Cap. Ebook Memória e Patrimônio - Tramas Do Contemporâneo PDF

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MEMÓRIA E

PATRIMÔNIO:
TRAMAS DO CONTEMPORÂNEO

Coordenadoras Organizadores
Juliane Conceição Primon Serres Darlan De Mamann Marchi
Maria Letícia Mazzucchi Ferreira Eduardo Roberto Jordão Knack
Rita Juliana Soares Poloni

Porto Alegre
2019
Copyright ©2019 dos organizadores.

Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências
bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.

Direitos desta edição reservados aos autores, cedidos somente para a presente edição à
Editora Casaletras.
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parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora ou do(s) autor(es), poderá
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Casaletras

Imagem da capa e separatas:


Sapatos no Passeio do Danúbio - Memorial do Holocausto - Nikodem Nijaki. Este arquivo
está licenciado sob os termos da licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0

Revisão ortográfica:
Marlise Buchweitz Klug

Editor:
Marcelo França de Oliveira

Conselho Editorial

Prof. Dr. Amurabi Oliveira (UFSC)


Prof. Dr. Elio Flores (UFPB)
Prof. Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Prof. Dr. Francisco das Neves Alves (FURG)
Prof. Dr. Luiz Henrique Torres (FURG)
Profª Drª Maria Eunice Moreira (PUCRS)
Prof. Dr. Moacyr Flores (IHGRGS)

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M5339 Memória e Patrimônio: tramas do contemporâneo / Juliane Conceição Primon


Serres, Maria Letícia Mazzucchi Ferreira (Coord.), Darlan De Mamann
Marchi, Eduardo Roberto Jordão Knack, Rita Juliana Soares Poloni (Org.).
Porto Alegre: Casaletras, 2019.

409p.
Bibliografia
ISBN 978-85-9491-052-3

1. Memória - 2. Patrimônio - Serres, Juliane Conceição Primon - II. Ferreira,


Maria Letícia Mazzucchi - III. Marchi, Darlan De Mamann - IV. Knack,
Eduardo Roberto Jordão - V. Poloni, Rita Juliana Soares - VI. Título

CDU:351.853(81) CDD:363.690981

Editora Casaletras
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - [email protected]
www.casaletras.com
APRESENTAÇÃO

E
sta obra, em forma de coletânea de artigos, é resultado de alguns dos trabalhos
apresentados por pesquisadores e pesquisadoras durante o 9º Seminário
Internacional em Memória e Patrimônio (SIMP), evento promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural
(PPGMP), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ocorrido nos dias 15, 16
e 17 de maio de 2019, nas dependências do ICH-UFPel. O SIMP possui uma
trajetória social e científica consolidada junto à comunidade acadêmica.Tanto através
da participação de conferencistas nacionais e estrangeiros reconhecidos quanto nos
simpósios temáticos, com a divulgação de trabalhos de pesquisadores de diferentes
formações e instituições de ensino superior, o Seminário tem contribuído, em todas
as edições, para o debate de temas e conceitos que emergem nas áreas da memória
e do patrimônio.
Desde sua primeira edição, o SIMP tem se destacado, tanto na escolha de
temas de fulcral importância para as temáticas do Patrimônio e da Memória, na
contemporaneidade, bem como pela presença de nomes de renomada importância
em ambos os campos de estudo. Na edição de 2019, através do tema “Memórias
difíceis”, o evento buscou acompanhar a emergência de uma discussão que envolve
memórias trágicas, eventos coletivos traumáticos, patrimonializações de lugares de
sofrimento e recuperação de memórias subterrâneas. Esse assunto tem sido objeto
de trabalho do grupo de pesquisas Patrimônio em Lugares de Sofrimento, o qual
reúne professoras, pós-doutorandos e estudantes em nível de graduação, mestrado e
doutorado que atuam no PPGMP da UFPel.
Dessa maneira, o 9º SIMP foi uma oportunidade excepcional para ampliar redes
de pesquisas e promover debates sobre um tema que tem sido objeto de estudos e
pesquisas, alguns dos quais presentes nesta coletânea, pelos professores e alunos que
atuam no PPGMP. Essas pesquisas buscam analisar como as memórias associadas ao
sofrimento convertem-se em memória coletiva ou, como afirma Joel Candau1, em
formas de compartilhamento, diferenciando-se quanto à intensidade e capacidade de
afirmação dentro de um conjunto social, o que estaria associado ao papel relevante dos
1  CANDAU, Joel. Memória e Identidade. 1. ed., 1° reimp. –São Paulo: Contexto, 2012.
sociotransmissores, elementos atuantes na construção de discursos memoriais e em
sua transmissão. Ao se pensar em experiências fortemente associadas ao sofrimento,
o grau de compartilhamento interno aos sujeitos atores desses processos é muito
maior do que seria com outros que não possuem vivências semelhantes.A capacidade
de transmissão de experiências da dor deriva da necessidade de conferir visibilidade
e ressonância às lembranças, utilizando-se para tanto diferentes mecanismos, dentre
os quais a patrimonialização e a musealização. Os processos de sofrimento, em que
pese a dimensão intimista e pessoal com que são vivenciados, constituem-se como
elementos identitários e de busca pelo reconhecimento quando projetados na esfera
do coletivo. É assim que a diversidade de rupturas violentas, que se inscrevem nas
tramas existenciais de sujeitos e grupos, busca tornar-se objeto de narrativas para
descrever as experiências do sofrimento e dos fenômenos sociais e culturais que o
acompanham, a partir de diferentes linguagens que ocupam o espaço público, tais
como memoriais, museus, associação de vítimas, movimentos de Direitos Humanos,
dentre outros.
Os artigos que compõem esta coletânea estão divididos em quatro partes,
por afinidades de temáticas: Museus e memória; Memória, educação e cidadania;
Memória, monumentos e cidades; Memórias difíceis.
Na primeira parte desta obra, busca-se questionar o papel institucional dos
museus e sua produção discursiva, frente a reivindicações e demandas do mundo
contemporâneo, permeado por temáticas tais como os estudos pós-coloniais, a
emergência de memórias subterrâneas e de novos atores sociais, as tensões entre
culturas e identidades locais e poderes instituídos, e os desafios que as fronteiras
tecnológicas e digitais impõem às instituições que tratam de memória e patrimônio.
Sob o tema “Memória, educação e cidadania”, por sua vez, procura-se desafiar
as fronteiras institucionais das discussões relacionadas à memória e ao patrimônio,
buscando discutir a relação entre identidades, memórias e etnicidades, patrimônio
intangível e culturas locais, bem como o lugar do sujeito na constituição de memórias
e de identidades.
Já em “Memória, monumento e cidade” busca-se questionar o protagonismo
de atores subalternizados na constituição dos lugares que circunscrevem o espaço
urbano, atentando para a importância dos sítios de memória e da denúncia do
esquecimento nas lutas por visibilidade desses atores sociais.
Finalmente, sob a égide do tema “Memórias difíceis”, eixo principal de
discussão do 9º SIMP, exploram-se com profundidade as relações entre eventos
e experiências traumáticas e a constituição de discursos memoriais oficiais ou
alternativos, bem como seu papel na emergência de memórias subterrâneas e na (re)
discussão de políticas públicas e de histórias oficiais acerca de eventos e períodos
controversos da história brasileira e latino-americana recentes.
Espera-se que a presente obra possa se constituir como um marco referencial
para os estudos da memória social e do patrimônio cultural sob a égide de novos
paradigmas e ontologias, rompendo-se com discursos metamemoriais marcados por
vozes institucionais, por narrativas oficiais e por discursos dominantes. Enseja-se fazer
emergir o lugar da dor, do sofrimento e da abjeção não somente na constituição
de identidades e de memórias de grande significado social, mas, também, como
questionadores do papel do patrimônio num mundo contemporâneo marcadamente
polissêmico e polifônico, em que as reivindicações de grupos subalternos e de
indivíduos dissonantes emergem e questionam o lugar dos monumentos, das
instituições e das narrativas oficiais de Estados e Nações.
Para finalizar, gostaríamos, ainda, de agradecer a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pelo financiamento do
SIMP e desta publicação.
Desejamos uma boa leitura a todos.

Os organizadores
SUMÁRIO

I – MUSEUS E MEMÓRIA
Portugal e seu passado recente: representações do fim da colonização no Museu
Nacional de Etnologia........................................................................................................................12
Lília Rolim Abadia

Memórias dolorosas e dificuldades narrativas no processo de extroversão do passado: o


caso de dois memoriais em espaços de saúde no Rio Grande do Sul.................................24
Daniele Borges Bezerra
Darlan de Mamann Marchi

Do apagamento à inscrição museal na web: o estudo de caso do Museu das Memórias


(In)Possíveis...........................................................................................................................................39
Priscila Chagas Oliveira
Maíra Brum Rieck

Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse: o choque em questões de


memória e patrimônio e a confusão entre público e privado................................................50
Marcia Morales Salis
Helen Kaufmann Lambrecht Espinosa

A arqueologia como meio de construção e ressignificação de memórias: presença e


permanência indígena na região Norte do Rio Grande do Sul..............................................62
Jacqueline Ahlert
Tau Golin

Museus de Memória e turismo: entre os desafios da transmissão e a banalização das


memórias difíceis.................................................................................................................................72
Carolina Gomes Nogueira
Maria Leticia Mazzucchi Ferreira
Darlan de Mamann Marchi
Cartas musealizadas e discursos de memória: análise da obra “Cartas para Ellos: Intercambio
epistolar del Fondo de Solidariedad de la CNT en los años de dictadura”............................. 84
Cristiéle Santos de Souza
Carla Rodrigues Gastaud

O Desenho Infantil a partir do artista Nuno Ramos no Museu de arte Leopoldo Gotuzzo....98
Letícia Beck Fonseca
Caroline Leal Bonilla

II - MEMÓRIA, EDUCAÇÃO E CIDADANIA


O processo de construção das tradições doceiras em Morro Redondo/RS: primeiras
observações........................................................................................................................................113
Andréa Cunha Messias
Diego Lemos Ribeiro

Arquitetura da imigração italiana no Noroeste do Rio Grande do Sul: identidade e


memória..............................................................................................................................................124
Jaqueline Petenon Smaniotto
Claudete Boff
Rocheli Andréia Diel

Cultura e Territorialidade Pomerana........................................................................................... 137


Carmo Thum
Erineu Foerste

Memória de infância: proibido cantar em alemão.................................................................. 147


Solange do Carmo Vidal Rodrigues

O papel da mulher pomerana no contexto social e familiar: narrativas em gênero e


etnicidade...........................................................................................................................................158
Karen Laiz Krause Romig

Memórias sobre a nacionalização do ensino em escolas teuto-brasileiras ligadas a


sínodos luteranos (1933 – 1945)................................................................................................172
Elias Kruger Albrecht

Ser professor em escolas rurais: para além da docência......................................................185


Patrícia Weiduschadt
Renata Brião de Castro
Bilinguismo na Educação Infantil: tensões entre cultura escolar e cultura local e
identidade cultural...........................................................................................................................198
Myrna Gowert Berwaldt
Carmo Thum

III - MEMÓRIA, MONUMENTOS E CIDADES


Processos memoriais de imigrantes no cemitério: outra leitura do museu a céu aberto......209
Jenny González Muñoz

Cemitérios luteranos de Pelotas/RS: religiosidade expressa em símbolos tumulares.....219


Lucas de Souza Pedroso

Monumento público, memória social e catástrofe: ativar a dor para não esquecer.....232
José Paulo Siefert Brahm
Davi Kiermes Tavares
Juliane Conceição Primon Serres

História da Classe Trabalhadora, Memória e Patrimônio: algumas considerações sobre a


situação de Porto Alegre................................................................................................................245
Frederico Duarte Bartz

Las “no memorias” en el barrio histórico de Colonia del Sacramento: tres casos de olvido
en el proceso de patrimonialización del sitio..........................................................................256
Laura Ibarlucea

Esse [não] é o meu lugar: sobre as memórias das mulheres nas cidades.......................268
Fernanda Fedrizzi Loureiro de Lima
Helene Gomes Sacco

O desenvolvimento urbano em Santa Rosa/RS e estudo da cidade no âmbito


patrimonial.........................................................................................................................................282
Estefani Caroline Basso Lago
Juliana de Lima Buuron
Vitor Matheus Haab

Percursos da preservação do patrimônio na Espanha e Andaluzia....................................292


Karen Velleda Caldas
Flávio Sacco dos Anjos
Javier Bueno Vargas
Relações familiares no ofício de benzer: uma narrativa dos praticantes em São Miguel
das Missões/RS..................................................................................................................................303
Juliani Borchardt da Silva
Ronaldo Bernardino Colvero
Eduardo Knack

IV- MEMÓRIAS DIFÍCEIS


Navegando pelo Léthê: nas margens do esquecimento.......................................................314
Eduardo Roberto Jordão Knack

Eventos raros, mas catastróficos: o patrimônio cultural pede socorro.............................331


Micheli Martins Afonso
Juliane Conceição Primon Serres
María Arjonilla Alvarez
Karen Velleda Caldas

Sobre clausuras e loucuras: memória e cidades.....................................................................342


Luis Fernando Herbert Massoni
Simone Mainieri Paulon

Corpo ausente, imagem presente: fotografia e desaparição forçada................................353


Aura Marcela Mesa Pulgarín
Laila Figueiredo Di Pietro

Memórias Trans: entre estigmas e traumas ante a privação de liberdade......................366


Lucimary Leiria Fraga
André Leonardo Copetti Santos
Juliani Borchardt da Silva

Colonialismo estrutural: representações públicas da escravidão no Brasil....................378


Elis Meza

Archivos para los Derechos Humanos; Origen y evolución de los formatos únicos de
Declaración de víctimas entre 1997-2019 en Colombia......................................................389
Yenifer Cristina Cardona López

As discussões memoriais da tragédia na boate Kiss em Santa Maria – RS.....................398


Danilo Amparo Rangel
Juliane Conceição Primon Serres
I - MUSEUS E MEMÓRIA
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

PORTUGAL E SEU PASSADO RECENTE:


REPRESENTAÇÕES DO FIM DA COLONIZAÇÃO
NO MUSEU NACIONAL DE ETNOLOGIA
LÍLIA ROLIM ABADIA1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Nos últimos anos, temos visto crescentes esforços de diversos grupos sociais para
debater as consequências do passado colonial no presente da sociedade portuguesa.
Estes esforços vêm se ampliando na última década, alcançando maior repercussão
nos meios de comunicação de massa2 e em debates acadêmicos.
Neste cenário, parece-nos pertinente voltar à questão tão presente na literatura
museal sobre o papel dos museus nacionais na representação da história e na
consolidação de um imaginário nacional. Vemos neste debate posições divergentes
desde os que consideram que os museus são instituições criadoras de consenso
(BONNEL; SIMON, 2007; SMITH 2011; WEISER, 2017) até os que reforçam a
necessidade de decolonizar os museus, mesmo que isso signifique deixar as fraturas
sociais expostas (VISO, 2018; MIRZOEFF, 2017).
Atualmente, o papel do museu do século XXI tem sido amplamente debatido
em relação à sua capacidade de comunicação e ao papel que deve atribuir aos
visitantes (HENNING, 2005; SANDELL, 2007). Tem crescido o apelo, tanto no
meio acadêmico quanto no âmbito da prática museal, para que os museus nacionais
abandonem suas missões civilizadoras e adotem outras voltadas para acessibilidade
e inclusão. Henning denomina essa mudança de paradigma como uma “nova
episteme” dos museus (2011, p. 306). Há quem veja essa nova episteme como um
esforço insuficiente para decolonizar os museus, reivindicando novas práticas museais
(VISO, 2018; MIRZOEFF, 2017). A reformulação dos objetivos dos museus para
o século XXI tem, sem dúvida, exercido influência na prática museal de diversas
1  Doutora pela Universidade de Nottingham, atualmente pesquisadora associada da Universidade Católica de
Brasília, CAPES-Brasil, [email protected].
2  Podemos destacar, como episódios que ilustram o alcance do debate sobre as questões raciais e coloniais em
Portugal, a polêmica envolvendo o Museu das Descobertas ou dos Descobrimentos (SALEMA, 2018), o memorial
da escravidão (SALEMA, 2019) e a demanda por inclusão de dados étnico-raciais no censo de 2021 (HENRIQUES,
2018).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

instituições de caráter nacional em Portugal e em várias partes do globo. Contudo,


ainda se afigura verdadeira a afirmação de que os museus nacionais procuram, com
um maior ou menor grau, “mobilizar e monumentalizar os passados nacionais e
universais para legitimar e dar sentido ao presente, bem como para antever o futuro”
(MACDONALD, 2000, p. 2, tradução nossa). A visão de que o museu nacional deve
ser um criador de consenso ainda está bastante presente na literatura museológica.
Weiser (2017), por exemplo, argumenta que, ao criar consenso, o museu nacional
está promovendo o engajamento cívico. Por sua vez, a promoção de engajamento
cívico é alcançada a partir de narrativas “de grandes feitos do passado que reafirmam
valores e incitam a ações no presente” (WEISER, 2017, p. 31, tradução nossa). Smith
nos recorda que “tradicionalmente os museus podem ser caracterizados como, por
assim dizer, lugares seguros de celebração e afirmação”, por exemplo, de identidades
coletivas (2011, p. 260, tradução nossa). Bonnell e Simon (2007) sugerem que,
quando não cumprem essa missão tradicional de promover o consenso, os museus
tornam-se pedagogicamente problemáticos.
Estando divididos entre uma crescente demanda por inclusão social e, ao mesmo
tempo, uma necessidade de criação de consenso, os museus necessitam equilibrar a
necessidade de um engajamento cívico no tempo presente, mantendo, ao mesmo
tempo, o cerne da sua missão fundadora. Situado neste dilema, encontra-se o Museu
Nacional de Etnologia (MNE), sediado em Lisboa, Portugal. Propomos, então, uma
reflexão sobre o seu papel na (re)construção da memória colonial, em particular,
na memória do fim da colonização portuguesa em África. Procuramos discutir
os mecanismos de construção de memória e, em igual medida, de esquecimento
sobre eventos traumáticos que formam a identidade nacional portuguesa, mais
especificamente a guerra de libertação nacional dos países africanos, denominada
em Portugal de “guerra colonial” ou “guerra do ultramar”.
Começaremos por contextualizar o MNE em relação à história da sua fundação,
à biografia de seus fundadores e ao contexto político em que se inscreve sua missão
fundadora. A seguir, examinaremos seu discurso museológico atual3, sugerindo uma
leitura sobre as consequências do silenciamento da memória do fim da colonização
portuguesa em África.

ANTECEDENTES E CRIAÇÃO DO MNE

O MNE apresenta-se como uma instituição de relevância na consolidação


da antropologia cultural como disciplina acadêmica em Portugal. Embora pouco
visitado pelo público geral, conforme sinalizam os dados da Direção-Geral do
Património Cultural (DGPC)4, o museu apresenta um importante acervo dos países
3  Os dados apresentados neste capítulo consistem em resultados parciais da tese de doutorado de Abadia (2019). A
coleta dos dados foi feita através de pesquisa de campo realizada entre março e maio de 2015, consistindo em visitas
à exposição, entrevista aos funcionários e observação dos visitantes.
4  O relatório “Estatísticas de Visitantes” da DGPC, referente ao ano de 2015, contabiliza 15.397 visitas naquele
ano. Disponível em: <http://www.patrimoniocultural.gov.pt/static/data/museus_e_monumentos/estatisticas_
visitantes_

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

africanos de colonização portuguesa. Foi oficialmente criado com o nome de Museu


de Etnologia do Ultramar (MEU), em 1965, durante o Estado Novo português e
após a eclosão das guerras de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-
Bissau, em um período de grande pressão internacional para a descolonização
(REIS, 2013). O seu projeto é, contudo, anterior ao início das guerras de libertação
nacional.
Evidentemente, este museu não foi a primeira tentativa de se instituir
um museu dedicado ao império colonial português. Esforços neste sentido se
seguiram desde, pelo menos, o século XIX. Como observa Leal (2011), a partir do
século XIX, surgiram vozes contundentes propondo a construção de um museu
imperial ou de um museu antropológico (e, em alguns casos, ambos). Manuela
Pereira (2010) reforça que houve três períodos de fortes impulsos etnográficos
que levaram à formação de várias instituições dedicadas à etnologia em Portugal,
especificamente nas segundas metades dos séculos XVIII, XIX e XX. Esses impulsos
foram motivados por diferentes objetivos políticos e atores sociais. Por exemplo, no
século XVIII, antes da consolidação da antropologia como disciplina científica, a
coleta (ou o saque) de objetos ‘exóticos’ das colônias não era feita como uma ação
coletiva institucionalizada (DUARTE, 1999; PEREIRA, 2010). No século XIX,
constituíram-se as sociedades de etnografia e o Museu da Sociedade de Geografia,
pequenas coleções antropológicas ligadas a universidades e o Museu Arqueológico
e Antropológico Leite de Vasconcelos – este último muito mais dedicado à primeira
do que à última disciplina (DUARTE, 1999; PEREIRA, 2010). Em meados
do século XX, muitos museus antropológicos dispersos foram criados no país,
incentivados pela política do Estado Novo português de reforçar a ideia de uma
identidade nacional enraizada nas tradições rurais portuguesas5 (DAMASCENO,
2010). O Estado Novo português, vigente de 1933 a 1974, caracterizava-se por um
“estado corporativo, não liberal, autoritário” (ALMEIDA, 2013, p. 129, tradução
nossa). Neste período ditatorial, a retórica sobre colonização portuguesa foi se
adaptando de uma asseveração do direito histórico sobre os territórios e povos
dominados a uma retórica civilizacional de fraternidade, utilizando-se das ideias
lusotropicalistas do intelectual brasileiro Gilberto Freyre (1940; 1958) que via na
colonização portuguesa uma plasticidade e uma adaptabilidade incomparáveis com
outras colonizações. É neste embate de projetos coloniais que o MEU foi criado.
O MEU foi o resultado de diferentes interesses e atores que convergiram
naquele momento particular. A literatura que examina a criação do então MEU,
atual MNE, postula dois projetos principais para a instituição: um baseado (i) no
desejo político de exibir a grandiosidade do império português – desejo que foi
principalmente defendido pelos agentes governamentais; e (ii) outro estritamente
focado nas discussões científicas e acadêmicas – objetivo ambicionado pelo fundador
do museu, António Jorge Dias, e por sua equipe (AREIA, 1986; LIRA, 2002;
dgpc_2015.pdf>. Acesso em: 13/06/2019.
5  Não é de estranhar que, na década de quarenta do século XX, intensifiquem-se os apelos para a criação de
um museu para exibir o império português, uma vez que nesta mesma década ele foi celebrado na Exposição do
Mundo Português, evento que proveu a capital portuguesa de símbolos imperiais (MATOS, 2006; PERALTA,
2017).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

LEAL, 2006; PEREIRA, 2006). Curiosamente, este último aparece frequentemente


na literatura sobre a história do museu como um projeto neutro, que não tinha
ligações com a agenda colonialista do Estado Novo. Por exemplo, Areia afirma
que o fundador do museu, António Jorge Dias, e sua equipe foram motivados por
“um projecto de implícita oposição teórica ao poder político e relativa conciliação
prática” (AREIA, 1986, p. 142). Rui Pereira corrobora os argumentos de Areia sobre
o carácter subversivo do MEU ao afirmar que,

Com o decorrer das campanhas [etnográficas em Moçambique], Jorge Dias parece ter invertido a
hierarquia de interesses previamente determinada por aqueles que patrocinaram a sua investigação
no norte de Moçambique [Junta de Investigação do Ultramar], ou seja, fez ascender ao primeiro
plano os objectivos iminentemente etnológicos (PEREIRA, 2006, p. 421).

Rui Pereira chega a sugerir que Dias agiu para alterar a ação colonial portuguesa
na África, propondo “medidas correctivas e disposições preventivas, tão gritante era
a discriminação, a exploração e o obscurantismo, se acareados com os ideais inscritos
no modelo colonial português” (PEREIRA, 2006, p. 457).
António Jorge Dias aparece destacado na literatura que se debruça sobre a
antropologia moderna portuguesa, sendo exaltado por suas qualidades pessoais e
profissionais. Apesar de uma grande idealização de sua figura, alguns exemplos
de literatura acadêmica deslindam o papel de Dias no intricado sistema colonial
(CHUVA, 2016; MACAGNO, 2002; THOMAZ, 1996; WEST 2004).
De fato, a biografia de Dias aponta que o intelectual foi ativo no regime
colonial, tendo participado de expedição científica, no final da década de 1950, no
norte de Moçambique, para informar as políticas de dominação e subjugação das
populações locais (CHUVA, 2016; PEREIRA, 2006; WEST, 2004). Contudo, sua
postura em relação à colonização portuguesa é complexa, como assevera R. Pereira
(2006). Se for certo que Dias produziu relatórios técnicos para a Junta de Investigação
do Ultramar, alertando sobre o perigo de sublevação dos Macondes, também é
certo que o período em campo o levou a perceber os problemas da colonização
portuguesa, alterando sua visão anteriormente pautada num lusotropicalismo um
tanto quanto ufanista.
Para além disso, segundo R. Pereira (2006), Leal (2010) e Areia (1986), Jorge
Dias foi pioneiro na condução da antropologia cultural, ao invés de medidas
antropométricas, dentro dos territórios coloniais portugueses. Em seu trabalho de
campo, na África Lusófona, nos anos 1950 e 1960, Dias rejeitou práticas recorrentes e
colonialistas na antropobiologia – as medidas cranianas, por exemplo –, focando, em
vez disso, nos aspectos culturais dos povos colonizados. Este foi um passo significativo
na pesquisa antropológica colonial portuguesa, particularmente naquela época.
Dias também contribuiu para a institucionalização da antropologia portuguesa. Foi
membro do primeiro centro de pesquisa do país, o Centro de Estudos de Etnologia,
criado em 1947, e do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, criado em
1962 (LEAL, 2006; PIGNATELLI, 2014). Ele ministrou disciplinas de antropologia
em duas importantes universidades portuguesas, a Universidade de Coimbra e

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

a Universidade de Lisboa, e auxiliou na fundação do curso de antropologia no


Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (hoje, Instituto Superior de Ciências
Sociais e Ciências Políticas) (LEAL, 2006). Muitos autores enfatizam que Dias foi
responsável pela renovação do pensamento antropológico no país (AREIA, 1986;
LEAL, 2006; PEREIRA, 2006;VIEGAS; PINA-CABRAL, 2014).
Não só Dias, mas o próprio MEU foi importante na institucionalização da
antropologia em Portugal, fornecendo suporte aos cursos de antropologia em
universidades públicas portuguesas e mantendo ativos grupos de investigação em
antropologia cultural. Dias e sua equipe visavam a criar um museu que fosse um
centro de referência para os estudos etnológicos, estudando a cultura popular
portuguesa e as culturas do mundo.
Apesar de sua relevância na institucionalização da antropologia, o museu sofreu
grandes dificuldades financeiras e estruturais. Após a redemocratização de Portugal e
as independências das ex-colônias portuguesas, o museu mudou de nome, retirando
a expressão ‘do Ultramar’ que ficou, logo no rescaldo da revolução de 1974,
conectada ao regime ditatorial (CARVALHO, 2015). Em 1976, o museu inaugura
seu edifício, construído especificamente para albergá-lo. Apesar da inauguração
do edifício, o então Museu de Etnologia ficaria cerca de dez anos interditado a
visitação, funcionando apenas como centro de investigação. Em 1989, passa a se
chamar Museu Nacional de Etnologia, recebendo as atribuições legais de um museu
de caráter nacional (CARVALHO, 2015).
O discurso dos atuais funcionários da instituição, ecoando a literatura sobre
a história da mesma, salienta que houve um embate entre a missão científica e a
missão política do museu. Este argumento é utilizado para fundamentar uma dita
subversão da equipe fundadora do museu contra as pautas e a ideologia coloniais. Este
argumento, conforme veremos a seguir, reforça a idealização da equipe fundadora e
o silenciamento sobre a opressão colonial presente, ainda que involuntariamente, na
própria coleção e no discurso expositivo do museu.

PRIMEIRA EXPOSIÇÃO DE LONGA DURAÇÃO

A primeira exposição de longa duração do MNE foi inaugurada em janeiro


de 2013. A curadoria foi feita por Joaquim Pais de Brito, diretor do museu de 1993
a 2015; é intitulada ‘Um Museu, Muitas Coisas’ e surge após uma longa reflexão e
planejamento (PAIS DE BRITO, 2015). Nesta decisão, o então diretor do museu
afirma ter ponderado sobre o fato das exposições temporárias exigirem uma grande
quantidade de recursos, tanto financeiros como humanos, uma vez que há muito
trabalho envolvido em planejamento, concepção e instalação (PAIS DE BRITO,
2015).
A exposição, ‘Um Museu, Muitas Coisas’, está dividida em oito núcleos
temáticos, conforme expresso no blog oficial do MNE. São eles:

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I. Sombras. Wayang Kulit Teatro de Bali


II. Franklim Vilas Boas. Com o Olhar de Ernesto de Sousa
III. A Brincar e Já a Sério. Bonecas do Sudoeste Angolano
IV. A Música e os Dias. Instrumentos Musicais Populares Portugueses
V. Matéria da Fala. Tampas de Panelas com provérbios
VI. A Tala de Rio de Onor. Uma Escrita e seu Suporte
VII. Animais como Gente. Máscaras e Marionetas do Mali
VIII. Cronologia expositiva (BLOG MNE, s.d., n.p.).

Cada núcleo da exposição corresponde a uma discussão da antropologia


contemporânea, por exemplo: identidade de grupo (núcleos I, IV, V, VI e VII),
questões autorais (núcleo II), temporalidade e efeitos nas comunidades estudadas
após o trabalho de campo antropológico (núcleo VI ), a escrita da etnografia e as
emoções (núcleo II), objeto e cultura imaterial (núcleos V e VI) e reflexividade
(núcleo VIII). Pais de Brito sintetiza os objetivos da exposição de longo prazo da
seguinte maneira:

queria que a exposição permanente fosse dando expressão ao programa que tínhamos iniciado em
1998, que estava a ter muito bons resultados, o dos estágios de investigação. Que fosse o lugar
para apresentar esses estudos que eram feitos no museu. E, finalmente, queria mostrar como num
museu há uma infinidade de coleções e de objetos e, portanto, de problemas e de questões que
se levantam com eles, de tal ordem que até foi por aí que fomos buscar o título da exposição ‘Um
museu, muitas coisas’. Há muitas coisas porque são muitos objetos, e muitos problemas em torno
deles. E queria que houvesse, por um lado, essa individualização ou individuação dos núcleos, de
cada núcleo, mas que tudo aquilo se mostrasse em relação, a sua coexistência no museu. O museu
é essa espécie de convivência de coisas que ali foram desaguar, na casa onde se vão encontrar,
e que depois se vão dar a ver. É uma forma de dar a ver. Mas dar a ver também o trabalho de
investigação (PAIS DE BRITO, 2015, n.p.).

Assim, o título da exposição, inicialmente um tanto intrigante, resume a natureza


diversa das ambiguidades inerentes ao museu e os problemas que inevitavelmente
enfrenta.
Como fica evidente no relato de Pais de Brito, a opção da curadoria foi a
de dar destaque às partes das coleções recentemente estudadas e dar visibilidade a
diversas partes do globo. Por esta razão, não estão expostas muitas peças de Cabo
Verde, Guiné-Bissau e mesmo Moçambique – apesar da maior parte da coleção do
museu ser originária dos países africanos de língua oficial portuguesa.
Outra característica marcante da exposição do MNE consiste na celebração
de sua própria história em conexão com a consolidação da antropologia como
disciplina científica e acadêmica em Portugal. O núcleo Cronologia Expositiva
conta uma parte da história do museu, pondo em evidência algumas das dificuldades
intrínsecas à atividade museológica; contudo, nesta seção, não há uma reflexão sobre
a ligação entre o colonialismo e a antropologia, nem entre o museu e o regime
ditatorial. Muitos estudos apontam o papel das ciências sociais em providenciar

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

informações para a política ditatorial e colonial do Estado Novo (CASTELO, 2011;


THOMAZ 1996). Apesar das ciências sociais terem objetivos e instituições próprias
para o desenvolvimento de suas atividades, elas estão inseridas em um cenário mais
amplo, no qual a estrutura política tem o poder de definir políticas e financiamentos
para a construção de saberes específicos. É neste sentido que a celebração da
antropologia e do passado do museu se desencontra dos próprios desenvolvimentos
teóricos da disciplina, por exemplo no que diz respeito ao conceito de reflexividade
(CLIFFORD; MARCUS, 1986), que permitiria o desenredar das relações de poder
presentes na missão e em exposições do museu.
Em relação à missão institucional do museu, o blog oficial do MNE a descreve
como “o ambicioso programa de representar as culturas dos povos do globo não
se restringindo, pois, nem a Portugal nem aos domínios ultramarinos sob a sua
administração” (BLOG MNE, s.d., n.p.). Assim, o objetivo do museu era, e ainda é,
de natureza universalista, tentando encapsular semelhanças e diferenças de diversas
culturas em sua representação do mundo. Nem a representação das ex-colônias, nem
a identidade nacional se apresentam como temas prioritários na missão institucional
do museu.
Segundo o curador da exposição, a representação da identidade nacional não é
uma prioridade em nenhuma instituição museológica do país, isto porque, em sua
opinião,

por ser um país que nunca teve grandes dicotomias, ou fraturas internas, com fronteiras muito
antigas, de dimensão relativamente pequena […] a questão da identidade nacional nunca
foi projetada para instituições [portuguesas] como o museu, de maneira a ter de ser lembrada,
reafirmada, reposta, bem vincada. O que houve foi, durante o Estado Novo, um discurso esmagador
das diferenças. [...] E temos em contraste a equipa fundadora deste museu. Interessava-lhes
o conhecimento da dimensão mais material e técnica da cultura rural no contexto europeu. As
tecnologias tradicionais, que a industrialização vai substituir rapidamente […] Então, acho que a
questão da identidade nacional, ao nível da projeção de uma instituição não se pôs, como se põe
em Espanha! Em Espanha, os museus projetam fortíssimas tensões na afirmação das autonomias e
da identidade nacional [...] (PAIS DE BRITO, 2015, n.p.).

Embora Pais de Brito defenda que o museu não trate de questões identitárias,
na exposição de longa duração, ilustraremos como as ideias lusotropicalistas se
manifestam no silêncio museográfico sobre as condições de recolha dos objetos
expostos e da própria ligação histórica do museu com o regime colonial.

FORMAS DE SILENCIAMENTO DO PASSADO COLONIAL

Um dos exemplos da falta de reflexão sobre o colonialismo português


e as guerras de libertação nacionais se encontra no núcleo ‘A Música e os Dias;
Instrumentos Populares Portugueses’. Como o painel introdutório explica,
este núcleo é o resultado de extensa pesquisa realizada na década de 1960, por
membros da equipe fundadora do MNE, sem fundos governamentais, mas sim com

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian. Assim, este núcleo organizou a


investigação e o trabalho etnográfico dos anos 1960 e foi baseado nas exposições
temporárias que ocorreram dentro e fora do museu antes mesmo da sua criação6. Os
inquéritos que Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira e Benjamim Pereira enviaram
para párocos, professores primários e informantes do Centro de Estudos de Etnologia
são citados em legendas e mencionados na tela multimídia e no painel introdutório.
Por exemplo, o painel introdutório afirma que a “colecção de instrumentos musicais
populares resultou de uma pesquisa sistemática, promovida pela Fundação Calouste
Gulbenkian, sob proposta de Jorge Dias, liderada no campo por Ernesto Veiga de
Oliveira e Benjamim Pereira entre 1960 e 1965”.
O fato de todo núcleo expositivo estar organizado em torno do estudo realizado
pela equipe do fundador, e sendo constantemente enfatizado, reforça a ideia de
que o museu pretende celebrar a equipe fundadora e a história da antropologia
portuguesa contemporânea.
Para além disto, um exame mais atento deste núcleo deixa claro que a
identidade portuguesa está inscrita na exposição de longa duração, contrariamente
ao que Pais de Brito afirmou na entrevista que nos concedeu. Mesmo que o
objetivo do núcleo expositivo não seja o de produzir um discurso de identidade
nacional, ele acaba ressaltando uma ideia particular de nação baseada nas tradições
culturais selecionadas. Significativamente, algumas das tradições culturais retratadas
neste núcleo estão profundamente ligadas à maneira como o catolicismo foi vivido
nas áreas rurais portuguesas, como promove sociabilidades e como estreita os laços
comunitários.
Notadamente, a ideia de identidade nacional apresentada no núcleo desta
exposição não aborda o passado colonial e imperial português nem seu presente
pós-colonial, não revelando abertamente a ligação entre identidade e colonialismo.
Verifica-se uma linguagem sutil que não confronta diretamente o passado da
instituição nem do país. Por exemplo, neste núcleo expositivo, podemos observar
um reque-reque que é identificado como sendo de Santa Maria de Barcelos, Minho,
Portugal, sem data assinalada, contudo, sendo um objeto associado aos jovens
recrutados para ir à guerra colonial. O instrumento musical apresenta a inscrição
“Angola é de” na parte da frente do braço esquerdo, e “Portugal” na parte de trás do
mesmo braço. Contudo, a legenda explicativa descreve o objeto da seguinte forma:

Apesar de se tratar de um instrumento usado pelos rapazes em várias ocasiões festivas, ele [o reque-
reque] aparece mais claramente associado ao dia das inspecções militares. A inscrição “Angola é
Portugal”; evoca tanto o uso do instrumento na circunstância da ida às sortes, quanto o contexto
histórico do país no início de uma guerra que tanto afectaria as suas vidas e as sociabilidades e
manifestações que promoviam.

6  De acordo com a tela multimídia no núcleo desta exposição, os objetos que fazem parte da coleção dos
instrumentos musicais portugueses, apesar de serem preservados no museu há muitos anos, eram propriedade da
Fundação Calouste Gulbenkian. Foi somente no ano 2000 que eles foram doados ao MNE.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Observa-se que, na legenda, a inscrição do objeto consta como “Angola é


Portugal” sugerindo uma paridade, uma posição de reflexo – um é o outro. Contudo,
no objeto está inscrito “Angola é de Portugal”, o que denota uma situação de
posse e uma hierarquia – um pertence ao outro. A frase colonial mais sutil “Angola
é Portugal” enfatiza, de fato, a ideia de integração ou mesmo um espelho – como
vimos, uma ideia fortemente propagada na década de 1960 como retórica para
minimizar os esforços descoloniais. A omissão da preposição dá um sentido diferente
à frase, atribuindo outro tom à exposição, evitando enfrentar o trauma profundo da
descolonização que resultou na perda do império, na perda de vidas dos soldados
portugueses, na perda de prestígio geopolítico e no aumento das tensões sociais
internas. Esta forma de explicar o objeto pode ser interpretada como um modo
sutil de reforçar a tese freyriana sobre a colonização portuguesa, uma vez que o
colonizador não é nem nomeado nem evocado como tal; portanto, sua presença na
África não parece ser tão opressiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esta breve incursão sobre o MNE e sua exposição de longa duração,
procuramos ressaltar alguns aspectos ligados à construção de memória de eventos
traumáticos do passado recente. A seleção de memória que discutimos neste capítulo,
e que cria uma representação da identidade portuguesa, procura evitar um conflito
de narrativas sobre a colonização portuguesa e sobre a guerra colonial, estabelecendo
um consenso sobre a universalidade das culturas humanas. A exposição de longa
duração do MNE desarticula a disciplina antropológica da esfera política e evita fazer
a conexão entre a história colonial recente de Portugal e suas próprias coleções, e,
quando o faz, utiliza mecanismos sutis para criar a sensação de neutralidade, mesmo
que esta tenda a favorecer uma visão positiva da colonização portuguesa.
Sendo assim, a exposição do MNE pode ser interpretada como uma experiência
de criação de consenso da identidade nacional – uma que é sentida tanto através
da diferença com o ‘outro’ como através de um viés lusotropicalista que parece
reafirmar a plasticidade da colonização portuguesa e uma falsa horizontalidade das
relações com as populações das ex-colônias.
Neste sentido, a afirmação do ex-diretor do museu de que as instituições
museológicas portuguesas não projetam representações identitárias é uma afirmação
que enfatiza uma percepção essencialista sobre a identidade nacional, como se esta
fosse orgânica e coesa, ao invés de se tratar de uma construção, a qual, embora
tenha elementos históricos e factuais, esteja em transformação acompanhando as
mudanças políticas e sociais do país.
González de Oleaga, em uma incursão nas metodologias para a análise
expositiva, pontua os problemas da criação de consenso em instituições nacionais
e, ao mesmo tempo, aponta para o valor pedagógico destes museus mesmo quando
produzem exposições problemáticas, partindo da questão “como fazer coisas com
os museus?” (GONZÁLEZ DE OLEAGA, 2018, p. 11, tradução nossa). Segundo a
autora, o primeiro passo para o aproveitamento dessas instituições consiste em um

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

exame crítico de suas exposições para que os problemas sirvam de pontes para o
diálogo entre visitantes, educadores, curadores e sociedade em geral (GONZÁLEZ
DE OLEAGA, 2018). Este é um passo difícil no âmbito do diagnóstico institucional,
uma vez que demanda uma autocrítica da instituição e das práticas adotadas pelos
agentes na produção do conhecimento. Neste sentido, esperamos que este capítulo
contribua tanto para o diagnóstico do MNE quanto para somar ao diálogo sobre as
consequências do passado colonial, que vem acontecendo em Portugal.

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MEMÓRIAS DOLOROSAS E DIFICULDADES


NARRATIVAS NO PROCESSO DE
EXTROVERSÃO DO PASSADO: O CASO DE DOIS
MEMORIAIS EM ESPAÇOS DE SAÚDE NO RIO
GRANDE DO SUL
DANIELE BORGES BEZERRA1
DARLAN DE MAMANN MARCHI 2

Neste trabalho apresentaremos algumas reflexões que partem de análises do


Grupo de Trabalho Patrimônios em Lugares de Sofrimento, do PPGMP/UFPel.
Para tanto, discutiremos as motivações que levaram à criação do Memorial HCI,
no Hospital-Colônia Itapuã (HCI), e do Memorial do Hospital Psiquiátrico São
Pedro (MHPSP), situados no Rio Grande do Sul e que ainda abrigam os últimos
moradores internados compulsoriamente nestes locais. Ao considerarmos a
característica asilar das duas instituições, cujas histórias foram marcadas por relações
de poder e silenciamento, legitimadas pelo campo da saúde pública, procuramos
pensar as iniciativas memoriais do presente como uma forma de reparação simbólica,
atrelada à vertente dos Direitos Humanos e ao nascimento dos museus de memória
e consciência, dispositivos que, ao trazerem à tona os traumas contemporâneos,
contribuem para a dignidade social. Em nossa tentativa de compreendê-los como
reflexo da dilatação patrimonial, iniciada nos anos 1980, observamos que as narrativas
formalizadas no presente ainda privilegiam uma memória heroica da saúde, o que
pode ser atribuído à escassa participação das comunidades nesses processos, uma vez
que foram criados e são geridos por funcionários das instituições de saúde. Por outro
lado, podemos considerar tais iniciativas como processos embrionários no que tange
ao reconhecimento dos passados dolorosos das instituições, característica tocante à
dificuldade de narrar esses passados dissonantes.
Há que se considerar que, se no passado as políticas de saúde mantinham as
pessoas reclusas em instituições de longa permanência, apartadas de suas comunidades
1  Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP), Instituto de Ciências Humanas (ICH),
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), pesquisa financiada pela Capes. [email protected]
2  Doutor em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP), Instituto de Ciências Humanas (ICH),
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pós-doutorando no PPGMP-UFPel. Pesquisa financiada pela bolsa
DocFix FAPERGS/Capes. [email protected]

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de origem, observamos, hoje, diferentes iniciativas com o intuito de preservar o


passado dessas instituições como patrimônio. Esse movimento patrimonial, iniciado
há poucas décadas em torno dos lugares de saúde, tem produzido narrativas
memoriais que refletem desejos de memória distintos relacionados ao lugar de fala
dos seus idealizadores. Então, o crescimento de dispositivos memoriais em lugares
da saúde pode parecer uma antítese da função inicial desses lugares, cuja tônica
era dada pela descontinuidade espacial, pela exclusão e pelo afastamento social dos
doentes, subjugando-os a uma espécie de invisibilidade/esquecimento, no entanto,
como veremos em ambos os casos, a dimensão imaterial das experiências, muitas
vezes dolorosas, não parece se efetivar. Ao invés disso, os memoriais são criados
como “arquivos”3 (NORA, 1981; CERTEAU, 2009), projetados para proteger os
restos deixados por um sistema em obsolescência, ou seja, uma forma de preservar
as tecnologias da saúde e de situá-las no tempo e no espaço.

MEMORIAL HCI (2014)

A criação do Memorial HCI, localizado na Colônia Itapuã em Viamão (RS),


ocorreu em 2014, sem o recebimento de verba pública, por iniciativa de dois
funcionários da Secretaria Estadual de Saúde (RS): o funcionário público do estado
Marco Antônio Lucaora4 e a enfermeira Rita Sosnoski Camello5. Os idealizadores
definiram a casa das irmãs franciscanas, posicionada na zona administrativa do HCI,
como sede do Memorial. Com isso se estabelece um controle dos fluxos entre a
área de circulação dos visitantes e a área de moradia que ainda abriga pessoas que
ingressaram de modo compulsório no HCI, há, no mínimo, quatro décadas6.
O Memorial HCI apresenta aos visitantes um amplo acervo, composto por
objetos hospitalares, equipamentos cirúrgicos e de laboratório, documentos escritos,
fotografias de arquivo (que evidenciam aspectos cotidianos da vida na Colônia),
fotografias atuais (feitas para o Memorial), moedas locais, moldes de calçados, troféus
de torneios de futebol (doados por funcionários)7, instrumentos agrícolas, entre
3  Embora Jacques Derrida questione a possibilidade de criar um conceito único de arquivo, o uso que fazemos
desse conceito é o de “arquivo como acumulação e capitalização da memória sobre um suporte e um lugar
exterior” (DERRIDA, 2001, p. 23),“próteses de memória” (DERRIDA, 2001, p. 27) com valor de representação do
passado. Um passado que, como aponta Michel de Certeau (2009, p. 199), é selecionado e reempregado em função
de usos e interesses do tempo presente.
4  Marco LUCAORA fez da paixão pela arte um ofício, sendo reconhecido no seu meio profissional como um
artista plástico. Diante disso, desempenha diversas ações de restauro, recuperando objetos dos hospitais estaduais.
Além disso, no Memorial do HPSP, e no Memorial HCI é possível encontrar pinturas de sua autoria.
5  Na primeira fase da concepção do Memorial, os idealizadores estiveram em diálogo com os funcionários Neuza
Maria de Oliveira Barcelos, coordenadora do Serviço de Memória e Cultura do HPSP; Edson Medeiros Cheuiche,
historiador do HPSP; Lia Conceição Mineiro de Souza Magalhães, assessora de Comunicação Social do DCHE; e
Dennis Guedes Magalhães, assessor de Comunicação Social do DCHE. Na fase de seleção e organização de objetos,
os idealizadores contaram com a participação da funcionária do HCI Elizabete R. F. de Almeida.
6  Embora a internação compulsória tenha deixado de ser uma imposição do Estado, na década de 1960, existem
registros de internações que continuaram a ocorrer até a década de 1980.
7  Interessante observar que os moradores conservam seus troféus e medalhas em casa.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

outros. Esses objetos estão distribuídos em 25 eixos expositivos, na maioria das


vezes articulados para representar contextos e atribuir um caráter ilustrativo aos
objetos, com a presença de muita informação visual8. As visitas estão sujeitas ao
agendamento prévio, pelo e-mail do hospital9, e ocorrem em grupos. Cada visita
é introduzida por uma palestra com duração de 1 h e 30 min, momento no qual
a guia fala sobre o panorama geral da lepra no mundo, como a doença chegou ao
Brasil, até a criação do HCI. Após a palestra, na qual a guia formaliza um discurso
institucional sobre o passado, a visita às salas é uma oportunidade para a exposição
de fatos históricos, curiosidades e relatos que dão destaque ao estigma, e procuram
recriar o microuniverso do HCI e para abordar a dimensão humana da vida em
isolamento. Assim, a introdução do visitante nesse universo complexo é feita a partir
da sala “História da lepra no mundo” onde “consta o histórico da lepra, seu mapa
com os caminhos, o pecado divino, a cerimônia de separação do leproso, o Lázaro,
objetos utilizados pelo doente da idade média” (informação verbal)10.
Segundo entrevista realizada com Marco Lucaora (2015) 11, a ideia de criação
do Memorial surgiu quando ele, então, encarregado de recolher documentos do
HCI que seriam levados para o Museu da Medicina (MUHM) deparou-se com
uma história em processo de desaparecimento. Segundo as palavras da auxiliar
administrativa que mediou uma das visitas guiadas ao Memorial HCI, “Marco veio
ao hospital reunir objetos e documentos para levar ao DCHE e, depois de passar
o dia, chegou em casa e pintou o anjo. Ele sabia que não podia deixar a memórias
dessas pessoas serem esquecidas” (informação verbal)12.
A pintura (Figura 1), da qual fala a interlocutora, é a representação de um
anjo que plana sobre três pessoas cobertas por trapos, uma referência ao imaginário
religioso, bíblico, acerca da doença. A pintura parece encarnar o propósito do artista
em “salvar” essas pessoas do esquecimento, o que se apreende da ausência das faces
em dois personagens e do gesto sacralizador e protetor do anjo em direção ao grupo,
aparentemente desamparado, conforme se pode interpretar pela expressão temerosa
do personagem à direita, que carrega uma matraca, conduzindo os demais. A mesma
construção do personagem leproso, em associação ao imaginário cristão arcaico,
pode ser observada na sala A história da lepra no mundo, a primeira sala do percurso
guiado, mencionada anteriormente (Figura 2).

8  Por isso, se assemelha aos “gabinetes de curiosidade” também conhecidos como “Câmaras de maravilhas”
(SOTO, 2014) apresentando um universo revestido pelo imaginário do estigma, num contexto pouco conhecido
como o das microcidades.
9  Trata-se do e-mail institucional: [email protected].
10  Fornecida por Rita Camello em visita guiada ocorrida no dia 08 de março de 2016.
11  Informação verbal, fornecida por Marco LUCAORA durante entrevista concedida a Daniele Borges Bezerra,
no HCI, em 11 de maio de 2015.
12  Informação fornecida por Elisabete R. F. de ALMEIDA durante visita ao Memorial HCI no dia 11 de maio
de 2018.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 1: Fotografia da pintura Anjo, Figura 2: “Lázaro” representação do doente no


autoria de Marco Lucaora. período medieval por Marco Lucaora.

Fonte: Acervo de Daniele Borges Bezerra, Fonte: Acervo de Daniele Borges Bezerra,
Memorial HCI, 2018. Memorial HCI, 2017.

A sensação diante do manequim é incômoda. Não há realismo, por mais que


pareça ser esse o objetivo das manipulações que levaram à reprodução do estigma
no personagem mutilado envolto em trapos. Apesar dos riscos implicados na
interpretação da experiência de pessoas que vivem no lugar, hoje por opção, e o
estereótipo bíblico, repleto de preconceito, uma espécie de epifania motivou Marco
a criar o Memorial e sua intenção era transmitir a experiência de quem viveu o
isolamento. Nesse sentido, o contato com a cultura material do lugar gerou em
Marco uma reflexão mais profunda sobre a dimensão da experiência que também se
degradava no lugar, pouco conhecida pela sociedade.
Além da preocupação de tornar pública essa dimensão subterrânea do passado,
a narrativa de Marco reflete a natureza ambígua dos hospitais-colônia, quando afirma
que o dispositivo de isolamento criado “pra que eles tivessem todo o conforto e toda
estrutura” era, ao mesmo tempo, projetado “para que eles não saíssem” (informação
verbal)13. Ou seja, por mais humanitário que o projeto de criação de uma cidade
sob medida para seus moradores fosse, a segregação era uma medida incontornável
e, para muitos, irreparável.

13  Informação fornecida em entrevista estruturada concedida por Marco LUCAORA, no HCI, em 11 de maio
de 2015.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Já a concepção da enfermeira Rita, lepróloga que trabalha no HCI desde


2007, está permeada por suas experiências profissionais, dentre elas a que realizou
no Programa Estadual de Controle da Hanseníase (RS), em que foi responsável
pela capacitação e supervisão de profissionais da saúde. O trecho a seguir reforça
o ponto de vista da idealizadora, com relação à memória institucional do HCI:
“a saúde pública teve uma grande relevância no período 30-50. Grandes
investimentos. Devemos sim preservar a memória da saúde, das pessoas, bem como
da arquitetura” (informação verbal14, grifos nossos). Além disso, tendo em vista seu
comprometimento com a difusão do conhecimento sobre a doença, a enfermeira
fez do Memorial um recurso pedagógico, um veículo de informação estratégico em
termos de saúde pública. Nesse sentido, suas palavras transparecem a grandiosidade
atribuída à saúde nesse contexto de reconhecimento. Portanto, ao levar em conta
a preservação do passado institucional sob um viés histórico, também o considera
como recurso, um veículo de informação que pode servir ao presente:

O objetivo do Memorial é de resgatarmos e guardarmos a memória dos que ali viveram, trabalharam,
estudaram [e se destina] a todos que desejam ter informações sobre a internação compulsória,
tratamento, evolução, manejo com a hanseníase. Professores, alunos, acadêmicos, sociedade em
geral (informação verbal15, grifos nossos).

A partir disso, tem-se que o processo de musealização que gerou o Memorial


HCI foi motivado, sobretudo, pela consciência da importância de se preservarem os
testemunhos materiais do lugar, num momento em que a vida da instituição passa
por um esvaziamento. De modo geral, a narrativa da visita guiada mobiliza, nos
visitantes, sentimentos de empatia, relacionados ao sofrimento físico e emocional
pelos quais as pessoas afetadas pela doença passaram. Assim, a experiência no
Memorial HCI sensibiliza os visitantes sobre o passado e serve como brecha para a
transmissão de informações que permitam identificar precocemente a doença, sem
questionar a característica autoritária do passado institucional.
Contudo, como a experiência dos habitantes não está presente no Memorial
HCI, a experiência museal é intensa e, ao mesmo tempo, superficial. Isso ocorre
porque a narrativa introdutória ao espaço formaliza um discurso institucional único
sobre o passado e a narrativa expositiva, com o uso de cenários, é caricatural, o
que faz dos objetos elementos ilustrativos do discurso que o memorial procura
evidenciar. Nesse sentido, identificamos que a ausência das narrativas em primeira
pessoa constitui-se como uma fragilidade estrutural na transmissão do passado
representado.
Além disso, o circuito é amplo e a quantidade de informação visual dificulta
a atenção. Esse excesso de informação que se observa, tanto pela acumulação de
14  Informação fornecida por Rita CAMELLO em entrevista estruturada, após visita ao Memorial HCI, ocorrida
em março de 2016. A interlocutora pediu que as questões fossem enviadas por e-mail e as respostas foram recebidas
em 10 de mai de 2016.
15  Informação fornecida por Rita CAMELLO, em entrevista estruturada, após visita ao Memorial HCI, ocorrida
em março de 2016. A interlocutora pediu que as questões fossem enviadas por e-mail e as respostas foram recebidas
em 10 de maio de 2016.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

elementos díspares, num mesmo contexto expositivo, como pela criação de cenários
idealizados ou carregados de estereótipos, pode acarretar tanto na banalização da
memória, como observou Régine Robin (2016), quanto na espetacularização do
sofrimento (SONTAG, 2003). Um dilema ético, errôneamente justificado pela
intenção de promover o patrimônio por meio da sedução, do fetiche, ou pelo intuito
de provocar a empatia fazendo da exposição da dimensão dolorosa das memórias
um abuso (RICOEUR, 2007, p.100).
De modo geral, apesar de se constituir como um acervo bastante completo,
a expografia parece neutralizar a dimensão da violência intrínseca a esse passado,
promovendo uma narrativa institucional apaziguada.
A criação de cenários com a representação estereotipada da memória, pensados
para “apresentar” determinadas dimensões do passado, como é o caso, por exemplo,
da fetichização da dor na sala “A história da lepra no mundo” e da romantização da
primeira infância no ângulo sobre os “Filhos separados”, representa um problema
relacionado à transmissão, que deve ser pensada no terreno da ética quando a proposta
do dispositivo memorial envolve experiências sensíveis, marcadas por eventos difíceis,
por mais que o passado doloroso tenha sido superado. Essa homogeneização das
narrativas como forma de consolidar uma memória oficial foi problematizada por
Régine Robin como a principal dificuldade enfrentada nos processos que envolvem
a gestão da memória das vítimas (ROBIN, 2014). Em sua opinião:

O que obstrui a transmissão em edifícios oficiais é o excesso de imagens e explicações, a ilusão de


um possível contato com o real daquele passado [...] Esses museus comunicam informações, mas
talvez não transmitam nada (ROBIN, 2014, p. 140, tradução nossa)16.

Ao chamar a atenção para o formato saturado que a exposição das memórias


assume em determinados dispositivos memoriais, Régine Robin (2014) destaca
que a poluição visual e o caráter didático, explicativo, das narrativas, dificultam a
transmissão e podem levar à banalização das memórias. Entende-se que, ao fazer
isso, o lugar altera o valor testemunhal, aurático, dos objetos, os quais se tornam
simulacros, servindo para ilustrar o discurso oficial por meio de uma narrativa
monológica.
A criação do Memorial HCI, como demonstração efetiva de um desejo de
memória por parte dos funcionários, no entanto, não promove uma articulação
entre a tecnologia da saúde e as experiências de quem viveu o isolamento de modo
amplo, capaz de permitir a eclosão da dimensão imaterial da vida na Colônia.
Parece, ao contrário, evidenciar um discurso heroico da instituição no combate à
doença. Aqui gostaríamos apenas de acenar para o fato de que, neste momento do
processo de requalificação do HCI, a memória segue tutelada pelo Estado sem ser
reivindicada por quem tem suas memórias ancoradas no lugar.

16  “Lo que obstruye la transmissión en esos edifícios oficiales es el exceso de imagines y de explicaciones, la ilusión de uma
posible puesta em contacto con lo real de esse pasado [...]. Esos museos nos comunican información, pero tal vez no transmitan
nada.”

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Portanto, percebe-se que, apesar de indicar um importante desejo de


preservação memorial, o Memorial HCI é incapaz de transmitir a complexidade
de memórias que envolvem o lugar e seus antigos habitantes. Criado por iniciativa
de funcionários, esse memorial valoriza a memória da saúde em combate a uma
doença milenar. Compreendemos, portanto, que o Memorial HCI é um dispositivo
que aborda a história do HCI, sem escapar de sua ambiguidade, de tal modo que,
ao promover narrativas que estetizam a vida e o sofrimento dentro das instituições,
banaliza, involuntariamente, a dimensão do sofrimento.
Entretanto, não obstante as dificuldades atinentes ao reconhecimento e à
transmissão do passado doloroso, em casos como o do HCI, em que se observa a
carência de uma contranarrativa frente à narrativa oficial, há que se considerar a
importante intervenção de empreendedores da memória, como os funcionários que
idealizaram e mantêm o Memorial HCI.

MEMORIAL DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO SÃO PEDRO

O Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP-RS) foi criado pela lei provincial
nº 984, de 1874, ainda no período imperial. No ano de 1884, o então Hospício foi
inaugurado, tendo como administradora a Santa Casa de Misericórdia. No ano de
1889, com a proclamação da República, o governo do estado deixa de subvencionar
o hospital e o estatiza, mesmo ano em que encerra as obras de construção do quinto
pavilhão (ALVES; SERRES, 2009).
Um século depois, em 1989, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do
Sul solicitou a apreciação de tombamento dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico
São Pedro (HPSP) junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Rio
Grande do Sul (IPHAE). A abertura do processo possuía um caráter pragmático,
pois visava ao tombamento para a captação de recursos às obras de restauração
dos imóveis históricos17. Assim, o conjunto de prédios do HPSP foi tombado pelo
governo estadual, em 1990, e pela Prefeitura de Porto Alegre como patrimônio
municipal, no ano de 1993. No histórico do bem tombado, no website da Equipe
do Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria de Cultura de Porto Alegre,
destaca-se como motivação a deterioração sofrida nos imóveis decorrente da crise
do modelo hospitalocêntrico que começa a se delinear nas décadas de 1970 e
198018. Além disso, também se destacam, nos pareceres da prefeitura, a referência
urbana do Hospital para o surgimento do bairro, para o qual o Hospital torna-se
um documento arquitetônico do qual se depreende o ponto de vista da psiquiatria
como história social (ALVES; SERRES, 2009, p. 62).
O aspecto referente às memórias traumáticas associadas ao lugar foi destacado
no parecer da equipe técnica contratada pelo Governo do Estado para a realização
17  ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Ofício nº 508/89, de 20 de abril de 1989. Secretaria de saúde e
meio ambiente. In: Dossiê de tombamento do Hospital Psiquiátrico São Pedro. IPHAE/RS. 1989-1990.
18  PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Secretaria de Cultura. Hospital São Pedro. Disponível em: <http://
lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/historico_hospital_sao_pedro_1.pdf>. Acesso em 27 jun.
2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

de um projeto de restauração. Liderada pelo arquiteto Júlio Nicolau Curtis, a equipe


subscrevia a importância do tombamento. O parecer tecia uma crítica ao governo
municipal de Porto Alegre e simultaneamente destacava a sensibilidade do órgão
federal de patrimônio e da UNESCO para a proteção dos locais relacionados às
memórias da dor:

Apesar da visão elitista e míope em relação ao preservacionismo perpassar amplas camadas da


população brasileira; apesar mesmo de certos dirigentes – como recente Prefeito populista desta
cidade –, entender em apagadas as “memórias dolorosas e trágicas” com a destruição dos edifícios
que lhes serviram de palco, a UNESCO e a SPHAN19, buscando mostrar a História na plenitude
de sua transparência, institucionalizaram a proteção dos campos de concentração e senzalas,
respectivamente20.

Assim, em consonância com o período de ampliação do conceito de patrimônio,
a abordagem dos arquitetos pareceristas, para além da questão arquitetônica,
demonstrava relacionar o lugar às memórias dos tratamentos abusivos, violentos e às
situações desumanas a que os pacientes foram submetidos. No final dos anos 1970 e
durante os anos 1980, princípio da abertura política do regime civil-militar brasileiro,
iniciava a discussão sobre a necessidade da reforma psiquiátrica, um movimento que
teve seu começo na Itália e no Brasil, sobretudo com a publicização de imagens e
denúncias do tratamento degradante a que foram submetidas milhares de pessoas no
Hospital Colônia de Barbacena (BORGES, 2017, p. 107). No ano de 1978, surgia
o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), no Rio de Janeiro,
com caráter técnico científico e que criticava o modelo psiquiátrico tradicional, e,
em 1987 no Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido em Bauru-SP,
o movimento alargou-se e ganhou o caráter de luta social e passou a desenvolver
atividades de conscientização por todo país, através do lema “Por uma sociedade sem
manicômios” (AMARANTE, 1995, p. 492).
Tais movimentos previam o tratamento humanizado e a reintegração social,
com o fechamento dos manicômios. Assim, as novas políticas delineadas com a luta
antimanicomial refletiram na manutenção do Hospital Psiquiátrico São Pedro. O
baixo investimento para a conservação dos imóveis do antigo hospital tornou-se
um problema e, inclusive, aventava-se a possibilidade de venda da área. Na proposta
de tombamento, em 1989, pelo governo estadual, o parecer dos técnicos reconhecia
a importância da negativa do governo estadual sobre a venda, afirmando que “não
apenas rechaçou investida de especulação imobiliária sobre a gleba onde se situa
o monumento objeto desta proposta, como passou, através de decidida e decisiva
determinação da atual direção do Hospital, a investir no projeto de sua restauração”21.
Além das questões urbanas e arquitetônicas, os técnicos destacam a importância das

19  Atual IPHAN, que entre 1979 e 1990 estava dividido entre Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), órgão normativo e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), enquanto órgão executivo.
20  ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Parecer da equipe técnica. In: Dossiê de tombamento do Hospital
Psiquiátrico São Pedro. IPHAE/RS. 1989-1990.
21  Idem.

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instalações do Hospital enquanto “documento sociológico” referente à “evolução


que se processou no respeito à dignidade humana”,

Desde a eliminação de castigos, solitárias, jejuns, coletes de força, banhos de emborcação até
a permissividade dos choques elétricos e a promiscuidade consentida em nome da alienação,
evidenciam-se propostas de recuperação moral e ética de seres humanos, já fortemente
estigmatizados pelo destino.

Alienados ou infelizes são as referências mais insensíveis registradas em relação aos doentes
daquele Hospital, que, por sinal, já foi Hospício até 1925 e modernamente se conceitua como
Hospital Psiquiátrico. As referências evoluem, entretanto, para designá-los como loucos, mais
tarde, como doentes mentais; depois, enfermos; para chegar-se, finalmente, ao nível de reconhecê-
los, simplesmente, como pacientes22.

O aprofundamento dessa compreensão levaria à aprovação da lei estadual nº


1796, de 1992, que implementou a reforma psiquiátrica nos hospitais do estado. A
partir desse momento, uma série de impasses, referentes ao uso do vasto terreno do
Hospital e seus imóveis, impôs-se às administrações públicas do Estado. Ainda em
1992, o governo Alceu Collares sinalizou a intenção de vender o Hospital e realocar
os pacientes para uma nova casa de saúde a ser construída, acontecimento noticiado
pela imprensa que foi alvo de crítica de vários setores da sociedade, o que levou o
governo a recuar da intenção (ASSMANN, 2008, p. 38). Da mesma forma, outros
governos que se sucederam desenvolveram projetos e estudos para designar novos
usos aos prédios do Hospital.
Dois estudos sobre requalificação e reuso do HPSP, com feições distintas, se
destacam. O primeiro foi o “Espaço-Cidadania” no governo Olívio Dutra (2000),
resultado das reuniões de um grupo de trabalho interdisciplinar, criado pela portaria
nº 27/2000 da Secretaria de Saúde23, a qual já indicava um uso social e cultural
do espaço: “considerando a mudança do paradigma de atenção de exclusão para o
acolhimento e o propósito de transformação do maior prédio histórico tombado
no Estado Rio Grande do Sul em um centro Cultural”. A equipe técnica reunia
arqueólogo, advogado, arquitetos, historiador, sociólogo, psicólogo, engenheiros e
profissionais da saúde. O outro projeto, no governo Yeda Crusius (2007), se deu
através do decreto lei 45.214 de 20/08/2007 que instituiu uma força-tarefa para
revitalização e recuperação do HPSP. O projeto visava à captação de recursos
para restauração e, entre outras ações, indicava a cessão de uso dos imóveis para a
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Para isso, a força-tarefa
indicava a desocupação do prédio histórico por parte de grupos e companhias de
teatro, que o haviam ocupado através de um convênio existente no governo anterior.
Ambos os projetos, apesar de suas abordagens distintas, uma mais voltada ao
22  Idem.
23  Nesse período, o HPSP, afinado politicamente ao Movimento de Reforma Psiquiátrica, servia como campo
de estágio para a Residência Integrada em Saúde, promovida pela Escola de Saúde Pública (RS), período no qual
foi implantado um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), na área da então denominada Vila Cachorro sentado/
Vila São Pedro (Porto Alegre-RS). O projeto previa a reinclusão social de pacientes crônicos vinculados ao HPSP.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

social e outra voltada para a racionalização dos usos do espaço construído, previam
um espaço destinado à memória do HPSP. Isso se dava também porque, desde 1998,
já havia, na estrutura do Hospital, um serviço voltado à preservação de objetos
e documentos. O Museu do HPSP foi criado por iniciativa de uma equipe de
funcionários do Hospital que, preocupados com a manutenção da memória e da
história do hospital, passaram a recolher e reunir objetos, equipamentos e documentos
que estavam dispersos em prédios e salas desativadas24. Ainda em 1998, através da
portaria 34/1998, o Museu foi estabelecido internamente. No ano de 2001, a
portaria interna nº 01/02, amplia as ações e cria o Serviço de Memória Cultural do
HPSP, que se divide em três serviços: documentação, pesquisa e memorial.
A sede do serviço está localizada no segundo piso do prédio histórico do HPSP,
onde ocupa em torno de 16 salas. Conforme a coordenadora, Neuza Barcelos, que
atuava na área jurídico-administrativa do hospital e que foi remanejada para cuidar
da parte histórico-cultural, a manutenção das atividades e do memorial advém
de recursos do próprio hospital e de projetos e ações promovidas pela Associação
Amigos da Memória do Hospital Psiquiátrico São Pedro (AMeHSP) que consegue
captar recursos para restauração de bens móveis do acervo25. Por não ser reconhecido
oficialmente como uma instituição independente de cultura, o Serviço não possui
rubricas específicas para a destinação de verbas estaduais para sua manutenção.
Entretanto, a Secretaria de Cultura do Estado cedeu um historiador concursado para
trabalhar no Memorial, o qual tem trabalhado na organização da documentação, na
concepção das informações históricas e na recepção dos grupos de visitantes26.
Hoje, o HPSP não é mais uma instituição de isolamento, uma vez que os
pacientes psiquiátricos dão entrada para o tratamento, assim como na ala para
dependentes de álcool e drogas, por um tempo determinado. Entretanto, ainda se
configura como uma instituição asilar, pois mantém uma ala de residência para os
pacientes mais antigos, tal como no HCI, todos idosos que perderam seus vínculos
sociais e familiares27. Outro ponto em comum no que tange à preservação da
memória nos dois lugares é a participação do funcionário público vinculado à
Direção Central dos Hospitais do Estado–RS (DCHE), Marco Lucaora, que também
atuou na concepção do espaço expositivo do HPSP e produziu pinturas que estão
em exposição do Memorial. São pinturas que reproduzem aspectos históricos do
Hospital e retratos de pacientes (Figura 3) que se tornaram icônicos no lugar, ambos
dispostos no corredor do Memorial.

24  Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Coordenadora do Serviço de Memória cultural do HPSP. Informação
fornecida em visita ao Memorial do HPSP. Darlan De M. Marchi em 23 de outubro de 2018. Porto Alegre-RS.
25  O SUL. Brechó e bazar em prol do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Disponível em: <http://www.osul.com.
br/brecho-bazar-em-prol-hospital-psiquiatrico-sao-pedro-acontece-neste-domingo/>. Acesso em 27 jun. 2019.
26  Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Idem.
27  Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Idem.

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Figura 3: Fotografia das pinturas de retratos dos pacientes. Autoria Marco Lucaora.

Fonte: Darlan De M. Marchi. 23 de out. 2018.

O espaço expositivo do Memorial está disposto na maior parte das salas do


segundo piso do edifício. Um dos espaços, tal como no Memorial HCI, é destinado
para palestras e à recepção aos grupos de visitantes, atividade que acontece antes da
visita guiada. Outras três salas destinam-se ao acervo documental histórico (plantas,
livros de registro, prontuários, fotografias) para pesquisa mediante solicitação.
Na exposição, percebe-se um distanciamento em relação a casos específicos dos
tratamentos realizados no HPSP, uma vez que os objetos utilizados nos tratamentos
são associados com um discurso amplo do progresso da ciência no campo da
psiquiatria. Os textos utilizados possuem citações de pesquisadores/autores que
tratam, do ponto de vista científico, sobre as mudanças no campo da psiquiatria.
Dessa forma, os objetos encontram-se relacionados a um discurso institucional e
científico e menos a uma preocupação com a narrativa localizada, que destacaria
os ex-moradores do HPSP. Alguns profissionais que trabalharam na instituição,
médicos diretores e irmãs religiosas, aparecem brevemente na exposição através de
registros documentais – trechos de documentos institucionais e notícias da imprensa
–, todavia, os pacientes não possuem representações específicas, ou histórias de vida,
a não ser os, já mencionados, retratos nos corredores.
Os suportes da exposição são bem cuidados e feitos artesanalmente como
etiquetas em papel, quadros em madeira e plástico e mostruários que consistem
em móveis de metal e vidro que eram utilizados nos serviços do hospital. Nestes
mostruários estão expostos, entre outras coisas, recipientes de medicamentos,
máquina de eletrochoque e um exemplar de camisa de força (Figura 4). A disposição
dos objetos está subdividida em temáticas mais ou menos organizadas em sentido
cronológico e que representam um discurso de evolução do tratamento psiquiátrico
e da administração do hospital. São destacados documentos como o livro de visitas

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

com a assinatura da Princesa Isabel, primeiro regulamento do então hospício São


Pedro, nominata dos ex-diretores, além de recortes de jornais com reportagens sobre
o HPSP e os profissionais que ali trabalhavam. Tem destaque na exposição, através
de imagens e trechos de depoimentos, Irmã Paulina, última religiosa que trabalhou
no HPSP, tendo chegado ao local em 1951 e que foi interlocutora sobre o passado
do Hospital.
De maneira geral, o discurso narrativo do memorial está pautado por um
viés histórico das terapias e da trajetória da instituição. Ao ser um setor do próprio
Hospital, o discurso reificador da história da instituição é esperada, assim como a
preocupação na narrativa que demonstra os avanços dos tratamentos na instituição
com a implementação de ações humanizadas e de arte terapia. Nesse sentido, as
memórias difíceis, relacionadas com os tratamentos do passado e o sofrimento
vivido, são amenizadas e tratadas no discurso expositivo mais como curiosidades do
que como possibilidades de estímulo à reflexão do visitante.
No conjunto de objetos expostos há alguns como possibilidades narrativas
que poderiam despertar a sensibilização dos visitantes, como o exemplo de um
pequeno espelho sem muita evidência no contexto expositivo e que traz a seguinte
informação ao lado:

Em 1963 um grupo de esposas de médicos do HPSP doou um lote de seis espelhos aos pacientes
da instituição. Como representava um perigo à integridade física dos internos, a guarda de cada
espelho foi confiada a uma determinada irmã da Congregação de São José. A responsabilidade
deste espelho em exposição ficou a cargo da Irmã Paulina Bongiorno. Conforme a narrativa da
religiosa “o fato proporcionou uma euforia da comunidade do São Pedro. Foi bonito ver o pessoal
se reencontrar com a própria imagem, embora alguns ficassem tristes por não se reconhecerem,
pois tinham se passado muitos anos e já estavam envelhecidos”28.

Figura 4: Fotografias de
objetos expostos, referente aos
tratamentos. Medicamentos e
camisa de força.

Fonte: Darlan de M. Marchi.


Outubro de 2018.

28  Texto da exposição permanente do Memorial do HPSP.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O espelho pensado como “semióforo” (POMIAN, 1984) possui um potencial


narrativo subutilizado para se trabalhar as memórias difíceis, pois evidencia um
tempo em que as pessoas eram privadas de visualizar sua própria imagem. Nessa
medida, o espelho é significativo, sobretudo quando a psicose é compreendida
como uma forma de fragmentação simbólica do eu, ou seja, o que está em questão
é a percepção individual do portador de sofrimento psíquico em relação ao seu
próprio corpo, num contexto de ausência da identidade. No mesmo sentido, agora
em relação à documentação disponível para a pesquisa, há livros históricos com
prontuários e avaliações dos pacientes que davam estrada no HPSP no princípio
do século XX. Entre esses prontuários encontram-se os motivos pelos quais esses
pacientes eram internados, como é o caso de uma paciente internada em 1928, por
ter sido abandonada pelo noivo, que desenvolveu a “moléstia atribuída ao amor
desesperador”29. Estas histórias de vidas invisibilizadas, que demonstram as opressões
e valores que falam da sociedade daquele tempo, também carregam uma dimensão
sensível e um potencial reflexivo que não aparece na exposição permanente atual.
O Museu da Loucura criado no Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais,
observando as devidas proporções da atuação e as diferenças regionais na trajetória
das instituições, apresenta abordagens diferentes e que poderia servir como exemplo
para repensar a exposição do Memorial do HPSP.Viviane Borges (2017) fala que os
objetos, como a máquina de eletrochoque e outros, no caso do Museu da Loucura,
passaram a ser “objetos-denúncia” uma vez que o Museu passa a promover a
reafirmação da Reforma Psiquiátrica. Assim como o Memorial do HPSP, o Museu
da Loucura também está alocado no lugar que tem um hospital psiquiátrico em
funcionamento, o que para Borges (2017, p. 119-120) “[...] coloca o visitante em
contato com essa realidade, ou seja, entre a história de horror evidenciada pelo
acervo exposto e as testemunhas, sobreviventes do ‘holocausto brasileiro’, que
circulam livremente pela instituição, conversando com os visitantes, contando suas
experiências”.
Assim, se no tombamento do Hospital São Pedro, entre os anos de 1989 e 1993,
se destacavam, nos pareceres e documentações, os referenciais simbólicos relativos
às memórias sensíveis de um passado doloroso vivido pelos pacientes asilados, os
aspectos dolorosos da vida dos pacientes que por ali passaram ainda não ecoam no
discurso expositivo do memorial criado no HPSP.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se que, em ambos os casos, Memorial HCI e Memorial do HPSP, para


que tais dispositivos memoriais cumpram um papel narrativo-reflexivo,seria necessária
uma revisão na atuação institucional não só dos Memoriais, mas das instituições
hospitalares e principalmente do Estado, que parece, ainda hoje, tutelar a narrativa,
priorizando um discurso pautado no oficialismo-comemorativo das instituições em
detrimento de uma abordagem crítica comprometida com as memórias sensíveis
29  Livro de Registro de Admissão Provisória em exposição na sala de documentação e pesquisa do Memorial
HPSP em 23 de outubro de 2018.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

e dolorosas e com a luta dos movimentos sociais pela humanização do tratamento


psiquiátrico. Um primeiro passo nessa direção implicaria numa “evolução notável
das sensibilidades coletivas” (CHAUMONT, 2000, p. 168), através da inclusão das
narrativas de quem viveu nestes lugares, para que deixem de ilustrar somente a
história das instituições e ganhem parte no discurso como sujeitos, retomando assim
a sua dignidade como seres humanos de direitos.

REFERÊNCIAS

ALVES, Gabrielle W.; SERRES, Juliane C. P. Hospital Psiquiátrico São Pedro: 125 anos
de história. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
AMARANTE, Paulo. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma
psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, v. 11, p. 491-494, 1995.
ASSMANN, Carolina. (Des) caminhos do Hospital Psiquiátrico São Pedro no
contexto da reforma psiquiátrica: ignorados, pormenores e educação no cotidiano do
hospital. Dissertação de mestrado. Pós-Graduação em Educação. Universidade de Santa Cruz
do Sul – UNISC, 2018.
BORGES, Viviane Trindade.  Memórias difíceis: Hospital Colônia de Barbacena, reforma
psiquiátrica brasileira e os usos políticos de um passado doloroso. In: Museologia e
Patrimônio - Unirio | MAST – v.10, n. 1, 2017, p. 105-127.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: Morar, cozinhar.Petrópolis,Vozes, 2009.
CHAUMONT, Jean- Michel. De culte des héros à La concurrence des victimes.
Criminologie.v. 33, nº1, 2000. 167-183 p. Disponível em: <http://id.erudit.org/
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DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Tradução: Claudia de
Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
NORA, Pierre. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Tradução: Yara Aun Koury. In Projeto história. Revista do Programa de estudos de Pós
Graduados em história e do Departamento de história da PUC- SP. São Paulo: Educ, 1981.
POMIAN, Krzysztof. Colecção. In:  Enciclopédia Einaudi. V. 1 (Memória-História).
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 51-86
PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Secretaria de Cultura. Hospital São Pedro.
Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/
historico_hospital_sao_pedro_1.pdf> Aceso em 27 jun. 2019.
RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain Françoise
(et al.). Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
ROBIN, Régine. Sítios de memória e intercâmbios de lugares. Clepsidra. Revista
Interdisciplinaria de Estudios sobre memória. v. 1, n. 2, p.122-145, out. 2014.
Disponível em: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/clepsidra/article/view/Robin>.
Acesso em 10 fev. 2018.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

_________. A memória saturada. Tradução: Cristiane Dias. Campinas, SP: Editora da


Unicamp, 2016.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das letras, 2003.
SOTO, Moana Campos. Dos gabinetes de curiosidade aos museus comunitários: a
construção de uma concepção museal à serviço da transformação social. In: Cadernos de
Sociomuseologia, v. 48, n. 4, p. 57-81, 2014. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.
pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/4987/3298>. Acesso em 10 nov. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

DO APAGAMENTO À INSCRIÇÃO MUSEAL NA


WEB: O ESTUDO DE CASO DO MUSEU DAS
MEMÓRIAS (IN)POSSÍVEIS
PRISCILA CHAGAS OLIVEIRA1
MAÍRA BRUM RIECK2

MUSEUS E MEMÓRIAS

A compreensão da memória social perpassa um olhar transdisciplinar por


parte do(a) pesquisador(a) que intenta descrevê-la dentro do campo museal. Museus,
ilustrações ou exemplificações do campo (STRÁNSKÝ, 1987) têm em sua gênese a
questão memorial, como afirma a museóloga Tereza Scheiner (1998). Em sua teoria
museológica, a pesquisadora afirma que a instituição museu está ligada à ideia de um
espaço simbólico de presentificação das ideias e recriação do mundo por meio da
memória. E, dessa forma, estudando desde os modos de sentir que nos caracterizam e
afetam individualmente – constituindo o Eu – aos efeitos coletivos das representações
sociais – que propagam valores e fundem identidades culturais –, os museus vão se
firmando como potenciais construtores de uma justa memória (RICOEUR, 2007).
Neste trabalho, que se molda como uma autorreflexão do fazer e do pensar
museológico até então executado no Museu das Memórias (In)Possíveis, propomos
pensar a memória a partir da psicanálise. O conceito de memória para a psicanálise
não é algo qualquer. São as memórias que dão o lastro para a criação de um sujeito,
são elas as fontes das ficções necessárias para que cada um se sinta a si próprio, para
que se possa dizer Eu. Isso diz respeito ao campo individual e coletivo, de maneira
inseparável; diz respeito ao que “se decide” ficar dentro ou fora, na superfície ou no
subterrâneo. Aliás, a noção de “memórias subterrâneas”, retirada do texto “Memória,
Esquecimento, Silêncio” do historiador Michael Pollak (1989) tornou-se essencial
para o entendimento do que viria a ser o “objeto” do Museu. Essa é a função do
Museu das Memórias (In)Possíveis, trazer o subterrâneo do espaço público para a
discussão, para o olhar:
1  Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel. Museóloga do Museu das Memórias (In)Possíveis do
Instituto APPOA. E-mail: [email protected].
2  Psicanalista, Mestra em Educação/UFRGS. Coordenadora e idealizadora do Museu das Memórias (In)Possíveis
do Instituto APPOA. E-mail: [email protected].

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

São muitas as vidas que correm nas margens das cidades, nas margens da História. Muitas delas
não deixam traços, na medida em que são vividas como rupturas radicais. São aquelas que foram
exiladas nas ruas, destituídas da possibilidade de compartilhamento de um espaço comum, ou as
que passaram por diferentes violências, as das guerras e também aquelas produzidas pelos que
deveriam oferecer cuidados. Como construir uma memória para existências que desaparecem no
apagamento de seus laços? Como dar lugar/registrar as marcas que essas vidas produziram? O
Museu das Memórias (In)Possíveis surge desses questionamentos (RIECK; COSTA; COSTA; BETTS,
2019, documento eletrônico).

NARRATIVAS E APAGAMENTOS

Antônia Melo, uma das maiores lideranças vivas pela luta da preservação da
floresta amazônica, teve sua casa desmoronada pela hidrelétrica de Belo Monte, no
estado do Pará. Sua casa foi musealizada pelo Museu das Memórias (In)Possíveis. Sua
casa, seu açaizeiro, uma pedra, algumas sementes. A casa ficava na região urbana de
Altamira (PA) que seria inundada pela barragem. Ela não colocou placa de “vende-
se” na casa. Foi obrigada a sair porque alguém “lá de cima” fez um círculo num mapa
e mandou retirar todos aqueles empecilhos que estavam no caminho do suposto
progresso. O empecilho eram as pessoas, as plantas, os animais, as casas, as histórias.
A casa de Antônia não carregava em si somente a história da família. Era um
ponto de encontro da comunidade. Era um lugar de acolhimento, um lugar de
resistência ambiental.A casa de Antônia, em vias de destruição, era uma representação
da destruição das outras casas, era também a destruição da resistência, era a destruição
da própria floresta e do rio Xingu. Para os xinguanos, o rio não é um lugar a ser
explorado: ele é sagrado, ele é a vida em si mesma. Ele é a conexão do homem com
a natureza. O tal “progresso”, portanto, veio para a aniquilação da memória. Para
sempre, sem volta, sem possibilidade de reparação. Antônia sabia disso:

A dor pela imposição da hidrelétrica de Belo Monte se materializou, para Antônia, em problema
de coração. Quase morreu. Teve de ir para São Paulo fazer tratamento. Sobreviveu, mas de coração
partido. Não havia como voltar a ser a mesma depois de violada por Belo Monte, atingida no
peito. Precisou fazer uma jornada de resgate da memória. Teve que buscar suas raízes mais fundas.
Buscou a casa onde seu pai nasceu, no Piauí. Da casa do pai, trouxe uma pedra e sementes de
buriti, sementes de árvores plantadas por ele. Depois foi ao Ceará, onde sua mãe nasceu. Da casa
da mãe, trouxe sementes de mangueira (RIECK, 2016, documento eletrônico).

Antônia precisou trazer essas sementes para plantar na futura casa nova, para
poder suportar a dor da morte do rio Xingu. Precisou de suas origens, de seus
fundamentos, para ter uma possibilidade interna de futuro e não morrer do coração.
As sementes e a pedra também foram musealizada pelo Museu. Esses objetos não
dizem somente de Antônia – e o valor deles é narrativo. Antônia encarna o Xingu,
os povos da floresta que a mantém de pé, os indígenas, os ribeirinhos e todos aqueles
que sofreram a violência de Estado que foi produzida pela usina hidrelétrica de Belo
Monte.

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Para Antônia, o que ela vai perder com a casa não será somente a casa. Ela diz que sua casa é uma
casa expandida. Com a perda da casa, perde suas memórias, perde o Xingu, perde a natureza.
A geografia que conhece não existirá mais. As ilhas e a vegetação que conhece também ficarão,
literalmente, debaixo d’água. Antes, serão queimadas (RIECK, 2016, documento eletrônico).

E segue Antônia, em suas próprias palavras:


Quando as plantas são arrancadas para replantar, é para a vida se multiplicar. Ser arrancado
(expulso de casa) é arrancar para tentar apagar a memória e acabar com a vida. É colocar cimento
em cima. É vida apagada para sempre. Tira a raiz da pessoa. Isto é Belo Monte: exterminar a
identidade e a cultura. Belo Monte é um projeto de destruir e aniquilar a memória. Querem destruir
a minha memória para que eu nem exista (MELO, depoimento pessoal In: RIECK, 2016, documento
eletrônico).

Figura 1: Antônia Melo

Fonte: Galeria Belo Monte: violência e etnocídio. Foto de Lilo Clareto. Museu das Memórias (In)Possíveis.

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Figura 2: Antônia Melo - Pedra da casa do pai de Antônia

Fonte: Galeria Belo Monte: violência e etnocídio. Foto de Lilo Clareto. Museu das Memórias (In)Possíveis.

INSCRIÇÃO MUSEAL E A ÉTICA PSICANALÍTICA

O que “decidimos” deixar dentro e o que “decidimos” deixar fora de nós


mesmos? O que ou quem “decidimos” deixar dentro, ser o incluído ou o estabelecido
da cultura; o que ou quem “decidimos” deixar de fora, nas margens e frestas do
espaço público? O Museu das Memórias (In)Possíveis veio para colocar essas
questões. O verbo “decidir” vem entre aspas porque não se trata, necessariamente,
de uma escolha consciente, o que se deixa fora e o que se deixa dentro. É em outra
dimensão que a disputa se passa.
Para podermos dizer “eu”, uma série de processos ocorre dentro de um sujeito.
“Decide-se” (novamente entre aspas) o que se deixará dentro e o que se deixará
fora de si, e, para que isso ocorra, deve haver uma atribuição de valores, entre o que
é supostamente bom e mau, belo e feio, certo e errado. É a partir desses valores
que vamos construindo, segundo Freud (1925, In: 2007), a ideia de interno e de
externo. Deixamos tudo o que consideramos ruim fora de nós e o bom, dentro.
Simplificadamente, essa seria a fórmula, os primórdios da criação das identificações
e da ideia que temos de nós mesmos.
Não há, portanto, a ideia de “eu”, de “dentro” sem preceitos mínimos de ética.
Se o “eu” tem condições de dizer o que é bom ou mau, a ética é fundante para a
criação do que chamamos de nós mesmos. Mas se é a ética que dá a sustentação da
ideia de si próprio, são as memórias individuais de cada um, a história de cada um –
e como cada um interpreta essa história – que criará a consistência desse sujeito. São

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as memórias, ou melhor, o que se cria e se ficcionaliza dessas memórias que criarão


a ideia de si. E, novamente, para criar uma ideia de si, muito deve ficar de fora.
Também, é importante que se diga, não necessariamente em palavras, o que não se é.
O mesmo ocorre no espaço público. Há uma espécie de pacto velado, que se
passa no âmbito do que não se diz, mas que é tecido através do que se convenciona
o que são as leis, do que se diz que é certo e errado, do que se diz que é normal
e patológico que vai moldando aqueles que pertencem e os que não pertencem
ao espaço público. É claro que há diversos níveis de pertencimento, não é algo tão
binário, não é algo tão explícito, mas nos referimos àqueles que desacomodam o
convencional, os que “decidem” ser outra coisa, os que simplesmente nasceram com
“a cor errada” (muitas aspas), os que são considerados matáveis, os que dormem
nas ruas, os que querem viver a sexualidade de forma diversa da dita “normal”. Os
que com quem “ninguém se importa” são muitos. São muitos os que compõem as
chamadas minorias. E, se incomodam, o fazem porque suas próprias existências ou
seus modos de pensar desacomodam a moral estabelecida – como se a própria moral
não fosse algo criado e, dessa forma, passível de ser modificada.
Jacques Derrida percorreu a etimologia da palavra “arquivo” em seu livro “Mal
de arquivo: uma impressão freudiana” (2001). A palavra “arquivo” carrega em si a
ideia de fundação, de começo, como um lugar mítico de princípio, a origem da ética.
O autor conta que havia os magistrados que guardavam os documentos escolhidos
como importantes em seus próprios domicílios. O que era digno de arquivamento
e o que não era? A escolha era deles próprios e a comunidade a qual pertenciam
reconhecia e dava a essas pessoas o poder de decidir o que se guarda e o que se põe
no lixo. A partir dessa decisão de arquivamento (o arquivamento ou o apagamento
da história) funda-se a ética, e as leis serão criadas e sustentadas nessa ética.
O Museu das Memórias (In)Possíveis questiona a ética e seus fundamentos. São
os matáveis e sacrificáveis do mundo que dão, paradoxalmente, a sustentação para
que haja um dentro. É o fora que cria as condições de um dentro. É no contato com
o que está no subterrâneo que conseguimos entender as engrenagens que fazem
o mundo girar. Freud se refere a isso no seu conceito de “estranho” (Unheimlich),
quando diz que aquilo que está nas sombras, no escuro, e que parece estar no
estrangeiro, no lado de fora da casa, vem justamente de dentro. Simplificadamente,
é como se colocássemos uma vela acesa sempre no mesmo lugar e não olhássemos
para os recantos escuros e, quando os víssemos, achássemos que isso não era da casa,
mas de fora dela, sendo que esses elementos sempre estiveram lá.
O Museu das Memórias (In)Possíveis tenta resgatar o que foi simbolicamente
para o lixo. Recebe objetos que dizem desse lugar de resto, que dizem do que ficou
de fora, que dizem da história não oficial, para mudar de perspectiva, redimensionar
o que é figura e fundo, mudar o jeito de olhar para poder questionar a própria ética
e seus fundamentos. O (im)possíveis no Museu vem com N e não com M, como
marca de lugar, de topos, como marca do lugar do inconsciente.

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MUSEU DAS MEMÓRIAS (IN)POSSÍVEIS E A WEB

O Museu surgiu motivado por uma visita realizada por Maíra Brum Rieck e
André Oliveira Costa – ambos psicanalistas – ao Museu da História da Imigração em
Paris, onde, através da leitura de um objeto exposto (uma colcha de linho), contava-
se a história de um imigrante africano (OLIVEIRA; MUSEU DAS MEMÓRIAS
(IN)POSSÍVEIS, 2018).Viu-se o poder evocativo e narrativo de um objeto comum,
a priori “sem valor”, que ali marcava a presença de uma ausência (POMIAN,
1984). Instigados por essa experiência e ainda percebendo a importância de uma
instituição que apoiasse tal iniciativa, Maíra entrou em contato com Jaime Betts
e Ana Costa, também associados da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, que
aceitaram o desafio de constituir um museu sustentado pela ética da psicanálise. Mas
que Museu seria esse? Como e onde criá-lo? O ambiente digital figurou-se como
uma alternativa viável.
O aparecimento de uma cultura da memória coincide com o crescimento e
a expansão das tecnologias digitais que envolvem as comunicações (RENDEIRO;
RIBEIRO, 2017). Já em 1997, o pesquisador de novas mídias Lev Manovich cunhava
o termo “Interfaces Culturais” para se referir ao processo de interfaceamento que
passaram os referenciais culturais com o advento do computador. Para ele, a partir
desse momento, não estávamos mais interagindo com um computador, mas sim com
toda a cultura codificada em formato digital.
A emergência da Rede/Internet/web e das mídias sociais consolidou o papel
dessa nova ferramenta (e linguagem) e encantou o sujeito por completo. Não é à toa
que, desde os anos 2000, presenciamos a completa interpenetração da vida social com
a tecnologia, a ponto de existirmos on e offline ao mesmo tempo, simbioticamente
(GABRIEL, 2012). Sites, blogs e redes sociais evidenciam um fazer memorial
individual e coletivo crescente, permeado por processos de “automusealização”
(RENDEIRO; RIBEIRO, 2017) e de gestão descontrolada das informações. A
Rede se tornou a grande “depositária” da memória do mundo do tempo presente
e, portanto, um potencial objeto de estudo e análise do campo museal. Mas, diante
tamanha capacidade de armazenamento, o que deve ser selecionado e musealizado?
E o que é deixado para o esquecimento? Qual memória coletiva que será (deverá
ser) salvaguardada?
Desde a década de 1990, as memórias são transcritas para os ambientes digitais,
sejam eles institucionalizados, de perfil mais permanente – repositórios digitais,
sistemas de informação ou cibermuseus – ou informais e efêmeros – mídias sociais.
No entanto, as instituições brasileiras de memória evitaram, por um período, discutir
e incorporar as novas demandas às suas práticas museográficas. Não se pensava a web
como um fenômeno museológico passível de estudo. Na realidade, ainda hoje, vê-se
certo distanciamento do campo museal em relação à cultura digital, o que acarreta
carência e desarticulação das iniciativas existentes e falta de políticas públicas.
O Museu das Memórias (In)Possíveis se impõe (acompanhado de algumas
outras instituições precursoras) como um cibermuseu, que faz uso social da

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ferramenta digital e intenta se estabelecer a partir a legislação brasileira de museus3.


Paradoxalmente, essa mesma legislação ainda não viabilizou o registro dos museus
de tipologia virtual nos órgãos competentes, conforme previstos na Lei do
Estatuto de Museus (Lei Federal nº 11.904 de 2009). Essa falta de reconhecimento
evidencia certa cisma em se legitimar os cibermuseus como museus de fato. Marco
desse pioneirismo do Museu das Memórias (In)Possíveis foi a realização de seu
Plano Museológico em 2018, que possibilitou a caracterização conceitual e o
estabelecimento de programas e projetos para o período de 2018-2020.
Entre desafios e potencialidades de sua tipologia e temática, o Museu se
mantém apoiado em sua missão:

Sustentando-se na teoria e na ética da psicanálise, a missão deste Museu é questionar as relações


entre sujeito e cultura, apresentando-se como um lugar no qual aqueles que são sacrificados
pela cultura possam ser reintegrados eticamente. Através de seus objetos, ele se propõe a
fazer intervenções nos laços sociais, produzindo mudanças no modo como determinados sujeitos
são inscritos nos espaços públicos e na memória coletiva (OLIVEIRA; MUSEU DAS MEMÓRIAS (IN)
POSSÍVEIS, 2018, p. 30, grifo nosso).

Figura 3: homepage do Museu das Memórias (In)Possíveis

Fonte: <http://www.appoa.com.br/museu/museu>

3  De acordo com a Resolução normativa nº 1/2016 do IBRAM, que estabelece os procedimentos e critérios
específicos relativos ao Registro de Museus junto ao IBRAM e demais órgãos públicos competentes, os museus
virtuais não estão aptos ao registro.

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Seu acervo é formado por objetos digitais: imagens, sons, textos nato digitais
ou digitalizados que evocam histórias e servem como suportes de memória.
Através deles, preservam-se narrativas, histórias de pessoas que sofreram rupturas
de sua relação com o laço social ou que estejam ocupando um lugar de exclusão
social. Essas memórias podem estar ancoradas em diferentes materialidades e, por
esse motivo, o trabalho do Museu das Memórias (In)Possíveis está no âmbito do
patrimônio imaterial, ou intangível (OLIVEIRA; MUSEU DAS MEMÓRIAS
(IN)POSSÍVEIS, 2018).
Atualmente, o acervo do Museu das Memórias (In)Possíveis é constituído,
majoritariamente, por imagens digitais em diferentes formatos, acompanhadas de
textos produzidos por curadores/membros do Museu. Essas imagens foram upadas/
incorporadas ao sistema/site e formam coleções expostas em Galerias (Figura 4). Os
objetos do museu foram descritos e classificados conforme categorias e subcategorias
iniciais, que refletem as linhas de atuação do Museu. Contudo, elas estão passando
por um processo de revisão, juntamente com a construção da Política de Gestão de
Acervos.

Figura 4: Galerias

Fonte: <http://www.appoa.com.br/museu/galerias>

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O QUE ESPERAR DO FUTURO?

Museu, indissoluvelmente ligado à ideia de memória: espaço unicamente


físico, templo (quase sagrado) destinado à guarda e arquivamento de memórias
escolhidas, selecionadas por poucos, “dignas” de preservação. Essa era a ideia que
se tinha de um museu. Não é a nossa. No decorrer dos últimos 60 anos, essa visão
vem sendo reconstruída e ressignificada. Hoje, já é possível refletir sobre a gênese

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do museu não estar no templo (físico e sagrado), mas nas palavras cantadas das
musas, tornando-o um espaço simbólico, no qual se presentificam ideias e se recria o
mundo por meio da memória. Essa nova perspectiva, mais alargada, possibilitou que
esta instituição moderna e ocidental, que nasce como estratégia de consolidação de
estados e identidades nacionais, pudesse servir, contemporaneamente, a um propósito
realmente questionador e problematizador das relações sociais. Físico ou simbólico,
os museus vão se firmando como potenciais construtores de uma justa memória.
A relação entre museus e memórias está dada, portanto, como indissociável.
Porém, no Museu das Memórias (In)Possíveis, queremos ir além: buscamos dar
evidência a essa relação, criando um museu de memórias, mas não qualquer
memória… um museu para as memórias subterrâneas, para aquelas que estão “fora”
do espaço público, que não formam os discursos patrimoniais oficiais.
Partindo da teoria e ética psicanalítica, o Museu das Memórias (In)Possíveis
tenta resgatar o que foi simbolicamente para o lixo. Esse resgate se dá em ambiente
digital, o que não deixa de ser mais uma subversão, haja vista que seu espaço não é
só simbólico, como desterritorializado (ciberespaço). Recebemos objetos que dizem
desse lugar de resto, que dizem do que ficou de fora, que dizem da história não
oficial.Trabalhamos com narrativas, musealizamos objetos digitais diversos (suportes
de memórias), e lançamos online novas narrativas, atravessadas pelo fazer e pensar
psicanalítico.
São inúmeros os desafios de tal temática e tipologia de museu. Do ponto de
vista da ética psicanalítica e museológica, questionamo-nos: de que maneira podemos
equilibrar memória e esquecimento, práticas de arquivamento e apagamento,
principalmente na web, que é pautada pela sobrecarga informacional? Do ponto
de vista técnico, preocupamo-nos em garantir a plena conservação, documentação,
pesquisa e comunicação dos objetos digitais que nos propomos salvaguardar.
O Plano Museológico do Museu das Memórias (In)Possíveis, elaborado em
2018, foi o resultado de um esforço coletivo da equipe do Museu em profissionalizar
a instituição, buscando adequá-la à legislação brasileira de museus. Já a Política
de Gestão de Acervos, iniciada em 2019 e ainda em fase de construção, almeja
qualificar tecnicamente o processo de musealização de objetos digitais preservados
pelo Museu das Memórias (In)Possíveis.
Mesmo cientes de que, desde a década de 1990, as memórias passaram por
um processo de transcrição para o ambiente digital e que a web pode ser analisada
do ponto de vista de um fenômeno museológico contemporâneo, as instituições
brasileiras de memória evitaram, por um período, discutir e incorporar as novas
demandas às suas práticas museográficas. Acreditamos, assim, que o nosso trabalho,
pautado nas configurações técnico sociais da cultura digital, poderá servir de apoio
às iniciativas similares e de motivação a novos projetos.
Por fim, este trabalho se moldou como uma auto reflexão do fazer e
pensar museológico até então executado no Museu das Memórias (In)Possíveis.
Apresentamos uma temática e tipologia de museu questionadora e problematizadora
da própria gênese da instituição e, com isso, lançamos desafios e reconhecemos
as potencialidades da inscrição museal de narrativas historicamente apagadas na

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Rede. Esperamos que essas ponderações sirvam de ponto de partida para novas
problemáticas, e que nesse processo o Museu das Memórias (In)Possíveis continue
resistindo e servindo a sua missão de questionar as relações entre sujeito e cultura,
apresentando-se como um lugar no qual aqueles que são sacrificados pela cultura
possam ser reintegrados eticamente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.904/2009. Institui o Estatuto de Museus e dá outras providências.


Brasília, DF, 14 de Janeiro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
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Dumara, 2001.
FREUD, Sigmund. A Negativa. 1925. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente,
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GABRIEL, Martha. Cibridismo: on e off line ao mesmo tempo. 2012. Martha. Disponível
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

MUSEU DE ARTESANATO DO RIO GRANDE


DO SUL ARTHUR GUARISSE: O CHOQUE EM
QUESTÕES DE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO E A
CONFUSÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO
MARCIA MORALES SALIS1
HELEN KAUFMANN LAMBRECHT ESPINOSA2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse (MAG)


é um museu privado registrado junto ao Sistema Estadual de Museus, instalado
provisoriamente, por dois anos, à Rua Engenheiro Jorge Porto, 220, no bairro
Ipanema, em Porto Alegre, e se constituiu a partir das pesquisas3 realizadas sobre o
“Artesanato Guarisse” – empreendimento criado e administrado por seu fundador,
o artesão-empreendedor e colecionador Arthur Guarisse (1935-2016).
O Artesanato Guarisse inaugurou fábricas e lojas ao final da década de 1960
e início dos anos 1970, com sede em Porto Alegre e filiais em Gramado e Torres e
nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, e, até os anos 2000, empregou e formou
mais de trezentos profissionais artesãos que criavam peças a partir da inspiração
em originais europeus – objetos que podem ser considerados representativos de
materiais e técnicas artesanais que constam na Base Conceitual do Artesanato
Brasileiro (BRASÍLIA, 2012).
A pesquisa realizada por Marcia Morales Salis comprovou que as memórias
sobre o Artesanato Guarisse, ou sobre o seu fundador Arthur Guarisse, surgem a
partir das relações dos indivíduos com a comunidade, e, embora a memória possua
essa dimensão coletiva, suas principais referências – os prédios da fábrica inaugurada
em Porto Alegre – são objeto de disputa entre grupos políticos dominantes que
atuam no processo de seleção do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido,
1  Mestre em Letras (UNIRITTER); Diretora do Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse –
MAG. [email protected]
2  Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPEL); Museóloga do Museu de Artesanato do Rio
Grande do Sul Arthur Guarisse – MAG. [email protected]
3  Todas informações sobre Arthur Guarisse e o Artesanato Guarisse contidas nesse artigo são oriundas da pesquisa
realizada por Marcia Morales Salis, desde 2013, e que ainda não foram publicadas.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

para a satisfação de seus próprios interesses.


Neste artigo, trazemos um histórico a respeito do Artesanato Guarisse e seu
fundador, além de problematizarmos a carência de edital de ocupação dos prédios
da fábrica Guarisse e a ambição pelo uso gratuito do imóvel estadual histórico
para o Artesanato. Salientamos também a inércia do Executivo e a morosidade
do Judiciário, que acarretam prejuízos ao direito à memória e correspondem ao
status instituído ao Artesanato no Rio Grande do Sul, onde a tradição deixa de ser
autoridade reconhecida ao passado para orientar questões do presente.

ARTHUR GUARISSE (1935-2016)

Neto dos imigrantes Ricardo Guarisse e Antonia Antonello, filho de Ida e Luis
Guarisse (que chegou ao Brasil ainda menino, junto de seus pais e oito irmãos, vindos
da região de Vêneto, na Itália), Arthur Armando Guarisse morava com seus pais e
seus irmãos Iolanda e Pedro, na Avenida Independência, no centro da capital gaúcha.
Nascido em 23 de julho (registrado em 3 de agosto) de 1935, desde cedo, Arthur
Guarisse acompanhava seu pai, que exercia a função de repartidor de frios na “Banca
Antonello”, no Mercado Público de Porto Alegre. Quando alcançou a adolescência,
Arthur Guarisse costumava auxiliar nos afazeres do Mercado e nas entregas. Neste
período, aprendeu a dirigir os caminhões para distribuir as encomendas aos clientes
da Banca.
Aos 18 anos, Arthur Guarisse empregou-se como motorista de táxi em um
ponto próximo ao Colégio Rosário, onde seu irmão Pedro estudava. Sua intenção
era poupar dinheiro e dar início à aquisição de sua própria frota. Ex-estudante do
Colégio Militar, quando seu pai conseguiu uma bolsa de estudos, Arthur Guarisse
começou a estudar no curso “Técnico em Contabilidade”, ministrado à noite
no Colégio Rosário. Ao estudar e trabalhar como taxista, já proprietário de uma
pequena frota de táxis, Arthur Guarisse teve o seu primeiro encontro com Léa
Caruso, ao transportá-la junto de seu pai João Caruso. Arthur e Léa casaram-se e
tiveram cinco filhos:Viviane, Arthurzinho, André, Ana Luiza e Léa.
Arthur Guarisse foi professor de História na cidade de Guaíba e tesoureiro do
IAPETEC4, enquanto dava início ao empreendimento “Artesanato Guarisse”, que
faliu ao final da década de 1980. À época do andamento do processo de falência,
em Concordata, após separar-se de Léa, Arthur casou-se com a atriz carioca Sandra
Bréa, que o ajudou a comercializar junto a Rede Globo de Televisão as peças das
lojas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que haviam sido fechadas. O casamento
com Sandra durou somente 8 meses e, após o divórcio, Arthur perdeu seu filho mais
velho portador do HIV e mudou-se para um Mosteiro. Esse período de reclusão
antecedeu sua volta à cidade litorânea de Torres, onde ele mantinha uma propriedade
na Praia da Cal.
Em Torres, Guarisse associou-se a um padre para reabrir o Artesanato Guarisse,
que funcionou na década de 2000, até um ciclone devastar o galpão com a loja e a
4  Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas, hoje conhecido como Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

escola que ensinava artesãos na cidade. Arthur Guarisse morou no bairro Tristeza,
num apartamento alugado e mantido com seus rendimentos como aposentado do
antigo IAPETEC. Faleceu no dia 6 de julho de 2016, aos 81 anos, por insuficiência
múltipla.

A MORADA NO BAIRRO TRISTEZA: O INÍCIO DO ARTESANATO GUARISSE

Ao final da década de 1960, Arthur Guarisse adquiriu parte da antiga chácara


que pertenceu ao Comendador Azevedo, na Rua Mario Totta, 447, no bairro
Tristeza, em Porto Alegre, e transformou o lugar na residência da família. À época, a
propriedade se estendia até as margens do Guaíba e estava sendo loteada. Neste local,
a família encontrou chafarizes, estátuas, móveis e objetos e resolveram restaurá-los,
para utilizar na decoração da nova moradia.
Para compor cada cômodo que seria utilizado pela família, eles necessitavam
de móveis. Arthur Guarisse adquiriu-os em lojas de vendas de usados e os restaurou.
O casal transformava estofados, lustres, luminárias antigas nos fundos de sua casa
com a ajuda de um ou outro amigo que se aproximava para colaborar. Com a visita
dos amigos que vinham do centro da capital, começou a venda de objetos a preços
simbólicos.
No portão de entrada da casa da família, eles fixaram uma placa que dizia
“Vendem-se lampiões aos domingos”. Era assim que Arthur e Léa se divertiam,
ao trabalhar em suas horas de folga, junto aos filhos, já que durante a semana Léa
lecionava como professora primária e Arthur dividia-se entre dois empregos: como
professor de História, na cidade de Guaíba, e como tesoureiro do antigo IAPTEC.
Embora esta fase possa ser considerada o início do empreendimento
“Artesanato Guarisse”, no bairro Tristeza, a produção de objetos e móveis aconteceu
aos poucos, junto à contratação de artesãos e ao aumento dos pedidos feitos pelos
novos compradores. Nos fundos do casarão da Rua Dr. Mario Totta, inicialmente,
é formado um grupo de mais de quinze artesãos contratados para confeccionar
réplicas de antigos lampiões ou criar novos modelos inspirados em autênticas peças
de origem europeia.
Eram os objetos que o casal encontrara abandonados na nova casa, ou outros
que recebiam como presente dos amigos, ou as peças que Arthur Guarisse trocava
ou adquiria nos antiquários e demolições da cidade, que inspiravam o trabalho de
criação e de produção artesanal, que se expandia e contava somente com uma solda
e algumas ferramentas específicas. O trabalho começou com a produção de trinta
luminárias por mês. Após o início da venda desses objetos, a clientes na capital
carioca e paulista, aproximaram-se vendedores e representantes por todo país.

A LOJA E A FÁBRICA NA RUA LANDELL DE MOURA

Sob o olhar atento do artesão-empreendedor, surge a oportunidade de


aquisição do terreno dos fundos da casa da família, que ficava de frente para a Rua

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Landell de Moura. Seria um novo espaço de trabalho que poderia ser anexado a
casa onde ainda funcionava a oficina que precisava ser ampliada. Após a aquisição
da nova propriedade, sem dinheiro e com a intenção de dar início às obras da nova
loja, o casal intensifica a produção de luminárias e móveis nos fundos da residência
da família na Rua Dr. Mario Totta, e Arthur Guarisse começa a vender de porta em
porta, ao visitar a casa de famílias ilustres de Porto Alegre.
Assim que conseguiu um empréstimo bancário e contratou mais artesãos, o
jovem empreendedor dá início às buscas por materiais de demolição e antiguidades
em Porto Alegre e em Pelotas para começar a construir o prédio da nova loja e da
fábrica, na Rua Landell de Moura, onde foram utilizados fragmentos de diversos
imóveis históricos demolidos na década de 1970, adquiridos e restaurados por
Arthur Guarisse para compor e embelezar os prédios do “Artesanato Guarisse”.

O “ARTESANATO GUARISSE” E O ARTESANATO NO RIO GRANDE DO SUL

Representativos de materiais e técnicas que constam na Base Conceitual do


Artesanato Brasileiro (BRASÍLIA, 2012) e do Artesanato Gaúcho (PGA5, FGTAS6),
os objetos criados no Artesanato Guarisse7 expressam cultura identitária e informam
desde a evolução da cadeia produtiva do Artesanato – da regional à transnacional –
aos acontecimentos que envolvem a profissão de Artesão e o desenvolvimento da
atividade artesanal.
O PAB (Programa do Artesanato Brasileiro) foi instituído com a finalidade
de coordenar e desenvolver atividades que visam a valorizar o artesão brasileiro e
elevar seu nível cultural, profissional, social e econômico, bem como desenvolver
e promover o artesanato e a empresa artesanal, a partir do entendimento de que
artesanato é empreendedorismo (SEMPE, 2018). Portanto, a Base Conceitual do
Artesanato Brasileiro8 pode ser considerada a consolidação dos principais conceitos
que norteiam a produção artesanal no país. A última atualização da Base Conceitual,
realizada no ano de 2018, foi um trabalho realizado pelo Ministério da Indústria,
Comércio Exterior e Serviços, na Secretaria Especial da Micro e Pequena Empresa,
em parceria com as Coordenações Estaduais do Artesanato. Além das formulações
elaboradas nas reuniões com os coordenadores estaduais, a equipe do Programa
compilou contribuições encaminhadas pelos Estados.
No decorrer das pesquisas sobre o “Artesanato Guarisse” foram realizadas
diversas entrevistas com empregados da fábrica em Porto Alegre e em Torres, as
quais são importantes referências ao trabalho artesanal executado pelos profissionais
5  Programa Gaúcho do Artesanato.
6  Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social.
7  Sediado em Porto Alegre, Gramado, Torres e nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, é possível afirmar que
o “Artesanato Guarisse” empregou e formou mais de trezentos profissionais.
8  A Base Conceitual do Artesanato Brasileiro inclui formas de organização da atividade artesanal, tipologias do
artesanato, classificação da produção e técnicas de produção. Todas essas definições foram tornadas públicas por
meio da Portaria MDIC nº 1.007-SEI, de 11 de junho de 2018, publicada no Diário Oficial da União de 1º de
agosto de 2018.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

artesãos contratados por Arthur Guarisse e aos acontecimentos ligados aos prédios
da fábrica e aos diversos setores de produção ali organizados. Portanto, é possível
afirmar que, no rol de tipologias e técnicas da Base Conceitual no Programa do
Artesanato Brasileiro (SEMPE, 2018), constam as técnicas artesanais representativas
do trabalho desenvolvido por artesãos e artesãs na fábrica do Artesanato Guarisse,
bem como as técnicas artesanais utilizadas na confecção de objetos datados e
assinados, adquiridos por Arthur Guarisse para comporem os prédios da fábrica ou
das lojas em Porto Alegre, Torres, Gramado-Canela, São Paulo e Rio de Janeiro,
ou para serem comercializados nas lojas do empreendimento e em outros locais,
como as Lojas, Feiras de Artesanato etc. Como exemplo, estão as técnicas: Boleado;
Carpintaria; Cerâmica; Faiança;Vidrado ou esmaltado cerâmico; Ferraria; Fundição;
Marcenaria; Modelagem a fogo; Pintura a mão livre; Pintura em azulejo; Reciclagem;
Serralheria; Torção em metal; Torneamento;Vitral; entre outros.

A (R)EVOLUÇÃO DO ARTESANATO NA ECONOMIA CRIATIVA

Comprovadamente, a origem e os acontecimentos que envolvem o


“Artesanato Guarisse”, do final da década de 1960 até meados da década de 2000,
são representativos da história do Artesanato na Cultura e no Empreendedorismo.
Registros e objetos que contam a história e representam memórias relacionadas
às diversas fases do empreendimento protagonizado por diversos atores são o que
compõem o acervo do Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse.
Entende-se que esse acervo museológico e com relevância patrimonial está
sendo prejudicado pela omissão dos últimos Governos em relação à propositura de
edital de convênio de ocupação para os prédios da fábrica do Artesanato Guarisse, um
lugar que representa conceitos e práticas que evoluíram das principais construções
e reivindicações em prol dos profissionais e dos empreendedores artesãos, e que
inseriram o Artesanato na Cultura nas últimas décadas.
Desde as manifestações mais remotas de Arthur Guarisse, em reuniões ou
entrevistas a mídias da época, em prol de sua empresa e dos profissionais artesãos que
nela trabalhavam, a inclusão do Artesão no rol dos empreendedores em 2009, com
o MEI – Microempreendedores-individuais (SEBRAE, 2018), ou com o advento
da Lei do Artesão, Lei nº 13.180 (BRASIL, 2015), que estabelece diretrizes para
as políticas públicas de fomento à profissão, institui a carteira profissional nacional
para a categoria e autoriza o poder Executivo a dar apoio profissional aos artesãos,
até o que atualmente é praticado no âmbito da “Economia Criativa” (SEBRAE,
2019), tudo está carregado de significados e sentidos que compreendem um sistema
social estabelecido, do qual os artesãos, os empreendedores e a comunidade em geral
fazem parte.
De acordo com o SEBRAE9, “Economia Criativa” é o “conjunto de negócios
baseados no capital intelectual e cultural e na criatividade que gera valor econômico”
(SEBRAE, 2019). Ademais, o Colegiado Setorial Nacional do Artesanato, através

9  Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), criou o Plano Nacional do


Artesanato com metas a serem alcançadas até o ano de 2025, um planejamento que
vai ao encontro de conceitos e práticas de Economia Criativa. Responsável por
estimular a geração de renda, criar empregos e produzir receitas de exportação, a
“Economia Criativa” inclui o Artesanato por considerá-lo uma atividade comercial
e cultural que promove a diversidade e o desenvolvimento humano, já que “abrange
os ciclos de criação, produção e distribuição de bens e serviços que usam criatividade,
cultura e capital intelectual como insumos primários” (SEBRAE, 2019).
Tradicionalmente, a “Cadeia Produtiva do Artesanato” é um conjunto de
etapas consecutivas ao longo das quais diversos insumos passam por algum tipo de
transformação até a constituição de um produto final e sua colocação no mercado,
o que corresponde a diversas etapas de produção que envolvem indivíduos e grupos
distintos. Para compreensão dos sentidos e significados do que representa a cadeia
produtiva para o Artesanato, de acordo com TABOSA (2016):

Association Française de Normalisation – AFNOR (2012) adota um conceito mais amplo,


considerando a cadeia produtiva como um encadeamento de modificações da matéria-prima,
com finalidade econômica, que inclui desde sua exploração no meio ambiente natural até o
seu retorno à natureza, passando pelos circuitos produtivos, de consumo, de recuperação,
tratamento e eliminação de efluentes e resíduos sólidos (TABOSA, 2016, destaque nosso).

Depreende-se que os ciclos, que definem a “Economia Criativa”, também


chocam e integram a cadeia produtiva, são representativos da evolução e se apresentam
como uma revolução nos conceitos e práticas do Artesanato, quando baseados “no
capital intelectual e cultural e na criatividade que gera valor econômico” (SEBRAE,
2019). Essa revolução e seu passado estão representados nas exposições de curta e
de longa duração propostas no Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur
Guarisse.

O SURGIMENTO DO MUSEU DE ARTESANATO DO RIO GRANDE DO SUL ARTHUR


GUARISSE E OS PROBLEMAS COM O PATRIMÔNIO E A MEMÓRIA

Com o início das pesquisas, no ano de 2013, tem início a formação do acervo
museológico que, a princípio, destinava-se à constituição de um Memorial.
Os prédios estaduais que compõem a “fábrica do Artesanato Guarisse” estão
ocupados de maneira irregular pela Primeira Região Tradicionalista do MTG;
pela Associação dos Escultores do Estado do Rio Grande do Sul (AEERGS); pela
Associação Gaúcha de Artes Integradas (AGAI)10 e pelo Centro Comunitário de

10  Essa entidade privada havia sido descoberta em diversas ilicitudes cometidas contra artesãs e artesãos que
tiveram seus nomes incluídos em atas fraudadas, que permanecem registradas ao acesso público no Cartório de
Títulos e Documentos de Pessoas Jurídicas em nome da Associação Gaúcha de Artes Integradas (AGAI) e/ou da
Associação de Artesãos da Feira de Artesanato da Tristeza - AAFAT. Estes profissionais nunca participaram das
Assembleias datadas nas atas e nunca receberam qualquer convite ou comunicado a respeito da sua participação
na composição administrativa da associação, conforme se confirma nas atas e nas fichas cadastrais desses associados.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Desenvolvimento da Tristeza,Villas Conceição e Assunção (CCD). Isso ocorreu sem


que estas entidades tivessem participado de edital de convênio de ocupação, uma
obrigação legal que impede a utilização de prédios públicos por entidades privadas
sem “licitação”, desde o advento da Instrução Normativa da CAGE, nº 06, de 27 de
dezembro de 2016 (RIO GRANDE DO SUL, 2016).
Com a aproximação de indivíduos e grupos que doaram peças adquiridas
no Artesanato Guarisse – estes ofereceram seus depoimentos ou registros
representativos da história do empreendimento –, o acervo foi se formando e
conduziu à constituição do Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur
Guarisse, junto ao Sistema Estadual de Museus (SEM-RS), na Secretaria Estadual
de Cultura. Entretanto, a formalização do registro junto ao SEM-RS aconteceu
após a constatação do desaparecimento das peças do acervo de sua sala expositiva,
um choque na experiência da pesquisa e formação do acervo causado por um ato
praticado por uma das entidades que ocupa o local.
Após vários problemas de relacionamento entre indivíduos e grupos que
ocupam e conduzem a administração dos prédios, oportunamente divulgados nos
jornais ou nas redes sociais que informam o trabalho das principais lideranças que
presidem as entidades envolvidas na ocupação irregular do imóvel público, o Museu
de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse se constituiu fisicamente
na residência da pesquisadora e diretora do museu, Marcia Morales Salis, situada à
Rua Engenheiro Jorge Porto, 220. A propriedade está emprestada ao Museu por
dois anos, na expectativa de que o edital de convênio seja proposto pela Secretaria
Estadual de Cultura (SEDAC), para que o Museu possa concorrer em igualdade
de condições com as demais entidades privadas do Estado que se interessarem, de
acordo com projeto administrativo adotado.
Em recente reunião, na Secretaria Estadual de Cultura, o grupo de associados da
ACAAG11 apresentou o Museu e entregou o pré-projeto intitulado “Centro Cultural
Arthur Guarisse”, com uma proposta administrativa que contempla participantes
da cadeia produtiva do Artesanato e que visa à ocupação por aluguel das salas, e
não mais a ocupação dos quatro prédios de forma individual e gratuita somente
por entidades privadas. O projeto apresentado desonera o Governo Estadual do
pagamento de impostos e taxas, propondo a administração do local por um conselho
administrativo com a presença de servidor(a) estadual indicado pela SEDAC.
O projeto Centro Cultural Arthur Guarisse vai de encontro ao projeto
instituído no local de maneira informal, sem edital, intitulado “Centro Cultural
Zona Sul”, que comprovadamente, desde o nome, promove o apagamento cultural
da memória coletiva e fere perversamente e por motivo fútil o direito à memória ao
Artesanato, um direito difuso que se estende a toda população do Estado. Ademais,
atividades com máquinas e equipamentos a gás ou elétricos são desenvolvidas
no lugar, sem Plano de Prevenção de Incêndios (PPCI), demonstrando a falta de
cuidados das entidades e do poder público com o imóvel.
Na reunião, a Secretária Beatriz Araújo reconheceu o direito do grupo a
concorrer à ocupação dos prédios e informou que já havia recebido notificação
11  Associação Cultural dos Amigos do Artesanato Guarisse.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

do Ministério Público Estadual sobre a obrigatoriedade da propositura do edital.


Foram realizadas denúncias, junto ao Ministério Público do Patrimônio Público
e ao Ministério Público do Meio Ambiente, e ao Tribunal de Contas do Estado,
tendo em vista a omissão do Poder Executivo à desocupação dos prédios pelo Poder
Judiciário, em relação à propositura de um edital que vá de encontro à falta de
cuidados com as características originais dos prédios representativos da fábrica do
Artesanato Guarisse, considerados acervo museológico. Sinalizamos a necessidade
de transformações no destino dos imóveis públicos e na condução desses órgãos
fiscalizatórios que atuam direta ou indiretamente em decisões importantes junto à
Secretaria Estadual de Cultura.
Assim, a confusão entre o público e o privado pode ter impulsionado o
surgimento de problemas entre as quatro entidades privadas, que se beneficiam da
gratuidade do uso de um imóvel estadual, e aponta para problemas de ordem ética
e comportamental que sinalizam à impossibilidade de que o uso e a administração
dos prédios sejam concedidos individualmente às entidades privadas. Ademais, a
partir da análise dos acontecimentos oriundos da convivência entre as entidades que
ocupam o imóvel, depreende-se que o choque (BENJAMIN, 2011) em questões que
relacionam memória e patrimônio assinala a subjetividade de seus atores principais
e revela a falta de esclarecimento sobre sentidos e significados do Artesanato no
âmbito da Economia e da Cultura.
Problemas com o patrimônio e a memória do Artesanato, que tentam resistir
em uma sociedade em aceleração constante, sinalizam alterações significativas na
percepção de indivíduos e grupos, “como as que experimenta um passante, numa
escala individual, e como as experimenta numa escala histórica, todo aquele que
combate a ordem social vigente” (BENJAMIN, 2011, p. 192).
A valorização da história e do patrimônio do Artesanato pode ser considerada
um acontecimento da inteligência, com sentidos e significados que são transmitidos
socialmente. Ao contrário disso, a experiência da desvalorização, cuja origem está na
falta de respeito com a história e a memória do Artesanato, pode ser considerada um
acontecimento esvaziado de sentidos, o que, neste caso, se configura com a simples
ocupação de um espaço físico como se ele não existisse no passado, ou como se ele
existisse somente a partir da seleção arbitrária de uma parte do passado.
Outro fator relevante à análise do problema da ocupação dos prédios da fábrica
do Artesanato Guarisse remete à realidade social que está submetida às constantes
transformações, de acordo com a vontade política dos governos eleitos. Por causa
disso, parece cada vez mais difícil estabelecer referências a pensamentos e ações, o
que pode levar ao risco de perda do valor cultural do Artesanato e, por conseguinte,
acontecer uma desvalorização do trabalho desses profissionais e a perda de valor
comercial do produto criado por eles.
Sem o respeito ao passado do Artesanato, os indivíduos e seus grupos são
levados a assimilarem rapidamente novos acontecimentos de acordo com as vontades
desses atores sociais, sem um alicerce forte o suficiente para promover reflexões
ou sustentar as suas próprias vontades. É nesse sentido que o efeito de choque
se manifesta como uma “degradação da experiência”. Os prédios da fábrica do

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Artesanato Guarisse representam o passado do Artesanato no Rio Grande do Sul e,


como tal, permanecem nas memórias da população, sendo considerados patrimônio.
Assim sendo, o que provoca a chamada “crise da cultura”, termo que Hannah Arendt
utiliza para referir a “incapacidade de articular passado e futuro, memória e projeto”,
em uma sociedade marcada pela valorização do instante presente, pode ser outra
causa dos problemas que envolvem a ocupação dos prédios (PASSOS, 2013).
Na fábrica, também, já funcionou a primeira sede do Foro Regional da
Tristeza e as lembranças da época da fábrica ou da atuação do Judiciário regional no
lugar que é referido pela população como os “prédios do Artesanato Guarisse” ou
como “o antigo foro”, conforme entrevistas a servidores e frequentadores das varas
criminais e cíveis que funcionaram nos prédios da fábrica, sinalizam a possibilidade
do reconhecimento do imóvel como patrimônio cultural do Estado.
Entretanto, apesar da possibilidade de reconhecimento ao valor histórico e
cultural dos prédios e do empreendimento Artesanato Guarisse, porque ali também
se instalou o Judiciário Regional, ainda permanecem, na atual sede do Foro
Regional da Tristeza (à Av. Otto Niemeyer, 2000 – Camaquã, Porto Alegre), os
objetos Guarisse que foram entregues ao Governo estadual junto com o imóvel da
fábrica, em ação de adjudicação12. Em tratativas com o Memorial do Judiciário, que
listou e cadastrou as luminárias, a mesa, o espelho e demais objetos Guarisse que
permanecem na nova sede, aguarda-se a resposta à solicitação de que a Administração
Central doe ou empreste esses objetos ao Museu de Artesanato do Rio Grande do
Sul Arthur Guarisse.
Assim sendo, apesar das resistências enfrentadas, que sinalizam a ambição
territorial em indivíduos e grupos atuantes na área da Cultura que parecem
desconsiderar a importância cultural dos prédios para o Artesanato, motivados
unicamente pelo uso gratuito de um imóvel histórico para artesãs e artesãos
gaúchos e a comunidade em geral, no dia 23 de março de 2019, inaugurou-se a
sede provisória do Museu de Artesanato do Rio Grande do Sul Arthur Guarisse. A
sede física do Museu, em uma propriedade particular, pode ser considerada a única
alternativa ao trabalho pela preservação da memória e do patrimônio do Artesanato
no Rio Grande do Sul, com a missão de promover a valorização da linguagem, da
história e da evolução do trabalho dos profissionais artesãos gaúchos.
A partir de sua constituição, o MAG vem sendo dirigido e coordenado como
um empreendimento criativo e colaborativo, pela pesquisadora e diretora do museu,
Marcia Morales Salis, e suas coordenadoras, a artesã Claize Pulgatti e a artista visual
Léa Guarisse, filha de Arthur Guarisse, assessoradas pela museóloga Helen Kaufmann
Lambrecht Espinosa e os sócios da Associação Cultural dos Amigos do Artesanato
Guarisse. Nesse sentido, o MAG pode ser considerado um museu comunitário
que se mantém através do envolvimento de seus associados e da comunidade em
geral, que é chamada a participar, com apoios e patrocínios diretos, e a frequentar
exposições, oficinas e eventos realizados no local.

12  Adjudicação é o ato judicial mediante o qual se declara e se estabelece que a propriedade de uma coisa
transfere-se de seu primitivo dono para o credor, que então assume sobre ela todos os direitos de domínio e posse
inerentes a toda e qualquer alienação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se que as lembranças,sobre oArtesanato Guarisse ou sobre o seu fundador


Arthur Guarisse, surgem na memória dos indivíduos e grupos, que se aproximaram da
pesquisa, a partir de suas relações com as mídias e em função da frequência no lugar da
fábrica. Este é um indicativo de que as memórias podem estar nos lugares que originam
as lembranças em quem testemunha ou se recorda de suas relações com pessoas com as
quais se convive.
As recordações e as lembranças sobre o Artesanato Guarisse são necessárias para
que se estabeleçam sentidos e significados àquilo que é trazido do passado do Artesanato
para o presente, e a memória, portanto, que não estiver organizada em um processo de
narrativa, não se torna compreendida pela consciência humana. É a narrativa organizada
– através da preservação de um prédio histórico ou da existência de um museu, por
exemplo – que possibilita ao passado do Artesanato a sua recepção no presente. Assim,
sob novas perspectivas ou inspirações, permite-se que o presente, a partir do passado,
possa ser vivenciado como experiência significativa repleta de sentidos e significados
transformadores.
Os prédios da fábrica do Artesanato Guarisse são uma narrativa que organiza
a memória. Entende-se que a carência de edital e a ambição territorial, política e
econômica de indivíduos e grupos, pelo uso gratuito do imóvel histórico para o
Artesanato, ou a inércia do Executivo e a morosidade do Judiciário, comprovadamente,
acarretam prejuízos ao direito à memória e correspondem ao status instituído ao
Artesanato no Rio Grande do Sul, em que tradições deixam de ser reconhecidas no
passado para que possam orientar questões do presente. Constata-se que a falta de ações
em prol do reconhecimento e da preservação do patrimônio cultural do Artesanato por
representantes da sociedade civil, atuantes nos órgãos colegiados do Patrimônio ou no
Conselho Estadual de Cultura, advém da confusão entre “público” e “privado”, quando
a pessoalidade e a cultura do narcisismo avançam dos indivíduos e grupos em conflito
para o interior da cultura social (SENNETT, 2015).
A falta de atenção ao fato de que a memória sobre o Artesanato Guarisse possui
uma dimensão coletiva faz com que as suas principais referências – os prédios da fábrica
– sejam objeto de disputa entre grupos políticos que se articulam e atuam em busca de
satisfazer seus próprios interesses, através do controle sobre o processo de seleção do que
deve ser lembrado e do que deve ser esquecido.
Portanto, conclui-se que, apesar de todos os problemas que envolvem o artesanato,
a memória, o patrimônio, as entidades privadas e o poder público, antes de um edital de
ocupação com regras definidas que respeitem o lugar e limitem a utilização, os cuidados
e reformas nos prédios, a possibilidade de tombamento aparece como alternativa à
preservação das características originais que ainda se conservam no imóvel representativo
da fábrica do Artesanato Guarisse. Este é o único patrimônio cultural que narra, através
de sua arquitetura, nas paredes e nos vitrais, nos tijolos e telhas, nas portas e janelas, nos
gradis, no lago e nas estátuas dispostas no jardim, a história do artesanato no Rio Grande
do Sul, um importante setor que recepciona mais de cinquenta mil artesãos no Estado,
segundo a Fundação Gaúcha de Trabalho e Ação Social.

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REFERÊNCIAS

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abril de 2019.
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artesão. Brasília, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/lei/l13180.htm>. Acesso em 11 nov. 2019.
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Técnica. Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2011.
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______. Artesanato Guarisse. Porto Alegre, 24/02/2017. Disponível em: <https://www.
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MILHORANZA, Mariângela Guerreiro. Resenha do Livro “O Tempo do Direito” de
autoria de François Ost. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 8, nº 753, 15
de abril de 2008. Disponível em: <https://www.paginasdedireito.com.br/index.php/
artigos/66-artigos-abr-2008/6062-resenha-do-livro-o-tempo-do-direito-de-autoria-de-
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PASSOS, Fábio Abreu dos. O conceito de Mundo em Hannah Arendt: um passo em
direção à superação do hiato entre Filosofia e Política. Tese apresentada ao Departamento
de Filosofia da FAFICH/UFMG. Universidade Federal de Minas Gerais, 2013. Disponível
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PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. São Paulo: Vozes, 2009.
RIO GRANDE DO SUL. Instrução Normativa Cage Nº 06, de 27 de Dezembro de
2016. Disponível em: <https://planejamento.rs.gov.br/upload/arquivos/201701/31110427-
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brasileira. Dissertação de Mestrado em Letras – Programa de Pós-graduação em Letras,
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em 3 de março de 2017. In: O Jornalecão. Disponível em: <http://www.jornalecao.
com.br/2017/03/03/etica-convenio-edital-o-destino-dos-predios-da-antiga-fabrica-do-

60
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

artesanato-guarisse/>. Acesso em 21 abr. 2019.


SEBRAE. Economia Criativa. 20–?. Disponível em: <https://m.sebrae.com.br/sites/
PortalSebrae/segmentos/economia_criativa/como-o-sebrae-atua-no-segmento-de-
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SEMPE. PAB - Programa do Artesanato Brasileiro. Publicado em 20 de Junho de 2018.
Disponível em: <http://www.sempe.mdic.gov.br/index.php/editoria-b/pab-programa-do-
artesanato-brasileiro>. Acesso em 22 abr. 2019.
SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público - as tiranias da intimidade.
Rio de Janeiro: Record, 2015.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A ARQUEOLOGIA COMO MEIO DE


CONSTRUÇÃO E RESSIGNIFICAÇÃO DE
MEMÓRIAS: PRESENÇA E PERMANÊNCIA
INDÍGENA NA REGIÃO NORTE DO RIO
GRANDE DO SUL
JACQUELINE AHLERT1
TAU GOLIN2

Apresentamos, neste breve artigo, a fase inicial de uma proposta acadêmica


e extensionista – coordenada pelos autores, junto à equipe de pesquisadores do
Laboratório de Cultura Material e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo
(Lacuma/UPF) –, que visa a um processo de ressignificação da memória indígena
na região norte do Rio Grande do Sul. Para tanto, problematizaremos os discursos
reiterados pela mídia e presentes no senso comum em contraposição à complexidade
histórica da região e apresentaremos aspectos das iniciativas propostas pelo Lacuma
referentes ao agenciamento dos estudantes junto as suas comunidades na investigação
e no mapeamento de sítios arqueológicos, artefatos e dados etno-históricos.
Para Paul Ricoeur, “o esquecimento é o emblema de quão vulnerável é
nossa condição histórica” (2007, p. 300). Portanto, deve-se pensar que a tessitura
da narrativa daquilo que se memora deixa espaço também para o esquecimento e
para a falibilidade. Memória e esquecimento fazem, ambos, parte da experiência
temporal humana e mediam esta experiência até a operação narrativa. Entretanto,
preponderam algumas narrativas na memória coletiva, mormente daqueles que
mobilizam seu capital econômico, cultural, social e simbólico para reforçar suas
identidades e legitimar sua posição e poder.
No que tange à região em questão, o silenciamento recai sobre a milenar
presença indígena.A memória construída pelos (i)migrantes inverte a lógica histórica
e transforma as populações autóctones em invasoras3.
1  Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Professora do
Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Email: [email protected]
2  Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Professor do
Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo. Email: [email protected]
3  Não cabe ao escopo desse artigo adentrar a complexidade da histórica questão fundiária indígena, colocações
nesse âmbito buscam direcionar aos esforços de pesquisa que a visam trazer luz à presença indígena na região.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A modo de elucidação, deter-nos-emos brevemente na narrativa apresentada


no programa Brasil visto de cima4 sobre Passo Fundo. Apresentada com as lentes
condicionadas pela viseira tradicional, a cidade é exibida como obra exclusiva dos
imigrantes, com colocações redutivas sobre o que seria “um pedaço da Europa”.
Não há menção aos indígenas, aos povos originários caingangues e guaranis, assim
como não há referência ao gentílico caboclo, bases de sua formação e povoamento.
A produção, como inúmeros outros discursos midiáticos que pretendem
construir identidades, presta-se a vender estereótipos, alimentar o status quo, além
de mitigar a complexidade da formação regional. É o paraíso da produtividade
industrial, de uma população que se realiza exclusivamente pelo trabalho e a
acumulação.
A “cuia”, elevada à estátua de praça, é apresentada como símbolo da cidade.
Todavia, nada sobre os ervais nativos, a invenção e distribuição da erva-mate, cultura
indígena que se transformou em ícone do Sul. Nada, também, sobre os povoados
ervateiros vinculados às Missões Jesuíticas no longo período que abrange desde
o século XVII ao XIX, que, juntamente com os demais produtores da Província
Paraguaia e, depois, exclusivamente dos Pueblos de Índios, abasteceram a América
e a Europa.
O programa, na verdade, representou a visão militante e desilustrada que
pretende retirar do imaginário passo-fundense a presença de índios, caboclos e
negros. Conforme o programa (que poderia se chamar “Passo Fundo não visto nem
de cima”), com o auxílio dos prepostos locais, a região é supostamente regionalista,
gauchescamente pilchada.
Somam-se, a esse conjunto, monumentos aos imigrantes e colonizadores,
rotas temáticas direcionadas a turistas que buscam por “pedaço(s) da Europa”,
como “A Rota das Salamarias”, “Parreirais”, “Della Cuccagna” etc., constituindo
o que genericamente a Secretaria da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer do estado
denomina como “Região Cultura e Tradição”.
Incide sobre a narrativa histórica, construída a partir do trabalho arqueológico,
a emergência do contraponto, na polifonia dos artefatos, mapas, relatórios e demais
fontes com as quais podem se munir os pesquisadores para equilibrar a balança dos
pertencimentos. Como elucida Le Goff,

o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer
pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos
que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da
memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e
os documentos, escolha do historiador (LE GOFF, 2003, p. 525 - 526).

Seguindo com as considerações do autor, como um sinal do passado, o


monumentum tem, entre as suas características, o poder de perpetuação da memória.
Dentre os remanescentes indígenas, espalham-se monumentos pela paisagem do

4  Brasil visto de cima é um programa televisivo exibido pelo canal a cabo Mais Globosat. Nele são apresentadas
diversas cidades brasileiras sob diferentes ângulos em imagens aéreas capturadas por helicópteros, drones e aviões.

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planalto sul-rio-grandense. Involuntariamente, perpetuam uma memória sob a qual


paira certo tabu no contexto dos conflitos por terra que existem na região. “Buraco
de índio?”, dizem os locais, “deixa quieto lá”, “aqui ninguém sabe nada disso”.
Cemitérios indígenas, abandonados em meio a capões de mato, sobrevivem, por
vezes, mais pelas superstições do que pelas considerações. Ainda assim, são inúmeros.
Porquanto os “produtos da arqueologia” há muito são considerados documentos,
há menos são interrogados nos seus sentidos de mediadores da compreensão de
sistemas de vida e morte, ocupação e construção espacial e da paisagem. É no
potencial intrínseco à materialidade dos artefatos que se ultrapassa a dimensão
daquilo que “é” para aquilo que “significa”.
Ricoeur (2007) sugere que a história deva reconstruir situações que restituiriam
ao passado o que lhe é próprio, mas que, para tanto, necessita fazer uma representância
deste. A representância não equivale à categoria de referência: o historiador não
pode se referir ao passado, pois não há uma via direta de acesso ou de exposição.
Enquanto “representar” é pôr-se no lugar de algo, o que cabe ao historiador não é
“representar”, mas “representar-se”, no sentido de que forja uma imagem mental de
algo ausente.
O conceito de representância na sua relação com o passado, para Ricoeur,
vai ser esclarecido pela sinergia do Mesmo, do Outro, do Análogo. Essa operação
da narrativa histórica é uma “des-distanciação”. O passado se torna inteligível na
medida em que, num momento presente, a partir de “rastros” que são ainda presentes,
nos tornamos “contemporâneos” de um passado remontado.
Nesse sentido, um fragmento de cerâmica sensibiliza menos pelas suas
características tecnotipológicas – qualidade da pasta cerâmica, composição química
das rochas argilosas, medição da inferência dos índices de temperatura de queima,
detecção dos minerais corantes etc. – do que pela marca da digital do artífice em sua
superfície, pelos rastros dos seus usos ritualísticos ou cotidianos.
A construção de uma memória da presença indígena perpassa a humanização
das ações de educação patrimonial. Nessa perspectiva, a ação media, junto com o
artefato, uma prática de alteridade, numa interface entre o Mesmo, o Outro, o Análogo.

O LACUMA, A PESQUISA E A MEMÓRIA

Foi na década de 1970 que se iniciou a trajetória da Arqueologia na Universidade


de Passo Fundo, através da criação do Gabinete de Arqueologia, cuja composição
congregava uma equipe com formação multidisciplinar. As contribuições dos
anos 70 e 80 foram expressivas, sobretudo, no que tange à pré-história regional,
resultando no cadastramento de dezenas de sítios arqueológicos e na composição
de um considerável acervo lito-cerâmico. A retomada das ações foi propiciada pela
criação do Núcleo de Pré-História e Arqueologia (NuPHA), em 2009, ao qual
foi integrado posteriormente o Laboratório de Cultura Material e Arqueologia
(Lacuma), criado em 2012. Ambos integram a Linha de Pesquisa em Cultura e
Patrimônio, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UPF). Entre as
principais atividades desenvolvidas estão guarda de acervos, atividades de educação

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patrimonial, visitas de escolas, palestras e cursos.


A atuação do laboratório dá-se em direções diversas: encarrega-se da
salvaguarda e de pesquisas no acervo recebido através dos contratos de endosso
arqueológico entre o NuPHA-PPGH-UPF e empresas públicas e privadas; participa
de convênios e investigações interinstitucionais, com universidades do país e do
exterior5; realiza estudos e projetos de extensão envolvendo acadêmicos do curso
de História e pós-graduandos em nível lato e stricto sensu. Todas as ações abrangem,
entre seus objetivos, atividades de educação patrimonial. Além disso, é frequente o
agendamento de visitas ao Lacuma, independentemente das atividades supracitadas,
por parte das escolas da rede pública e particular.
Deter-nos-emos, aqui, nas ações executadas no recorte geográfico que
compreende a região norte do Rio Grande do Sul. Além de ser o espaço de atuação
da universidade, constitui um dos pontos nodais da presença indígena no estado. De
acordo com Kujawa,

O Rio Grande do Sul, em especial a região norte do estado, presencia, na última década, a ampliação,
numérica e intensa, dos conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores. Na região, que
não ultrapassa um raio de 200 quilômetros, há doze acampamentos indígenas reivindicando a
criação de novas Terras Indígenas (TI) ou ampliação das existentes, com processos de Identificação,
Delimitação Demarcação de TI, em diferentes estágios, tramitando na FUNAI e no Ministério da
Justiça (2015, p. 73).

No Rio Grande do Sul, em 2010, viviam 18,5 mil indígenas de grupos étnicos
Guarani, Mbia Guarani, Kaingang e mistos. Em termos de terras indígenas, em
2015, segundo a FUNAI, o Estado contava com 7 áreas declaradas, 2 delimitadas,
20 regularizadas e 16 em estudo6. Grande parte delas encontra-se na área de
concentração do estudo, como se pode observar na fig.1:

Figura 1: Distribuição das terras indígenas no Brasil e na região norte do Rio Grande do Sul

Fonte: Terras Indígenas no Brasil. Instituto Socioambiental. In: <https://terrasindigenas.org.br/pt-br/>.

5  Destacam-se as pesquisas realizadas em conjunto com a Universidad de La Republica, em parceria com o Prof.
Dr. Jose Lopez Mazz e com o Prof. Dr. Diego Bracco e com a Uniwersytet Wroclawski (Instytut Archeologii), junto
ao Prof. Dr. Józef Szykulski.
6  Informações disponíveis em <https://atlassocioeconomico.rs.gov.br/areas-indigenas>. Acesso em 10 nov. 2019.

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Há uma contradição entre a presença indígena no espaço em tela e a memória


que lhe seria correspondente, considerando que a demarcação das terras ocorre pela
interface de estudos etno-históricos, sociológicos, cartográficos e ambientais – além
do levantamento fundiário e dos trâmites político-jurídicos subsequentes. Ou seja,
o direito indígena a terra está atrelado à constatação desta ser tradicionalmente
ocupada pelos povos originários,“o argumento central para a reivindicação indígena
é o da etnicidade, alegando o vínculo ancestral de ocupação imemorial destas terras”
(KUJAWA, 2015, p. 79). Prevalece, no entanto, a invisibilidade dos indígenas e de
seus direitos na terra de “Della Cuccagna”.
De que modo construir a representância do curso passado dos acontecimentos?
Isso pode ser feito entendendo-se, através de Ricoeur (2007), que a realidade
histórica é um vestígio (trace), sendo o acesso ao passado possível somente pela
mediação dos rastros, das “fontes documentais”.
Como orquestrar memórias com base em artefatos? O que nos garante que
não passarão de iniciativas isoladas e pontuais que, após explanações sobre a história
da ocupação do espaço, da exibição de algumas pontas de flechas e fragmentos
cerâmicos, quiçá de alguma dinâmica didática, não incidirão na lembrança dos
estudantes como nada além de um “teatro de curiosidades” distante do seu cotidiano,
da paisagem e da própria história?
Na ponderação dessas problemáticas, notou-se que o trânsito de visitações, os
agendamentos e a demanda por informações sobre os artefatos e suas vinculações
históricas partem majoritariamente dos discentes em nível de graduação, do curso de
licenciatura em História, bem como dos ex-alunos e pós-graduandos que lecionam
em escolas de Passo Fundo e região. Avaliamos, com isso, que o investimento em
projetos de extensão, vinculados à pesquisa, proporciona a apropriação da dinâmica
histórica do passado indígena por parte dos estudantes (futuros professores) e a
continuidade das propostas de educação patrimonial que estavam fadadas à disjunção.
É imprescindível atentar ao risco de uma política compensatória, acrítica e
que “pressupõem que as populações locais são ignorantes em relação ao seu passado
(que só pode existir se é exposto pela disciplina) e faz dos educadores patrimoniais
os redentores da história e, inclusive, das culturas das populações locais” (GNECCO;
DIAS, 2015, p. 6). O planejamento de ações com a comunidade e não para a
comunidade marca um eixo que parte de práticas significativas que consideram os
conhecimentos prévios dos envolvidos e suas experiências e relações com o espaço
que habitam.
Perpassam pelo projeto, ainda, a apropriação dos procedimentos próprios da
arqueologia pelos estudantes e a compreensão de suas especificidades metodológicas
e das contribuições do diálogo interdisciplinar, conhecimentos que culminam na
prática pedagógica e no diálogo com a comunidade.
Atualmente, o laboratório conta com quinze alunos envolvidos no estudo7,
7  Os acadêmicos Isadora Barbosa, Ana Carolina Galvan, Fábio de Bastiani, Verônica Zamarchi, Cristian Vian,
Armando Graff, Jeferson Zanon, Valéria Pedron, Lieli Kolling, Bruna Oliveira; os mestrandos Renan Pezzi, Tiara
Cristiana Pimentel dos Santos e as doutorandas Lorilei Secco e Francielle Cassol. Sob coordenação dos profs.
Luiz Carlos Tau Golin, (coordenador do NupHa), Jacqueline Ahlert (coordenadora do Lacuma) e do arqueólogo
Fabricio Vicroski.

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divididos em tarefas diversas que confluem na construção de subsídios para


proposição de uma memória da presença indígena. As etapas de higienização,
documentação gráfica e fotográfica, descrição dos artefatos, catalogação dos acervos,
digitalização, entre outras, específicas de laboratório, são vivenciadas na busca de
uma formação integrada prática e metodologicamente (fig. 2), acompanhadas de
ações educativas (fig. 3).

Figura 2: Acadêmicos do curso de História higienizando artefatos.

Fonte: Acervo do Lacuma

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Figura 3: Mestrando do curso de História mediando educação patrimonial no Lacuma.

Fonte: Acervo do Lacuma

PARA ALÉM DO LABORATÓRIO, A PESQUISA COM A COMUNIDADE

De inúmeras cidades vizinhas de Passo Fundo vêm os estudantes para cursar


a graduação e dar continuidade à formação: Casca, Carazinho, Sertão, Guaporé,
Novo Barreiro, Nova Prata, Nova Araçá,Veranópolis etc. Todas elas estão, de alguma
maneira, ligadas à teia dos remanescentes indígenas. São “buracos de bugre”, “tocas
de índios”, “pedras de índio” “panelinhas”, traduzidos em casas-subterrâneas,
paleotocas com marcas de ocupação humana, inscrições em pedras, cemitérios,
materiais líticos materiais líticos e cerâmicos recolhidos nas lavouras e demais áreas
de ocupação pretérita.
Responsáveis pela cidade de origem e suas cercanias, cabe a cada aluno
realizar entrevistas com os locais, consultá-los sobre “acervos” particulares, contos,
conhecimentos que perpassaram gerações e caminhos. Os registros sistematizados
compõem um mapeamento do potencial arqueológico da região e da história da
presença indígena do território. Afora as marcas na paisagem e os objetos guardados
pelos moradores, encontraram-se caixas de artefatos arqueológicos em museus
municipais, sem informações de procedência, data, meio de aquisição e outras
referências. Há uma imensidão de materialidade latente pela transformação em
fonte histórica.

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Encontram-se, na pesquisa de campo, algumas dificuldades decorrentes de


preconceitos, receios e odiosidades, principalmente porque paira sobre o meio rural,
sobre as cidades interioranas de modo geral, o pavor da desapropriação de terras em
prol dos indígenas, de sanções do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA). Têm de serem explicados, incansavelmente, os objetivos da
pesquisa e precisa ser exposta a importância do saber histórico na sua relação com
a contemporaneidade.
É nesse momento que a educação patrimonial dá seus passos iniciais, no
acolhimento da comunidade para junto da proposta de estudo. O exercício de
abstração exigido pelo “colocar-se no lugar” dos sujeitos que forjaram os objetos
e modificaram a paisagem conduz os locais a um exercício de alteridade no qual
as necessidades, táticas, tecnologias e relações com o meio devem ser reelaboradas.
Nesse “entre-lugar” que se move do presente para o passado, constroem-se noções
de historicidade, uso, sentido e ocupação do espaço geográfico e problematiza-se
a permanência, legitimidade e memória dos grupos sociais da contemporaneidade.

CONSIDERAÇÕES AINDA LONGE DE UM FINAL

As pesquisas realizadas até o momento indicam que os primeiros grupos


humanos chegaram ao norte do estado no final da última glaciação. Nesse período,
toda a ambientação era distinta da atual. Com as modificações climáticas posteriores
a 8.000 A.P., as florestas subtropicais, frequentemente acompanhadas pelos pinheiros
araucária, expandiram-se pelo alto do planalto e por suas encostas. Conforme afirma
Kern,

O povoamento dessas paisagens pelos grupos indígenas mais antigos, não tem um passado tão
recente como se chegou a acreditar. Ao longo das últimas décadas, as pesquisas têm descortinado
uma história que não se insere mais nos estreitos limites que ainda hoje frequentemente são
divulgados. A referência é sempre feita ao século XVI, quando as primeiras velas dos navios
europeus surgiram no horizonte. Hoje podemos contar a história destes primeiros povoadores do
nosso estado, ao longo de doze milênios, desde o final da última glaciação (2009, p. 16).

Estudos arqueológicos identificaram, na região, sítios de populações de


caçadores-coletores pré-ceramistas associados às tradições arqueológicas Humaitá e
Umbu, como aponta Vicroski (2014), além de grupos horticultores relacionados às
culturas ceramistas Taquara e Tupiguarani, abrangendo uma faixa cronológica que
parte do início do pleistoceno até a chegada dos espanhóis e portugueses à região.
O povoamento histórico do Planalto Médio iniciou-se ainda no século XVI,
sendo intensificado nos séculos que se seguiram pelas expedições de exploradores,
pela circulação de bandeirantes e tropeiros e, principalmente, pelo estabelecimento
das reduções jesuíticas, finalizando o período de autonomia dos povos indígenas.
A partir do século XIX, inicia-se uma frente de ocupação do território sul-rio-
grandense pelo império, processo no qual os índios são considerados uma espécie de
“entulho” no território. Essa concepção passa a integrar o discurso historiográfico,

69
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

de modo a articular um processo de legitimação da expansão territorial dos


“civilizados” e sua posse legal sobre a terra.
Dois séculos sobrepõem os 12 mil anos da presença indígena no estado. Em
Passo Fundo – a cidade dos monumentos inúteis –, no percurso da Avenida Brasil
e das dezenas de monumentos espalhados pelo canteiro central, não há menção aos
povos originários, salvo pelo referente a “Missão Jesuítica de Santa Tereza”, em que
a cruz dos loyolistas cobre uma pena indígena. Sobre as escolhas para memorar, no
discurso oficial, a matéria veiculada pelo jornal Diário da Manhã, em 16/9/2018,
dá-nos os indicativos ideológicos daquilo que se “deve lembrar”:

De acordo com a coordenadora do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) da 7a Região


Tradicionalista, Gilda Galeazzi, a cidade é recheada de história da cultura gaúcha com diferentes
marcos reais, além da solidificação através de homenagens em monumentos. “Além de ser uma
cidade gaúcha, Passo Fundo é uma cidade histórica. Nós temos um contexto histórico muito forte,
marcos importantes, como a batalha do Pulador, que são fatos reais e históricos. Símbolos que
dizem muito sobre a história gaúcha, da cidade”, afirma. [...] A coordenadora elenca, ainda, os
monumentos que mais caracterizam a cultura gaúcha na cidade. “São muitas lembranças, mas o
que realmente marca na cidade são os cavalos do Mercosul, o Teixeirinha que representa a música,
a Cuia e a Chaleira na Roselândia. Os demais são marcos históricos, personagens que ajudaram a
construir a revolução farroupilha”, completa (<https://diariodamanha.com/noticias/monumentos-
marcam-a-historia-gaucha-em-passo-fundo/>, acesso em 20 jun. 2019).

Como no programa televisivo “Passo Fundo Visto de Cima”, o que é reiterado


pelas diferentes mídias é míope, indiferente do ponto de vista. Os três séculos de
etnocídio e expropriação das terras indígenas foram espanados pelas hélices do
helicóptero, pelas lentes do fotógrafo, pela narrativa da coordenadora do MTG.
Ao refletirmos sobre o processo de desenvolvimento da espécie humana, logo
percebemos a inegável contribuição das gerações que nos precederam, sinaliza
Vicrosky (2017). Referindo-se ao cenário de conflitos fundiários no RS, aponta:
“Podemos nos portar como seres inertes e ignorar nosso papel na sociedade, ou
podemos assumir uma postura de diálogo e contribuição para a resolução dos
problemas sociais, mas para isto é imprescindível buscarmos conhecimento sobre o
tema” (2017, p. 14).
Por meio da agência de estudantes em suas comunidades, aproximamo-nos
da remanescência indígena, da continuidade cultural e da construção de memórias
inclusivas. Com a ajuda da materialidade, como rastro do passado, a representância
da historicidade indígena consolida-se. A pesquisa, os registros, a salvaguarda,
junto à catalogação e interpretação dos artefatos, possibilitam, afora a preservação,
a construção de leituras de sentido, por meio da produção de conhecimento e
do diálogo com a comunidade, bem como da decodificação das implicações dos
objetos, dos modos de fazer e de seus usos nas sociedades humanas.
Como uma proposição em processo inicial de desenvolvimento, fragilidades
ainda avultam-se, tais como a necessidade de operar estrategicamente a aproximação
entre a academia e as comunidades indígenas, parcerias envolvendo órgãos públicos,

70
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

inserção dos professores, pais e acadêmicos numa dinâmica conjunta de investigação


e representação, entre outros.
Destacamos que a luta por representação, visibilidade e memória é remota
entre os povos originários, no entanto, a interação desses anseios com as práticas
arqueológicas é um processo muito recente, no Brasil. O movimento a ser trilhado
demanda diálogo e constituição de interfaces entre modos distintos de relacionar-se
com a história e com a memória, mais do que isso, atenção para não repetir erros
tão antigos como os conflitos supracitados, de ações verticais a partir dos muros
institucionais.

REFERÊNCIAS

GNECCO, C. y Dias, A. S. Sobre arqueologia de contrato. Revista de Arqueologia,


[S.l.], v. 28, n. 2, p. 03-19, 2015. Disponível em: <https://www.revista.sabnet.com.br/
revista/index.php/SAB/article/view/425>. Acesso em 10 abr. 2019.
KERN, Arno A. A aurora do Rio Grande: primeiras populações indígenas. In:GOLIN,
Tau; BOEIRA, Nelson (Org.) Povos Indígenas. História Geral do Rio Grande do Sul,
vol. 5. Méritos: Passo Fundo, 2009.
KUJAWA, Henrique Aniceto. Conflitos envolvendo indígenas e agricultores no Rio
Grande do Sul: dilemas de políticas públicas contraditórias. Revista Ciências Sociais
Unisinos. São Leopoldo, Vol. 51, N. 1, p. 72-82, jan/abr 2015.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2003.
MORAES, Mateus. Monumentos marcam a história gaúcha em Passo Fundo. Jornal
Diário da Manhã versão online. Disponível em: https://diariodamanha.com/noticias/
monumentos-marcam-a-historia-gaucha-em-passo-fundo/. Acesso em 20/06/2019.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François
[et al.]. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
VICROSKI, Fabricio J. Nazzari. Arqueologia e ancestralidade indígena no Planalto
Meridional do Rio Grande do Sul. In: TEDESCO, João Carlos (org.) Conflitos agrários
no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores – dimensões históricas. Porto
Alegre: EST Edições, 2017.
______. Diagnóstico arqueológico interventivo na área de implantação do
loteamento residencial Parque da Cidade I, município de Passo Fundo/RS.
Núcleo de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo, 2014.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

MUSEUS DE MEMÓRIA E TURISMO: ENTRE OS


DESAFIOS DA TRANSMISSÃO E A BANALIZAÇÃO
DAS MEMÓRIAS DIFÍCEIS
CAROLINA GOMES NOGUEIRA1
MARIA LETICIA MAZZUCCHI FERREIRA2
DARLAN DE MAMANN MARCHI3

O século XX, período de catástrofes, também se torna a “era dos testemunhos”


(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 82). No contexto latino-americano, este século foi
marcado pelas ditaduras cívico-militares, conflitos armados e sucessivas violações
contra os Direitos Humanos. A transição para o período democrático trouxe consigo
uma profusão de relatos de experiências das violências cometidas pelos Estados,
durante o período de repressão. Esses testemunhos tornaram-se fonte fundamental
para a criação de museus de memória.
Os museus de memória são uma tipologia museológica que se desenvolve a
partir dos anos 1990 e integra um fenômeno que Bezerra e Serres definem como

[...] um novo campo de ação patrimonial dedicado à compreensão das memórias difíceis, pois os
efeitos destas novas formas de comemoração do passado, ainda não estão claras e, tampouco
existe um consenso no que diz respeito aos métodos experimentados pelos meios de transmissão
destas novas memórias (BEZERRA; SERRES, 2015, p. 175).

Os museus de memória compõem o que Tornatore (2010) define como


‘proliferação’ da memória, para além do ‘mnemotropismo’ de Candau (2010),
configurando uma possibilidade de democratização da memória (RANGEL et al.,
2019). São instituições que, como bem define o historiador Sebastián Vargas Álvarez,

Un lugar de construcción de la identidad colectiva y de recopilación, conservación, narración


y legitimación de la memoria social. Tanto en el mundo occidental como en otras tradiciones,
1  Graduanda em Museologia; Universidade Federal de Pelotas – bolsista CNPq; Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil;
[email protected];
2  Professora do Bacharelado em Museologia e do PPGMP – Universidade Federal de Pelotas; Pelotas, Rio Grande
do Sul, Brasil; [email protected]
3  Pós-doutorando FAPERGS/CAPES no PPGMP – Universidade Federal de Pelotas; Pelotas, Rio Grande do
Sul, Brasil; [email protected].

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

los grupos han construido museos y otros artefactos museales –lugares físicos, simbólicos o
funcionales- que les han permitido reunir y exhibir objetos, darles coherencia mediante narrativas
más o menos arbitrarias y así sintetizar una “esencia”, un rasgo distintivo del grupo, su lugar en
la historia y en la cultura. A través de objetos de la más variada índole, los cuales se reconocen
en un momento dado como significativos, esa esencia o identidad colectiva intangible adquiere
materialidad y es fijada en el tiempo (ÁLVAREZ, 2014, p. 92).

Estes museus, por vezes, são considerados “lugares de memória” tal qual
Pierre Nora (1993) define como lugares que estão vinculados a uma proposta
historiográfica, “lugares onde a memória se cristaliza e se refugia” (NORA, 1993,
p. 7).
Algumas destas instituições foram construídas no próprio local onde aconteceu
o evento traumático, o que Régine Robin (2014) define como “sítios autênticos”,
e são como uma intervenção política-institucional inserida no cenário urbano e
pensada para restituir no presente uma relação entre passado, espaço, memória e
práticas sociais (ESCOLAR; FABRI, 2015). Por outro lado, existem os “lugares de
memória” que recebem marcas memoriais e não estão vinculados necessariamente
ao local físico do acontecimento.
Os museus de memória são definidos pela Coalizão Internacional de Sítios
de Memória4 como sítios de consciência. Os sítios de consciência5 são espaços que
se configuram como um lugar de reflexão e de construção da “memória social”
(HALBWACHS, 1994).
Abordar-se-ão, neste artigo, duas instituições decorrentes de memórias difíceis:
o Museo de la Memoria de Rosário, na Argentina, uma instituição dedicada à
preservação de memórias pós-genocídio; e o Parque por la Paz Villa Grimaldi, no
Chile, uma instituição que, desde sua criação, tem como um de seus principais
objetivos a promoção e defesa dos Direitos Humanos, assim como da memória
histórica do parque.
Essas duas instituições foram escolhidas por estarem associadas a uma prática que
John Lennon e Malcolm Foley (2000) definiram como Dark Tourism. Essa expressão
é utilizada pelos autores para explicar a atração de turistas por catástrofes, desastres
e eventos associados ao sofrimento e à morte. Além disso, o dark tourism é um
dos elementos agenciadores de interesse turístico. Os museus de memória entraram
num circuito turístico no qual o visitante “é posto em contato com experiências
de sofrimento e violência extremos, traduzidos pela mediação museológica que,
pela pedagogia da memória busca transmitir valores morais e reflexões acerca destes
processos” (FERREIRA, 2018).
Em busca destas instituições que são consideradas pontos turísticos, e que
agenciam relações sociais, econômicas e políticas, é que este trabalho se propõe a
analisar, através do website norte-americano TripAdvisor, os comentários de turistas e
visitantes destas duas instituições. Cabe ressaltar que os comentários não representam
4  Rede mundial dedicada à transformação dos lugares que preservam o passado em espaços que atuam pelos
Direitos Humanos e pela justiça.
5  Sites of Conscience. Disponível em: <www.sitesofconscience.org>. Acesso em 03 jul. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

todo o público das duas instituições sendo apenas uma microparcela de todo público
visitante.

MUSEO DE LA MEMORIA DE ROSÁRIO

O Museo de la Memoria foi criado em 1998, através de uma portaria emitida


pelo Conselho Municipal de Rosário. Sua missão se constituiu com o objetivo de
promover acesso ao conhecimento e à pesquisa sobre Direitos Humanos, memória
social e política.
Localizado no centro da cidade de Rosário, o edifício é conhecido como Casa
de los Padres e datado de 1928. A residência familiar deixou de ser usada em 1940
e, a partir deste momento, teve diferentes usos, tendo sido sede do poder militar
do Comando do II Corpo do Exército por mais de 25 anos. Em 1983, com a
democracia instaurada, o prédio ganha novos usos, entre eles o Bar Rock & Fellers.
Em 2010, o prédio passa a ser ocupado pelo Museo de la Memória6.

Fotografia 1: Museo de la Memoria de Rosário, Argentina.

Fonte: museodelamemoria.gob.ar

PARQUE POR LA PAZ VILLA GRIMALDI

A Villa Grimaldi foi construída no início do século XX, tendo sido uma antiga
fazenda que, em 1964, se transformou em um restaurante chamado ‘Paradise Villa
Grimaldi’. Em 11 de setembro de 1973, com o golpe de Estado no Chile, Villa
Grimaldi passou a sediar atividades clandestinas associadas à repressão e vinculadas à

6  Museo de la Memoria. Disponível em: < https://www.museodelamemoria.gob.ar/>. Acesso em 29 jun. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Direcção de Inteligência Nacional7 (DINA).


Em 1974, instalou-se o Cuartel Terranova, principal centro secreto de sequestro,
tortura e extermínio pela Direcção de Inteligência Nacional (DINA). Em 1978,
o Cuartel encerra as atividades repressivas e o lugar fica abandonado até 1987,
quando foi vendido para construção de um conjunto habitacional. A autorização
para demolição do prédio foi concedida pela Diretoria de Obras do Município de
Peñalolén, gerando mobilização dos moradores daquela comunidade que alertaram
autoridades, dentre elas a organização de Direitos Humanos. Forma-se, então, um
movimento cidadão conduzido pela Assembleia Permanente de Direitos Humanos
da Peñalolén e La Reina, seguido por uma campanha de denúncia e restauração da
Villa Grimaldi, a fim de desenvolver um lugar dedicado à memória e promoção dos
direitos humanos.
Após a apresentação e aprovação de um projeto de lei, na Câmara dos Deputados
do Chile, o Estado expropria Villa Grimaldi através do Ministério da Habitação. O
local foi aberto pela primeira vez para a comunidade em 10 de dezembro de 1994.
Em seguida, o parque foi adaptado para tornar-se Parque para a Paz, inaugurado em
março 1997, e se tornou espaço para comemoração juntamente com atividades para
promover uma cultura de respeito aos Direitos Humanos8.

Fotografia 2: Parque Por La Paz Villa Grimaldi

Fonte: santiagodochile.com

7  A Diretoria de Inteligência Nacional (DINA) foi criada em 1974 pelo Decreto-Lei nº 521, emitido
em 14 de junho. “Era um corpo militar de natureza técnica profissional, diretamente dependente do Conselho
Diretivo e cuja missão será reunir todas as informações em nível nacional, de diferentes campos de ação, a fim
de produzir inteligência que seja requerer a formulação de políticas, o planejamento e a adoção de medidas que
visem salvaguardar a segurança nacional e o desenvolvimento do país”. (Relatório da Comissão da Verdade e
Reconciliação, 1990, p. 55 apud Corporación Parque Por La Paz Villa Grimaldi, 2019).
8  Corporación Parque Por la Paz. Disponível em: <http://villagrimaldi.cl>. Acesso em 09 jun. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

O TripAdvisor é um website norte-americano fundado em fevereiro de 2000


por Stephen Kaufer, graduado em Ciências da Computação pela Universidade
Harvard. O site nasce com o objetivo de ajudar viajantes a planejarem suas viagens.
Stephen Kaufer é o CEO da empresa que, sob a sua direção, tornou-se o maior
site na área de viagens do mundo, com mais de 490 milhões de viajantes mensais9
e mais de 760 milhões de avaliações e opiniões de 8,3 milhões de acomodações,
restaurantes, experiências, companhias aéreas e cruzeiros10.
O TripAdvisor não funciona como site de vendas de produtos/serviços
turísticos, mas indica, através de links, operações para empresas especializadas. A
função do usuário/turista é alimentar, através de avaliações, fotos e comentários no
site, “o qual, por sua vez, capta essas informações segundo suas regulações e as coloca
em circuito para novos visitantes ao sistema, que passarão mais tarde a alimentá-lo
também” (ALDRIGUE, 2016, p. 99).
A ferramenta de avaliação do TripAdvisor funciona entre cinco categorias,
sendo: excelente; muito bom; razoável; ruim; e horrível. Para fazer a sua avaliação o
usuário/turista precisa fazer um cadastro, informando local de origem e informações
pessoais. Entretanto, é importante destacar que, dentre os diversos públicos que
visitam a instituições, existe apenas uma microparcela que está inserida dentro
do contexto de avaliações do TripAdvisor. Não sabemos exatamente o que leva
este determinado público a visitar esses Museus de Memória, mas sabemos que,
através do TripAdvisor, alguns aspectos ficam destacados e possibilitam uma melhor
compreensão do entendimento do público visitante sobre a instituição.
Essa pesquisa tem uma abordagem na análise de conteúdo baseada nos
comentários coletados no TripAdvisor a respeito do Museo de la Memoria de
Rosário e do Parque Por la PazVilla Grimaldi, com intuito de entender a experiência
turística nestes museus de memória. Essas instituições foram escolhidas por serem
pontos de atração turística, por estarem inseridas no Sites of Conscience, e por fazerem
parte das 2211 instituições que os autores atualmente pesquisam.

MUSEO DE LA MEMORIA DE ROSÁRIO: ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS

O Museo de la Memoria de Rosário, segundo o TripAdvisor (dados de 2019),


possui um total de 89 avaliações (entre as línguas: português, espanhol e inglês) e
está entre o número 51º de 71º em atividades, em Rosário, Argentina. Entre as 89
avaliações, o Museu recebe uma nota geral de 3,5. Dentre as avaliações, podemos
observar que: 31% consideram “excelente”, 27% consideram “muito bom”, 15%
consideram “razoável”, 13% consideram “ruim” e 14% consideram “horrível”.
9  Fonte: registros internos do TripAdvisor, média de visitantes únicos mensais durante a alta temporada no 3º
trimestre de 2018. Disponível em: < https://tripadvisor.mediaroom.com/br-about-us>. Acesso em 30 jun. 2019.
10  TripAdvisor. Disponível em: <https://www.tripadvisor.com.br/>. Acesso em jan. 2019.
11  A pesquisa consiste em 22 sítios de 7 países da América Latina, sendo: Brasil, Argentina, Chile, Colômbia,
México, Paraguai, Peru e Uruguai.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Busca-se, assim, analisar comentários em língua portuguesa (10 avaliações +


comentários) e em língua espanhola (77 avaliações + comentários). A escolha se dá
no sentido de contrapor os comentários brasileiros com os argentinos. É possível
observar que, entre os comentários de brasileiros e de argentinos, existe uma grande
discrepância, seja em função da localização, das temporadas ou, até mesmo, da
quantidade de comentários. Entres os anos de 2014 a 2019, apenas 10 turistas
brasileiros colocaram suas avaliações na plataforma, sendo: 4 “excelente”; 2 “muito
bom”; 1 “razoável”; 1 “ruim” e 2 “horrível”.
Os comentários identificados para esta análise são as motivações que levam
o turista a visitar a instituição. Portanto, os comentários foram categorizados
da seguinte forma: administração; organização do espaço; espaço expositivo;
emoções e sensações; e localização, arquitetura. Além disso, para esta análise, foram
coletados somente comentários de turistas brasileiros e turistas/visitantes argentinos.
Destacam-se, neste artigo, as categorias com mais comentários, das quais são trazidos
dois exemplos.
Em língua portuguesa, a categoria ‘administração’, com 3 comentários, é a que
contém maior número de avaliações, sendo, em sua maioria, reclamações do horário
de funcionamento da instituição:

“Fechado em plena alta temporada. Eu não consigo entender como um museu pode estar fechado
em plena alta temporada. Parece que houve um problema na luz, mas caminhamos até lá a toa.”

“Museu com portas que não abrem… Assim como a maioria das atrações de Rosário, o Museo de la
Memoria não abre suas portas em plena alta temporada. Seja por reforma ou por férias, várias
atrações não abrem (surreal não funcionar por férias no momento de maior fluxo de visitantes!!!!),
eu não entendo como é que funciona o turismo na alta temporada em Rosário.” (grifo dos autores).

Além disso, a categoria ‘emoções e sensações’ foi a segunda mais comentada,


com 2 comentários:

“Forte e bonito! Vale a pena conhecer essa parte triste da história argentina, pra se conhecer bem
um país é necessário conhecer a parte boa mas também as partes tristes pela qual passou!”

“Se você quiser saber veja o coração e a arte do mães dos desaparecidos, venha aqui. Se você
achava que as mães dos desaparecidos usavam mantas brancas você vai descobrir o que elas
realmente tinham sobre as suas cabeças, você ficará espantado ao ver nesta exposição. Ou o quebra-
cabeças dos pais que e crianças desaparecidos que muda à medida que as pessoas continuam a ser
encontradas, vivas ou mortas. Os olhos que viram demais. Um museu pequeno mas potente. E se
você não fala espanhol, peça para alguém que possa ajudá-lo, as pessoas dedicadas que trabalham
aqui pretendem passar a informação para que isso nunca aconteça novamente. Os desaparecido
são uma parte mais importante e recente da história Argentina e Latino-americana.” (grifo dos
autores).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Enquanto entre os anos de 2012 a 2018, 77 turistas/visitantes argentinos


colocaram suas avaliações na plataforma, sendo: 21 “excelente”; 22 “muito bom”;
12 “razoável”; 11 “ruim” e 11 “horrível”. Para esta análise, foram coletados
somente comentários de argentinos, sendo 45 comentários analisados. A análise
em língua espanhola possibilitou que pudéssemos enxergar outra característica
nos comentários encontrados no site, os comentários em peso são comentários da
categoria ‘organização do espaço’, totalizando 16 comentários, entre eles:

“Un ícono en Rosario. Un muy buen espacio para conocer lo ocurrido durante el terrorismo de
Estado en ARgentina y particularmente en la ciudad de Rosario. Las visitas guiadas son muy
buenas”.

“Espacio de reflexion. Muy recomendable. Una biblioteca muy completa, tiene un bosque de la
memoria y mucha documentacion. hay muestras que son interesantisimas. un sitio en donde la
historia vive y nos ayuda a reflexionar y aprender”. (grifo dos autores).

Mas, ainda é possível destacar os comentários que estão na categoria


“administração”, são 8 comentários, dentre eles destaca-se dois dos mais
emblemáticos:

“No aporta nada! Sacaron uno de los mejores bares de Rosario en esa hermosa esquina, para nada.
Simplemente para generar gastos y crear puestos de “trabajo” a los amigos del poder. No entra
nadie, un fracaso total. Se puede ejercer la memoria de otra maneras. Horrible!!!!”

“Espantoso. El “Museo de la Memoria” lo hicieron donde antes existía uno de los mejores bares de
Rosario, por lejos (Rock´n Fellers) y eso levantó muchas críticas, ya que la mayoría de la gente no
le encontraba sentido a tal determinación. Tener en cuenta que si vamos más atrás en el tiempo,
ese edificio había sido utilizado como centro clandestino de torturas en la época de la Dictadura
Militar” (grifos dos autores).

O que podemos perceber, preliminarmente, através destes comentários


selecionados, é que os turistas brasileiros demonstram, para além das preocupações
relativas ao funcionamento do espaço, algo de ordem dos serviços turísticos, deixam-
se tocar pela narrativa do museu. No caso argentino, se por um lado a estrutura
do espaço é elogiada, por outro há um lamento local, relacionado às memórias
amenas do imóvel quando foi sede de um bar. Neste último caso, adentram conflitos
no âmbito local que, possivelmente, se relacionam à mudança do status memorial
relativo ao uso imóvel e à sobreposição de uma memória incômoda.

PARQUE POR LA PAZ VILLA GRIMALDI – ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS

O Parque Por la Paz Villa Grimaldi, segundo o TripAdvisor (dados até junho de
2019), possui um total de 137 avaliações (entre as línguas: português, espanhol, inglês,
francês, alemão, italiana e sueco) e está entre o número 78º de 503º em atividades

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

em Santiago, Chile. Entre as 137 avaliações, o Parque recebe uma nota geral de
4,5. Dentre as avaliações, podemos observar que: 68% consideram “excelente”, 22%
consideram “muito bom”, 2% consideram “razoável”, 3% consideram “ruim” e 5%
consideram “horrível”.
Assim como foi feito anteriormente, no caso argentino, o estudo se propõe
a analisar comentários em língua portuguesa (38 avaliações + comentários) e em
língua espanhola (79 avaliações + comentários). A escolha se dá para contrapor
os comentários brasileiros com os chilenos, sendo possível observar que, entre os
comentários, existe uma grande discrepância, seja por localização, temporadas ou,
até mesmo, quantidade de comentários.
Entres os anos de 2012 a 2017, apenas 38 turistas brasileiros colocaram suas
avaliações e comentários na plataforma TripAdvisor sendo que, destes, 22 “excelente”;
16 “muito bom”; 0 “razoável”; 0 “ruim” e 0 “horrível”.
Os comentários são identificados com a mesma metodologia aplicada ao
Museo de la Memoria de Rosário, na qual são consideradas as motivações que
levam o turista a visitar a instituição. Portanto, os comentários são categorizados da
seguinte forma: administração; organização do espaço; espaço expositivo; emoções
e sensações; e localização, arquitetura. Além disso, para esta análise, foram coletados
somente comentários de turistas brasileiros e turistas/visitantes chilenos.
Dentre os comentários em língua portuguesa, é possível aferir que a categoria
“emoções e sensações” é a que mais se destaca. Isso se dá, possivelmente, por este
sítio ter a característica de ser um parque florido, e porque, algumas vezes, passa a ser
ressignificado como apenas um lugar de entretenimento:

“Super descontraído. Parque lindo e agradável com muita área verde onde podemos fazer
pequenos lanches sentados e curtindo o agradável ar da província. Muito bom mesmo.”

“Muito bom! Lindo local! Que parque mais lindo! Incrivel como no Chile há excelente parques,
bem cuidados e organizados!” (grifo dos autores).

A segunda categoria mais comentada é a “localização e arquitetura”, aparecendo


com 8 comentários. Destes, destacamos os seguintes:

“Vale a visita. Esse parque não é perto do centro da cidade, mas apesar da distância recomendo a
visita, principalmente pra quem gosta de natureza e história. Tem áudio guia e a entrada é gratuita.

Vá de metrô e depois pegue ônibus.”


“Um pouco distante. O parque fica localizado um pouco distante. Realmente é um local para
reflexão e para nos aprofundarmos na história por qual passou o Chile.” (grifo dos autores).

Entre os anos de 2012 a 2019, 79 turistas/visitantes chilenos colocaram suas


avaliações na plataforma, sendo: 53 “excelente”; 12 “muito bom”; 2 “razoável”; 5
“ruim” e 7 “horrível”. Para esta análise, foram coletados somente comentários de
chilenos, sendo 58 comentários analisados. A análise em língua espanhola possibilita

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

enxergar a opinião dos turistas/visitantes do próprio país e pode render um


interessante estudo de público.A categoria que possui mais comentários encontrados
no site é a categoria “emoções e sensações”, totalizando 22 comentários. Entre eles,
ressaltam-se os três seguintes:

“Emocionante. Es un parque no turístico, es un lugar lleno de energías, al caminar se siente un


silencio inquietante, se puede sentir el dolor que transmite cada área del parque.”

“Conmovedora visita. Es un lugar bello y con una carga emotiva muy fuerte...sin duda una
experiencia muy importante e interesante de realizar...la entrada es gratuita y es posible hacerla
con audioguias para quienes les interesa”

“Tetrico. Un lugar tetrico, con un aire raro, se notan las cosas que pasaron ahi definitivamente un
recordatorio para qeu no vuelvan a pasar mas las cosas qeu sucedieron ahi” (grifo dos autores).

A segunda categoria mais comentada é o “espaço expositivo”, uma observação


impactante na análise, pois em torno de 13 comentários argumentam a respeito do
espaço expositivo como um todo, nos quais é possível identificar nestes comentários
certo tom de revolta:

“ESTO NO ES UN SITIO TURISTICO. Esto es un engaño a los turistas el lugar es sumamente


peligroso y de parque de paz no tiene nada porque es un memorial COMUNISTA!!!”

“Saltarselo. No es propiemente tal un parque sino un proyecto a medio avanzar. No es


recomendable pues no se trata de nada especial, salvo el hecho que fue una zona de torturados,
pero eso no basta para visitarlo”

“Una farsa historica . Otro lugar que por sesgado pierde absolutamente su valor y credibilidad...no
es un parque ni menos de Paz...solo una herramienta política utilizada en desvirtuar la historia
completa de nuestro país , para obtenr dividendos y votantes..una verguenza... Cero aporte”
(grifo dos autores).

No caso dos turistas brasileiros, percebe-se, nestes comentários aqui trazidos,


uma vivência relativa à paisagem e à apreciação do espaço como um ambiente de
lazer, associada à questão histórica.Todavia, os chilenos que deixaram suas avaliações
no site, na maior parte, reconhecem-no como um lugar de memória sensível,
porém, como é possível observar nos últimos comentários, ainda passível de disputas
memoriais e políticas no presente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As experiências dos usuários/turistas/visitantes estão ligadas a seus destinos


turísticos, no entanto, o nosso foco foi em comentários de turistas que visitaram
museus de memória, mais especificamente, as instituições Museo de la Memoria e

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Parque Por la Paz Villa Grimaldi. O estudo conseguiu obter dados relevantes sobre
experiências relacionadas ao turista por meio do TripAdvisor.
Os números em análise indicam que a quantidade de avaliações em língua
espanhola é muito maior do que a de avaliações em língua portuguesa, sendo que um
dos motivos desta notória diferença são os aspectos cronológicos dos comentários. A
categorização oferecida pelo site destaca diferentes dinâmicas sobre a experiência do
turista, e, nesta pesquisa, avaliamos cada turista como um ser individual. Os resultados
desta pesquisa confirmam a afirmação de Housen (1987) de que a percepção dos
turistas/visitantes é moldada pela compreensão lógica através das experiências e
motivações que terão no museu.
Os resultados da pesquisa são capazes de determinar e identificar quais são as
motivações que levam os usuários/turistas/visitantes a visitarem essas instituições
identificando diversos contextos nas categorias criadas para análise.
Em se tratando da análise do Museo de la Memória de Rosário, identificamos,
nos comentários de língua portuguesa, as categorias “administração” e “emoções
e sensações”, enquanto que, nos comentários de língua espanhola, as categorias
“organização do espaço” e “administração”. Os comentários de língua portuguesa
correspondem, em sua maioria, à administração do Museo de la Memoria, à
insatisfação do turista brasileiro ao se deparar com as portas fechadas, assim como
também demonstram sensações a respeito do que o lugar transmite. Enquanto
isso, nos comentários de língua espanhola, a organização do espaço deixa turistas/
visitantes inquietos pelos novos usos do prédio, pelas apropriações positivas do
prédio e, também, pela insatisfação de ser um lugar de memória sensível que se
distancia do bar que, por alguns anos, ocupou o prédio. Mas, nas análises, pudemos
observar que as emoções e sensações que o local proporciona também comovem os
turistas/visitantes.
Na análise do Parque Por la Paz Villa Grimaldi, identificamos, nos comentários
brasileiros, as categorias “emoções e sensações” e “localização e arquitetura”,
enquanto que, nos comentários chilenos, aparecem em peso as categorias
“emoções e sensações” e “espaço expositivo”. Os comentários de língua portuguesa
correspondem, em sua maioria, às emoções e sensações que o Parque proporciona
contando em sua narrativa expográfica, além da sua localização e arquitetura que
também impressiona, pois, através da construção de mosaicos, o espaço geográfico é
sinalizado com o objetivo de denunciar e demarcar as antigas instalações do Quartel.
Quanto aos comentários em língua espanhola, percebemos que as categorias
“emoções e sensações” e “espaço expositivo” são as mais comentadas, pelo mesmo
sentimento dos brasileiros, mas caracterizado como um sentimento nativo, do povo
que vive a dor e que frequenta o local como um lugar espiritual.
Este estudo proporciona uma melhor compreensão de como os museus de
memória estão inseridos na sociedade e de como são vistos por turistas e visitantes.
As análises permitem que os pesquisadores compreendam novas percepções do
turista sobre as instituições e, além disso, busca compreender como, através dos
comentários, essas instituições agenciam relações sociais, econômicas e políticas. Esta
pesquisa também permite fornecer, para os gestores das instituições, o entendimento

81
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

dos turistas/visitantes sobre a instituição, amplia o estudo de público e permite


identificar ressonâncias.

REFERÊNCIAS

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82
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

BR&lr=&id=ZY6Xn4DmuCoC&oi=fnd&pg=PR6&dq=LENNON,+John%3B+FO
LEY,+Malcolm.+Dark+tourism.+The+attraction+of+death+and+disaster&ots=lAUb
oMKBxJ&sig=03mzdITETfvG_8UshtnRJmJNwPo#v=onepage&q=LENNON%2C%20
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de 2019.

83
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

CARTAS MUSEALIZADAS E DISCURSOS DE


MEMÓRIA: ANÁLISE DA OBRA “CARTAS PARA
ELLOS: INTERCAMBIO EPISTOLAR DEL FONDO
DE SOLIDARIEDAD DE LA CNT EN LOS AÑOS DE
DICTADURA”
CRISTIÉLE SANTOS DE SOUZA1
CARLA RODRIGUES GASTAUD2

O ano de 1973 marcou o início de um período difícil para a História do


Uruguai e para a memória dos uruguaios. A ditatura civil-militar, que teve início
nesse ano e perdurou até 1985, vitimou milhares de pessoas deixando um saldo de
mortos, desaparecidos e presos políticos, cuja memória habita o imaginário social
uruguaio e mobiliza, ainda hoje, ações em busca de justiça e reparação. As vozes que
ora são ouvidas em diferentes frentes de reivindicação dessa memória traumática,
foram silenciadas por muito tempo, seja por conta da repressão do Estado, seja pela
extensão do trauma causado por mais de uma década de sofrimento. Entretanto,
como afirma Pollack (1989, p. 4), “essas memórias subterrâneas que prosseguem
seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram
em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados”. Foi em um desses
contextos de afloramento de memórias subterrâneas que o Museo de la Memoria do
Uruguai, por meio de sua associação de amigos, promoveu a publicação da obra
Cartas para ellos: Intercambio epistolar del Fondo de Solidariedade de la CNT em los años
de dictadura, a qual buscamos analisar neste artigo.
Pretende-se evidenciar os diferentes discursos de memória e de esquecimento
presentes no processo de inserção desse conjunto epistolar no acervo do museu, por
meio dos textos que acompanham a reprodução das cartas na referida publicação e
por meio de apontamentos feitos durante a visitação ao museu3. Interessa, portanto,
discutir a relevância da musealização dessa tipologia de acervo num contexto de
questionamento sobre a paralisia dos processos de punição dos crimes contra os
1  Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel, doutoranda em Memória Social e Patrimônio
Cultural/UFPel. [email protected]
2  Doutora em Educação/UFRGS, professora do Departamento de Museologia e Conservação e Restauro/Ufpel.
[email protected]
3  Participou, também, da visitação e da análise da expografia, o prof. Me. Giovane Rodrigues Jardim/IFRS.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

direitos humanos, o que caracteriza os movimentos por memória, justiça e reparação


que tomaram a capital uruguaia em meados de abril e na 23ª edição da Marcha do
Silêncio em maio deste ano com o lema “contra la impunidad de ayer e hoy”.  

A CARTA, O TEMPO E A MEMÓRIA

Dentre as muitas definições existentes para a carta como produto da escrita


epistolar, existe uma que traz o tempo como ponto central de entendimento. De
acordo com essa definição, “a correspondência é a forma utópica da conversa,
porque anula o presente e faz do futuro o único lugar possível do diálogo” (PIGLIA,
R. apud MIRANDA, 1995, p. 111). Instrumentos de comunicação, as cartas foram
criadas para suprir a necessidade de um diálogo entre pessoas separadas pela distância
e, nesse sentido, são mensagens enviadas para o futuro. Essas mensagens, por sua
vez, são construídas sob o fio condutor da memória daquele que escreve, pois, ao
construir um relato, “os narradores fazem uma seleção, um recorte, escolhem certos
personagens, certas paisagens, episódios nos seus relatos” (BETTIOL, 2008, p. 23),
constroem, assim, a sua versão dos acontecimentos vividos.
Compreender as cartas como produto de sua época implica reconhecer as
muitas relações que a escrita epistolar estabelece com o tempo. Do mesmo modo,
reconhecer que o acesso que se tem à carta como objeto do comércio epistolar
é limitado pelo ato de ler e, nesse sentido, cabe destacar que a “leitura é sempre
uma prática encarnada em gestos, espaços e hábitos” (CHARTIER, 1991, p. 178),
construídos socialmente e balizados por injunções sociais e culturais que incluem
a “luta por reconhecimento” (HONNETH, 2003) e o “dever de memória”
(CANDAU, 2012). Assim, uma carta lida no período em que foi produzida provoca
entendimentos e reflexões diferentes daqueles suscitados numa leitura póstuma,
seja por membros da família que as recebem como herança, seja por pesquisadores
décadas mais tarde.
Esses fragmentos de diálogos interrompidos pelo tempo, mas preservados por
uma intenção de memória, quando apoiados em discursos e suportes de memória,
acabam por compor um repertório de representações do passado e manifestações
memoriais coletivas, isto é, “um enunciado que membros de um grupo vão produzir
a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse
grupo” (CANDAU, 2012, p. 24). Da mesma forma, a guarda e a preservação desses
documentos, por seus autores e destinatários, pode configurar uma forma de filiação
com o próprio passado, um “arquivamento de si” (ARTIÈRES, 1998).
O estudo de cartas apresenta, ainda, outras singularidades relativas ao tempo
como uma categoria de análise, como, por exemplo, o que Angela de Castro Gomes
(1998, p. 126) denominou “ilusão de verdade”, ou seja, certa noção de realidade
resultante do fato desses documentos serem provenientes do cotidiano, do espaço
do lar e das pessoas comuns. Para a autora, essa ilusão de verdade é perigosa, pois está
relacionada a uma das principais especificidades dos documentos pessoais, isto é, uma
sensação de proximidade com os sujeitos da História. Essa sensação de proximidade
poderia, segundo a autora, induzir o pesquisador a ignorar o fato de que, embora a

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

carta seja um testemunho material do passado, também é um documento inserido


no tempo e no espaço. De outro modo, a proximidade com o espaço da intimidade
e da confissão permite outro olhar sobre o passado, um olhar que não pretende
reconstituir o passado tal como ele foi, mas, como afirma Boaventura de Souza
Santos (1997, p. 116), “reinventar o passado de modo que ele assuma a capacidade
de fulguração, irrupção e redenção”.
Por fim, cabe chamar a atenção para outro ponto de intersecção entre a escrita
epistolar, o tempo e a memória: a noção de “regime de historicidade”. De acordo
com François Hartog (2015, p. 27) “(...) a hipótese do regime de historicidade
deveria permitir o desdobramento de um questionamento historiador sobre as
nossas relações com o tempo”. O autor propõe que a relação que uma sociedade,
historicamente situada, estabelece com o tempo interfere na construção das suas
narrativas sobre o passado, de modo que, “de acordo com as relações respectivas
do presente, do passado e do futuro, determinados tipos de histórias são possíveis e
outros não” (idem, p. 39). O regime de historicidade configura-se, assim, como um
instrumento de análise que reconhece a experiência que indivíduos e coletividades
têm com o tempo, para compreender suas narrativas e representações do passado.

SOBRE AS CONDIÇÕES DE SUA ENUNCIAÇÃO

No estudo de acervos epistolares, a expressão “condições de enunciação” é


utilizada para descrever o conjunto de variáveis específicas e/ou contextuais que
caracterizam as condições em que as cartas são escritas. Essas condições interferem
diretamente no conteúdo das cartas e na dinâmica que configura o intercâmbio
epistolar. A obra que ora nos propomos analisar tem como principal conteúdo um
conjunto de cartas resultantes do intercâmbio epistolar mantido entre a Convenção
Nacional dos Trabalhadores uruguaios e as famílias de presos políticos durante a
ditadura. Nesse conjunto epistolar, as condições de enunciação foram determinantes
não apenas para a escrita das cartas como para as ações de guarda e preservação que
garantiram a sua publicização e, nesse sentido, torna-se fundamental conhecer seus
contextos de produção.
O golpe de Estado que deu início ao período de ditadura civil-militar no
Uruguai foi resultado de uma escalada de violência e de medidas autoritárias que
o país sofreu desde a chegada à presidência de Jorge Pacheco Arenco, em 1967,
e continuou sofrendo durante o governo golpista de Juan María Bordaberry. De
acordo com Padrós (2012, p. 29):

Desse modo, práticas extremadas de violação dos direitos humanos, como o uso intensivo de
medidas de exceção, aplicação da tortura, formação de Esquadrões da Morte, censura e repressão
aos movimentos sindical e estudantil, foram empregadas durante o Pachecato. De certa forma, esse
governo foi um ensaio do que se constituiria futuramente, a partir da implantação da ditadura de
segurança nacional.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O terrorismo de Estado e a imposição de um ambiente de medo e repressão


exigiram que diferentes setores da sociedade uruguaia encontrassem meios de resistir
e de lutar contra a perda de direitos. Fundada em 1966, a Convenção Nacional de
Trabalhadores – CNT reagiu ao golpe de Estado de 1973, conclamando uma greve
geral, com a qual também houve a ocupação de locais de trabalho, universidades
e liceus. Em reação imediata, o governo golpista colocou a CNT na ilegalidade e
ordenou a prisão de seus dirigentes. Diante das dificuldades impostas pela prisão dos
dirigentes e pela criminalização do movimento, a CNT optou pela desmobilização
da greve que durou duas semanas. De acordo com Padrós (2012, p. 41):

A CNT foi declarada ilegal, as greves foram proibidas e impôs-se uma nova legislação sindical
que acabou com qualquer ilusão de retomada de ação ou autonomia do movimento sindical.
O encerramento da greve, por parte da CNT, inviabilizou a sobrevivência de uma resistência
democrática e significou uma importante descompressão para o novo regime.

Esse contexto de prisões, perseguições e violações de direitos humanos


provocou a emigração em massa de uruguaios para diferentes países, dentre eles:
Brasil,Austrália, Cuba, México, Suécia, Dinamarca, França,Áustria,Angola, Inglaterra,
Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, Hungria e URSS. De acordo com Noela Bidegain
e Silvia Lacondeguy (2017), organizadoras da obra aqui analisada, o ambiente de
insegurança e o crescente número de exilados fez com que a CNT, apoiada por
centrais sindicais espanholas, criasse o Organismo Coordinador de la CNT para las
actividades em el exterior, uma vez que a atuação da CNT havia sido inviabilizada em
território uruguaio.
Dentre os objetivos do Organismo Coordinador estava a denúncia internacional
das violações de direitos humanos pelas quais o povo uruguaio estava passando, bem
como a organização e proteção dos uruguaios que viviam no exterior como exilados
políticos. Nesse contexto, uma preocupação premente foi a ajuda aos familiares
dos sindicalistas e presos políticos no Uruguai, uma vez que suas famílias estavam
desassistidas em meio a uma política governamental de amedrontamento. Assim,
deu-se início a um fundo de solidariedade com o propósito de auxiliar essas famílias,
o qual reuniu muitos adeptos pelo mundo, sobretudo de exilados do Uruguai e
membros de centrais sindicais. A articulação dessas pessoas, que, segundo o prólogo
da obra, chegou a trinta países da Europa, América, África e Oceania – a partir da
articulação desde a Espanha –, representou, também, um espaço de sociabilidade
para os próprios colaboradores. Nesse sentido, “esa aceptación, a su vez, ayudó al
cambio de actitud de muchos cientos de emigrantes, que habían partido del país
con un concepto muy negativo de su patria” (BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017,
p. 5).
As cartas que integram a referida obra fazem parte de um acervo4 entregue,
em 2015, ao arquivo do Museu de la Memória pela Asociación de Amigas y Amigos
del Museo de la Memoria y de Carlos Bouza, nomeado de conjunto documental

4  “El acervo está compuesto por cinco cajas que contienen carias carpetas con fichas personales y un bibliorato
con correspondencia y listados de detenidos políticos” (BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017, p. 13).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Fondo de Solidaridad de la CNT en el exterior. A publicação de Cartas para ellos


enfatiza a percepção de que, para além de sua importância enquanto documento de
registro das atividades de ajuda e colaboração contra a ditadura, essas cartas também
representavam o desvelamento de pormenores da vida cotidiana durante o período
de repressão. Dessa forma, além dos registros da atividade econômica de solidariedade,
“de a poco estas pequeñas memorias comenzaron a formar parte de los relatos que
dan vida a los objetos en las visitas guiadas del MUME y por momentos se colaron
en nuestras clases de Historia” (BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017, p. 11).
Esse acervo que foi organizado, inicialmente, com a finalidade de documentar
as atividades financeiras de ajuda às famílias dos presos políticos uruguaios pelo
fundo de solidariedade, possui um contexto de enunciação dual, pois integra as
cartas que eram instrumento e pretexto para o envio da referida ajuda financeira, e
as respectivas respostas para fins de comprovação do recebimento.
Escritas por exilados, em diferentes lugares do mundo, e enviadas a partir
da Espanha, as cartas eram assinadas por pessoas que emprestavam seus nomes e
endereços para que elas pudessem chegar aos seus destinos sem levantar suspeitas
dos organismos de repressão. Assuntos cotidianos ocultavam o real objetivo das
cartas que, hoje, abrigam e evocam memórias difíceis vividas nos anos de ditadura.
Entretanto, nem todas as pessoas, que recebiam a ajuda, sabiam ou compreendiam
que se tratava de um artifício para ocultar a origem do dinheiro e para não expor
as famílias à perseguição do regime, e, assim, pouco a pouco, as cartas em resposta
foram revelando mais do que a comunicação de recebimento, expuseram relatos
do cotidiano e do modo como estavam superando as dificuldades impostas pelo
regime. É possível, portanto, ver, nessas cartas, outro olhar sobre a repressão e seus
mecanismos, para além dos fatos narrados pela História política, o que enseja um
estudo específico sobre o conteúdo dessas cartas e não apenas sobre os discursos
construídos sobre elas.
As condições de enunciação dessas correspondências estão circunscritas no
ambiente de ofuscamento do âmbito público que caracteriza o regime ditatorial
civil-militar, mas, também, no contexto de resistência e de necessidade de sua
organização. Muitas eram as pessoas interessadas em ajudar financeiramente as
famílias de presos políticos, porém surgiu a necessidade expressa no Fundo de
Solidariedad de uma organização que centralizasse a distribuição dessa ajuda.
Antecede, a essas correspondências, o levantamento das pessoas no Uruguai que
deveriam receber a ajuda, inicialmente levada em visitas presenciais, método que se
tornou perigoso, pois expunha os beneficiados ao regime, pelo vínculo estabelecido
com os promotores da ajuda. Nesse contexto, as cartas representaram um veículo
seguro para o envio e para a comprovação de recebimento da ajuda.
Não apenas como solidariedade, mas também como notícia, desabafo e
compartilhamento, tanto do sofrimento como da esperança em dias melhores, essas
cartas registram, num diálogo forjado, traços do cotidiano das pessoas envolvidas,
dir-se-ia das pessoas que recebiam esta ajuda regular. Assim, o comércio epistolar
envolve a correspondência de exilados uruguaios, da articulação a partir da Espanha,
em cartas que usavam nomes de pessoas simpatizantes da luta contra a ditadura, mas

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

desconhecidas das autoridades do regime ditatorial, utilizando-se de subterfúgios


para isso. Assim, “para llevar adelante esta actividad, sin comprometer en Uruguay a
los familiares que recibían la ayuda, los organizadores idearon un ingenioso sistema
de correspondencia: las cartas llegaban al Uruguay enviadas por españoles que no
tenían vinculación alguna con el detenido” (BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017,
p. 15).
Algo que se destaca é a diferença, na escrita epistolar de resposta, entre as
cartas que o correspondente sabia que a ajuda provinha da CNT das cartas que
o correspondente pensava serem enviadas por um benfeitor desconhecido. Há
correspondências em que o desconhecimento é expressamente destacado, como nas
seguintes palavras:“hola Rosa, no ´se si te conozco y si tú me conoces, pero tú ayudas
a mi hijo y con eso basta para estarte agradecida por toda la vida” (BIDEGAIN;
LACONDEGUY, 2017, p. 23). Por outro lado, em outras cartas, depreende-se o
conhecimento de que a ajuda provém de um grupo organizado e conhecido, como
é expresso nos seguintes termos: “gracias a todos los compañeros por este acto de
solidaridad” (Idem).
Compõem as condições de enunciação, deste conjunto epistolar, não só
o sofrimento, a solidariedade e o agradecimento aos desconhecidos e/ou aos
companheiros sindicalistas, mas, também, a dimensão de organização dos exilados
fora do Uruguai, pois a obra Carta para ellos enfatiza que o recurso foi arrecadado
por eles, por meio de feiras e outras atividades. Os encontros organizados para a
redação das cartas possibilitaram a construção de um espaço de compartilhamento de
memórias e de saudades, sobretudo de ação política a partir desse compartilhamento.
As cartas foram pensadas de forma a driblar a censura e, para isso, “se organizaban
jornadas en las que participaban varios uruguayos exilados en las que, entre mates
y canciones, escribían las cartas y organizaban la correspondencia” (BIDEGAIN;
LACONDEGUY, 2017, p. 15). Também, havia um ambiente de discussão e de
opiniões divergentes sobre questões da organização sindical da resistência, como
sobre quem deveria ser ajudado, por quanto tempo, e mesmo sobre as formas e
a abrangência da ajuda. Isso evidencia a importância desse acervo enquanto
documento de um período.
Nesse sentido, a obra Cartas para ellos possibilita pensar a relação entre cartas
musealizadas e discursos de memória. Se, por um lado, essas cartas fazem parte de
um conjunto documental maior, em que são guardadas e reivindicadas enquanto
registro da solidariedade e da resistência por meio do relato e do testemunho das
pessoas sobre elas, por outro, para além dos elementos formais, as cartas trazem
elementos do cotidiano das pessoas que as escreveram.
Se o conjunto documental é parte do acervo de uma instituição, no sentido
de produção pública, as cartas circulam entre o público e o privado, entre a escrita
como mecanismo de resistência e a escrita como espaço de expressão de gratidão,
esperanças e desesperos. Uma vez musealizadas, as cartas passam a expor, novamente,
a intimidade de pessoas violentadas em seus direitos mais básicos, e, mesmo que
reveladoras da solidariedade entre resistentes, evidenciam, a estranhos, questões que
talvez os envolvidos preferissem esquecer. Seria o esquecimento da dor, da fome, da

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solidão, da incerteza sobre a vida de seu ente querido, um direito dessas pessoas? Ou,
por outro viés, a divulgação dessas cartas constitui um direito das futuras gerações
no contexto de um dever de memória? Sem responder a esse questionamento,
compreendemos a obra Carta para ellos, inserida no movimento e na necessidade
de estabelecer a materialidade de discursos, não somente para rememorar o passado,
mas, principalmente, para respaldar as atividades presentes de resistência, não mais
em um regime de exceção, mas ainda de luta por justiça e reparação.

AS CARTAS E O DISCURSO EXPOGRÁFICO

A obra Carta para ellos estabelece uma análise de algumas das cartas enviadas ao
fundo de solidariedade da CNT e as organiza na composição de uma historicidade
dos acontecimentos, possibilitando uma reconstituição dos meandros vivenciados
pela sociedade uruguaia durante o regime de exceção. Essa obra, que é vendida
aos visitantes do Museu de la Memória, confunde-se programaticamente com o
acervo ali preservado, bem como contribui para a composição de seu discurso
e expografia. Entretanto, embora integrem o acervo do museu, essas cartas não
compõem diretamente o percurso de visitação à exposição permanente, encontram-
se arquivadas, evidenciando seu reconhecimento como documento e fonte para
pesquisas. Outros objetos da cultura escrita estão presentes em vários nichos
expositivos, num misto de livros, cartões, bilhetes, enfim, um universo de escrita
do sofrimento e da esperança como exemplificam as correspondências recebidas e
enviadas pelos presos políticos e suas famílias sem a mediação de uma instituição
como a CNT.
Por mais que o museu exponha fragmentos de um passado de sofrimento,
não é capaz, por si próprio, de ser uma experiência formativa do que aconteceu.
Isso se deve parte à seleção do que é exposto, mas principalmente aos limites da
comunicação mediada pela cultura material. Neste sentido, o Museu de la Memória
utiliza-se de instalações que expõem correspondências, bandeiras, bilhetes, fotos,
cartazes, roupas, dentre outros objetos, com a reprodução de fotografias, vídeos,
imagens e textos pelos quais o discurso expográfico é construído, apresentando ao
público uma experiência estética e sensorial do tema abordado.

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Figura 1: Sala de exposição permanente, MUME

Fonte: Acervo de Giovane Jardim

Figura 2: Painéis de desaparecidos, MUME

Fonte: Acervo de Giovane Jardim

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No discurso expográfico, o olhar do visitante é conduzido aos acontecimentos


e à situação vivida pelos presos políticos durante os anos de exceção. Já a obra Carta
para ellos não trata de um destino comum, mas de realidades particulares, de pessoas
e seus escritos, singulares e diversos em suas perspectivas e visões sobre aquele
período, mas que possuem em comum o fato de terem vivido aqueles “tempos
sombrios”. Nesse sentido, o próprio Museu de la Memória é a materialização da luta
pela memória e pelo esquecimento, mas principalmente pelo reconhecimento que
visa a fazer lembrar para que não volte a acontecer, como é expresso em sua visão
nos seguintes termos:

El MUME  responde a la necesidad de simbolizar la historia del golpe de Estado en el país, para
que nunca más se vuelva a repetir. En tiempos de incertidumbre surge una gran certeza: que la
memoria es un arma poderosa para la identidad de nuestros pueblos, y que orienta la lucha para
construir una sociedad mejor, con justicia social, democracia, libertad y solidaridad. El MUME se
concibe como una institución donde desarrollar múltiples actividades que promuevan el sentido
crítico y la reflexión sobre la sociedad donde vivimos, en tanto que los genocidios y el terrorismo
de Estado, son expresiones de nuestra civilización, y nos interpelan permanentemente acerca de la
misma (MUME, 2006, p. 1).

Se para os visitantes, em especial para os jovens que não eram nascidos quando
a ditadura civil-militar ocorreu, necessita-se de um discurso para a compreensão
histórica da memória ali exposta, para os uruguaios, que vivenciaram aquele período,
também é necessária essa abordagem, para que possam transcender na experiência
estética os discursos consolidados e ou naturalizados sobre esse período. Assim, a
experiência não implica apenas em se colocar no lugar dos outros, mas em um
pensar alargado, ou seja, um refletir sobre o seu papel e o seu lugar naquele período.
Por exemplo, alguém, que até então acreditava que a ditadura nada havia interferido
em sua vida e no exercício de sua liberdade, defronta-se com uma experiência que
lhe possibilita compreender-se melhor a partir da solidariedade com o sofrimento,
não como mera compaixão, mas como superação da camada estereotipada que tange
sua indiferença.
O Museu de La Memória se apresenta como instituição que aporta conhecimento
às novas gerações sobre a história recente do país. Assim, não só seu acervo, mas o
próprio espaço é disponibilizado para realização de atividades culturais e formativas,
propondo como missão “Crear un espacio de la ciudad de Montevideo para la
promoción de los Derechos Humanos y la Memoria de la lucha por la Libertad,
la Democracia y la Justicia Social, entendiéndolos como conceptos culturales en
permanente construcción” (MUME, 2006, p. 1).
Nessa perspectiva, a obra Carta para ellos destaca que, após o conjunto epistolar
ser integrado ao acervo do museu, a equipe responsável por sua conservação percebeu,
para além do registro da solidariedade, sua importância para o entendimento das
muitas narrativas construídas que compõem o museu.

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Cuando comenzamos a leerlo nos dimos cuenta que allí había una historia que desnudaba los
entramados de la solidaridad y revelaba los pequeños retazos de vida cotidiana que se escondían
detrás de las cartas que componen este acervo. De a poco estas pequeñas memorias comenzaron
a formar parte de los relatos que dan vida a los objetos en las visitas guiadas del MUME y por
momentos se colaron en nuestras clases de Historia. Difundirlo es el objetivo de estas páginas
(BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017, p. 11).

Estas pequenas memórias inserem-se no objetivo educativo do MUME, mas


principalmente ensejam reflexões sobre direitos humanos, liberdade, democracia e
justiça social, temas estes tão prementes na atualidade. Nesse sentido, estas memórias
subvertem a aceitação do presente e a acusação do passado, e passam a ensejar o
questionamento sobre a punição dos responsáveis pelo terrorismo de Estado, bem
como sobre o destino e a vida das pessoas retratadas no comércio epistolar.
Diferentemente de outros países sul-americanos, o Pacto Naval5, que deu início
ao reestabelecimento da democracia, não foi baseado na anistia dos militares, o que
não significou necessariamente a sua responsabilização pelas atrocidades cometidas.
Logo em seguida ao estabelecimento da democracia, em 1986, foi aprovada uma
lei que caducava a pretensão punitiva dos atos cometidos por servidores do Estado,
o que deu oficialidade a uma tendência não punitiva, mas que estabeleceu uma
dicotomia entre os casos anteriormente denunciados e os posteriores.
Esta tensão e seu questionamento tomou conta não só das ruas como
também dos tribunais uruguaios, num processo de avanços e retrocessos, tanto de
pressão popular por mudanças, como por referendos e plebiscitos. Somente a partir
de 2004, segundo Lessa (2014), com a eleição da Frente Ampla, o poder Executivo
começou a aceitar algumas denúncias contra militares e a fazer leituras mais literais
da Lei de Caducidade para excetuar alguns delitos e crimes passíveis de punição.
Começou neste período o incentivo a estudos e a investigações históricas sobre os
presos e desaparecidos, constituindo, em 2006, inclusive, uma Coordinadora Nacional
por la Nulidad de la Ley de Caducidad, processo, entretanto, que foi derrotado no
plesbicito popular dois anos depois. Houve, também, a proposição de um projeto
que ficou conhecido como Lei Interpretativa, apresentado em 2010, num contexto
em que a Suprema Corte havia considerado a inconstitucionalidade da Lei da
Caducidade em um caso específico e se discutia sua aplicação geral. As discussões
no judiciário e no executivo se prolongaram e se tornaram conteúdo da luta por
justiça e reparação, principalmente em vista da prescrição legal, em 2011, de todos
os crimes no período da ditadura e, desta forma, da possibilidade efetiva de qualquer
punição.
No entanto, descobertas de cadáveres de desaparecidos e denúncias em
instâncias internacionais de direitos humanos forçaram a pressão popular, e a Lei de
Caducidade foi aprovada em 27 de outubro de 2011 e promulgada por Pepe Mujica,
um dia depois, restabelecendo o poder punitivo do Estado ao enquadrar os casos
como crimes contra a humanidade. Neste contexto, Mujica, em 21 de março de

5  Assinado entre os militares e os representantes dos partidos, estabelecendo eleições e a posse do presidente no
Uruguai.

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2012, foi ao parlamento pedir perdão em nome do Estado pelos crimes cometidos
durante a ditadura.
Dois anos após a aprovação da lei, a Suprema Corte de Justiça declarou a
sua inconstitucionalidade, o que ainda hoje é objeto de discussão jurídica no
Uruguai. Com a decisão da Suprema Corte, as esperanças de condenação dos
responsáveis pelos crimes da ditadura foram frustradas e as vítimas e seus familiares
necessitaram encontrar outros espaços e formas para a reparação, e é neste contexto
de ressignificação da articulação política que se situa o Museo de La Memória, criado
em 2006, que no Uruguai, como em outros países, torna-se espaço de memória não
só do passado de ditadura civil-militar, mas também da dinâmica institucionalizada
de proteção e impossibilidade de responsabilização e punição dos culpados.
No documento de Fundamentação e Marco Conceitual do Museo de La
Memoria, encontramos a seguinte epígrafe, referenciada a Elizabeth Jelin: “La
memoria no es una cuestión del pasado, es una cuestión del sentido y del significado
que hoy queremos construir sobre nuestra historia”. Esta epígrafe destaca a
importância que, em 2015, teve a reivindicação e o recebimento do acervo que
compõe o Intercambio epistolar del Fondo de Solidariedade de la CNT em los años de
dictadura. As cartas musealizadas integram o acervo do museu enquanto documento
e testemunho plural sobre as atividades sindicais e políticas fora do Uruguai, bem
como sobre sua solidariedade com os familiares dos presos políticos.

Figura 3: Marcha del Silencio, Uruguai

Foto: Nicolás González Keusseian Fonte: El Pais, Uruguai.

Também o esquecimento se torna necessário e programático para se dar


continuidade à vida, mesmo numa sociedade que, podendo punir os responsáveis,
optou por uma reconciliação dúbia, e por autoridades que têm encoberto a
responsabilidade de agentes do governo pelas atrocidades cometidas. Nesse
horizonte, em 2019, em meio à crise que envolve a reforma da previdência dos

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militares uruguaios que ocupou o noticiário internacional, milhares de pessoas foram


às ruas de Montevidéu protestar contra os privilégios e as impunidades. E, para além
do discurso expográfico do museu, enquanto experiência do passado, seu acervo
retoma as ruas6, na reivindicação contra a impunidade e pela responsabilidade do
Estado, durante 23ª edição da Marcha do Silêncio, para logo depois retornar para o museu
compondo o registro de mais um momento de visibilidade das demandas por memória, justiça
e reparação.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As cartas nos museus apresentam-se enquanto documento e testemunho. As


cartas que compõem o acervo do Fondo de Solidariedad de la CNT en los años de
dictadura são cartas recebidas pela organização centralizada na Espanha e acusam
o recebimento de valores por meio de outras cartas, as quais estas respondiam.
Preservadas com o objetivo de compor a prestação de contas dos recursos enviados
aos familiares de presos no Uruguai, no período de maior dificuldade econômica,
entre 1980 e 1985, este acervo possibilita uma visão sobre o cotidiano da sociedade
uruguaia e das famílias dos presos políticos, bem como o olhar destes sobre os
acontecimentos.Trata-se de um conjunto amplo e diverso, reunido e embasado pelo
compartilhamento de suas condições de enunciação, representando testemunho
deste passado, mas também fonte para sua reelaboração e para a construção de
discursos a partir da musealização.
A presente investigação apontou para o conteúdo das cartas, mas não as analisou.
A análise empreendida circunscreve a obra Cartas para Ellos: Intercambio epistolar del
Fondo de Solidariedad de la CNT en los años de dictadura e, desta forma, dos estratos
de cartas nela apresentados, nas transcrições disponibilizadas, mas principalmente
na análise dos textos que as comentam. Precedida de uma visita técnica ao Museo
de la Memoria y de Carlos Bouzas, esta análise compreende que o referido conjunto
epistolar ajuda a reeditar o percurso expográfico do museu a partir da sua recepção
enquanto acervo documental e da leitura e análise deste, de forma a compor um
discurso de memória e de esquecimento sobre o terrorismo de estado e a reflexão
sobre os direitos humanos, a liberdade, a democracia e a justiça social.
Há uma dinâmica incomum no que se refere ao pacto epistolar, uma vez que,
embora estas cartas contenham por vezes relatos, agradecimentos e saudações, estas
são precedidas de um simulacro de correspondência, ou seja, de cartas não enquanto
diálogo, mas como meio para o envio de recursos financeiros. Ou seja, embora se
possa vir a interessar pelos detalhes, sentimentos ou mesmo pelas ideias e perspectivas
do escrevente, esperava-se das cartas recebidas apenas que cumprissem o aspecto
formal de acusar o recebimento de recursos. Também, a relação dos escreventes,
que haviam recebido a ajuda, dirigia-se a um colaborador inexistente, fictício, para
driblar o regime ditatorial.
6  Esta questão já foi destacada por Ferreira e Michelon (2015, p. 90), que afirmam: “Esses cartazes compõem o
acervo de longa duração do museu, sendo, até o ano de 2014, retirados do seu espaço e de sua condição de objeto
museológico, sobre o qual incidem todos os processos de conservação preventiva, todo dia 20 do mês de maio”.

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Ao serem reivindicadas e redescobertas, essas cartas ecoam a “ilusão de


verdade” sobre o cotidiano familiar e a visão destes sobre o período, o que passa a
orientar a ressignificação da ação sindical e da necessidade de colaboração mútua
no presente, a partir da qual o MUME, ao incorporar este acervo documental e
musicalizar estas cartas, insere-as em discursos de memória e de esquecimento de
forma a “reinventar o passado de modo que ele assuma a capacidade de fulguração,
irrupção e redenção”, como dizem as já citadas palavras de Boaventura de Souza
Santos (1997, p. 116), e, dessa forma, chamar a atenção para a necessidade premente
de questionar a relação entre público e privado, entre o dever de memória e o
direito ao esquecimento e, sobretudo, de questionar o grau de exposição gerado
pelos processos de musealização dessa tipologia de acervos.

REFERÊNCIAS

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Revista Estudos Históricos, v. 11, n.
21, p. 9-34, 1998.
BETTIOL, Maria Regina Barcelos. A escritura do intervalo: a poética epistolar de
Antônio Vieira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008.
BIDEGAIN, Noela F.; LACONDEGUY, Silvia M. Carta para ellos: Intercambio epistolar
del Fodo de Solidariedad de La CNT en los años de dictadura. Asociación de Amigas y
amigos del Museo de la Memoria: Montevideo, 2017.
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos avançados, n. 11(5), p.
173-191, 1991.
FERREIRA, Maria Letícia M; MICHELON, Francisca F. Cicatrizes da memória: fotografias
de desaparecidos políticos em acervos de museus. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto
Alegre, v. 41, n. 1, p. 79-97, jan.-jun. 2015.
GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos
privados. In: Revista Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 121- 127, 1998.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: editora 34, 2011.
LESSA, Francesca. Justicia o impunidad? Cuentas pendientes en el Uruguay post-
dictadura. Montevideo: Debate, 2014.
MIRANDA, Wander Mello (org). A trama do Arquivo. Belo Horizonte: UFMG, 1995.
MUME (CENTRO CULTURAL MUSEO DE LA MEMORIA); Fundamentacíon e
Marco Conceptual. Departamento de cultura e intendencia municipal de Montevideo,
outubro de 2006. Disponível em <http://mume.montevideo.gub.uy/museo/centro-
cultural-museo-de-la-memoria>. Acesso em 29 jun. 2019.

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PADRÓS, Enrique S. A ditadura civil-militar uruguaia: doutrina e segurança nacional. In:


Varia História, Belo Horizonte, v.28, n. 48, p. 495-517: jul/dez 2012.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
SANTOS, Boaventura de Souza. A queda do angelus novus: fragmentos de uma nova teoria
da história. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 47, São Paulo, 1997.

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O DESENHO INFANTIL A PARTIR DO


ARTISTA NUNO RAMOS NO MUSEU DE ARTE
LEOPOLDO GOTUZZO
LETÍCIA BECK FONSECA1
CAROLINE LEAL BONILLA2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo tem por objetivo uma reflexão sobre o artista Nuno Ramos e sua
obra a partir de uma mediação educativa no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo.
No ano de 2016, ocorreu, no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, que está ligado ao
CEARTE/UFPEL, a exposição do artista Nuno Ramos, durante a qual houve uma
mediação com alunos de uma escola Municipal de Pelotas, E.M.E.F. Afonso Vizeu,
e uma atividade prática com ilustrações criadas pelas crianças.
A partir da exposição Só Lâmina de Nuno Ramos, em que suas obras
contemporâneas estiveram expostas no Museu do MALG, por alguns meses, para
visitação do público, e também por escolas estaduais e municipais, assim como
particulares de Pelotas, as mesmas foram estudadas para mediação do projeto
educativo.

O MUSEU DE ARTE LEOPOLDO GOTUZZO

O Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo surgiu do acervo da Escola de Belas


Artes que foi transformada em Instituto de Letras e Artes, atual Centro de Artes da
UFPEL.
O patrimônio artístico da Escola de Belas de Artes, em especial seu acervo, deu
origem ao Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, quando este doa uma tela, em 1949,
para EBA. E em “1955 o patrono do Museu doa 56 obras e deixara em testamento
um precioso legado e desenhos do artista” (MAGALHÃES, 2008, p. 135).
1  Letícia Beck Fonseca, Arquiteta, PGA Especialização em Patrimônio Cultural e estudante de Artes Visuais
Licenciatura, Cearte/UFPEL. E-mail: [email protected]
2  Professora Orientadora do Projeto de Extensão Ação Educativa no MALG. Cearte/UFPEL. E-mail:
[email protected]

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Nos arquivos do MALG encontra-se que, em “1986 foi inaugurado o Museu


de Arte Leopoldo Gotuzzo, ligado ao Centro de Artes da UFPEL”, o qual hoje, em
2019, tem sua sede própria na Praça Sete de Julho, 180 no Centro da cidade de
Pelotas, RS Brasil (MALG, 2019).

O ARTISTA NUNO RAMOS

O artista Nuno Álvares Pessoa de Almeida Ramos nasceu em São Paulo, em


1960, e é formado em Filosofia, pela USP, em 1982. Como outros artistas de sua
época, Nuno Ramos se encontrava indeciso em relação à carreira profissional. Foi
então escritor, músico, escultor, desenhista, cenógrafo, ensaísta e vídeo maker. Em
suas obras, o artista compõe utilizando materiais diversos a partir dos quais trabalha
gravura, pintura, fotografia, instalação e vídeo.
Começa a pintar em 1982, quando da fundação do Ateliê Casa 7, e realiza
os primeiros trabalhos bidimensionais em 1986, com esculturas em cal, tecido e
madeira; publica, em 1983, o livro em prosa “Cujo” e, em 1985, “Objeto balada”.
Em 2000, Nuno Ramos vence, em Buenos Aires, um concurso para construção
de um monumento em memória dos desaparecidos durante a ditadura militar. Em
2002, publica um livro de contos o “Pão do Corvo”, sendo outros títulos publicados:
o Mau Vidraceiro, Sermões, Ensaio geral: Projetos, Roteiros, Ensaios, Memória,
Junco, Cujo, Adeus, Cavalo.
Suas obras começaram a ganhar maior volume e sua primeira instalação é de
início de 1990. A mais famosa, Só-Lâmina, do artista Nuno Ramos faz parte do
projeto Arte SESC- que percorre o país e estava em Pelotas em 2016, no Museu do
MALG, conforme folder da Figura 2. Na exposição, foi possível apreciar onze obras
em telas que dialogavam com a poesia de João Cabral de Mello Neto, além de uma
instalação sonora e produção audiovisual.
Através de uma mediação da escola E.M.E.F. Afonso Vizeu com o projeto
de extensão da UFPEL e CEARTE, “Museu, comunidade, escola”, os alunos
desenvolveram atividade de integração entre a comunidade escolar e o museu. A
mediação ligada ao núcleo pedagógico do Museu do MALG com alunos da escola
foi orientada, momento em que as obras expostas eram contempladas e interpretadas,
propondo e perguntando às crianças que não só vivenciaram as obras, mas também
que representaram seus significados. As crianças com auxílio do material distribuído
realizaram desenhos interpretativos das obras expostas com auxílio dos mediadores.

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Figura 1: Nuno Ramos Paiol Literário (2006)

Foto: Mateus Folha. Fonte: RAMOS, 2017

A EXPOSIÇÃO SÓ LÂMINA

O artista Nuno Ramos foi convidado pelo SESC para participar do projeto
por ter influenciado singularmente a arte no Brasil. Nuno Ramos se configura
como um artista da experimentação na qual a ausência de regras é mais um desafio
às normas.

Figura 2: Cartaz (2014)

Fonte: RAMOS, 2017

Seus objetivos e suas instalações com “materiais não instáveis como parafina,
sal, vidro e mármore servem como favorecendo sua produção artística nas suas
diferentes linguagens” (RAMOS, 2017).

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Esse trabalho de Nuno Ramos serve de sintética e econômica introdução ao


mundo plástico do artista, sem perda da potência da obra. Os impulsos iniciais das
obras, das imagens, estão como num estado de latência cultural e dessa possibilidade
disponível, flexível, maleável é que Nuno Ramos se apropria para dar outra forma.
A constante metamorfose é a característica ao seu trabalho.
Só Lâmina trata-se de metamorfosear a poesia de João Cabral de Melo Neto.
Esta série de onze desenhos manifesta a destreza plástica da Lâmina, mas também
o raciocínio seco da arte: 11 desenhos, 11 facadas de uma mesma lâmina. Como
mostram as figuras 3, 4 e 5 das telas de arte nas galerias expostas em ordem.

Figura 3: Exposição Só Lâmina (2014)

Fonte: RAMOS, 2017

Figura 4: Exposição Só Lâmina (2014)

Fonte: RAMOS, 2017

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Figura 5: Exposição Só Lâmina (2014)

Fonte: RAMOS, 2017

Ambivalência e oposição dos estados físicos estão sempre presentes e atuantes


nos desenhos, nas pinturas, nas esculturas. A escolha de materiais que Nuno Ramos
utiliza, tais como pedra, areia, vidro, metal, está sempre destinada a sustentar e
estabilizar, indo além dos limites. O mesmo ocorre com as instalações sonoras:
palavra, som e espaço formam uma equação paralela a da superfície, forma e matéria
das formas e desenhos.
Nuno Ramos quer ultrapassar a palavra lida e dar som e imagem à palavra, e
fala a língua do cubismo sonoro. São desenhos autofalantes. Parece que vale tudo,
espelho, vaselina, folha de ouro, pelúcia, metal, tinta, tais materiais se agridem, irritam,
mas continuam sendo fortes e trazem o desafio de uma eloquência plástica.
Cada verso compõe um desenho, cada linha escrita no alumínio recortado, por
uma citação, o poema de Mello Neto:

Assim como uma bala


Enterrada no corpo
Fazendo mais espesso
Num dos lados do morto
Assim como uma bala
do Chumbo mais pesado
no musculo do homem
pesando-o mais de lado
Qual bala que tivesse
Um vivo mecanismo
Bala que possuísse
Um coração ativo
Igual ao de um relógio
Submerso em algum corpo
Ao de um relógio vivo

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E também revoltoso
Relógio que tivesse
O gume da faca
E toda a impiedade
De lâmina azulada
Assim como uma faca
Que seu bolso ou bainha
Se transformasse em parte
De vossa anatomia
Qual era faca intima
Ou faca de uso interno
Habitando meu corpo
Como o próprio esqueleto
De um homem que o tivesse e sempre, doloroso
De homem que se ferisse

Contra sem próprios ossos.[...]seus próprios ossos. Ossos com destroços flutuantes numa superfície
plana, desenhos daimpermanente instabilidade das coisas espelhadas numa possa d’água qual
forma disforme. (MELLO, 1979, apud RAMOS, 2018)

A MEDIAÇÃO NO MUSEU

Conforme Consuelo Rocha (2010), sabemos que só na década de 1990


os museus criaram setores educacionais que passaram a atuar com a presença do
monitor. A partir do “século XXI é que se dá a figura do mediador” com as mesmas
funções do monitor, o qual guia os visitantes pelas dependências do museu e se
coloca à disposição do visitante só quando solicitado, e ainda cria condições para as
crianças visitantes descobrirem o local (ROCHA, 2010, p. 22).
Ainda, “num ambiente de aprendizagem prazeroso, ampliando seus
conhecimentos e proporcionando num diálogo com as culturas de saber desenhista,
para mais saber” (ROCHA, 2010, p. 22).
A criança tem múltiplas interações, sendo uma delas do “desenhista com sua
própria produção” e com a de seus pares e ainda com a “produção sócio histórica”
de diversos tempos e contextos culturais (IAVELBERG, 2006, p. 15).
No Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, em Pelotas, a mediação se faz com
acadêmicos do Centro de Artes, mostrando, explicando e se colocando à disposição
do visitante por uma visita guiada. Quando as escolas agendam visitas, o mediador
estuda as idades das crianças visitantes e planeja as atividades para melhor desempenho
da visita.
Para Rocha (2010), sempre, num projeto de atuar em conjunto com a
comunidade, professores, acadêmicos e servidores procuram ”oferecer oportunidades
de aprendizagem e entretenimento aos visitantes dentro do esforço do Museu de
Arte Leopoldo Gotuzzo” (ROCHA, 2010, p. 30).

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Para que estas visitas se realizem com êxito socioeducativo, os medidores


devem apresentar capacidade de comunicação e experiência prática para atender
às necessidades e expectativas do público-alvo. Além dos mediadores do Museu de
Arte Leopoldo Gotuzzo, “possuir a qualificação através dos estudos sobre museus
e elaborar modalidades de programas que irão ser implantadas, e depende sempre
do plano museológico”, dos recursos financeiros disponíveis, do tipo de acervo, do
público em potencial (ROCHA, 2010, p. 30).
No dia 8 de Abril de 2016, no Museu de Artes Leopoldo Gotuzzo, em
Pelotas-RS, ocorreu uma mediação, atividade núcleo pedagógica com alunos da
escola E.M.E.F. Afonso Vizeu, que chegaram de ônibus com a professora Daiane
Rosenheim. Todos esperavam por eles, que visitaram conforme agenda com os
alunos de artes mediando: Sílvia Nunes, Noemi Bretas, e eu, Letícia Fonseca,
entre outros, fazíamos parte da equipe de mediação. Como se pode ver, a figura 6
representa momento com as crianças na galeria do Museu.

Figura 6: Crianças da Escola E.M.E.F Afonso Vizeu em visita ao Malg

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016.

Depois da visitação orientada, em que as obras expostas foram interpretadas


e não só contempladas, as crianças foram questionadas não só como vivenciaram
as obras, mas o que representaram seus significados. As figuras 7 e 8 mostram os
mediadores na galeria com as crianças.

104
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 7: Crianças da Escola E.M.E.F Afonso Vizeu em visita ao Malg

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016.

Figura 8: Mediação da exposição Nuno Ramos, no Malg

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016.

105
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Após este estágio da visita das crianças na exposição, elas sentaram no chão
da 1ª e da 2ª galeria de mostras: Galerias Marina Pires e Luciana Renk Reis,
espontaneamente com o auxílio do material distribuído pelo Museu, folders, e
catálogos, além do material de desenho: folhas brancas e lápis de cor. As crianças
realizaram desenhos interpretativos das duas exposições, com o auxílio dos
mediadores. Como mostram as figuras 9 e 10, observam-se as crianças desenhando
na atividade.

Figura 9: Crianças desenhando a partir do artista Nuno Ramos, no Museu do Malg

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016

Figura 10: Crianças desenhando a partir do artista Nuno Ramos, no Museu do Malg

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016.

106
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Estavam na mediação 34 crianças, sete mediadores e uma coordenadora


pedagógica. Na figura 11, observam-se todas as crianças e seus desenhos finalizados.
Figura 11: Crianças com seus trabalhos, MALG

Fonte: MALG, Núcleo didático pedagógico/2016.

O PROCESSO CRIATIVO NA MEDIAÇÃO DO MUSEU

Compreendemos que a criança hoje em seu caminho do “pré-simbolismo


à construção pictórica própria” tem nuances pessoais (IAVELBERG, 2006, p.
20). A gênese dos desenhos deve ser reconhecida em cada contexto de geração
de desenhos, na singularidade de seus produtores. Ensinar o aluno a diversidade
cumpre os propósitos tanto da escola inclusiva e democrática como o da didática
contemporânea da arte.
Wojnar diz que a evolução da discussão sobre o “ensino do desenho mostra
de forma clara a transformação da concepção da escola tradicional para a escola
renovada” (IAVELBERG, 2006, p. 21).
O desenho passa a ser discutido como ação expressiva. Quando livre das
experiências de ensino, o desenho é tratado mais como produção espontânea da
infância e menos como imitação da representação precisa da realidade.
Educação estética passa a ser palavra de ordem na vida moderna e na formação
geral. Conforme as conclusões de Piaget, a criança necessita para desenhar:

107
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

[...] a construção de geométricas topológicas (continuidade, descontinuidade, superação, ordem


e projetivas perspectivas com projeções e secções) métricas (euclaudiarias, proporção e distância,
coordenação de objetos) ou ainda a construção do espaço e a subsequente expressão no espaço
geográfico. (IAVELBERG, 2006, p. 22).

Estuda-se hoje a partir de estágios de Luquet: “1) A gênese do desenho


intencional; 2)Realismo Ausente – relações topológicas; 3) Realismo intelectual –
relações projetivas 4) Realismo visual – relações métricas” (IAVELBERG, 2006, p.
22).
Na escola renovada ou ativa, o processo estimulava a imaginação e a criatividade;
a liberdade era compreendida como qualidade livre de influência do meio. Com o
ingresso na contemporaneidade, tais abordagens foram substituídas por pesquisas
interculturais e outras que consideram o diálogo de desenhos infantis com a cultura,
“observando constâncias, também as culturais, nas diferenças simbólicas entre
desenhos das crianças de várias regiões e países” (IAVELBERG, 2006, p. 23).
Além do “conhecimento de si mesma que a criança tem ao desenhar, ela
desenha porque existe desenho no mundo” (IAVELBERG, 2006, p. 24). A criança
aprende a ver e a executar o que vê, tende a assimilar níveis de conhecimento e
produção artística cada vez mais complexas, agindo sobre os objetos de conhecimento
(desenhos) de diversas culturas, tempos e lugares.
Para Iavelberg (2006), o conceito de desenho está diretamente relacionado
com aquilo que é socialmente transmitido através de “horizonte de experiências”
do meio onde a criança vive (IAVELBERG, 2006, p. 25).
As ideias de Vigotsky colaboraram para se “compreenderem as relações entre
desenvolvimento e aprendizagem nos contatos interativos entre pares de níveis
diferentes e objetos socioculturais” (IAVELBERG, 2006, p. 25).
Hoje é possível entender que o desenho faz parte das aprendizagens tanto
sociais quanto culturais, mediadas por fontes de informação. Ao desenhar, a criança
usa cognição e sensibilidade e experiências que tem diretamente com o desenho no
contexto sócio cultural em que vive.
Não se trata de aprender a desenhar vendo ou copiando modelos de imagens da
arte impostos pelo professor, mas de assimilá-los aos próprios esquemas desenhistas,
no contato com os códigos da linguagem. Desta forma, desenvolver seus percursos
de criação pessoal, agora informados pela cultura, pois o “desenho espontâneo deu
espaço ao desenho cultivado” (IAVELBERG, 2006, p. 26), em que se reconhece
a força da cultura visual como marca que diferencia as produções infantis de cada
contexto histórico sócio e cultural.
Aos professores cabe orientar suas ações por intermédio da observação da
aprendizagem em desenho com enunciados que promovam ações para aprender a
“desenhar com marca pessoal, de forma cultivada, ou seja, alimentada pela cultura”
(IAVELBERG, 2006, p. 28). São “eixos das ações pedagógicas: fazer arte, ler arte,
situar a produção sociocultural e histórica da arte” (IAVELBERG, 2006, p. 29).
Fernando Hernandez faz a análise do ensino do desenho e sua proposta incide
no ensino da arte compreendido como cultura visual, para que estudantes possam

108
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

conhecer criticamente as “diferentes manifestações artísticas de cada cultura e


reintera o valor da função social das imagens e da história do olhar” (IAVELBERG,
2006, p. 30). O conhecimento deve ser crítico, não só para as obras de arte, mas a
toda produção visual, (objetos, imagens mediáticas objetos do cotidiano).
Os objetivos educacionais da cultura visual concebidas por Hernandez
sintetizam-se em: “1) favorecer o conhecimento para a compreensão do mundo,
2) favorecer o desenvolvimento físico, 3) favorecer o desenvolvimento criativo”.
(IAVELBERG, 2006, p. 31).
Conforme Freedman:

[...]em seu livro afirma que a educação em artes visuais ocorre no campo da cultura visual, dentro e
fora da escola, em todos os ciclos da escolaridade. Objetos, ideias, crenças, práticas que formam e
pertence à experiência visual. Formamos o nosso pensamento sobre o mundo e ficamos habilitados
a incorporar novos conhecimentos (IAVELBERG, 2006, p. 33).

Os saberes da arte são contextualizados, tem história e isso reflete na sala de aula
onde a cultura visual é praticada e tematizada enquanto parte de uma comunidade
de aprendizagem interpretativa.
Os conhecimentos são produzidos em contextos de interpretação e apresentação
que os marcam sócio historicamente e que, quando em sala de aula, passam por
novas interpretações e representações, agora realizadas por alunos e professores.
A origem das ideias e representações artísticas do aluno visa a uma educação
em que o aprendiz produz tanto ideias quanto formas artísticas e não se restringe
em reproduzi-las.
O “argumento que a criança não copia por falta de habilidade motora ou
materialidade constitui tese superada em educação” (IAVELBERG, 2006). Sabemos
hoje que o que impossibilita a “assimilação de conhecimento no ensino voltado para
imitação mecânica é a condição teórica de aprendiz” (IAVELBERG, 2006, p. 42).
Na ação assimilativa através da imitação, os erros e as deformações realizados
pelas crianças na cópia dos modelos estão ligados às possibilidades de assimilação do
aluno e, por isso, são erros construtivos, uma vez que no fundo invocam acertos
provisórios e estão em correspondência com o quadro de hipóteses do sujeito da
ação.
A produção da criança reflete o tempo e o lugar onde vive por meio de
padrões vigentes na cultura, das técnicas disponíveis, das orientações que recebe,
bem como dos meios e suportes aos quais tem acesso para se apropriar e criar.
De acordo com nossa compreensão, o “ingresso no desenho/apropriação”
demanda que a mediação do adulto seja, ao contrário, mais presente (IAVELBERG,
2006, p. 49). Isto significa que ninguém poderá desenhar ou aprender por ela.Wilson
afirma que a “arte segue um desenvolvimento espontâneo e há muito tempo se
considera errado, influenciar a criança” (IAVELBERG, 2006, p. 53).

109
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A importância do desenho é inegável pela integração que propicia entre


cognição, ação, imaginação, percepção e a sensibilidade. Por intermédio do desenho
a criança pode expressar seus conhecimentos e suas experiências colocando-se
numa poética de modo singular.
As competências e habilidades aprendidas em desenho servirão para outras
áreas de conhecimento. A oportunidade para desenhar sistematicamente promove
o progresso da criança na linguagem e no desenho, construindo novas formas de
expressão e imaginação.
Uma orientação adequada ajuda o aluno a avançar e o contrário, o abandono
ou orientação equivocada nas situações educativas de desenho, pode estagnar o
processo criativo.
A Universidade Federal de Pelotas e seu Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo
proporcionam, junto à comunidade, acervos e exposições que só se tornam acessíveis
graças ao projeto de mediação que oportuniza aos visitantes escolares uma ação
educativa no desenho.
Esta mediação foi muito proveitosa e não podíamos deixar passar esta
oportunidade de teorizar esta experiência. Agradeço a professora orientadora pela
oportunidade de participar deste projeto de extensão como voluntária da UFPEL,
e ao Museu do Arte Leopoldo Gotuzzo pela prática da atividade de mediação.
Reconheço a grandiosidade do trabalho junto da Universidade Federal de Pelotas e
o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo.

REFERÊNCIAS

FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Metodologia do ensino de arte. 2. ed. Juiz de Fora:


Cortez, 1999.

IAVELBERG, Rosa. O Desenho Cultivado na Criança: prática e formação de educadores,


ed. Zouk, 2006.
MAGALHAES, Clarice Rego.  A Escola de Belas Artes:  da fundação a federalização
(1949-1972) uma contribuição para a História da educação em Pelotas. Pelotas, 2008. 110
f. Dissertacao (Mestrado em Educacao). Faculdade de Educacao. Universidade Pederal de
Pelotas
MALG, Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo. Fotos Núcleo Didático pedagógico/2016,
pasta visitantes.
______. Site do MALG. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/malg/ Acesso em 28 mai.
2019.
MELLO Neto, João Cabral de. Uma faca Só Lâmina, poesia completas; 1940-1945. p.
187. Rio de Janeiro: Livraris José Olímpio Editora. 1979.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

RAMOS, Nuno. Cartaz da exposição Nuno Ramos, 2014. Sescro blogspot. Disponível
em: <http://sescro.blogspot.com.br/2014_04_06_archive.html>. Acesso em 29 jan. 2017.
______. Foto do artista, Rascunho website. Disponível em: <http://rascunho.com.br/
nuno-ramos/> Acesso em 29 jan. 2017.
______. Imagens das telas em exposições Só lâmina, Sesc. Ormnews website, Disponível
em: <http://www.ormnews.com.br/noticia.asp?noticia_id=608420>. Acesso em 29 jan.
2017.
______. Catálogo, Arte Sesc, Só Lâmina. Disponível em: <www.sesc.com.br/portal/
publicacoes/cult/livro/so_lamina/so_lamina>. Acesso em 02 fev. 2018.
ROCHA, Maria Consuelo Sinotti.  Museu de arte Leopoldo Gotuzzo:  contribuição
e integração com o ensino de arte através do seu setor educacional. Pelotas, 2010. 107f.
TCCP (Especialização em artes visuais patrimônio cultural). Instituto de Artes e Design.
Universidade Federal de Pelotas, 2010.

111
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

II - MEMÓRIA, EDUCAÇÃO
E CIDADANIA

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS


TRADIÇÕES DOCEIRAS EM MORRO
REDONDO/RS: PRIMEIRAS OBSERVAÇÕES
ANDRÉA CUNHA MESSIAS1
DIEGO LEMOS RIBEIRO2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado intitulada “A salvaguarda


do saber-fazer do doce colonial em Morro Redondo/RS: O “patrimônio em
ação”, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Memória Social
e Patrimônio Cultural, na Universidade Federal de Pelotas. A pesquisa parte de
contexto maior, referente ao reconhecimento das “Tradições Doceiras de Pelotas
e da Antiga Pelotas3” como patrimônio cultural imaterial brasileiro, registrado
no Livro de Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), no dia 15 de maio de 2018.
Ao utilizarmos uma metáfora à obra “Ciência em Ação” (LATOUR, 1989),
na qual o autor investiga os atores humanos e não humanos que interagem
continuamente para a construção da ciência, procuramos tecer a rede de atores e
seus discursos durante as ações de salvaguarda das tradições doceiras coloniais em
Morro Redondo, na tentativa de compreender a complexa trama que traduz o
fenômeno estudado.
A partir da análise dos entrelaçamentos e das rupturas que caracterizam
nosso objeto de estudo – O “patrimônio em ação” –, pretendemos verificar as
discrepâncias entre os discursos oficiais relacionados ao patrimônio doceiro colonial
e as memórias subalternas, na tentativa de compreendermos as dinâmicas sociais
e as disputas memoriais que a patrimonialização do doce parece evidenciar no
município. Como recorte temporal, iniciamos nossas observações em relação às
ações do Museu Histórico de Morro Redondo, a partir de 2014, antes mesmo de o
1  Biologia (UESC); Mestranda PPGMP. E-mail: [email protected]
2  Doutor em Arqueologia (USP); Professor Titular Museologia e PPGMP. E-mail: [email protected]
3  A Antiga Pelotas caracteriza-se pelo conjunto dos quatro municípios anteriormente pertencentes à Pelotas: Capão
do Leão (emancipado em 03/05/1982), Turuçu (emancipado em 22/10/1985), Morro Redondo (emancipado em
12/05/1988) e Arroio do Padre (emancipado em 17/04/1996).

113
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

patrimônio ter sido chancelado pelo IPHAN.


Dessa forma, analisaremos aqui a rede de atores presentes na primeira reunião,
para elaboração do Plano de Salvaguarda das Tradições Doceiras Coloniais,
ocorrida no município, no dia 20 de novembro de 2018, e também descreveremos
as ações já realizadas pelo Museu Histórico de Morro Redondo, em função da
patrimonialização e da salvaguarda.

A RELAÇÃO ENTRE PATRIMÔNIO E TRADIÇÃO

Na contemporaneidade, vários autores têm se preocupado em estudar o


fenômeno da multiplicação patrimonial, seja ela relacionada aos patrimônios
materiais ou imateriais – aspectos, esses, indissociáveis. Nesses estudos, percebemos
que há uma relação entre a patrimonialização e a retórica da perda (GONÇALVES,
1996; 2004; 2015); como também a caracterização da mesma como uma testemunha
da “crise” que vivenciamos em decorrência da ascensão do presente sobre o passado,
tempo, esse, que Hartog denomina por “presentismo” e o descreve como um
passado que nunca passa e um futuro utópico que não mais acreditamos ser possível
(HARTOG, 2006).
Ao complementar essa reflexão, Candau (2009, p. 43) demonstra que estamos
na era da compulsão memorial, a qual denomina por “mnemotropismo massivo e
imperioso”. Nessa lógica, o patrimônio é entendido como um aparelho ideológico
da memória, manifestado por inúmeras formas, dentre elas “a reemergência ou
invenção de numerosas tradições e outras formas ritualizadas de reminiscência”
(CANDAU, 2009, p. 43).
Nesse contexto, o autor defende que a patrimonialização é um poderoso
movimento capaz de favorecer a sobrevivência de uma tradição, pois ela é essencial
para fortalecer a crença de que compartilhamos memórias, tal como Halbwachs
(2013) acreditava ser possível, ao conceituar a memória coletiva. Ao discordar de
Halbwachs, Candau defende a tradição como uma forma de compartilhamento
de crenças adotadas pelos grupos sociais, as quais denominou por metamemórias.
Segundo o antropólogo, as metamemórias são memórias reivindicadas e ostensivas que
constroem identidades (no âmbito individual e também no coletivo) com poderosos
efeitos sociais que são potencializados pelos sociotransmissores (CANDAU, 2004)
– definidos pelo autor como elementos tangíveis e intangíveis capazes de favorecer
conexões entre os indivíduos.
Para Candau (2009, p. 52), o patrimônio é um fenômeno metamemorial
que contribui para o entendimento de um grupo como “um todo homogêneo,
integrado e dotado de uma essência” que garante a crença na existência de
uma memória de todos. Percebe-se então, que “[o] patrimônio apresentado
como comum a todos não é senão o patrimônio de alguns” (CANDAU,
2009, p. 54. Grifo nosso).
Outro aspecto importante na relação patrimônio, memória e tradição diz
respeito ao próprio entendimento do termo “tradição” e seus reflexos na memória
e na construção do patrimônio. Segundo Hobsbawm (1983) e Arévolo (2010), a

114
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ideia de tradição não é de algo fixo e imutável, como o senso comum costuma
percebê-la. Para os autores, a tradição é constantemente renovada, recriada, destruída
e reinventada diariamente. Essa dinâmica só é possível por conta da capacidade de
readaptação da tradição, em decorrência de sua estabilidade sociocultural. Percebemos
que Ferreira (2010, p. 16) concorda e complementa as ideias anteriormente
discutidas, ao afirmar que: “Continuidade e mudança, longe de serem vistas como
pares opostos são, na verdade, o motor dessa experiência do passado no presente, que
busca necessariamente, o futuro”.
Podemos constatar que o processo de construção dos patrimônios e a invenção
das tradições não são neutros. Também isentas de neutralidade, as políticas de
memórias costumam constituírem-se em políticas de esquecimentos (FERREIRA,
2009; CHAGAS, 2002; MICHEL, 2010). Portanto, é facilmente detectado que,
em processos de consolidação de memórias sociais, os esquecimentos configuram-
se como a outra face da mesma moeda (POLLAK, 1989), aspectos que podem
contribuir para acirrar a concorrência das memórias.
Com bases nos aspectos elencados e conectando os aspectos teóricos aos
empíricos observados em nossa pesquisa, defendemos que estamos longe de reforçar
essencialismos. Adotando uma postura científica participante, percebemos, em
decorrência das observações em campo e da reivindicação memorial de alguns
atores que compõem a rede estudada, que a patrimonialização e a salvaguarda das
tradições doceiras em Morro Redondo podem estar contribuindo para acirrar
disputas memoriais no município.

AS TRADIÇÕES DOCEIRAS DE PELOTAS E DA ANTIGA PELOTAS COMO


PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL BRASILEIRO

Em 15 de maio de 2018, as tradições doceiras da região de Pelotas e da Antiga


Pelotas foram registradas no Livro de Saberes do IPHAN, após parecer favorável,
emitido pelo Conselho Consultivo, com base nos resultados do INRC e em visitas
realizadas nos municípios envolvidos. Ferreira et al. (2008) informam que, para a
realização do INRC, estudos multidisciplinares foram realizados por uma equipe
de antropólogos, arqueólogos e historiadores ligados à UFPel. Segundo os autores,
a partir dos trabalhos realizados, as lacunas em relação à tradição doceira em Pelotas
foram preenchidas, já que a literatura disponível até então atribuía destaque apenas
à contribuição portuguesa.
Em se tratando das tradições doceiras, o Dossiê1 sobre o registro dos doces,
utilizado para a elaboração do INRC, revela os atores sociais relacionados ao
processo. Os pesquisadores relataram que, a partir das trocas comerciais do charque
pelotense pelo açúcar nordestino, “[...] os negros, desde o período da escravidão,
conviviam diretamente com a produção caseira de doces de origem portuguesa,
incorporando parte de seus saberes e fazeres” (FERREIRA et al., 2008, p. 107).
1  Dossiê de Registro da Região Doceira de Pelotas e Antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro
Redondo e Turuçu)/RS. Brasília, 2018. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/
Dossie_%20tradicoes_doceiras_de_pelotas_antiga_pelotas.pdf>. Acesso em 10 abr. 2016.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Em relação às demais etnias, os autores apontados anteriormente demonstraram


que os “[...] colonos, de origem pomerana, alemã, italiana e sobretudo francesa,
contribuíram para a tradição dos doces de fruta, recriando saberes herdados dos
antepassados e adaptados aos recursos locais” (FERREIRA et al., 2008 p. 107).
Ferreira et al consideram que o saber-fazer pode ser caracterizado como um
fato social total,

[...] uma vez que o objeto permite discutir amplas dimensões da cidade: a existência de confeiteiros
homens, ao mesmo tempo que existe uma tradição que vincula a arte doceira ao universo feminino;
a circularidade de saberes entre diferentes classes sociais e a conseqüente transformação do modo-
de-fazer; a contribuição da etnia negra, além de outras etnias (FERREIRA et al., 2008, p. 110).

Baseados na percepção dos doces finos como fato social total, percebemos a
semelhança em relação ao patrimônio doceiro colonial e à necessidade de concebê-
los como tal. O acompanhamento do processo da salvaguarda em Morro Redondo
tem demonstrado que existem disputas memoriais e identitárias, a partir das quais
alguns sujeitos ganham destaque e outros são postos à margem.
Com isso, pretendemos contribuir para a problematização de que é de suma
importância que as comunidades locais percebam a necessidade de garantir a presença
de múltiplas vozes no plano de salvaguarda das tradições doceiras coloniais, tal como
prevê a indicação do IPHAN ao defini-lo como uma “[...] política orientada para
aumentar a participação democrática dos cidadãos na formulação, no planejamento,
execução, avaliação e acompanhamento de políticas de preservação do patrimônio
cultural” (IPHAN, 2011, p. 02). Segundo o IPHAN, o plano de salvaguarda refere-se
ao

[...] planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, combinadas entre atores de diferentes
segmentos da sociedade e executado de modo compartilhado, participativo. Visa ao apoio e à
continuidade de existência do bem cultural de modo sustentável, através do fomento à produção,
reprodução, transmissão, e divulgação dos saberes e práticas a eles associados; e do apoio à
autodeterminação e organização dos grupos detentores desses saberes e práticas para a gestão do
seu patrimônio (IPHAN, 2011, p. 02).

As problematizações trazidas refletem nosso desejo em potencializar as


memórias multidirecionais (ROTHBERG, 2009), relacionadas ao saber-fazer dos
doces coloniais de forma que o plano de salvaguarda reflita as transformações que as
tradições doceiras estão sofrendo em Morro Redondo.

MORRO REDONDO COMO LÓCUS DA PESQUISA

Morro Redondo localiza-se na Serra dos Tapes e foi emancipado de Pelotas no


dia 12 de maio de 1988. Com 6.227 habitantes (IBGE, 2010), possui mais de 20% da
população formada por pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. O histórico
do município, descrito por esse instituto de pesquisa, informa que:

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A principal emigração ocorrida no município foi a vinda de portugueses oriundos principalmente


do Arquipélago de Açores, juntamente com a emigração de alemães (a maioria de pomeranos).
Outra etnia a ser levada em conta é de italianos. O primeiro núcleo de moradores estabeleceu-se na
localidade por volta de 1865, eram os imigrantes acima citados (IBGE, 2010).

Segundo o Plano Decenal de Educação (PDE) produzido pela Prefeitura


Municipal:

Por volta do ano de 1888, algumas famílias alemãs provocadas por situações desfavoráveis e em
busca de terras novas para plantar e assim melhorar as suas condições de vida, deixaram suas
moradias em São Lourenço do Sul e chegaram a terra que hoje pertence ao município de Morro
Redondo, na localidade São Domingos, por terem sido estes lotes de terra, vendidos por José
Domingos de Almeida (PDE, 2015, p. 06).

O documento informa também que “[a] etnia do município é composta


em sua maioria por descentes de alemães, italianos, portugueses, negros e outros”
(PDE, 2015, p. 08) e descreve a importância da ruralidade atrelada ao cultivo e à
produção de conservas e doces de frutas, ambos feitos artesanalmente, característica
da produção local.
Em relação à economia do município, a agricultura, a pecuária, a indústria
de conservas e de embutidos com carne de aves constituíam-se nas atividades
predominantes. Atualmente, o turismo rural ligado ao patrimônio doceiro tem se
destacado. Esse aspecto tem sido entendido por alguns como uma saída à crise
econômica que atingiu o município após o fechamento da Fábrica de Embutidos
da Cosulati2. O fato promoveu desemprego em massa e um acirramento da crise
econômica que havia sido iniciada na década de 1970 com o fechamento de
inúmeras fábricas de conservas, após entrada do pêssego argentino e abertura de
grandes indústrias de conservas em Pelotas (BACH, 2009).
Outro fato observado, que é objeto do estudo da salvaguarda das tradições
doceiras no município, e que conta com o apoio do IPHAN e autoridades municipais,
diz respeito à promoção de negociações e políticas públicas que vão de encontro às
normas da vigilância sanitária. As ações da vigilância sanitária acabaram por provocar
a exclusão de doceiros tradicionais por conta do impedimento da utilização do
tacho de cobre e do mexedor de madeira, bem como das exigências relacionadas à
adequação do ambiente de trabalho para o feitio do doce. Nos estudos, percebemos
como alguns doceiros “driblam” as normas da vigilância. Nessas circunstâncias, o
que essa prática pode indicar? Para eles, qual é a importância da utilização do tacho
2  A Fábrica de Embutidos da Cosulati – Cooperativa Sul-Rio-Grandense de Laticínios Ltda. – gerava
260  empregos  diretos e cerca de mil postos de trabalho indiretos, em Morro Redondo, devido à implantação
do “Centro Integrado de Avicultura que conta com granjas de matrizes para recria e postura, incubatório com
capacidade de produção de mais de 8 milhões de pintos por ano e o abatedouro de aves com capacidade de abate
de mais de 12 milhões de frangos por ano. (...) A comercialização é feita sob a forma de cortes especiais, frangos
inteiros, resfriados, congelados e também uma linha nobre sob a forma de bandejas, além da linha de embutidos”
(Jornal Tradição, edição de 16/05/2014). Disponível em: <http://www.jornaltradicao.com.br/site/content/
economia/index.php?noticia=10631>, acessado em 31 mai. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

de cobre e do mexedor? Qual é o simbolismo relacionado a essas materialidades?


Observações em campo demonstraram também que muitas famílias deixaram
de fazer doce para o consumo próprio. Esse fato desencadeou uma série de
questionamentos, tais como: Quais fatores estão contribuindo para essa desistência?
Seria a falta de matéria prima (a escassez do marmelo, por exemplo)? Ou poderia
ser a falta de pessoas para ajudar porque as famílias e os vizinhos deixaram de se
reunir para isso? Será que é porque é mais fácil comprar o doce industrializado? Ou
as pessoas estão com receio da possível contaminação pelo cobre? Essa ausência se
faz em função das muitas horas de trabalho destinadas ao preparado dos doces? Ou
ela decorre das transformações do tempo e do espaço?
Atrelado aos aspectos elencados anteriormente, o trabalho de campo
demonstrou que tem ocorrido uma crescente modificação da paisagem rural, através
da inserção do cultivo da soja, substituindo pomares de pessegueiros. Nesse ínterim,
perguntamo-nos: Quais serão as consequências disso? Essa transformação poderá
causar impactos na economia do município e um esmaecimento das memórias e
das identidades sociais? Elas poderão influenciar no desenvolvimento da atividade
turística que tem como base a valorização do turismo rural e do patrimônio cultural
imaterial, registrado em 2018?

O NASCIMENTO DO MUSEU HISTÓRICO DE MORRO REDONDO E SUA MISSÃO

O Museu Histórico de Morro Redondo (doravante MHMR) foi concebido


em 2006, a partir de uma vontade de memória (NORA, 1984), de três moradores
do município: o Sr. Osmar Franchini, o Sr. Ervino Büttow e o Sr. Antônio Reinhard
fundaram o Museu. Para formação do acervo, um dos fundadores do Museu, o
Sr. Osmar Franchini, realizou uma campanha na rádio local para incentivar os
moradores a doar materialidades e imaterialidades.
Dessa forma, podemos perceber que existe uma estreita relação entre a
formação do MHMR e o colecionismo. As coleções formadas, mediante doação
das comunidades, representam a vida e os costumes locais, principalmente aqueles
atrelados à ruralidade, temática principal da Instituição, que preserva sua essência
comunitária. Percebemos, através de estudos de público e análise no livro de sugestões,
que as exposições do MHMR, concebidas em comunhão com as comunidades,
comunicam a emoção patrimonial que o acervo provoca nos moradores e visitantes.
Numa rápida conversa com os fundadores do MHMR, é possível constatar
a importância que o Museu e as coleções formadas têm para eles. Tal constatação
pode ser feita através da fala do Sr. Ervino Büttow: “Desde criança, eu sempre gostei
de juntar coisas. Quando o Osmar me chamou, gostei da ideia e trouxe muita
coisa pra cá” (mediação espontânea no MHMR, no dia 26 de Julho de 2017).
Através das visitas em campo, podemos afirmar que, para os fundadores, os objetos
são companheiros emocionais, tal como define Dohmann (2013, p. 33):

Os objetos ou coisas sempre remetem a lembranças de pessoas ou lugares, de uma simples


fotografia até um marco arquitetural. Ao proporcionar a conexão com o mundo, os objetos

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mostram-se companheiros emocionais e intelectuais que sustentam memórias, relacionamentos e


histórias, além de provocarem constantemente novas ideias.

Além de atividades museográficas no interior da Instituição, o MHMR


realiza ações externas no sentido de aproximar moradores dos lugares de memórias
(NORA, 1993) apropriados pelos idosos como patrimônios. Durante essas ações, o
Museu busca contemplar a sua missão ao:

[p]romover a reflexão, observação e interação das diversas parcelas da sociedade com o patrimônio
cultural do município, com ênfase na sua história e memória, através da seleção, preservação
e comunicação dos bens culturais de interesse público confiados à guarda, enfatizando o
valor educativo, turístico e social da instituição, ancorada na perspectiva da diversidade e da
multiculturalidade (Regimento Interno do MHMR, 2016).

Com a finalidade de garantir seu fomento, o Museu foi municipalizado em


2010, através da Lei Municipal 1.150/2010. Porém, sua gestão continua sendo feita
de forma compartilhada com representantes da Associação Amigos da Cultura
(que responde juridicamente pelo Museu), com o Secretário Municipal de
Educação, Cultura e Desportos, membros da sociedade civil do município, além
do Coordenador do Projeto de Extensão “Museu Morrorredondense: Espaço de
Memórias e Identidades3”.

AS AÇÕES REALIZADAS PELO MUSEU HISTÓRICO DE MORRO REDONDO EM


FUNÇÃO DA SALVAGUARDA DAS TRADIÇÕES DOCEIRAS COLONIAIS

Ao perceber a relevância que as tradições doceiras coloniais têm para os


moradores de Morro Redondo e o significado que o pêssego, o tacho de cobre e
o mexedor têm para a construção de memórias sociais, o Museu Histórico passou
a realizar, desde 2014, ações externas no sentindo de potencializar a transmissão
memorial. Para isso, realizou exposições, viabilizou que diversas turmas de escolares
visitassem pomares de pessegueiros e indústrias de conserveiras, realizou mesas-
redondas com produtores e especialistas sobre a importância do cultivo do pêssego
e as dificuldades encontradas pelos agricultores para a manutenção da atividade
no município. Durante todas as ações de patrimonialização e de salvaguarda das
tradições doceiras agimos como elemento humano actante nessa rede de atores,
problematizando ausências e tentando demonstrar a importância de discursos plurais
em relação ao tema.
A partir de 2016, tendo como metodologia condutora o “Café com
Memórias”, na qual o Museu promove a interação de idosos com objetos do seu
acervo com o objetivo de fortalecer as memórias e identidades sociais, bem como
de promover momentos de socialização para idosos com senilidade, a Instituição
3  O Projeto de Extensão é vinculado ao Bacharelado de Museologia, da Universidade Federal de Pelotas, tendo
sido formado após convite dos gestores do Museu para prestar auxílio técnico e científico à Instituição. Atualmente,
o Projeto está sob a coordenação do Prof. Dr. Diego Lemos Ribeiro.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

realizou ações tendo o tacho de cobre e o mexedor como objetos sociotransmissores


e potencializadores de metamemórias (CANDAU, 2009). Durante essas ações,
inúmeras narrativas foram compartilhadas pelos idosos, elucidando a caracterização
do tacho de cobre como objeto biográfico que acompanha várias gerações de
doceiros artesanais.
Durante o “Café com Memórias”, ocorrido em abril de 2018, envolvendo
moradoras idosas da localidade de Açoita Cavalo – zona rural do município que
disputa, com Santo Amor (outra zona rural de Morro Redondo), a autenticidade das
passas de pêssego, um dos doces coloniais tradicionais –, algumas idosas comentaram
que não entendiam o motivo de uma prática cotidiana tão vivenciada por elas ter
sido considerado algo tão importante – aspecto que ancora nossa premissa de que a
patrimonialização do doce colonial não é consensual e nem está consolidada.
Ao perceber a necessidade de fortalecer as memórias e as identidades
relacionadas às tradições doceiras em Morro Redondo, o Museu passou a investir
esforços no sentido de potencializar a transmissão memorial desses saberes. Para isso,
realizou visitas às instituições da Rede Pública de Ensino, promovendo a interação
dos educandos com o tacho de cobre, o mexedor e com um dos fundadores do
MHMR, o Sr. Osmar Franchini, e com membros do Projeto de Extensão.
Durante essas atividades, o tacho e o mexedor serviram como mediadores
culturais e potencializadores da imaginação museal (CHAGAS, 2007), além de
aproximar as crianças da cultura doceira. Essas ações, ao serem comunicadas, na
cerimônia de entrega da certificação de doceiro tradicional, pela Presidente do
IPHAN, a Historiadora Kátia Borgéa, emocionaram os presentes e fizeram com
que, de forma espontânea, a Presidente declarasse que o Museu Histórico de Morro
Redondo poderia ser considerado como um Centro de Salvaguarda das Tradições
Doceiras no município.
Outra forma de contribuição do Museu em relação ao processo de salvaguarda
das tradições doceiras diz respeito à participação da Instituição em todas as atividades
que acontecem no município e que estão relacionadas com a temática, sejam elas
momentos de discussão teórica e de planejamento de ações, como também nas
comemorações alusivas ao doce colonial, atividades essas realizadas pelo Roteiro
Turístico Morro de Amores4 e por seus parceiros. Vale ressaltar que, nos eventos
comemorativos, o tacho de cobre e o mexedor sempre estão presentes e evocam
inúmeras memórias que são narradas espontaneamente pelos atores sociais.

A REDE DE ATORES DURANTE A PRIMEIRA REUNIÃO PARA ELABORAÇÃO DO


PLANO DE SALVAGUARDA

A primeira reunião para elaboração do Plano de Salvaguarda das Tradições


Doceiras, em Morro Redondo, aconteceu no dia 20 de novembro de 2018, no
Centro de Eventos do município. A reunião foi conduzida pela técnica do IPHAN,
4  O Roteiro Turístico Morro de Amores surgiu, em 2016, a partir do desejo de alguns empreendedores em
desenvolver ações que pudessem contribuir para o desenvolvimento local, fragilizado pela crise econômica com
o fechamento da Cosulati e com o êxodo rural dos jovens.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

a historiadora Beatriz Muniz. Segundo matéria escrita pelo jornalista Diones Forlan
Nunes da Silva5, divulgada na página Morro Redondo On-line,

Participaram da reunião o prefeito Diocélio Jaeckel, vice prefeito Velocino Leal, presidente
da câmara Thiarles Schneider, vereadores Marcio Zanetti e Silvia Wahast Islabão, assessora do
deputado estadual Pedro Pereira Angélica dos Santos, assessores do deputado estadual Zé Nunes,
secretários municipais, representantes da Emater Municipal, Sebrae, Embrapa, prefeito de Arroio
do Padre Leonir Baschi, Naira Amaral representando a prefeitura do Capão do Leão, associação dos
empreendedores de turismo de Morro Redondo, professores e alunos da UFPEL, Museu de Morro
Redondo (SILVA, 2018).

Na ocasião, percebemos que os idosos, detentores do saber-fazer, não estavam


presentes nas discussões que se sucederam. O grupo de discussão foi formado
essencialmente por autoridades, empreendedores e acadêmicos. Por conseguinte,
perguntamo-nos: O que essa ausência poderá dizer? De que forma o processo
poderá ser conduzido?
Como atores não humanos6 nessa rede, percebemos os discursos relativos à
importância do pêssego como elemento iniciador das tradições doceiras, como
fator identitário e econômico. Além do pêssego, destacamos o tacho de cobre e
o mexedor como elementos de resiliência, objetos afetivos e biográficos. Também
são elementos não humanos actantes as normas da vigilância sanitária que excluem
pequenos doceiros, aspectos citados na reunião.
Vale ressaltar que a presença massiva de empreendedores do turismo tem
nos causado grande preocupação em relação ao uso mercadológico das tradições
doceiras, cujo discurso, se não for reconfigurado em ações futuras, poderá fortalecer
as disputas memoriais e identitárias em relação ao saber-fazer estudado.

O DISCURSO DA AUSÊNCIA

Como já discutimos anteriormente, no processo de formação do patrimônio


e da invenção das tradições, o jogo das lembranças e dos esquecimentos está sempre
presente. No caso analisado, percebemos que a ênfase dada através da presença e do
discurso dos empreendedores e autoridades nos faz pensar que a dimensão humana
do patrimônio em construção no município, no evento analisado, estava distante da
pauta das ações de salvaguarda.Vale ressaltar que, ao final da reunião, o representante
do Museu Histórico problematizou essa lacuna.
A ausência se fez notar em relação aos doceiros já reconhecidos pelos
organizadores, como os detentores do saber-fazer, e também àqueles que ainda

5  Divulgação feita na página do Jornalista no Facebook, em 02 de dezembro de 2018.


6  Bruno Latour (1989), ao se interessar em compreender o processo de formação da ciência, através da Teoria
Ator-Rede (TAR), demonstra que atores humanos e não humanos interagem de forma subjetiva tecendo uma
dinâmica rede de relações que ora se amplia e ora se recolhe. Nessa rede, o autor ressalta que os objetos são atores
actantes, sendo a análise dessas ações de suma importância para a compreensão do fenômeno pesquisado.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

não tiveram o seu lugar de fala no processo, como é o caso dos que residem no
Quilombo Urbano Vó Ernestina e dos negros que vivem na zona rural do município.
Perguntamo-nos: Como foi possível existir essa lacuna, justamente num processo de
concepção de ações para a salvaguarda, que prevê a participação democrática de
todos os segmentos sociais? Questionamo-nos, também, se tal ausência se configurará
em futuras ações que terão o turismo voltado à elucidação da contribuição dos
imigrantes como os detentores do saber doceiro, de forma a cristalizar as tradições
doceiras e as dinâmicas culturais em Morro Redondo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As observações em campo têm demonstrado que a patrimonialização do


saber-fazer dos doces coloniais ainda não está consolidada em Morro Redondo.
Desta forma, estudar o “patrimônio em ação”, antes dele se consolidar numa “caixa
preta”, é de extrema relevância para que possamos compreender as discrepâncias dos
discursos existentes. Discursos esses alicerçados em atores humanos e não humanos
que, por vezes, contribuem para o enaltecimento das memórias dos imigrantes,
relegando ao esquecimento as memórias negras que contribuem para a adaptação,
continuidade e renovação das tradições.
Esperamos que o processo de salvaguarda das tradições doceiras em Morro
Redondo caminhe no sentido de intercruzar os discursos a partir da potencialização
de memórias multidirecionais, ou seja, de memórias que se nutrem umas das outras
sem, necessariamente, serem subordinadas umas às outras.

REFERÊNCIAS

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ARQUITETURA DA IMIGRAÇÃO ITALIANA


NO NOROESTE DO RIO GRANDE DO SUL:
IDENTIDADE E MEMÓRIA
JAQUELINE PETENON SMANIOTTO1
CLAUDETE BOFF2
ROCHELI ANDRÉIA DIEL3

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde a chegada dos primeiros europeus, o território nacional vive o processo


de miscigenação e pluralidade – cultural e arquitetônica – em consequência dos
processos imigratórios. Diferentes povos trouxeram consigo distintos hábitos e
costumes, construindo, a partir dos séculos, uma cultura nacional rica, enraizada nas
mais diversas origens étnicas, e com os italianos não foi diferente. Nesse contexto de
reconstrução identitária, os imigrantes aqui chegados, ainda no século XIX, quando
aconteceu o embarque das primeiras famílias ao Novo Mundo, trouxeram consigo
a arte de morar e construir. Ancoradas no conhecimento originário da região do
Vêneto, na Itália, as técnicas construtivas, os partidos arquitetônicos, bem como as
volumetrias e tipologias começaram a ser implantadas nas terras das regiões Sul e
Sudeste do Brasil, construindo-se, assim, uma paisagem cultural única, explícita por
sua simplicidade e originalidade.
Estabelecidos no Rio Grande do Sul, em suas colônias, os imigrantes iniciaram
a ocupação com abrigos provisórios, que, sujeitos à evolução, adaptaram-se ao local,
às necessidades, ao poder econômico familiar e aos materiais encontrados, sem
deixar perder-se a identidade na forma de habitar. A casa italiana sofreu evolução,
mas manteve sua leitura arquitetônica, mesmo durante a mudança de espaço.

1  Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – Campus de Santo Ângelo, e-mail: [email protected]
2  Mestra em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Docente no Departamento de Ciências Sociais
Aplicadas da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Santo Ângelo, e-mail:
[email protected]
3  Mestra em Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Santa Maria, Arquiteta e Docente no Departamento
de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de
Santo Ângelo, e-mail: [email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Com um dos acervos mais ricos, o Patrimônio Pluricultural Brasileiro tem a


necessidade de ser preservado, mantendo vivas memória, história e identidade dos
povos. Elucidar à população o valor cultural dos bens imóveis existentes, bem como
a identidade arquitetônica que eles carregam é primordial para tornar os cidadãos
mantenedores dessa.
Mantê-la, além de sua matéria física, preserva o conjunto criado e a paisagem
construída, os quais estão aliados aos costumes típicos, às memórias das famílias, ao
sentimento de pertencimento a essa cultura e o sentir-se parte integrante da história.
Legado este que deve ser repassado às gerações futuras, junto à herança material.
Preservar a arquitetura pretérita contribui diretamente no ambiente construído.
O reconhecimento do patrimônio material e imaterial possibilita a longevidade dos
exemplares, através da manutenção e conservação, contribuindo para a autenticidade
e integridade desta arquitetura típica.
O acervo iconográfico e técnico produzido a partir desta pesquisa não tem
abrangência integral da mesorregião Noroeste, devido à grande demanda de
exemplares arquitetônicos da imigração italiana espalhados pelas diversas cidades
que têm origem e/ou desenvolvimento ocorrido pelo acolhimento de colonos
italianos. Desta forma, o recorte estudado compõe-se de dois municípios distintos:
Tucunduva e Tuparendi.
O levantamento do patrimônio edificado destas edificações, as quais constituem
o acervo da arquitetura produzida pela imigração italiana e sua decorrente
catalogação, além de somar ao acervo historiográfico já existente na mesorregião
Noroeste do Estado, torna-se um meio de conhecimento e reconhecimento dos
poderes municipais, estadual e federal, sobre preservação e incentivos à elaboração
de legislações específicas de proteção.

CONTEXTO HISTÓRICO

ITÁLIA E A EMIGRAÇÃO

No último quartel do século XIX, a Itália começou a enfrentar vários


problemas. Segundo Giron (1980), a Itália tinha seu território predominantemente
agrário e suas relações sociais atrasadas. Isso ocasionou um lento desenvolvimento
econômico, que refletiu às massas populares, miséria e fome.
Num espaço de tempo que abrange desde 476 d. C., quando houve a
dissolução do Império Romano do Ocidente, até o terceiro quartel do século XIX,
a Itália encontrava-se fragmentada em diferentes unidades políticas independentes
– Lombardia-Veneza, Toscana, Parma, Módena, Romagna, Duas Sicílias, Piemonte-
Sardenha e Estados da Igreja – submetidas estas, pelo domínio austríaco, francês e da
Igreja Católica. Segundo Frosi e Mioranza (1975), Lombardia-Veneza atualmente
compreende, aproximadamente, a região do Vêneto. Em 1929, houve a Unificação
Italiana, apenas alguns anos antes da grande imigração para o Brasil (SANTOS,
2006).

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O sul da Itália era predominantemente agrário, enquanto o Norte iniciava o


processo de industrialização. Surgem inovações tecnológicas e medidas impopulares
para alavancar a industrialização. Isso faz com que aconteça uma crise na Itália,
durante o período final do século XIX. O norte foi a primeira região atingida, pois
o desenvolvimento da industrialização deixou os agricultores que realizavam um
trabalho artesanal sem emprego e mercado para venda de seus produtos (SANTOS,
2006).
Conforme Giron (1980), o norte forneceu as primeiras grandes levas de
emigrantes, enquanto o sul iniciou mais tarde, a partir do início do século XX.
Durante quase um século, dentre os anos de 1869 e 1962, a emigração somou uma
saída total de 24 milhões de italianos. Segundo Santos (2006), essa atividade acabou
se tornando lucrativa para o governo italiano.
A região do Vêneto, localizada ao norte, em sua maioria composta por pobres
camponeses, ofertou o maior contingente de emigrantes, que viram nas terras
da América uma saída para emergirem da situação que ali viviam. Foi seguida
respectivamente por Lombardia, Trentino-Alto Ádige, dentre outras (FROSI;
MIORANZA, 1975).

BRASIL E A IMIGRAÇÃO

Em 1500, com a chegada dos desbravadores portugueses, nosso território


inicia seu processo gradativo de povoamento, processo este que continua em
constante construção. Segundo Lando e Barros (1980), nestes primórdios havia a
vinda espontânea de colonos brancos, em sua maioria de Portugal, a importação de
escravos negros e a incorporação de indígenas. Havia estrangeiros no território, mas
o que não havia era uma política imigratória.
A estratégia política para incentivo da vinda de imigrantes, adotada por Dom
Pedro I, aspirava três objetivos. Como o território ainda possuía terras devolutas,
o primeiro objetivo era o povoamento e, consequentemente, uma população que
fornecesse mão-de-obra branca e livre para os latifúndios, concluindo o segundo
objetivo. O terceiro, o qual fica velado, durante alguns períodos da história, era o
branqueamento da nação brasileira, criando-se uma identidade nacional, que, na sua
veracidade, seria um mascaramento das origens de nossos ascendentes.
Prado Júnior (1970) observa que coexistem, no processo imigratório, duas
atividades distintas: a colonização e a imigração. A primeira, de iniciativa oficial,
povoaria os vazios demográficos formando pequenas colônias de estrangeiros e a
segunda, a qual teria sua iniciativa particular, estimulada pelo governo, obteria mão-
de-obra branca e livre para os latifúndios. Os colonizadores vieram para o sul e os
imigrantes para os cafezais da região sudeste. Após a abolição do sistema escravagista,
as fazendas monocultoras de São Paulo necessitavam da substituição do sistema de
trabalho.
A chegada de novas etnias para povoar a região sul do Brasil, mas precisamente
o estado do Rio Grande do Sul, até então pouco ocupado, iniciou-se no século
XVIII, quando os açorianos ocuparam a parte ao sul, o centro, próximo ao Rio Jacuí
e a faixa litorânea. Após, os alemães chegaram para ampliar o povoamento da parte

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central. Por último, já no último quartel do século XIX, os italianos chegam para
completar o povoamento da província, ocupando-se do Nordeste, junto à região
serrana e no centro, próximo à atual cidade de Santa Maria.
Os imigrantes desejados, agricultores, colonos e artesões, emigraram para a
América entre o final do século XIX e início do século XX. Na Itália, com o fim
do feudalismo e a inserção da industrialização, gerou-se um excedente de mão-de-
obra. Já no Brasil, o cenário era inverso. Com a abolição da escravatura, o país passava
por uma carência de trabalhadores. Como afirma Giron (1980), imigrantismo e
abolicionismo são aspectos da mesma questão.

AS COLÔNIAS DE IMIGRANTES NO SUL DO BRASIL

As ofertas do governo imperial brasileiro eram atrativas para uma população


que vivia dificuldades na Itália, incluíam a doação de terras e o custeio das viagens.
O transporte seria gratuito da Europa até as colônias, hospedagem e assistência
durante os primeiros tempos, instrumentos de trabalho, sementes, assistência médica,
religiosa, instrução às crianças e, enfim, a venda, a crédito, de um lote colonial
(LAZZAROTTO, 1971).
Em 1879, quatro anos após a vinda das primeiras famílias italianas, o governo
suspendeu todas as despesas para a imigração oficial. Segundo Costa et. al. (1974),
conservou-se apenas a venda de um lote a crédito de trabalho remunerado durante
o período de quinze dias por mês, na construção de estradas. A concessão de
sementes e instrumentos de trabalho foi suspensa, retomada, modificada e ficou
sempre incerta. Na região sul, destinaram-se duas zonas de povoamento: as terras
despovoadas a nordeste e aquelas localizadas nas proximidades da cidade de Santa
Maria.
Segundo Lazzarotto (1975), a divisão das localidades era feita por linhas
e travessões, estes subdivididos em lotes coloniais numerados. Sobre mapas, não
respeitando os acidentes geográficos, com exceção do Rio das Antas e seus afluentes,
eram delimitadas as áreas devolutas a serem povoadas.
Como afirma Frozi e Mioranza (1975), o primeiro grupo de imigrantes fixou-
se nos fundos da Colônia de Nova Palmeira, milaneses que se estabeleceram em
terras próximas às habitadas por alemães, o que referencia o nome do atual distrito,
Nova Milano, município de Farroupilha. No mesmo ano de 1875, criaram-se três
núcleos de colonização italiana: Colônia Caxias, Colônia Dona Isabel e Colônia
Conde D’Eu. O povoamento dos núcleos pelas primeiras levas foi simultâneo.
Com o grande número de novas famílias, as terras aquém do Rio das Antas
são loteadas para suprir as novas necessidades. Em dez anos, a ocupação foi total. Na
década de 1880, inicia-se o loteamento das terras além do rio, com a criação de duas
novas colônias: Antônio Prado e Alfredo Chaves.
Após o estabelecimento nas regiões de interesse do governo, os imigrantes
desencadeiam o primeiro movimento migratório, de caráter interno e espontâneo.
Os lotes tornaram-se pequenos para comportar a grande densidade demográfica,
consequência de famílias numerosas. Por último, ocorre em 1890 a demarcação da

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Colônia Guaporé.
Frosi e Mioranza (1975) estabelecem dois momentos distintos da imigração
italiana: num primeiro momento, a ocupação de terra é feita por imigrantes italianos
que, de Porto Alegre, são destinados para as colônias já citadas; num segundo
momento, toma vulto a migração interna que ocupa espontaneamente novas terras.
Subindo o território, como citado acima, em direção norte, houve o
reestabelecimento na região noroeste. Muitos casais, fundadores de novas
aglomerações em diferentes regiões do estado, migravam um dia após o casamento.
Havia a necessidade de encontrar novos espaços para fixarem residência, construir as
grandes famílias e trabalhar com animais, cultivos, comércio ou pequenas indústrias.

HISTÓRIA E MEMÓRIA: A (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL

Durante o século XIX, o império brasileiro atraiu estrangeiros através da


política de imigração. O objetivo era povoar os vazios demográficos e criar uma
identidade nacional para a população brasileira.
Acreditava-se que, com a miscigenação das raças – a europeia com a dos nativos
e negros –, dentro de certo tempo (em torno de três gerações), se produziria uma
população de fenótipo branco, e haveria o desaparecimento de índios e negros puros
(OLIVEIRA, 2000).
As teses eugenistas tornaram a mestiçagem um elemento negativo,
inviabilizando a nacionalidade. A partir dos cientistas brasileiros, surge então a tese do
branqueamento e dos mestiços superiores. Neste processo de construção de um povo,
o imigrante passa a ter um papel adicional, o de contribuir com o branqueamento
da população e submergir na cultura brasileira por meio de assimilação. Contudo, o
paradoxo apontado é que, sendo a população brasileira etnicamente inferior, fosse
a ela atribuída a missão de transformar os imigrantes em brasileiros (OLIVEIRA,
2000).
Diferente do que o governo esperava, os italianos não abandonaram os
costumes do seu povo para emergirem na nova cultura, a brasileira. Chegados ao
novo território, segundo Cuche (2002), as práticas cotidianas, que envolviam a vida
familiar, religiosa, consumo e lazer, manifestavam certa peculiaridade, fato este que
permitiu situá-los enquanto imigrantes e lembrar sua origem.
Cenni (2003) reforça que a busca nas novas terras era de um local para se
sentirem pertencentes, assim criando uma identidade cultural entre habitante e habitat.
Identidade esta que, segundo Souza (2001), é a fonte de significado e experiência de
um povo, é o sentimento de pertencimento, gerado por particularidades e costumes
que marcam um povo ou pessoa, presentes no dia a dia, e passados de geração para
geração.
Vindos ao Brasil em busca de terras para cultivo, os imigrantes tiveram seu
sonho desfeito, encontrando as planícies já ocupadas e tendo confiadas a eles as regiões
montanhosas. Impossibilitadas pela topografia, as grandes plantações reduziram-se a
pequenos cultivos nas encostas. As dificuldades fizeram com que dessem preferência a
culturas perenes, como os parreirais, característicos da sua cultura (COSTA et. al., 1974).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A produção do vinho e de outros produtos acarretava a implantação do porão.


Facilitada pela topografia, a típica casa italiana reforçou a (re)construção identitária,
geralmente aproveitava o declive do terreno, assemelhadas às regiões montanhosas
da Itália (POSENATO, 1983).
Manipulando a natureza de acordo com sua cultura, o imigrante ergueu
suas moradas conforme o conhecimento atávico e os materiais disponíveis na
região (FILIPPON, 2007). A mudança de espaço acarretava a necessidade de uma
semelhança com o local de origem, exportando-se, além da identidade cultural, o
conhecimento de construir e habitar do imigrante, tornando-os parte integrante do
novo espaço.
Quando o imigrante veio para o Brasil, carregava pelo mar suas memórias. O
ato de rememorar avança os limites de trazer o passado para o presente. O imigrante
se tornou sujeito a reavaliações, autoanálise e autoconhecimento, alcançando o
caminho entre memória e identidade, fator preponderante de sua (re)construção.
Reorganizar as experiências e os significados fez dar surgimento a um Eu ancorado
nessa nova ordem e espaço (SOUZA, 2014). Estabelecer-se num novo território
acarretou na necessidade de uma (re)construção identitária.
Como afirma Colognese (2014), a italianidade é uma identidade em constante
construção e reconstrução. É a crença numa origem comum, gerando no descendente
do imigrante italiano vínculos de pertencimento.

Nesta tentativa de manter sua identidade cultural, deixaram marcas no espaço que são testemunhas
da imigração (...). A reprodução em solo brasileiro de uma cidade e organização territorial que
lembrasse muito a terra natal foi um dos artifícios utilizados pelos imigrantes italianos, para
aumentar o sentimento de pertencimento àquele local (SCALZER; GENOVEZ, 2012, p. 3-4).

Não foi necessário que os imigrantes italianos renunciassem seus hábitos


e costumes, devido à mudança de local. Sendo assim, puderam reproduzir parte
da configuração urbana e territorial do norte da Itália, transformando o espaço
em seu novo território. A reprodução de uma arquitetura semelhante à da pátria-
mãe pode ser a representação de um ícone de referência cultural nos processos de
reterritorialização e no estabelecimento e fortalecimento de laços identitários no
novo território (SCALZER; GENOVEZ, 2012).

O PATRIMÔNIO CULTURAL DA IMIGRAÇÃO ITALIANA

Com uma economia movida por diferentes ciclos de atividade – extrativista e/


ou produtiva –, o Brasil também viveu diferentes períodos da arquitetura, os quais
se relacionam com os processos econômicos. Compreendendo um destes ciclos,
a arquitetura da imigração italiana apresenta uma disparidade daquela com quem
coexistia, a luso-brasileira (POSENATO, 1983).
Enquanto a luso-brasileira favorecia unicamente alguns poucos privilegiados,
como latifundiários, a produzida pela colonização apresentava-se essencialmente
popular. Excetuando-se as comunidades indígenas, o patrimônio edificado pela

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

imigração italiana é o símbolo de uma sociedade, muito provavelmente a mais


igualitária já havida no Brasil, consequência de uma cultura agrícola, aquela da
pequena propriedade rural (POSENATO, 1983).
Esta representatividade regional é entendida por Posenato (1983) como popular
por dois aspectos. Foi erigida sem arquitetos, espontaneamente, mas principalmente
por ser fruto de uma população sem elites.

Eloquente em sua simplicidade, austera ou com ornamentação singela, não tem a opulência do
mármore ou o esplendor da talha dourada, mas não resulta de relações sociais injustas, como a
escravatura, que marcou quase toda a arquitetura histórica luso-brasileira (POSENATO, 1983, p.
66).

Desenvolvida autonomamente, sua linguagem peculiar carregava critérios


estéticos próprios e não intuía um contraste com qualquer outro gênero arquitetônico,
embora pudesse neles buscar inspirações, como ocorreu nas tipologias religiosas
(POSENATO, 1983).
A capela – edificação típica – podia ser encontrada facilmente nas zonas
de colonização italiana e, somada à necessidade de trabalhar para sobreviver, foi
a ancoragem dos colonos para (re)construção da cultura através da religiosidade
(COSTA et al, 1974).

AS ORIGENS VÊNETAS

Segundo Posenato (1983), a arquitetura rural, que veio do Norte da Itália,


juntamente com os imigrantes italianos, relaciona-se com o que foi construído no
Brasil, sob o ponto de vista construtivo. Porém, a organização dos espaços acontecia
de forma diferente: na Itália, geralmente todas as funções aglomeravam-se numa só
edificação, em aldeias rurais. No Brasil, cada atividade tinha sua própria construção
e cada família possuía uma.
De acordo com Posenato (1983), a arquitetura rural residencial do norte da
Itália pode ser dividida em estrutural e estilística. Estruturalmente, há vários tipos
de habitação, baseando-se na disposição dos compartimentos mais importantes.
Definindo dimora como o conjunto dos ambientes habitados e rústico o conjunto
dos ambientes destinado ao abrigo dos animais, surgem três disposições que a
habitação e o rústico podem assumir:

• Duas edificações separadas: forma mais recente e mais frequente na baixa


planície, geralmente construída onde há maior extensão da propriedade;
• Na mesma edificação, justapostas: forma tradicional na planície da colina;
• Na mesma edificação, sobrepostas: forma característica da montanha, onde
as propriedades são extremamente pequenas.

Estilisticamente, distinguem-se os vários tipos de habitação baseando-se em


características peculiares predominantemente formais, como a forma do telhado, sua

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

inclinação, os materiais utilizados etc. Este método volta-se ao exterior da edificação


que é considerada, em seu interior, pelo método estrutural.
Quando os italianos chegaram ao rio Grande do Sul, só restou ocupar a
encosta superior da Serra, região montanhosa, cheia de pedras e de terras pouco
fecundas (LORENZATTO, 1998). Como não havia a presença de arquitetos e
engenheiros, os imigrantes usaram sua criatividade e conhecimentos trazidos da
Itália nas construções. Por isso, as casas mais antigas têm um padrão uniforme de
construção, semelhante às residências da Itália, daquela época (COSTA, 1974).
Muitas manifestações culturais desenvolvidas no Brasil são semelhantes com as
do Vêneto, região de onde veio a maioria dos imigrantes. A produção de uva e vinho,
trazida pelos imigrantes, por exemplo, se expandiu por toda a região, tornando-se
a base da economia da região italiana do Rio Grande do Sul (FILIPPON, 2007).
A construção colonial rural se caracterizou pela simplicidade, produção
autônoma dos materiais, e por não possuir técnica especializada. Como a maior
parte dos imigrantes foi procedente do Vêneto, uma região em parte montanhosa,
os colonos tinham já prática na construção com a pedra. O mesmo não acontecia
com a madeira, material escasso na Itália, e cuja maestria tardou a se conseguir
(BERTUSSI, 1987).

A ARQUITETURA DA IMIGRAÇÃO NA SERRA GAÚCHA

CONSTRUÇÕES PROVISÓRIAS

De acordo com Posenato (1983), as primeiras habitações, dispensando qualquer


tipo de técnica, planejamento ou conforto, seriam substituídas por edificações
permanentes, à medida que as etapas de povoamento avançassem e a vida colonial
estivesse sedimentada. Posenato (1983) elenca então, três etapas de acomodações
temporárias das famílias: os abrigos improvisados, as choupanas e palhoças e as
cabanas.

ARQUITETURA PERMANENTE

Para a arquitetura permanente, Posenato (1983) estabeleceu três fases lógicas. A


evolução das construções acompanha as mutações e os sentimentos da sociedade. Na
imigração italiana, cada momento psicológico corresponde a um momento distinto
de arquitetura.

• PERÍODO PRIMITIVO

Nesse período, as edificações construídas aumentaram em relação às


provisórias. Possuíam a cozinha separada, porão semiescavado ou em alpendre,
pavimento residencial, aproveitamento da água furtada e sótão para cereais.
Os materiais eram feitos em casa, a mão. A cobertura era feita geralmente em
quatro águas com tabuinha. A expressão plástica é simples, assim como sua estrutura.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

• PERÍODO DE APOGEU

Após cerca de duas décadas de ocupação, havia fartura e quase autossuficiência


de tudo, graças ao solo fértil, a policultura e muito trabalho. Isso dava ânimo aos
imigrantes italianos, que se fascinavam com suas terras e trabalhavam com entusiasmo.
As residências possuíam de três a quatro pavimentos, e telhado em quatro
ou duas águas e coberta com tabuinhas, telhas de barro ou aço galvanizado, com
cozinha em anexo ou separada. Os elementos construtivos são limitados ao essencial,
sem ornamentação e linguagem decorativa. Já no sistema construtivo, as estruturas
são arrojadas.

• O PERÍODO TARDIO

Os imigrantes passaram a vender o excedente de produção, fazendo com que


o consumo doméstico fosse comedido. Os colonos passaram a ganhar lucros e ter
capacidade aquisitiva. Em consequência, teve predomínio o material beneficiado
mecânico-industrial, a mão-de-obra profissional na área de trabalho.
As casas, já com janelas envidraçadas, diminuíram de tamanho em comparação
com a fase do apogeu, voltando a possuir porão, geralmente semiescavado, com
paredes de pedra e um pavimento residencial. O sótão, quando utilizado, era para
dormitório e não mais para armazém de grãos. Ainda se utilizavam de telhas de
tabuinha, mas geralmente telhas de barro ou aço galvanizado cobriam as casas de
duas águas.

A ARQUITETURA NO NOROESTE DO ESTADO

Passados quinze anos da chegada ao solo gaúcho, os colonos italianos já


iniciavam um novo processo de relocação territorial, migrando em busca de novas
regiões. As terras recebidas eram fracas, empobrecidas pelas constantes erosões e,
em sua grande maioria, pedregosas e íngremes. Com famílias já numerosas, que
se multiplicavam, partiram para a colonização de terras virgens (LORENZATTO,
1998).
A herança cultural dos italianos transpassou os limites do além mar.A habilidade
artesanal dos colonos – marceneiros, pedreiros, e ferreiros – já atuava nas primeiras
habitações. Da mesma forma que elas se aprimoraram pela prática e evolução
dos períodos da arquitetura, serviram de ensinamento para seus descendentes
(POSENATO, 1983).
Como afirma Posenato (1983), entre 1875 e 1914, inseriram-se, no Rio Grande
do Sul, entre 80 a 100 mil italianos. Colonizadores das antigas colônias contribuíram
com o mais representativo patrimônio edificado, que dentre seus períodos elencam-
se: construções provisórias: primeira década da imigração; Período primitivo:
segunda década; Período de apogeu: cerca de 1890 até em torno de 1930; Período
tardio: cerca de 1930 até fins da década de 60;
A partir das tipologias encontradas na mesorregião Noroeste do estado, em sua
grande maioria residenciais, classificamos um terceiro momento da arquitetura da

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

imigração, denominado arquitetura migrante, conforme comparativo em Posenato


(1983). Esta é posterior às construções provisórias e à arquitetura permanente,
implantadas na região serrana.
A partir disso, exemplificam-se algumas tipologias residenciais, considerando
o terceiro período:

Figura 1: Residência da família Polla, Lajeado Capoeira, Tuparendi - RS

Fonte: Jaqueline Petenon Smaniotto

Figura 2: Antiga residência da família Capellari, Lajeado Capoeira, Tuparendi – RS

Fonte: Jaqueline Petenon Smaniotto

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 3: Antiga residência da família Cembranel, Esq. Tucunduva, Tucunduva – RS

Fonte: Jaqueline Petenon Smaniotto

Figura 4: Residência de família desconhecida, Esq. Tucunduva, Tucunduva – RS

Fonte: Jaqueline Petenon Smaniotto

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o desenvolvimento da pesquisa, possibilitou-se o estudo da arquitetura


na região Norte da Itália – Vêneto – bem como suas referências trazidas para o
Sul do Brasil, a partir do qual se derivou para os demais estados e regiões, como a

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

mesorregião Noroeste do Rio Grande do Sul, objeto deste estudo.


Com o objetivo de identificar e classificar as tipologias da arquitetura da
imigração italiana, o trabalho analisa as características e períodos já existentes, como
a arquitetura rural predominante na região vêneta e, também, aquela implantada na
serra gaúcha.
Através da migração de descendentes dos colonizadores italianos para a
mesorregião Noroeste do estado, as técnicas, os ensinamentos herdados e, sobretudo,
a identidade puderam imergir em novos espaços. Transcendendo fronteiras físicas e
culturais, a identidade da imigração italiana reconstruiu-se e originou um patrimônio
edificado em diversas regiões no Novo Mundo.
A pesquisa almeja a catalogação das diferentes manifestações desta identidade,
atrelada à arquitetura e que, por meio de uma análise construtiva e/ou estilística,
elencará, na continuidade do estudo, os períodos de estabelecimento na mesorregião.
Caracterizando-se a partir de partido arquitetônico, composição volumétrica,
aplicação das técnicas construtivas, bem como de materiais e organizada de maneira
cronológica, esta forma de construir e habitar peculiar somará ao Patrimônio
Cultural Material e Imaterial brasileiro.

REFERÊNCIAS

BERTUSSI, Paulo Iroquez. Elementos de arquitetura da imigração italiana. In:


WEIMER, Gunter. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Mercado Aberto,
1987.
CENNI, Franco. Italianos no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2003.
COLOGNESE, 2004, apud. BADALOTTI, Claudine Machado. Arquitetura e etnicidade:
patrimônios materiais e imateriais na rota turística caminhos de pedra. Revista discente do
Programa de Pós-Graduação em História-PUCRS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.
COSTA, Rovílio; COSTELLA Irineu; SALAME, Pedro A.; SALAME, Pedro J. Imigração
italiana no Rio Grande do Sul: vida, costumes e tradições. Porto Alegre, Escola Superior
de Teologia São Lourenço de Bríndes: Sulina, 1974.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002.
FILIPPON, Maria Isabel. A casa do imigrante italiano, a linguagem do espaço de
habitar. Dissertação (Mestrado em Letras e Cultura Regional), Universidade de Caxias do
Sul, Caxias do Sul, 2007.
FROSI, Vitalina Maria; MIORANZA, Ciro. Imigração Italiana no nordeste do Rio
Grande do Sul. Caxias do Sul: Movimento, 1975.
GIRON, Loraine Slomp. A imigração italiana no RS: fatores determinantes. In: LANDO,
Aldair Marli; DANACAL, José H.; GONZAGA, Sergius (org) RS: Imigração & Colonização.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

LAZZAROTTO, 1971, apud. COSTA, Rovílio; COSTELLA Irineu; SALAME, Pedro


A.; SALAME, Pedro J. Imigração italiana no Rio Grande do Sul: vida, costumes e
tradições. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Bríndes: Sulina, 1974.
LORENZATTO, Antônio Domingos. Os Vênetos nossos antepassados. Porto Alegre:
Suliani, 1998.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e
nos EUA. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: EST/EDUCS, 1983.
PRADO JÚNIOR, Caio, 1970, apud LANDO, Aldair Marli; DANACAL, José H.;
GONZAGA, Sergius (org). RS: Imigração & Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1980.
SANTOS, Luciano dos. As Identidades Culturais: Proposições Conceituais e Teóricas. In:
Revista Rascunhos Culturais, Coxim/MS. v. 2, n. 4, p. 141-157. jul/dez 2011.
SCALZER, Simone Zamprogno; GENOVEZ , Patrícia Falco. A configuração urbana
e identidade italiana em Santa Teresa/ES. Mariana / MG: XVIII Encontro Regional
(ANPUH-MG), 2012.

136
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CULTURA E TERRITORIALIDADE POMERANA


CARMO THUM1
ERINEU FOERSTE2

INTRODUÇÃO

O presente texto busca debater a noção de território e territorialidade na


interface com o conceito de cultura a partir dos processos de extensão e pesquisa
desenvolvidos pela FURG e pela UFES.
Nesse trabalho, buscamos compreender a presença do segmento pomerano
no cenário da luta por identidade e quais as estratégias que as universidades têm
desenvolvido para dar voz e reconhecer os saberes de tradição do segmento
pomerano.
Para tanto, abordamos aspectos que caracterizam ‘Povos e Comunidades
Tradicionais’ tendo como centro da discussão as ações desenvolvidas com o segmento
‘Povo Pomerano’. Do conjunto de 28 segmentos presentes no Conselho Nacional
de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), o Povo Pomerano é um dos casos
que, histórica e antropologicamente, tem a língua como um dos seus instrumentos
de resistência. Presentes na Serra dos Tapes, no Bioma Pampa (RS), no sudeste
brasileiro (ES), no Bioma Mata Atlântica e na Região Amazônica (RO), mantém
suas tradições, seus ritos e o modo de vida camponês, a partir da vida comunitária e
do uso da língua comum: o pomerano.
A oralidade nos modos de transmissão promove os saberes de tradição.
Processos de registro do modo de vida associados à produção da identidade vêm
sendo estabelecidos ao longo das duas últimas décadas. Nos espaços da UFES e da
FURG, ações de registro da memória e de promoção da identidade fortalecem a
luta política e empondera sujeitos. Nossa proposta é compreender e identificar as
relações instituídas nesses espaços e a produção acadêmica vinculada.
Do ponto de vista de conceituação formal, encontramos no Decreto
6040/2007 a descrição: ‘Povos e comunidades tradicionais são grupos que possuem
suas próprias formas de organização, ocupam e usam territórios e recursos naturais
1  Em Pós-Doutorado no PPGE-UFES, Doutor em Educação (UNISINOS), Professor Universitário no Instituto
de Educação da FURG. Professor Permanente do PPGEdu-FURG. E-mail: [email protected]
2  Doutor em Educação (PUC/RJ). Professor Universitário. Membro do PPGE-UFES. E-mail: erineufoerste@
yahoo.com.br

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como condição para a reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,


utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição’.
Para dar conta, em parte, da complexidade do tema, trataremos dos conceitos
de território e territorialidade, cultura, modo de vida. Esses elementos contextuais
servem de base para uma compreensão ampla do tema. No específico, ações de
indissociabilidade entre Pesquisa-Extensão-Ensino, desenvolvidas na FURG e na
UFES, serão objeto de análise em especial dos projetos relacionados ao tema e
coordenados pelos autores do texto.

APROXIMAÇÕES AS IDÉIAS DE TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADES

O conceito de espaço geográfico, embora inclua presença humana na paisagem,


apresenta limites para dar conta da complexidade do que vem a ser o mundo da vida
nos territórios de povos e comunidades tradicionais. Para ampliar a compreensão,
sem negar a validade do conceito geográfico, consideramos que a noção de
território e territorialidade nos ajuda a agirmos reflexivamente, a partir de uma
realidade complexa que é o espaço de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais.
A definição mesma de Povos e Comunidades Tradicionais já aponta para isso ao
considerar que: ‘Povos e comunidades tradicionais são grupos que possuem suas
próprias formas de organização, ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para a reprodução cultural’ (Dec.6040/2007; THUM, 2017).
Para uma melhor compreensão de sua distribuição geográfica no Brasil,
contextualizamos os diferentes territórios:
No Bioma Mata Atlântica (ES), na região sudeste do Brasil, a presença de
comunidades pomeranas do Espírito Santo se dá em diferentes municípios, a saber:
Vila Pavão, Itarana, Pancas, Santa Maria de Jetibá, Baixo Gandu, Domingos Martins,
em especial. Em boa parte desses municípios capixabas, movimentos de promoção
da língua tem um histórico de mais 15 anos (quinze) e há produção de políticas
públicas de cultura de um modo mais expandido.
No Bioma Pampa, situado na região Sul do Brasil (RS), especialmente na Serra
dos Tapes, a presença pomerana se faz presente fortemente em 7 municípios, a saber:
Pelotas, São Lourenço do Sul, Canguçu, Arroio do Padre, Turuçu, Cristal, Camaquã.
Considera-se também que há comunidades pomeranas em outros municípios,
mas em menor quantidade percentual de presença. Sempre situados nos espaços
do campo, as comunidades pomeranas organizam o mundo da vida em torno da
agricultura familiar. Mantém suas tradições, seus ritos e o modo de vida camponês,
a partir da vida comunitária e do uso da língua comum: o pomerano.
No Bioma Cerrado, também na região Sudeste do Brasil, em Minas Gerais
(MG), Itueta é o município de maior presença de pomeranos, logicamente que
no seu entorno também há comunidades pomeranas. Há presença de pomeranos
em outros municípios de Minas Gerais e por todo o Vale do Rio Doce, contudo, o
processo de pesquisa e de luta organizada ainda é recente nesses territórios, havendo
somente momentos e espaços pontuais de visibilidade, nos municípios não citados.

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No Bioma Amazônico (RO), na região Norte do Brasil, em pelo menos


3 municípios (Espigão do Oeste, Pimenta Bueno, Cacoal) há presença viva da
cultura pomerana, espaços nos quais também a presença da cultura se faz forte.
Os municípios de entorno desse território contam também com a presença de
comunidades pomeranas. O espaço geográfico desse cenário é organizado a partir
dos critérios de loteamentos promovidos pelo governo brasileiro. Boa parte dos
pomeranos da Região Amazônica são migrantes de comunidades do ES que, na
década de 1970, foram em busca de novas terras, dentro da proposição de ocupação
territorial do sertão que o governo brasileiro promovia.
Compreender território somente como uma fronteira física reduz a
compreensão a aspectos legais e formais do Estado-Nação. Nesse sentido, a noção
que trabalhamos nesse texto busca ampliar essa noção de ‘espaço social’, incluindo as
questões do mundo da vida, dos modos de uso do espaço e dos processos simbólicos
a ele associados. Nesse sentido, nem a idéia de Bioma que utilizamos para apresentar
os diferentes cenários é suficiente, contudo, servem para situar geo-ambientalmente
os territórios. Há vivências territoriais que são impactadas pelos Biomas e isso nos
indica que há territorialidades.
Consideramos que o conceito de território apresenta uma potência de
compreensão de uma realidade ampla, diversa e de maior complexidade capaz
de permitir compreender o universo dos povos e das comunidades tradicionais.
Incluímos, portanto, no conjunto das relações, a experiência da vida, a memória e as
formas de transmissão do conhecimento, os processos de uso da terra e as relações
simbólicas se estabelecem com e no espaço.
No mundo contemporâneo, realidades múltiplas se expressam e se conformam,
muitas vezes, incorporando processos amplos e ganhado conformações complexas.
É o Caso da realidade presente nos territórios de Povos e Comunidades Tradicionais.
Esses cenários se caracterizam por ter uma mesma base: a terra, o uso da terra, a
produção para autoconsumo, os modos simbólicos de compreender, os saberes de
tradição, a oralidade. Nesses cenários, recorrentemente, os processos de silenciamento
das culturas foi muito impactante.
Os processos cíclicos, de longo e de curto prazo, produzem uma memória que
é narrada como produto da experiência humana no espaço e, portanto, espaço e
cultura são elementos constitutivos da noção de território e territorialidade. Dessa
maneira, território significa também o mundo simbólico. As dimensões do mundo
simbólico são indissociáveis das práticas cotidianas e as práticas cotidianas impactam
nos usos e modos de ser do território. Para o caso desse texto, os territórios a que
nos referimos, em especial, são os espaços da vida do segmento ‘Povo Pomerano’.
Vale considerar que, ao nos referirmos aos territórios a partir da noção de
limites municipais, não encontramos formas de tratar a comunidade pomerana
adequadamente, justamente porque nossa forma de organização territorial não
segue a lógica das fronteiras instituídas legalmente. Por isso, sempre reafirmamos
a perspectiva de que os entornos também são espaços potenciais de presença de
comunidades pomeranas, contudo, para que o leitor tenha uma localização espacial
mínima, a referência a municípios se faz necessária. A escolha de fazê-lo por biomas

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tem, para nós, uma relevância que implica cultura, natureza e modos de vida.
Dos territórios acima nominados, dois deles são espaços em que processos de
extensão universitária têm incidência considerável. Essas ações envolvem Extensão-
Pesquisa-Formação. Diante disso, no próximo tópico abordaremos essa dimensão
da extensão como forma de compreender a relação estabelecida e os impactos na
promoção da cultura, de modo geral.

AÇÕES DE EXTENSÃO E PESQUISA EM DOIS ESPAÇOS: UFES E DA FURG

Os espaços de formação-pesquisa e extensão da UFES apresentam, nos


processos da Pedagogia da Terra (1999) e da Educação do Campo (2008), proposições
de uma relação articulada com os movimentos sociais balizados pelo conceito de
parceria. A partir de ações de Formação Continuada, que articulam pesquisa com
sujeitos de diferentes territórios do estado do Espírito Santo e segmentos de Povos
e Comunidades Tradicionais, o processo produziu resultados de fortalecimento dos
movimentos organizados e de produção acadêmica dos sujeitos da luta.
As problemáticas abordadas nesses processos nascem dentro de uma proposição
dialogada com os sujeitos e suas demandas, buscando atender e compreender as
demandas das realidades dos contextos dos territórios impactados, conforme nos
informa Foerste (2013):

A problemática investigada no “Projeto de Formação Continuada de Professores do Campo” definiu-


se a partir de demandas de formação de professores para atuar em contexto campesino, que tem
especificidades étnicas, culturais, bilingüismo e o modo de produção, como balizadores de uma
proposta de educação de qualidade. Os objetivos da formação focavam a pesquisa, visto que buscava
diagnosticar demandas de formação continuada junto a professores do campo em municípios do
interior do ES. A formação possibilitou elaboração de material educativo que apresentou síntese
do aporte teórico prático que fundamenta discussões acerca da interculturalidade e educação do
campo, voltado ao contexto capixaba’ (p. 07).

A estratégia se amplia e ganha profundidade na pesquisa, quando é criado o


programa de Educação do Campo na UFES (2008), momento em que se passa
a produzir em maior quantidade materiais didáticos e, especialmente, formar
pesquisadores das comunidades a partir do Programa de Mestrado. Associado a esse
Movimento, criou-se também o Curso de Especialização em Educação do Campo:
Interculturalidade e Campesinato em Processos Educativos, no ano de 2009,
ampliando o impacto nos territórios por meio da estratégia de educação à distância
e localização da ação em diferentes polos (total de 10 Polos – UAB-ES).
De modo geral, essas ações de extensão e pesquisa e formação envolveram
temáticas da Educação do Campo, das lutas históricas por direitos, da interculturalidade
e interdisciplinaridade, da escolarização entre descendentes de diferentes etnias
presentes nos municípios implicados, de Educação e meio ambiente, entre outras.
O programa atende até o momento em média a 48 municípios do total de 78
municípios capixabas. Essas proposições promovem um movimento profundo de

140
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

reflexão da realidade local.


A longo prazo, o Grupo de Pesquisa (CNPq) “Culturas, parcerias e educação
do campo” da UFES, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação
do Centro de Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo, produziu
dissertações e teses derivadas desse processo de formação e um conjunto de
publicações em livros que publicizam a produção do conhecimento, produto dos
processos de Pesquisa-Extensão-Formação implementados.
Na atualidade a produção bibliográfica apresenta uma produção significativa
de obras, grande parte delas publicadas dentro da Coleção ‘Educação e Culturas’ da
Editora APRISS e outra parte publicada pela Editora da UFES.
No espaço da FURG, as ações de extensão têm impactos de longo prazo
e em diversos territórios. O Núcleo Educamemória exercita os fundamentos da
Extensão-Pesquisa- Formação em suas proposições nos diferentes programas em
que desenvolve suas ações. As temáticas em questão, que perpassam as ações do
Núcleo Educamemória – IE/FURG, tem base nos campos temáticos da memória,
das docências e discências, das (Auto)biografias e histórias de vida, na cultura local
e nas formas estéticas de produção do conhecimento. As estratégias de interação
se dão por processos baseados nos princípios da Pesquisa-Ação, articuladas com
diferentes sujeitos sociais, do campo e da cidade, movimentos sociais e de identidade,
inclusive de Povos e Comunidades Tradicionais.
Nos rastros metodológicos da memória e do método (auto)biográfico, tempos
docentes de Educadores, consideramos as ações de Ensino-Extensão-Pesquisa-
Formação, espaços de reinvenção, locais de ‘entremeio’ ao instituído e o novo a ser
forjado.
O Núcleo de Pesquisa-Extensão-Formação Educamemória atua a partir da
Pesquisa-Ação. Tem como foco principal o registro das culturas locais, a memória,
os modos de vida e as narrativas. As análises interpretativas visam a ressignificar a
memória e a história e os processos educativos presentes no espaço.
Ao longo de uma década, o núcleo implementou processos contínuos de
pesquisa e intervenção nos espaços do campo e da cidade, problematizou a questão
da vida, da memória e do pertencimento, e promoveu o empoderamento dos
sujeitos a partir do estranhamento de si e do lugar em que habitam e trabalham.
A partir de 2007, foram engendrados projetos iniciais e, em 2009-2010, esses
foram formalizados como Programa Permanente de Extensão-Pesquisa-Formação.
O Conceito de memória é compreendido como um instrumento de reinvenção
cultural e se implementa a partir de estratégias de registro do mundo da vida e das
Rodas de Diálogos, dos espaços de problematização e da interpretação coletiva.
Como articulação de Núcleo promove eventos anuais de caráter onde são
partilhadas e sistematizadas as principais ações. Esses eventos tem participação de
professores que atuam das redes públicas e lideranças comunitárias, agentes públicos,
secretários municipais de da região onde acontece o evento. Portanto, os eventos se
dão no espaço mesmo do processo de campo e por vezes no espaço da universidade.
A articulação metodológica que exercita o diálogo entre graduandos,
pesquisadores e comunidade local promove a relação Universidade-Sociedade.

141
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Através de ações de registro da Memória, Rodas de Diálogos, conferências e


seminários, essa articulação possibilita a partilha das pesquisas-formação realizadas
em diferentes espaços culturais, compartilhada e expandida a partir da interação
com diferentes sujeitos: professores, lideranças locais, professores das escolas públicas,
jovens, velhos, graduandos, guardadores de memória. Os Programas e as ações
desenvolvidos são potenciais instrumentos articuladores de processos formativos,
promovem a educação popular, e valorizam a diversidade cultural e a participação
social numa ação simultânea de diferentes sujeitos em diferentes espaços.
As articulações possibilitadas pela ação de Extensão impactam as questões
relativas à presença e relação do Estado para com a sociedade local, promovem
Participação Social, induzem Políticas de Memória, reconfiguram currículos
escolares e estabelecem pauta para a manutenção da Juventude no campo e nos
espaços urbanos.
Nesse sentido, os Programas e Ações do Núcleo abrangem a formação geral,
a formação de professores e gestores das redes de Ensino, a formação de lideranças
de representantes de organizações da sociedade civil, a formação de iniciação
científica de extensão-pesquisa, a formação de pós-graduação e a produção de
espaços de Memória das culturas locais. Promove-se, a partir de suas estratégias de
ação, a produção de conhecimento sobre as práticas articuladas de cultura, educação
popular e educação integral, que, no seu conjunto e como resultado, fomentam a
participação social e a cidadania ativa.
O público impactado diretamente é toda a comunidade, tendo por
especificidades os alunos e professores das escolas públicas, os agentes culturais locais,
os segmentos de povos e comunidades tradicionais de diferentes territórios.
Grande parte das atividades propostas são articuladas em parceria de trabalho
com grupos sociais organizados e Escolas Básicas do Campo e da Cidade, Movimento
em defesa dos animais, movimentos identitários, grupos de intervenção estéticas;
Universidades parceiras (UFPel e UFES e UniPampa, UFT, UFSC), a partir de
professores-pesquisadores que compartilham o processo extensionista e de pesquisa.
O Núcleo Educamemória articula sua ação com diferentes municípios,
envolvendo sujeitos e instituições de Educação básica, e faz parcerias com associações
da Sociedade Civil e com instituições de Ensino Superior. A ação pesquisadora e
extensionista implementada impacta também na formação continuada de professores
e no registro do patrimônio cultural dos povos e comunidades tradicionais do
Pampa.
Em alguns casos, as ações se implementam por dentro de Cursos de Graduação
e Especialização como foi o caso do Curso de Especialização em Educação de Jovens
e Adultos da FURG, no qual se propuseram ações de sistematização da docência,
em espaços formais e não formais a partir de pesquisas que têm como base o estudo
das comunidades locais e suas relações com a escola, a juventude e a Educação de
Jovens e Adultos. Nesse espaço-tempo, o Grupo de Pesquisa EDUCAMEMÓRIA
– Educação e Memória/CNPq, em parceria com o Curso de Especialização em
Educação de Jovens e Adultos na Diversidade (EJA e Diversidade) do IE/FURG,
produziu TCCs sobre os temas afins.

142
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Na relação interinstitucional entre FURG e UFPel, em diferentes momentos


e com diferentes pesquisadores, foram desenvolvidas ações de grande impacto no
cenário regional e assim também se deu com a Unipampa, o IFRS e se dá com a
UFT e a UFES. As relações Internacionais se dão no âmbito da Rede RIAPEP:
Red de Investigación Acción Participativa y Educación Popular en Universidades
Públicas que envolve UBA, UNJU, UNPA, FURG.
Essas interações institucionais aprofundaram estudos dos temas: da Educação,
Mundo rural e Escrita da vida; da religiosidade e do fazer educativo proposto
pelas organizações comunitárias; das perspectivas pedagógicas e de ensino das
escolas atuantes no espaço da Serra dos Tapes. As pesquisas problematizaram,
também, as relações de produção no mundo camponês, a cultura da alimentação,
a patrimonialização da cultura e o campesinato. Algumas dessas dimensões são
discutidas nos artigo ‘A cultura local e as interfaces com a memória entre pomeranos
na Serra dos Tapes’ (WEIDUSCHADT; THIES; THUM, 2018).
As interações de pesquisadores geraram produtos acadêmicos (em diferentes
universidades parceiras), tais como: TCCs, Dissertações de Mestrados e Teses de
Doutorado. Foi o caso de uma Dissertação de Mestrado que tematizou a ‘Horta e
o ensino de Ciências em escolas do campo’; de outra que tematizou os ‘Modos de
comer, modos de viver e suas interfaces com a cultura e o desenvolvimento local
a partir de famílias rurais pomeranas de São Lourenço do Sul’; de pesquisas com
a Infância Pomerana e o protagonismo das mesmas na produção de imagens de si;
de produção de Acervos de História da Educação das escolas rurais dos territórios
pomeranos; de estudos sobre as Metodologias do Ensino de História tendo por base
a cultura local de uma das escolas envolvidas, a memória da cultura local e de como
se dá a ação curricular e quais seus impactos na ação pedagógica da escola das ações
desenvolvidas em parceria com a FURG; entre outras.
Num plano mais amplo, encontram-se as interações entre UFES e UFT, com
as quais estabelecemos profícuo diálogo de produção de conhecimento com os
temas da Educação no Campo: interculturalidade e mundo camponês em processos
educativos que buscam possibilitar aos professores dos diferentes territórios uma
prática social articulada a partir dos processos histórico dos movimentos sociais.
O debate da Memória e da Educação no mundo camponês aflorou o conceito
da Cultura do Silêncio no território do povo pomerano, no marco das premissas
do conceito de Povos e Comunidades Tradicionais. Nesse plano mais amplo, estão
também as pesquisas sobre os processos educativos formais e não formais que
envolvem o fazer docente e os entornos dos contextos educativos.
Esses movimentos, propostos na forma de Programas, atendem, em profundidade,
o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, pois envolvem
acadêmicos de cursos de graduação e de pós-graduação, comunidades camponesas,
comunidades urbanas, professores de escolas públicas das redes municipais, bolsistas
de pesquisa de graduação e pós-graduação, articulado a partir dos projetos político
pedagógicos dos cursos de Graduação e pós Graduação da FURG. Podemos
destacar, no âmbito da FURG, para fins de registros, as relações articuladas com os
Cursos de Pedagogia presencial e EaD, Licenciatura em Geografia, Licenciatura em

143
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

História, Especialização em Educação de Jovens e Adultos, Graduação em Pedagogia,


Programa de Pós Graduação em Educação – PPGEDU.
O impacto social dessa atividade tem sido considerável, uma vez que a resultante
dos projetos desenvolvidos ao longo da década tem possibilitado a construção de um
novo modo de compreender a ação de ensino e pesquisa-extensão. O movimento
de problematização da realidade local impacta nos aspectos curriculares das escolas,
fazendo com que os Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, as comunidades
organizadas, os grupos de juventude e os Movimentos Sociais proponham, em
suas estratégias, uma nova compreensão da realidade local por meio da memória
e da produção de condições de permanência nos espaços-territórios, a partir da
consciência do pertencimento.
Nesse sentido, os grupos comunitários têm apresentado propostas de criação
de espaços de memória, alterações de currículo, reengenharia na gestão escolar e
reinvidicado aos gestores públicos atendimento a suas demandas, que são específicas,
próprias de seus territórios.
O conjunto dessas atividades tem impactado o cenário político regional e
nacional, pois, através de ações articuladas, estamos participando das discussões sobre
a diversidade e o direito dos Povos Tradicionais (CNPT), o que inclui os pomeranos
e os quilombolas, pescadores artesanais, num total de 28 segmentos. Esse debate
tem sido realizado também com o IPAHN, com o Ministério da Cultura e do
Desenvolvimento Social, com o Ministério de Direitos Humanos, com o Ministério
do Meio ambiente, e a partir de 2018 com e no Conselho Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais (CNPCT).
As proposições gerais dos temas da sustentabilidade e do meio ambiente estão
presentes, pois, ao propor análises e ações que busquem estratégias de permanência
no território, sujeitos de Povos e Comunidades tradicionais envolvem-se em
temáticas de conservação pelo uso, inseparabilidade de Cultura-Ambiente, saberes
de tradição, oralidade e cartografias do mundo da vida.
Como programa de extensão-pesquisa, em sua amplitude, percorre temas
interdisciplinares e propõe ações de protagonismo social a partir da interação
transformadora, tendo como estratégia a pesquisa-ação e a problematização da
realidade local com vistas a promover ações de conhecimento, guarda, registro e
políticas públicas de permanência nos territórios e valorização da cultura local e sua
diversidade. Nesse sentido, o caráter de inter-trans-disciplinariedade e Tempos da
Vida se expressam ao dialogar com sujeitos sociais envolvidos.
Entre os projetos de extensão a serem destacados, estão:

1. História, Memória e Educação: Cultura Pomerana em Diálogo (2007 a


2009)
2. Programa Memória e Educação: Cultura rural em diálogo (2011-2012)
3. Programa Educação e Memória: diálogo com a diversidade camponesa
(2014-2015)
4. Infâncias Camponesas: espaços de sociabilidade e imagens do Mundo da
Vida em Contexto Educativo (2014-2016)

144
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

5. Memória, Educação e Patrimônio: a paisagem arquitetônica, o mundo da


Casa e as Técnicas Construtivas da Serra dos Tapes (2014-2016)
6. Programa Memória, Educação e Patrimônio: a paisagem arquitetônica do
Povo Tradicional Pomerano (2014-2018)
7. Memória, Cultura e Promoção da Língua Pomerana (2016-2017)
8. Protagonismo das crianças: memória, espaços e imagens registradas pela
Cultura Infantil Camponesa (2017-2019)
9. Rodas de Diálogos com Povos e Comunidades Tradicionais: memórias,
interculturalidades, sóciobiodiversidades e Patrimônios (2018)
10. Educação, Cultura, Memória (2018): territorialidades do educativo
11. Pesquisa 1: Acervo imagético pomerano: a cultura local da Serra dos Tapes
(2010-2018)
12. Pesquisa 2: Os pomeranos, a cultura local e os processos formativos (2009-
2018)
13. Pesquisa 3: Educação, cultura, memória: territorialidades do educativo
(2018-2022)

Essas diferentes ações, estruturadas pelo princípio da indissociabilidade na ação


universitária, se constituem num conjunto importante na relação Universidade e
Sociedade, buscando promover a autonomia e a emancipação dos sujeitos envolvidos.

CONCLUSÕES

Nos espaços universitários, os processos de direito a identidade e as temáticas


a ele associadas ganham amparo, tanto para a promoção da cultura, para o registro
da memória, quanto para a produção de conhecimento sobre o tema. Nesses casos,
a UFES e a FURG são espaços fundamentais, pois ambas impulsionam ações de
registro da memória e de promoção da identidade e produção do conhecimento
por meio de programas de Extensão-Pesquisa e Formação Continuada. Os temas-
conceitos da Territorialidade, da Oralidade, dos saberes de Tradição são presentes,
pois, ao problematizar os espaços da vida, essas dimensões ganham visibilidade, como
vimos na descrição das ações dos dois espaços.
Por meio da Extensão Universitária e dos processos de pesquisa associados a
essas práticas de extensão e formação, afloram os elementos da memória, da língua,
dos saberes de tradição que se transformam em instrumentos de resistência. Os
diferentes segmentos de Povos e Comunidades Tradicionais, em muitos casos, têm
alcançado alguma visibilidade por meio dessas articulações entre universidade e
sociedade.
No caso brasileiro, oficialmente, o processo de visibilidade das identidades dos
diferentes segmentos vem sendo possível a partir de 2004, quando da criação da
Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que, a partir do decreto
6040/2007, define o conceito de Povos e Comunidades Tradicionais que o Brasil
adota a partir da OIT 169 e da Convenção da Diversidade Biológica. No caso do
segmento pomerano, a produção da identidade vem sendo estabelecida ao longo

145
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

das duas últimas décadas, por processos de reconhecimento e de autodeclaração que


estão em curso, sendo que em cada um dos territórios tem-se um ritmo, um avanço
e uma complexidade própria.
A resultante desse processo, de longo prazo, é o fortalecimento da luta política
e o emponderamento de sujeitos locais, que, por atos de consciência identitária e
por produção de conhecimento, interferem na realidade local, potencializando a
reinvenção histórica.
Contudo, na atualidade e nos tempos vindouros, proposições como essas
correm sérios riscos de serem atrofiadas, pois, ao vivenciarmos um Estado impositivo
associado à lógica do capital de mercado e de financeirização da natureza, não há
espaços para as lutas identitárias associadas a proposições emancipacionistas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto No. 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional


de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm>.
Acesso em 20 mai. 2019
BRASIL. Decreto No. 8.750, de 09 de maio de 2016. Institui o Conselho Nacional
dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8750.htm>. Acesso em 20 mai. 2019
FOERSTE, Erineu. EDUCAÇÃO DO CAMPO E UNIVERSIDADE: avaliando
práticas de parceria na formação de professores. XXVI Simpósio Brasileiro de Política
e Administração da Educação. 27 a 30 de maio de 2013, Recife. Disponível em: <http://
www.anpae.org.br/simposio26/1comunicacoes/ErineuFoerste-ComunicacaoOral-int.
pdf>.
FORPROEX. Política de Extensão Universitária. Fórum de Pró-Reitores de Extensão
das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX), Manaus, Maio. 2012. Disponível em:
<http://proex.ufsc.br/files/2016/04/Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Extens%C3%A3o-
Universit%C3%A1ria-e-book.pdf>. Acesso em 09 nov. 2018.
THUM, Carmo. Povos e Comunidades tradicionais: aspectos históricos, conceituais
e estratégias de visibilidade. Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient., Edição especial
XIX Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, p. 162-179, junho, 2017. Disponível em:
<https://periodicos.furg.br/remea/article/view/6899>. Acesso em 30 nov. 2018.
WEIDUSCHADT, P., THIES,V. G., & THUM, C. A cultura local e as interfaces com
a memória entre pomeranos na Serra dos Tapes, Rio Grande do Sul. EDUCAÇÃO
E FILOSOFIA, 32(65). 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.
issn.0102-6801.v32n65a2018-03>

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MEMÓRIA DE INFÂNCIA: PROIBIDO CANTAR


EM ALEMÃO
SOLANGE DO CARMO VIDAL RODRIGUES1

À medida que passa o tempo, o esquecimento e a indiferença emergem das


profundezas do ser para destruir tudo aquilo que o indivíduo julgara eterno e
inamovível. É o que escreve Fernando Py ao prefaciar a edição de 2016 de Em
busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Nem mesmo o núcleo invariável do espírito,
que a filosofia clássica julgava formar a personalidade humana – diz Fernando Py –,
resiste à ação do tempo. “Submerso no tempo, o homem se desagrega por dentro e
nada mais subsiste, no velho, daquele jovem que um dia amou, fez uma revolução,
ocupou cargos na vida pública ou na iniciativa privada” (PROUST, 2016, p. 12).
A Memória, na obra de Proust aparece como tema básico. Não a memória
comum, produto da inteligência, e que a um ínfimo esforço é capaz de remeter
a fatos passados. Esta memória, que depende da vontade humana, tem função de
arquivo: fornece simplesmente fatos, datas, números e nomes. Mas não disponibiliza
as sensações que se experimentou outrora e que a habita a consciência de cada pessoa.
O prefaciador, a respeito de tempo e memória, diz que tais sensações jazem mais
ao fundo e só são despertadas pelo que Proust denominou memória involuntária
– aquela que não depende do esforço consciente de recordar, que está adormecida.
Um fato qualquer pode fazer subir à consciência.
A rememoração evidencia o retorno à consciência despertada de um
acontecimento reconhecido como tendo ocorrido antes do momento em que esta
declara tê-lo sentido, percebido, sabido. Paul Ricoeur em A memória, a história, o
esquecimento, escreve: “A marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo
da recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que
conclui o processo de recordação” (RICOEUR, 2007, p. 73).
Na obra de Proust, o processo da memória involuntária atua para a recuperação
do tempo perdido. Tempo que não existe mais, mas que continua a existir num
sabor, numa flor, numa árvore, num calçamento irregular ou nas torres duma igreja.
No ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, Walter Benjamin alude aos
aspectos voluntários e involuntários da memória que atravessam a obra proustiana

1  Doutoranda em História da Literatura – Universidade Federal do Rio Grande (FURG) – Professora na Rede
Pública Estadual – [email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

observando que, desde o início, se esclarece esta relação: “Nas reflexões que
introduzem o termo, Proust fala de forma precária, como se apresentou em sua
lembrança, durante muitos anos, a cidade de Combray, onde, afinal, havia transcorrido
parte de sua infância” (BENJAMIN, 1989, p. 106). Até aquela tarde, diz Benjamin,
em que o sabor da madeleine (espécie de bolo pequeno) o houvesse transportado de
volta aos velhos tempos, Proust estaria limitado àquilo que lhe proporcionava uma
memória sujeita aos apelos da atenção. Esta seria, conforme Benjamin, a mémoire
volontaire, a memória voluntária.
A evocação do passado, através dos esforços da inteligência, constitui trabalho
inútil, como se lê nas primeiras páginas da obra proustiana:

É trabalho baldado procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está
escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que este
objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar. Tal objeto depende apenas do acaso
que o reencontremos antes de morrer, ou que não o encontremos jamais (PROUST, 2016, p. 54).

Um objeto material, aquele cuja sensação, de forma involuntária, liberta o


passado escondido e traz à tona uma época longínqua:

[...] chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus
hábitos, um pouco de chá. A principio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando. Ela então
mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter
saído moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago (PROUST, 2016, p. 54).

A evocação das páginas proustianas remete a um tempo distante de minha


infância. O objeto material, aquele capaz de liberar o passado veio a mim através
de uma canção. Numa época natalina, visitando uma cidade do Rio Grande do
Sul, cuja população é formada, principalmente, por descendentes de alemães, ouvi
uma melodia que soou familiar vinda do interior de uma loja de brinquedos. A que
tempo me reporta, onde ouvi – indaguei na ocasião. Toda vez que somos despertos
por esses objetos, pelas sensações por eles desencadeadas, é como se perseguíssemos
o rumor de distâncias atravessadas: “Certamente, o que palpita desse modo, bem
dentro de mim, deve ser a imagem, a lembrança visual que se liga a um sabor, tenta
segui-lo até mim” (PROUST, 2016, p. 56).
A canção era a mesma entoada por minha avó materna. Em poucas ocasiões
ouviam-se canções em alemão, embora as crianças pedissem que ela repetisse ou
ensinasse a pronúncia correta das palavras. Nunca houve uma explicação clara para
o fato de que se proferissem os versos em tom de voz bastante reduzido. Tampouco
implicações a esse respeito foram repassadas explicitamente. De uma forma ou de
outra, ouviu-se o termo proibido. Era uma história de família. Nada mais. Talvez o
que minha avó e tias fizessem fosse apenas cumprir a lei. Significa dizer, cumprir
sem questionar.
A evocação de um tempo distante na memória individual atribuem marcas
de singularidade a este trabalho. Um aspecto importante a considerar é que, na

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condição de cidadãs brasileiras, comuns, com pouco acesso ao ensino formal, minha
avó e tias-avós, certamente, durante o período de repressão aos descendentes de
alemães, considerassem que o ideal fosse se portarem conforme o que era instituído.
Conforme os ditames do poder.
A lembrança situa-se no cruzamento entre a semântica e a pragmática, já que
ela é, alternadamente, buscada e encontrada. Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir
atrás de uma lembrança. Paul Ricoeur (2007, p. 25) remete ao que consta na Ética de
Spinoza, na Segunda Parte – “A Natureza e a Origem da Mente”, na sua Proposição
18: “Se o corpo humano foi, uma vez, afetado, simultaneamente, por dois ou mais
corpos, sempre que, mais tarde, a mente imaginar um desses corpos, imediatamente
se recordará também dos outros”. Tal axioma encaminhou-se à seguinte conclusão:

Compreendemos, assim, claramente, o que é a memória. Não é, com efeito, senão uma certa
concatenação de ideias, as quais envolvem a natureza das coisas exteriores ao corpo humano,
e que se faz na mente, segundo a ordem e a concatenação das afecções do corpo humano. Em
primeiro lugar, digo apenas que é uma concatenação de ideias as quais envolvem a natureza das
coisas exteriores ao corpo humano, e não que é uma concatenação de ideias, as quais explicam
a natureza dessas coisas. Pois trata-se, na realidade das ideias das afecções da corpo humano,
as quais envolvem tanto a natureza do corpo humano quanto a natureza dos corpos exteriores
(SPINOZA, 2009, p. 35).

São dois os pontos de partida no que tange à Memória e Imaginação,


conforme Ricoeur (2007): o primeiro é platônico, centrado no eikõn, trata da
representação presente de uma coisa ausente (preconiza a problemática da memória
pela imaginação); o segundo é aristotélico, centrado na representação de uma
coisa anteriormente percebida, adquirida ou aprendida (preconiza a inclusão da
problemática da imagem na lembrança).
As lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais
ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um
fundo memorial, com o qual nos podemos deleitar em estados de devaneio vago.
O indivíduo lembra daquilo que faz, experimenta, ou aprende em determinada
circunstância particular. Os encontros memoráveis prestam-se a ser rememorados:
“uma imagem composta dos despertares matinais na casa de Combrey assombra as
primeiras páginas da Busca ... proustiana” (Ricoeur, 2007 p. 42).
Em 1938, minha avó, Dona Adelina Brandenburg, estava em torno de 45 anos
de idade. Nessa época, já tivera oito gestações, sendo que perdera, nos primeiros
meses de vida, três de seus filhos. Os Brandenburg da família de minha avó materna
são oriundos de uma localidade correspondente à atual cidade de Feliz, no Rio
Grande do Sul. Minha mãe é sua filha mais nova e nasceu em 1932. Eu sou a sexta
filha, das dez crianças que minha mãe teve, e nasci no ano de 1963.
Ao prenúncio da segunda Guerra Mundial, escreve Sergio Roberto Dillenburg
no ensaio “Tempos de incerteza” constante no livro Nós, os teuto-gaúchos (1996),
o governo brasileiro voltou-se para as colônias alemãs e seus habitantes: “Para o
município de Santa Cruz do Sul, considerada uma das comunas de maior núcleo

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populacional de descendentes germânicos, o governo federal resolveu instalar um


Batalhão do Exército, oriundo do Terceiro Regimento de Infantaria, de Santa
Maria” (FISCHER; GERTZ, 1996, p. 269).
Eram frequentes as denúncias vindas de colegas de trabalho. Seguiam-se às
delações, em geral, o encarceramento. À medida que se intensificava a fiscalização
em relação ao uso da língua nacional, a prática de escutar as transmissões de rádio
das emissoras alemãs foi proibida. Nesse período, a ocupação do espaço radiofônico
para a Hora do Brasil foi tornada obrigatória. Cynthia Machado Campos, em A
política da língua na era Vargas: proibição de falar alemão e resistências no sul do Brasil
(2006) relata que uma dona de casa, alvo de delatores – “die Spitzeln” –, teve sua
casa invadida pela polícia. Denunciaram-na às autoridades por dialogar em alemão
com os filhos: “Tudo indica que algumas pessoas vizinhas, ou da comunidade, pagas
pelas autoridades, se prestavam à tarefa de ouvir, diante das portas e janelas alheias, o
idioma utilizado pelas pessoas nas falas domésticas” (CAMPOS, 2006, p. 25).
Uma intensa campanha de “aculturação” étnica era promovida, originando
o fechamento das tradicionais sociedades de canto, mantidas na maioria das
comunidades germânicas, e de qualquer forma de expressão. “Alguns policiais, por
exemplo, no intuito de comprar a crédito ou mesmo com intenção de calotear os
estabelecimentos comerciais, fichavam seus proprietários como nazistas, caso esses
não satisfizessem seus desejos” (FISCHER; GERTZ, 1996, p. 270).
Apenas em sociedades sem estrutura política hierárquica, e nesse sentido sem
poder, escreve Paul Ricoeur, poderia-se encontrar o fenômeno nu da ideologia
como estrutura integrativa de algum modo inocente. Definitivamente, diz ele, a
ideologia gira em torno do poder.

De fato, o que a ideologia busca legitimar é a autoridade da ordem ou do poder – ordem, no


sentido da relação orgânica entre o todo e a parte, poder, no sentido da relação hierárquica entre
governantes e governados. A esse respeito, as análises que Max Weber dedica às noções de ordem
(Ordnung) e de dominação (Herrschaft) tem, para nossa empreitada, um interesse considerável,
mesmo que o autor de Economia e Sociedade não trate tematicamente da ideologia e de sua
relação com a identidade. Toda a análise weberiana de poder gira em torno da pretensão de
legitimidade erigida por toda forma de poder, quer seja carismática, tradicional ou burocrática:
logo, tudo depende da natureza do nó – do nexus – que vincula as pretensões de legitimidade
levantadas pelos governantes à crença na dita autoridade por parte dos governados. Nesse nó
reside o paradoxo da autoridade (RICOEUR, 2007, p. 96).

A trama da vida coletiva e as pessoas em seu quotidiano familiar, à época


das lembranças a que me refiro neste ensaio, perpassam os anos correspondentes
a minha infância, entre 1967 e 1973. Houve grupos familiares que repassaram
suas tradições, histórias pessoais e, de certa forma, o idioma (com algumas perdas
lexicais) para as gerações posteriores. O grupo familiar a que eu pertenço, por razões
não explicitadas, não manteve o idioma e trouxe raros eventos que evocassem a
ascendência germânica e suas narrativas originárias.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O livro póstumo de Maurice Halbwachs, A memória Coletiva (1990), evidencia


que o pensamento do autor avançou por uma via na qual a sociologia não tinha
ainda penetrado. A obra traz consigo o acento que ultrapassa a sociologia “clássica”,
porque nele encontramos os elementos de uma sociologia da vida quotidiana ou,
mais precisamente,“as pressuposições que permitiriam à análise sociológica examinar
as situações concretas nas quais se acha implicado o homem de cada dia na trama da
vida coletiva” (HALBWACHS, 1990, Prefácio).
A memória individual, diz Halbwachs (1990, p. 36), não está inteiramente
isolada e fechada. Um homem, ao evocar o próprio passado, tem frequentemente
necessidade de se reportar às lembranças de outras pessoas. Ele resgata pontos de
referência que existem fora dele e que são fixados pela sociedade. Durante o curso
de vida de uma pessoa, o grupo nacional de que ela fazia parte foi o teatro de
certo número de acontecimentos, dos quais a pessoa pode dizer lembrar-se, contudo
não conheceu, a não ser por jornais ou pelos depoimentos daqueles que deles
participaram diretamente. Esses acontecimentos ocupam um lugar na memória da
nação. E quando os evocamos, somos obrigados a confiar inteiramente na memória
dos outros, que não vem completar ou fortalecer a memória individual, mas é a
única fonte daquilo que se quer repetir. Cada um carrega consigo uma bagagem
de lembranças históricas, que pode ampliar pela conversação ou pela leitura. Mas
é uma memória emprestada e que não é a sua. No pensamento nacional, esses
acontecimentos deixaram um traço profundo, não somente porque as instituições
foram modificadas, mas porque a tradição nelas subsiste muito viva em tal ou qual
região do grupo, partido político, província, classe profissional ou mesmo em tal ou
qual família.
Houve oportunidades em que convivi com pessoas cuja ascendência germânica
foi enfatizada no âmbito familiar. Estabelecendo algum paralelo entre a forma
como algumas dessas pessoas se relacionavam com sua origem e como os meus
familiares o faziam, muitas vezes percebi diferenças significativas. Uma delas é a
ênfase dada às histórias dos antepassados e aos lugares onde se encontram suas raízes.
Nesta pesquisa, a abordagem é o uso do idioma e, mais precisamente, sua proibição.
Contudo, ao me reportar a um tempo distante, recupero elementos da vida diária na
casa de minha avó. Alguns detalhes, como o pano de parede bordado com palavras
de incentivo, o tacho de chimia, as frutas cristalizadas, a cerveja artesanal, a cuca e os
vidros de compotas de doce, compunham o cenário doméstico. O questionamento
que sempre fiz e com esta pesquisa procuro compreender é por que não mantiveram
os diálogos em alemão, por que não trouxeram as histórias a respeito da chegada dos
antepassados da família para as gerações que foram se sucedendo.
Eles viveram o momento, inseridos em seu tempo e espaço. Foram cidadãos em
determinada época na história do país. A forma como cada um reagiu ao contexto
político, às vicissitudes e às perdas prescinde de análise ou de questionamento exterior.
Nesse sentido, vale destacar o que diz Halbwachs a respeito da inserção do indivíduo
no seu tempo histórico e os efeitos deste no comportamento individual:“Parece-me
que o primeiro acontecimento nacional que penetrou a trama de minhas impressões
de criança foi aquele do enterro de Victor Hugo (então eu tinha oito anos)”. O

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

autor observa que seus pais estavam abertos a muitas influências, sendo em parte o
que eram porque viviam em tal época, em tal país, em tais circunstâncias políticas
e nacionais: “Meus pais eram franceses dessa época, foi então que assimilaram
alguns hábitos e assumiram alguns traços que não cessariam de fazer parte de suas
personalidades e que se impuseram cedo a minha atenção” (HALBWACHS, 1990,
p. 40).
Uma das razões por que me envolvi nesta pesquisa foi a intenção, por meio
dos estudiosos aqui elencados, de alcançar algum entendimento para a forma de agir
dos adultos que povoam minhas memórias de criança. Certamente, o convívio com
os brasileiros e, à medida que as gerações se sucederam, e talvez pelo fato de que a
família se constituiu em âmbito urbano, os usos e costumes, assim como o idioma
do povo local, foram sendo naturalmente assimilados, passando os membros daquele
grupo a se reconhecerem como brasileiros em todos os aspectos da vida diária. Do
núcleo inicial que se estabeleceu em Feliz nada se sabe de algum membro que tenha
permanecido naquela região. Foram avançando e formaram suas famílias entre Cruz
Alta, Iraí e Santa Rosa.
Os ensaios reunidos no livro Nós, os teuto-gaúchos, anteriormente citado, trazem
memórias, pesquisas e reflexões que abrangem diferentes aspectos relacionados à
origem germânica dos autores elencados. Entre estes escritos, optei, preferencialmente,
relacionar na presente pesquisa aqueles que se reportam ao uso do idioma alemão
e suas implicações à época do Projeto de Nacionalização de Getúlio Vargas. Donald
Schüler em “A mãe que perdi” apresenta um questionamento a respeito do idioma,
da condição dos imigrantes e de seus descendentes:“Reflito sobre a minha condição
teuto-brasileira constrangido. Cercado destes morros, açoitado por estes ventos,
bronzeado por estes sóis, como sentir-me teuto? Teuto-brasileiro? O substantivo
composto marca síntese ou dilaceramento?” (FISCHER; GERTZ, 1996, p. 270). Por
que refletir sobre a questão teuto-brasileira, indaga Schüler. De teuto resta o quê? O
sangue? Este sangue, diz ele, já foi aquecido pelos trópicos desde as primeiras décadas
do século XIX. Época em que seus avós, conforme explica o autor, atravessavam os
mares seduzidos por douradas promessas de um imperador carente de súditos para
guarnecer as desprotegidas fronteiras do sul. Quanto ao idioma, Schüler diz:

A língua? Eu a cultivo e guardo, precariamente, é verdade, mas o suficiente para ler clássicos e
modernos. Chego a comover-me com a sonoridade das palavras, com o ritmo das frases. Surpreendo-
me percorrendo parágrafos de Nietzsche e de Heidegger, sem pensar no sentido, atento apenas à
massa verbal, como que confiado ao embalo das ondas. Falta-me, entretanto, o exercício vivo da
língua que me é solicitada só em momentos raros (SCHÜLER, 1996, p.183).

Ao iniciar esta pesquisa, evidenciei as observações feitas ao longo de diferentes


períodos da vida de pessoas de meu núcleo familiar, destacando-se, entre estas,
minha avó materna.Tracei paralelos entre a forma de comportamento ante a origem
germânica de outros grupos familiares em relação às pessoas que compunham o meu
núcleo. Tenho obtido respostas a partir de leituras empreendidas para a elaboração
deste escrito. Quando Halbwachs, por exemplo, observa que há casos em que uma

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pessoa tenha interesse em determinado momento histórico de que tenha feito parte
juntamente com outros membros de determinado grupo, talvez até o interesse seja
maior, contudo, pode não conservar lembrança alguma a ponto de não reconhecer
quando o descrevem, uma vez que, desde o momento em que tal fato se deu, saiu
deste grupo e a ele não retornou mais. “Há pessoas de quem dizemos que estão
sempre no presente, isto é, que eles não se interessam se não pelas pessoas e pelas
coisas no meio das quais elas se encontram no momento, e que estão em relação
com o objeto atual de sua atividade, ocupação ou distração” (HALBWACHS, 1990,
p. 20). Algumas linhas adiante, diz o autor, que todo o conjunto de lembranças
que se possa ter em comum com tal grupo ao qual já não se pertence mais pode
desaparecer bruscamente. Esquecer um período de sua vida, completa Halbwachs,
é perder o contato com aqueles que nos rodeavam. O excerto a seguir ratifica o
exposto acima:

De um modo talvez menos brusco e brutal, na ausência de perturbações patológicas quaisquer,


pouco a pouco nos distanciamos e nos isolamos de certos meios que não nos esquecem, mas de
que conservamos apenas uma lembrança vaga. Podemos definir ainda em termos gerais os grupos
com os quais nos relacionamos. Mas não nos interessa mais, porque no presente tudo nos afasta
deles (HALBWACHS, 1990, p. 21).

Pode-se estabelecer um cotejo entre o demonstrado por Halbwachs e o que


trata Paul Ricoeur no respeitante à forma como as marcas ou impressões afetam as
pessoas de formas diversas. Alguns são mais suscetíveis que outros no que tange ao
efeito dos fatos do passado.
Um aspecto relevante dentro do estudo da recordação enfatizado por Ricoeur
é o esquecimento: “boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não
esquecer” (2007, p. 48). Para a memória meditativa, o esquecimento continua a ser,
ao mesmo tempo, um paradoxo e um enigma. É enigma pelo fato de não sabermos
se o esquecimento é apenas impedimento para evocar e para encontrar o “tempo
perdido”, ou se resulta de inelutável desgaste, “pelo” tempo, dos rastros que em
nós deixaram os acontecimentos. A referência a Santo Agostinho por Ricoeur, em
relação ao esquecimento, às lembranças e ao tempo (passado, presente e futuro),
encontra ressonância na seção XVIII – “Como é que passado e futuro estão presentes?”
– do livro XI das Confissões:

Permita-me, Senhor, ir mais longe na minha procura, ó minha esperança; e não se distraia a minha
atenção. Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde estão. Mas se isso ainda não me é
possível, sei, todavia, que onde quer que estejam, aí não são futuras nem passadas, mas presentes.
Na verdade, se aí também são futuras, ainda lá não estão, e se também aí são passadas, já lá não
estão. [...] Ainda que se narrem, como verdadeiras, coisas passadas, o que se vai buscar à memória
não são as próprias coisas que já passaram, mas as palavras concebidas a partir das imagens de
tais coisas, que, ao passarem pelos sentidos, gravaram na alma como que uma espécie de pegadas
(Santo Agostinho 2001, p. 115).

153
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Em Tempo e Narrativa, Paul Ricoeur refere-se às reflexões de Santo Agostinho:


“Quando ele diz que o tempo é, antes a medida do movimento do que o próprio
movimento, não é um movimento regular dos corpos celestes que ele está pensando,
mas na medida do movimento da alma humana” (RICOEUR, 1994, p, 33). Se se
admite, diz Ricoeur, que a medição do tempo se faz por comparação entre um
tempo mais longo e um tempo mais curto, é preciso um termo fixo de comparação:
“ora, este não pode ser o movimento circular dos astros, posto que admitimos que
poderia variar. O movimento pode variar, o tempo não” (RICOEUR, 1984, p. 33).
A herança grega apresenta, no que se refere à Memória e à Imaginação, a noção
de eikõn, ou seja, a representação presente de uma coisa ausente. A referida noção
de eikõn, associa-se à ideia da metáfora do bloco de cera: “Vimos o Teeteto associar
estreitamente o exame da eikõn à suposição de uma marca comparável à impressão
de um sinete de cera” (RICOEUR, 2007, p. 32). Quando passamos esse bloco de
cera sob as sensações e os pensamentos, imprimimos nele aquilo que queremos
recordar, quer se trate de coisas que ouvimos, que vimos ou recebemos no espírito.
A metáfora da cera conjuga duas problemáticas: a da memória e a do esquecimento.
Ainda, de acordo com a ideia da impressão (tupos) – a metáfora do bloco de cera –,
surge a noção de “rastro” relativa à teoria da memória, assim como à da história.
A assimilação do modo de ser brasileiro, pelos meus parentes, e a aceitação
de sua condição como cidadãos pertencentes a este território, cujo passado em
outro continente nada mais representa, são hipóteses para a compreensão de seu
comportamento. Para além desta possibilidade, há o fato de que, em outros aspectos
da vida cotidiana, viveu-se o interdito, no sentido de ser proibido mesmo. Eis aí
outra possibilidade. Refiro-me neste caso àquela interdição subjetiva, no recôndito
dos lares, em que há um contrato, de certa forma, um acordo tácito a respeito dos
ditos, não-ditos e interditos. Esta reflexão sinaliza para um esclarecimento a respeito
das escolhas que tiveram meus familiares ao externar seus sentimentos, expressar de
que forma o contexto político e social que compunha o cenário brasileiro da época
afetou sua subjetividade. O silêncio que se impôs e a aparente aceitação dos fatos
podem relacionar-se aos efeitos que as palavras ditas (ou não-ditas) representaram
na constituição de suas vidas.
Porém, ao abordar o Governo de Vargas no período entre os anos 30 e 40, trata-
se de proibição real, objetiva, despótica. Cynthia Machado Campos em A política da
língua na era Vargas: proibição de falar alemão e resistências no sul do Brasil descreve uma
cena de opressão:

Os representantes do governo Vargas chegaram aos níveis mais privados possíveis de intervenção,
como a prática de arrancar os panos bordados escritos em língua alemã, que enfeitavam a parede
das casas dos camponeses, rasgando-os e queimando-os como indícios de propaganda nazista. Sem
entender absolutamente o que significavam as palavras que os panos traziam. Estes “enviados”
do nacionalismo criavam inimigos entre camponeses que viam seus casebres destruídos, em
determinadas situações, do único enfeite que possuíam: um pano com inscrições em letras góticas.
Significavam ditos populares de conteúdo religioso: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, “Se
tiveres paz no coração, teu casebre será um palácio” (CAMPOS, 2006, p.111).

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As interdições que atingem o discurso, diz Foucault (1996, p.6), revelam sua
ligação com o desejo e com o poder: “Nisto não há nada de espantoso, visto que
o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também aquilo que é objeto de desejo”.
Numa sociedade como a nossa, escreve Foucault em A ordem do Discurso,
conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. Mas a interdição, diz ele, é o mais
evidente, o mais familiar. Não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa.
Foucault aponta para três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou
se compensam e formam uma teia complexa que se modifica ininterruptamente,
observando que há setores em que a teia apresenta-se mais cerrada: são as regiões da
sexualidade e as da política.

Há, sem duvida, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras, mas segundo um perfil e
facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos,
dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí
de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande
zumbido incessante e desordenado do discurso (FOUCAULT, 1996, p. 9).

Ernildo J. Stein, no ensaio “A caminho do Que é Filosofia? Uma declaração


de amor”, ao discorrer a respeito de suas experiências à época da campanha de
Nacionalização de Getúlio Vargas, diz:

Era o bilinguismo como experiência de angústia. Introduziu para sempre na minha existência a
ideia de que falar é perigoso. A ideia de que nas línguas estão contidas coisas por causa das
quais podemos ser punidos. Naturalmente, em casa ainda se liam algumas coisas em alemão e
sobretudo nos comunicávamos, no âmbito familiar, com a linguagem afetiva. Falávamos mais baixo
e, escondidamente, também rezávamos em alemão. Mas o alemão, passava a ser, desde aí, uma
língua interditada (STEIN, 1996, p. 340).

Em “Memórias e estudos sobre a condição de descendente de imigrantes


alemães”, Regina Weber menciona elementos relativos à sua infância relacionados a
questões de identidade no que se refere à sua origem alemã: “As mulheres que me
educavam (mãe e tias-avós), explicaram, de certa forma confirmando a professora,
que éramos de “origem” alemã” (WEBER, 1996, p. 56). Para o entendimento de
suas questões, a ensaísta, através da pesquisa evidencia:

Atualmente consigo explicar o que acontecia naqueles anos, mesmo por que acabei estudando
fenômenos de etnicidade. A valorização e autovalorização positiva de um grupo, e de um grupo
étnico em particular, sofrem oscilações que variam conforme as circunstâncias políticas, sociais,
econômicas ou, resumindo, conforme as circunstâncias culturais (WEBER, 1996, p. 56).

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Tanto Stein quanto Weber, ensaístas supracitados, se reportam à infância e a suas


impressões em relação aos usos e costumes dos adultos que os cercavam assim como
suas lembranças relativas ao uso do idioma alemão. Halbwachs (1990) observa o fato
de os acontecimentos da infância apresentarem-se na vida futura com significação

Se nos ativermos às impressões que fizeram sobre nós os acontecimentos, quer a atitude de nossos
pais em face dos acontecimentos que terão mais tarde significação histórica, quer os costumes
somente, os modos de falar e de agir de uma época, em que se distinguem elas de tudo aquilo que
ocupa nossa vida de criança, e que a memória nacional não reterá? Como a criança seria capaz de
atribuir valores diferentes às partes sucessivas do quadro que a vida desenrola diante dela, e por
que ficaria sobretudo admirada dos fatos e episódios que mantêm a atenção dos adultos por que
estes dispõem, no tempo e nos espaço, de muitos termos de comparação? (Halbwachs, 1990, p.
41).

Paul Ricoeur aponta para a pertinência do emprego em francês e em outras


línguas do pronome reflexivo “si”. Ao lembrar-se de algo, a pessoa lembra-se de si. O
autor enfatiza o caráter essencialmente privado da memória. Não se pode transferir
as lembranças de um para a memória de outro: “minhas lembranças não são as
suas”. Nesse sentido, a memória parece ser de fato radicalmente singular.“Enquanto
minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para todas as
experiências vivenciadas pelo sujeito. Em seguida, o vinculo original da consciência
com o passado parece residir na memória” (RICOEUR, 2007 p. 107).
Esta pesquisa teve como objeto relacionar estudos voltados à memória, à
linguagem e a suas relações sociais com a realidade vivida por descendentes de
alemães nas décadas de 40 e 50 no Brasil no que se refere à proibição quanto ao uso
de seu idioma de origem. As leituras evocaram minhas memórias de infância, em que
ouvia canções em alemão entre familiares e indagava por que os adultos baixavam o
tom de voz ao entoar as notas.Autores, como Cynthia Machado Campos permitiram
compreender tal indagação quando, em A política da língua na era Vargas: proibição do
falar alemão e resistências no Sul do Brasil (1998, p. 14), ela escreve: “Confrontam-se,
de um lado, o projeto do governo Vargas e, de outro, as tradições culturais e políticas
herdadas pelos descendentes alemães”. Para Paul Ricoeur, em A memória, a história,
o esquecimento (2007, p. 43): “nas experiências relativas à profundidade do tempo, de
algum modo, o passado adere ao presente”. Os autores pesquisados possibilitaram um
esclarecimento para boa parte de meus questionamentos. E, através destes mesmos
autores, pude compreender outros aspectos relativos aos ditos e interditos no seio
dos lares. Contudo, trata-se de tema para futuros escritos.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Antônio do Espírito Santo e João Beato.


Lisboa: Lusofofia. Net, 2001. Recurso Eletrônico.

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BENJAMIN, W. Sobre alguns temas em Baudelaire. Tradução de Hermerson Alves


Baptista. In: Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo.
São Paulo: Brasiliense, 1989.
CAMPOS, Cynthia Machado. A politica da língua na era Vargas: proibição de falar
alemão e resistências no sul do Brasil São Paulo: Unicamp, 2006.
DILLENBURG, Sérgio R. Tempos de incerteza. In: FISCHER, Luís A.; GUERTZ, René
E. (Coord.) Nós, os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed UFRGS, 1996.
FISCHER, Luís A.; GUERTZ, René E. Nós, os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed UFRGS,
1996.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio.
São Paulo: Edições Loyola, 1971.
HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
PROUST, Marcel. Em busca do Tempo Pedido – No Caminho de Swann. Tradução de
Fernando Py. São Paulo: Nova Fronteira, 2016.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tradução de Constança Marcondes Cesar.
Campinas: Papirus, 1994.
______. A memória, a história, o esquecimento.Tradução de Alain François. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2007.
SCHÜLER, Donaldo.A mãe que perdi. In: FISCHER, Luís A.; GUERTZ, René E. (Coord.)
Nós, os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed UFRGS, 1996.
SPINOZA, Benedictus. A Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2009.
STEIN, Ernildo J. A caminho do que é filosofia? Uma declaração de amor. In: FISCHER,
Luís A.; GUERTZ, René E. (Coord.) Nós, os teuto-gaúchos. Porto Alegre: Ed UFRGS,
1996.
WEBER, Regina. Memórias e estudos sobre a condição de descendente de imigrantes
alemães. In: FISCHER, Luís A.; GUERTZ, René E. (Coord.) Nós, os teuto-gaúchos.
Porto Alegre: Ed UFRGS, 1996.

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O PAPEL DA MULHER POMERANA NO


CONTEXTO SOCIAL E FAMILIAR: NARRATIVAS
EM GÊNERO E ETNICIDADE
KAREN LAIZ KRAUSE ROMIG1

INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda o papel da mulher pomerana no contexto social e


familiar, envolvendo narrativas que versam gênero e etnicidade, contextualizadas
dentro do contexto espacial da Serra dos Tapes, levando em consideração o processo
histórico de colonização pomerana nesta área.
O artigo busca trabalhar com memórias e lembranças de mulheres que falam
sobre suas vivências no contexto pomerano. Como aponta Bosi (1994, p. 53), “a
lembrança é a sobrevivência do passado, conservado no pensamento de cada ser
humano”.
De maneira geral, a proposta do trabalho tem por objetivo analisar a trajetória
e as vivências de mulheres pomeranas que vivem na Serra dos Tapes e compreender
suas concepções enquanto mulheres dentro de sua própria realidade familiar e social,
atrelado com suas memórias de vida.
Esta pesquisa abrange espacialmente a Serra dos Tapes, que é uma região
localizada na parte sul do estado do Rio Grande do Sul, e compreende municípios
como Canguçu, Pelotas, São Lourenço do Sul, Morro Redondo e Arroio do Padre.
É uma área caracterizada pela forte presença de imigração alemã e pomerana, sendo
entendida por Cerqueira (2010) como uma área de mosaico étnico cultural, por
abarcar a presença colonizadora de diferentes grupos étnicos. Parte da Serra dos
Tapes é também, segundo Romig (2018), compreendida como uma região cultural
pomerana.
Os pomeranos2 são, neste estudo, analisados enquanto grupo étnico, a partir
do conceito de etnicidade, sendo que os descendentes de pomeranos, entre esses
as mulheres, mantêm, com o passar das gerações, características que definem este
1  Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Pelotas. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação na Universidade Federal de Pelotas. E-mail: [email protected].
2  “Os pomeranos chagaram na região sul em meados do século XIX, vindos de uma região da Alemanha chamada
de Pomerânia” (WEIDUSCHADT, 2007, p.16).

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grupo. Segundo Barth (2011, p. 189), “os grupos étnicos são categorias de atribuição
e identificação, realizadas pelos próprios atores, e assim, têm a característica de
organizar a interação entre as pessoas”, ou seja, as características femininas que
marcam o modo de vida da mulher pomerana na comunidade, são mantidas e
reinventadas dentro do próprio grupo social.
A partir do século XIX, a imigração europeia foi incentivada para o Brasil, como
forma de garantir a posse e a exploração de regiões pouco povoadas, garantindo a
produção de gêneros alimentícios para o mercado interno. Em se tratando da causa
da imigração europeia para o Brasil, destaca-se a necessidade do governo imperial
de promover a ocupação de parte das terras ainda inabitadas no território brasileiro.
Ressalta-se que essas terras foram ocupadas por imigrantes europeus, pois eram
devolutas, e sem interesse dos charqueadores e estancieiros que ocupavam a região.
Como fala Salamoni (1995, p. 12), “hoje, a maior comunidade pomerana
de todo o mundo vive no Brasil”. Ou seja, o território brasileiro abarca grande
parte de um grupo étnico com características peculiares, que constituem marcas na
população até os dias atuais. Em se tratando do começo do processo imigratório,
Cerqueira (2010, p. 873) diz que

O grande impulso foi dado em 1858, pela criação da Colônia Rheingantz, na região da atual São
Lourenço, que na época fazia parte do território de Pelotas. Tratava-se de uma imigração de língua
alemã, porém com forte presença da etnia pomerana, cuja presença é um diferencial da composição
étnica da zona colonial da Serra dos Tapes, no sul gaúcho.

Nas considerações de Salamoni (1995, p. 34), “os colonos imigrantes vieram


com a finalidade de ocupar a terra, para desenvolver atividades agrícolas”. Nessa
afirmativa a autora confirma a particularidade camponesa desse grupo étnico.
Atualmente, os descendentes de pomeranos cultivam algum produto de forma
específica, em anos anteriores se dedicavam mais para a policultura, mas vale destacar
que, dentro da manutenção da propriedade, ainda são mantidas hortas e pequenas
plantações para o subsídio alimentar da família.
Boa parte da região da Serra dos Tapes caracterizou-se, durante muito
tempo, por uma matriz produtiva associada principalmente à produção voltada ao
autoconsumo, como o cultivo de feijão, milho, batata, cebola, morango, pimenta,
leite e a criação de animais (bovinos, suínos e aves) que eram a base desse tipo de
agricultura (DUTRA, 2010).
Como destaca Krone (2014, p.41),

Atualmente a base produtiva encontra-se mais restrita, as principais atividades comerciais são a
produção de leite, o cultivo de soja e, nas últimas décadas, o fumo tem sido o grande carro chefe
da economia local, sendo um dos cultivos mais rentáveis e mais presentes entre os agricultores
familiares da região da Serra dos Tapes.

Estudos apontam que os imigrantes e seus descendentes tiveram em seu


histórico a característica de dedicação à agricultura. Neste caráter camponês, a

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mulher sempre exerceu e exerce um papel primordial dentro da colônia, pois suas
atividades são fundamentais para o funcionamento da propriedade, cabendo a ela
cuidar dos filhos, da casa, dos afazeres com pequenos animais da propriedade3, do
jardim, da horta, preparar comida, além de ajudar o marido na lida camponesa.
O domínio reservado às mulheres não se inscreve unicamente sob o teto da
casa; as mulheres também trabalham na lavoura, executando praticamente tudo o
que os homens fazem: semeiam, capinam, colhem e fazem aplicação de agrotóxicos
na plantação (BAHIA, 2011).
A metodologia do trabalho está sustentada na história oral, utilizando-se de
algumas narrativas e memórias femininas de mulheres que vivem no contexto
camponês pomerano na Serra dos Tapes. Na revisão teórica são elencados inúmeros
autores que abordam diferentes conceitos, mas que se cruzam para a proposta do
trabalho, dentre os quais Louro (1997) e Meyer (2004), para abordar as questões
de gênero, é utilizado Barth (2011) para tratar da etnicidade, Salamoni (1995),
Cerqueira (2010) e Krone (2014), para a imigração pomerana. Ferreira e Amado
(2006) e Bosi (1994) para tratar da metodologia de história oral, assim como outros
para a contextualização geral do grupo étnico pomerano.

METODOLOGIA

O presente trabalho traz em sua metodologia a base principal da história


oral, com o uso de memórias e narrativas de três mulheres de gerações distintas.
Essas mulheres relatam fatos de sua vida bem como suas concepções enquanto
camponesas pomeranas, falam sobre seus afazeres e relatam fatos de outras mulheres,
enriquecendo a temática aqui envolvida. Além disso, relembram fatos de suas
infâncias e juventudes, lidando com suas lembranças femininas. Segundo Bosi (1994,
p. 55) “lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias
de hoje, as experiências do passado”.
As memórias das pessoas são fruto do trabalho ao qual se dedicam, das vivências
da infância, da escola em que estudaram, da casa onde moraram, de todas as práticas
vividas, isto é, as lembranças estão entrelaçadas aos fatos sociais e históricos inerentes
às pessoas e a suas vidas, logo suas memórias fazem parte de seu modo de vida
diário, imbrincadas entre a memória individual e coletivo. A memória do indivíduo
depende de seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com
a Igreja, enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a este
indivíduo (BOSI, 1994).

Nessa linha, a história oral, centra-se na memória humana e sua capacidade de rememorar o
passado enquanto testemunha do vivido. Podemos entender a memória como a presença do
passado, como uma construção psíquica e intelectual de fragmentos representativos desse mesmo
passado, nunca em sua totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção
(MATTOS; SENNA, 2011, p. 96).

3  Entendido como galinhas, patos, marrecos, pintinhos etc., os quais necessitam de um cuidado diário.

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A história oral, como todas as metodologias, também estabelece e ordena


procedimentos de trabalho, como entrevistas que tendem a implicar nos resultados
da pesquisa, tratando também das possibilidades de transcrição de depoimentos, suas
vantagens, desvantagens e relações. A metodologia da história oral suscita muitos
questionamentos e indagações, formulando questões que nos fazem refletir, não
oferecendo verdades absolutas (FERREIRA; AMADO, 2006).
Como tratado anteriormente, a metodologia da história oral é fundamental
para levantar questionamentos e pensamentos sobre determinados temas, como no
caso do papel feminino na cultura pomerana. Fato que corrobora para o uso da
memória feminina enquanto base metodológica do estudo, como afirma Halbwachs
(1990), a memória é sempre uma construção feita no presente a partir de vivências
ocorridas no passado. Memórias individuais e coletivas se confundem; não somos
ilhas e, portanto, estamos sujeitos a influências, bem como a influenciar, os grupos a
que pertencemos e com os quais nos identificamos.
Este trabalho traz os relatos de três mulheres pomeranas de uma mesma
família, constituídas por três gerações de mulheres descendentes de pomeranos, com
concepções culturais e camponesas diferentes. As entrevistadas foram escolhidas de
maneira aleatória, pois se disponibilizaram a participar do estudo, são moradoras da
Serra dos Tapes, e tinham proximidade com a pesquisadora.
As narrativas dessas mulheres de três gerações diferentes dão voz a um cenário
feminino que se repete em várias casas e comunidades pertencentes à Serra dos Tapes,
exemplificando a trajetória de vida e os contextos temporais de diferentes gerações.
Essas mulheres responderam questionamentos acerca de suas concepções femininas,
opiniões e angústias sobre seu trabalho e seus afazeres domésticos e familiares.

GÊNERO, ETNICIDADE E MULHERES POMERANAS

A proposta deste trabalho busca falar de autores que tratam destas temáticas,
bem como trazer resultados, frutos de depoimentos e narrativas de mulheres que
vivem no contexto pomerano.
É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos
que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro”
universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida, por algumas mulheres.
Sem dúvida, desde muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas
exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas oficinas e nas lavouras (LOURO,
1997).
Para as mulheres foram atribuídos determinados papéis sociais, fazendo-as
acreditar que determinadas funções a ser exercidas eram naturalmente do universo
feminino. Entretanto, essa identidade é construída, os sujeitos se identificam, social e
historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de
gênero. É evidente que essas identidades (sexuais e de gênero) estão profundamente
interrelacionadas com a linguagem e com práticas muito frequentes no grupo social,
que as confundem, tornando difícil pensá-las distintivamente (LOURO, 1997).
Nesse sentido, mulheres pomeranas, ao longo dos anos, foram se adequando a um

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estilo de vida camponês, repleto de múltiplas atividades, sem refletir ou questionar


sua prática, mas apenas se habituando a ela.

O processo de educação de homens e mulheres supõe uma construção social e corporal dos sujeitos.
Implica na transmissão/aprendizagem de princípios, valores, conhecimentos, habilidades, supõe
também a internacionalização de gestos, posturas, comportamentos, disposições “apropriações” a
cada sexo (LOURO, 1996, p. 41).

No conjunto de movimentos teóricos e políticos plurais, gênero segue sendo


incorporado e utilizado de duas maneiras bastante diferentes e conflitantes. Por um
lado, gênero vem sendo usado como um conceito que se opõe ou complementa
a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, ou seja, continua-se
operando com o pressuposto de que o social e a cultura agem sobre uma biologia
humana universal que os antecede. Por outro lado, gênero tem sido usado, sobretudo
pelas feministas pós-estruturalistas, para enfatizar que a sociedade forma não só a
personalidade e o comportamento, com enfoque para o conceito que problematiza
noções essencialistas que remetem a modos de ser e de sentir, e noções biologicistas
de corpo, de sexo e de sexualidade, e disso resultam importantes mudanças
epistemológicas e políticas para quem atua nesses movimentos sociais e campos de
estudos (MEYER, 2004). Não se trata nesse estudo de aprofundar essas diferenças
conceituais, mas apenas situar a partir de que olhar se está problematizando, pois
ao longo da história a diferença entre os gêneros serviu para explicar e justificar as
mais variadas distinções entre mulheres e homens. Segundo Louro (1997), algumas
teorias foram construídas e utilizadas para “provar” distinções físicas, psíquicas,
comportamentais, para indicar diferentes habilidades sociais, talentos ou aptidões,
e para justificar os lugares sociais, as possibilidades e os destinos “próprios” de cada
gênero. Discutir essas diferenças não é o objetivo central deste artigo, mas, sim, a
partir desses conceitos, mobilizar algumas reflexões acerca do papel feminino dentro
de um contexto e grupo cultural específico.
Assim, a divisão dos sexos, que parece estar na ordem das coisas, está, na
realidade, incorporada ao mundo social através do habitus4 dos agentes, funcionando
como sistema de percepção, pensamento e ação. A naturalidade de que se reveste
a dominação masculina evidencia-se, de fato, pela dispensa de justificação
(BOURDIEU, 1999). A dominação masculina, o poder simbólico, que exerce nas
palavras, gestos e expressões rituais, e as estratégias de reprodução do mundo social,
que se fundam no plano simbólico, centralizam-se através de diferentes instituições
como o Estado, a família, e a escola.
Como já foi abordado, este trabalho se estrutura para a discussão sobre o papel
da mulher a partir da cultura pomerana. Os descendentes de pomeranos na região
sul do estado do Rio Grande do Sul compõem um grupo étnico, que, segundo
Barth (2011, p. 189-190), na linguagem antropológica, designa uma população
que se perpetua biologicamente de modo amplo, compartilhando valores culturais

4  De acordo com Pierre Bourdieu (1996), o habitus são modos de conduta a inculcar nos indivíduos por meio de
disposições internas e que se constituí em práticas de todo um grupo social.

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fundamentais, realizadas em unidades culturais, constituindo assim um grupo de


interação e comunicação, em que seus membros se identificam com categorias que
se diferenciam de outras.
Ressalta-se, por meio das palavras de Salamoni (1995, p. 64), a transição social
que elas passaram: “a mulher pomerana em todos os tempos foi extremamente
sobrecarregada na divisão sexual do trabalho, uma vez que a ela estavam atribuídas
os afazeres domésticas, o cuidado e educação dos filhos e o trabalho na roça junto
ao marido”.
Os descendentes de pomeranos, em sua maioria, trabalham na agricultura e,
desta forma, acontece uma divisão social desigual do trabalho, pois a mulher tem
que acompanhar o marido nos afazeres da lavoura e ainda cuidar dos filhos e das
lidas domésticas.
Como diz Reetz e Silva (2016), na questão de gênero, as mulheres pomeranas
lavradoras5 realizam dupla ou tripla jornada de trabalho, conciliando sua vida em
casa e na roça, e, mesmo assim, seu trabalho rural não é reconhecido e respeitado.
É percebível a clara separação de tarefas dentro da comunidade, na qual, para
a cultura camponesa pomerana, o homem tem suas atividades definidas, mas as
mulheres possuem sempre um número maior de afazeres, como trata Reetz (2016,
p. 52),

Entre os pomeranos, o trabalho, o comércio e o cotidiano são os temas preferidos pelos homens;
crianças, casa e religião, são consideradas assuntos de mulher. As exceções aparecem na medida
em que algumas mulheres da comunidade ganham destaque quando assumem a liderança
econômica da casa ou participam mais ativamente das decisões realizadas no âmbito da igreja, da
escola e do sindicato.

Como contextualiza Bahia (2000, p. 159), “a sociabilidade feminina está ligada


ao trabalho, a casa, ao mercado local e ao espaço sagrado da igreja”, ou seja, suas
funções perpassam diversos espaços.
As mulheres cuidam dos serviços de casa: preparar o café da manhã para a
família, fazer o almoço, o lanche e o jantar, tomar conta das crianças e cuidar dos
animais. São responsáveis pelo preparo de doces, geleias, bolos, pães, também bordam
e costuram (BAHIA, 2011).
Nos relatos de Bahia (2011, p. 141), “o nascimento de um menino é sempre
desejado, pois garante um herdeiro e a continuidade da vida camponesa, através da
manutenção da tradição pomerana e da autoridade centrada na figura masculina”.
Isto é, logo no nascimento, o gênero feminino já é menosprezado, como se somente
o homem ou rapaz pudesse fazer uso e importância ao sobrenome que carrega.
Por isso, as mulheres, no contexto familiar e social, tiveram, ao longo do tempo,
suas funções definidas. Esse contexto vem se modificando com o passar das gerações,
conforme os relatos a seguir.

5  Entende-se como mulher agricultora, que trabalha na lavoura, agricultura e/ou campo.

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NARRATIVAS DE MULHERES POMERANAS

Foram feitas entrevistas com três mulheres de uma mesma família, que
representam três gerações de idades diferentes. A mulher da primeira geração possui
66 anos, a da segunda, 40 anos, e a da terceira, 20 anos.
As entrevistas foram feitas com perguntas amplas, em que as entrevistadas
puderam falar sobre sua vida, sobre suas concepções em relação ao trabalho feminino,
sobre as tarefas que exercem no dia a dia, sobre como foram suas infâncias, suas
oportunidades de estudo, e como se enxergam enquanto mulheres dentro deste
grupo étnico.
A seguir são apresentadas as narrativas dessas mulheres, que são todas
descendentes de pomeranos e vivem na zona rural da Serra dos Tapes; são trazidos
seus relatos gerais sobre suas concepções do papel social enquanto mulher na
propriedade, em que falam de seus afazeres, suas tarefas e perspectivas.
Abaixo é apresentado o relato de I.S., a entrevistada da primeira geração,
mulher de 66 anos, agricultora aposentada:

Agora eu estou aposentada, já não trabalho mais tanto, mas desde de cedo tive que trabalhar
na lavoura, minha família era grande, éramos seis irmãos. Naquela época, não podíamos estudar,
geralmente só estudávamos até 3º ou 4º série e depois tinha que ajudar em casa e na lavoura.
Depois nós começávamos a sair pros bailes e arrumar namorado, depois casei, tive minha filha e
assim a vida foi passando, sempre ajudei meu marido na lavoura, nós plantávamos de tudo: batata,
cebola, feijão, milho, e outras coisas. Uma coisa que sou sempre eu que faço são as bolachas
(doss) na páscoa e no natal, isso eu gosto, fazer pão sempre foi uma coisa passada de geração em
geração para as mulheres da minha família, sempre se dizia que uma menina que não sabe fazer
pão não podia casar, no tempo da minha mãe, não tinha forno e fogão essas coisas, ainda tem
alguns desses fornos de rua para se assar o pão, geralmente sempre se fazia o pão no sábado para
todo o resto da semana. Além disso eu tinha muitas tarefas que só eu fazia como fazer pão, fazer
manteiga, e schimier6. Parece que a mulher sabe organizar melhor todos os serviços (I.S., 2019).

Ao final de sua narrativa a mulher lembra que “[...] quando eu era solteira,
todas as famílias queriam casar suas filhas com rapazes ricos, que tivessem muita
terra e muitos animais, pois para os pomeranos ter muitas e muitas terras sempre foi
riqueza” (I.S., 2019).
Na segunda geração, a entrevista foi com F.R., mulher de 40 anos, agricultora
ela revela que:

No campo só trabalhamos, é todos os dias, apenas no domingo tem um pouco de descanso. Mas
tem muitos serviços que eu tenho que fazer todos os dias, como tratar os animais, tirar leite das
vacas, limpar a casa, fazer pão, recolher os ovos, lavar roupa, fazer comida, cuidar da horta e do
jardim, plantar flores, fazer compotas de pêssego e pepino, além de muitos outros que não lembro.
Essas tarefas só eu faço, meu marido nunca me ajuda. Já sou casada a mais de 20 anos e ele nunca
lavou roupa por exemplo. Além de todas essas tarefas eu ainda ajudo meu marido e meu filho na

6  Doce de melancia feito em tacho. No contexto pomerano é considerado uma atividade feminina.

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lavoura, tenho que fazer todas as coisas da casa e ainda ajudar na lavoura, além disso, tem serviços
na lavoura que só a mulher faz, no meu caso só eu é que planto milho (Figura 2) e preparo patos
e galinhas pro consumo da casa. Uma coisa interessante de falar é que ganhei da minha tia uma
máquina de fazer manteiga (Figura 3), minha tia não se casou, daí ela deu pra mim, isso também
é uma coisa que faço todos os sábados, a manteiga caseira. Mas lembro que com minha mãe e
minha avó também era assim, com muitas mulheres da minha idade é a mesma coisa, parece que
todo mundo se conforma [...] sempre me pareceu que as mulheres da colônia tem uma vida difícil,
o que sempre vi no meu pai, vejo hoje no meu marido, os homens tem mais independência, saem
a hora que querem, vão pra venda, se reúnem com outros homens pra jogar carta, gastam mais
dinheiro, e mulher não, a grande maioria nem sabe dirigir, mas agora isto está mudando um pouco,
eu até dirijo, mas só trator (risadas) que é para trabalhar, mas carro que é para passear ninguém
me ensina (F.R., 2019).

E na entrevista com A.R., que determina a terceira geração, mulher de 20 anos,


estudante, que busca novas perspectivas não camponesas, tem-se que:

Minha concepção enquanto mulher pomerana é diferente das gerações anteriores. Na nossa
comunidade e na vizinhança, as meninas da minha idade querem casar cedo e depois que
casam acabam trabalhando na agricultura. Eu percebo como o trabalho de mulheres mais velhas
é complicado. Primeiro se casam, depois tem filhos e ainda assim precisam se dedicar pra uma
vida complicada na agricultura. Logo os anos vão passando e é difícil da vida mudar. Mas hoje
com a tecnologia no campo e a internet, celular, muitas coisas já melhoraram, muitas mulheres já
dirigem, são mais independentes. Mas mesmo assim, muitas mulheres ficam por gerações fazendo
as mesmas coisas: cuidando do marido, dos filhos, da casa e da lavoura. E durante muito tempo foi
assim, como antigamente não tinham escolas, as mulheres também não estudavam, se casavam
cedo e trabalhavam na agricultura, eu não quero trabalhar na agricultura, quero estudar e ter uma
profissão diferente para não precisar morar na zona rural (A.R., 2019).

Ao observar as narrativas anteriores, percebemos que os papéis femininos


dentro da comunidade podem mudar dentro de um espaço de tempo. Cabe salientar
que, comparando as três entrevistas, a terceira geração busca fora da zona rural uma
nova perspectiva de vida. O que não acontece com as primeiras gerações, que não
tiveram a possibilidade de seguir os estudos, e assim dedicaram-se à agricultura e
relataram seus muitos afazeres na propriedade da família.
Nas entrevistas, surge a ideia de que a possibilidade de mudança na vida das
mulheres pomeranas camponesas ocorre, principalmente, quando esta não vive no
contexto rural. Nas comunidades pomeranas, as mulheres que vivem no campo e
dedicam-se à agricultura tendem a seguir suas gerações e praticarem as atividades
consideradas “femininas”, como tirar leite das vacas, fazer as refeições, fazer bolachas
e doces, lavar roupa, cuidar dos filhos, ajudar o marido na lavoura etc.
Vamos elucidar alguns dos pontos citados nas entrevistas, como na primeira
em que a mulher lembra que gosta de fazer as bolachinhas amanteigadas (figura 1),
nos feriados de páscoa e natal, a qual é também entendida como uma característica
pomerana.

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Figura 1 – Bolachas amanteigada – doss.

Fonte: autora, 2019.

Na imagem anterior, são apresentadas as bolachas amanteigadas, conhecidas na


língua pomeranas com doss. De acordo com as entrevistas, essa bolacha é feita em
datas comemorativas e quase sempre é preparada pelas mulheres da casa.
A segunda entrevistada tem em suas narrativas a presença de muitas atividades
que ela mesma realiza dentro da propriedade, cita muitas atividades “ditas femininas”
e diz que quase nunca teve a ajuda do marido. Percebe-se que, durante anos, e
inclusive gerações, existem tarefas que são exclusivamente exercidas por mulheres.
Para demonstrar algumas atividades femininas, apresentam-se as imagens a
seguir que demonstram, respectivamente, uma máquina de plantar milho, que a
mulher de 40 anos diz ser uma atividade feminina. Logo em seguida, é representada
uma máquina manual de fazer manteiga, utilizada em muitas casas de comunidades
de descendência pomerana. Um fato curioso deste objeto é o fato da entrevistada
ter herdado este objeto de sua tia, como sendo um objeto que tem a finalidade
de contribuir numa tarefa feminina. Em seguida, ainda é retratada uma imagem
referente ao pão caseiro feito no forno de rua:

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Figura 2 – Máquina de plantar milho – instrumento muito usado pelas mulheres nas plantações.

Fonte: autora, 2019.

Figura 3 – Máquina manual de fazer manteiga – herdada por gerações de mulheres dentro da família.

Fonte: autora, 2019.

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Figura 4 – Pão caseiro sendo feito por mulheres no forno de rua.

Fonte: autora, 2019.

As duas primeiras mulheres falam de tarefas que são praticadas por muitas
camponesas, como fazer o pão caseiro, que, segundo ela, era uma tarefa que toda
menina antes de casar deveria saber. Na casa da entrevistada, foi registrado o pão
caseiro sendo feito no forno de rua, elucidado na figura 3.
Na terceira entrevista, a jovem relata sobre seus desejos de ter uma vida
diferente das mulheres mais velhas da sua comunidade, pois relembra que cresceu
num contexto de muito trabalho, no qual a mulher tem muitas tarefas, e que todo
esse trabalho exaustivo nem sempre é valorizado, pois em determinadas ocasiões é
menosprezada pelos homens da casa.
As mulheres, ao fazerem as suas narrativas, na maioria das afirmações,
direcionam-se para mulheres do seu convívio, e que lhe ensinaram algo que lhes
foi importante. Logo, suas comparações e lembranças estão sempre contextualizadas
dentro do seu grupo étnico, dos pomeranos, com a cultura com a qual se identificam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O papel submisso da mulher e seu trabalho sobrecarregado é perpetuado,


atualmente, principalmente por mulheres mais velhas, que se dedicam à vida
camponesa e que, dentro do contexto familiar e social, buscam manter seus modos
de vida. Mas, por outro lado, ao analisar o contexto contemporâneo, muitas mulheres
pomeranas já pretendem buscar outras profissões e outras perspectivas longe do
campo, pois se percebe que a mulher pomerana que continua sua vida no campo e
dedica-se à agricultura terá maior número de tarefas do que seu marido, ou outros
homens da casa. Isso vai ao encontro de Barth (2011, p. 204), que afirma que “o
material humano que é organizado em um grupo étnico não é imutável [...] o

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material humano não é estático”, ou seja, a cultura de um determinado grupo


étnico não é intocável, pelo contrário, é dinâmico, se modifica e se reinventa com os
acontecimentos que se perpassam. Percebe-se que nas narrativas fica subentendido
que a cidade é vista como um local em que a mulher tem menos afazeres do que
no campo.
As tarefas realizadas pelas mulheres nas famílias e propriedades pomeranas
caracterizam a sociabilidade deste grupo, em que a figura feminina é considerada
fundamental para o funcionamento da casa e da propriedade.
Segundo os autores que trabalham com a temática, trazidos para o debate deste
texto, junto com as narrativas e memórias das mulheres descendentes de pomeranos,
é possível perceber que, ao longo do processo de colonização pomerana, a atuação
da mulher foi muito importante para manter a propriedade, a casa e cuidar dos filhos.
Sem sua dedicação, muitas propriedades não teriam conseguido obtido sucesso.
Porém, seu trabalho sempre foi árduo e cansativo, com o cotidiano sobrecarregado
de tarefas, pois, como descrito nas narrativas, muitas mulheres ainda enfrentam a
mesma rotina que outras viviam em anos anteriores. Mas, contudo, muitas mulheres,
principalmente as mais jovens, buscam seu espaço e seus direitos, com mais igualdade
e melhores oportunidades.
A trajetória de muitas mulheres pomeranas, ao longo dos anos, expressa memórias
sobre seu papel na sociedade e perante outros homens, possibilitando uma discussão
a respeito da temática de gênero bastante presente na contemporaneidade. Mesmo
que seja em pequenas escritas ou demais projetos, é necessário dar voz às mulheres,
não só as pomeranas, mas todas aquelas que foram e ainda são marginalizadas pela
sociedade.
A partir da proposta do trabalho e com as narrativas das entrevistadas atreladas
com diferentes autores, percebe-se que, na maioria dos casos, a mulher pomerana
agricultora exerce um papel de submissão dentro de seu contexto familiar e social.
Conclui-se que este papel submisso das mulheres pode ser percebido em diferentes
grupos étnicos, sendo algo construído ao longo de sociedades patriarcais. Mas,
salienta-se que, neste trabalho, o enfoque foi o grupo étnico dos descendentes de
pomeranos, e os papéis femininos a partir desse grupo camponês presente no sul
gaúcho, portanto, buscou-se abordar especificamente as mulheres desse grupo étnico
que, em casos expressivos, têm muitas tarefas dentro de uma única propriedade.

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Pelotas: Editora Universitária, 1995.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

WEIDUSCHADT, Patrícia. O Sínodo de Missouri e a educação pomerana em


Pelotas e São Lourenço do Sul nas primeiras décadas do século XX: identidade
e cultura escolar. 2007. 256 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2007.

FONTES ORAIS

S., I. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
K., F. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
A., R. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

MEMÓRIAS SOBRE A NACIONALIZAÇÃO DO


ENSINO EM ESCOLAS TEUTO-BRASILEIRAS
LIGADAS A SÍNODOS LUTERANOS (1933 – 1945)
ELIAS KRUGER ALBRECHT1

INTRODUÇÃO

Este estudo decorre da análise de doze narrativas de sujeitos alfabetizados em


escolas teuto-brasileiras ligadas a sínodos luteranos2 que atuavam junto às colônias de
imigrantes alemães e pomeranos3, na região meridional do Rio Grande do Sul. Esses
sujeitos iniciaram sua alfabetização em língua alemã e tiveram seu currículo alterado
durante a nacionalização4 do ensino, em que, entre outras medidas, ficou proibido
o ensino em língua estrangeira, o uso e a circulação da literatura estrangeira, para
diminuir a influência das comunidades de imigrantes estrangeiros no Brasil e forçar
sua integração junto à população brasileira (SEYFERTH, 1997).
A campanha de nacionalização do ensino, além construir uma uniformidade
linguística, visou, segundo Seyferth (1997), eliminar os demarcadores das diferenças
culturais, substituindo os símbolos étnicos por outros representativos da brasilidade.
Desta maneira, a nacionalização do ensino, enquanto uma reforma social e educativa,
não objetivou apenas transformações educacionais, mas também a formação de
uma cultura nacional alinhada aos interesses estatais disseminada “[...] por meio de
1  Mestrado em História Educação -Programa de Pós-Graduação em Educação da universidade Federal de Pelotas
(PPGE/UFPel). e-mail: [email protected].
2  Três tipos de Luteranismo foram atuantes entre as escolas comunitárias étnicas do contexto investigado:
*Sínodo de Missouri, atual Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB). Para saber mais, ver: Rehfeldt (2003).
*Sínodo Rio-Grandense, atual Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).Ver: Dreher (1984).
*Igrejas independentes, Instituições religiosas que atuam de forma autônoma sem vinculação a nem um sínodo.
Para aprofundar no assunto, ver: Teichmann (1996).
3  Nome dado aos imigrantes que vieram ao Brasil da antiga Pomerânia, que se situava nas costas do mar Báltico,
território atualmente incorporado pela Alemanha e Polônia. Hoje a sua cultura praticamente está extinta naquela
região mantendo-se viva entre algumas comunidades no Brasil que ainda preservam o dialeto e algumas práticas
culturais e religiosas. Para saber mais sobre, ver: Schaffer (2012).
4 A campanha de nacionalização foi implementada durante o Estado Novo, nome dado ao regime político
brasileiro de cunho autoritário e centralizador, instaurado por Getúlio Vargas em 1937 e durou até 1945. Para
aprofundar no assunto, ver: Seyferth (1997).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

livros didáticos de História, Geografia e Educação Moral e Cívica, escritos na língua


portuguesa normativa” (DIAS, 2006, p. 83).
Como não existia, até esse momento, no Brasil, um sistema educacional
padronizado em âmbito nacional, cerca de 2.500 escolas étnicas5 atuavam de forma
autônoma ou assistidas por instituições religiosas católicas e evangélicas luteranas,
em sua grande maioria, autorizadas pelos estados. Dessas escolas, 1.579 eram de
imigrantes alemães (LEHRERKALENDER, 1931, apud KREUTZ, 2010), cujo
currículo retratava aspectos culturais importantes da etnia, como a língua, os
costumes e a religiosidade.
Segundo Kreutz (2010), a forma como a nacionalização do ensino foi conduzida,
através da imposição de um modelo de uniformização cultural, trouxe consequências
traumáticas para a cidadania de milhares de imigrantes e seus descendentes. Para o
autor, esse efeito pedagógico teve um reflexo negativo na qualidade de ensino e
aprendizagem de toda uma geração, pois fez com que a escola se tornasse estranha,
tanto na língua como na escrita, para o aluno teuto-brasileiro.
Diante disso, esse estudo se propõe a discutir os reflexos da nacionalização
no currículo das escolas teuto-brasileiras ligadas a sínodos luteranos na região
meridional do Rio Grande do Sul, bem como o impacto desse processo no ensino
e na aprendizagem sob a perspectiva da memória de nove sujeitos que, de alguma
maneira, foram atingidos por esse processo durante a alfabetização. Porém, cabe
lembrar que a memória “não é um mero depósito de informações, mas um processo
contínuo de elaboração e reconstrução de significado” (PORTELLI, 2016, p.18).
Ou seja, a memória não é inerte ao contexto, o sujeito nunca irá rememorar o
acontecido sem o olhar e o julgamento do presente.

REFLEXÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS DA PESQUISA COM FONTES ORAIS

Este estudo faz uso da História Oral como meio de aproximação com
a memória de sujeitos que vivenciaram o processo de nacionalização do ensino
enquanto alunos de escolas étnicas religiosas/luteranas. Assim, a memória destes
sujeitos se apresenta como fonte histórica desse trabalho, enquanto a História Oral
corresponde à principal referência metodológica para a elaboração, sistematização
e análise das fontes orais. Assim, vale dizer que a História Oral, como as demais
metodologias de pesquisa, estabelece e ordena os procedimentos de um trabalho
(AMADO; FERREIRA, 2006). Trata-se, portanto de um

[...] conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto desdobrando-se


em entrevistas e cuidados com o estabelecimento de textos/documentos que podem ser analisados
e/ou arquivados para uso público, mas que tenham um sentido social (AMORIM, 2012, p. 111).

Esse recurso busca, assim, analisar determinados eventos ou situações a serem


esclarecidos de acordo com o estabelecimento de questionários orientados para fins

5  Alemãs, italianas, polonesas, japonesas. Para saber mais sobre essas escolas étnicas, ver: Kreutz (2010).

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específicos. A História Oral pode ser assim entendida como um evento motivado
por um encontro entre entrevistado e entrevistador, com o objetivo de produzir um
texto/documento gerado por um processo dialógico, em que a lembrança do passado
de um é motivada pelas questões apresentadas pelo outro. Porém, cabe lembrar,
conforme Alberti (2005), que a entrevista é uma fonte de pesquisa e não a história
propriamente dita e, como as demais fontes, necessita de interpretação e análise, para
refletir sobre o conteúdo da narrativa e produzir conhecimento histórico.
Cabe observar que o relato oral é uma representação sobre o acontecimento
a partir do olhar do entrevistado, em que ele se autorrepresenta como sujeito
individual e coletivo. Ecléia Bosi (2016) chama a atenção para a importância em
considerar as experiências de vida e da subjetividade dos participantes. Para a autora,
“A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com
a classe social, com a escola, com a igreja, enfim com os grupos de convívio e os
grupos de referência peculiares a este indivíduo” (BOSI, 2016, p. 17). Ressalta-se,
assim, que a memória está ressignificada a partir das relações estabelecidas com o
meio social no qual o indivíduo está inserido (HALBWACHS, 2003).
Semelhantemente, ao analisar entrevistas, é importante lembrar que os sujeitos
da pesquisa estão falando de um lugar no presente, logo não irão rememorar
totalmente o passado e, sim, falar sobre ele, ressignificando-o. O indivíduo que
rememora amadureceu durante esse intervalo de tempo, igualmente, ele reelaborou
o que viveu a partir do tempo transcorrido. Candau (2016) vai se referir a um
processo de organização e categorização da memória em que “[...] o narrador
parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de sua vida que
julga significativos no momento da narrativa” (CANDAU, 2016, p. 71). Assim, é
importante levar em consideração a forma como essas memórias se constituíram ao
longo do tempo e a maneira como foram expressas no momento da narrativa.
As narrativas são, assim, importantes instrumentos para auxiliar na compreensão
de perspectivas cotidianas em que o pesquisador tem a oportunidade de constituir
suas próprias fontes. Esse é o caso do presente estudo, que está motivado por
entender as consequências do processo de nacionalização do ensino sob a óptica do
aluno teuto-brasileiro que vivenciou na prática essa experiência.

MEMÓRIAS DE UMA ESCOLARIZAÇÃO MARCADA POR RUPTURAS

Construir uma narrativa histórica sobre a nacionalização do ensino significou


um desafio que envolveu diferentes nuances. Foram rememorações que ainda
causaram certa inquietude aos sujeitos entrevistados. As falas dos narradores são
interrompidas por períodos de silêncios e reflexões, seguidas por memórias que
apontam as dificuldades para se adaptar às mudanças na língua escrita e falada.
Nesse sentido Candau (2016, p. 72) infere que “recordar, assim como esquecer, é
operar uma classificação”. Para o autor, a memória é organizada por “lembranças
e esquecimentos” e também por acontecimentos que, de algum modo, marcaram
a vida do sujeito. Desta maneira, é importante ter em mente que o sujeito que se
dispõe a narrar sua história irá silenciar certos dados e organizar os acontecimentos

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de modo a atribuir-lhes um sentido, um ordenamento e uma causalidade pertinente.


As narrativas não deixam dúvidas de que existia uma tradição escolar anterior à
nacionalização do ensino. No contexto anterior à imposição da política nacionalista,
a escola era tida como uma condição básica na vida dos teuto-brasileiros. Para eles,
a alfabetização era algo constitutivo da identidade cultural, reconheciam que, para
poder participar dentro da estrutura comunitária, tanto no âmbito do trabalho
quanto no aspecto social e religioso, era necessário ter uma educação básica
secular e religiosa. Para Martim V. Wille6 (2018), “essa tradição religiosa e escolar,
os imigrantes trouxeram do além-mar [...] os primeiros que vieram da Alemanha já
tinham essa cultura do estudo, porque lá já era assim, tinha a igreja e a escola”. Desta
maneira subsidiado pela memória social, essa narrativa mostra que o processo de
escolarização da imigração alemã exprime pertencimento e identidade (POLLAK,
1992), ao afirmar que o modelo de escolarização das comunidades teuto-brasileiras
tratava-se de uma adaptação de práticas escolares e religiosas trazidas na bagagem
cultural da imigração.
Coube à igreja institucionalizada, no caso do presente estudo, os sínodos
luteranos, Rio-Grandense e Missouri, suprir as necessidades educacionais através
de uma organização curricular, na qual as crianças aprendiam o essencial para
poder participar da estrutura comunitária. Conforme as narrativas de Eurico Wolter
(2016), que teve toda sua alfabetização em língua alemã, antes da implantação do
novo currículo, aprendia-se o necessário para participar ativamente no contexto
social e religioso que era “[...] ler, escrever na lousa e fazer contas mentalmente,
catecismo e doutrina”. As mesmas afirmativas podem ser observadas nas narrativas
de Herta M. Tessmann (2018), que parou de frequentar a escola regular no ano em
que se implantou a obrigatoriedade do ensino em língua portuguesa. Segundo ela,
aprendia-se o básico que consistia “nas coisas relacionadas com os ritos da igreja, mais
os conhecimentos que eram aplicados no dia a dia [...] não tinha muito mais que isso,
história só se tinha as bíblicas” (HERTA M. TESSMANN, 2018). Ambos recordam
um currículo que tinha como ponto central o ensino religioso e suas ramificações,
seguido das práticas de leitura, escrita e as operações elementares da matemática, o
que era, segundo Weiduschadt (2007), bastante valorizado e difundido nas escolas
sinodais. As práticas escolares enfatizavam métodos que possibilitavam a inserção no
contexto social e garantiam uma aproximação entre a igreja e a escolarização.
Porém, toda essa organização étnica e comunitária foi enfraquecida pela
política de nacionalização do ensino que rompeu com o desenvolvimento
espontâneo da escola étnica, que ensinava em sua língua materna, por um sistema
educacional público e submetido ao controle estatal. Esta mudança curricular,
segundo Ilma B. Reichow (2016), fez com que a escola se tornasse estranha para
os alunos teuto-brasileiros. “Nós tínhamos um currículo secular e religioso em
língua alemã, de repente proibiram, tinha que ser em português, [...] passamos a ter
aulas de gramática portuguesa, geografia, história, ciências, civilidade, eram várias
matérias” (REICHOW, 2016). Para ela, que já estava alfabetizada em língua alemã,

6  Os narradores ao longo do texto são mencionados pelo nome e sobrenome e a referência completa da entrevista
encontra-se no final do trabalho, junto às referências bibliográficas.

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a substituição do currículo e a imposição da obrigatoriedade do uso da língua


portuguesa a obrigou a recomeçar novamente a sua escolarização. “No começo
foi muito difícil, precisei aprender tudo novamente, pois o português era tudo tão
estranho para mim, [...] mas com o passar do tempo fui aprendendo” (, 2018). Ela
enfatiza, assim, ter passado por dois processos de alfabetização, o que dificultou sua
aprendizagem, fazendo com que ela não alcançasse uma escolarização satisfatória,
devido às lacunas que ficaram em aberto entre os dois currículos. Além disso, a
maioria dos narradores não pode contar com o auxílio dos pais na hora de fazer
as lições de casa, conforme esclarece Ilsa K. Neunfeldt (2018), “foi uma época bem
difícil, meu pai e minha mãe não conseguiram me ajudar pois só entendiam o
alemão e como tinha mudado para o português ele não entendia”.
A nacionalização do ensino impactou de maneiras diferentes o processo de
ensino e aprendizagem desses sujeitos, enquanto uns falam de superação frente ao
novo currículo, para outros, o novo currículo significou a evasão escolar. Esse é o
caso de Renilda U. Schellin (2016), que afirma não ter frequentado a escola muitos
anos em tempo integral, “comecei a estudar em alemão, tempo depois proibiram, foi
um tempo muito difícil [...] não conseguia acompanhar daí passei a ir só nas aulas
de catecismo e ensino confirmatório7”. Situações semelhantes podem ser observadas
em outros relatos, de pessoas que alegam ter evadido da escola devido às dificuldades
em se adaptar ao novo currículo, porém não abriram mão de frequentar as aulas
de cunho religioso, que, em muitos casos, nesse período, passaram a ser ministradas
nos turnos inversos. Com isso, destaca-se o quanto a questão indentitária étnica
alemã e pomerana estava entrelaçada com a questão religiosa. Wille (2011) destaca
que, para essas comunidades, era inadmissível passar pela vida sem ter passado pela
instituição escolar e religiosa, sendo que a escola deveria estar a serviço da igreja.
Desta maneira, para muitos destes sujeitos, a nacionalização do ensino representava a
interrupção de um processo cultural que vinha sendo mantido há quase um século.
Para estes sujeitos, mais importante do que aprender a ler e escrever em língua
portuguesa era cumprir os ritos religiosos que se entrelaçavam com o currículo
escolar. A interrupção desse processo causou certo estranhamento a ponto de muitos
não se adaptarem e evadirem a escola secular, passando a frequentar somente as aulas
de ensino religioso.
Para muitos, a mudança do currículo escolar deixou marcas de rompimento, o
que ainda causa desconforto ao falar sobre a escolarização. As narrativas refletem as
tensões sofridas com a proibição da língua alemã e o medo de não se adaptar ao uso
da língua portuguesa. Para a maioria dos narradores, o principal desafio foi aprender
a língua. Leopoldina S. Albrecht (2018) recorda que “muitas crianças passaram por
dificuldades para aprender a ler, escrever e falar em português. Isto porque não
sabiam se comunicar [...] mas na aula não se podia falar alemão, o professor dizia que
não podia, aí quem não sabia, não falava, ficava quieto”. Sendo assim, os primeiros
anos da nacionalização, além provocar um silênciamento cultural, atrapalharam o
7  Ritual praticado pelos luteranos equivalente a crisma católica, em que o sujeito é submetido a um exame de
aptidão para fazer a primeira comunhão. No meio luterano pode ser considerado um rito de passagem, em que a
criança, depois de confirmada, pode namorar e sair em bailes. Assim nessas comunidades ela é considerada jovem.
Para saber mais sobre ver Weizenmann (2014).

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processo de ensino e aprendizagem desses sujeitos, apesar dos esforços do professor


para explicar o significado das coisas através oralidade (OTTO SCHELLIN, 2016).
Segundo Kreutz (1994), a forma como se deu a nacionalização forjou uma
geração de analfabetos entre estas comunidades, visto que os sujeitos, que vinham
tendo sua alfabetização em língua alemã e bruscamente foram forçados a estudar
em língua portuguesa, acabaram não conseguindo consolidar o processo de
alfabetização satisfatoriamente. Como é o caso de Adolfina K. Neitzke (2016), que,
em suas narrativas, afirma que no ano de 1938 teve apenas algumas aulas escondidas
na casa do professor, pois, com a proibição do ensino em alemão, o fato não saber se
comunicar em língua portuguesa e nem escrever tornou inviável a sua frequência à
escola regular. E como já estava concluindo seu processo de escolarização optou pela
confirmação o que a liberava da obrigatoriedade de frequentar a escola segundo os
rituais das comunidades alemãs e pomeranas, em que o período de escolarização era
visto também como um tempo de preparação para esse ato de passagem religiosa
que marcaria a entrada na vida adulta (WEIZENMANN, 2014).
Havia ainda, segundo os narradores, o medo da repressão, pois o governo
fiscalizava as escolas na época. Leopoldina S. Albrecht (2018), que teve algumas de
suas cartilhas recolhidas pelos agentes da nacionalização durante uma fiscalização na
escola onde estudava, recorda que “o professor cuidava e repreendia quem falava o
alemão, pois, caso fosse denunciado, ele responderia perante as autoridades”. Então,
segundo Otto Schellin (2016), o medo da repressão fazia com que o professor se
tornasse mais rígido e com pouca tolerância ao uso de outra língua que não fosse
o português. Ele lembra ainda com certo humor que “não podia falar em alemão,
mas de vez em quando alguém largava uma piada, daí já levava uma chamada do
professor” (OTTO SCHELLIN, 2016). Assim como os alunos, o professor também
acabava sofrendo pressão psicológica, pois era o alvo principal da nacionalização.
Segundo as narrativas, esse foi um período de uma fiscalização intensa por
intermédio dos interventores encarregados de fazer cumprir a ordem vigente.
Eles faziam visitas periódicas nas escolas étnicas para acompanhar o desenrolar do
processo de nacionalização das escolas. “Perguntava para as crianças sobre como
aprendiam e o que aprendiam. Olhava alguma coisa que os alunos tinham escrito
e os livros utilizados” (NEUNFELDT, 2018). Martin V. Wille (2018), que estudou
no auge da nacionalização, recorda de uma fiscalização invasiva e autoritária “[...]
vistoriavam tudo para ver se encontravam alguma escrita em alemão, livros, caderno e
se encontravam alguma coisa, apreendiam”. Segundo ele, esses livros eram recolhidos
e incinerados e caso o professor oferecesse resistência podia ser preso. Martim V.
Wille (2018) recorda ainda de uma manhã, do ano de 1942, quando dois elementos
representantes do governo chegaram de surpresa à escola e de forma alterada,

[...] perguntaram para os alunos se era ensinado o alemão, ai os alunos responderam que só a
língua portuguesa, ai se acalmaram e fizeram uma revista nos livros dos alunos e do professor para
ver se tinha alguma coisa em alemão, mas não encontraram nada (WILLE, 2018).

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Seyferth (1997) ressalta que a ameaça nazista foi utilizada nesse período para
desculpar os excessos políticos cometidos principalmente através da violência
simbólica sobre as escolas estrangeiras. Além disso, no testemunho de Herta
Tessmann (2018), o fato da nacionalização do ensino ter coincidido com a Segunda
Guerra Mundial tornou-se um agravante, pois o governo brasileiro apertou ainda
mais a fiscalização sobre a literatura alemã naquele período. A respeito da fiscalização
nesse período alguns recordam a atuação de Silvia Melo, representante regional da
Secretaria Estadual de Educação, que fazia visitas periódicas nas escolas étnicas para
acompanhar o desenrolar do processo de nacionalização nesses educandários.
Para a maioria dos narradores, existia, na época, uma severa fiscalização por
parte das autoridades em relação ao uso das línguas alemã e pomerana, o que gerava
certa tensão entre os colonos, pois eles afirmam que não tinham culpa de não
saber falar o português, sendo que eles não tiveram outro ensinamento em sala de
aula a não ser o alemão. Segundo Martim V. Wille (2018), “Tinha que falar! Tinha
que aprender! Tinha que mudar, nos vivíamos num país que era comandado por
luso-brasileiros, então a transformação foi se fazendo aos poucos”. Para ele, havia
também muita resistência por parte das próprias crianças das comunidades teuto-
brasileiras que se negavam a aprender o português, pois não queriam deixar de falar
o alemão. “Então tinha momentos que o professor se obrigava a ser mais ríspido
com essas crianças, pois era para o bem delas” (WILLE, 2018). Com isso, é possível
observar que, muitas vezes, o estado dependeu da assistência do professor, pois não
conseguiu subjugar as comunidades teuto-brasileiras a abandonar a tradição e a
cultura germânica.
Atualmente, alguns indícios apontam que a resistência, que teve como
princípio de ação manter a identidade étnica, colaborou com a preservação da
cultura e da memória teuto-brasileira. Muito disto se deve ao fato de que muitas
famílias teuto-brasileiras criaram estratégias para burlar a fiscalização e salvaguardar
sua memória da destruição. Conforme explicitado por Ilma B. Reichow (2016), que
ainda mantém o hábito da leitura das cartilhas utilizadas durante o período de sua
escolarização, suas cartilhas passaram por muitos anos esquecidas debaixo do porão
da casa, onde elas foram escondidas pelo medo da repressão. Corroborando tais
afirmativas, Ilsa K. Neunfeldt (2018) recorda que foi uma época bem difícil, porque
“a fiscalização vinha nas casas das pessoas vistoriar e pegava os livros para serem
queimados”. Recorda, ainda, que seu pai tinha certa quantidade de livros em alemão,
os quais ele teria escondido, pois não queria se desfazer deles, mas também não
poderia mantê-los dentro de casa e comprometer a integridade de sua família. Então

[...] eu ainda me lembro que o meu pai pegou os livros e colocou dentro de uma caixa cobriu
com plástico e os enterrou no mato e lá os deixou por um bom tempo [...]depois quando tudo
se acalmou, ele desenterrou os livros dele, mas sempre manteve-os meio escondidos em casa
(NEUNFELDT, 2018).

Percebe-se que existiu, por parte de algumas pessoas, um movimento no


sentido de salvaguardar sua memória de uma destruição generalizada, apesar de

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que, na maioria das casas, na prática, a fiscalização nunca tenha chegado, segundo
os testemunhos dos entrevistados. Porém, Candau (2016, p. 128), alerta que “[...]
o silencio ou a negação não significa sempre que é esquecimento”, ou que algum
fenômeno não tenha acontecido, visto que muitas pessoas tendem a negar certas
memórias que lhe causaram sofrimento. Ou seja, a fiscalização pode até ter ocorrido,
mas o sujeito para não sofrer optou pelo esquecimento, sendo assim, é preciso
relativizar. Para o autor, esquecer muitas vezes é “[...] a condição indispensável para
seguir adiante” (CANDAU, 2016, p. 128).
As memórias evidenciam que a política de nacionalização do ensino foi além
da proibição do uso da língua. O governo usou-se da autoridade dos interventores
estaduais que fiscalizaram as salas de aula e as moradias, numa tentativa de apagamento
da memória alemã através da destruição generalizada de qualquer vestígio de leitura
alemã. E é nesse sentido que Herta M. Tessmann (2018) complementa que foi um
tempo de muita apreensão, ao recordar que sua mãe possuía certa quantidade de
literatura alemã que tinha herdado do seu pai dos quais ela não queria se desfazer.
Então, segundo Herta, a sua mãe escondeu “a Bíblia e os livros que ela tinha em casa
num fundo falso embaixo do armário, [...] porque vistoriavam as casas”. Recorda
também que alguns dos seus livros escolares ficaram retidos na escola e que nunca
mais os recebeu. “[...] não sei o que fizeram com eles, mas eram meus! Meu pai os
tinha comprado” (TESSMANN, 2018). A narradora ressalta, assim, o valor cultural,
afetivo e monetário que as cartilhas e demais livros tinham para a família.
Por outro lado, é importante ressaltar que, no momento em que a nacionalização
do ensino começou a ganhar espaço em âmbito nacional, muitas das escolas étnicas já
haviam percebido a necessidade de se integrar com a língua portuguesa. Conforme
recorda Eurico Wolter (2016), que estudou antes da fase repressiva da nacionalização,
ele afirma ter estudado com um currículo em alemão, mas teve aulas de ensino da
língua portuguesa. Ao mesmo tempo, Martim V. Wille (2016) recorda que iniciou a
sua alfabetização em língua alemã, mas que já passou a ter aulas de português antes
de se impor a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em sala de aula.

Porque as crianças não sabiam falar o português aí tinha que adaptar elas aos poucos [...] Então a
substituição do ensino de alemão para o português vinha acontecendo naturalmente [...] a língua
portuguesa foi sendo introduzida aos poucos, ainda lecionavam um dia ou dois dias por semana,
no meu tempo, em alemão (WILLE, 2016).

Cabe lembrar que isso não foi uma prática comum a todas as comunidades
escolares teuto-brasileiras. Porém, destaca-se com a narrativa a mobilização de
algumas escolas teuto-brasileiras em se integrar com a comunidade luso-brasileira,
visando principalmente à expansão das atividades comerciais e novas oportunidades
de trabalho. Desta maneira, para alguns, a nacionalização do ensino rompeu com
o desenvolvimento natural das escolas étnicas ao intervir e acelerar um processo
que teria se dado ao natural. Porém, segundo Seyferth (1997), romper com o
modelo tradicional de ensino elementar, numa perspectiva de homogeneizar a
educação no Brasil, ia muita além da questão linguística. “Nacionalizar significava,

179
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principalmente, transformar usos e costumes, mudar uma tradição cultural e social a


partir da observação sociológica” (SEYFERTH, 1997, p. 118). Era necessário mudar
a mentalidade dos filhos, para impor, no lar, o espírito de brasilidade. Para tanto,
as crianças deveriam passar por um processo educacional de inculcação de valores
patrióticos.
Assim sendo, o Estado Novo entendeu que a educação era o meio mais fácil de
formar uma identidade brasileira e, ao mesmo tempo, coibir a cultura educacional
da escolarização étnica que tinha se formado no país. O novo currículo que
prescrevia o uso obrigatório da língua portuguesa e a intensificação do ensino da
história e da geografia brasileira em conjunto com aulas de moral e cívica tinha
como objetivo “[...] a formação de uma consciência nacional entre os cidadãos de
núcleos etnicamente homogêneos” (KREUTZ, 1994, p. 45). A esse respeito, pode-
se observar que todos os entrevistados atingidos pelo currículo da nacionalização
têm alguma lembrança relacionada às aulas pátrias dedicadas aos símbolos nacionais,
como hinos, poesias, peças teatrais, textos históricos e geográficos, que aludiam
à história do Brasil e à figura de Getúlio Vargas. Para Luca (1999), coube a esse
novo currículo apresentar o Brasil “idealizado por estes pensadores” e despertar nas
pessoas o orgulho de ser brasileiro.
Para consolidar efetiva nacionalização, além de desmantelar as escolas étnicas,
o Estado Novo passou a investir em mecanismos ideológicos e reguladores de
condutas, fazendo-se valer principalmente da propaganda, no intuito de construir
uma identidade nacional coletiva. Para dar suporte a esse programa, os currículos
escolares passaram a adotar o ensino de português, deram ênfase no ensino de história
e geografia do Brasil, e reforçaram as aulas de moral e cívica. Conforme explicita
Martim V. Wille (2016), “patriotismo era uma exigência do governo, tinha que
aprender, tinha que respeitar porque era é época de Getúlio Vargas, aí tinha as aulas
de civismo, Isso era o principal, as crianças tinham que aprender a serem patriotas”.
Ainda recorda com entusiasmo da presença do interventor de apresentações cívicas
da semana da pátria. As reminiscências vão às lembranças da fiscalização do governo
por intermédio dos interventores encarregados de fazer cumprir a ordem vigente.
Assim, nacionalizar o país passou a ser tarefa de educação moral e cívica,
de transmissão de valores nacionais para despertar nos teuto-brasileiros e tantos
outros grupos étnicos a consciência da nacionalidade brasileira. Conforme lembra
Adolfina K. Neitzke (2016) “agora nós éramos brasileiros e tínhamos que agir como
brasileiros”. Além disso, a representação de Getúlio Vargas como um modelo de
disciplina a ser seguido é de comum acordo em todos os testemunhos. Para eles,
o governante em questão representava muito mais do que um recurso ilustrativo
no livro didático, ou um quadro pendurado na parede da escola, assumia um papel
educativo no sentido de modelar comportamentos cívicos e patrióticos. Cabe assim
observar aquilo que Joly (2006) chama de estratégia do uso da imagem e o valor
simbólico que ela representa frente a uma sociedade, utilizada como mecanismo
para legitimar a construção dessa nacionalidade brasileira. Por outro lado, Ilsa K.
Neufelndt (2018) chama a atenção para as aulas de geografia e história que, segundo
ela, “[...] mostravam as grandezas do Brasil”, em que o luso brasileiro surge como

180
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

tipo ideal a ser adotado na construção da identidade nacional.


Desta maneira, a nacionalização do ensino no Brasil, segundo Kreutz
(1994), não só rompeu com o modelo tradicional de ensino elementar como
induziu a uma destruição generalizada de grande parte da memória histórica,
como livros, revistas, almanaques, jornais e muitos outros documentos do
período, destruídos pelos agentes do governo e pelos próprios colonos com
medo da repressão. Além de levar a um isolamento das comunidades, causado
pelo processo de restrição de cidadania que para Thum (2009), conduziu a
um fechamento identitário, que, de certo modo, ajudou a preservar a cultura,
bem como alguns materiais didáticos usados no período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das memórias escolares expostas neste texto foi possível observar
alguns aspectos que merecem ser evidenciados no conjunto da análise. Nelas fica
claro que a nacionalização do ensino não só interrompeu o uso da língua alemã nas
escolas étnicas, mas mudou toda a estrutura curricular dessas escolas que passaram
de um currículo secular e religioso, que retratava aspectos culturais importantes da
etnia, como a língua, os costumes e a religiosidade com ênfase no ensino religioso e
suas ramificações sendo o ponto central, seguido das práticas de leitura, escrita e as
operações elementares da matemática, para um currículo que valorizou conteúdos
seculares e patrióticos. Esse novo currículo objetivou inculcar um sentimento de
brasilidade, através da imposição da língua portuguesa escrita e falada, da prática
do civismo e do ensino de história e geografia do Brasil. Assim, a nacionalização
do ensino, enquanto uma reforma social, não objetivou apenas transformações
educacionais, mas também a formação de uma cultura nacional alinhada aos
interesses estatais.
O quadro de concepções sobre o contexto permite inferir que a política da
nacionalização do ensino exerceu um efeito de mudança sobre essas pessoas fazendo
com que muitas se isolassem e outras se sentissem desafiadas a aprender. Além
disso, as mudanças no currículo dificultaram em certa medida o aprendizado desses
sujeitos, sendo que os conteúdos ministrados na língua portuguesa, num primeiro
momento, não eram compreendidos. Desta maneira, as narrativas refletem as tensões
sofridas com a proibição da língua alemã e o medo de não se adaptar ao uso da
língua portuguesa. Em contrapartida, os sujeitos apresentam memórias marcadas
por continuidades e interrupções, refletidas em suas vivências domésticas e alinhadas
com as tradições étnicas e culturais.
Tendo em vista os aspectos observados, destaca-se que a política de
nacionalização do ensino foi além da proibição do uso da língua, houve uma
tentativa de apagamento da memória alemã através da destruição generalizada de
toda e qualquer forma de expressão estrangeira em prol de uma cultura nacionalista.
Por outro lado, fica claro que estas pessoas não estavam alienadas aos acontecimentos
em voga no país, pelo contrário, não só acompanhavam as discussões como se
preparavam para se salvaguardar frente a possíveis fiscalizações por parte do governo.

181
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Para concluir, quer-se ressaltar a importância da história oral nas pesquisas


que buscam analisar processos de escolarização étnica cultural, pois ela permite
levantar dados e problematizar a partir das experiências e representações dos sujeitos
envolvidos. Conforme lembra Halbwachs (2003), a nossa memória não se apoia na
história aprendida, mas na história vivida.

REFERÊNCIAS

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182
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

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Canguçu - RS. Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
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184
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

SER PROFESSOR EM ESCOLAS RURAIS: PARA


ALÉM DA DOCÊNCIA
PATRÍCIA WEIDUSCHADT1
RENATA BRIÃO DE CASTRO2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objetivo do presente estudo é analisar cinco narrativas, as quais foram


realizadas com professores pertencentes a comunidades étnicas de descendência
alemãs e italianas, e outras com familiares dos professores. As entrevistas foram
realizadas por diferentes pesquisadores em diferentes momentos. Dentro das
temáticas presentes nestas, serão analisados temas referentes a histórica da educação,
especificamente o papel de docente dos sujeitos entrevistados e a inserção na
comunidade local. Esses professores lecionaram em escolas rurais no interior e nos
espaços rururbanos3 dos municípios de Pelotas e envolveram-se, também, no meio
comunitário. Como mencionado anteriormente, essas comunidades estão situadas
em áreas de colonização italiana e alemã e, por isso, a categoria de identidade étnica
(WOODWARD, 2014; POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011) é fundamental
para compor o referencial teórico metodológico deste estudo. Num primeiro
momento, discutir-se-á o conceito de etnicidade com aporte nas memórias de
sujeitos docentes. Para analisar as fontes orais, utiliza-se a metodologia da história oral
(AMADO; FERREIRA, 2006; GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012; PORTELLI,
2010 e outros), a fim de problematizar como esses sujeitos produzem uma memória
coletiva (CANDAU, 2014; HALBWACHS, 2003; POLLAK, 1992) de abnegação e
dedicação à atuação profissional, extrapolando a docência. As cinco narrativas são
1  Doutora em Educação pela Universidade do Vale dos Sinos- Professora efetiva da Faculdade de Educação-
Programa de pós graduação em educação, Universidade Federal de Pelotas. Email: [email protected].
2  Doutoranda em educação pelo Programa de pós graduação em educação, Universidade Federal de Pelotas.
Email: [email protected].
3  Este conceito se define por áreas que podem ser consideradas urbanas e que ainda mantém resquícios de
ruralidade, ou seja, os elementos do rural e urbano mesclam-se. Espaços rururbanos podem ser as periferias das
cidades, que, mesmo sendo próximas do espaço urbano, mantém elementos geográficos, culturais e econômicos da
zona rural (PINTO; SALAMONI, 2012).

185
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

assim compostas: duas professoras envolvidas em escolas luteranas com grupos de


predominância alemã-pomerana: Ida Strelow de Castro, professora da escola étnica
luterana na Guabiroba4 e Nivea Prestes, professora das escolas dominicais5 em igreja
luterana; e três filhos do professor José Rodeghiero, o qual lecionava numa região
de colonização italiana: Ariano Rodeguiero, Natal Rodeghiero e Neri Rodeguiero.
O professor Rodegheiro atuou numa escola pública por mais de duas décadas
na Colônia Maciel. As entrevistas com Ariano e Natal Rodeghiero fazem parte
de um conjunto de 32 narrativas salvaguardadas no banco de dados do Museu
Etnográfico da Colônia Maciel (de agora em diante MECOM). Esse conjunto de
entrevistas foi produzido na etapa de implantação do referido museu e teve por
finalidade constituir um banco de dados para acesso futuro de pesquisadores. A
terceira entrevista, com Neri Rodeghiero, foi realizada por uma das pesquisadoras
deste texto para sua pesquisa de mestrado.
Pode-se perceber que não há uma uniformidade nas trajetórias das docentes
e nem no local de atuação; ainda percebe-se que a trajetória de um professor é
relembrada por seus filhos, mostrando como a docência era mesclada com a
convivência familiar. Por isso, os aspectos que diferenciam e aproximam as narrativas
serão levadas em consideração.

ETNICIDADE E MEMÓRIAS DOCENTES

Nesse trabalho, pretende-se abordar o conceito de etnicidade a fim de


compreender a constituição e a permanência da docência dos sujeitos envolvidos
em grupos étnicos. Por isso, o trabalho é apoiado em Barth (2011), que postula
que a etnicidade é construída e legitimada pelo sentido de pertencimento dos
grupos, ou seja, que o pertencimento étnico por determinado grupo social requer o
compartilhamento de representações e valores evidenciados por crenças comuns. O
autor menciona, ainda, que esses grupos possuem características gerais em comum:
eles se autoatribuem uma origem e são reconhecidos localmente como distintos.
Por isso, ao estudar a etnicidade, nesse contexto, visualizam-se muitas
imbricações, tais como: as clivagens entre as culturas alemãs e italianas, por vezes,
mescladas com as autodenominadas brasileiras, que são plurais e perpassadas por
distintividades específicas. Como afirmam Poutignat e Streiff-Fenart:

Estudar a etnicidade consiste, então, em inventariar o repertório das identidades disponíveis em


uma situação pluriétnica dada e descrever o campo de saliência dessas identidades nas diversas
4  Zona periférica do município de Pelotas, mas que no período de atuação da entrevistada era um bairro
rururbano, em que se mesclavam elementos do rural e do urbano. Ida atuou uma escola destinada aos membros da
igreja luterana, mas que, segundo relatos de entrevistada, também eram aceitos alunos de outros credos religiosos.
5  As escolas dominicais são um modelo educacional religioso, predominantemente de cunho protestante, em que
as crianças aprendem a doutrina cristã e a Bíblia de forma lúdica. Possuem planejamento próprio e buscam atingir
as crianças a partir de encontros e reuniões semanais. Como o pároco tinha muitas atribuições, algumas mulheres
eram orientadas para exercer a docência nesse espaço. Nesse caso, a professora Nívea atuou em escola dominical
na comunidade da Redenção, em espaço rurubano de Pelotas. Para saber mais sobre escolas dominicais, ver em
Ramos (2013).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

situações de contato. A análise situacional da etnicidade liga-se ao estudo da produção e da


utilização das marcas, por meio das quais os membros das sociedades pluriétnicas identificam-se e
diferenciam-se, ao estudo das escolhas táticas e dos estratagemas que acionam para se safarem do
jogo das relações étnicas (2011, p. 117).

Diante dessa discussão, observa-se que a etnicidade e a identidade constituem


conceitos que devem ser considerados de maneira interligada para analisar as
situações pluriétnicas apresentadas neste estudo. Cabe ressaltar, assim, que os grupos
imigratórios ancoram-se na autoatribuição de possuir uma origem comum e
precisam ser reconhecidos como distintos, mas, também, se adaptam na aceitação
de sujeitos fora de seus grupos étnicos conforme lhes convêm. É o caso de uma das
professoras desse estudo, Nívea, que, apesar de não ser de descendência alemã ou
italiana, é reconhecida por meio da instituição religiosa e escolar.
Por isso, como abordam Poutignat e Streiff-Fenart (2011), a etnicidade é um
movimento realizado constantemente pelos grupos nas marcas e pertenças étnicas,
incluindo táticas e estratégias para burlar as demarcações quando tal ação convém.
Assim, entende-se o conceito de etnicidade como uma construção, percebe-se as
diferentes nuances da trajetória docente e da aceitação nos grupos, que podem ser
étnicos ou não, mas, nesta discussão, interessa pontuar a legitimidade da atuação
docente pelo pertencimento étnico.Assim, o pertencimento étnico desses narradores
vincula-se aos espaços de sua atuação. De certa forma, foram escolhidos ou puderam
escolher ocupar esses espaços, pela associação étnica, religiosa e linguística dos grupos
que precisavam de escolarização. Cabe destacar que se entende que as identidades
são relacionais e não naturalizadas na forma essencialista (WOODWARD, 2014).
Elas são mobilizadas no momento de estabelecer diferenças com outros grupos,
enfim, nas fronteiras entre diferentes comunidades (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011).
Por isso, percebe-se a aceitação e o acolhimento desses sujeitos nessas escolas
comunitárias. Eles reforçam a manifestação de uma identidade que talvez outro
docente oriundo de outro grupo étnico ou grupo religioso não conseguisse obter
reconhecimento comunitário. Poutignat e Streiff-Fenart (2011) compreendem que
a etnicidade e o pertencimento étnico é um processo em movimento e não a cultura
congelada de aspectos que classificam determinados grupos sociais.

[...] A etnicidade não é vazia de conteúdo cultural (os grupos encontram ‘cabides’ nos quais pendurá-
la), mas ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta. Ela implica sempre
um processo de seleção de traços culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los
em critérios de consignação ou de identificação com um grupo étnico [...] (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011, p. 129).

Na discussão da citação acima, enfoca-se que, a partir da análise da trajetória


profissional desses sujeitos, eles acreditam que pertencem a um grupo cultural
totalmente homogêneo. Esta ideia não se sustenta, pela variabilidade e caráter
dinâmico dos processos étnicos implicados.

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Neste sentido, pode-se associar o processo de etnicidade e identidade com o


processo de rememoração, considerado como coletivo (HALBWACHS, 2003). No
entanto, as entrevistas, aqui apresentadas, estarão centradas no indivíduo. A conversa
foi estabelecida com o sujeito relembrando sua trajetória de vida. Mas ao recordar,
eles também compartilham aspectos de sua trajetória profissional docente relembrada
por meio dos discursos oficiais, dos colegas de profissão e de seus familiares. O
sujeito reelabora as histórias de sua vida, no momento presente (POLLACK, 1992).
Assim, ele nos conta a partir de suas experiências vividas. Dessa forma, não se pode
esperar de memórias a versão realista do que aconteceu. O próprio acontecimento,
como nos diz Paul Veyne (1995), não são dados geométricos nem racionalidades
ordenadas, mas, na expressão do autor, são “cruzamento de itinerários possíveis”.
Por isso, ao rememorar o vivido, os sujeitos percorrem caminhos para construir a
memória e junto com ela, a identidade. Candau (2014) traz a discussão das teses de
Halbwachs na elaboração dos quadros sociais da memória, em que a experiência
individual se assenta na experiência coletiva, e estas vivências vão se processar com
maior ou menor intensidade de acordo com a força do grupo social.

[...] Por isso, é um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade. Quando
esse ato de memória, que é a totalização existencial, dispõe de balizas sólidas, aparecem as
memórias organizadoras, poderosas, fortes, por vezes, monolíticas, que vão reforçar a crença de
uma origem ou uma história comum ao grupo. Quando há uma diluição desses marcos, confusão
de objetivos e opacidade de projetos, as memórias organizadoras não chegam a emergir, ou
permanecem fracas, esparsas: nesse caso a ilusão do compartilhamento se esvanece, o que
contribuiu para um desencantamento geral. [...] Não se deve procurar nenhuma cronologia nesse
modelo. Pois como já destaquei várias vezes, é no mesmo movimento dialético que a memória
vem confortar ou enfraquecer as representações identitárias,e estas vêm reforçar ou enfraquecer a
memória. [...] (CANDAU, 2014, p. 77-78).

Cabe destacar, na análise do autor, imbricamento entre memória e identidade,


observando que a relação de um ato memorialístico poder ser mais evidente ao
conseguir aparentar a homogeneidade dos grupos identitários, tanto na questão
do pertencimento étnico como do pertencimento profissional. Pode acontecer o
processo inverso: os sujeitos não revelam em suas lembranças o que não os identifica
em sua trajetória considerada menos importante ou sem valor na concepção dos
grupos envolvidos. Por exemplo, muitas vezes, nas narrativas dos docentes ou,
nesse caso, dos filhos do docente, o discurso foi permeado por interrogações e
descrédito da importância de sua trajetória na história da educação da comunidade.
Apesar de as falas destacarem que suas ações tinham sido fundamentais para a escola
subsistir, não acreditavam que a entrevista concedida auxiliaria na constituição
de uma pesquisa séria que abordasse a constituição das escolas comunitárias. Os
sujeitos, filhos do professor, também não demonstraram ênfase maior na atividade
docente, evidenciando nos discursos outras atribuições assumidas pelo pai, além da
docência, que o colocaram como destaque na comunidade. Por outro lado, é visível
sua vinculação identitária com a comunidade para que se tornassem professores.

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Essa é reforçada pelas lembranças positivas, revelando o apoio do grupo social na


empreitada docente.
Assim, por meio das narrativas, quer-se enfatizar as diferentes trajetórias, mas
que são entrelaçadas pela docência exercidas nas comunidades, porém, ao mesmo
tempo, também, pretende-se apontar as aproximações e as confluências da docência
em espaços de grupos étnicos, evidenciando aspectos do envolvimento docente
pelas demandas comunitárias e pelos discursos de abnegação total ao trabalho. Ainda,
as narrativas são permeadas pelo apaziguamento dos conflitos na comunidade e as
relações com os religiosos, permitindo compreender a relação do grupo étnico com
a religiosidade.

NARRATIVAS DA DOCÊNCIA

Como já foi apresentado, nesse artigo serão analisadas cinco narrativas de


professores que trabalharam além da docência, porque havia uma relação com o
grupo étnico e religioso, além das práticas pedagógicas em sala de aula, mas, por
meio dos discursos, os professores envolveram-se no cotidiano comunitário. Essas
entrevistas foram realizadas em diferentes contextos por diferentes pesquisadores e,
neste momento, foram reagrupadas neste texto para aprofundar alguns itens que em
outras pesquisas não foram suficientemente exploradas. Os sujeitos entrevistados
possuem uma trajetória diferente, mas que se entrelaçam pela relação entre a docência
e o envolvimento comunitário. Abaixo, tem-se uma apresentação dos entrevistados
e alguns aspectos destacados.

Quadro 1- Apresentação dos entrevistados, nome, formação/função, local de atuação, grupo étnico majoritário, tipo
de entrevista e data da entrevista.

Descendente Entrevista Data da


Nome: Formação: Local de atuação
de: realizada por: entrevista:
Ida Strelow Professora leiga Guabiroba- periferia Alemão Realizada pela 2011
de Castro de Pelotas pesquisadora
Nívea Prestes Professora de séries Escola dominical Luso Realizada pela 2011
iniciais e de escola em comunidade pesquisadora
dominical luterana de Pelotas
Ariano Filho do professor Colônia Maciel- Italiano Realizada pelo 2000
Rodeguiero José Rodeguiero Pelotas Mecon
Natal Filho do professor Colônia Maciel- Italiano Realizada pelo 2000
Rodeguiero José Rodeguiero Pelotas Mecon
Neri Filho do professor Colônia Maciel- Italiano Realizada pela 2016
Rodeguiero José Rodeguiero Pelotas pesquisadora

Fonte: quadro elaborado pelas autoras, 2019.

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Dado o potencial das entrevistas, escolheu-se definir algumas temáticas para


melhor analisá-las. A primeira delas é a inserção do docente no espaço comunitário.
As professoras Ida Strelow de Castro e Nívea Prestes atuaram na instituição
luterana pertencente ao Sínodo de Missouri, atualmente denominada Igreja
Evangélica Luterana do Brasil. Essa instituição, proveniente dos Estados Unidos,
instala-se no Brasil em 1900 e chega em busca de expandir a atuação nas zonas
coloniais de imigração, convencendo grupos e comunidades luteranas existentes.
No meio urbano e rururbano, como é caso desses locais de atuação dessas
professoras, havia uma necessidade de expansão missionária da instituição. Apesar
de essa instituição ser considerada oriunda de um protestantismo étnico histórico
(DREHER, 1984), essa organização movimenta-se em angariar fiéis de outras etnias,
podendo ser considerado um protestantismo de missão. É o caso da professora Nívea
Prestes, sua família, oriunda do interior de município vizinho de Pelotas, fez parte
da igreja luterana desde a infância, quando o pai dela aceitou o pároco luterano que
estava realizando um trabalho de missão entre grupos de lusos. Nesse caso, Nívea
tem seu pertencimento étnico vinculado a uma igreja considerada demarcada por
grupos étnicos alemães, mas o envolvimento com a religiosidade extrapola ser vista
como lusa e consegue engajar-se nas comunidades.
Ida e Nívea participaram da instituição desde a sua infância e viveram essa
fase na zona rural dos municípios de Pelotas e Canguçu6, respectivamente. Foram
educadas no espaço religioso, pelas escolas paroquiais e dominicais, conheciam as
metodologias de ensinamento doutrinário e cristão e, por isso, foram aceitas pela
comunidade. Mesmo que alguns dos alunos e círculos sociais não tivessem a mesma
vinculação religiosa, elas eram respeitadas por suas trajetórias. A professora Ida relata
como era a escola em que trabalhou na periferia, enfrentando precariedades e
dificuldades e revela as estratégias usadas para disseminar os ensinamentos cristãos:

Sim, era só de tarde, primeiro começou de tarde, depois aumentou de manhã e de tarde, aí depois
começou a se pagar por mês as crianças, era uma mixaria, mas pagavam, tinha muitos que não
eram da igreja, agora é, uma aluna que foi minha ainda me disse que tem o material, eu só sei dizer
que plantada a semente foi se vingou, se cresceu, só Deus sabe, eu plantei Deus regou, isso que eu
posso dizer, mas levamos gente para a igreja, e como eu sempre fui, teatro nós fazíamos, não sei o
teatro cresceu comigo[...] (Entrevista Ida Strelow de Castro).

Assim, ela reforça que as práticas cristãs e lúdicas realizadas auxiliaram a


consolidar a escola, tanto que a escola passou a funcionar em dois turnos, mesmo
num contexto em que algumas crianças não pertenciam à igreja luterana. Esse
reconhecimento pelas comunidades é rememorado pela professora Nívea Prestes,
que juntamente com o pastor da comunidade trabalhou junto às crianças:

6  Município localizado a 53 Km de Pelotas, com grande área rural.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

[...] quando o pastor João Alves7, já estava aqui, ele já estava doente, eu fiquei quatro anos na
Coxilha dos Campos8, aí eu vim de lá em 1959, em 1960 eu ajudava ele, naquele tempo as aulas
não iam até perto do Natal, então eu já estava livre, ou nos sábados, nas escolas dominiciais, eu
ajudava ele, quase no final do ano, ele tocava violino e eu ensaiando os versinhos, a gente fazia o
programa de Natal [...] (Entrevista Nívea Prestes).

Percebe-se que o envolvimento da docência foi legitimado pela figura do


religioso e pretendia-se realizar um trabalho de destaque nas comunidades. Esse
envolvimento com as demandas da comunidade local pode ser representado pelas
festividades de Natal, que reunia os pais e as crianças para a apresentação teatral. As
estratégias iam da inserção em atividades que extrapolavam as atividades escolares,
como foi descrito acima.
De forma similar, o professor José Rodeghiero também encontrou estratégias
de aproximação com a comunidade local, legitimado também pelos religiosos da
região e pelos políticos locais.
O professor José Rodeghiero era descendente das famílias de imigrantes italianos
que se instalaram na localidade da Colônia Maciel. Conforme as entrevistas com os
filhos do professor, Natal e Ariano Rodeghiero, seus avós (pais de José Rodeghiero)
instalaram-se no Estado de Minas Gerais, onde nasceu José Rodeghiero no ano de
1894. Conforme esta entrevista com os filhos do professor, os pais deste, ao chegarem
ao Brasil, foram trabalhar no Estado de Minas Gerais. Após, alguns anos, vieram para
o Rio Grande do Sul trabalhar nas pedreiras, na localidade de Monte Bonito, no
município de Pelotas, e, quando finalizou o trabalho das pedreiras, instalaram-se
na Colônia Maciel. Conforme a narrativa, a ida à Colônia Maciel foi em razão de
que “já tinha muitos italianos lá” (Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero, MECOM
5). Aqui, percebem-se elementos da etnicidade presentes nestas narrativas, uma das
categorias de análise principais para a compreensão deste texto. Durante o período
em que o professor José Rodeghiero lecionou na Escola Garibaldi, escreveu um
documento manuscrito sobre intulado “Histórico da Escola Garibaldi”. A partir
desse documento, encontram-se algumas informações sobre o deslocamento do
professor para uma residência próxima a escola. Esta era uma prática comum na
época: o professor das escolas rurais residir próximo ou junto à escola.

[...] então, naquele tempo ainda não era prefeito, era subentendente, foi lá onde o pai lecionava,
lá na casa dele, em Campos Lima, em Caneleira e disse: olha tu tens que ir para a Maciel, é o único
que pode acertar aqueles italianos, então o pai foi para lá, mas aí depois teve que fazer concurso
para se efetivar lá (Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero).

Um dos filhos do professor ressalta que ele ministrou aulas em outra escola
rural antes de se estabelecer na Escola Garibaldi onde lecionou por mais de duas
décadas e foi o principal protagonista. Segue o depoimento:

7  Pastor negro que atuou na zona rururbana de Pelotas, próxima a “Comunidade da Cerquinha”.
8  Região do interior do município de Canguçu.

191
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A primeira foi a Garibaldi, eu nem sei que não foi, não tenho datas.
Foi 1929 que começou as aulas
Que começou em 1929?
Sim, em 1929 foi construída e em 1929 começou as aulas.
Então, o papai deu aula em outra escola antes, lá no Rincão da Caneleira, já ouviu falar nesse
nome?
Sim, é ali perto neh.
É ali perto. Eu me lembro, não sei que idade eu tinha, vinha o papai chegando da outra escola, um
dia de chuva, naquele tempo usavam essas capas que esses gaúchos usam e chapéu redondo para
não se molhar. Vinha chegando da outra escola para a Escola Garibaldi (Entrevista Neri Rodeghiero,
2016).

Conforme será pontuado nesta pesquisa, José Rodeghiero não exerceu somente
a função de professor na Colônia Maciel, mas esteve integrado à comunidade local.
Com base nas entrevistas realizadas, pode-se notar que o professor era participativo nas
famílias e nas questões da região. Em algumas notícias, veiculadas no jornal “Diário
Popular”, é possível perceber que o professor era membro influente na “Sociedade
Cooperativa Vitivinícola”, uma associação organizada para tratar questões referentes
à plantação de uvas na Colônia Maciel. De acordo com os periódicos locais, o
professor exercia a função de secretário e de orador nos momentos necessários. Com
isso, pode-se observar que a permanência do professor na escola e, mais do que isso,
a própria manutenção da escola foi influenciada pela figura pessoal do professor e o
vínculo com a comunidade. Na notícia do Diário Popular, é reproduzido o discurso
do orador da sociedade, o professor José Rodeghiero (DIÁRIO POPULAR,
11/10/1938, p. 12).
Nas entrevistas com os filhos dos professores estes trazem a seguinte memória:

P: Seu pai chegou a fazer bastante vinho?


E: Ih, bah, ele foi o fundador, tanto, que vocês já sabem, da Escola Garibaldi, como da Cooperativa
Vitivinícola Pelotas Ltda. De frente aos Casarin, bem em frente, não tem mais nada que preste ali
eu acho (Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero).

Assim, é importante pensar que essas memórias evocadas pelos filhos do


professor Rodeghiero estão cobertas de valorização do pai por parte dos filhos, o que,
de certa forma, é natural de acontecer. Entretanto, para o pesquisador, é necessário
atenção para não somente reproduzir essas narrativas, mas analisá-las dentro de um
contexto. Porém, essas narrativas não são inválidas, pelo contrário, configuram-se
como relevantes depoimentos para embasar a pesquisa. Aliadas a essas memórias, o
professor aparece como uma figura importante para auxiliar a comunidade em suas
necessidades e, também, como um mediador de conflitos, conforme elucidam os
dois trechos abaixo:

Eu já falei pra vocês já né, que eu passei... O pessoal lá fora muitos chamavam o papai de doutor
né, doutor, porque ele que entendia, tinha livros de medicina e tal, então primeiros socorros era

192
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

com ele ali, ai coisarada nem encaminhava [?] pra Pelotas só tinha [...] Daí trazia os doente...
(Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero);
Papai abraçou o cara, o cara era brigão, sabe quem era esse cara? Aquele que matou um se
guerriando. [...] era mais alto pouco coisa. Mas era um touro de forte e abraçou o cara com e
tudo aqui assim, torceu, dobrou os braços deles, dominou o cara né. Ai ele disse assim, “Professor,
o senhor eu respeito”. “Então vai pra casa, te manda pra casa”. Ele obedecia e foi pra casa...
(Entrevista Ariano e Natal Rodeghiero).

A partir dessas memórias, nota-se que, além da participação do docente nas


questões econômicas do grupo, como a já mencionada participação na Sociedada
Vitivinicola, envolvia-se nas questões sociais e de saúde do grupo, era visto como
pessoa instruída na comunidade e capaz de resolver as situações dificies no interior
da comunidade.
Outra rememoração recorrente nas narrativas é a temática do percurso
formativo dos professores. Um dos entrevistados rememora como o professor
ministrava aulas sozinho para as cinco turmas, e o respeito que havia por parte dos
alunos, conforme a narrativa:

De manhã e de tarde, depois ia fazendo aula até não sei que horas da noite, com aqueles lampiões,
minha nossa. [...] 1º, 2º, 3º, 4º e 5º ano, tudo misturado, era só uma salinha pequena, tu viu ali
o tamaninho do colégio, dividia entre manhã e tarde. Muitos alunos, apesar de que a gurizada
respeitava o professor. Mas era um espetáculo, a palmatória comia, era o tempo da palmatória,
tinha um gurizinho tinhoso [explica como é a palmatória], tinha um guri lá que seguido entrava na
palmatória, o bichinho era teimoso. Não se ouvia um barulhinho no colégio, ninguém conversava
(Neri Rodeghiero, 2016).

Sobre a formação de José Rodeghiero, nas narrativas é ressaltado que este


estudou por conta própria:

Eu acho que ele estudou foi sozinho, eu sei que ele foi nomeado, naquele tempo não dizia prefeito
era interventor, foi nomeado pelo interventor, não me lembro, não sei quem era. Não sei como é
que ele aprendeu, lendo em livros talvez, o papai sabia um monte de coisa, ele entendia, 5 matérias
assim e era puxado viu, entrava noite a dentro [...] Ah sim, de manhã e de tarde [perguntado se
ministrava aula o dia inteiro], depois ia fazendo aula até não sei que horas da noite, com aqueles
lampião, minha nossa (Neri Rodeghiero, 2016).

Interessante notar que as trajetórias desses docentes foram permeadas pelo


autodidatismo e pelas dificuldades de aprendizado para exercer a docência. Assim
como o professor José Rodeguiero, que estudou por conta própria, e é rememorado
pelos seus filhos como uma pessoa respeitada e requisitada, as professoras Ida e Nívea
revelam em suas memórias similitudes nesses aspectos. Nívea revela a forma de
ingressar na docência e ser reconhecida como professora na formação posterior pelo
curso da escola normal e depois observa as exigências na escola pública em que ela
trabalhou, reverberando essas experiências, também, na atuação da escola dominical:

193
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Depois fiz magistério e a gente observava as aulas dos professores, e eu como professora era
observada também, por exemplo, eu fiz de tudo nesta escola, eu dava injeção, eu cortava cabelo,
fui vice diretora nos últimos tempos, fui do Conselho de Direção, fui secretária de Pais e Mestre,
assim mesmo com tanto envolvimento no Assis Brasil, todos os sábados ia trabalhar na escola
dominical da igreja, o meu conhecimento do magistério e da prática de escola dominical me
ajudaram muito na minha formação (Entrevista Nívea Prestes).

Pode-se observar que a atuação docente da entrevistada em diferentes


espaços, escola formal e escola dominical, auxiliou no fortalecimento da prática
pedagógica, provocando reconhecimento em diferentes esferas sociais. A formação
do habitus9 professoral em internalizar determinados comportamentos, a partir
de demandas das instituições religiosas e educacionais, se mesclam e formam essa
docente para extrapolar o exercício de suas funções como meramente escolares.
Além do planejamento e de ministrar as aulas, ela deveria representar um papel de
referência na escola e na igreja, enfim, eram exigidas funções em que se deveria
ter responsabilidade. Do mesmo modo revela Ida, que, apesar da pouca formação,
mantinha envolvimento no meio escolar de forma assistencialista:

Isto, aí depois eu fiz outra prova para eu poder lecionar aqui. Eu tenho os papéis tudo aqui, e
lecionamos, organizamos as festas, Natal, Páscoa, todas as festas religiosas tinha. [...] Nós não
recebemos nada., pouca coisa, uma vez as crianças pagavam pouca coisa e o salário não tinha,
não tinha salário, eu trabalhava de manhã pelo que comia, uma vez nós ganhamos um dinheiro do
governo, as crianças pagavam, mas era pouca coisa (Entrevista Ida Strelow de Castro).

Ida apresenta a baixa remuneração ou a falta dela, a representação que faz da


docência é de assistencialismo e dedicação às crianças e o relacionamento estreito
com a comunidade. Além de ser professora, era necessário ainda organizar as
festividades escolares e comunitárias.
Esse abarcamento de múltiplas tarefas e ocupação de diferentes espaços pelos
docentes nas esferas de sociabilidade comunitária foi respaldada, fortemente, pelo
relacionamento com os religiosos. Mesmo a escola do professor José Rodeguiero
sendo pública municipal, a presença dos religiosos era forte no espaço comunitário
e havia entrelaçamentos visíveis entre o espaço escolar e religioso. Como revelam as
vivências das narrativas dos filhos do professor:

Eu fui muito tempo sacristão desse padre Schimidt, ele veio da Alemanha e gostava muito do
meu pai, até depois que saiu ele veio aqui em Pelotas visitar o meu pai, agora eu não sei, faleceu.
(Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero).
Acontecia as festas com a igreja e a escola trabalhando juntas para organizar (Entrevista Neri
Rodeguiero).

É possível pensar em uma ancoragem de reconhecimento e trocas mútuas


entre o espaço educativo e escolar, respaldado pela convivência com os religiosos
9  Ver Bourdieu, 1996.

194
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

locais. Esses convívios são relembrados pelos sujeitos como facilitadores no exercício
da docência. Como reforça Ida e Nívea:

[...] eu que não trabalhava com escola bíblica naquele tempo, a gente não sabia, eu vi o pastor
Alves dando, mas bem diferente que a gente faz hoje, claro, doutrina não é a mesma coisa, mas
na prática, mas ele não apresentava nenhuma figura, nenhum brinquedo, contava uma história,
cantava um pouquinho e fazia uma oração, antes um pouco da hora do culto (Entrevista Nívea
Prestes).

[...]aí eu vim para a cidade e continuei com o pastor Alves, com escolas bíblicas, aí ele viu o
meu interesse aí eu fiz uma provinha e passei, aí podia lecionar para os primeiros anos eu podia
lecionar, aí o governo nos deu um prédio para uma pessoa que tinha um terreno que não era da
igreja. Aí recebemos o prédio, o diretor o falecido pastor João Alves, aí eu dei aula, mas o nosso
maior interesse era a religião, então eu sempre contava história bíblica, mandamentos, tudo o que
a gente tinha, os hinos, sempre ensinava, era o nosso objetivo, e nos domingos nós levávamos
uma turma de crianças para a igreja, nas escolas bíblicas lá no centro, assim funcionou este colégio
(Entrevista Ida Strelow de Castro).

Depreende-se dessas entrevistas que o papel do pastor Alves foi o de legitimar


os espaços e mostrar, neste caso de escolas particulares religiosas, o fortalecimento
da religião e dos ensinamentos doutrinários. No caso de Nívea, ela reflete que
foi preciso modificar a prática pedagógica, considerada por ela como tradicional,
exercida pelo pastor. Por meio da experiência formal do curso de normalista, busca
a inovação por meio da ludicidade para melhorar o trabalho educativo nas escolas
dominicais, mas não desconsidera o trabalho pastoral. Já Ida reconhece o trabalho
político do pastor Alves em conseguir o prédio escolar e segue as orientações
institucionais de trabalho religioso como o mais importante.
Diante disso, percebe-se que as aproximações da formação docência apresentam
muitos aspectos comuns: o início do trabalho com dificuldades e esforço pessoal,
relacionamento intenso com as comunidades de atuação e confluência com os
princípios religiosos disseminados pelos párocos locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na análise dessas narrativas buscou-se entender os docentes em comunidades


rurais e a extrapolação de funções exercidas pela docência. Enfatiza-se que o próprio
entendimento do rural mereceu ser problematizado, porque alguns espaços de
atuação docente foram em zonas rururbanas, ou seja, nas zonas periféricas da cidade,
em que se mantêm elementos do rural e urbano.
Apesar das trajetórias dos docentes serem díspares e dos tipos de entrevistas serem
realizadas de forma diversa, buscou-se abarcar algumas temáticas de aproximação. A
atuação desses professores foi em comunidades étnicas, relacionadas com sentido de
pertencimento legitimados pela religiosidade. Há, portanto, uma memória coletiva

195
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

em relação à docência em apontar as dificuldades e a necessidade de abnegação e


participação efetiva no meio comunitário, não somente nas atividades escolares, mas
também, e especialmente, nas atividades extraescolares. Para isso, as aproximações
com os religiosos das instituições religiosas foram fundamentais para criar vínculos
e aceitação dos professores.
Além da docência, inúmeras atividades fizeram parte do cotidiano. José
Rodeguiero fundou uma cooperativa, atendia os cuidados médicos da comunidade,
participava e organizava as festas juntamente com a igreja. Nívea e Ida, além das
atividades escolares, planejavam atividades teatrais e de apresentações de natal.
O papel professoral pode ser considerado como relevante meio aglutinador do
grupo étnico, como uma instância educativa no meio, para isso foi preciso extrapolar
as atribuições pedagógicas no interior da sala de aula, necessitando se envolver com
os grupos e os espaços de sociabilidade que permeavam a escola.
Por fim, é necessário ressaltar a importância das entrevistas analisadas por meio
da metodologia da história oral e o potencial quando revisitadas. As entrevistas
utilizadas neste texto não foram realizadas para este fim específico, mas, sim, na
execução de outras pesquisas. Entretanto, após uma releitura deste material,
perceberam-se elementos que inicialmente não foram percebidos e utilizados.

REFERÊNCIAS

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Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, 2012. pp. 1-20. Disponível em: <http://
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196
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Acesso em 25 mar. 2015.


POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. 2. ed. São
Paulo: Unesp, 2011.
PRESTES, Nívea. Depoimento [jun, 2011] Entrevistadora: Patrícia Weiduschadt, 2011,
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RAMOS, André Luiz. Escola Dominical: história e situação atual. Programa de Pós
graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo,
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VEYNE. Paulo. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Trad de
Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 3. ed. Brasília, UNB, 1995.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomás T. da (org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
Petrópolis:Vozes, 2014, p. 7-73.

197
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

BILINGUISMO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


TENSÕES ENTRE CULTURA ESCOLAR E
CULTURA LOCAL E IDENTIDADE CULTURAL
MYRNA GOWERT BERWALDT1
CARMO THUM2

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO SOBRE A IMIGRAÇÃO DOS POMERANOS PARA O


BRASIL

Com o processo de imigração que ocorreu no Brasil, no período de 1820-1940,


o universo linguístico presente nos diferentes espaços geográficos na comunicação
através da língua se ampliou e muitas comunidades linguísticas passaram a fazer parte
do processo da vida brasileira. Este estudo é focado nas relações sociolinguísticas
vivenciadas pelo povo pomerano na Serra dos Tapes, onde o direito ao uso da língua
nos espaços sociais luta pela preservação, diante de um grande índice de silenciamento
da língua materna pomerana. Atualmente, ainda existem muitos pomeranos que são
monolíngues e proporcionam aos filhos, netos e demais componentes da família a
oportunidade de vivenciar a cultura através da fala, e desta forma fortalecem laços,
valorizam a tradição, modo de vida. Porém, em tantos outros casos a língua tem
se extinguido na terceira geração, em que os netos dos imigrantes sofrem com
a neutralização da língua através de imposição de língua única e homogeneidade
resultado da definição de legitimidade ou não da mesma, estipulada pelo mercado.
A Pomerânia se localiza junto ao mar Báltico, território hoje dividido entre a
Alemanha e a Polônia. A migração dos pomeranos da Pomerânia, em larga escala,
se deu a partir de meados do século XIX, com grandes índices imigratórios entre
1860 a 1880. Eram tempos difíceis na Pomerânia que se encontrava em pleno
estabelecimento de novas regras de terras e mudanças nas formas de trabalho.
Chegar a um novo país não foi uma tarefa fácil. A grande maioria dos pomeranos

1  Graduanda em Pedagogia, Bolsista de Iniciação Científica. Núcleo Educamemória-IE/FURG. e-mail:


[email protected].
2  Professor do PPGEdu-FURG - Em Pós Doc no PPGE-UFES. [email protected]

198
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era monolíngue. A busca pela sobrevivência e a manutenção da cultura e de seus


ritos culturais exigiu muita renúncia.
Do ponto de vista histórico, a própria Pomerânia convivia com disputas
linguísticas-político-religiosas-territoriais. Essas disputas também se colocaram no
cenário da América do Sul, mas de formas e modos diferentes. Aqui, as comunidades
conseguiram estabelecer processos de resistência linguística de tal forma que até o
presente conformam Comunidades Linguísticas com alto grau de vivacidade. Como
pomeranos, que por muitos anos ouvimos de diferentes sujeitos institucionais o
desprezo sobre nossa condição de falantes da língua, vivenciamos momentos de
negação e de preconceito cultural sobre nossas comunidades. Para muitas instituições,
mesmo de cultura imigrante, a língua pomerana foi e ainda é considerada apenas um
dialeto. No entanto, para a comunidade pomerana a ideia de dialeto é pejorativa, pois
assim sendo considerada linguisticamente não é reconhecida e respeitada. Isso revela
que a disputa pelos direitos linguísticos é também uma disputa por emancipação
cultural.
De acordo com pesquisa feita por Ismael Tressmann (2005), foi a partir da II
guerra mundial que o pomerano na Europa se tornou uma língua moribunda, pois
grande parte da Pomerânia passou a integrar a Polônia, o que ocasionou grande
movimentação de população naqueles territórios, gerando o enfraquecimento do
uso da língua pomerana por causa dos rompimentos das estruturas socioculturais em
território Europeu.

DO PROCESSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

O processo da pesquisa de campo ocorreu em três espaços, nos quais foram


utilizados diferentes instrumentos de coleta dos dados. Entre eles, o instrumento
de entrevistas com a comunidade falante do pomerano, na Serra do Tapes, o de
observação com descrição no Diário de Campo, e o de questionário. As entrevistas
se deram com sujeitos das comunidades, as observações se realizaram em duas
escolas da região e o questionário foi aplicado também com o público escolar. Os
sujeitos participantes da pesquisa, portanto, são membros da comunidade pomerana,
que são falantes da língua. Para a análise, utilizamo-nos de aspectos qualitativos e
quantitativos.
No caso da atual pesquisa, as crianças pomeranas, da Serra dos Tapes, convivem
com a língua pomerana desde o espaço familiar ao espaço da vida social. O
pomerano é exercitado com os pais e familiares, sendo, portanto, língua materna.
O português é segunda língua (L2)3 para os falantes da Língua pomerana. Segundo
Balboni (1999), a segunda língua é aquela aprendida por falantes não nativos, para
contemplar o contexto circunstancial de comunicação e acontece de forma natural
com a convivência em sociedade.

3  L2: Segunda língua.

199
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

LÍNGUA UM INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO E EXCLUSÃO

No cenário mundial, a perspectiva de homogeneização cultural se estabelece


cada vez com mais impacto. Diversos países, inclusive o Brasil, estabeleceram a
política de língua única4, utilizando-se das escolas e das mídias para garantir uma
unidade linguística nacional. Num primeiro período, as comunidades linguísticas
exercitaram a fala e o ensino a partir dos referenciais de língua materna do grupo.
Isso perdurou até o período Pré-2a Guerra Mundial. A partir de 1938, novos tempos
e ações políticas foram estabelecidos, instituindo o Brasil a política de língua única.
Os diversos povos pertencentes às culturas imigrantes e culturas tradicionais
passaram a sofrer processos de opressão linguística. A negação do direito à língua
materna, por muitas décadas, se constituiu como processo de repressão aos diferentes
grupos culturais-linguísticos, o que em muitos casos ocasionou desvalorização social
da língua e, em casos extremos, provocou até mesmo extinção da língua enquanto
uso.
Discutimos os conceitos de língua materna e comunidade de fala para
compreender a complexidade e as especificidades que envolvem o tema, na sua
interface com a identidade. Balboni (1999) define língua materna como aquela
que o sujeito tem como referência de língua cultural e a expressa em seu cotidiano
tendo uso social para uma determinada comunidade linguística-cultural.
O impacto da política de língua única sobre a comunidade pomerana provocou
consequências consideráveis. Com a negação da valorização social linguística, muitos
pais optaram por não ensinar a língua pomerana aos seus descendentes. Essa condição
de não uso da língua ampliou-se exponencialmente nos casos das comunidades
próximas ou em áreas urbanas. Mesmo assim, a língua pomerana permanece presente
com alta vitalidade nas comunidades camponesas. Nos espaços urbanos, se fosse
utilizada alguma língua estrangeira, essa é o alemão. Falar alemão é símbolo de status
social e econômico e cultural. Cabe lembrar que, contemporaneamente, a presença
de comunidades falantes do pomerano na Europa é restrita e é no Brasil que as
comunidades falantes mantêm a língua.

PAPEL DA ESCOLA NO PROCESSO LINGUÍSTICO

A realidade multicultural brasileira é plurilíngüe. O Estado Brasileiro é


monolíngüe. A escola tem papel fundamental no processo de afirmação dos valores
culturais e o uso da língua única implica em silenciamento e práticas educativas
descontextualizadas do universo linguístico.
No contexto da Serra dos Tapes, nos territórios pomeranos, muitas crianças
ingressam na instituição falando a língua pomerana e enfrentam dificuldades diante
das limitações colocadas pelas instituições educativas. A ausência de professores
falantes da língua materna da cultura implica em insipiência das práticas pedagógicas,
questões de desprezo e bullying com as crianças e entre elas. Esses elementos
4  Perspectiva essa que se desenha desde Marques de Pombal em 1758 proibiu o uso e ensino da língua tupi e
instituiu o português como língua única.

200
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impactam em algum grau nos dados de evasão escolar.


Através de pesquisa quantitativa feita no local, utilizando-nos de questionário
para levantamento de dados de campo, deparamo-nos com resultado de evasão
escolar, revelado pela não conclusão da educação básica por parte dos pais de alunos
entrevistados, evidenciada em 100% do resultado e nos motiva a indagar as razões
para tal acontecido: Essa evasão é produto da negação linguística? Ela ocorre por
falta de políticas públicas de continuidade? Acontece devido às práticas pedagógicas
e aos conteúdos descontextualizados da cultura local? Ou é um somatório dessas
negações?
No início do ano letivo participamos da primeira inserção das crianças na
escola, momento marcado pela transição, muitas vezes dolorida, da separação dos
pais e familiares para inserção na escola. Na Serra dos Tapes, as crianças ficam aos
cuidados dos familiares até completar a idade obrigatória de frequentar a escola. Isso
é diferente dos centros urbanos, onde muitas vezes os pequenos ficam aos cuidados
de escolinhas logo que encerra a licença maternidade da mãe. Deste modo, para as
crianças pomeranas, a separação é muito dolorosa, requer paciência e carinho dos
professores e familiares.
Aos poucos, fomos conhecendo as histórias das crianças, filhos de agricultores,
muitos bilíngues pomerano e português, cerca de 80%, e alguns monolíngues
pomeranos, e neste segundo caso específico o docente é desafiado a participar da
transição linguística para que seja feita com cuidado e respeito às origens e à cultura
do povo tradicional a qual pertencem as crianças.

Gráfico 1: Os usos da língua pomerana. Relações entre cultura e escolarização:

Fonte: sistematização dos autores. Banco de dados do Núcleo Educamemória, 2018.

201
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Os questionamentos apontam, através dos resultados evidenciados no gráfico,


que os alunos são camponeses, todos pertencem a famílias que trabalham com
plantação e criação de animais, muitos destes jovens auxiliam os familiares com
os afazeres desde muito pequenos. Entre as famílias, os ideais são divididos, pois ao
mesmo tempo em que desejam que seus filhos permaneçam com o campesinato,
a desvalorização dos produtos e a falta de oportunidade amedrontam e ameaçam
a continuidade dos jovens no local. No gráfico a seguir, temos de resultados do
questionário aplicado para trinta e dois alunos do oitavo ano do ensino básico, numa
escola situada na Serra dos Tapes, território pomerano no Rio Grande do Sul.
As implicações dessa forma de ensino reverberam também nas relações de
convivência com o grupo. As ações escolares voltadas à língua e alfabetização
atualmente apresentam limitação de práticas pedagógicas no que se refere ao ensino
da gramática e suas combinações de signos e regras, mesmo no tempo presente.
As práticas alfabetizadoras priorizam a transição linguística, reafirmando a política
de língua única. Boa parte dos processos didáticos de alfabetização se dá a partir
do ensino somente em português. A língua pomerana é negada na maioria dos
espaços escolares. Ao negar a língua pomerana como uma língua da/na escola, nega-
se a possibilidade da alfabetização pela palavra e desconstitui-se de significado a
aprendizagem. É uma dupla negação que impacta sobre o simbólico da cultura: a)
negação de aprendizagem do código lingüístico próprio do grupo e b) negação do
valor social da língua materna.
Autores como William Labov (1972) auxiliam a ampliação do conceito em
relação à língua, interligando com outras ciências, como a sociolinguística que
estuda a relação entre língua falada e a sociedade, que contribuem positivamente
para construção de diferentes concepções. Para Labov (1972), a comunidade de fala
é responsável pelo partilhamento dos símbolos da cultura e significados, acepções
das palavras são compreendidas pelo grupo falante, gerando a identidade linguística
dos povos e fomentando luta por direitos linguísticos maternos potencializando o
pertencimento cultural.
No cenário da pesquisa, encontramos situações em que uma turma de crianças
da Educação Infantil, inserida na comunidade pomerana, convive nos processos
educativos com a presença de professora que não fala e sequer entende a língua.
Os alunos bilíngues não compreendem suas colocações e encaminhamentos-
ordenamentos. Uma das situações vivenciadas em lócus pelos pesquisadores
apresentou a seguinte conformação, descrita em nosso Diário de Campo: ‘havia dois
meninos monolíngues, com sua língua materna pomerana, a relação era complexa,
as crianças ficavam com olhar perdido e tímido. Então a professora diz: “O Pedro5,
ele não obedece, agora não é para mexer nos brinquedos, é muito teimoso”. Ele
não entendia o que estava acontecendo. A comunicação era truncada. O espaço
escolar, além de não lhe ser familiar, se constituía a partir de um universo simbólico-
linguístico estranho. A comunicação com a professora era limitada. Nesse caso,
perguntamos: o que significa sua ‘teimosia’?
Para Roncarati (2008), a construção linguística dos sujeitos se inicia na rede
5  Os nomes são fictícios.

202
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

familiar e gradualmente se expande nas relações com o grupo e sua cultura. A escola
é um espaço no qual a linguagem é ensinada de acordo com as obrigatoriedades
do sistema, os meios de comunicação, e, sendo a língua portuguesa a língua da
escola, a língua pomerana é silenciada institucionalmente. Mas não só a escola
provoca essa negação, os meios de comunicação de massa também. Ao não haver
veículos de comunicação na língua pomerana, muitas famílias que desejam preservar
a fala pomerana dos filhos optam por evitar o uso demasiado de tecnologias, pois
constatam que “as crianças não querem mais falar o pomerano porque assistem
televisão, em português” – fala comum entre as mães da comunidade.
E como os meios de comunicação são também um instrumento de produção
do valor social da língua, as famílias vivem uma angústia muito grande, pois sabem
que a vida social será a de negação do direito de exercício da língua materna. Nesse
sentido, o que Roncarati (2008) nos indica é que a condição de grupo cultural se
apresenta em uma situação de risco, pois os instrumentos de reprodução da mesma
não estão postos em ação. O autor acrescenta que a rejeição do aluno em relação
a sua fala intensifica a baixa autoestima do aluno, ocasionada comumente pelo
desprestígio relacionado à sua fala. O pomerano ainda é estereotipado como dialeto,
acirrando o conflito sociocultural de preconceito linguístico. O autor conclui que
os valores atribuídos às variantes linguísticas estão intrinsecamente relacionados
às questões de poder e de dominação que conferem maior valor a determinadas
comunidades de fala e convicção de superioridade da escrita em relação à mesma.
Durante roda de conversa, numa das escolas da Serra dos Tapes, uma das alunas, que
só falava o pomerano quando ingressou na escola, não quer mais falar a língua, pois
disse que era ‘feio’ e que ‘algumas pessoas acham engraçado’.
Apesar da constituição de 1988 ter possibilitado debates acerca de lutas políticas
em relação aos direitos de cultura e língua, e viabilizado o reconhecimento do Brasil
como país pluricultural e plurilíngue, ainda não é efetivo o processo de ocupação
dos espaços como escolares, pois mesmo em municípios que têm a língua pomerana
como co-oficial é rara a presença de educadores falantes do pomerano.

No entanto são reconhecidamente plurilíngues aqueles que reconhecem o domínio de diferentes


línguas por seus cidadãos abrindo possibilidades para o exercício e uso dessas línguas, garantindo-
as como um direito pela lei de cooficialização, por exemplo. Nesse sentindo, ser plurilíngue
significa aumentar o papel das comunidades de fala e da educação visando uma “pedagogia
para o plurilinguísmo” que não apenas proteja o multilinguismo (ou diversidade linguística) como
“coexistência de línguas e variedades na sociedade”, mas também desenvolva o plurilinguísmo
(ou pluralidade linguística), como “postura [ou habilidade do indivíduo] de se constituir plural
[linguística e culturalmente]” (ALTENHOFEN; BROCH, 2011, p. 17).

Para efetivação da educação que fortalece e valoriza a pedagogia plurilíngue


e pluricultura é necessário, de modo especial, que a escolarização seja conduzida
com igualdade aos educandos falantes do pomerano nas comunidades habitadas
amplamente pelo povo pomerano. A gestão escolar deve ser democrática, ampliando
ao currículo as vozes silenciadas e fortalecendo ações de valorização cultural, a fim

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

de evitar o glotocídio. Para autora Bortoni-Ricardo (2005), as conseqüências da


incoerência entre as culturas silenciadas são nefastas e devem ser combatidas com
ações que superem estas estatística, focada na prática educacional.
A autora Maher (2007) acrescenta considerações em relação ao interesse de
extinguir as línguas minoritárias. Segundo a autora, uma das primeiras concepções é
a de que pertencer a um grupo de fala minoritária dificulta ou até mesmo impede
a aquisição da língua padrão de prestígio no país, o que para ela é um ato de
subestimar a capacidade intelectual dos sujeitos e cita o exemplo da África, onde é
comum falar até cinco línguas. Existe ainda a suposição de sobrecarga ao cérebro
a condução do bilingüismo, que provocaria confusão da mente e dificuldades para
comunicar-se, porém Maher contraria esta concepção afirmando que, segundo suas
pesquisas, o bilingüismo apresenta resultados positivos para funcionamento cognitivo
e competência comunicativa.
Segundo a autora conceitua, língua minoritária não é simplesmente aquela
que tem índice reduzido de falantes, e sim aquelas com menos prestígio no meio
social que habita, condicionando aos atos políticos. Maher (2007) afirma que a
“desigualdade de poder no cenário de educação para minorias fica ainda mais
evidente quando se considera o modo pelo qual o bilingüismo é percebido, dentro
e fora do contexto escolar” (p. 69). Dentro deste cenário de valorização bilíngue,
existem algumas que agregam prestígio, como o caso do inglês, e o alemão, ao
inverso, é estereotipado como desnecessário e até mesmo desvantajoso. Muitos
pomeranos têm se desconectado da sua língua materna em função destes conceitos
que negligenciam seu valor cultural. É corriqueiro ouvir histórias das gerações
institucionalizadas que optam por ensinar apenas o português aos filhos e netos
em função da irrelevância que são condicionados a acreditarem ser coerente,
contribuindo para a construção do modelo hegemônico produzido e idealizado
pela sociedade.

A esse alunado não é dada opção: ele é obrigado a aprender a língua majoritária do país e a se
tornar bilíngue. [...] É sintomático de o que cabe a quem na sociedade brasileira. E quem deve se
tornar bilíngue é o índio, é o surdo, são os imigrantes e seus descendentes. Esse caso ilustra o pano
de fundo no qual assenta a escolarização de minorias –não só no Brasil, mas no mudo todo: a sua
inscrição em uma relação desigual de forças, de poder. Toda e qualquer reflexão teórica, toda e
qualquer prática educativa que perca isso de vista, corre o risco, a meu ver, de também se perder
na ingenuidade (MAHER, 2007, p. 69).

O sistema educacional que derroga língua minoritárias fortalece a homogenia


e unificação linguística, pois impossibilita interação da língua materna contribuindo
para o abandono das lógicas de raciocínio e simbólicas da cultura materna. Crianças
que têm seu ingresso obrigatório aos cinco anos se deparam com as diferenças
evidenciadas na rotina escolar, a transição é árdua principalmente quando ao chegar
à escola, onde os sujeitos não falam sua língua. Os professores, da mesma forma,
também não compreendem e têm dificuldades na comunicação. A autora Maher
evidencia o fato de que o modelo educacional que utiliza o bilinguismo de forma

204
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

assimilacionista, como apoio para aquisição da língua dominante, resulta na extinção


da língua materna do repertório dos sujeitos, a fim de fortalecer aos poucos a língua
dominante, silenciosamente transformando os alunos monolíngues da língua padrão
.
A função da língua minoritária no currículo é, portanto, servir apenas de elemento facilitador,
de ponte, de muleta para a aprendizagem da língua dominante, a qual tendo sido aprendida,
passará a ser a língua de instrução na apresentação dos demais conteúdos escolares. Em termos
sociolingüísticos, esse modelo propõe um bilinguismo subtrativo. Seu objetivo é retirar a língua
materna do repertório do falante: o aluno começa sua escolaridade monolíngüe na língua
minoritária, passa para um bilinguismo transitório e termina monolíngüe na segunda língua [...]
esse modelo segue sendo tão violento quanto o Modelo Assimilacionista de Submersão. A única
diferença [...] é que a violência linguística é agora praticada em doses homeopáticas (MAHER,
2007, p.71).

Desvincular o ensino e o currículo de valores, rituais, modos de viver e costumes


do mundo da vida do ambiente escolar é não permitir que os conhecimentos e
saberes externos aos muros da escola tomem assento no currículo escolar, essa
perspectiva já trabalhada por Thum (2014; 2017). Esses elementos nos levam a
compreender que se fazem necessários momentos/espaços para manifestação e
discussões dos referentes das culturas locais no currículo. É necessária uma ação
educativo-pedagógica alicerçada no modo de vida dos sujeitos do entorno para que
o ensino seja capaz de produzir aprendizagem significativa.

CONCLUSÃO: LÍNGUA MATERNA, CULTURA E MUNDO ESCOLAR

Concluímos que as práticas educativas são importante ferramenta para


promoção de pertencimento cultural no ambiente escolar e social, responsáveis
por instigar a consciência crítica e as singularidades de valores culturais, étnicos e
ambientais da paisagem às quais as crianças pertencem. Infelizmente, o que vemos
é a sujeição ao ensino que reproduz as ações quistas como desejáveis do padrão
estipulado, em que o capital cultural, econômico, social e simbólico para Bordieu
(1996) são meios de distinção e exclusão.
Esta descontextualização da educação em relação à língua é produto do valor
atribuído a determinados grupos impondo a alguns silenciamento ou controle na
utilização da língua materna e a outros prestígio e valor.
Escolas inseridas em territórios pertencentes à comunidade de povos
tradicionais, como o pomerano, não possuem professores falantes da língua materna
local, mesmo sendo esta co-oficial na cidade de Canguçu-RS, município que abriga
a Serra dos Tapes, e reconhecida como Patrimônio Cultural, em São Lourenço do
Sul. Outro fato relevante é que a opção de aprendizado oferecida nas escolas é inglês
e alemão, fato esse que destoa de um processo estribado na cultura e representa o
domínio do Estado sobre as culturas tradicionais.
A práxis requerida é de avivamento para que as crianças pomeranas tenham
direito de manifestar sua linguagem tradicional na escola, a língua materna. O

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

autor Bordieu (1996) afirma que as questões que abarcam “sociologia da cultura, a
sociologia da linguagem é logicamente indissociável de uma sociologia da educação”.
A práxis requerida é de avivamento da cultura. As crianças pomeranas têm o direito
de manifestar sua língua materna na escola. Para Bourdieu (1996), a existência do
conceito de cultura legítima inclui o direito de exercício da condição linguística em
mesmo grau de validade social com as demais culturas presentes no espaço.
Ao se restringir práticas de uso da língua materna nos espaços escolares,
ganha poder de existência o padrão linguístico e cultural estabelecido pelo grupo
dominante, no caso, o português. Com isso, os direitos linguísticos são aviltados.
O resultado da falta de prestígio conferido aos diferentes povos no meio
educacional é representado em ações, até mesmo, entre as crianças, fruto de
preconceito e estereótipo em relação à língua e ao modo de vida, produzindo,
muitas vezes, escárnio, o que também corrobora para o abandono da língua materna
por parte de muitos pomeranos e evasão escolar.
A falta de políticas públicas contínuas desconsidera a necessidade de constituição
dos direitos do povo pomerano, de acordo com Thum (2014, p. 2): “Vivemos um
tempo em que emergem novos direitos sociais, que tem base na identidade e nos
processos de luta por garantia de direitos consuetudinários, como um modo de
proteção e promoção dos povos e comunidades tradicionais”. Esse conceito fortalece
a urgência da concretude em salvaguardar sua língua e cultura.
Ações de formação continuada para educadores da comunidade local também
promovem a valorização da língua e da cultura, pois, por meio da formação
continuada, ampliam-se as potencialidades de exercício educativo-didático da
relação cultura local e currículo. Portanto, o patrimônio cultural é promovido
quando o currículo é reflexionado para atender às demandas o grupo cultural que
habita o entorno da escola.
Para Thum (2014, p. 6), “Uma pedagogia que se enraíze a partir da cultura
local e que produza pertencimento do aluno ao seu universo de significações é
fundamental”. Os questionamentos feitos ao decorrer do texto são na verdade fruto
de um somatório de negações feitas às crianças e aos sujeitos que vivenciam o
descaso com seu modo de vida, depreciação da sua fala, fortalecida pelos momentos
em que as crianças sofrem preconceito com sua língua materna, por não fazer parte
da hegemonia dominante e estabelecida como culta e bonita.
Bagno (1999) reforça a ideia de que a língua não está em crise, conforme dito
por alguns gramáticos e a mídia. O que está em crise é o modelo de ensino que
busca a padronização linguística, pois se desconsideram as diferentes manifestações
linguísticas que contemplam a diversidade cultural do Brasil. Por fim, consideramos
necessário fomentar estratégias educacionais que fortaleçam compreensão do
diferente e valorizem os diferentes modos de vida, cultura e línguas maternas.

206
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

REFERÊNCIAS

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plurilinguismo”baseada no modelo de conscientização linguística (language awareness).
In: BEHARES, LuisE. (Org.). V Encuentro Internacional de Investigadores de
Políticas Linguísticas. Universidad de la República y Asociación de Universidades Grupo
Montevideo: Montevideo, 2011. p. 15-24
BALBONI, P. E. Parole comuni, culture diverse. Guida alla comunicazione
interculturale. Veneza (Itália), Marsilio Editore, 1999.
BAGNO, M. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 1. ed. São Paulo: Loyola, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: Edusp, 2008.
BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolingüística &
Educação. São Paulo: Parábola, 2005.
LABOV,William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
1972.
MAHER, T. M. Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue
e intercultural. In: CAVALCANTI, M. C. & BORTONI-RICARDO, S. M. (Orgs.)
Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas: Mercardo das Letras, 2007.
RONCARATI, Claudia. Prestígio e preconceito linguísticos. In: Cadernos de letras da
UFF–preconceito linguístico e cânone literário, 36. p. 45 -56, 2008.
THUM, Carmo. Extensão e Formação: Interfaces entre Memória e História, Povos
Tradicionais e Infâncias do Campo. Anais. Endipe. 2014. Disponível em: <http://www.
uece.br/eventos/xviiendipe/>. Acesso em 14 ago. 2018.
______. Povos e Comunidades tradicionais: aspectos históricos, conceituais e estratégias de
visibilidade. In: Rev. Eletrônica Mestr. Educ. Ambient., Edição especial XIX Fórum
de Estudos: Leituras de Paulo Freire, p. 162-179, junho, 2017. Disponível em: <https://
periodicos.furg.br/remea/article/view/6899>. Acesso em 30 nov. 2018.
TRESSMANN, Ismael. Da Sala de Estar à Sala de Baile. Estudo Etnolinguístico de
Comunidades Camponesas Pomeranas do Estado do Espírito Santo. Tese (Doutorado),
Museu Nacional e Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Rio de Janeiro. 2005.

207
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

III - MEMÓRIA, MONUMENTOS E CIDADES

(FOTO OU IMAGEM SOBRE O TEMA)

III - MEMÓRIA, MONUMENTOS


E CIDADES

208
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

PROCESSOS MEMORIAIS DE IMIGRANTES NO


CEMITÉRIO: OUTRA LEITURA DO MUSEU A
CÉU ABERTO
JENNY GONZÁLEZ MUÑOZ1

IDENTIDADES E SAUDADES: CONSTRUÇÕES ESTÉTICAS DE NOVAS MEMÓRIAS

Ao remontarmos à história humana social a partir da morte conseguimos


fazer certas analogias sobre a construção de sentimentos que vão se desenvolvendo
nesses espaços para, por um lado, consagrar memórias de entes falecidos cujo corpo
inerte ali jaz e, por outro, servir como documento histórico desta sociedade para
lembranças nas gerações futuras. Por isso, cada sociedade, nos desenvolvimentos das
distintas épocas, tem construído lugares para a consagração dos mortos e da própria
morte, instaurada em frisos nas cavernas, em pirâmides e numa série enorme de
edificações criadas para albergar o corpo de falecidos e, em muitas culturas, suas
pertenças, incluindo mulheres e pessoal de serviço. Esses locais passarão por processos
de transformação, por serem construções humanas, e tal como a sua própria história
serão reflexos daquilo que as pessoas querem lembrar a partir de seus processos de
intercâmbio social. Nesse sentido, o cemitério ocidental poder ser visto como o
lugar em si (AUGÉ, 1993) porque, entre outras coisas, permite a ritualização dos
mitos, ou seja, abre a possibilidade para o (re)encontro tanto de biografias como de
necrologias construindo-se num grande memorial (NORA, 1993) concebido para
honrar heróis (bem familiares ou históricos), caraterística que veremos nos textos
dos epitáfios.
Segundo o narrado por Ariès (1984), o cemitério, no século XX, continua
sendo o lugar tranquilo e poético do século XIX, formado por quantidade de árvores;
lugar ótimo para passear em família e que, com o passar do tempo, forma parte de
uma espécie de cenário de sessões fotográficas (casamento, quinze anos, cerimônias

1  PNPD-Capes-História Universidade de Passo Fundo, Brasil. Doutora em Cultura e Arte para América Latina
e O Caribe, Universidad Pedagógica Experimental Libertador-Instituto Pedagógico de Caracas,Venezuela. E-mail:
[email protected]. Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de
Nível Superior-Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

209
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

católicas etc.), o que traz consigo que aquelas pessoas curtam a natureza, a arte
funerária inscrita nas esculturas e monumentos, mas de igual modo, muitas vezes,
ficam detidas frente aos epitáfios lendo aquelas escritas que contam outras histórias
desde a saudade da ausência eterna. “Además, se le convertirá en um lugar de la vida,
en um teatro de atividades diversas, a la vez museos, centro comercial de arte y de
“souvenirs”, lugar de celebraciones serenas y divertidas, bautismos y matrimonios”
(ARIÈS, 1984, p. 497) O cemitério, então, de lugar feito para albergar mortos,
inicialmente isolado e tenebroso, passa a ser um sítio de conversações, intercâmbios,
um lugar primordialmente estético a partir da presença da estuaria, que vale a pena
destacar que, sendo arte, também é uma forma de irradiação ideológica (KOTHE,
1986) já que ressalta o poder das personagens significativas (MOLINA CASTAÑO,
2007), ao longo do tempo.
Dentro de todo esse processo, a ideia das construções arquitetônicas dos jazigos,
que formam parte de nossa pesquisa vinculada ao presente ensaio, atinge compor o
que podemos chamar de “tradicional” por estar presente em outros cemitérios da
América Latina, por exemplo, o Cementerio General del Sur2 (Caracas,Venezuela),
El Saucito (San Luis Potosí, México)3, Presbítero Matías Maestro (Lima, Perú),
com profusão de estatuária de corte neoclássica, inclusive em seus materiais de
construção, e igualmente uma estrutura memorial dirigida a heróis pátrios ou locais,
escritores e outros de destaque social e histórico. De igual maneira, a presença de
uma grande incorporação de símbolos pertencentes a sistemas de organização ou
crenças, como o caso de maçonaria, espírita, e por serem laicos, muçulmanos, entre
outros detalhes. Porém, dentro da diversidade que envolve a multiculturalidade,
sobretudo, de cidades fronteiriças, como o caso concreto de São Borja e Santa Vitória
do Palmar4, a concepção da arquitetura funerária tem sua própria marca vinculada
fundamentalmente a aqueles materiais que fazem parte do entorno geográfico
local. Assim, podemos encontrar duas possibilidades a destacar: a) jazigos com uma
estatuária proveniente de lojas, ou seja, feita em série (o que acontece também
com alguns epitáfios), o que remete a uma repetição de alegorias exatamente iguais
tanto no mesmo cemitério quanto em outros distantes do mesmo estado; b) jazigos
construídos com material do próprio cemitério e feitos sob critério pessoal, como
o caso que ressaltamos na figura 1.

2  Ver: GONZÁLEZ MUÑOZ, Jenny. Monumentos funerarios para angelitos en el Cementerio General del Sur.
Una visión memorial sobre la muerte. In: Revista Memória em Rede, v. 7, n. 13, 2015, p. 97-112. Disponível em:
<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/view/6308/4538>. Acesso em 10 jun. 2019.
3  Ver: VÁZQUEZ SALGUERO, David Eduardo; CORRAL BUSTOS, Adriana. Monumentos funerarios del
Cementerio del Saucito: San Luis Potosí, 1889-1916. San Luis Potosí: El Colegio de San Luis, 2004.
4  Limitando com Argentina e com Uruguai, respectivamente.

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Figura 1 - Jazigo de João Baptista de Almeida. Cemitério Municipal de Santa Vitória do Palmar, RS.

Fonte: Acervo da autora, 2018.

O jazigo de João Baptista de Almeida é erigido pelo seu filho Rodolpho A.


de Almeida, tal como consta no epitáfio, como lembrança a quem era “zelador
aposentado deste cemitério”5, falecido com 84 anos de idade, em 8/4/1819. Como
se observa na fotografia, o túmulo, de estranha estética e figura, é construído com
pedras do próprio cemitério, grudadas com cimento, fazendo uma sorte de ermitã
sobre a qual descansa uma cruz. O fato do túmulo estar construído com ditos
materiais é um rasgo predominantemente importante sobre a identidade e o sentido
de pertença do ente falecido, bem entendido por seu filho. O sentido de eternidade
vai mais além da própria saudade, tão comum nos epitáfios de nossos cemitérios,
sendo parte de uma materialidade em alternativa de expressão estética. Este túmulo
não tem, como diria Motta (2010, p. 63), “figuras femininas transmutadas em
anjos”, nem maiores elementos decorativos com formação alegórica, mas as pedras
do próprio cemitério, que dão forma a esse lugar de memória, podem sim ser
consideradas como “objetos mediadores entre o céu e a terra”, porque fazem uma
espécie de ponte, de focus medium, no trânsito da alma do antigo zelador e o lugar
5  Durante nosso trabalho de campo, fomos informadas de que ele foi o primeiro zelador desse cemitério.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

com deus, neste caso cristão, o que pode se explicar por médio da incorporação da
cruz na parte mas alta do túmulo. Esta materialidade é outra forma de ritualização, já
não na forma do mito, mas como a configuração simbólica do terrenal (o cemitério)
e a passagem para o tempo indefinido e eterno (PEREIRA, 2009). Aqui não está
presente o granito, o mármore, o bronze, porque a real valorização consiste na
vinculação com a terra, com o lugar cenário de grande parte da vida do ente cujo
corpo ali descansará em paz, como aqueles que ele mesmo cuidou.

MAIS ALÉM NA ESCRITA: O EPITÁFIO COMO DOCUMENTO DE IMIGRAÇÕES

O fato de existir uma memória na lápide, a partir da escrita, mesmo se o túmulo


já não seja visitado mais, leva a uma sorte de imortalidade porque é observado e
visitado por pessoas desconhecidas, então, neste momento, aquele ente falecido volta
de novo à memória, a partir da leitura do epitáfio, da visão da sua fotografia ou
simplesmente do prazer no monumento. “A lápide, lápida ou lousa tumular, serviu,
e serve ainda, para evocar a memória da morte, promovendo, muitas vezes, sua
inserção na história. Exatamente nessa pequena laje, onde são postas as inscrições
comemorativas são postos os epitáfios” (DOS SANTOS, 2015, p. 88), de forma que
o epitáfio passa de mero instrumento de identificação do morto a constituição de
um documento importante para a reconstrução histórica local.
Para a autora, anteriormente citada, os textos nos túmulos são palavras que
formam pequenas frases, mas constituem significativas biografias, assertiva com a
qual concordamos plenamente porque o epitáfio está concebido por informações
que vão falar da vida da pessoa que se deseja lembrar, e pode estar incluso nas
memórias de pessoas não pertencentes a seu grupo social nem temporal. Daí o
caráter moral do epitáfio, escrito com a finalidade de ressaltar atributos do ente
quando vivo, não dando cabida a histórias consideradas tabus6 como, por exemplo,
o suicídio. “Na realidade, os epitáfios são elementos de afirmação social, necessários
também para indicar a posse e exclusividade do jazigo perpetuo” (DOS SANTOS,
2015, p. 88), talvez por isto seja inconcebível a historia do conto de Maupassant7,
no qual os próprios mortos saem de seus túmulos para (re)escrever os epitáfios que
foram escritos para sua memória eterna.
Em nossa pesquisa, em vários cemitérios constatamos a existência da função
do epitáfio para mostrar como se comporta a sociedade de seu entorno frente ao
fato “morte”, sendo este algo que todos teremos com certeza (ARIÈS, 1984) e
totalmente inevitável (MORIN, 1970). Então, nos cemitérios laicos, observa-se uma
quantidade de escritas com ideias cristãs de salvação, perdão celestial, salmos da Bíblia,
orações, vida eterna além do corpo, anjos com deus, mas, também, informações mais
específicas, como nomes do defunto e datas de nascimento e morte (ou idade no
6  Por causas relacionadas com sistemas de crença e religiões, o suicídio tem sido um tabu, é algo pecaminoso, não
aceito publicamente por ser um ato de blasfêmia, caraterística que se traslada também ao cemitério, portanto, o
epitáfio nunca fala do suicídio, porque não é elemento de orgulho.
7  Referimo-nos a “A morta”. Disponível em <http://alfredo-braga.pro.br/biblioteca/amorta.html>. Acesso em
05 jun. 2019.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

momento do falecimento), com ampliação no texto com incorporação de méritos


diante a comunidade, profissão, méritos familiares, religião ou sistema de crenças,
neste último caso não necessariamente explícito, nacionalidade, e obviamente os
textos ressaltando as saudades eternas de familiares e amigos. Enfim, são textos
identificatórios, com a finalidade de preservar a memória do morto, mas que, de
igual maneira, servem (embora não com essa intenção) de documentos histórico-
sociais, ótimos para pesquisa na área interdisciplinar.
Neste sentido, como antes dito, o epitáfio faz parte de uma construção
memorial (GAWRYSZEWSKI, 2013), tendo por base o eufemismo, pois procura
esconder ideias desagradáveis do morto, sendo um texto criado para valorizá-lo
através de suas boas atitudes individuais e sociais. O epitáfio faz parte da cultura e
da mentalidade da época na qual foi escrito, mas tem a faculdade de se adequar às
mudanças do processo social nas distintas épocas, por sua qualidade de escrita que,
como um livro, torna-se outro a partir da interpretação e de um novo olhar do
receptor. Porém, é certo que, ao longo do tempo, ele vai informando sobre aspetos
culturais de sua sociedade e sobre temporalidade.

Por sus rasgos esenciales el epitafio se distingue del elogio fúnebre por dos razones
fundamentalmente: la primera de ellas relativa a la mayor extensión de este último, y la segunda,
porque en general el elogio fúnebre era compuesto para ser insertado en un texto histórico o
biográfico (OSTOS; ESPINOZA URETA, 2015, p. 33-34).

Dentro de todo esse processo cultural, além dos elogios e qualificações morais,
está a característica do epitáfio como texto que demostra a existência da diversidade
étnica numa localidade, o que pode ser visto desde vários elementos, sendo o idioma
o traço mais significativo, tanto por sua configuração de coesão grupal quanto
por seu sentido de pertença à cultura e ao país original do ente falecido, quem,
sem dúvida, é parte de uma imigração. Assim, no Cemitério Vera Cruz de Passo
Fundo, encontra-se o túmulo de Wei Ming Chien, no qual se podem observar os
dados identificatórios (nomes e datas), na grafia portuguesa, e um epitáfio maior
em grafia chinesa. O fato da incorporação do idioma materno na configuração
de um texto funerário, que forma parte de um contexto cultural diferente, aponta
ao estabelecimento do indivíduo social à solidificação de sua identidade. Essa
identidade própria não deve ser submetida à implantação de outra cultura, ou seja,
não existe cabimento para pensar numa possível transculturação (ORTIZ, 1987),
vista como a minimização de uma cultura por outra supostamente melhor. Neste
sentido, a língua, como elemento de coesão social, tem a faculdade de unir grupos
por compartilhar os mesmos códigos, por isto, grupos distintos se agrupam numa
espécie de “clanes” ou clubes nos quais se sentem com a liberdade de se expressar
à vontade, sem ser observados como “diferentes”, porque muitas vezes o distinto é
“feio” (ECO, 2015) e, portanto, não bem aceitado. “En todo sistema cultural, sus
prácticas, patrones y códigos están sujetos a un número corto o amplio de principios
que se expresan a través del lenguaje, el cual simultáneamente, ejerce coerción
sobre las ideas, las prácticas y los patrones de cada cultura” (RODRÍGUEZ SALA-

213
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

GÓMEZGIL, 1983, p. 154).

Figura 2 - Epitáfio descritivo de possível imigrante asiático. Cemitério Vera Cruz Passo Fundo, RS.

Fonte: Acervo da autora, 2018.

Nos cemitérios visitados durante nossas pesquisas, a presença de textos


funerários escritos em idioma diferente ao local é significativa, não apenas estando
nas necrópoles de fronteira, onde indubitavelmente existem em maior número.
Encontramos vários, no citado cemitério de Santa Vitória do Palmar, escritos em
espanhol, muitos deles pertencentes a indivíduos ou famílias de origem uruguaia; no
cemitério Vera Cruz, encontramos em árabe e alemão; no Cementerio General del
Sur (Caracas, Venezuela), conseguimos textos em inglês, os quais não conseguimos
identificar a origem, e vários em português, de famílias originárias de Portugal; na
Recoleta (Buenos Aires, Argentina), em italiano. Enfim, é um fenômeno frequente
em cemitérios localizados em lugares distantes, geográfica e culturalmente falando, o
que não nega a possibilidade de existência de epitáfios que, mesmo não escritos em
idioma distinto ao local, expressam claramente a origem estrangeira do ente falecido
que ali jaz, como pode ser o caso da Maria Zanfir (Vera Cruz), em cujo epitáfio
se lê “Nasceu na Polonia”. O texto funerário presente no túmulo é colocado para
ser observado por familiares e amigos, mas também tem um caráter público que
permite estabelecer uma relação entre remitente e receptor, quer dizer, as bases para
um diálogo entre a própria escrita e o leitor que não pertence a seu grupo social.
Porém, se dentro de dito jogo o código é desconhecido, quebra-se a probabilidade
do diálogo passando a ser unilateral a mensagem, dirigida apenas àquele grupo
semelhante.Tudo isso traz consigo outra dimensão daquelas “ilhas culturais”, de que
fala González Ordosgoitti (1993), nesse caso não constituídas em clubes, mas em
lápides dos cemitérios locais. A memória da imigração é estadística, história local,

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

diversidade étnico-cultural e, de igual maneira, lembrança que, junto com a religião,


forma parte da identidade cultural.
Outro exemplo interessante é aquele relacionado com a imagem como
símbolo de unificação grupal. Na figura 3, mostramos um jazigo familiar localizado
no Cemitério Nossa Senhora de Conceição, em São Borja, de claras características
islâmicas, pela configuração material em ausência total de representações, isto porque
nesta religião estas estão proibidas e ainda mais para ornamentar túmulos, pois, no dia
do Juízo Final, segundo eles, estaremos sem nada, apenas frente a deus para expiação
de nossos pecados. O corpo inerte irá se apodrecendo, virando pó, sendo parte da
terra, enquanto a alma deverá esperar até a chegada desse dia no lugar consagrado
segundo suas culpas. Não deverá existir ostentação porque todos são iguais no
momento da morte. No jazigo trazido para este artigo, observa-se, na parte frontal
da construção retangular de granito, uma imagem a mediano formato da chamada
Cúpula da Rocha, um insigne monumento religioso muçulmano localizado na
Velha Jerusalém (Palestina), e na cabeça do túmulo o epitáfio identificatório, escrito
em árabe e português.
A presença da imagem desse símbolo sagrado do Islã oferece as seguintes
informações: a) família muçulmana, possivelmente de origem palestina, o que levaria
a pensar na presença de imigração desse país em São Borja, base para uma pesquisa
a respeito desse tipo de movimentação estrangeira; b) presença de imigração
muçulmana em São Borja e ausência, para a data, pelo menos, de cemitério
exclusivo para pessoas dessa religião; c) sentido de consolidação grupal árabe em
função do idioma utilizado no texto funerário. De tudo isso, é importante ressaltar
que o monumento, sendo o objeto feito pelo humano social, tem uma dimensão
histórica, a partir, por sua vez, de uma história individual, por isso é uma testemunha,
símbolo de memória (AUGÉ, 1998), nesse caso concreto vinculada com processos
de imigração no Sul do Brasil.

215
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 3 - Vista de jazigo de possíveis imigrantes de origem árabe. Cemitério Nossa Senhora de Conceição, São Borja,
RS.

Fonte: Acervo da autora, 2017.

O epitáfio é um elemento de linguagem, não apenas por estar composto


de grafismos, mas por sua capacidade de estabelecer uma relação palavra-situação
vinculando isto com a memória social; é por esta razão que o receptor se sente mais
a vontade para entender ou interpretar o texto sobre o túmulo. De Saussure, Augé
(1998) diz que “El acto de la lectura lleva a una representación completamente diferente
del lenguaje, una representación desarrollada en la forma metafórica de una hoja de papel
cuyo anverso sería el significante y el reverso el significado” (p. 37). No caso específico do
epitáfio, a “folha de papel” seria o próprio túmulo, sendo a relação da escrita com o
monumento o clímax da metáfora que pode ser lida no tecido interno de significado
e significante. O mesmo rol se assume a respeito do emissor e do receptor do texto
epigráfico, e sua relação com a história do indivíduo a ser lembrado e a história que
ele mesmo criou em determinada época.

TALVEZ EPÍLOGO

Na Grécia do século II, os túmulos eram construídos na beira das estradas;


como eram lugares muito transitados, os textos funerários conseguiam ser vistos por
quantidades de pessoas em diferentes condições (viajantes, familiares, conhecidos,
loucos, velhos, jovens, prostitutas) e por aqueles que sabiam ler decerto paravam para

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

dar olhada melhor (OSTOS; ESPINOSA URETA, 2015), o que trouxe consigo
um novo hábito no caminhante dentro do qual igualmente esteve a reverência para
o ente defunto e uma espécie de tristeza sobre seu destino, mas um destino do
qual ele mesmo, ainda vivo, nunca vai poder escapar. Com a transformação das
geografias e das arquiteturas urbanas, o epitáfio terá um lugar quase de privilégio
porque estará encaixado num lugar de memória específico, o cemitério, de maneira
que ele também experimentará mudanças tanto em sua linguagem quanto em
seu tratamento, enfoque e direção. Assim, o texto funerário, muitas vezes, passa a
ser um texto literário, carregado de poesia, elogios, louvores, coexistindo aqueles
de tipo religioso: “Senhor é refúgio para os oprimidos, uma torre segura na hora
da adversidade” (Salmos 9:9); amoroso: “Tributo de amor conjugal”; informativo:
“faleceu desastradamente”; de denúncia: “foi queimada e assassinada”; de consolo
perante a adversidade: “as mãos que te tiraram a vida jamais matarão o amor
em nossos corações”; de nostalgia: “saudades de seus familiares”; de dor infinita:
“lágrimas de dor de tua mãe”; de ofício: “o maquinista”; de grupo: “médium do
Centro Espirita Gadalow”; moral: “foi bom pai bom amigo e bom cidadão”; de
lembrança sobre o inevitável da morte: “éramos como vocês vejam em que estado
estamos”; e evidentemente aqueles de nossa mostra neste artigo: os pertencentes a
imigrantes – “nasceu no Reino de Portugal”. Enfim, a morte é o corpo que ali jaz,
a alma que vai em paz, “o silencio”.
O epitáfio como texto concebido pelas sociedades evolui com elas mesmas,
por isso vai incluindo, dentro de sua estrutura, modelos de conformação histórica
contemporânea desde seu próprio desenho. Um fato bem interessante é o caso
da fabricação do epitáfio em massa, ou seja, a comercialização de um texto,
originalmente feito para identificar quem jaz ali no túmulo em restos mortais, para
logo ir se transformando em escrita mais elaborada, inclusive elaborada pelo próprio
defunto ainda vivo (Rilke, por exemplo), até chegar a dito epitáfio em série que não
necessariamente marca uma descontextualização ou falta de interesse por parte do
emissor, porque mesmo parecendo distante pode abarcar o que se precisa expressar
sem tanta ganância literária.
Ao longo dos tempos, a configuração dos túmulos tem mudado e inclusive
deixado de existir para dar lugar à cremação sem lugar material de memória, mas
o epitáfio tem sobrevivido sendo uma importante ferramenta para a eternização
da memória daqueles que morrem em outras terras, muitas vezes bem distintas às
próprias, em outras culturas e idiomas.

REFERÊNCIAS

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AUGÉ, Marc. Los “no lugares”, espacios del anonimato. Una antropología sobre la
modernidad. Barcelona: Gedisa, 1993.
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1998.

217
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

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MATO, Daniel (Coord.) Diversidad cultural y construcción de identidades. Caracas:
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KOTHE, Flávio R. A alegoria. Ética: São Paulo, 1986.
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218
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

CEMITÉRIOS LUTERANOS DE PELOTAS/RS:


RELIGIOSIDADE EXPRESSA EM SÍMBOLOS
TUMULARES
LUCAS DE SOUZA PEDROSO1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O campo de estudo que envolve o trato com a morte bem como os cemitérios
tem sido cada vez mais ampliado e consolidado entre os pesquisadores(as)
brasileiros(as), nas últimas décadas, o que podemos perceber pela grande quantidade
de publicações de obras, artigos e revistas que se propõem às investigações nessas
linhas de pesquisa2. Portanto, o presente artigo tem o intuito de contribuir com os
estudos no campo da História e do patrimônio cultural, para isso utilizando como
objeto de pesquisa os cemitérios luteranos do campo, no município de Pelotas, no
Rio Grande do Sul, na atualidade.
Desse modo, o trabalho pretende apresentar um viés do que está sendo realizado
no projeto Cemitérios do Campo: História, patrimônio e religiosidade3, projeto que, por
sua vez, visa a identificar, mapear e analisar os cemitérios rurais no município de
Pelotas. O estudo centra-se na perspectiva de investigação de cemitérios afastados
do centro urbano, pois pouco se tem trabalhado nessa linha em contraponto a uma
gama de trabalhos encontrados sobre os cemitérios centrais e urbanos. Logo, para
compreender os cemitérios do campo pelotenses, é necessário compreender suas
formações históricas, pois eles estão incluídos num processo histórico no qual a
configuração social atual descende da imigração de povos europeus, durante o século
XIX, para o Brasil. Em vista disso, é importante salientar a ampla diversidade social
1  Licenciando em História pela Universidade Federal de Pelotas; Bolsista de Iniciação Científica financiado pelo
CNPq; e-mail: [email protected].
2  Para esse trabalho, algumas das obras com a qual dialogamos mais diretamente: REIS, 1952; ARAÚJO, 2008;
BELLOMO, 2008; BLUME,2015; BORGES, 2002; CYMBALISTA, 2002; MOTTA, 2009;
3  Projeto coordenado pelo Professor Doutor Mauro Dillmann, vinculado ao departamento de História, da
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), e ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPEL. E-mail:
[email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

nas colônias4 de Pelotas atualmente, composta pela presença de alemães, pomeranos,


italianos, negros, indígenas e seus descendentes.
No que diz respeito à metodologia empregada, foi realizada a visita aos
cemitérios in loco, bem como se faz uso de registros imagéticos e de fichas com
descrição sumária. Buscamos coletar dados dos cemitérios, mas também dar conta
da configuração do espaço social dessas comunidades, identificando-as enquanto
grupos culturais que compartilham modos de vida e determinadas. Interessa, assim,
entender os entornos sociais, culturais e étnicos ao redor desses cemitérios, a partir
da materialidade presente nesse espaço cemiterial.
No recorte realizado para esse artigo, pretende-se investigar a esfera cultural
religiosa dos luteranos nos cemitérios, buscando analisar elementos religiosos a partir
da materialidade nas construções tumulares. A pesquisa tem apontado elementos
quantitativos que sugerem predominância de cemitérios luteranos no campo de
Pelotas, conforme pode ser visualizado na figura 1. Assim, considerando os limites
deste texto e as possibilidades analíticas, selecionaram-se seis cemitérios luteranos.
Os seis cemitérios selecionados são: Cemitério da Comunidade Dona Júlia,
inserido no 4º Distrito, Triunfo; Cemitério da Comunidade Bom Pastor, inserido
no 4º Distrito, Triunfo; Cemitério da Comunidade Luterana União Picada Ritter,
inserido no 6º Distrito, Santa Silvana; Cemitério da Comunidade São Pedro da
Chicuta Oliveira, inserido no 4º Distrito, Triunfo; Cemitério da Comunidade
Colônia Oliveira 2, inserido no 4º Distrito, Triunfo; Cemitério da Comunidade
Ascensão, inserido no 5º Distrito, Cascata. Na figura 2, pode-se observar um mapa
com a localização de cada distrito.
Abaixo, a figura 1 apresenta um gráfico parcial – considerando os que foram
levantados, por enquanto, 29 cemitérios do campo – sobre a confissão religiosa dos
cemitérios pesquisados, dos quais 55% apresentam-se como luteranos.

4  Entende-se colônia como a região rural na qual foram inseridos os grupos de imigrantes europeus e seus
descendentes, ao longo do século XIX, na região Sul do Brasil.

220
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 1: Gráfico parcial das comunidades religiosas e seus cemitérios

Fonte: Projeto Cemitérios do Campo.

Figura 2: Mapa distrital de Pelotas

Fonte: Prefeitura de Pelotas, 2013.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Em virtude dos fatos mencionados, são trabalhados os aspectos sobre os


cemitérios luteranos, considerando espaço, comunidades e entorno social, confissão
religiosa, expressões culturais, sobretudo os que estão expressos na materialidade do
espaço cemiterial. Para tanto, é necessário compreender o que são símbolos e como
estes podem ser interpretados nesses espaços, nos quais está inserida a dinâmica da
vida social, cultural, religiosa e política.

AS SIMBOLOGIAS E A RELIGIOSIDADE LUTERANA

O significado de símbolo pode ter variações dependendo da ótica utilizada.


Para Urbano Zilles, símbolo pode ser entendido como uma linguagem utilizada por
determinado grupo para expressar alguns significados culturais, religiosos, políticos
e/ou sociais, além do que está posto na materialidade presente, que pode vir a
ser um objeto, gesto, elemento, movimento ou ação. No símbolo, são atribuídos
significados para além daquele presente para quem o recebe, portanto, o símbolo só
terá efeito ou entendimento para quem conhece ou está inserido em determinada
cultura ou grupo (ZILLES, 2006). Além disso, o símbolo não é imutável, pode
ser transformado ao longo do tempo e do contexto em que está inserido. E para
ser configurado como símbolo necessita que seja incorporado e assimilado por ao
menos um grupo de pessoas, ou então não passará de uma metáfora (ZILLES, 2006).
Os símbolos que destacaremos dentro dos cemitérios investigados serão: a
cruz, os ramos, o cálice e a estrela, encontrados nos seis cemitérios investigados, às
vezes inseridos dos mesmos modos, outras vezes não. O símbolo nesse contexto
será responsável por evocar outros significados, além de poderem ou não possuir
o elemento religioso. Também, podemos apontar para a bandeira nacional de
determinado país como um símbolo não religioso, contudo, dentro da religião, ela
é frequentemente utilizada, porém, religioso ou não, o símbolo funciona como uma
linguagem expressa por um grupo.
Existe, dentro da tradição protestante, um distanciamento das ideias a respeito
das imagens e dos objetos religiosos em seus espaços de cultos, em contraposição ao
catolicismo, porém o sujeito religioso está envolto num sistema de representações,
nas quais símbolos, mitos e ritos são elementos significativos dentro do fenômeno
religioso. Portanto, é necessário mantê-los para que desse modo estruturem suas
concepções sobre o símbolo a partir de um ponto de vista teológico que se pauta na
vivência religiosa (OLIVEIRA, 2018).
Para que se estabeleça essa sistematização, existem diversos símbolos
incorporados na tradição luterana, porém, o símbolo que, segundo Zilles, resume o
ideal do sujeito cristão é a cruz. No discurso religioso, a cruz representa a morte de
Cristo e, dessa forma, sua redenção, mas também todo o amor de Deus, sua bondade
e humildade por entregar seu filho para redimir os pecados do homem. Além disso,
a cruz é constituída por duas linhas, uma na vertical e outra na horizontal que se
cruzam: a linha da vertical representa a união entre céu e terra, e a linha na horizontal
aponta para a união do divino com o mortal, ou seja, de Deus com o homem, por
intermédio de Cristo. A cruz, portanto, é o elemento simbólico mais encontrado

222
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

dentro dos cemitérios e as construções tumulares trazem recorrentemente a cruz


como um elemento básico. Aqui se pode traçar a semelhança que existe tanto nos
cemitérios luteranos quanto católicos.
Outro símbolo recorrente nos cemitérios são os ramos, os quais fazem alusão
à passagem do Domingo de Ramos da Bíblia; o evento em questão é uma procissão
originada na cidade de Jerusalém com o objetivo de ser um evento público da fé em
Cristo. A entrada de Jesus em Jerusalém foi recebida com alegria pelas pessoas que,
em suas mãos, carregavam ramos de oliveira e cantavam enquanto seguiam Cristo.
Dado o exposto, é encontrada a representação de ramos nos cemitérios fazendo
alusão à celebração, mas também demonstrando publicamente a fé em Cristo. Além
disso, segundo a fé cristã, a multidão que acompanhava Jesus na procissão gritava
“Hosana”, palavra que significa “salva, ajuda, por favor”, portanto, outra interpretação
possível à simbologia dos ramos nas sepulturas do cemitério é a de uma súplica à
salvação da alma do sujeito. É possível encontrar a representação dos ramos, ver na
figura 3 e 4, como também em alguns casos ramos de fato, ver figura 7.

Figura 3: Túmulo do Cemitério da Comunidade Dona Júlia. 4º Distrito, Triunfo.

Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019.

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Figura 4: Túmulo do Cemitério da Comunidade Bom Pastor, 4º Distrito, Triunfo.

Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019.

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O próximo símbolo é o cálice, que aparece em menor quantidade em algumas


sepulturas, mas em mais de um cemitério luterano foi possível notar sua presença (ver
figura 5). Zilles aponta o cálice como o principal vaso sagrado do culto cristão, no
qual é realizado um dos sacramentos, o da Santa Ceia; sendo assim, é consagrado o
vinho na celebração que representa o sangue de Cristo. Esse sacramento é responsável
por estabelecer uma relação entre indivíduo e Deus, mas também a relação das pessoas
entre si, já que, conforme a sagrada escritura, a Santa Ceia é realizada por Cristo com
seus doze discípulos (SAFT, 2008). Dessa forma, o vaso possui um vínculo direto com
o sagrado, e estar inserido no espaço do cemitério representado nos túmulos aponta
para a importância da vida religiosa para o sujeito, ou pode estar vinculado ao papel
desempenhado pelo sujeito como um agente religioso significativo dessa comunidade.
Por último, analisaremos o significado da estrela de cinco pontas encontrada nos
cemitérios. A estrela é definida como uma guia, conforme aponta Zilles. Uma vez que,
em seu contexto religioso, a estrela indica o caminho, como foi no caso do nascimento
de Cristo na manjedoura, quando os reis magos teriam sido guiados pela estrela do
oriente. A interpretação foi aplicada para o âmbito do cemitério como a estrela que
guiará a alma do sujeito até o dia da vinda de Deus. Sendo assim, alguns dos epitáfios
contribuem para essa interpretação, como é o caso de uma sepultura do Cemitério da
Comunidade São Pedro da Chicuta Oliveira, no distrito Triunfo:

Dein schweres Leiden hat ein Ende, erlöst bist du von deiner Qual,
Wir drücken deine lieben hände und grülsen dich zum letzten Mal.
Ruhe sanft, o liebe, gute Mutter, schlaf wohl denn, gute Nacht!
Dich drückt nicht mehr Sorg’und Kummer, der herr hat alles wohl gemacht.
O liebste Mutter schlaf in Frieden, schlummre sanft in stiller Gruft,
Ruhe sanft, bis Gott dich ruft. (Projeto Cemitérios do Campo, 2019).

Em tradução livre do alemão:

Seu grave sofrimento tem um fim, você é redimido da sua agonia,


Nós apertamos suas mãos doces e seguramos pela última vez.
Descanse delicadamente, querida, boa mãe, durma bem, boa noite!
Você não aguentava mais tanta tristeza, o Senhor fez tudo bem.
Ó mãe querida durma em paz, dorme gentilmente na cripta silenciosa,
Descanse gentilmente até que Deus te chame. (Projeto Cemitérios do Campo, 2019).

Nesse epitáfio, é possível identificar pelo menos três aspectos: primeiro, a


expressão da dor pela perda; segundo, a mensagem de despedida, assim como os
elementos que ficarão na memória social do indivíduo, nesse caso “boa mãe”; por
último, o aspecto religioso, quando é mencionado o divino em alguns momentos
do epitáfio – na última linha aponta “até que Deus te chame”, sugerindo o retorno,
segundo a crença do sujeito/agente social. A estrela, então, pode ser representada
nos túmulos luteranos (ver figuras 5 e 6) e ter o significado de guia até o retorno do
divino, segundo a fé cristã.

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Figura 5: Túmulo do Cemitério Comunidade Dona Figura 6: Túmulo do Cemitério da Comunidade São Pedro
Júlia, 4º distrito, Triunfo. da Chicuta Oliveira, 4º distrito, Triunfo.

Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019. Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019.

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Figura 7: Túmulo do Cemitério da Comunidade Luterana União Picada Ritter, 6º distrito, Santa Silvana.

Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019.

Tendo em vista os aspectos observados, é possível perceber um conjunto


de símbolos dentro dos cemitérios luteranos que fazem parte da vivência dessas
comunidades. Esse conjunto possui um viés que é o religioso e, por outro lado, se
configura como um conjunto de patrimônio cultural dessas comunidades.

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O CEMITÉRIO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL

O ato de enterrar ou inumar um corpo vem desde os primórdios da humanidade


e foi adotado por diversos grupos humanos, em diferentes regiões, épocas e culturas.
Podemos destacar as civilizações egípcias antigas com a utilização das pirâmides para
seus enterros; também, os etruscos, os romanos e gregos têm uma postura de ritual
diante da morte. Ao longo do período conhecido como Idade Média, o tratamento
com a morte se modifica em razão da disseminação do cristianismo; o culto à
morte na alta Idade Média tem um trato de indiferença à individualidade do sujeito
morto, assim como os sujeitos do local de sepultamento têm poucos cuidados com
os enterros. À medida que se chega ao fim desse período há uma preocupação
cada vez maior com os enterros, agora ao invés de ocorrerem dentro das igrejas,
como de costume, os corpos são enterrados em locais específicos a céu aberto, em
geral afastados das cidades, isso devido ao avanço da medicina preocupada com as
possíveis contaminações por pestes dos defuntos, e tais locais passam a ser chamados
de campos santos (RIBEIRO; TAVARES; BRAHM, 2018).
Esses ideais sanitaristas vieram da Europa para o Brasil, em meados do século
XIX. Num primeiro momento, são construídos em locais distantes do perímetro
urbano, contudo, ao longo do processo de urbanização das cidades, os cemitérios
voltam a constituir parte da paisagem urbana5. Dado o exposto, o cemitério torna-
se o local dos mortos para os vivos, há uma postura diante do trato com a morte
de imortalidade da memória por meio da materialidade cemiterial, o que fica
evidenciado no esforço das construções tumulares cada vez mais com características
monumentais, como é o caso de alguns cemitérios centrais, consequentemente, com
usos de ornamentos, alegorias, epitáfios, fotografias, compondo um conjunto de
patrimônios culturais que expressam e preservam a individualidade e a memória do
sujeito e/ou sua família.
Em vista disso, destacamos que os cemitérios do campo não fogem dessa lógica,
possuem, em sua configuração cemiterial, alguns desses conjuntos patrimoniais que
vão nesse mesmo sentido de preservar a memória e a individualidade, mas também
expressam elementos culturais, religiosos, sociais e étnicos. Esse é o caso do uso
da língua alemã nos epitáfios dos cemitérios luteranos, as vestimentas percebidas
nas fotografias presentes, a preocupação em adornar as construções tumulares com
símbolos religiosos, flores, epitáfios etc.
O uso do conceito de patrimônio é incorporado a este trabalho uma vez
que oferece reflexão para o entendimento da vida cultural e social de um grupo.
Apesar de parecer um conceito estruturado e limitado na modernidade, patrimônio,
segundo José Reginaldo Gonçalves, é uma categoria de pensamento e, apesar de
atrelado a conceitos como política, economia ou cultura,“é possível transitar de uma
a outra cultura com a categoria patrimônio, desde que possamos perceber as diversas
dimensões semânticas que ela assume e não naturalizemos as nossas representações
a seu respeito” (GONÇALVES, 2002, p. 23). Em vista disso, a utilização do termo
patrimônio cultural pode ser ampliado de seu sentido jurídico de conjunto de bens
5  Para saber mais a respeito das ideias sanitaristas, ver a obra de Ariès, 2012. A respeito da urbanização, ver a obra
de Cymbalista, 2002.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

suscetíveis de apreciação econômica e pode ser levado ao âmbito do cemitério, pois


possui um valor complexo de conjuntos arquitetônicos de valor histórico e artístico,
bem como compõe determinado entorno social e ambiental (SILVA; SILVA, 2005).
Perceber os símbolos presentes na materialidade do cemitério pode gerar sentidos
mais profundos, o que ressalta a preocupação dos sujeitos/agentes das comunidades
em preservar esses espaços. Torna-se para além de um local de simples inumação, mas
de preservação da memória, gerando atribuição de um significado que vai ao encontro
do conceito de patrimônio. Como salienta Gonçalves “os seres humano usam seus
símbolos sobretudo para agir, e não somente se comunicar. O patrimônio, é usado não
apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir. [...] de certo modo,
constrói, forma as pessoas” (GONÇALVES, 2002, p. 27).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A posição das análises apresentadas no presente trabalho está em


constante construção, conforme o andamento do projeto Cemitérios do
Campo. Por isso, não se pretende fechar o debate no que se refere ao patrimônio
dos cemitérios do campo, mas dar visibilidade a esses locais de poucos estudos
até o momento. Pretende-se construir um banco de dados para futuras pesquisas
com maior aprofundamento dos temas, bem como ampliar as análises a outros
segmentos possíveis, sejam eles de caráter étnicos, religiosos, históricos, patrimoniais
ou arquitetônicos.
Foi realizada uma interpretação dos símbolos mais recorrentes nos
cemitérios do campo de confissão luterana, a fim de perceber a religiosidade
expressa em sua materialidade. Foi encontrada a cruz como principal
símbolo, mas também outros que estão presentes no conjunto patrimonial
dos cemitérios do campo luteranos: o cálice, a estrela e os ramos. Todos
eles se referem à religiosidade, mas também estão inseridos para além do
caráter religioso, são transferidos ao âmbito social, cultural dos sujeitos a que
pertencem. Ainda, existem outros símbolos menos recorrentes que não foram
abordados aqui que tomam direções.
Por fim, não foram incluídas imagens de todos os seis cemitérios, pois não
caberia aos limites da produção, contudo, ressaltamos que os cemitérios, mesmo
de distritos separados e instalados em lugares distantes um do outro, possuem
semelhanças que são a utilização de símbolos recorrentes, talvez pela união religiosa,
talvez por compartilhar de uma mesma realidade. Porém, essas são simbologias
importantes que se configuram como conjuntos patrimoniais, capazes mais do que
apenas diferenciar o patrimônio cultural, do social, do político ou do religioso de
outros grupos, mas gerar uma formação de autoconsciência cultural.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

REFERÊNCIAS

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recortes do cotidiano. São Leopoldo: Oikos, 2015.
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Italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: C/arte, 2002.
CYMBALISTA, Renato. Cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte nos
cemitérios do Estado de São Paulo. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2002.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In:
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PROJETO CEMITÉRIOS DO CAMPO. Acervo fotográfico dos cemitérios do
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RIBEIRO, Diego Lemos; TAVARES, Davi Kiermes; BRAHM, José Paulo Siefert. Entre
a vida e a morte: cemitérios, em si próprios, são museus? In: Interfaces Científicas:
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SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

230
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

XAVIER, Sinval Cantarelli; LEMÕES, Suelen. Mapa Rural do Município de Pelotas


RS. Prefeitura Municipal de Pelotas, 2018. Disponível em: <https://www.arcgis.com/apps/
PublicInformation/index.html?appid=cabeded4e3694e62902096cced3acbb3>. Acesso em
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ZILLES, Urbano. Significação dos símbolos cristãos. 6. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2006.

231
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

MONUMENTO PÚBLICO, MEMÓRIA SOCIAL


E CATÁSTROFE: ATIVAR A DOR PARA NÃO
ESQUECER
JOSÉ PAULO SIEFERT BRAHM1
DAVI KIERMES TAVARES2
JULIANE CONCEIÇÃO PRIMON SERRES3

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A relação entre história e memória e a reflexão sobre o passado e os processos


de mudanças políticas e sociais se tornaram, nos últimos três decênios, pelo menos,
preocupação principal às ciências humanas e sociais como resposta a uma consciência
que emergiu nas mais diversas sociedades do planeta. Uma “cultura da memória”
(HUYSSEN, 2002) assim como políticas de memória tornaram-se presentes em
diversos recantos do mundo. A reminiscência passou a ser essencial para a formação
identitária, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, oferecendo um espaço
para o conflito e a identificação. Enquanto certos tipos de memória se retraíram
–, a de aprendizagem, a formativa, a experiencial (ADES, 1993) –, outras formas
ganharam proeminência. Essas, por meio de reivindicações e disputas, têm exercido
pressões sobre o presente, e se tornaram vitais para a formação cultural (ASMANN,
2011).
A memória decorrente de traumas históricos no espaço público, durante o
século XX, sobretudo após a II Guerra Mundial, é exemplo que podemos aludir.
A mesma impôs uma reconfiguração ao status memorativo e rememorativo dos
marcos simbólicos, considerando o papel da vítima fundamental na atribuição do
que seja relevante. Disso decorre a estética do antimonumento, a qual busca fundir
a tradição do monumento com a da comemoração fúnebre (SELIGMANN-SILVA,
2012). Desde a Antiguidade, a tradição de construção de monumentos esteve mais
1  Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP – UFPel). Doutorando do PPGMP-UFPel. Bolsista
CAPES (código de financiamento 001). E-mail: [email protected].
2  Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural (PPGMP – UFPel). Professor do IFBA. E-mail: davi.tavares@
ifba.edu.br.
3  Doutora em História (UNISINOS). Professora e Coordenadora (atual) do PPGMP – UFPel. E-mail:
[email protected].

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ligada à comemoração de vitórias bélicas e a heróis do que à ideia de advertir.


No antimonumento, porém, “o sentido heroico [...] é totalmente modificado e
deslocado para um local de lembrança (na chave da admoestação) da violência e de
homenagem aos mortos” (SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 146).
Essa nova maneira de compreender acontecimentos traumáticos conduziu
também à produção de representações simbólicas e a locais de recordação, os quais
legitimavam/legitimam instituições e valores de grupos atingidos pelo arbítrio. Em
muitos casos, mais do que representar uma ruptura com a tradição cultural ou com
a memória formativa, que efetua vínculos com uma nação ou região específica, a
“cultura da memória” indica que os excessos de atrocidades cometidos “implodem
a capacidade humana de apreender e representar experiências-limite e a própria
história” (ASSMAN, 2011, p. 17 e 361).
A história da mais recente ditadura militar (ou ditadura civil-militar)4 brasileira
(1964-1985) revela aspecto catastrófico, uma vez que produziu um trauma coletivo
configurado na perda da democracia e em graves violações de direitos humanos e
de garantias individuais dos opositores. A ressaltar, dentre as violações, o emprego da
tortura como “política de Estado”, especialmente entre os anos 1969 e 1974, como
instrumento de controle social e consolidação do governo ditatorial.
Superado o período da Ditadura no país, sua dimensão trágica suscitou produções
culturais e artísticas. Dentre essas, os monumentos e os memoriais públicos erigidos
em memória das vítimas, por diversas localidades do país, revelam uma espécie de
“estética da catástrofe” (OLIVEIRA, 2008) – tentativas de representar e ativar na
memória da sociedade a lembrança daqueles tempos difíceis, dolorosos. Ainda pouco
estudados em profundidade, no país, essas produções – a exemplo do monumento
Tortura Nunca Mais, localizado na cidade do Recife, desde o ano de 1993, o qual
se constitui no fulcro deste artigo – integram, em si mesmos, denúncias dos crimes
perpetrados pelo Estado, dever de memória para não os olvidar, e ação concreta e
visível no intuito de amenizar a dor das famílias vitimadas e dos sobreviventes.
No que segue, repercutindo as questões acima delineadas, este artigo enfoca
o monumento nomeado e discorre sobre sua caracterização, sua significação,
seu processo construtório, e as emoções suscitadas por sua representação. Na
exposição, os liames entre monumento público, memória social e catástrofe
inevitavelmente estarão presentes. Ele ressoa a advertência nietzschiana: “Grava-
se algo a fogo, para que fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica
na memória” (NIETZSCHE, 1998, p. 50 – destaque na tradução utilizada).

4  Atualmente, existem defensores tanto da primeira quanto da segunda terminologia. Em defesa da segunda, entre
vários, coloca-se Daniel Aarão Reis e sua obra Ditadura e Democracia no Brasil: Do golpe de 1964 à Constituição de
1988, editora Zahar, 2014. Quanto àqueles que advogam a primeira, posicionam-se Pedro Pomar, Armando Boito
Jr., e outros. Ver os artigos O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar, disponível em: <https://www.
brasildefato.com.br>, e Os civis vestiram a farda?, in: Jornal da Unicamp, Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014.

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UM MONUMENTO PÚBLICO PRECURSOR

O monumento público Tortura Nunca Mais é uma construção material e


simbólica edificada na Praça Padre Henrique,5 às margens do rio Capibaribe, situada
na Rua da Aurora, nº 35, bairro Boa Vista, centro da cidade de Recife, capital do
Estado de Pernambuco, região Nordeste do Brasil. Primeiro monumento erigido
no país em memória dos mortos e desaparecidos (torturados) pela ditadura militar,
reflete a Diretriz 24, do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-
3, 2010), qual seja a “preservação da memória histórica e de construção pública da
verdade sobre períodos autoritários”6.
A instalação se constitui de moldura de concreto (7,0 m x 7,0 m), apoiada
sobre uma base. Duas placas retangulares de aço inoxidável estão fixadas na metade
superior, superpostas. No centro da quadratura está a escultura de um homem, feita
em concreto (1,80 m x 1,60 m x 0,80 cm), em posição fetal, sustentado por uma
haste de aço, que desce da parte superior, a qual ele segura com a mão esquerda.
Tem o rosto voltado para o lado do rio que margeia a praça (Figuras 1 a 3). Seu
sentido, em conexão às lutas pelas memórias e os sentidos sociais do passado recente
de repressão política e terrorismo de Estado, no Cone Sul da América Latina, é
aventado por Valdênia Brito (2003) nos termos seguintes:

Para los arquitectos, el objetivo del monumento era causar impacto. El monumento es de estilo
neoclásico, pero escapa a lo común, al “evitar la utilización del viejo concepto de una estatua sobre
un pedestal, que todo el mundo conoce. Es preciso, por lo tanto, que cada brasileño cuelgue este
cuadro en la pared de su memoria y que, a partir de ahora, sigamos un caminoo de más justicia
y libertad en nuestro país [Declaraciones de Eric Perman, arquitecto del monumento, Jornal do
Comércio, 28 de abril de 1988]. Según el grupo impulsor del monumento, se trataba de retratar
la tortura, pero sin revanchismo: “de ahí la idea del marco, dando la impresión de un cuadro que
pertenece al passado”. El arquitecto explica que las dos láminas representan el corte, la tortura, en
tanto el cable de acero que sostiene al torturado simboliza la fuerza mayor, el dominio y el poder
que dejan impotente a la víctima. Observa que el marco también significa el límite, la falta de
libertad y de democracia, la restricción del espacio. “La figura está en el espacio con liviandad, a
pesar del peso del tema. Da la impresión que el hombre torturado vuela. En verdad, renace en el
dolor de la posición uterina” [Paulo Fernando Craveiro, Caderno de Política, 26 de agosto de 1993].
La vuelta a la posición fetal simboliza, asimismo, el inicio de la vida. Nuevamente, pasado y futuro
se conectan (BRITO, 2003, p. 120 – aspas no original, interpolação nossa).

5  A Praça Padre Henrique é uma praça atípica; não possui os objetos tradicionais desse tipo de espaço. Ela foi idealizada
e executada como “espaço de memória”, não de lazer. Padre Antônio Henrique Pereira Neto era auxiliar de D. Hélder
Câmara (então Arcebispo das cidades de Recife e Olinda, que denunciava, principalmente no exterior, o emprego de
violência pela ditadura brasileira contra os opositores). Ele foi sequestrado, torturado e assassinado na madrugada do dia 27
de maio de 1969, em Recife, por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e por agentes da polícia civil
de Pernambuco, sendo seu corpo encontrado em lugar ermo da cidade universitária da UFPE com marcas de sevicias. Cf.
<http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/antonio-henrique-pereira-neto-padre-henrique/>.
6  Posteriormente, outros monumentos foram construídos pelo país. O Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos
Políticos, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, inaugurado no dia 8 de dezembro de 2014; o Monumento aos Mortos e
Desaparecidos Políticos, no Campo de Pólvora, cidade de Salvador/BA, em 28 de agosto de 2015; Monumento aos Mortos e
Desaparecidos na Luta Contra a Ditadura Militar, em Goiânia/GO, inaugurado em 27 de agosto de 2004, são exemplos.

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Figura 1: O monumento na praça

Fonte: Fotografia de Davi Tavares, 2019.

Figura 2: O monumento enquadrado

Fonte: Fotografia de Davi Tavares, 2019.

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Figura 3: Detalhe do monumento

Fonte: Fotografia de Davi Tavares, 2019.

O processo de sua construção revela muitas nuances. Ele se inicia quando


o Movimento Tortura Nunca Mais7 sucede aos Comitês de Anistia que encamparam
as reivindicações dos familiares dos mortos e desaparecidos, além de buscarem
responsabilizar, à época, o Governo brasileiro pelos crimes bem como preservar a
memória dos mortos e desaparecidos e a memória da própria luta. A necessidade
de sua construção estava diretamente proporcional à ameaça do esquecimento
(WEINRICH, 2001), que transforma o luto e o lembrar num problema infindo.
Em seguida ao malogro da primeira instalação projetada por Oscar Niemeyer
para a cidade do Rio de Janeiro, devido à carência de apoio do Prefeito daquele
momento (o político Saturnino de Brito preferiu não enfrentar pressões contrárias,
7  O Movimento Tortura Nunca Mais é uma entidade da sociedade civil que tem, entre outros objetivos, realizar
pesquisas sistemáticas a fim de denunciar à sociedade brasileira e às Entidades Internacionais quanto à prática
institucionalizada de tortura, com o objetivo de criar uma consciência coletiva contrária à violação dos Direitos
Humanos; atuar no sentido de obter dados para identificação das vítimas de tortura, dos mortos e dos desaparecidos
que lutaram contra o regime político autoritário instalado em 1964. A ideia do Movimento era construir e consolidar,
no Brasil, espaços que expressassem a memória dos presos e desaparecidos pela ditadura militar. No ano de 1984,
surgiu, no Rio de Janeiro, o primeiro grupo Tortura Nunca Mais. Nos anos seguintes, ex-combatentes da resistência
em todo o país fundaram outros grupos, que levavam o mesmo nome e perseguiam os mesmos objetivos, como
aconteceu em 1986, em Pernambuco.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

que acusavam de revanchismo a construção do monumento), o Movimento Tortura


Nunca Mais resolveu lutar por sua construção na cidade de Recife, aproveitando-se
da eleição do advogado e político Jarbas Vasconcelos para Prefeito da mesma, no
ano de 1986, como resultado de conjugação de forças políticas “de esquerda” que
apoiaram e propiciaram-lhe a vitória eleitoral.
A partir de uma audiência entre dirigentes do Movimento Tortura Nunca Mais e
o Prefeito, ficou acordado que a Prefeitura da Cidade de Recife, através da Empresa
de Urbanização do Recife-URB, se responsabilizaria pelo concurso relativo à
construção do monumento. É lançado então um edital de concurso público, em
fevereiro de 1988, aberto “a arquitetos legalmente habilitados e artistas plásticos
profissionais filiados à Associação dos Artistas Plásticos Profissionais de Pernambuco
(AAPP/PE), diplomados pela Escola de Belas Artes ou portadores de notório saber”
(BRITO, 2003, p. 15).
Dentre vinte trabalhos inscritos, logra êxito uma equipe de quatro arquitetos
recém-formados, residentes em Recife, composta por Eric Perman, Albérico
Barreto, Luiz Rangel e Demétrio Albuquerque (este último o responsável específico
pela criação e execução da escultura disposta no centro da moldura de concreto).
Percalços de várias ordens (político, econômico, urbano, jurídico, administrativo
etc.) houve para a construção da obra; todavia, todos foram superados ou contornados.
Finalmente, no dia 27 de agosto de 1993, em meio às comemorações do décimo
quarto aniversário do estabelecimento da Lei da Anistia (Lei nº 6.683, aprovada em
28 de agosto de 1979 pelo então Presidente da República, o general João Batista
Figueiredo, o último do período de exceção), o Monumento é inaugurado com a
presença de familiares de desaparecidos, de mortos, de ex-presos políticos torturados,
de autoridades civis e eclesiásticas de várias partes do país, que acorreram ao evento.
Seis anos depois da inauguração do monumento, em 28 de agosto de 1999, a
praça recebe placas contendo nomes de mortos e desaparecidos do período ditatorial
e de outras pessoas que lutaram contra o arbítrio, mas não morreram vitimadas por
ela. Dom Hélder Câmara foi um dos homenageados, entre outros (Figura 4).

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Figura 4: Tributo em forma de placas à direita do monumento

Fonte: Fotografia de Davi Tavares, 2019.

HISTÓRIA, CATÁSTROFE, TRAUMA

Na trajetória política do Brasil, várias catástrofes, vários traumas ocorreram. O


período da ditadura militar brasileira (1964-1985), por exemplo, pode ser adjetivado
de catastrófico. Reiteremos o já colocado: esse período produziu um trauma coletivo
configurado na perda da democracia e em graves violações de direitos humanos e
garantias individuais dos opositores. A ressaltar, dentre as violações, o emprego da
tortura como “política de Estado”, especialmente entre os anos 1969 e 1974, como
meio de controle social e consolidação do governo ditatorial, é o que revela o
jornalista Elio Gaspari, em livros ricos em informação sobre o período em geral e,
em particular, sobre a tortura8. Citamos:

8  Autor de cinco volumes: A ditadura envergonhada (v. 1), A ditadura escancarada (v. 2), A ditadura derrotada (v. 3), A
ditadura encurralada (v. 4) e, finalmente, A ditadura acabada (v. 5). O volume 2 é o que trata com minúcia da tortura,
embora o tema perpasse toda a obra.

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Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio,
o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade.
[...] A tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade
dos militares da época e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos
ditatoriais. [...] A tortura tornou-se matéria de ensino e prática rotineira dentro da máquina militar
de repressão política da ditadura por conta de uma antiga associação de dois conceitos. O primeiro,
genérico, relaciona-se com a concepção absolutista da segurança da sociedade. Vindo da Roma
antiga (“A segurança pública é a lei suprema”), ele desemboca nos porões: “Contra a Pátria não
há direitos”, informava uma placa pendurada no saguão dos elevadores da polícia paulista.9 Sua
lógica é elementar: o país está acima de tudo, portanto tudo vale contra aqueles que o ameaçam.
O segundo conceito associa-se à funcionalidade do suplício. A retórica dos vencedores sugere uma
equação simples: havendo terroristas, os militares entram em cena, o pau canta, os presos falam, e
o terrorismo acaba (GASPARI, 2014, p. 13, 14, 19).

O trauma e o ferimento resultante da tortura, da eliminação, do


“desaparecimento”, exercidos pelos militares contra aqueles que julgavam
inimigos, podem ser alocados entre os possíveis significados da palavra catástrofe10.
Esse fenômeno, que tem o poder de quebrar a normalidade da sociedade, pode
ser considerado um evento a partir da mensuração de sua repercussão, pois, se for
pequeno, revela-se apenas um ferimento, que abala particularidades e não a sociedade
como um todo. Nessa perspectiva, a catástrofe pode ser pensada como momento que
desestrutura subitamente o social, tratando-se de alterações espontâneas e enérgicas
que surgem sem aviso prévio e se incorporam às relações humanas, dando-lhes a
incerteza do que virá e sobre seu próprio vir a ser.
Ampliando a argumentação, verificamos que a noção de trauma veiculada em
nossos dias remete às catástrofes de maneira generalizada, sinalizando a busca de
certa padronização do traumático. São fatos que se enquadram na definição do
termo traumatismo, tal como indicada pelo dicionário de nossa língua: “choque
violento capaz de desencadear perturbações somáticas e psíquicas” (FERREIRA,
2014, p. 1413).
As catástrofes, sempre ou quase sempre, foram representadas pelos sujeitos
atingidos como recurso na tentativa de compreendê-las ou para que não fossem
esquecidas. O cinema, a literatura, a música, a escultura, entre outras manifestações
artísticas, trataram e tratam do tema pela perspectiva estética. A exemplificar isso,
mencionamos um tipo particular de escultura, o monumento, que, apesar de ainda
pouco estudado, revela-se importante meio de representação do pensamento e da
reação a determinado acontecimento de uma época, como expõe Alöis Riegl:

9  Percival de Souza, Autópsia do medo, p. 183. Esta nota faz parte do texto transcrito.
10  Sobre catástrofe, este artigo assume a definição elaborada por Nestroviski e Seligmann-Silva (2000, p. 8), que,
partindo das origens etimológicas do termo (do grego kata + strophé = “virada para baixo”; ou outra tradução
possível: “desabamento”, ou “desastre”; ou mesmo o hebraico Shoah), definiram-na como “evento que provoca
trauma, outra palavra grega, que quer dizer ‘ferimento’”. Essa definição valoriza a percepção dos sujeitos, não o
acontecimento em si; o decisivo não será a dimensão do evento, mas sua repercussão pelos sujeitos.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Por monumento, no sentido mais antigo e original do termo, entende-se uma obra criada pela mão
do homem e elaborada com o objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das
gerações futuras algumas ações humanas ou destinos (RIEGL, 2014, p. 31).

Françoise Choay (2006) considera que o monumento está presente em todos


os continentes e em praticamente todas as sociedades. E sobre ele discorre:

O sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”,
“lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é
essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção,
uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado
por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas
rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças (CHOAY, 2006, p. 17-18, aspas da autora).

Monumentos são edificados, portanto, no intuito de despertar emoções,


lembrar, perpetuar na memória dos sujeitos algo considerado importante no contexto
histórico ou social de um grupo ou comunidade. O antimonumento (monumento
catástrofe) também tem essa finalidade; porém, para além disso e somente isso, quer
produzir uma resposta a uma tragédia, tentando perpetuar na memória o momento
de dor e sofrimento que não foi possível absorver ou entender. Serve de alerta ou
denúncia sobre o que representa.

MONUMENTO TORTURA NUNCA MAIS: UM ANTIMONUMENTO?

A partir dessa nova compreensão, um questionamento possível de ser levantado


é quanto à natureza do monumento Tortura Nunca Mais.A rigor, seria um monumento
ou um antimonumento?
Para auxiliar na avaliação, recorremos a Marcio Seligmann-Silva e sua reflexão
pertinente sobre o fenômeno dos antimonumentos, que surgiram no final do século
XX como uma forma de lidar, pelo viés das artes, com a violência do Estado, como
nos casos do nazismo e das ditaduras latino-americanas (Ver SELLIGMANN-
SILVA, 2012, p. 141-173; 2016, p. 49-63; 2006, p. 31-45).
O autor recorrido apresenta – considerando as formas contemporâneas de
seleção entre o que lembrar e o que esquecer – os significados que assumem os
antimonumentos vis-à-vis aos monumentos tradicionais. Para ele, entre diversas
possibilidades, significam “uma nova modalidade de lidar com o novo papel da
memória” (SELLIGMANN-SILVA, 2016, p. 49).
A expressão do sofrimento, advindo das experiências concentracionárias da
tragédia, sobretudo do Shoah, induziram a essa expressão criativa do antimonumento
que congrega consigo a tradição do monumento com a da comemoração fúnebre.
Assim, o sentido heroico e vitorioso do monumento é totalmente modificado e
deslocado para um local de lembrança (na chave da admoestação) da violência e
de homenagem aos mortos. Os antimonumentos, na medida em que se voltam aos
mortos, injetam uma nova visão da história na cena da comemoração pública e, ao

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

mesmo tempo, restituem práticas antiquíssimas de comemoração e rituais de culto


aos mortos.
Discorrendo sobre essa nova maneira de representar a catástrofe, ele aduz:

O antimonumento se desenvolve em uma era de catástrofes e também de teorização do trauma,


com a psicanálise. Ele corresponde a um desejo de recordar de modo ativo o passado (doloroso),
mas também leva em conta as dificuldades do “trabalho de luto”. Mais ainda, o antimonumento,
que normalmente nasce do desejo de lembrar situações limite, leva em si um duplo mandamento:
ele quer recordar, mas sabe tanto que é impossível uma memória total do fato, como também o
quanto é dolorosa essa recordação. Essa consciência do ser precário da recordação manifesta-se
na precariedade tanto dos antimonumentos, como dos testemunhos dessas catástrofes. Estamos
falando de obras que trazem um misto de memória e de esquecimento, de trabalho de recordação
e resistência. São obras esburacadas, mas sem vergonha de revelar seus limites que implicam
uma nova arte da memória, um novo entrelaçamento entre palavras e imagens na era pós heroica
(SELIGMANN-SILVA, 2012, p. 142-143).

Em acorde com o arrazoado, o monumento Tortura Nunca Mais se enquadra,


como tantos outros pelo país e mundo afora, na tipologia do antimonumento. Se
não pelos aspectos aludidos, mas à medida que nos conduz pelos caminhos da
arqueologia da memória em cujas paisagens reconhecemos, misturadas, ora mais
claras, ora mais embaraçadas pelo tempo, imagens que nos espantam na mesma
medida em que clamam por justiça. Reunindo poética visual e forte conteúdo
memorial e emocional, o monumento/antimonumento apresenta convite à reflexão
não passiva, nem acomodada, daquilo que se esconde por detrás de camadas de
tempo e memórias.
A propósito, a teoria da memória de Walter Benjamin observa que nossa relação
com o passado pode ser comparada a um trabalho de recolher os destroços da
história (que seria para ele uma única catástrofe), as ruínas, em parte soterradas, que
guardam o esquecido. Aquele que recorda se choca com o segredo que o esquecido
encerrava (BENJAMIN, 1987, p. 105). O que é percebido em alguns depoimentos
publicados, à época, em jornal tradicional da cidade de Recife11, e que referenciam
o sentido emocional e percuciente do Tortura Nunca Mais sobre os sujeitos que o
contemplaram (o que corrobora à compreensão de considerá-lo antimonumento).
Vejamos:

Quando vi o monumento... foi como se desencadeasse um mecanismo em minha memória trazendo


fatos, pessoas, saudades e revolta (Luciano Siqueira, Presidente do Partido Comunista do Brasil).
A primeira vez que vi o Monumento Tortura Nunca Mais senti uma grande emoção (Chico de Assis,
ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário-PCBR).
O monumento vai suscitar reflexão porque a tortura ainda existe. Quem vir o monumento vai sentir
identificação com a realidade presente (Alberto Vinícius Melo, ex-militante do PCBR).
Senti um impacto muito forte, quando vi a estrutura concluída. É um monumento que mostra
fragilidade, solidão e grandeza. A grandeza das pessoas que deram o melhor que tinham,

11  Jornal do Comércio. Caderno Política, 1993, p. 2.

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inclusive a vida em nome da liberdade (Amparo Araújo – Coordenadora do Tortura Nunca Mais de
Pernambuco).
É muito forte (Elzita Santa Cruz, mãe do desaparecido político Fernando Santa Cruz).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O monumento/antimonumento Tortura Nunca Mais pode e deve ser


contemplado/entendido por diversas perspectivas. Uma nova representação, ou uma
representação mais condizente, adequada aos novos reclamos de outras formas de
memória: eis o seu sentido.
Denúncia dos crimes perpetrados pelo Estado, “dever de memória” (LEVI,
2010) para não os olvidar, ação concreta e visível no intuito de amenizar a dor das
famílias vitimadas e dos sobreviventes: razão de sua existência.
Elemento gerador de debates, reflexões sobre o nosso passado: relevância de
seu existir no presente. (O que tem consonância com a advertência da distinta
historiadora Emília Viotti – ela mesma ex-presa política, em 1968, pela ditadura
militar e aposentada compulsoriamente de suas atividades de docência na USP:
“Um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está
fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros” – COLOMBO, 2017).
Last but not least, um objeto na paisagem urbana a, diuturnamente, “ativar a dor
para não esquecer”, não necessariamente por uma “memória de ressentimento”,12
mas enquanto “dever de memória” (LEVI, 2010), algo recorrente em depoimentos
de parentes de vítimas ou de vitimizados sobreviventes, a exemplo do seguinte:

É fácil dizer que devemos esquecer tudo em nome da conciliação nacional, enquanto existem tantas
famílias que buscam seus filhos sem saber se estão vivos ou onde estão, se estão mortos e em
quais cemitérios foram enterrados. Não queremos vingança, mas sim justiça (Rosalina Santa Cruz,
cujo irmão, Fernando, foi preso em 1974 e desde então está “desaparecido”) (FREMBERG, 2015).

Essa declaração vai de encontro aos esclarecimentos de Candau (2014) e Ricoeur


(2007), quando mencionam que, muitas vezes, é o próprio medo do esquecimento
que motiva os grupos sociais a preservarem suas referências de memória. “A vontade
de memória” (NORA, 1993) não é o único motivo à preservação de determinado
objeto, história, pessoa. Então, podemos rematar que o Tortura Nunca Mais foi
construído não somente por uma vontade de memória, outrossim, pelo medo de
que a história do período escorresse nas “águas do Lete”13.

12  Para essa importante relação, impossível de ser tratada no limite espacial deste trabalho, recomendamos a obra
Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, organizada por Stella Bresciani e Márcia Naxara,
2. ed., Campinas, SP, editora da Unicamp, 2004.
13  Sobre a expressão entre aspas, ver Ribeiro Jr. (2019).

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FREMBERG, Sara. Pela Lembrança,Verdade e Justiça. Ponto de Debate, n. 1, p. 1, 2015.
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HISTÓRIA DA CLASSE TRABALHADORA,


MEMÓRIA E PATRIMÔNIO: ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO DE
PORTO ALEGRE
FREDERICO DUARTE BARTZ1

INTRODUÇÃO

Durante a Primeira República (1889-1930), com a expansão das atividades


econômicas e o crescimento da urbanização, um grande número de operários
passou a viver nas regiões centrais e nos arrabaldes de Porto Alegre. Juntamente
com esta expansão da presença da classe trabalhadora, também surgiram associações
beneficentes, sindicatos e grupos políticos em diversas regiões da cidade, conformando
uma territorialidade para este movimento operário.Ao longo do século XX, ocorreu
um processo de apagamento da presença da classe trabalhadora organizada e da
memória dos espaços em que ocorreram suas lutas. O que apresentarei neste artigo
são algumas considerações sobre o mapeamento do patrimônio e a necessidade
da preservação da memória ligada às organizações de classe surgidas em Porto
Alegre durante a Primeira República. Neste sentido, abordarei o desenvolvimento
dos territórios do movimento operário, nos arrabaldes, ruas e praças que foram
palco das mobilizações neste período e também tratarei sobre o que restou dos
locais de encontro da classe trabalhadora, com especial destaque para as edificações
remanescentes daquele período e que poderiam se transformar em valiosos espaços
de memória.

OS TERRITÓRIOS DAS ORGANIZAÇÕES DE CLASSE EM PORTO ALEGRE (1889-


1930)

Em Porto Alegre, durante a Primeira República, é possível observar a


concentração de locais de mobilização e organização da classe trabalhadora em
diferentes regiões da cidade, num processo determinado por fatores econômicos,

1  Técnico em Assuntos Educacionais na UFRGS. E-mail: [email protected]

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culturais e políticos, que configuraram uma territorialidade para o movimento


operário. Como entende Amir El Hakim de Paula, a territorialidade seria “uma
estratégia territorial, uma ação no território buscando um objetivo político/social ou
econômico, sem que necessariamente se consume uma posse efetiva do território”
(DE PAULA, 2015, p.40). Nesse caso, a escolha e a consolidação do movimento em
determinados espaços não pode ser considerada aleatória, mas possui uma lógica
que visa a potencializar a intervenção política das associações.
O primeiro território de ação militante em Porto Alegre foi a região central da
cidade. O movimento operário (entendido aqui como as organizações que tinham
o pertencimento à classe trabalhadora ou determinada categoria profissional como
fator aglutinativo) começou a desenvolver-se na capital do Rio Grande do Sul no
final do período monárquico, impulsionada pela luta abolicionista e pela ação do
movimento republicano (LONER, 2010, p.120-129). Nesse período, a urbanização
se concentrava na Península, onde vivia a elite econômica e política da cidade e
também parte significativa da classe trabalhadora (SOUZA; MÜLLER, 2007, p.53-
71). As primeiras associações que expressaram a força organizativa de operários,
artesãos e pequenos industriais em Porto Alegre foram o Club Artístico Porto-
Alegrense, a Sociedade Beneficente União Operária (SBUO) e a Liga Agrícola
Industrial (LAI), que tiveram um papel importante como canal de diálogo entre
os trabalhadores e o governo republicano (PACHECO, 2001, p.99-110). Uma
observação das ações destes grupos mostra que sua atuação estava circunscrita
majoritariamente ao antigo núcleo urbano da cidade. Ali se destacava a Rua Doutor
Flores, próxima da Rua Voluntários da Pátria (a zona do comércio e das atividades
fabris) e da Rua da Praia (a principal via pública da capital), onde se encontravam
o Salão Preussler, depois Salão Trein (Rua Dr. Flores, n. 32A, post. 108)2 e o Salão
Cosmopolita (Rua Dr. Flores, n. 23, post. 135), palco das principais reuniões
ocorridas no início da década de 18903.
O Centro da cidade permanece como local de mobilização durante toda a
Primeira República, não apenas porque era grande o número de trabalhadores que
viviam nos becos e cortiços ali localizados, mas também porque era o lugar das
grandes manifestações públicas. A Praça Senador Florêncio (Praça da Alfândega) foi
palco de mobilizações durante a Greve Geral de 1906 e foi o local escolhido para
o comício de deflagração da Greve Geral de 1917. Foi também no Centro, mais
especificamente na Rua General Câmara, n. 24 (post. 264), um dos pontos iniciais
de estruturação do anarquismo em Porto Alegre, onde, a partir de 1906, foi criada a
Escola Eliseu Reclus (A Luta, Porto Alegre, 13/9/1906, p. 1-4; A Luta, Porto Alegre,
2/1/1907, p. 2). No final dos anos 1920, foi na Praça Parobé, n.12 (post. 74) onde
os comunistas montaram seu quartel general, onde o Bloco Operário e Camponês
e a Central Regional dos Trabalhadores tinham sua sede (PEIXOTO, 2006, p. 116).
2  Entre parênteses estão os endereços posteriores (post.), correspondentes à localização atual e fruto das mudanças
de numeração dos prédios ocorridas a partir de 1927. Estas mudanças foram publicadas no jornal A Federação, entre
junho de 1927 e março de 1928, servindo de base comparativa para este trabalho.
3  A Federação. Porto Alegre, 10/1/1889, p. 2; Jornal do Commercio. Porto Alegre, 2/10/1890; A Federação. Porto
Alegre, 23/1/1891, p. 2; Deutsch Zeitung. Porto Alegre, 1/3/1892, p. 2; A Gazetinha. Porto Alegre, 20/5/1897, p. 2
e A Gazetinha. Porto Alegre, 16/12/1897, p. 2.

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Outro território importante do movimento operário foi o arrabalde da


Floresta. Esta região começou a ser mobilizada com mais intensidade a partir de
1895, com a fundação da Liga Operária Internacional, na Rua Ramiro Barcellos,
n. 126 (post. 389), na casa de um velho operário alemão chamado Felix Franke
(PETERSEN, 2001, p. 96-97). Esta era a parte da cidade para onde se expandia a
indústria e as oficinas, durante a década de 1890, em direção à zona norte entre a
Rua Cristóvão Colombo (antiga Estrada da Floresta) e a Rua Voluntários da Pátria
(antigo Caminho Novo), uma zona com forte presença de imigrantes alemães
(AMSTADT, 2005, p.564-569). Essa expansão das atividades organizativas não está
ligada apenas ao crescimento urbano, mas também a uma mudança de orientação
política do movimento, que realiza uma inflexão em direção às demandas de caráter
mais classista com o crescimento da influência da socialdemocracia, que tinha uma
de suas principais bases entre os operários de língua alemã (GERTZ, 1985/1986, p.
82-83).
Um dos sinais mais claros dessa expansão para os arrabaldes como expressão
de territorialidade foi a caminhada de 1º de maio de 1897. O trajeto se iniciou
na Praça da Conceição, adentrando no arrabalde da Floresta até a Rua Ramiro
Barcellos, voltando pela Rua Voluntários da Pátria e circulando pelo Centro da
cidade, até se dispersar no mesmo local de origem (A Gazetinha, Porto Alegre, p.
3, 3, mai, 1897). Esta caminhada foi organizada pela Liga Operária Internacional
e pela Allgemeiner Arbeiter Verein, organização dos socialdemocratas alemães,
testemunhando a importância daquela região como espaço de militância. Durante
os anos 1900, o arrabalde manteve sua centralidade nas articulações dos operários,
especialmente o Salão da Rua Ramiro Barcellos, n. 128 (post. 393), no qual se
realizavam encontros de diversas categorias e da própria Federação Operária; esse
também é o local que vê nascer a União Operária Internacional, principal associação
dos militantes anarquistas, na mesma Rua Ramiro Barcellos, n. 109 (post. 642) (A
Democracia, Porto Alegre, 24/06/1905, p. 3; A Democracia, Porto Alegre, 9/12/1906,
p. 3; A Democracia, Porto Alegre, 31/03/1907, p. 1). Nos anos 1910, o arrabalde da
Floresta ainda se destacava pela presença de agremiações socialdemocratas, como
a Towaristwo Naprzod (dos socialdemocratas poloneses), na Rua Tiradentes, n. 1
(post. 185), e a Allgemeiner Arbeiter Verein, na Rua Commendador Azevedo, n. 12
(post. 518) e 26 (post. 444) (A Voz do Trabalhador, Porto Alegre, 11/08/1912, p. 4;
Correio do Povo, Porto Alegre, 8/1/1915, p. 2). Também, os anarquistas vão continuar
presentes naquela região da cidade, com a sede da União Operária Internacional
na Rua Tiradentes, n. 19 (post. 259) e a Federação Operária (sob hegemonia dos
libertários) estabelecida na Rua Commendador Azevedo, n. 30 (post. 426), em 1919,
sendo este o local de realização do 2º Congresso Operário Regional em 1920 (A
Luta. Porto Alegre, 14/10/1918, p. 1; O Syndicalista. Porto Alegre, 17/6/1919, p. 3).
Outro arrabalde com forte tradição operária e popular foi a Cidade Baixa.
Esta região, com forte presença de operários do setor dos transportes (como a
Carris Porto-Alegrense e a Estrada de Ferro do Riacho) e grande contingente
de população negra (VIEIRA, 2017, p. 97-128), se constituiu em outro território
fundamental para as mobilizações da classe trabalhadora. Esse processo se tornou

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mais intenso a partir de 1898, quando a Liga Operária Internacional sofreu uma
cisão, entre um grupo liderado por Francisco Xavier da Costa e outro por José Rey
Gil e José Tolentino. Isso fez com que a LOI se transferisse para a Rua Concordia
(atual José do Patrocínio), n. 55 (post. 205) (PETERSEN, 2001. p. 123-129). Para
esta mesma área se transferiram, também, no ano de 1902, a Sociedade Floresta
Aurora (para o mesmo endereço) e o jornal O Exemplo (Rua Concórdia, n. 2;
post. 20), respectivamente o principal clube social negro e o principal jornal desta
comunidade, consolidando esse bairro como espaço organizativo (O Exemplo.
Porto Alegre, p. 1, 13 dez. 1902 e p. 1, 24 jan. 1903; A Federação. Porto Alegre, p. 2,
21/11/1903; MÜLLER, 2013, p. 77-136).
Durante as comemorações do dia 13 de maio de 1910, um grande cortejo foi
formado por sociedades com forte presença negra como a Floresta Aurora, a Lyra
Oriental e o jornal O Exemplo, além da FORGS e outros sindicatos operários. O
préstito saiu da Rua da José do Patrocínio em direção ao arrabalde do Menino Deus,
tomando a Rua 13 de Maio (atual Getúlio Vargas) e a Rua José de Alencar, subindo a
Estrada do Laboratório (Rua Correia Lima) até a Rua Santa Cruz (Rua Cleveland),
onde seria construído o Asylo 13 de Maio, destinado ao abrigo de trabalhadores
que haviam sido escravizados. O retorno se deu por caminho similar, mas o cortejo
terminou pela Rua João Alfredo até o Areal da Baronesa, na Rua Miguel Teixeira, n.
28A (post. 102), onde se localizava a sede da Lyra Oriental (O Exemplo. Porto Alegre,
p. 1-2, 2 mai. 1910). Assim como o trajeto de 1º de Maio, esta ação tinha por função
marcar a presença das sociedades negras e do movimento sindical naquele espaço,
fazendo com que a caminhada dos militantes fosse também um sinal de ocupação
do espaço.
Quanto à presença sindical especificamente, ela se tornou bem maior depois da
Greve de 1906, pois foi nessa ocasião que surgiu o projeto da Federação Operária
do Rio Grande do Sul (FORGS), cujo endereço de correspondência e posse da
diretoria se deu na casa de Francisco Xavier da Costa, na Rua Cel. Genuíno, n. 46
(post. 329) (SCHMIDT, 2004, p. 207-214). A Cidade Baixa também foi o espaço
organizativo de categorias específicas, como os padeiros da União dos Empregados
em Padaria, que ocuparam diferentes sedes na Rua Lopo Gonçalves no início da
década de 1910 (Correio do Povo. Porto Alegre, p. 4, 16 jul. 1911; A Voz do Trabalhador,
Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912). No final deste decénio, numa zona contígua à
Cidade Baixa, os trabalhadores dos bondes e dos serviços de eletricidade vão se
reunir no Sindicato da Força e Luz, na Rua da Azenha, n. 172 (post. 320). O grupo,
de orientação libertária, se caracterizava por rivalizar com os militantes da FORGS
(PETERSEN, 2001, p. 367).
Na década de 1900, também existiu uma expansão das organizações em direção
ao leste, para o arrabalde do Bom Fim. Depois de 1907, uma série de associações e
a própria FORGS deslocaram suas atividades para o Salão Santa Catharina, na Rua
da Aurora (atual Rua Dr. Barros Cassal), n. 168 (post. 790) (A Democracia, Porto
Alegre, p. 1, 16 jun. 1907; O Alfaiate, Porto Alegre, p. 4, 12 out. 1907; Correio do
Povo, Porto Alegre, p. 4, 12/8/1909 e p.4, 18/4/1909; Echo do Povo, Porto Alegre, p.
3, 25/4/1910). A partir da conquista da hegemonia do movimento operário pelos

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anarquistas em 1911, a FORGS passou a alugar uma sede própria na Rua Santo
Antônio, n. 157 (post. 804), também no arrabalde do Bom Fim, o que permitiu uma
grande concentração de sindicatos num mesmo espaço físico, ao mesmo tempo
em que permitiu a consolidação dessa região como um território da militância
libertária (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 1, 17 fev. 1911; A Voz do Trabalhador,
Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912). Nessa ocasião, avançou o projeto (que não se
concretiza) de construção de um Atheneu Operário no Campo da Várzea, no atual
Parque Farroupilha (LUCAS; PETERSEN, 1991, p. 185-188), o que demonstrava
um desejo de consolidar não apenas a expansão, mas também uma presença mais
perene na periferia da cidade.
Nesse mesmo período, desenvolveram-se organizações operárias na Colônia
Africana, região contígua ao Bom Fim, que se caracterizava pela grande presença de
trabalhadores negros (ROSA, 2011, p.1-20). Nessa região, havia uma forte presença
de operários empregados nas pedreiras que se localizavam próximas daquele arrabalde
(SILVA JR, 1994, p. 97-99). Foi ali onde se fixou, no ano de 1916, a Escola Moderna,
na Rua Ramiro Barcellos, n. 197 (post. 1548) (A Federação, Porto Alegre, p. 1, 17
mai. 1917), instituição em que atuaram, como Professores, Lyra Pinto Bandeira,
Polidoro Santos e Djalma Fettermann, constituindo-se num espaço de difusão do
pensamento libertário em Porto Alegre. Durante a Greve Geral de 1917, o Salão
União e Progresso, na Rua Casemiro de Abreu, n. 49 (post. 310), foi o principal
espaço de reunião da Liga de Defesa Popular, entidade responsável pela coordenação
do movimento (SILVA JR, 1994, p. 290). Durante a década de 1920, a Colônia
Africana se mantém como um dos refúgios do sindicalismo de resistência em Porto
Alegre, principalmente em sua expressão anarquista. Nessa região se estabeleceram,
entre 1924 e 1927, a sede da FORGS, na Rua Esperança (depois Miguel Tostes),
n. 102 (post. n. 700), o Centro Libertário Feminino, liderado por Alzira Werhauser,
na Rua Esperança, n. 74 (post. 596), e a Federação Operária Local de Porto Alegre
(FOLPA), na Rua Castro Alves, n. 645 (O Syndicalista, Porto Alegre, p. 1-6, 1 fev.
1924; p. 3, 24 out. 1925; p. 4, 25 nov. 1926 e p. 8, fev. 1927). Destaca-se aqui o Salão
Modelo como ponto de encontro privilegiado para os trabalhadores daquela região.
Dando continuidade na expansão das atividades do movimento para o norte da
cidade, a partir da Greve de 1906, surge com força a ação dos militantes no arrabalde
dos Navegantes. Esta expansão também acompanhou o caminho das indústrias, pois
ocorreu num momento em que a atividade fabril se fixava naquela área da cidade.
Em 1907, a União Operária Internacional, dos militantes anarquistas, mudou sua
sede para a Avenida Missões, n. 26 (post. 98) no Salão 1º de Maio, argumentando
que estava em busca dos espaços onde viviam os verdadeiros operários industriais (O
Alfaiate, Porto Alegre, p. 4, 12 out. 1907). O Salão, a propósito, se consolidou como
um dos principais locais de reunião do arrabalde dos Navegantes4. O desejo político
de avançar territorialmente as atividades do movimento pode ser observado pelo
trajeto do 1º de Maio de 1907, quando a caminhada iniciou-se na Rua Ramiro

4  O Salão 1º de Maio também é identificado como salão da Avenida Missões ou da esquina da Avenida Germânia.
A partir da leitura dos Livros de Imposto por Valor Locativo, foi possível identificar a taverna de Henrique Lauenstein
(Missões, n. 26) como endereço mais compatível com esta localização.

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Barcellos, para tomar a Rua Voluntários da Pátria rumo ao arrabalde dos Navegantes,
entrando pelo bairro fabril através da Avenida Germânia (Cairú) até o arrabalde de
São João, tomando a Rua Benjamin Constant e a Cristóvão Colombo até chegaram
à Chácara de Germano Petersen, no Mont’Serrat; depois, o caminho de volta seguiu
até o arrabalde da Floresta novamente (A Democracia, Porto Alegre, p. 1, 9 jul. 1907).
É muito significativo que o grande dia do movimento operário se iniciasse e se
encerrasse dentro dos bairros proletários, sequer aproximando-se do Centro da
cidade.
Durante a Greve de 1917, o Navegantes foi palco de diversas reuniões no Salão
During, na Avenida Brazil n. 143 (post. 548) e no Salão 1º de Maio, na Avenida
Missões. Esta greve foi a maior das mobilizações trabalhistas na Primeira República,
contando com a participação de diversas categorias e forte presença feminina,
principalmente das tecelãs que trabalhavam neste arrabalde e fundaram o Centro
Feminino dos Navegantes. Nessa região, surgiu o primeiro grupo comunista da
cidade, a União Maximalista, fundada por Abílio de Nequete em sua barbearia,
na Rua Conde de Porto Alegre, n. 55 (post. 468) (O Syndicalista, Porto Alegre,
p. 4, 2 ago. 1919). Nos anos 1920, essa área se constituiu em outro refúgio (junto
com a Colônia Africana) para os militantes do sindicalismo de resistência, para
onde se deslocaram a sede da FORGS, para a Rua do Parque, n. 112 (post. 460), a
União dos Ofícios Vários, dos comunistas, na Rua do Parque, n. 74 (post. 310) e a
Sozialischt Arbeiter Verein, dos anarquistas alemães, na Avenida Minas Gerais, n. 12
(atual Avenida Farrapos) (Der Freie Arbeier, Porto Alegre, p. 7, 19 ago. 1922; Hammer
und Sichel, Porto Alegre, p. 3, 7 jun. 1924, p. 3; O Syndicalista, Porto Alegre, p. 3, 24
out. 1925).
Além destes arrabaldes, também foram palco de importantes ações organizativas
o Parthenon, a Tristeza, o São João, a Várzea do Gravatahy e outras áreas com presença
de trabalhadores organizados. Depois de identificados (pelo menos de forma inicial)
onde estes territórios se conformaram durante a Primeira República, é preciso dar
um salto temporal para a atualidade e analisar como as marcas desta longa história
de luta sobreviveram no tempo presente.

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO DAS ORGANIZAÇÕES DE CLASSE EM PORTO ALEGRE

Ao longo do século XX, Porto Alegre passou por um longo processo de


expulsão das populações mais pobres de suas áreas centrais. No Centro da cidade,
esse movimento se caracterizou pela destruição de becos e cortiços, que foram
substituídos por largas vias com grandes obras públicas. Esse processo se estendeu
para a Cidade Baixa, o Bonfim e a Colônia Africana (que passou a ser conhecido
como bairro Rio Branco), atingindo especialmente os territórios habitados pela
população negra da capital, que foi sendo deslocada para áreas cada vez mais
periféricas. Outro processo, ocorrido nas décadas seguintes, foi uma mudança das
indústrias de Porto Alegre em direção às cidades do entorno, com a consequente
desestruturação das comunidades de operários fabris que viviam nos bairros Floresta,
São João e Navegantes (SOUZA; MÜLLER, 2007, p. 99-109).

250
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Com a consequente mudança ocorrida ao longo do século XX, os operários


industriais, do setor de transporte e serviços, que moravam nestas regiões, passaram
a viver e se organizar em outros locais. Esse deslocamento foi acompanhado por um
apagamento da memória desses sujeitos e de suas ações. Em bairros como Floresta
e Navegantes, ainda existem grandes edifícios industriais (alguns com funções
modificadas), mas isso remete ao passado das empresas, não ao passado operário,
nem a seu esforço por constituir-se como classe. Mesmo assim, subsistem algumas
edificações que foram palco de ações organizativas e que, por sua sobrevivência
histórica, deveriam ser considerados como patrimônio de toda a classe trabalhadora
da capital. Esses remanescentes deveriam se tornar lugares de memória, no sentido
definido pelo historiador Pierre Norra (1993, p. 13), como locais “que nascem
e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar
arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar
as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais”.
A partir das pesquisas com endereços e cruzamento de diferentes fontes, é possível
encontrar dados sobre esses locais que são testemunhas da história do movimento
operário de Porto Alegre. Boa parte dessas edificações está incógnita e em mal
estado de conservação. Nos limites deste artigo, tratarei apenas de alguns exemplos,
que podem dar uma ideia da diversidade destes lugares e de sua importância.
No Centro Histórico, encontra-se um número significativo dessas edificações.
No antigo Beco do Oitavo, atual Rua Desembargador André da Rocha, n. 282,
fica sediado o Sindicato dos Estivadores, a mais antiga sede sindical da cidade, em
funcionamento pelo menos desde 1925 (A Federação, Porto Alegre, p. 6, 7 jan. 1925).
Essa continuidade, porém, é uma exceção, pois a imensa maioria dos endereços
pesquisados não têm ligações tão óbvias com o passado das organizações de classe.
Um dos exemplos disso é a Confeitaria Rocco (Rua Riachuelo, n. 1638), que serviu
de espaço de reuniões para aqueles que trabalhavam em bares e cafés, no começo dos
anos 1920, durante a formação de seu sindicato, e a Escola Técnica Ernesto Dorneles
(Rua Duque de Caxias, n. 385), que era o antigo Colégio Fernando Gomes e
sediava o Amparo Mútuo dos Funccionários Públicos no final dessa mesma década
(A Federação, Porto Alegre, p. 4, 14 abr. 1921; A Federação, Porto Alegre, p. 8, 19 jan.
1929). Apesar deste esquecimento, as duas edificações são exemplos de prédios que
mantêm sua integridade e são bastante visíveis no cenário urbano, podendo mais
facilmente evocar uma memória desse passado. Um exemplo ainda mais significativo
de esquecimento dessa presença é o antigo edifício da Associação dos Empregados
do Commércio, localizado na Rua Dr. Flores, n. 220. Mesmo ocupado por uma loja
de departamentos, ainda é possível observar o relevo do brasão da antiga organização
dos comerciários da capital, como uma reminiscência da função associativa por baixo
de uma pesada camada de tinta. Em outros casos existem mudanças posteriores,
mesmo descaracterizações, que não invalidam ou apagam a potencialidade de um
lugar de memória, mas tornam mais difícil algum tipo de identificação: na Avenida
Voluntários da Pátria, n. 361, em seu trecho mais movimentado, existe uma loja de
roupas infantis cujo endereço (nos anos 1910 e 1920) coincidia com a taverna que
servia de sede para o Clube dos Caixeiros Viajantes, e entre as casinhas de porta e

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janela da Rua Vasco Alves, próximo à Usina do Gasômetro, uma delas (a de n. 341),
apesar das intervenções posteriores, ainda é o mesmo endereço da Secretaria do
Grêmio de Artes Graphicas de 1905, um dos principais locais da socialdemocracia
em Porto Alegre (A Democracia, Porto Alegre, p. 2, 21 mai. 1905; Koseritz Deutsch
Volkskalender, Porto Alegre, p. 167, 1915)5.
Outro bairro com grande quantidade de edificações “sobreviventes” ligadas à
organização do operariado é o bairro Floresta. Esta região da cidade foi o centro
da mobilização sindical durante a Primeira República; mesmo assim, a maior parte
destes endereços não possui qualquer tipo de identificação que faça uma ligação
com a história deste movimento. A casa de Theo Wiederspahn, na Rua Comendador
Coruja, n. 337, é considerada um monumento arquitetônico, mas quase ninguém o
relaciona com a HandwerkVerband (Associação dos Artesãos) da qual foi sede a partir
de 1930. Na Rua Comendador Azevedo existem dois endereços (n. 518 e n. 444)
que foram sede da Allgemeiner Arbeiter Verein (Associação Geral dos Trabalhadores),
durante os anos 1910. Esse último, inclusive, era a sede do Burguer Club (depois
Sociedade Flórida), um dos principais clubes sociais daquele arrabalde (A Voz do
Trabalhador, Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912; Correio do Povo, Porto Alegre, p. 2, 8 jan.
1915; Das Handwerk, Porto Alegre, p. 9, jan. 1931). Curiosamente, em seu frontão,
ainda sobrevivem duas mãos enlaçados, símbolo da solidariedade, como um indício
persistente de uma memória quase esquecida. Em condições de maior precariedade
e anonimato está a antiga Livraria Internacional de Friedrich Kniestedt, em frente à
Estação Rodoviária, na Rua Voluntários da Pátria, n. 1195. Hoje, o endereço abriga
uma fábrica de sacos de aniagem, mas, no passado, o prédio foi centro de difusão do
anarquismo em Porto Alegre, tendo abrigado a sede da Federação Operária Local;
foi igualmente o núcleo da luta antinazista na cidade, onde se iniciou a organização
da Liga dos Direitos Humanos (Liga Für Menschenrechte), em 1933 (KNIESTEDT,
1989, p. 139-157). Também precária é a situação do prédio na Rua do Parque, n.
460, que foi sede da FORGS e abrigou o 2º Congresso Operário Regional em
1925 (O Syndicalista, Porto Alegre, p. 3, 24 out. 1925 e p. 8, fev. 1927). Este endereço
está localizado em área contígua ao bairro Floresta, região correspondente ao antigo
arrabalde dos Navegantes (atualmente bairro São Geraldo). O prédio está sem uso e
em estado precário, sendo parte importante da história do movimento operário que
está em risco de desabamento ou demolição.
Na Cidade Baixa, outra região de desenvolvimento ativo das organizações de
classe, também se encontram edificações que deveriam ser considerados lugares de
memória. Na Rua Lopo Gonçalves, nos números 103 e 566, ainda existem as casas
que sediaram a União dos Empregados em Padaria, no início da década de 1910
(Correio do Povo, Porto Alegre, p. 1, 17 fev. 1911; A Voz do Trabalhador, Porto Alegre,
p. 4, 11 ago. 1912). Essa última está muito próxima da Travessa dos Venezianos, local
histórico importante, pois preserva exemplos de moradias populares do começo
do século XX. Neste caso, a sede dos padeiros poderia ser integrada a um circuito
de memória mais amplo daquele bairro. Em direção ao Parque Farroupilha, fica

5  Em relação à sede do Musterreiter, existe uma foto desta taverna no compêndio histórico Riograndense
Musterreiter, publicado em 1913.

252
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

outro local que dificilmente seria reconhecido de imediato como um espaço da


classe trabalhadora: o antigo Cinema Avenida (anteriormente, Cinema América),
na Avenida João Pessoa. Esse vasto edifício abrigou os debates para formação do
Partido Trabalhista, em 1925, e um festival do Partido Operário Nacional em prol
dos desempregados pouco antes da Revolução de 1930 (O Exemplo, Porto Alegre, p.
2, 15 mar. 1925; O Estado do Rio Grande, Porto Alegre, p. 7, 2 set. 1930).
Na região do Bonfim, também existem alguns marcos importantes da história
operária e sindical de Porto Alegre. Embora sejam associados normalmente à herança
judaica, existem lugares associados a uma história mais pretérita do movimento
anarquista. Um bom exemplo é a antiga Sociedade Elena de Montenegro (atualmente
Sociedade Italiana), na Rua João Telles, n. 317, que abrigou atividades dos militantes
libertários como festivais teatrais e reuniões sindicais, durante os anos 1910. Próximo
dali, na Rua Barros Cassal, n. 790, existe outro ponto de memória importante, no
prédio que sediava o Salão Santa Catarina, sede da Federação Operária e de diversos
sindicatos, entre 1907 e 1912 (A Democracia, Porto Alegre, p. 1, 16 jun. 1907; O
Alfaiate, Porto Alegre, p. 4, 12 out. 1907; Correio do Povo, Porto Alegre, p. 4, 12 ago.
1909; p. 4, 18 abr. 1909; p. 4, 17 out. 1909 e p. 2, 1 mai. 1911; Echo do Povo, Porto
Alegre, p. 3, 25 abr. 1910; O Exemplo, Porto Alegre, p. 2, 2 abr. 1916). Atualmente,
a edificação foi incorporada como entrada de garagem de um prédio moderno,
recentemente construído, o que dificulta ainda mais a identificação desse local como
parte significativa da história de Porto Alegre.
Além dessas regiões, também existem pontos dispersos em outros bairros da
cidade e em regiões mais distantes do centro, como o antigo Cinema Gioconda, na
Tristeza, que sediou atividades da União Padeiral daquele bairro (PELLIN, 1979, p.
101) ou então a Praça Josué Ribas Martins, no bairro Santo Antônio (antigo arrabalde
do Parthenon), que corresponde, em parte, à pedreira do anarquista Jesus Ribas, último
local de edição do jornal A Luta (Porto Alegre, p. 2, jun. 1930)6.
Da mesma forma que é importante demarcar as edificações que abrigaram
atividades organizativas, também seria necessário que existissem demarcações nos
espaços públicos que serviam para reuniões e atividades de mobilização. A Praça XV
de Novembro teve um papel importante como ponto de concentração para atividades
dos militantes operários no início do período republicano (A Federação, Porto Alegre,
p. 1, 3 mai. 1889 e p. 1, 29 abr. 1890). A Praça da Alfandega e a Praça dos Navegantes
foram locais importantes tanto na Greve Geral de 1906 como na de 1917 (A Luta,
Porto Alegre, p. 2, 29/9/1906, e p. 2, 10/10/1906). Já o Parque Moinhos de Vento
era um dos espaços preferidos para confraternizações operárias durante a Primeira
República (A Gazetinha, Porto Alegre, p. 2, 25 fev. 1897; A Democracia, Porto Alegre,
p. 2, 14 mai. 1905; Echo do Povo, Porto Alegre, p. 2, 21 mar. 1910; A Federação, Porto
Alegre, p. 5, 24 fev. 1915); atualmente, o local é identificado como um ambiente de
lazer para a burguesia da cidade, sendo, inclusive, palco de manifestações conservadoras,
constituindo-se num marco do afastamento de um passado proletário.

6  Apesar da correspondência do jornal ser endereçada a Francisco Grecco, a pedreira, localizada na antiga Rua
Caldre Fião, está registrada nos Livros de Imposto por Valor Locativo e nos registros dos Livros de Imposto Predial
como sendo de Jesus Ribas.

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CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo, procurei demonstrar que as atividades do movimento dos


trabalhadores organizados durante a Primeira República possuíam um importante
aspecto espacial: suas atividades foram conformando uma territorialidade própria,
que se modificou ao longo do tempo, respondendo às necessidades e às escolhas
políticas dos militantes. Passados quase cem anos, os locais que serviram para suas
mobilizações estão cobertos por diversas camadas de esquecimento.
As modificações ocorridas com o crescimento da cidade, como o deslocamento
do proletariado para regiões cada vez mais periféricas, auxiliados pelo esforço em
apagar a memória das ações contestatórias da classe operária, serviram para borrar as
reminiscências desse período de lutas.
É necessário retomar esta história, tornando esses pontos lugares de memória
significativos, que ajudem a construir uma recordação permanente daqueles que
nunca tiveram seus nomes lembrados em nossos espaços públicos. Para tanto, é
necessária também uma nova visão patrimonial, que incorpore as referências da classe
trabalhadora como parte da história de Porto Alegre, a partir de uma perspectiva que
busque a valorização das lutas sociais e das demandas populares na cidade.

REFERÊNCIAS

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

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255
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

LAS “NO MEMORIAS” EN EL BARRIO


HISTÓRICO DE COLONIA DEL SACRAMENTO:
TRES CASOS DE OLVIDO EN EL PROCESO DE
PATRIMONIALIZACIÓN DEL SITIO
LAURA IBARLUCEA1

EL BARRIO HISTÓRICO DE LA CIUDAD DE COLONIA DEL SACRAMENTO,


ALGUNAS NOTAS DE PRESENTACIÓN

El Barrio Histórico de la ciudad de Colonia del Sacramento (en adelante


bhcs) es un área urbana protegida por las normas nacionales de Uruguay e incluida
en la Lista del Patrimonio Mundial desde 1995. De ese modo, las 18 hectáreas que
componen el sitio se constituyeron como el primer bien de Uruguay reconocido
internacionalmente como patrimonio de la Humanidad2. Ese reconocimiento
nacional e internacional deriva de su peculiar condición producto de haber sido
una plaza fuerte fundada por la Corona Portuguesa en el Río de la Plata a finales
del siglo XVII. Esta posición, en la frontera con el imperio español, determinó que
fuera un motivo de conflicto secular entre las potencias coloniales de la época. A lo
largo de casi cien años, la pequeña plaza militar pasó de manos lusitanas a españolas
en varias ocasiones, lo que determinó que su configuración urbana resultara una
particular hibridación entre las tradiciones portuguesas e hispánicas única en el
continente (GUTIERREZ, 2006).
El bhcs se encuentra en la costa suroeste de la ciudad de Colonia del
Sacramento, capital del departamento de Colonia al so del país. Si bien se trata de
la capital departamental de un departamento de relativo desarrollo, tiene apenas una
población de 26 mil habitantes (INE, 2011). Su situación geográfica le confiere un
carácter peculiar, aunque se encuentra a 178 km de Montevideo, es la proximidad
de Buenos Aires, a unos 50 minutos de ferry, la que ha determinado fuertemente
1  Mestre e doutoranda em Memória e Patrmônio, PPGMP-ICH, UFPEL. Professora e coordenadora do
programa Arte y Patrimonio da Universidad CLAEH (Montevideo, Uruguay), pesquisador nível Iniciação do
Sistema Nacional de Investigadores, ANII, Uruguay. [email protected].
2  Posteriormente, en 2009, dos bienes inmateriales fueron incorporados al repertorio internacional: el tango y
el candombe y, en 2015, otra área urbana en el Patrimonio Mundial: el Paisaje cultural industrial del Anglo en la
costa del Bajo Uruguay.

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su perfil como atractivo turístico. De hecho, recibe entre 250 y 280 mil turistas y
alrededor de 600 mil visitantes por año (MINTUR, Anuario estadístico 2018)3.
El proceso de patrimonialización del bhcs supuso un significativo cambio en
relación con las maneras en que el lugar ha sido habitado. En efecto, de acuerdo
con el último censo nacional de 2011, la población estable del barrio ascendía
aproximadamente a 188 personas, sin embargo, antes del inicio de las obras de
patrimonialización eran unos 1550 habitantes (INE, 1963). Esta disminución de la
población, que puede reconocerse desde la década de 1960 a la actualidad, da cuenta
de los efectos que los procesos de patrimonialización, y la aceleración del consumo
turístico a ellos asociada, determinan en algunos territorios, si bien este aspecto es
de singular importancia en el sitio analizado, se ha entendido que no hace al eje de
este artículo abundar en su desarrollo4.

EL PROCESO DE PATRIMONIALIZACIÓN

El proceso de patrimonialización (DAVALLON, 2012) tuvo sus inicios


a comienzos del siglo XX, aunque se consolidó recién a finales de la década de
1960 cuando, finalmente, se determinó su activación patrimonial (PRATS,
2005). La inclusión en la Lista del Patrimonio Mundial vino a ratificar el carácter
patrimonializado del sitio y operó como uno de los principales factores de desarrollo
de la fuerte turistificación del área, cuyo efecto sucesivo fue la segunda gentrificación
que afectó al lugar.5
Antes de la segunda década del siglo pasado, el área actual de bhcs carecía de
interés y era considerada como una de las áreas peligrosas de la ciudad en crecimiento.

El Sur. Así se llama el barrio, que desde el punto de vista estético representa un montón de
escombros y desde el punto de vista higiénico, un foco permanente de infección.
El Sur, el viejo barrio del sur, echado sobre las murallas históricas es como un atorrante, melenudo, y
sucio, harapiento, inútil para sí y para los demás. No cabe a su favor la consideración de que guarda
ruinas de casas donde vivieron patricios venerables, ni tampoco la que asila a un pobrerío que no
encontrará mañana albergue tan barato. Y no caben esas consideraciones porque esas casuchas
que otrora honraran Artigas y Lavalleja y que aún antes sirviese de morada a nobles españoles e
hidalgos portugueses, han sido después y comúnmente refugio de ganapanes, lupanares, muchas
veces domicilio de malsanos sujetos. Pedro Oroná (La Colonia, 28 de marzo de 1907).

3  En los estudios turísticos se distingue turista de visitante: el primero es quien, en su viaje, pernocta en el destino
fuera de su lugar de residencia, mientras que al hablar de visitantes se hace referencia tanto a quienes solo visitan
por un día un sitio como a quienes pernoctan en él.
4  Para mayor desarrollo de este asunto ha sido tratado, al menos en forma general, por XXXX en otras publicaciones.
5  La primera se asocia más directamente al proceso de recuperación patrimonial del área, que determinó la
expulsión de la población histórica (perteneciente a sectores populares) durante la década de 1960 y primeros años
de la siguiente y su sustitución por nuevos sectores sociales (principalmente de clase media, muchos extranjeros)
que instalaron sus viviendas en el viejo barrio popular. En tanto que la segunda gentrificación o expulsión de
esa población que se había instalado en las décadas de 1970 y 80 en el barrio, estuvo asociada a la progresiva
turistización del área, orientada a la actividad comercial.

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Sin embargo, poco tiempo después, empiezan a ser visibles las muestras iniciales
de interés “patrimonialista”. Desde1917, en que, dos jóvenes arquitectos, Mauricio
Cravotto y Enrique Durán Guani publicaron un breve informe sobre el estado de
la plaza y, más intensamente en la década de 1920, se produjeron varios artículos,
proyectos de ley e iniciativas de la sociedad civil que, sin embargo, no llegaron a
cuajar en la protección del lugar.

El aspecto general de la Ciudad Vieja, al recorrer sus calles, es sugestivo; todavía quedan algunas
notas interesantes que permiten y estimulan a la imaginación a reconstruir el ambiente, si no
propiamente del Fuerte Portugués, sí el ambiente postcolonial; el primitivo ambiente patricio,
derivado del primero colonial; la planimetría general, el pavimento de algunas callejas, uno que
otro ejemplar de arquitectura portuguesa y española, viviendas modestas o ejecutadas con restos
de ambas, las ruinas de la Comandancia, los restos de la casa del virrey, los muros negruzcos del
convento de San Francisco Javier, complementado todo ello por las masas informes de las baterías
de San Pedro y Santa Rita y por los trozos despedazados de murallas, que se hace sentir más aún
por la tranquilidad, quietud y silencio que imperan en la histórica ciudad (CAPURRO, 1928, p. 106).

Esta etapa, que Davallon denomina de hallazgo (2012), coincidió con la


puesta en valor del área asociándola a los orígenes nacionales. En cualquier caso,
tempranamente se puede reconocer en esa puesta en valor, una tendencia a destacar
algunos rasgos del área sobre otros (CRAVOTTO; DURÁN GUANI, 1917). En
efecto, el ambiguo criterio de colonial, evidente en varias de las argumentaciones,
tal el caso de la nota de los miembros del Instituto Histórico y Geográfico del
Uruguay dirigida al Concejo de Administración Local en 1921: “La ciudad de
Colonia, depositaria de tantas y tan valiosas tradiciones históricas y de recuerdos
incomparables, lleva impreso ese sello característico en las viejas piedras que aún
trasmiten al viajero la sensación pintoresca de su pasado […]” (CAPURRO, 1928,
p. 277-278) o la argumentación del diputado Julio María Sosa, en 1924 en favor de
su proyecto de ley para proteger el área:

Si el Estado adquiriese ese núcleo de edificación colonial de escaso costo, podría transformarlo en
un lugar de singularísimo interés. Sin modificar su estructura edilicia y arquitectural, restaurando
inteligentemente algunas casas, conservando todo lo existente de valor tradicional, demoliendo las
construcciones que no sean de la época colonial y realizando una obra de higiene indispensable,
se obtendría la finalidad que persigo con la iniciativa de esta ley. El barrio quedaría separado de
la ciudad moderna de Colonia por una ancha calle circundante y una verja de estilo que permitiera
una vigilancia eficaz. […] tratando así de evitar que el abandono, la ignorancia o un mal entendido
[sic] concepto de progreso completen la obra del tiempo, destruyéndola definitivamente. […] En
el interés de evitar que se consumen esos hechos que harían irremediable –para más adelante–
cualquier gestión o iniciativa tendente al restablecimiento de la ciudad del siglo XVIII […]
(CAPURRO, 1928, p. 278-280).

No dan cuenta de, no solo, la condición esencialmente híbrida y vernácula


tanto de la arquitectura como de la traza urbana, sino también la presencia en el área

258
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

de población aún antes del período colonial.


Tal como se pone de manifiesto, si bien el interés de algunos expertos destacaba
el valor de la trama y la arquitectura del área, estas iniciativas no llegaron a tener
efectos concretos hasta avanzadas las décadas de 1940 y 1950. Es recién a partir de
ese momento que se inician las primeras acciones concretas que, más de veinte años
después en 1971 a 1975, culminaron en la promulgación de la Ley 14040 que creó
la Comisión Nacional de Patrimonio Cultural (normativa aún vigente en Uruguay),
proceso en el que se inscribió también la patrimonialización del bhcs.
Luego del hallazgo, en 1961, de restos de la antigua muralla, una de las
principales medidas en el proceso inicial de activación del bhcs fue la creación del
Comité Ejecutivo Honorario para la Preservación y Reconstrucción de la Colonia
del Sacramento por decreto del Poder Ejecutivo.6 A partir de finales de la década
de 1960, el área perimetral del barrio, fundamentalmente, comenzó a ser objeto de
interés de las autoridades, y se iniciaron las primeras intervenciones arqueológicas.
El trabajo de excavación, que se inició a partir de 1968, permitió la recuperación de
material de mampostería y la exposición de los cimientos de las murallas (figura 1).

Figura 1. Excavaciones arqueológicas, c. 1969, cimientos de la muralla.

Fuente: PAYSÉE, M. in: GASPAR MOREIRA, 2009, p. 98

Luego de la exhumación de los cimientos de la muralla, se llevó adelante


uno de los operativos más significativos en la recuperación o re-creación de memoria
en el proceso de patrimonialización: la reconstrucción parcial de la muralla y del
Portón del Campo o Puerta de la Ciudadela. Desaparecidos por años, ocultos bajo
viviendas y otras edificaciones, estos dos elementos fundamentales en la definición
del perfil patrimonial actual de la ciudad fueron reconstruidos a partir de las
prospecciones arqueológicas, con la recuperación de materiales o la sustitución,
6  Decreto nº 618/968 de 1968.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

expresamente indicada, de partes, así como a través de una propuesta de evocación


de las dimensiones originales sin realizar la reconstrucción total.

Al exhibirse las excavaciones que dejaron al descubierto los vestigios de la puerta y el puente
levadizo de la histórica ciudadela de Colonia, las autoridades municipales comprometieron ante el
pueblo que serían restauradas para la permanencia evocativa
[…] Han transcurrido casi 7 años de aquella solemne ceremonia. Con el tiempo la inicial excavación
tuvo el decoro de ser rellenada cubriendo una de las viejas piedras sobre la cuales giraban los
goznes del puente levadizo. Otras seculares piedras permanecieron tiradas sobre el predio con
ignorancia de su venerable pasado (LA COLONIA, 1968, p. 1).

La zona donde se realizaron las excavaciones estaba ocupada por viviendas, por
lo que las propiedades próximas al área, donde más tarde se haría la reconstrucción
parcial de la muralla, fueron afectadas por la aplicación de la resolución del Poder
Ejecutivo 989 de 1976, luego enmendada por una posterior, la 1457 del mismo
año, por la que se declaró al bhcs Monumento Histórico Nacional. De acuerdo
con esta resolución los padrones 159, 170, 171, 172 y 2149 “quedan afectados por
las servidumbres que resulten impuestas por la calidad, características y finalidades
de los bienes, de acuerdo con el artículo 8º de la ley 14.040, de 20 de octubre de
1971”7 (Res. 1457/076), estos predios fueron adquiridos en diciembre de 1972 por
el Estado en aplicación de los criterios de expropiación por compra definidos en la
ley 14040 (MEC, 1994, p. 25).
Si bien este proceso se articuló aplicando la normativa legal, cabe considerar
que, para varias familias de la zona, implicó el traslado (prácticamente expulsión)
de sus viviendas cuyo mantenimiento resultaba imposible de afrontar por los
moradores. Aunque en el marco del desarrollo del terrorismo de Estado en Uruguay
en el contexto de la última dictadura, esta forma de violencia contra la población
pueda resultar muy menor, parece oportuno, cuando menos, hacer una mención al
fenómeno.
A partir del retorno de la democracia en Uruguay, en marzo de 1985, se
inició efectivamente el proceso para la presentación de la candidatura del bhcs para
su inclusión en la Lista del Patrimonio Mundial, que se concretó, finalmente, en
diciembre de 1995. Este proceso dio continuidad a la serie de obras que se habían
emprendido desde comienzos de la década de 1970, e intensificado hacia 1980 en
ocasión de la celebración del 300 aniversario de la fundación de la plaza. De este
modo, durante la segunda mitad de la década de 1980 y comienzos de la de los 90
se realizaron diversas intervenciones en edificios que se integraron a la ruta de los
museos de la ciudad (tal el caso del museo del Azulejo, en 1986, o el museo Casa
Nacarello, en 1993) así como excavaciones arqueológicas en el espacio urbano (el

7  El mencionado artículo indica que las “servidumbres serán: 1.o La prohibición de realizar cualquier modificación
arquitectónica que altere las líneas, el carácter o la finalidad del edificio. 2.o La prohibición de destinar el
monumento histórico a usos incompatibles con las finalidades de la presente ley. 3.o La obligación de proveer a la
conservación del inmueble y de efectuar las reparaciones necesarias para ese fin […]. 4.o La obligación de permitir
las inspecciones que disponga la Comisión […]”.

260
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ejemplo posiblemente más conocido de los cuales es el área de la llamada casa del
Gobernador). El bhcs fue incluido en la Lista del Patrimonio Mundial bajo el criterio
iv que establece la condición de “ser un ejemplo eminentemente representativo de
un tipo de construcción o de conjunto arquitectónico o tecnológico o de paisaje
que ilustre uno o varios periodos significativos de la historia humana”.

LAS CLAVES DEL RELATO PATRIMONIAL DEL BHCS Y LAS AUSENCIAS

Como ya se advirtió, desde sus inicios el proceso de patrimonialización del


bhcs tuvo su fundamentación en la idea de que el carácter singular del sitio estaba
asentado en forma bastante directa con la condición de ciudad colonial con fuerte
impronta portuguesa. Sin que esté totalmente ausente el componente de hibridación
cultural con lo español, tiene una relevancia algo menor en la manera en que se
articula en el relato.

Se propone el bhcs para su inscripción en la LPM sobre la base de los criterios ii, v y vi de la
Convención, a saber:
a) De acuerdo con el criterio ii la arquitectura del bhcs, dada su huella urbana, y sus construcciones,
representan, tal como ha sido remarcado antes, un ejemplo único en la región. Ella ejerció, de todos
modos, una influencia indudable en el desarrollo de la arquitectura civil de las dos orillas del Río
de la Plata, en sus modelos coloniales, en los que se descubren formas y ejemplos de influencia
portuguesa notable. […]
b) De acuerdo con el criterio v: el bhcs, constituye un ejemplo característico de formas de
construcción en que se produce una superposición de las tradiciones portuguesas e hispánicas.
Esta fusión original se ha enriquecido, a partir de la segunda mitad del siglo XIX, en el marco de
una modestia popular que caracteriza y da su propio perfil a la atmósfera urbana del barrio, de
carácter notablemente armónico, por la presencia e influencia de artesanos constructores italianos
y franceses (MEC, 1994, p. 62-63)8.

El otro elemento sólidamente articulado en el relato patrimonial es la


condición de espacio de disputa territorial colonialista, tanto en la formulación de
la narrativa de justificación de valor como en la que se fue consolidando con las
distintas operaciones de la activación patrimonial. Ese carácter, que se manifiesta a
través de la nomenclatura de los espacios y se transmite fuertemente con el relato
de los guías turísticos, constituye un elemento determinante en su configuración
discursiva, por otra parte, esta condición es coherente con la historia regional, puesto
que efectivamente Colonia del Sacramento fue una posesión estratégica en el Río
8  Criterios UNESCO propuestos: II. Testimoniar un importante intercambio de valores humanos a lo largo de
un periodo de tiempo o dentro de un área cultural del mundo, en el desarrollo de la arquitectura, tecnología, artes
monumentales, urbanismo o diseño paisajístico. V. Ser un ejemplo eminente de una tradición de asentamiento
humano, utilización del mar o de la tierra, que sea representativa de una cultura (o culturas), o de la interacción
humana con el medio ambiente especialmente cuando este se vuelva vulnerable frente al impacto de cambios
irreversibles.VI. Estar directa o tangiblemente asociado con eventos o tradiciones vivas, con ideas o con creencias,
con trabajos artísticos y literarios de destacada significación universal. (El comité considera que este criterio debe
estar preferentemente acompañado de otros criterios).

261
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de la Plata y la región del Atlántico Sur, lo que explica la larga lucha entre los
imperios coloniales ibéricos por su control.
Desde el punto de vista de la condensación material, es decir la manera en que
se constituyen los dispositivos patrimoniales que soportan ese relato (la singularidad
lusitana del sitio en una región dominada por los lenguajes hispánicos), los referentes
narrativos se asientan fuertemente en la trama portuguesa, la arquitectura vernácula
(intervenida) y la muralla (reconstruida). En tanto que la dimensión simbólica del
bien, algo así como los referentes inmateriales del relato (prácticamente limitados
a su carácter de enclave de disputa geopolítca), se sostiene principalmente en las
maneras en que se interpreta el patrimonio (incluido el paisaje natural de la costa
del Río de la Plata y el horizonte) a través de los guiones propuestos por los guías
turísticos y las descripciones que circulan en forma de promoción turística.
De este modo, el relato patrimonial consolidado se constituye en un dispositivo
para el encuadramiento de la memoria (POLLACK, 2006, p. 26-27):

Además de una producción de discursos organizados en torno a acontecimientos y a grandes


personajes, los rastros de ese trabajo de encuadramiento son los objetos materiales: monumentos,
museos, bibliotecas, etc. La memoria es así guardada y solidificada en las piedras: las pirámides,
los vestigios arqueológicos, las catedrales medievales, los grandes teatros, las óperas de la época
burguesa del siglo XIX y, actualmente, los edificios de los grandes bancos. Cuando vemos esos
puntos de referencia de una época lejana, frecuentemente los integramos en nuestros propios
sentimientos de filiación y origen, de modo que ciertos elementos son integrados en un fondo
cultural común a toda la humanidade.

Como tal, el relato dominante supone la exclusión de las memorias divergentes


que, eventualmente, podrían poner en cuestión su autenticidad. En tal sentido, el
relato patrimonial consolidado en el bhcs evidencia algunas ausencias.
En este punto resulta interesante referir a la cuestión de la representación social
del espacio, tal como lo plantea Denise Jodelet (2015, p. 98):

Decir que el entorno es sociofísico ya no es considerarlo solo como un conjunto de fuerzas que
afectan la conducta, sino como un producto material y simbólico de la acción humana (Stokols,
1982). Esta formulación se basa en una distinción entre diversos lugares, sitios y espacios (settings
y places), lo que equivale a conceptualizar en términos espaciales los elementos del entorno
ecológico. Este enfoque se acompaña del reconocimiento de su dimensión social, expresada en
términos de significados. Para Stokols, el entorno sociofísico es un compuesto de rasgos materiales
y simbólicos cuyo estudio requiere la comprensión, en el mismo análisis, de los elementos llamados
“subjetivos” y “objetivos”. Son los ocupantes de los diversos marcos espaciales los que los hacen
pasar de una mezcla de elementos materiales a un sitio simbólicamente significativo.
[…] el uso de conceptos como los de significado simbólico, nos remite a la idea de representación:
el espacio representa y se representa a sí mismo.

En tal sentido, la manera en que el espacio del bhcs representa y se representa


tiende a consolidar un relato unívoco y sin fisuras, una especie de pasado cristalizado

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y fijo, anclado en una narrativa configurada a comienzos del siglo xx que parece
resultar inmune a la resignificación o resemantización efecto de las transformaciones
en la historiografía. Lo interesante del fenómeno, es que, a pesar de su permanente
actualización como efecto de su condición de sitio de conmemoración del pasado,
el relato patrimonial aparece como blindado a cualquier modificación. A efectos
de dar una más amplia explicación sobre el fenómeno que se pretende señalar, se
ha considerado oportuno referir a tres aspectos en los que el relato patrimonial
del bhcs hace silencio, a pesar de que la historiografía ha producido significativas
reflexiones en torno a ellos en las últimas décadas.
El primero de los aspectos que el relato patrimonial del bhcs no incorpora en
modo alguno (ni material ni inmaterialmente) tiene que ver con las referencias a
la población indígena que habitaba el territorio donde se asentó y creció la ciudad
antes de la llegada de los europeos a la región y que convivió – en forma no siempre
pacífica – con los europeos durante la época colonial. El segundo aspecto tampoco
incorporado al relato tiene que ver con la presencia de población de origen africano
y su descendencia, aunque Colonia del Sacramento funcionó como puerto de
ingreso de personas esclavizadas africanas comerciadas por la Corona Portuguesa
(principal pero no únicamente durante el período de dominación lusitana de la
plaza). Por último, tampoco han aparecido nuevas miradas o componentes al relato
durante los últimos años, a pesar de las transformaciones del clima político respecto
del pasado reciente del Uruguay y sus impactos en la historiografía actual.
En efecto, desde la década de 1980, sobre todo luego del retorno de la
democracia, los estudios relativos al pasado precolonial del territorio en el que hoy
se encuentra Uruguay han tenido enormes avances. Un fenómeno similar se ha
producido en los últimos veinte años en relación con el trabajo sobre el pasado
reciente.
En relación con las cuestiones relativas a la población nativa del territorio
oriental, la evidencia científica, tanto en los aportes de la arqueología como los
de la antropología (principalmente en la rama biológica), contradice la versión de
“país sin indios” que caracteriza a la historiografía tradicional (SANS, 2009). Esta
vertiente del avance científico, que podría tener su reflejo en la narrativa del sitio
analizado no ha sido recogida. Incluso, a pesar de que existen abundantes evidencias
de la presencia indígena en el territorio donde se asentó la plaza, tanto por las
crónicas de los primeros exploradores europeos como por la abundancia de restos
materiales (reunidos en sendas colecciones, algunas de ellas en posesión pública9),
ningún dispositivo patrimonial del sitio tiene por función recuperar esos aspectos
de la historia articulándolos con la del sitio patrimonializado en tanto que lugar en
el territorio.
Por otro lado, tampoco las nuevas líneas de investigación acerca del devenir
de la población africana y su descendencia en el territorio del actual Uruguay han
afectado el relato estereotipado del sitio. Si bien estos estudios aún son escasos y,

9  Tal es el caso de las colecciones que componen el acervo del Museo Indígena Roberto Banchero, cuya
localización en la zona noroeste de la península casi al final de la Av. Gral. Flores, así como su discurso museográfico,
lo mantienen apartado de los recorridos habituales de los visitantes.

263
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mayoritariamente, se centran en el caso montevideano, es un asunto que cobra


relevancia progresiva, aunque su circulación y difusión pública es aún restringida.
De todos modos, todavía no llega a interferir en las maneras en que el espacio
patrimonializado se relata, en el que no está presente, por ejemplo, el peso que
el puerto de Colonia del Sacramento pudo tener en el ingreso de mano de obra
esclavizada en el territorio oriental.
Finalmente, a pesar del profundo cambio que en los últimos veinte años ha sufrido
la historiografía del pasado reciente en Uruguay, nada alude a los procesos históricos de
ese período en la narrativa del bhcs. La transformación antes mencionada, estrechamente
vinculada al desarrollo historiográfico sobre la historia del pasado reciente, también se
manifiesta en los procesos de reorganización que ha sufrido el discurso de la memoria
pública en relación con la etapa del terrorismo de Estado, que produjo la configuración
de lo que podría llamarse un nuevo régimen de memoria que instala un nuevo relato
como dominante articulado fuertemente en relación a la revalorización de la noción
de resistencia contra la dictadura. A pesar del vigor que tiene esta nueva atmósfera de
memoria pública no hay una interpelación al relato patrimonial del sitio.
Esta perspectiva, que apela a identificar las ausencias en el relato, y que implica
algo así como la contrastación de la narrativa patrimonial con la de disciplinas que
estudian el pasado (la historia, la antropología y la arqueología fundamentalmente en
este caso), evidencia el ajuste del relato patrimonial a un cierto esquema narrativo que
no tiene en cuenta todos los aportes de las ciencias respecto del pasado del que pretende
ser representación y que responde, sobre todo, a la manera en que la comunidad elige
recordarse. Está claro que esta constatación no es una novedad y, también, que la función
del patrimonio no es la de la ciencia.

Los críticos que denuncian las lagunas del patrimonio oficial -ya sea en discursos contra el elitismo
o en nombre de la precisión científica- o que condenan la falta de autenticidad, quizá de realidad,
del patrimonio descuidan el hecho de que el patrimonio no es la Historia, puesto que él tiene por
objetivo atestar la identidad y afirmar valores -si es necesario, debido incluso al falseamiento de
la verdad histórica-. Es por eso por lo que la Historia parece con tanta frecuencia “muerta” para el
entendimiento común, y el patrimonio, al contrario, parece “vivo” en la diversidad de los usos y
en la creatividad de las prácticas que lo acompañan. De esta forma, la recolección, la clasificación,
la exposición y la interpretación de una cultura material acabaron por confundirse con el proyecto
de apropiación y de transmisión, alimentando la crónica de una toma de conciencia patrimonial
(POULOT, 2008, p. 33).

Sin embargo, resulta interesante considerar de qué modo un análisis como


el propuesto permite poner en discusión asuntos que trascienden lo meramente
patrimonial. En este sentido analizar el proceso de patrimonialización y, sobre todo,
la rigidez que adquiere el relato una vez concluido aquel, ofrece una oportunidad
para cuestionar otros fenómenos asociados a la relación del Uruguay con su pasado
y las configuraciones identitarias que se asocian con eso. En todo caso este texto es
apenas un ejercicio inicial reflexivo que procura ir en ese sentido. Las que siguen son
algunas ideas que derivan de estas cavilaciones.

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ALGUNAS REFLEXIONES FINALES EN CLAVE DE INTERPRETACIÓN

La primera de las conclusiones que pueden extraerse de la reflexión precedente


tiene que ver con el hecho de que, en tanto caso de análisis, el sitio patrimonializado
de Colonia del Sacramento denota una fuerte cristalización de la narrativa
patrimonial. Esto se percibe al analizar en qué medida las modificaciones en las
maneras de investigar el pasado, así como en las formas de relacionarse con él han
sufrido transformaciones de cierto peso social sin que el marco narrativo general
del bhcs se haya visto desafiado en su coherencia intrínseca. En tal sentido, esa
narrativa es bastante impermeable a las transformaciones que se han producido en
las disciplinas científicas que estudian el pasado (historia, antropología y arqueología
principalmente).
Esta cristalización del relato no se ve afectada, contradicha o cuestionada ni desde
la autoridad ni desde la comunidad. En cierto modo, parece que este patrimonio
permanece al margen de cualquier conflicto de memoria. Algunas explicaciones
pueden ensayarse para esta situación. Por un lado, parece que su estatus lo mantiene
al margen del juicio de la sociedad, y esto es parte de lo que la patrimonialización
supone en la transformación del bien, pero, lo que es más llamativo, es que también
lo deja fuera del debate académico, que parece no verlo como digno de análisis o
controversia.
Un factor importante, que puede ser otra de las posibles explicaciones para la
ausencia de conflicto respecto de la configuración de la narrativa original, puede
deberse a la ausencia de organizaciones de peso de las comunidades afectadas
(principalmente afrodescendientes y descendientes de pueblos originarios) con
una agenda política destinada a interferir en la reflexión de la historiografía, en la
reivindicación y en la discusión de las cuestiones relativas a la “deuda histórica”.
Si bien estas comunidades y asociaciones existen en Uruguay, su militancia ha
estado orientada en otros sentidos, sin que haya habido operaciones efectivas de
reivindicación del derecho a la memoria y su incorporación al repertorio de lo
social de carácter significativo.
En todo caso, esta condición rígida de la manera en la que se configura el relato
patrimonial en el caso analizado consigue responder a un fuerte encuadramiento de
la memoria que logra

Mantener la cohesión interna y defender las fronteras de aquello que un grupo tiene en común,
en lo cual se incluye el territorio (en el caso de estados); he aquí las dos funciones esenciales de la
memoria común. Eso significa proporcionar un marco de referencias y de puntos de referencia. Es,
por lo tanto, absolutamente adecuado hablar, como hace Henri Rousso, de memoria encuadrada,
un término más específico que memoria colectiva. Quien dice “encuadrada” dice “trabajo de
encuadramiento”. Todo trabajo de encuadramiento de una memoria de grupo tiene límites, ya
que no puede ser construida arbitrariamente. Ese trabajo debe satisfacer ciertas exigencias de
justificación. Rechazar tomar en serio el imperativo de justificación sobre el cual reposa la posibilidad
de coordinación de las conductas humanas significa admitir el reino de la injusticia y de la violencia
(POLLACK, 2006, p. 25).

265
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Finalmente, para el caso del bhcs, el discurso patrimonial se instala fuera del
debate historiográfico, se asienta en certidumbres.Transcurre disociado de la reflexión
historiográfica y antropológico-arqueológica. De este modo, la representación
del pasado que se hace a través del patrimonio, se conforma por superposición
progresiva: los patrimonios consagrados no se revisan ni se resignifican, para nuevos
asuntos se crean nuevos patrimonios, es decir nuevos dispositivos. Cabe preguntarse
si esta condición que parece ser genérica en el modelo uruguayo, que muestra al
patrimonio como recurso de encuadramiento de la memoria, es aplicable a otras
realidades.

TRABAJOS CITADOS

CAPURRO, F. La Colonia del Sacramento. In: ARQUEOLOGÍA, S. D. A. D. L. Revista


de la Sociedad “Amigos de la Arqueología”. Montevideo: Sociedad de Amigos de la
Arqueología, 1928. p. Tomo II.
CRAVOTTO, M.; DURÁN GUANI, E. Arquietectura colonial. Revista de la Sociedad
de Arquitectos del Uruguay, Montevideo, n. XX, p. 80-83, junio-julio 1917.
DAVALLON, J. Comment se fabrique le patrimoine: deux régimes de patrimonialisation”.
In Khaznadar, C. (2012). Le patrimoine, oui, mais quel patrimoine? Arles: Actes Sud. Pp.
41-57. In: KHAZNADAR, C. Le patrimoine, oui, mais quel patrimoine? Arles: Actes
Sud, 2012. p. 41-57.
GASPAR MOREIRA, C. Colônia do Sacramento: Permanência Urbana na Demarcação
de Novas Fronteiras Latino-Americanas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
GUTIERREZ, R. Arquitectura y urbanismo en Iberoamerica. Buenos Aires: Cátedra,
2006.
IBARLUCEA, L. Patrimonio y turismo en una ciudad Patrimonio Mundial: encuentros
(y desencuentros) en Colonia del Sacramento, Uruguay. In: CPCN-IRN Gestión del
patrimonio. Paisajes culturales y participación ciudadana. Montevideo: UCLAEH,
2018. p. 221-238. Disponivel em: <https://www.patrimoniouruguay.gub.uy/innovaportal/
file/115258/1/gestion-del-patrimonio-paisajes-culturales-y-participacion-ciudadana_
cpcn-irn-uruguay1.pdf>.
INE. Censo nacional. Motevideo: INE, 1963.
_______. Censo nacional. Montevideo: INE, 2011.
JODELET, D. Représentations sociales et mondes de vie. Paris: Les Éditions des
Archives, 2015.
LA COLONIA. Sin comenzar, Colonia del Sacramento, 26 enero 1968. 1.
MEC. Expediente de solicitud de inscripción en la Lista del Patrimonio Mundial
UNESCO. Ministerio de Educación y Cultura. Montevideo , p. 112. 1994.
MINTUR. 2019. Montevideo: MINTUR, Anuario estadístico 2018.
POLLACK, M. Memoria, olvido, silencio. La producción social de identidades

266
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

frente a situaciones límite. La Plata: Ediciones Al margen, 2006. 3-15 p.


POULOT, D. Um ecossistema do patrimônio. In: CARVALHO, C. S. D., et al. Um olhar
contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Rio de
Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008. p. 26-43.
PRATS, L. Concepto y gestión del patrimonio local. Cuadernos de antropología social,
(21) , p. 17-35. [Disponible en línea: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1850-275X2005000100002&lng=es&tlng=es].>, 2005.
SANS, M. “Raza”, adscripción étnica y genética en Uruguay. RUNA XXX, Buenos Aires,
p. 163-174, 2009.

267
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ESSE [NÃO] É O MEU LUGAR: SOBRE AS


MEMÓRIAS DAS MULHERES NAS CIDADES
FERNANDA FEDRIZZI LOUREIRO DE LIMA1
HELENE GOMES SACCO2

Este texto discutirá a possibilidade e o desejo de criação de novos lugares


de memória através de uma tentativa de reconhecimento na cidade por meio do
trabalho Cidade só para homens (2019), de Fernanda Fedrizzi, produzido como parte
da pesquisa3 de mestrado em Artes Visuais, orientada pela Profa. Dra, Helene Sacco,
no PPGAVI/UFPel. O artigo é escrito em primeira pessoa e é parte dos processos de
criação do trabalho artístico acima citado, em articulação com a pesquisa científica
que vem sendo desenvolvida por Fernanda Fedrizzi.
Apoiada nos questionamentos de Linda Nochlin sobre Por que não houve grandes
mulheres artistas (2016), busco entender por que não é comum encontrarmos mulheres
homenageadas na história da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e o que
pode surgir quando são criadas novas relações de não-ausência, assim como quais
os impactos da presença da mulher na política, na arte e na cidade. Discutir-se-á
a construção do conhecimento e a representação da mulher nos lugares urbanos
através de cartografias outras, levantando questões sobre como a nomeação das ruas
pode influenciar na produção do espaço urbano, comprometendo a experiência que
temos com a cidade praticada, bem como com a cidade lembrada.
Em tempos de desvalorização do conhecimento, em que há uma tentativa
de esvaziamento dos saberes e dos afetos, faz-se necessário direcionar o olhar para
aquilo que está para além do ordinário no cotidiano. Quantas ruas com nomes
de mulheres encontramos em nossas cidades? Entre territórios reais e imaginados
tentarei construir uma história diferente para aquelas que residem e circulam por
1  Especialista em Design Estratégico e bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela UNISINOS. Mestranda em
Artes Visuais pelo PPGAV/UFPEL. Bolsista Capes. [email protected]
2  Doutora em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRGS. Artista, pesquisadora e professora colaboradora no PPGAV/
UFPEL e professora nas graduações em Artes Visuais, bacharelado e licenciatura, e Design, na UFPEL. sacco.h@
gmail.com
3  O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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lugares idealizados, para dialogarem, majoritariamente, com homens. Os problemas


aqui expostos se misturam com as noções de O direito à cidade, de Henri Lefebvre
(2001), por conta de um desejo de um exercício de pleno gozo da cidade por
aqueles que não são convencionalmente reconhecidos como parte da construção
dos espaços públicos. É importante reconhecer que as memórias ancoradas nos
logradouros incidem força simbólica e subjetiva na vida cotidiana nas cidades,
alteram as formas de pertencimento ao território, bem como ao legado que será
deixado.
Haveria, em Outra Cidade, a possibilidade de todos aqueles que são de algum
modo invisibilizados sentirem-se menos intimidados ou amedrontados em suas
experiências diárias, nos espaços e edificações públicas? O que lembrar e o que
esquecer? O que há entre as decisões de afirmação ou apagamento? Entre vultos,
fatos e datas históricas? Acredo que essas questões são decisivas e definem a atmosfera
dos lugares, implicando para além da memória as formas de ser e de estar nos espaços.

A GRAPHIA NAS CIDADES

Qual o impacto de não vermos, com mais frequência, a presença das mulheres
na constituição dos lugares urbanos, nos mapas da cidade, como protagonistas
nas páginas que contam a nossa história? Como fazer surgir cidades outras, mais
inclusivas e representativas para nós, mulheres? Como fazer da cidade um espaço
de reconhecimento para outras mulheres? Como permitir que o espaço público
seja retirado de uma situação predominantemente masculina e se abra para uma
realidade outra? É necessário criar escritas diversas. Refletindo sobre a construção
das memórias das mulheres, negligenciadas na concepção das cidades e da arquitetura
O tema será abordado por meio dos trabalhos poéticos Cidade só para homens (2019)
e Outra Cidade (v. 1, 2019), que surgem da reflexão sobre as relações entre as ruas e
representatividade nas cidades por meio da palavra e da imagem.

Sabemos que a palavra, na sua função nominalista de identificar os dados do real, é também uma
forma de qualificar o mundo, dando sentido e pautando as ações sociais. Esse processo de outorga
de significado é, pois, criador de realidade e instaurador da coerência que organiza a percepção do
mundo (PESAVENTO, 2001, p. 99).

Por que não encontramos tantas mulheres ao nosso redor? Por que não lemos,
com maior frequência, seus nomes em placas, enquanto andamos pelas ruas, calçadas,
miolos de quadra? Como poderemos sentir-nos representadas numa cidade que não
foi pensada para que a mulher se sinta parte dela? Não basta participar da política
e eleger democraticamente representantes, é necessário ser apreciada para além do
espaço expositivo de um museu ou da galeria, ou em festas, ou dias dedicados a uma
suposta homenagem. É preciso reconhecer-se na esfera pública, estar presente nas
ruas.

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A força dos nomes e suas designações ajudam a compreender o sentido da cidade. Em tempos mais
antigos eles sempre ajudaram a perceber o desenrolar das práticas sociais, o linguajar popular de
determinada época e a importância de determinados tipos populares. Mais recentemente, com a
substituição por nomes de pessoas, que nada representam no imaginário popular, eles acabam
sendo esquecidos ou completamente desligados de seu significado (SOUZA, 2001, p. 141).

A proposição artística intitulada Outra Cidade (LIMA, 2019) surgiu das


perguntas formuladas nos parágrafos acima e procura substituir, de maneira utópica,
a nomenclatura de algumas ruas pelos nomes de mulheres que eu gostaria de ver
a meu lado e as quais fazem parte da construção de conceitos importantes para
o desenvolvimento desta pesquisa sobre a percepção sensível nas cidades. Neste
trabalho, penso a construção dessa identificação com os lugares urbanos por meio
de cartografias, buscando modificar as relações de poder previamente estabelecidas
e dando visibilidade a, ao menos, um dos possíveis recortes da análise: o lugar da
mulher nas cidades.
Através dos questionamentos iniciados durante a leitura dos textos Era uma vez
o beco: origens de um mau lugar (PESAVENTO, 2001) e O sentido das palavras nas ruas
da cidade. Entre as práticas populares e o poder do Estado (ou público) (SOUZA, 2001),
inclusos no livro Palavras da Cidade (BRESCIANI, 2001), iniciei uma análise, de
forma mais ampla, dos mapas das áreas centrais de Porto Alegre e Pelotas e, com
isso, desenvolvi o trabalho Cidade só para homens (2019), uma crítica às situações que
passam quase despercebidas e, ainda assim, ou justamente por isso, nos diminuem.
Depaule e Topalov (2001, p. 17) escrevem que “as palavras designam
simplesmente coisas que lá estão antes de serem nomeadas” e mais adiante questionam
“por meio de que processos o mundo científico fornece por vezes a linguagem que
vai permitir ao mundo político e aos formadores de opinião formalizar situações de
perturbação da ordem social como ‘problemas urbanos’?” (idem, p. 26). Acredito que
a pesquisa em Artes Visuais pode fornecer as linguagens que constroem caminhos
para entender se as poéticas têm potencialidade para transfigurar espaços de conflito
em lugares de correspondência, possibilitando o surgimento de  Outras Cidades,
construídas de forma crítica, política e ligadas às sensibilidades, ao tempo, aos corpos
e às questões da não-ausência nos lugares urbanos.
Célia Ferraz de Souza (2001) discute os nomes dados às ruas do Centro
Histórico de Porto Alegre/RS desde a sua fundação até os dias atuais. Ela inicia
o texto falando da necessidade de orientação nas cidades e nos códigos que
criamos para que não sejamos invadidos pela sensação assustadora de encontrarmo-
nos perdidos e como, para evitar que isso aconteça, inventamos estratégias de
reconhecimento como a denominação das ruas. Diz a autora que “com referenciais
precisos é possível oferecer uma das condições básicas da cidadania, que é a sensação
plena do pertencimento ao lugar” (SOUZA, 2001, p. 138).
Como exemplo de criação de estigmas, apreensões, na cidade, serão feitas
algumas considerações a respeito dos becos da Porto Alegre de muito antigamente.
Sandra Pesavento (2001) questiona sobre a existência de uma distinção, em termos
formais e topográficos, entre ruas e becos. Ora, não havia uma grande diferença

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para além do título e, principalmente, do uso dado pela população, já que nem de
“becos sem saída” poderiam ser chamados uma vez que faziam conexão com as ruas
perpendiculares a eles. Eram ruas convencionais, mesmo que, por vezes, descritas
como “estreitas”, escuras e “ladeirentas”. Sobre os acontecimentos da virada dos
séculos XIX para XX, a autora diz:

O beco foi identificado como o reduto das socialidades condenadas, era um espaço maldito da
cidade, freqüentado pelos “turbulentos” da urbe. A situação se definia tanto mais grave por que
tais espaços estigmatizados se achavam encravados no centro da cidade, que se encontrava
em processo de renovação e saneamento, tanto técnico quanto moral. Verdadeiros “lugares de
enclave”, eles ameaçavam a ordem, pois expunham, pela contigüidade inevitável e indesejável, o
mau lado da urbe. Para os cidadãos da Porto Alegre ordenada e disciplinada que viviam no centro,
o “pecado” morava ao lado (PESAVENTO, 2001, p. 98).

Com o passar dos anos na Capital, “a diferenciação social que se acentuava e o


incômodo produzido por esta coabitação forçada no centro da cidade dá margem
a uma transformação de sentido léxico urbano” (PESAVENTO, 2001, p. 115). O
beco, que no século XIX não era um problema e não “comportava um registro de
linguagem denotadora de estigma” (idem, p. 113), agora, estigmatizado, passa a ser
intolerável e a chamada “guerra aos becos”, em benefício de um suposto progresso, e
resulta, mais adiante no século XX, na reestruturação física e/ou nominal do centro
e a extinção desses lugares do desenho da cidade.
Percebidos os nomes das ruas que formavam “minha quadra” em Porto Alegre,
interessei-me em descobrir quem eram aquelas pessoas que davam nome a elas e
o que as levou a merecerem tal homenagem. O bairro em questão é o Floresta,
ao lado do Centro Histórico, que possui como principal via a Estrada da Floresta,
justamente a rua onde mais circulo no bairro, hoje nomeada Avenida Cristóvão
Colombo. Em cidades coloniais, era comum que os logradouros fossem batizados
levando em consideração características geográficas, equipamentos públicos, nomes
de personalidades locais ou vultos da história. Com o passar dos anos, porém, os
nomes são alterados. De modo geral, as mudanças, determinadas pelo Estado, acabam
demorando em ser adotadas pela população, que resiste à nova nomenclatura por
um período e, em alguns casos, cria apelidos para as ruas, fazendo valer novamente
os nomes mais ligados aos afetos da época ou de tempos outros (SOUZA, 2001). Em
algumas outras situações, as obras de modernização urbanísticas acabavam alterando
os nomes populares dos espaços públicos, que passavam a ser referenciados por
meio de novos viadutos, túneis, elevadas. “De um lado, a permanência de nomes
antigos e as rejeições dos novos nomes, de outro, a adoção de nomes do momento,
tão rapidamente assimilados, instigam verificar o poder das palavras no verdadeiro
sentido da cidade” (SOUZA, 2001, p. 141).
Em Porto Alegre, a nomeação das ruas de antigamente pode ser analisada dentro
de três grandes grupos: um primeiro, que surge de referenciais físicos (naturais ou
construídos), como Rua do Arroio, Rua da Igreja, Beco do Poço ou Rua Direita;
um segundo grupo no qual estão os nomes que têm origem histórico-cultural,

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ligados às atividades exercidas no local, a profissões ou a figuras religiosas, como


Praça da Quitanda, Rua do Ouvidor e Rua Espírito Santo; e no último grupo
estariam os nomes que fazem referência aos tipos populares, como Beco do Fanha,
da elite local, como Rua de Bragança, e de vultos da história, como Rua Princesa
Isabel ou Avenida Duque de Caxias (SOUZA, 2001, p. 141-142).
Numa breve pesquisa sobre memória e os mapas atuais do Centro Histórico,
é possível notar que os nomes que resistiram ao tempo e mantêm-se nas ruas das
cidades estão, majoritariamente, dentro deste último grupo, dando prioridade aos
vultos históricos e, com bem menor incidência, à elite local. Porém, há ainda certa
resistência quanto à aceitação da alteração da nomenclatura dos lugares ligados às
memórias e às questões histórico-socioculturais. “Se perguntarmos à população
onde ficam as Praças Senador Florêncio (Alfândega), Praça Marechal Deodoro
(Matriz) ou porque das pessoas chamarem a Rua dos Andradas de Rua da Praia,
poucos poderão responder com certeza” (SOUZA, 2001, p. 139). Ainda hoje, é
comum que a população fale da Rua General Câmara como Rua da Ladeira e,
felizmente, há algo de sensível presente nos nomes de alguns logradouros, tal como
a Travessa dos Cataventos, que dá acesso à Casa de Cultura Mario Quintana, e as
escadarias do Viaduto da Borges (cujo nome oficial é Otávio Rocha):Verão, Outono,
Inverno e Primavera. Essa Porto Alegre, ligada aos afetos, às ações e acontecimentos
do cotidiano, às pessoas, já não é tão comum, senão em lapsos de memória, e o fato
de ainda resgatarmos, inconscientemente, essas afeições é um sinal de um desejo
de resistir à barbárie de uma cidade que apaga as sensibilidades em virtude de
representantes de tempos de guerras, de conflitos e da exaltação da burguesia gaúcha.

CIDADE SÓ PARA HOMENS

É curioso pensar que tanto Pesavento (2001) quanto Souza (2001) destacam
fatos da cidade pelas palavras do cronista porto-alegrense Coruja (1983). Ele dá
nome a uma das ruas que configura o quarteirão onde o trabalho Outra cidade (2019)
surgiu, em Porto Alegre/RS, casualmente formado, também, pela Rua Pelotas,
cidade que me recebe enquanto realizo esta pesquisa. Didi-Huberman (2013, p. 67)
diz que “a arte da memória não se reduz ao inventário de objetos trazidos à luz,
objetos claramente visíveis [...], mas também, e principalmente, uma anamnese para
compreender o presente”.
O trabalho Cidade só para homens (2019) surge da observação do entorno de um lugar
já conhecido: meu lugar em Porto Alegre. Encontrei um colonizador, um cronista, uma
figura religiosa, uma cidade e um grupo de homens que lutou numa guerra. Ampliando
esta análise do quarteirão, percebi que não seria assim tão fácil sentir-me representada de
alguma forma. Percebi que não encontrava mulheres ao meu redor e, dentre todas outras
questões que poderiam ser aqui abordadas, Cidade só para homens (2019) é um recorte
dentro de uma gama extensa de possibilidades de cidade que poderiam ser pesquisadas
e fala da minha experiência como mulher nesse lugar urbano. O desejo de criar outra
cidade nasceu junto à vontade de comprovar que eu poderia sim encontrar mulheres nos
arredores dos meus bairros em Porto Alegre e Pelotas/RS.

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A escolha dos lugares mapeados se deu, primeiramente, por conta dos centros
das cidades e dos bairros onde vivo. São minhas microcidades, meus territórios,
meus lugares de memória em cada cidade. Em Outra Cidade (2019), contudo, vejo
a oportunidade de desenhar uma cidade que abre os braços para que seja possível,
enfim, fazer a conexão com algumas das mulheres com quem venho construindo
uma amizade por meio das leituras e críticas. Seja pela cidade ou pela produção
acadêmica e poética, vejo nesta discussão um potencial para iniciar uma pequena
mudança, mesmo que interna, e honrar aquelas que lutaram, ou ainda lutam, para
resistir ao apagamento.
Em 1953, Jane Jacobs escreveu A cidade é para as pessoas e, neste texto, crítico
quanto às formas como o futuro das cidades vinha sendo conduzido, afirma que
a complexidade e a vivacidade dos centros urbanos não deveriam ser conduzidas
unicamente por um grupo de profissionais da área de planejamento urbano, mas
sim por todos, independentemente da existência ou não de conhecimento técnico.
A autora destaca sobre a não necessidade de um diploma acadêmico para que sejam
elaboradas as perguntas certas sobre o que é importante numa cidade. “Deixemos
que os cidadãos decidam quais resultados finais querem atingir, e que, assim o
fazendo, eles adaptem o maquinário urbanístico a estes propósitos” (JACOBS, 1953).
A série Cidade só para homens (2019) é composta por quatro mapeamentos
principais: dois em Pelotas/RS e dois em Porto Alegre/RS. Neste artigo, discorrerei
somente sobre os mapas da capital do estado do Rio Grande do Sul, fazendo justiça
aos referenciais teóricos que trouxe4. Os mapas apresentados trazem um levantamento
das ruas com nomes de homens (em vermelho), mulheres (em azul), datas, lugares
e fatos históricos (em verde), por fim, ruas internas a conjuntos de edificações e/
ou sem identificação (em cinza). O primeiro trabalho da série é Porto Alegre só para
homens: Centro Histórico [4/4] (Figura 1). Nas cartografias, foram realçadas apenas
ruas, não estando todos os espaços públicos, que englobam o conceito de logradouro,
abrangidos.

4  Os outros mapas podem ser visualizados no portifólio online de uma das autoras: <www.fernandafedrizzi.com/
csph>.

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Figura 1: Porto Alegre só para homens: Centro Histórico [4/4], 2019.

Fonte: Fernanda Fedrizzi.

Como justificativa para a grande quantidade de homenagens a homens, Souza


(2001, p. 151) aponta que “o Império, achando por bem valorizar seus militares
vivos e mortos, mostrou seu grande reconhecimento através da substituição dos
antigos nomes das ruas por esses heróis que lutaram pela pátria”. Na região central
de Porto Alegre, não é possível encontrar nenhuma rua com nome feminino, ou
seja, dentro do recorte ao qual esta pesquisa se debruça, não foi possível encontrar,
neste setor da cidade, nenhuma mulher digna com “status” de heroína nacional,
sendo a única exceção, em azul no mapa, a Rua Sofia Veloso, localizada no bairro
Cidade Baixa. Sofia Veloso (1856-1930) foi uma ativista abolicionista que nasceu,
atuou e faleceu em Porto Alegre.
Em meio a isso, é curioso constatar que, ao contrário do comentário de Souza
(2001, p. 151), sobre Coruja estar equivocado sobre a possível sobrevivência do nome
popular da Praça General Osório, o lugar continua, em 2019, vivo em memória
popular como, efetivamente, Alto da Bronze, fazendo referência à mulher que ali
vivia. Inclusive, parece mais comum que as pessoas que circulam pela parte alta do
Centro Histórico de Porto Alegre saibam mais sobre os feitos desta mulher do que
sobre os do tal general.
O mapa Porto Alegre só para homens: Floresta [4/4] (Figura 2) abrange,
principalmente, o bairro Floresta, mas também seus lindeiros: Centro Histórico,
Independência, Moinhos de Vento e Auxiliadora. Nota-se uma presença um
pouco maior de ruas marcadas em azul. Temos o Viaduto da Conceição, no Centro
Histórico; a Rua Santa Rita, a Avenida Mercedes e a Travessa Carmen, no bairro
Floresta; e a Rua Luciana de Abreu no bairro Moinhos de Vento e a Rua Anita
Garibaldi, no bairro Auxiliadora.

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Figura 2: Porto Alegre só para homens: Floresta [4/4], 2019.

Fonte: Fernanda Fedrizzi.

É necessário que se pense também em quem são essas mulheres que receberam
destaque na malha da cidade. OViaduto da Conceição faz referência a Nossa Senhora
da Conceição, figura religiosa, assim como Santa Rita. Sobre Mercedes e Carmem
nada foi possível ser encontrado além de outras ruas que carregam os mesmos nomes
acompanhados de sobrenomes. Nesses casos, a Rua Mercedes Azzolini, no bairro
Belém Novo, homenageada pela Associação de Moradores da Ponta Grossa em 2005
(PORTO ALEGRE, 2007, p. 87), e a Praça Carmem Miranda, no bairro Itu-Sabará,
homenageando a reconhecida artista portuguesa (idem, p. 28). Luciana de Abreu,
porto-alegrense nascida no século XIX, foi professora, escritora, integrante do
Partenon Literário e defensora dos direitos femininos (idem, p. 71). Anita Garibaldi
foi costureira e guerrilheira, tendo lutado no Uruguai e na Itália, chamada também
de “heroína de dois mundos” (idem, p. 16).
Devido ao baixo índice de mulheres homenageadas nessas ruas, decidi testar
cartografias diversas, nas quais, inicialmente, isolo as ruas que homenageiam homens
e, nos seguintes, os elimino e, nos últimos, deixo somente as mulheres. Na imagem
seguinte (Figura 3), exibo um compilado desses mapas. É perceptível que, mesmo
com o apagamento da identidade das mulheres, a cidade ainda conseguiria manter-
se funcionando, conectada, devido à ínfima importância que elas, assim como os
grupos de ruas marcados em verde e cinza, parecem possuir nesta malha urbana.
Uma cidade que, aparentemente, não necessita dessas outras representações. Mede-
se aqui o pertencimento pela não-presença das mulheres na cidade cartografada.
Aliás, o apagamento de todas as ruas que não carregam nomes de homens altera
muito pouco a percepção dessa cidade.

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Figura 3: Compilado de outros mapas criados para Porto Alegre só para homens: Centro Histórico [1/4H], [3/4] e
[1/4M] respectivamente, e Porto Alegre só para homens: Floresta [1/4H], [3/4] e [1/4M], 2019.

Fonte: Fernanda Fedrizzi.

Um primeiro passo para entender por que não há mais ruas que carregam
nomes de mulheres seria pensar nos motivos pelos quais as cidades não foram
constituídas como espaços para a mulher e como isso resulta na negação de sua
presença nos espaços públicos. Nochlin (2016) nos alerta que não devemos cair na
tentação de justificar essa ausência identificando aleatoriamente ruas com nomes de
mulheres e, tampouco, diferenciando os feitos femininos e masculinos. Essas seriam
análises rasas.

As coisas como estão e como estiveram, nas artes, bem como em centenas de outras áreas, são
entediantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram
a sorte de nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo homens (NOCHLIN,
2016, p. 8).

Em 2007, a Prefeitura de Porto Alegre lançou o livro Logradouros públicos


em Porto Alegre: presença feminina na denominação, por iniciativa da então Presidenta
da Câmara de Vereadores da cidade Maria Celeste. Este documento faz um
levantamento sobre as ruas, praças, viadutos e demais espaços públicos com nomes
de mulheres na cidade, indicando o bairro onde se localizam e, quando possível, um

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breve histórico sobre essa pessoa. Constam, dentre os mais de nove mil logradouros
de Porto Alegre, 379 verbetes nos quais se encontram os nomes das mulheres
homenageadas. É justo notar que grande parte das ruas que carregam nomes de
mulheres encontra-se nas zonas limítrofes da cidade, em processo de urbanização
ou ainda não oficialmente urbanizadas e, justamente por isso, essa questão surgiu
somente quando da criação de novos bairros. O documento não pensa mais a fundo
a questão da representatividade das mulheres nas cidades, mas destaca brevemente
sobre como a situação presente no ano de 2007 demonstrava certa preocupação
com identidade e cidadania na capital. É justo que as ruas com nomes de mulheres
representem apenas, e aproximadamente, 4% das ruas de Porto Alegre? Dentre os
outros 96% das ruas, encontram-se fatos históricos, lugares, flora, fauna, porém,
predominantemente, nomes de homenageados homens. A maioria dos nomes de
mulheres está localizada em bairros periféricos ou em locais afastados do centro. Os
centros, de modo geral, são as regiões mais reconhecidas da cidade, mais acessíveis e
mais lembradas, mais frequentes no imaginário e na memória da cidade.

Denominar os logradouros implica participação – um nome de rua diz muito sobre a população
que ali vive, a qual, através dos meios disponíveis, pode indicar qual personalidade ou fato deseja
ver homenageado, destacado, lembrado. Dessa forma, dar nome aos logradouros deixa de ser ato
singelo, passa a conferir identidade social. A presença feminina na denominação é uma das formas
de reverenciarmos a memória de mulheres trabalhadoras, ativistas, militantes e organizadoras das
causas das mulheres. Mulheres que nos deixaram como legado suas experiências de luta e de vida
quando, na coragem, romperam o silêncio e denunciaram a opressão e todas formas de violação,
buscando construir uma sociedade mais justa e igualitária para todos (PORTO ALEGRE, 2007, p. 5).

Os logradouros com nomes de mulheres, em Porto Alegre, estão nestes lugares


por conta da consciência tardia do Estado com relação ao tema, mas também
porque a cidade central já estava consolidada. Sem que fosse vista necessidade de
criação de novos nomes, ou da alteração deles, os espaços de representatividade, de
identidade das mulheres ocorrem de modo mais corriqueiro em outras localizações
não centrais, dificultando a visibilidade e a sensação plena de reconhecimento nas
grandes cidades.

OUTRAS CIDADES

Ações artísticas podem operar modos de visibilidade? Brígida Campbell,


em Arte para uma cidade sensível, diz que “a arte desenvolve um programa político
na cidade [...] gerando novas formas de percepção do cotidiano” (2018, p. 22) e,
concordando com esta afirmação, fui atrás do desejo de escrever outra aidade, na qual
mulheres possam ver-se, sentir-se pertencentes e reconhecidas. Uma cidade na qual
grandes mulheres são referência, não apenas bibliográfica, mas também histórica, de
presença, de trabalho, pesquisa e luta por lugares mais representativos.
Outra Cidade (2019) é uma utopia que tentará fazer despertar para discussões
futuras e “as utopias sempre foram ficções conscientes de sua função de acionar o

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espírito crítico da consciência de um determinado tempo” (SOUSA, 2007, p. 21), e


é também um meio de questionar o cânone. Em Cidade Planejada5, a artista Marina
Camargo cria um jogo de experimentação em que o desenho de um mapa fictício
propicia a criação de cidades outras, porém a artista garante que de forma alguma
pretende, com a proposta, defender a ideia da criação de espaços urbanos ideais. A
Outra Cidade, que vem sendo construída ao longo desta pesquisa em Artes Visuais,
também não será uma cidade ideal para todos. Edson Sousa (2007) defende que a
utopia pode ser pensada como “uma certa ruína dos saberes instituídos” (p. 29) em
“uma perspectiva do inacabado e de permanente reinvenção” onde ela ronda um
‘território de crise’” (p. 32). A Outra Cidade é utópica justamente por estar vinculada
única e exclusivamente com as pessoas que a pensaram em seus espaços de conflito.
De um exercício particular, entre meus estudos, iniciei um esboço do que seria
a minha Outra Cidade, no meu quarteirão, em Porto Alegre. Aquele mesmo que
havia sido responsável pelo início de Cidade só para homens (2019). Dele surgiu a
cartografia abaixo (Figura 4).

Figura 4: Outra Cidade [V.1], 2019.

Fonte: Fernanda Fedrizzi

Invadida pelas análises feitas no trabalho Cidade só para homens e em Outra


Cidade [V.1], propus uma atividade que visava a discutir estes mapeamentos e, então,
pensar em como poderíamos alterar a percepção da cidade por meio de novos
nomes para as ruas da cidade. Durante a Micro Escola de Verão, realizada no início de
2019 e organizada pelo coletivo TransLAB.URB, por meio da atividade A Outra
5  Trabalho disponível para visualização em fotografia e vídeo no sítio online da artista Marina Camargo: <www.
marinacamargo.com/portfolio/cidade-planejada-sao-paulo/>.

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Cidade, apresentei os textos sobre os quais discorri aqui e, em grupo, pensamos uma
cidade outra para o Centro Histórico de Porto Alegre. Neste processo de resgate
das memórias afetivas através da reescrita da cidade pensamos em homenagear a
Dona Eva, como era carinhosamente chamada, que faz parte da memória social
e afetiva da cidade, tendo lutado, como empreendedora cultural, pela manutenção
e ampliação do Theatro São Pedro e do Complexo Cultural Multipalco, batizado,
após sua morte, em 2018, de Multipalco Eva Sopher. O nome da Rua Riachuelo,
tradicional família da elite de Porto Alegre, passou a chamar-se, ao menos neste dia,
Rua Eva Sopher.

Os nomes dos logradouros têm realmente muito a ver com o imaginário da população. É aqui
que ela expõe suas particularidades, seus tipos e seus valores, ligados às práticas do cotidiano. À
medida que as mudanças vão sendo impostas, de cima para baixo, pelo Estado ou pela Edilidade,
sem que haja qualquer envolvimento da população em relação a elas, os novos nomes passam a
custar mais para serem assimilados ou se fixa o nome sem a menor relação com a história local
(SOUZA, 2001, p. 152).

Os nomes sugeridos para as ruas, naquela situação, tinham relação com as


memórias que os participantes da oficina possuíam com aquele setor da cidade, pois
falam da substituição de nomes que fazem referência a memórias que “nada dizem”
por outros que “dizem algo” para eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como indica o artista e arquiteto Antoni Muntadas: “atenção: percepção


requer envolvimento”6. Do envolvimento com minhas cidades, Porto Alegre e
Pelotas/RS, fui capaz de perceber as discrepâncias de representatividade nas zonas
centrais das cidades. “A escala da mudança não importa, porque, mesmo sendo ela
pequena como a mudança do nome das ruas da cidade, viu-se que se trata afinal
da identidade do cidadão” (SOUZA, 2001, p. 152-153). Mesmo que os mapas de
Cidade só para homens (2019) e as iniciativas levantadas na atividade A Outra Cidade
ou no exercício artístico de criar meu mapa de afetos não resultem em projetos para
novas realidades de cidade, e não almejem isso neste momento, elas apontam para
desejos de realidades diversas, com distintas identidades. De nada adiantaria alterar
nomes de ruas hoje e substitui-los por nomes de mulheres que me são queridas se
estes nomes não significarem nada para outras pessoas ou apagarem memórias de
tempos outros assim como foi feito em momentos anteriores.
A Outra Cidade (2019) criada a partir do estudo inicial é um reflexo da minha
representatividade na cartografia existente. É meu lugar utópico. Seria muito
agradável se todos que entrassem em contato com este estudo e essas cartografias
refletissem sobre o que existe hoje enquanto representatividade nos nomes dos
logradouros de suas cidades e criassem suas outras cidades, as quais representem seus

6  Trabalho “Atenção”, serigrafia 66x102cm, 2002.

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recortes de existência e pertencimento. Desta reflexão há de surgir movimentos que


podem se tornar ações e assim propiciar mais discussões e possibilidades de criação
de novas grafias para futuros outros.
Seria necessário que hoje fizéssemos um exercício de retorno às memórias
daquele tempo dos becos não estigmatizados para então tentar recriar afetividades e
sensibilidades na cidade? Como disse a jornalista: “projetar uma cidade dos sonhos
é fácil; reedificar uma cidade viva exige imaginação” (JACOBS, 1953). Os trabalhos
apresentados não têm como intuito destruir o que já existe para construir algo novo,
mas sim construir uma conversa com os lugares, uma identificação, a percepção
da possibilidade de criar ou não vínculos afetivos com estes territórios. Será
imprescindível, ainda, muito sonho, desejo, utopia – e este trabalho artístico procura
retomar o sentido original da palavra e o poder constituinte que ela promove – para
que um dia consigamos imaginar, e quem sabe executar, lugares que verdadeiramente
sejam nossos. Esse é, sim, o meu lugar.

REFERÊNCIAS

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UFRGS, 2001.
CAMARGO, Marina. Website da artista. Disponível em: <www.marinacamargo.com>.
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Acesso em 10 nov. 2019
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artístico. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/arteversa/?p=138>. Acesso em 10 nov.
2019.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? Tradução de Juliana

280
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Era uma vez o beco: origens de um mau lugar. In: BRESCIANI,
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Porto Alegre: presença feminina na denominação / Rosa Ângela Fontes (org.). Porto
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da Cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. pp. 137-156.

281
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O DESENVOLVIMENTO URBANO EM SANTA


ROSA/RS E ESTUDO DA CIDADE NO ÂMBITO
PATRIMONIAL
ESTEFANI CAROLINE BASSO LAGO1
JULIANA DE LIMA BUURON2
VITOR MATHEUS HAAB3

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O patrimônio é a representação da sociedade em forma, expressão, crenças,


conhecimento e técnica, influenciando pensamentos de determinada geração
no período em que se apresenta. A existência e a preservação desses dentro de
uma comunidade influem na construção do sentimento de pertencimento e de
identidade cultural, fortalecendo a história e o cuidado pessoal com o público.
Notamos, principalmente, em grandes centros ou centros históricos consolidados, a
existência de discussões e movimentos em prol da preservação e do amparo político
e técnico; contudo, destacamos amplo número de cidades em que o patrimônio não
se apresenta como preocupação.
Este trabalho tem como objetivo fomentar a discussão sobre a preservação e a
valorização do patrimônio no município, possuindo diretrizes dentro da educação
para o patrimônio, a fim de que sejam postos em prática na vida diária os conceitos
acerca do tema, colaborando com a comunidade Santa-rosense.

AS DESIGNAÇÕES E CARACTERÍSTICAS DO PATRIMÔNIO

A Constituição Federal define o patrimônio cultural brasileiro como todos


os bens de natureza material e imaterial consolidados de forma individual ou em
1  Aluna do curso de Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo – Instituto Federal de Ciência e Tecnologia
Farroupilha, Santa Rosa e Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]
2  Aluna do curso de bacharelado em Arquitetura e Urbanismo – Instituto Federal de Ciência e Tecnologia
Farroupilha, Santa Rosa e Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]
3  Aluno do curso de Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo – Instituto Federal de Ciência e Tecnologia
Farroupilha, Santa Rosa e Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

282
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

conjunto, possuindo referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes


grupos que constituem a sociedade brasileira (BRASIL, 1988). Choay (2006)
destaca que o conceito de patrimônio é atualizado através de adjetivos constantes,
que o torna “nômade”, estando completo de sentidos quando sustentado por outro
termo ou por determinado conjunto de referências. As diferentes classificações do
patrimônio e a possibilidade de incluir um exemplar em mais categorias acabam
criando conceitos particulares, nos quais se reúne um conjunto de bens e valores
representativos para um grupo, inseridos num contexto comum.
Em sua origem etimológica, a palavra traduz-se em transmissão de bens e
heranças familiares, trazendo a sua origem de sua raiz latina patrimonium a relação
com “paterno” e “pátria”, carregando a referência do imaginativo coletivo, das
formas de expressão da sociedade, o modo de criar, fazer, viver, obras e documentos,
edificações, conjuntos urbanos e formas destinados às manifestações artístico-
culturais. A combinação dessas ideias leva à construção de conceitos particulares
que ampliem o entendimento acerca do patrimônio, em conjuntos que reúnem o
patrimônio cultural em patrimônio material e patrimônio imaterial.
O patrimônio cultural possui a apropriação de elementos que integram o
imaginário social e ganham sentido para certa comunidade, sendo usado para designar
objetos no sentido mais geral deste termo – prédios, obras de arte, monumentos,
lugares históricos, relíquias, documentos – e diferentes modalidades de práticas
sociais objetificadas enquanto bens culturais – artesanato, rituais, festas populares,
religiões populares, esportes etc. (GONÇALVES, 2002).
Para a Carta Magna (1988), se constituem como patrimônio brasileiro os bens
materiais e imateriais, individualizados ou em conjuntos, que são referenciais para a
identidade e a memória da sociedade brasileira. Dentro desse contexto, a Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) define o
patrimônio cultural como “o legado que recebemos do passado, vivemos no presente
e transmitimos às futuras gerações”. Essa transmissão de conhecimentos, definida
pela UNESCO, é o ponto de referência e a identidade dos povos, fundamentais
para a diversidade cultural, o desenvolvimento da criatividade e a preservação da
memória, a qual pode ser expressa através de várias maneiras, como, por exemplo,
nos monumentos que rememoram o passado perpetuando a recordação, em que
a palavra deriva do latim monumentum, que deriva de monere (advertir, recordar), o
que interpela a memória (CHOAY, 2006). Apesar de estarem efetivamente ligados a
servir a memória das gerações anteriores ou de fatos acontecidos, os monumentos
denotam o poder, a grandeza e a beleza, promovendo os estilos e a sensibilidade
estética existente, tornando-se marcas da memória coletiva, capazes de perpetuar
fatos e momentos históricos.
Para Gonçalves (2002, p. 24), ao nos apropriarmos de um bem cultural,
demonstramos “controle sobre aquilo que é objeto dessa apropriação, implicando
também um processo de identificação por meio do qual um conjunto de diferenças
é transformado em identidade Dessa forma, a memória e a identidade cultural, deixa
de ter a visão apenas de “ser” para “significar” algo, transcender à matéria. O sentido
do patrimônio cultural não se constrói pela materialidade do bem, mas sim por sua

283
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

função de representar e evocar memórias que lhe são atribuídas (GONÇALVES,


2002, p. 24).
Dentre o patrimônio cultural, existe o patrimônio cultural material, que,
segundo o IPHAN, “entende-se o universo de bens tangíveis, móveis ou imóveis,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (2008,
p. 1). São denominados como bens materiais, segundo o IPHAN, “inventários de
conhecimento, estudos temáticos ou técnicos, dossiês de candidatura, pesquisas
arqueológicas e cadastro de bens arqueológicos” (2018, s/n), sendo classificados
a partir de sua natureza, observando os quatro Livros de Tombo: Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico; Histórico; Belas Artes ; e Artes Aplicadas. A determinação,
de acordo com o Livro de Tombo, classifica em bens culturais móveis as coleções
arqueológicas, os acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos,
videográficos, fotográficos e cinematográficos; e em bens culturais imóveis os
núcleos urbanos, os sítios arqueológicos e paisagísticos e os bens individuais.
O patrimônio cultural imaterial se constitui em “referências simbólicas dos
processos e dinâmicas socioculturais de invenção, transmissão e prática contínua
de tradições fundamentais para as identidades de grupos, segmentos sociais,
comunidades, povos e nações” (IPHAN, s.d, s/n). Sendo o uso de representações,
expressões, conhecimentos e técnicas, que se transmite de geração em geração,
recriado constantemente pelas comunidades e por grupos, em função de seu
entorno, de sua interação com a natureza e de sua história, infunde-lhes um
sentimento de identidade e continuidade e contribui-se assim para promover o
respeito à diversidade cultural e à criatividade humana (IPHAN, 2016). Dentre
os bens imateriais, existem festividades e celebrações, saberes da cultura popular,
mitologias e narrativas, religiosidade, musicalidade, danças, comidas e bebidas, artes
e artesanatos línguas e literaturas orais.

AS FONTES COMO FORMA DE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NO CRESCIMENTO


URBANO E IDENTIDADE DAS CIDADES

As cidades, desde seu surgimento e ao longo de seu desenvolvimento,


conformam características particulares sobre sua população. O Município de Santa
Rosa, localizado na região Noroeste do estado do Rio Grande do Sul, é novo se
comparado a outras cidades brasileiras, tendo sua emancipação em 1931, porém
passa por períodos distintos de urbanização. Associado a isso, as fontes históricas têm
o papel de auxiliar a análise com maior precisão sobre esses períodos de crescimento
urbano das cidades.
Incorporado ao Museu Municipal de Santa Rosa/RS, em edificação que
abrigou até 1995 mercadorias da Estação Férrea, existe o Acervo Municipal,
possuindo um potencial nos diversos documentos de memória existentes. O acervo
conta com fontes, em diferentes suportes, relacionadas ao crescimento e à história
do município e da região de Santa Rosa, dentre as quais citamos a hemeroteca,
documentos e fotografias, em maior quantidade.

284
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Devido à maior quantidade de material fotográfico no acervo municipal, o


presente trabalho tem enfoque no uso das fontes da fotografia, destacando temas
ligados à evolução urbana e a âmbitos ligados ao patrimônio cultural local. O avanço
tecnológico possibilitou que a criação e a evolução da paisagem da cidade fosse
registrada, relatada através das imagens, demonstrando crenças, ideologias e visões
do lugar e da época, sendo capazes de demonstrar o processo de crescimento da
cidade, possibilitando criar linhas evolutivas do tempo, mostrando as tecnologias
que foram adquiridas ao longo dos anos. A fotografia surge como uma maneira
de registrar determinado momento e/ou paisagem, destacando características
de determinado período. Ressaltam-se as fotografias das famílias, que tinham o
objetivo de demonstrar e manter presente as gerações passadas. Le Goff considera
que o fenômeno da fotografia democratizou a memória, dando-lhe “uma precisão e
uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do
tempo e da evolução cronológica” (LE GOFF, 2003, p. 446).
No contexto de Santa Rosa, conforme a periodização proposta por Christensen
(2008), a cidade passou por três períodos distintos de crescimento e urbanização:
o primeiro desde sua formação, em 1914 até sua emancipação no ano de 1931,
quando acontece a consolidação do centro antigo (popularmente chamado “Cidade
Baixa”); a segunda fase, entre 1931 e 1964, marcada pelo surgimento de novos
espaços urbanos, tais como a Prefeitura Municipal e a Estação Férrea local, numa
nova região da cidade, deslocando o antigo centro para a “Cidade Alta”; e por fim,
a consolidação de uma nova centralidade, com o deslocamento da prefeitura e a
intenção de integrar a cidade um dos maiores bairros do município. Esse último
período causou a perda dos atratores originais (abandono da edificação da antiga
Prefeitura, que passa a ocupar um novo prédio em via de maior porte, combinada
com a decadência do transporte ferroviário, entre outros exemplos).
Devido à fotografia, é possível visualizar os processos de crescimento urbano
da cidade, sendo que o registro da primeira fotografia em Santa Rosa, a qual está no
Acervo Municipal, é datada de 1908, demonstrando a família de Coronel Bráulio
de Oliveira. Outros registros da época demonstram o processo de desmatamento
da mata nativa da região que possibilitou a colonização nos anos que se sucederam,
fazendo parte do processo de evolução e reconhecimento da área para a criação da
colônia mista de Santa Rosa, que veio a se emancipar, de Santo Ângelo, em 1931.
Registros dessa década e da seguinte fazem o retrato de pequenos acontecimentos
e lugares, mostrando principalmente os meios de transporte: as carroças puxadas
por bois, o transporte náutico e as edificações consideradas mais importantes. A
Igreja Matriz Católica Sagrado Coração de Jesus, a qual possui grande importância
para a comunidade Santa-rosense, foi construída dentro desse período usando o
desenvolvimento tecnológico da época.

285
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 1: Construção da Igreja Matriz Católica Sagrado Coração de Jesus em 1942.

Fonte: Museu Municipal de Santa Rosa.

Na década de 1930, já é possível notar o aumento dos documentos do acervo,


mostrando eventos relevantes à população, tais como a criação das indústrias, o
aumento do comércio e a expansão da construção civil. Nesse período, com as vias
já traçadas e abertas, era possível a construção em alvenaria, que, com o incentivo do
governo municipal para gerar um rápido desenvolvimento, foi uma ideia amplamente
adotada. Muitas pessoas demoliram suas habitações em madeira e construíram novas
construções em alvenaria
Uma fotografia, aparentemente simples, mostra uma construção no processo
de acabamento, voltada para uma rua de terra batida e, ao fundo, se veem edificações
em madeira. Segundo informações do Museu Municipal/SR, trata-se do registro da
primeira casa de alvenaria na cidade (Figura 2).

286
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 2: Construção da primeira casa em alvenaria, no lado esquerdo da fotografia, em fase de construção.

Fonte: Museu Municipal de Santa Rosa.

Outras edificações desse período, como prédios comerciais, locais públicos e


praças, nos anos 30 e 40, são construídas pela construtora Medaglia, responsável por
edificações da Cidade Alta, entre elas, a Prefeitura Municipal. Esses locais estimulam
e subsidiam o imaginário, acessando e fixando memórias as quais nos referenciam
dentro da cidade. Nesse sentido, Pesavento (2008, p. 64) contribui conceituando o
imaginário como “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os
homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo”.
Dentro desse período, até a década de 80, podemos perceber que os registros
são prioritariamente da área urbana, mas não a imagem da evolução urbana como
um todo, em que, muitas vezes, a periferia tem sua participação apagada da história,
demonstrando a parte de maior poder aquisitivo, geralmente sendo o centro da
cidade.
Observamos também registros de eventos e lugares importantes para a
comunidade, demonstrando a paisagem urbana, festividades locais e praças como,
por exemplo, a Praça da Bandeira que antecede a antiga sede da prefeitura Municipal
(Figura 3).

287
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 3: Vista da Praça da Bandeira em 1972.

Fonte: Museu Municipal de Santa Rosa.

Entre 1990 a 2010 (documentos mais recentes do acervo do Museu Municipal),


é possível encontrar uma quantidade expressiva de fontes, quando a popularização
da tecnologia permitiu que muitas atividades e a expansão urbana fossem registradas.
O registro, nesse período, descentraliza a visão do município que até então era em
grande maioria voltada às classes mais elevadas, trazendo registro da realidade das
comunidades mais pobres, de vilas em situação de risco, realojamentos, entre outros
aspectos que permitem um quadro maior da comunidade e do desenvolvimento
urbano. Pesavento (2008, p. 39) cita que “as representações construídas sobre o
mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens
percebam a realidade e pautem a sua existência”.
O patrimônio, portanto, torna-se uma construção social, dependente daquilo
que determinado grupo, em dado momento, considera digno de ser legado às
gerações futuras (DANTAS, 2015). Em relação a isso, o uso das fontes surge como
instrumento de preservação e valorização para a conservação das edificações. Dentre
esse contexto, as fotografias tornam-se de extrema importância, para destacar o
crescimento urbano, bem como características presentes nas edificações referentes
a determinado período histórico, podendo ser: detalhes arquitetônicos, materiais e
técnicas construtivas, entre outros aspectos. O uso das imagens torna-se, na maioria
das vezes, o único recurso existente, tornando-o um suporte para contribuir
justificativas acerca de possíveis ações de salvaguarda, como um tombamento, por
exemplo, servindo como fonte de pesquisa importante para a manutenção da
autenticidade do bem e de valores históricos e arquitetônicos.

288
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A IMPORTÂNCIA DA VALORIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

Ao referir-se a uma cidade, é importante destacar os bens que integram o


acervo local e que são importantes à comunidade geral. A preservação de uma
edificação, a qual teve grande importância para o crescimento urbano e para um
grupo social, faz com que a história da cidade seja reconhecida e se mantenha
viva, interferindo diretamente na paisagem urbana. Nora (1993, p. 9) corrobora tal
ideia ao afirmar que “a memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, neste
sentido, está em permanente evolução”.
A identidade das cidades, muitas vezes, é reconhecida por monumentos e
edificações históricas, trazendo características próprias e suas particularidades. O
processo de identificação dos elementos que compõem o panorama urbano auxilia
na valorização e no aprimoramento da história, tornando-se fundamental para
que as políticas públicas urbanas não sejam voltadas apenas à geração econômica
(COELHO, 2011). O patrimônio dentro da paisagem urbana demonstra o processo
de crescimento e evolução da cidade, rememorando e destacando suas características
construtivas e arquitetônicas do período, destacando obras conjuntas do homem e
da natureza. É notória a preocupação em algumas cidades, já que preocupação com
os elementos históricos atribui a valorização que o município possui em ressaltar a
preservação histórica em prol da memória da cidade.
Em casos nos quais isso não ocorre, o que vemos é descaso e ineficiência
por parte do poder público, em todas as esferas, pois não há criação de leis de
preservação nem fiscalização ou medidas de amparo econômico para a restauração
de edificações e vistas urbanas. Em contrapartida, é cada vez mais questionada a
preservação das paisagens urbanas, servindo de subsídio para que possamos pensar
em ideias como valorização e pertencimento, ações basilares de qualquer política de
gestão do patrimônio cultural.
A valorização do patrimônio é a forma mais plausível de mantermos a
história sociocultural viva, partindo de políticas públicas de preservação de bens
sensibilizando e conscientizando comunidades e agentes que se relacionam com os
bens portadores da memória coletiva e da identidade cultural dos diversos grupos
sociais. Para que exista a preservação do bem cultural, é importante saber não apenas
da sua existência, mas também a manifestação cultural praticada pela população
local, referente à construção social que vem sendo transmitida de uma geração para
outra sobre o bem.
A Educação para o Patrimônio se torna fundamental dentro do âmbito
de preservação, sendo constituída por todos os processos educativos formais e
não formais, desenvolvidos de forma coletiva e dialógica, que tem como foco o
Patrimônio Cultural socialmente apropriado como recurso para a compreensão
sócio histórica das referências culturais, despertando o interesse nos alunos a fim de
colaborar para sua preservação IPHAN (2018). Segundo Horta (1999, p. 6):

289
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O processo educativo, em qualquer área de ensino/aprendizagem tem como objetivo levar os


alunos a utilizarem suas capacidades intelectuais para a aquisição de conceitos e habilidades, assim
como para o uso desses conceitos e habilidades na prática, em sua vida diária e no próprio processo
educacional.

A Educação para o Patrimônio possibilita ao indivíduo fazer a leitura do


mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da
trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço
da autoestima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira,
compreendida como múltipla e plural. O diálogo durante o processo educacional
estimula e facilita a comunicação e a interação entre as comunidades e os agentes
responsáveis pela preservação e pelo estudo dos bens culturais, possibilitando a troca
de conhecimentos e a formação de parcerias para a proteção e a valorização desses
bens (HORTA, 1999).
Pode existir, em qualquer âmbito da sociedade e para qualquer faixa etária, a
educação para o patrimônio, tendo o objetivo principal de valorização da cultura
brasileira, constituindo uma construção coletiva do conhecimento, identificando a
comunidade como produtora de saberes que reconhece suas referências culturais
inseridas em contextos de significados associados à memória social do local.Também,
a partir disso, transforma os sujeitos no mundo e não somente reproduz informações,
como via de mão única e que identifique os educandos como consumidores de
informações – modelo designado por Paulo Freire como “educação bancária”
(FREIRE, 1970).
Dentro do contexto de preservação do patrimônio, a Constituição Federal
Brasileira (1988, Art. 216) afirma que o “Poder Público, com a colaboração da
comunidade, deve promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas
de acautelamento e preservação”. Exigindo também “incentivos para a produção e
o conhecimento de bens e valores culturais”, a fim de fomentar a valorização do
patrimônio cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As comunidades sempre deixam alguma marca no lugar em que vivem, a qual


identifica sua história coletiva materializando, assim, nestes espaços, sua identidade,
suas tradições e seus costumes. Conhecer, valorizar e conservar o patrimônio cultural
é uma premissa fundamental dentre a população.
A educação para o patrimônio, em perspectivas futuras, se torna a ação
primordial dentro do cenário cultural de Santa Rosa, sendo subsidiada principalmente
pelo Acervo Municipal. Os diferentes suportes existentes no Acervo destacam o
potencial para ações nas escolas municipais e na comunidade em geral, que venham
ao encontro da compreensão e da valorização da memória e do patrimônio cultural
local.

290
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A compreensão sobre a história local, sobretudo o desenvolvimento da cidade,


é a maneira mais plausível de fazer com que a comunidade tenha a apropriação
do tema e venha a valorizar e reconhecer o cenário patrimonial Santa-rosense. O
conhecimento das raízes culturais, da memória das edificações, do crescimento e
desenvolvimento urbano, dos saberes populares, da cultura e da história das cidades
é fundamental para a inserção do indivíduo, fortalecendo os vínculos de identidade
e pertencimento, estimulando assim a memória coletiva.

REFERÊNCIAS

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291
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

PERCURSOS DA PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO NA ESPANHA E ANDALUZIA
KAREN VELLEDA CALDAS1
FLÁVIO SACCO DOS ANJOS2
JAVIER BUENO VARGAS3

Embora com suas peculiaridades, a área de preservação do patrimônio na


Espanha possui traços comuns em relação ao caminho percorrido pelo restante
do mundo ocidental, em especial pela Europa. De modo muito sintético, podemos
organizar este percurso partindo de uma noção de “monumento”, relacionada,
basicamente, ao valor histórico, agregando, paralelamente, a ideia de “obra de
arte”, cujo valor artístico é o elemento central, fato que culmina no conceito
de patrimônio relacionado ao que hoje nomeamos como “bens culturais”, “que
integra todas las manifestaciones y testimonios significativos de la actividad humana”
(GONZALES-VARAS, 2018, p. 23). Não se trata de uma evolução linear, tampouco
simples. Pelo contrário, o patrimônio foi e continua sendo um objeto marcado pelo
conflito e pela disputa, sobretudo por ter como cenário e destino final o ambiente
social. Se nas suas origens está relacionado essencialmente a monumentos histórico-
artísticos e obras de arte, o alargamento do conceito de cultura fez agregar outras
tantas categorias, tais como os conjuntos históricos, os bens arqueológicos, os bens
imateriais, os industriais, assim como os documentais e bibliográficos.
Do ponto de vista da Conservação, a atuação dos profissionais espanhóis,
imbuídos da tarefa de conservar e restaurar o patrimônio, estava, até meados do
século XVII, incorporada às necessidades de preservação das coleções ligadas à
Coroa e à Igreja, sendo somente no século XVIII que se consolida a consciência
da necessidade de tutela patrimonial. No âmbito da pintura, por exemplo, o sentido
de restaurar era confundido com o próprio ato de pintar (RUIZ DE LACANAL,

1  Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel; doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação


em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPel; bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; [email protected]
2  Doutor em Sociologia pela Universidade de Córdoba; professor titular da Universidade Federal de Pelotas;
[email protected]
3  Doutor em Bellas Artes pela Universidad de Granada; professor titular da Universidad de Sevilla; javierbueno@
us.es

292
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

2018, p. 186). Durante o reinado de Felipe IV, considerado um grande colecionista,


a figura do artista restaurador se destacou, tendo como protagonistas artistas como
pintor Vicente Carducho e Diego Velásquez, citado por Ruiz de Lacanal (2018, p.
197) como “el primer ‘conservador’ de las coleciones regias”. No âmbito andaluz,
o célebre pintor sevilhano Bartolomé Esteban Murillo figura igualmente como
restaurador do mesmo período.
No entanto, foi no século XVIII, com Carlos III, de origem napolitana e
vinculado às escavações de Herculano e Pompeia, que novas ideias situaram a
Espanha na corrente cultural internacional, como bem alude Ruiz de Lacanal (2018,
p. 207). Com ele, “empieza la primera estructura administrativa para la protección
y tutela de los objetos de valor en España” (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 207).
Com o surgimento da “Real Academia Española de la Historia y de Bellas Artes
de San Fernando” (1752), da “Real Academia de História” e de sua Comissão de
Antiguidades consolidam-se a custódia e a conservação, potencializando os âmbitos
do ensino público, da defesa do patrimônio público e da gestão pública das riquezas,
distinguindo-se entre o patrimônio real, o patrimônio religioso e o patrimônio
público (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 209).
No que se refere aos critérios, ao longo do século XVIII, seguem vigentes
os denominados na Espanha como galleria, cuja reintegração se valia, por exemplo,
do mimetismo4. É nesse cenário, e em virtude do progressivo interesse e do gosto
artístico pela pintura que se sobrepõe a outros objetos, que surge a figura de um
profissional mais próximo do que atualmente conhecemos como conservador-
restaurador (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 189), responsável pelas ações que visam
a transmitir os objetos em sua consistência física a fim de garantir que perdurem os
valores culturais dos quais o bem cultural é portador (GONZÁLES-VARAS, 2018,
p. 89).
Mais além de um ambiente politicamente favorável como mencionamos,
os empreendimentos da Coroa também atenderam a uma demanda da sociedade
espanhola decorrente de um sinistro que marcou profundamente sua história
patrimonial: o incêndio ocorrido no antigo Alcázar de Madrid, sede da coleção real,
em 1734. Este foi um marco para a Conservação no contexto da Espanha, pois dele
decorrem diversos empreendimentos de recuperação de obras que se estenderam
até o final do século XVIII. Foi a primeira vez que apareceu a figura de um artista
contratado para o trabalho de restauração de obras de arte (RUIZ DE LACANAL,
2018, p. 214; MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 71). Trata-se de Juan García de
Miranda, que interveio nada menos do que na obra “As Meninas”, de Velázquez,
ocorrido em 1735, o qual “constituye un hito en la historia de la profesión en
España” (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 71). Muito embora lamentem-se as
perdas, o sinistro deu lugar a dois fatos positivos:

4  Técnica pela qual o conservador-restaurador preenche uma lacuna pictórica procurando disfarçar ou camuflar
a intervenção, tornando-a o mais discreta possível. Etimologicamente o termo provém do grego, «mimetés», que
significa imitação, sendo muito utilizado na biologia para se referir à capacidade de certos seres vivos, como,
por exemplo, as borboletas, de se assemelharem seja com o meio no qual habitam seja com outras espécies mais
protegidas com as quais ou à custa das quais vivem (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2019).

293
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

[…] la formación de una especie de escuela de restauración en palacio, ante la urgencia de atender a
la puesta en orden de las obras afectadas, y la preocupación por parte de los pintores-restauradores
de revisar el resto de las obras propriedad de la corona que, por otras razones, en especial por la
falta de cuidado a lo largo del tiempo, presentaban un estado lamentable (GONZÁLES-VARAS,
2018, p. 150).

Entretanto, ainda que na época tenha existido uma grande atividade


restauradora, cabe destacar que, durante a primeira metade do século XVIII, o
panorama da restauração de pinturas no âmbito espanhol não oferece a riqueza
de informações sobre essas atividades disponíveis sobre o contexto da Itália e da
França, como aponta Martínez Justicia (2008, p. 149): “Por desgracia es muy poco lo
que sabemos. La comentada falta de estudios sistemáticos y al parecer la escasez de
documentación no permite tener demasiadas certezas, sino sólo llegar a deducciones
aproximativas”.
Não obstante, no século XVIII, havia uma rígida hierarquização do
trabalho a qual repercutia em diferenças de status tanto na capacitação quanto na
responsabilidade e remuneração. De um lado, a figura do retocador de cuadros, cuja
atividade era de restaurador artístico, de outro, a do limpiador-forrador, que se limitava
a trabalhos mecânicos (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 72).
A Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, mencionada anteriormente,
teve um papel importante no âmbito da Conservação espanhola. Encarregada de
promover as políticas de tutela como órgão consultivo da Coroa na promulgação
de leis, tinha como função a regulação e o controle do ensino artístico do país
partindo do gosto oficial (neoclassicismo). Para tanto, os Grêmios, organizações de
profissionais do setor das artes, foram suprimidos criando um monopólio real na área
de conservação e restauração do patrimônio.Ademais de uma direção na investigação
historiográfica, especialmente do patrimônio monumental que ainda figurava em
destaque, outras providências de proteção, como os catálogos e os inventários, que
já se faziam na França e Itália com regularidade, foram medidas atribuídas à Real
Academia de Bellas Artes (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 73-74).
Durante o período correspondente ao Barroco espanhol, a mínima intervenção
suplantou a restauração de estilo renascentista, período em que era esperado do
restaurador a imitação do artista. Sendo assim, o conceito de autenticidade se impõe,
emergindo o questionamento de reintegrações não só dos bens arqueológicos, mas
também dos afrescos, embora os preenchimentos de partes faltantes nas esculturas
sejam aceitáveis devido a sua dita reversibilidade. Um ponto destacável nesse período
é a manifestação de critérios de intervenção distintos para cada tipologia de objeto,
conceito que é formulado mais tarde por Cesare Brandi ao defender que cada
obra de arte é única e, portanto, requer uma intervenção específica (MIRAMBELL
ABANCÓ, 2016, p. 73-74).
Todavia, somente no início do século XIX a preocupação com o perfil e a
formação do conservador-restaurador se apresenta de forma concreta. Francisco
de Goya foi um dos críticos da área na Espanha, fazendo alusão de que seriam
necessários princípios sólidos para empreender a atividade de restauração (RUIZ

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

DE LACANAL, 2018, p. 225), sendo seguido por Vicente Poleró y Toledo em 1855.
Foi Goya quem defendeu, no ambiente espanhol, o respeito à obra original, sendo
nos anos 1800 que emerge uma estreita relação entre a Conservação e a atuação dos
poderes públicos, restando timbrada em normativa jurídica.
No entanto, a construção dessas normas não se deu de modo linear. As
Comissões de Monumentos de Espanha, criadas na primeira metade do século
XIX (1837), tinham como tarefa conservar os bens adquiridos pelo Estado depois
da Desamortização de Mendizábal5, fato ocorrido em 1836. Essas comissões eram
formadas por expertos em literatura, ciências e artes e tinham caráter consultivo.
Havia também uma comissão central em Madrid, a qual foi suprimida em 1857
quando foi integrada à Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, porém esta
não tinha autoridade sobre as comissões provinciais (GARCÍA MORALES; SOTO
CABA, 2011, p. 55). Esse sistema, além de contar com poucos recursos financeiros,
se mostrava inadequado, especialmente na designação dos membros das comissões,
como sustenta Mirambell Abancó (2016, p. 111). Os conceitos de “interesse
público” e “Patrimônio Nacional” delimitaram uma mudança significativa, a qual
vem ao encontro das novas concepções de cultura que converteram os poderes
públicos em depositários e responsáveis pela proteção e tutela patrimonial (RUIZ
DE LACANAL, 2018, p. 235).
Apesar disso, o critério de restauração existente, claramente definido em
legislação datada de 1850 e identificado como “Restauração de estilo”, explica a
coincidência entre a formação artística e a formação para a restauração (RUIZ DE
LACANAL, 2018, p. 283). Ademais, demonstra a aceitação da teoria de Viollet-
Le-Duc, o qual em 1868 foi nomeado acadêmico honorário da Real Academia de
San Fernando de Madrid (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 109), havendo este
priorizado uma busca de maior veracidade de estilo do que propriamente de materiais
e de técnicas (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 111). Declarada monumento
nacional em 1844 e restaurada entre os anos de 1859 e 1901, a Catedral de León é
considerada o modelo da restauração estilística na Espanha. Nessa intervenção, cuja
proposta inicial foi de desmonte total do edifício e sua posterior reconstrução com
materiais melhores, admitia-se que teriam que ser retirados todos os elementos que
não caracterizavam o edifício como gótico, e “reemplazarlo con elementos que
garantizaran un edificio unitario estilísticamente. Para ello, Laviña [o arquiteto da
primeira fase] debía ponerse en la piel del arquitecto medieval” (MIRAMBELL
ABANCÓ, 2016, p. 112).
Em verdade, o século XIX é marcado por contradições. Ainda que se perceba
maior intenção de preservação, com o despertar dos sinais de identidade no
patrimônio e com o fortalecimento da consciência das tutelas, trata-se de um período
de grandes perdas patrimoniais. Com o objetivo de evitar a dispersão que ocorria
de modo frequente, foi sancionado um decreto em 1854 que se converte num
marco para a realização de catálogos para a documentação e consequente mitigação

5  Processo de expropriação forçosa dos bens da Igreja Católica com o objetivo de enfrentar os altos custos
envolvidos na guerra contra os carlistas e como último recurso para recuperar os cofres públicos devido a perda das
colônias na América. O objetivo seria leiloar os bens para sanar as contas do Estado espanhol.

295
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

da evasão dos bens culturais do território espanhol. O inventário era concebido


como um instrumento adequado, no entanto, não havia pessoal qualificado para sua
efetivação. É, também, nesse cenário que nascem os primeiros museus espanhóis e
os primeiros organismos dedicados exclusivamente ao patrimônio, quais sejam as
Comisiones provinciales de monumentos.
A influência francesa na área de Conservação da Espanha, com ênfase na
pintura, emerge no período que coincide com a chegada de obras destinadas ao
Museu de Napoleão. As obras estavam bastante deterioradas e foram tratadas sob
a coordenação do Museu do Louvre, que, à época, já contava com equipamentos
e expertos na área, incluindo cientistas da conservação. Além do contato com
novos critérios e procedimentos, a possibilidade de acesso a publicações francesas
relacionadas ao tema é fator que atesta a influência francesa sobre a construção da
área na Espanha (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 264-265).
Na metade do século XIX, os atelieres dos museus se consolidaram como
principais centros de Restauração institucional. De acordo com Mirambell
Abancó (2016, p. 147), “Un fenómeno que nos lleva a un siglo de reglamentación y
jerarquías dentro de la profesión, mediante la convocatoria de plazas por oposición”,
especialmente em Madrid. Não obstante, os tratados de restauração, como os de
Vicente Poleró y Toledo, são publicados neste período. Importante destacar que esses
tratados, ademais de sistematizar os principais processos de restauração aplicados na
Espanha, seguiam uma abordagem mais moderna, a qual fomentava a conservação e
buscava difundir a ideia de intervenções menos invasivas ao contrário da prática de
seus contemporâneos (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 147)6.
O século XX , por sua vez, foi inaugurado na Espanha com uma base
relativamente sólida de instituições, museus e bibliotecas, além de ferramentas7,
como catálogos e inventários, cujo propósito era vencer os desafios impostos ao
patrimônio, como o tráfico ilegal e a Guerra Civil8 espanhola (1936-1939) que
gerou grande instabilidade em todas as áreas. Assim, a Segunda República Espanhola
já contava com uma normatização bastante ampla, tendo três ordenamentos
jurídicos fundamentais, o Real Decreto-Ley, de agosto de 1926, a Constituicion de
la II Republica, de 1931, e a Ley del Tesoro Artistico Nacional, de maio de 1933, esta
última vigente até 1985. Há particularidades no caso das primeiras leis no contexto
6  Poleró defende em seu tratado Arte de la Restauración (POLERÓ Y TOLEDO, 2018) que a Restauração deve
ser realizada por artistas especializados, embora ainda considere-a como uma atividade artística, rompendo com a
ideia de artista restaurador e dando o primeiro passo para a profissionalização do restaurador-artista.Trata-se de uma
obra, assim como a de Mariano de la Roca, que podemos qualificar como manuais que promovem o respeito pela
obra de arte, mas que geralmente utilizam na prática técnicas muito agressivas (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016,
p. 147).
7  Um exemplo é o Catalogo Monumental de España, estabelecido através de Real Decreto de junho de 1900.
8  A Guerra Civil trouxe muita destruição para o patrimônio espanhol, cujos alvos principais eram igrejas, conventos
e palácios. Ao fim da guerra, surgiu a necessidade de constituir uma história oficial que legitimasse o que foi
realizado, como argumenta Muñoz Cosme (1989, p. 113): “[…] las necesidades de propaganda política del régimen,
el deseo de crear un escenario monumental adecuado a la ideología dominante y una cierta ética paternalista de la
reconstrucción para remediar las destrucciones de la guerra, serán los factores que determinarán una mutación en
los principios que habrían de orientar la labor de conservación y protección del patrimonio, propiciando un cierto
monumentalismo y descuidando los aspectos de utilización y de veracidad histórica”.

296
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

espanhol. Tradicionalmente, as primeiras leis promulgadas em defesa do patrimônio


relacionam-se aos bens imóveis. Todavia, tanto o Decreto Lei de 1926, quanto a Lei
de 1933 apresentavam uma visão bastante ampla visto que

El decreto-ley incluía como parte del Tesoro Artístico Nacional no sólo a los monumentos, sino
también a sitios y lugares de reconocida y peculiar beleza. Por su parte, la Ley de 1933 hablaba de
cuantos inmuebles y objetos muebles de interés artístico, arqueológico, paleontológico o histórico
hubiera en España, aunque de antigüedad no menor a un siglo (ALVAREZ ALVAREZ, 1989, p. 97).

É também em meados dos anos 1930 que se impõe a ideia de uma Espanha
unificada através da ditadura franquista (1936-1975), a qual esteve diretamente
integrada com a Igreja Católica. No âmbito internacional, a Conferência
Internacional para a Conservação do Patrimônio histórico artístico e arqueológico,
que originou a Carta de Atenas de 1931, é um marco significativo que repercute
também na Espanha. No entanto, a área patrimonial sofre perdas significativas
durante o período da Guerra Civil. É deste período (1938) a criação do Servicio de
Defensa del Patrimonio Artístico Nacional – SDPAN, cuja missão era reparar, conservar
e reconstruir as propriedades artísticas danificadas durante a guerra, bem como
recuperar as obras de arte em posse do governo republicano. Este já havia criado, em
1936, alguns serviços de proteção de bens artísticos, qual seja a Junta de Incautación
y Protección del Patrimonio Artistico e suas delegações territoriais. O SDPAN finalizou
suas tarefas de recuperação em 1943, mas se manteve ativo como órgão encarregado
de restaurar obras de arte, passando a Comisaría General del Patrimonio Artístico
Nacional (1968-1974) e Comisaría Nacional del Patrimonio Artístico Nacional (1974-
1976). Em síntese, o cenário das competências em relação à defesa patrimonial se
modificou somente quando se restaura a democracia na Espanha, as quais foram
divididas enquanto atribuições do Ministerio de Cultura e das Consejerías de Cultura
das comunidades autônomas. Paradoxalmente, a lei republicana de 1933 regulou a
questão da conservação do patrimônio histórico espanhol durante todo o período
franquista.
Do ponto de vista da formação, a base na Espanha orientava-se para o campo
das artes até a tomada de consciência acerca da diferença entre o mètier de pintor
e o de conservador-restaurador. Na Catalunha, destaca-se a atuação de Manuel
Grau Mas, o qual fez parte do primeiro atelier de restauração oficial no Museu de la
Ciudadela de Barcelona (posteriormente denominado Museu de Arte da Catalunha),
no período republicano (1931-1939). O profissional ingressou na Real Academia
Catalã de Belas Artes de San Jorge de Barcelona com um discurso baseado na ideia
de reconhecimento da profissão de restaurador no mundo acadêmico, defendendo
que a restauração não era uma atividade criativa (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016,
p. 177).
Um dado importante na consolidação da área foi a Missão da UNESCO na
Espanha. Esta teve por objetivo a criação de um serviço de conservação e restauração
que respondesse aos princípios estabelecidos pelo organismo internacional, os quais
foram apresentados por Paul Coremans, em 1959, em texto que colocou as distintas

297
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

funções do Servicio Nacional de Preservación de los Bienes Culturales, cujos objetivos


mostram-se centrados:

[…] en la investigación, educación y exposición y conservación de los Bienes Culturales. Las


funciones de la sección de conservación incluyen laboratórios científicos y técnicos, talleres de
Restauración y centros de formación especializada además de los centros de formación superior ya
existentes (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 387).

Para cumprir com o objetivo de centralizar as tarefas de Conservação de bens


móveis pertencentes ao Patrimônio Histórico Espanhol, surgiu, em 1961, o Instituto
Central de Conservación y Restauración que funcionou, em sua primeira fase, em paralelo
com outras instituições. Em 1971, nasceu o Instituto de Conservación y Restauración de
Obras de Arte – ICROA. Posteriormente, com a criação do Ministério de Cultura,
surgiu também o Instituto de Conservación y Restauración de Bienes Culturales, através
do Real decreto de 24 de abril de 1985. Esse estava integrado ao ICROA e ao
Centro de Conservación y Micro filmación Documental y Bibliográfica – CECOMI e às
Subdirecciones Generales de Restauración de Monumentos y Arqueología. Somente através
dessa configuração institucional o país alcançou os ideais do Servicio Nacional de
Preservación de los Bienes Culturales preconizado pela UNESCO, em 1959.
O Instituto de Conservación y Restauración de Bienes Culturales transformou
substancialmente o panorama de formação do conservador-restaurador espanhol
e, por consequência, da área de Conservação, na medida em que, além de contar
com atelieres de restauração e laboratórios, converteu-o num espaço privilegiado
de estudo e difusão de documentação. Contemplou, também, a primeira biblioteca
especializada na área de Conservação da Espanha, bem como da publicação regular
de informes, materiais esses imprescindíveis e fundamentais para o desenvolvimento
da disciplina (RUIZ DE LACANAL, 2018, p. 390-391).
Portanto, até meados do século XX, a Administração Geral do Estado espanhol
contava com três organismos dedicados à conservação e restauração do Patrimônio
Cultura: os anteriormente mencionados SDPAN e ICROA e o Serviço Nacional
de Restauração de Livros e Documentos – SELIDO. Todos estes órgãos eram
herdeiros das funções exercidas pela primitiva Junta Superior do Tesouro Artístico,
criada por Lei específica, de 13/05/1933, ligada ao Patrimônio Artístico Nacional e
seu Regramento específico de 16/04/1936.
Cabe destacar, portanto, que, do ponto de vista legal, até o ano de 1985, o
patrimônio espanhol era regulado por uma lei básica,a de maio de 1933,anteriormente
mencionada. Embora tenha sido uma lei avançada em sua época, era “evidentemente
anticuada y excessivamente complicada por numerosas disposiciones. [...] Toda esta
reglamentación superpuesta creaba una situación de complicada coordinación,
escassa claridad y difícil seguridade jurídica” (FELIU FRANCH, 2003, p. 16). A Lei
de Patrimônio Histórico Espanhol de 1985 foi criada então para suprir a carência
normativa e promover inovações (SANTAMARINA CAMPOS; HERNÀNDEZ
I MARTÍ; MONCUSÍ FERRÉ, 2008, p. 214). De conteúdo atual e adequado às
normas internacionais, solucionava, desse modo, a tradicional preponderância do

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

patrimônio arquitetônico e “el absurdo requisito de la edad del patrimônio” (FELIU


FRANCH, 2003, p.16). Basicamente, essa lei define a proteção, o acréscimo e a
transmissão às gerações futuras do Patrimônio Histórico Espanhol9. Sob sua égide,
integra o patrimônio os imóveis e objetos móveis de interesse artístico, histórico,
paleontológico, arqueológico, etnográfico, científico ou técnico, assim como o
patrimônio documental e bibliográfico, os sítios e zonas arqueológicas, os sítios
naturais, jardins e parques com valor artístico, histórico ou antropológico. Por
último, manifesta a obrigação do inventário ou da declaração de interesse cultural,
cuja responsabilidade seria da administração do Estado (FELIU FRANCH, 2003, p.
16). A lei também determina a formação do Consejo del Patrimonio Histórico Español
que dispõe do assessoramento da Junta de Calificación, Valoración y Exportación
de Bienes del Patrimonio Histórico, das Reales Academias, das universidades, do
Consejo Superior de Investigaciones Científicas e outros organismos profissionais e
entidades culturais. É no cenário da promulgação da Lei de Patrimônio Histórico
Espanhol que, no mesmo ano de 1985, é criado o Instituto do Patrimônio Cultural
de Espanha – IPCE10, uma vice-direção geral anexada à Direção Geral de Belas
Artes, do Ministério de Cultura e Esporte. Cabe registrar, no entanto, que uma
das principais determinações da Lei de Patrimônio Histórico Espanhol de 1985
não foi cumprida em sua totalidade, qual seja, a de realização de um inventário
“que dificultaria la destrucción y desaparición del patrimônio español” (FELIU
FRANCH, 2003, p.23). Feliu Franch (2003, p. 23) ainda adverte:

La mayoria de países europeos disponen de un inventario desde hace decenas de años, mientras
que más del cuarenta por ciento de los tesoros artísticos españoles continúan sin poseer esta
mínima garantia. El desconocimiento de lo que España posee, se agrava ante la dispersión del
patrimônio [...] y ante la falta de médios de protección [...] las desapariciones del patrimônio
continúan passando desapercebidas, y aún conosiéndose, no se sabe en qué basar su reclamación.

A exemplo do IPCE em nível nacional, no contexto da Andaluzia a


responsabilidade pela catalogação dos bens culturais da região está sob a
responsabilidade do Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico – IAPH. A instituição
foi, e permanece sendo, uma referência internacional na área patrimonial, muito
embora receba algumas críticas especialmente relacionadas à sua forma de atuação.
Trata-se de uma entidade ligada à Consejería de Cultura da Junta de Andalucía, dedicada
ao patrimônio cultural desde 1989, havendo sido convertida em agência pública em
2007 e acreditada como instituto de investigação a partir de 2011. Tal instituição
participa da geração de conhecimento na área patrimonial e colabora com as
9  Curiosamente essa lei retirou de seu título os termos “Cultural y Artístico”, fazendo com que seu título não esteja
devidamente condizente com seu conteúdo.
10  A missão do IPCE é pesquisa, conservação e restauração do Patrimônio Cultural da Espanha. O órgão possui
uma equipe multidisciplinar composta, dentre outros, por arquitetos, arqueólogos, etnógrafos, conservadores-
restauradores, físicos, geólogos, químicos, biólogos, documentalistas, cientistas da computação, bibliotecários,
arquivistas e curadores, cujo propósito é atender ao compromisso social, de natureza constitucional, da
Administração Geral do Estado, juntamente com o resto das Administrações Públicas, no que tange à preservação
e ao enriquecimento do Patrimônio Cultural espanhol (Informações da página eletrônica oficial da instituição).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

políticas culturais da região andaluza. Ademais, com o objetivo de desenvolver e


atualizar critérios, metodologias e protocolos, o IAPH registra, analisa e difunde
informação sobre o patrimônio cultural, investigando teorias, métodos e técnicas
aplicadas à sua documentação, executando projetos interdisciplinares de conservação
e patrimonialização de bens móveis e imóveis. Oferece, igualmente, serviços
especializados de assessoramento e análise, proporcionando uma ampla oferta
formativa destinada a melhorar as capacidades do setor profissional andaluz11. Assim
como as demais comunidades autônomas, a Andaluzia possui normas que regulam
o setor patrimonial, como a Lei 7/2011 que dispõe sobre documentos, arquivos e
patrimônio documental, a Lei 8/2007, sobre Museus e Coleções de Museus, a Lei
16/2003, do Sistema Andaluz de Bibliotecas e Centros de Documentação, a Lei
14/2007, que regulamenta o Patrimônio Histórico e o Decreto 168/2003, que
aprova o Regulamento de Atividades Arqueológicas (IPCE, 2019).
Entretanto, no que se refere à instrução formal para a área de Conservação do
patrimônio, foi somente em meados do século XX que a formação foi incluída no
ambiente educativo das artes, sendo que o ensino em Conservação e Restauração
de Obras de Arte como especialidade só ocorreu após 1978, quando as Escuelas
Superiores de Bellas Artes se converteram em Facultades Universitarias, implantação
que se deu em diferentes datas nas distintas instituições do gênero (RUIZ DE
LACANAL, 2018, p. 378).
Destacamos que, atualmente, a formação do conservador-restaurador12 na
Espanha é regulada tanto através de titulações das Escuelas Superiores Artísticas como
através das Facultades, sendo que as normativas educativas vigentes obedecem ao Real
Decreto 635/201013 (ESPANHA, 2010), de 14 de maio, o qual regula o conteúdo
básico dos ensinos artísticos superiores do Grado en Conservación y Restauración de
Bienes Culturales. O país conta com diversos cursos de formação em Conservação e
Restauração o que, se por um lado, populariza a área, por outro, cria um mercado
de trabalho repleto de tensões em virtude da profissão não ser regulamentada, sendo
esta uma luta de vários anos dos profissionais da área. Os profissionais conservadores-
restauradores na Espanha vinculam-se ao Colégio Oficial de Doutores e Licenciados
em Belas Artes14, fruto das origens da formação profissional vinculada às Belas Artes.
11  Informações obtidas junto à página oficial do Instituto Andaluz do Patrimônio (IAPH, 2019).
12  As competências necessárias para acessar a profissão de conservador-restaurador são dadas pela European
Confederation of Conservator-Restorers’ Organizations – ECCO, cuja publicação data de 2013. Para mais informações,
ver a página eletrônica da ECCO: <http://www.ecco-eu.org>.
13  O Real Decreto 635/2010 obedece também: às regras gerais de Educação dadas pela Ley Orgánica 2/2006, de
3 de maio; à Lei Orgânica 6/2001, de 21 de dezembro, que trata das funções e da autonomia das Universidades; e ao
Real Decreto 1393/2007, de 29 de outubro, que estabelece a organização da educação universitária oficial. Este real
decreto tem como referência as linhas gerais definidas pelo Espaço Europeu de Educação Superior – EEES, cujos
objetivos estratégicos são o incremento do emprego na União Europeia e a conversão do sistema de ensino superior
europeu em polo de atração para estudantes e professores de outras partes do mundo. O EEES tem como base a
Declaração de Bolonha, a qual possui caráter eminentemente político.Trata esta declaração de um acordo que inclui
29 países integrantes da União Europeia além da Rússia e da Turquia, firmado em junho de 1999, cujo objetivo
é fortalecer e fomentar a educação superior na Europa, garantindo, através de um caráter unificador, a liberdade
competitiva e a abertura do ensino superior, facilitando o translado de estudantes, professores e pesquisadores.
14  Os Colégios na Espanha são organismos equivalentes aos Conselhos profissionais no âmbito brasileiro, com a

300
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O fato da profissão de conservador-restaurador não estar regulamentada é um dos


fatores responsáveis, ainda no século XXI, pela ocorrência de atuações desastrosas,
como no caso do emblemático “Ecce Homo” de Borja, pequena cidade próxima a
Zaragoza, ocorrido em 2012, ou ainda mais recentemente a restauração da imagem
de São Jorge pertencente à Igreja de mesmo nome do município de Estella, região de
Navarra. Ambos os casos são resultado da atuação de pessoas despreparadas, embora
bem-intencionadas, o que denota certa ineficácia da lei de patrimônio espanhola
e a urgência da regulamentação do profissional conservador-restaurador neste país
europeu. São atuações que colocam em xeque o status quo e o cenário político, além
da questão ética que afeta a área, a qual depende também de interlocução com o
tecido social. Eis que, ao fim e ao cabo, é a sociedade o palco do patrimônio e é
para ela que se preserva. Nesse sentido, coincidimos com Gonzales-Varas quando
reitera que

La evolución de los acontecimentos históricos sucedidos durante estas últimas décadas, que
tambien han sido las primeras de un nuevo siglo e incluso podemos aventurar que las de una
nueva era, nos lleva a la necesidad de reafirmar y profundizar en este compromisso ético que, en
efecto, comporta la tarea de velar no solo por la conservación y preservación del patrimônio cultural
sino incluso, mas allá, por la necesidad de renovar constantemente el sentido y significado que el
passado y la memoria, el patrimônio cultural, asumen en nuestras sociedades (GONZÁLES-VARAS,
2018, p. 15).

Por fim, cumpre-nos destacar que este trabalho não se esgota nestas páginas,
ainda que tenha cumprido com seus objetivos de trazer um panorama geral do
percurso da área do patrimônio no contexto Espanhol. Em certa medida, fatos,
como os mencionados acima, ocorridos em Borja e Estella, também demonstram
que a fragilidade da área não é privilégio de países como o Brasil, cuja trajetória na
preservação do patrimônio carece de tradição assim como de efetividade legal.Assim,
pode-se afirmar que, embora a Espanha esteja atualmente integrada ao panorama
cultural europeu, abordando o patrimônio e suas metodologias através da área de
Conservação como um campo do conhecimento e uma atividade eminentemente
transversal e identificada com os princípios do Tratado de Bolonha, percebe-se
que, tal como ocorre no Brasil, há um longo percurso a ser transposto para que as
questões patrimoniais sejam efetivamente colocadas como prioridade tanto pelo
estado como, particularmente, pelo conjunto da sociedade.

particularidade que lá não há a obrigatoriedade de vinculação de seus profissionais para o exercício profissional, tal
como ocorre no Brasil. A Espanha ainda conta com Associações de profissionais, tais como a Asociación Profesional
de Conservadores Restauradores de España – ACRE, que está igualmente imbuída da missão de exigir a regulação
da profissão.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

REFERÊNCIAS

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de las enseñanzas artísticas superiores de Grado en Conservación y Restauración de Bienes
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Oficial del Estado – BOE, Madrid, n. 137, 5 jun. 2010. Disponível em: <https://www.boe.
es/eli/es/rd/2010/05/14/635/con> Acesso em: 29 jun. 2019.
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Disponível em: <http://www.culturaydeporte.gob.es/planes-nacionales/bibliografia-y-
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www.dicio.com.br/mimetismo/> Acesso em: 26 jun. 2019.
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conservación de cuadros. Sevilla: Athenaica Ediciones Universitarias, 2018.
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Sevilla, 2018.
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MONCUSÍ FERRÉ, Albert. Patrimonio etnológico e identidades en españa: un estudio
comparativo a través de la legislación. In: Revista de Antropología Experimental, Jaén,
nº 8, 2008.

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RELAÇÕES FAMILIARES NO OFÍCIO DE


BENZER: UMA NARRATIVA DOS PRATICANTES
EM SÃO MIGUEL DAS MISSÕES/RS
JULIANI BORCHARDT DA SILVA1
RONALDO BERNARDINO COLVERO2
EDUARDO KNACK3

Ao que se percebe, a trajetória de cada indivíduo parece ser determinante


na constituição das representações memoriais e de reconhecimento, construídas
estrategicamente como marcadores das referências identitárias, bem como das
relações a serem formadas junto aos outros e ao ambiente circunscrito, o qual envolve
elementos naturais e edificados socialmente, expressões humanas que caracterizam
possibilidades de processos culturais e escolhas tomadas no interior dos grupos,
influenciando e orientando suas características e atuações.
A família, como primeiro grupo social de referência, é ambiente construído,
no qual se compartilham conhecimentos e se estabelecem as noções iniciais que
permeiam a vida em coletividade. Pesa, assim, a definição de valores e práticas a serem
constituídos, tais como a própria noção de família, trabalho, amor, violência, morte,
sexo, sendo que, para Sanchis (2008, p. 74), estas significações, para cada indivíduo
em seu processo de escolha, podem ser diferentes. Assim, a cultura, para o autor,
não é uma construção isolada, mas uma criação coletiva, transmitida via educação
e tradição, parecendo aos membros que a produzem e compartilham um universo
“natural”. Considera-se ainda que, longe de ser um ambiente de simples reprodução,
os grupos que se relacionam entre si descobrem no outro os contrastes existentes
em seus próprios valores, o que provoca, dentre outros aspectos, o reconhecimento
de suas próprias lógicas.
Desta forma, é a partir da família que o sujeito se identifica e, sendo este o
primeiro grupo a seu alcance, nele se esboçam trocas emocionais e de experiências que,
além de influenciarem na formação das identidades, possibilitam o desenvolvimento
1  Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural – Universidade Federal de Pelotas/UFPEL. E-mail:
[email protected]
2  Doutor em história. Professor do PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural. E-mail: rbcolvero@gmail.
com
3  Doutor em história. Professor do PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural. E-mail: knackeduardo@
gmail.com

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

do sentido de pertencimento. Para Connerton (1999, p. 40-41) é na pertença a um


grupo, como a família, que os sujeitos são capazes de “adquirir, localizar e evocar suas
memórias”. As identidades então construídas caracterizariam um ponto de partida
do qual os indivíduos constituiriam o conceito de si mesmos, experimentando a
multiplicidade de identidades e os papéis sociais que adotarão ao longo de suas vidas
nos distintos espaços e grupos dos quais fizerem parte (MADERS; WEBER, 2018,
p. 04). Nesta mesma perspectiva, Camargo (1991, p. 62) reforça que:

Ao mesmo tempo na família ocorre a transmissão de valores materiais, culturais, morais, religiosos
e outros nem tanto pelo ensino, mas muito mais pela vivência; e assim intensifica-se o processo
da educação para a liberdade e a responsabilidade, criando condições para escolhas dos melhores
meios para a realização da própria pessoa, e, finalmente, o indivíduo tem uma retaguarda mais
firme para introduzir-se nos vários setores da sociedade como escola, trabalho, lazer, religião, etc.

A transmissão é marcada, nas palavras do autor, como elemento chave


do processo familiar, do qual se compartilham e sustentam as representações
vivenciadas e modeladas pelo grupo. Muito do aprendizado não é, como bem
explica, ensinado de forma direta, sendo endossado por intermédio da convivência,
observação e significação informal entre seus membros. Assim sendo, Bordieu (2001,
p. 09) defende que a produção simbólica produzida culturalmente é sistema de
comunicação e conhecimento que estrutura as realidades numa ordem lógica ao
coletivo. Desta maneira, segundo o autor, cumpre-se ainda uma função política
por meio dos sistemas simbólicos produzidos, ao passo que os mesmos impõem ou
legitimam relações de poder e dominação de um grupo perante outro, expondo
assim interesses que definirão as posições sociais das relações estabelecidas entre os
indivíduos e coletivos.
Como bem defende Sanchis (2008, p. 78), novos acontecimentos e situações
ocorrem o tempo todo no interior dos grupos, fazendo-os reagir criativamente,
desenvolvendo como conseqüência “novas situações” que promovem adaptação,
mudança e inovação. Pollak (1992, p. 204) referencia ainda que ninguém é capaz
de produzir uma autoimagem isenta de mudança, de negociações e transformações
diante dos outros. Pode-se aduzir que, nesse processo, a cultura se transforme e se
reforce cada vez mais em pequenos grupos, como a família, por exemplo.
Importante ainda considerar a relação conflituosa existente entre memória
e identidade, ao passo que disputas se tornam árduas no reconhecimento e nos
investimentos a serem produzidos coletivamente no trabalho de definição colocado
como referência ao grupo. Sá (2007, p. 08) compactua com esta ideia ao afirmar que
a determinação sócio cultural da memória não envolve a consideração apenas de
processos de construção sócio cognitiva da realidade, mas também da modelação dos
interesses que variam também por questões afetivas. Nesta direção, Pollak (1992, p.
204) ressalta ainda os processos de negociações que envolvem memória e identidade,
os quais não devem ser vislumbrados como essências de uma pessoa ou um grupo.
É imprescindível, portanto, compreender as relações estabelecidas entre
os benzedores da localidade Miguelina no que se refere aos vínculos familiares

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rememorados na atualidade, a fim de vislumbrar, através da oralidade, marcas


produzidas assim como influências em cada indivíduo em sua formação identitária
enquanto benzedor. Em entrevistas realizadas, procurou-se a produção de uma
escuta que contemplasse as realidades vivenciadas por sujeitos advindos, em sua
grande maioria, de localidades interioranas da região missioneira, de modo a extrair,
dos mesmos, memórias que representem marcas de suas vidas. É o que expressa, por
exemplo, a benzedeira Rosa Maria Cortez do Nascimento4:

Rosa: O pai era uma pessoa que só trabalhava na lavoura. Era uma pessoa bruta. Meu pai era uma
pessoa muito bruta com a gente, muito enérgico e hoje eu vejo que não precisava existir aquilo.
Mas existia. E eu acho que Deus fez aquilo pra dobrar ele porque ele era uma pessoa ignorante,
bruta e que não acreditava em nada. Então a minha mãe sempre dizia “credo Turíbio porque fazer
isso”. Era bruto, era bravo.
[...]
Ele passou dias e dias, semanas e semanas, que ele não comeu, que quase não dormiu, que
passou encerrado fazendo orações de joelho pedindo e aquilo dali transformou ele assim do nada.
Ele começou a enxergar mais as pessoas e ajudar mais as pessoas (ROSA MARIA CORTEZ DO
NASCIMENTO, 2018).

Rosa, ao longo da entrevista, manifesta em sua narrativa as mudanças que seu


pai teria passado, sendo ela participante e testemunha desses momentos, quando
ele destaca o desejo repentino em começar a ajudar as pessoas. Para isso, Turíbio
teria realizado uma espécie de purificação para que merecesse bênçãos e o dom
da cura. Após esse episódio, Turíbio Cortez, seu pai, instaura um centro espírita e
de umbanda na localidade em que residia, São Lourenço, interior do município de
São Luiz Gonzaga. Nesse quadro, seu pai teria deixado de ser um homem bruto, se
tornando num “anjo” e “tronco” destas práticas na região. Para Rosa, essa mudança
foi ocasionada pela provação da qual ele necessitava passar para evoluir como ser
humano e homem.
Lembranças como essa fazem com que a entrevistada exalte a imagem do pai
como homem que passa a atender e cuidar das pessoas, tornando-se referência na
região através de seu centro e das visões espíritas que possuía. Assim, Rosa passa
a acompanhar o mesmo nas atividades vindo a ser seu braço direito nas ações do
espaço de fé então criado. Relata que parou com este ofício após se casar e ter que
se dedicar ao marido e seus seis filhos. Turíbio, que, segundo Rosa, dentre outras
coisas, benzia para lavoura e pragas, era solicitado por muitos na localidade. Essa
referência aponta ao ambiente vivido pela entrevistada e sua família na época, quer
seja, a de uma localidade interiorana e do trabalho na agricultura basicamente para
a subsistência.
Identifica-se, desta maneira, a necessidade de uma prática espiritual no contexto
apresentado pela entrevistada. A fé que passa a ser desempenhada por seu pai se
torna influência para a superação dos momentos difíceis, os quais se destacam em

4  Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Rosa, São Miguel das Missões/RS.

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sua infância e juventude. A recorrente palavra “bruto”, manifestada em sua fala,


contrapõe o surgimento de uma pessoa com atitudes diferentes dessa. Caracteriza,
portanto, a iniciação de seu pai nas práticas espirituais como um ritual de passagem
necessário e que, de alguma forma, o legitima como tal. Apesar disso, as ações
desse no seio da família são marcas apresentadas por Rosa, fato que rememora na
atualidade num discurso mais “bonito” para a figura de Turíbio.
Semelhante realidade aparece também na fala de Romilda de Moraes5 quando
indagada sobre sua vida na infância:

Romilda: Era boa! Era boa, eles não era ruim pra gente não. Só se agente desobedecia daí o relho
pegava senão era uma maravilha. (silêncio)
[...]
Barbaridade, Deus me livre. Tinha que ir pra roça trabalhar desde os oito anos. E se não fosse a vara
pegava. Eu pegava até no arado do boi, boi xucro, tenho o sinal aqui oh (mostra uma cicatriz na
perna).(silêncio).Tu conhece um arado de boi filha? Agora eu fico olhando, os novo não estão mais
igual a gente não (ROMILDA DE MORAES, 2017).

Romilda traz relatos de uma realidade na qual a infância inexiste. Sua mãe
falece aos 42 anos de idade deixando três filhos pequenos para serem criados pelo
pai, que, igualmente ao caso de Rosa, era rígido e violento na criação das crianças.
Os contextos do trabalho e da necessidade permeiam este período narrado
pela entrevistada, cujas marcas não apenas foram gravadas na memória, mas também
no corpo, como a cicatriz produzida quando de acidente com arado de boi na
lavoura. Silêncios e pausas durante a entrevista, quando da abordagem deste tema,
caracterizam ressignificação de memórias dolorosas das quais Romilda não sente falta
na atualidade. A reconstrução memorial destes fatos é, segundo Candau (2012, p. 09),
mais do que uma tentativa de reconstrução fiel do passado, mas o enquadramento
desses a fim de alcançá-los quando necessário bem como de conviver com os
mesmos na atualidade. Assim, uma nova imagem pode ser construída, incluindo
ou excluindo elementos que, como ainda pensa Caudau (2012, p. 16), também
modelam as identidades dos indivíduos. Como bem lembra o autor, assim como
memórias auxiliam na construção de identidades, da mesma forma, possuem o
poder de arruinar o sentimento que se tem por elas.
Romilda se faz benzedeira desde os seus trinta anos de idade e inicia sua
atividade após um câncer do qual teria se curado após súplicas a Deus. Apesar de
ter buscado suporte médico científico bem como realizado cirurgia para a retirada
do tumor que lhe afetava a mama, conta que seus pais eram benzedores. Ambos,
praticantes do espiritismo, teriam-na incentivado a aprender o ofício, mas a mesma
relutante expressava aos mesmos que tudo aquilo era “amolação e que desejava
aprender a trabalhar”6. Como ponto marcante em sua vida relata ainda que foi
praticamente forçada a casar:

5  Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes, São Miguel das Missões/RS.
6  Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moares, São Miguel das Missões/RS.

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Romilda: Foi meu pai que queria e naquele tempo era o pai que mandava e não tinha de não querer.
Juliani: Com que idade foi isso?
Romilda: Com dezoito anos. Era o ritual daquilo, todos. Tinha que sair de casa (ROMILDA DE
MORAES, 2017).

Expõe-se, desta forma, um contexto em que a vida da mulher era determinada


pela figura masculina do pai, já que a entrevistada necessitou casar para sair de casa,
provavelmente por aspectos financeiros, viabilizando seu sustento e estabilidade para
um futuro. Traz esse aspecto como um ritual necessário a ser realizado, ao mesmo
tempo em que indica que esta também era a realidade de outras jovens à época, as
quais saíam do controle do pai para a obediência ao marido, quer seja, de outra figura
masculina. O casamento gera três filhos, entretanto, a relação não dura, pois, segundo
a entrevistada conta, “por não agüentar e ser ruim”7. Com a separação, muda-se de
Caibaté/RS para a localidade de Carajá, interior do município de Entre-Ijuís/RS,
onde parou de benzer, pois possuía residência que se localizava distante de outras, o
que dificultava o convívio e as relações interpessoais.
Uma vez separada e residindo a cerca de dez quilômetros de distância de
outras residências, permanece em torno de dez anos trabalhando numa fazenda
como cozinheira para peões, deixando de exercer diretamente seus benzimentos.
Manifesta, porém, que não sofreu diante dessa situação, provavelmente por estar,
apesar das dificuldades, numa situação melhor daquela vivida anteriormente.
Outra situação semelhante também é apresentada por Jovencilio do Nascimento8
quando questionado sobre sua infância:

Jovencilio: Ah foi sofrida!


Juliani: Sofrida como?
Jovencilio: Agente só trabalhava, não tinha muito tempo de passear, era bem diferente do que é
hoje. Naquele tempo crescia um pouco e já trabalhava, não tinha de jogar bola, futebol nem existia
naquela época. Brinquedo essas coisas não existia (JOVENCILO DO NASCIMENTO, 2018).

Desse modo, apresenta uma realidade na qual as dificuldades permeiam


suas vivências. Aspectos relacionados à necessidade do trabalho se fazem presente
refletindo em suas principais experiências quando criança junto com seus outros
três irmãos. Isso acarreta, dentre outras coisas, a falta de estudo resultante do período.
Questionado sobre o assunto, justifica que:

Jovencilio: Eu estudei até o terceiro ano sabe por quê? Porque naquela época não tinha um ano pra
estudar uma matéria então tu tinha o livro pra estudar, tu lia aquele livro e aí tava pronto o livro
e passava pro segundo, passava pro terceiro, pro quarto e se quisesse fazer num ano tudo podia.
Hoje não, se tu tá no primeiro ano tu passa um ano no primeiro ano, depois outro ano no segundo

7  Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes, São Miguel das Missões/
RS.
8  Entrevista realizada em 26 de março de 2018 na residência de Jovencilio do Nascimento, interior de São Miguel
das Missões/RS.

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ano e assim por diante. Aquele tempo não, era diferente, agente começava a estudar então tinha o
livro, estudou aquele livro passava pro segundo e assim era (JOVENCILO DO NASCIMENTO, 2018).

Jovencilio desenvolve uma narrativa para justificar a falta de estudo, não


relacionando diretamente a falta de acesso à educação por motivos relacionados
ao trabalho, recursos financeiros ou da inexistência de escolas. Desenvolve, assim,
como já dito antes, um enquadramento de memórias com o qual possa conviver
atualmente, evitando, por exemplo, sofrimento. Ao mesmo tempo, contextualiza a
educação existente à época de sua infância, quando livros e manuais são utilizados
como base da educação de crianças e jovens, cenário este no qual os profissionais
existentes para atuação no ensino eram praticamente inexistentes. Reflete, assim,
uma sociedade de poucos letrados, em que o analfabetismo apontava altos índices
no país.
A benzedeira Marlene Machado Cassiano relata também aspectos relacionados
à sua infância:

Marlene: Era difícil, mas era boa. Todo mundo trabalhava. O meu pai era serrador e tinha uma
serraria então a gente tinha que puxar água pra colocar na caixa pra tocar a serra. Nós era tudo
pequeno, uns cinco ano e já ajudava tudo. A gente meio ajudava e trabalhava (MARLENE MACHADO
CASSIANO, 2017).

A dicotomia apresentada na narrativa, em que sua infância teria sido “difícil,


mas boa”, expõe uma compreensão de que a avaliação representada desse período
busca ativar uma memória que amenize as dificuldades vividas. Permite como
conseqüência, conforme defende Candau (2012, p. 141), que os indivíduos
reelaborem e narrem suas próprias histórias, o que pode ainda confrontar com a
de outros membros do grupo familiar. Assim sendo, faz com que os indivíduos
produzam uma autoimagem e outra do grupo familiar ao qual fazem parte. Como
ainda destaca Candau (2012, p. 143), a prosopopéia memorial, por exemplo, mascara
defeitos e enaltece qualidades. Característica assim é também vislumbrada na fala de
Cipriano Dornelles9:

Cipriano: Na época o pai era muito cruel no ensinamento. Não tinha estudo, mas tu apanhava pra
aprender a respeitar os outros, ser uma pessoa digna. Não podia aparecer quando tinha bastante
gente e num olhar tu sabia e não podia interferir nas conversas dos mais velhos. Levantava a
cadeira pros mais velhos e era assim o ensinamento. Agora em dia tá tudo diferente não respeitam
mais (CIPRIANO DORNELES, 2017).

A rigidez na criação é manifestada de forma positiva, sendo para Cipriano


necessária a seu aprendizado. Através do “apanhar”, transformou-se em uma “pessoa
digna”, o que na atualidade seria diferente, já que os mais novos não teriam o mesmo
respeito aos mais velhos. A violência caracteriza assim o meio pelo qual a educação
9  Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na Residência de Cipriano Dornelles, São Miguel das Missões/
RS.

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se efetivava, elemento presente também nas narrativas e memórias de outros sujeitos


(Laídes de Oliveira Leite, 2017,Aureliano José Jardim, 2018 e Alzira de Oliveira Leite,
2018). Cipriano transita com sua narrativa entre passado e presente, remontando ao
tempo em busca de respostas a suas inquietações. Demonstra, ao mesmo tempo, uma
tentativa de superação do sofrimento, colocando as marcas que dela são resultado no
passado como autoridade e referência em sua vida no presente.
Por ter começado a trabalhar aos oito anos de idade para ajudar seu pai a “trazer
o dinheiro para a mãe”, Cipriano não freqüentou a escola, retrucando para isso que:

Cipriano: A pessoa pra ser inteligente não precisa de grande escolaridade, pelo menos no meu
modo de pensar. A pessoa pode não ter estudo, mas é inteligente, tu não consegue passar a perna
nele ou ser manipulado. A pessoa não tem estudo, mas tem uma boa cabeça (CIPRIANO DORNELES,
2017).

Manipula desta feita sua própria realidade, fazendo da necessidade um fator


positivo para sua vida, em que, apesar de não ter estudado, se construiu como pessoa
inteligente graças à sua “cabeça”, característica resultante da criação que recebeu dos
pais. Assim não poderia ser enganado e manipulado, sendo esta habilidade elemento
necessário à vida de uma pessoa, em especial no contexto em que viveu Cipriano.
É ainda nessa linha de experiências que a benzedeira Laídes Dutra da Silva10
apresenta:

Laídes: Eu sempre to falando pra essa juventude, nós era dez filhos e minha mãe não se incomodava,
meu pai não se incomodava, era mesmo que não ter. Era serviço e serviço e só! Rezava pra chegar
o sábado (silêncio) (LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).

Apresenta as características rememoradas de sua infância, quando, apesar de ter


mais nove irmãos, os pais mantinham o controle sobre todos, que eram obedientes
e trabalhadores. Laídes, assim como Cipriano, tenta trazer essa vivência à atualidade
quando busca reproduzir, em seu discurso, que a educação do passado é melhor do
que a do presente. Relembra ainda episódios referentes às ações vividas aos sábados,
em que aspectos de sociabilidade através do trabalho aparecem como fio condutor
das relações familiares:

Laídes: No sábado nós varria tudo os terreiro e fazia limpeza, matava porco, matava galinha, era
coisa mais linda do mundo pra mim era o sábado! Natal então a gente nem sabia! A mãe dizia
“essa semana é natal crianças! Temos que lidar com as bolacha”. Tudo caseiro mulher, tudo, coisa
mais boa, que vida! A gente era pobre, feliz, mas não sabia! (LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).

O silêncio de Laídes seleciona elementos memoriais classificados e devidamente


organizados, passo este que possui a capacidade de representar de forma alegre
e nostálgica o cotidiano de pobreza e do trabalho. Mobiliza desta forma a trama

10  Entrevista realizada em 19 de junho de 2017 na residência de Laídes Dutra da Silva, São Miguel das Missões/RS.

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narrativa de maneira significativa em sua vida, em que o passado apresenta sentidos de


pertencimento e de legado, os quais são necessários lembrar no presente. Connerton
(1999, p. 41) reflete neste sentido que toda recordação, por mais pessoal que possa
ser, relaciona-se com um conjunto, de ideias, pessoas, lugares, datas, palavras, do qual
o sujeito faz parte, ou seja, com toda vida material e moral que a influencia.
Há também aqueles que diretamente manifestam que sua infância foi boa,
como no caso de Ordonesa Antunes Martins11: “Ordonesa: Foi boa né? (silêncio)
E graças a Deus que até agora tudo foi bom pra mim, sempre lutando, ajudando,
trabalhando numa casa ou outra (ORDONESA ANTUNES MARTINS, 2018).
Denota-se,na fala de Ordonesa,uma posição enfática quando do questionamento
sobre sua infância, apesar de efetuar silêncios e desviar o foco de seu olhar no
momento em que responde à pergunta e participa da entrevista. É direta e rápida
na explicação e busca logo mudar de assunto, deixando claro, em sua ação, que
não se sente confortável em abordar a temática. Isto porque, ao afirmar que sua
infância foi boa, apesar do trabalho e da luta, garante que o entrevistador não seguirá
questionando o assunto. Conta ainda que estudou apenas durante um ano, pois seu
pai foi trabalhar numa fazenda em que não existia escola perto, não sendo assim a
educação escolar temática em sua vida.
De uma família com doze irmãos, sua mãe, que também era benzedeira,
falece aos quarenta anos de idade, vítima de câncer. Ordonesa fica com o pai e os
irmãos, dos quais auxilia na criação. Sua vida de trabalho necessita ser mantida até a
atualidade, pois, mesmo com oitenta anos de idade e aposentada, relata que, quando
pode, trabalha como doméstica numa casa de família. Reproduz, portanto, a prática
que sempre necessitou realizar ao longo de sua vida: o trabalho, já que ficar parada,
segundo suas palavras, “faz mal [...] e não consigo”. A superação das dificuldades é
também manifestada quando narra que:

Ordonesa: Depois que morreu meu marido fiquei só eu pra trabalhar e o gurizinho era pequeno e
eu levava ele no bercinho e botava ele na sombra na casa da mulher que eu ia trabalhar. Daí eu
ia lavar roupa, trabalhar, limpar a casa pra ela. E assim nós vivemos. Mas graças a Deus nunca me
faltou nada na minha casa, sempre com o congelador sempre cheio de tudo que era coisa de comer.
Graças a Deus nós trabalhava (ORDONESA ANTUNES MARTINS, 2018).

O menino ao qual a entrevistada se refere é seu neto, filho de sua filha de criação.
Após a morte do marido, precisa trabalhar para sustentar ambos, referenciando que,
desta forma, nunca teria faltado nada em sua casa. O trabalho é assim, também,
definição da posição social ocupada, conduzindo desta maneira conflitos, práticas
sociais e produções simbólicas, as quais, segundo Bordieu (2001, p. 14), confirmam
ou transformam as visões de mundo construídas entre os sujeitos, seja pela força ou
pelo reconhecimento decorrentes de sua prática profissional. Portanto, conforme
reforça o autor, estrutura-se um poder de construção da realidade, o que legitima e
domina uma classe sobre a outra.

11  Entrevista realizada em 23 de março 2018 na residência de Ordonesa Antunes Martins, São Miguel das
Missões/RS.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Relações de trabalho e de educação igualmente são expressas pelo benzedor


Ouriques Garcia de Jesus12: “Desde os seis anos, carpindo, plantando milho,
envergando terra com arado de boi, amansando boi, tropiei, tudo isso eu fiz pra
sobreviver. Tinha que fazer, a vida era essa” (OURIQUES GARCIA DE JESUS,
2017).
O reconhecimento dos fatos expostos pelos interlocutores desta pesquisa,
ou seja, parte dos benzedores que atuam nos dias atuais na localidade Miguelina,
caracteriza vivências sobre as quais refletem e formulam a história de vida de cada
um. A família, como espaço produtor e reprodutor de práticas sociais, igualmente
auxilia na constituição das identidades a serem vividas por cada indivíduo ao
longo de sua vida. Assim, denota-se, nas expressões compartilhadas, que o período
de infância e juventude destes sujeitos, em sua grande maioria, foi marcado pelo
trabalho e pela rigidez da educação.
A falta da educação formal, ou seja, a da escola é elemento marcador na
realidade de praticamente todos, sendo isso, provavelmente, determinante para as
posições sociais ocupadas na atualidade por esses sujeitos. Todos esses fatores, os
quais parecem pouco, determinam, direta e indiretamente, o lugar que cada um
ocupará no mundo, bem como a forma como se relacionarão com os outros, com
a sociedade e com sua família. Assim sendo, pode-se indicar, ao mesmo tempo, que
o vivido pelos interlocutores e o manifestado através de suas narrativas auxiliam
na construção da imagem que os mesmos desempenham enquanto benzedores na
localidade Miguelina.

REFERÊNCIAS

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz (português de


Portugal). 4. ed. Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2001.
CAMARGO, Marculino. Valores e Experiência humana: ideais e desafios da vida e da
morte. Petrópolis, RJ:Vozes, 1991.
CANDAU, Joël. Memória e Identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
SÁ, C. P. de. Sobre o campo de estudo da memória social: uma perspectiva psicossocial.
Psicologia: Reflexão & Critica, 2007.
CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora, 1999.
POLLAK, Michel. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n. 10, 1992, p. 200-212.
SANCHIS, Pierre. Cultura brasileira e religião... Passado e atualidade... Cadernos
Ceru, série 2, v. 19, n. 2, dezembro de 2008.

12  Entrevista realizada em 31 de dezembro 2017 na sede da Secretaria Municipal de Turismo de São Miguel
durante a realização do Encontro de Benzedores. São Miguel das Missões/RS.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

FONTES ORAIS:

Aureliano José Jardim


Alzira de Oliveira Leite
Cipriano Dornelles
Jovencilio do Nascimento
Laídes Dutra da Silva
Marlene Machado Cassiano
Ordonesa Antunes Martins
Ouriques de Jesus
Romilda de Moraes
Rosa Maria Cortez

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

IV- MEMÓRIAS DIFÍCEIS

(FOTO OU IMAGEM SOBRE O TEMA)

IV - MEMÓRIAS DIFÍCEIS

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

NAVEGANDO PELO LÉTHÊ: NAS MARGENS DO


ESQUECIMENTO
EDUARDO ROBERTO JORDÃO KNACK1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na Grécia Antiga, o dom da memória era fornecido por Mnemósine aos


poetas para narrar os feitos dos deuses e heróis. “No contexto mítico, recordar
significa resgatar um momento originário e torná-lo eterno em contraposição à
nossa experiência ordinário do tempo como algo que passa, que escoa e que se
perde” (ROSÁRIO, 2002, p. 6). Ser imortal, nesse caso, significa vencer o tempo,
superar a perda, o esquecimento. No Hades, o Rio Léthê, que separa os Campos
Elísios (o paraíso) do Tártaro (o mundo inferior), representa o esquecimento. Quem
bebesse de suas águas, se esqueceria de toda sua vida (KOSSAIFI, 2006, p. 1).

Il existait en Béotie, à Lébadée, près du sanctuaire de Trophonios, une source de Léthé, à côté d’une
source de Mémoire, Mnêmosunê. C’est là que les Anciens localisaient l’une des entrées dans le
monde infernal. Enfin, géographiquement, « le fleuve de Léthé » désigne le Limée une rivière de
Lusitanie2.

Ao lado de uma fonte da memória, está colocada uma fonte do Léthê, uma
fonte do esquecimento. Essa ambiguidade reflete a questão que o esquecimento
coloca a quem se dedica ao estudo da memória: o esquecimento deve ser entendido
como um mal a ser evitado, ou pode ser, de alguma forma, benéfico? O Léthê é
um rio infernal, mas seu poder é unicamente destrutivo, ou pode ser criativo? Pode
causar mal, ou também pode curar, regenerar? Essas são algumas questões iniciais,
ao longo do presente texto, a partir das quais, navegando com diferentes pensadores,
objetiva-se refletir sobre o papel do esquecimento nas sociedades contemporâneas,
bem como levantar alguns problemas que envolvem o estudo da relação entre

1  Doutor em História pela PUCRS; Pós-Doutorando pelo PPGMP/UFPel; Bolsista CAPES/PNPD; e-mail:
[email protected]
2  Em tradução livre: “Existia na Beócia, em Lebadade, perto do santuário de Trófonos, uma fonte de Lethe, ao
lado de uma fonte de Memória, Mnemosine. É aqui que os antigos localizam uma das entradas do mundo infernal.
Finalmente, geograficamente, “o rio de Lethe” significa a Limea um rio da Lusitânia”.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

memória e esquecimento. Num artigo tão breve, não é possível reconstruir todas
as abordagens que se dedicam aos estudos da memória, são elencados, ao longo
do texto, alguns autores que refletem diferentes temas e problemas relacionados
às tensões entre memória e esquecimento, especialmente ao longo do século XX.
Entre esses autores, Nietzsche (1998) parece fornecer uma resposta sobre o papel do
esquecimento.
Nietzsche (1998), na obra “Genealogia da Moral”, define o esquecimento
não como algo passivo, mas como uma força, uma atividade essencial, direcionada
contra uma cultura do excesso de informações que debilita o exercício da memória.
“Assim, o esquecimento não é tomado como apagamento, mas como integração
da experiência: aquilo que tendo sido digerido integra-se à existência de modo
orgânico, deixando de ocupar as forças da consciência” (RATTO, 2016, p. 88). O
esquecimento figura, nesse sentido, como saudável para a existência.

Esquecer não é uma simples vis ineritae (força inercial), como crêem os superficiais, mas uma força
inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa
nutrição corporal ou “assimilação física” (NIETZSCHE, 1998, p.47).

O esquecimento é uma força, um aparelho digestor da consciência, que funciona


para não assimilarmos todas as experiências pelas quais passamos na memória.
Esquecer é, portanto, atividade essencial para a própria memória. Nesse sentido, é
possível tecer uma relação com Bergson (1999), que, definindo o reconhecimento
como uma espécie de intersecção entre a percepção a memória (RATTO, 2016,
p.87), atribui à consciência uma espécie de função de filtro da memória, permitindo
que apenas as lembranças necessárias para a ação imediata “escorram” (lembrando o
gráfico do cone da memória) no presente (BERGSON, 1999, p.178). Essa seleção
implica um esquecimento constante daquilo que é inútil para a ação no presente.
No entanto, Bergson (1999), filósofo responsável por uma das primeiras obras
dedicadas especificamente ao tema da memória nas ciências humanas, não abordou
diretamente o problema do esquecimento. Bergson (1999) postula a existência de
duas memórias: a memória hábito, baseada na repetição, que funciona em nosso
corpo sem termos consciência de uma rememoração (aprender a andar de bicicleta,
por exemplo, é uma memória, mas quando empreendemos a ação, não lembramos o
momento em que aprendemos isso, simplesmente executamos a ação); e a memória
pura ou imaginativa, resultado de um esforço de abstração do presente, quando nos
lançamos num trabalho de rememoração, associada à representação. Todo passado
estaria conservado na memória, portanto, não existindo um esquecimento absoluto.
O que ocorre é que a percepção que temos da realidade (impregnada de lembranças,
pois se não seríamos incapazes de reconhecer as coisas) é direcionada pela consciência,
que funciona como um filtro para a memória, selecionando aquilo que é útil para
a vida no presente e impedindo que outras lembranças inúteis atrapalhem a ação.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Portanto, não há um esquecimento propriamente dito, o que ocorre é que


nossa percepção se concentra no presente, capacitada pela memória para reconhecer
o mundo, atenta à vida prática. Quando uma lembrança irrompe a barreira colocada
pelos filtros impostos pela consciência, ela desloca a percepção atual. Fissuras sempre
ocorrem, com lembranças que não encontram utilidade prática no momento
presente. Bergson (1999) não explora o esquecimento, especialmente numa
dimensão social, portanto. Outro autor considerado uma das referências para os
estudos da memória, o sociólogo Maurice Halbwachs (2004; 2006), também não se
deteve no esquecimento. Halbwachs desloca a reflexão sobre a memória para seus
aspectos sociais, seguindo uma tendência de análise baseada em Emile Durkheim.
Diferente de Bergson, que buscou esclarecer uma fenomenologia da lembrança,
Halbwachs procurou observar os aspectos coletivos da memória.
Na obra “Os marcos sociais da memória” (HALBWACHS, 2004), o autor
indica que existem determinados elementos que “enquadram” a memória, formando
quadros sociais que possibilitam ou não a emergência de determinadas lembranças.
Esses quadros podem ser identificados como o tempo (os acontecimentos marcantes
para determinado grupo social), o espaço (os lugares frequentados pelos sujeitos
são uma construção social), a experiência (todas as experiências pelas quais
os indivíduos passam) e a linguagem (elemento essencial para a constituição da
memória, eminentemente social e coletivo).
Esse conjunto de marcos forma sistemas de noções que orientam a percepção
e a interpretação da realidade. Esses sistemas de noções mudam de acordo com
os estágios de desenvolvimento da vida. Halbwachs (2004) dá o exemplo da
leitura de um livro infantil por uma criança. Ao ler o livro na infância, ele tem
um significado, ao reler o livro como adulto, muito daquilo que impressionou e
encantou a criança já não produz o mesmo efeito, pois as noções que orientam nossa
visão de mundo mudam, são ampliadas. Quando se é criança, os quadros sociais são
limitados, pois são constituídos por grupos sociais limitados, a família, inicialmente,
e posteriormente a escola. Na medida em que os sujeitos crescem, esses grupos se
ampliam, ampliando consequentemente os quadros sociais. Ao participar de outros
grupos (associações profissionais, igrejas, grupos de amigos etc.), os acontecimentos,
os espaços, as experiências e a própria linguagem são ampliados. Nesse sentido,
Halbwachs entende que a memória é coletiva.

Esta memoria colectiva, constituida por la presebcia de los otros, es también una actualización y
reconstrucción del pasado; el pasado entonces para Halbwachs nunca vuelve puro, sin o que es
modificado debido a la tensión que el presente genera sobre el acto de recordar (COLACRAI, 2010,
p. 67).

Em seu livro inacabado, “A memória coletiva”, Halbwachs (2006) radicaliza


a percepção social da memória, afirmando que, mesmo estando sozinhos, nossas
lembranças são sempre coletivas. Nessa obra, o papel dos grupos sociais ganha destaque.
O sociólogo explica que, na medida em que deixamos de integrar um determinado
grupo social, nossas lembranças vinculadas ao grupo deixam de ter importância para

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

o momento atual da vida, os quadros sociais dessa memória enfraquecem. Assim,


se deixamos de nos encontrar com os amigos de infância, da escola, por exemplo,
acontecimentos importantes naquele período da vida deixam de ter significado para
o presente. Embora Halbwachs também não adentre especificamente em problemas
relativos ao esquecimento, essa dinâmica de pertencimento/afastamento indica uma
tensão entre o constante trabalho de memória realizado pelos grupos sociais para a
manutenção da memória, contra o esquecimento. Esquecer significa que perdemos
contato com determinados quadros sociais construídos pela convivência com grupos
que já não fazem mais parte da nossa vida no presente.
Essas considerações iniciais não tiveram como objetivo explorar todos os
autores que abordaram a memória entre fins do século XIX e início do XX, mas
indicar diferentes visões sobre o esquecimento. Desses autores, Nietzsche é o único
que observa o papel positivo do esquecimento, embora suas considerações não
aprofundem essa questão. Bergson e Halbwachs voltam sua atenção para a memória,
e não necessariamente para o esquecimento. É ao longo do século XX que diferentes
autores vão enfrentar os problemas gerados pelo esquecimento, especialmente em
sua dimensão social, que é o foco do presente trabalho. Grande parte dos autores
que serão abordados no próximo tópico se debate com problemas gerados por
acontecimentos traumáticos, como o Holocausto, as ditaduras civil-militares na
América Latina, entre outros conflitos, genocídios e massacres.

O ESQUECIMENTO: TIPOS, FUNÇÕES E PROBLEMAS

Ricoeur (2007), em “A memória, a história o esquecimento”, indica que


o esquecimento é mais do que o simples apagamento dos rastros mnemônicos,
ele pode ser considerado, paradoxalmente, como uma das condições da própria
memória. Portanto, o autor se dedica a refletir, entre outros problemas relativos
à construção de sua fenomenologia da memória, o esquecimento não apenas
como o apagamento definitivo de um rastro de uma experiência do passado, de
uma “impressão primeira”. Com esse intuito, ele visita autores como Bergson e
Halbwachs para esclarecer problemas como o reconhecimento, a sobrevivência e a
localização das lembranças, e a relação entre passado e presente.
Ricoeur (2007) se detém na questão da sobrevivência da lembrança e do
reconhecimento das imagens do passado. Partindo das discussões de Bergson,
Ricoeur entende que reconhecer uma lembrança é reencontrá-la, o que indicaria
uma ideia de “latência da lembrança da impressão primeira”. Não perdemos
lembranças, entendidas como impressões deixadas na memória, se voltamos a
recordar, reencontrar a imagem ausente no presente: “aquilo que uma vez vimos,
ouvimos, sentimos, apreendemos não está definitivamente perdido, mas sobrevive,
pois podemos recordá-lo, reconhecê-lo” (RICOEUR, 2007, p.443).
No entanto, Ricoeur (2007) indica dois níveis, ou dois modos de esquecimento,
o da passividade e o da atividade, que estão relacionados com os usos e abusos da
memória (memória impedida, memória manipulada, memória obrigada). Embora a
impressão primeira não seja completamente perdida (obliterada), o esquecimento é

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

o que impulsiona o trabalho de recuperação de uma lembrança, o esforço dedicado


contra a perda. Sobre as relações entre esquecimento e memória impedida, o autor
refere-se aos obstáculos que emergem no caminho de uma rememoração (de um
trabalho de busca pela memória).
Um dos impedimentos que se coloca no caminho de uma busca, de um
esforço para se lembrar, é o trauma. Indivíduos tendem a repetir ao invés de lembrar
como uma forma de substituição da lembrança da experiência traumática. O
trabalho de luto é mencionado como um exemplo: “o tempo de luto não deixa
de ter relação com a paciência que a análise demandava a respeito da passagem da
repetição à lembrança. A lembrança não se refere apenas ao tempo: ela também
requer tempo – um tempo de luto” (RICOEUR, 2007, p. 87). Para a lembrança
da tragédia aflorar, é preciso um trabalho paciente, que leva tempo para substituir
a repetição que emerge como um escudo contra a experiência traumática. Mas, as
manifestações individuais de esquecimento também são colocadas numa perspectiva
coletiva:

As condutas de luto, por se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a completa


reconciliação com o objeto perdido, são logo ilustradas pelas grandes celebrações funerárias em
torno das quais um povo inteiro se reúne. Nesse aspecto, pode-se dizer que os comportamentos
de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão privada e a
expressão pública (RICOEUR, 2007, p. 92).

Além das “grandes celebrações funerárias” que mobilizam cidades, regiões e


países inteiros, certos traumas são experiências que ganham significado coletivo
dentro de um grupo social, tal como a família. O falecimento de um membro do
grupo, a experiência traumática da perda, bem como sua superação, expressada no
trabalho de rememoração, explicita uma relação entre o individual e o coletivo.
Ricoeur (2007) também observa que a própria constituição de uma memória que
serve de lastro para a história envolve uma dimensão de esquecimento, pois os
“acontecimentos fundadores” de um grupo implicam a destruição de outros. “À
celebração, de um lado, corresponde a execração, do outro. Assim se armazenam nos
arquivos da memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura” (RICOEUR,
2007, p. 92).
Lisboa (2018) destaca os problemas que envolvem o próprio termo
“comemoração”. “Comemorar é lembrar colectivamente, evocar, mas também é
afirmar o que se evoca como parte do património de quem evoca. Nesse sentido,
a forma da memória marca as diferenças” (LISBOA, 2018, p. 259). Na esteira de
Ricoeur, o autor reconhece que as comemorações podem afirmar memórias,
excluindo outros, ao instituir um patrimônio comum, oficial, de um grupo. Da
mesma forma, os “revisionismos” aparecem como uma forma violenta de imposição
de memórias com base na negação de outras experiências. O revisionismo implica
duas operações: uma reescrita da história para atribuir novo sentido ao passado; uma
tendência a afirmar de forma agressiva projetos políticos e institucionais, oficializar
um passado negando outro (LISBOA, 2018, p. 258). Cabe ressaltar que um dos

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

instrumentos utilizados, tanto pelas comemorações como pelos revisionismos, é a


repetição – de discursos, imagens, símbolos etc. Romper com essa repetição exige,
tal como Ricoeur postulou, trabalho de memória.
Essas considerações sobre comemorações e revisionismos da história abrem
caminho para o segundo tipo de esquecimento mencionado por Ricoeur (2007,
p. 93), pois constituem em “abusos, no sentido forte do termo, que resultam de
uma manipulação concentrada da memória e do esquecimento por detentores do
poder”. São formas, portanto, de manipulação da memória, que não são passivas,
são ativas. Constituem reivindicações memoriais, num nível metamemorial, como
observa Candau (2012), um nível representativo, discursivo e público. “O cerne
do problema é a mobilização da memória a serviço da busca, da demanda, da
reivindicação de identidade” (RICOEUR, 2007, p. 94).
As reivindicações identitárias podem desembocar em visões essencialistas ao
serem proclamadas e reivindicadas. Tais reivindicações estabelecem quem faz parte
do grupo em questão, bem como quem não faz parte. O outro, o diferente, pode
ser entendido como uma ameaça. “É um fato que o outro, por ser outro, passa a
ser percebido como um perigo para a identidade própria, tanto a do nós como a
do eu” (RICOEUR, 2007, p. 94). A demarcação das diferenças para ressaltar uma
identidade coletiva pode conduzir à violência em relação ao outro. Essa violência
pode ser física, quando se tratam de perseguições, prisões ou mesmo extermínio,
ou ideológica, simbólica, traduzida em diferentes instrumentos e mecanismos, entre
eles, políticas públicas de memória ou de exclusão (de esquecimento) dos outros.
Ricoeur (2007, p. 98) observa a “ideologização” da memória por meio da
configuração narrativa. A própria memória é, de acordo com o autor, incorporada à
identidade por meio da narrativa. A possibilidade de seleção da narrativa (construção
de personagens e suas ações, os acontecimentos importantes, os lugares) possibilita
que a memória seja manipulada, explicitando estratégias tanto de rememoração
quanto de esquecimento dos outros, daqueles considerados diferentes em relação
à identidade reivindicada, excluídos ou impossibilitados de narrar sua própria
memória.

De fato, uma memória exercida é, no plano institucional, uma memória ensinada; a memorização
forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum
tidas como os acontecimentos fundadores da identidade comum. O fechamento da narrativa é
assim posto a serviço do fechamento identitário da comunidade. História ensinada, história
aprendida, mas também história celebrada. À memorização forçada somam-se as comemorações
convencionadas. Um pacto temível se estabelece assim entre rememoração, memorização e
comemoração (RICOEUR, 2007, p. 98).

História ensinada, especialmente a “história tradição” (NORA, 1993), implica


a repetição das seleções narrativas pelo poder instituído, ou pelo estabelecimento de
uma identidade reivindicada, afirmada publicamente. A repetição das comemorações
é fundamental, pois essas identidades necessitam de um trabalho, de um investimento
e de uma manutenção da memória que as sustentam. É possível tecer uma distinção

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entre a “memória impedida”, caracterizada pelo luto, pelo trauma, e a “memória


manipulada”, caracterizada pelos abusos e manipulações públicas: “enquanto o
traumatismo remete ao passado, o valor exemplar orienta para o futuro” (RICOEUR,
2007, p. 99). O trabalho de luto, que é um trabalho de memória, procura resolver
o trauma, que remete a uma experiência passada. A repetição da memorização a
partir de instrumentos, como o ensino da história cívica, as comemorações, busca
a manutenção da identidade em função de seu florescimento futuro. Embora seja
uma distinção de orientação temporal, de historicidade, em ambos os casos, o
esquecimento é condição essencial para o trabalho de memória.
Em sua terceira tipologia, ou modo, de esquecimento, Ricoeur (2007) explana
sobre a “memória obrigada”, que se refere ao dever de memória, caracterizado como
uma espécie de “ponto de junção” entre o trabalho de luto e o de memória. O dever
de memória está relacionado com a noção de dívida, que herdamos de gerações
passadas, e de justiça. Por isso, envolve o trauma, tanto numa dimensão individual
quanto coletiva (o exemplo de grandes tragédias que deixam traumas, como o
holocausto, as vítimas das ditaduras na América Latina). “O dever de memória é o
dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si” (RICOEUR, 2007, p.
101). Novamente, a dimensão pública pode colocar obstáculos ao dever de memória
instituindo mecanismos, instrumentos e/ou políticas de esquecimento, como no
caso das anistias. Bauer (2012) indica que, nos casos brasileiro e argentino, as anistias
instituídas ao fim das ditaduras funcionaram como políticas de esquecimento de
crimes cometidos durante os regimes em nome de uma “ideologia de reconciliação”.
Longe de “reconciliar”, impediram e protelaram a justiça e o dever de memória para
com esse passado ao silenciar e, praticamente, interditar o passado autoritário.
Jelin (2002), com base em autores como Ricoeur e Halbwachs, também
reconhece que os acontecimentos rememorados são expressos numa forma narrativa,
ou seja, uma metamemória (CANDAU, 2012), convertendo-se na maneira como os
sujeitos constroem um sentido para o passado, tornando-o comunicável, conferindo
um mínimo de coerência às suas experiências lembradas no presente. Essa construção
tem duas notas centrais: o passado só tem sentido em sua relação com o presente, no
ato de rememorar/esquecer; a relação com o passado é subjetiva, ativa e construída
socialmente a partir de um diálogo e de uma interação.
A impossibilidade de dar sentido ao acontecimento passado, a impossibilidade
de incorporá-lo narrativamente, coexistindo com sua presença persistente e sua
manifestação em sintomas, é o que indica a presença do traumático. Neste nível, o
esquecimento não é ausência ou vazio, é a presença dessa ausência, a representação
de algo que estava e não está mais. Isso implica um primeiro tipo de esquecimento
necessário para a sobrevivência e o funcionamento dos sujeitos individuais e dos
grupos. Mas não apenas um tipo de esquecimento, e sim uma multiplicidade de
situações nas quais os esquecimentos e silêncios se manifestam, como guerras,
genocídios, perseguições e prisões arbitrárias, entre outros.
Existe um primeiro tipo de esquecimento profundo, que Jelin (2002) chama
de definitivo, que responde ao apagamento de acontecimentos e processos do
passado, produzidos pelo próprio devir histórico. No entanto, passados que parecem

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

esquecidos definitivamente podem reaparecer e cobrar novas demandas a partir de


transformações nos marcos culturais. Como Pollak (1989) indica, silenciamentos
não produzem, necessariamente, esquecimentos, mas empurram lembranças para os
“subterrâneos” da memória. Esses não-ditos podem retornar com força, de acordo
com mudanças nos regimes políticos e memoriais que permitam a rememoração. Os
esquecimentos também podem ser produtos de uma vontade política de esquecer e
silenciar por parte de sujeitos que elaboram estratégias para ocultar e destruir provas
e rastros, impedindo assim a recuperação de memórias no futuro. Esses são casos de
atos políticos voluntários destinados à destruição de evidências e traços com o fim
de promover esquecimentos seletivos.
Cabe destacar que toda política de memória, ao selecionar traços para preservar,
conservar ou comemorar, tem uma implícita vontade de esquecer também. O que
o passado deixa são rastros, marcas materiais, traços no sistema neurológico humano,
no mundo simbólico, mas esses traços não são em si mesmos memória, a menos que
sejam evocados e vinculados a um marco que lhes dê sentido. Outra questão levantada
por Jelin (2002): como superar dificuldades e alcançar esses traços. A dificuldade,
nesse caso exposto pela autora, não consiste que tenham sobrado poucos traços, ou
que o passado sofreu desconstrução; as dificuldades são os impedimentos impostos à
emergência dos rastros do passado, ocasionados por mecanismos de repressão e por
deslocamentos.
Uma reação social ao temor da destruição dos rastros se manifesta na urgência
da conservação, da acumulação de arquivos históricos, pessoais e públicos. Esse
fenômeno pode ser atrelado à obsessão pela memória e ao espírito memorialista dos
quais nos falam Nora (1993) e Huyssen (2002). No entanto, em regimes políticos de
exceção, ou mesmo em mudanças de regimes, quando a destruição de documentos
é uma ação perpetrada por autoridades públicas, a urgência é para a conservação de
evidências de possíveis crimes cometidos, que possam conter indícios do paradeiro
de desaparecidos, ou que posteriormente sirvam como provas para políticas de
reparação às vítimas e aos familiares de mortos e desaparecidos, entre outras formas
de ações criminosas.
Jelin (2002) também chama atenção para o que denomina, com base em
Ricoeur (2007), de esquecimento evasivo, que ocorre após períodos históricos
marcados por grandes catástrofes sociais, massacres e genocídios, que geraram, entre
os que sofreram, a vontade de não querer saber, de se evadir das recordações para
poder seguir vivendo. Neste ponto, a outra cara do esquecimento é o silêncio.
Existem silêncios impostos pelo temor da repressão em regimes ditatoriais. Nestes
casos, mencionados por Pollak (1989), as recordações dolorosas que sobrevivem
esperam o momento propício para se expressar.
Pollak (1989), no trabalho intitulado “Memória, esquecimento, silêncio”,
também desenvolveu alguns tipos de esquecimentos, com base em situações históricas
específicas. Pollak começa suas considerações partindo de Halbwachs (2004; 2006),
observando que, na sociologia durkheimiana, “que consiste em tratar fatos sociais
como coisas”, é necessário objetivar a memória coletiva em lugares, monumentos,
patrimônio, práticas sociais, como “indicadores empíricos da memória” (POLLAK,

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1989, p. 3). No entanto, o autor ressalta que a importância de estudar a memória


reside não mais em pensar os fatos como coisas, mas entender como eles se tornam
coisas, como são solidificados.
“Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos
processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das
memórias” (POLLAK, 1989, p. 3). Nessa abordagem, o interesse recai, portanto,
nas disputas da memória, nos conflitos que legitimam e sacralizam determinadas
memórias oficiais, empurrando outras para o subterrâneo através da imposição de
silêncios impostos sobre os grupos e sujeitos. São as batalhas pela memória que
interessam ao pesquisador, as memórias proibidas, clandestinas. “O longo silêncio
sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma
sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (POLLAK, 1989, p.
5). As memórias oficiais não apagam as outras, elas sobrevivem na família, em redes
de dissidentes, continuam sendo transmitidas por outras formas.
Pollak apresenta três exemplos para trabalhar os esquecimentos e silêncios. O
primeiro refere-se à “destalinização” e à denúncia dos crimes estalinistas, o que levou
à destruição de símbolos que lembravam Stalin na União Soviética, culminando
com a remoção dos restos de Stalin do mausoléu da Praça Vermelha. Essa foi uma
primeira fase da “destalinização”, e embora tenha levado à destruição de dispositivos
da memória oficial, não apenas na União Soviética e em países vizinhos (revolta na
Hungria), não conseguiu se impor, sendo retomada trinta anos mais tarde com a
perestroika. Essa nova abertura gerou um movimento de reabilitação de dissidentes
atuais e póstumos que foram vítimas do terror. «Este exemplo mostra a necessidade,
para os dirigentes, de associar uma profunda mudança política a uma revisão (auto)
crítica do passado» (POLLAK, 1989, p. 6).
O outro exemplo fornecido por Pollak é o dos sobreviventes dos campos de
concentração nazistas que, após serem libertos, retornaram à Alemanha ou à Áustria.
Os silêncios desses sujeitos estão ligados à necessidade de encontrar uma forma
de conviver com aqueles que foram coniventes com sua deportação. Além disso, o
autor lembra que muitas comunidades judaicas tentaram negociar com os nazistas,
inicialmente na esperança de reverter a política oficial, posteriormente com o
intuito de salvar o máximo possível de vidas, e, ao final, nem ao menos conseguiram
negociar melhor tratamento aos presos. Isso também gerou um desconforto entre
os próprios sobreviventes. “Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa
antes de mais nada encontrar uma escuta” (POLLAK, 1989, p. 7).
O último exemplo é o dos alsacianos recrutados à força pelo exército alemão.
Embora o caráter coercitivo tenha ficado claro, após o fim da Segunda Guerra,
colocou-se a questão sobre o grau de colaboração desses soldados. “Trata-se, por
definição, de uma experiência dificilmente dizível no contexto do mito de uma
nação de resistentes, tão rico de sentido nas primeiras décadas do pós-guerra”
(POLLAK, 1989, p. 8). O que esses exemplos têm em comum são os “não-ditos”.
Essas lembranças proibidas, indizíveis ou vergonhosas são guardadas em estruturas
de comunicação informais, sobrevivendo ao esquecimento absoluto. “Distinguir
entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída

322
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

reconhecer a que ponto o presente colore o passado” (POLLAK, 1989, p. 10).


O que coloca as memórias no subterrâneo são os trabalhos de enquadramento
das memórias, que se alimenta “do material fornecido pela história” para forjar a
própria imagem, a memória oficial de determinado grupo. Esse trabalho tem seus
agentes próprios, os “empreendedores da memória” (JELIN, 2002; MICHEL, 2010).
Esses sujeitos vão organizar os arquivos, escrever a história, construir monumentos,
organizar comemorações, autorizar testemunhas, entre outros instrumentos para
legitimar sua memória.
Connerton (2008), em seu artigo “Seven Types of Forgetting”, observa que
geralmente o esquecimento é visto como uma falha da memória, e a lembrança,
o trabalho de rememoração bem sucedido, é entendida como uma virtude, uma
vitória contra o oblívio. No entanto, o esquecimento nem sempre é apenas uma
falha da memória, e nem sempre ocorre da mesma maneira, ou seja, não é um
fenômeno único. Connerton identifica e esclarece sete tipos de esquecimentos.
O primeiro é classificado pelo autor como “esquecimento repressivo”,
que seria a destruição deliberada da memória de determinados grupos. Esse
tipo de esquecimento implica a destruição deliberada de arquivos, documentos,
monumentos, qualquer indício que remeta ao grupo que constitui alvo da repressão.
É caracterizado por uma forma abusiva e violenta de apagamento da memória
dos sujeitos, muitas vezes articulada com extermínio físico, envolvendo genocídios
e massacres. Outro tipo de esquecimento, diferente da violência que envolve a
repressão, é o “esquecimento prescrito”. Funciona como se fosse uma prescrição para
superar acontecimentos traumáticos, regimes de exceção ou conflitos entre grupos
ou países. Uma forma benéfica de esquecimento, ou superação, pode ser associada
aos tratados de paz, que implicam não apenas o perdão, mas o esquecimento de
injustiças por meio de uma resolução justa.
Cabe ressaltar que, muitas vezes, um grupo tenta impor esse tipo de
“esquecimento prescrito” aos grupos e vítimas, como as leis de anistias nas ditaduras
da América Latina, especialmente no Brasil e na Argentina, elaboradas ainda nos
regimes ditatoriais. Essas leis são resíduos das ditaduras de Segurança Nacional e
foram elaboradas com o intuito de impor um esquecimento como receita para
superação do trauma. Como esclarece Bauer (2012, p.137):

Ao final das ditaduras civil-militares argentina e brasileira, os militares buscaram resguardar a


impunidade e a imunidade e interditar o passado, através da imposição do esquecimento, do
silenciamento e do medo, quanto às estratégias de implantação do terror adotadas por esses
regimes. Assim, a ausência da presença e a presença da ausência dos desaparecidos políticos foram
resolvidas com a promulgação das leis de anistia.

Nesse caso, embora seja possível classificar como um tipo de “esquecimento


prescritivo”, ele não é, obviamente, benéfico. Impõe um silenciamento forçado à
memória das vítimas, aos seus familiares e contribui para o esquecimento coletivo
desse trauma. Não propõe uma superação por meio da justiça, pelo contrário,
funciona para a manutenção da injustiça.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O “esquecimento constitutivo de novas identidades” consiste no apagamento


de lembranças que não possuem mais um propósito prático para a manutenção
das identidades no presente. Nossas identidades estão em constante transformação
em virtude de novas experiências que adquirimos. Conceitos, ideias e noções são
ressignificados, abrindo espaço para reformulação de identidades. Esse tipo de
esquecimento corre tanto no nível individual quanto social, em contextos culturais,
embora, no coletivo, estejamos nos referindo a reivindicações identitárias no nível
da “metamemória” (CANDAU, 2012), de uma representação memorial.
A “amnésia estrutural” pode ser observada em certas práticas sociais, que
conduzem a esquecimentos estruturais, como a adoção de sobrenomes masculinos.
Isso implica na predominância da memória de determinadas famílias, representadas
pelos nomes, e o esquecimento de outras ao longo da sucessão de gerações. Já
o “esquecimento enquanto anulação” é uma referência aos excessos de memória,
caracterizado pela necessidade de arquivar e documentar tudo, fenômeno já
mencionado por Nora (1993) e Huyssen (2000).
Nora (1993), na introdução da coletânea “Les lieux de mémoire”, uma
obra “contra-comemorativa”, escrita em fins da década de 1980, em função do
bicentenário da Revolução Francesa, assinalava que a era das comemorações, dos
arquivos, era sintoma da falta de meios orgânicos de memória, de tradições e práticas
destinadas à manutenção de uma memória cívica e nacional francesa. A emergência
dos lugares de memória constituía uma resposta ao medo do esquecimento. Huyssen
(2000) associa a aceleração temporal, a saturação de discursos e práticas memoriais,
especialmente nas mídias contemporâneas, com o esquecimento. “Para onde quer
que se olhe, a obsessão contemporânea pela memória nos debates públicos se choca
com um intenso pânico público frente ao esquecimento, e poder-se-ia perfeitamente
perguntar qual dos dois vem em primeiro lugar” (HUYSSEN, 2000, p. 19). Essa
pergunta é de difícil resposta, no entanto, tal como Pollak (1989), Huyssen (2000)
reconhece que a sociologia da memória de Halbwachs (2004; 2006) não dá conta
de problematizar as relações entre a obsessão memorial, os silêncios, as repressões e
as mídias, entre outros fenômenos memoriais contemporâneos.
Outra forma de esquecimento, que também está associada com a aceleração
do tempo no mundo contemporâneo, é o “esquecimento como obsolescência
planejada”. A produção capitalista de mercadorias em escala global já traz em seu
bojo a previsão de superação do bem de consumo: seu “esquecimento” é planejado,
basta observar os diferentes aparatos tecnológicos que fazem parte da vida cotidiana
– computadores, celulares, carros, entre outros. Os modelos já são lançados com
numeração, prevendo no próximo ano um novo número que supere o anterior.
Essa tipologia está associada com a aceleração da experiência temporal (BERMAN,
1986; AUGÉ, 2012; BAUMAN, 2001). Ratto (2016, p. 87-88) chama atenção para
o que denomina como “cultura do excesso”, que pode ser associada a essa tipologia
de esquecimento, pois se refere à capacidade quase ilimitada de arquivamento em
suportes eletrônicos, contrastando “com o esvaziamento das marcas mnêmicas,
sensíveis e corpóreas, das quais dependemos para significar o presente e inventar o
futuro”.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Outra forma de esquecimento pautada na violência e na imposição forçada


é o “esquecimento como silêncio humilhante”, que ocorre quando determinados
grupos são obrigados a reprimir sua memória para sobreviver. Tal esquecimento
pode ocorrer na confrontação de tabus, relações de gênero, ou mesmo após conflitos
traumáticos. Sturken (2002) fornece um exemplo desse tipo de silêncio ao abordar
a construção do Memorial dos Veteranos do Vietnam, nos Estados Unidos. Entre
os vários desdobramentos discutidos pela autora, a partir da história da construção
desse memorial, está o silêncio imposto às mulheres que participaram da guerra,
que ao retornar não encontraram espaço, público ou mesmo familiar, para falar
sobre suas experiências, expor seus traumas. Seu reconhecimento como veteranas
de guerra foi silenciado inclusive após a construção de um monumento destinado a
rememorar a ação das mulheres noVietnam, que as retratou apenas como enfermeiras,
“cuidadoras” dos soldados, e não como militares.
Michel (2010), em seu trabalho “Podemos falar de uma política de
esquecimento”, procura, além de tipificar esquecimentos, tal como Connerton
(2008) e Pollak (1989), observar diferentes tipos de esquecimento; no entanto, o
autor pensa no esquecimento numa dimensão política. O propósito, nesse caso, é
buscar desvelar o conjunto de dispositivos instrumentalizados por autoridades, como
o Estado, colocados em ação para construir e legitimar uma imagem ideal de ordem
nacional, consensual, com objetivos diversos, desde manter o poder concentrado nas
mãos de determinados grupos, ou mesmo para superar passados traumáticos. Entre as
políticas simbólicas, que materializam dispositivos, instrumentos, ações, entre outros
elementos, as que trazem o passado à cena do presente têm um status privilegiado,
pois não existe identidade sem a história e a memória. Políticas da memória podem
ser entendidas como o conjunto de intervenções que procuram impor lembranças
comuns para uma sociedade, a partir de instrumentos como comemorações oficiais,
programas escolares, leis memoriais, monumentos etc.

A política de esquecimento não seria o negativo de uma política da memória? Sob quais condições
podemos dizer que a instrumentalização do esquecimento pode advir de uma anti-política
da memória ou de uma política da anti-memória? Toda a expressão do esquecimento pode se
assemelhar a uma anti-política da memória? Quais são os objetivos almejados pelas autoridades
públicas ao recorrerem ao instrumento do esquecimento? (MICHEL, 2014, p. 15).

Para responder às questões, o autor estabelece uma tipologia do esquecimento,


entendida como tipos-ideais weberianos, ou seja, que não se encontram puramente
estabelecidos na realidade social. Podem ser observados mais de um desses tipos, ou
mesmo a interação entre diferentes tipologias de esquecimento que caracterizam
essas políticas de esquecimento. Entre esses tipos, o “esquecimento omissão e o
esquecimento negação” apresentam-se como condição de funcionamento da
memória; é ontologicamente impossível que tudo seja lembrado, ou seja, a
memória é seletiva por natureza. Isso também ocorre na memória coletiva e oficial.
Acontecimentos e personagens que fazem parte do patrimônio da nação são
inumeráveis; rememorar todos os sujeitos e acontecimentos da história de um país

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

seria impossível, portanto, seleções sempre são feitas. Obviamente, tais seleções estão
relacionadas aos princípios dos grupos que estão instalados no poder.

Podemos dizer assim que certos acontecimentos passados, em razão de seu peso traumático e
sua carga emocional, tendem a ser rejeitados da esfera consciente das lembranças de uma dada
sociedade em um determinado momento de sua história (o que não quer dizer que essa rejeição
apareça na totalidade dos membros dessa sociedade) (MICHEL, 2014, p. 17).

Nos casos de guerras internas com devastação brutal, eliminação de


grandes contingentes populacionais, “o mecanismo de negação serve, em parte,
inconscientemente, para cicatrizar provisoriamente as feridas coletivas” (MICHEL,
2014, p.17). Outra tipologia descrita por Michel (2010) é o “esquecimento-
manipulação e o esquecimento-direcionamento”. Na manipulação, o procedimento
de esquecimento é ativo e voluntário e de responsabilidade direta dos atores
públicos encarregados de gerir a memória pública oficial. O esquecimento ocupa
um vazio narrativo intencional nos programas oficiais. As autoridades no poder,
além de assumir o vazio memorial, materializado em ausência de narrativas, de
comemorações ou de justiça, advogam a necessidade do esquecimento com intuito
de superar o trauma e conciliar o país. Mais uma vez, cita-se o exemplo das leis de
anistia ao fim dos regimes ditatoriais, no Brasil e na Argentina.
O “esquecimento-destruição” é uma das formas mais violentas e que não tem
como objetivo nenhuma espécie de superação ou reconciliação. Busca construir
uma memória oficial a partir da destruição de outras memórias (documentos,
monumentos etc.). De acordo com Michel (2010, p. 23),“[...] as instituições políticas
se esforçam por controlar o conjunto de expressões públicas da memória, buscando
impor uma só verdade oficial da história e da memória coletiva e reprimindo as
expressões públicas de memórias rivais”. Finalizando essa breve trajetória pelo
rio Léthê, é necessário refletir sobre o papel da memória e do esquecimento em
sociedades após conflitos graves, como no caso do Camboja.
Pascaline (2006), em um artigo chamado “Memória, esquecimento e
reconciliação em sociedades pós-conflituais: o exemplo do Camboja” (tradução
livre do autor), apresenta o caso de um país em que a construção de uma memória
social foi completamente abalada, ou mesmo destruída, após um genocídio e a
completa desestruturação da sociedade. Uma série de fatores levou a essa destruição,
mas, particularmente, a implantação de um regime que funcionava pela paranoia e
denuncismo a partir da instalação do khmer vermelho contribuiu decisivamente
para o colapso da memória social. A ascensão desse regime implicou a destruição
completa de referenciais identitários: mudança massiva da cidade para o campo;
desestruturação das classes sociais (passaram a existir apenas soldados, operários e
camponeses); governo pelo terror, denúncias, perseguição, tortura e extermínio.
No Camboja, mesmo quando os atores sociais tentam encontrar um lugar na
história para dar sentido à memória do conflito, aparecem problemas. Os trabalhos de
memória constituem ações embrionárias, que encontram dificuldade em progredir
em função da questão: “quem fez o que no passado”. Num contexto pós-conflitual,

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de acordo com Pascaline (2006), podem ser observados dois desenvolvimentos


possíveis: ou a população reprime esses acontecimentos para superar o conflito
(o que vem ocorrendo no Camboja); ou, pelo contrário, os atores sociais podem
enfatizar o conflito para propor um novo começo.
Sociedades pós-conflituais podem acabar reprimindo uma parte de sua
história na urgência da reconstrução. Isso em detrimento de uma análise de certos
acontecimentos e com o sacrifício das lembranças individuais das vítimas para
garantir a sobrevivência do grupo, Pascaline (2006) realizou uma série de entrevistas
com a população no Camboja, entre 2005 e 2006, o que possibilitou a observação
do fenômeno que identificou como amnésia cultural, expressado especialmente em
frases como “nós não devemos viver no passado”. Do regime khmer vermelho, a
memória familiar reteve principalmente as mortes e as privações. Essa ausência dos
familiares mortos é difícil de esconder no Camboja, mesmo com a instituição de
uma amnésia cultural.
Porém, quando ocorre um momento de rememoração, como no julgamento
dos khmer vermelhos, as famílias é que se opõem ao retorno de memórias traumáticas.
As famílias no Camboja, ainda hoje, temem o retorno de um passado de 30 anos
atrás em suas vidas cotidianas – ciclo de vingança. Para sobreviver, na sociedade
instaurada com o khmer, muitas pessoas assumiram o lugar de algozes, denunciando
vizinhos, amigos, familiares. A situação de “vítima” nesse caso é de difícil definição. A
amnésia cultural pode ser definida como a crise da memória que se desenvolve após
um esquecimento seletivo do passado. Isso porque a dialética vítima/perpetrador
é borrada no Camboja. É difícil distinguir vítimas dos executores. As próprias
vítimas querem enterrar um passado que ameaça sua identidade – alguns khmer
foram perpetradores e vítimas. No caso do Camboja, não se está defendendo uma
impunidade de possíveis culpados, mas observando a complexidade que envolve o
“como” se aplicar a justiça e a “quem” se deve a reparação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O século XX, com tragédias, como as grandes guerras mundiais, genocídios


e ditaduras, trouxe o problema do esquecimento para os estudiosos da memória.
Embora Halbwachs tenha enfrentado o terror da guerra ao ser feito prisioneiro
pelos nazistas, o esquecimento não foi alvo de reflexões intensas do autor. Entre
os autores mencionados na breve revisão feita no item anterior, quase todos estão
tecendo suas considerações em função de acontecimentos traumáticos específicos.
Ricoeur (2007) pensa, sobretudo, nos crimes contra a humanidade ao teorizar sobre
o esquecimento para refletir sobre a testemunha, a justiça e o perdão.
Jelin (2002), tal como Bauer (2012), tem como objeto de estudo as ditaduras
latino-americanas, as políticas de anistia, de esquecimento e a busca pela verdade,
justiça e reparação. Pensando nessas situações, com base em Ricoeur (2007), a
autora define o conceito de “esquecimento evasivo”, quando esforços coletivos são
direcionados para o esquecimento após grandes tragédias com diferentes objetivos,
seja para que os grupos possam seguir em frente, ou para evitar acusações e a

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

realização da justiça. Pollak (1989), antes de Ricoeur (2007), observou diferentes


tipologias de esquecimento, alertando que, na verdade, acontecimentos traumáticos
dificilmente são permanentemente esquecimentos, ao serem silenciados passam para
os subterrâneos da memória, em que permanecem latentes no interior dos grupos
sociais. Michel (2010) estabelece tipologias de políticas de esquecimento, tentando
entender casos em que esforços coletivos são direcionados contra a rememoração
pelo estado.
Já os trabalhos de Connerton (2008), Huyssen (2000) e Nora (1993) exploram
dimensões do esquecimento que, necessariamente, não estão conectadas diretamente
aos acontecimentos trágicos abordados pelos outros autores. Connerton (2008)
define e explora sete tipos de esquecimento, com alguns relacionados diretamente aos
traumas provocados pelas tragédias, mas outros não, como a obsolescência planejada,
o esquecimento constitutivo de novas identidades e a amnésia estrutural. Huyssen
(2000) conecta a incessante busca por memória das sociedades contemporâneas ao
fenômeno da aceleração do tempo, da velocidade da informação e do consumo, o que
leva uma espécie de excesso que banaliza a memória, levando ao esquecimento. Não
obstante, Huyssen (2000) toma como exemplo, em sua obra, o caso da memória do
Holocausto. Nora (1993) também observa esse fenômeno de compulsão memorial,
de crise de uma história-memória em função da ascensão de um história-problema,
crítica da memória e da necessidade de arquivamento, documentação de tudo que
possa servir para essa história crítica da memória.
Para concluir, é importante citar as considerações de Hartog (2013)
sobre os “regimes de historicidade”, pois para que a memória de determinados
acontecimentos, especialmente grandes tragédias, possa emergir dos subterrâneos
e encontrar seu espaço na sociedade, é preciso que a própria noção de história, de
atribuição de sentido e significado ao passado seja favorável. Pensar a ordem do
tempo é crucial para entender certos problemas do esquecimento. Numa sociedade
na qual o presente ou o futuro dominam a experiência temporal, o passado tem
pouca chance de aflorar, especialmente se for para colocar em foco problemas
relativos aos projetos de futuro de uma sociedade.
Nesse sentido, a memória de acontecimentos traumáticos, como o Shoah e os
crimes contra a humanidade cometidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra
Mundial, podem contribuir para lançar uma luz sobre outras tragédias soterradas
em função de necessidades do presente e do futuro, como o genocídio do Camboja
abordado por Pascaline (2006). Nesse sentido, o conceito de Rothberg (2009),
“memória multidirecional”, tem excelente contribuição. Esse autor observa que, ao
invés de empreender comparações entre grandes tragédias (holocausto judaico versus
holocausto africano, por exemplo), a memória do holocausto pode contribuir para
compreensão de outras grandes tragédias, tanto para o estabelecimento de políticas
de reparação e de justiça como para rememoração dos grupos sociais. Assim, a partir
do Holocausto, é possível trabalhar outras memórias traumáticas, sem estabelecer
comparações e hierarquizações entre tragédias/vítimas.
Ricoeur (2007) defende a necessidade de combater o esquecimento, em casos
de grandes tragédias, em função da noção de “dívida” para com as gerações passadas.

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Para o autor, os contemporâneos têm a obrigação de lembrar os acontecimentos


traumáticos, os genocídios, conflitos e crimes contra a humanidade; precisam buscar
a justiça e a reparação, não em benefício próprio, mas para quitar essa obrigação
com aqueles que sofreram no passado. A justiça, também, não pode ser confundida
com vingança, ela deve contribuir para, em última instância, alcançar uma «equação
do perdão», para alcançar uma memória feliz, que se realizou, que completou o
trabalho de luto e encontrou espaço para emergir na sociedade. É esse esforço
que deve ser direcionado contra o esquecimento: o da realização da memória na
sociedade. Também, é necessário reconhecer, como Nietzsche (1998) indica, que
o esquecimento é uma “força digestora”, que funciona para a saúde da própria
memória. O esquecimento social, nas diferentes tipologias e políticas mencionadas,
sempre estará presente. O processo de seleção do que lembrar sempre implica o
que esquecer. Cabe aos pesquisadores da memória social observar e identificar essa
relação dinâmica (e de força) entre rememoração e esquecimento, reconhecendo os
atores, os instrumentos e os objetivos do ato de lembrar/esquecer.

REFERÊNCIAS

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330
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

EVENTOS RAROS, MAS CATASTRÓFICOS: O


PATRIMÔNIO CULTURAL PEDE SOCORRO
MICHELI MARTINS AFONSO1
JULIANE CONCEIÇÃO PRIMON SERRES2
MARÍA ARJONILLA ALVAREZ3
KAREN VELLEDA CALDAS4

Os recentes incidentes de incêndios envolvendo bens culturais legitimados,


nacional e mundialmente, indicam que as metodologias e os sistemas utilizados
atualmente, para a conservação dos bens culturais, são insuficientes. Em setembro
de 2018, um incêndio de grandes proporções consumiu grande parte do acervo
do Museu Nacional do Rio de Janeiro, cujo imóvel foi tombado pelo IPHAN em
1938. Recentemente, o mesmo agente de degradação consumiu parte importante
da arquitetura gótica da Catedral de Notre-Dame, em Paris, a qual foi declarada pela
UNESCO como Patrimônio Cultural, em 1991.
Através de pesquisa bibliográfica e documental, este artigo visa a discutir
a problemática da conservação dos bens culturais sob o viés da gestão de riscos,
analisando principalmente o agente de degradação considerado raro, mas que em
menos de sete meses atingiu dois bens culturais amparados por sistemas legais
de proteção: o fogo. Esta discussão parte da premissa da gestão de riscos como
metodologia científica que auxilia no diagnóstico dos bens culturais e na tomada de
decisão no que tange à preservação do patrimônio e que propicia uma valoração do
acervo e do ambiente o qual o conserva. Além disso, compreende o método como
fator de identificação, mitigação ou eliminação dos potenciais riscos que podem
atingir as coleções.

1  Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPEL. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]


2  Doutora em História/ UNISINOS. Professora do curso de bacharelado em Museologia/UFPEL e do Programa
de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPEL. E-mail: [email protected]
3  Doctora en Bellas Artes/US/ES. Profesora en la Universidad de Sevilla/ España.
4  Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural/UFPEL. Professora do Curso de Conservação e Restauração
de Bens Culturais Móveis/UFPEL. Email: [email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

PATRIMÔNIO CULTURAL

O conceito sobre patrimônio cultural desde o século XVIII vem sendo


trabalhado e consolidado na sociedade ocidental (POULOT, 2009). No Brasil, apesar
de toda carência que o país apresenta na área, possui-se uma noção de patrimônio
cultural estabelecida socialmente, mesmo que em algumas esferas os conceitos sejam
apresentados de maneira imatura, por assim dizer. Pode-se realizar um teste a partir
de uma pequena entrevista no centro de uma grande capital e perguntar para a
população o que é o patrimônio cultural, por exemplo. Provavelmente, a maioria das
pessoas terá respostas prontas como: herança de um povo, bens artísticos e históricos,
parte da memória da sociedade, objetos de museu, monumento histórico, dentre
outros. Dentre tantas explicações e informações acerca do patrimônio cultural,
Dominique Poulot indica que

O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo valor estético
– e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental
- que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal ou administrativo.
Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade política, ambos os aspectos sancionados
pela opinião pública: essa dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da
civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relativamente ao passado, de suas
diversas apropriações e da construção das identidades (POULOT, 2009, p. 13).

O conceito está presente no imaginário coletivo, mas, após anos de investigação


e trabalho educativo para legitimar os bens culturais no Brasil, será que existe um
sentimento grupal de pertencimento sobre o patrimônio cultural? O patrimônio
cultural, os bens culturais e as instituições de guarda dependem de uma apropriação
e usufruto por parte da sociedade. A criação ou não de laços identitários (CANDAU,
2011), que uma nação estabelece com o seu patrimônio cultural, são essenciais para
que os processos de gestão funcionem de maneira adequada.
A manutenção do patrimônio cultural e da memória social ocorre a partir de
diversos esforços que visam a alinhar questões teóricas com ações práticas. Neste
sentido, a conservação dos bens culturais desempenha um papel de destaque, ainda
que para tanto seja necessário um amplo conhecimento sobre um conjunto de
questões que envolvem esta matéria, dentre eles, os agentes de degradação.

GESTÃO DE RISCOS PARA O PATRIMÔNIO CULTURAL

Diariamente, o patrimônio cultural enfrenta situações de emergência mesmo


quando salvaguardado por instituições museais. Infelizmente, estes dados não são
compartilhados na maioria das vezes e sinistros, como inundações, incêndios,
furtos, vandalismo, dentre outros, são freqüentes em diversos museus brasileiros e
estrangeiros.
A metodologia da gestão de riscos foi desenvolvida para atuar em distintos
ramos do desenvolvimento social, como economia, agroindústria, saúde, dentre

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

outros, como também para a área do patrimônio cultural. No Brasil, o Instituto


Brasileiro de Museus – IBRAM assume a metodologia publicada pelo ICCROM
(2018), em que Stefan Michalski5 e José Luiz Pedersoli Jr.6, cientistas da conservação,
estudam e ensinam essa matéria.
Os atores patrimoniais lidam frequentemente com a tomada de decisão que,
geralmente, está relacionada a recursos escassos, sejam eles técnicos, humanos ou
financeiros. A metodologia de gestão de riscos visa a auxiliar na análise dos riscos,
contribuindo para que as decisões sejam realizadas a partir de critérios técnicos
e não apenas baseadas na subjetividade. Ela permite avaliar as possíveis fontes de
degradação e como ocorre a inter-relação desta deterioração; permite estabelecer
prioridades de preservação, levando em consideração os recursos existentes na
instituição.
Esta metodologia de preservação do patrimônio cultural é indicada pelo
ICCROM – International Centre for the Study of the Preservation and Restoration
of Cultural Property, que a define da seguinte maneira:

La gestión de riesgos constituye una herramienta eficaz para la salvaguarda del patrimonio
museológico, su protección y su uso. Se trata de una metodología a través de la cual las instituciones
responsables de la custodia de bienes culturales puedan prepararse para evitar su exposición a
agentes externos, garantizando su preservación y acceso a la ciudadanía (ICCROM, 2016, p. 6).

A gestão de riscos é uma metodologia científica interdisciplinar criada para


contribuir positiva e significativamente com a política de preservação em instituições
museais, a partir de uma análise global e específica do museu, de seu acervo e
entorno. Nesse processo, há qualificação e quantificação dos potenciais riscos ou
fragilidades que ameaçam a instituição de guarda. Baseia-se no contexto do museu,
nos chamados dez agentes de degradação, nos invólucros de proteção e nos três
tipos de ocorrências em museus (MICHALSKI, 2007).
Os agentes de degradação são classificados por: 1. Forças físicas diretas; 2. Roubo,
vandalismo, perda involuntária; 3. Fogo; 4. Água; 5. Pragas; 6. Contaminantes; 7.
Radiações; 8. Temperatura incorreta; 9. Umidade relativa incorreta (MICHALSKI,
2007, p. 54-55); 10. Dissociação (CATO; WALLER, 2013)7. Nesta metodologia,
analisam-se os fatores de deterioração em separado, como também a interação entre
eles, assim como as consequências deste processo. Além dos agentes degradantes,
os invólucros que existem, numa instituição de guarda, são importantes aliados
quando se trata de conservação dos bens culturais. A gestão de riscos determina
seis invólucros base para proteção dos bens culturais, começando pela embalagem
ou suporte do objeto, tendo em vista que a constituição destes materiais oferece
significativos indícios sobre sua vulnerabilidade. A vitrine, mobiliário ou depósito

5  Senior Conservation Scientist, Preservation Services Division | CCI – Canadian Conservation Institute.
6  Project manager – Conservation of Collections | ICCROM – International Centre for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property.
7  Disponível em: <https://www.canada.ca/en/conservation-institute/services/agents-deterioration/dissociation.
html#def1>. Acesso em: 25 mar. 2019.

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também são importantes sistemas de proteção. A sala no qual o objeto está exposto
e os sistemas de conservação destes espaços constituem mais um invólucro museal.
O edifício do museu, os materiais construtivos, os sistemas de proteção, os recursos
estruturais etc. devem ser analisados com a mesma perícia que os anteriormente
citados. A localização da instituição é importante, levando em consideração seu
endereço físico e arredor. E, por fim, considera-se a região ou zona geográfica em
que o museu está situado, já que existe uma grande diferença entre um museu
situado em uma região de praia e outro perto de um grande centro industrial, por
exemplo.
Os invólucros devem ser atentamente observados, pois “cuando se usan
correctamente, proporcionan protección a los objetos del museo. Pero también pueden
contener diferentes fuentes de peligro para los objetos” (ICCROM, 2018, p. 51).
Os três tipos de ocorrência dos riscos dizem respeito à frequência com que
os agentes de degradação aparecem. Classificam-se em eventos raros, eventos
frequentes e processos acumulativos. Os eventos frequentes ocorrem várias vezes
durante um século e fazem parte da rotina museal. Os Processos acumulativos dizem
respeito aos eventos que podem ser pequenos, sob o ponto de vista de riscos de
perda de acervo, mas grandes em quantidade, haja vista que são considerados muito
frequentes (ICCROM, 2018).

EVENTOS RAROS, MAS CATASTRÓFICOS

O patrimônio cultural, em nível mundial, é preservado a partir de sistemas


classificatórios e valorativos, utilizados para encaixar estes bens em diferentes linhas
de proteção. É realizado a partir das características históricas, artísticas, documentais,
econômicas, simbólicas etc. Além disso, existem as políticas públicas de proteção dos
bens culturais que estão centradas na materialidade ou imaterialidade do patrimônio
cultural e situadas em esferas municipais, estaduais, nacionais e/ou mundiais.
Lamentavelmente, ainda que existam políticas de preservação vigentes, que o
patrimônio seja legitimado e reconhecido pela comunidade, que existam técnicas
de conservação ativas e teorias eficazes, casos como o recente incêndio do Museu
Nacional no Rio de Janeiro (UFRJ), em setembro de 2018, ainda são comuns.
Existe alguma lacuna na preservação das instituições museais brasileiras e do
patrimônio cultural como um todo, que permite que estes sinistros aconteçam.
Quais são os desafios enfrentados na preservação dos bens culturais que nem mesmo
os bens que estão amparados pelas leis de proteção ficam ilesos? Quais são as lacunas
que se necessita preencher no campo da conservação-restauração?
O caso do Museu Nacional é um caso emblemático desse sistema falho de
gestão e de conservação do patrimônio cultural. Diversas discussões surgiram após
o sinistro, a maioria encabeçadas por profissionais da área da preservação, com
intuito de encontrar respostas para a problemática. Anos antes, já se conhecia o
risco a incêndio a que o Museu Nacional estava exposto. O secretário de Energia,
Indústria Naval e Petróleo, Wagner Victer, visitou a instituição e constatou diversas
irregularidades, de acordo com a matéria da Empresa Brasil de Comunicação:

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

O secretário disse ter ficado impressionado com a situação das instalações elétricas que, segundo
ele, estão em estado deplorável. “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservadas,
alas com infiltrações, uma situação de total irresponsabilidade com o patrimônio histórico”, afirmou
o secretário (NASCIMENTO, 2004).

O Museu Nacional foi fundado em 1818, por Dom João VI. Teve o seu
edifício tombado8 em 1938, pelo  Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e possui tutela da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Figura 1: Divulgação do incêndio no Museu Nacional, no Jornal El País – vista da fachada.

Foto: Marcelo Sayão (EFE) Fonte: El País9

O edifício que abrigava o Museu Nacional foi moradia de personagens


importantes para a história do Brasil, como D. Pedro I e a Imperatriz Leopoldina.
Também, foi o local onde nasceram D. Pedro II e a Princesa Isabel. O então Museu
Real foi criado com a intenção de estimular o desenvolvimento socioeconômico do

8  Tombamento no Livro Histórico (Nº inscr.: 051; v. 1; f. 010; Data: 11/05/1938) e no Livro de Belas Artes (Nº
inscr.: 023; v. 1; f. 005; Data: 11/05/1938) o edifício do Museu Nacional, inclusive a Coleção Arqueológica Balbino
de Freitas. IPHAN. Lista dos Bens Culturais Inscritos nos Livros do Tombo Histórico (1938 – 2012). Rio de Janeiro,
2013 (p. 113).
9  Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/03/album/1535940297_655202.html#foto_gal_1>.
Acesso em: 25 mar. 2019.

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Brasil a partir da pesquisa, educação, ciência e da cultura.

Figura 2: Museu Nacional após o início do processo de intervenção.

Foto: Micheli Afonso. Fonte: Arquivo pessoal, junho/2019.

O Museu Nacional possuía um acervo diverso e vasto, com mais de 20 milhões


de itens que constituíam um importante registro da memória e da cultura brasileira,
tanto quanto de outras partes do mundo. Destacava-se pela coleção egípcia,
considerada até o momento da tragédia a maior da América Latina e por possuir o
mais antigo fóssil humano já encontrado no Brasil, batizado de “Luzia”. O Museu
também possuía:

a coleção de arte e artefatos greco-romanos, peças recuperadas, principalmente, nas escavações


realizadas em Herculano e Pompéia. As coleções de Paleontologia incluem o Maxakalissaurus
topai, dinossauro proveniente de Minas Gerais. O mais antigo fóssil humano já encontrado no
país, batizada de “Luzia”, pode ser apreciado na coleção de Antropologia Biológica. Nas coleções
de Etnologia temos expostos objetos que mostram a riqueza da cultura indígena, cultura afro-
brasileira e culturas do pacífico. E na Zoologia destaca-se a coleção Conchas, Corais, Borboletas,
que compreende mostras dos Departamentos de Invertebrados e Entomologia (MN, 2019)10.

10  Texto disponível no site da instituição <http://www.museunacional.ufrj.br/dir/omuseu/omuseu.html>.

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Em 2018, o MN completou 200 anos de inauguração, infelizmente no mesmo


ano o que sobrou foram apenas algumas peças e o registro digital de grande parte da
herança cultural que o Museu abrigava.
O sinistro que sucumbiu com parte do acervo e do edifício do Museu
Nacional expõe as dificuldades encontradas em aplicar, gerir e fiscalizar os sistemas
preservativos vigentes. A história revela, com o passar dos séculos, diversos episódios
nos quais o patrimônio cultural foi devastado por causa de eventos considerados
raros.
Acidentes, guerras, sinistros naturais, são alguns dos exemplos corriqueiros que
atingem os bens devastados. A metodologia da gestão de riscos indica que os eventos
considerados raros ocorrem:

Los eventos considerados ‘raros’ ocurren con menor frecuencia que una vez cada ~ 100 años.
En consecuencia, este tipo de eventos no son parte de la experiencia directa de la mayoría de las
personas que trabajan en el museo. Desde la perspectiva del total del patrimonio museológico de
una nación, estos eventos pueden producirse cada pocos años, y desde una perspectiva global,
estos eventos pueden convertirse en rutinarios (ICCROM, 2016, p. 55).

Eventos considerados raros para o patrimônio cultural, muitas vezes, são


negligenciados por possuírem uma probabilidade mínima de acontecerem. Eles
surgem uma vez a cada século, mas fazem parte da história da instituição e da
memória coletiva por causarem danos materiais e simbólicos significativos. São
importantes pelo grau de degradação que causam, geralmente muito alto. Além
disso, situações de emergência causadas por eventos raros demonstram se existe
uma identificação da sociedade com o patrimônio atingido. Essa afinidade social é
expressa através de manifestações de indignação no momento e após o incidente, a
partir do tempo de resposta dos gestores em propor uma restauração e do grau de
envolvimento comunitário nos processos de recuperação e fiscalização.
Eventos raros também podem atingir patrimônios internacionalmente
legitimados, como foi o caso, em 2019, da Catedral de Notre-Dame em Paris. O
fogo começou no sótão e as causas ainda são desconhecidas, mas as suspeitas apontam
para as obras de restauração que estavam em andamento na catedral11.

Acesso em: 05 fev. 2019.


11  Reportagem realizada pela agência de notícias internacional BBC – Notre-Dame: Massive fire ravages Paris
cathedral. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-europe-47941794>. Acesso em: 17 mai. 2019.

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Figura 3: Catedral de Notre-Dame em Paris destruída após incêndio

Foto: Ludovic Marin / AFP. Fonte: Divulgação Gaúcha e ZH12.

Esses dois casos indicam que o défice na preservação do patrimônio cultural


extrapola os esparsos recursos materiais, técnicos e humanos, os quais são apontados
recorrentemente como causas para as falhas na conservação. A falta de fundos não se
justificaria no caso da Catedral de Notre-Dame, que, em 2017, foi o monumento
francês mais visitado, de acordo com dados do Escritório de Turismo e Congressos da
capital francesa. Os motivos podem estar relacionados com o quadro social cultural,
um sistema administrativo falho, a gestão insatisfatória do capital financeiro e da equipe
museal, dentre outros.
Saber lidar com o risco constante a que os bens culturais estão sujeitos, prevendo
e criando protocolos que ajudem os gestores dos bens culturais a solucionar os
problemas, minimizando os danos, é imprescindível para uma boa conservação.
Quando se analisa e se trata um risco, de maneira geral, é importante considerar
que “o risco não está ligado apenas à fatores físicos relacionados ao território
(características geográficas e/ou climáticas), mas também aos fatores socioculturais e
econômicos” (IBRAM, 2013, p.11-12). O fator de risco pode estar atrelado a relações
simbólicas que a sociedade estabelece com o bem cultural, fortemente manifestado em
casos extremos de vandalismos e destruições, como alguns casos presenciados durante
a Revolução Francesa, por exemplo (CHOAY, 2006; GONZÁLEZ-VARAS, 2018).
12  Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2019/04/o-que-se-sabe-sobre-o-incendio-
da-notre-dame-de-paris-cjukil0cs00wy01p5itekzzfr.html>. Acesso em 12 mai. 2019.

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Conforme avançam as pesquisas em gestão de riscos, maior é a inclinação


em ligar a sustentabilidade deste campo à memória, à identidade e às políticas de
gestão e preservação culturais. Por mais abundante que sejam os recursos técnicos,
humanos e financeiros, as perspectivas de salvaguarda do patrimônio cultural
se reduzem caso não haja um sentimento coletivo de pertencimento, relativo à
identidade. A sociedade necessita atuar como agente questionador e fiscalizador das
ações de preservação que são aferidas aos bens culturais. A falta de envolvimento
coletivo dificulta a aplicação e a funcionalidade da metodologia da gestão de riscos.
Como já abordado, a gestão de riscos é uma disciplina difundida por vários
autores que utilizam metodologias testadas para avaliar os potenciais riscos que
podem colocar em prática o patrimônio cultural. A matéria trabalha com um
planejamento estratégico elaborado para reconhecer, eliminar ou mitigar quaisquer
eventos ou ações (intrínseca, extrínseca ou antrópica) que ponham em risco ou
deteriorem os bens culturais. Para tanto, indica que se deve ter em conta os recursos
disponíveis, para que se criem procedimentos de trabalho, protocolos de manutenção
e mecanismos de detecção, eliminação ou mitigação dos agentes de degradação. Esta
metodologia também é uma importante ferramenta para evitar ou atenuar situações
de emergência.
Ainda que existam diversas sistematizações e métodos para analisar os riscos
para os bens culturais, o que se observa é que existe uma dificuldade muito grande
entre as instituições museais de aplicar na prática estes recursos técnicos e científicos.
No Brasil, enquanto algumas instituições estão visivelmente avançadas no que tange
ao tema, trabalhando em equipe de forma multidisciplinar, avaliando as questões
museais em conjunto, buscando alternativas para sanar as falhas administrativas e
orçamentárias, aprimorando os conhecimentos que possuem sobre conservação
preventiva etc., outras instituições sequer conhecem a matéria da gestão de riscos
ou aplicam métodos de conservação preventiva.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), apresentados na
publicação “Museus em Números” (2011), a gestão de riscos é assunto novo na
maioria dos museus brasileiros, já que “menos da metade dos museus existentes
possui planos de segurança e emergência – as ações de segurança implementadas são
o Plano de combate a incêndio, seguido do Plano contra roubo e furto” (IBRAM,
2013, p. 14). Atualmente, o IBRAM trabalha para atender a necessidade nacional da
gestão de riscos.
Há um distanciamento entre a teoria e a prática museal, no que concerne
ao conhecimento e à interação da equipe institucional como um todo, sobre os
métodos de proteção do patrimônio cultural. O IBRAM destaca que “o treinamento
de profissionais para atuação em situações de emergência e a existência de brigadas
contra incêndio são as estratégias menos empregadas em todas as regiões do País”
(IBRAM, 2013, p. 15), sendo esta uma necessidade que deveria ser considerada pelos
gestores. Os dados levantados pelo IBRAM são de 2011, mas pouco mudou em
relação a esta realidade, mesmo com todo empenho do órgão em criar manuais e
solicitar às instituições, que administra, medidas e projetos de conservação.

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A ameaça iminente de perder os bens culturais institucionalmente “preservados”,


confirmada de maneira dolorosa e irreversível pelo já citado incidente no Museu
Nacional, gera também uma possibilidade de perda de referencial simbólico e afetivo
que uma sociedade possui. O incidente com o Museu Nacional não foi um fato
isolado, mas sim um caso pragmático de como a conservação é um sistema mais
econômico e eficaz, devendo ser valorizada.
A falha na preservação destes potenciais instrumentos de ativação memorial
e identitários, como são os museus e os monumentos históricos, direciona a
questionamentos sobre a importância não apenas do estudo aprofundado da teoria
que trabalha a gestão de riscos, como também de como colocar em prática essa
metodologia. Diversos museus não elaboraram planos efetivos de gestão de riscos
porque, muitas vezes, em seu quadro de colaboradores não existe nenhum profissional
que tenha uma formação ou especialização na área da conservação-restauração.
Observações revelam que instituições museais que possuem projetos elaborados
de gestão de riscos, muitas vezes, não conseguem ativá-los durante situações práticas
de emergência, como, por exemplo, um início de incêndio, uma inundação, um
vandalismo em andamento ou qualquer outro tipo de risco aos quais os bens
culturais estão expostos. Desta forma, é necessário que se amplie a discussão sobre a
metodologia apresentada pela gestão de riscos para que se entendam quais processos
estão interferindo na atuação prática dos profissionais e da sociedade na preservação
do patrimônio cultural.

CONCLUSÕES

Existem diversas alternativas para salvaguarda do patrimônio cultural que


envolvem desde sistemas socialmente normalizados a um intento de preservação.
Pretende-se, com este texto, fomentar as reflexões sobre o tema, já que se trata de
uma questão complexa, principalmente porque sempre acaba esbarrando na falta de
recursos e de profissionais especializados em conservação-restauração. Atualmente,
no Brasil, a profissão não é regulamentada, fator que diminui as fontes de fiscalização.
O patrimônio cultural possui uma gama de políticas e ações de preservação
institucionalizadas por órgãos competentes na preservação, como o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Instituto Brasileiro de
Museus (IBRAM), mas ainda assim é vítima de sinistros observados no Museu
Nacional, em setembro de 2018. É importante que as bases da cultura material sejam
reforçadas, buscando alicerçar o que se encontra frágil e sob risco de degradação, e
a conservação é a alternativa mais adequada para estes casos. Eventos raros, como o
nome apresenta, são esporádicos, infrequentes, incertos, mas devem ser temidos pelos
gestores museais, pois, quando ocorrem, muitas vezes, só deixam como testemunhas
o edifício do museu e alguns objetos, para contar a história.

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REFERÊNCIAS

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CATO Paisley S.; WALLER, R. Robert. Agent of deterioration: dissociation. Canadian
Conservation Institute, 2013. Disponível em: <https://www.canada.ca/en/conservation-
institute/services/agents-deterioration/dissociation.html. Acesso em 05 mai. 2019.
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução Luciano Vieira Machado. 3.
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EL PAÍS. Um incêndio consome o Museu Nacional do Rio de Janeiro. O Museu é a
instituição científica mais antiga do país e conta com um acervo de 20 milhões de valiosas peças.
3 SET 2018 - 14:21 CEST Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/03/
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GAÚCHA ZH. O que se sabe sobre o incêndio da Notre-Dame de Paris. 16/04/2019
- 22h05min - Atualizada em 17/04/2019 - 06h24min. Disponível em: <https://gauchazh.
clicrbs.com.br/mundo/noticia/2019/04/o-que-se-sabe-sobre-o-incendio-da-notre-dame-
de-paris-cjukil0cs00wy01p5itekzzfr.html>. Acesso em 12 mai. 2019.
GONZÁLEZ-VARAS, Ignácio. Conservación del Patrimonio Cultural: Teoría, historia,
princípios y normas. 2. Edición. Manuales Arte Catedra: Madrid, 2018.
IBRAM. Gestão de Riscos ao Patrimônio Musealizado Brasileiro. Brasília: Ministério
da Cultura, 2013.
ICCROM - CCI. Guía de Gestión de Riesgos para el Patrimonio Museológico.
Traducido por Ibermuseus. 2017. Disponível em: <http://www.iccrom.org/publication/
guide-risk-management-english-version>. Acesso em 05 mar. 2019.
IPHAN et. al. Lista dos Bens Culturais Inscritos nos Livros do Tombo Histórico (1938
– 2012). Rio de Janeiro, 2013 (p.133). Disponível em: <https://docplayer.com.br/25632848-
Iphan-lista-nos-livros-2012-1938.html>. Acesso em: 15 mai. 2019.
MICHALSKI, Stefan. Preservación de las colecciones. In: Cómo administrar un museo: manual
práctico. Paris: UNESCO/ICOM, 2007.
MN. Texto de apresentação. Disponível em: <http://www.museunacional.ufrj.br/dir/
omuseu/omuseu.html>. Acesso em 05 fev. 2019.
NASCIMENTO, Daisy. Museu Nacional do Rio pode sofrer incêndio, diz secretário.
Reportagem online EBC – Empresa Brasil de Comunicação. Agência Brasil. 03/11/2004
- 13h04. Disponível em: < http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2004-11-03/
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Acesso em 05 mar. 2019.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente – Séculos XVIII-
XXI. Do monumento aos valores. Tradução Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

SOBRE CLAUSURAS E LOUCURAS: MEMÓRIA E


CIDADES
LUIS FERNANDO HERBERT MASSONI1
SIMONE MAINIERI PAULON2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la,
isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela,
isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
(CÍCERO, 1996, p. 337).

As cidades são expressão dos processos de subjetivação que as delineiam, mas


que também são por elas constituídos. Apropriar-se das memórias das cidades é
complexificar nossa relação com aquilo que define quem somos, que coletivos
formamos, como vivemos e que formas de governo marcam cada tempo. As
narrativas das memórias das cidades atualizam como os processos de urbanização
demarcam desigualdades, instituem fronteiras invisíveis e recortam o espaço público,
segmentando os sujeitos que as habitam.
Segregar subjetividades desviantes tem sido historicamente umas das principais
estratégias normatizadoras utilizadas como forma de controle dos corpos. A
radicalidade da diferença que a loucura apresenta, ao nos confrontar com o Outro
da Razão, tal como enunciado por Foucault (1978), tornou-a alvo privilegiado de
enclausuramento e sustentou, por mais de dois séculos, toda uma arquitetura da
exclusão, através do confinamento de doentes mentais em manicômios, isolando-os
do contato social.
1  Doutorando em Comunicação e Informação – UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: luisfernandomassoni@gmail.
com.
2  Doutora em Psicologia – PUCSP. Professora Associada PPGPsi – UFRGS. E-mail: [email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Contrapondo-se a esse modelo conformador de corpos e destruidor de


singularidades, organismos internacionais de Direitos Humanos, tais como a
Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana da Saúde
(OPAS), bem como legislações de diversos países têm promovido a defesa do cuidado
comunitário em saúde mental e estimulado processos de reformas psiquiátricas
que lhe deem sustentação. São recomendações ou mesmo leis que propõem outra
concepção para o tratamento de doenças mentais, através da reorientação do modelo
assistencial em saúde mental, que substitua os anacrônicos hospícios por uma rede
de atenção psicossocial amparada num modelo de cuidado integrado e composta de
variados serviços para demandas de cuidado também diversas. O caso italiano, em
especial, se destaca pelo pioneirismo na extinção dos manicômios e boa assimilação
da sociedade das alternativas de cuidado comunitário propostas.
Este estudo partiu de uma visita realizada a três museus da Psiquiatria (nas cidades
de Roma,Veneza e Reggio Emília), situados nos espaços que antes abrigaram alguns
dos maiores hospícios da Itália, primeiro país europeu a erradicar tais instituições. A
partir dessa experiência, propomos refletir, com base no aparato teórico do campo
transdisciplinar da memória social, do campo da Psicologia, bem como de teóricos
que estudam as cidades, sobre a importância do convívio citadino para a construção
da memória coletiva dos grupos sociais e de como a exclusão é um fator prejudicial
a tal ato memorialístico. Trata-se de uma discussão teórica que evidencia o porquê
da necessária libertação dos doentes mentais para o convívio social, retirando-os das
zonas de esquecimento e silenciamento que rondam as instituições manicomiais.
Como registro e testemunho do vivido, a história dos manicômios guarda
a memória da relação que as cidades estabelecem com seus des-atinos. Visitar tais
memórias encarnadas nos corpos loucos, encravadas em densas paredes, rabiscadas
em prontuários e recuperadas em vidas desperdiçadas é, por isto, fazer viver algo que
nossa moderna urbanidade tentou esconder.

CIDADE, MEMÓRIA E LOUCURA

Numa concepção quase utópica de uma sociedade livre e igualitária, o espaço


citadino seria o ambiente ideal para compartilhamentos e vivências responsáveis
pela efetiva prática cidadã. De acordo com Pechman (1994), a cidade se apresenta
como um enigma a ser decifrado, um palco de ensaio no qual surgem personagens
sociais e é construída uma sensibilidade, atrelada a novas formas de sociabilidade.
Ela é, por excelência, o espaço de convivência e demonstração de afetos, terreno
fértil do qual podem brotar tanto a empatia da solidariedade quanto crueldades
do individualismo. É nas cidades que ocorrem as principais trocas de valores e de
pontos de vista sobre tudo o que cerca a experiência humana.

Em sua história, a cidade permitiu (ainda que por vezes escapando aos que a controlavam
politicamente) que um número crescente de pessoas vivesse nela a experiência estimulante da
multiplicidade dos encontros e do confronto da diversidade de valores, tornando-se, desde o
Renascimento, cada vez mais decisivamente, a matriz das principais tendências da cultura moderna

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e contemporânea. Comparando sua experiência particular com a dos outros, o indivíduo pode se
conhecer melhor; pode perceber o que ele tem de comum com os demais e o que o diferencia deles.
Pode distinguir o que nele existe de mais universal e pode, culturalmente, se universalizar mais,
incorporando ao seu conhecimento os conhecimentos alheios. Essa incorporação lhe permitirá
fazer opções mais conscientes e, por isso, efetivamente mais livres. A cidade, pois, não engendra
automaticamente a cidadania, mas passa a ser o lugar onde pode ser travada com melhores
possibilidades a luta pela efetivação da cidadania (KONDER, 1994, p. 79-80).

Como “produtores desconhecidos” dos territórios que habitamos, nossos


modos de viver (n)a cidade desenham-na e ressignificam-na, recriando o lugar
no espaço tecnocraticamente construído, traçando rotas imprevisíveis, trilhas que
destoam dos percursos oficiais e que inventam novos caminhos junto a novos
caminhantes (DE CERTEAU, 1994). Desbravar a cidade e permitir-se vivenciá-la
é, assim, um ato de resistência frente aos processos de destruição e descaracterização
dos espaços públicos, dos lugares de convivência, das possibilidades de encontros
progressivamente roubadas pela lógica do capitalismo financeiro e suas marcas
culturais numa sociedade competitiva e individualista.

AS CIDADES E SUAS MEMÓRIAS

Pelas relações que permite aflorarem, a cidade é um espaço de construção


memorial. Abordando as relações entre as pessoas e a cidade, Halbwachs (1990)
compreende que o tempo, nas cidades, não é marcado apenas por casas e muralhas, mas
também pelas pessoas que por ela transitam ou nela vivem, ao ponto de confundirem
suas próprias vidas com as dela. Nas palavras do autor,“quando um grupo humano vive
muito tempo em lugar adaptado a seus hábitos, não somente os seus movimentos, mas
também seus pensamentos se regulam pela sucessão das imagens que lhe representam
os objetos exteriores” (HALBWACHS, 1990, p. 136), marcando uma relação mútua,
pois os indivíduos modificam-se a partir dos movimentos do lugar que habitam, assim
como a cidade é constituída por sua vivacidade.
As memórias individuais constituem a memória da cidade, formando uma
memória coletiva que sobrevive no trânsito pelas ruas, edificações, monumentos,
paisagens e demais elementos da urbe. Nesse contexto, constitui-se uma memória
coletiva amparada em imagens espaciais, e tirar pessoas ou grupos sociais do convívio
social significa excluí-los dessa construção memorial, tendo em vista o quadro espacial
da memória.
Porém, a cidade não é “guardiã” de uma memória em si mesma, mas apenas
o palco no qual manifestamos nossas práticas memorialísticas, tendo em vista que
a memória está, antes de tudo, nos cidadãos. Conforme Eckert (2002), as rupturas
e descontinuidades do tempo conformam um contexto no qual não devemos
permanecer submissos à concepção de uma memória inscrita sobre a história da
cidade, pois, em sua construção incessante, a cidade é permeada por lembranças e
esquecimentos por parte de seus habitantes, que a assimilam por meio de referenciais
de identificação e estranhamento.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A memória é pensada por meio da articulação que promove entre passado,


presente e futuro, propícia ao estabelecimento de formas de vida sem ruptura brutal,
em que o presente tem no passado sua fundamentação (JODELET, 2002). Esse jogo
entre diferentes tempos e pessoas é o que constitui a memória social do urbano, que
nos atravessa, impõe os obstáculos e o desafio de dialogar com o diferente, condição
sine qua non na construção memorialística. Conforme Jodelet (2002, p. 33):

A questão, pois, é saber em que condições a cidade pode aparecer como um lugar que possa ser
definido por seu caráter identificador; um lugar que permita que seus habitantes se reconheçam
e se definam por meio dele, que, por seu caráter relacional, permita a leitura da relação que os
habitantes mantêm entre si, e por seu caráter histórico, possibilite que os habitantes reencontrem
os vestígios de antigas implantações, seus sinais de filiação.

De acordo com a autora, historicamente, os estudos urbanos davam-se a partir


da metáfora da cidade como um corpo, algo orgânico e composto de coração, centro,
periferias, suas artérias, sistemas funcionais etc. Além de representar uma influência
global da cidade sobre seus habitantes, apresentava conotações individualistas,
abordando as relações de indivíduos com a forma de uma cidade, desconsiderando
o funcionamento urbano em forma de rede, bem como as particularidades da
apropriação do espaço por meio das diversidades sociais e culturais (JODELET,
2002). Suplantado esse modelo, surge uma nova metáfora, que dá conta dos jogos
identitários inscritos na cidade através da pluralidade das experiências e práticas
sociais nela desenvolvidas. A metáfora do folheamento concebe camadas distintas,
permitindo identidades mais complexas, plurais e descontínuas, a partir de relações
diferentes com os grupos e cidadãos, pensando suas formas específicas de apropriação
específicas do espaço.
O lugar é responsável pela construção de vínculos entre os indivíduos
(MAFFESOLI, 1998), espaço no qual eles subjetivam uns aos outros e a si mesmos,
através dos fazeres socioculturais, políticos, religiosos etc.

A cidade congrega unidade e diversidade; é lugar de convergência e divergência; é espaço de


refúgio, de proteção, de libertação, de bem-estar, de união, de diálogo, mas é, igualmente, espaço
de conflito, de ameaça, de violência, de opressão, de discriminação e de doença (RAMOS, 2008,
p. 134).

Conforme Rocha e Eckert (2013a), o cotidiano citadino é moldado por nossas


ações repetidas dia após dia, conferindo feições particulares às ruas, aos territórios
urbanos e aos espaços vividos coletivamente, transformando-nos em personagens
da narrativa sobre a vida urbana. Para as autoras, a cidade caracteriza-se como uma
estrutura de relações sociais, economia e mercado, sendo também marcada por
expressões da política, da estética e da poesia, local de tensão, anonimato, desprezo,
indiferença, agonia, crise e violência (ROCHA; ECKERT, 2013b), isso porque lidar
com o desigual nunca é uma tarefa fácil.

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Imagens da cidade vivida povoam nossas memórias. Caminhamos pela cidade e percebemos, em
nós, sentimentos diversos sobre pessoas de nossa rede de pertença (e outras que estranhamos),
sobre ruas que nos são familiares (evitamos outras), sobre espaços frequentados (ignoramos
outros), sobre transeuntes que nos atiram à atenção (evitamos a proximidade com alguns); enfim,
esses tantos arranjos sociais configuram um sentido de ser e estar na cidade (ROCHA; ECKERT,
2010, p. 85).

A esse respeito, Ferreira Neto (2014) compreende que as práticas cotidianas


se conectam a um processo de segregação que se materializa na forma do cidadão
andar pelas ruas, ao fechar os vidros dos carros e no olhar desconfiado que lança
aos que encontra em seu caminho. Para o autor, isso diz respeito aos novos arranjos
urbanos:

Medos, ódios, insensibilidades, indiferença. Novas maneiras de viver, sentir perceber e interpretar
os encontros na cidade. As classes média e alta passam a identificar o espaço público como perigoso
e buscam organizar os encontros públicos por meio da seletividade e separação. A segregação
torna-se, assim, complementar à violência urbana (FERREIRA NETO, 2004, p. 8).

Assim, nem sempre o espaço urbano assimila adequadamente as diferenças.


Reflexo e materialização de nossas práticas socioculturais, na cidade também se
manifestam estranhamentos que resultam em exclusão, isolamento e confinamento.
Muitas vezes, a convivência pacífica dá lugar à hostilidade e, em vez da compreensão,
tem-se o medo e a vontade de normatizar os desiguais e aniquilar os des-atinos.

REFORMA PSIQUIÁTRICA E MEMÓRIAS DA LOUCURA NA CIDADE

Entre as diferenças que emergem indesejáveis na cidade da era do biopoder,


tempos de docilização dos corpos para que sejam reduzidos a consumidores
insaciáveis, talvez a loucura esteja entre as mais intoleráveis das singularidades.
Corpos loucos são, possivelmente, os mais incabíveis às formatações demandadas
pelo capitalismo financeirizado em sua produção serial de bens materiais, que é
também de subjetividades forjadas para desejá-los e trabalhar por eles, por mais
inúteis, descartáveis e dispensáveis que sejam. Talvez, por isso, um grupo de
pesquisadores portugueses, em investigação acerca dos processos dos desafios da
desinstitucionalização da loucura em seu país, tenha concluído que “[...] a doença
mental é um dos temas que mais interpela as sociedades quanto à sua capacidade
de lidar com a diferença e com o incomum” (HESPANHA et al, 2012, p. 9). Neste
sentido, defendíamos em trabalho anterior:

A potência heterogênea que a cidade subjetiva nos apresenta não é somente dos loucos ou dos
artistas. Há cidades invisíveis que se escondem em cada encontro. Há universos que se abrem à
medida que acreditamos ser mais além de nós mesmos, revirando-nos do avesso, numa experiência
que flerta com a loucura em sua dimensão criativa e produtora de mais mundos (PAULON, 2017,
p. 783).

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Essa segregação imposta às formas de vida na cidade é decorrente do


individualismo que marca o modelo capitalista. Para Pelbart (2000), o capitalismo faz
com que boa parte da população mundial viva num único modelo de Megalópolis
que nega a diversidade, pois encontramo-nos rumo a uma tendência de vivermos em
cidades genéricas. Essa aparente uniformidade convive com grandes desigualdades
que só crescem, numa cidade desmembrada e satelizada pela organização espacial
capitalista. O consumo exacerbado responsável pela domesticação dos corpos está
pautado num processo de seleção espacial e social.
Sendo as cidades espaços de exterioridade, dispersão e escape (PELBART,
2000), elas são feitas de muitas vozes, e compreender o que todas têm a dizer compõe
o processo civilizatório e a redefinição e ampliação da própria democracia, pois
escutar as “vozes desviantes” é incluir segmentos historicamente amordaçados pelo
poder hegemônico (PAULON, 2017) na construção da memória de nossa época.
Isso porque o silenciamento das pessoas que padecem de sofrimento psíquico, bem
como dos movimentos associados a elas, revela uma história de opressão e tentativas
de controle da loucura, amparadas em práticas que violam direitos humanos dessa
parcela da população.
A reforma psiquiátrica, propondo o fim do confinamento em instituições
específicas para doentes mentais – os manicômios –, surge como um movimento
político, social e clínico inspirado nesse anseio de integrar e ouvir o sujeito com
transtorno mental, através de uma proposta de modelo de atenção em saúde que
se efetive em contexto comunitário. Trata-se de um “cuidado territorializado”
(PAULON, 2017), que atua para tecer uma rede de atenção psicossocial na perspectiva
de um cuidado inserido na comunidade, respeitando o direito à diferença, a inclusão
social dos sujeitos e a garantia de seu exercício pleno da cidadania. Isso se efetiva
através de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), de centros de convivência e
cultura assistidos, de cooperativas de trabalho (economia solidária e oficinas de
geração de renda), de residências terapêuticas e de equipes de saúde mental junto às
Unidades de Saúde da Família.

[...] o que as legislações de Saúde e Direitos Humanos induzem nossas cidades a fazerem, quando
propõem transformar o modo de atenção asilar em Saúde Mental para um cuidado em rede
psicossocial, é alinharem-se a um tempo em que se tornou incontornável, se não ‘comviver’, no
mínimo confrontar-se com a existência desses radicais diferentes que já não podem ficar confinados
em espaços a eles antes destinado (PAULON, 2017, p. 781).

Em que pese, portanto, o poder de segregação exercido pela lógica psiquiátrica


ainda hegemônica no campo da saúde mental, ele não é absoluto ao marcar a memória
das cidades. Como tudo que é do humano e que se tenta surrupiar aos olhos – como
a loucura segregada em velhos mausoléus –, quanto mais se enclausurou a doença
mental, mais marcas os hospícios deixaram nas cidades. Os museus visitados nas
três cidades italianas supracitadas materializam essa reflexão, evidenciando que a
memória e a história da loucura, ali documentadas, narram também o modo como
aquela cidade já lidou com seus diferentes. E como lembra a inscrição da parede de

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ingresso no museu romano Laboratorio della Mente: Da vicino nessuno é normale3!

ESQUECIMENTOS E SILENCIAMENTOS NAS MEMÓRIAS DAS CIDADES

Sob a perspectiva da memória social, esse é um jogo entre lembranças


e esquecimentos. Em sua concepção de memória coletiva, Halbwachs (1990)
compreende que é o vínculo com o grupo social o responsável pela constituição
das memórias, do mesmo modo que o esquecimento instala-se no momento em
que o sujeito é retirado do convívio social. No caso das cidades, sob esse viés,
percebemos que o esquecimento recai sobre aqueles que são excluídos do contato
com os demais membros do grupo social, como é o caso dos doentes mentais
enclausurados em manicômios.
Essas lembranças e esquecimentos, cabe destacar, não são apenas naturais, mas
influenciadas por disputas de poder e processos de silenciamento, construídos social
e historicamente. Se há uma memória da cidade compartilhada por aqueles que a
vivenciam em sua plenitude, livres e desimpedidos, sempre haverá também muitas
memórias esquecidas (às vezes, forçadas ao esquecimento), daqueles que não se
enquadram nos padrões socialmente impostos e que não possuem poder necessário
para se fazer ouvir.
A influência do poder sobre os processos de exclusão dos grupos socialmente
desfavorecidos é tema dos estudos de Pollak (1989), que destaca os processos de
exclusão e silenciamento de sujeitos responsáveis pelo surgimento de “memórias
subterrâneas”, enfatizando a opressão e a conformação que circundam as memórias
coletivas. Cria-se um jogo de poder no qual a memória entra em disputa, porque
há sempre uma narrativa alternativa às histórias contadas, devido ao conflito entre
diferentes sujeitos e/ou grupos sociais. Tais memórias sobressaem-se através de
ressentimentos acumulados pelo sofrimento não exposto, formando memórias
marginalizadas, justamente silenciadas para não produzirem ruídos nas memórias
oficiais.

As fronteiras desses silêncios e ‘não-ditos’ e o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente


não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos,
de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma
escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos (POLLAK,
1989, p. 8).

Nesse jogo de poder, as memórias são passíveis de enquadramentos, através


de uma interpretação do passado a partir dos embates do presente e do futuro.
Sendo a memória uma concepção ética e política, os enquadramentos que se faz
dela revelam uma postura em relação ao fenômeno recordado. Conforme Gondar
(2016), a memória como produção do poder, voltada à manutenção de valores
estabelecidos e à hegemonia de determinados grupos, em nada se confunde com a
3  Tradução da famosa frase de Caetano Veloso – De perto ninguém é Normal – da música Vaca Profana, feita para
o Álbum “Profana”, de Gal Costa, em 1984, pela gravadora RCA.

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memória compreendida como componente ativo das transformações sociais que se


deseja construir.
Nesse sentido, a escolha sobre qual narrativa contar impacta diretamente na
memória que se deseja perpetuar, já que se parte de um entendimento de que
a memória está constantemente sendo moldada pelas relações de poder. Só é
possível, entretanto, compreender a influência do poder sobre a memória quando
nós politizamos as lembranças e os esquecimentos. Conforme Chagas (2002), a
memória é sempre seletiva, sendo essa seleção o suficiente para compreendê-la
como um fenômeno suscetível às lutas de poder.
Os museus, enquanto instituições memorialísticas por excelência, não fogem
a esse embate, atuando pela manutenção de estruturas vigentes ou pela contestação
social, de acordo com as memórias que escolhem perpetuar. Ao longo do tempo,
eles foram espaços de disputa e de construção de memórias selecionadas, visando
à manutenção de certos status sociais que privilegiavam determinados grupos,
em detrimento de outros (CHAGAS, 2002). Para o autor, é importante que as
instituições de memória reconheçam essa relação, mas também que se coloquem a
serviço do desenvolvimento social, entendendo a memória como possibilidade de
ruptura e transformação criativa.
Os sujeitos que não detêm o poder para inscrever suas memórias nessas
instituições parecem fadados ao esquecimento, através de processos de silenciamento
amparados em políticas de exclusão social, isolamento e enclausuramento. Assim
como ocorre no espaço citadino, nos museus também encontramos memórias em
disputa, e é do que resulta nos embates entre os discursos socialmente aceitos e os
discursos minoritários que podem se deixar aflorar memórias subversivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cidade se apresenta como espaço privilegiado de encontros e embates


que forjam subjetividades e desenham espaços fundamentais para a formação
e a manutenção da memória coletiva do lugar. Entretanto, como exposto nos
constructos teóricos sobre cidade, é o contato com o desigual que lhe dá forma e
cor, caracterizando-a como efetivo espaço de prática cidadã. A construção de uma
sociedade plural e seu desenvolvimento cultural depende disso, pois somos fruto de
uma memória daquilo que nos tornamos, daquilo de que diferimos. Assim, negar
o espaço público a alguns sujeitos e enclausurar corpos desviantes é um ato de
violência que tem como resultado uma cidade menos criativa e, por
consequência, a constituição de uma memória enquadrada, moldada sob
a égide do preconceito, do medo e da exclusão.
Iniciamos este estudo afirmando a loucura como um alvo privilegiado de
toda uma arquitetura da exclusão que ainda marca as cidades, atualizando a tese
foucaultiana que define o louco como “Outro da razão”. Na esteira de uma genealogia
do presente que o filósofo nos inspira a fazer, avançamos com a compreensão de
que toda memória é política. Marcada pelos jogos de poder que determinam o que
se deve preservar ou esquecer, vimos que memória é uma construção politizada

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por lembranças e esquecimentos que jamais são ingênuos ou ao acaso, pois sempre
carregam intencionalidades.
Os referentes teóricos do campo da Memória Social mostraram-se profícuos
para a reflexão à qual nos propusemos, ao evidenciarem que a memória precisa ser
dialética e estar aberta às transformações, apresentando-se como possibilidade de
ruptura e transformação criativa. Uma memória voltada à manutenção de valores e à
legitimação de desigualdades históricas jamais pode ser confundida com a memória
que se põe a serviço do bem estar social, das transformações que ensejamos e da
visibilidade daqueles que, ao longo do tempo, foram excluídos das narrativas oficiais
que compõem as memórias coletivas.
A luta antimanicomial não é assim tão jovem; já são décadas de esforços
de organismos internacionais convergindo com a ideia de que práticas
efetivamente terapêuticas, inclusivas e cidadãs, no âmbito da saúde mental, não
são apenas possíveis, mas necessárias e fundamentais, tanto para os sujeitos que
padecem de sofrimentos psíquicos quanto para a sociedade enfrentar-se com sua
diversidade. Em nível nacional e internacional, não faltam experiências e legislações
que embasem a necessária reformulação do modelo psiquiátrico até então vigente,
calcado no isolamento e na exclusão social da loucura. Entretanto, todo este
aparato ainda não alcançou seu objetivo com plenitude, pois o maior desafio que se
apresenta diz respeito a uma mudança cultural, o que engloba um trabalho coletivo
que depende não apenas de usuários, familiares e profissionais engajados, mas da
conscientização de gestores públicos e da própria sociedade civil.
Felizmente, ao longo desse tortuoso caminho, identificamos outras instituições,
grupos e pessoas que podem juntar forças na efetivação desse projeto. Os museus
visitados e que serviram de inspiração para esta reflexão teórica são a prova disso.
Apesar de todas as dificuldades e resistências enfrentadas pelas reformas psiquiátricas no
Brasil e no mundo, permeadas por interesses políticos e econômicos, uma concepção
asilar de tratamento psiquiátrico é cada vez mais anacrônica e ultrapassada.
Isso é perceptível quando edificações que outrora serviram de enclausuramento de
corpos e desperdício de vidas, simbolicamente, são ressignificadas e passam a atuar
justamente para não nos deixar esquecer a forma desumana como, historicamente,
lidamos com a doença mental. O esquecimento que recai sobre as memórias dos
loucos, devido à sua exclusão do contato social no espaço citadino, é lastimável,
mas, mais abominável ainda, seria não dispormos de lugares de memória que se
propusessem a debater tal assunto, lançando luz sobre uma temática que muitos
desejam silenciar.

350
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REFERÊNCIAS

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352
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CORPO AUSENTE, IMAGEM PRESENTE:


FOTOGRAFIA E DESAPARIÇÃO FORÇADA
AURA MARCELA MESA PULGARÍN1
LAILA FIGUEIREDO DI PIETRO2

O trabalho apresentado ao 9º Simpósio Internacional Memória e Patrimônio


divulga parte da pesquisa realizada pela autora Aura Marcela Mesa Pulgarín,
para a obtenção do título de mestre em Ciência da Informação, da Universidad
de Antioquia (Medellín – Colômbia). A pesquisa buscou analisar os usos dados às
fotografias relacionadas à desaparição forçada na Asociación de Familiares de Detenidos
y Desaparecidos ASFADDES – Seccional Medellín, a fim de compreender as trajetórias
e os sentidos das fotografias que emergem em contextos de ausências e recordações,
em meio às tragédias causadas pelo conflito armado colombiano.
As fotografias cativam as pessoas devido às múltiplas funções sociais que podem
cumprir e por seu potencial de representação visual do passado. A imagem pode ser
reconhecida como um recurso de memória, a qual é entendida por Le Goff (1991,
p. 181) como “un elemento esencial de lo que hoy se estila llamar la «identidad»,
individual o colectiva, cuya búsqueda es una de las actividades fundamentales de los
individuos y de las sociedades de hoy, en la fiebre y en la angustia”. O autor ressalta
a importância que possuem as técnicas e os métodos para a construção da memória,
que oferece a base para a compreensão do passado, a orientação ao presente e no
vislumbre do futuro.
Assim, é preciso pensar que o poder das fotografias vai além da evocação,
pois, graças a seus diferentes usos, se converteram numa ferramenta essencial de
estudo e de análise de contextos. Portanto, para os casos das imagens que nascem e
são utilizadas a partir de situações de guerra, em especial aquelas que representam
a ausência na desaparição forçada, são muitos os questionamentos referentes aos
processos pelos quais passam as fotografias nos âmbitos familiar, social, cultural e
político.
A fotografia, como evocadora de lembranças, explicita o que chamamos de
uso simbólico:
1  Arquivista. Estudante de mestrado em Ciencia de la Información, con énfasis en Memoria y Sociedad
(Universidad de Antioquia). [email protected]; [email protected]
2  Doutora em Ciência da Informação (Universidade de Brasília – UnB). Professora Substituta do Departamento
de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). [email protected]

353
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

El uso de la fotografía como instrumento recordatorio de un “afín” ausente recrea, simboliza y


recupera una presencia que establece nexos entre la vida y la muerte, lo explicable y lo inexplicable.
Las fotos “vivifican”. Como una metonimia, encierran una parte del referente para totalizar un
sistema de significados. La fotografía de personas transporta formas de comunicación y diálogo.
Frente a las fotos de seres queridos muertos, las personas “conversan” en voz alta o en silencio, les
comunican novedades, les piden consejos, los saludan, les colocan flores, los acarician. En estos
casos, la foto funciona como una fuente de recreación de lazos sociales y parentales que han cesado
con la ausencia física del muerto (CATELA, 2012, p. 3).

Num contexto de desaparição forçada, as fotografias pessoais, de momentos


de alegria e comemoração, que mostram aqueles dos quais não se sabe o paradeiro,
assumem outros papéis na luta contra a violação dos direitos humanos. Desde a prova
de existência do desaparecido, até a denúncia da omissão do Estado, as fotografias
assumem diferentes trajetórias e sentidos.
Portanto, as imagens dos desaparecidos, para seus familiares e amigos, não
são somente um elemento que os confortam, mas também são instrumentos
que vivificam e dão sentido às lutas que enfrentam para reclamar seus direitos
e reestabelecer a dignidade àqueles que foram vítimas da desaparição forçada. É
justamente quando a fotografia – ou a imagem fotográfica –, levada por mães,
filhos ou esposas das vítimas, ocupa um lugar público, refletindo o trabalho social
desses grupos de vítimas e familiares, que identificamos seu uso político.
Já os usos documentais da fotografia são identificados como:

una huella, un rastro, una traza visual del tiempo que quiso tocar, pero también de otros tiempos
suplementarios – fatalmente anacrónicos, heterogéneos entre ellos – que no pueden, como arte
de la memoria aglutinar. Es ceniza mezclada de varios braseros, más o menos caliente (DIDI-
HUBERMAN; CHÉROUX; ARNALDO, 2013, p. 9).

Ademais, como suporte e recorte de um momento, as fotografias contêm


informações que permitem, quando parte de dossiês, que elas sejam provas
fundamentais para garantir direitos, além de ser uma ferramenta para a construção
da memória e de narrativas que envolvem a violação dos direitos humanos.
A desaparição forçada, definida “como mecanismo de violencia opera mediante el
arresto, la detención o cualquier otra forma de privación de libertad que ocasiona el ocultamiento
de la víctima” (CENTRO NACIONAL DE MEMORIA HISTÓRICA, 2014, p.
61), se converteu em uma modalidade de vitimização invisibilizada na Colômbia.
Daqueles que não se possui informações sobre o paradeiro, guarda-se a representação
visual, com a qual se defende sua existência. A exibição pública da imagem do
desaparecido apoia a reivindicação dos seus direitos.
Catela (2012, p. 8) afirma que:

Lo interesante es la modificación que una misma imagen sufre a partir de los elementos que se
le van agregando o los contextos de acción donde fueron y son usadas. Si inicialmente eran una
simple foto que identificaba a un ciudadano en un documento público, a medida que la propia

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

noción de desaparecido fue construyéndose políticamente, se le fueron asociando números de


legajos, fechas, procesos judiciales, que ampliaron su significado y su valor tanto simbólico como
político y judicial.

Segundo López (2011, p. 121), “no se trata de ir ‘más allá’ de las imágenes, sino de
entender cómo éstas traen consigo ya una manera de hacer hablar a la historia otros lenguajes; y
con ello, una manera de hacer hablar a las voces que no han sido escuchadas”, o que reafirma
a necessidade de compreender os usos que são dados aos documentos fotográficos
como suporte visual que transmite inumeráveis sensações e que apoiam constantes
processos sociais e políticos das vítimas.
Em resumo, foram compreendidos os usos simbólicos como aqueles em que
a fotografia é composta de subjetividades, gera sentimentos e é ressignificada, seja
durante comemorações ou rituais que permitam a evocação. Os usos políticos
provêm à fotografia o papel argumentativo, de exigência pública de reconhecimento
de direitos violados e de resistência das famílias que lutam perante a invisibilidade
estatal e social. O uso político é visível em marchas, audiências, manifestações. Por sua
vez, o uso documental conserva um sentido que vai além do estético, as imagens são
instrumentos que permitem documentar, construir histórias e apresentar denúncias.
As fotografias podem fazer parte de dossiês ou álbuns, que são fonte de informação
e podem ser provas úteis na luta contra a violação dos direitos humanos.

O CONFLITO ARMADO, A DESAPARIÇÃO FORÇADA E ASFADDES (MEDELLÍN)

A Colômbia tem convivido com um longo conflito armado interno, que afeta
grande parte de sua população (direta ou indiretamente), que envolve diversos tipos
de violação dos direitos humanos. Nas palavras da professora María Teresa Uribe: “el
nuestro es un conflicto multipolar, fragmentado, diverso, prolongado en el tiempo y diferenciado
en los espacios, lo que quiere decir que no es compatible con experiencias de conflicto y guerra
vividas por otros países […]” (URIBE, 2005, p. 15). O conflito colombiano não possui
um único autor armado que possa ser responsabilizado pelos crimes cometidos em
todo território nacional.
Foram contabilizadas 82.998 pessoas vítimas de desaparição forçada, segundo
relatório de 2018, do Observatorio de Memoria y Conflicto do Centro Nacional de
Memoria Histórica (CNMG), o qual ainda identifica como principais perpetradores
os grupos paramilitares, as guerrilhas e agentes do Estado3.
Nesse contexto de violência, grandes laços de solidariedade foram formados
entre as vítimas. Essa união tem sido fundamental para empreender processos de
construção da memória na Colômbia. ASFADDES iniciou, em 1982, a busca por
pessoas desaparecidas em decorrência do conflito armado colombiano, buscando,
ao mesmo tempo, a recuperação da memória por meio de uma luta constante, em
meio a uma sociedade que, em muitos momentos, prefere ignorar ou manter-se
3  Para mais informações, ver: <http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/noticias/noticias-cmh/en-
colombia-82-998-personas-fueron-desaparecidas-forzadamente>.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

em silêncio frente aos horrores da guerra. A associação também tem exercido um


papel muito importante na formação, no auxílio jurídico e no acompanhamento de
familiares, pois sua luta é por uma verdade que permita a compreensão dos fatos e a
recuperação das vítimas e familiares.
No início de seus trabalhos, ASFADDES enfrentou muitos contratempos, ente
eles, a falta de garantias para realizar seu trabalho. Ainda assim, a associação resistiu
e, com diversas iniciativas, encontrou meios para continuar sua busca, mostrando-
se presente na construção da memória coletiva – uma memória que, nas palavras
da própria associação, é uma união temporal entre as lembranças do passado, as
vivências do presente e as esperanças do futuro:

La memoria es, ante todo, una acción viva de continua lucha, de resistencia y dignidad de las
víctimas, en donde el pasado y el presente se unen para dejar huella en el futuro de los ausentes.
Esa es la memoria, poder hacer presente el pasado para no olvidar a los enemigos de la vida,
aquellos que les negaron a nuestros seres queridos la posibilidad de alcanzar sus metas, de cumplir
sus proyectos de transformación de la injusticia por la justicia. En fin, la memoria es la vida a cambio
de la muerte (ASFADDES, 2008, p. 80).

ASFADDES realizou numerosas manifestações sociais, que resultaram em


inúmeros registros em imagens, que transitam pela associação com diferentes
funcionalidades. Nessas imagens, podemos identificar o valor, não apenas dos rostos
dos desaparecidos que estão estampados nos cartazes e nos objetos que são levados
pelos familiares, mas também das imagens dos próprios familiares, cujos rostos agora
estampam imagens de memória da resistência perante a dor e a indiferença.
A associação, que iniciou seus trabalhos em Bogotá, ampliou sua atuação
rapidamente, em todo território colombiano, devido ao aumento das detenções
e desaparições forçadas no país. A sede de Medellín, que foi objeto da pesquisa
apresentada neste trabalho, surgiu na década de 1980, num contexto violento
que deu início a grandes mobilizações sociais. Por meio da consolidação de sedes
regionais, a ASFADDES criou uma rede de apoio que persiste até hoje e resiste
perante a continuidade dos desaparecimentos, dos assédios, das perseguições e dos
assassinatos de líderes sociais.
A análise dos usos das fotografias da ASFADDES permite compreender o
papel delas no contexto do conflito armado colombiano, visto que a associação é
uma importante representante na construção da memória do país e seus integrantes
têm sido defensores persistentes dos direitos das vítimas do conflito armado.

A PESQUISA

Para identificação e análise dos usos das fotografias relacionadas com a defesa
dos direitos humanos em casos de desaparição forçada, foi realizada, na ASFADDES
(Medellín), uma pesquisa qualitativa, divididas em quatro fases, as quais especificam
as atividades que foram necessárias para atender aos objetivos da pesquisa proposta.

356
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A primeira fase resumiu-se na exploração e no reconhecimento de iniciativas


nacionais (colombianas) e latino-americanas. Para tanto, foi realizada uma busca
pelas associações vinculadas à Federación Latinoamericana de Asociaciones de Familiares
de Detenidos-Desaparecidos, com ênfase nas ocorrências de usos de fotografias nas
organizações identificadas. Nessa fase foram identificadas possíveis categorias de
análise aos usos das fotografias no contexto da desaparição forçada.
A partir da segunda fase, com foco na ASFADDES (Medellín), foi possível
identificar usos específicos das fotografias na associação. Para isso, primeiro foi
realizado um diagnóstico documental, que permitiu uma análise superficial do estado
e uso do acervo fotográfico custodiado pela associação. Ainda nessa segunda fase,
foram realizadas entrevistas individuais semiabertas, dirigidas por pontos de interesse,
com integrantes da ASFADDES (Medellín), a fim de identificar o repertório de
ações nas quais são utilizadas fotografias.
Na terceira fase, que será explorada com mais profundidade neste trabalho,
foi realizada uma oficina com algumas integrantes da associação, para identificar
individual e coletivamente os usos das fotografias. Nessa fase, foram reconhecidos
exemplos dos três usos fotográficos que foram apresentados ao início: simbólico,
político e documental.
Por fim, na quarta fase foi realizada uma proposta de difusão, das fotografias de
ASFADDES (Medellín) e do próprio trabalho realizado pela associação. Para isso, foi
produzido um roteiro de exposição fotográfica, que evidencia os temas encontrados
e discutidos na pesquisa, e a divulgação dos usos simbólicos, políticos e documentais
das fotografias de ASFADDES (Medellín) que foram identificados.

A OFICINA REALIZADA NA ASFADDES (MEDELLÍN)

No dia dois de fevereiro de 2019, foi realizada a oficina, na ASFADDES


(Medellín), que teve como temática geral a importância da fotografia e, como
propósito, a identificação dos usos que as integrantes da associação dão, coletivamente,
às fotografias que possuem – tanto a de seus familiares detidos ou desaparecidos
quanto das lutas cotidianas da associação.A oficina teve duração de aproximadamente
três horas e teve início com uma apresentação de cada integrante. Essa apresentação
foi realizada com uma dinâmica chamada La Telaraña (ou A teia de aranha), para a
qual foi formado um círculo e cada pessoa pode dizer seu nome e a experiência
mais significativa que teve na ASFADDES (Medellín). Durante essa dinâmica, cada
participante segurava um pedaço de um novelo de lã, e, sem soltá-lo, passava-o
a outra companheira. Assim, formou-se a teia de aranha com conhecimentos e
recordações, que permitiu iniciar uma construção de narrativas conjuntas.

357
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 1: Dona Aura, integrante da ASFADDES (Medellín), na apresentação da oficina.

Fonte: Fotografía de Carlos Tobón.

Após apresentação, foram aprofundadas as questões sobre a fotografia, divididas


em quatro momentos: 1) a fotografia que conservo; 2) ações coletivas; 3) do privado
ao público; e 4) pautas de organização documental de fotografias.
No primeiro momento, as integrantes puderam apresentar uma fotografia,
que elas conservam, de seus familiares, e responderam às perguntas: por que
haviam escolhido aquela fotografia, onde elas a guardam e por que a guardam em
determinado local?
As recordações foram compartilhadas e algumas integrantes falaram sobre os
sentimentos que surgiram a partir desse exercício, sobre os lugares em que foram
feitas as fotografias, com qual frequência elas veem a imagem, e por que compartilhar
esse momento específico.
No segundo momento, falou-se das ações coletivas que ASFADDES (Medellín)
tem realizado. Foram distribuídas algumas imagens fragmentadas (como um quebra-
cabeça), para que, em grupos, as integrantes da associação pudessem uni-las, descrevê-
las e pudessem identificar pessoas, lugares e momentos. As informações identificadas
foram socializadas pelos grupos, as outras integrantes puderam complementar as
informações e, como resultado, discutiu-se a importância de descrever as imagens
desde sua produção, para que não surjam dúvidas sobre os dados com o passar do
tempo.

358
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 2: Segundo momento da oficina, “Ações coletivas”.

Fonte: Fotografía de Carlos Tobón.

O terceiro momento revelou o tema do trânsito da fotografia, do privado ao


público. Observando algumas fotografias, que fazem parte da Galeria Fotográfica
da ASFADDES (Medellín), foi discutido o significado de levar as fotografias dos
familiares a espaços públicos. As integrantes concordaram que exibir suas fotos
pessoais em lugares e atos públicos é uma atividade que potencializa a denúncia,
uma vez que a sociedade deve saber que, na Colômbia, muitos direitos humanos
foram violados.
Os rostos no cenário público, além de constituir a presença simbólica dos
desaparecidos nos diferentes espaços da cidade em que são exibidos, também buscam
sensibilizar os transeuntes desprevenidos que, esporadicamente, se aproximam e
compartilham momentos com as integrantes da associação.
Por fim, o quarto momento foi dedicado a uma breve explicação sobre o
tratamento documental de fotografias, para que as integrantes pudessem ter noções
básicas de como organizar e conservar esse tipo de documento.
A partir das entrevistas individuais, citadas anteriormente, e dos resultados
da oficina realizada, foi possível reafirmar a hipótese de que existiam três usos
fundamentais para as fotografias no caso da ASFADDES (Medellín).

359
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

USO SIMBÓLICO

As integrantes de ASFADDES (Medellín) realizam ações criativas e emotivas,


de forma individual, para representar a memória dos familiares ausentes e para
atenuar a dor da vitimização, que tem como principal característica o ocultamento
do corpo, o que faz com que o processo de dor e/ou de luto seja muito mais
complexo.
Normalmente, as integrantes da associação elegem suas fotos favoritas de
seus familiares, que podem trazer imagens que refletem a inocência da infância ou
momentos compartilhados entre família. Essas fotografias costumam ser decoradas
com frases, flores, desenhos ou acompanhadas com outros objetos que faziam parte
da vida cotidiana do desaparecido. Em outros casos, as fotografias são recortadas,
reconfiguradas, transformadas em colagens, broches ou cartões. O uso simbólico é
evidenciado nas datas comemorativas, quando as fotografias são exibidas, inclusive,
acompanhadas de objetos que ritualizam essa exibição, como velas, fogos, roupas e
outros (figura 3).
De uma forma ou de outra, a fotografia está presente como uma forma de
rememorar a existência dos familiares desaparecidos e dignificar sua existência, por
meio de embelezamento e exaltação de seus retratos.

Figura 3: Fotografias exibidas na Semana del Detenido Desaparecido em maio de 2019, em Medellín.

Fonte: Fotografia de Aura Marcela Mesa Pulgarín.

360
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

USO POLÍTICO

A Galeria Fotográfica da ASFADDES (Medellín) é um exemplo importante


do uso político das fotografias. Seu impacto na denúncia pública das violações
cometidas durante o conflito armado colombiano é reforçado com a exibição dos
rostos dos desaparecidos, o que faz com que a sociedade tenha conhecimento da
magnitude da violência e humanize as vítimas, que costumam ser informadas em
números e porcentagens. Além disso, gera uma consciência da amplitude temporal e
geográfica dos crimes, já que a galeria expõe alguns dados relacionados à data e ao
possível lugar de desaparecimento das vítimas.
Outra manifestação política da fotografia, mais conhecida, é a exposição de
fotos e recortes em atos públicos. Mães, esposas, irmãs e familiares de desaparecidos
levam consigo, em camisetas, atadas ao peito, ou em cartazes, fotos de cada um dos
desaparecidos. Desta forma, tanto se identifica a luta pessoal de cada um deles, como
também, ao levar essas fotografias ao espaço público, convertem a luta numa questão
coletiva, que diz respeito a toda sociedade.
Essas mulheres buscam sensibilizar e gerar consciência numa comunidade
que ainda caminha ao entendimento de que os processos de paz são um trabalho
coletivo. Levar ao cenário público as fotografias dos desaparecidos, comprovando sua
existência e reclamando sua ausência, é uma ação política de resistência e exigência,
que não sucumbe perante as barreiras e perseguições que sofrem as associações e as
organizações de defesa dos direitos humanos e das vítimas do conflito armado.
A figura 4 exibe uma cena da comemoração do Dia Internacional das Vítimas
de Desaparecimentos Forçados, comemorado no dia 30 de agosto, como uma
manifestação pública contra a detenção e o desaparecimento de pessoas. Nesse
contexto, os familiares unem-se em locais públicos com camisetas, cartazes e outros
tipos de objetos, que trazem a imagem dos rostos dos desaparecidos, a fim de
protestar e resistir.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Figura 4: Comemoração do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados em Medellín, 30 de agosto
de 2018.

Fonte: Fotografia de Camilo Rojas.

USO DOCUMENTAL

O tratamento documental para a organização e a conservação da documentação


gerada pela luta da ASFADDES (Medellín) faz parte de seus projetos, porém, até o
momento, não puderam empreender as medidas necessárias para o tratamento de
seu acervo fotográfico, por diversos impedimentos de espaço e recursos. Ainda assim,
compreendendo o valor dos documentos fotográficos e das imagens que possuem
e produzem, entendem a importância do planejamento para a preservação desse
acervo como um registro de memória das atividades da associação, da luta pela
defesa dos direitos humanos e das próprias violações cometidas durante o conflito
armado.
Apesar da dificuldade para constituir um acervo coletivo, as integrantes da
ASFADDES (Medellín) têm produzido seus arquivos pessoais, somando cada

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

documento que é gerado na busca por informações e esclarecimento dos fatos sobre
o desaparecimento de seus familiares. Nesses arquivos, é possível identificar diversos
tipos de documentos, como recortes de imprensa, documentos pessoais, processos
que foram iniciados pelos familiares, entre outros. A figura 5 exibe um exemplo
de arquivo pessoal – nesse caso, o de Fernando Gavíria, detido/desaparecido –,
produzido por seus familiares durante a busca por informações sobre o paradeiro.
Em alguns casos, encontramos como primeiro documento dos dossiês pessoais uma
foto do desaparecido – iniciando com um rosto e uma identidade da pessoa que se
busca.
A fotografia como documento pode acompanhar as narrativas dos outros
documentos que compõem os arquivos. Contextualizadas, complementam ou
completam os dados sobre os desparecidos.

Figura 5: Documentos do arquivo pessoal de Francisco Gaviria (detenido/desaparecido), 2019.

Fonte: Fotografia de Aura Marcela Mesa Pulgarín.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fotografia relacionada à desaparição forçada circula por diferentes âmbitos,


privados e públicos, sendo ressignificada e servindo de instrumento que ativa a
evocação. É importante aclarar que as imagens que circulam costumam ser recortes
das fotografias: os documentos conservados pelos familiares revelam uma tomada
mais ampla, que apresentam contextos e momentos específicos, na maioria das
vezes comemorativos, enquanto as fotografias que são levadas ao cenário público
são recortes que focam nos rostos das vítimas. Sobre o tema, Blanes (2009, p. 91)
comenta que:

363
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Esas fotografías, que registraban a los desaparecidos en situaciones cotidianas y azarosas,


subrayaban una idea fundamental: lo importante no era su militancia ni su vinculación a un
determinado proyecto de transformación, sino la cotidianidad familiar y afectiva de la que habían
sido violentamente extraídos.

Portanto, a luta que enfrentam as integrantes da associação, ao exibir as


fotografias dos desaparecidos, tanto no cenário privado quanto no público, se
converte também num terreno de disputa e resistência ao esquecimento, uma vez
que a imagem enche de significado o sentir e incorpora o sentimento de esperança
de encontrar seus familiares desparecidos.
As fotografias documentam, verificam um acontecimento e confirmam
a existência das pessoas, são a prova que complementam os depoimentos dos
familiares das vítimas quando conferem um rosto a seus relatos. Também permitem
a humanização mediante a evocação e representação simbólica. “La fotografía tiene
la capacidad de hacer resonar en el presente ecos de otro tiempo e incluso lleva
adheridos algunos de esos ecos a su materialidad visual” (BLANES, 2009, p. 94), sem
ignorar seu valor eminente no momento de realizar denúncias públicas de caráter
político.
ASFADDES (Medellín), a partir da articulação entre familiares e o
fortalecimento de suas funções missionais, segue realizando um trabalho essencial
para o esclarecimento dos fatos que envolvem o desaparecimento de indivíduos na
Colômbia, vítimas do conflito armado, e para o encontro da paz. A construção da
história a partir das imagens presentes nas fotografias produzidas pela associação faz
parte do processo coletivo de construção da memória, visto que a fotografia atua
como importante ferramenta para os reclamos e a defesa de seus direitos.

REFERÊNCIAS

ASFADDES. El olvido disfrazado de memoria. In: ALCALDÍA MAYOR DE BOGOTÁ


D.C. Debates de la memoria: aportes de las organizaciones de víctimas a una política
pública de memoria. Bogotá: Centro de Memoria, Paz y Reconciliación, 2008. p. 19-86.
BLANES, J. P. De la prueba documental a la evocación subjetiva. Usos de la fotografía en las
publicaciones sobre la represión chilena. Pasajes: Revista de pensamiento contemporáneo,
Valência, n. 30, p. 85-96, 2009. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/
articulo?codigo=3105334>. Acesso em 28 jun. 2019.
CATELA, L. da S. Re-velar el horror: fotografia y memoria frente a la desaparición
de personas. In: SEMINARIO INTERNACIONAL MEMORIA, CULTURA Y
CIUDADANÍA, 2, 2011, Manágua (Nicarágua). Ponencias […]. Manágua: IHNCA, 2011.
Disponível em: <http://www.ihnca.edu.ni/SSIDOS_revelar_LS>. Acesso em 26 jun. 2019.
CENTRO NACIONAL DE MEMORIA HISTÓRICA. ¡Basta ya! Colombia: memorias
de guerra y dignidad. Bogotá: CNMH, 2014.

364
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DIDI-HUBERMAN, G.; CHÉROUX, C. ARNALDO, J. Cuando las imágenes tocan


lo real. Madri: Circulo de Bellas Artes, 2013.
LE GOFF, J. El orden de la memoria: el tiempo como imaginario. Barcelona: Paidós,
1991.
LÓPEZ, M. del R. A. El conjuro de las imágenes: Aby Warburg y la historiografía del alma
humana. Estudios de Filosofía, Medellín, n. 44, p. 117-135, dez. 2011. Disponível em:
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view/12638>. Acesso em 25 jun. 2019.
URIBE, M. T. Memorias, historias y ciudad. Revista de Trabajo Social, Medellín, n. 1, p.
11-26, jan./jun. 2005. Disponível em: <https://aprendeenlinea.udea.edu.co/revistas/index.
php/revistraso/article/view/24253>. Acesso em 26 jun. 2019.

365
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MEMÓRIAS TRANS: ENTRE ESTIGMAS E


TRAUMAS ANTE A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE
LUCIMARY LEIRIA FRAGA1
ANDRÉ LEONARDO COPETTI SANTOS2
JULIANI BORCHARDT DA SILVA3

CONSIDERAÇÕES ACERCA DO UNIVERSO TRANS4

Ao se analisar sexo, gênero e identidade na perspectiva do mundo jurídico


ou memorial e cultural, bem como na perspectiva da intervenção legal sobre os
corpos, importa atentar para que esta influência seja de fato no intuito de possibilitar
a igualdade e o melhoramento da vida dos sujeitos que vivem historicamente
marginalizados em razão de viverem fora dos padrões heteronormativos impostos
pela sociedade (SANTOS; LUCAS, 2015, p. 115). Igualmente importa salientar que
os conceitos sobre sexo, sexualidade, gênero e identidade não são algo estanque,
fadado a um só conceito, eis que os sujeitos vivem em constante evolução. Diversas
são as áreas de análise sobre tais temáticas, bem como sobre o que as envolve
enquanto fenômenos sociais. Erroneamente, o sexo biológico parece pautar toda e
qualquer discussão nesse sentido, o que deixa de aprofundar as análises sobre seu real

1  Mestranda em Direito pelo PPG Stricto Sensu da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI) campus de Santo Ângelo. Bolsista CAPES/PROSUC. Bacharela em Direito pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Campus de Santo Ângelo. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa (CNPQ) Direitos de Minorias, Movimentos Sociais e Políticas Públicas, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu - Mestrado e Doutorado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI), Campus Santo Ângelo/RS. Pesquisa temas relacionados a mulheres Trans, identidade, cultura e
diferença. [email protected].
2  Pós-Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Possui mestrado e Doutorado em
Direito, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e graduação em Direito pela Universidade de Cruz Alta.
Atualmente, é professor do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIJUÍ, Ijuí/RS,
e do Programa de Pós-Graduação em Direito da URI, Santo Ângelo/RS. Coordenador Acadêmico do PPGD/
URISAN. Editor da Revista Científica Direitos Culturais. Membro fundador da Casa Warat Buenos Aires e da
Editora Casa Warat. Advogado criminalista. [email protected].
3  Doutoranda (PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPEL/RS). [email protected].
4  Termo utilizado para abarcar todas as Transidentidades, em especial as mulheres Trans, de modo a não engessar e/
ou buscar padrões de autoidentificação de gênero que engessem a liberdade dos sujeitos que assim se reconhecem
(LANZ, 2017).

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

significado. Conforme aduz Jesus, o sexo é fator meramente biológico, enquanto


gênero é algo que iria além, ou seja, seria a percepção do indivíduo sobre si, ou
a forma como cada um usa para expressar-se na sociedade, e esta deve ser uma
liberdade garantida (JESUS, 2012, p. 6).
Nesse sentido, sexo e gênero, por vezes, acabam sendo identificados como
uma única coisa, de modo que, sob essa perspectiva, o indivíduo que nasce com
um pênis é homem e, respectivamente, a pessoa que nasce com vagina é mulher.
Assim, importante compreender que o sexo se refere à diferença genética das
pessoas sexuadas, enquanto o gênero não emerge da natureza e sim de uma gradual
construção social, que possui variações culturais e sociais, de modo que o gênero
surgiu visando a desconstruir a visão essencialista de que a diferença entre homens e
mulheres fosse meramente biológica (LANZ, 2017, p. 40-1). Neste passo, o gênero
talvez tenha sido a primeira forma de existência das relações de poder social e, nesse
campo, o poder se articula ao passo que o gênero constitui formas de relação e ordem
em nosso meio, no qual o feminino e o masculino parecem determinar o andar
humano (SCOTT, 1990, p. 21-5). Sob essa perspectiva, Goffman contextualiza que
existem, historicamente, categorias sociais, de modo que nossas escolhas e atributos
nos condicionam a classes definidas socialmente (GOFFMAN, 1988, s.p.). Assim, o
gênero acaba rotulando indivíduos que quebram essas categorias pré-estabelecidas.
Por sua vez, Butler percebe o corpo e o gênero como uma construção
constante, no mesmo sentido lecionava Simone de Beauvoir, que entendia que a
mulher se tornava mulher ao longo de suas vivências, e não ao nascer, meramente
pelo fator biológico. Assim, ao lado dos chamados gêneros intelegíveis, a autora
atenta para seres “falhados”, termo no qual estariam as pessoas Trans, os quais geram
uma natural desordem nas normas tidas como adequadas de se viver em sociedade
(BUTLER, 2010, p. 39).
Por seu turno, Lanz refere-se à teoria Foucaultiana acerca do dispositivo
binário de gênero, qual seja o conjunto de normas de controle de corpos, que por
vasto tempo busca estereotipar os indivíduos. Portanto, homens e mulheres que
venham a transgredir tais normas de conduta passam a ser de gêneros divergentes,
não se compreendendo o gênero, assim como as demais autoras, como uma herança
biologicamente definida (LANZ, 2017, p. 43). Letícia Lanz, a fim de melhor ilustrar
as questões de gênero, aduz ainda que, conforme o feminismo da primeira onda,
sexo e gênero teriam origem biológica, de modo que as diferenças entre indivíduos
seriam de forma natural, já o feminismo de segunda onda percebe sexo e gênero
como coisas distintas, trazendo o gênero como construção social. E, para o feminismo
de terceira onda, sexo e gênero nada mais seriam do que formas de linguagem e
controle social (LANZ, 2017, p. 48-9).
Por outro viés, mas, ao mesmo tempo ligando as diversas formas de manifestação
sexual e de gênero, ao passo que o trabalho avança para a análise da narrativa Trans,
importa fazer algumas distinções cotidianamente mal interpretadas no tocante à
orientação sexual, à identidade de gênero e à expressão de gênero. Desse modo, o
sexo se resume à classificação biológica de cada sujeito, já a orientação sexual diz
respeito ao coração, a quem as pessoas escolhem amar, quer sejam, por exemplo,

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

homossexuais ou heterossexuais, enquanto que gênero se dá pela construção social,


o que está umbilicalmente ligado às expressões de gênero, que é a forma como cada
sujeito se apresenta, como se comporta de acordo com seu gênero (JESUS, 2012,
p. 13). Essas distinções são fundamentais, ao passo que estão atreladas à liberdade
de cada ser humano viver como deseja, e afrontam uma sociedade naturalmente
aprisionadora de corpos e castradora de desejos. Tal qual preleciona Foucault, faz-se
necessária uma análise libertadora sobre o sexo a suas ramificações, de modo que essa
castração humana tenha fim e o saber possa se fazer presente, afastando os dispositivos
de poder que tais temáticas construíram ao longo do tempo (FOUCAULT, 1988,
p. 71).
Sob essa ótica, em razão da sociedade multicultural existente, tem-se, como
desafio para os direitos humanos, a garantia da cidadania e do direito à liberdade bem
como o reconhecimento de cada sujeito no que toca à sua forma de vida, garantindo
assim, uma convivência equânime entre os diferentes entre si (BERTASO, 2013,
p. 34). Desta feita, toda e qualquer discussão acerca de sexo, gênero e identidade
deve ser no sentido de salvaguardar os direitos daqueles que, indubitavelmente,
devem ter a liberdade de viver como se reconhecem, fazendo parte desse público os
adolescentes, as mulheres e os homens Trans.

A (DES)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE TRANS: QUE MULHERES SÃO ESSAS?

As experiências e relações humanas são constantemente modificadas, na


medida em que o próprio ser humano se constrói e se adapta ao meio em que vive.
Todavia, para alguns sujeitos, esta construção está umbilicalmente ligada à resistência,
eis que o preço pago socialmente para exercerem suas identidades é cobrado
diariamente, nas mais diversas esferas. Nesse ensejo, o senso comum acaba por julgar
os corpos, tornando-os alvo dos mais diversos olhares, o corpo ora é umbral, ora céu,
necessitando calcular seus movimentos e vivências, de modo a conseguir transitar
sem ser subjugado (WARAT, 2010, p. 85).
Ao se falar em formas de expressão corporal, percebe-se que as maiores diferenças
entre mulheres e homens constroem-se social e/ou culturalmente. Por exemplo,
quando, desde a infância, pais educam os filhos no sentido de comportarem-se
“adequadamente de acordo com seu gênero” rotulando-os baseados em convicções
construídas ao longo de suas vidas (JESUS, 2012, p. 5). Assim, nascer com um órgão
sexual é culturalmente o primeiro requisito de adestramento social, político e
cultural. Ocorre que, atualmente, a sociedade se desenha cada vez mais plural e essas
verdades tidas como absolutas começam a ser questionadas e desafiadas por quem
não deseja viver dentro das “caixas” determinadas ao longo do tempo (LANZ, 2017,
p. 156-7).
À vista disso, neste emaranhado de relações e na diversidade de identidades e
contextos sociais, surgem as mulheres e homens Trans, sujeitos que não desejam viver
de acordo com o sexo biológico, todavia, nem sempre buscam alterá-lo por meio
de procedimento cirúrgico. Ou seja, nesse universo estão inseridas as identidades
que contrariam as normas de gênero socialmente estabelecidas, quais sejam macho/

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fêmea. É essa transgressão das normas de gênero que identifica a mulher Trans na
sociedade, o que não deixa de ser uma forma de ousar, de transcender um sistema de
hierarquização dos sujeitos há muito tempo existente (LANZ, 2017, p. 69).
Nessa mesma linha, mulheres travestis são geralmente lançadas ao mercado
do sexo, fazendo da rua um lugar social, espaço que lhes é negado no mercado
de trabalho, nos educandários e em tantos outros espaços (LANZ, 2017, p. 95).
A resistência dos movimentos em unificar essas identidades múltiplas como Trans,
ou gênero divergente, acaba por discriminar os sujeitos que assim se reconhecem,
enfraquecendo grupos que buscam o mesmo fim – o direito de viver como desejam
e como se reconhecem. Ou seja, dentro dos grupos de pessoas Trans, acaba sendo
fomentada uma forma de hierarquização de identidades, assim, onde esses sujeitos
poderiam encontrar amparo, acabam por encontrar uma segregação semelhante a
do restante da sociedade quanto a suas formas de expressão. Mas, como tanto se
questiona: o que é ser mulher? “A mulher? É muito simples, dizem os amadores de
fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para
defini-la” (BEAUVOIR, 1980, p. 25). Todavia, ser mulher vai além da genitália,
transcende questões biológicas e adentra na seara social, identitária e pessoal
de cada indivíduo que assim se reconhece e deseja viver. Em outras palavras, se
alguém se sente mulher e assim deseja viver, que mal há? De acordo com essas
normas socialmente impostas, um homem que passa a se vestir como mulher está
em desacordo com as normas adequadas (LANZ, 2017, p. 69). Uma das questões
urgentes é a de que indivíduos que transgridam tais ideais de conduta social, muitas
vezes, são vítimas dos mais diversos tipos de discriminação, seja pela
ausência de um olhar governamental, legal ou social, seja pela violência a
que são submetidos cotidianamente, figurando na sociedade como minorias. Nesse
ensejo, Angelin e De Marco aduzem que:

O processo de “desenvolvimento” social, político, humano e ambiental da humanidade produziu


diferenças e desigualdades sociais latentes, formando contingente de grupos sociais que se
encontram às margens da sociedade, desassistidos pelo Estado e afastados de direitos de cidadania
apregoados nas legislações locais, ou até mesmo, sem ter positivado direitos que lhes garantam
o mínimo de dignidade. A história demonstra que, esses grupos sociais, também denominados de
“minorias”, no decorrer da história tem se organizado para forçar o Estado a lhes garantir o acesso
e a viabilização de direitos (ANGELIN; DE MARCO, 2014, p. 2).

O termo minoria aqui utilizado é meramente uma forma de identificar


esses indivíduos que, numericamente, são inferiores às pessoas heterossexuais e,
obviamente, aceitas pela sociedade sem maiores questionamentos acerca de sua forma
de vida. Já em relação às minorias, estas diariamente convivem com diversas formas
de segregação social e violência, seja física ou psicológica. Acerca da violência,
Saffioti preleciona que:

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Ainda no que se refere à violência, especificamente no sentido de gênero, esta acarreta desigualdade
social, na medida em que muitas vezes é fomentada pelas estruturas de poder, por agentes em
diversas esferas, segregando alguns indivíduos da vida em sociedade (SAFFIOTI, 2015, p. 74-5).

Essas situações vexatórias de violência e segregação a que são submetidas


mulheres Trans muito está atrelada a heteronormatividade5, eis que, ao longo do
tempo, a heterossexualidade se apresenta como norma correta, impossibilitando os
modos de vida diversos dos definidos biologicamente (BENTO, 2008, p. 51). Tais
imposições retrógradas acabam por influenciar o retrocesso social no sentido de não
abarcar as múltiplas identidades existentes, de modo a invisibilizá-las, bem como
impedem maior reflexão acerca da construção identitária desses sujeitos, análise
fundamental numa sociedade plural.
Deste modo, mulher Trans aqui abordada é a mulher divergente do padrão
binário de gênero, qual seja homem-mulher, não cabendo, portanto, análises baseadas
em patologias ou perversões, o que cultural e historicamente é reproduzido, mantendo
o diferente à margem da sociedade. Tampouco, se reduz à orientação sexual, mas
trata-se de uma construção de cada indivíduo que assim se reconhece (JESUS, 2012,
p. 7). Faz-se necessário desconstruir a ideia do corpo como algo biologicamente
fadado a um só molde, uma vez que este está em constante transformação. O corpo
é a trajetória sociocultural viva de cada ser, carregando e si nossas vivências e desejos,
moldando-nos enquanto sujeitos (FOUCAULT, 2015, p. 65).
Urgem tais discussões, na medida em que a exclusão social assola muitas
mulheres Trans, pelo fato de assumirem publicamente quem são, sendo privadas,
muitas vezes, do próprio mercado de trabalho, restando- lhes, como alternativa,
muitas vezes, a prostituição ou a drogadição e o crime, que parece, dentro de um
contexto, empoderá-las, sendo a rua, muitas vezes, a única forma de sobrevivência
ou de pertencimento a um grupo social, uma vez que o Estado não as ampara e a
sociedade não as vê. Sob essa perspectiva, Santos preleciona:

Sabemos também que as identificações, além de plurais, são dominadas pela obsessão da diferença
e pela hierarquia das distinções. Quem pergunta pela sua identidade questiona as referências
hegemônicas, mas, ao fazê-lo, coloca-se na posição de outro e, simultaneamente, numa situação
de carência e por isso de subordinação (SANTOS, 1994, p. 31).

Por derradeiro, na subordinação social à qual as mulheres transexuais estão


historicamente submetidas, elas acabam por construir códigos e valores próprios,
quer seja para resistirem, ou mais que isso, para sobreviverem num mundo tão voltado
aos julgamentos sociais e de gênero, ou seja, a batalha por respeito é labuta diária
e necessária, não há direito adquirido integralmente, ao passo que a sociedade se
transforma constantemente, mas sem deixar de segregar inúmeros sujeitos. De outra
banda, a urgência na análise acerca do universo Trans se dá em razão de o Brasil
figurar como protagonista de assassinatos de pessoas Trans no mundo, especialmente
5  Trata-se de um conjunto de normas que, historicamente, fazem da heterossexualidade uma espécie de monopólio
da normalidade, estigmatizando e segregando os sujeitos que não vivem de acordo com tais normas, a exemplo das
pessoas Trans (LANZ, 2017).

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mulheres Trans, as quais possuem uma estimativa de vida que dificilmente ultrapassa
35 anos de idade. Conforme atenta Benevides:

O modo como essas mortes ocorrem é sempre muito violento. O assassinato por tiros encabeça
a lista de mortes, mas não são um ou dois tiros, é uma execução. Há casos em torno de 20, 30
tiros, como se o assassino quisesse matar também a alma da vítima. Expurgar de vez a
existência Trans. E é assim que eles fazem! Muitos destes assassinatos são cometidos por pessoas
sem relação direta com a vítima, o que demonstra a Transfobia presentes em todos os casos que
vem sempre acompanhados de requintes de crueldade. E são as travestis e transexuais, em geral
as profissionais do sexo, negras e em situação de vulnerabilidade social, as mais expostas
(BENEVIDES, 2017, p. 8, grifo nosso).

E, ainda mais preocupante, é a percepção de que mulheres Trans em situação


de vulnerabilidade social e prostituição são ainda mais expostas à violência, ainda
que já a tenham conhecido, muitas vezes, no seio familiar, esta “caça às pessoas Trans”
necessita ser estudada e debatida a fim de se buscar alternativas de manter essas
pessoas protegidas do preconceito e da falta de espaço social. Conforme relatório da
Antra, por meio dos assassinatos:

[...] denota o ódio às prostitutas, em um país que ainda não existe uma lei que regulamente a
prostituição que, apesar de não ser crime, sofre um processo de criminalização e é constantemente
desqualificada por valores sociais pautados em dogmas religiosos que querem manter o controle
dos seus corpos e do que fazemos com eles. Este comportamento da sociedade é constantemente
reforçado pelas representações preconceituosas que o senso comum detém da imagem da
prostituta e estão relacionadas aos comportamentos considerados como imorais pela sociedade
(ANTRA, 2017, p. 18).

Por outro viés, analisa-se aqui a questão Trans atrelando-a ao sistema


socioeducativo e ao campo da memória e da narrativa, abordando-a para além dos
estigmas sociais e da situação histórica de desigualdade deste segmento frente a uma
sociedade patriarcal, machista e naturalmente opressora, o que é realidade latente com
mulheres, negros, indígenas, hipossuficientes, quilombolas, entre outros segmentos,
os quais são vulnerabilizados no tocante a seus direitos, quer seja o de viverem
sua identidade social ou cultural. Parte-se para uma análise na seara socioeducativa,
todavia, não se desconectando da realidade das ruas e da prostituição, pois se trata do
local de fala de Joana, a qual emprestou suas vivências a este trabalho, almejando ser
ouvida dentro de suas narrativas.

MEMÓRIAS TRANS E A PRIVAÇÃO DE LIBERADE: O CASO JOANA

O caso exposto neste ensaio, envolvendo uma adolescente Trans privada de


liberdade se deu junto ao CASESA6, que recebeu, no ano de 2016, uma adolescente

6  Trata-se de uma unidade de atendimento socioeducativo do Município de Santo Ângelo-RS.

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Trans de nome Joana, a qual, assim como tantas Trans brasileiras, é oriunda de família
humilde formada por três irmãos, sendo ela a mais jovem. Joana, que possuía nome
de registro masculino, se enquadrava, aparentemente, no padrão da unidade, em
razão de biologicamente estar de acordo com a legislação (SINASE). Porém, do
parecer psicológico realizado pela psicóloga da Unidade, o qual está acostado aos
autos, constou:

Quando perguntado para a adolescente como ela deseja ser chamada, ela responde que prefere
que se refiram a ela pelo nome de Joana. Por este motivo, nesta avaliação será feita referência à
adolescente pelo nome de Joana; cabe destacar que na sua aparência física, também existe
identificação com o sexo feminino (BRASIL, TJRS, Processo nº 029/5.16.0000902-8, p. 144, grifo
nosso).

De imediato à análise do processo judicial, é possível perceber a contradição


existente entre o laudo psicológico e a representação do Ministério Público, eis
que, na avaliação, a adolescente é denominada Joana e tratada na forma feminina, já
da representação constaram: “José, brasileiro, menor de idade [...]” (BRASIL, TJRS,
Processo nº 029/5.16.0000902-8, p. 1), requerendo a cientificação “do” representado.
A mesma situação de invisibilidade é percebida junto à audiência de instrução, no
momento em que Joana é questionada acerca de seu estado civil, sendo perguntado
se era “solteiro”, tendo ela respondido que sim, era “solteira”. Do mesmo modo,
no tocante a sua atual atividade, quando referiu de forma enfática em sua narrativa:

Eu não tava mais fazendo programa, eu tinha parado com tudo, tava estudando, tava tudo, eu
nem saia mais de noite, não tava fazendo coisa errada. Não teve nenhuma ocorrência depois que
aconteceu essa outra coisa, que eu fui presa, passou dois anos e não teve nada mais no meu nome
(JOANA, 2018).

Abstendo-se das discussões acerca do nome social, tanto a equipe técnica da


unidade como o representante do Ministério Público e a Justiça, de forma ampla,
estiveram frente a frente com Joana. Todavia, somente a psicóloga a tratou como
menina, o mesmo ocorrendo no boletim de ocorrência, o qual descreve Joana como
menino à fl. 28 dos autos ora referidos.
No curso do feito, numa das audiências, junto ao Juizado Regional da Infância
e da Juventude, em agosto de 2016, o Ministério Público (ou seja, a acusação
que, via de regra, poderia não ter um olhar brando à adolescente) referiu que, em
respeito a sua auto identificação, de modo que visualizava uma menina ao olhar para
a adolescente, não vislumbrava a possibilidade da mantença da adolescente junto
ao CASESA, razão pela qual opinou pelo cumprimento da medida junto a uma
Unidade feminina na cidade de Porto Alegre-RS.
Já a Defesa, leia-se Defensoria Pública, postulou pela liberdade de Joana, em
razão da não apreensão em flagrante, mas não fundamentou sua defesa atentando
para o fato desta ser uma adolescente Trans, mesmo cabendo, em razão das
particularidades do caso, postular neste sentido, a fim de salvaguardar os direitos de

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sua assistida. Já Joana, quando indagada pela equipe acerca do lugar que considerava
ideal para sua permanência enquanto privada de liberdade, demonstrou receio em
permanecer tanto numa unidade para o sexo biológico masculino quanto para o
sexo biológico feminino, em razão da discriminação que poderia sofrer em relação à
aparência física destoar de sua genitália, em ambos os locais. Ainda assim, referiu que,
num local composto por internas do sexo feminino, talvez se sentisse mais à vontade,
mas, por sua fala, observa-se que nem mesmo Joana sabia onde era realmente seu
lugar.
Assim, preliminar às narrativas e vivências de Joana, no que concerne ao
sistema socioeducativo, é fundamental buscar compreender alguns pontos acerca
de memória e identidade, a fim de que se perceba a importância da narrativa da
adolescente sobre sua passagem pelo CASESA. Nesse aspecto, mostra-se essencial
perceber que a memória advém de uma construção social, tal qual o gênero e a
identidade. Em outras palavras, a memória é uma forma de reconstruir o passado,
alimentando, assim, a construção constante daquele que a invoca ao narrar fatos de
sua vida, fatos esses que o constituem/moldam enquanto sujeito (CANDAU, 2012,
p. 10-16). É visível, junto às narrativas de Joana, o sentimento de preconceito em
relação a sua identidade de gênero enquanto mulher Trans.
Por outro lado, a importância do narrado pela adolescente ocorre tendo em
vista suas vivências, mas, para que haja vivências, há que existir um sujeito, e, no caso
em tela, o sujeito é Joana. Assim, a essencialidade de sua identificação neste trabalho
se dá, primeiramente, atentando para a premissa de nominá-la, afinal, poderiam
ser aqui analisadas outras tantas meninas Trans que, cotidianamente, adentram ao
sistema socioeducativo; todavia, o caso ora analisado é o dela. Acerca da necessidade
de se nominar os sujeitos, Candau preleciona que: “[...] apagar o nome de uma
pessoa [...], é negar sua existência, reencontrar o nome de uma vítima é retirá-la
do esquecimento, fazê-la renascer e reconhecê-la conferindo-lhe um rosto, uma
identidade” (CANDAU, 2012, p. 68).
Desse modo, não há forma mais justa de se adentrar nas vivências Trans senão
contemplando as vozes das adolescentes que já tiveram sua liberdade privada e, de
igual sorte, dos servidores que as recebem e, preparados ou não, convivem diariamente
com estas múltiplas formas de identidade existentes na sociedade, obrigando-se a
encontrar a melhor forma de conviver com a diferença.
Por outro lado, tal qual preleciona Touraine, existem experiências pessoais que
acabam por se tornar uma espécie de consciência coletiva (TOURAINE, 2007,
p. 92). Eis que situações de dominação, tal qual o gênero, ainda que atinjam cada
indivíduo em suas particularidades, acabam por fomentar debates e pautas voltados a
grupos maiores e igualmente violados. Daí a importância da narrativa de Joana, pois
a adolescente, ao passo que sua identidade desafia a Unidade e seu funcionamento,
prova que o Sistema Socioeducativo não está adequado às novas identidades e
expressões de gênero. Nesse ensejo, adentrando ao universo desta adolescente Trans,
quando questionada sobre quem é, referiu:

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Eu sou Joana, uma transexual, Trans, travesti, eu não sei como é o nome certo pra vocês que
estudam, mas eu sou mulher, sempre me senti mulher. Mas eu não gosto muito que me chamem
de travesti, parece que eu sou montada, forçada. Eu sou Joana, sou transexual, porque trans é
menina que nem eu, que parece guria, e travesti é aquele que de dia é homem e de noite se veste
de mulher (JOANA, 2018).

Percebe-se que Joana, diferentemente da sociedade que insiste em julgar as


transidentidades, sabe exatamente quem é. Todavia, é enfática quanto à rejeição ao
termo travesti, por, segundo ela, remeter a uma espécie de pessoa montada, forçada,
o que destoa de sua identidade, eis que ela é uma mulher. Para a adolescente, narrar
sua vivência junto ao mercado do sexo parece natural, bem como os motivos que
a levaram a este caminho, os quais, segundo ela, iniciaram pela hipossuficiência,
que é realidade em sua vida, desde muito pequena, eis que foi criada tão somente
pela genitora, quem criou, sozinha, Joana e os irmãos. Acerca de sua forma de
sobrevivência, a adolescente afirma:

Tu sabia Dona que quando eu ia procurar trabalho, nunca me davam? Era só eu chegar nos lugar
que já me olhavam torto, e diziam que não tinha vaga, que iam ligar, e nunca ligavam. Gente que
nem eu não tem vaga em nada. Ninguém vai botar uma bicha num mercado numa loja, isso não
tem como (JOANA, 2018).

É visível, em sua fala, o sentimento de exclusão, na medida em que torna visível


a inexistência de espaço para pessoas Trans no mercado de trabalho. Neste sentido,
Joana encontrou na prostituição uma fonte de subsistência, de reconhecimento,
ainda que, por vezes, se depare com a violência. E, quando questionada acerca da
rua, e das consequências de estar exposta a ela, referiu que:

A rua é ruim, dá medo, eu já apanhei, geral acha que a gente tá lá porque é vagabunda, mas não.
Eu to lá porque ninguém me deu oportunidade. Daí na rua, eu ganho meu dinheiro sabe, os cara
procuram, os casado também, dizem que eu sou bonita, ligam direto. Mas tem os que levam a
gente pra motel, depois querem larga na rua sem paga, daí a gente cobra e apanha, daí registram
parte que a gente roubou eles, ou os que dizem que como a gente tem pinto, tem que fazer
programa de graça, não tem vergonha na cara. Por causa disso eu fui presa já, um inferno, porque
se a gente não recebe, mesmo sendo errada a gente bate né, vai fazer o que. Ninguém quer dizer
que saiu fazer programa com a bicha né? (JOANA, 2018).

Sem que fosse necessário questionar acerca de sua passagem pelo Sistema
Socioeducativo, Joana por conta própria passou a narrar o ocorrido. Segundo ela,
muitos clientes, após a realização do programa sexual, se negam a pagar o acordado
e, por essa razão, ocorrem desentendimentos que, na maioria das vezes, ensejam
agressões físicas e boletins de ocorrência junto à Delegacia de Polícia. Foi desta
forma que a adolescente, ainda no ano de 2014, adentrou ao Poder Judiciário para
sua primeira audiência de apresentação.

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Conforme narra, o cliente teria parado-a na rua, solicitado o serviço e, após,


se negado a pagá-la. Ocorre que, após registrar queixa junto à delegacia, Joana foi
acusada de roubo, o qual tem também por característica a agressão física, conforme
preceitua a legislação. Aquele foi o marco de sua primeira internação, a qual durou
apenas 45 dias. Todavia, algum tempo depois, uma nova acusação levou Joana ao
CASESA.
Por outro lado, acerca da internação, ao ser questionada acerca do local em
que considerava correto cumprir a medida, a adolescente referiu que deveria existir
uma Unidade para pessoas como ela, considerando como local inapropriado tanto
o CASESA quanto o CASEF, pois nenhum atenderia suas particularidades, bem
como menciona que a dúvida quanto ao que fazer a respeito de sua internação na
Unidade era visível entre os servidores, o que, a seu ver, cria uma lacuna no sentido
da responsabilização caso algo grave acontecesse, pois, se não há um local ideal para
recebê-la, a quem responsabilizariam em eventuais violações? Chegou a afirmar
que: “Na verdade eu não sei onde é meu lugar, eu só queria que alguém soubesse ou que a lei
soubesse, pra eu não ter ficado lá mofando” (JOANA, 2018).
É visível, em sua fala, a sensação de invisibilidade, eis que não somente a
adolescente possui dúvidas quanto ao local ideal para cumprir a medida imposta,
mas percebeu que a dúvida se estende a todo o Sistema Socieducativo que, de
igual forma, não sabe onde inseri-la. Joana temeu, igualmente, uma possível rejeição
feminina, acaso fosse para o CASEF, mas, da mesma forma sentiu medo em relação
aos internos do CASESA, referindo: “Foi horrível lá, eu levei bitada7 na cara lá dentro de
guri, guri me bateu já, horrores. Me fincaram comida na cara lá dentro. Eu só comia com eles
e ia na escola, porque no quarto ficava sozinha” (JOANA, 2018).
Neste compasso, a sensação de não pertencimento a lugar algum figura como
mais uma forma de exclusão identitária, na medida em que Joana permaneceu
psicologicamente confusa e deslocada, a mercê de decisões que fugiam de seu
controle.

CONCLUSÃO

Indubitavelmente, urge a necessidade de tornar as questões de gênero e


identidade pauta de debates sociais e legais, a fim de que a legislação avance no
sentido de garantir a esses sujeitos o direito de uma vida digna, na qual seus corpos
não vivam tendo a insegurança como norte. Não há mais como negar a existência
de gêneros divergentes, tampouco se pode segregar quem assim decide viver, ferindo
diretamente os direitos humanos e o direito à liberdade, assegurados na Constituição
Federal. O tripé elencado na Doutrina da Proteção Integral, quer seja Estado, Família
e Sociedade, deve ser protagonista na luta por visibilidade e garantia de direitos a
este segmento, tal qual preceitua o Estatuto da Criação e do Adolescente (ECA) e
os demais textos legais.

7  O termo bitada seria o ato de um interno arremeçar comida no rosto do outro (JOANA, 2018).

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Por fim, não se pode fazer do Sistema Socioeducativo um vilão, eis que não
cabe somente a ele a responsabilidade de solucionar a problemática que envolve
pessoas Trans. Todavia, é necessário e urgente um olhar voltado ao diferente, na
medida em que a sociedade se constrói cada vez mais plural e diversa, e necessita
evoluir no sentido de assegurar proteção a todos os cidadãos, sem distinção. As
narrativas Trans atentam para a invisibilidade, restando como questionamento: até
quando os sujeitos Trans possuirão somente a margem social como ambiente de
vivência e de resistência de suas identidades?

REFERÊNCIAS

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Demandas Sociais e Políticas Públicas na Sociedade Contemporânea. Mostra Internacional
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377
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

COLONIALISMO ESTRUTURAL:
REPRESENTAÇÕES PÚBLICAS DA ESCRAVIDÃO
NO BRASIL
ELIS MEZA1

O colonialismo estrutural é um lugar. É um lugar no qual se manifesta o


racismo e o sexismo que continua existindo desde a época da escravidão. Para Lélia
González (1984, p. 224) isso forma parte de uma “neurose cultural”. Tal situação se
expressa de diversas formas, em discursos sobre o passado. Continuando com Lélia:
“A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo
acha que é natural” (GONZÁLEZ 1984, p. 225). Portanto, nas instituições culturais,
nas representações museograficas, nas redes sociais e em muitas outras instâncias do
espaço público, podemos, repetidas vezes, encontrar casos em que ou há uma negação
da escravidão ou uma descaracterização através do discurso da democracia racial ou
da “escravidão branda” (p. ex., campanha gaúcha), ou ainda a direta associação de
pessoas negras com representações focadas na servidão e no castigo.
Para Bissell (2005), houve um momento da sua pesquisa em Zanzibar (Tanzânia)
em que percebeu que precisava abordar etnograficamente a nostalgia colonial e
entendê-la enquanto estrutura política e epistemológica, porque realmente a
perspectiva social de evocação de certo passado tinha consequências em como
as pessoas pensavam e viviam o presente. No começo, ele achava difícil entender
que africanos descendentes de pessoas que lutaram pela descolonização nacional se
referissem positivamente sobre a época de dominação forânea. Neste texto, utilizo
esse conceito, mas o aplico de outra forma. Quero questionar, no Brasil, como se
expressa a nostalgia colonial? Quem, que grupos, sentem uma nostalgia colonial?
Isso tem a ver com como é representada publicamente a escravidão? Como podemos
desconstruir os efeitos da branquitude nas representações sobre o passado?
Pensando no contexto brasileiro do pós-abolição, em que a assinatura da
libertação de pessoas escravizadas não representou uma mudança estrutural, pois as
relações entre pessoas brancas e pessoas negras continuaram extremamente desiguais,
podemos vincular as políticas de memórias com os discursos e materialidades através
dos quais a escravidão é performatizada nos espaços públicos. Assim, é claro que as
formas em que se representa o passado nos informam sobre a continuidade dessas
1  Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Pelotas, Doutoranda em
Antropologia, Universidade Federal de Pelotas, Bolsista CAPES. [email protected]

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

relações de desigualdade no presente.


Portanto, questiono como abordar essa nostalgia colonial que parece ser
manifesta em tantas formas e cotidianamente:

Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa interessante.
Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente porque a gente é preto.
Prá gente que é preta então, nem se fala (GONZALEZ 1984, p. 229).

Certamente, a escravidão teve um papel central na constituição das relações


sociais no Brasil.A partir da racialização dos corpos, produziu-se uma “necropolitica”
(MBEMBE, 2013), que colocou as pessoas negras numa condição desfavorável.
Foucault (1997, p. 228) afirma: “o racismo é a condição que torna a morte [de certas
pessoas] aceitável em uma sociedade de normalização”. Ao mesmo tempo, em geral,
na América Latina, as produções das identidades nacionais estão ligadas à ideia de
“miscigenação”, gerando ambiguidades entre os discursos sobre raça e as políticas de
“branqueamento” (STOLER, 1995, p. 69; SKURSKI, 1994).
Em termos de representações oficiais sobre o passado negro, observamos
uma objetificação das pessoas, procedente da falta de uma perspectiva crítica sobre
os efeitos da escravidão na sociedade. Portanto, podemos perguntar: Em quantos
museus se fala sobre as resistências e reinvenções dos escravizados e escravizadas? Em
quantos se fala sobre os esforços pela alforria? Sobre a constituição de quilombos?
E, por outro lado, em quantos espaços públicos objetificam-se as pessoas negras? Em
quantos locais históricos expõem-se objetos de castigo como a “única” coisa para
ser apresentada sobre os escravizados? Vemos que, assim como a materialidade, os
artefatos, os espaços permeiam as noções racializadas das memórias e do patrimônio.
Os objetos podem ser utilizados para transmitir uma percepção dos escravizados e
escravizadas como pessoas que aceitam o seu destino cativo (a visão hegemônica),
mas também podem ter uma função descolonizadora, podem ser discursos materiais
antirracistas.
Salles (2013) amplamente discute sobre como se desenvolveu uma “nostalgia
imperial”, que incluía uma valorização da escravidão no período de Brasil República,
e comenta também como nos conteúdos de telenovelas que encenam o período
Imperial e no ensino básico de história nas escolas se exalta o Império, apesar dos
(ou por causa dos?) terríveis acontecimentos dessa época.
No caso das instituições culturais de Pelotas, existe uma exígua inclusão de
uma história diversa, que apresente as pessoas e grupos que construíram a cidade e
que com seu trabalho produziram as riquezas que o turismo local salienta em relação
à época do charque (“época do esplendor de Pelotas”). Inclusive, foi oficialmente
chancelado pelo IPHAN, em 2018, o tombamento patrimonial do centro histórico
de Pelotas (praças:  José Bonifácio, Coronel Pedro Osório, Piratinino de Almeida,
Cipriano Barcelos e o Parque Dom Antônio Zattera, conjuntamente com a
Charqueada São João e a Chácara da Baronesa), em que, embora houvesse presença
de escravizados e escravizadas, seus aportes não se explicitam nos discursos oficiais.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Um destes locais, a chácara que foi a antiga residência da família Antunes


Maciel (outrora estanceiros e charqueadores), foi doada como bem público e,
desde 1982, abriga o Museu da Baronesa. O Museu foi fundado com o objetivo
de resguardar coleções familiares dos Antunes Maciel, bem como outros objetos
que retratam “os costumes da elite Pelotense no século XIX e início do século
XX” (HALLAL; MULLER, 2016, p. 209). Além do próprio casarão enquanto bem
arquitetônico, também vários elementos externos transmitem a ideia da riqueza
oitocentista, tais como os jardins, as obras de arte, uma torre que foi utilizada como
casa de banho, um lago artificial, dos quais usufruíam “como se estivessem em algum
lugar diferente do que na cidade que crescia à base do trabalho duro e inumano das
charqueadas” (SCHWANZ; CALDEIRA, 2013, p. 542).
Morales (2015) mencionou, em relação ao Museu da Baronesa, que a única
representação sobre os/as escravizadas na exposição permanente é a figura de uma
mulher preta na cozinha. Atualmente, devido às críticas que desencadeou, tal peça
foi retirada de exposição, que continua a mostrar os vestidos, a louça, os retratos e
demais objetos referentes à Baronesa e suas descendentes.

Figura 1- Vista interna do Museu da Baronesa.

Foto: Elis Meza.

Salientamos que a exaltação material da vida cotidiana da elite não passa


incontestada. No livro de visitas e sugestões do Museu, foi precisamente criticada
a falta de informação sobre os escravizados e escravizadas, por parte de pessoas que
estiveram nesse espaço:

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

• 01/05/2010- “Gostaríamos de conhecer o andar superior (sala das


costureiras, escravizadas e libertas) e a senzala. Obrigada”.
• 29/10/11- “A visita foi ótima, é lindo saber que parte da história ainda
sobrevive pena que não exista mais detalhes sobre o povo africano que
aqui permaneceram por muito tempo e construíram a cidade de Pelotas
com suas próprias mãos”.
• 05/01/2012- “Eu, como negro, proprietário das terras onde houve
o massacre dos Porongos, onde negros foram chacinados sinto-me
angustiado ao saber que aqui nesta pomposa casa muitos negros sofreram
dias e noites. Tratados como animais. A custa do sofrimento muita riqueza
foi construída!”
• 05/01/2012- “Gostaria de ver objetos usados pelos negros. Onde está a
história real do Brasil??!? Negros não têm memória?”.
• 01/2013- “Porque não há referência aos escravos do barão?”
• 03/2013- “Colocar coisas da escravidão e do trabalho para a manutenção
deste estilo de vida. Colocar também a história das pessoas que mantinham
todo esse luxo, como os escravos principalmente porque com certeza a
“madame” nunca tomou nem banho sozinha.”
• 09/2013- “Onde ficavam os escravos?”

O Museu está desenvolvendo um projeto chamado “Visibilidade do negro no


Museu da Baronesa”, com o objetivo de, aos poucos, ir transformando seu discurso.
Também, está sendo executada uma escavação arqueológica de salvamento, pela
empresa Hibrida, Arqueologia e Gestão Cultural, na área lateral do Museu (área
em que possivelmente foi a senzala) que poderá aportar informações sobre diversas
esferas da vida dos cativos e cativas, muitos dos quais continuaram trabalhando na
Chácara da Baronesa como pessoas livres.
Outro exemplo local, a Charqueada São João funciona principalmente como
um local turístico elitizado, que enquanto espaço museal também reproduz as
histórias das elites do passado. As charqueadas são consideradas como patrimônio
histórico da cidade, a partir do discurso da memória do Ciclo do Charque, época
em que Pelotas foi uma das principais cidades do Estado, famosa pela modernização
ao estilo europeiu de sua infraestrutura e pela vibrante vida social e cultural atrelada
à prosperidade econômica. A exposição na Charqueada é vivenciada através de uma
visita guiada para a contemplação dos objetos em cada um dos cômodos da Casa
Grande. De acordo com o site da Charqueada, a casa “foi construída entre 1807
e 1810 às margens do Arroio Pelotas e ainda conserva o esplendor da época”2. 
Por sua vez, as referências aos escravizados e escravizadas, que faziam possível esse
estilo de vida, são escassas. Quando são referidas, as narrativas descrevem servidão
e castigo. Os objetos de castigo apresentados numa das salas da Charqueada estão
descontextualizados, sem alguma reflexão sobre sua exposição.
Os escravizados e as escravizadas, em Pelotas, trabalhavam na produção de
carne salgada (charque), nas atividades domésticas, na produção agrícola, cerâmica,
2  Informação disponível em <https://www.charqueadasaojoao.com.br/historia> Acesso em 01 jun. 2019.

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construção civil e obras públicas (GUTIERREZ, 2001). Muitas das construções da


época estão preservadas como um material, patrimônio, como grandes residências
dos Barões de charque no centro da cidade, porém, muitos visitantes, especialmente
afrodescendentes, criticam a falta de reconhecimento da construção dos casarões
e outros prédios com a mão de obra de negros e questionam os espaços em que
os escravizados e as escravizadas viviam e circulavam, assim como suas histórias
(MORALES, 2015).
Salientamos que, no espaço da Charqueada São João, acontece a Dança
dos Orixás, pela Companhia de Dança Daniel Amaro, que aborda a relação dos
escravizados e das escravizadas, os elementos da natureza, os espaços e os Orixás. Tal
espetáculo, que realiza em torno de três sessões por ano, desde 2017, se configura
como uma contranarrativa, como outra forma de entender a escravidão (MEZA,
2018) e de se contrapor à nostalgia colonial expressa na expografia permanente.
Enquanto a visita pelos cômodos da casa permite observar a opulência da Casa
Grande, a Roda de Batuque encenada na frente da antiga senzala manifesta uma
“re-semantização do espaço” (AMARO, comunicação pessoal 2018), através da arte
da dança afro contemporânea. Na imagem (Figura 2), vemos a encenação da Dança
dos Orixás na Charqueada São João.

Figura 2- Dança dos Orixás na frente da antiga senzala.

Foto: Elis Meza.

Ainda hoje, Pelotas é projetada como uma cidade de descendência


europeia, silenciando a história dos africanos escravizados e de seus descendentes
(TROUILLOT, 1991). No entanto, é necessário mencionar que Pelotas, em 1884,

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

foi a cidade com maior número de escravizados na província e, em vários momentos,


tinha maior número de população preta do que branca (MAESTRI, 1984).
A pesquisadora Myriam Santos (2005, p. 60) criticou as abordagens da maioria
dos museus brasileiros em relação às memórias da escravidão, da ausência de tal
discussão, a representação estereotipada de escravos como vítimas inertes para exaltar
a abolição como uma dádiva branca. Além disso, quando é referida, a escravidão
é apresentada em espaços oficiais como algo que pertence ao tempo que passou
(OLSEN et al., 2008). No entanto, “o passado, contrário ao que muitos pensam,
não passa tão facilmente. Ele insiste em apreender o presente e, às vezes, envenená-
lo” (GONZALEZ-RUIBAL, 2012, p. 106). Nesse sentido, retomamos o debate de
Carlos Hasenbalg (2005), sobre como as hierarquias sociais geradas na era colonial
permanecem e como isso funciona como um fato estrutural persistente que
permite a desigualdade no Brasil, o que também é verdade no campo patrimonial,
especialmente no que diz respeito aos discursos e às materialidades ligados ao
patrimônio cultural de afrodescendentes e indígenas.
Da mesma forma, podemos pensar o caso da representação de uma “senzala”
no Acampamento Farroupilha (em Porto Alegre), em setembro de 2018. Naquela
ocasião, o Piquete Aporreados do 38 apresentou o que eles consideraram ser uma
referência à história dos Lanceiros Negros, através da exposição de uma manequim
preta atada a um tronco com correntes e com objetos de castigo associados. Esse
episódio teve presença nos meios de comunicação regionais em função dos protestos
de numerosas pessoas que se opuseram a essa abordagem da temática da escravidão
e que solicitavam que fosse cancelada a exposição e que fossem tomadas medidas
contra os organizadores do evento porque a disposição do corpo da manequim e
dos objetos nesse espaço estava direcionada a expressar uma superioridade branca no
âmbito do Tradicionalismo gaúcho.
“O gauchismo só conhece uma narrativa sobre a negritude: aquela que
mantém o status quo de superioridade da branquitude”, escreveu a ativista feminista
e do movimento negro Winnie Bueno na sua conta no Facebook3. Quando foi
entrevistado o organizador da exposição, Cleonilton Almeida se mostrou surpreso
pelo fato de que a representação tivesse gerado polêmica: “O Cerro de Porongos seria
difícil de reproduzir aqui. O que nós resolvemos fazer? Replicar uma senzala.A gente fez
um projeto sobre os lanceiros negros, e quisemos retratar de onde saíram”4.
Assim, embora os Lanceiros Negros fossem soldados na Guerra Farroupilha, no
imaginário do Piquete Aporreados do 38 eles não deixavam nem nunca deixariam
de ser escravos. A condição da escravatura não é pensada desse ponto de vista como
uma imposição sobre pessoas, mas sim como ontológico a elas. O poeta Ronald
Augusto comentou: “O tempo passa, o tempo voa e a brancaiada segue sedenta de
representações em que negros aparecem atados ao tronco sofrendo os horrores da
3  Declarações na conta de facebook de Winnie Bueno <https://www.facebook.com/ninebueno/
posts/10212090707613977?__tn__=-R>. Acesso em 18 set. 2018.
4  Declarações na matéria do diário Gaúcha ZH sobre o Acampamento Farroupilha no seguinte link: <https://
gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2018/09/com-manequins-negros-em-situacao-de-tortura-
exposicao-de-piquete-e-fechada-no-acampamento-farroupilhacjm6walvv043t01pxxe3w2fn0.html>. Acesso em
17 set. 2018.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

escravidão”5. E considerando que a manequim era a representação de uma mulher


negra, podemos ainda mais facilmente perceber o gênero na racialização da violência
simbólica.
Podemos adicionar que esse entendimento se insere no racismo estrutural e se
apresenta através da nostalgia colonial, pois, como afirma Laura Cecilia Lopez (2015),
em relação às mobilizações afro-diaspóricas, o corpo constituído pelo colonialismo
dimensiona a vida das pessoas negras, o que também se evidencia no depoimento
de Tina, uma pedagoga negra que expressou:

O passado da escravidão está impregnado e esse é o imaginário das pessoas, esse é o imaginário
que as pessoas têm quando eu entro no elevador da Faculdade de Educação e elas não me veem
como aluna do curso de especialização, elas vão a meu passado lá, vão ver a figura do escravizado
(LOPEZ 2015, p. 316).

E, finalmente, mas também mantendo uma conexão com os outros casos,


outro exemplo que me parece muito significativo nesta discussão são as festas de
elite com temáticas de “Casa Grande” que têm acontecido no Rio de Janeiro e no
Pará, e que foram divulgadas através de fotografias na plataforma do Twitter. Nos
vários casos conhecidos, pessoas brancas endinheiradas (aniversariantes de 15 anos6)
se vestiam na moda do século XIX (um tema de festa foi “Imperial Gardens”) e
contratavam pessoas negras para encenar escravizados e escravizadas, que, além de
servir as comidas e bebidas, descalços, também ventilavam as salas assoprando com
palmas, sendo que todos foram fotografados nesse cenário.
Um caso emblemático recente foi a festa da ex-diretora da revista Vogue Brasil,
Donata Meirelles, quem teve que pedir demissão e desculpas públicas depois de
terem-se difundido imagens da sua festa de aniversário de 50 anos, quando ela,
uma mulher branca, aparece sentada numa cadeira/trono e duas mulheres negras,
vestindo a roupa das baianas, estavam paradas a seu lado, numa representação
claramente racista7 e que, obviamente, também teve uma repercussão mediática
enorme. Diversas pessoas expressaram sua indignação, como a rapper Joyce:

Uma diretora de uma famosa revista fez 50 anos ontem 08/02 e comemorou com seus amigos num
hotel luxuoso na Bahia com vários artistas famosos, até aqui tudo bem! A decoração da sua festa
foi Brasil Colônia Escravocrata, com direito a mulheres pretas vestidas de mucama ambientando
a festa e recebendo os convidados, como vimos na foto até o trono da sinhá tinha. Terão pessoas
nesse post que falarão que não viram problemas nenhum que é mimimi e por aí vai, pois qdo não
se sabe argumentar utilizam dessas falácias pra tentar reverter o irreversível. A branquitude (não
5  Declarações disponíveis em <https://www.facebook.com/gti24horas/posts/272906426676286>. Acesso em
18 set. 2018.
6  Ver reportagem em <https://claudia.abril.com.br/noticias/festa-15-anos-escravidao/>. Acesso em 20 mar. 2018.
7  Outro caso nesta mesma linha foi uma mãe que fantasiou o filho de “escravo” para a festa de Halloween da
escola. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2018/10/29/mae-fantasia-filho-
de-escravo-para-festa-de-halloween-em-escola-de-natal-vamos-abrasileirar-esse-negocio.ghtml>. Acesso em 20
nov. 2018. A senhora pintou o menino de “preto” e colocou “marcas de chicotadas” além de colocar correntes em
mãos e pés.

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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

estou falando do indivíduo e sim de uma sociedade privilegiada por ter a pele alvo mais que a
neve) voltando...
A branquitude ama vivenciar o ranço da escravidão, pq a final de contas eles gostariam que não
tivesse acabado mas, será que acabou? Vivemos na tal escravidão moderna, onde nossas dores
viram fantasias, decoração de festas pra beneficiar o mal gosto das sinhás e sinhóres. A senzala
moderna continua sendo o quartinho da empregada. Quando leio sobre escravidão dá um nó na
garganta, arrepia a pele e é óbvio que sinto meu corpo doer, sinto as dores dos meus ancestrais,
afinal de contas fazem apenas 131 anos que o Brasil “deixou” de ser escravocrata. Nossas dores
não pode ser fantasias, estampa de roupa ou decoração. O problema do racismo nem é dos pretos
e de vcs que estão sentados nesse trono aí da foto trabalhados no privilégio, sendo assim revejam!
E a sua riqueza hoje tem sangue indígena e preto, o que vc faz pra reparar essa história? E eu cobro
mesmo, seja na internet ou cara a cara, pq aqui não passa batido não. Um povo sem história é
um povo sem memória, a nossa história nesse país foi escrita com sangue, morte e dor e estamos
aqui pra dar uma nova sequência para que não esqueçamos o nosso passado porém reescrever
essa história atual de luta, resistência e sorriso, pq sorrir para nós tbm é um ato político! O tempo
fechou pra vcs branquitude e agora não abaixaremos mais a cabeça até que todxs pretxs sejam
realmente livres8.

Igualmente a cantora Elza Soares se posicionou sobre este acontecimento:

Sou bisneta de escrava, neta de escrava forra e minha mãe conhecia na fonte as histórias sobre
o flagelo do povo negro. Protesto pelos direitos da minha raça desde que preta não entrava na
sala das sinhás. Gentem, essas feridas todas eu carreguei na alma e trago as cicatrizes. A maioria
do povo negro brasileiro. Feridas que não se curaram e são cutucadas para mantê-las abertas
demonstrando que “lugar de preto é nessa Senzala moderna”, disfarçada, à espreita, como se
vigiasse nosso povo. Povo que descende em sua maioria dos negros que colonizaram e construíram
o nosso país9.

A militante negra e escritora Stephanie Ribeiro, de Araraquara/SP, pontuou


que o mais problemático no evento foi usar a presença das mulheres negras como
“cenografia”:

Elas não estavam ali como convidadas, mas como um acessório de cena, um ornamento. As pessoas
brancas vão sentando naquele trono e as modelos negras vão adornando aquela imagem, como
se fosse um objeto. Isto remete mesmo ao tempo da escravidão, onde as pessoas negras eram
realmente objetos10.

8  Declaração de Joyce Fernandes na sua conta de Facebook: <https://www.facebook.com/permalink.php?story_


fbid=10205088956179028&id=1697347352>. Acesso em 09 fev. 2019.
9  Declaração de Elza Soares na sua conta de Twitter #elzasoaresoficial. Ver texto na íntegra em <https://ceert.
org.br/noticias/genero-mulher/23987/a-poderosa-resposta-de-elza-soares-a-festa-da-diretora-da-vogue>. Acesso
em 12 fev. 2019.
10  Declaração de Ribeiro na conta de facebook: <https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/09/
festa-com-tema-brasil-colonia-e-acusada-de-racismo-por-usuarios-do-twitter.htm?cmpid>. Acesso em 12 fev.
2019.

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Podemos ver como tal reflexão é necessária a partir das discussões sobre
políticas de patrimônio cultural, espaços de memórias e identidades culturais, mas
não pode ser deixada de fora a importância da reflexão em torno da materialidade
nas tentativas de manutenção do status quo colonial e suas possibilidades para
desmontá-lo.
Gostaria de apontar que, de igual forma, considerando que as fotografias são
uma metalinguagem, não quero reproduzir fotografias que mostrem representações
de pessoas escravizadas engrilhetadas, ou em posições inferiorizadas, porque
isto constituiria uma promoção, mesmo que não intencional, da ideologia que
fundamenta a nostalgia colonial. Nesse sentido, no pé de página forneço os links
que permitem conferir algumas imagens dos acontecimentos discutidos no texto,
sem divulgar mais uma vez tais imagens.
As memórias de afrodescendentes continuamente são desrespeitadas, na
prevalência de discursos sobre a servidão e o castigo, quando não da ausência,
negando a escravidão ou diluindo suas caraterísticas no discurso da democracia
racial ou da “escravidão branda”. Mas, por outro lado, também tais representações
não são homogeneamente aceitas, sendo que ativistas negras e negros têm
desenvolvido contradiscursos, tal como expressei nos três exemplos analisados,
e como historicamente tem acontecido, inclusive para que atualmente possa ser
feito esse tipo de análises. De fato, diversas pessoas têm compartilhado o seguinte
pensamento frente ao cenário da nostalgia colonial: “Se a casa grande sente falta dos
tempos de senzala, então devemos lembrar como se bota fogo no engenho”11.
A crítica da persistência de representações racistas e colonialistas em torno da
escravidão ‒ que aqui temos abordado desde a noção da nostalgia ‒, é fundamental
para a promoção da cidadania e, portanto, nos estudos em torno de políticas de
memória, precisamos continuar dando atenção às teorizações e práticas que
se relacionam a esses discursos públicos, mas principalmente colaborar com os
contramovimentos que envolvem pessoas negras. Isto é por um lado entender o lugar
de fala (RIBEIRO, 2017) de quem lidera as críticas antirracistas, anticolonialistas e
antisexistas, mas também aceitando a necessidade de rever as próprias atitudes e
privilégios.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Juliana Poloni e aos integrantes do GT “Memória e cidadania” pela


discussão deste trabalho. Agradeço à professora Claudia Turra e ao professor Jerome
Branche, através de quem conheci o conceito de “nostalgia colonial”. À professora
Loredana Ribeiro, por me ajudar a entender que as imagens dos instrumentos de
castigo, mesmo que partindo da sua crítica, também colabora na sua manutenção
ideológica. Agradeço a Fabiane Moraes, pela disponibilização de informações do
livro de visitas do Museu da Baronesa e à Companhia de Dança Daniel Amaro pelos
11  Frase citada em contas de Twitter, por exemplo: @Celly_Zion, @miskinisblaack, @eubrunissimo, @
Douglas11847724, @Giba01, dentre outros. Acesso em 1 jun. 2019.

386
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ensinamentos sobre performances e discursos. Finalmente, minha gratidão a Lino


Zabala, por compartilhar comigo suas experiências e reflexões. O presente trabalho
teve apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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388
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ARCHIVOS PARA LOS DERECHOS HUMANOS;


ORIGEN Y EVOLUCIÓN DE LOS FORMATOS
ÚNICOS DE DECLARACIÓN DE VÍCTIMAS
ENTRE 1997-2019 EN COLOMBIA
YENIFER CRISTINA CARDONA LÓPEZ1

El siguiente artículo es el resultado de la investigación sobre el análisis de la


evolución y tratamiento archivístico otorgado a los Formatos Únicos de Declaración
de Víctimas – FUD, generados a partir de las medidas de atención y reparación del
Estado Colombiano. Estos documentos pueden considerarse como una rejilla de
observación que facilita la caracterización de las víctimas del conflicto, pues en estos
se disponen los elementos y campos de información privilegiados, como; datos de
identificación, información socio- económica, datos demográficos, condición civil,
categorías de hechos víctimizantes y tipos de daños, entre otra información, que da
cuenta de los datos que era o no posible registrar.
En este sentido, los archivos no siempre son fundados por una necesidad de
memoria, sino que ante todo son una unidad de gestión, por lo general siempre
asociado a una institución. Al respecto dice Antonia Heredia “el archivo es una
unidad más dentro de la estructura de las instituciones con un engranaje y relación
con el resto de las unidades administrativas” (2007, p. 45). Bajo esta noción, los
archivos, en especial los referidos a graves violaciones a los derechos humanos,
provienen de distintas instituciones y tienen un soporte legal de preservación,
protección y custodia de índole nacional e internacional, toda vez que en sociedades
que han atravesado procesos de transición y conflictos armados internos, estos
resultan imprescindibles en la búsqueda de la paz, la verdad, la justicia y la reparación
de a las víctimas. En este contexto, sobre estos archivos recaen las posibilidades de
restablecimiento de derechos, de evitar acciones de re victimización, de testimoniar
las violaciones de derechos humanos y de facilitar el proceso de reconstrucción de
la memoria.
La reflexión sobre el lugar del archivo en el reconocimiento de las garantías
de las víctimas y en el registro de la memoria, permite comprender que hay una
relación intrínseca entre las políticas de reparación y de memoria con los archivos,
1  Archivista y eestudiante de la Maestría en Ciencia de la Información con énfasis en Memoria y Sociedad
adscrita a Universidad de Antioquia. Medellín –Colombia. [email protected]

389
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

concebidos como instrumentos, artefactos y vehículos para el registro y recuperación


del pasado en determinados procesos socio-políticos.

METODOLOGÍA DE ESTUDIO

La investigación se desarrolló bajo el enfoque de etnografía de archivo, según


la cual Weld (2014, p. 13) argumenta que “en todos los casos, los archivos forman
articulaciones deslumbrantes de poder y conocimiento, que deben ser objeto de
cuestión aparte si queremos comprender las historias que nos contamos sobre el
pasado”. Por tanto, el trabajo involucró el desarrollo de una metodología a partir de
la elección de unas variables de análisis y el desarrollo de tres etapas que conllevaron
a la recopilación, sistematización y análisis de la información.
La unidad de análisis son los distintos tipos de documentos usados para la
toma de declaración, concibiéndolos como un instrumento administrativo y un
mecanismo de construcción de memoria, pues, primero, se constituyen en la puerta
de entrada de las víctimas para acceder a las medidas de reparación y, luego, se
convierten en una fuente esencial para el registro y la recuperación de la memoria
de las víctimas y del conflicto. Para una comprensión de esto se hizo necesario un
examen sistemático y riguroso de las siguientes variables:
Identificación del tratamiento archivístico; se realizó un análisis a la forma
en que el marco legislativo configuró las condiciones político-administrativas para
el reconocimiento de las víctimas y por ende el contexto de producción de los
Formatos Únicos de Declaración - FUD para su registro. Se identificaron los tipos
documentales, el órgano productor, la función y temporalidad que dio origen el
documento, así como las particularidades frente a su forma de producción; textual,
electrónico, la selección de la forma del formato; entrevista, formulario, solicitud y
las directrices para su reproducción; original, copia, tipos de anexos, entre otros.
Análisis de estos documentos como mecanismos de construcción de memoria;
Esta variable asumió la búsqueda del contexto de producción en las políticas de
reparación: una vez identificados los formatos, fue necesario indagar por aquellas
condiciones de producción y medidas de reparación que han configurado las formas
de atención y registro de las víctimas, así como la relación que estas tejen con las
políticas de memoria, pues estas se han dado simultáneamente.

ORIGEN DE LAS POLÍTICAS DE REPARACIÓN; MARCO NORMATIVO DE


PRODUCCIÓN DE LOS DOCUMENTOS DE DECLARACIÓN DE VÍCTIMAS

El Estado Colombiano ha tenido unas dinámicas políticas y sociales complejas


por el contexto de violencia ubicado en distintos momentos históricos, los cuales han
sido representados a través de diferentes figuras y nociones que permiten entender
las transformaciones del conflicto armado;: desde el siglo XX hasta la Constitución
de 1991 Colombia se rige por la figura Estado de Excepción (CNMH, 2015, p. 36).
Particularmente este se consolidó en la década de los años setenta y los ochenta

390
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

bajo la aplicación del Estatuto de Seguridad o mejor conocido como Estado de


Sitio, el cual fue nuevamente declarado después del asesinato del ministro de Justicia
Rodrigo Lara Bonilla y aplicado hasta la Constitución de 1991.
Esta figura se caracterizaba por “el creciente otorgamiento de competencias
judiciales a la Jurisdicción Penal Militar, estructuralmente ubicada en el poder
ejecutivo, en el desplazamiento de la Jurisdicción ordinaria” (CNMH, 2015, p.
36). Esta situación fue considerada como de anormalidad constitucional por los
innumerables abusos de las Fuerzas Militares en el manejo del orden público y su
injerencia en el ámbito judicial, que conllevo a la vulneración y restricción de los
derechos humanos y garantías efectivas de la población civil.
Posteriormente, tras el asesinato del Procurador General de la Nación Carlos
Mauro Hoyos en 1988, el gobierno expidió el Estatuto para la Defensa de la
Democracia (Decreto 180), más conocido como Estatuto Antiterrorista (CNMH,
2015, p. 43) el cual tuvo su fundamento como respuesta a los ataques perpetuados
en la época del narcotráfico y otorgó un régimen especial a la Policía Nacional,
al Departamento Administrativo de Seguridad (DAS) y a las Fuerzas Militares
que conllevaron a detenciones arbitrarias, desapariciones contra activistas sociales,
subversivos u opositores políticos (2015, p. 43). Recrudeciendo las disposiciones del
Estatuto de Seguridad Nacional mencionado anteriormente.
En el contexto anterior, se constituye el primer referente a la alusión del concepto
de “terrorismo” y la validación de las acciones de “control social” que restringía
las libertades públicas bajo el concepto de seguridad nacional, que principalmente
actuaba contra el surgimiento y abatida de movimientos revolucionarios, cuyos
enfrentamientos desencadenaron en fuertes daños colaterales hacia la población civil
y con ello se incurrió en múltiples violaciones a los derechos humanos.
Bajo este contexto se creó o surgió la categoría de enemigo interno y la
noción de guerra política, “entendida como el conjunto de acciones subversivas
orientadas a obtener la simpatía y apoyo de las masas” (CNMH, 2015, p. 17). Estas
acepciones tuvieron como finalidad coaptar las formas de manifestación individual
y de acción colectiva, la categoría de enemigo interno era aplicada según Naciones
Unidas, citada en Gallón (2013, p. 55) a,

toda persona de la que se considera que apoya a la guerrilla de una u otra forma (incluso si
los insurgentes utilizan la fuerza para obtener, por ejemplo, alimentos o dinero de los civiles), se
ha hecho extensiva, al parecer, a todos los que expresan insatisfacción ante la situación política,
económica y social, sobre todo en las zonas rurales.

En este ambiente desde finales de los ochenta y comienzos de los noventa la


población civil, profesionales, académicos y defensores de los Derechos Humanos
fueron señalados y perseguidos a través de la ejecución de distintos delitos “la
comisión de masacres, desapariciones forzadas, torturas y homicidios selectivos se
incrementó considerablemente en esta década como fruto del accionar militar y
paramilitar, donde la población civil, señalada de ser auxiliadora de la guerrilla, fue
el principal objetivo (GMH, 2013), generando consigo un aumento significativo de

391
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

víctimas de esta violencia política.


Ante este panorama, la nueva Constitución Política del año 1991 se consideró
como una salida normativa renovada que mitigaría los efectos de la guerra., Sin
embargo, según Romero (2001, citado en CNMH, p. 54) “esta estuvo impregnada
por una escala de violencia y una profundización y degradación el conflicto armado”.
Entre otras razones, porque la perspectiva de las fuerzas militares continúo, a través
de la estrategia de lucha antisubversiva, bajo el concepto de seguridad nacional y la
noción de enemigo interno que continuaron con el señalamiento y victimización
de algunos sectores de la sociedad civil.
En los años siguientes a la promulgación de la Constitución Política, se
agudizó la promoción de los grupos paramilitares con la creación oficial de grupos
de seguridad privada en 1994, denominados “Convivir”. Esta situación conllevo al
fortalecimiento de grupos paramilitares y les facilitó un campo de mayores actuaciones
cometidas contra los subversivos y sobre todo frente a las barbaries cometidas contra
la población civil, al respecto se indica en el informe del Basta Ya; “Seguidamente
se dio una tendencia explosiva entre 1996 y 2002, en la que el conflicto armado
alcanzo su nivel más crítico como consecuencia del fortalecimiento militar de las
guerrillas, la expansión nacional de los grupos paramilitares, la crisis del Estado, la
crisis económica, la reconfiguración del narcotráfico y su reacomodamiento dentro
de las coordenadas del conflicto armado”(CNMH, 2013, p. 33).
La situación descrita anteriormente desembocó en un incremento de la
represión y en el recrudecimiento de las múltiples violaciones a los Derechos
Humanos, pero también, propiciaron el surgimiento de organizaciones para la
defensa de los derechos y humanos y organizaciones de víctimas apoyados por
representantes de distintos actores de la población civil; como activistas populares y
sindicales, militantes de izquierda, profesionales, líderes sociales.
De acuerdo con lo anterior, la movilización y denuncia por parte de las víctimas
y las organizaciones sociales fueron determinantes para poner en el escenario
nacional e internacional la situación de violación de los derechos humanos en el
país, se lograron importantes iniciativas como la documentación de casos y tramites
que terminaron en la primera sentencia de la corte Internacional de Derechos
Humanos (IDH) sobre el caso de desaparición forzada por responsabilidad del
Estado Colombiano. En esta misma tónica, en la década de los noventa se realizaron
otro tipo de estrategias, como marchas por la libertad y manifestaciones en el
espacio público que propiciaron el surgimiento de otras organizaciones de víctimas,
tipificadas de acuerdo a las modalidades de violencia más generalizadas como el
secuestro y la desaparición forzada.
Lo anterior, da cuenta de una corta pero significativa parte de las condiciones
que propiciaron el escenario de promulgación de políticas públicas para el
reconocimiento y atención a las víctimas, cuyo origen se remontan a finales de
la década del noventa bajo la figura de ayuda humanitaria y continúan hoy en día
vigentes bajo la figura de políticas de reparación integral.
Esta demanda social por la memoria y las luchas por la verdad, justicia y
reparación han sido significativas para el diseño de las respuestas institucionales que

392
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

han estado inscritas en discursos asociados a la “justicia transicional” definida como


“el conjunto de medidas judiciales y políticas que diversos países han utilizado como
reparación por las violaciones masivas de derechos humanos” (centro internacional
para la justicia transicional). En contextos democráticos figuran; acciones judiciales,
programas de reparación, reformas constitucionales, entre otros.
En este orden de ideas, a continuación, se presentan el marco normativo
que da cuenta de las políticas públicas promulgadas por el Estado Colombiano
para el reconocimiento de las víctimas y el acceso a las medidas de reparación;
se identifican, además, las formas de reparación, el tipo de formato, instituciones
públicas designadas para su producción y custodia, el soporte material y tradición
documental y los procedimientos para su producción y conservación. Relacionados
a través del siguiente esquema;

Figura: Identificación del origen y tratamiento archivístico de los FUD en las políticas de reparación

Fuente: Elaboración propia

393
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

PANORAMA ARCHIVÍSTICO OTORGADO A LOS FORMATOS ÚNICOS DE


DECLARACIÓN

Las condiciones de producción de los documentos de declaración como lo


muestra el esquema anterior están mediadas por distintos contextos normativos que
han respondido a; medidas de ayuda humanitaria, reparación judicial, reparación
administrativa y reparación integral. Estos cambios “administrativos” y “transicionales”
han implicado reformas sustanciales en cuanto a la planeación, producción, trámite,
organización, conservación y acceso a estos documentos.
En este sentido, el procedimiento normativo da cuenta del medio empleado
para el registro y transmisión de la información; desde el año 1997 a la fecha
el documento se continúa produciendo en soporte papel y el contenido de los
documentos se registra de forma textual o manuscrita, es decir, desde la escritura del
testimonio por la propia víctima hasta la transcripción en un servidor por parte de
un funcionario. Desde el año 2011, se concibió la declaración como un documento
electrónico generado y administrado desde la herramienta tecnológica que dispuso
la UARIV.
Por su parte, la tradición documental se ha presentado en distintas formas,
inicialmente el documento se produjo solo en soporte físico y fue distribuido en
distintas entidades de la geografía nacional. Una vez realizado el proceso de registro
se conservaba el documento original en los archivos de la entidad productora y se
enviaba copia autentica a la entidad designada para el proceso de valoración. Salvo
bajo la Ley de Justicia y Paz donde se estableció que el original se entregaba a la
Fiscalía y la entidad productora conservaba copia, además de dispuso del formato en
la página web de la Fiscalía para su impresión.
Posteriormente, con la entrada en vigor de la Ley de Víctimas se dispuso de las
herramientas tecnológicas para la toma en línea de la declaración, sin embargo, la
herramienta no llegó a todas las entidades del nivel nacional por diversos motivos;
falta de la herramienta, niveles de acceso por razones geográficas, fallas técnicas, el
amplio volumen de solicitudes, e igualmente se continuó produciendo en soporte
físico, el cual se envía en su calidad de original a la UARIV. Pese a estos cambios,
en el articulado no se da claridad sobre la manera en que se debe conservar la copia
en caso de enviar el documento original o viceversa, así como la necesidad de
abrir o no expediente por cada víctima o núcleo familiar, la forma de identificar o
conservar el documento, entre otros aspectos.
En este sentido, es importante recordar que, si bien la realidad administrativa y
social ha obligado al ajuste de ciertos asuntos en materia del desarrollo archivístico,
es necesario replantear y reconfigurar el lugar del archivo desde algunas nociones
teóricas y prácticas que garanticen el tratamiento y preservación adecuada de los
documentos que versan sobre la memoria de las víctimas del conflicto colombiano.

394
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

ARCHIVOS PARA LOS DERECHOS HUMANOS, IMPORTANCIA DE LOS


DOCUMENTOS DE DECLARACIÓN DE VÍCTIMAS

Desde el marco internacional y nacional la responsabilidad sobre el tratamiento


archivístico para los Archivos de Derechos Humanos y de Memoria del conflicto
ha sido confirmada a través de políticas archivísticas que, desde instituciones como
la UNESCO, uno de los primeros pasos se dio a través de la promulgación del
Conjunto de principios para la protección y la promoción de los derechos humanos
mediante la lucha contra la impunidad, conocidos como los Principios Joinet2, en
el cual se constituye el Derecho a Saber concebido con la formulación de unos
principios que contemplan las medidas de preservación y de consulta sobre los
archivos en escenarios de transición.
En el caso colombiano, de forma específica a través de la “Política Publica
de Archivos de Derechos Humanos” y el “Protocolo de Gestión Documental de
los archivos referidos a las graves y manifiestas violaciones a los derechos humanos,
e infracciones al derecho internacional humanitario, ocurridas con ocasión del
conflicto armado interno, el Archivo General de la Nación y el Centro Nacional
de Memoria Histórica delimitaron el siguiente concepto:

Los archivos de derechos humanos de memoria histórica y conflicto armado, comprenden las
Agrupaciones documentales de diversas fechas y soportes materiales, reunidas o preservadas por
personas, entidades públicas y privadas, del orden nacional e internacional, cuyos documentos
testimonian y contribuyen a caracterizar las graves violaciones de los Derechos Humanos, las
infracciones al Derecho Internacional Humanitario y hechos relativos al conflicto armado [...] (2017,
p. 21-22).

La definición anterior permite ratificar que, en un estado emergente de


memoria, los archivos juegan un papel fundamental, en este caso los FUD, al producirse
para permitir el registro, la caracterización y la atención masiva a las víctimas del
conflicto armado. Por ello, en primer lugar, cumplen labores administrativas, legales
y jurídicas y, en segundo lugar, estos adquieren un valor probatorio e histórico
en medio de escenarios de búsqueda de la reparación, la verdad judicial y verdad
histórica permitidos en distintos contextos sociales.
Es decir los FUD se conciben como instrumentos administrativos que se
convierten en dispositivos y mecanismos de construcción de memoria, con los
cuales se materializan prácticas e ideas, privilegiando información para el recuerdo
de aquello que es válido registrar y aquello que por el contrario no, en este orden
de ideas expresa Terry Cook citado por Giraldo (2016, p. 93):

El archivo hoy en día se considera de Forma creciente como el lugar donde la memoria social ha
sido (y es) construida. […] El documento, por lo tanto, se convierte en un significado cultural, una
construcción mediatizada y cambiante, y no una plantilla vacía donde verter los actos y los hechos.
2  Estos principios fueron adoptados por la Asamblea General de las Naciones Unidas en 1996 y actualizados
posteriormente por la experta independiente Diane Orentlicher. Recuperado de <http://www.idhc.org/esp/
documents/PpiosImpunidad.pdf>

395
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

Desde esta perspectiva, los FUD son un dispositivo que privilegia unos campos
de información que configuran el testimonio, registran unas categorías de hechos
víctimizantes, entre otra información, que constituye la base material para el RUV y
que dan cuenta de la magnitud documentable de la memoria. Por lo anterior, estos
documentos vehiculizan creencias y visiones sobre la guerra, con lo cual inciden en
la construcción y recuperación de la memoria.

CONSIDERACIONES FINALES

El Estado colombiano ha dado pasos significativos aunque no suficientes para


la construcción de la paz y de un régimen jurídico alrededor del reconocimiento y
reparación a las víctimas, que soporte de forma efectiva los procesos de verdad, justicia
y reparación. El avance en la reparación a las víctimas de acuerdo al Registro Único
de Víctimas- RUV, reporta que, las víctimas registradas históricamente asciende a
8.731.105, y a 6.983.372 víctimas sujeto de asistencia y reparación ocasionados por
11 hechos víctimizantes reconocidos3. Este es un dato importante para vislumbrar la
dimensión del número de víctimas, las modalidades de violencia, su relación con las
formas de reparación, así como también que las disposiciones políticas, financieras y
administrativas ponen de manifiesto la complejidad de su implementación.
En este contexto, las herramientas políticas que dan sentido al pasado en las
políticas de reparación y memoria radican en el diseño, registro y valoración de las
fuentes de archivos que se construyen para cristalizar distintos ámbitos del impacto
de la violencia, tales como: hechos víctimizantes, hechos históricos, personajes,
actores armados, nociones de víctimas, entre otros. Por tanto, en los documentos
de archivo como los FUD, radica la posibilidad de encontrar las exigencias de las
víctimas por la verdad, la justicia y la reparación, así como la posibilidad de construir
y recuperar una memoria incluyente a partir de la voz de las víctimas.
Así mismo, es importante resaltar la necesidad de potenciar el valor de
los testimonios consignados en estos documentos, máxime cuando el fin con
el que fueron creados no se garantiza, es decir, hay víctimas que no han sido o
posiblemente no serán reparadas, por las vicisitudes de los cambios de gobierno y
las nuevas ideologías o negaciones del conflicto que se quieren instaurar. Por tanto,
es necesario que el valor inmensurable que tienen los FUD por la información que
contienen, en determinados momentos y condiciones, puedan ser insumos para la
construcción de memoria, más allá de arrojar datos estadísticos o de cumplir una
función administrativa orientada a un registro y a la reparación administrativa de las
víctimas.

3  Tomado del XIII Informe sobre los avances de la política pública de atención, asistencia y reparación integral a las
víctimas del conflictoRecuperado de: <http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/descargas/informes2018/
xiii-informe-gobierno-nacional_julio2018.pdf. Consultado el día 25 de junio de 2019>.

396
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

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adoptan el Protocolo de gestión documental de los archivos referidos a las graves y manifiestas
violaciones a los Derechos Humanos, e Infracciones al Derecho Internacional Humanitario,
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397
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

AS DISCUSSÕES MEMORIAIS DA TRAGÉDIA NA


BOATE KISS EM SANTA MARIA – RS
DANILO AMPARO RANGEL1
JULIANE CONCEIÇÃO PRIMON SERRES2

O presente artigo é fruto do projeto de pesquisa realizado na Universidade


Federal de Pelotas, com apoio da FAPERGS, ‘Patrimônio em lugares de sofrimento:
os dilemas da transmissão’, que vem investigando as possibilidades de atuação de
espaços de memória já instituídos e em processo de patrimonialização, no Estado
do Rio Grande do Sul. Assim, neste trabalho, têm-se, como estudo de caso, as
mobilizações para a criação dos memoriais na cidade de Santa Maria, por meio de
incursões em campo, em diversos eventos realizados no âmbito das discussões acerca
dos memoriais, realizadas no ano de 2018. O caso refere-se ao incêndio na boate
Kiss, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, na madrugada de 27 de
janeiro de 2013, na cidade de Santa Maria/RS.
O município de Santa Maria pertence à região centro oeste do Estado do Rio
Grande do Sul. Fica distante aproximadamente 290 km da capital do Estado, Porto
Alegre, e possui em torno de 280.505 mil habitantes, segundo o IBGE (2018)3. É uma
cidade universitária com cerca de oito instituições de ensino superior, dentre elas, a
maior, Universidade Federal de Santa Maria, e a Universidade Franciscana. Ao largo
dos 59 anos da UFSM (2019), Santa Maria recebe anualmente muitos estudantes,
tendo aumento significativo, sobretudo a partir do Programa Reestruturação
e Expansão das Universidades Federais (2005), expandindo significativamente
o número de cursos de graduação, por conseguinte, o de estudantes, e devido
às políticas de fomento ao ingresso em instituições de ensino privadas, como o
Programa de Financiamento Estudantil (FIES) de 2001 e o Programa Universidade
Para Todos (ProUni) de 2004.
Por isso, a cidade tinha como protagonistas da cena noturna estudantes que,
entre suas atividades acadêmicas, ou mesmo nas férias, buscavam seu lazer em
1  Graduando no Curso de Bacharelado em Museologia da Universidade Federal de Pelotas; FAPERGS;
[email protected];
2  Doutora em História UNISINOS; Professora Adjunta Departamento de Museologia, Conservação e Restauro
na Universidade Federal de Pelotas; [email protected]
3  Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, estimativa do ano 2018. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/
estatisticas-novoportal/por-cidade-estado-estatisticas.html?t=destaques&c=4316907>. Acessado em 22 mai. 2019.

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diversos estabelecimentos, como bares e casas de shows localizados, sobretudo na


região central da cidade. E dentre estes locais a popular boate Kiss, localizada na
Rua dos Andradas, 1925, centro – Santa Maria. A casa noturna, inaugurada em
2009, tinha uma área de 615 m2, e estima-se capacidade para cerca de 680 pessoas.
Sua estrutura interna era composta por dois principais ambientes, a pista de dança
defronte ao palco e um salão grande.
O incêndio aconteceu da noite de sábado para domingo, 27 de janeiro de 2013,
durante uma festa promovida por estudantes do Curso de Agronomia da UFSM,
os ‘Agromerados’, quando a casa de shows recebia em seu palco a Banda Gurizada
Fandangueira, conjunto com dez anos de carreira e composto por seis músicos.
Como elemento compositivo da apresentação, o grupo utilizou um artefato
pirotécnico, fato que acarretou a ignição de chama em ambiente fechado, assim
atingindo o revestimento do teto, fabricado em material inflamável, de poliuretano.
Desta forma, a chama alastrou-se pelo revestimento tóxico, causando pânico na
multidão a partir do palco. Devido à estrutura de segurança, ou à ausência desta, o
fogo não pôde ser controlado, o uso de comandos tardou a evacuação do público e
a falta de comunicação dos seguranças ocasionou na contenção de pessoas na única
porta de saída. Além disso, a estrutura não possuía iluminação de emergência, fato
que dificultou a evacuação após o momento em que as luzes falharam, despontando
em direção aos banheiros um feixe de luz, que atraiu muitos jovens para estes.
No decorrer de minutos, muitos dos clientes já não conseguiriam mais sair das
dependências da boate, que estava tomada por uma fumaça escura, tendo vários
sobreviventes retornado para seu interior no intuito de resgatar pessoas vivas, alguns
deles não conseguiram sair novamente.
Tal situação angustiou a vida daqueles que viviam em Santa Maria, aqueles que
perderam seus familiares, do Rio Grande do Sul e do Brasil. A comoção foi intensa
e as ações de solidariedade ocorreram com a mesma força. São diversos os relatos
captados pela mídia nos dias seguintes ao incêndio. Falas que transmitem, ao leitor
distante e que não vivenciou os fatos ali relatados, o horror, a dor e o sofrimento,
mas também as possibilidades de humanidade, empatia e doação.
Assim, manifestando o pesar pela situação, Santa Maria uniu-se e tomou conta
das ruas da cidade para expressar seu luto e demandar por justiça e, a partir disso, o
local da Boate, na Rua dos Andradas, e a Praça Saldanha Marinho, no coração do
centro, passam a ter significativo papel.
Assim, na cidade, iniciam-se processos de discussão a respeito da construção
de memoriais, seja no local do incêndio ou não. Por isso, analisamo-os a partir
da definição de Régine Robin (2014), quando trata a respeito da constituição de
espaços memoriais instalados em ‘sítios autênticos’, como campos de concentração
nazistas e palcos de tragédias e, por outro lado, aqueles construídos em outros espaços,
os denominados ‘lugares de memória’, que, citando Nora (1993), recebem marcas
memoriais e que constroem a memória, não estando necessariamente vinculados ao
local físico do acontecimento.
Esse recorte tem como foco os movimentos de patrimonialização que ocorrem
desde então na cidade de Santa Maria (SM) e visam à transmissão das memórias do

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trauma ocasionado pelo acontecimento, além de investigar os atores em processo e


os instrumentos utilizados para a realização desse empreendimento.
Desta forma, ao iniciar a pesquisa, deparamo-nos com alguns projetos sendo
desenvolvidos, a saber: Memorial às Vítimas da Kiss, Memorial da Vida e Espaço de
Resistência Tenda da Vigília, que possuem como objetivo transmitir, de diferentes
formas, a memória do acontecimento traumático, assim como diversas possibilidades
de conformação dos fatos, a partir dos lugares de fala daqueles que se envolvem com
a criação destes.
Essas ações integram o que Tornatore (2010) define como ‘proliferação’ da
memória, sendo possibilidades de democratização da memória, a partir de um
movimento em que não só mais o Estado cumpre o papel de patrimonializar, dando
lugar a pequenos grupos na seara da patrimonialização.
Assim, Santa Maria presencia o início de diversos processos de construção de
narrativas. Quando falamos em processo de construção, referimo-nos a possibilidades
de assentamento, assimilação, ressignificação ou mesmo negação ou uso dos fatos
ocorridos, sendo as mencionadas aqui possibilidades reais e encontradas nestes
seis anos pós-incêndio. Por isso, acredita-se que os processos de construção destas
sejam produto dos enfrentamentos empreendidos pela ‘cidade’ com respeito ao que
aconteceu e em como as coisas foram se desenvolvendo.
Por conseguinte, desde 2013, diversas foram as propostas de criação de
memoriais dedicados às vítimas do incêndio na boate, inclusive a partir da demanda
da própria Associação de Familiares deVítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM),
na figura do primeiro presidente e fundador, ou por meio de outros atores, próximos
ou distantes das vítimas. Teve-se, como única contribuição do Estado, através da
figura da Prefeitura Municipal, a possibilidade de desapropriação do prédio da boate.
Contudo, somente em 2018, uma proposta foi eleita a ser realizada no local
da boate, resultante do Concurso Nacional de Projetos Arquitetônicos para o
Memorial as Vítimas da Boate Kiss, levada a cabo pelo Instituto de Arquitetos do
Brasil, regional Rio Grande do Sul (IAB-RS), e pela Associação de Familiares das
Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).
Ainda, existem processos em paralelo que projetam a construção do Memorial
daVida a ser construído no campus da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
por equipe do Curso de Arquitetura e Urbanismo, em parceria com a Reitoria e a
AVTSM, além do projeto para a construção da estrutura permanente da Tenda da
Vigília (estrutura criada em 2013 no centro da cidade), atualmente em tratativas
com laboratórios de Arquitetura da Universidade Franciscana.
O Memorial da Vida teve o lançamento de sua pedra fundamental em março
de 2018, sendo reconhecido por alguns familiares como uma justa inciativa da
Universidade Federal de Santa Maria, que perdeu mais de uma centena de alunos
no incêndio da boate. O projeto, coordenado pelo Laboratório de Paisagismo e
Arquitetura, acompanhado da Comissão UFSM Pró-Memorial, com membros da
universidade e da AVTSM, apresentou a proposta, prevendo

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[...] uma passarela rodeada por um espelho d’água com 242 esguichos que dá acesso a um
prédio com hall para exposições e salas multimídia. A edificação conta com um terraço-jardim
que funcionará como mirante para os morros da cidade, áreas verdes do campus e o Centro de
Convenções. O prédio, todo idealizado em vidro para estimular o contato com a natureza, ainda
dará acesso a um monumento em formato de coração em meio a outro espelho d’água. No entorno,
o projeto prevê a plantação de 242 espécies de árvores que florescerão em tempos distintos durante
todas as estações do ano, e uma espécie de arquibancada ao ar livre com platôs para descanso e
contemplação (Projeto Memorial UFSM, 2018).

Assim, a partir da descrição publicada pela UFSM, este memorial objetiva


tornar-se um espaço de reflexão, paz e tranquilidade, além de ser um espaço em
homenagem e que lembre, de forma sutil, o acontecimento. Com respeito ao
material multimídia, propõe-se desenvolver curadoria de material a respeito do
acontecimento traumático, proposta ainda não apresentada. Este memorial será
construído pela Universidade por meio de financiamento público a ser captado.
A Tenda da Vigília mantém-se desde 2013, quando, por iniciativa de familiares,
instalaram uma tenda ao lado do Viaduto Evandro Behr na Praça Saldanha Marinho,
com o objetivo de realizar 242 vigílias em homenagem às vítimas. Contudo, mesmo
após o período tendo expirado, a tenda permanece e as ações nela realizadas foram
mantidas e ampliadas.Toda quarta-feira e todo dia 27 de cada mês é possível encontrar
pais e mães em vigília, durante todo dia, até no mais rigoroso inverno, além de
outras datas, em que realizam campanhas especiais, por exemplo, para arrecadação
de materiais a serem utilizados em ações voltadas a crianças.
A Vigília se transformou num dos símbolos mais persistentes da trajetória
de luta destes familiares, sendo ali um espaço marcado, um lugar de resistência da
memória, em que já foram travadas inclusive batalhas judiciais a nível municipal
para a retirada da mesma, além das simbólicas, com ofertas para uma saída pacífica
em troca de sala comercial em outro local por parte do empresariado do centro,
segundo a AVTSM.
Com o tempo, várias possibilidades puderam ser empregadas no local: um
espaço de homenagem; um lugar de encontro dos grupos envolvidos; um momento
de resistência por parte daqueles que clamam por justiça; um lugar de afeto, tanto
pelos filhos perdidos ou mesmo por aqueles que se somam à causa a partir dali; ou
um espaço de produção de afetos por meio das ações de arrecadação de materiais
escolares, brinquedos, e lãs para os ‘quadradinhos de amor’, que são transformados
em kits com roupas para recém-nascidos e que são doados a comunidades carentes
e a maternidades de hospitais. Além disso, a Tenda da Vigília acaba de receber a
marcação como um local sagrado, representação atual da presença de seus filhos
no espaço público. Desta forma, é um local que suscita conflitos em nível de
apropriação do espaço público, constituído por um grupo que sofre com a tentativa
de soterramento de sua memória (POLLAK, 1999).
Feitas essas considerações a respeito da amplitude de possibilidades oriundas
das memórias traumáticas da boate Kiss, parte-se para a reflexão do processo que
trata diretamente da criação de um memorial a ser erguido na rua dos Andradas,

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sítio que sediava a antiga boate. Este é a representação dos espaços que

Despliegan su propia memoria, a menudo sin rastros, a veces por medio de huellas más o menos
legibles, ya sea se encuentren abandonados o, por el contrario, se los conserve (ROBIN, 2014, p.
125).

Por isso, estes locais, marcados pela dor ou que são eleitos para receber ações
de representação desta, dão lugar a manifestações públicas, como menciona Ferreira
(2012) com respeito ao local do atentado à bomba na estação de metrô madrilenha,
Atocha, ocorrido em 2004, quando, algumas horas após o ocorrido, o espaço já
começava a receber velas e flores dedicadas a homenagear as vítimas. Da mesma
forma, a frente da boate Kiss, tão logo liberada pelos profissionais envolvidos na
investigação, começou a receber flores, fotografias, banners e diversas manifestações
daqueles que perderam seus entes. Logo, discute-se na mídia regional e nas redes
sociais as possibilidades e necessidades ou não da criação de um memorial naquele
local que já havia sido transformado em espaço de homenagem. Por isso, desde 2013,
a fachada do prédio é palco de diversas manifestações, inclusive transformando-se
com o passar do tempo, de flores e cartazes para banners plotados, para pinturas e,
atualmente, para grafites substituídos anualmente. Essas manifestações variam entre
homenagens aos anjos que partiram e frases de indignação e solicitações de justiça.
Adentrando na possibilidade de criação de um memorial no espaço da boate,
mesmo sem definições de projetos, discussões a respeito do destino do prédio são
travadas entre o poder municipal e as associações, dando início a um processo de
desapropriação dele.Assim, é pertinente salientar que, para a construção do memorial
dedicado as vítimas do incêndio, o prédio da antiga boate será destruído, sem deixar
rastros físicos dele.
A destruição do prédio da boate e a construção de um novo espaço, que aliena
totalmente os indicativos físicos do acontecimento, poderia, a princípio, provocar
uma sensação de apagamento da memória. Contudo, ao aproximar-se dos sujeitos
que levam este processo adiante, mães e pais que perderam seus filhos no incêndio, é
possível perceber o quanto estes desejam que aquele espaço seja transformado de um
local de dor num local de amor. Desta forma, conforme cita Jean-Louis Tornatore
(2010), quando aponta a possibilidade de existência de duas formas de emoção
patrimonial vinculadas ao castelo de Luneville na França, incendiado acidentalmente
em 2003, sinaliza-se que pode haver duas formas de emoção patrimonial vinculadas
ao local, seja do cidadão que lamenta pela perda da história vinculada ao castelo ou
aqueles que choram a partir de suas memórias afetivas com o local citado. Neste
caso, podemos comparar com o anterior que a construção do memorial às vítimas
da Kiss vincula-se ao desejo de pais e mães de que não se esqueça do que aconteceu,
ensejo que se supõe alcançado a partir de um memorial, fosse este constituído a
partir da edificação anterior ou não. E, ao mesmo tempo, o local deve representar o
amor que estes sentem pelos filhos que ali tiveram suas vidas ceifadas. Desta forma,
as ruínas do prédio da casa noturna fogem a esta proposta, justificando assim a
sobreposição do local pelo memorial que poderá cumprir ambos os papéis.

402
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Entendem-se estes movimentos como parte do processo de ativação, que, por


sua vez, conforme Ferreira define: “[...] os elementos culturais são interpretados e
inseridos em uma lógica da gestão patrimonial condizente com o grupo ou sociedade
da qual fazem parte” (FERREIRA, 2012, p. 15). Por isso, o processo de constituição
do memorial não dá conta somente da dimensão simbólico-política envolvida no
caso, dada pela necessidade em se contar a história, indiciar os responsáveis pelo fato
e transmitir a verdade dos fatos, mas, também, a possibilidade de refletir a atuação-
ausência dos filhos sobre o processo de gestão da memória desse caso.
Conforme mencionado, durante anos, desde 2013, surgiram diversas propostas
de criação de memorial, fosse no local da boate ou não, como o de um artista
plástico gaúcho, o de estudantes de arquitetura e/ou design, o de grupos de pessoas,
ou mesmo de empresas privadas. Contudo, nenhum deles foi realizado, por conta
dos processos que envolviam o prédio da boate, somente desapropriado em finais de
2017, sendo sua chave entregue à AVTSM em 2018, ou por contas das pautas com
prioridade na agenda da associação, com o transcorrer dos processos judiciais.
Desta forma, inicia-se a preparação de um processo oficial e transparente para
a construção do memorial, este por meio de um concurso público nacional de
projetos arquitetônicos, sob responsabilidade do Instituto de Arquitetos do Brasil,
regional RS.
Desta forma, antes do lançamento do concurso, os familiares envolvidos, junto
com o auxílio do IAB-RS, lançaram um projeto de captação de recursos para arcar
financeiramente com os custos do edital, entre estes a remuneração do IAB-RS e
a premiação dos projetos melhor colocados, sendo necessário, posteriormente ao
concurso, realizar nova arrecadação visando à custa para a execução do processo
eleito. Este foi realizado por meio de crowuding founding, e em ações na própria
cidade de Santa Maria, durante o ano de 2017.
Assim, realiza-se o Concurso Nacional de Projetos Arquitetônicos, levado a
cabo pelo IAB-RS, que teve seu edital lançado em janeiro de 2018, tendo recebido
cerca de 120 propostas de projetos para o memorial. A escolha dos projetos deu-se
através da análise de duas comissões, uma científica, composta por arquitetos locais,
nacionais e estrangeiros, e outra comissão da sociedade, composta por membros da
AVTSM, UFSM e Prefeitura Municipal. Desta forma, a partir da inquirição dos
pressupostos fornecidos para a realização do projeto, como uso do local, valor da
obra de construção e proposta simbólica, a comissão técnica elegeu dez projetos e
os apresentou à segunda comissão, que deveria escolher cinco dos projetos e colocá-
los em ordem de primeiro ao quinto, além de outros cinco que receberiam menção
honrosa.
Desta forma, foi escolhido como primeiro colocado um projeto de um
escritório de Arquitetura de São Paulo, que teve como potencializadores a presença
de largo jardim, em valor de execução dentro do estimado (R$3.000.000,00), e,
segundo o parecer anunciado na cerimônia de premiação, transformando através
da arquitetura a narrativa do fato. Fragmento da descrição do projeto expressa isso:

403
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

A memória da tragédia não deve ser esquecida ou apagada. Com esse objetivo, a fachada proposta,
em toda sua força, austeridade e pesada materialidade, remete ao trauma ali ocorrido. Por outro
lado, ao atravessar essa barreira por sua abertura central, entra-se em um espaço de linhas leves,
proporções delicadas e materiais agradáveis. Um espaço que, sendo circular, não possui lados,
onde todos os visitantes se veem, identificam-se e confortam-se. Atinge-se assim a transformação
da memória negativa que existe ali em uma oportunidade de reflexão; busca-se, na coletividade,
acolhimento e apoio para as famílias das vítimas e toda a comunidade de Santa Maria (Projeto 1º
colocado. IAB-RS, 2018)4.

O projeto ganhador, conforme o descrito acima, trata de diversos aspectos


voltados à narrativa do fato, como fachada e entrada do local, representando a
principal dificuldade para a evacuação das vítimas na noite do incêndio através do
aspecto da própria fachada e de sua entrada principal. Contudo, a partir já da entrada
é possível visualizar extenso e colorido jardim, o que demonstra a possibilidade de
transformação do local, sendo este, o jardim, outro elemento narrativo relevante, seja
pelo simbolismo das flores ou mesmo pela área aberta que proporciona ao ambiente,
com ampla luminosidade e circulação de ar, bem como o círculo e o encontro de
todos a partir de qualquer parte do memorial, objetivando o encontro. A partir disso,
o projeto deu corpo a ideias e enquadrou as necessidades da AVTSM. Desta forma,
intui-se, como cita Tornatore, que “[...] a patrimonialização ou a monumentalização
procede de um trabalho de imaginação no sentido da produção de uma imagem
do patrimônio” (TORNATORE, 2010, p. 12). Processo este que demandou
planejamento e, sobretudo, amadurecimento, em convênio com profissionais de
diversas áreas a contribuírem com as dinâmicas citadas. Assim, com o memorial, o
processo de patrimonialização vem sendo construído a longa data por todas as partes
envolvidas.
Neste sentido, acredita-se que todo o processo é de confrontação, uma vez que
a necessidade em se realizar um concurso e após o planejamento de uma curadoria,
que dão conta de definir a estrutura física do espaço e seus conteúdos, incorporam
outras dinâmicas que não somente o aceite de um projeto dado. Segundo Fabri,
“Esta confrontación trasciende el plano político y va más allá, toca los límites de
lo estético y se introduce en los canales sobre los que se montará el entramado del
relato para la activación de la memoria” (FABRI, 2013, p. 96).
Desta forma, a participação ativa dos representantes da AVTSM incorpora as
possibilidades de criação deste projeto. Assim, como no outro caso, do Memorial
à Vida na UFSM. Por isso, em ambos os casos, através de diversas atividades entre
profissionais e familiares, são projetados estes memoriais.Tais ações são imprescindíveis
para a instituição de locais capazes de contribuir com a formação das gerações
vindouras e, por isso, em se tratando da parte teórico-metodológica, vêm sendo
desenvolvidas, pela equipe curatorial, do Memorial às Vítimas da Kiss, ações de
planejamento, que, conforme AXT denomina, são de ‘gestão estratégica’, em que se
devem planejar o marco teórico, os públicos, as linhas de pesquisa a serem realizadas,

4  Projeto 1º colocado. IAB-RS, 2018. Disponível em: <https://concursos.arqs.com.br/concursomemorial/


resultado/01_657735/>. Acesso em 20 out. 2018.

404
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em princípio, os tipos de fontes de consulta, os produtos que serão produzidos e,


por fim, quais as fontes de financiamento (AXL, 2012). Desta forma, constitui-se o
corpo do projeto curatorial do memorial do centro da cidade.
Ainda, em se tratando das funções pedagógicas desses espaços, utilizamos a
descrição de Cymbalista, que afirma que estes “São catalisadores de narrativas, são
repositórios de esperanças e de identidades. São lugares que adquirem uma dimensão
política – e por isso mesmo, possuem potencialidades pedagógicas” (CYMBALISTA,
2017, p. 33).
Por isso, cabe aos atores envolvidos desenvolver propostas que sejam
responsáveis por fazer com que esses espaços sejam transmissores de indicadores
de um passado ali vivenciado e de relações travadas no presente, com o objetivo de
fazer uso da tragédia ocorrida para criar uma ação que fomente uma visão crítica a
respeito da nossa própria vida e que valorize os diretos humanos. Cabe “[...] a nós
reconhecermos e explorarmos as oportunidades legadas pelas tragédias, desafiando
os limites e preconceitos da sociedade, exigindo de nós mesmos a construção de um
futuro mais generoso do que o passado” (CYMBALISTA, 2017, p. 33).
Neste tom, a AVTSM deseja transformar a marca do local, atualmente
representado pelas ruínas da boate, em um espaço vivo, de confronto com a memória
do caso, mas que seja capaz de produzir resultados positivos para a cidade.
Partindo para outro campo, surge outro papel dos memoriais, sendo este
relacionado com as medidas de reparação simbólica, entendidas, como cita Piñeros,
como possibilidade que

Puede contener tanto dimensiones meramente semánticas y/o emocionales, como materiales;
incluye múltiples actividades y actitudes cuyos propósitos amplios pueden verse como el cierre o
alivio de las heridas/traumas no reparables o compensables […] (PIÑEROS, 2008, p. 763).

Desta forma, os projetos de memoriais podem se encaixar em dinâmicas de


reparação simbólica, como sendo possibilidades de retorno e alívio àqueles que
sofrem com a justiça que tarda. Contudo, quando indagados a respeito do papel dos
memoriais, os atores diretamente envolvidos afirmam que esses espaços são para a
sociedade e não para eles. Sendo assim, esse local pode ocupar duplas possibilidades,
a primeira discutida anteriormente com respeito a sua função social e a segunda
como alívio das feridas nunca cicatrizadas.
Ainda, em se tratando da reparação simbólica, tal dinâmica, assim como em
Abrão apud Corsini e Levy (2018), e Cymbalista (2017), o Estado tem um papel
fundamental a cumprir, existindo forte simbolismo para a vítima quando este integra
ações de reparação, seja para exemplos de crimes perpetrados por ele mesmo, como
exemplo de crimes do regime militar brasileiro, ou mesmo contemporâneos, como
homicídio por crime de ódio, ou ainda como o caso do incêndio na boate Kiss.
Sendo assim, no caso de Santa Maria, o papel do município nas ações relacionadas
ao memorial poderia configurar-se como uma ferramenta de reconhecimento
público da responsabilização do poder público ou como instrumento de reparação
simbólica? A atuação da Prefeitura, por intermédio direto do atual dirigente (2016

405
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O

– 2019) e de secretários, dá-se por meio da desapropriação do prédio da casa


noturna, tendo sido custeado com dinheiro dos cofres públicos, além do total apoio
pronunciado pelo regente e auxílio com necessidades da AVTSM, seja em eventos ou
mesmo na articulação de projetos do memorial. Mesmo assim, a indagação poderia
ser somente respondida a partir dos ensejos de cada um dos membros da AVTSM
envolvidos, a depender da forma como eles próprios enxergam a atuação do poder
público no caso. Existindo divergências entre suas leituras, fica a individualidade de
cada um às possibilidades de reparação simbólica, ao menos em casos tácitos.
Assim, o estudo das iniciativas memoriais em Santa Maria, conforme
apresentamos, surge a partir de contextos diversos, sejam estes em épocas, locais e
a partir de protagonismos distintos. Desta forma, integram parte do fenômeno que
definem Bezerra e Serres como

[...] um novo campo de ação patrimonial dedicado à compreensão das memórias difíceis, pois os
efeitos destas novas formas de comemoração do passado, ainda não estão claras e, tampouco
existe um consenso no que diz respeito aos métodos experimentados pelos meios de transmissão
destas novas memórias (BEZZERA E SERRES, 2015, p. 175).

Contudo, todos convergem num mesmo sentido, que pode ser traduzido
através das falas de Posso em entrevista feita por Ferreira, quando este discorre a
respeito da proposta de criação do Centro de Memória para Paz em Bogotá, o qual
surge como uma ação de reconhecimento da dignidade das vítimas, em busca da
transformação do futuro a partir da criação não de um lugar que sirva para lamento,
mas que seja visitado como local de aprendizado, democracia, direitos humanos e
paz (FERREIRA, 2017).
Assim, tudo que aqui foi discutido é parte integrante do processo de
construção da memória em Santa Maria em busca do não esquecimento e de justiça
e em homenagem às vítimas. Por isso, tratar da ‘tragédia’ de Santa Maria, como é
identificada, inclusive pelo nome dado à associação que leva adiante a causa, é buscar
reconhecer os indicadores destes processos que legitimam as ações da AVTSM para
a criação do memorial.
Por esse motivo, este artigo buscou, de forma preliminar, trazer à tona uma
breve análise dos casos memoriais de Santa Maria. Fazem-se presentes as principais
indagações que vieram à tona neste primeiro ano de projeto de pesquisa, buscando
entender como estes elementos constroem as narrativas oficiais que poderão
constituir o memorial a ser construído no local da boate Kiss.
Na sequência, buscar-se-á perceber como se constituíram as mobilizações,
durante e pós incêndio, e como essas refletem atualmente, seja por meio da ação
profissional ou mesmo por meio das solidariedades da esfera civil, local, regional,
nacional e internacional. Também, após o epicentro do incêndio, pretende-se
presenciar as ações realizadas nos então marcados como lugares de memória e como
ocorrem os processos de transmissão da memória atrelada a eles, tais como na Tenda
da Vigília e as ações lá empreendidas, os eventos relacionados aos aniversários de
cada mês e ano do incêndio, ou no próprio Memorial da Vida a ser construído no

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campus Camobi da UFSM.


Percebemos como são os processos de construção de narrativas a respeito
do fato, balizados por verdades, apropriações e silêncios, todos instituídos pelos
mais diversos atores, envolvidos direta ou indiretamente com a tragédia. Também,
entendemos que eles desejam a criação de memoriais dedicados aos mais diversos
fins, como homenagear as vítimas, contar a história às gerações futuras, reivindicar
por justiça e para que não se repita.
Ainda, buscou-se analisar brevemente as relações com pesquisadores, expertos
e profissionais de diversas áreas, sejam estes relacionados com a área da saúde, da
comunicação, da arquitetura, de memória etc. Percebeu-se a relação firmada com o
IAB-RS e a criação dos projetos entre este e a AVTSM, que resultam no concurso
de projetos arquitetônicos e nos movimentos de arrecadação de fundos.
Buscamos, também, entender de que forma se criam, e por quais motivos,
outros lugares de memória e quais são seus papéis. Analisamos, ainda, como vem
sendo utilizado o próprio prédio da Kiss, seja como meio de prova para o processo
judicial ou mesmo pela apropriação dele como painel de memória, dado através das
manifestações que ali foram e ainda são realizadas. Tentamos relacionar a criação em
curso do projeto curatorial do memorial com o planejamento da gestão estratégica
dele, atrelado ao desenvolvimento do papel social e pedagógico dele, visando ao
estímulo da formação de consciências críticas a respeito dos direitos humanos e das
responsabilidades sociais destes espaços. Por fim, intentamos analisar de que forma
estes instrumentos podem servir como instrumento de reparação, seja esta realizada
pelo papel integrante do Estado, ou mesmo como papel dos próprios memoriais
para os familiares de vítimas da tragédia de Santa Maria.

REFERÊNCIAS

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