Movimentos Do Linguístico
Movimentos Do Linguístico
Movimentos Do Linguístico
-•~
•:.
•••
FALE
UF 1n G
•• •
'
POSLIN·UFMG
FACULDADE
DE LETRAS
Movimentos do linguístico:
forma e sentido em enunciação
Organizadores:
Luiz Francisco Dias
Luciani Dalmaschio
Enunciar
SEMÃNTICA: ENUNCIAÇÃO E FORMA LINGUI STICA.
Organizadores:
Luiz Francisco Dias
Luciani Dalmaschio
Movimentos do linguístico:
forma e sentido em enunciação
Belo Horizonte
FALE/UFMG
2020
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Faculdade de Letras/UFMG
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-87237-23-7.
Vários autores.
CDD : 418
MOVIMENTOS DO LINGUÍSTICO:
FORMA E SENTIDO EM ENUNCIAÇÃO
Conselho Editorial:
Ana Zandwais (UFRGS)
Cármen Lúcia Hernandes Agustini (UFU)
Jorge Viana Santos (UESB)
Sheila Elias de Oliveira (UNICAMP)
Taisir Mahmudo Karim (UNEMAT)
APRESENTAÇÃO
8
A Faculdade de Letras da UFMG, através do Programa de Pós -
Graduação em Estudos Linguísticos, e espec ificamente o Grupo de
Estudos da Enunciação (ENUNCIAR) desta Instituição, sentem -se
honrados pela aceitação dos participantes ao nosso convite para a
participação no Evento e pela disponibilidade na cessão dos textos que
ora apresentamos nesta publicação. Nós, organizadores do Even to,
agradecemos os participantes e, especialmente, os autores dos textos
desta obra por nos ter prestigiado com a apresentação competente dos
resultados de suas pesquisas no campo da enunciação.
9
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1. Introdução
Este trabalho se volta para o estudo dos diferentes pontos de vista - ligados,
por sua vez, a diversas fontes enunciativas - que atravessam o discurso dos locutores
na mídia dita referencial. Interessa-nos investigar a subjetividade na linguagem e o
quadro formal de realização da enunciação com base em dois textos, datados de
2018, que problematizam a xenofobia por trás das políticas migratórias na Europa. O
primeiro, veiculado pelo jornal Estadão, é intulado “Crise na Europa já passou, mas
xenofobia continua”1. Já o segundo, intitulado “A xenofobia e a discriminação
escondem-se sob a capa do nacionalismo”2, é veiculado pela revista Carta Capital.
Observamos, hoje, um crescente processo de migração que, devido à sua
proporção mundial, deve ser investigado e discutido. Em dados recentes divulgados
pela Organização das Nações Unidas (ONU)3 foi constatado que o mundo possuí hoje
mais de 270 milhões de migrantes internacionais. E, de acordo com dados do ACNUR 4
(Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), em 2018, quase 70,8
milhões de pessoas foram deslocadas à força em todo o mundo, devido a fatores
como conflitos, perseguições, violência ou violações de direitos humanos. Desse
modo, o número de refugiados quase dobrou desde 2012, passando de 10,5 milhões
para 20,4 milhões de pessoas que foram obrigadas a deixarem seus países de origem
por terem sua vida ou liberdade ameçadas.
10
Diante desse fenômeno que altera a configuração do mundo como o
conhecemos, é necessário um olhar específico acerca dos discursos de cunho
nacionalista e xenofóbico que se mobilizam em torno dos migrantes, não raro,
associados ao imaginário da chamada “migração de crise” (CLOCHARD, 2007).
Nosso objetivo é, pois, analisar os modos de problematização em torno da temática
da xenofobia a partir da subjetividade na linguagem, das heterogeneidades
enunciativas, das modalizações e dos atos de nomeação empregados para tratar de
cada um dos temas identificados nos textos, tendo em vista a relação entre essas
designações e os pontos de vista a que estão associadas. Para tanto, tomaremos
como base a teoria de Benveniste (1988; 1989) em relação à subjetividade na
linguagem e o aparelho formal da enunciação; as relações de transparência e
opacidade nos enunciados conforme Dubois (1969); a proposta de Authier-Revuz
(1990) no que diz respeito às heterogeneidades enunciativas; as proposições de
Bakhtin em relação ao dialogismo interno; e as contribuições de Rabatel (2013) em
torno da questão dos pontos de vista.
2. Questões teórico-metodológicas
11
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
12
30). Para tanto, não podemos perder de vista a noção bakhtiniana de dialogismo
interno, segundo a qual:
13
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
além do ‘eu’ que se coloca como sujeito de seu discurso, ‘por esse ato de apropriação
que introduz aquele que fala em sua fala’ [...]” (Ibid., p. 33).
Finalmente, em relação à atitude do sujeito diante do discurso, Dubois (1969)
apresenta os conceitos de transparência e opacidade tendo em vista a qualidade da
relação entre o enunciador e o interlocutor. Assim, um enunciado transparente
apresentaria o apagamento do sujeito da enunciação e seria minimamente ambíguo
para o interlocutor, enquanto um enunciado opaco revelaria a presença do enunciador
por meio de elementos como modalizações, apreciações e jogos de palavras.
Passaremos, então, à análise dos textos.
3. Análise do corpus
14
imigração na Europa, as praias gregas estão (presente) comparativamente calmas”
(parágrafo 2). A reportagem é ancorada no ano de 2018, como se pode notar, mas ao
longo do texto diversas marcas de temporalidade apontam para o momento da
enunciação, como “agora”, “até o momento este ano”, e “por enquanto”.
Os desafios relacionados à migração são relatados de maneira a indicar que
seu ápice ocorreu no passado, mas que outras questões, em proporções menores,
continuam a ser discutidas no presente, o que é marcado nos seguintes enunciados:
“os países ainda têm dificuldade em absorver os cerca de 1,8 milhão de imigrantes
que chegaram pelo mar desde 2014” (parágrafo 8); “E os líderes ainda mantém
diferenças consideráveis em relação a quem deveria assumir a responsabilidade
pelos recém chegados” (parágrafo 9); “Esses desafios permanecem enquanto as
autoridades precisam também melhorar as condições dos paupérrimos campos de
imigrantes na Grécia” (parágrafo 24).
Com relação ao espaço da enunciação, o enunciador, que neste momento
coincide com o locutor, instaura um aqui na enunciação, que se ancora na ilha de
Lampedusa: “E aqui , na remota ilha de Lampedusa - o ponto mais meridional da Itália,
e uma das linhas de frente da crise - o centro de detenção de imigrantes tem longos
períodos de inatividade” (parágrafo 2). Em um outro momento, o espaço é indicado
novamente por uma marca enunciativa no seguinte enunciado: “do outro lado do
Atlântico, o presidente Donald J. Trump afirmou, equivocadamente, que a imigração
teria levado a um surto de criminalidade na Alemanha” (parágrafo 12). Ao se referir ao
continente americano como o “outro lado” do Atlântico, é possível entendermos que o
aqui corresponde ao continente europeu.
Já na reportagem veiculada pela Carta Capital, inicialmente, a enunciação é
também realizada na terceira pessoa, o que indicaria um certo apagamento do sujeito.
Entretanto, em dado momento, o locutor/enunciador instaura a presença de um nós,
que passa a ser fundamental na construção discursiva. O modo como o locutor
gerencia o uso das instâncias enunciativas marca a (des)construção de posições
enunciativas flutuantes. A partir disso, é interessante observarmos o movimento de
composição do sujeito da enunciação que ora está incluso no valor de referência de
nós, ora é aparentemente apagado criando um efeito de objetividade.
Após elencar diferentes locutores/enunciadores que expressam suas opiniões
negativas acerca da temática da imigração, o enunciador desconstrói certos
problemas associados aos imigrantes e afirma que “todos sabemos” que as questões
15
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
apontadas não são verdadeiras, mas que ainda assim “permitimos [...] que se criasse
e se desenvolvesse um discurso consensual sobre a imigração que a vê como
patologia social” (parágrafo 5). Nesse caso, o valor referencial de nós poderia ser
tomado como um eu + sociedade. Nesse sentido, o locutor/enunciador
constrói/fabrica uma sociedade da qual o sujeito faz parte e com a qual compartilha
de uma mesma ideia, e os responsáveis pela criação de um discurso consensual
sobre a imigração como “patologia social” não são apontados pelo enunciado, que
utiliza a forma “se criasse” e “se desenvolvesse” no lugar de índices pessoais.
No entanto, o locutor/enunciador separa esse “nós” ao dizer que, ao se tratar
da questão da imigração, “Uns quantos evitam discuti-la com medo que isso agrave o
problema. Outros ainda suplicam pela partida de alguns [...] como forma de evitar
maiores reações de rejeição” (parágrafo 5). Desse modo, ao utilizar os termos “uns” e
“outros”, antes incluídos no “nós”, o locutor/enunciador os coloca como um “eles”, do
qual ele não faz parte.
Mais adiante, o locutor/enunciador retoma o uso do nós ao afirmar que
“Lentamente, todos acordamos para esta nova realidade [o regresso do racismo e da
xenofobia sob a capa enganosa do nacionalismo] na Europa, nos Estados Unidos, no
Brasil” (parágrafo 6). O valor referencial do nós, que aparentemente é constituído por
eu + sociedade, é restringido pelo fato de que a realidade de que se trata é atribuída
no enunciado a lugares específicos (Europa, Estados Unidos, Brasil), e aqueles
responsáveis pelo discurso nacionalista e xenófobo (membros da extrema-direita) não
fazem parte do grupo que “lentamente acorda” para essa “nova realidade”. Desse
modo, podemos pensar que, nesse caso, o uso do nós pelo locutor, refere-se, na
verdade, ao enunciador principal e aos enunciatários que se aderem ao discurso.
Em outro momento, o enunciador afirma que “Se substituirmos o imigrante pelo pobre,
encontraremos então o Brasil” (parágrafo 8). Nesse caso, o valor referencial do nós é
constituído por eu + sociedade brasileira, já que neste parágrafo o locutor se volta
para questões relacionadas à população do Brasil.
No que diz respeito à noção de temporalidade, o presente é instaurado na
enunciação a partir do aqui-agora do enunciador. Podemos observar a presença de
marcas dêiticas como “agora” e “hoje” instauradas no texto. Usualmente, o termo hoje
é utilizado como uma forma vazia do presente da enunciação, que é atualizada pelo
16
momento enunciativo. No entanto, percebemos no texto uma ampliação do valor
referencial de hoje, quando ele é utilizado como sinônimo de “atualmente”, a exemplo
do que ocorre no trecho: “O imigrante é, hoje, o novo bode expiatório, o novo rosto do
racismo” (parágrafo 7). Situação semelhante ocorre quando, após citar o poema que
está gravado na base da Estátua da Liberdade, nos Estados Unidos, o enunciador
relembra que “Hoje o seu presidente faz um comício e convida uma congressista, sua
adversária política, a voltar para o seu país” (parágrafo 1). Nesse caso, o uso de hoje
remete a um presente próximo, causa um efeito de aproximação do fato que havia
acontecido em uma data recente.
Já em relação ao espaço, em dado momento, o enunciador afirma que “O
Estado alemão homenageou Von Stauffenberg, o oficial que conspirou para
assassinar Hitler em 1944. No discurso que ali fez, a chanceler Angela Merkel apelou
ao combate à extrema-direita” (parágrafo 9). O uso de “ali”, que se refere à Alemanha,
contrapõe-se ao aqui na enunciação que, pela leitura do texto, podemos entender que
se refere ao Brasil.
Tendo por base todo esse dinamismo enunciativo, destacamos que, embora a
mídia referencial seja tradicionalmente associada a uma postura enunciativa que
preza pelos princípios de objetividade e de neutralidade, o que caracteriza a imprensa
de referência atual não é, como nos lembra Emediato (2013, p.70), “a ausência ou a
presença de opinião, mas a forma como é realizada a gestão das vozes e dos pontos
de vista na perspectivização dos fatos”. Com efeito, ao voltarmos nosso olhar para
textos jornalísticos que se propõem a problematizar a xenofobia voltada para as
questões migratórias na Europa, notamos uma presença significativa de enunciados
opacos (DUBOIS, 1969), ainda que as marcas de impessoalidade, que situam o
locutor midiático fora da relação dêitica eu-tu, e a encenação de discursos relatados,
marcas da heterogeneidade mostrada, sugiram o apagamento desse locutor e a
transparência de seu enunciado.
Por um lado, assumimos com Rabatel (2013, p.55) que, “apagando ao máximo
os traços do locutor citante em proveito dos locutores citados, é produzido um efeito
de objetividade, de transparência imediata [...]: a encenação dá uma ilusão do
verdadeiro pelo apagamento de seu enunciador”. Por outro, reconhecemos a
opacidade do enunciado não apenas na gestão dos discursos relatados, pela escolha
dos locutores citados e das suas respectivas falas que se inscrevem no texto, mas
também na dos pontos de vista subjacentes aos enunciadores que atravessam esse
17
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
texto, por um processo de dialogismo interno. Tal processo se revela a partir de uma
série de atos de nomeação, ora atribuídos aos locutores citados, mas nunca sem uma
intenção interpretativa, ora desvelados no enunciado principal pelas escolhas
designativas empregadas para tratar de categorias como (1) as migrações, (2) os
sujeitos migrantes e as suas ações (bem como a reação da sociedade frente a elas),
(3) as lideranças e os partidos políticos, (4) os direitos humanos e democráticos e (5)
as políticas migratórias e os discursos que as embasam.
Assim, seja pela escolha dos discursos relatados, e dos respectivos atos de
nomeação que aparecem neles, seja pelas designações apresentadas no texto
principal5, uma série de representações é construída de modo a instaurar ou
reforçar/refutar pontos de vista acerca das categorias elencadas acima, conforme sua
gestão pelo locutor/enunciador midiático. Nas palavras de Moscovici (2015, p.63),
“categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados
em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele”. Para
tanto, a realização de atos de nomeação precipita aquilo que é nomeado e promove,
na perspectiva do autor (Ibid., p.67), três consequências:
5Designamos como “texto principal” o texto midiático que não compreende os discursos relatados, ou
seja, os enunciados pelos quais o próprio locutor/enunciador midiático.
18
encontramos esse tipo de designação em oito passagens no total, sendo cinco no
texto do Estadão (anexo 1) e três no texto da Carta Capital (anexo 2).
No primeiro texto, identificamos a expressão “crise de imigração” logo na
abertura do título (“Crise de imigração6 na Europa já passou, mas xenofobia
continua”), o que, na esteira de pensamento de Moscovici (2015) já atribui uma
suposta característica de crise a determinados processos migratórios para a Europa,
tornando-os distintos de outros processos (mais recentes, visto que, segundo o título,
a “crise” propriamente já passou) e convencionalizando tal representação a partir do
ponto de vista instituído como verdade. Isso ocorre na medida em que, além de os
elementos do título se apresentarem como uma representação fiel e sintética do texto,
como destaca Emediato (2013, p.71), eles trazem uma dimensão argumentativa ao
persuadirem “o leitor a ver os fatos e os ditos relatados de certa maneira e através de
uma perspectiva, ou de um tipo de enquadramento”, que se reforçam inclusive pelos
atos de nomeação.
Além disso, o efeito de verdade produzido pelo emprego do nome “crise” é
reforçado pelo fato de a mesma expressão, “crise de imigração”, ser reempregada,
em outros dois momentos do texto, associada a dados sobre os fluxos migratórios
para o continente, no segundo parágrafo (“Três anos após o auge da crise de
imigração da Europa [...]”) e no quarto (“Este é o paradoxo da crise de imigração
da Europa [...]”), sendo que neste último aparece ainda o termo “paradoxo”, usado
para confrontar o aumento dos fluxos migratórios com as políticas migratórias mais
rígidas no continente europeu, o que desvela o ponto de vista assumido pelo
locutor/enunciador midiático, ao problematizar a questão migratória nessas palavras.
Isso se reforça finalmente, com a apresentação do discurso citado de Matteo Vila,
identificado como especialista em imigração do Instituto Italiano de Estudos Políticos
Internacionais, no qual se destaca o trecho “‘Trata-se de uma crise inventada’”
(parágrafo 18), empregado para refutar a ideia que os representantes políticos
europeus tendem a disseminar, a partir de um argumento de autoridade representado
pela fala do especialista.
No segundo texto, por sua vez, aparece como discurso citado, já no quarto
parágrafo, a expressão “‘a imigração é um problema’”, designação que se repete no
6Todos os grifos apresentados para identificar os atos de nomeação nas citações foram feitos pelas
próprias autoras.
19
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
quinto parágrafo (“Uns quantos evitam discuti-la com medo que isso agrave o
problema”). Em sua primeira ocorrência, embora se trate de uma citação direta, seu
locutor não é esclarecido no enunciado, mas o fato de ser empregada após uma série
de considerações a respeito da influência dos discursos de extrema-direita e da
aceitação, pela esquerda e pela direita, de discursos como o citado nos permite inferir
que a noção de migração como “problema” é uma perspectiva disseminada pela
extrema-direita. E é essa a noção de “problema” retomada em sua segunda
ocorrência, subsequente a novas considerações sobre as contribuições das
migrações e dos imigrantes nas novas sociedades em que se inscrevem e o fato de
que “[...] permitimos, no entanto, que se criasse e se desenvolvesse um discurso
consensual sobre a imigração que a vê como patologia social” (parágrafo 5). Ao
problematizar a representação consensual das migrações, contrapondo-a a uma
análise positiva desse fenômeno desenvolvida no enunciado principal, revela-se,
assim, a gestão dos pontos de vista pelo locutor midiático e o próprio ponto de vista
assumido por ela, a partir dos atos de nomeação.
Ao voltarmos nosso olhar para as escolhas designativas que tratam dos sujeitos
deslocados, que aqui categorizamos de forma genérica como migrantes, para além
dos termos que os nomeiam conforme determinadas definições socialmente
compartilhadas (migrantes e imigrantes) e/ou certos estatutos jurídicos (refugiados),
há que se considerar uma série de atos de nomeação que possuem um caráter
qualificativo desses grupos, com base, por exemplo, nos princípios de
regularidade/irregularidade e de legitimidade/ilegitimidade. No texto do Estadão, isso
se mostra evidente nos três trechos em que tais atos de nomeação aparecem: (1) “[...]
o número de imigrantes em situação irregular que chegam a cada ano [...]”
(subtítulo); (2) “[...] para decidir mais rapidamente se eles são refugiados legítimos
ou não” (parágrafo 5); (3) “[...] crime passível de detenção a prestação de ajuda a
imigrantes sem documentos” (parágrafo 11). Podemos notar que é justamente o
emprego de expressões qualificativas (“em situação irregular”, “legítimos ou não” e
“sem documentos”) atribuídas a esses sujeitos que sustentam a problematização
acerca da superdimensão dos fluxos migratórios e das políticas migratórias adotadas
para lidar com a questão.
20
Isso implica, novamente de acordo com Moscovici (2015), consequências no
que tange à caracterização que distingue esses grupos de outros grupos de migrantes
e à convencionalização social desses migrantes segundo a perspectiva da
irregularidade e da ilegitimidade. Ao se antecipar um ato de nomeação dessa natureza
já no subtítulo, tem-se uma dimensão argumentativa similar à apresentada pelo título,
enquanto os demais, associados aos discursos que justificam as políticas migratórias
adotadas por líderes da União Europeia, sugerem que tais designações partem das
discussões dos próprios representantes políticos. Ainda que essas designações não
sejam propriamente problematizadas nos trechos apresentados, o tratamento dado a
essas lideranças pelo locutor/enunciador midiático, como mostraremos em breve,
demonstra uma divergência de pontos de vista entre os locutores políticos e o
midiático.
Já no texto da Carta Capital, o enfoque sobre a questão da ilegalidade como
justificativa para políticas migratórias mais duras aparece em um trecho que trata dos
ciganos como representativos dos migrantes que chegam à Itália e que o presidente
Salvini pretende expulsar: “os que lá estão de forma ilegal” (parágrafo 2). Para além
dessa expressão designativa dos migrantes conforme sua condição legal, o texto
apresenta ainda vários outros atos de nomeação que refletem o ponto de vista das
lideranças europeias acerca dos migrantes, como ilustram os seguintes trechos: (1)
“‘os imigrantes representam um problema’”, citação direta, presente no quarto
parágrafo, que não é atribuída a um locutor especificamente, mas associada aos
discursos da extrema-direita; (2) “a começar pelos menos aceitáveis, ou menos
úteis (os ciganos vêm mesmo a calhar)”, discurso atribuído, no quinto parágrafo, a
alguns grupos da sociedade que defendem a expulsão de certos migrantes; (3) “Ela
[a extrema-direita] não pretende a vitória, mas a eliminação do inimigo”, consideração
apresentada no sexto parágrafo que coloca o migrante como inimigo na perspectiva
da extrema-direita; (4) “a operação de segregação dos ‘corpos estranhos’”,
designação que aparece entre aspas, no sétimo parágrafo, sem remeter novamente
a um locutor explicitado, mas que coloca o migrante como alvo de ações
segregacionistas, associando indiretamente tal ato de nomeação ao ponto de vista
dos praticantes de tais ações.
Ao se inserir no enunciado uma negativização recorrente e apelativa da figura
do migrante, contrária a uma atitude moral e politicamente correta conforme as
convenções sociais em torno dos direitos humanos, seu emprego soa como ironia ou
21
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
22
“equivocadamente” dirigido à afirmação de Trump), o locutor/enunciador midiático não
apenas destaca o ponto de vista de tais lideranças, mas também inscreve seu próprio
ponto de vista, contrário a essas designações, no texto principal. Isso se reforça, ao
longo do texto, por uma série de atos de nomeação também direcionados às
lideranças e aos partidos/plataformas políticos na Europa. Frente ao debate
continental (e, por que não, mundial) em torno das políticas migratórias, o texto
principal destaca, por exemplo, a “crescente distância entre as forças liberais e
antiliberais na Europa” (parágrafo 31), de modo que a nomeação dessas duas
instâncias em termos de “forças”, aponta para duas diretrizes capazes de ordenar a
configuração sociopolítica da Europa.
Contudo, em outros momentos do texto, tal perspectiva é questionada na
medida em que o posicionamento da Alemanha, representada pela “porta-estandarte
da ordem liberal europeia” (parágrafo 7), ou ainda pela “líder inquestionável do
continente” (parágrafo 25), cede à rigidez das políticas migratórias da extrema-direita
(“Salvini e Orban cultivaram apoio criando a impressão de serem os únicos líderes
dispostos a tomar as decisões difíceis necessárias para reduzir a imigração” –
parágrafo 19). Todos esses atos de nomeação, longe de serem gratuitos, instauram o
ponto de vista do locutor/enunciador midiático, ao ironizarem o poder político de quem,
a princípio, garantiria uma gestão pacífica das migrações e ao ressaltarem, no
discurso narrativizado dos próprios líderes de extrema-direita, a autovalidação e a
imposição do seu poder, que não é, portanto, consensual.
Mais explicitamente, no texto da Carta Capital, o locutor/enunciador midiático
se posiciona contra os representantes de políticas anti-imigração nomeando-os
“profissionais da política da catástrofe e do medo” (parágrafo 4). E se, por um lado,
contrariamente ao texto do Estadão, o da Carta Capital retoma o discurso de Ângela
Merkel para afirmar que, na Europa, “a direita democrática existe” (parágrafo 9), por
outro, é criado um paralelo entre as ações de direta na Europa e no Brasil com o intuito
de dizer que, neste último, “a direita [...] se afirmava democrática” (parágrafo 9).
Assim, é notável como a aproximação desses dois atos de nomeação colocam o
primeiro como algo consensual e legitimado, enquanto o segundo é situado apenas
na perspectiva da própria direita, deslegitimando seu caráter democrático.
Tal construção, além de refletir o ponto de vista da instância enunciativa, ao
evocar a noção de democracia, dialoga ainda com outra parte do texto que destaca
que “A pretexto de combater o politicamente correto, a extrema-direita dispõe-se a
23
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
24
alemã” (Estadão - parágrafo 25); (3) “A xenofobia e a discriminação escondem-se
sob a capa do nacionalismo” (Carta Capital – título) e “o que se passa no discurso
político ocidental é o regresso do racismo e da xenofobia sob a capa enganosa do
nacionalismo (Carta Capital – parágrafo 6)”; (4) “as políticas europeia e
estadunidense vivem reféns do discurso da extrema-direita e escorregam lentamente
para uma espécie de síndrome política da imigração” (Carta Capital - parágrafo 4);
(5) “Política de apaziguamento: alimentemos o crocodilo na esperança de
sermos os últimos a ser devorados” (Carta Capital – parágrafo 5); (6) “inaugura
uma nova era de violência verbal que adota os códigos da guerra total. Ela não
pretende a vitória, mas a eliminação do inimigo” (Carta Capital - parágrafo 6); (7) “A
pureza cultural justifica a operação de segregação dos “corpos estranhos” que
põem em causa a identidade nacional [...]” (parágrafo 7).
Notamos, nesses trechos, que a problematização da xenofobia é construída,
primeiramente, a partir de expressões designativas dessas políticas migratórias
segundo seu caráter rígido e segregacionista (“linha dura”, “hostilidade”, “síndrome
política da imigração”, “nova era de violência verbal”, “eliminação do inimigo” e
“operação de segregação”). Em oposição a elas, aparece também a expressão
“política de apaziguamento”, que, contrariamente ao que sugere à primeira vista, logo
se esclarece com um novo ato de nomeação de cunho metafórico e tom irônico, para
tratar de um discurso que defende a partida de alguns imigrantes sob pretexto de
evitar atitudes xenofóbicas: “alimentemos o crocodilo na esperança de sermos os
últimos a ser devorados”. Ao ironizar tal discurso de justificação, o locutor/enunciador
midiático novamente deixa transparecer seu ponto de vista, o que se repete em todos
os outros atos de nomeação que se voltam para essas justificativas (“nacionalismo” e
“capa enganosa do nacionalismo”, “reféns do discurso da extrema-direita”, “códigos
da guerra total”, “pureza cultural” e “identidade nacional”).
Vale destacar ainda a presença de verbos de ação empregados criteriosamente
visando a efeitos de sentido que ora questionam a confiabilidade dessas políticas
migratórias e de seus agentes, ora denunciam seu endurecimento em prol de um
discurso protecionista. Identificamos, nos exemplos acima, a presença do verbo
“escorregam” como ilustrativo do primeiro ponto e a do verbo “escondem-se” como
representativa do segundo. Para mais, apontamos os trechos “[...] segue mancando
como chanceler depois de concordar em construir campos nas fronteiras” (Estadão –
parágrafo 25), que traz um ponto de vista explícito do locutor/enunciador midiático,
25
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
26
italianos porque não os podemos expulsar’” (parágrafo 2). Além disso, é interessante
observarmos a construção de certos enunciados em torno do advérbio de negação
(não), que parece como um modalizador de contradiscurso: “Todos sabemos que os
imigrantes não consomem recursos da segurança social, mas, ao contrário,
contribuem para ela. Todos sabemos que a sua partida massiva não resolveria
nenhum problema econômico, mas geraria muitos” (parágrafo 5). Por haver um
conflito, há também polifonia. O sujeito polifônico compreende uma instância
intersubjetiva que se estende por dois posicionamentos divergentes. É a negação
polêmica que revela esse sujeito que aponta para a presença de enunciadores com
pontos de vista diferentes. Nesses enunciados, o uso do conector “mas” constrói a
confrontação desses pontos de vista já antecipados pelo caráter polifônico do não.
Nesse caso, há a contraposição de (1) uma voz que determina que os imigrantes
consomem os recursos dos países e que a solução para a questão econômica seria
expulsá-los com (2) uma voz que assume a posição de que a partida dos imigrantes
geraria mais problemas e que sua presença contribui para a geração de recursos.
4. Considerações finais
Com base nas análises empreendidas, pudemos observar de que maneira a
subjetividade na linguagem se faz presente mesmo em textos representativos da
mídia dita referencial, a partir das estratégias enunciativas adotadas pelo
locutor/enunciador midiático para orientar a abordagem e a persepctivização dos fatos
reportados. Assim, ao voltarmos nosso olhar para o(s) discurso(s) veiculados
nas/pelas reportagens do jornal Estadão e da revista Carta Capital, percebemos que
os modos de problematização da xenofobia nem sempre ocorrem de forma explícita,
mas se desvelam em pontos de vista subjacentes a diversas fontes enunciativas e
geridos pelo próprio locutor/enunciador midiático.
Esses pontos de vista, por sua vez, foram analisados no(s) discurso(s)
midiático(s) em questão por meio de um percurso teórico-metodológico que partiu da
identificação de indicadores (pessoais, espaciais e temporais) do aparelho formal da
língua nos dois textos, demonstrando a implicação de ambos os
locutores/enunciadores midiáticos em seus respectivos discursos. Em seguida,
reconhecemos a presença de uma série de pontos de vista – correspondentes,
portanto, a uma série de fontes enunciativas – em diversos atos de nomeação e
escolhas designativas empregados pelos locutores/enunciadores midiáticos para
27
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Maikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
DUBOIS, Jean. Énoncé et énonciation. In: Langages, 4ᵉ année, n°13, 1969. L'analyse
du discours, sous la direction de Jean Dubois et Joseph Sumpf. p. 100-110.
28
RABATEL, Alain. O papel do enunciador na construção interacional dos pontos de
vista. In: EMEDIATO, Wander (org.). A construção da opinião na mídia. 1 ed. Belo
Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2013.
ANEXOS
Estadão
https://internacional.estadao.com.br/noticias/nytiw,crise-de-imigracao-na-europa-ja-passou-mas-xenofobia-
continua,70002393322
29
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Apesar das reivindicações dos líderes de extrema-direita, o número de imigrantes em situação irregular que
chegam a cada ano está de volta aos níveis pré-crise - e tem sido assim há algum tempo
Patrick Kingsley, The New York Times - 08 de julho de 2018
(1) LAMPEDUSA, ITÁLIA - Milhares de imigrantes chegavam todos os dias às praias da Grécia. Nos
portos da Itália, milhares chegavam todas as semanas. Centenas de milhares cruzavam as fronteiras da
Alemanha, Áustria e Hungria a cada mês. Mas isso foi em 2015. (projeção/expectativa)
(2) Três anos após o auge da crise de imigração da Europa, as praias gregas estão comparativamente
calmas. Desde agosto, os portos da Sicília estão mais vazios. E aqui (locutor/enunciador), na remota
ilha de Lampedusa - o ponto mais meridional da Itália, e uma das linhas de frente da crise - o centro de
detenção de imigrantes tem longos períodos de inatividade. Visitantes recentes ao campo encontraram
apenas o canto dos pássaros.
(3) “Não víamos as coisas tão calmas desde 2011", disse o prefeito da ilha, Salvatore Martello. “O número de
imigrantes que chegam diminuiu muito.”
(4) Este é o paradoxo da crise de imigração da Europa: o número real de imigrantes chegando ao continente
voltou aos patamares anteriores a 2015, mesmo enquanto as questões trazidas pela imigração abalam a política
do continente.
(5) Em reunião realizada em Bruxelas no dia 29 de junho, líderes da União Europeia concordaram em reforçar
as fronteiras externas e criar centros de triagem para imigrantes, para decidir mais rapidamente se eles são
refugiados legítimos ou não.
(6) E, no dia 2 de julho, a chanceler Angela Merkel, da Alemanha, que apostou seu legado na decisão de receber
centenas de milhares de refugiados na Alemanha, concordou em construir campos para os solicitantes de asilo
e reforçar a fronteira com a Áustria num acordo político para salvar seu governo.
(7) Foi uma reviravolta surpreendente de uma líder que tem sido a porta-estandarte da ordem liberal europeia,
mas se viu sob pressão intensa da extrema direita e dos conservadores que integram a coalizão do seu governo.
(8) Os países ainda têm dificuldade em absorver os cerca de 1,8 milhão de imigrantes que chegaram pelo mar
desde 2014. A ansiedade do público aumentou em países como a Alemanha após ataques bem conhecidos
que envolveram imigrantes, incluindo o assassinato de uma estudante alemã de 19 anos em 2016 e o ataque
terrorista a um mercado de natal que matou 12 pessoas, também em 2016.
(9) E os líderes ainda mantém diferenças consideráveis em relação a quem deveria assumir a responsabilidade
pelos recém chegados - países de fronteira como Grécia e Itália, por onde a maioria dos imigrantes entra na
Europa, ou países mais ricos como a Alemanha, aonde muitos imigrantes tentam chegar em seguida.
(10) Mas o mais notável é o quanto muitos líderes, principalmente dos partidos de extrema direita, continuam a
criar com sucesso a impressão segundo a qual a Europa seria um continente sitiado.
(11) “Fracassamos em nos defender contra a invasão dos imigrantes", disse Viktor Orban, primeiro-ministro de
extrema direita da Hungria, num discurso recente. Ele transformou em crime passível de detenção a prestação
de ajuda a imigrantes sem documentos.
(12) E Orban não está sozinho na adoção de uma linha dura. No mês passado, o ministro italiano do interior,
Matteo Salvini, fechou os portos da Itália para as embarcações de caridade e resgate. O ministro do interior da
Alemanha, Horst Seehofer, ameaçou recusar a entrada de refugiados na fronteira do sul do país. E, do outro
lado do Atlântico, o presidente Donald J. Trump afirmou, equivocadamente, que a imigração teria levado a um
surto de criminalidade na Alemanha.
(13) Parece que a tática está funcionando. Dados divulgados no mês passado pela União Europeia mostraram
que os europeus estão mais preocupados com a imigração do que com qualquer outro desafio social. O partido
de Salvini está na frente nas pesquisas de opinião da Itália. Orban obteve a reeleição em abril.
(14) Mesmo em Lampedusa, Martello elegeu-se prefeito no ano passado prometendo se concentrar mais em
questões locais em vez de zelar pela reputação internacional da ilha de santuário para imigrantes.
(15) Mas a realidade que se observa é que a imigração voltou aos níveis anteriores à crise, e isso já há algum
tempo.
30
(16) Mais de 850 mil solicitantes de asilo chegaram à Grécia em 2015, com a maioria deles finalmente seguindo
para países do norte da Europa como a Alemanha. Até o momento este ano, pouco mais de 13 mil fizeram a
mesma jornada. Mais de 150 mil pessoas chegaram à Itália em 2015; este ano, o número é menos de 17 mil,
por enquanto. Em 2016, quando as solicitações chegaram ao auge, mais de 62 mil pessoas pediram asilo na
Alemanha por mês, em média. Este ano, essa média caiu para pouco mais de 15 mil - a mais baixa desde 2013.
(17) Em Lampedusa, mais de 21 mil imigrantes chegaram em 2015. Este ano, até o momento, o número não
chega a 1,1 mil. A Espanha é o único país onde houve aumento no número de imigrantes chegando, passando
de mais de 16 mil em 2015 para pouco mais de 17 mil em 2018, até o momento. Mas a alta ainda é
comparativamente pequena - no auge da crise, chegavam mais pessoas à ilha grega de Lesbos em uma
semana do que devem chegar à Espanha este ano.
(18) “Trata-se de uma crise inventada", disse Matteo Villa, especialista em imigração do Instituto Italiano de
Estudos Políticos Internacionais. “Os altos fluxos de chegada dos anos mais recentes deram força aos partidos
nacionalistas, que agora criam sua própria crise para manter-se em evidência.”
(19) Salvini e Orban cultivaram apoio criando a impressão de serem os únicos líderes dispostos a tomar as
decisões difíceis necessárias para reduzir a imigração. Mas já faz algum tempo que o establishment europeu
trabalha nos bastidores com os principais porteiros das rotas de imigração que levam à Europa, incluindo
regimes autoritários, para reduzir esses números.
(20) Na Itália, o número de chegadas diminuiu muito depois que o antecessor de Salvini convenceu várias
milícias a deter a indústria de tráfico humano a partir do norte da Líbia, e a manter em centros de detenção
improvisados e sob condições perigosas milhares de imigrantes que tentariam a viagem até a Europa.
(21) “As medidas implementadas pelo governo anterior, tão criticado por Salvini, deram bons resultados", disse
Andrew Geddes, especialista em imigração do Instituto da Universidade Europeia em Florença, Itália.
(22) Vários governos europeus estabeleceram acordos de deportação com o Sudão, cujo líder, Omar Hassan
al-Bashir, é acusado de crimes de guerra. Um acordo com o Níger ajudou a combater o tráfico de pessoas no
Saara Ocidental. E os governos da Alemanha e Holanda negociaram um acordo na União Europeia em 2016
com o governo autoritário da Turquia que levou a uma queda imediata e drástica na imigração rumo à Grécia.
(23) Agora, o desafio da Europa é uma questão de processo: como abrigar os solicitantes de asilo que aguardam
uma decisão para seus casos; como integrá-los à economia e à sociedade caso seus pedidos sejam aceitos; e
como deportá-los caso sejam recusados.
(24) Esses desafios permanecem enquanto as autoridades precisam também melhorar as condições dos
paupérrimos campos de imigrantes na Grécia, onde residem cerca de metade dos 60 mil solicitantes de asilo
no país.
(25) Merkel, que já foi a líder inquestionável do continente, segue mancando como chanceler depois de
concordar em construir campos nas fronteiras. Mas ainda não se sabe quando isso vai durar. O nacionalismo e
a hostilidade aos imigrantes na Europa estão se enraizando rapidamente nas vertentes da política alemã.
(26) Merkel concordou com a mais recente política depois que uma insurreição envolvendo a política de
imigração comandada por Seehofer ameaçou pôr fim à coalizão do seu governo.
(27) Alguns líderes, como Orban na Hungria, dizem que a Europa deveria simplesmente proteger suas fronteiras
sem se preocupar com as complexidades de um sistema de asilo.
(28) “Se defendermos nossas fronteiras, o debate em relação à distribuição dos imigrantes se torna irrelevante,
pois eles não poderão entrar", disse ele em discurso no mês passado.
(29) Outros desejam reduzir a imigração, mas reconhecem que é impossível extingui-la de vez, a não ser que
a Europa abandone o direito ao asilo que foi protegido pelas convenções surgidas após a 2.ª Guerra Mundial.
(30) Para sustentar esse direito e ao mesmo tempo limitar a imigração, as autoridades de Bruxelas querem
preparar centrais de processamento para os pedidos de asilo na África. Alguns dizem que seria mais fácil e
barato investir em sistemas de asilo mais eficientes na Grécia e Itália - e garantir mais acordos de deportação
com os países de origem dos imigrantes.
(31) Em Lampedusa, o debate parece envolver menos os detalhes a respeito da gestão da imigração, e mais a
respeito da crescente distância entre as forças liberais e antiliberais na Europa.
(32) É uma “guerra ideológica", disse Martello. “A Europa está dividida em dois blocos principais: um está
defendendo as fronteiras, e o outro está tentando fazer algo para de fato resolver a situação dessas pessoas.”
/Katrin Bennhold e Melissa Eddy contribuíram com a reportagem.
31
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Carta Capital
https://www.cartacapital.com.br/mundo/a-xenofobia-e-a-discriminacao-escondem-se-sob-a-capa-do-
nacionalismo/
32
A xenofobia e a discriminação escondem-se sob a capa do nacionalismo
(1) Nos Estados Unidos, na base da sua Estátua da Liberdade, está gravado o belíssimo poema de Emma
Lazarus: “Mandai-me esses, os sem abrigo, os arremessados pela tempestades, pois eu ergo o meu farol junto
ao portal dourado”. Hoje, o seu presidente faz um comício e convida uma congressista, sua adversária política,
a voltar para o seu país. A multidão faz coro (“Mandem-na para casa”).
(2) Na Itália, país com milhares de migrantes espalhados pelo mundo, o ministro Mateo Salvini exige saber
quantos ciganos vivem no território com o intuito de expulsar os que lá estão de forma ilegal: “Infelizmente,
temos de ficar com os ciganos italianos porque não os podemos expulsar”.
(3) Em Portugal, uma historiadora afirma que os africanos e os ciganos não fazem parte da entidade
civilizacional e cultural que dá pelo nome de cristandade: “Nem uns nem outros descendem dos Direitos
Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”. Essa mesma declaração diz no
seu artigo primeiro: “Todos os homens nascem livres e iguais em direitos”.
(4) Na verdade, a questão não é de agora. Há muito que as políticas europeia e estadunidense vivem reféns do
discurso da extrema-direita e escorregam lentamente para uma espécie de síndrome política da imigração. Tudo
começa com a aceitação passiva – pela esquerda e pela direita – de que “a imigração é um problema” ou que
“os imigrantes representam um problema”. A partir daqui, qualquer problema social, seja ele o desemprego,
seja a habitação ou a segurança pública, pode ser transformado num problema de imigração e abrir espaços e
oportunidades para os profissionais da política da catástrofe e do medo.
(5) Todos sabemos que os imigrantes não consomem recursos da segurança social, mas, ao contrário,
contribuem para ela. Todos sabemos que a sua partida massiva não resolveria nenhum problema econômico,
mas geraria muitos. E permitimos, no entanto, que se criasse e se desenvolvesse um discurso consensual sobre
a imigração que a vê como patologia social. Uns quantos evitam discuti-la com medo que isso agrave o
problema. Outros ainda suplicam pela partida de alguns – talvez a começar pelos menos aceitáveis, ou menos
úteis (os ciganos vêm mesmo a calhar) – como forma de evitar maiores reações de rejeição. Política de
apaziguamento: alimentemos o crocodilo na esperança de sermos os últimos a ser devorados
(6) As palavras talvez pareçam fortes, mas o que se passa no discurso político ocidental é o regresso do racismo
e da xenofobia sob a capa enganosa do nacionalismo. Lentamente, todos acordamos para esta nova realidade,
na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil. A pretexto de combater o politicamente correto, a extrema-direita
dispõe-se a quebrar os códigos de respeito e de convivência que a democracia impõe e inaugura uma nova era
de violência verbal que adota os códigos da guerra total. Ela não pretende a vitória, mas a eliminação do inimigo.
(7) A pureza cultural justifica a operação de segregação dos “corpos estranhos” que põem em causa a
identidade nacional, que se aproveitam dos recursos públicos e que impedem a vitalidade econômica. O
migrante substituiu o judeu – o mesmo inimigo interno, o mesmo cancro, o mesmo veneno que explica todas as
frustrações econômicas do Ocidente. O imigrante é, hoje, o novo bode expiatório, o novo rosto do racismo.
(heterogeneidade)
(8) Se substituirmos o imigrante pelo pobre, encontraremos então o Brasil – o pobre culpado do desequilíbrio
da Previdência, o pobre culpado pela despesa pública, o pobre culpado por ser pobre –, o pobre culpado por
existir. A luta de classes regressa estimulada pela extrema-direita e não se manifesta num ressentimento dos
de baixo para com os de cima, mas no ódio que os de cima dedicam a qualquer espécie de igualdade com os
de baixo. Lentamente, o Brasil regressa às duas humanidades irreconciliáveis: uma, a da miséria, a outra, da
superabundância.
(9) O Estado alemão homenageou Von Stauffenberg, o oficial que conspirou para assassinar Hitler em 1944.
No discurso que ali fez, a chanceler Angela Merkel apelou ao combate à extrema-direita – combate, nada
menos. Há boas razões para pensar que, na Europa, a direita democrática existe e não pactuará nem com a
violência nem com o extremismo. No Brasil, o caso parece ser outro. Ao promover o impeachment da presidenta
Dilma Rousseff, a direita que se afirmava democrática fez um pacto com o diabo. No meio da doideira em que
a vida política brasileira se transformou, a dúvida não é saber se ela ainda existe, mas se alguma vez existiu.
33
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1. INTRODUÇÃO
Tanto Galgliano e Pamplona como Maria Berenice Dias são autores de livros
jurídicos, de Direito Civil, especialmente na área de Família. Parece que o primeiro
35
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
36
Embora as discussões pareçam controvérsias, o processo legislativo existe
justamente para que os textos propostos passem pelo crivo do contraditório e sejam
amadurecidos. Nessa toada, o Presidente da Comissão de Direitos Humanos e
Minorias, Hélder Salomão, no dia 20 de agosto de 2019, faz o seguinte comunicado à
Nação: “Neste sentido, comunico que retirei o PL 3.369/2015 da pauta, a pedido do
relator, para aprimoramento de sua redação por meio da elaboração de substitutivo”.
Ressalta-se, ademais, que o citado projeto de lei gerou discussões acaloradas
entre as diversas fatias políticas brasileiras, gerando assertivas e inverdades, ou,
como têm sido comumente apresentadas como fake-news, acerca do conteúdo do
texto. Alguns grupos chegaram a afirmar que a vontade do projeto de lei era “legalizar
o incesto”. Por outro lado, o autor e o relator do projeto afirmaram que o projeto visa,
na realidade, ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado.
As discussões parecem trazer justamente o objeto deste artigo: Quais os
sentidos de família no PL nº 3.369/2015? Posicionando-nos em uma teoria semântica
enunciativa que tem por princípio a não transparência da língua, que permite entender
que esses sentidos são tomados na história. Podemos observar sentidos de um modo
diferente do que são comumente colocados no direito, abrindo possibilidades de
novas reflexões para este ramo do conhecimento, e, com isso, podendo colaborar
com as práticas exercidas a partir das considerações oriundas do Direito. Para tanto,
discutiremos alguns tópicos caros a esta análise sobre Semântica do Acontecimento.
2. SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO
37
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(2011, p. 15), “um acontecimento é distinto de outro acontecimento porque ele recorta
um passado de sentidos que convive com o presente de formulação do Locutor e
assim traz uma projeção de futuro de sentidos que não significariam não fosse o
acontecimento em questão”.
A Semântica do Acontecimento considera a história e político na definição do
acontecimento enunciativo. Desta forma, podemos definir a enunciação como um
acontecimento sócio-histórico onde se dá a relação do sujeito com a língua, e deve
acontecer num espaço.
Segundo o autor, a enunciação é
[...] um acontecimento da linguagem perpassando pelo interdiscurso
que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um
acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetada pelo
interdiscurso. É, portanto, quando o indivíduo se encontra interpelado
como sujeito e se vê como identidade que a língua se põe em
funcionamento (GUIMARÃES, 2010, p. 70).
38
enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalização, tal como a
latência de futuro” (GUIMARÃES, 2002, p. 12).
Importante entender que memorável não é o já-dito, mas uma memória de
sentidos que é recortada em um e por um determinado acontecimento, projetando
certa futuridade. O memorável depende, portanto, da temporalização realizada pelo
acontecimento do dizer. Ele é assim definido pelo presente da enunciação e pela
futuridade projetada, isto é, pela interpretação possível a partir do recorte de
determinados memoráveis.
Para o autor da Semântica do Acontecimento, enquanto se dá a relação do
sujeito com a língua, enquanto prática política, o político é “caracterizado pela
contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do
real e a afirmação do pertencimento dos que não estão incluídos”. (GUIMARÃES,
2002, p. 16). Deste modo, o sentido do político instaura um conflito de sentidos no
centro do dizer.
Ainda é preciso estabelecer que analisar o acontecimento de linguagem como
político é entender como se estabelecem os espaços de enunciação. Para Guimarães
(2002, p. 18), esses espaços são
[...] espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem,
se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São
espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por
seus direitos ao dizer e aos modos de dizer.
39
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
40
Quadro 1: DSD de família
41
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Percebe-se nos DSD postos aquilo que está referido como quaisquer
pessoas, é reescritura de independentemente de consanguinidade, gênero,
orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou
pessoas que assim sejam consideradas.
Nesse caso, diversas configurações de relações interpessoais poderiam ser
categorizadas como família, desde que haja amor e socioafetividade. Todavia, há uma
tensão nos sentidos de união e uma das possibilidades interpretativas é o de ser
união conjugal.
Percebe-se, então, que uma das possibilidades interpretativas é o
entendimento de união enquanto conjugal, logo, com possibilidade de relações
sexuais. Isso é estabelecido devido ao recorte de memoráveis de união cristã: o
homem deve se unir à mulher a fim de reproduzir e formar a sua família com a sua
prole. Um dos objetivos da entidade familiar é a reprodução e, no espaço de
enunciação cristã, esta só é feita a partir da união carnal entre homem e mulher.
Vale ressaltar que, desde 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) já
reconheceu a união estável homoafetiva, assegurando o direito dos casais, e, desde
2013, o Conselho Nacional de Justiça já proibiu os Cartórios de recusar a realização
de casamentos homoafetivos, o que, de certa maneira, no espaço de enunciação
jurídico brasileiro, reconfigurou sentidos e possibilitou em outras possibilidades
42
interpretativas do termo união. A tensão se dá no embate político das designações
de união (em ser conjugal ou não), o que permite projeções interpretativas diversas,
inclusive de que o Projeto de Lei seria um mecanismo de legalização de incesto ou
outras atividades sexuais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
5. REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice, Manuel de Direito das Famílias, Salvador: JvsPodium. 2020.
43
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Luciani Dalmaschio
Universidade Federal de São João del-Rei
Introdução
1
Neste artigo, a concepção de formação nominal está centrada nos estudos de Luiz Francisco Dias,
segundo o autor, a FN [...]é a constituição interna e externa das formas para a constituição da unidade
nominal. As formações, articulatoriamente configuradas, sustentam materialmente o referencial
histórico, a memória das significações dos seus termos e a pertinência do nome nas cenas enunciativas
em que contrai relação de pertencimento. (DIAS, 2018, p.143).
Guimarães (2018, p. 58), “a enunciação é politópica, a cena enunciativa se configura
por uma divisão de lugares de enunciação”.
Destarte, a constituição da cena enunciativa advém da relação entre as figuras
da enunciação e as formas linguísticas, abrangendo os modos de acesso à palavra
realizados pelos agentes da enunciação: “aquele que fala” e “aquele para quem se
fala” (GUIMARÃES, 2017, 2018). Desse modo, a cena enunciativa fundamenta-se nos
lugares de dizer temporalizados e especificados no acontecimento. Essa divisão
política é significativa no acontecimento enunciativo, pois a palavra é sempre
assumida de um lugar social específico que é individualizado por uma deontologia
particular de distribuição dos lugares de enunciação no acontecimento enunciativo.
O agenciamento enunciativo do falante é realizado pelo funcionamento da
língua no acontecimento de enunciação, já que “não se enuncia enquanto ser físico,
nem meramente no mundo físico. Enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico e
num mundo vivido através do simbólico” (GUIMARÃES, 2017, p. 15). Dessa forma, na
cena enunciativa, “aquele que fala” ou “aquele para quem se fala” não são seres
físicos, antes são uma configuração do agenciamento enunciativo, ou seja, são os
lugares constituídos pelos dizeres. Portanto, “o agenciamento do falante no
acontecimento o agencia dividindo-o por uma politopia da cena enunciativa”
(GUIMARÃES, 2018, p. 61).
O político da Enunciação, por sua vez, é delineado por Guimarães (2017) como
o elemento que constitui o conflito no acontecimento do dizer, portanto, ele “é próprio
da divisão que afeta materialmente a linguagem” (GUIMARÃES, 2017, p. 20). Assim
sendo, é no funcionamento da linguagem que o político instala um conflito a partir da
divisão dos lugares de enunciação, estabelecida pela cena de enunciação, que revela
que a distribuição das línguas para os seus falantes ocorre de modo desigual. Nas
palavras de Guimarães (2018), o político se caracteriza, portanto,
pela oposição entre a afirmação da igualdade em conflito com uma divisão
desigual do real produzida enunciativamente pelas instituições que o
organizam: organizam o (sic) lugares sociais e suas relações, identificando-
os (ou seja, atribuindo-lhes sentido), e recortam o mundo das coisas,
significando-as. (GUIMARÃES, 2018, p. 50).
Desse modo, o político é o alicerce para as relações sociais, uma vez que a
linguagem assume um papel central nessas relações. Nos espaços de enunciação,
as línguas são colocadas em funcionamento pelos sujeitos e entram em conflito com
as desigualdades produzidas pelos sentidos da enunciação. Assim, “o político é
45
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
incontornável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a palavra por
mais que esta lhe seja negada” (GUIMARÃES, 2017, p. 22).
Além disso, o aspecto político da linguagem refere-se à maneira pela qual o
falante se relaciona com a palavra, a fim de conceder a si mesmo o pertencimento
para dizer, visto que ele está “sempre dividido pela desmontagem da contradição que
o constitui. De tal modo que o estabelecimento da desigualdade se apresenta como
necessária (sic) à vida social e a afirmação de pertencimento, e de igualdade, é
significada como abuso, impropriedade” (GUIMARÃES, 2017, p. 22).
Após termos apresentado, suscintamente, a base teórica que sustenta este
trabalho, discutiremos sobre os domínios referenciais que foram designados por nós.
Iniciaremos a nossa explanação a partir do domínio de instalação das FNs no
processo de nomeação dos Programas Sociais.
2 Domínios referenciais
2
“A constituição de uma rede enunciativa envolve a formação de contrastes entre a construção
linguística em estudo e outras construções com estruturas semelhantes e palavras iguais, no sentido
de permitir a percepção dos domínios de mobilização que a enunciação sustenta. Essas construções
outras, trazidas para a rede enunciativa, são construídas pelo próprio pesquisador e/ou podem também
ser buscadas em usos efetivos, como no Google e nos bancos de dados que abrigam usos orais e
escritos da nossa língua”. (DIAS, 2018, p.35).
46
oficiais e, até mesmo, em livros. Nessa direção, ressaltamos que apresentam um
sujeito enunciativo agenciado politicamente a falar afetado pelo referencial de
instalação dos Programas.
Vejamos os exemplos a seguir (1); (2); (3); (4) e (5):
(1)
O [Programa] Amigos da Escola visa o
envolvimento dos profissionais da educação,
familiares, alunos e da comunidade, para
desenvolver ações educacionais
complementares ao currículo escolar do aluno.
Amigos da Escola, [...], pretende sensibilizar a
sociedade e a comunidade educacional para
criar as ferramentas ideais para a escola que
realiza práticas com os voluntários3. (Grifo
nosso).
(2)
[O Bolsa Família] é um programa de
transferência direta de renda, direcionado às
famílias em situação de pobreza e de extrema
pobreza em todo o País, de modo que
consigam superar a situação de vulnerabilidade
e pobreza. [...] busca garantir a essas famílias
o direito à alimentação e o acesso à educação
e à saúde4. (Grifo nosso).
(3)
Ciência sem Fronteiras é um programa que
busca promover a consolidação, expansão e
internacionalização da ciência e tecnologia, da
inovação e da competitividade brasileira por
meio do intercâmbio e da mobilidade
internacional5. (Grifo nosso).
47
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(4)
O Fome Zero é um programa do Governo
Federal, que visa o direito de alimentação da
população brasileira. É uma maneira de garantir
cidadania às populações vulneráveis à
fome6. (Grifo nosso).
(5)
[O Programa Minha Casa, Minha Vida] é uma iniciativa do
Governo Federal que oferece condições atrativas para o
financiamento de moradias nas áreas urbanas para
famílias de baixa renda. [...], o programa vem mudando a
vida de milhares de famílias brasileiras. É oportunidade
para quem precisa e mais desenvolvimento para o Brasil7.
(Grifo nosso).
Ao lançarmos o nosso olhar para os exemplos (1); (2); (3); (4) e (5), que foram
retirados de sites oficiais dos Programas Sociais, notamos que eles estão envoltos em
uma rede de dizeres iniciais postulados pelos documentos de criação dos Programas
- Amigos da Escola, Bolsa Família, Ciência sem Fronteiras, Fome Zero e Minha Casa,
Minha Vida. Ou seja, eles representam um fundamento conceitual para as direções
argumentativas às quais essas FNs se agregam. Portanto, embora saibamos que não
é possível fotografar a origem do sentido de uma forma linguística, estamos tomando
o domínio de instalação como uma espécie de desencadeador do processo
argumentativo ao qual essas formas se filiam. Ou seja, incialmente, a ancoragem
referencial dessas FNs corresponde àquela ligada à ação social.
48
Nesse sentido, na tentativa de uma definição, de uma conceituação dos
Programas Sociais, constituem-se dizeres que, para nós, manifestam-se como
instaladores dessas FNs na sociedade. Assim, esse domínio representaria uma
espécie de movimento epistemológico dessas nomeações pelo qual: Amigos da
Escola (1) simboliza “ações educacionais [realizadas por voluntários] complementares
ao currículo escolar do aluno”; Bolsa Família (2) corresponde à “transferência direta
de renda, direcionado às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em
todo o País”; Ciência sem Fronteiras (3) representa “a consolidação, expansão e
internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade
brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional”; Fome Zero (4)
expressa o “direito de alimentação da população brasileira” e, por fim, Minha Casa,
Minha Vida (5) refere-se a “condições atrativas para o financiamento de moradias nas
áreas urbanas para famílias de baixa renda”.
Uma vez afetados pelo referencial que baliza a constituição da nominalidade
desses Programas, os falantes são agenciados a enunciar a partir de um lugar
político/social, delimitado pela cena enunciativa, que orienta argumentativamente
seus dizeres. Descrevemos, agora, os agenciamentos políticos estabelecidos nos
exemplos (1) a (5), de acordo com os pressupostos de Guimarães (2017, 2018).
A cena enunciativa é constituída de acordo com a relação que ocorre entre as
figuras da enunciação (lugar que diz; lugar social do dizer e lugar de dizer) e as formas
linguísticas. Quanto ao lugar social do dizer, ou seja, o alocutor-x temos que, nesses
acontecimentos, ele é agenciado a ocupar a função de alocutor-oficial/institucional. E
o seu correlato, o alocutário-x, ou seja, a pessoa para quem o alocutor-x dirige o seu
dizer é marcado pela figura do alocutor-cidadão (membro de um estado) beneficiário
(ou não) do(s) Programa(s).
Ademais, tendo em vista a configuração da cena enunciativa, em especial a
figura do Enunciador, temos que o alocutor-oficial/institucional mobiliza um
enunciador-coletivo, pois apresenta o dizer de uma coletividade por meio de uma
única voz. Tal afirmação pode ser percebida nos seguintes trechos: “profissionais da
educação, familiares, alunos e da comunidade [...] sociedade e a comunidade
educacional” (1); “famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o
País” (2), “consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da
inovação e da competitividade brasileira” (3), “o direito de alimentação da população
brasileira. [...] populações vulneráveis à fome” (4) e “famílias de baixa renda. [...],
49
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
famílias brasileiras” (5). Diante disso, podemos perceber que (1) a (5) instalam uma
coletividade a partir de um dizer que enuncia um conjunto de pessoas. Trata-se,
portanto, de um movimento argumentativo que visa legitimar tais Programas por meio
de um processo de nomeação cujas FNs são empregadas tendo em vista a demanda
social a que se submetem.
Uma vez instaladas, essas FNs passam a circular socialmente e a fazer parte
do jogo político que constitui o linguístico, e, conforme apresentamos, que “é próprio
da divisão que afeta materialmente a linguagem” (GUIMARÃES, 2017, p. 20). Sendo
assim, outros referenciais passam a sustentar os sentidos dessas FNs, alguns mais
próximos outros mais distantes desse que acabamos de apresentar, a fim de que o
falante, envolto em novas redes enunciativas, conceda a si mesmo o pertencimento
para dizer.
Vejamos agora alguns desses outros domínios referenciais.
50
(6)
Figura 1 - Amigos da Escola: brincadeiras e serviços
51
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(7)
[...] A diferença com a proposta do Fome Zero é completa. Deste lado estão as
propostas de políticas específicas de ajuda alimentar, associadas a políticas
estruturais como de geração de renda e emprego, reforma agrária, políticas de apoio
à agricultura familiar, aumento do salário mínimo e ampliação da previdência social,
por exemplo. Políticas diretas de segurança alimentar e combate à fome devem ser
adotadas de forma que estas forneçam os meios básicos para a sobrevivência das
famílias sem condições econômicas, mas, ao mesmo tempo, criem mecanismos
dinâmicos em outras áreas da economia, como a produção e a distribuição de
alimentos, servindo, também, como elementos educativos para libertação da
dependência destas políticas específicas10. (Grifos nossos).
52
reafirma a ideia inicial do Programa, que é a de “ajuda alimentar”, e agrega enunciados
que comprovam que o Programa é um meio de “garantir a cidadania” (2) para vários
sujeitos: “meios básicos para a sobrevivência das famílias sem condições
econômicas”.
Nessa direção, (7) e (8) representam um movimento enunciativo de adesão e
ampliação do já posto e vinculam-se argumentativamente ao processo de
regularização social de sentido dessas FNs.
Entretanto, se trabalhamos com a tese de que o político é o alicerce para as
relações sociais e a linguagem assume um papel central nessas relações, domínios
de sentidos menos próximos socialmente também encontram espaço na sustentação
das formas linguísticas. Isso é o que passaremos a apresentar a seguir.
53
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
54
(10)
Na Figura 3, podemos notar, mais uma vez, uma crítica a favor dos
beneficiários, agora, do Programa Minha Casa, Minha Vida. Nesta cena, no centro, na
parte superior, há a palavra “cortes”; no lado esquerdo, há duas pessoas carregando
uma casa que, possivelmente, teria sido adquirida por meio do Programa Minha Casa,
Minha Vida e, no lado direito, a representação dos beneficiários apenas com uma
placa na mão: “Minha Casa, Minha Vida”, mostrando que “perderam” a possibilidade
de conseguir uma casa, em função dos cortes que foram feitos. Podemos notar que
na roupa dos carregadores está escrito a palavra Brasil, representando o símbolo do
Governo Federal. Isso autoriza a ligação da palavra “cortes” com uma ação
governamental.
Com isso, podemos perceber que, nesta cena (10), o Minha Casa, Minha Vida
sustenta-se argumentativamente no referencial da crítica a favor da continuidade do
Programa, como uma das formas de auxílio às pessoas sem moradia. Novamente, a
relação de alocução, conforme apresentamos em nossos pressupostos teóricos, é
significada politicamente “pela oposição entre a afirmação da igualdade em conflito
55
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
com uma divisão desigual do real produzida enunciativamente pelas instituições que
o organizam.” (GUIMARÃES, 2018, p. 50).
Conforme apresentamos, as cenas (9) e (10) atribuem uma crítica a favor dos
Programas. Contudo, a seguir, em (11); (12) e (13), demostraremos algumas críticas
contrárias aos Programas Sociais.
(11)
Figura 4 - Fome Zero: um reflexo da lentidão
56
(12)
Figura 5 - Bolsa Família: aumentar o orçamento
57
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(13)
Figura 6 - Amigo da Escola, inimigo da educação
Na Figura 6, de forma muito mais marcada do que ocorre nos exemplos (11) e
(12), há uma forte crítica contra o Programa Amigos da Escola, por meio do seguinte
enunciado: “amigo da escola, inimigo da educação”, que integra um texto produzido
como parte de uma “campanha pela valorização dos profissionais em educação”. A
palavra “inimigo”, contraposta à palavra “amigo”, corresponde a uma forma linguística
que evidencia a sustentação de uma posição. Assim sendo, conforme os
pressupostos de Guimarães (2013), o alocutor enuncia uma conexão entre X e Y,
sendo o X uma razão (ser amigo da escola) para uma conclusão Y (ser inimigo da
educação), e isso envolve lugares e posições sociais.
Com a apresentação dos exemplos (11), (12) e (13), caminhamos para um nível
de distanciamento referencial mais elevado, em relação aos domínios de significação
que sustentam as FNs alvos de análise de nosso trabalho. Ou seja, os referenciais de
instalação e reafirmação passam a conviver também com aquele relativo à negação
do efeito de sentido “inicial”, suscitado por essas formas.
Passemos a analisar, a partir de então, outro domínio referencial que
entendemos ancorar, também, a enunciação dessas FNs: o domínio da dispersão.
15 Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1287196/modresource/content/1/Amigos%20da%escola.pdf.
Acesso em: 14 ago. 2019.
58
2.4 Domínio da dispersão
(14)
Em 14, percebemos que a FN Minha Casa, Minha Vida está ancorada pelo
domínio da vida conjugal (relação homem e mulher). Na parte superior e no canto
inferior da imagem, há a presença dos seguintes enunciados, respectivamente:
“Minha Casa...Minha Vida...” e “O marido dela pediu o divórcio”; este último, proferido
por caracóis. Assim, constatamos que, aqui, a FN Minha Casa, Minha Vida adquire
uma sustentação argumentativa completamente distinta da que é postulada
59
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
60
(16)
Figura 9 - Hamburgueria Fome Zero
61
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Considerações finais
REFERÊNCIAS
63
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Introdução
1 A escrita deste texto que se desenha ainda em linhas preliminares é parte da minha propositura
de pesquisa de doutorado, na linha de Estudos de Processos de Significação, vinculada ao
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística da Universidade do Estado de Mato
Grosso – UNEMAT, que poderá apontar para outras possibilidades de leitura a partir de nossos
empreendimentos teóricos e analíticos. A escolha da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS)
desenvolvida atualmente por Marion Carel (1992) e Ducrot significa duplamente para mim: (i) o
meu crescimento acadêmico e profissional no doutoramento, enquanto professora de Língua
Inglesa da rede pública do Estado de Mato Grosso- SEDUC-MT; (ii) pelo horizonte que a TBS
proporciona como teoria de análise da argumentação para os estudos da linguagem. Incluo
também neste leque a possibilidade de discutir e refletir sobre o emprego da argumentação na
língua na minha prática profissional. Desse modo, compreendo a prática da pesquisa como uma
via dialógica de deslocamento teoria-prática, logo, como um diferencial na formação profissional.
2 Doutoranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística, da
64
Teoria da Argumentação na Língua (TAL).
65
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
lugares comuns que permitem justificar a partir desta situação um certo número
de conclusões”. (DUCROT, 1988, p.14). Nessa perspectiva, Ducrot sustenta que
a partir de análises da significação das palavras ou das estruturas sintáticas,
pretende levar o leitor sempre a este tema geral: “falar é construir e tratar de
impor aos outros uma espécie de apreensão/percepção argumentativa da
realidade”. (op. cit. p.14).
66
Assim, o “aparecimento de um enunciado” é, portanto, o uso/emprego da
língua, produção de discursos, que são constitutivos das relações de sentidos
revelados em um acontecimento linguístico não repetível, visto que é dada
existência a algo que até então não existia antes de se falar e que também será
inexistente depois dessa realização momentânea de fala, a enunciação.
67
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Vejamos os exemplos: (i) Faz sol, vamos sair; (ii) Faz sol, não vamos sair.
Nesses enunciados, o valor semântico da expressão: Faz sol varia de acordo
com as conclusões que se tiram dessa expressão. No primeiro exemplo, o sol é
favorável ao passeio; e no segundo, o sol é desfavorável ao passeio.
68
1ª – O topos é apresentado como um lugar comum dado ao enunciador e
as outras pessoas, podendo ser universal ou comum, ele é partilhado por uma
comunidade linguística.
Vejamos os exemplos: (i) Paulo trabalhou um pouco, terá êxito; (ii) Paulo
trabalhou pouco, irá fracassar; (iii) Paulo trabalhou pouco, terá êxito. Nessa
forma tópica, temos o funcionamento dos topoi em que os enunciados orientam
por meio dos morfemas um pouco e pouco o sentido de que o topos em (i) e (iii)
o trabalho conduz ao êxito; em (ii) o trabalho é causa de fracasso. Há que se
destacar que podemos tirar a mesma conclusão a partir do enunciado com pouco
e um pouco. Isso ocorre devido à ideia “de que o locutor tem de trabalho”, as
quais se justificam por meio do topos, visto como “o intermediário entre o
argumento e a conclusão”. (GRAEFF, 2009, p.155).
69
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
70
Ducrot & Carel (2008, p. 09 -10) afirmam que o ponto fundamental da TBS
está em “renunciar radicalmente a qualquer descrição não linguística do
significado das expressões da língua”. Nessa concepção, esses autores tomam
como base a ideia saussuriana de que o significado é parte integrante do signo.
Logo, o significado não pode consistir em ideias, a saber: conceitos e
representações mentais. Embora a TAL tenha passado por
reformulações/modificações, podemos afirmar que essa teoria não se distanciou
da sua proposta inicial de base estruturalista: “mais precisamente, ficamos com
as fórmulas de Saussure em que o significado é visto como o valor do signo”.
(op.cit.).
5 No original: “El valor argumentativo de uma palavra es por definición la orientacion que esa
palavra dá al discurso. [...] el empleo de uma palavra hace posible o imposible uma certa
continuación del discurso y el valor argumentativo de esa palavra es el conjunto de essas
possibilidades de continuación discursiva que su empleo determina”. (Tradução Nossa).
71
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Nessa direção, consideramos a TBS como “um modelo forte que fornece
um método que permite riquezas de análise [...]”, permite também “elevar a teoria
a um alto nível de cientificidade para estudar a enunciação”. (MACHADO;
CAREL, 2016, p. 45).
Compreendendo que a argumentação está inscrita no uso da língua, a
qual disponibiliza orientações linguísticas em seu próprio sistema, adotamos o
texto como unidade semântica de análise cujos elementos/entidades linguísticas
de sentido se constituem no léxico.
Freitas (2008, p. 06), seguindo a concepção de Ducrot (1987), entende o
texto como “um bloco semântico inscrito no nível teórico da produção e realizado
pelo encadeamento argumentativo complexo que é o discurso” cuja
argumentação se dá pelos conectores tipo DC e PT, orientadores da
argumentação que dão sentido ao discurso.
Para Carel (2011) apud Costa (2013, p. 51), o texto na TBS sustenta a
possibilidade de análise em razão de sua estrutura manter articulações próprias
as quais favorecem a construção de determinadas argumentações e sentidos.
Para Carel, “a análise semântica deve se apoiar sobre a análise textual”, visto
que:
72
as palavras dos enunciados não são sempre suficientes para determinar
o sentido do enunciado, e é, então o texto, com sua organização geral
[...] com sua capacidade de ter partes com estatutos diferentes, em nome
de sua natureza de texto, que sustentam a interpretação semântica de
seus enunciados. (op. cit. p. 51).
Almeida (2001, p. 28) salienta que para alguns especialistas o texto “tem
sido definido como uma unidade semântica em que vários elementos de
significação são materializados através de categorias lexicais, sintáticas,
semânticas e estruturais”. A autora cita Koch (1996) para corroborar a ideia da
importância do texto como unidade linguística de análise semântica, uma vez
que para Kock, a enunciação, “faz-se presente no enunciado através de uma
série de marcas” (op. cit. p.29). Assim, através das marcas linguísticas é “que se
poderá chegar à macrossintaxe do discurso, o que constitui o objetivo da
Semântica Argumentativa” (op. cit.).
73
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
74
2 Delineando o percurso metodológico
75
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
3 Considerações finais
Nesse viés, dialogamos com Machado (2016, p. 46) que diz que a TBS
deve ultrapassar outros limites não acadêmicos, escolares com a finalidade de
promover um método de análise de enunciado entre professores e estudantes.
Mas, a questão fundamental para esse autor é pensar de que modo deslocar da
academia para a sala de aula e ainda “preparar professores ou preparar
materiais que permitam à TBS ser uma ferramenta que permita analisar a língua
nas escolas, ensinar alunos a escrever, e ensinar a arte de ensinar aos
professores? ”. ( op. cit. p. 46).
Referências
76
Acesso em setembro de 2017.
CAREL, Marion & MACHADO, Julio Cesar. Debate sobre a Teoria dos Blocos
Semânticos e a Semântica do Acontecimento: quase bloco, locutor-posição e
espaço de enunciação. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 51, n.1, p. 38- 46, jan./
mar. 2016. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/21363>
Acesso em julho de 2017.
77
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
78
RÖRIG, Cristina. A leitura em língua inglesa pela teoria da argumentação na
língua. In: Repositório Institucional- PUCR, 2008. Disponível em:
<http://repositorio.pucrs.br/ dspace/handle/10923/4009> Acesso em: jul. 2017.
79
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
APAIXONAR-SE E ARREPENDER-SE:
REFERENCIAIS E PERTINÊNCIAS ENUNCIATIVAS
Primeiras Palavras
80
tipo [verbo + clítico pronominal], especificamente, um item lexical verbal
associado ao clítico SE.
No entanto, não é nossa pretensão apresentar novas categorias ou
realizar compilações exaustivas de ocorrências verbais, mas de investigar por
meio de uma abordagem enunciativa como as formas linguísticas representadas
por verbos pronominais se sustentam na articulação entre o referencial histórico
e as pertinências do dizer na atualidade. E ancoramos as análises dessas formas
pronominais nos pressupostos teórico-metodológicos da Semântica da
Enunciação desenvolvidos por Eduardo Guimarães (1995, 2005) e Luiz
Francisco Dias (2013a, 2013b, 2015a, 2015b, 2018a), no Brasil.
Organizamos nossa reflexão em três seções. Na primeira seção,
apresentamos uma síntese dos estudos pronominais em gramáticas brasileiras.
Na segunda, espelhamos os conceitos de referencial histórico, pertinência
enunciativa e rede enunciativa que deverão sustentar teoricamente as análises;
e, por fim, analisamos algumas ocorrências de verbos pronominais,
selecionadas em uso efetivo no meio digital, observando como as articulações
formais que os verbos contraem são determinadas pela relação entre o
referencial histórico e a pertinência enunciativa.
81
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
82
me, enganei-me, convenci-me, enfadei-me, aborreci-me,
zanguei-me, só podem equivaler a “fiquei espantado,
enganado, convencido, enfadado, zangado, aborrecido”. A
forma reflexa vem aqui dizer que o mesmo efeito que o
sujeito, como agente, produz em outros indivíduos, se
produziu inversamente nele por alguma causa qualquer do
mundo exterior. Estes verbos conjugados
pronominalmente têm em comum com uma série de verbos
intransitivos essencialmente pronominais, o significarem
sentimento. Por outras palavras para expressar o sentir
zanga, medo, vergonha, piedade, arrependimento, etc.
socorre-se a linguagem de verbos pronominais, ora de um
tipo, ora do outro: angustiar-se, enfurecer-se, envergonhar-
se, arrepender-se, amedrontar-se, espantar-se, pasmar-
se, entusiasmar-se, apaixonar-se, apiedar-se, amercear-
se, condoer-se, comiserar-se, enganar-se, zangar-se, irar-
se, impacientar-se, compadecer-se, vexar-se, aborrecer-
se, enfastiar-se, etc. (SAID ALI, 1971, p. 178, grifo nosso).
Por sua vez, Rocha Lima (1984, p. 145, grifo nosso) afirma que os verbos
pronominais são os “acompanhados dos pronomes oblíquos de cada pessoa”,
como ajoelhar-se, suicidar-se, condoer-se, apiedar-se, ufanar-se, queixar-se e
vangloriar-se. Esses “pronomes átonos” constituem uma parte integrante
inseparável do verbo, não desempenham nenhuma função sintática, são
“fossilizados.” (ROCHA LIMA, 1984, p. 320). Por isso, os verbos pronominais são
realizados sintaticamente sem objeto direto ou indireto. Segundo o gramático
(Idem), o caso da presença do clítico SE especificamente nos verbos
pronominais pode ter surgido por analogia a outros verbos, tais como aborrecer-
se, magoar-se e ferir-se, para os quais o SE possui função de objeto direto.
Cunha e Cintra (1985), no tópico acerca da voz reflexiva, distinguem verbo
reflexivo de verbo pronominal, quer pelo sentido, quer pela forma. Segundo os
autores,
83
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
84
É possível notar algumas diferenças e similitudes nas formulações que
versam sobre a questão dos verbos pronominais nas gramáticas elencadas
acima. Inicialmente, convém destacar que os compêndios de Neves (2000) e
Azeredo (2000) não se inserem no grupo das gramáticas tradicionais, e se
caracterizam como exemplares de gramáticas descritivas, cujo objetivo é
descrever a estrutura e o funcionamento da língua, sua forma e função. Em
outros termos, têm por preocupação descrever, explicar “a capacidade que os
indivíduos têm não apenas de codificar e decodificar expressões, mas também
usar e interpretar essas expressões de uma maneira internacionalmente
satisfatória”. (NEVES, 2006, p.15).
Observamos que Neves (2000) se limita a classificar o verbo pronominal
como aquele que tem uma forma oblíqua reflexiva, enquanto Azeredo (2000)
complementa e enfatiza pelo viés da morfologia que os verbos pronominais são
resultantes da cristalização de um pronome reflexivo junto ao verbo, porém, do
ponto de vista sintático, o sentido de reflexividade expresso pela forma verbal
deixa de ocorrer.
Cunha e Cintra (1985), ao proporem uma diferenciação entre forma
pronominal e forma reflexa, comungam com a hipótese de Azeredo (2000) de
que, apesar dos verbos pronominais terem um pronome reflexivo em sua
constituição formal, não têm sentido de reflexividade.
Bechara (2009), distintamente da definição de Azeredo (2000) e Cunha
Cintra (1985), afirma que os verbos pronominais são aqueles empregados no
sentido reflexivo “propriamente dito”. Ainda, conforme o gramático (Idem), alguns
verbos pronominais “na língua padrão” se realizam sem o clítico pronominal.
Rocha Lima (1984), por sua vez, assim como Almeida (1999), afirma
categoricamente que o clítico pronominal é inseparável do verbo.
Em síntese, pode-se inferir que as divergências, quanto à nomenclatura e
classificação dos verbos pronominais, assentam-se, principalmente, na noção
de reflexividade e na obrigatoriedade do uso do clítico, apesar de os exemplos
disponibilizados nas obras citadas serem poucos e parcialmente reproduzidos
em todos os manuais.
Convém acrescentar que a definição dos verbos pronominais, em língua
portuguesa, sustenta-se sob o ponto de vista da diátese média (reflexiva) que, a
grosso modo, pode ser definida como a somatória da voz ativa e da voz passiva.
85
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
2. A Semântica da Enunciação
86
enunciar é significar um presente da enunciação pela memória das significações
já constituídas em outros tempos”.
Pensar a significação dos verbos pronominais, nessa perspectiva, implica
considerar que “as expressões linguísticas significam no enunciado pela relação
que têm com o acontecimento em que funcionam”. (GUIMARÃES, 2005, p.5).
Dito melhor, a significação de um enunciado é uma via de mão dupla:
87
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
acontecimento enunciativo, logo, essa frase não participa das relações que a
antecedem, não adquire pertinência que sustente tal dizer. Conforme Dias
(2018a), a pertinência do dizer mantém relação com o referencial histórico, com
aquilo que já foi significado, que sustenta a “qualificação enunciativa das formas
linguísticas”. (Idem, p.101).
Por referencial histórico compreendemos a filiação que sustenta a
significação dos enunciados no presente do enunciar tendo em vista o
funcionamento histórico da sociedade. Dias (2015a, 2015d), ao propor a noção
de referencial histórico, se inspira na visão de Foucault (1969 apud DIAS, 2018a,
p.101) de que as “palavras, ou sintagmas significam não exatamente pelas
singularidades que dizem, mas por relações estabelecidas antes mesmo do
dizer”.
No entendimento de Dias (2018a, p.101), o referencial histórico é
constituído pelo “memorável de outros dizeres” que ancoram as possibilidades
de formulação e significação dos enunciados, No entendimento de Dias (2018a,
p.101), o referencial histórico é constituído pelo “memorável de outros dizeres”
que ancoram as possibilidades de formulação e significação dos enunciados,
visto que o memorável sustenta não somente os aspectos aos quais o enunciado
se remete, “mas também aquilo que já se falou, e que o enunciado se filia, e
aquilo que fala o enunciado”.
Nessa direção, o teórico pontua que “é o próprio enunciado, e não as
propriedades inerentes aos seres, estados e relações, que constitui o
referencial”. (DIAS, 2018a, p.99-100). Portanto, o referencial histórico é
constituído no e pelo acontecimento enunciativo. Conforme o autor (2015a,
p.117),
88
do presente). Em outros termos, observar como converge “o ordenamento dos
elementos linguísticos, conduzidos [...] por regras da língua, mas organizados
em função das condições enunciativas que determinam os recortes de
significação dos enunciados”. (DUARTE NETO, 2018, p. 88).
Por fim, para que possamos desenvolver esse olhar enunciativo sobre os
verbos pronominais, utilizaremos como procedimento metodológico as redes
enunciativas, que dão visibilidade aos aspectos de produção dos enunciados, ou
seja, “o funcionamento da língua na produção do sentido”. (DIAS, 2018a, p. 31).
Conforme Dias (Idem, p. 36), a rede enunciativa é “um procedimento de
demonstração das relações entre unidades articuladas, por meio de
semelhanças e diferenças entre construções linguísticas”. Ela permite
“estabelecer pontos de observação enunciativa, tendo em vista as dimensões do
sentido [...] demonstrar que uma estruturação formal pode ser enunciativamente
permeada por dimensões diferentes da significação.” (Idem, p. 35).
O teórico explicita que o pesquisador ao construir uma rede enunciativa
pode dispor de ocorrências de uso efetivo, disponibilizadas, por exemplo, nas
plataformas eletrônicas, tais como o Google, ou banco de dados, e é possível
ainda construir ocorrências com objetivo de contrastar a “construção linguística
em estudo e outras construções com estruturas semelhantes e palavras iguais,
no sentido de permitir a percepção dos domínios de mobilização que a
enunciação sustenta.” (Ibidem).
Na próxima seção refletiremos em torno da nossa hipótese de que as
relações sintático-semânticas construídas pelos verbos pronominais são
resultantes da relação entre o referencial histórico e a pertinência enunciativa no
presente do enunciar.
89
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(a) verbo transitivo direto (VTD), causar, excitar ou inspirar paixão em;
(b) verbo pronominal (VP), enamorar-se perdidamente, dedicar-se com
ardor ou gosto a alguma coisa3.
Vejamos algumas ocorrências do verbo apaixonar-se retiradas do meio
eletrônico em rede enunciativa, procedimento que permite “desenvolvermos o
conhecimento do funcionamento da língua na produção do sentido”. (DIAS,
2018a, p.31).
Passemos à primeira rede enunciativa com a forma pronominal apaixone-
se por X.
Quadro 1: Rede enunciativa apaixone-se por X
(1) Apaixone-se por alguém que te ame4.
(2) Apaixone-se por alguém que demonstre sentimentos5.
(3) Apaixone-se por alguém que te tire do chão6.
(4) Apaixone-se por alguém que defenda os direitos humanos7.
Fonte: construção própria
90
forma verbal retoma uma memória de ‘condição (alvo) em favor de algo’ por meio
da construção apaixone-se por, ou seja, o verbo, além de denotar um estado
subjetivo, retoma e enfatiza o alvo do qual a ação verbal é direcionada.
No domínio referencial das relações afetivas historicizadas pelos termos
apaixone-se por, podemos perceber que consta um histórico de relações não
correspondidas ou não recíprocas que provocam demandas de pertinência em
ocorrências como (1) apaixone-se por alguém que te ame, (2) apaixone-se por
alguém que demonstre sentimentos e (3) apaixone-se por alguém que te tire do
chão. Podemos visualizar essa relação por meio de rede enunciativa com foco
na negação.
91
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
possibilidade de ser e não ser, visto que a totalidade é sempre uma possibilidade,
podendo vir a se tornar frustação.
Na ocorrência (4) apaixone-se por alguém que defenda os direitos
humanos, permite-nos visualizar um efeito de dilatação referencial do verbo
pronominal, a projeção de novas pertinências, tematizamos essa leitura na rede
enunciativa que se segue.
92
Arriscamos a dizer que a forma verbal preposicionada significa com um
certo tom imperativo que tende a homogeneizar, tornando quase mensurável em
critérios quantitativos o modo como deve ocorrer as relações interpessoais. Pois,
ao observarmos nos enunciados a relação entre o referencial histórico e as
pertinências enunciativas, notamos que o “sujeito, afetado pelas suas condições
históricas, ao se utilizar da língua, coloca em relação os sentidos das unidades
lexicais e as novas demandas de significação do presente” (DUARTE NETO,
2018, p. 37), por fim, a forma linguística resume a percepção das enunciações
da língua e uma atualidade do seu uso. Com efeito, a significação da forma
pronominal apaixonar-se por se atualiza ao retomar a construção das relações
afetivas (recíprocas ou não) e projetar sentidos que alcancem a idealização
amorosa, o compartilhamento de ideais e as formas comportamentais que o alvo
da paixão deve realizar.
Passemos à quarta rede enunciativa que tematiza a forma pronominal
apaixone-se.
93
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
94
anterioridade (da memória)” (DIAS, 2013, p. 9), ou seja, carregam uma memória
de dizeres (regularidades) e as articulações dessas formas linguísticas permitem
a sua atualização.
Na sequência, vamos examinar as relações de sentido estabelecidas pela
forma verbal arrepender-se:
95
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
96
Vejamos que a forma verbal carrega uma memória de dizeres que se
atualizam no acontecimento enunciativo, significando que o arrependimento
verdadeiro conduz à salvação, à plenitude. Assim, coloca-se em cena a
construção da identidade religiosa do sujeito.
Retomando, novamente, os textos bíblicos, podemos fazer menção à
história do apóstolo Pedro que, apesar de ter pecado gravemente, arrependeu-
se, foi perdoado e escolhido como primeiro chefe da Igreja Católica,
distintamente de Judas, que também cometeu uma grave falha, mas caiu no
remorso, não se arrependeu e suicidou-se.
Como se observa, a tessitura dos enunciados com a forma pronominal
aponta, historicamente, para a imagem do homem pecador, falho, e para a
imagem de um Deus que pode punir, mas que também é misericordioso.
Por sua vez, o último enunciado, descrito na rede enunciativa, é um
enunciado extraído da obra O Decameron, de Giovani Boccaccio (1353): (21) é
melhor arrepender-se por ter feito alguma coisa do que por não ter feito nada.
Nele, observamos outra pertinência enunciativa que exalta a importância do
agora, do presente, ou seja, do agir sem pensar demasiadamente nas
consequências. É importante destacar que essa formulação de Boccacio deu-se
na cidade italiana de Florença, no século XIV, época em que o município foi
atingido por uma epidemia denominada de peste negra que dizimou grande parte
da população.
Notamos que o sujeito enunciativo, afetado por suas condições histórico-
sociais, é tomado pelas formas da língua, que significam distintamente dos
outros enunciados citados na rede enunciativa. Ou melhor dizendo, a forma
pronominal ancora-se novamente em um tom de advertência de que é
necessário usufruir do momento presente, visto que a doença pode consumir o
indivíduo levando-o à morte.
Observamos, de um lado, o referencial religioso, pois o homem medieval
em meio ao desencanto pela vida recorria à religiosidade, fugindo de qualquer
pecado, visando alcançar o paraíso e até mesmo a santidade. E, de outro lado,
entregava-se ao desregramento, acreditando que a morte chegaria logo e era
preciso aproveitar o momento. Assim, a forma pronominal retoma dizeres que
vão desde o desespero e aflição pela morte iminente até o otimismo e o desejo
de aproveitar a realidade presente da melhor maneira possível.
97
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
98
Remetendo-nos aos estudos filosóficos de Heidegger (2008, p. 203), “falar
é ao mesmo tempo escutar”, logo, parece-nos que os verbos pronominais em
questão podem ser considerados formas reflexivas obrigatórias por
semantizarem a relação intrínseca entre o sujeito e a linguagem. Uma relação
que não se limita ao uso de signos formais, com sentido estanque, que une um
significado a um significante, antes, observamos o movimento singular entre a
subjetividade que é também intersubjetividade que “se constrói na relação de um
eu que fala e de um outro que escuta, ambos se constituindo numa relação
mediada pela linguagem”. (FERRAZ, SANTOS, ALMEIDA, 2016, p. 171).
Acrescentamos a essa compreensão o fato de que “enunciar é estar na
língua em funcionamento [...] a língua funciona no acontecimento”
(GUIMARÃES, 2005, p. 22), assim, a forma verbal significa porque “cruzam-se
os referenciais de memória com as pertinências enunciativas”. (DIAS, 2018a,
p.107). Em outros termos, “enuncia-se enquanto ser afetado pelo simbólico”
(GUIMARÃES, 2005, p. 11), logo, os enunciados com os verbos pronominais
apaixonar-se e arrepender-se evocam uma memória daquilo que já significou e,
ao mesmo tempo, “como sujeitos históricos na relação com a língua, somos [...]
instados a enunciar”. (DIAS, 2018a, p. 128).
Em síntese, o funcionamento enunciativo dos verbos pronominais contrai
pertinência na atualidade do enunciar por discursivizar práticas históricas da
sociedade, logo, um acontecimento que se dá por meio da relação do sujeito
com a língua.
Considerações finais
Nosso intento, neste trabalho, foi esboçar uma reflexão em torno das
formas verbais pronominais por meio de um viés enunciativo, no qual,
consideramos a constituição histórica da significação.
Assim, observamos que as ocorrências enunciativas com os verbos
pronominais apaixonar-se e arrepender-se significam por uma memória de
sentidos que ganha pertinência na atualidade do dizer. As formas linguísticas
com o verbo apaixonar-se tematizam relações de afetividade entre interlocutores
que podem ou não obter êxito com a reciprocidade de sentimentos, ideais e
ações. E, ainda, relações subjetivas que visam ao sucesso pessoal e
99
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Referências
ALENCAR NETO, W. D. As formações nominais em textos sobre racismo e
antirracismo: O caso das nominalizações. 2018. Tese (Doutorado em Estudos
Linguísticos). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo
Horizonte, 2018.
100
DIAS, L. F. Formações nominais designativas da língua do Brasil: uma
abordagem enunciativa. In: Letras, Santa Maria, n. 46, 2013a.
101
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
102
REFLEXÕES SOBRE O EMPREGO DO ADVÉRBIO
INTRODUÇÃO
Dessa forma, para dar ao advérbio uma definição mais precisa, Biderman
(2001) se vale de critérios sintáticos, funcionais, semânticos e morfológicos.
Partindo desse princípio, e ao defender a ideia de que o estudo da
gramática deve pautar-se na reflexão sobre o uso da língua, para um ensino
mais produtivo e significativo, é preciso considerar a relação que um advérbio
pode estabelecer com a oração. Portanto, de acordo com Ducrot (1972), em
1
Conforme Ducrot (1980), a enunciação pode ser definida como acontecimento, ou seja,
relaciona-se ao fato que constitui o surgimento de um enunciado em determinado momento do
tempo e do espaço; sendo esse um conceito de base semântica.
103
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
104
Sob esse viés, adotamos a concepção interacionista da língua, em que a
gramática é um dos componentes constitutivos de uma língua, mas “não é o
único nem o mais importante. Forma com o léxico, a matéria que se concretiza
em produções verbais, que, são na verdade, ações verbais. Tem fundamental
importância. É necessária” (Antunes, 2014, p.24).
105
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1. OBJETIVOS
Geral
Este trabalho tem como objetivo re(pensar) a discussão do ensino de
língua materna, levantando reflexões acerca do emprego do advérbio, a fim
de contribuir para a ampliação e para o aprofundamento das questões
relacionadas ao ensino de gramática. Por intermédio das atividades reflexivas
e discursivas em torno do advérbio, busca-se propiciar um ambiente de
discussão e de práticas discursivas de leitura às aulas de língua portuguesa,
por meio de textos compostos por diferentes modalidades semióticas: escrita,
imagem, som, dentre outros, isso a partir de uma proposta de sequência
didática.
Específicos
106
Compreender criticamente alguns mecanismos que atuam nos
processos de enunciação;
2. JUSTIFICATIVA
Apontamos a definição inconsistente e superficial dada ao advérbio
pela tradição gramatical, como a justificativa para a realização deste trabalho.
Nessa gramática, o advérbio é definido, de um modo geral, como a classe das
palavras que modificam um verbo ou um adjetivo ou um outro advérbio.
Contudo, não são estabelecidos os critérios (se semânticos, sintáticos ou
morfológicos) para essa definição. Desse modo, a natureza heterogênea
dessa classe gramatical não é tratada. Ou seja, a gramática tradicional não
leva em conta algumas propriedades dos advérbios, como o fato de sua
mudança de posição na oração acarretar mudança de sentido.
107
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1ª aula
Objetivos específicos:
108
Usar a oralidade como forma de expressão;
Encaminhamentos:
Questão 1
Segundo a tradição gramatical, o advérbio:
109
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
110
discordo de tudo que faz o Executivo”, o que não mostraria se o autor
considera o fato positivo ou negativo, se concorda ou discorda.
Questão 2
Texto 2
O COMPRAR
COMPULSIVAMENTE: CAUSAS,
SINTOMAS E REMÉDIOS
Daia Florios
Redação: Piracicabana de nascimento, carioca de alma e romana por adoção, Daia Florios ingressou
aos 18 anos no curso de Ecologia da Universidade Paulista. Mas tendo se assustado com a química
e o cálculo decidiu cursar Direito para - quem saberia? - especializar-se em Direito Ambiental. A
vida a levou a dar longas voltas até chegar ao seu ponto de partida, o meio ambiente, lugar que
realmente nunca saiu de seu coração.
111
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
ambos? Além do próprio nome do site “GreenMe farei bem à terra” indicar
que ali são tratadas questões relacionadas aos cuidados e à preservação do
meio ambiente, tem-se a escrita verde. O texto implica o consumo
consciente a fim de reduzir danos ao meio ambiente, há a imagem de uma
mulher (pelas pernas e o salto) sentada e a sua volta, há várias sacolas que
deduzem o arrependimento por causa das muitas compras efeituadas por
ela de forma compulsiva.
e) O 2º parágrafo inicia-se com o termo racionalmente. Qual o efeito do
advérbio “racionalmente” vir no início da frase/parágrafo? É um advérbio de
modo que traz a intenção da autora de persuadir sua leitora acerca das
compras compulsivas. Ou seja, que a leitora perceba que muitas compras
são movidas por impulso, emoção, porém são desnecessárias.
f) A autora busca fazer com que as pessoas se identifiquem com as
questões pontuadas no texto. Como isso pode ser confirmado? Por meio das
falas, uso do pronome você, direcionado de forma direta a quem lê o texto.
“Você acha que sofre de compras compulsivas? Olha que metade dos
brasileiros compram por impulso e Talvez você tenha notado haver uma
certa tendência para fazer compras inúteis e acumular roupas, sapatos e
objetos de vários tipos, comprados por uma inexplicável compulsão”.
g) Qual a possível intenção da autora ao escolher o termo
racionalmente? Ao escolher esse termo a autora deseja passar a sua
argumentação pelo crivo da racionalidade.
h) Que ideia a palavra compulsivamente expressa no título do texto?
Em termos gramaticais, como ela pode ser classificada no texto? A forma de
comprar.
Advérbio de modo.
i) Segundo a definição da gramática, o advérbio modifica o verbo, o
adjetivo ou outro advérbio. No título do texto, a que o compulsivamente se
refere? O uso nesse texto está coerente com definição tradicional? Está
modificando o substantivo. Não está coerente já que, segundo a gramática
tradicional, o adverbio só modifica verbo, adjetivo ou outro advérbio.
Aula 2 – 2 aulas (50 minutos cada)
Colocações:
112
Agora, leia o Texto 3, e responda às questões.
Texto 3
113
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
114
Leia o texto 4 e responda às questões:
115
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Questão 4
Texto 5
116
Quando: exprime a ideia de tempo, isto é, no momento, ou seja, assim que
“o bicho” encontrava algo, não verificava o que era e engolia. Com
voracidade - exprime a ideia do modo como ele devorava o que encontrava,
com rapidez por causa da fome.
d) Que relações o poema estabelece com o título? O título refere-se à
animalização daqueles que procuram comida no lixo para sobreviver e o
poema leva à reflexão de que esse “bicho” pode ser um ser humano.
Questão 5
Texto 6
117
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Perguntas:
Atividade final
Para desfecho final, será proposto aos alunos a escrita de um parágrafo
argumentativo, que trate a insuficiência da gramática tradicional na definição do
advérbio, em que os estudantes deverão considerar as questões trabalhadas no
decorrer da SD, além disso, eles deverão empregar advérbios na defesa do
ponto de vista.
4. RESULTADOS ESPERADOS
Com este trabalho, bem como com a proposta de atividade de SD sugerida,
espera-se contribuir com um ensino de Língua Portuguesa, que cumpra de fato
com a função social de formar o cidadão, o qual esteja preparado para inserir-se
socialmente de forma ativa e participativa, posicionando-se crítica e eficazmente
por meio dessa ferramenta a que denominamos língua(gem), com a qual é
possível agir no mundo e sobre o mundo. Assim, buscamos, com este trabalho,
dar um novo olhar ao ensino da gramática, para que essa aconteça de forma
contextualizada, de forma crítica e reflexiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
120
A FORMAÇÃO DE NOMES NA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS:
UM VIÉS ENUNCIATIVO
Introdução
A autora é formada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista
em Língua Brasileira de Sinais e mestranda na referida universidade. E-mail:
[email protected]
1Os termos gestual-visual ou espaço-visual serão usados aqui indiferentemente em referência
à modalidade característica das línguas de sinais.
121
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
realizada por meio de redes enunciativas, uma metodologia proposta por Dias
(2018). A partir desta técnica que permite a observação das relações de sentido
por meio das articulações linguísticas, é possível analisarmos a articulação de
enunciados descritivos, que passam por uma estabilização de sentidos,
condensando-se em nomes.
Para isso, serão tomados alguns conceitos teóricos da Semântica da
Enunciação, como domínio de mobilização (DIAS, 2018), pertinência enunciativa
(DIAS, 2018), acontecimento enunciativo (GUIMARÃES, 2018) e referencial
histórico (DIAS, 2018), entre outros.
As considerações iniciais deste trabalho apontam para a explicitação de
que as relações de sentido também são formadas socialmente na/pela
comunidade usuária da Libras, e apenas manifestam-se de um modo diferente:
em uma modalidade linguística espaço-visual. Acreditamos, assim, que este
estudo contribui para uma observação sobre as línguas desta especificidade, ao
direcionar uma investigação sobre o modo social/corporal de
construção/produção dos sentidos sociais.
O artigo está organizado em três seções seguintes: 1. conceitos básicos
da Semântica da Enunciação, na qual são abordadas definições importantes
para o desenvolvimento do trabalho e uma aproximação destes com a Língua
Brasileira de Sinais; 2. as formações nominais e a Libras, na qual expomos e
fazemos o recorte pela formação subnominal, de modo a aplicarmos alguns
conceitos teóricos à Libras por meio das redes enunciativas; e, finalmente, as
considerações finais (3), na qual apresentamos algumas percepções após esta
exploração inicial.
122
relacionar”, ou seja, “em termos amplos, as formas do dizer se vinculam às
formas de significar” (DIAS, 2018, p.15). Assim, não temos unidades de sentido
fechadas e prontas em si mesmas. Vejamos o exemplo do enunciado “Hoje é o
dia da mudança”. Se fôssemos considerar o sentido temporal, cronológico do
termo “hoje”, este enunciado só poderia ser produzido em uma data específica,
marcada por alguma mudança qualquer (de cargo, de casa...), só podendo ser
dita pelo indivíduo que está envolvido no ato de mudar naquele momento no
tempo. No entanto, em um sentido mais amplo, podemos proferir esta sentença
em qualquer ocasião que seja marcada por um sentimento de renovação, de
melhoria, de empoderamento do sujeito em relação as suas próprias escolhas
de vida, por exemplo.
Então, quais seriam as razões que sustentam as articulações das formas
linguísticas nas sentenças, como em “Hoje é o dia da mudança?” São as
motivações sociais dos falantes, articuladas para imprimirem sentido em uma
determinada direção (DUCROT, 2002 apud DIAS, 2018), para expressarem a
forma que possuem de olhar o mundo. Em outras palavras, essas razões são
reordenadas com base em sentidos sociais que constituem o domínio de
mobilização:
Figura 1 – CM da letra F
125
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Desta forma, temos dois planos que fazem parte da constituição do fato
linguístico: o plano da organicidade e o plano do enunciável. O primeiro diz
respeito às relações textuais que constituem a linearidade sintática; o segundo
diz respeito ao que pode ser dito (ou ao que já foi) em outros discursos. Assim,
a partir desta relação de tensão entre as duas dimensões é que produzimos a
enunciação.
126
referenciais históricos e as pertinências enunciativas, conceitos já abordados
anteriormente.
127
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
128
Quadro 1 - Domínio de mobilização e constituição de unidade nominal básica
• colega atormentando outro
colega
• pessoa sendo humilhada no
trabalho
• aluno constrangido pelo
tratamento agressivo dos
Rede de enunciados descritivos colegas
• incômodo pela repetição de
um apelido indesejado
• discriminação por parte de
amigos em razão de uma
deficiência física
• humilhações e agressões
sofridas pelos próprios colegas
Condensação
Unidade nominal básica em
posição temática bullying
4Datilologia são representações das letras do alfabeto português usadas em vários contextos,
como para referenciar um termo técnico que ainda não tem sinal equivalente. (QUADROS;
KARNOPP, 2004) A datilologia é a escrita manual ou visual de uma palavra.
129
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Condensação
5 Enunciados elaborados pela autora, a partir das redes de sentido sociais presentes na Libras.
6Elaborado pela autora. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=CLVaARE6W4c&feature=youtu.be>. Acesso em: 31 mar
2020.
130
Figura 3: Vídeo sinal-nome de Ciro Gomes
31 mar 2020.
132
Nos dois vídeos acima, a informação dada pode ser interpretada por
“Michel Temer é o novo presidente”. No entanto, no vídeo apontado pela Figura
4, temos a referência a Michel Temer representada pela datilologia (letra por
letra: M-I-C-H-E-L-T-E-M-E-R8), isto é, o discurso apresenta apenas o nome da
personalidade política (como faríamos convencionalmente na Língua
Portuguesa). Já na Figura 5, o presidente é apresentado por uma nova FN,
ressignificada em função das redes de sentido formadas nos discursos sociais.
Isto significa que “Michel Temer, como novo presidente empossado após um
impeachment” atualizou/”entrou” no léxico desta língua.
Uma informação importante sobre o uso da datilologia na Libras vale ser
ressaltada aqui. Quando uma personalidade não está tão inserida nos discursos
dos usuários da Libras ou quando algum conceito ainda é novo para a
comunidade surda (ou ainda não tão bem compreendido para ser construído
visualmente por eles – a sua forma legítima de comunicação), a datilologia (esse
recurso que podemos explicar como uma soletração visual de cada uma das
letras que compõe as palavras) assume um papel importante na comunicação.
A partir do momento em que personalidades, conceitos, fatos adquirem
pertinência social na comunidade surda essencialmente, mobilizados por uma
rede de sentidos sociais, há a atualização dos dizeres em relação aos campos
da memória, produzindo a enunciação, o acontecimento enunciativo
(GUIMARÃES, 2017) na Libras. Isso corrobora ainda mais a nossa tese de que
as FN’s, os sinais-nome apresentados, condensam as relações entre
enunciados, permitindo a existência social de um nome. Apenas com o intuito de
esclarecer, como o faz Dias (2017), o que nos interessa para os estudos da FN
não é a sua característica sintagmática ou as suas propriedades fonéticas e
fonológicas, mas na razão pela qual “as articulações são contraídas interna e
externamente à construção nominal” (DIAS, 2017, p.124).
Em relação à articulação intranominal, gostaríamos apenas de fazer um
aparte. Esta segunda dimensão é apresentada por Dias (2018) como aquela que
subsidia a formação componencial do nome. A morfologia estruturalista tem este
processo como o estudo das unidades mínimas que compõem as palavras (ou
8 Por convenção, as letras sinalizadas por datilologia (isto é, letras sinalizadas uma a uma na
Libras pelas configurações de mão correspondentes) são representadas em português
separadas por hífen e em caixa alta.
133
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vwJbWzPkdjg&feature=youtu.be >.
Acesso em 31 mar 2020.
10Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=MEt3jWJ_pes&feature=youtu.be >.
Acesso em: 31 mar 2020.
134
oficiais com os quais são tratados os procedimentos na maioria das repartições
públicas, por exemplo. O sinal “PAPEL”, juntamente com o “movimento
subsequente e a expressão facial expostos”, indicam uma composição do
sinal/FN que expressa a natureza dos “papéis” a que a usuária se refere,
trazendo um sentido social, na Libras, negativo. Na Figura 9, já temos um outro
movimento articulado ao sinal para significar o sentido de “desorganização”,
igualmente negativo (sinal PAPEL + movimento que indica desorganização,
bagunça).
Considerações Finais
13Para maiores detalhes sobre a legislação vigente no Brasil, consultar Decreto nº 5626/2005,
disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm >.
Acesso em 19 mar 2020. Lei nº 10.436/2002, disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm >. Acesso em 19 mar 2020.
136
perspectivas de outras áreas e contribuindo para uma observação social dos
usos da língua.
Referências
137
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Introdução
1 A Semântica da Enunciação
1 Guimarães (2018) ancora o conceito de político a partir de dois autores: Orlandi (1990), que o
trata como confronto, e Rancière (1995), que o trata como desentendimento.
139
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
3 Essa perspectiva enunciativa explicaria não apenas as relações ocorridas no interior de uma
unidade nominal complexa (como vimos em “antiga Rua da Floresta”), designada relações
internominais por Dias, mas também as relações enunciativas que motivam a constituição de
nomes (como vimos em “bullying”), denominadas relações subnominais, e as relações ocorridas
entre um formante e uma unidade para formar outros nomes (como ocorre nos processos de
derivação) e a articulação de duas unidades para forma outra (como ocorre nos processos de
composição), que são nomeadas relações intranominais (DIAS, 2018).
141
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
142
Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim,
o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e “fechadas”
de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as
identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas
posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais,
mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas, unificadas ou
trans-históricas (HALL, 2005, p. 87)
3 Metodologia
4AGGIO, Alberto. O espectro do iliberalismo. Estadão. São Paulo. 29 jun. 2019. Opinião.
Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/esp/aco-aberto,o-espectro-do-
iliberalismo,70002894650. Acesso em: 08 out. 2019.
144
democracia guiada, é um sistema de governo no qual, embora eleições
ocorram, os cidadãos são afastados de exercer controle sobre as atividades
daqueles que exercem poder real por conta da falta de liberdades civis,
portanto, não é uma “sociedade aberta”. Existem muitos países “que são
categorizados como nem ‘livres’ nem ‘não livres’, mas como ‘provavelmente
livres’, situando-se entre os regimes democrático e não democrático”.5
c) No Ocidente (basicamente, Estados Unidos e Europa), o termo democracia
liberal é quase uma redundância. Toma-se por certo que as eleições
democráticas e a participação popular culminarão na ampliação de direitos.
Tal conexão não ocorre, entretanto, de forma automática.6
6DONALD Trump e o risco da democracia iliberal. Carta Capital. 16 nov. 2016. Mundo. Disponível
em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/donald-trump-e-o-risco-da-democracia-iliberal/. Acesso
em: 23 mar. 2020.
145
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
pessoas "não são livres nem não livres". Assim, com o surgimento de governos
eleitos democraticamente, mas que não respeitam as liberdades individuais, a
articulação entre o substantivo democracia e o adjetivo liberal não é mais
automática para grande parte da população. O convergente liberal deixou de
fazer parte da memória discursiva de democracia7, passando a ser de uso
necessário para marcar uma oposição ao novo conceito.
4.2 Coliving
7
GUIMARÃES, J. R. (2017), ao tratar da relação entre democracia e marxismo, afirma que
prevalece, nos textos de Marx, uma crítica ao modelo de democracia criada pelos liberais, visto
que a democracia representativa seria insuficiente, não permitindo “a emancipação plena do
indivíduo que deveria se ver livre também dos constrangimentos econômicos que o oprimiam e
tolhiam o desenvolvimento integral de sua personalidade” (p.3). Nesse texto, podemos ver que
as enunciações para a criação da FN democracia liberal já tinham sido construídas por Marx.
Também nesse artigo, notam-se as mais diversas perspectivações que democracia recebeu nos
estudos marxistas, são elas: democracia liberal, democracia representativa liberal, social-
democracia, democracia socialista, democracia direta, democracia representativa. Essas
diferentes adjetivações do termo nos mostram que a FN democracia liberal, provavelmente, já
tenha sido usada antes do surgimento de democracia iliberal. Contudo, como o próprio autor
afirma “a ausência de uma alternativa à democracia liberal que desfrutasse de credibilidade
alimentou a condição paradigmática desta, elevação à condição de modelo reconhecidamente
limitado mas único e universalmente factível para a democracia” (p. 10), o que nos permite
pensar que a memória discursiva de democracia passou a incluir liberal devido à ausência de
uma alternativa à altura, ainda que, entre os estudiosos do tema, o conceito e as subdivisões de
democracia fossem amplamente debatidos. A FN democracia liberal e suas concorrentes ou co-
ocorrentes merecem um estudo mais detalhado.
8 MARRA, Renan. Novo estilo de moradia compartilhada, coliving é tendência em São Paulo.
Folha de S. Paulo. 25 nov. 2018. Morar. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/morar/2018/11/1984613-novo-estilo-de-moradia-
compartilhada-coliving-e-tendencia-em-sao-paulo.shtml. Acesso em: 08 out. 2019.
146
objetos, menos vínculos, virou um passaporte para reinventar a vida, que pode
ser programada a curto prazo.9
Bauman também lembra que o que é menor e mais leve é visto agora
como sinônimo de progresso. Não é coincidência que coliving aparece articulado
com tendência no jornal Folha de S. Paulo, em (2a), e com promessa de
mobilidade na revista Casa e Jardim, em (2b), ancorada no referencial histórico
10
A palavra progresso vem do latim progressus e significa “ato de progredir, avançar”. Nesse
sentido, podemos entender que o que surge depois é melhor do que o que existia antes.
Entretanto, nas ciências humanas, a palavra progresso, atualmente, é ambígua. Sobre a
oposição antigo/moderno, Le Goff (1990) afirma que, no final do século XVII e na primeira metade
do século XVIII, o antigo era sinônimo de superado e o moderno, de progressista. Essa ideia de
progresso se fortaleceu no século XIX e no início do século XX. Não obstante, os fracassos do
marxismo, os campos de concentração do regime nazista e a destruição causada pela Segunda
Guerra Mundial fizeram os teóricos questionar essa ideia de progresso. Para o autor, “a crença
num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas
as sociedades, já quase não existe” (p. 15). Ainda segundo o autor, uma concepção positiva de
progresso ainda é mantida na biologia. Embora concorde com Le Goff de que a ideia positiva de
progresso seja questionada atualmente, penso que, na memória discursiva, as pessoas ainda
acreditam que o novo é melhor do que o antigo. Podemos ver esse comportamento,
principalmente, em relação à tecnologia, quando as pessoas trocam seus celulares ainda novos
por um modelo que acabou de ser lançado com a crença de que o modelo novo vai trazer
melhoramentos tecnológicos.
148
coparticipação pagamento compartilhado
bicicletas compartilhadas
patinetes compartilhados
carros elétricos compartilhados
A rede enunciativa 3 nos permite reconhecer que outras FNs com sentido
semelhante ao de coliving já circulam entre nós e adquirem cada vez mais
pertinência enunciativa.
A FN coworking já se torna pertinente em vários textos, como o que segue:
4.3 MEI
17
Antônio Carlos de Mendes Thame é o autor do projeto de lei que resultou na aprovação da Lei
Complementar 128/2008 que criou a categoria de MEI. No ano da aprovação do projeto, o autor
tinha um mandato de deputado federal e era filiado ao PSDB (Partido da Social Democracia
Brasileira).
152
FN tornou-se mais pertinente na atualidade 18. O surgimento dos motoristas de
aplicativos, já inseridos na lista de profissões que podem ser MEI, em 2019, e
a ampliação dos serviços de entrega confirmam uma uberização da economia,
também chamada de “economia dos bicos” ou Gig Economy, oficialmente
legalizada com a criação da FN .
4.4 IOA
18
De acordo com o Portal do Empreendedor (apud ALVARENGA), em 2009, havia 44.188
trabalhadores inscritos como MEI. Dez anos após a criação da lei, esse número saltou para mais
de oito milhões de inscritos. Alvarenga (2019) afirma que “o programa foi lançado para incentivar
a formalização de pequenos negócios e de trabalhadores autônomos como vendedores,
doceiros, manicures, cabeleireiros e eletricistas, entre outros, a um baixo custo. Mas, com a crise
do mercado de trabalho e aumento do trabalho por conta própria, tem se transformado também
em opção de ocupação temporária, de ‘bico’ ou do chamado ‘empreendedorismo por
necessidade’”.
19D’ANGELO, Helo. O que acontece quando um atleta independente ganha medalhas na
Olimpíada? Superinteressante. Sociedade. 31 out. 2016. Disponível em:
https://super.abril.com.br/sociedade/o-que-acontece-quando-um-atleta-independente-ganha-medalhas-na-
olimpiada/. Acesso em 09 out. 2019.
20
MENDES, Nathália. Atletas olímpicos “sem pátria” podem competir sob bandeira olímpica.
EBC. 18 dez. 2015. Disponível em: http://www.ebc.com.br/esportes/2015/12/atletas-olimpicos-podem-
competir-de-maneira-independente-sob-bandeira-olimpica. Acesso em 09 out. 2019.
21 MELLO, Bernardo. COI já permitiu 67 atletas independentes em Olimpíadas. O Globo. 04 mar.
153
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Referências bibliográficas
156
REFUGIADO: SENTIDOS CONSTITUTIVOS DE UMA PALAVRA
INTRODUÇÃO
158
O sofrimento inenarrável vivenciado por milhões de criaturas
humanas que sobreviveram à grande catástrofe do século XX
– a Segunda Guerra Mundial (que ceifou a vida de 50 milhões
de pessoas) – levou as Nações Unidas a elaborarem a
Convenção que regula a situação jurídica dos refugiados
aprovada pela Assembléia geral da ONU em 28 de julho de
1951, vigendo a partir de 21 de abril de 1954 (DOLINGER,
2008, p. 248).
159
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
160
Nessa perspectiva, na rede, há um deslocamento de sentidos, outras memórias,
outra futuridade. Sendo assim, pode-se afirmar que há outras textualidades na
organização do que é formulado para funcionar, circular, na rede; há, assim,
outros modos de constituição dos textos da internet.
A questão da significação, dentro de nossa perspectiva teórica,
considera que o sentido de uma palavra, de um enunciado, deve ser
compreendido além da materialidade textual e linguística, já que consideramos
que a questão semântica não está circunscrita somente a estas relações. O
estudo do sentido de uma palavra, de acordo com a forma como pensamos a
produção do sentido, deve incluir seu caráter histórico; a exterioridade. Para
tanto, apresentamos a análise.
161
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Deste modo, os dois recortes acima nos permitem olhar para o sentido
da palavra refugiado em seus diferentes aspectos. Isso nos mostra que no século
XXI há um processo de mudança no que diz respeito ao processo de constituição
dos sentidos das palavras nos dicionários de língua portuguesa. Nessa direção,
isso acontece porque o dicionário é considerado uma ferramenta normativa que
apresenta, de modo breve, os sentidos que são dados a palavra em um
determinado período na sociedade.
Para mostrar a relação de antonímia observada nos dois enunciados
definidores da palavra entrada refugiado, apresentamos outro recorte jornalístico
que opõe o sentido de refugiado com foragido da justiça. Vejamos:
163
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
DSD
REFUGIADO ├ _______________________________
166
DSD
Considerações Finais
Referências
168
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. Rio de Janeiro:
Renovar, 1996.
ONU. Convenção Sobre o Estatuto Dos Apátridas. Nova Iorque. 1954. Acesso
em 2019, disponível em
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre
_o_Estatuto_dos_Apatridas_de_1954.pdf.
170
DOS PORÕES DE NAVIOS NEGREIROS AO ECO DA VIDA-LIBERDADE:
SENTIDOS DE MULHER NEGRA NO POEMA “VOZES-MULHERES”
1 Introdução
4Este trabalho se vincula à pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “Nem senzala nem
casa grande: sentidos de mulher negra no Brasil pós-abolição”, cujo objetivo é analisar sentidos
de mulher negra circulantes no Brasil contemporâneo. Tal pesquisa, por sua vez, se vincula ao
172
ciência que estuda a língua, a Linguística e, dentro dessa ciência faremos um
recorte mais específico: mobilizaremos a teoria da Semântica do Acontecimento,
especificamente os mecanismos de análise, reescritura e articulação
(GUIMARÃES, 2002, 2011). Nosso objetivo é investigar sentidos de mulher
negra em funcionamento no poema “Vozes-Mulheres”, de Conceição Evaristo
(1990). Para isso, consideramos, aqui, a poesia enquanto acontecimento de
linguagem, o qual se dá pelo funcionamento da língua (GUIMARÃES, 1995,
2002, 2011).
Para tanto, este artigo se encontra dividido da seguinte forma: na seção
2, foi realizada uma abordagem teórica em torno dos principais conceitos que
serão mobilizados na análise: reescrituração e articulação, memorável e o
Domínio Semântico de Determinação; e, ao final dessa seção, apresentamos os
passos metodológicos seguidos na análise. Na seção 3, apresentamos o corpus
e empreendemos uma análise e discussão dos resultados; e, ao final, fizemos
uma seção de considerações finais.
2 Pressupostos teórico-metodológicos
projeto temático “Sentidos de escravidão, liberdade e trabalho”, coordenado pelo professor Jorge
Viana Santos (UESB).
173
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
175
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
5As notações utilizadas no DSD são “├ ou ┤ ou ┴ ou ┬ (que significam determina, por exemplo,
y ├ x significa x determina y, ou x┤y significa igualmente x determina y); que significa sinonímia;
e um traço como _____, dividindo um domínio, significa antonímia (GUIMARÃES, 2007, p. 81).
Assim, as relações de sentido do enunciado são representadas pelos símbolos de determinação
e pelas relações de sentido de sinonímia, utilizando-se os traços ------; e de oposição, utilizando-
se o traço contínuo _____.
176
No que diz respeito à metodologia para a análise, adotamos os seguintes
passos: primeiro, empreendemos uma leitura analítica do poema “Vozes-
mulheres”, de Conceição Evaristo, observando os seguintes critérios: a)
enunciados em que, por reescrituração, se encontrasse sentido(s) de mulher
negra; b) enunciados em que, por articulação, se encontrasse sentido(s) de
mulher negra e c) enunciados em que a expressão mulher negra não aparece,
mas é possível recuperá-la a partir de relações de linguagem que se apresentam
relacionadas a memoráveis de enunciações. Seguindo tais critérios,
empreendemos uma nova leitura analítica, observando, dessa vez, o termo voz
ao longo das estrofes do poema. Tomamos como ponto de partida, portanto, o
termo voz, pois, no poema, por meio de suas reescrituras e articulações foi
possível analisar o funcionamento de memoráveis de mulher negra em tempos
e lugares específicos.
Feitas essas considerações teórico-metodológicas, passemos, agora, à
análise.
178
estabelece, define e constrói, pelo memorável de voz, sentidos diferentes de
mulher negra. A rigor, não se trata apenas de uma reescritura do título: é mais
que isso, é uma reescritura da voz da estrofe anterior. Cada estrofe, a partir da
segunda, reescritura a voz da estrofe anterior, sem deixar de ser, cada uma em
particular, também, reescrituras por expansão do título. Feitas essas
considerações, iniciemos, assim, a análise da estrofe (1):
Na estrofe (1), voz, no singular, define uma das vozes possíveis do título,
minha bisavó, voz esta que ecoou criança nos porões do navio, ecoou lamentos
de uma infância perdida. Por meio dessa reescritura especifica de voz e da
articulação entre os termos contíguos, faz-se funcionar, aqui, um memorável de
mulher africana negra escravizada. Assim, em uma relação de articulação por
incidência entre o termo reescriturado, voz, com nos porões do navio, produz-se
o sentido de que, ainda criança, mulheres africanas negras foram retiradas do
seu espaço original, a África, para outro, neste caso, o Brasil. É possível chegar
a estas relações de sentido por meio do memorável do processo de diáspora 6,
uma vez que o memorável, conforme Guimarães (2002, p. 38) atribui ao
reescriturado àquilo que é recortado pela reescrituração como passado, como
memorável. As articulações entre ecoou lamentos e de uma infância perdida
acentuam uma distinção entre a possibilidade de uma infância livre, na África, e
a realidade de uma infância em cativeiro, no Brasil. Enfim, a voz, pelo memorável
de mulher africana escravizada/escrava, aponta, nesta estrofe, para o sentido de
uma mulher (negra) de um tempo, início do processo de escravização legalizada;
e de um lugar, África.
A partir da análise realizada neste excerto, é possível a construção do
seguinte DSD:
6Segundo Santos (2008, p. 181), “a diáspora traz em si a ideia do deslocamento que pode ser
forçado como na condição de escravo, resultado de guerras, perseguições políticas, religiosas
ou desastres naturais. Também pode ser uma dispersão incentivada ou espontânea de grandes
massas populacionais em busca de trabalho ou melhores condições de vida”. A diáspora referida
neste texto é a diáspora negra, um fenômeno histórico que aconteceu em países da África, entre
os séculos XVI e XIX. No processo de diáspora, muitos africanos foram submetidos à imigração
forçada para fins escravagistas.
179
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Lamentos
┴
Voz ┤Minha bisavó ------ Mulher Negra
┬
Escravizada
DSD (1): Bisavó: mulher negra africana escravizada
Desse modo, conforme o DSD, voz determina minha bisavó, a qual está
em uma relação de sinonímia com mulher negra e sendo, simultaneamente,
determinada por lamentos, por ter sido retirada de seu espaço de enunciação
original de liberdade, na África; e por mulher africana negra/escravizada, cuja
liberdade é cerceada, noutro espaço histórico, e de enunciação, Brasil.
Passemos, agora, à análise da estrofe (2):
180
Obediência
┴
Voz┤Minha avó ------ Mulher Negra
┬
Escrava
Temos, assim, conforme o DSD, que voz determina minha avó, a qual,
pelo memorável de voz, está em uma relação de sinonímia com mulher negra e
sendo determinada, simultaneamente, por obediência, em um sistema de
escravidão oficial; e por escrava, configurando-se, enquanto mulher escrava, um
dos principais elementos do sistema escravocrata.
Vejamos, agora, a análise do excerto (3), correspondente à estrofe (3):
Revolta
┴
Voz ┤Minha mãe ------ Mulher Negra
┬
Doméstica
Temos, assim, conforme o DSD, que voz determina minha mãe, a qual,
pelo memorável de voz, está em uma relação de sinonímia com mulher negra e
sendo determinada, simultaneamente, por revolta, em um espaço de enunciação
Brasil pós-abolição, onde a escravidão foi oficialmente abolida; e por doméstica,
configurando-se em um novo modo de manter a mulher negra ocupando espaços
similares aos do contexto da escravidão brasileira oficial.
Vejamos, agora, a análise do excerto (4), correspondente à estrofe (4):
Na estrofe (4), voz é definida por minha, no enunciado a minha voz. Pela
primeira vez, o tempo de enunciação presente (o agora) aparece na voz do
Locutor, quando este enuncia o pronome possessivo minha, articulado ao
advérbio de tempo, ainda. O advérbio ainda, ao se articular com minha e com a
expressão adjetiva versos perplexos, marca a continuidade de uma revolta,
iniciada na estrofe anterior. Na estrofe (3) esta revolta ecoou baixinho na voz de
minha mãe; nesta estrofe (4), ela representa uma continuidade, porém como um
182
processo crescente: aqui, a revolta se dá por meio de versos perplexos, que, ao
estar articulado com rimas de sangue e com fome, marca o descontentamento
com a manutenção da estrutura social atual, produzindo uma relação de sentido
de intensificação desta revolta. Embora diferentes, as vozes das estrofes (2),
passível de obediência, e (3), passível de revolta, se apresentam, ainda,
uníssonas, ou seja, continuam equiparadas à condição da voz da sua bisavó
(metáfora da estrofe (1)), voz inconsciente, passível de lamento. É esta voz do
agora (estrofe (4)), consciente, e por isso perplexa com o passado, que
representa a voz da geração de mulheres negras atual.
Com base nas relações de sentidos produzidas neste excerto,
construímos o seguinte DSD:
Temos, assim, conforme o DSD, que voz determina minha mãe, a qual,
pelo memorável de voz, está em uma relação de sinonímia com mulher negra e
sendo determinada, simultaneamente, por versos perplexos, indicando,
sobretudo, uma indignação com o passado, ao mesmo tempo em que este
precisa se manter presente na memória; e por mulher negra atual, configurando-
se, assim, na mulher negra atual, consciente de sua situação, de seu passado,
que, embora não tenha sido a mesma do passado, do contexto de escravidão,
vive, no agora, as marcas desse passado.
Por fim, vejamos a análise do excerto (5), correspondente à estrofe (5):
Por fim, na estrofe (5), a reescrituração de voz é definida por minha filha
no primeiro, sexto e nono versos. Quanto à reescritura de voz no primeiro verso,
nota-se que, no enunciado Recolhe todas as nossas vozes, o verbo recolhe ao
se articular com minha filha e com todas as nossas vozes, constrói um sentido
de ancestralidade ao retomar a voz de minha bisavó, na primeira estrofe; e a voz
de minha avó, na segunda. Esse sentido é ratificado pela articulação entre
mudas caladas e engasgadas nas gargantas, presentes no enunciado Recolhe
em si/As vozes mudas caladas/Engasgadas nas gargantas, isto é, até a segunda
estrofe eram possíveis apenas os ecos, por meio dos lamentos ou da obediência.
Assim, na primeira estrofe, os lamentos não eram ditos, eram sentidos somente,
restava apenas o sentir; na segunda, estrofe a obediência era um estado, e não
poderia ser outra coisa, pois o momento social da época não permitia uma ação.
Quanto à reescritura de voz no sexto verso, nota-se que o verbo recolhe
ao se articular com minha filha, a fala e o ato e com O ontem – o hoje – o agora,
no enunciado A voz de minha filha/Recolhe em si a fala e o ato./O ontem – o
hoje – o agora, retoma e constrói um diálogo com a voz de minha mãe, na
terceira estrofe e a minha voz, na quarta estrofe, construindo o sentido de revolta,
no passado do tempo de enunciação, expresso nas vozes de minha bisavó,
minha avó e minha mãe (o ontem); e de perplexidade, no presente, o hoje – o
agora, do tempo de enunciação, expresso na minha voz, respectivamente.
Nesse sentido, no sexto e sétimo versos, o verbo recolhe se articula com minha
filha, com fala e com ato. Aqui, os indícios de ação já são possíveis, construindo,
desse modo, um sentido de revolta como um processo crescente e contínuo,
iniciada na terceira e quarta estrofes.
Quanto à reescritura de voz no nono verso, última estrofe, no enunciado
Na voz de minha filha/Se fará ouvir a ressonância/O eco da vida-liberdade, nota-
se que o termo voz se associa ao sentido do título, Vozes-mulheres, isto é, tanto
o título quanto a última estrofe apontam não mais para uma mulher específica,
mas para todas as mulheres de uma geração futura. Projeta-se, a partir da voz
da filha, um lugar de fala diferente, como a que poderá falar/ecoar diferente da
voz de todas essas mulheres anteriores (bisavó, avó, mãe, minha voz). Projeta-
184
se, aqui, uma geração de mulher(es) negra(s), que, sendo plurais (vozes mudas
caladas/engasgadas nas gargantas), unidas, deixarão ou poderão deixar de
sofrer sozinhas, como as vozes (mulheres negras) das estrofes (1) a (4).
Portanto, a voz da minha filha marca, ao mesmo tempo, todas as vozes
anteriores – mudas, caladas e engasgadas nas gargantas –, e a esperança de
que um dia, no futuro, se fará ouvir a ressonância do eco da vida-liberdade, onde
vida e liberdade são, ao serem marcadas por um hífen, indissociáveis.
Segundo as relações de sentidos produzidas neste excerto, construímos
o seguinte DSD:
┤Bisavó -----
┤Avó -----
Voz ┤Mãe ----- Mulher Negra
┤Minha voz -----
┤Minha filha -----
_______________________________________
Vida-liberdade
Considerações Finais
187
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Referências
188
O ÍNDIO (NEGRO DA TERRA1): DE ESCRAVO À FRONTEIRA VIVA
NO ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO DO BRASIL
INTRODUÇÃO
1 De acordo com Monteiro (2005, p. 165), os colonos evitavam usar termos como escravo ou
cativo, preferindo usar o termo negro, com o aumento dos negros africanos surgiram expressões
para se referir aos índios: “gentio do cabelo corredio, administrados (em deferência à carta régia
de 1696), servos, pardos e finalmente carijós (índios subordinados) ”.
2 Doutoranda em Linguística pelo PPGL/UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso.
[email protected]
3 Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística da
UNEMAT/Cáceres-MT.
189
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 “Quando os bandeirantes paulistas atingiram o rio Coxipó, implementando guerra aos índios
Coxiponés, chegaram a pé ou através de pequenas embarcações, utilizando-se da imensa rede
hidroviária que drena o centro do continente. No momento em que a mineração floresceu, às
margens do rio Cuiabá, nasceu ali um arraial onde foram construídas casas, igrejas, estabelecido
pequeno comércio, tornando-se necessário regularizar o abastecimento, pois seus habitantes
estavam ocupados somente com a mineração (...) a esse sistema abastecedor e de transporte
de pessoas, implementando exclusivamente através dos rios, deu-se o nome de monções”.
(SIQUEIRA, 2002, p. 34).
190
tomados de outras canoas que vinham atrás. (SÁ, 1725, apud
SIQUEIRA, 1990, p. 272, grifo nosso).
7 Vale ressaltar que houve resistência em relação à língua portuguesa. De e acordo com Cruz
(2010, p.01): Atualmente “em todo Mato Grosso estão distribuídos cerca de 38 povos indígenas,
falando em torno de 34 línguas, além de indícios de 9 etnias ainda não contactadas”.
8 Para Monteiro (2005, p. 181) “a fuga e o absenteísmo dos cativos manifestaram-se com grande
frequência ao longo do período em que vigorava a escravidão indígena (...). Maus-tratos, o
desejo de se reunir a parentes que viviam numa outra fazenda ou mesmo o anseio de ser livre,
todos surgiam como motivos para o abandono do senhor. ”
192
proteção do território contra os ataques estrangeiros. Conforme o Conselho
Ultramarino, de 20 de dezembro de 1695, os índios eram considerados os
“guardiões da fronteira9”, as “muralhas do sertão”. Nesse enunciado é possível
analisar a política de línguas instalada no espaço de enunciação do Brasil
colônia, que procurava civilizar/colonizar explorando tanto como fronteiras vivas,
assegurando com isso a posse das terras; como instrumento de trabalho.
Ao serem designados no acontecimento de enunciação do Conselho
Ultramarino, pelas determinações de sentido que produzem, o sentido de índios
faz funcionar um memorável de enunciações que semantizam outras
enunciações, ou seja, outras designações que significam na linguagem na
medida em que o dizer identifica essa apreensão do real para os sujeitos.
A designação guardiões da fronteira traz um memorável de vigilantes,
funcionando o sentido de defesa militar, de guardar as fronteiras, como se
estivessem autorizados a usar a força para proteger suas terras. No entanto, na
segunda designação muralhas do sertão o sentido da palavra índios passa a
funcionar como sinonímia de guardiões da fronteira, a nomeação anaforizada
constrói sentidos para determinar índios.
Pelo que dissemos até aqui, podemos considerar o seguinte DSD -110:
A CENA ENUNCIATIVA
9 Rodrigues (2015, p.89), enfatiza que “duas autoras exploram tal perspectiva, do indígena
enquanto ‘muralha’ ou ‘Guardião da Fronteira’ da coroa portuguesa: Denise Mald Meireles (1989)
e Nadia Farage (1991). Contudo, é preciso atentar para o “perigo” de não se considerar a atuação
de indígenas junto a esse processo histórico, sob pena de interpretá-los enquanto ‘agentes
passivos’, restritamente usados pela coroa a partir de uma leitura ‘eurocêntrica’ que não percebe
as estratégias levadas a cabo por distintos povos indígenas”.
10 O Domínio Semântico de Determinação (DSD), definido por Guimarães (2007, p. 81) como
“uma análise de uma palavra, que representa uma interpretação do próprio processo de análise
e deve ser capaz de explicar o funcionamento do sentido da palavra no corpus especificado”.
Utilizamos aqui: os sinais gráficos: ┤, ├ e ┬ que significam determina, podem ainda aparecer
os sinais ─ (significando sinonímia) e ______ (significando antonímia).
193
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
demais capitanias. O 11Diretório dos Índios, que vigorou de 1757 a 1798, e previa
a retirada dos índios da tutela religiosa, redistribuindo-os em povoações, sob o
comando de um administrador para zelar pelos interesses da Coroa Portuguesa.
Rolim de Moura, então governador, preferiu não publicar a lei de liberdade dos
índios, como se pode observar na carta enviada a Tomé Joaquim da Costa Corte
Real em 1759:
11 Conforme Coelho (2016), no período Pombalino (Marquês de Pombal), foi instituída a lei do
Diretório do Índios, lei caracterizada por uma série de diretrizes a serem seguidas nas colônias
portuguesas. Propunha a normatização de diversas práticas coloniais, estabelecendo critérios
educacionais (somente o ensino da língua portuguesa), administração da força de trabalho e
relações entre indígenas e colonos (miscigenação).
12Para Marcis (2013), esse decreto real, complexo, incorporou todas as leis e políticas que
haviam sido decretadas nas capitanias do Norte, desde 1755. E a partir de 1758 essas leis foram
convertidas em gerais e estendidas a todo o Estado do Brasil. Possivelmente, nos bastidores, os
personagens deviam comentar e até emitir opiniões, mas toda precaução era necessária para
evitar se tornarem públicas e utilizadas como evidências de infidelidade
13 MOURA, Antonio Rolim de. Correspondências. Vol. 4, Carta 129 In: BLAU, 2007.
194
ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO
Cena enunciativa
L-------------------------LT
língua i ___________F i E
al-x----------------------at-x
sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele
definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo,
um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda
numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a maneira
como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha. ”
15 Tomamos as Instruções Régias como um acontecimento enunciativo. O acontecimento
enunciativo “é um acontecimento que temporaliza: uma temporalidade em que o passado não é
um antes, mas um memorável recortado pelo próprio acontecimento que tem também o futuro
como uma latência de futuro”. (GUIMARÃES, 2017, p. 20).
197
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
16 O quarto-capitão general construiu vários fortes e fundou cidades e povoados: Forte Coimbra
(1775), Forte Príncipe da Beira (1783), Presídio de Albuquerque (Corumbá -1778), Vila Maria do
Paraguai (Cáceres -1788), São Pedro D’El Rey (Poconé -1782) e Cocais (Livramento).
(PÓVOAS, 1985).
198
rei). Estabelece nessa cena enunciativa um enunciado imperativo 17, em que as
marcas linguísticas dos verbos (locução verbal) reivindicam e indicam uma
diretividade ao alocutário-rei não só quanto ao auxílio financeiro como também
a presença de ‘famílias brancas’, estabelecendo na cena enunciativa 18 um
movimento semântico que funciona a partir da relação línguas/sujeitos
colonizador/colonizado em que “a convivência de pessoas brancas com os
‘índios’ ferozes e indomáveis os tornariam mais civilizados, e os brancos os
manteriam sob constante vigilância, visto que os índios realizavam ações
repetidas de evasão ‘internando novamente’ na mata, em que o advérbio de
tempo ‘novamente’ rediz a ação de fuga dos índios.
Quais os sentidos de “civilização” e “índios” nessa cena enunciativa? Se
partimos do conceito de designação desenvolvido por Guimarães (2002, p.9), a
designação de uma palavra “é sua significação enquanto algo próprio das
relações de linguagem e também, e por isso mesmo, enquanto uma relação
simbólica exposta ao real, enquanto uma relação tomada na história”.
“Civilização” pode ser interpretada em antonímia com “índios”. Podendo ser
parafraseada por:
17 De acordo com Guimarães (2011, p.64), “a enunciação imperativa traz uma diretividade a
respeito de uma ação futura em virtude de alguma razão”. Para saber mais ver o capítulo:
“Desordem” no Congresso.
18 Para Guimarães (2014, p. 58), a cena enunciativa ‘se caracteriza por constituir modos
específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas
linguísticas’. Nessa medida, as cenas enunciativas ‘são especificações locais nos espaços de
enunciação’ e são um espaço particularizado de agenciamento do falante em locutor que distribui
os lugares de enunciação no acontecimento”.
19 Nas correspondências de Luiz de Albuquerque (1778), a palavra pessoa aparece quando se
referem aos brancos, mas também encontramos em relação aos escravos: “80 Pessoas de vários
sexos e idades quazi todas ellas sugeitas a Escravidão”. Quando se refere ao índio encontramos
espécies e indivíduos: “pelo menos tres quartas partes do referido número de habitantes são
negros, mulatos, ou outros mestiços das muytas e diferentes espécies que há neste Paiz”. “A
povoação desta vila começou com casais de índios castelhanos desertados de Chiquitos -78
indivíduos de ambos os sexos, e outras pessoas num total de 161. ” O que nos dá sustentação
para afirmarmos que Pessoas configurava o sentido antônimo de índios.
199
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
NEVES, Gabriel Novis (org.) Fundação de Vila Maria: Cáceres, 1778. UFMT/
Cuiabá, 1977.
201
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1 Introdução
4
No Brasil, durante o século XIX, foram sancionadas as seguintes leis brasileiras antitráfico:
Lei Diogo Feijó, de 7 de novembro de 1831, a qual declara livres os escravos vindos de fora do
império; Decreto de 19 de novembro de 1835, o qual regula a arrematação de serviços dos
africanos livres; Lei Eusébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, a qual reforça a proibição
da entrada de africanos escravos no Brasil, retificando a Lei Diogo Feijó de 1831; Decreto 3310
de 24 de setembro de 1864, o qual concede emancipação aos africanos livres. Disponível em:
http://www4.planalto.gov.br/legislacao/. Acesso em: 26 de março de 2020.
5
À respeito da liberdade no contexto da escravidão brasileira, Santos (2008), em sua tese de
doutorado intitulada Liberdade na escravidão: uma abordagem semântica do conceito de
liberdade em cartas de alforria, argumenta que tanto as cartas de alforria (Direito Costumeiro)
quanto as leis positivas (Direito Positivo), ditas abolicionistas da época, complementares uma à
outra, funcionavam como instrumentos de manutenção do sistema escravista e indicam a
coexistência de sentidos de liberdade distintos. Conforme Santos (2008, p.84-85), no Brasil do
século XIX havia simultaneamente um conceito de liberdade válido para o senhor branco,
cidadão de nascimento livre, cuja liberdade não carecia de complemento (liberdade SC) portanto,
intransitiva; e um conceito de liberdade direcionada ao escravo que se tornava livre de algo,
(liberdade CC), portanto transitiva.
203
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
6
As edições utilizadas do jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro (1885-1895) encontram-se
disponíveis em versão digital no site da Biblioteca Nacional. Disponível em:
https://www.bn.gov.br/explore/acervos/hemeroteca-digital. Acesso em: 26 de março de 2020.
204
sistema escravista, que vigorou durante séculos e se perpetuou nas relações
sociais mesmo após a abolição. Eleva-se, ainda, a necessidade de estudos7 que
busquem contribuir com reflexões acerca desse sistema no Brasil, país esse,
cuja escravidão não apenas faz parte da história, mas se configura como a
própria história. É, portanto, nesse escopo, que esse trabalho se insere.
Posto isto, o texto se organiza, além desta seção, em mais três seções, quais
sejam: Pressupostos teórico-metodológicos, onde apresentamos os
fundamentos da Semântica do acontecimento; Caracterização do corpus e
procedimentos metodológicos, onde caracterizamos o corpus e
apresentamos os procedimentos metodológicos empreendidos na análise;
Análise e discussão, onde apresentamos a análise empreendida para chegar
à compreensão da construção de sentidos de arquivo e escravidão em duas
matérias do periódico Diário de notícias do Rio de Janeiro (1885-1895), quais
sejam: Archivo da escravidão e Bello Exemplo; e por fim, Considerações Finais,
onde apresentamos os resultados da análise e, por conseguinte, das relações
estabelecidas entre arquivo e escravidão no imediato pós-abolição.
2 Pressupostos teórico-metodológicos
7
Na área da Semântica, destacam-se os seguintes estudos que contribuem para o tema da
escravidão no Brasil a partir de um ponto de vista linguístico, entre os quais: Santos (2008),
cuja pesquisa analisa o conceito de liberdade em cartas de alforria do Brasil escravagista;
Zattar (2000), que tomou como objeto, em pesquisa de mestrado, a mudança da condição
jurídica do escravo de objeto de direito à pessoa livre; Ferraz (2012), em pesquisa na qual
analisa o termo senhor no senhorio brasileiro no contexto da escravidão e do pós-abolição;
Couto (2017), em pesquisa na qual analisa sentidos de liberdade no acontecimento do 13 de
maio; Santos (2013) em estudo sob a tutela de filhos de ex-escravas no Brasil pós-abolição;
Carvalho (2016) em pesquisa a respeito do termo mãe em documentos do período
escravagista e do pós-abolição, entre outros.
8Ferdinand de Saussure em Cours de Linguistique Générale (1916), institui o “corte
saussuriano”.
205
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
208
debates políticos e reverberar os acontecimentos da época, contribuindo, assim,
não somente com a difusão das notícias, como também, com a difusão de ideias.
Para este trabalho, levando em consideração o objetivo proposto, qual seja:
analisar sentidos de arquivo e escravidão no imediato pós-abolição na ocasião
da chamada queima dos arquivos da escravidão, selecionamos no acervo da
Hemeroteca Digital Brasileira10 periódicos que estiveram em circulação no Rio
de Janeiro, capital do Brasil no período. A partir dessa especificação,
selecionamos o periódico Diário de Notícias do Rio de Janeiro (1885-1895),
disponível em formato digital.
Conforme informações que constam na plataforma da Hemeroteca Digital,
disponível no site da Biblioteca Nacional, o periódico Diário de Notícias do Rio
de Janeiro foi fundado em 1885 e mantido em circulação até 1895. Esse
periódico, de publicação diária, tinha suas edições impressas na Tipografia na
Rua do Rosário, n° 121 e tinha o escritório na Rua do Ouvidor, n° 118, sob
propriedade de Carneiro, Senna e Comp. O periódico trazia em seu conteúdo,
reportagens voltadas para o interesse público, informações relacionadas aos
debates políticos do período e acontecimentos diários da sociedade brasileira.
Quanto à estrutura, o Diário de Notícias do Rio de Janeiro, estendia-se em
edições de quatro a seis páginas e não apresentava seções fixas, o conteúdo
das seções variava entre folhetins, atos oficiais, avisos, artigos, anúncios e
matérias sobre os acontecimentos cotidianos da sociedade.
Posto isso, o corpus desse trabalho compõe-se das matérias Archivo da
escravidão, do dia 20 de dezembro de 1890 e Bello exemplo, do dia 22 de
dezembro de 1890, publicadas originalmente no jornal Diário de Notícias do Rio
de Janeiro (1885-1895).
Metodologicamente, adotamos os seguintes passos: primeiro, fizemos a
transcrição do texto original mantendo a grafia da época; segundo,
empreendemos uma leitura analítica observando os seguintes critérios: a)
enunciados em que os termos archivo e escravidão aparecem reescriturados; e
209
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 Análise e discussão
4.1 Sentidos de arquivo e escravidão no texto da matéria Archivo da
escravidão
11Tomamos, aqui, a atribuição de Guimarães (2011), conforme o qual, texto “[...] é uma unidade
de sentidos que integra enunciados no acontecimento de enunciação” (GUIMARÃES, 2011, p.
19).
210
Excerto (1)12
ARCHIVO DA ESCRAVIDÃO
[...]
O mestre carpinteiro, José Francisco da Costa no acto da queima,
apresentou á comissão o africano Custodio, de 108 annos de edade,
operario da alfandega, pedindo que consentisse ter ele a satisfação
de assistir tambem á destruição completa dos attestados de
martyrio e de opprobrio da sua raça (DIÁRIO DE NOTÍCIAS DO RIO
DE JANEIRO, edição 2000, p. 01, 20 de dezembro de 1890 –
Hemeroteca Digital).
Observa-se, nesse excerto, que o termo archivo, reescrito por elipse, por
acto da queima, vem articulada à expressão definida O mestre carpinteiro, José
Francisco da Costa. A sequência, pedindo que consentisse ter ele a satisfação
de assistir tambem á destruição completa dos attestados de martyrio e de
opprobrio da sua raça possui duas reescrituras de o africano Custódio. A primeira
reescritura se dá por ele, em ter ele a satisfação; e a segunda por sua, em
attestados de martyrio e de opprobrio da sua raça. Ambas as reescrituras se dão
por substituição e se articulam a attestados de martyrio e de opprobrio. Essa
cadeia de reescrituras e articulações produzem o sentido de que a raça é
determinante da condição de escravo, nesse caso, ser africano, no sistema
escravista, foi condição para ser considerado escravo e, por conseguinte, no
pós-abolição ser africano é sinônimo de ser ex-escravo. Vê-se aqui o
funcionamento descrito por Santos (2008, p. 238), o autor comprova
semanticamente que a escravidão brasileira foi explicitamente étnica/racial,
portanto, de fato e pelo direito, ser africano na sociedade brasileira escravagista
correspondia a ser escravo. Ressalta-se que a africanidade, nesse contexto, não
é indicada somente pelo local de origem, mas, sobretudo, pela cor da pele.
Vejamos, ainda, que em ter ele a satisfação de assistir tambem á
destruição completa dos attestados de martyrio e de opprobrio da sua raça há
uma articulação entre os termos attestados e de martýrio e de oppobrio da sua
raça. Essa sequência enunciativa reescritura, por substituição, archivo como
attestados e reescritura também, por substituição, escravidão na articulação, por
coordenação, de martyrio e de oppobrio da sua raça. Ambas reescrituras,
articulam-se, por dependência, com destruição completa que é, por sua vez, uma
12 Este excerto e os demais analisados mantém a grafia original; todos os grifos são nossos.
211
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Excerto (2)
ARCHIVO DA ESCRAVIDÃO
[...]
O cidadão Clapp, abraçando-o disse-lhe que podia morrer em paz,
porque na Republica Brazileira ninguem mais poderia continuar a
infamar os seus irmãos, fazendo bandeira politica especulações
mercantis de similhante crime, porque o fogo estava encarregado
de apagar para sempre os seus vestígios dos archivos publicos
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS DO RIO DE JANEIRO, edição 2000, p. 01, 20
de dezembro de 1890 – Hemeroteca Digital).
212
Na sequência enunciativa O cidadão Clapp, abraçando-o disse-lhe que
podia morrer em paz, porque na Republica Brazileira, ninguem mais poderia
continuar a infamar os seus irmãos, fazendo bandeira politica especulações
mercantis de similhante crime, escravidão está reescriturada, por substituição,
por similhante crime, produzindo o sentido de ilegalidade do sistema escravista.
Na sequência, porque o fogo estava encarregado de apagar para sempre os
seus vestígios dos archivos públicos, escravidão está reescriturada, por
substituição, por seus. A reescritura seus, articula-se, por dependência, a
vestígios, estando este último, articulado a dos archivos publicos. Observa-se
que, apagar articulado a fogo funciona como uma reescritura de queima. Essas
reescrituras e articulações produzem o sentido de que a queima dos documentos
da escravidão representou uma tentativa de apagar as suas marcas, reiterando,
assim, uma relação de sentido na qual os documentos continuaram a reforçar a
escravidão mesmo após a abolição. Esse funcionamento pode ser ratificado na
sequência enunciativa O cidadão Clapp, abraçando-o disse-lhe que podia morrer
em paz, porque na Republica Brazileira ninguém mais poderia continuar a
infamar os seus irmãos. Nessa sequência, há três reescrituras de ex-escravo:
primeiro, por o em abraçando-o; segundo, por lhe em disse-lhe; e terceiro, por
seus irmãos. As três reescrituras se dão por substituição e se referem a africano
Custódio sendo que a reescritura de ex-escravo por seus irmãos se articula à
sequência ninguém mais poderia continuar a infamar, produzindo o sentido de
que, mesmo após a abolição houve a continuidade da infamação antes sofrida
pelos escravos e, agora, pelos ex-escravos, ou seja, a distinção entre os ex-
escravos e outras parcelas da população continuou reforçada pelos arquivos:
vestígios da escravidão que a atestavam. Dessa forma, ao queimar esses
vestígios, a ação de infamar os ex-escravos cessaria.
É possível observar, nos excertos (1) e (2), distinções quanto às
nomeações e formas de tratamento, tais como: mestre carpinteiro, cidadão e
africano, por exemplo, marcando, assim, uma relação de oposição entre
africanos (ex-escravos) e não-africanos no espaço de enunciação Brasil, no
imediato pós-abolição. Nesse sentido, o excerto (2) traz a queima dos arquivos
como algo patriótico para os cidadãos. Entretanto, o africano é posto em
diferenciação; logo, ser africano (ex-escravo) é ser não-cidadão.
A partir das análises empreendidas nesse excerto, chegamos à
construção do seguinte DSD:
213
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Abolição
┴
Archivo ┤ vestígios ┤Escravidão --- similhante crime
┴
Ex-escravo
_______________
Cidadão ┤queima
Memória Crime
┬ ┬
vestígios├ Archivo ┤ Escravidão├ africano ----- Ex-escravo
┴ ┬
queima raça
214
4.2 Sentidos de arquivo e escravidão no texto da matéria Bello exemplo
Excerto (4)
BELLO EXEMPLO
[...]
O SR. Badaró. “– SR. Presidente, não quero que ninguém entenda que,
ao levantar-me para pronunciar-me contra esta moção, eu pretenda
condemnar a obra meritoria dos abolicionistas. O que faço é
protestar contra o acto de cremação de todo o archivo da
escravidão no Brazil, porque envolve interesse histórico. Nós, em
vez de procurarmos destruir, o que é uma obra de verdadeiros
iconoclastas, deviamos ter a nossa Torre do Tombo, um edificio
destinado a recolher os papeis de todos os archivos do paiz. Somos
um povo novo, que corremos o risco de ter difficuldades para escrever
a nossa historia, porque é deploravel o que se observa em todas as
municipalidades e nas repartições das antigas provincias: por toda a
parte o mesmo abandono, o mesmo descuido, e por ultimo o facto de
mandar-se queimar grande numero de documentos que podiam
servir para se escrever com exactidão a historia do Brazil no
futuro (DIÁRIO DE NOTÍCIAS DO RIO DE JANEIRO, edição 2002, p.
01, 22 de dezembro de 1890 – Hemeroteca Digital).
215
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
interesse histórico
┬
Escravidão ┤Archivo ----- grande número de documentos
┴ ┴
História do país
Excerto (5)
BELLO EXEMPLO
[...]
O sr. LAMOUNIER GODOFREDO. – A vergonha nunca ha de deixar
de existir; não é a cremação que a fará desaparecer (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS DO RIO DE JANEIRO, edição 2002, p. 01, 22 de dezembro
de 1890 – Hemeroteca Digital).
217
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
memória
┬
Vergonha ---- Escravidão ┤Archivo
┴
História do país
218
5 Considerações Finais
6 Referências Bibliográficas
BRASIL. Lei n°. 2040 de 28 de setembro de 1871. Lei Rio Branco. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim2040.htm. Acesso em: 22 de
março de 2020.
BRASIL. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Lei Áurea. Rio de Janeiro, RJ,
mai. 1888. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm. Acesso em: 10 de
janeiro de 2020.
CARVALHO, Israela Geraldo Viana de. Mãe (ex) escrava: análise semântica de
mãe em documentos da escravidão e do período pós – abolição, 2016.
Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Vitória da Conquista, 2016.
Orientador: Jorge Viana Santos.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora Edusp, 2006. Edição
original: 1994.
220
GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido. Campinas: Pontes, 2002.
Edição original: 1995.
221
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
eu é quem diz eu
quando conversam eu e tu se tornam
alternadamente tu e eu
no silêncio a primeira pessoa é a que cala
a segunda pessoa é aquela para quem se cala
a terceira pessoa é aquela sobre quem se cala [...]
1 INTRODUÇÃO
A preocupação com as mudanças climáticas fomenta o debate mundial
sobre a relação entre preservação ambiental e a sobrevivência das gerações
futuras. Nesse cenário, circulam nas mídias diversos discursos sobre esta
temática, além de ser notória a emergência de lideranças e de uma militância
juvenil em busca do fortalecimento de políticas públicas de enfrentamento à
considerada crise climática global crescente.
Apontada pelas mídias jornalísticas como símbolo do movimento juvenil
de luta contra a mudança climática2, Greta Thunberg é uma estudante
secundarista que liderou o movimento Greve escolar pelo clima (Skolstrejk for
Klimatet), iniciado em Estocolmo, na Suécia, em agosto de 2018. Designado de
Sextas para o futuro, os protestos de Thunberg foram amplamente difundidos
pelas redes sociais, por meio da hashtag #FridayForFuture. Tais protestos
convocaram estudantes dispostos a paralisar as atividades escolares todas as
2 PAONE, M. Greta Thunberg: não deveríamos ter de faltar à aula para lutar contra a mudança
climática. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/09/actualidad/1552146532_090042.html> Acesso em:
12 de junho de 2019.
222
sextas-feiras a fim de chamar a atenção do parlamento Sueco para a
preocupação da nova geração com as mudanças climáticas.
Inicialmente, o objetivo de Thunberg era o de forçar o parlamento sueco
a assinar um importante tratado internacional, o Acordo de Paris3, no qual alguns
países se comprometeriam a desenvolver políticas de preservação ambiental.
No entanto, o discurso de Greta alcançou proporções mundiais, inspirando e
mobilizando outras lideranças juvenis ao redor do mundo.Com isso, ela se
engajou em um ativismo que busca pressionar líderes mundiais a adotarem
medidas que estimulem novos hábitos de consumo e de alimentação, a
preservação ambiental e a redução da emissão de poluentes. Além disso, Greta
e seus seguidores alertam a comunidade internacional sobre os riscos da
sobrevivência na terra diante da ameaça do aquecimento global. Thunberg se
tornou, destarte, a mais significativa voz da nova geração na luta contra as
mudanças climáticas, frequentando, por exemplo, encontros de líderes da
economia global, como a Cúpula do Clima, realizada na Polônia, e o Fórum de
Davos, na Suíça4.
Diante do exposto, nossa pesquisa visa a analisar, no discurso político de
Greta Thunberg e dos demais ativistas secundaristas como ela, a construção de
comunidades enunciativas em torno da temática sobre a crise climática mundial.
Especificamente, nosso intuito é o de explicitar o jogo de formas que constrói a
figura do sujeito da enunciação, como essa figura organiza sua simbolização e
as representações comunitárias que este pretende validar. Para tanto,
analisaremos o artigo publicado pelo jornal El País, em março de 2019, intitulado
Não podemos esperar (vide anexo), no qual vislumbramos a existência de uma
variada atribuição subjetiva revelada nas diferentes funções enunciativas, bem
como uma heterogeneidade abarcada pelo pronome nós. Esses traços
enunciativos da marca pronominal apontam para a construção de uma
comunidade de resistência, por meio do valor de coletividade referenciado por
três distintos empregos do nós, isto é, três nóscaptações.
3Acordo de Paris foi assinado por 195 países parte da UNFCCC que se comprometeram a
reduzir as emissões de gases de efeito estufa e a buscar alternativas para o desenvolvimento
sustentável. Disponível em: < //www.mma.gov.br/clima/convencao-das-nacoes-unidas/acordo-
de-paris >. Acesso em: 12 de agosto de 2019.
4BRUM, E. As crianças tomam conta do mundo. Disponível em:<
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/27/opinion/1551290093_277722.html>. Acesso em 12
de junho de 2019.
223
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
2 QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO
É de praxe depararmo-nos com a afirmação que os estudos sobre
enunciação consideram as relações de um indivíduo com o outro, de um
indivíduo com a língua e de um indivíduo com o mundo via língua. De maneira
mais aprofundada, Flores e Teixeira (2017) caracterizam a linguística da
enunciação (doravante LE) como a abordagem do fenômeno enunciativo na
linguagem desde um ponto de vista que considere o sujeito que enuncia.
A esse respeito, porém, os autores advertem que é preciso esclarecer que
o sujeito não é propriamente o objeto de estudo de uma teoria linguística, mas
sim a representação que a enunciação oferece dele. Nesse sentido, são
analisadas, na LE, marcas subjetivas em um dado enunciado, buscando
evidenciar as relações da língua como linguagem assumida por um sujeito numa
ocorrência contextual. Dito de outra forma, as marcas da enunciação no
enunciado têm a especificidade de remeter à instância em que tais enunciados
são produzidos, fazendo irromper o sujeito da enunciação, isto é, o sujeito da
224
linguagem, que não é o mesmo que um indivíduo empírico, um ator social, um
“ser de carne e osso” de determinado discurso.
Devido a isso, os pesquisadores explicam que o objeto desta linguística é
heterogeneamente constituído, pois ele atém-se a todo mecanismo linguístico
cuja realização integra o seu próprio sentido e se autorreferencia no uso.
Ademais, a enunciação é sempre única e irrepetível, porque a cada vez que a
língua é enunciada tem-se condições de tempo (agora), espaço (aqui) e pessoa
(eu/tu) únicos. Assim, cada análise da linguagem é única também, sendo da
ordem do repetível apenas a organização do sistema da língua. Desse modo, a
enunciação apresenta-se como uma reflexão sobre o dizer e não propriamente
sobre o dito. Conforme elucidam Flores e Teixeira (2017), o estudo do dito é
relevante para que, por intermédio dele, se chegue ao dizer, à enunciação.
Flores (2001) sistematiza a LE distinguindo campo de estudos, no qual
coexistem teorias, das teorias da enunciação. De acordo com ele, o campo da
linguística da enunciação apresenta como traços comuns: a problematização
langue/parole para a formulação de suas teorias; a tentativa de definir um
domínio conceitual que inclua o termo enunciação; e a instauração das relações
da linguística com a filosofia da ciência, devido à discussão em torno da
subjetividade na linguagem. Já como teorias, o autor cita as abordagens de
Benveniste, Ducrot ou Jakobson, por exemplo. Como o interesse deste estudo
recai sobre a atividade enunciativa do nós, ancoramo-nos na teorização de
Dahlet (2016) acerca da nóscaptação. A respeito do método de análise da LE,
Flores e Teixeira (2017) explicam que ele pertence a cada teoria em particular,
pois o método é o ponto de vista com base no qual o objeto será examinado, e
isso depende das relações epistemológicas que cada teoria instaura com: as
demais teorias de seu campo, com os outros campos da linguística e mesmo
com outras áreas do conhecimento.
Dahlet (2016), na esteira de Benveniste, defende que a realidade do
termo nós está longe de remeter a uma simples combinação ou a uma comunhão
fusional de indivíduos distintos, porque a realidade a qual ele refere, assim como
ocorre com os outros marcadores pessoais, não é extralinguística, mas
unicamente uma realidade de discurso. O senso comum, ajudado pela
denominação gramatical primeira pessoa do plural, compreende,
contrariamente, que o nós realiza a fusão de uma coleção de sujeitos distintos
225
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
3 ANÁLISE
O artigo Não podemos esperar, publicado no caderno Opinião do jornal El
País, pode ser considerado um discurso político (CHARAUDEAU, 2012), pois
está ligado à organização da vida social governamentada e é, ao mesmo tempo,
lugar de engajamento do sujeito, de justificação do seu posicionamento e de
influência do outro. Nele, o engajamento pela causa climática visa a persuadir o
interlocutor a aderir ao movimento.
Percebemos, no artigo em questão, atribuições subjetivas variadas,
atreladas principalmente ao pronome nós, enunciado diversas vezes. Isso ocorre
227
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
229
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
230
agregar “Aqueles [...] que têm menos de 20 anos hoje” (THUNBERG et al.,
2019):
por serem os grevistas que estão abandonando as salas de aula e indo para as
ruas:
233
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No texto analisado, há a existência de um jogo enunciativo estabelecido
pela multiplicidade de valores de referência para a marca pronominal nós, que
constrói, consequentemente, uma comunidade na enunciação. De acordo com
Dahlet (2016), as comunidades marcadas pelo nós podem até chegar a se
confundir com a totalidade da massa falante humana, mas, na verdade, devido
ao fluxo ininterrupto delas e da reiteração das conversões que localizam,
aglutinam e/ou separam, a maioria dessas comunidades, qualquer que seja sua
dimensão, são ilhadas e transitórias, temporariamente determinadas pelas
necessidades enunciativas do eu político, e destinadas a ser reformuladas
e/ou trocadas pelo contingenciamento de todas as outras no discurso.
Nesse sentido, podemos depreender que tal jogo culmina na construção
da comunidade de desobediência, uma vez que, em nosso corpus, as formas de
construção de coletividades feitas pelo sujeito da enunciação agregam
interlocutores (não eus aos eus do nós) de maneira amplificada ou inclusiva.
Para Dahlet( 2016), o nós, ao operar a dissimulação de uma multiplicidade
fantasmagórica, estabelece uma relação de forçado locutor, uma vez que quem
fala não é uma coletividade nem o co-enunciador, mas um eu enunciador
dilatado que fabrica outros índices com vistas a alcançar maior adesão de seu
discurso e a agregação de outros sujeitos ao seu ponto de vista.
Em outras palavras, podemos concluir que a comunidade formada por tal
coletividade é uma comunidade de resistência, visto que as
nóscaptaçõesenunciativas são todas simbolizadas, qualitativa e
quantitativamente, com a finalidade de inserção discursiva de uma reação que
leve os interlocutores e os co-enunciadores a juntarem-se à tal comunidade de
existência subjetiva. Dessa forma, o discurso político analisado evidencia a
234
relevância do exercício da democracia cidadã, por meio da formação de uma
comunidade enunciativa que debate sobre as questões climáticas mundiais.
REFERÊNCIAS
235
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
ANEXO
Aquele primeiro dia de se recusar a ir à escola foi um dia de solidão, mas desde
então o movimento dos grevistas pelo clima varreu o planeta. Hoje, jovens de
mais de 90 países deixam suas salas de aula para exigir medidas em face da
maior ameaça que enfrentamos. Hoje fazemos greve de Londres a Kampala, de
Varsóvia a Bangcoc, porque os políticos nos decepcionaram. Presenciamos
anos de negociações, acordos lamentáveis sobre a mudança climática,
empresas de combustíveis fósseis com carta branca para abrir e perfurar nossas
terras e queimar nosso futuro em benefício próprio. Vimos que as fraturas
hídricas, a perfuração em águas profundas e as extrações de carvão continuam.
Os políticos sabem a verdade sobre a mudança climática e entregaram
voluntariamente o nosso futuro a especuladores cuja ânsia por dinheiro rápido
põe em perigo a nossa existência.
Não se trata apenas de reduzir emissões, mas de justiça; o sistema atual não
funciona, porque só beneficia os ricos. O luxo desfrutado por alguns poucos no
norte do planeta depende do sofrimento das pessoas que vivem no sul. Vimos
políticos hesitarem e se dedicarem a jogos políticos em vez de reconhecerem
que as soluções de que necessitamos não podem ser encontradas no sistema
atual. Não querem encarar os fatos: para tentar fazer algo diante da crise
climática precisamos mudar o sistema.
236
Este movimento era inevitável, não tínhamos outra escolha. A imensa maioria
dos que fazem greve hoje pelo clima ainda não pode votar. Apesar de ver a crise
climática, apesar de conhecer a realidade, não estamos autorizados a escolher
quem tomará as decisões a respeito. Faça a você mesmo esta pergunta: também
não faria greve se pensasse que poderia ajudá-lo a garantir o seu futuro? É por
isso que hoje vamos abandonar as salas de aula, esquecer as lições e sair às
ruas para gritar “Basta!”. Os adultos não param de dizer: “Temos a obrigação de
dar esperança aos jovens”. Mas nós não queremos a esperança deles. Não
queremos que tenham esperança. Queremos que sintam pânico e façam
algo.Acreditamos que os adultos tomariam as decisões apropriadas para garantir
o futuro da próxima geração. É claro que não temos todas as respostas. Mas o
que sabemos é que precisamos manter os combustíveis fósseis no subsolo,
eliminar gradualmente os subsídios à produção de energias sujas, investir
seriamente nas renováveis e começar a fazer perguntas desconfortáveis sobre
como estruturamos nossas economias, quem sai ganhando e quem sai
perdendo.
É muito importante que façamos tudo isso já. As mudanças necessárias exigem
que todo mundo esteja consciente de que isto é uma crise e se comprometa a
fazer transformações radicais. Acreditamos firmemente que podemos salvar o
planeta, mas temos de agir agora.
Quando a nossa casa está em chamas, não podemos deixar que sejam as
crianças que as apaguem; precisamos que os adultos se responsabilizem. Não
há zonas cinzentas quando a sobrevivência está em jogo. Não existe mal menor.
É por isso que hoje os jovens fazem greve em todos os cantos do mundo, e é
por isso que pedimos aos mais velhos que se juntem a nós nas ruas. Quando a
nossa casa está em chamas, não podemos deixar que sejam as crianças que as
apaguem; precisamos que os adultos se responsabilizem por terem acendido a
faísca. Assim, por uma vez, peçamos aos adultos que sigam nosso exemplo:
não podemos continuar esperando.
Assinam este artigo: Greta Thunberg (Suécia), Anna Taylor (reino Unido), Holly
Gillibrand (Reino Unido), Luisa Neubauer (Alemanha), KyraGantois (Bélgica),
Anuna de Wever (Bélgica), Adelaide Charlier (Bélgica) e Alexandria Villasenor
(Estados Unidos).
237
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Introdução
1 A Cena Enunciativa
239
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1
Para os fins deste trabalho, não distinguiremos os pares sujeito enunciador e coenunciador;
locutor e interlocutor, as quais serão empregadas de forma equivalente.
240
A possibilidade de que o discurso possa se manifestar de várias formas é
indissociável das forças reguladoras que compõem o interior dos domínios
sociais em que os textos são produzidos. Por isso,
Dito isso, por ser no terreno da linguagem que a fala política se consolida, é
necessário indagar em que medida a encenação desse discurso é moldada
241
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 Análise do corpus
242
Nessa ilustração, observa-se que a cenografia se dá por meio da
construção imagética da capa de um livro de receitas, nomeado como “50
receitas de Boulos para mudar o Brasil”. Já no título, identificamos o uso da
paronomásia, figura de estilo que permite a aproximação de palavras distintas,
no caso Boulos e bolos, vocábulos que apresentam uma pronúncia similar. Tal
recurso confere ao “livro de receitas” um tom lúdico, por meio de um jogo de
palavras que se vale de substantivos de naturezas distintas, um simples (bolos)
e um próprio (Boulos), o que é reforçado pela configuração da capa, composta
de uma variedade de bolos que circulam os candidatos presidenciáveis, os quais
são apresentados de forma centralizada por meio de uma fotografia
representativa, na qual ambos estão com “a mão na massa”. É o conjunto desses
traços que consolida e cenografia mobilizada como um componente que integra
e orienta o desenvolvimento da sua própria enunciação.
244
uma marca de nóscaptações (Dahlet, 2016), categoria enunciativa que
possibilita a integração do individual e do coletivo (Nós=eu+vocês), o que nos
permite destacar que, no discurso político,
que construam sua credibilidade aos olhos dos interlocutores, no intuito de captá-
los. Já a promessa tem como finalidade estabelecer ações que deverão ser
executadas futuramente pelos locutores. Tendo em vista que o ato de declarar
relaciona-se com a detenção de um saber, a suposição da ignorância desse
saber e esse saber possui uma verdade variável em relação ao locutor e ao
interlocutor (CHARAUDEAU, 2014), é necessário considerar que
246
Figura 2: (BOULOS; GUAJAJARA, 2018, p.09)
248
Considerações Finais
Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, Hugo;
MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato de (Orgs). Análise do discurso:
fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso,
Poslin/Fale/UFMG, 2001.
249
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
250
A TELENOVELA DONA BEIJA:
PERSPECTIVAS DE LEITURA, ANÁLISE E ENSINO
Jocyare Souza
UninCor
252
No século XIX, na cidade mineira de Araxá, viveu Anna
Jacintha de São José, afilhada de Nossa Senhora (cap1. 01). Nascida
a 02 de janeiro de 1800, era filha de Maria Alves de São José e pai
desconhecido. Considerada anfitriã dos doentes e necessitados, uma
santa, sobretudo para os pobres (cap.66), a mais virtuosa das
mulheres(cap. 08) por uns, , e encarnação do mal (cap. 31) por
outros, tornou-se instrumento de beleza e sensações abismais (cap.
04). A comparação que dela faziam ora com a flor beijo, ora com o
pássaro beija-flor teria inspirado seu avô paterno, quando ela era
ainda uma criança, a apelidá-la Bêja (cap. 01). Opondo-se aos
costumes das jovens casadoiras, tornou-se noiva do seu primeiro e
grande amor, Antônio Fernandes de Sampaio, com quem pretendia,
virgem, se casar (cap. 01). Dele foi covardemente separada por
Joaquim Ignácio Silveira da Mota, ouvidor da corte (cap. 01) que,
enfeitiçado por sua beleza, ordenou seu rapto (cap. 01). Em
Paracatu, o ouvidor instalou Bêja, tão angelical quanto diabólica (cap.
10), como sua amante de luxo (cap. 03). Diamante de carne e osso
(cap. 05), lapidou-a: cobriu-a de joias, de sedas e veludos; educou-a
como uma dama e a treinou conforme os costumes da corte. Quando
abandonada por Mota, foi vítima da incompreensão e intolerância do
povo, sobretudo das damas da sociedade do Arraial de São
Domingos dos Araxás que se opuseram ao seu retorno,
considerando-a indesejada (cap. 14), fato que marcou
profundamente seu caráter e determinou o rumo que sua vida
tomaria a partir de então. De noiva do ouvidor (cap. 03) passou a
rapariga de luxo (cap. 13). Assumiu seus encantos como sendo
beleza do demônio (cap. 15); decidiu por prostituir-se. Dali em diante,
ela se tornaria Dona Bêja, a mulher-dama (cap. 29) que povoaria os
254
O DSD: um percurso enunciativo das reescrituras do nome Anna Jacintha
de São José
255
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
feiticeira [ɸ]
┴
rapariga [de luxo]
┴
pecadora [pública]
┴
ousada [por ir para a cama sem o lençol]
┴
instrumento de beleza e sensações [abismais]:
(“ah! o gineceu de D. Bêja...”.)
┴
Anna Jacintha de São José ├ Bêja
256
Consideremos enquanto leitura do DSD - reescriturações de Anna
Jacintha de São José enunciam ‘Dona Bêja’ enquanto sujeito de subversão - o
símbolo ┤, em qualquer direção, significa determina: feiticeira determina rapariga
de luxo determina pecadora pública determina ousada por ir para a cama sem o
lençol determina instrumento de beleza e sensações abismais determina Bêja
determina Anna Jacintha de São José. O nome Anna Jacintha de São José
articula, pelo recurso de substituição, com todas as reescrituras do DSD
[feiticeira, rapariga de luxo, pecadora pública, ousada por ir para a cama sem o
lençol, instrumento de beleza e sensações abismais, Bêja]. As reescrituras do
nome Anna Jacintha de São José estabelecem com o nome Anna Jacintha
de São José uma relação de sinonímia. Importante observar nas anáforas que
reescrituram o nome Anna Jacintha de São José a presença do recurso de
definição [rapariga [de luxo], pecadora [pública], ousada [por ir para a cama sem
o lençol], instrumento de beleza e sensações [abismais]] ou do recurso de elipse
[feiticeira [ɸ]. O símbolo ɸ marca uma omissão.
Consideremos enquanto ambientação – séc. XIX, Sertão das Minas
Gerais, mais especificamente, Arraial de São Domingos dos Araxás -: Em
Portugal, ainda como medida normatizadora dessas relações sexuais, ritualizou-
se o Sacramento da Confissão com a criação do Confessionário e do Manual do
Confessor.
No Confessionário, uma lista de questionamentos era utilizada pela Igreja
a fim de conduzir a confissão, “se falou palavras torpes com ânimo lascivo. Se
se ornou com ânimo de provocar a outrem a luxúria em comum ou particular. Se
fez jogos de abraços e outros semelhantes” (ARAÚJO, 2008, p. 51).
O Manual do Confessor, formulado com a intenção de orientar os casais
casados em como se portar maritalmente, tratava, eficazmente, de anular
qualquer procedimento erótico entre marido e esposa. Nele, regras rígidas
proibiam o controle das famílias por meio do coito interrompido, o toque entre os
corpos, ressaltando a ausência total de carícias, inclusive o beijo. A paixão
estava relacionada à proliferação das doenças. O século XIX se sustenta
hierarquicamente pelo culto aos valores da Igreja e depois aos da Ciência que
determinavam comportamentos ora a favor dos bons costumes, ora a favor do
higienismo. Só o casamento poderia ser receptor do sexo higiênico e decoroso.
A medicina e a Igreja se uniam em favor da manutenção de normas moralizantes
em contenção à aclamação corporal, enaltecendo um discurso de censura com
257
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Considerações Finais
260
sociais. Dentro dessa concepção, a inclusão social nos obriga a sermos
locutores e interlocutores capazes de usar a língua materna para compreender
o que ouvimos, lemos e para nos expressarmos em variedades e registros de
linguagem coerentes com diferentes situações comunicativas. Torna-se
imprescindível, portanto, compreender a linguagem como atividade interativa em
que nos estabelecemos como sujeitos sociais. Os gêneros textuais são formas
verbais escritas e orais encontrados na rotina social, dotados de padrões
característicos, em termos sociais e comunicativos, definidos por sua
composição, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados por
forças históricas, sociais, institucionais e tecnológicas. Quando se trabalha com
a noção de gêneros textuais, dentre eles a telenovela, é possível abordar
diferentes aspectos e usos da língua.
Ao propormos que o método de leitura e análise apresentado – Domínio
Semântico de Determinação (DSD) - seja trabalhado em sala de aula em caráter
interdisciplinar e multidisciplinar, objetivamos estimular o aluno a ampliar sua
capacidade de uso da língua, motivando o domínio de habilidades de leitura,
análise e escrita que contemplem a comunicação em diferentes gêneros
textuais, sobretudo, os de domínio público.
O método de leitura e análise apresentado – Domínio Semântico de
Determinação (DSD) constitui-se posição mais ampla sobre o lugar do texto no
ensino: “analisar textos é um caminho para se pensar sobre as questões que nos
interessam” (Guimarães, 2011, p.145). Mobiliza, conforme foi possível verificar
na seção - O DSD: um percurso enunciativo das reescrituras do nome Anna
Jacintha de São José - a amplitude e complexidade da prática de leitura e
análise em diferentes possibilidades no ensino, sendo importante reflexão
teórica e metodológica sobre a relação entre língua e linguagem, entre língua e
texto, entre língua e subjetividade. Viabiliza ao leitor, enquanto locutor e
interlocutor, posicionar-se mediante o texto: alterando, comparando,
confrontando, posicionando criticamente, ressignificando.
Acreditamos ser esse o trabalho da escola na formação do sujeito social
que lê, que analisa, que escreve.
261
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Referências
ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In:
DEL PRIORE, Mary (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2008.
ALMEIDA, Ricardo Santos de. 2005. Dona Beija: A Feiticeira do Araxá que
conquistou o Brasil. Revista Veja, São Paulo, abril 1986. Disponível em:
http://redemanchete.net/artigos/artigo.asp?id=95&t=Dona-Beija-A-Feiticeira-do-
Araxa-que-conquistou-o-Brasil--(Revista-Veja) Acesso em: 12.01.2019
BOTELHO, José Francisco. Bruxas por trás da caça. Super Interessante. 2007.
Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/bruxas-por-tras-da-caca/
Acesso em: 09.02.2019
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2008.
DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia: o corpo feminino. In: DEL
PRIORE, Mary (org). História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo:
Contexto, 2008a.
262
GUIMARÃES, Eduardo. Domínio Semântico de Determinação. In: Guimarães,
E. e Mollica, C. (Orgs.). A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes, RG
Editores, 2007.
263
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
INTRODUÇÃO
265
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
266
como uma atividade que constrói a significação” (CULIOLI, 1976, p. 07)3, e, em
sua relação com as línguas naturais, permite a construção de significação por
meio das línguas, uma vez que os sentidos só podem ser acessados por meio
dos textos, os quais, por sua vez, são constituídos de marcadores, haja vista
que,
A linguagem é uma atividade que pressupõe, ela mesma, uma eterna
atividade epilinguística (definida como “atividade metalingüística não
consciente”) assim como uma relação entre um molde (a competência
tomada como, a apropriação e a propriedade obtidas a partir de um
sistema de regras sobre as unidades) e sua efetivação (a performance)
da qual temos rastros fônicos ou gráficos, os textos. (CULIOLI, 1999a,
p. 19)4
3No original: L’ activité de language dans son rapport à la linguistique est cett activité qui construit
la significacion. (CULIOLI, 1976, p.7).
4No original: “Le langage est une activité qui suppose, elle-même, une perpétuelle activité
épilinguistique (défini comme « activité métalinguistique non consciente »), ainsi qu’ une relation
entre um modele (la compétence, c’est-adire l’ appropriation et la maîtrise acquise d’un système
de règles sur dês unités) et as réalisation (la performance don’t nous avons la trace phonique ou
graphique, des texts.)” (CULIOLI, 1999a, p.19).
267
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
5No original: “Cela signifie que nous accordons, nous ajustons les um aux autres, de sorte que
nos représentations subjectives sointe à portée d’autrui” (CULIOLI, p.92. T3).
6É o termo que Culioli usa para designar o saber inconsciente que todo sujeito falante possui.
268
As noções são sistemas de representações complexos de
propriedades físico-culturais, isto é, de propriedades de objetos
resultantes de manipulações necessariamente tomados no interior das
culturas e, dessa maneira, falar de noção é falar de problemas que são
de domínio de disciplinas que não podem se limitar só e unicamente à
Linguística. (CULIOLI, 1990, p. 50) 7
7 No original: Les notions, de leur cote, sont dês systèmes de representation complexes de
proprietés physico-culturelles, c’est-a-dire dês proprietés d’objet issues de manipulations
necessairement prises à l’ intèriuer de cultures et, de ce point de vue parle de notion c’est
problèmes qui sont du ressort de isciplines qui ne pás peuvent pás être ramenèes uniquent à
lalinguistique. (CULIOLI, 1990, p.50)
8No original: “A ces domaine, pusant dans la notion, est associèe une classe d’ occurrences; ces
domaine ne sont apprèhendables qui à travers les occurrences qu permettent leur constituition.”
(CULIOLI, 1990, p.53).
269
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
270
explícitos”, sendo que, por meio dessas manipulações das representações, são
instituídas as manifestações metalinguísticas, constituídas na articulação das
línguas naturais com a linguagem, como propõe Culioli.
271
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Sob esse enfoque, a significação pode ser definida como um jogo entre a
plasticidade e estabilidade, de modo que a linguagem opera de maneira
dinâmica e processual. A significação depende das experiências dos sujeitos
envolvidos no processo enunciativo. As interações linguageiras vão adquirindo
sentidos à medida em que os sujeitos, através do processo de regulação,
reorientam o valor da formalização, perpassa pelo plano experiencial,
atravessando o processo de abstração e retornando ao plano experiencial com
um novo valor. Com efeito,
272
A significação não existe a priori; está sempre sendo construída e
reconstruída no momento único de cada enunciação manifestando-se
nos jogos de variância e invariância dos fenômenos linguísticos, ou
seja, na articulação entre linguagem (entendida como processo) e
línguas naturais (produto linguístico). (BIASOTTO, 2014, p. 99).
4 A ANÁLISE
273
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
30No original: DE VOGÜÉ. Les principes organisateurs de lavariété des constructions. Tradução
de Márcia Romero e Helena Valentim. In: DE VOGÜÉ. Os Princípios Organizadores da
Variedade das Construções Verbais. ReVEL, 2011.
274
Como última consideração, também lembramos que, apesar de termos
feito a análise com um marcador específico, estamos cientes de que os sentidos
que são proliferados nos enunciados são instituídos pela interação entre os
diferentes marcadores que se fazem presentes no mesmo e na relação
intersubjetiva, que constituem, cada um, operações díspares. Cabe então
esclarecermos que a análise do marcador ‘puta’ se dá dentro de enunciados,
logo, nosso objeto de análise não é apenas o marcador, mas o enunciado em
que o marcador se faça presente, ou seja, o contexto explícito.
Apresentamos, a seguir, o primeiro enunciado em análise.
(1) Vi, bem quietinho bebendo com uma puta loira! -Você disse
puta loira? - Não, loira puta.
275
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
puta loira, isso que é beber bem bebido.”ou “Aquilo que é beber, até eu beberia,
ainda mais com uma loira daquela!”.
Ressalte-se que, dentro do enunciado (1), há três enunciados que se
complementam e alteram o sentido da ocorrência. Caso o coenunciador não
esteja ciente dessa alteração, o enunciador a introduz, ajustando a
representação, do ponto de vista intrassubjetivo. Por essa razão, podemos ter
um esquema A B A ou A B B (nesse último caso, o mesmo sujeito fala e corrige
o que disse) e, de um certo modo, é “loira puta” que estabiliza a significação.
Porém, ‘puta’ em ‘puta loira’ eleva essa ocorrência ‘loira’ ao alto grau da noção
<ser loira>. É como se ela fosse o exemplar do que é ser loira e, por extensão,
bonita, pois na cultura ocidental, a propriedade física <ser loira> pode estar no
mesmo domínio de <ser bonita>.
Em síntese, o enunciado (1) revela as diferenciações qualitativas sobre
‘puta’ evidenciando que o marcador estabiliza a significação com o sentido
pejorativo, mas, em certo momento, também o estabiliza como qualitativo
hiperbólico, de modo que no momento em que o marcador ‘puta’ é colocado
como qualitativo hiperbólico o mesmo atinge o alto grau da noção <ser puta>
não sendo possíveis outras qualificações.
(2) Puta também vota, o senhor sabe. Pode não ser de qualidade,
mas é voto.
Vemos a partir desse enunciado que o marcador ‘puta’ atinge o alto grau,
ou seja, o adjetivo marca o ponto em que “marido” já superou toda qualificação
possível.
‘Puta’, aqui, é caracterizado como ‘verdadeiramente marido’, atingindo-se
o alto grau, e nenhuma outra qualificação é mais viável. Não há mais como
realizar considerações, comparações entre quaisquer outras ocorrências de
‘marido’, pois ‘puta” o coloca numa posição em que avaliações não são mais
possíveis. Ficam superadas (bloqueadas), nesse caso, todas outras hipóteses
de qualificação.
Vemos a partir desse enunciado que “má sorte” focaliza o evento ser
azarado, sem sorte, logo, o enunciado (4) traz como intuição o conteúdo
estabilizado de alguém que não teve muitas oportunidades na vida, alguém que
convive com constante azar.
277
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Nesse sentido, “má sorte” coloca em relação alguém com sorte (todo
aquele que não é puta) e alguém sem sorte (todos aqueles que são putas).
Portanto, o sujeito enunciador ao inserir a qualificação “má sorte” ao marcador
‘puta’ o estabiliza.
A partir dessa estabilização, podemos ter:
(4.a.) Culpa do azar ter sido puta.
(4.b.) Falta de sorte não ter deixado de ser puta.
Percebe-se que em todas as ocorrências (4, 4.a, 4.b) o marcador ‘puta’
se estabiliza por causa da articulação com “má sorte” que qualifica a ocorrência
de puta como azar, azar demais, pois todo aquele que desfruta de sorte, a partir
das intuições de sentidos proliferadas do enunciado, não é puta. O valor
detrimental intuído através de “má sorte”, que vem do centro organizador do
domínio de puta, é desfavorável ao evento “não ser puta”.
Em síntese, o enunciado 4 e suas paráfrases revelam as diferenciações
qualitativas sobre ‘puta’, evidenciando que “má sorte” estabiliza a significação
com o sentido pejorativo. E, também, a partir da marca aspectual, “ter sido”,
apresentada na sequência enunciativa um evento já concretizado no passado.
Ou seja, evidencia a intuição de existência de representação que, na retomada
está sendo reorientada, confirmando a intuição de existência de representação.
278
ou negativamente outro marcador, a depender da posição que ocupa no
enunciado, ou seja, quando anteposto ou posposto. Nesse modelo, são as
possibilidades de articulação, as diferenciações ou as não-diferenciações que
determinam sua estabilização de sentido.
A partir das análises, podemos afirmar que o marcador ‘puta’ adquire
diferentes sentidos em função das circunstâncias em que a sequência
interpretável (o texto) o estabiliza. Desse modo, a propriedade que o marcador
‘puta’ estabiliza é construída na enunciação, de acordo com as modalizações e
regulações do sujeito enunciador em relação ao que está sendo qualificado, pois
se fundamenta no plano enunciativo e não apenas no marcador. A identificação
dos sentidos ocorre por meio das representações semânticas, das
diferenciações, que perpassam o marcador no texto em que se faz presente.
O estudo do marcador ‘puta’ aponta para dois caminhos distintos de
estabilização:
(i) O qualitativo pejorativo (determinista, portanto) que sempre carrega
propriedades que remetem à prostituição e que se confirmam pela
experiência de mundo e de língua dos sujeitos. Logicamente, a
estabilização de sentido também depende do contexto cultural e
das representações do sujeito enunciador. Os enunciados (2) e (4)
seguem nesse caminho.
(ii) O hiperbólico (não qualificador, portanto), que rompe com a ideia
de que o adjetivo atribui qualidade. Isso se confirma quando
observamos que nem toda ocorrência de ‘puta’ permite a
diferenciação qualitativa, principalmente quando se eleva o termo
localizado ao status de uma ocorrência próxima ou igual ao alto
grau (valor absoluto ou central da noção) que ele, abstratamente,
representa. É o caso dos enunciados: (1) e (3).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
279
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
REFERÊNCIAS
280
CUMPRI, M. L. Algumas reflexões sobre léxico e gramática. In: Entrepalavras.
n.1. vol.2. Fortaleza: CE. 2012. p. 41-50.
281
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Jucineia Seraglio2
Neuza Zattar3
1 INTRODUÇÃO
282
Nesse interim, os meios de comunicação virtual, vistos como símbolos de
sociabilidade humana, lugar de trocas de informações, tornando “pontes” entre
pessoas distantes, é também, um espaço de enunciação numa relação entre
falantes e as línguas.
Desse modo, propomos realizar um estudo enunciativo sobre a formação
nominal fake news, conceituada por alguns estudiosos como notícia falsa, que
circula não só no mundo eletrônico das redes sociais, como em revistas e jornais
no país, bem como observar como a formação nominal fake news é construída,
a partir dos elementos que a agregam, além de examinar nos enunciados/textos
os sentidos que as disciplinam, na perspectiva da Semântica da Enunciação
(GUIMARÃES, 2002, 2017, 2018) e nos construtos teóricos desenvolvidos por
Dias (2009, 2013, 2015).
digitais dissociada da criticidade agravou o fenômeno fake news, pois elas geram
“bolhas”5 de percepções com equívocos e perigos que tendem para o
comprometimento da saúde social (de forma individual e coletiva), conduzindo
os sujeitos à prática deliberada de fake news.
Nesse cenário de proliferação de fake news, a imprensa jornalística
procura aprimorar os métodos de filtragem das informações, com vistas a trazer
a sua própria credibilidade, hoje em risco mais uma vez. Conforme Souza (2017,
p.01)6:
5 Para Beslay e Hakala (Apud Ferrari 2018, p. 18) bolha era descrita como “uma membrana
semitransparente que pode ser sintonizada para funcionar de modo diferente dependendo do
movimento e direção dos dados”. Segundo Santaella (Idem, p19) o conceito de bolhas
gradativamente se modificou com o advento das redes sociais para a detecção da “forma
mentis do usuário” – que vasculham o histórico de buscas do usuário, comprometendo assim
a sua privacidade.
6 SOUZA, Rogério Martins de. Investigando as fake news: análise das agências fiscalizadoras
de notícias falsas no Brasil. 2017. Disponível em:
http://portalintercom.org.br/anais/sudeste2017/resumos/R58-0343-1.pdf.Acesso em:
ago.2018.
284
do senador Ciro Nogueira (PP), que pretende alterar o Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para tipificar o crime de divulgação de
notícia falsa”7.
Art. 287-A - Divulgar notícia que sabe ser falsa e que possa distorcer,
alterar ou corromper a verdade sobre informações relacionadas à
saúde, à segurança pública, à economia nacional, ao processo eleitoral
ou que afetem interesse público relevante.
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa, se o fato não
constitui crime mais grave.
§ 1º Se o agente pratica a conduta prevista no caput valendo-se da
internet ou de outro meio que facilite a divulgação da notícia falsa:
Pena – reclusão, de um a três anos, e multa, se o fato não constitui
crime mais grave.
§ 2º A pena aumenta-se de um a dois terços, se o agente divulga a
notícia falsa visando a obtenção de vantagem para si ou para outrem.
10 Tradução nossa - fake news: “false, often sensational, information disseminated under the
guise of news reporting”. Disponível em:
https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/fake-news. Acesso em: set.2018.
11Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/tratamento-juridico-noticias-falsas.pdf. Acesso
em: set.2018.
12 Cf.: https://epocanegocios.globo.com/colunas/noticia/2018/03/fake-news-revendedores-de-
realidade-e-noticias-falsas.html. Acesso em: set.2018.
13 Pesquisadores já colocam até em xeque a fama Dom João VI, de comedor de coxinhas de
galinha, pois não haveria a comprovação. Carlota Joaquina, sua esposa, também não teria se
envolvido em tantas aventuras extraconjugais como a história conta. Disponível em:
https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/fake-news. Acesso em set.2018.
286
Pedro I e Pedro II foram envolvidos em alguns comentários maldosos de
adversários, colocados na época como inverídicos.
Destacamos que o fenômeno “fake news” viralizou nas redes sociais a
partir do seu emprego pelo presidente Trump que, ao se dirigir aos jornalistas
credenciados, no espaço da Casa Branca, na cidade de Washington, disse: “You
are fake news”, propagando-se em todos os espaços midiáticos possíveis.
Nesses dizeres, a história reclama sentidos e, se por um lado a linguagem
fala de alguma coisa, por outro, temos a incompletude da linguagem. Pois, o que
se diz é incontornavelmente construído na linguagem, visto que os sentidos não
são fechados, podem ser outros.
3 O QUADRO TEÓRICO
287
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 REDES ENUNCIATIVAS
Trazemos dois enunciados/textos veiculados na mídia:
289
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
291
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
292
Luiz Francisco Dias. Enunciação e forma linguística. Revista de Estudos da
Linguagem. Belo Horizonte, v.21, n.1, jan-jun, p.223-238, 2013.
FERRARI, Polyana. Como sair das bolhas. Fortaleza: Armazém de cultura, 2018.
FILHO, Otávio Frias. O que é falso sobre fake news. In: Revista USP. São Paulo.
Nº 116, p.39-44. Janeiro/fevereiro/março 2018.
293
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Adilson Ventura
(UESB/PPGLin/ProfLetras/GEPES)
Introdução
295
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
2Pseudônimo utilizado por Gloria Jean Watkins. Segundo a autora, é grafado em letras
minúsculas a fim de deslocar o foco da figura autoral para suas ideias.
296
1 Semântica do Acontecimento
297
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
O enunciador enquanto lugar do dizer apaga para o locutor que ele fala
de um lugar social e se apresenta de três maneiras: 1) Enunciador universal, que
se caracteriza por um dizer que se apresenta como válido para todos e para
qualquer situação; 2) Enunciador individual, que se caracteriza como o falante
responsável pelo próprio dizer; 3) Enunciador genérico, que se caracteriza como
aquilo que é dito por todos (GUIMARÃES, 2002, p.38-41).
298
das relações de articulação, as relações de reescritura não necessariamente são
de contiguidade, podendo acontecer entre elementos a distância dentro do texto.
2 Análise
DSD 1:
______________________________________
DSD 2:
assédio
racismo
No DSD 2, mulher negra é determinado por sofrimento que, por sua vez,
é determinado por racismo, assédio e machismo, recortando o memorável de
301
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
DSD 3.1
academia ┤ preconceito
303
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
DSD 3.2
Protagonismo
DSD 4:
abuso ┤ mulher negra ├ condições análogas à escravidão
___________________________________________
fazer arte
Considerações Finais
306
Referências Bibliográficas
307
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
A TEMPORALIDADE E A CONSTRUÇÃO
DOS EFEITOS DE SENTIDO DOS MEMES
Introdução
308
desenvolvidos sobre o tema em questão e a segunda tem ligação direta com
linha de pesquisa à qual se vinculou a proposta de trabalho que deu origem a
este artigo: discurso e representação social. Para realização da pesquisa, os
memes foram coletados da internet por meio do mecanismo de busca do Google
e da rede social Twitter e tiveram como entrada de busca a expressão “Tchau,
Querida”, utilizando o processo metodológico das redes enunciativas (DIAS,
2018). O conceito de rede enunciativa foi desenvolvido por Dias (2018) “como
um procedimento de demonstração das relações entre unidades articuladas, por
meio de semelhanças e diferenças entre construções linguísticas” (DIAS, 2018,
p. 36). Para o autor, esse procedimento possibilita observar o funcionamento da
língua mediante a viabilidade da produção de enunciados que são entrelaçados
por uma relação de compatibilidade e de contrastes.
Em relação à composição estrutural do artigo, primeiramente
apresentaremos a construção conceitual do termo “meme”. Em seguida,
discutiremos os pressupostos da Semântica da Enunciação no que diz respeito
ao processo de temporalidade, a fim de analisarmos o meme enquanto
acontecimento enunciativo que produz efeitos de sentido em um processo
contínuo de (re)significação.
309
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
1 Tradução livre de: "shape and reflect social mindsets" (SHIFMAN, 2014, p. 4).
310
(SHIFMAN, 2012, p. 189)2. Desse modo, é imprescindível ao meme estabelecer
relações em rede, sustentando a ideia de que “o meme não é um fim em si
mesmo, mas um meio” (CHAGAS; TOTH, 2016, p. 231), não apresentando,
assim, significado intrínseco. O meme é produtivo enunciativamente e só pode
ser examinado em conjunto através de relações que são estabelecidas “a partir
de seus elementos discursivo e associativo” (CHAGAS; TOTH, 2016, p. 215). Ou
seja, os memes só podem ser considerados memes se examinados em redes
enunciativas, demonstrando um variado repertório linguístico.
Ao tratar da capacidade de proliferação do meme, bem como sua
capacidade de produzir derivações em rede, Shifman (2014) propõe a diferença
entre memes e virais na internet. A ideia de transmissão pode sugerir que os
memes se proliferam, assim como o vírus, de forma homogênea. Todavia,
enquanto os virais apenas se espalham e se propagam como cópias, os memes
se difundem através da variabilidade e modificação textual, como uma coleção
de textos que faz referência a algo em uma espécie de versão modificada
(SHIFMAN, 2014). Desse modo, a principal diferença entre memes e virais se
resume na capacidade de mutabilidade. E, mediante um movimento intenso de
replicação e imitação, semelhante ao vírus, o meme se constitui a partir de uma
manifestação de um grupo de textos e se modifica, reconstruindo dizeres e
estabelecendo novos sentidos.
Tendo em vista esses aspectos, Dawkins (2007) estabelece três
propriedades para os memes: longevidade, fecundidade e fidelidade de cópia. A
fecundidade é constituída através da propagação e da produtividade de um
meme das mais diferentes maneiras, ou seja, aquele que destoa do modelo
matriz enquanto novo elemento. A fidelidade está associada à capacidade de
estabilidade que permite o meme ser reconhecido na rede de modificações. Já
a longevidade está ligada ao tempo que o meme perdura em determinado
espaço, tornando-se veículo que se preserva no entremeio da regularidade e da
diferença, uma vez que não repetimos ideias de formas fixas, mas reformulamos
e nos reapropriamos de propósitos. Sendo assim, o meme é configurado por
2 Tradução livre de: "memes are not treated here as isolated, discreet units, but as the building
blocks of complex cultures, intertwining and interacting with each other" (SHIFMAN, 2012, p.
189).
311
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
314
Desse modo, o enunciado coloca em jogo um espaço de correlações
(FOUCAULT, 2008) reguladas por um referencial que agrega condições de
enunciabilidade - dispostas em uma rede fluida de sentidos – a esse enunciado.
Segundo Dias (2018), o memorável é parte do referencial histórico, uma vez que
somos afetados pelo que já significou, pelos referenciais que sustentam o dizer
enquanto sentidos sociais evocados pela temporalidade do acontecimento.
Assim, os enunciados se ancoram em seu funcionamento histórico-social.
Já no nível da atualidade e posteridade da temporalidade, está o conceito
de pertinência enunciativa que é “relativo à agregação de um enunciado no
espaço de enunciação, submetido a um referencial” (DIAS, 2015, p. 243). Vale
ressaltar que pertinência não significa, conforme sentido dicionarizado,
apropriado ou relevante, por isso, “não tem relação com a qualidade da relação
do enunciado” (DIAS, 2015, p. 243) no espaço de enunciação, mas sim
corresponde à ideia de aderência ao que está sendo dito. Ou seja, um dizer
assume uma relação de aderência a outros dizeres em uma espécie de rede.
Por meio desse processo de adesão, o enunciado é afetado por um conjunto de
outros enunciados em um dado espaço, sendo regulado de acordo com as
demandas do presente no qual ele se localiza. Assim, “é a 'demanda do presente'
que estamos denominando pertinência enunciativa. As respostas, as
interpretações, as interferências que se efetivam na enunciação, isto é, as
repostas às demandas do presente são constitutivas do acontecimento
enunciativo” (DIAS, 2018, p. 103). Dessa forma, configurada na história, a
pertinência, “concebida na relação entre recortes de memória de significação e
a demanda de um presente pelos referenciais, movimenta as formações
articulatórias que constituem a sintaxe do enunciado, a sua constituição formal”
(DIAS, 2015, p. 245).
Fundamentada na relação entre a presentificação do dizer e a memória,
a pertinência é configurada na história que baliza a significação. A relação de
pertença se dá pela adesão e ligação de enunciados à temporalidade. Dito de
outra forma: sustentados pelo passado (referencial histórico), enunciados são
presentificados (ganham pertinência) e projetam enunciações futuras, ou seja:
enunciados movimentam-se no tempo em formato de rede. Sendo assim,
conforme Dias (2018), somos instigados a interferir enunciativamente nas
situações, a projetar sentidos devido a nossa constituição histórica. Dessa
maneira, tudo “o que dizemos mantém relação com um conjunto de outros
315
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
dizeres com os quais estamos em contato. Nós somos afetados por tudo aquilo
que nos rodeia” (DIAS, 2018, p. 103). Logo, na temporalidade de sentidos
presente na enunciação “há uma relação tensa entre o que 'já fez sentido' em
referenciais históricos e um 'a fazer sentido', tendo em vista as pertinências que
o enunciado contrai no presente do enunciar” (DIAS, 2018, p. 254).
Nessa teia de relações, o acontecimento é balizado sócio-historicamente
por referenciais que, no processo de (re)construção de efeitos de sentido,
contraem relações de pertinência com outros enunciados em uma associação
entre linguagem e sociedade. Essa teia de significação se constitui por um
horizonte de intervenção em relação àquilo que antecede e/ou sucede um
enunciado. A ideia de teia, similar à concepção de rede, se distancia de uma
sucessão cronológica, fixa e linear da anterioridade e posterioridade, uma vez
que “é nos espaços de enunciação que os enunciados adquirem pertinência uns
em relação aos outros, tendo em vista um referencial” (DIAS, 2015, p. 243). Essa
relação entre referenciais históricos e pertinências enunciativas faz da
enunciação um acontecimento social” (DIAS, 2018, p. 97).
Para ilustrar com um fato linguístico as ideias de referencial e pertinência,
trazemos uma análise realizada por Igor Guimarães (2015) que questiona os
conceitos de bases tradicionais relacionados ao substantivo, oferecendo à
classe gramatical um olhar enunciativo, uma vez que, para o autor, “o substantivo
evidencia um recorte referencial do mundo, por meio da enunciação”
(GUIMARÃES, 2015, p. 33). Desse modo, Guimarães (2015) apresenta a
concepção de referência não como algo externo desvinculado da linguagem,
tampouco dependente da ideia de verdade. Pelo contrário, ele traz a concepção
de referência como algo constituído na/pela língua, se distanciando da ideia
tradicional de referência como procedimento de etiquetar as coisas em relação
ao mundo. Logo, “a constituição de referência depende diretamente das
condições de enunciação em que é produzida, e não exatamente da ligação com
o mundo” (GUIMARÃES, 2015, p. 25). A partir dessas reflexões, Guimarães
(2015) sustenta a ideia de que os substantivos, atrelados à ideia de nomeação,
congregam potenciais de referência alimentados pela produtividade de usos no
processo enunciativo. Dessa maneira, os substantivos são formas linguísticas
atualizadas no acontecimento por meio do encapsulamento que “sugere um
316
processo de 'condensação de informação'“ (GUIMARÃES, 2015, p. 32).
Portanto, os substantivos se caracterizam como encapsuladores discursivos,
demonstrando, assim, uma capacidade de síntese. Nessa direção, conforme o
autor, “o substantivo evidencia um recorte referencial do mundo, por meio da
enunciação. Isso significa que dado acontecimento, ao ser enunciado, adquire
pertinência.” (GUIMARÃES, 2015, p. 33). Ou ainda que a língua, balizada por
um referencial, é capaz de, por meio do nome (substantivo), sintetizar “as
informações pertinentes ao enunciado.” (GUIMARÃES, 2015, p. 33).
Baseados nessa ideia de encapsulamento trazida por Guimarães (2015),
defendemos a tese de que, no acontecimento enunciativo, os memes se
configuram como enunciados de materialidade condensada, uma vez que
apresentam um potencial de referência diversificado na medida em que
sintetizam significações. Com efeito, os memes, enquanto enunciados de
materialidade condensada, são densos em rememorações enunciativas que se
atualizam, a fim de estabelecer uma futuridade para outras enunciações. A partir
da instauração da temporalidade, tais enunciados, próprios do meio digital,
estabelecem uma relação de dependência interna em função de sua composição
material e de uma independência relativa (GUIMARÃES, 2018), tendo em vista
as condições de produção que os circundam. Sendo assim, o meme encapsula,
em um mesmo objeto linguístico, recortes do memorável e da atualidade, se
transformando em um intenso projetor de efeitos de sentido. Logo, a
propagabilidade, a reprodutibilidade e a adequabilidade configuram os memes
como enunciados de grande potencial referencial, uma vez que se caracterizam
por aquilo que decidimos nomear como susceptibilidade enunciativa, que
corresponde à produtiva capacidade mutacional de atualização e produção de
pertinência.
Após abordar o processo de significação por meio da associação em rede
entre anterioridade, presentificação e posterioridade temporalizadas pelo
acontecimento, trataremos dos direcionamentos que o dizer possibilita ao ser
posto em acontecimento.
Fonte: G1 Notícias3
Fonte: Ubaitaba.com5
música “No dia em que eu saí de casa” da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e
Luciano que, originalmente, se completa com o predicado: “disse filho vem cá”.
Desse modo, o caráter de irrepetibilidade se dá justamente pela presença do
trecho da música que é associado à expressão “Tchau, Querida”. Tal enunciado
(2), no processo de constituição da significação, realiza um resgate e uma
atualização linguística na produção de efeitos de sentido. Desse modo, o meme
(2) se ancora em referenciais ligados ao trecho da música (separação) e à
expressão utilizada por Lula à Dilma (despedida) que é resgatada pelos
deputados favoráveis ao impeachment de Dilma (afastamento) na votação da
câmara. Logo, os referenciais, que pertencem ao mesmo campo semântico
(separação, despedida e afastamento), se caracterizam como anterioridade do
dizer, contraem pertinência e se presentificam, sendo fundamentais para a
atualização dos efeitos de sentido que possibilitam a ancoragem do “mesmo” na
constituição da “diferença”. A partir do processo de temporalidade, o meme (2)
resgata a expressão “Tchau, Querida” se distanciando da mensagem carinhosa
de Lula a Dilma e se aproxima da ideia de despedida irônica. Trata-se, portanto,
do mesmo e do diferente atuando, juntos, na atualização do sentido. A imagem
da ex-presidente com o semblante triste segurando as malas reforça a ideia de
despedida por meio do tom humorístico, o que evidencia o caráter multimodal
desse fenômeno linguístico.
(3)
Figura 3 – Meme “Tchau, querida” relacionado a Eduardo Cunha
6
Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/tchauquerido-afastamento-de-eduardo-
cunha-vira-meme-e-e-um-dos-assuntos-mais-comentados-nas-redes-sociais-
5dqqx5t6myz0rjedhl1ay6p94/. Acesso em: 19 de jul. 2019.
320
Percebemos nesse meme (Figura 3) a presença da forma linguística
“Tchau, Querido” associada à imagem de Eduardo Cunha, ex-presidente da
câmara dos deputados. Enquanto presidente da câmara, Cunha foi o
responsável por autorizar o processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Contudo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki
determinou o afastamento de Eduardo Cunha do mandato de deputado federal
e da presidência da câmara7 alguns dias após a votação do afastamento de
Dilma. Assim, o meme da Figura (3) mantém fidelidade com “Tchau, Querida”
por meio da expressão “Tchau, Querido”, na medida em que a mudança da
desinência “a” para a vogal temática “o”, fazendo referência à figura de Eduardo
Cunha, representa uma forma de tornar fecunda a expressão inicial sem,
contudo, repeti-la de forma idêntica. A legitimação dessa troca envolve, dentre
outros aspectos, o caráter multimodal que se manifesta pela imagem presente
no meme. Ademais, a fecundidade também está presente no referencial em que
se situa o meme, uma vez que não é mais Dilma a figura ironizada pelo
afastamento do cargo, e, sim, Cunha. Dessa forma, a fecundidade faz com que
o meme assuma uma susceptibilidade enunciativa, evidenciando, dessa
maneira, uma propensão a entrelaçamentos contínuos e transformações de
sentidos.
Logo, o meme expresso na Figura (3) trata, ironicamente, da saída de
outra figura política e também se ancora em referenciais políticos. Entretanto,
representa um grupo cujas acepções político-partidárias são “adversárias”
daquelas que sustentam o sentido inicial da expressão “Tchau, querida”. Ou seja,
o movimento de inversão de crítica partidária, que se marca linguisticamente pela
mudança do gênero na palavra “querido” e pela imagem de Cunha, sugere o
sentido de revanche, que, por meio da materialidade linguística, se atualiza e se
torna pertinente, fortalecendo o caráter de fecundidade do meme. Desse modo,
o meme (3) altera o já estabelecido se ancorando nas possibilidades de um
domínio referencial já delimitado e amplia o fluxo de enunciados dentro desse
domínio para a criação de novos dizeres e reconstrução de novos sentidos.
Assim, o meme presente na Figura (3) é legitimado pelas demandas do presente
323
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(5)
Figura 5 - Meme “Tchau, Querida” relativo à derrota de Dilma no senado
(7)
Figura 7 - Meme “Tchau, Querida” relativo à carteira de trabalho
(8)
Figura 8 – Meme “Tchau, Querida” relativo ao ambiente escolar
(9)
Figura 9 - Meme “Tchau, Querida” relativo ao futebol
Fonte: R7 Esportes14
(10)
Figura 10 - Meme “Tchau, Querida” relativo a desfazer amizades nas redes
sociais
(11)
Figura 11 - Meme “Tchau, Querida” relativo à desinstalação de aplicativos
Considerações Finais
Referências
332
UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DOS SENTIDOS DE SÍMBOLO
NO LIVRO MENSAGEM
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
333
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
334
Do nosso ponto de vista, uma semântica não pode deixar de tomar
como elemento fundamental de suas considerações e análises a
referência, ou seja, a relação das palavras com algo que está fora
delas. No entanto, ao contrário de uma posição referencialista... a
relação com o que está fora da linguagem é uma construção de
linguagem. Ou seja, só é possível pensar na relação entre uma palavra
e o que ocorre em virtude da relação de uma palavra com outra palavra
(GUIMARÃES, 2007, p. 77).
335
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Repetição sinonímia/hiperonímia
Substituição especificação/definição
Elipse
Expansão desenvolvimento/generalização/enumeração
Condensação totalização/generalização
337
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
338
representação gráfica das relações de sentido desse termo. O DSD mostra,
então, quais elementos linguísticos estão construindo o sentido de determinada
palavra num corpus específico.
Nesse viés, “um DSD é uma análise de uma palavra. Ele representa uma
interpretação do próprio processo de análise [...]” (GUIMARÃES, 2007, p. 81).
Por ser representado graficamente, o DSD possui uma escrita específica: os
sinais ┤ou ┴ ou ├ ou ┬ significam determina; o tracejado ---------- significa que
os termos estão numa relação de sinonímia; e o traço _________ significa
oposição.
x├ y ( x é determinado por y)
x ┤y (x determina y)
Nota Preliminar
339
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
340
Quadro 3: Recorte 1 (R1)
Mensagem
Nota Preliminar
(a’) Mensagem
(b’) Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum
1 Bendito Deus Nosso Senhor que nos deu o sinal (Tradução feita pelos autores, 2020).
341
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(d’) sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para
eles.
(d’5) sem articula-se por incidência a as quais, que, por sua vez, está
articulada a símbolos;
(d’6) símbolos articula-se por dependência a as quais, ele e mortos;
(d’7) eles encontra-se articulado a ele e morto.
(f’) primeira
(g’) segunda
(h’) terceira
(i’) quarta
(j’) quinta
(k’) Não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando,
e cito por graus de simplicidade
344
Isso leva-nos a refletir que a ordem de citação das qualidades ocorreu de
acordo com seus níveis de complexidade. E tal complexidade é ilustrada e
atestada pela tentativa de nomear a última qualidade com diferentes expressões,
a saber, as seguintes reescrituras:
345
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Deus
┴
signum ------- Símbolo ------ mensagem
┬┴
intérprete
┬
compreensão ┤ cinco qualidades ├ mão do Superior Incógnito
┬ ┬ ┬
simpatia intuição inteligência
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
348
A REPRESENTAÇÃO DA “MULHER PARA CASAR”
EM LETRAS DE CANÇÕES BRASILEIRAS:
UM ESTUDO SOB O VIÉS SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO
Introdução
Se considerarmos originalmente a noção de forma linguística segundo
Benveniste (1989) em O aparelho formal da enunciação, perceberemos a
diferenciação entre forma e sentido, carregada de nuances e complexidades a
ser desvendadas. O ato de produzir enunciado chama atenção, pois “[...] a
relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da
enunciação” (BENVENISTE, 1989, p. 83). E se concomitante à enunciação,
objeto de Benveniste (1989, p. 83), “[...] a língua é efetuada em uma instância de
discurso”, para nós, enunciado, enunciação e discurso se imbricam para
compreendermos o instituído.
Tomamos a formação nominal (FN) com base nos estudos enunciativos.
Como bem lembram os trabalhos de Dias (2013), uma FN se fundamenta não
na descrição do sintagma nominal, mas no modo como os referenciais de sua
produção se dão diante das articulações interna e externa.
O presente texto pretende responder como a formação nominal “mulher
para casar” e os usos correlatos a essa construção se dão culturalmente, a partir
da ideia da mulher ideal para o casamento, uma vez que em seu aporte essa
ocorrência reflete discursivamente um modelo construído e apoiado em
regramentos sociais sobre as instituições família e casamento em resposta aos
valores vigentes.
A partir dos estudos da semântica da enunciação, mais especificamente
os trabalhos de Benveniste (1989), Dias (2011; 2013) e Dalmaschio (2015), em
consonância com os estudos discursivos, pode-se inferir que algumas formações
*
[email protected]
**
[email protected]
***
[email protected]
349
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
350
1 O olhar para a análise de discurso francesa e a convergência com a
proposta da semântica da enunciação
O compromisso de uma FN não é com a entidade em si, mesmo porque ela não
existiria nessa condição, mas com o campo de emergência de entidades
recortado da exterioridade. Trata-se de um recorte enunciativo, porque essas
entidades não se encontram discriminadas e delimitadas na natureza. A
enunciação irá torná-las pertinentes aos acontecimentos linguísticos, tendo em
vista as possibilidades históricas que as fazem emergir (DIAS, 2013, p. 15).
352
Compreendemos que as FN são assimiladas a partir do recorte com a
exterioridade e não são estanques, mas integrantes de um processo que se
constitui enquanto parte do enunciado.
Considerando o aspecto dinâmico desses sintagmas, é comum
constatarmos o surgimento de outras FN a partir de uma já estabelecida
enquanto “centro da articulação temática”, segundo corrobora Dias (2011, p.
275):
353
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Nesse viés, para o presente trabalho, nos filiamos à ideia de que a língua
está para além da comunicação de modo que o discurso pressupõe o
funcionamento da linguagem a partir da relação entre sujeitos afetados pela
língua, pela enunciação e pela história.
Vejamos a primeira canção, Conselhos, do século XIX, que é dirigida à
mulher, em FN “menina”, na condição de querer se casar, ou “se por seu gosto
o casamento quer”. O sujeito interlocutor aconselha à mulher atitudes práticas
de como “agradar sem contrariar”, “sempre obedecer”, cuidar “com amor”, não
“ter ciúmes”. Chama a atenção o modo como se aconselham as ações, pois,
caso elas sejam descumpridas, o provedor, que “dá o pão” (mencionado na
canção), pode gerar conflitos, ou seja, “pode dar pau”, conforme se observa no
final da canção.
Conselhos
Carlos Gomes
354
pelos nomes “menina”, constituem um grupo de ações que podem se fazer na
seguinte rede enunciativa:
3 Desconstruindo a Amélia?
Desconstruindo Amélia
Pitty
Essa canção retrata a mulher que se assume sujeito das próprias ações,
em postura ativa: “arruma o uniforme”, “é a última a sair”, “vira a mesa”, “assume
o jogo”. Essa postura é ainda consolidada, conforme o interlocutor descreve na
canção, com ações de “se cuidar”, de estar junto do outro (“ser um também”).
Desse modo, a mulher, em sua autoria, se mostra como alguém que “segue em
frente”, ainda que não seja valorizada pela formação, conforme se vê em “a
despeito do mestrado”. A interlocutora mulher, em autoria, destaca ainda que,
apesar da reação da mulher, sua condição de ser menos valorizada continua a
mesma, ao “ganhar menos que o namorado”.
358
Assim, essa mulher assume as características expressas em FN da
tradição, ainda que reaja à condição servil, conforme se vê nas redes
enunciativas que confrontam a Amélia desconstruída. De um lado, vê-se a
mulher que estuda, percebe-se que a mulher ganha menos que o homem; de
outro lado, ela se mostra prendada, ainda que prevaleça sua característica
“equilibrista” de ser e tornar-se muitas e múltiplas discursivamente, conforme
explicita a canção, ao enfatizar a mulher independente.
a. Mulher formada
b. Mulher melhor que aos 18
c. Mulher cuidada, “muita”
Escrita em 2016 por Denner Ferrari, a canção Mulher pra casar traz como
título e em sua letra o acontecimento de linguagem importante para esta
pesquisa, porque carrega a representação feminina que pouco difere da mulher
359
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
ora servil, ora reativa, registrada nas canções dos séculos XIX e XX, que
analisamos.
Considerada uma canção sertaneja, tem sua origem nas primeiras
décadas do século XX, mas em sua formulação atual passou por uma transição,
ao se tornar o gênero sertanejo moderno (GUTEMBERG, 2011; ULHÔA, 1999;
ZAN, 2008). Nesse sentido, Ulhôa (1999, p. 2) atenta para adaptações do
conteúdo, mas se consolida como gênero de massa produzido e consumido em
terras tupiniquins.
O caráter “romântico”, conforme Ulhôa (1999, p. 5), originalmente famoso
por duplas como Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e
Luciano, despontou principalmente nos anos 1980, nas chamadas ‘baladas’, “[...]
uma canção sentimental-erótica, disseminada pela indústria cultural, cujo
intérprete internacional mais famoso no Brasil é Júlio Iglesias” (ULHÔA, 1999, p.
5).
Essa concepção de que expressões culturais são capazes de se
reformular em vista das novas condições de existência de seus agentes, que a
reconstituem de diversas formas, pode ser percebida nas canções analisadas,
especialmente na canção a seguir, pois ela ainda se fundamenta no discurso
masculino, por vezes machista.
No corpus, prevalecem letras que tratam de relacionamentos com base
no ponto de vista masculino. Ainda que as condições de desigualdade e de
valores emitidos pelo ponto de vista masculino sejam reproduzidas, a questão
da inserção da mulher como temática nesse gênero ganha relevância, conforme
notamos na letra da canção a seguir.
Denner Ferrari
360
A história só muda quando a gente chega em casa
Me joga na cama, algema meu braço
Ela só gosta do amor do jeito que eu faço
361
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Considerações finais
362
nucleação, de forma a encapsular um conceito historicamente constituído”
(DIAS, 2011, p. 275), deixando à mostra as facetas da mulher representada no
corpus analisado.
As FN “mulher pra casar”, “mulher prendada”, “mulher de verdade”,
“mulher que agrada”, “mulher que sabe se comportar” reforçam a ideia de mulher
ideal para o casamento através de uma ancoragem histórica – a da mulher servil.
As redes enunciativas confirmam formações correlatas às de “mulher pra
casar” ainda carregam os estereótipos construídos socialmente ao longo dos
anos. A despeito do olhar feminino atual voltado para a mulher que é
independente, a Amélia desconstruída se mostra como mulher “equilibrista”,
“educada para servir e cuidar”, aos moldes do estereótipo do que se acredita
socialmente como “mulher para casar”.
Referências
363
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
PÊCHEUX, M. et al. Análise automática do discurso. In: ______. Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux, v. 3, 1990.
Canções analisadas
364
ASPECTOS ENUNCIATIVOS NO DISCURSO DE POSSE
DA MINISTRA DAMARES ALVES
Considerações iniciais
3 Tanto o si quanto o outro, em Análise do Discurso, são tomados como seres sociais e como
seres de palavra, criados no discurso a partir de suas funções enunciativas e de sua dimensão
psico-sócio-histórica. O sujeito não é o indivíduo, mas uma função (Cf. CHARAUDEAU, 2001).
4O que é ressaltado tanto por estudiosos da Política (ARENDT, 2010), quanto por estudiosos
do discurso (CHARAUDEAU, 2006; BENVENISTE, 2005).
5 O que não se deve confundir com quantidade.
366
após análise, ser um imaginário sociodiscursivo da tradição, o qual se
sobrepõem aos demais no discurso da ministra.
9 Compreendemos que o termo “conservador” possui uma multiplicidade de sentidos, mas aqui
consideramos o sentido trazido pelo Dicionário Eletrônico Houaiss, que o compreende como “que
ou o que, em princípio, é contrário a mudanças ou adaptações de caráter moral, social, político,
religioso etc.”. Consideramos também a aplicação que Bonazzi (1998, p. 242-246) concede ao
termo, o qual o compreende não como uma negação da mudança, mas uma insegurança à
diversidade de mudanças, sendo preciso que ocorram lentamente e sem multiplicidade.
369
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(Excerto 01):
Temos que avançar na construção e efetivação de políticas públicas
que sejam duradouras, estruturais e promovam ao nosso povo
melhores condições de vida plena em todas as suas vertentes. E por
falar em vida, eu falo em vida desde a concepção. Eu queria até que
meu Ministério, que este nosso Ministério fosse chamado “Ministério
da Vida e da Alegria”, mas não pode.
(Excerto 02):
Agora eu quero falar de mim. Quero falar um pouco de mim e meu
sonho para esse Ministério. Sou mulher, nasci mulher, sou mãe
adotiva, sou cristã.
(Excerto 03):
Mas as mulheres terão prioridade nesse Ministério. Nossas avós,
mães, meninas, enfim, nossas brasileiras terão o respeito que
merecem. E lutaremos para que não sejam mais tratadas como massa
de manobra.
(Excerto 04):
Ninguém vai nos impedir… Deixa eu dar mais um recado. Ninguém vai
nos impedir de chamar nossas meninas de princesas e nossos
meninos de príncipe.
(Excerto 05):
Nossas avós, mães, meninas, enfim, nossas brasileiras terão o
respeito que merecem.
371
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(Excerto 06):
Eu queria cumprimentar todos vocês: as autoridades, os parlamentares
que aqui estão. Eu estou vendo tanto parlamentar aqui. Eu não posso
nem nomear, porque eu vou ficar assim com vergonha de dizer que eu
amo um mais do que o outro.
(Excerto 07):
Eu queria até que meu Ministério, que este nosso Ministério fosse
chamado “Ministério da Vida e da Alegria”.
(Excerto 08):
Nos chamaram de loucos, deputados. Nos chamaram de malucos
algumas vezes. Disseram que a gente vivia de utopia, de sonhos.
(Excerto 09):
Mas nós não podemos mais pensar política pública que não fortaleça
o vínculo familiar. E é nesse sentido que o governo Bolsonaro vem.
Toda política pública antes vai pensar: isso aqui vai estar ou não
fortalecendo o vínculo familiar.
(Excerto 10):
Elas estão em profundo sofrimento. Isso é um fenômeno que nós
vamos aprender a lidar com ele, e nós vamos aprender isso juntos:
Ministério, pais, famílias, todos juntos no combate ao suicídio e à
automutilação.
(Excerto 11):
Nos chamaram de loucos, deputados. Nos chamaram de malucos
algumas vezes. Disseram que a gente vivia de utopia, de sonhos. Mas
olha aonde o nosso sonho nos trouxe: num Brasil novo, num momento
novo para esta nação. Obrigado, parlamentares. Obrigado a todos
vocês. Cumprimento a todos vocês.
(Excerto 12):
Temos muito a comemorar. No entanto, ainda temos muito no que
avançar. Avançar no cuidado integral, na construção e implementação
de políticas públicas que não sirvam mais para fins eleitoreiros e
enriquecimento ilícito. Temos que avançar na construção e efetivação
de políticas públicas que sejam duradouras, estruturais e promovam ao
nosso povo melhores condições de vida plena em todas as suas
vertentes.
(Excerto 13):
Eu queria até que meu Ministério, que este nosso Ministério.
(Excerto 14):
Mas este Ministério também é da pessoa idosa. Nossos idósos e idôsos
contribuíram muito com a nossa nação e serão honrados por isso. Além
de tudo, boa parte deles está no mercado de trabalho, alguns por
opção, mas muitos por necessidade econômica. Muitos, no momento
em que deveriam receber cuidados, ainda são arrimos de família.
Lutaremos com os idosos, por meio da secretaria do idoso, para que o
estatuto do idoso seja respeitado integralmente nessa nação.
(Excerto 15):
Fui acusada, a imprensa fala que eu sou sequestradora, rãn [riso de
deboche]. Sou perigosa! [Risos ao fundo]. A imprensa fala que eu sou
uma espécie de sequestro, porque quando eu ouço o choro de uma
mãe e busco essa mãe para vir para a cidade, ter seu bebezinho, nós
temos etnias ainda, pouquinho assim, mas não aceitam as crianças
gêmeas.
11 Ver excerto 10 para identificar a inserção do sujeito Damares aos grupos nomeados.
377
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(Excerto 16):
Minha história não foi respeitada, e por muitos meios de comunicação.
Como vocês sabem senti na pele o abuso físico, sexual, psíquico. E
nos últimos dias também o abuso moral, foram implacáveis comigo.
Minha crença virou chacota e motivos de risadas, tanto nas redes
sociais como pessoalmente, inclusive por grandes intelectuais,
parlamentares, líderes de partidos.
(Excerto 17):
Queriam nos matar, disseram que iam nos matar. Mas é difícil matar
essa Ministra. Mas, por recomendação minha filha não está em
Brasília.
(Excerto 18):
Bolsonaro é presidente do Brasil.
(Excerto 19):
Quando digo vida, eu também falo vida em abundância. Mas esse
também é o Ministério da mulher.
(Excerto 20):
Eu vou encerrar dizendo uma coisa para vocês: quando se enterra uma
criança viva, as mães que estão comigo hoje em Brasília e que foram
obrigadas a enterrar uma criança viva, elas contam que quando se
enterram uma criança viva, ela não morra na hora.
(Excerto 21):
Fui serva desses parlamentares por 20 anos, mas fui parceira, fui
companheira. E vou dizer uma coisa, posso falar: fui pastora de alguns
também. O estado é laico, mas sou terrivelmente cristã. Fui pastora de
alguns, amigas.
(Excerto 22):
Um dos desafios desse atual governo é acabar… Uau! Com o abuso
da doutrinação ideológica. Trabalharemos junto com o poder público
para construir um Brasil em que nossas crianças tenha acesso à
verdade e sejam livres para pensar. Acabou a doutrinação ideológica
de crianças e adolescentes no Brasil.
(Excerto 23):
Seremos proativos para evitar a gravidez inesperada, que alcança
meninas cada vez mais novas.
(Excerto 24):
Somos o pior país da América do Sul para ser menina, mas os
governos Bolsonaro se propõem que em pouco tempo seremos o
melhor país do mundo para se criar menina.
380
Em relação ao momento de referência presente, o seremos indica uma
posterioridade do momento do acontecimento. Não obstante, observamos que
todos os verbos utilizados no futuro remetem a promessas relacionadas ao
governo Bolsonaro, todos com conotações positivas.
(Excerto 25):
Eu estou vendo tanto parlamentar aqui.
(Excerto 26):
E aqui eu quero fazer justiça a uma voluntária linda e incrível: a Desirré.
(Excerto 27):
E aqui eu quero mandar um recado para os pedófilos de plantão e para
os abusadores de plantão e para os exploradores de criança e
adolescente.
(Excerto 28):
E aqui eu quero lembrar, Sérgio Moro é ministro do governo Bolsonaro.
(Excerto 29):
A mais linda indígena do muito é minha filha. Que não teve a alegria
de estar aqui, porque foi ameaçada junto com a mãe.
(Excerto 30):
Este novo tempo para o Brasil. (...) Mas olha aonde o nosso sonho nos
trouxe: num Brasil novo, num momento novo para esta nação.
381
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(Excerto 31):
A vida, nosso bem maior, é o ponto de partida. Esse Ministério foi
pensado, estruturado a partir dela, de sua proteção e seu cuidado. No
que depender deste governo e desta equipe, sangue inocente não será
mais derramado em nosso país. Esse é o Ministério da vida. Quando
digo vida, eu também falo vida em abundância. Mas esse também é o
Ministério da mulher.
Considerações finais
Bibliografia
384
RELAÇÕES SEMÂNTICAS ENTRE A DESIGNAÇÃO APOSITIVA
E A FORMAÇÃO NOMINAL DE NOME PRÓPRIO
Neuza Zattar
UNEMAT/PPGL
Introdução
386
No texto ‘Designação e espaço de enunciação: um encontro político no
cotidiano’, a designação é definida como “a significação de um nome na relação
com outros nomes e com o mundo recortado historicamente pelo homem” (Idem,
2003, p. 54), ou seja, a designação é uma relação ao mesmo tempo linguística
e histórica.
No texto ‘Relações apositivas: dinâmica dos lugares de enunciação nas
relações de designação’, Guimarães (2018a, p. 83), além de manter a posição
que considera a designação “como uma relação com as coisas como produzidas
pela significação da linguagem”, acrescenta que “a produção da designação se
dá pelo modo como se constitui a alocução no acontecimento de enunciação”.
Em Semântica: Enunciação e Sentido, Guimarães (2018b, p. 151) diz que
a designação, para a semântica da enunciação que desenvolve, “não é sinônimo
de referência ou denotação”, para ele, a designação, enquanto categoria de nível
metodológico, “configura o sentido de um nome, estabelecendo a relação deste
nome com as coisas tomadas como existentes”. Continuando diz o autor, “trata-
se de um processo pelo qual os nomes identificam aquilo sobre o qual falam.
(Idem, p. 165-166).
Nessa linha, Dias e Silva (2015, p. 153), no texto “Formas nominais
designativas na constituição do perfil feminino: uma abordagem enunciativa”,
concebem o processo designativo “como histórico, em que o sentido é
determinado pelas condições sociais de sua existência”, tendo em vista o
funcionamento da língua afetado pela memória do dizível no acontecimento da
enunciação.
As definições de designação apresentadas têm em comum as relações
de sentido de um nome com outros nomes, em que esses nomes não só
identificam como dizem algo sobre o que é colocado como existente no
acontecimento de enunciação. E esse acontecimento, tomado pelo político,
funciona como o fundamento das relações sociais, de modo que um determinado
nome recebe uma designação não pelo significado denotativo ou literal de que é
constituído, mas pela relação de sentidos que estabelece com outros nomes
enunciados expostos ao que lhes é exterior. (ZATTAR, 2012). Como o processo
de designação se movimenta com o funcionamento da língua no acontecimento
do dizer, podemos dizer que as designações dadas pelos nomes mudam à
medida que os nomes vão constituindo novos significados, pois, designar “é
constituir significação como uma apreensão do real, que significa na linguagem
387
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
388
Passamos a discutir os conceitos formulados por Dias (2015, 2017,
2018a) que serão mobilizados nas análises.
Formação Nominal
Referencial histórico
Pertinência enunciativa
As construções apositivas
3 Tradução nossa.
4 Tradução nossa.
5 GÓRNIKIEWICZ (2016) apud LONGRÉ, 1990, p. 8; NEVEU, 2000, p. 5; SAMOLEWICZ e
SOŁTYSIK, (2000, p. 19).
6 Idem (2016) apud SAMOLEWICZ e SOŁTYSIK (2000, p. 19).
7 Idem (2016) apud LAVENCY (1997, p. 120).
8 Idem (2016) apud SAMOLEWICZ e SOŁTYSIK (2000, p. 20-21). Tradução nossa.
9 Idem (2016) apud LAVENCY (1997, p.120).
392
estado do referente desse nome em relação à predicação principal:
Furius, uma criança, aprendeu o que deveria aprender10.
10 Idem.
11Idem apud LONGRÉE (1990); LAVENCY (1997, p. 119), SAMOLEWICZ e SOŁTYSIK (2000),
para algumas construções.
12 A primeira edição dessa gramática ocorreu em 1961.
393
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
394
funções agregadas ao aposto produzem sentidos outros e de que esse termo é
visto como desnecessário para a compreensão do enunciado.
No entanto, nos enunciados abaixo:
(a) O pedido vale para processos que envolvem o empresário Orlando Diniz,
ex-presidente da Fecomércio, réu em processos da força-tarefa da
Lava Jato no RJ por corrupção, lavagem de dinheiro e organização
criminosa; (Grifo nosso)
(b) O pedido vale para processos que envolvem o empresário Orlando Diniz.
Análise
13
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/apos-gilmar-mendes-soltar-presos-da-lava-
jato-mpf-do-rio-entra-com-novo-pedido-de-suspeicao-22751181. Acesso em: out. 2018.
396
de mobilização, segundo Dias (2018a), que “as articulações de sentido formam
divisões sociais”. E nesse espaço de diferença, de conflito, que se constituem os
dizíveis que afastaram Orlando Diniz da presidência da Fecomércio.
É interessante observar que mesmo na condição de ex-presidente da
Fecomércio, o nome “Orlando Diniz” não é associado a nenhuma ocorrência
judicial que justifique o seu afastamento e, da mesma forma, o emprego da
expressão “casos que o envolvam” também não o vincula judicialmente a
nenhum delito. Esse modo de escolher certas palavras e não outras para traduzir
a perda de poder do ex-presidente estabelece relações políticas e comerciais
com outros dizeres que circulam enunciativamente dentro e fora da Fecomércio.
Ou seja, são dizeres regulados por determinadas formas de dizer e modos de se
fazer reconhecer pela linguagem. (DIAS, 2018a).
A designação “o ex-presidente da Fecomércio” também é uma formação
nominal que traz como referencial histórico a instituição Fecomércio, uma
federação que reúne sindicatos patronais dos setores de comércio e serviço do
estado do Rio de Janeiro, e preside os Conselhos Regionais do SESC (Serviço
Social do Comércio) e do SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem do
Comércio). Esse memorável “constituído de outros dizeres, na instância do “já
enunciado”, são parte desse referencial histórico, isto é, desses domínios de
ancoragem do enunciado, tendo em vista o funcionamento histórico-social.”
(DIAS, 2018a, p. 101).
Ainda na ocorrência do R1, a designação apositiva “um dos 20 presos
preventivamente [...] no âmbito da Lava-Jato” mantém com a mesma formação
nominal relações semânticas”, por significar a intervenção judicial na Fecomércio
que resultou na prisão preventiva do ex-presidente. Essa designação evoca uma
modalidade de prisão – prisão preventiva – que é determinada pela Justiça para
impedir que o acusado atrapalhe a investigação, a ordem pública ou econômica
e a aplicação da lei.14
Destacamos que, nessa ocorrência, a formação nominal “Orlando Diniz”
passa a ser significada pela condição judicial de preso, ainda que nessa
sequência se mantenha em suspenso o delito que causou a sua prisão
preventiva. Esse mecanismo da linguagem na escolha de certas palavras e não
398
significa na medida em que se dá como confronto de lugares
enunciativos que movimentam a língua. Um lugar enunciativo
recorta e assim constitui um campo de ‘objetos’. Se se mudam
os lugares enunciativos em confronto, recorta-se outro campo de
‘objetos’ relativos ao dizer.
399
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
16 O estudo sobre crime de colarinho branco (White Collar Crime) foi desenvolvido pelo sociólogo
Edwin Sutherland, em 1950, que o define como delito praticado por uma pessoa respeitada e
com alto status social em ocupação. Disponível em:
http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=18954&revista_caderno=3
Acesso em: jun. 2019.
17 Disponível em: https://sergiozoghbi.jusbrasil.com.br/artigos/111908115/crime-do-colarinho-
Algumas considerações
402
projeta, e que fazem parte daquilo que se projeta como sentidos que se
desdobrarão e estarão em outras enunciações18.
Vimos que as relações semânticas entre as designações apositivas e as
formações nominais são produzidas no acontecimento do dizer do R1 e R2 e
esses acontecimentos “ao adquirirem pertinência, tornam-se um fato de
linguagem, na medida em que a dimensão da memória (o referencial histórico)
entra em relação com a atualidade do dizer, isto é, com o ato mesmo que
enuncia”. (DIAS, 2018a, p. 83). E é essa relação/articulação que garante a
constituição da significação nas formações nominais.
Referências
DIAS, Luiz Francisco; SILVA, Eloisa Elena Resende Ramos da. Formas
nominais designativas na constituição do perfil feminino: uma abordagem
enunciativa. Revista (Con)Textos Linguísticos do Programa de Pós-graduação
em Linguística da Universidade Federal do Espírito Santo. V. 9, n. 12, 2015.
404
https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/4208/3803 Acesso em: mar.
2019.
ZATTAR, Neuza. A corte portuguesa mudou-se ou fugiu para o Brasil? In: web
revista discursividade. Vinculada ao Curso de Letras e ao Programa de Mestrado
em Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. 9. ed. Campo
Grande - MS, Janeiro/2012 - Maio/2012.
405
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Introdução
O ensino de Língua Portuguesa, ao longo do tempo, sofreu modificações,
com tentativas mais recentes de levar o estudante ao centro do processo de
aprendizagem. Nessa perspectiva, de um viés mais tradicional, centrado em
habilidades de memorização metalinguística, passou-se à necessidade de
desenvolvimento de capacidades comunicativas e interativas pelo discente.
Por essa nova perspectiva, o texto tornou-se o centro das atividades
didáticas, tendo em vista a sua funcionalidade social, como instrumento de
comunicação e interação, capacidades a serem trabalhadas a partir da leitura e
escrita, análise e reflexão linguísticas. Tal orientação está presente nos
documentos oficiais que regem o ensino básico brasileiro, como os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN+) Ensino Médio e a recente Base Nacional
Curricular Comum (BNCC), visto que, em ambos, está retratada a necessidade
de dar ao estudante condições para o desenvolvimento de letramentos múltiplos.
Nesse sentido, os PCN + recomendam:
Para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das
características de determinado movimento literário, o aluno deve ter
meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que
possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com
que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do
trabalho. (BRASIL, 2002, p. 55).
1 Grifo nosso.
409
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
410
Para a semântica da enunciação, conforme Guimarães (2018), a partir da
enunciação, entendida como o ato de colocar a língua em funcionamento, as
formas linguísticas adquirem significado, havendo, nessa significação, a
mobilização histórica dessa forma e, ao mesmo tempo, a abertura de
possibilidades de sentido, isto é, de uma futuridade.
Em Dias (2009), percebe-se que uma sentença é formada por lugares
sintáticos definidos. Nesse sentido, existem os lugares sintáticos de sujeito,
complemento do verbo, adjunto adverbial, entre outros, os quais são ocupados
em virtude da conformação de uma memória de dizeres na atualidade, segundo
o que Dias (2018) chama de pertinência enunciativa. Ou seja, cada lugar
sintático é preenchido de acordo com a relação que estabelece com ocupações
anteriores, estabelecendo, no presente, uma relação de pertinência com esse
passado.
A partir dessa abordagem, verifica-se que a completude dos termos de
uma sentença depende da enunciação, ou seja, da mobilização da língua em
uma determinada situação de interação. Em outras palavras, pode-se dizer que
enunciação e gramática são faces de uma mesma moeda, estando em ampla
relação para a produção de sentido. Essa íntima associação, por si só, destaca
a relevância de que as abordagens gramaticais empreendidas não tenham fim
em si mesmas, mas que, de forma mais produtiva, considerem a dimensão
interativa da língua.
É importante, então, distinguir que lugares sintáticos não dizem respeito
à posição geográfica de uma forma linguística na sentença. Essa abordagem é
feita por Lacerda (2013), evidenciando que o lugar existe na estrutura da
sentença mesmo que não haja a sua ocupação efetiva por uma forma linguística.
Além disso, a existência desses lugares não impõe uma estrutura fixa, com uma
ordem rígida, ou seja, os lugares têm ampla mobilidade dentro de uma sentença.
O adjunto adverbial, por exemplo, um dos focos do presente trabalho,
revela justamente essa possibilidade de deslocamento de um elemento sintático,
visto ser um lugar que claramente pode ter sua posição alterada nos enunciados.
No entanto, apesar dessa não rigidez, como já afirmado, existe o lugar de adjunto
adverbial ainda que ele não apareça fisicamente na sentença.
Essa constatação vai na contramão das orientações tradicionais do
ensino gramatical, que consideram os adjuntos adverbiais como dispensáveis à
completude de um enunciado, elementos acessórios, usados “como termos não
411
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
412
Tal abordagem se pauta pela utilização de exercícios que promovam
raciocínios linguísticos reais, ou seja, que levem os estudantes a pensarem
sobre a língua e sobre os componentes que a formam em situações concretas
de uso. Nesse sentido, há uma aproximação entre essas atividades e a noção
de gramática contextualizada, que, conforme as definições de Antunes (2014,
p.46), pode ser entendida como a análise dos itens gramaticais presentes no
texto “tomando, como referência de seus valores e funções, os efeitos2 que
esses fenômenos provocam nos diversos usos da fala e da escrita”. Nessa
toada, a autora reforça:
Insisto, pois, adotar uma gramática contextualizada é explorar os
possíveis resultados dos usos, das escolhas, das substituições que
fazemos. Quase sempre, o morfossintático, apenas, é insuficiente para
a avaliação desses resultados. (ANTUNES, 2014, p. 141).
2 Grifos da autora.
413
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
2 Procedimentos metodológicos
A pesquisa empreendida se debruçou sobre seis das onze coleções
didáticas de língua portuguesa do PNLD 2018. Aqui, entretanto, serão
apresentadas amostras de apenas duas coleções. Buscou-se captar nelas uma
possível concordância ou divergência em relação ao ensino gramatical indicado
pelos documentos oficiais, como os PCNEM+ e a BNCC. Por essa lógica, foram
analisados o fenômeno da transitividade verbal e a categoria de adjunto
adverbial, além de serem examinadas também a gramática utilizada por cada
exemplar e as categorias de verbo e advérbio em suas relações morfossintáticas,
de forma a ter uma amostra mais expressiva sobre a abordagem de cada coleção
didática.
É importante mencionar que, a princípio, o escopo do trabalho se daria
apenas sobre o fenômeno da transitividade verbal e sobre a categoria dos
adjuntos adverbiais, observando, dessa forma, todas as onze coleções
aprovadas pelo plano mencionado. Como, entretanto, ao longo dos processos
de observação, houve a necessidade de ampliar também para a análise da
abordagem gramatical – descritiva, explicativa ou normativa – de cada um dos
materiais, bem como as categorias morfossintáticas de verbo e advérbio, optou-
se por condensar o número de coleções, incidindo a pesquisa sobre as seguintes
produções:
1. Português - contexto, interlocução e sentido (Editora Moderna), de Maria Luiza
M. Abaurre, Marcela Pontara e Maria Bernadete M. Abaurre; 2. Novas palavras
(Editora FTD), de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino
Antônio; 3. Português: trilhas e tramas (Editora Leya), de Graça Sette, Ivone
Ribeiro, Márcia Travalha e Rozário Starling; 4. Português contemporâneo:
diálogo, reflexão e uso (Saraiva Editora), de Carolina Dias Vianna, Christiane
414
Damien e Willian Cereja; 5. Língua portuguesa: linguagem e interação (Editora
Ática), de Faraco, Maruxo Jr. e Moura; e 6. Ser protagonista – língua portuguesa
(Editora SM), de Ana Elisa de Arruda Penteado et. al.
Após a análise dos fenômenos gramaticais nas coleções, foram feitas
planilhas padronizadas para cada um dos itens (verbo, advérbio e adjunto
adverbial). Constou, em cada uma delas, a identificação do material, a
conceituação do item e o local em que aparecia no interior da coleção, além da
abordagem gramatical empreendida e um exemplo de exercício apresentado,
visando a verificar como era efetivado esse tratamento em termos práticos.
Na sequência desse exame, procedeu-se à elaboração de algumas
atividades didáticas, considerando os mesmos itens gramaticais verificados nas
coleções analisadas. Para empreender essa tarefa, foram utilizadas as
contribuições teóricas da semântica da enunciação, da sintaxe de bases
enunciativas e das concepções de atividade epilinguística e de gramática
contextualizada, que foram levadas a efeito por meio do uso de redes
enunciativas, ou seja, de conjuntos de exemplos de sentenças com ocupações
semelhantes de lugares sintáticos, visando a produzir contrastes que
colocassem em evidencia nuances da produção de sentido, conforme constam
nas orientações dos documentos oficiais voltados à educação.
Foram elaboradas três sequências de atividades, entre as quais foi
escolhida a que contemplou, de uma só vez, as habilidades enunciativas das
categorias da adjunção adverbial e da transitividade verbal para ser utilizada.
Dessa forma, a sequência proposta, que contou com sete questões, foi aplicada
em seis turmas de segundo ano do Ensino Médio Técnico Integrado do Instituto
Federal de Minas Gerais – Campus Ouro Preto, totalizando 66 alunos. Os
segundos anos foram escolhidos por ser esse o segmento que já havia tido
algum contato sistematizado com os itens gramaticais trabalhados.
As respostas apresentadas pelos discentes foram colocadas em planilhas
para a averiguação de cada questão, as quais poderiam ganhar distintos status
– correto, incorreto ou parcialmente correto. Além disso, para as parcialmente
corretas, foi introduzido um comentário a fim de explicar os aspectos que as
levaram a receber essa condição. Com esse procedimento, buscou-se perceber
a real compreensão dos alunos em relação aos exercícios propostos, indo além
da dicotomia certo-errado, passando-se a investigar traços da resposta que
permitiam entrever diferentes níveis de entendimento das atividades.
415
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
416
Com uma conceituação da classe morfológica dos “verbos” pautada em um viés
descritivo, evidencia-se apenas um aspecto do fenômeno verbal na língua.
Quando se considera o exercício proposto, verifica-se que não é feita uma
exploração das potencialidades textuais e argumentativas do emprego da forma
verbal. Na realidade, visa-se somente à simples identificação dos complementos
verbais, havendo também uma desconsideração do texto como produto social e
cultural. Por esse tipo de trabalho, percebe-se que gramática e enunciação não
são contempladas de modo associado e que, conforme Antunes (2007), ainda
se utiliza o texto como pretexto para o trabalho com itens gramaticais.
Convém ainda destacar que a definição do tipo de gramática efetivado foi
feita não apenas a partir da análise da conceituação do item gramatical e dos
exercícios propostos sobre ele, mas também considerando diversas partes da
coleção, como boxes explicativos, por exemplo. Isto é, pequenas caixas de texto
apresentadas pela grande maioria dos materiais com a finalidade de adicionar
trechos explicativos ou curiosidades sobre determinado tema, como se observa
a seguir.
Esse boxe também foi extraído da coleção didática “Português - Contexto,
interlocução e sentido” e é justamente uma exemplificação do tipo de abordagem
realizada a partir dos boxes mencionados, considerando agora a classe
417
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
419
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
mas que, de forma mais relevante, deve ser entendida como uma gama de
recursos da língua que sustentam a produção de sentidos.
420
Leia os textos a seguir:
Fragmento 1
Fragmento 2
Fonte: (http://www.mabnacional.org.br/noticia/crime-da-samarco-22-meses-
impunidade-do-rompimento-da-barragem-em-mariana-mg-0. Acesso em 6/10/2018.)
421
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
424
de enunciados comparativos com estruturas semelhantes que visavam a permitir
a visualização do comportamento semântico de uma mesma forma linguística
em usos distintos. Fazendo uma avaliação a posteriori, pôde-se chegar a
hipótese de que os estudantes não lidaram bem com a rede enunciativa na
medida em que ela foi utilizada como recurso autônomo, sem a intervenção do
professor ou do aplicador para percorrer o caminho da percepção de variáveis
tão tênues. Esse resultado diz, portanto, que a rede enunciativa é um recurso
valioso, mas de modo algum dispensaria a intervenção do professor.
Quanto a esse aspecto, pode-se concluir que nas questões 3A, 3B e 4,
apesar de ter sido feito o uso de redes enunciativas, o fato de não ter havido um
trabalho de costura que auxiliasse os estudantes a identificar questões da
argumentatividade. Na realidade, as sentenças usadas, ainda que estivessem
em rede, foram apresentadas isoladas, sem que fosse possível, segundo
Antunes (2014), conectá-las a um texto, com seus interlocutores, sua possível
intencionalidade e os pressupostos existentes na interação, por exemplo. Isso
certamente dificultou, em grande medida, o trabalho interpretativo por parte dos
estudantes.
Dessa forma, há de se reconhecer que, ainda que houvesse a real
intenção de levar os discentes a pensarem os elementos linguísticos para além
de uma estrutura rígida, ainda que houvesse o desejo de fazê-los ponderar a
respeito do modo como o componente gramatical afeta a sentença de diferentes
formas a partir das redes enunciativas, a falta de contexto e de intermediação foi
decisivo para que os alunos não obtivessem êxito interpretativo nas questões.
Tal realidade configura-se como um ponto a ser revisto e, para além disso,
evidencia que o contexto e o trabalho do professor de esmiuçar os sentidos até
se chegar aso efeitos de sentido são artefatos fundamentais para o trabalho com
análise linguística em sala de aula.
O número de questões que ganharam o status de parcialmente corretas
também foi alto, principalmente a primeira, que solicitava aos alunos que
identificassem os locutores de cada um dos fragmentos apresentados. Grande
parte identificou tanto a Folha de São Paulo quanto o MAB como locutores, mas
essa facilidade de identificação não se deu tão facilmente em relação à Caneta
Desmanipuladora. Acredita-se que tal dificuldade se deveu, em grande parte, a
questões de ordem técnica. Visto que a folha impressa entregue aos alunos era
uma cópia em preto e branco, aliado ao fato de a Caneta provavelmente não ser
425
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
uma página conhecida pelos estudantes, parece ter havido dificuldade para que
os estudantes percebessem as interferências em vermelho feitas pela Caneta
Desmanipuladora no enunciado da Folha de São Paulo. Essa dificuldade, no
entanto, só foi percebida quando a sequência foi aplicada, uma vez que, ao
serem produzidas e analisadas, as atividades dispunham dos textos em sua cor
original.
Essas observações podem, assim, mensurar os pontos em que deve
haver o aperfeiçoamento das atividades elaboradas a fim de realmente
concretizar o objetivo de levar aos alunos exercícios que promovam a reflexão
acerca da produção de sentido tendo em vista a mobilização de recursos
gramaticais, aproximando esses dois elementos que integram a constituição da
língua.
Considerações finais
O ensino de gramática durante muito tempo se pautou por uma
abordagem bastante técnica, visando ao desenvolvimento de indivíduos
conhecedores das regras gramaticais. No entanto, ainda que esse objetivo de
memorizar regras fosse alcançado com êxito, ele não levaria necessariamente o
estudante ao bom desempenho textual e comunicativo, habilidades cada vez
mais necessárias no mundo contemporâneo. A contemporaneidade demanda
letramentos múltiplos, e isso evidencia que esse ensino tradicional já não supre
as carências de manejo linguístico atuais. Por isso, uma abordagem epiliguística,
que tenha como foco o trabalho com atividade de linguagem para levar o
estudante a desenvolver autonomia, parece tão adequada.
A gramática, por esse raciocínio, de acordo com Antunes (2014), deve ser
trabalhada de maneira contextualizada, em favor da interação e da produção de
sentido. Dessa forma, parece incoerente que ainda hoje a abordagem gramatical
promovida pelas coleções didáticas de Língua Portuguesa seja em grande parte
destinada a um ensino sistêmico e fechado em si mesmo. Mais relevante seria
um trabalho que busque relacionar as dimensões material e interativa da língua,
almejando um ensino gramatical mais palpável e significativo.
O trabalho desenvolvido buscou relacionar essas duas dimensões
linguísticas e, a partir das categorias gramaticais de verbo e adjunto adverbial,
426
conseguiu atestar um bom domínio dos alunos em relação à gramática e à
produção de sentido, com desprendimento de nomenclaturas e saberes apenas
técnicos. Para tanto, foi proposta uma reflexão sobre a língua, conforme as
perspectivas do epilinguismo e da gramática contextualizada. Contudo, o anseio
de levar essas duas perspectivas a cabo fez com que este projeto se
equivocasse, em algum ponto, pelo exagero. Foi feita uma coleta de dados –
com as respostas dadas pelos alunos – cujo mecanismo preconizava a
autonomia: era desejável que as demandas dos exercícios falassem por si, mas
a autonomia seria o ponto de chegada, não o de partida. A dificuldade dos
estudantes deixou evidente que a figura do professor, sensível às nuances
enunciativas, seria essencial para conduzir o processo. Tanto se tentou evitar o
uso do texto como pretexto que as redes enunciativas careceram, em alguma
medida, do contexto necessário para que os estudantes notassem as marcas
enunciativas na materialidade do dizer. Esse balanço mostra que a formação do
professor-pesquisador é continuada e que a tentativa e o erro fazem parte da
prática da docência e da pesquisa.
Como procedimento de análise, mais importante do que as terminologias
ou as noções de certo e errado, procurou-se pautar pelas tentativas,
investigando o que os alunos desejavam falar, ainda que, por vezes, alguns
termos não se encaixassem com rigor na natureza das questões propostas.
Nesse sentido, o ideal de conduzi-los à reflexão sobre a língua pelo uso,
relacionando os saberes gramaticais ou orgânicos aos enunciativos e interativos,
foi alcançado com sucesso.
Referências
ANTUNES, Irandé. Uma análise muito aquém do texto. In: ______.Muito além
da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. 4 ed. São
Paulo: Parábola Editorial, 2007.
427
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO JÚNIOR, José
Hamilton. Língua portuguesa: linguagem e interação. São Paulo: Editora Ática,
2018.
428
PLANTA/TEXTO: UM ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO DA CATEDRAL DE
SÃO LUIZ NO CENTRO HISTÓRICO DE CÁCERES- MT 1
Introdução
O presente texto propõe desenvolver um estudo enunciativo do
acontecimento de linguagem (Planta Arquitetônica) da igreja matriz de Cáceres
— MT, a Catedral de São Luiz de Cáceres, com objetivo de sondar e analisar os
enunciados que a integra. Mais especificamente trata-se de sondar enunciados
na relação integrativa com outros termos no funcionamento do texto, ou seja, no
acontecimento enunciativo da Planta da Catedral de São Luiz.
Nosso interesse é saber como e quais unidades de linguagem estão
integrada a Planta, e como tais enunciados constituem sentidos e significam no
movimento de linguagem do acontecimento, cuja especificidade se dá pela
temporalidade própria da (Planta/Texto), ao historicizar acontecimentos como: a
construção, a ruína/queda, e reconstrução da igreja matriz no processo de
significação que a constitui, na cidade de Cáceres-MT. Essas observações
colocam-se como importantes para analisar e compreender enunciados, os
quais são tomados na perspectiva da relação integrativa de enunciados a Planta
da Catedral.
Além disso, dizemos que, produzir análises do ponto de vista dos estudos
enunciativos possibilita-nos compreender o que se enuncia, como se enuncia e
como estão sendo constituídos os sentidos de construção, da ruína, da queda,
e da reconstrução da igreja matriz no/do centro histórico do Município de
Cáceres — MT, desde antes de sua fundação, com vista a contribuir
significativamente considerando que a língua — sujeito — história e cultura
2019/1.
3Professor
Doutor, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Linguística -
PPGL/UNEMAT
429
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
430
em andamento intitulado. Planta/Texto: um acontecimento enunciativo da
Catedral de São Luiz no Centro Histórico de Cáceres — MT,
submetido/aprovado/protocolado junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Linguística — PPGL/UNEMAT 2019/1. Este texto foi apresentado pela
primeira vez, no III Seminário: Enunciação e Materialidade Linguística a 10 de
outubro de 2019. FALE — Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte — MG.
Em um primeiro momento, o texto está organizado em Introdução, e
quatro tópicos intitulados: Planta da Catedral de São Luiz: relação de um
memorável marcado por uma temporalidade. Plano do terreno da dita Villa:
acontecimento que especifica locais determinados para a igreja. Primeira pedra
fundamental (1886) e a obra da nova igreja matriz: a Catedral de São Luiz em
construção, e. Considerações — parte de uma nova temporalidade, uma latência
de futuro para 2023.
432
No tópico seguinte, veremos ainda que brevemente, como o
acontecimento enunciativo “Plano do terreno da dita Villa”, específica e
determina os locais para construção da Igreja.
4DE SOUSA, Maria Cecília Guerreiro. Inventário de documentos históricos sobre o centro-
oeste: Arquivo Histórico Ultramarino, Avulsos 1. Fundação Universidade Federal de Mato
Grosso, Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional. Documento original do
Arquivo Histórico Ultramarino – Lisboa. Fundo: Docs. Avulsos sobre Mato Grosso - Caixa nº 1164.
FUFMT/NDIHR. Microficha 274.
5 Governador desde de (1772 a 1789).
6 Secretário do Estado (representante do Reino de Portugal).
7 Dito e assinado por, (Luís de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, Villa Bella de 25 de
novembro de 1778). Fragmento enunciativo da (Carta, redigida em Vila Bela, 25/11/1778), Carta
disponível. In: Inventário de documentos históricos sobre o centro-oeste: Arquivo Histórico
Ultramarino, Avulsos 1. Fundação Universidade Federal de Mato Grosso, Núcleo de
Documentação e Informação Histórica Regional (DE SOUSA,1978).
433
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Para o que nos interessa, neste texto, faz-se necessário observar o Termo
de fundação do novo Estabelecimento, de Villa Maria do Paraguay. Conforme
teor desse documento, enunciado por Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e
Cáceres em 1778, pinçamos um recorte que traz os “locais determinados para a
igreja”, com todas explicações e exigências de demarcação do terreno:
435
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
437
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
9 Grifo nosso.
438
Figura II - Planta de Cáceres em 1876, quando esta contava 100 anos da sua fundação –
Seção de iconografia da Biblioteca Nacional - Rio: In: (LEITE, 1977, p. 19).
Conforme Leite (1977, p. 18-19), no item RETRATO DA VILA, ele diz que:
10 Grifo nosso.
439
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
[...] não tem um templo digno dela: o que existe é muito ordinário, mal
construído, e está em mau estado, principalmente o corpo da Igreja,
cujas paredes ameaçam ruina. Só por muito favor se pode dar esse
nome. (LEITE, 1977, p. 110).
Figura III – A Construção da Catedral de São Luiz de Cáceres. In: Dom Máximo
Biennès: Bispo Missionário (SILVA e Nascimento, 2004, p.157).
13 Esta noção Guimarães (2017, p. 25), toma a partir de Ducrot (1972) em Dire et ne pas Dire.
14O político aqui interessa conforme Guimãrães (2017, p. 24), a relação entre falantes e línguas
enquanto um espaço regulado e de disputas pela palavra e pelas línguas, enquanto espaço
político.
443
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
15 Grifo nosso.
444
Conforme segue as imagens abaixo:
Figura V: Catedral São Luiz de Cáceres Figura VI: Notre Dame de Paris
[Iconográfico]
446
Referências
LEITE, Luís Philippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. 1978.
447
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
448
PERSPECTIVAS DA PREDICAÇÃO
Força
Atos de fala
ilocucionária
a. José é prudente. a. Bons estudantes passam no afirmar
vestibular.
b. José é prudente? b. Bons estudantes passam no interrogar
vestibular?
c. José, seja prudente! c. Bons estudantes, passem determinar
no vestibular!
450
(2) Predicação pela Gramática cognitiva
1 “subject is a nominal that codes the trajector of a profiled relationship; an object is one that
codes the landmark”.
451
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Sobre a proeminência focal, o autor mostra que ela não está no mundo
exterior, além disso, as coisas não estão pré-determinadas a serem trajector ou
marco. Conforme Langacker (2008, p.73) “a proeminência é um fenômeno
conceitual, inerente à nossa apreensão do mundo, não ao mundo em si”. Ela
depende, portanto, da interpretação semântica e da organização estrutural das
entidades linguísticas empreendida pelo falante.
Desse modo, considerando as cenas em que as construções “José é
prudente” e “bons estudantes passam no vestibular” são interpretadas, é
possível compreender que “José” (nome próprio humano) e “bons estudantes”
(frequentador regular, que se destaca em algum curso) são expressões
conceituais sobre as quais se produz foco, correspondendo assim ao trajetor. No
caso do trajetor “José é prudente”, há uma predicação nominal na qual o verbo
“ser” realiza uma avalição pela transmissão de um estado permanente, ao
conduzir um elo que parte do trajetor “Jose” em direção ao adjetivo ‘prudente’,
452
meta referencial. Por outro lado, em “bons estudantes passam no vestibular”, o
verbo ‘passar’ descreve uma especificidade do movimento virtual que conduz o
trajetor “bons estudantes” à meta referencial “no vestibular”.
A relação entre trajetor e marco organizada pelo verbo pode ser expressa
da seguinte forma:
José é prudente
trajetor Predicação nominal marco referencial
(Verbo de transmissão de
estado permanente)
453
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
454
sujeito gramatical operador finito
Modo Resíduo
modo resíduo
455
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4. Semântica da enunciação
José é prudente
AI (argumentação interna) perigo PT precaução
AE (argumentação externa) prudente PT possibilidade de viver muito
457
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
L------------------------------------------------------------------LT
Ei
al-x --------------------------------------------------------------at-x
3Uma visão mais ampla da configuração da cena enunciativa pode ser encontrada em
Guimarães (2018).
459
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
460
a)
---------------------------------------
José é prudente
(sujeito) (predicado)
Ei (enunciador universal)
al-x---------------------------------al-x
b)
-----------------------------------------------------
Ei (enunciador universal)
al-x-----------------------------------------------------al-x
461
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
4 [...] dizemos que os nomes se formam socialmente, e quando participam de um enunciado são
atualizados nas construções desse enunciado em processo de articulação. Por isso, abordamos
o nome como formação nominal (FN). Buscamos, portanto, explicar a sua entrada no enunciado
pelo exercício da língua. O conceito de formação nominal expressa a integração do nome e da
nominalidade em geral como componente do enunciado em articulação. Assim, temos uma FN
quando os nomes deixam de ser concebidos como palavras isoladas para serem vistos como
formadores do enunciado. Daí a palavra formação. Efetivamente, os nomes se formam em
unidades para participar da enunciação. A formação nominal é o processo de entrada do nome
no enunciado, participando assim do acontecimento da enunciação. (DIAS, 2020, p. 3,4).
462
funções [gramaticais]”. Por outro lado, a sentença também apresenta um lugar
não qualificado relativo ao local [place] que abriga os lugares sintáticos nas
sentenças.
Para esclarecer a diferença entre lugar qualificado e não qualificado, na
terminologia de Milner (1989) site e place, Dias (2009, p.14) analisa os seguintes
exemplos:
1)
a) Bela marquesa, seus belos olhos me fazem morrer de amor
b) De amor morrer me fazem, bela marquesa, seus belos olhos.
c) Seus belos olhos de amor me fazem, bela marquesa, morrer.
2)
a) Sílvia ama Bruno
b) Bruno ama Sílvia
463
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Coordenadas enunciação
(3ª pessoa do singular
presente do indicativo) Predicação
José é prudente
Verbo infinitivo
ser
464
(2)
Base
Predicação
Coordenadas enunciação bons estudantes
(3ª pessoa do singular presente passam no vestibular
do indicativo)
Verbo infinitivo
passar
465
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Considerações finais
466
Considerando esse quadro teórico, durante o percurso desse trabalho,
pudemos compreender que a concepção de predicação se constitui de forma
múltipla, variada e heterogênea, conforme diferentes visões teóricas. Além disso,
o fato de termos produzido foco nas sentenças “José é prudente” e “bons
estudantes passam no vestibular” nos permitiu apresentar uma perspectiva
didática dos aspectos sintáticos e semânticos da predicação.
Referências
467
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Introdução
469
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
471
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
não vai ter aula porque pode ser feriado. Assinado: tia Paulinha. É verdade esse
bilete.”
Tomaremos como aporte para as nossas observações a última parte
desse texto - “é verdade esse bilete” -, a fim de verificarmos a relação de
predicação que existe entre o sujeito “esse bilete” e seu predicado “é verdade”.
Aqui, fica marcada a afirmação de Guimarães, como citamos acima, de
que é a enunciação que conecta esses dois termos, articulando-os
constitutivamente, como uma unidade de sentido, no acontecimento enunciativo:
o bilhete de Lucca para seus pais.
Diante dessa justaposição de sujeito e predicado, buscamos a noção de
“avaliação”, sob a ótica do referencial histórico que ancora esse enunciado,
direcionando sua significação. Examinando a cena enunciativa, podemos dizer
que nossa primeira ocorrência se ancora no referencial de uma mentira que quer
se tornar verdade. O desejo do menino é ficar em casa. Dessa forma, mente uma
possível verdade e percebe a necessidade de legitimá-la, afirmando-a como
verdadeira e é exatamente essa ênfase na suposta “verdade”, por meio da
mentira, que nos permite fazer esta avaliação.
A partir desse bilhete, procuramos, então, analisar outras ocorrências,
observando o funcionamento do enunciado, diante da conexão feita, pela
enunciação, de sujeito e predicado; além de considerar os diferentes efeitos de
sentido, por meio do referencial histórico, para a constituição de nosso continuum
de sentido.
Seguindo a concepção de “verdade” manifesta no enunciado,
encontramos o seguinte exemplo:
472
(2)
(3)
FIGURA 3 – Bilhete do presente para a professora
(5)
FIGURA 5 – Bilhete do dentista
Nesse caso, temos um recado escrito por um suposto dentista para o seu
paciente e uma afirmação que soa bem corriqueira. Porém, considerando o
acontecimento enunciativo e a necessidade de enfatizar a verdade com o
enunciado “é verdade esse bilhete. ”, parece-nos que há, mais uma vez, uma
oscilação entre a noção de “verdade” e “mentira”.
O tratamento dentário, por aparelho ortodôntico, é geralmente
considerado, pelos pacientes como demorado; parece haver, diante disso,
(6)
FIGURA 6 - Bilhete de uma professora de dança sobre o ensaio
477
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
478
(7)
FIGURA 7 – Bilhete sobre as normas da ABNT
(8)
FIGURA 8 – Bilhete da academia Nova Meta
8Disponível em:
https://www.facebook.com/NovaMetaAcademia/photos/a.238890156280406/108194538197487
5/?type=1&theater Acesso em: 04/10/2019
480
(9)
FIGURA 9 – Bilhete sobre a morte
(10)
FIGURA 10 - Bilhete da troca entre os sujeitos “bilete” e “cachaça”
(11)
FIGURA 11 - Bilhete sobre a decisão de votos nas eleições
484
(12)
FIGURA 12 – Bilhete sobre a assinatura online
(13)
13
Disponível em:
https://www.picbear.org/tag/Bilete/QVFEV3dZbXQxWkZxbkRvcGFrMlVMdF93LXl2em85bENPcjgwd
293WGVQVTd2X2xpVFUxcFctT2k2RWhGQmpNSnlYcnE0TE9IcmQ4X2JTMmNxMm1WRnV5VA=
= Acesso em: 23/03/2020
486
Fonte: Elaborado pelas autoras
Considerações Finais
487
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Referências
488
A NOMINALIZAÇÃO E O LUGAR DE SUJEITO:
ESPAÇO DE PROJEÇÃO PARA MEMORÁVEIS
Introdução
489
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(1)
491
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
Extraído do Twitter.
492
(3)
Extraído do Twitter.
494
(5)
saturação, o núcleo projeta um agente que não aparece exatamente como tal na
instância presente, mas como um aparente complemento. Ele decorre da
suspensão da predicação em uma outra instância enunciativa. É o caso de:
Observemos o enunciado:
498
As possibilidades de saturação semântica vão estar ancoradas nesse
memorável atualizado, isto é, na relação entre essa memória de significações e
uma pertinência do significar atual. Assim também se dá em intolerância
religiosa, em (14), e apropriação cultural, em (15). Não está marcado
lexicalmente quem não tolera uma religião ou quem se apropria culturalmente de
alguns signos, mas a forma nominalizada parece abrigar esses possíveis
sujeitos, uma vez que condensa as possibilidades de definitude.
Em outros casos, o traço de ocupação pode se caracterizar como ainda +
indeterminado, em razão de uma dispersão da definitude referencial. Não há
limites rígidos entre essa terceira concepção de projeção do núcleo do sujeito
base e a segunda concepção. Optamos por inserir algumas formações nominais
nesse grupo, em razão de essas formações apresentarem um traço maior de
indefinição, incluindo aí, por exemplo, o caso dos nominais de infinitivo, que, para
nós, não estaria nem no grupo primeiro, nem no segundo papel projetivo. Dito
de outro modo, a definitude referencial das formações nominais que estão nesse
grupo assenta-se no fato de que o núcleo, ou melhor, a forma nominalizada,
condensa mais as possibilidades de definitude. Vejamos:
499
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(12)
Observemos o enunciado:
500
Entendemos que os nominais refletir e mobilizar, núcleos de um sujeito
base, parecem figurar ainda mais alto na escala dos graus de indeterminação.
Por mais que pensemos em uma possibilidade como um livro para você refletir,
considerando que se trata do gênero propaganda, imbuído, portanto, de uma
função conativa da linguagem, esse você ainda se apresenta com características
de indefinição, dada a sua amplitude. Do mesmo modo, podemos pensar a forma
mobilizar, em quem vai mobilizar? (e aqui poderíamos pensar, também, em
mobilizar o quê? já que essa discussão de projeção histórica passa, também,
pelo lugar de complemento). O você, agente possível, equivaleria a alguém e se
apresentaria, nessas condições, com características de indefinição.
Contudo, assim como os exemplos que discutimos na concepção anterior
de projeção, esses casos envolvendo os nominais de infinitivo também podem
ser inseridos numa proposta escalar, portanto, não fechados em um único olhar
que se aplique a todo caso dessa natureza. A fim de melhor entender esse
movimento de sentidos, consideremos os exemplos a seguir:
(13)
501
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
(14)
Tomemos os enunciados:
502
constituição, em alguma medida (para mais, se comparado ao exemplo Um livro
para refletir e mobilizar) dos traços de definitude da ocupação do sujeito.
Considerações finais
Referências
503
Movimentos do linguístico: forma e sentido em enunciação
504