por
estarmos ainda sujeitos a tais escolhas que somos levados a escolhas
absolutamente decisivas. Eis porque me interesso pela literatura, na medida
em que ela é o lugar onde nossa cultura realizou algumas escolhas originais.
linguagem.
O traço peculiar da escrita de Breton, aos olhos de Foucault, foi ter
descoberto e produzido a escrita como experiência, quer dizer, como uma
forma de pensamento que é, ao mesmo tempo, uma forma de
transformação de si e do mundo que aproxima o surrealismo das obras de
Bataille, Blanchot e Leiris, bem como dos escritores do novo romance
francês. A experiência representa a abolição da distância e da separação
entre arte, criação, literatura e o pensamento, a filosofia, a escrita. Espaço
que é de dispersão disciplinar, mas que encontra sua unidade enquanto
atitude ética e política de transformação de si e mudança do mundo, um
lugar em que Foucault percebia como um novo espaço de elaboração da
crítica, um novo modo de atuação do pensar.
No “Debate sobre o romance”, texto oriundo de um debate
organizado pelos integrantes da revista Tel Quel em 1963 sobre o tema
“uma literatura nova”, Foucault (1994, p. 338) nos indica o que vê como
certa semelhança, um isomorfismo entre os surrealistas e os escritores de
Tel Quel, qual seja, a presença de uma escrita vinculada com experiências
como:
para a formação de uma nova visão sobre a ficção como exercício de uma
escritura que se colocaria como experiência limite da linguagem, em que o
pensamento do fora se constituiria como um novo modo de se colocar os
problemas filosóficos, uma nova visão do pensar a partir dessa noção de
ficção.
Dois artigos de Foucault publicados na revista “Critique”, o
primeiro em 1963 em homenagem a Georges Bataille, “Prefácio à
transgressão”, e o segundo publicado em 1966 sobre Maurice Blanchot,
“Pensamento do Fora” são fundamentais para a compreensão do tema do
ser da linguagem e do papel que este exerceu na construção das
perspectivas de Foucault sobre as noções de experiência e acontecimento
para uma história da subjetividade humana articulados em uma arqueologia
e uma genealogia. Segundo Foucault, há na literatura de Bataille uma
experiência com a linguagem designada como experiência da transgressão,
que marca o papel fundamental da linguagem como experiência ontológica
originária do sujeito e dos saberes e práticas a ele associado, estabelecendo
uma maneira nova para se pensar o espaço vazio deixado pela morte de
Deus e pela consequente dissolução do sujeito moderno.
Em torno do pensamento de Nietzsche sobre a morte de Deus,
operado pela modernidade, a partir do século XIX, o pensamento de
Bataille vai se voltar para o fato de que a sexualidade é a linguagem que
consagra essa ausência, marcando a existência humana como experiência
limite, como transgressão de um mundo profanizado, de um mundo sem
Deus; a sexualidade é a linguagem dessa ausência. Dado que a morte de
Deus teria suprimido da existência humana o limite do ilimitado, na qual a
experiência limite se dava sob a lógica do transcendente, a sexualidade
torna-se o ilimitado do limite onde “a morte de Deus não nos restitui a um
mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na
experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride”
(FOUCAULT, 1994, p. 236)
A sexualidade, que Bataille vai chamar o erotismo, é a experiência
do reencontro constante com o limite de qualquer linguagem possível,
dado que é transgressão sempre recomeçada dos limites da própria
33
Não há ficção porque a linguagem está distante das coisas, mas a linguagem
é sua distância, a luz onde elas estão e sua inacessibilidade, o simulacro em
que se dá somente sua presença, e toda linguagem que, em vez de esquecer
essa distância, se mantém nela e a mantém nela, toda linguagem que fale
dessa distância avançando nela é uma linguagem de ficção.
2 Falando de Flaubert, Foucault afirma que “o imaginário não se constitui contra o real para
negá-lo ou compensá-lo; ele se estende entre os signos, de livro a livro, no interstício das
repetições e dos comentários; ele nasce e se forma no entremeio dos textos. É um
fenômeno de biblioteca” (FOUCAULT, 1994, p. 297-298.). Ver ainda FOUCAULT, M.
“Linguagem e literatura”. In: Machado, R. Foucault, a filosofia e a literatura, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2000, p. 144.
38
[...] simular não é ‘vir junto’, ser ao mesmo tempo que si e separado de si?
ser si mesmo nesse outro lugar que não é o lugar de nascimento, o solo
nativo da percepção, mas a uma distância sem medida, no exterior mais
próximo? estar fora de si, consigo, em um ‘com’ no qual se cruzam as
distâncias.
Por muito tempo acreditou-se que a linguagem dominava o tempo, que ela
valia tanto como ligação futura na palavra dada quanto memória e
narrativa; acreditou-se que ela era profecia e história; acreditou-se também
que nessa soberania ela tinha o poder de fazer aparecer o corpo visível e
eterno da verdade; acreditou-se que sua essência estava na forma das
palavras ou no sopro que as fez vibrar.
origem, para o seu ser, precisa voltar seu olhar para Eurídice, que é a
origem da obra. Essa origem é ao mesmo tempo “o ponto profundamente
obscuro para o qual parecem tender a arte, o desejo a morte, a noite”
(BLANCHOT, 1987, p. 171). Orfeu vai ao encontro dessa noite, desse
ponto obscuro, que é Eurídice, mas não pode olhá-la de frente no escuro,
tem de voltar-lhe as costas até trazê-la a luz do dia, até fazê-la obra. Mas
Orfeu não resiste à proibição de olhá-la de frente e arruína a obra antes de
trazê-la ao dia. Segundo Blanchot, aí residiria o aspecto paradoxal da
ficção, pois para produzir a obra, para que esta adquira sua coerência e sua
força, o escritor deve manter uma relação intensa com a fonte da obra,
deve sofrer a atração do fora (Eurídice), mas quando ele se coloca face a
face com o fora a obra desaparece e se produz a experiência da ausência de
obra. Se esse paradoxo ocorre no coração da obra, se Orfeu esquece a obra
é “porque a exigência última do seu movimento não é que haja obra, mas
que alguém se coloque em face desse ‘ponto’, lhe capte a essência, onde
essa essência aparece, onde é essencial e essencialmente aparência: no
coração da noite” (BLANCHOT, 1987, p. 172). Blanchot argumenta que a
desobediência de Orfeu ao olhar para trás obedeceu, entretanto, a uma
exigência profunda da obra, que foi trazer para a luz do dia essa sua fonte
inacessível, a sombra que é a condição de possibilidade de qualquer obra
na impossibilidade de seu acesso, a atração do fora.
O olhar de Orfeu consagra, assim, uma experiência limite em que
sacrificando a obra e a si mesmo, o poeta compreende o acontecimento
que confere ser a obra nessa oscilação entre o ser e o não ser. A
experiência da obra como acontecimento tem, segundo Blanchot, um
duplo efeito sobre o processo de criação, primeiro porque “o olhar de
Orfeu é, assim, o momento extremo da liberdade, momento em que ele se
liberta de si mesmo e, evento ainda mais importante, liberta a obra de sua
preocupação” (BLANCHOT, 1987, p. 176). Por outro lado, essa
experiência da obra como acontecimento coloca o escritor diante da
possibilidade de um novo começo que é a possibilidade mesma da criação
poética. Há, portanto, um duplo aspecto nesse jogo da ficção nos termos
44
[...] postura do narrador em relação ao que ele narra (conforme ele faça
parte da aventura, ou a contemple como um espectador ligeiramente
afastado, ou dela esteja excluído e a surpreenda do exterior), presença ou
ausência de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas,
assegurando sua descrição objetiva; engajamento de toda a narrativa na
perspectiva de um personagem, de vários, sucessivamente, ou de nenhum
em particular; discurso repetindo os acontecimentos a posteriori ou
duplicando-os à medida que eles se desenrolam, etc. A fábula é feita de
elementos colocados em uma certa ordem. A ficção é a trama das relações
estabelecidas, através do próprio discurso, entre aquele que fala e aquilo do
que fala. Ficção, aspecto da fábula.
45
fora e contesta a fábula nesse olhar dessubjetivante para sua fonte. O que
faz ver a crítica da ficção operada por Foucault é a passagem da
interioridade da fábula de Verne para a exterioridade do acontecimento
que forma e determina sua especificidade histórica. Essa passagem das
formas arraigadas da cultura para o seu fora conduz ao limiar de uma
profunda transformação da experiência. Essa nova experiência é resultado
de uma nova relação com a fábula, compreendida em face de um
acontecimento que é seu fora, sua ficção, em que se é levado a reconstruir
a interioridade da fábula, que passa a ser compreendida como o efeito das
forças do fora. A fábula, percebida assim, propicia uma nova experiência
através da qual se torna impossível reconstruí-la como produto de uma
subjetividade ou intenção. A experiência fictícia da fábula propicia uma
experiência assim indicada por Foucault (1994, p. 534):
Referências Bibliográficas
1As Mitológicas compõem uma tetralogia que inclui os seguintes volumes: O cru e o cozido
(1964), Do mel às cinzas (1967), As origens dos modos à mesa (1968) e O Homem Nu (1971),
constituindo o esforço de Lévi-Strauss em realizar uma análise estrutural dos mitos. Após a
tetralogia, Lévi-Strauss ainda escreveu, o que ele próprio chamou de “pequenas
mitológicas”: A via das máscaras (1979), Oleira Ciumenta (1985) e História de Lince (1991).
2A tradição vinda de Mauss ([1938], 2003) foi uma fonte de inspiração da etnologia,
especialmente porque nela havia a concepção de que as categorias coletivas, dentre elas, a
pessoa, exercem papel formador sobre a organização e práticas concretas da sociedade.
Nesta mesma tradição, recupera-se o lugar do corpo na elaboração da pessoa, considerando
o corpo enquanto matriz de significados sociais e objeto de significação social.
57
***
4DaMatta (1971) utiliza o conceito de ideologia, no sentido conferido por Dumont (2000),
para quem compreendea um conjunto de ideias, crenças e valores.
59
rituais e/ou filiação nas metades cerimoniais Kolti e Kolre; estas representam
grupos de nomes e estão ligadas “a organização da sociedade Apinayé ao
longo das relações e grupos que se dividem e se opõem em termos de
princípios mais gerais”, remetendo “a ordem cósmica e simbólica Apinayé”
(DaMatta, 1971, p. 27).
A amizade formal compõe a esfera cerimonial em meio à
nominação. Sendo o intermediário entre nominador e nominados e a
exemplo dos nominados, os amigos formais também transmitem direitos
de incorporação, mas num segundo par de metades cerimoniais,
Ipognotxóine e Krenotxóine, marcando a posição espacial de cada grupo em
relação à parte considerada como a mais pública (o centro) da aldeia.
DaMatta (1971) deixa claro a existência de uma distinção de grau
que vai dos parentes aos não-parentes decorrente dos códigos das relações
de substância e a produção de gradações, segundo o estado das relações
cerimoniais entre as pessoas. Ao partir da lógica de distinção dos sujeitos
humanos entre si e entre os outros sujeitos humanos ou não-humanos, este
autor antecipa uma questão que hoje é enfrentada pela etnologia indígena:
o caráter construído do parentesco indígena e, por conseguinte, a
concepção de que a consanguinidade se constrói a partir da transformação
da afinidade.
A construção do parentesco
8 A fala torna os outros possíveis, na medida em que o pai que faz o pedido para alguém
cortar o cordão umbilical é alguém que, tempos atrás, já deu fim ao incesto, mediante um
certo uso da palavra. Esse uso envolve um modo especial de falar, que se desenvolve dentro
dos homens na adolescência (Gow, 1997).
68
Referências Bibliográficas
que são parte de uma realidade com a qual convivemos mais ou menos
proximamente. Além disso, em nosso tempo, muitas vezes o homem
apresenta e representa a si mesmo, não como uma pessoa, mas através da
mediação de formas visuais simbólicas, e que pessoas em todo o mundo
aprenderam e continuarão a aprender a usá-las (JAY RUBY, 1990).
1Antífona significa um curto versículo recitado ou cantado pelo celebrante, antes e depois
de um salmo, e ao qual respondem alternadamente duas metades do coro (dicionário
Aurélio Buarque de Holanda).
80
3Esta noção foi utilizada por MOORE JR., Barrington. Injustiça: as bases sociais da
obediência e da revolta. São Paulo, Brasiliense, 1987.
90
4 “In every society there is an ‘attitude of everyday life’, a life world, which most of its
members assume, indeed, take for granted, most of the time”. (Tradução livre)
5 Este é um termo utilizado pelo próprio Goffman para denominar as pessoas “que não se
afastam negativamente das expectativas particulares” criadas pela identidade social virtual.
92
6 Goffman (1988:53) se refere a símbolos de estigma quando quer tratar de signos que
são eficientes em chamar a atenção para discrepâncias que quebram de forma degradante
um quadro coerente da identidade social, reduzindo nossa valorização do indivíduo.
Podemos ver um exemplo disto nas reproduções 1 e 2 deste trabalho.
95
Referências Bibliográficas
I ntrodução
3 Agostinho (1974); Gregor (1982); Coelho (1981 e 1993); Fénelon Costa (1988); Ribeiro
(1993) e Monod-Becquelin (1993).
4 Vide por exemplo as contribuições de Gow (1988 e 1999); Guss (1989); Lagrou (1998);
Reichel-Dolmatoff (1978); Seeger et alli (1979); Seeger (1981); Velthem (2003); Viveiros de
Castro (1979 e 1986) e a coletânea de artigos em Vidal (1992 org.).
5 A noção de apapaatai está muito além dessa referência ontogênica contida no mito do
surgimento do sol. Não há espaço aqui para analisá-la. De um modo sumário, podemos
dizer que os apapaatai estão compreendidos por uma escala de transformações ontológicas
múltiplas e desiguais que os apreende como animais, monstros, artefatos, “espíritos”,
102
“heróis culturais”, e/ou xamãs; essa mesma escala, em sua amplitude máxima, inclui,
contextualmente, os próprios Wauja. Para uma leitura aprofundada da noção de apapaatai
vide Barcelos Neto (2004) e Viveiros de Castro (2002).
103
6 Vide Barcelos Neto (2000 e 2002) para uma versão completa desse mito.
7 Devido à sua complexidade formal e conceitual, a pintura corporal wauja merece um
artigo à parte. Aqui, faço apenas menções estritamente necessárias para elucidar processos
nos quais as pinturas do corpo e dos artefatos possuem uma proximidade analítica.
104
emblema do São Paulo Futebol Clube – como motivos gráficos. Conforme Coelho (1993:
624), a “maioria dessas inovações não são escolhidas ao acaso, e sim devido à semelhança
entre seus elementos e a arte alto-xinguana".
11 Para esta análise em particular trabalhei com unidades sincrônicas de dez anos em uma
13Equívocos históricos dessa natureza podem ser facilmente cometidos por estudiosos de
coleções de museus e museólogos que limitam suas análises ao que já é empiricamente
107
muito limitado, o repertório em si, e que desconhecem o universo conceitual específico dos
artefatos que selecionaram para seu estudo. Em face às atuais condições e qualidade da
documentação das coleções etnográficas de museus brasileiros, duvido que os estudos de
coleções possam avançar sem novas pesquisas de campo especialmente voltadas para
elucidar os problemas oriundos da própria natureza das coletas e para compreender a
dinâmica dos artefatos em seus respectivos sistemas tecnológicos e artísticos.
108
15 Há, como veremos a seguir, uma exceção, que é a venda de objetos esteticamente
ineficazes para as lojas de artesanato.
114
16 Para um aprofundamento sobre o mesmo ver Barcelos Neto (2004: capítulo 7).
115
17 Os objetos malũ (falsos, imprestáveis, incapazes, ilegítimos) não possuem eficácia estética,
portanto não podem participar de contextos rituais. Eles são também chamados de
“paraguai”, em alusão aos objetos de baixa qualidade contrabandeados do Paraguai.
18Vale aqui uma breve contextualização das categorizações do sistema de objetos no âmbito
das relações com os brancos. Há, no Alto Xingu, um estilo de mercadorias especialmente
inventado para suprimir, por meio de vendas ou trocas, as necessidades dos índios por bens
industrializados. Muitos objetos vagabundos ou descartáveis levados pelas centenas de
brancos que passam pelo Parque todos os anos já têm seus correspondentes no artesanato
local. O volume desse comércio tem crescido anualmente, abrangendo cada vez mais uma
maior diversidade de produtos. Recentemente, uma família wauja trocou um conjunto de
máscaras “paraguai”, noto que essa categoria, que tem imediata equivalência semântica com
o afixo-modificar -malũ, é extremamente operante por um gerador usado a fim de assistir
televisão. Apesar desse imenso comércio, circula no Alto Xingu a ideia de que as coisas
“originais”, “de verdade” (iyajo), devem ser preservadas do comércio com os brancos. Mas
se caso forem solicitadas por estes as tais coisas “originais” deverão ser pagas “com muito
dinheiro, com barco, motor, Toyota, placa solar, moto-serra”, o que indica que não há
nenhuma ideia hegemônica nesse sentido. Não obstante, os limites desse comércio são
virtualmente, ou às vezes concretamente, controlados pelos chefes mais tradicionais a fim
de preservar, sobretudo, os rituais das flautas Kawoká e as canções xamânicas.
19 Claro que não são todos os brancos que recebem objetos-malũ. Atamai refere-se aqui ao
branco “médio”, cuja relação com os índios é mediada por variados agentes governamentais
117
ou não. Há, obviamente, várias lojas com belíssimos objetos wauja, mas isso não quer dizer
que eles sejam necessariamente de natureza-iyajo (“autênticos” ou de origem ritual). Muitos
desses objetos são peças de “arte turística” que chegaram a um nível de refinamento
insistentemente exigido pelas próprias lojas.
118
20 Categoria social de indivíduos que assume a persona dos apapaatai em rituais de cura e se
responsabilizam pela produção de “objetos de luxo”, roças, canoas e demais artefatos que
sustentam a continuidade dos próprios rituais que eles performatizam. A responsabilidade
de um kawoká-mona é tão grande quanto a de um xamã que resgata almas raptadas pelos
apapaatai. Em uma abordagem musicológica, Piedade (2004), mostra que o principal
flautista de Kawoká (Kawoká topá) jamais pode errar a melodia, sob o risco de “morrer” (i.e.
ficar gravemente doente) ou de sofrer graves infortúnios. Errar a melodia pode ainda
agravar o estado do doente ou, em hipóteses mais remotas, matá-lo.
119
Castro (1977 e 1979) descrições e análises detalhadas sobre o complexo xinguano das
reclusões.
121
FIGURAS
Figura 2 – Lateral e
fundo externo de uma
panela kamalupo pintada
com uma composição
gráfica do motivo
kupato onabe (espinha de
peixe). Fabricada em
1998-9. 78,6 cm de
diâmetro no fundo
externo.
126
Figura 3 – Lateral e
fundo externo de uma
panela kamalupo pintada
com uma composição
gráfica dos motivos
temepianá (motivo da
cobra jibóia), kulupienê
(“peixe”), kuwajata
(escama de curimatá) e
weri-weri (pontos).
Fabricada em 1998-9.
82,5 cm de diâmetro no
fundo externo.
Figura 5 – composição
gráfica para fundo de
panela com os motivos
kulupienê e mitsewenê. kunye
kunye jutogana e walamá
Grafite sobre canson,
23x33 cm, 1998
Figura 6 – composição
gráfica para fundo de panela
com os motivos
oneputaku. Grafite sobre
canson, 23x33 cm, 1998.
.
128
Figura 7 – composição
gráfica para fundo de
panela com os motivos
pojojeká. Grafite sobre
canson, 23x33 cm, 1998
Figura 8 – composição
gráfica para fundo de
panela com os motivos
ahonapu. Grafite sobre
. canson, 23x33 cm, 1998.
129
QUADROS
Quadro I
Motivos gráficos criados pelo personagem mítico Arakuni
130
Quadro II
Variações formais do motivo kulupiene
131
Quadro III
Exemplos de Motivos Gráficos
Aluwa tapa (pintura Aiyue jata (pintura Pala palala Weri weri (“círculos
de morcego) de jabuti) (“pintas”) concêntricos”)
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134
I ntrodução
(...) Isso foi pelos primeiros, as primeiras famílias que se fiu8xaram aqui, daí
veio à ramificação, como a gente gosta de chamar, os troncos. Eram poetas,
muito poetas, a família Santos, a família Leite e outras famílias. Os
antecedentes eram poetas aí veio a ramificação (...)
1Os irmãos Batista (Otacílio, Dimas e Lourival) que nasceram e viveram parte de suas vidas
em Itapetim vêm de família de poetas cantadores que é considerada a fundadora da poesia
repentista nesta região. Eles eram sobrinhos de Nicandro Nunes da Costa e Agostinho
Nunes da Costa, que nasceram na serra do Teixeira.
2 Lourival Batista é um poeta da nova geração que coincidentemente carrega o mesmo
Os Cantadores Amadores
4Consultar SOUZA, Karlla C. A. A Cantoria de Repente Volta para Casa: Itapetim no Circuito dos
Congressos de Violeiros. Dissertação de Mestrado em Sociologia/ UFPB/UFCG, 2006.
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Poesia é divina, sem nenhuma dúvida ela é divina, porque ela aparece para
pessoas que às vezes não sabe nem assinar o nome, e quantas pessoas de
alto nível de cultura não sabem nem fazer uma estrofe. (João Cordeiro)
Antônio Arcanjo
Memória Coletiva
6 Henri Marie-Bayle, mais conhecido por Sthendal, foi um escritor francês contemporâneo
de Napoleão Bonaparte. Exerceu vários cargos oficiais e serviu ao exército da França.
Órfão de mãe, sua obra se caracteriza pela profundeza com que caracteriza o sentimento de
seus personagens. Seu livro mais famoso é “O Vermelho e o Negro”, um livro de crônica
históricas, classificado como romance histórico psicológico.
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Meu tio Severino Ferreira aqui do Mocambo era poeta, tinha o irmão dele
Zé Ferreira do Mocambo era poeta também. Aí por isso eu nasci poeta.
Meu nome é Inácio Alves, mas meu pai que era Augusto, eu só andava com
ele, aí todo mundo dizia assim quando a gente passava: “Lá vai Inácio de
Augusto”, aí ficou Inácio Augusto.
Porque nós temos... nós fomos praticamente criados (...) na nossa época o
som era viola, é tanto que nós todos lá em casa aprendemos a tocar a viola
com meu pai, aí por isso a gente começou e fui aprendendo a cantar por
isso. (Zezito de Vital)
Lá em casa todos os filhos de meu pai, todos nasceram para ser poetas.
Tem Antônio que é o mais velho, aí vem Zezito de Vital, que sou eu,
Jacinto de Vital, João de Vital e Adalberto de Vital, todos eles cantam e
sabe fazer cantoria. (Zezito de Vital)
Eu acho que a poesia tem uma parte que é hereditária. Às vezes tem um pai
que é cantador e os filhos não sabem nenhum verso, é o que tem
acontecido muito hoje em dia. Às vezes o pai não é poeta e o filho é, mas
na família teve alguém que soube, aí veio de longe. (Zequinha Rangel)
Memória Étnica 7
Porque pro cantador é fácil mesmo no improviso, porque ele decorar tudo
que ele vai cantar é pesado. Sou mais cantar de improviso, porque se
acertar tudo bem, se errar também. Mais o cara ta com quinze, vinte, trinta
verso guardado na cabeça é pior quando chegar na hora de cantar.
Cantar pra quem entende aí bate palma e o poeta se inspira ainda mais,
quem entende começa a aplaudir aí a gente vê que eles estão gostando, aí a
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gente vai se esforçar mais pra fazer um verso mais bem feito e cantar
bonito.
Tem muitos poetas que dava muito bem pra competir no festival daqui,
mas tem medo, no sítio Boa Vista tem dois poetas da família Domingos,
Zezito e Alcides, mas ainda não sabe cantar direito e tem medo. Tem que
saber cantar, fazer rima e tocar na viola.
Não é fácil ter amplas noções das regras e dos rituais que envolvem
o repente. Ao todo, são minuciosos detalhes de rima8, de toada9, de
Memória e I dentidade
10 Dos estilos o mais famoso é o desafio, mas há também o estilo cômico, a exaltação, o
trocadilho, as canções de amor e nostalgia.
11 Nesse Brasil de caboclo, de mãe preta e pai João; Me amarre o boi , no pé da cajarana;
Isso é quadrão perguntado, isso é responder quadrão; Mas o que é que me falta fazer mais,
se o que eu fiz até hoje ninguém faz, são exemplos de versos que finalizam as estrofes e,
constituem estribilhos.
12 Saber cantar sertão, cantar saudade, acontecimentos políticos, assuntos da atualidade, das
à outra e apoiadas de certo modo uma sobre a outra (...)” (HALBWACHS, 1990 p.
33).
Para Michel Pollak (1992), o ato de lembrar é uma das garantias da
identidade. O autor acredita, ainda, que as similitudes têm o papel
fundamental de desenvolver os traços que salvaguardam a imagem que o
grupo adquire para si e como deseja ser visto pelos outros. Halbwachs
observa que isto ocorre para que possam subsistir os traços pelos quais o
grupo se diferencia dos demais.
Entretanto, tal sentimento de continuidade não deve excluir a
relação do grupo com a contemporaneidade. Le Goff (2003) cita os
estudos recentes de Joutard para falar dos resultados de sua pesquisa, em
que percebeu, através dos testemunhos orais, como a memória do passado
coletivo permitiam aos seus atores fazerem face, no presente, a
acontecimentos muito diferentes daqueles que o fundaram, mas sempre
procurando sobrepujar a competência da narrativa que compõe a
identidade.
Destarte, estudos da Antropologia Cultural nos mostram que, na
contemporaneidade, uma das formas pelas quais as identidades
estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo aos antecedentes
históricos. A memória é um dos substratos da identidade muito requisitado
atualmente. Em diversos ensaios Stuart Hall (2000) tem examinado
diferentes concepções de identidade cultural, procurando analisar o
processo pelo qual se busca a autenticidade para uma identidade popular
por meio da descoberta de um passado supostamente comum. Clifford
Geertz (2001) denomina este tipo específico de identidade pelo termo
“Identidade Prospectiva” que retrata o tema do ressurgimento de
Identidades com base na memória, na renovação dos valores geracionais,
do saber dos ancestrais e da fidelidade espaço-temporal.
Para Kathryn Woodward (2004), a criação de novas identidades,
evocando origens e mitologias são uma justificativa para a reformulação
do passado, engendrada no contexto social atual/atuante. Nesse sentido, a
autora considera que um argumento sobre o passado pode nos dizer
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Terra dos mais poeta é Itapetim, porque você veja (fazendo o gesto de
contar nos dedos): Dimas Batista nasceu aqui, Lourival Batista nasceu aqui,
Otacílio Batista nasceu, Rogaciano Leite, Job Patriota nasceu aqui, Vital
leite nasceu aqui, Severino Ferreira do Mocambo nasceu aqui, Zé Ferreira
do Mocambo nasceu aqui, esses poeta tudo nasceu aqui. Esses homens
enfrentaram Zé Soares em cantoria, que vinha de Caruaru pr’aqui, um dos
maiores poetas que já teve.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
1 Há uma grande produção acadêmica sobre o Projeto Baixo-Açu, o que nos obrigou a
fazer uma seleção. Baseamo-nos aqui nos estudos realizados por FERNANDES (1992),
GOMES DA SILVA (1992), VARGAS (1987a, 1991), BONETI (2003). Com relação aos
efeitos da referida barragens para o município de São Rafael, utilizamos os estudos de
VARGAS (1987b) e de CARVALHO (1999), além da nossa tese de doutorado (SOUZA,
2010).
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Rafael. Apesar das promessas de uma vida melhor e de sonhos que seriam
realizados, a insegurança com relação ao futuro predominava. O exílio
daquela população não tinha a mínima possibilidade de retorno. Diante de
tantas dúvidas e incertezas, os moradores dessa cidade estavam divididos.
Alguns acreditavam nas vantagens prometidas pelos políticos e
funcionários do DNOCS e se satisfaziam em ser proprietários de uma casa
para morar com a família, algo que nunca esperavam acontecer um dia.
Porém, para a maioria deles, aquele Projeto representava o fim drástico de
um tempo bom, tranquilo e vivido às margens do rio Piranhas.
Alguns poetas populares, como Chico Traíra, apoiavam e divulgavam
os benefícios que o Projeto proporcionaria. Outros cantavam os lamentos
de um tempo que chegava ao fim e as desesperanças num outro que se
iniciava. É o caso de Rafael Arcanjo da Costa2. Nos seus poemas, alguns
autobiográficos, ele expressou os sentimentos, os lamentos, as dificuldades
de adaptação na nova cidade, a ausência do rio, dos roçados e da vegetação
nativa.
No primeiro semestre 1983, a população rafaelense já estava
instalada na nova cidade. Da antiga São Rafael, poderia ser vista apenas a
torre da sua igreja, um ponto perdido em meio aos bilhões de metros
cúbicos de água da barragem, mas também um cartão postal da cidade,
uma área de lazer, um espaço da saudade para os mais velhos e um ponto
de referência para as gerações atuais.
Infelizmente, numa noite de dezembro de 2010, a torre, finalmente,
sucumbiu às águas. Não resta mais nada da velha cidade, a não ser a
memória dos seus antigos moradores, transmitida às gerações mais novas
por meio não só das conversas, que às vezes surgem sem esse propósito,
mas também através de outros suportes, como a internet.
Memórias em rede
2 Rafael Arcanjo da Costa (1912-1992) era poeta, cantador de coco e curador, uma das
habilidades da medicina popular. Na obra Beiradeiros do Baixo-Açu: canto e lamento de Rafael
Arcanjo da Costa (1987), VARGAS faz um apanhado das leituras do mundo feitas por esse
homem.
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3 Há uma diferença entre Orkut e Perfil. Enquanto o Orkut é a rede social on line, o Perfil é a
área criada no Orkut. Apesar disso, tornou-se comum nos referirmos ao Perfil como se fosse
o próprio Orkut, daí porque doravante usaremos o terno orkut de São Rafael sempre que nos
referirmos ao perfil criado para essa cidade.
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on line para todos os gostos: desde frivolidades, daí ser visto muitas vezes
como “cultura inútil”, até discussões sobre obras de arte, escritores,
educação.
Descobrimos a existência de um perfil de São Rafael no Orkut
quando pesquisávamos sobre as narrativas orais naquele município, tema
da nossa tese de doutorado, desenvolvido na UFRN. Logo percebemos
esse orkut como fonte para os nossos estudos, haja vista que observamos
um forte interesse de muitos participantes dessa rede social em relembrar o
passado na velha São Rafael, falar da sua história como uma forma de
reforçar as sociabilidades e projetar um futuro melhor para os seus
conterrâneos.
Ao percebermos a dimensão tomada pelo orkut de São Rafael,
buscamos fazer contato com o seu criador, o jovem Richardson Rodrigo,
que não chegou a conhecer a antiga cidade, mas é filho de rafaelenses. Em
entrevista, ele nos conta como nasceu a ideia de criar um perfil para São
Rafael, no orkut, em fins de 2007:
4 A ideia de descongelamento do passado por meio das leituras visuais das fotografias é aqui
usada com base na tese defendida pela Profª Eugênia M. Dantas, pesquisadora do Grupo de
Estudos da Complexidade (Grecom), no seu doutorado em Educação, na UFRN, em 2003.
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Hoje São Rafael está de luto, seus cidadãos presentes e ausentes estão de
uma tristeza profunda! Uns fazem questão de demonstrar esse sentimento,
outros não, permanecem frios, mas nem por isso sentem menos. Eu,
particularmente, sinto como se uma parte de mim, do meu passado, da
minha história tivesse desabado, ido embora, a água levado. Agora mesmo,
conversando com duas pessoas, uma diz: acabou o nosso marco de
recordações! A outra acrescenta: era por ela que eu me orientava para saber
os pontos da cidade velha.
redes sociais como locais ocupados apenas pela “cultura inútil” e usados
para frivolidades. Os rafaelenses, mesmo que agora não tenham mais a sua
antiga cidade, encontram-se e manifestam as suas emoções e lembranças
em um espaço virtual que pode criar e reforçar laços de amizade e de
solidariedade.
O cuidado em expor imagens do passado registradas em fotografias,
agora digitalizadas, lembra-nos as palavras de Le Goff. Para ele, a
fotografia é uma das mais importantes expressões da memória coletiva,
pois “[...] multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade
visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do
tempo e da evolução cronológica.” (1996, p.466)
A fotografia é a um só tempo reveladora de informações e
detonadora de emoções. Como ressalta Kossoy (2001, p. 75), ela “não é
apenas um documento por aquilo que mostra da cena passada, irreversível
e congelada da imagem; faz saber também de seu autor, o fotógrafo, e da
tecnologia que lhe proporcionou uma configuração característica e
viabilizou seu conteúdo.” É por isso que, para Dantas (2003), as
fotografias descongelam o tempo.
Referências Bibliográficas
mas tomem bastante cuidado, hein? (alerta da mãe de Mônica) e doente assim você
não pode ir! Agora fique quietinho enquanto ligo para o médico (advertência da mãe
de Cascão). Esses recortes mostrados no segundo capítulo reforçam o papel
de cuidadora exercido pelas mães de papel. No primeiro enunciado, a
palavra “cuidado” reflete o zelo da mãe para com as crianças, e no
segundo, quando a outra mãe diz para o filho que ele não poderá
comparecer ao compromisso assumido por estar doente, fica demonstrado
o cuidado e a preocupação da genitora com a saúde do filho.
Por não trabalharem fora de casa, essas mulheres quadrinizadas
dedicam tempo integral ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos. Na
família quadrinizada, a representação de pai provedor e mãe cuidadora
reproduz as relações sociais de gênero cristalizadas no social. Nesse
sentido, podemos identificar, no discurso dos quadrinhos, elementos de
uma memória discursiva sobre gênero: enquanto a atuação da mulher
limita-se ao espaço privado (casa), a atuação masculina é relacionada ao
público (rua). Em apenas uma história, localizamos um deslocamento do
interdiscurso, como o demonstrado na narrativa quadrinizada na qual a
mãe de Mônica tenta realizar uma tarefa profissional em casa. Como o
tempo destinado ao trabalho profissional foi sacrificado em prol dos
cuidados com a casa e com a filha, a esposa pressiona o esposo que leva a
menina para o seu trabalho. Pressionado, o pai assume um pouco para si os
cuidados com a filha. Entretanto, na grande maioria das histórias, é a
relação entre mãe e filho a mais destacada. Ocorre nesse discurso uma
regularidade focalizada na díade filho-mãe. A figura da mãe comparece
mais do que a do pai no cotidiano infantil: é a mãe quem mais educa,
orienta e impõe limites aos filhos. Para essa infância, a figura da mãe é
bastante valorizada, reflexo da importância atribuída ao autor à sua própria
genitora, Dona Petronilha (GUSMAN, 2006).
Os pais das crianças urbanas não participam muito da rotina da
criança, eles estão mais preocupados com o trabalho, com o pagamento de
contas: tantas contas! Vou precisar de uma fábrica de dinheiro pra pagar (fala do pai
de Cascão) e com o sustento da família, mas em algumas histórias é
mostrada a participação dos pais em atividades de lazer junto aos filhos.
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avó de Chico Bento (Vó Dita) como uma das grandes responsáveis pela
transmissão à criança de aspectos da cultura popular, através da narração
de contos populares, fábulas, etc., e pelo ingresso do menino no mundo de
sonhos e fantasias. As histórias narradas pela avó de Maurício (que
também se chamava Vó Dita) serviram de inspiração para o autor criar
suas próprias, apesar de ele reconhecer que:
exterior.
Escola e interdiscursividade
Referências Bibliográficas
A experiência
Literatura e conhecimento
Paixão e conheciment o
“não existe nenhuma disciplina cientifica que tenha o amor como objeto.
O amor não é estudado nem pela psiquiatria, nem pela psicanálise, nem
pela psicologia social. O amor é uma coisa que você vai ter que procurar
nos artistas, na televisão, no cinema, e, principalmente, na poesia”
(Leminiski, 2009, p.333).
Referências Bibliográficas:
I ntrodução
O século XXI tem seu início marcado por um grande desafio, que é
manter as Universidades como um dos campos de maior representação
simbólica e de produção do saber. Campo no qual ocorrem, além da
formação profissional, a reflexão e a difusão cultural. Esse desafio é
formado por missões que, historicamente, e em diferentes contextos, as
Universidades vêm assumindo e tentando enfrentar, a fim de marcar o seu
lugar social no mundo e nas sociedades contemporâneas.
As emergentes mudanças econômicas, sociais, culturais e
tecnológicas, ocorridas na sociedade nas últimas décadas do século XX e
início do século XXI, têm desafiado as instituições universitárias,
sobretudo, as públicas, a responder às novas demandas inerentes a esse
processo de transformação que envolve toda a população. Esse desafio
alia-se às reduções de financiamentos, por parte do Estado, para as
Universidades públicas, em detrimento de suas necessidades conjunturais.
Diante de tal contexto, acentuam-se as contradições das funções
universitárias assumidas ao longo de sua história, fazendo com que se
perpetue a dissociabilidade entre a investigação, o ensino e a extensão. No
campo da investigação, a Universidade vem se tornando, assim, refém dos
interesses da competitividade da economia, em detrimento de uma
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Se alguém desse uma idéia nós procurávamos apoiar o máximo. Não teve
assim, há eu participei mais. Todo mundo participou. O bom foi que eu
aprendi a trabalhar mais em equipe. Teve esse aprendizado. (SACI, Curso
de Nutrição)
Referências Bibliográficas