Cap. Ebook Memória e Patrimônio - Tramas Do Contemporâneo PDF
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PATRIMÔNIO:
TRAMAS DO CONTEMPORÂNEO
Coordenadoras Organizadores
Juliane Conceição Primon Serres Darlan De Mamann Marchi
Maria Letícia Mazzucchi Ferreira Eduardo Roberto Jordão Knack
Rita Juliana Soares Poloni
Porto Alegre
2019
Copyright ©2019 dos organizadores.
Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências
bibliográficas, são de inteira responsabilidade dos autores.
Direitos desta edição reservados aos autores, cedidos somente para a presente edição à
Editora Casaletras.
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma
parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora ou do(s) autor(es), poderá
ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos,
mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Revisão ortográfica:
Marlise Buchweitz Klug
Editor:
Marcelo França de Oliveira
Conselho Editorial
409p.
Bibliografia
ISBN 978-85-9491-052-3
CDU:351.853(81) CDD:363.690981
Editora Casaletras
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - [email protected]
www.casaletras.com
APRESENTAÇÃO
E
sta obra, em forma de coletânea de artigos, é resultado de alguns dos trabalhos
apresentados por pesquisadores e pesquisadoras durante o 9º Seminário
Internacional em Memória e Patrimônio (SIMP), evento promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural
(PPGMP), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ocorrido nos dias 15, 16
e 17 de maio de 2019, nas dependências do ICH-UFPel. O SIMP possui uma
trajetória social e científica consolidada junto à comunidade acadêmica.Tanto através
da participação de conferencistas nacionais e estrangeiros reconhecidos quanto nos
simpósios temáticos, com a divulgação de trabalhos de pesquisadores de diferentes
formações e instituições de ensino superior, o Seminário tem contribuído, em todas
as edições, para o debate de temas e conceitos que emergem nas áreas da memória
e do patrimônio.
Desde sua primeira edição, o SIMP tem se destacado, tanto na escolha de
temas de fulcral importância para as temáticas do Patrimônio e da Memória, na
contemporaneidade, bem como pela presença de nomes de renomada importância
em ambos os campos de estudo. Na edição de 2019, através do tema “Memórias
difíceis”, o evento buscou acompanhar a emergência de uma discussão que envolve
memórias trágicas, eventos coletivos traumáticos, patrimonializações de lugares de
sofrimento e recuperação de memórias subterrâneas. Esse assunto tem sido objeto
de trabalho do grupo de pesquisas Patrimônio em Lugares de Sofrimento, o qual
reúne professoras, pós-doutorandos e estudantes em nível de graduação, mestrado e
doutorado que atuam no PPGMP da UFPel.
Dessa maneira, o 9º SIMP foi uma oportunidade excepcional para ampliar redes
de pesquisas e promover debates sobre um tema que tem sido objeto de estudos e
pesquisas, alguns dos quais presentes nesta coletânea, pelos professores e alunos que
atuam no PPGMP. Essas pesquisas buscam analisar como as memórias associadas ao
sofrimento convertem-se em memória coletiva ou, como afirma Joel Candau1, em
formas de compartilhamento, diferenciando-se quanto à intensidade e capacidade de
afirmação dentro de um conjunto social, o que estaria associado ao papel relevante dos
1 CANDAU, Joel. Memória e Identidade. 1. ed., 1° reimp. –São Paulo: Contexto, 2012.
sociotransmissores, elementos atuantes na construção de discursos memoriais e em
sua transmissão. Ao se pensar em experiências fortemente associadas ao sofrimento,
o grau de compartilhamento interno aos sujeitos atores desses processos é muito
maior do que seria com outros que não possuem vivências semelhantes.A capacidade
de transmissão de experiências da dor deriva da necessidade de conferir visibilidade
e ressonância às lembranças, utilizando-se para tanto diferentes mecanismos, dentre
os quais a patrimonialização e a musealização. Os processos de sofrimento, em que
pese a dimensão intimista e pessoal com que são vivenciados, constituem-se como
elementos identitários e de busca pelo reconhecimento quando projetados na esfera
do coletivo. É assim que a diversidade de rupturas violentas, que se inscrevem nas
tramas existenciais de sujeitos e grupos, busca tornar-se objeto de narrativas para
descrever as experiências do sofrimento e dos fenômenos sociais e culturais que o
acompanham, a partir de diferentes linguagens que ocupam o espaço público, tais
como memoriais, museus, associação de vítimas, movimentos de Direitos Humanos,
dentre outros.
Os artigos que compõem esta coletânea estão divididos em quatro partes,
por afinidades de temáticas: Museus e memória; Memória, educação e cidadania;
Memória, monumentos e cidades; Memórias difíceis.
Na primeira parte desta obra, busca-se questionar o papel institucional dos
museus e sua produção discursiva, frente a reivindicações e demandas do mundo
contemporâneo, permeado por temáticas tais como os estudos pós-coloniais, a
emergência de memórias subterrâneas e de novos atores sociais, as tensões entre
culturas e identidades locais e poderes instituídos, e os desafios que as fronteiras
tecnológicas e digitais impõem às instituições que tratam de memória e patrimônio.
Sob o tema “Memória, educação e cidadania”, por sua vez, procura-se desafiar
as fronteiras institucionais das discussões relacionadas à memória e ao patrimônio,
buscando discutir a relação entre identidades, memórias e etnicidades, patrimônio
intangível e culturas locais, bem como o lugar do sujeito na constituição de memórias
e de identidades.
Já em “Memória, monumento e cidade” busca-se questionar o protagonismo
de atores subalternizados na constituição dos lugares que circunscrevem o espaço
urbano, atentando para a importância dos sítios de memória e da denúncia do
esquecimento nas lutas por visibilidade desses atores sociais.
Finalmente, sob a égide do tema “Memórias difíceis”, eixo principal de
discussão do 9º SIMP, exploram-se com profundidade as relações entre eventos
e experiências traumáticas e a constituição de discursos memoriais oficiais ou
alternativos, bem como seu papel na emergência de memórias subterrâneas e na (re)
discussão de políticas públicas e de histórias oficiais acerca de eventos e períodos
controversos da história brasileira e latino-americana recentes.
Espera-se que a presente obra possa se constituir como um marco referencial
para os estudos da memória social e do patrimônio cultural sob a égide de novos
paradigmas e ontologias, rompendo-se com discursos metamemoriais marcados por
vozes institucionais, por narrativas oficiais e por discursos dominantes. Enseja-se fazer
emergir o lugar da dor, do sofrimento e da abjeção não somente na constituição
de identidades e de memórias de grande significado social, mas, também, como
questionadores do papel do patrimônio num mundo contemporâneo marcadamente
polissêmico e polifônico, em que as reivindicações de grupos subalternos e de
indivíduos dissonantes emergem e questionam o lugar dos monumentos, das
instituições e das narrativas oficiais de Estados e Nações.
Para finalizar, gostaríamos, ainda, de agradecer a Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pelo financiamento do
SIMP e desta publicação.
Desejamos uma boa leitura a todos.
Os organizadores
SUMÁRIO
I – MUSEUS E MEMÓRIA
Portugal e seu passado recente: representações do fim da colonização no Museu
Nacional de Etnologia........................................................................................................................12
Lília Rolim Abadia
O Desenho Infantil a partir do artista Nuno Ramos no Museu de arte Leopoldo Gotuzzo....98
Letícia Beck Fonseca
Caroline Leal Bonilla
Monumento público, memória social e catástrofe: ativar a dor para não esquecer.....232
José Paulo Siefert Brahm
Davi Kiermes Tavares
Juliane Conceição Primon Serres
Las “no memorias” en el barrio histórico de Colonia del Sacramento: tres casos de olvido
en el proceso de patrimonialización del sitio..........................................................................256
Laura Ibarlucea
Esse [não] é o meu lugar: sobre as memórias das mulheres nas cidades.......................268
Fernanda Fedrizzi Loureiro de Lima
Helene Gomes Sacco
Archivos para los Derechos Humanos; Origen y evolución de los formatos únicos de
Declaración de víctimas entre 1997-2019 en Colombia......................................................389
Yenifer Cristina Cardona López
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nos últimos anos, temos visto crescentes esforços de diversos grupos sociais para
debater as consequências do passado colonial no presente da sociedade portuguesa.
Estes esforços vêm se ampliando na última década, alcançando maior repercussão
nos meios de comunicação de massa2 e em debates acadêmicos.
Neste cenário, parece-nos pertinente voltar à questão tão presente na literatura
museal sobre o papel dos museus nacionais na representação da história e na
consolidação de um imaginário nacional. Vemos neste debate posições divergentes
desde os que consideram que os museus são instituições criadoras de consenso
(BONNEL; SIMON, 2007; SMITH 2011; WEISER, 2017) até os que reforçam a
necessidade de decolonizar os museus, mesmo que isso signifique deixar as fraturas
sociais expostas (VISO, 2018; MIRZOEFF, 2017).
Atualmente, o papel do museu do século XXI tem sido amplamente debatido
em relação à sua capacidade de comunicação e ao papel que deve atribuir aos
visitantes (HENNING, 2005; SANDELL, 2007). Tem crescido o apelo, tanto no
meio acadêmico quanto no âmbito da prática museal, para que os museus nacionais
abandonem suas missões civilizadoras e adotem outras voltadas para acessibilidade
e inclusão. Henning denomina essa mudança de paradigma como uma “nova
episteme” dos museus (2011, p. 306). Há quem veja essa nova episteme como um
esforço insuficiente para decolonizar os museus, reivindicando novas práticas museais
(VISO, 2018; MIRZOEFF, 2017). A reformulação dos objetivos dos museus para
o século XXI tem, sem dúvida, exercido influência na prática museal de diversas
1 Doutora pela Universidade de Nottingham, atualmente pesquisadora associada da Universidade Católica de
Brasília, CAPES-Brasil, [email protected].
2 Podemos destacar, como episódios que ilustram o alcance do debate sobre as questões raciais e coloniais em
Portugal, a polêmica envolvendo o Museu das Descobertas ou dos Descobrimentos (SALEMA, 2018), o memorial
da escravidão (SALEMA, 2019) e a demanda por inclusão de dados étnico-raciais no censo de 2021 (HENRIQUES,
2018).
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Com o decorrer das campanhas [etnográficas em Moçambique], Jorge Dias parece ter invertido a
hierarquia de interesses previamente determinada por aqueles que patrocinaram a sua investigação
no norte de Moçambique [Junta de Investigação do Ultramar], ou seja, fez ascender ao primeiro
plano os objectivos iminentemente etnológicos (PEREIRA, 2006, p. 421).
Rui Pereira chega a sugerir que Dias agiu para alterar a ação colonial portuguesa
na África, propondo “medidas correctivas e disposições preventivas, tão gritante era
a discriminação, a exploração e o obscurantismo, se acareados com os ideais inscritos
no modelo colonial português” (PEREIRA, 2006, p. 457).
António Jorge Dias aparece destacado na literatura que se debruça sobre a
antropologia moderna portuguesa, sendo exaltado por suas qualidades pessoais e
profissionais. Apesar de uma grande idealização de sua figura, alguns exemplos
de literatura acadêmica deslindam o papel de Dias no intricado sistema colonial
(CHUVA, 2016; MACAGNO, 2002; THOMAZ, 1996; WEST 2004).
De fato, a biografia de Dias aponta que o intelectual foi ativo no regime
colonial, tendo participado de expedição científica, no final da década de 1950, no
norte de Moçambique, para informar as políticas de dominação e subjugação das
populações locais (CHUVA, 2016; PEREIRA, 2006; WEST, 2004). Contudo, sua
postura em relação à colonização portuguesa é complexa, como assevera R. Pereira
(2006). Se for certo que Dias produziu relatórios técnicos para a Junta de Investigação
do Ultramar, alertando sobre o perigo de sublevação dos Macondes, também é
certo que o período em campo o levou a perceber os problemas da colonização
portuguesa, alterando sua visão anteriormente pautada num lusotropicalismo um
tanto quanto ufanista.
Para além disso, segundo R. Pereira (2006), Leal (2010) e Areia (1986), Jorge
Dias foi pioneiro na condução da antropologia cultural, ao invés de medidas
antropométricas, dentro dos territórios coloniais portugueses. Em seu trabalho de
campo, na África Lusófona, nos anos 1950 e 1960, Dias rejeitou práticas recorrentes e
colonialistas na antropobiologia – as medidas cranianas, por exemplo –, focando, em
vez disso, nos aspectos culturais dos povos colonizados. Este foi um passo significativo
na pesquisa antropológica colonial portuguesa, particularmente naquela época.
Dias também contribuiu para a institucionalização da antropologia portuguesa. Foi
membro do primeiro centro de pesquisa do país, o Centro de Estudos de Etnologia,
criado em 1947, e do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, criado em
1962 (LEAL, 2006; PIGNATELLI, 2014). Ele ministrou disciplinas de antropologia
em duas importantes universidades portuguesas, a Universidade de Coimbra e
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queria que a exposição permanente fosse dando expressão ao programa que tínhamos iniciado em
1998, que estava a ter muito bons resultados, o dos estágios de investigação. Que fosse o lugar
para apresentar esses estudos que eram feitos no museu. E, finalmente, queria mostrar como num
museu há uma infinidade de coleções e de objetos e, portanto, de problemas e de questões que
se levantam com eles, de tal ordem que até foi por aí que fomos buscar o título da exposição ‘Um
museu, muitas coisas’. Há muitas coisas porque são muitos objetos, e muitos problemas em torno
deles. E queria que houvesse, por um lado, essa individualização ou individuação dos núcleos, de
cada núcleo, mas que tudo aquilo se mostrasse em relação, a sua coexistência no museu. O museu
é essa espécie de convivência de coisas que ali foram desaguar, na casa onde se vão encontrar,
e que depois se vão dar a ver. É uma forma de dar a ver. Mas dar a ver também o trabalho de
investigação (PAIS DE BRITO, 2015, n.p.).
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por ser um país que nunca teve grandes dicotomias, ou fraturas internas, com fronteiras muito
antigas, de dimensão relativamente pequena […] a questão da identidade nacional nunca
foi projetada para instituições [portuguesas] como o museu, de maneira a ter de ser lembrada,
reafirmada, reposta, bem vincada. O que houve foi, durante o Estado Novo, um discurso esmagador
das diferenças. [...] E temos em contraste a equipa fundadora deste museu. Interessava-lhes
o conhecimento da dimensão mais material e técnica da cultura rural no contexto europeu. As
tecnologias tradicionais, que a industrialização vai substituir rapidamente […] Então, acho que a
questão da identidade nacional, ao nível da projeção de uma instituição não se pôs, como se põe
em Espanha! Em Espanha, os museus projetam fortíssimas tensões na afirmação das autonomias e
da identidade nacional [...] (PAIS DE BRITO, 2015, n.p.).
Embora Pais de Brito defenda que o museu não trate de questões identitárias,
na exposição de longa duração, ilustraremos como as ideias lusotropicalistas se
manifestam no silêncio museográfico sobre as condições de recolha dos objetos
expostos e da própria ligação histórica do museu com o regime colonial.
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Apesar de se tratar de um instrumento usado pelos rapazes em várias ocasiões festivas, ele [o reque-
reque] aparece mais claramente associado ao dia das inspecções militares. A inscrição “Angola é
Portugal”; evoca tanto o uso do instrumento na circunstância da ida às sortes, quanto o contexto
histórico do país no início de uma guerra que tanto afectaria as suas vidas e as sociabilidades e
manifestações que promoviam.
6 De acordo com a tela multimídia no núcleo desta exposição, os objetos que fazem parte da coleção dos
instrumentos musicais portugueses, apesar de serem preservados no museu há muitos anos, eram propriedade da
Fundação Calouste Gulbenkian. Foi somente no ano 2000 que eles foram doados ao MNE.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta breve incursão sobre o MNE e sua exposição de longa duração,
procuramos ressaltar alguns aspectos ligados à construção de memória de eventos
traumáticos do passado recente. A seleção de memória que discutimos neste capítulo,
e que cria uma representação da identidade portuguesa, procura evitar um conflito
de narrativas sobre a colonização portuguesa e sobre a guerra colonial, estabelecendo
um consenso sobre a universalidade das culturas humanas. A exposição de longa
duração do MNE desarticula a disciplina antropológica da esfera política e evita fazer
a conexão entre a história colonial recente de Portugal e suas próprias coleções, e,
quando o faz, utiliza mecanismos sutis para criar a sensação de neutralidade, mesmo
que esta tenda a favorecer uma visão positiva da colonização portuguesa.
Sendo assim, a exposição do MNE pode ser interpretada como uma experiência
de criação de consenso da identidade nacional – uma que é sentida tanto através
da diferença com o ‘outro’ como através de um viés lusotropicalista que parece
reafirmar a plasticidade da colonização portuguesa e uma falsa horizontalidade das
relações com as populações das ex-colônias.
Neste sentido, a afirmação do ex-diretor do museu de que as instituições
museológicas portuguesas não projetam representações identitárias é uma afirmação
que enfatiza uma percepção essencialista sobre a identidade nacional, como se esta
fosse orgânica e coesa, ao invés de se tratar de uma construção, a qual, embora
tenha elementos históricos e factuais, esteja em transformação acompanhando as
mudanças políticas e sociais do país.
González de Oleaga, em uma incursão nas metodologias para a análise
expositiva, pontua os problemas da criação de consenso em instituições nacionais
e, ao mesmo tempo, aponta para o valor pedagógico destes museus mesmo quando
produzem exposições problemáticas, partindo da questão “como fazer coisas com
os museus?” (GONZÁLEZ DE OLEAGA, 2018, p. 11, tradução nossa). Segundo a
autora, o primeiro passo para o aproveitamento dessas instituições consiste em um
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exame crítico de suas exposições para que os problemas sirvam de pontes para o
diálogo entre visitantes, educadores, curadores e sociedade em geral (GONZÁLEZ
DE OLEAGA, 2018). Este é um passo difícil no âmbito do diagnóstico institucional,
uma vez que demanda uma autocrítica da instituição e das práticas adotadas pelos
agentes na produção do conhecimento. Neste sentido, esperamos que este capítulo
contribua tanto para o diagnóstico do MNE quanto para somar ao diálogo sobre as
consequências do passado colonial, que vem acontecendo em Portugal.
REFERÊNCIAS
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8 Por isso, se assemelha aos “gabinetes de curiosidade” também conhecidos como “Câmaras de maravilhas”
(SOTO, 2014) apresentando um universo revestido pelo imaginário do estigma, num contexto pouco conhecido
como o das microcidades.
9 Trata-se do e-mail institucional: [email protected].
10 Fornecida por Rita Camello em visita guiada ocorrida no dia 08 de março de 2016.
11 Informação verbal, fornecida por Marco LUCAORA durante entrevista concedida a Daniele Borges Bezerra,
no HCI, em 11 de maio de 2015.
12 Informação fornecida por Elisabete R. F. de ALMEIDA durante visita ao Memorial HCI no dia 11 de maio
de 2018.
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Fonte: Acervo de Daniele Borges Bezerra, Fonte: Acervo de Daniele Borges Bezerra,
Memorial HCI, 2018. Memorial HCI, 2017.
13 Informação fornecida em entrevista estruturada concedida por Marco LUCAORA, no HCI, em 11 de maio
de 2015.
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O objetivo do Memorial é de resgatarmos e guardarmos a memória dos que ali viveram, trabalharam,
estudaram [e se destina] a todos que desejam ter informações sobre a internação compulsória,
tratamento, evolução, manejo com a hanseníase. Professores, alunos, acadêmicos, sociedade em
geral (informação verbal15, grifos nossos).
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elementos díspares, num mesmo contexto expositivo, como pela criação de cenários
idealizados ou carregados de estereótipos, pode acarretar tanto na banalização da
memória, como observou Régine Robin (2016), quanto na espetacularização do
sofrimento (SONTAG, 2003). Um dilema ético, errôneamente justificado pela
intenção de promover o patrimônio por meio da sedução, do fetiche, ou pelo intuito
de provocar a empatia fazendo da exposição da dimensão dolorosa das memórias
um abuso (RICOEUR, 2007, p.100).
De modo geral, apesar de se constituir como um acervo bastante completo,
a expografia parece neutralizar a dimensão da violência intrínseca a esse passado,
promovendo uma narrativa institucional apaziguada.
A criação de cenários com a representação estereotipada da memória, pensados
para “apresentar” determinadas dimensões do passado, como é o caso, por exemplo,
da fetichização da dor na sala “A história da lepra no mundo” e da romantização da
primeira infância no ângulo sobre os “Filhos separados”, representa um problema
relacionado à transmissão, que deve ser pensada no terreno da ética quando a proposta
do dispositivo memorial envolve experiências sensíveis, marcadas por eventos difíceis,
por mais que o passado doloroso tenha sido superado. Essa homogeneização das
narrativas como forma de consolidar uma memória oficial foi problematizada por
Régine Robin como a principal dificuldade enfrentada nos processos que envolvem
a gestão da memória das vítimas (ROBIN, 2014). Em sua opinião:
16 “Lo que obstruye la transmissión en esos edifícios oficiales es el exceso de imagines y de explicaciones, la ilusión de uma
posible puesta em contacto con lo real de esse pasado [...]. Esos museos nos comunican información, pero tal vez no transmitan
nada.”
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O Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP-RS) foi criado pela lei provincial
nº 984, de 1874, ainda no período imperial. No ano de 1884, o então Hospício foi
inaugurado, tendo como administradora a Santa Casa de Misericórdia. No ano de
1889, com a proclamação da República, o governo do estado deixa de subvencionar
o hospital e o estatiza, mesmo ano em que encerra as obras de construção do quinto
pavilhão (ALVES; SERRES, 2009).
Um século depois, em 1989, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do
Sul solicitou a apreciação de tombamento dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico
São Pedro (HPSP) junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Rio
Grande do Sul (IPHAE). A abertura do processo possuía um caráter pragmático,
pois visava ao tombamento para a captação de recursos às obras de restauração
dos imóveis históricos17. Assim, o conjunto de prédios do HPSP foi tombado pelo
governo estadual, em 1990, e pela Prefeitura de Porto Alegre como patrimônio
municipal, no ano de 1993. No histórico do bem tombado, no website da Equipe
do Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria de Cultura de Porto Alegre,
destaca-se como motivação a deterioração sofrida nos imóveis decorrente da crise
do modelo hospitalocêntrico que começa a se delinear nas décadas de 1970 e
198018. Além disso, também se destacam, nos pareceres da prefeitura, a referência
urbana do Hospital para o surgimento do bairro, para o qual o Hospital torna-se
um documento arquitetônico do qual se depreende o ponto de vista da psiquiatria
como história social (ALVES; SERRES, 2009, p. 62).
O aspecto referente às memórias traumáticas associadas ao lugar foi destacado
no parecer da equipe técnica contratada pelo Governo do Estado para a realização
17 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Ofício nº 508/89, de 20 de abril de 1989. Secretaria de saúde e
meio ambiente. In: Dossiê de tombamento do Hospital Psiquiátrico São Pedro. IPHAE/RS. 1989-1990.
18 PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Secretaria de Cultura. Hospital São Pedro. Disponível em: <http://
lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/historico_hospital_sao_pedro_1.pdf>. Acesso em 27 jun.
2019.
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19 Atual IPHAN, que entre 1979 e 1990 estava dividido entre Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), órgão normativo e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), enquanto órgão executivo.
20 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Parecer da equipe técnica. In: Dossiê de tombamento do Hospital
Psiquiátrico São Pedro. IPHAE/RS. 1989-1990.
21 Idem.
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Desde a eliminação de castigos, solitárias, jejuns, coletes de força, banhos de emborcação até
a permissividade dos choques elétricos e a promiscuidade consentida em nome da alienação,
evidenciam-se propostas de recuperação moral e ética de seres humanos, já fortemente
estigmatizados pelo destino.
Alienados ou infelizes são as referências mais insensíveis registradas em relação aos doentes
daquele Hospital, que, por sinal, já foi Hospício até 1925 e modernamente se conceitua como
Hospital Psiquiátrico. As referências evoluem, entretanto, para designá-los como loucos, mais
tarde, como doentes mentais; depois, enfermos; para chegar-se, finalmente, ao nível de reconhecê-
los, simplesmente, como pacientes22.
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social e outra voltada para a racionalização dos usos do espaço construído, previam
um espaço destinado à memória do HPSP. Isso se dava também porque, desde 1998,
já havia, na estrutura do Hospital, um serviço voltado à preservação de objetos
e documentos. O Museu do HPSP foi criado por iniciativa de uma equipe de
funcionários do Hospital que, preocupados com a manutenção da memória e da
história do hospital, passaram a recolher e reunir objetos, equipamentos e documentos
que estavam dispersos em prédios e salas desativadas24. Ainda em 1998, através da
portaria 34/1998, o Museu foi estabelecido internamente. No ano de 2001, a
portaria interna nº 01/02, amplia as ações e cria o Serviço de Memória Cultural do
HPSP, que se divide em três serviços: documentação, pesquisa e memorial.
A sede do serviço está localizada no segundo piso do prédio histórico do HPSP,
onde ocupa em torno de 16 salas. Conforme a coordenadora, Neuza Barcelos, que
atuava na área jurídico-administrativa do hospital e que foi remanejada para cuidar
da parte histórico-cultural, a manutenção das atividades e do memorial advém
de recursos do próprio hospital e de projetos e ações promovidas pela Associação
Amigos da Memória do Hospital Psiquiátrico São Pedro (AMeHSP) que consegue
captar recursos para restauração de bens móveis do acervo25. Por não ser reconhecido
oficialmente como uma instituição independente de cultura, o Serviço não possui
rubricas específicas para a destinação de verbas estaduais para sua manutenção.
Entretanto, a Secretaria de Cultura do Estado cedeu um historiador concursado para
trabalhar no Memorial, o qual tem trabalhado na organização da documentação, na
concepção das informações históricas e na recepção dos grupos de visitantes26.
Hoje, o HPSP não é mais uma instituição de isolamento, uma vez que os
pacientes psiquiátricos dão entrada para o tratamento, assim como na ala para
dependentes de álcool e drogas, por um tempo determinado. Entretanto, ainda se
configura como uma instituição asilar, pois mantém uma ala de residência para os
pacientes mais antigos, tal como no HCI, todos idosos que perderam seus vínculos
sociais e familiares27. Outro ponto em comum no que tange à preservação da
memória nos dois lugares é a participação do funcionário público vinculado à
Direção Central dos Hospitais do Estado–RS (DCHE), Marco Lucaora, que também
atuou na concepção do espaço expositivo do HPSP e produziu pinturas que estão
em exposição do Memorial. São pinturas que reproduzem aspectos históricos do
Hospital e retratos de pacientes (Figura 3) que se tornaram icônicos no lugar, ambos
dispostos no corredor do Memorial.
24 Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Coordenadora do Serviço de Memória cultural do HPSP. Informação
fornecida em visita ao Memorial do HPSP. Darlan De M. Marchi em 23 de outubro de 2018. Porto Alegre-RS.
25 O SUL. Brechó e bazar em prol do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Disponível em: <http://www.osul.com.
br/brecho-bazar-em-prol-hospital-psiquiatrico-sao-pedro-acontece-neste-domingo/>. Acesso em 27 jun. 2019.
26 Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Idem.
27 Neuza Maria de Oliveira Barcelos. Idem.
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Figura 3: Fotografia das pinturas de retratos dos pacientes. Autoria Marco Lucaora.
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Em 1963 um grupo de esposas de médicos do HPSP doou um lote de seis espelhos aos pacientes
da instituição. Como representava um perigo à integridade física dos internos, a guarda de cada
espelho foi confiada a uma determinada irmã da Congregação de São José. A responsabilidade
deste espelho em exposição ficou a cargo da Irmã Paulina Bongiorno. Conforme a narrativa da
religiosa “o fato proporcionou uma euforia da comunidade do São Pedro. Foi bonito ver o pessoal
se reencontrar com a própria imagem, embora alguns ficassem tristes por não se reconhecerem,
pois tinham se passado muitos anos e já estavam envelhecidos”28.
Figura 4: Fotografias de
objetos expostos, referente aos
tratamentos. Medicamentos e
camisa de força.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 51-86
PREFEITURA DE PORTO ALEGRE. Secretaria de Cultura. Hospital São Pedro.
Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/
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Disponível em: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/clepsidra/article/view/Robin>.
Acesso em 10 fev. 2018.
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MUSEUS E MEMÓRIAS
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São muitas as vidas que correm nas margens das cidades, nas margens da História. Muitas delas
não deixam traços, na medida em que são vividas como rupturas radicais. São aquelas que foram
exiladas nas ruas, destituídas da possibilidade de compartilhamento de um espaço comum, ou as
que passaram por diferentes violências, as das guerras e também aquelas produzidas pelos que
deveriam oferecer cuidados. Como construir uma memória para existências que desaparecem no
apagamento de seus laços? Como dar lugar/registrar as marcas que essas vidas produziram? O
Museu das Memórias (In)Possíveis surge desses questionamentos (RIECK; COSTA; COSTA; BETTS,
2019, documento eletrônico).
NARRATIVAS E APAGAMENTOS
Antônia Melo, uma das maiores lideranças vivas pela luta da preservação da
floresta amazônica, teve sua casa desmoronada pela hidrelétrica de Belo Monte, no
estado do Pará. Sua casa foi musealizada pelo Museu das Memórias (In)Possíveis. Sua
casa, seu açaizeiro, uma pedra, algumas sementes. A casa ficava na região urbana de
Altamira (PA) que seria inundada pela barragem. Ela não colocou placa de “vende-
se” na casa. Foi obrigada a sair porque alguém “lá de cima” fez um círculo num mapa
e mandou retirar todos aqueles empecilhos que estavam no caminho do suposto
progresso. O empecilho eram as pessoas, as plantas, os animais, as casas, as histórias.
A casa de Antônia não carregava em si somente a história da família. Era um
ponto de encontro da comunidade. Era um lugar de acolhimento, um lugar de
resistência ambiental.A casa de Antônia, em vias de destruição, era uma representação
da destruição das outras casas, era também a destruição da resistência, era a destruição
da própria floresta e do rio Xingu. Para os xinguanos, o rio não é um lugar a ser
explorado: ele é sagrado, ele é a vida em si mesma. Ele é a conexão do homem com
a natureza. O tal “progresso”, portanto, veio para a aniquilação da memória. Para
sempre, sem volta, sem possibilidade de reparação. Antônia sabia disso:
A dor pela imposição da hidrelétrica de Belo Monte se materializou, para Antônia, em problema
de coração. Quase morreu. Teve de ir para São Paulo fazer tratamento. Sobreviveu, mas de coração
partido. Não havia como voltar a ser a mesma depois de violada por Belo Monte, atingida no
peito. Precisou fazer uma jornada de resgate da memória. Teve que buscar suas raízes mais fundas.
Buscou a casa onde seu pai nasceu, no Piauí. Da casa do pai, trouxe uma pedra e sementes de
buriti, sementes de árvores plantadas por ele. Depois foi ao Ceará, onde sua mãe nasceu. Da casa
da mãe, trouxe sementes de mangueira (RIECK, 2016, documento eletrônico).
Antônia precisou trazer essas sementes para plantar na futura casa nova, para
poder suportar a dor da morte do rio Xingu. Precisou de suas origens, de seus
fundamentos, para ter uma possibilidade interna de futuro e não morrer do coração.
As sementes e a pedra também foram musealizada pelo Museu. Esses objetos não
dizem somente de Antônia – e o valor deles é narrativo. Antônia encarna o Xingu,
os povos da floresta que a mantém de pé, os indígenas, os ribeirinhos e todos aqueles
que sofreram a violência de Estado que foi produzida pela usina hidrelétrica de Belo
Monte.
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Para Antônia, o que ela vai perder com a casa não será somente a casa. Ela diz que sua casa é uma
casa expandida. Com a perda da casa, perde suas memórias, perde o Xingu, perde a natureza.
A geografia que conhece não existirá mais. As ilhas e a vegetação que conhece também ficarão,
literalmente, debaixo d’água. Antes, serão queimadas (RIECK, 2016, documento eletrônico).
Fonte: Galeria Belo Monte: violência e etnocídio. Foto de Lilo Clareto. Museu das Memórias (In)Possíveis.
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Fonte: Galeria Belo Monte: violência e etnocídio. Foto de Lilo Clareto. Museu das Memórias (In)Possíveis.
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O Museu surgiu motivado por uma visita realizada por Maíra Brum Rieck e
André Oliveira Costa – ambos psicanalistas – ao Museu da História da Imigração em
Paris, onde, através da leitura de um objeto exposto (uma colcha de linho), contava-
se a história de um imigrante africano (OLIVEIRA; MUSEU DAS MEMÓRIAS
(IN)POSSÍVEIS, 2018).Viu-se o poder evocativo e narrativo de um objeto comum,
a priori “sem valor”, que ali marcava a presença de uma ausência (POMIAN,
1984). Instigados por essa experiência e ainda percebendo a importância de uma
instituição que apoiasse tal iniciativa, Maíra entrou em contato com Jaime Betts
e Ana Costa, também associados da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, que
aceitaram o desafio de constituir um museu sustentado pela ética da psicanálise. Mas
que Museu seria esse? Como e onde criá-lo? O ambiente digital figurou-se como
uma alternativa viável.
O aparecimento de uma cultura da memória coincide com o crescimento e
a expansão das tecnologias digitais que envolvem as comunicações (RENDEIRO;
RIBEIRO, 2017). Já em 1997, o pesquisador de novas mídias Lev Manovich cunhava
o termo “Interfaces Culturais” para se referir ao processo de interfaceamento que
passaram os referenciais culturais com o advento do computador. Para ele, a partir
desse momento, não estávamos mais interagindo com um computador, mas sim com
toda a cultura codificada em formato digital.
A emergência da Rede/Internet/web e das mídias sociais consolidou o papel
dessa nova ferramenta (e linguagem) e encantou o sujeito por completo. Não é à toa
que, desde os anos 2000, presenciamos a completa interpenetração da vida social com
a tecnologia, a ponto de existirmos on e offline ao mesmo tempo, simbioticamente
(GABRIEL, 2012). Sites, blogs e redes sociais evidenciam um fazer memorial
individual e coletivo crescente, permeado por processos de “automusealização”
(RENDEIRO; RIBEIRO, 2017) e de gestão descontrolada das informações. A
Rede se tornou a grande “depositária” da memória do mundo do tempo presente
e, portanto, um potencial objeto de estudo e análise do campo museal. Mas, diante
tamanha capacidade de armazenamento, o que deve ser selecionado e musealizado?
E o que é deixado para o esquecimento? Qual memória coletiva que será (deverá
ser) salvaguardada?
Desde a década de 1990, as memórias são transcritas para os ambientes digitais,
sejam eles institucionalizados, de perfil mais permanente – repositórios digitais,
sistemas de informação ou cibermuseus – ou informais e efêmeros – mídias sociais.
No entanto, as instituições brasileiras de memória evitaram, por um período, discutir
e incorporar as novas demandas às suas práticas museográficas. Não se pensava a web
como um fenômeno museológico passível de estudo. Na realidade, ainda hoje, vê-se
certo distanciamento do campo museal em relação à cultura digital, o que acarreta
carência e desarticulação das iniciativas existentes e falta de políticas públicas.
O Museu das Memórias (In)Possíveis se impõe (acompanhado de algumas
outras instituições precursoras) como um cibermuseu, que faz uso social da
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Fonte: <http://www.appoa.com.br/museu/museu>
3 De acordo com a Resolução normativa nº 1/2016 do IBRAM, que estabelece os procedimentos e critérios
específicos relativos ao Registro de Museus junto ao IBRAM e demais órgãos públicos competentes, os museus
virtuais não estão aptos ao registro.
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Seu acervo é formado por objetos digitais: imagens, sons, textos nato digitais
ou digitalizados que evocam histórias e servem como suportes de memória.
Através deles, preservam-se narrativas, histórias de pessoas que sofreram rupturas
de sua relação com o laço social ou que estejam ocupando um lugar de exclusão
social. Essas memórias podem estar ancoradas em diferentes materialidades e, por
esse motivo, o trabalho do Museu das Memórias (In)Possíveis está no âmbito do
patrimônio imaterial, ou intangível (OLIVEIRA; MUSEU DAS MEMÓRIAS
(IN)POSSÍVEIS, 2018).
Atualmente, o acervo do Museu das Memórias (In)Possíveis é constituído,
majoritariamente, por imagens digitais em diferentes formatos, acompanhadas de
textos produzidos por curadores/membros do Museu. Essas imagens foram upadas/
incorporadas ao sistema/site e formam coleções expostas em Galerias (Figura 4). Os
objetos do museu foram descritos e classificados conforme categorias e subcategorias
iniciais, que refletem as linhas de atuação do Museu. Contudo, elas estão passando
por um processo de revisão, juntamente com a construção da Política de Gestão de
Acervos.
Figura 4: Galerias
Fonte: <http://www.appoa.com.br/museu/galerias>
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do museu não estar no templo (físico e sagrado), mas nas palavras cantadas das
musas, tornando-o um espaço simbólico, no qual se presentificam ideias e se recria o
mundo por meio da memória. Essa nova perspectiva, mais alargada, possibilitou que
esta instituição moderna e ocidental, que nasce como estratégia de consolidação de
estados e identidades nacionais, pudesse servir, contemporaneamente, a um propósito
realmente questionador e problematizador das relações sociais. Físico ou simbólico,
os museus vão se firmando como potenciais construtores de uma justa memória.
A relação entre museus e memórias está dada, portanto, como indissociável.
Porém, no Museu das Memórias (In)Possíveis, queremos ir além: buscamos dar
evidência a essa relação, criando um museu de memórias, mas não qualquer
memória… um museu para as memórias subterrâneas, para aquelas que estão “fora”
do espaço público, que não formam os discursos patrimoniais oficiais.
Partindo da teoria e ética psicanalítica, o Museu das Memórias (In)Possíveis
tenta resgatar o que foi simbolicamente para o lixo. Esse resgate se dá em ambiente
digital, o que não deixa de ser mais uma subversão, haja vista que seu espaço não é
só simbólico, como desterritorializado (ciberespaço). Recebemos objetos que dizem
desse lugar de resto, que dizem do que ficou de fora, que dizem da história não
oficial.Trabalhamos com narrativas, musealizamos objetos digitais diversos (suportes
de memórias), e lançamos online novas narrativas, atravessadas pelo fazer e pensar
psicanalítico.
São inúmeros os desafios de tal temática e tipologia de museu. Do ponto de
vista da ética psicanalítica e museológica, questionamo-nos: de que maneira podemos
equilibrar memória e esquecimento, práticas de arquivamento e apagamento,
principalmente na web, que é pautada pela sobrecarga informacional? Do ponto
de vista técnico, preocupamo-nos em garantir a plena conservação, documentação,
pesquisa e comunicação dos objetos digitais que nos propomos salvaguardar.
O Plano Museológico do Museu das Memórias (In)Possíveis, elaborado em
2018, foi o resultado de um esforço coletivo da equipe do Museu em profissionalizar
a instituição, buscando adequá-la à legislação brasileira de museus. Já a Política
de Gestão de Acervos, iniciada em 2019 e ainda em fase de construção, almeja
qualificar tecnicamente o processo de musealização de objetos digitais preservados
pelo Museu das Memórias (In)Possíveis.
Mesmo cientes de que, desde a década de 1990, as memórias passaram por
um processo de transcrição para o ambiente digital e que a web pode ser analisada
do ponto de vista de um fenômeno museológico contemporâneo, as instituições
brasileiras de memória evitaram, por um período, discutir e incorporar as novas
demandas às suas práticas museográficas. Acreditamos, assim, que o nosso trabalho,
pautado nas configurações técnico sociais da cultura digital, poderá servir de apoio
às iniciativas similares e de motivação a novos projetos.
Por fim, este trabalho se moldou como uma auto reflexão do fazer e
pensar museológico até então executado no Museu das Memórias (In)Possíveis.
Apresentamos uma temática e tipologia de museu questionadora e problematizadora
da própria gênese da instituição e, com isso, lançamos desafios e reconhecemos
as potencialidades da inscrição museal de narrativas historicamente apagadas na
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Rede. Esperamos que essas ponderações sirvam de ponto de partida para novas
problemáticas, e que nesse processo o Museu das Memórias (In)Possíveis continue
resistindo e servindo a sua missão de questionar as relações entre sujeito e cultura,
apresentando-se como um lugar no qual aqueles que são sacrificados pela cultura
possam ser reintegrados eticamente.
REFERÊNCIAS
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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Neto dos imigrantes Ricardo Guarisse e Antonia Antonello, filho de Ida e Luis
Guarisse (que chegou ao Brasil ainda menino, junto de seus pais e oito irmãos, vindos
da região de Vêneto, na Itália), Arthur Armando Guarisse morava com seus pais e
seus irmãos Iolanda e Pedro, na Avenida Independência, no centro da capital gaúcha.
Nascido em 23 de julho (registrado em 3 de agosto) de 1935, desde cedo, Arthur
Guarisse acompanhava seu pai, que exercia a função de repartidor de frios na “Banca
Antonello”, no Mercado Público de Porto Alegre. Quando alcançou a adolescência,
Arthur Guarisse costumava auxiliar nos afazeres do Mercado e nas entregas. Neste
período, aprendeu a dirigir os caminhões para distribuir as encomendas aos clientes
da Banca.
Aos 18 anos, Arthur Guarisse empregou-se como motorista de táxi em um
ponto próximo ao Colégio Rosário, onde seu irmão Pedro estudava. Sua intenção
era poupar dinheiro e dar início à aquisição de sua própria frota. Ex-estudante do
Colégio Militar, quando seu pai conseguiu uma bolsa de estudos, Arthur Guarisse
começou a estudar no curso “Técnico em Contabilidade”, ministrado à noite
no Colégio Rosário. Ao estudar e trabalhar como taxista, já proprietário de uma
pequena frota de táxis, Arthur Guarisse teve o seu primeiro encontro com Léa
Caruso, ao transportá-la junto de seu pai João Caruso. Arthur e Léa casaram-se e
tiveram cinco filhos:Viviane, Arthurzinho, André, Ana Luiza e Léa.
Arthur Guarisse foi professor de História na cidade de Guaíba e tesoureiro do
IAPETEC4, enquanto dava início ao empreendimento “Artesanato Guarisse”, que
faliu ao final da década de 1980. À época do andamento do processo de falência,
em Concordata, após separar-se de Léa, Arthur casou-se com a atriz carioca Sandra
Bréa, que o ajudou a comercializar junto a Rede Globo de Televisão as peças das
lojas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que haviam sido fechadas. O casamento
com Sandra durou somente 8 meses e, após o divórcio, Arthur perdeu seu filho mais
velho portador do HIV e mudou-se para um Mosteiro. Esse período de reclusão
antecedeu sua volta à cidade litorânea de Torres, onde ele mantinha uma propriedade
na Praia da Cal.
Em Torres, Guarisse associou-se a um padre para reabrir o Artesanato Guarisse,
que funcionou na década de 2000, até um ciclone devastar o galpão com a loja e a
4 Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Estivadores e Transportes de Cargas, hoje conhecido como Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS).
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escola que ensinava artesãos na cidade. Arthur Guarisse morou no bairro Tristeza,
num apartamento alugado e mantido com seus rendimentos como aposentado do
antigo IAPETEC. Faleceu no dia 6 de julho de 2016, aos 81 anos, por insuficiência
múltipla.
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Landell de Moura. Seria um novo espaço de trabalho que poderia ser anexado a
casa onde ainda funcionava a oficina que precisava ser ampliada. Após a aquisição
da nova propriedade, sem dinheiro e com a intenção de dar início às obras da nova
loja, o casal intensifica a produção de luminárias e móveis nos fundos da residência
da família na Rua Dr. Mario Totta, e Arthur Guarisse começa a vender de porta em
porta, ao visitar a casa de famílias ilustres de Porto Alegre.
Assim que conseguiu um empréstimo bancário e contratou mais artesãos, o
jovem empreendedor dá início às buscas por materiais de demolição e antiguidades
em Porto Alegre e em Pelotas para começar a construir o prédio da nova loja e da
fábrica, na Rua Landell de Moura, onde foram utilizados fragmentos de diversos
imóveis históricos demolidos na década de 1970, adquiridos e restaurados por
Arthur Guarisse para compor e embelezar os prédios do “Artesanato Guarisse”.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
artesãos contratados por Arthur Guarisse e aos acontecimentos ligados aos prédios
da fábrica e aos diversos setores de produção ali organizados. Portanto, é possível
afirmar que, no rol de tipologias e técnicas da Base Conceitual no Programa do
Artesanato Brasileiro (SEMPE, 2018), constam as técnicas artesanais representativas
do trabalho desenvolvido por artesãos e artesãs na fábrica do Artesanato Guarisse,
bem como as técnicas artesanais utilizadas na confecção de objetos datados e
assinados, adquiridos por Arthur Guarisse para comporem os prédios da fábrica ou
das lojas em Porto Alegre, Torres, Gramado-Canela, São Paulo e Rio de Janeiro,
ou para serem comercializados nas lojas do empreendimento e em outros locais,
como as Lojas, Feiras de Artesanato etc. Como exemplo, estão as técnicas: Boleado;
Carpintaria; Cerâmica; Faiança;Vidrado ou esmaltado cerâmico; Ferraria; Fundição;
Marcenaria; Modelagem a fogo; Pintura a mão livre; Pintura em azulejo; Reciclagem;
Serralheria; Torção em metal; Torneamento;Vitral; entre outros.
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Com o início das pesquisas, no ano de 2013, tem início a formação do acervo
museológico que, a princípio, destinava-se à constituição de um Memorial.
Os prédios estaduais que compõem a “fábrica do Artesanato Guarisse” estão
ocupados de maneira irregular pela Primeira Região Tradicionalista do MTG;
pela Associação dos Escultores do Estado do Rio Grande do Sul (AEERGS); pela
Associação Gaúcha de Artes Integradas (AGAI)10 e pelo Centro Comunitário de
10 Essa entidade privada havia sido descoberta em diversas ilicitudes cometidas contra artesãs e artesãos que
tiveram seus nomes incluídos em atas fraudadas, que permanecem registradas ao acesso público no Cartório de
Títulos e Documentos de Pessoas Jurídicas em nome da Associação Gaúcha de Artes Integradas (AGAI) e/ou da
Associação de Artesãos da Feira de Artesanato da Tristeza - AAFAT. Estes profissionais nunca participaram das
Assembleias datadas nas atas e nunca receberam qualquer convite ou comunicado a respeito da sua participação
na composição administrativa da associação, conforme se confirma nas atas e nas fichas cadastrais desses associados.
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12 Adjudicação é o ato judicial mediante o qual se declara e se estabelece que a propriedade de uma coisa
transfere-se de seu primitivo dono para o credor, que então assume sobre ela todos os direitos de domínio e posse
inerentes a toda e qualquer alienação.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer
pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos
que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores. Estes materiais da
memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos, herança do passado, e
os documentos, escolha do historiador (LE GOFF, 2003, p. 525 - 526).
4 Brasil visto de cima é um programa televisivo exibido pelo canal a cabo Mais Globosat. Nele são apresentadas
diversas cidades brasileiras sob diferentes ângulos em imagens aéreas capturadas por helicópteros, drones e aviões.
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O Rio Grande do Sul, em especial a região norte do estado, presencia, na última década, a ampliação,
numérica e intensa, dos conflitos territoriais envolvendo indígenas e agricultores. Na região, que
não ultrapassa um raio de 200 quilômetros, há doze acampamentos indígenas reivindicando a
criação de novas Terras Indígenas (TI) ou ampliação das existentes, com processos de Identificação,
Delimitação Demarcação de TI, em diferentes estágios, tramitando na FUNAI e no Ministério da
Justiça (2015, p. 73).
No Rio Grande do Sul, em 2010, viviam 18,5 mil indígenas de grupos étnicos
Guarani, Mbia Guarani, Kaingang e mistos. Em termos de terras indígenas, em
2015, segundo a FUNAI, o Estado contava com 7 áreas declaradas, 2 delimitadas,
20 regularizadas e 16 em estudo6. Grande parte delas encontra-se na área de
concentração do estudo, como se pode observar na fig.1:
Figura 1: Distribuição das terras indígenas no Brasil e na região norte do Rio Grande do Sul
5 Destacam-se as pesquisas realizadas em conjunto com a Universidad de La Republica, em parceria com o Prof.
Dr. Jose Lopez Mazz e com o Prof. Dr. Diego Bracco e com a Uniwersytet Wroclawski (Instytut Archeologii), junto
ao Prof. Dr. Józef Szykulski.
6 Informações disponíveis em <https://atlassocioeconomico.rs.gov.br/areas-indigenas>. Acesso em 10 nov. 2019.
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O povoamento dessas paisagens pelos grupos indígenas mais antigos, não tem um passado tão
recente como se chegou a acreditar. Ao longo das últimas décadas, as pesquisas têm descortinado
uma história que não se insere mais nos estreitos limites que ainda hoje frequentemente são
divulgados. A referência é sempre feita ao século XVI, quando as primeiras velas dos navios
europeus surgiram no horizonte. Hoje podemos contar a história destes primeiros povoadores do
nosso estado, ao longo de doze milênios, desde o final da última glaciação (2009, p. 16).
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[...] um novo campo de ação patrimonial dedicado à compreensão das memórias difíceis, pois os
efeitos destas novas formas de comemoração do passado, ainda não estão claras e, tampouco
existe um consenso no que diz respeito aos métodos experimentados pelos meios de transmissão
destas novas memórias (BEZERRA; SERRES, 2015, p. 175).
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los grupos han construido museos y otros artefactos museales –lugares físicos, simbólicos o
funcionales- que les han permitido reunir y exhibir objetos, darles coherencia mediante narrativas
más o menos arbitrarias y así sintetizar una “esencia”, un rasgo distintivo del grupo, su lugar en
la historia y en la cultura. A través de objetos de la más variada índole, los cuales se reconocen
en un momento dado como significativos, esa esencia o identidad colectiva intangible adquiere
materialidad y es fijada en el tiempo (ÁLVAREZ, 2014, p. 92).
Estes museus, por vezes, são considerados “lugares de memória” tal qual
Pierre Nora (1993) define como lugares que estão vinculados a uma proposta
historiográfica, “lugares onde a memória se cristaliza e se refugia” (NORA, 1993,
p. 7).
Algumas destas instituições foram construídas no próprio local onde aconteceu
o evento traumático, o que Régine Robin (2014) define como “sítios autênticos”,
e são como uma intervenção política-institucional inserida no cenário urbano e
pensada para restituir no presente uma relação entre passado, espaço, memória e
práticas sociais (ESCOLAR; FABRI, 2015). Por outro lado, existem os “lugares de
memória” que recebem marcas memoriais e não estão vinculados necessariamente
ao local físico do acontecimento.
Os museus de memória são definidos pela Coalizão Internacional de Sítios
de Memória4 como sítios de consciência. Os sítios de consciência5 são espaços que
se configuram como um lugar de reflexão e de construção da “memória social”
(HALBWACHS, 1994).
Abordar-se-ão, neste artigo, duas instituições decorrentes de memórias difíceis:
o Museo de la Memoria de Rosário, na Argentina, uma instituição dedicada à
preservação de memórias pós-genocídio; e o Parque por la Paz Villa Grimaldi, no
Chile, uma instituição que, desde sua criação, tem como um de seus principais
objetivos a promoção e defesa dos Direitos Humanos, assim como da memória
histórica do parque.
Essas duas instituições foram escolhidas por estarem associadas a uma prática que
John Lennon e Malcolm Foley (2000) definiram como Dark Tourism. Essa expressão
é utilizada pelos autores para explicar a atração de turistas por catástrofes, desastres
e eventos associados ao sofrimento e à morte. Além disso, o dark tourism é um
dos elementos agenciadores de interesse turístico. Os museus de memória entraram
num circuito turístico no qual o visitante “é posto em contato com experiências
de sofrimento e violência extremos, traduzidos pela mediação museológica que,
pela pedagogia da memória busca transmitir valores morais e reflexões acerca destes
processos” (FERREIRA, 2018).
Em busca destas instituições que são consideradas pontos turísticos, e que
agenciam relações sociais, econômicas e políticas, é que este trabalho se propõe a
analisar, através do website norte-americano TripAdvisor, os comentários de turistas e
visitantes destas duas instituições. Cabe ressaltar que os comentários não representam
4 Rede mundial dedicada à transformação dos lugares que preservam o passado em espaços que atuam pelos
Direitos Humanos e pela justiça.
5 Sites of Conscience. Disponível em: <www.sitesofconscience.org>. Acesso em 03 jul. 2019.
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todo o público das duas instituições sendo apenas uma microparcela de todo público
visitante.
Fonte: museodelamemoria.gob.ar
A Villa Grimaldi foi construída no início do século XX, tendo sido uma antiga
fazenda que, em 1964, se transformou em um restaurante chamado ‘Paradise Villa
Grimaldi’. Em 11 de setembro de 1973, com o golpe de Estado no Chile, Villa
Grimaldi passou a sediar atividades clandestinas associadas à repressão e vinculadas à
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Fonte: santiagodochile.com
7 A Diretoria de Inteligência Nacional (DINA) foi criada em 1974 pelo Decreto-Lei nº 521, emitido
em 14 de junho. “Era um corpo militar de natureza técnica profissional, diretamente dependente do Conselho
Diretivo e cuja missão será reunir todas as informações em nível nacional, de diferentes campos de ação, a fim
de produzir inteligência que seja requerer a formulação de políticas, o planejamento e a adoção de medidas que
visem salvaguardar a segurança nacional e o desenvolvimento do país”. (Relatório da Comissão da Verdade e
Reconciliação, 1990, p. 55 apud Corporación Parque Por La Paz Villa Grimaldi, 2019).
8 Corporación Parque Por la Paz. Disponível em: <http://villagrimaldi.cl>. Acesso em 09 jun. 2019.
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APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
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“Fechado em plena alta temporada. Eu não consigo entender como um museu pode estar fechado
em plena alta temporada. Parece que houve um problema na luz, mas caminhamos até lá a toa.”
“Museu com portas que não abrem… Assim como a maioria das atrações de Rosário, o Museo de la
Memoria não abre suas portas em plena alta temporada. Seja por reforma ou por férias, várias
atrações não abrem (surreal não funcionar por férias no momento de maior fluxo de visitantes!!!!),
eu não entendo como é que funciona o turismo na alta temporada em Rosário.” (grifo dos autores).
“Forte e bonito! Vale a pena conhecer essa parte triste da história argentina, pra se conhecer bem
um país é necessário conhecer a parte boa mas também as partes tristes pela qual passou!”
“Se você quiser saber veja o coração e a arte do mães dos desaparecidos, venha aqui. Se você
achava que as mães dos desaparecidos usavam mantas brancas você vai descobrir o que elas
realmente tinham sobre as suas cabeças, você ficará espantado ao ver nesta exposição. Ou o quebra-
cabeças dos pais que e crianças desaparecidos que muda à medida que as pessoas continuam a ser
encontradas, vivas ou mortas. Os olhos que viram demais. Um museu pequeno mas potente. E se
você não fala espanhol, peça para alguém que possa ajudá-lo, as pessoas dedicadas que trabalham
aqui pretendem passar a informação para que isso nunca aconteça novamente. Os desaparecido
são uma parte mais importante e recente da história Argentina e Latino-americana.” (grifo dos
autores).
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“Un ícono en Rosario. Un muy buen espacio para conocer lo ocurrido durante el terrorismo de
Estado en ARgentina y particularmente en la ciudad de Rosario. Las visitas guiadas son muy
buenas”.
“Espacio de reflexion. Muy recomendable. Una biblioteca muy completa, tiene un bosque de la
memoria y mucha documentacion. hay muestras que son interesantisimas. un sitio en donde la
historia vive y nos ayuda a reflexionar y aprender”. (grifo dos autores).
“No aporta nada! Sacaron uno de los mejores bares de Rosario en esa hermosa esquina, para nada.
Simplemente para generar gastos y crear puestos de “trabajo” a los amigos del poder. No entra
nadie, un fracaso total. Se puede ejercer la memoria de otra maneras. Horrible!!!!”
“Espantoso. El “Museo de la Memoria” lo hicieron donde antes existía uno de los mejores bares de
Rosario, por lejos (Rock´n Fellers) y eso levantó muchas críticas, ya que la mayoría de la gente no
le encontraba sentido a tal determinación. Tener en cuenta que si vamos más atrás en el tiempo,
ese edificio había sido utilizado como centro clandestino de torturas en la época de la Dictadura
Militar” (grifos dos autores).
O Parque Por la Paz Villa Grimaldi, segundo o TripAdvisor (dados até junho de
2019), possui um total de 137 avaliações (entre as línguas: português, espanhol, inglês,
francês, alemão, italiana e sueco) e está entre o número 78º de 503º em atividades
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em Santiago, Chile. Entre as 137 avaliações, o Parque recebe uma nota geral de
4,5. Dentre as avaliações, podemos observar que: 68% consideram “excelente”, 22%
consideram “muito bom”, 2% consideram “razoável”, 3% consideram “ruim” e 5%
consideram “horrível”.
Assim como foi feito anteriormente, no caso argentino, o estudo se propõe
a analisar comentários em língua portuguesa (38 avaliações + comentários) e em
língua espanhola (79 avaliações + comentários). A escolha se dá para contrapor
os comentários brasileiros com os chilenos, sendo possível observar que, entre os
comentários, existe uma grande discrepância, seja por localização, temporadas ou,
até mesmo, quantidade de comentários.
Entres os anos de 2012 a 2017, apenas 38 turistas brasileiros colocaram suas
avaliações e comentários na plataforma TripAdvisor sendo que, destes, 22 “excelente”;
16 “muito bom”; 0 “razoável”; 0 “ruim” e 0 “horrível”.
Os comentários são identificados com a mesma metodologia aplicada ao
Museo de la Memoria de Rosário, na qual são consideradas as motivações que
levam o turista a visitar a instituição. Portanto, os comentários são categorizados da
seguinte forma: administração; organização do espaço; espaço expositivo; emoções
e sensações; e localização, arquitetura. Além disso, para esta análise, foram coletados
somente comentários de turistas brasileiros e turistas/visitantes chilenos.
Dentre os comentários em língua portuguesa, é possível aferir que a categoria
“emoções e sensações” é a que mais se destaca. Isso se dá, possivelmente, por este
sítio ter a característica de ser um parque florido, e porque, algumas vezes, passa a ser
ressignificado como apenas um lugar de entretenimento:
“Super descontraído. Parque lindo e agradável com muita área verde onde podemos fazer
pequenos lanches sentados e curtindo o agradável ar da província. Muito bom mesmo.”
“Muito bom! Lindo local! Que parque mais lindo! Incrivel como no Chile há excelente parques,
bem cuidados e organizados!” (grifo dos autores).
“Vale a visita. Esse parque não é perto do centro da cidade, mas apesar da distância recomendo a
visita, principalmente pra quem gosta de natureza e história. Tem áudio guia e a entrada é gratuita.
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“Conmovedora visita. Es un lugar bello y con una carga emotiva muy fuerte...sin duda una
experiencia muy importante e interesante de realizar...la entrada es gratuita y es posible hacerla
con audioguias para quienes les interesa”
“Tetrico. Un lugar tetrico, con un aire raro, se notan las cosas que pasaron ahi definitivamente un
recordatorio para qeu no vuelvan a pasar mas las cosas qeu sucedieron ahi” (grifo dos autores).
“Una farsa historica . Otro lugar que por sesgado pierde absolutamente su valor y credibilidad...no
es un parque ni menos de Paz...solo una herramienta política utilizada en desvirtuar la historia
completa de nuestro país , para obtenr dividendos y votantes..una verguenza... Cero aporte”
(grifo dos autores).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Parque Por la Paz Villa Grimaldi. O estudo conseguiu obter dados relevantes sobre
experiências relacionadas ao turista por meio do TripAdvisor.
Os números em análise indicam que a quantidade de avaliações em língua
espanhola é muito maior do que a de avaliações em língua portuguesa, sendo que um
dos motivos desta notória diferença são os aspectos cronológicos dos comentários. A
categorização oferecida pelo site destaca diferentes dinâmicas sobre a experiência do
turista, e, nesta pesquisa, avaliamos cada turista como um ser individual. Os resultados
desta pesquisa confirmam a afirmação de Housen (1987) de que a percepção dos
turistas/visitantes é moldada pela compreensão lógica através das experiências e
motivações que terão no museu.
Os resultados da pesquisa são capazes de determinar e identificar quais são as
motivações que levam os usuários/turistas/visitantes a visitarem essas instituições
identificando diversos contextos nas categorias criadas para análise.
Em se tratando da análise do Museo de la Memória de Rosário, identificamos,
nos comentários de língua portuguesa, as categorias “administração” e “emoções
e sensações”, enquanto que, nos comentários de língua espanhola, as categorias
“organização do espaço” e “administração”. Os comentários de língua portuguesa
correspondem, em sua maioria, à administração do Museo de la Memoria, à
insatisfação do turista brasileiro ao se deparar com as portas fechadas, assim como
também demonstram sensações a respeito do que o lugar transmite. Enquanto
isso, nos comentários de língua espanhola, a organização do espaço deixa turistas/
visitantes inquietos pelos novos usos do prédio, pelas apropriações positivas do
prédio e, também, pela insatisfação de ser um lugar de memória sensível que se
distancia do bar que, por alguns anos, ocupou o prédio. Mas, nas análises, pudemos
observar que as emoções e sensações que o local proporciona também comovem os
turistas/visitantes.
Na análise do Parque Por la Paz Villa Grimaldi, identificamos, nos comentários
brasileiros, as categorias “emoções e sensações” e “localização e arquitetura”,
enquanto que, nos comentários chilenos, aparecem em peso as categorias
“emoções e sensações” e “espaço expositivo”. Os comentários de língua portuguesa
correspondem, em sua maioria, às emoções e sensações que o Parque proporciona
contando em sua narrativa expográfica, além da sua localização e arquitetura que
também impressiona, pois, através da construção de mosaicos, o espaço geográfico é
sinalizado com o objetivo de denunciar e demarcar as antigas instalações do Quartel.
Quanto aos comentários em língua espanhola, percebemos que as categorias
“emoções e sensações” e “espaço expositivo” são as mais comentadas, pelo mesmo
sentimento dos brasileiros, mas caracterizado como um sentimento nativo, do povo
que vive a dor e que frequenta o local como um lugar espiritual.
Este estudo proporciona uma melhor compreensão de como os museus de
memória estão inseridos na sociedade e de como são vistos por turistas e visitantes.
As análises permitem que os pesquisadores compreendam novas percepções do
turista sobre as instituições e, além disso, busca compreender como, através dos
comentários, essas instituições agenciam relações sociais, econômicas e políticas. Esta
pesquisa também permite fornecer, para os gestores das instituições, o entendimento
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REFERÊNCIAS
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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LEY,+Malcolm.+Dark+tourism.+The+attraction+of+death+and+disaster&ots=lAUb
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TRIPADVISOR. Disponível em: <https://www.tripadvisor.com.br/>. Acesso em: janeiro
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Desse modo, práticas extremadas de violação dos direitos humanos, como o uso intensivo de
medidas de exceção, aplicação da tortura, formação de Esquadrões da Morte, censura e repressão
aos movimentos sindical e estudantil, foram empregadas durante o Pachecato. De certa forma, esse
governo foi um ensaio do que se constituiria futuramente, a partir da implantação da ditadura de
segurança nacional.
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A CNT foi declarada ilegal, as greves foram proibidas e impôs-se uma nova legislação sindical
que acabou com qualquer ilusão de retomada de ação ou autonomia do movimento sindical.
O encerramento da greve, por parte da CNT, inviabilizou a sobrevivência de uma resistência
democrática e significou uma importante descompressão para o novo regime.
4 “El acervo está compuesto por cinco cajas que contienen carias carpetas con fichas personales y un bibliorato
con correspondencia y listados de detenidos políticos” (BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017, p. 13).
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solidão, da incerteza sobre a vida de seu ente querido, um direito dessas pessoas? Ou,
por outro viés, a divulgação dessas cartas constitui um direito das futuras gerações
no contexto de um dever de memória? Sem responder a esse questionamento,
compreendemos a obra Carta para ellos, inserida no movimento e na necessidade
de estabelecer a materialidade de discursos, não somente para rememorar o passado,
mas, principalmente, para respaldar as atividades presentes de resistência, não mais
em um regime de exceção, mas ainda de luta por justiça e reparação.
A obra Carta para ellos estabelece uma análise de algumas das cartas enviadas ao
fundo de solidariedade da CNT e as organiza na composição de uma historicidade
dos acontecimentos, possibilitando uma reconstituição dos meandros vivenciados
pela sociedade uruguaia durante o regime de exceção. Essa obra, que é vendida
aos visitantes do Museu de la Memória, confunde-se programaticamente com o
acervo ali preservado, bem como contribui para a composição de seu discurso
e expografia. Entretanto, embora integrem o acervo do museu, essas cartas não
compõem diretamente o percurso de visitação à exposição permanente, encontram-
se arquivadas, evidenciando seu reconhecimento como documento e fonte para
pesquisas. Outros objetos da cultura escrita estão presentes em vários nichos
expositivos, num misto de livros, cartões, bilhetes, enfim, um universo de escrita
do sofrimento e da esperança como exemplificam as correspondências recebidas e
enviadas pelos presos políticos e suas famílias sem a mediação de uma instituição
como a CNT.
Por mais que o museu exponha fragmentos de um passado de sofrimento,
não é capaz, por si próprio, de ser uma experiência formativa do que aconteceu.
Isso se deve parte à seleção do que é exposto, mas principalmente aos limites da
comunicação mediada pela cultura material. Neste sentido, o Museu de la Memória
utiliza-se de instalações que expõem correspondências, bandeiras, bilhetes, fotos,
cartazes, roupas, dentre outros objetos, com a reprodução de fotografias, vídeos,
imagens e textos pelos quais o discurso expográfico é construído, apresentando ao
público uma experiência estética e sensorial do tema abordado.
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El MUME responde a la necesidad de simbolizar la historia del golpe de Estado en el país, para
que nunca más se vuelva a repetir. En tiempos de incertidumbre surge una gran certeza: que la
memoria es un arma poderosa para la identidad de nuestros pueblos, y que orienta la lucha para
construir una sociedad mejor, con justicia social, democracia, libertad y solidaridad. El MUME se
concibe como una institución donde desarrollar múltiples actividades que promuevan el sentido
crítico y la reflexión sobre la sociedad donde vivimos, en tanto que los genocidios y el terrorismo
de Estado, son expresiones de nuestra civilización, y nos interpelan permanentemente acerca de la
misma (MUME, 2006, p. 1).
Se para os visitantes, em especial para os jovens que não eram nascidos quando
a ditadura civil-militar ocorreu, necessita-se de um discurso para a compreensão
histórica da memória ali exposta, para os uruguaios, que vivenciaram aquele período,
também é necessária essa abordagem, para que possam transcender na experiência
estética os discursos consolidados e ou naturalizados sobre esse período. Assim, a
experiência não implica apenas em se colocar no lugar dos outros, mas em um
pensar alargado, ou seja, um refletir sobre o seu papel e o seu lugar naquele período.
Por exemplo, alguém, que até então acreditava que a ditadura nada havia interferido
em sua vida e no exercício de sua liberdade, defronta-se com uma experiência que
lhe possibilita compreender-se melhor a partir da solidariedade com o sofrimento,
não como mera compaixão, mas como superação da camada estereotipada que tange
sua indiferença.
O Museu de La Memória se apresenta como instituição que aporta conhecimento
às novas gerações sobre a história recente do país. Assim, não só seu acervo, mas o
próprio espaço é disponibilizado para realização de atividades culturais e formativas,
propondo como missão “Crear un espacio de la ciudad de Montevideo para la
promoción de los Derechos Humanos y la Memoria de la lucha por la Libertad,
la Democracia y la Justicia Social, entendiéndolos como conceptos culturales en
permanente construcción” (MUME, 2006, p. 1).
Nessa perspectiva, a obra Carta para ellos destaca que, após o conjunto epistolar
ser integrado ao acervo do museu, a equipe responsável por sua conservação percebeu,
para além do registro da solidariedade, sua importância para o entendimento das
muitas narrativas construídas que compõem o museu.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Cuando comenzamos a leerlo nos dimos cuenta que allí había una historia que desnudaba los
entramados de la solidaridad y revelaba los pequeños retazos de vida cotidiana que se escondían
detrás de las cartas que componen este acervo. De a poco estas pequeñas memorias comenzaron
a formar parte de los relatos que dan vida a los objetos en las visitas guiadas del MUME y por
momentos se colaron en nuestras clases de Historia. Difundirlo es el objetivo de estas páginas
(BIDEGAIN; LACONDEGUY, 2017, p. 11).
5 Assinado entre os militares e os representantes dos partidos, estabelecendo eleições e a posse do presidente no
Uruguai.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
2012, foi ao parlamento pedir perdão em nome do Estado pelos crimes cometidos
durante a ditadura.
Dois anos após a aprovação da lei, a Suprema Corte de Justiça declarou a
sua inconstitucionalidade, o que ainda hoje é objeto de discussão jurídica no
Uruguai. Com a decisão da Suprema Corte, as esperanças de condenação dos
responsáveis pelos crimes da ditadura foram frustradas e as vítimas e seus familiares
necessitaram encontrar outros espaços e formas para a reparação, e é neste contexto
de ressignificação da articulação política que se situa o Museo de La Memória, criado
em 2006, que no Uruguai, como em outros países, torna-se espaço de memória não
só do passado de ditadura civil-militar, mas também da dinâmica institucionalizada
de proteção e impossibilidade de responsabilização e punição dos culpados.
No documento de Fundamentação e Marco Conceitual do Museo de La
Memoria, encontramos a seguinte epígrafe, referenciada a Elizabeth Jelin: “La
memoria no es una cuestión del pasado, es una cuestión del sentido y del significado
que hoy queremos construir sobre nuestra historia”. Esta epígrafe destaca a
importância que, em 2015, teve a reivindicação e o recebimento do acervo que
compõe o Intercambio epistolar del Fondo de Solidariedade de la CNT em los años de
dictadura. As cartas musealizadas integram o acervo do museu enquanto documento
e testemunho plural sobre as atividades sindicais e políticas fora do Uruguai, bem
como sobre sua solidariedade com os familiares dos presos políticos.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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21, p. 9-34, 1998.
BETTIOL, Maria Regina Barcelos. A escritura do intervalo: a poética epistolar de
Antônio Vieira. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2008.
BIDEGAIN, Noela F.; LACONDEGUY, Silvia M. Carta para ellos: Intercambio epistolar
del Fodo de Solidariedad de La CNT en los años de dictadura. Asociación de Amigas y
amigos del Museo de la Memoria: Montevideo, 2017.
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos avançados, n. 11(5), p.
173-191, 1991.
FERREIRA, Maria Letícia M; MICHELON, Francisca F. Cicatrizes da memória: fotografias
de desaparecidos políticos em acervos de museus. In: Estudos Ibero-Americanos, Porto
Alegre, v. 41, n. 1, p. 79-97, jan.-jun. 2015.
GOMES, Angela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos
privados. In: Revista Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 121- 127, 1998.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
São Paulo: editora 34, 2011.
LESSA, Francesca. Justicia o impunidad? Cuentas pendientes en el Uruguay post-
dictadura. Montevideo: Debate, 2014.
MIRANDA, Wander Mello (org). A trama do Arquivo. Belo Horizonte: UFMG, 1995.
MUME (CENTRO CULTURAL MUSEO DE LA MEMORIA); Fundamentacíon e
Marco Conceptual. Departamento de cultura e intendencia municipal de Montevideo,
outubro de 2006. Disponível em <http://mume.montevideo.gub.uy/museo/centro-
cultural-museo-de-la-memoria>. Acesso em 29 jun. 2019.
96
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo tem por objetivo uma reflexão sobre o artista Nuno Ramos e sua
obra a partir de uma mediação educativa no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo.
No ano de 2016, ocorreu, no Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, que está ligado ao
CEARTE/UFPEL, a exposição do artista Nuno Ramos, durante a qual houve uma
mediação com alunos de uma escola Municipal de Pelotas, E.M.E.F. Afonso Vizeu,
e uma atividade prática com ilustrações criadas pelas crianças.
A partir da exposição Só Lâmina de Nuno Ramos, em que suas obras
contemporâneas estiveram expostas no Museu do MALG, por alguns meses, para
visitação do público, e também por escolas estaduais e municipais, assim como
particulares de Pelotas, as mesmas foram estudadas para mediação do projeto
educativo.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
A EXPOSIÇÃO SÓ LÂMINA
O artista Nuno Ramos foi convidado pelo SESC para participar do projeto
por ter influenciado singularmente a arte no Brasil. Nuno Ramos se configura
como um artista da experimentação na qual a ausência de regras é mais um desafio
às normas.
Seus objetivos e suas instalações com “materiais não instáveis como parafina,
sal, vidro e mármore servem como favorecendo sua produção artística nas suas
diferentes linguagens” (RAMOS, 2017).
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E também revoltoso
Relógio que tivesse
O gume da faca
E toda a impiedade
De lâmina azulada
Assim como uma faca
Que seu bolso ou bainha
Se transformasse em parte
De vossa anatomia
Qual era faca intima
Ou faca de uso interno
Habitando meu corpo
Como o próprio esqueleto
De um homem que o tivesse e sempre, doloroso
De homem que se ferisse
Contra sem próprios ossos.[...]seus próprios ossos. Ossos com destroços flutuantes numa superfície
plana, desenhos daimpermanente instabilidade das coisas espelhadas numa possa d’água qual
forma disforme. (MELLO, 1979, apud RAMOS, 2018)
A MEDIAÇÃO NO MUSEU
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Após este estágio da visita das crianças na exposição, elas sentaram no chão
da 1ª e da 2ª galeria de mostras: Galerias Marina Pires e Luciana Renk Reis,
espontaneamente com o auxílio do material distribuído pelo Museu, folders, e
catálogos, além do material de desenho: folhas brancas e lápis de cor. As crianças
realizaram desenhos interpretativos das duas exposições, com o auxílio dos
mediadores. Como mostram as figuras 9 e 10, observam-se as crianças desenhando
na atividade.
Figura 10: Crianças desenhando a partir do artista Nuno Ramos, no Museu do Malg
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
[...]em seu livro afirma que a educação em artes visuais ocorre no campo da cultura visual, dentro e
fora da escola, em todos os ciclos da escolaridade. Objetos, ideias, crenças, práticas que formam e
pertence à experiência visual. Formamos o nosso pensamento sobre o mundo e ficamos habilitados
a incorporar novos conhecimentos (IAVELBERG, 2006, p. 33).
Os saberes da arte são contextualizados, tem história e isso reflete na sala de aula
onde a cultura visual é praticada e tematizada enquanto parte de uma comunidade
de aprendizagem interpretativa.
Os conhecimentos são produzidos em contextos de interpretação e apresentação
que os marcam sócio historicamente e que, quando em sala de aula, passam por
novas interpretações e representações, agora realizadas por alunos e professores.
A origem das ideias e representações artísticas do aluno visa a uma educação
em que o aprendiz produz tanto ideias quanto formas artísticas e não se restringe
em reproduzi-las.
O “argumento que a criança não copia por falta de habilidade motora ou
materialidade constitui tese superada em educação” (IAVELBERG, 2006). Sabemos
hoje que o que impossibilita a “assimilação de conhecimento no ensino voltado para
imitação mecânica é a condição teórica de aprendiz” (IAVELBERG, 2006, p. 42).
Na ação assimilativa através da imitação, os erros e as deformações realizados
pelas crianças na cópia dos modelos estão ligados às possibilidades de assimilação do
aluno e, por isso, são erros construtivos, uma vez que no fundo invocam acertos
provisórios e estão em correspondência com o quadro de hipóteses do sujeito da
ação.
A produção da criança reflete o tempo e o lugar onde vive por meio de
padrões vigentes na cultura, das técnicas disponíveis, das orientações que recebe,
bem como dos meios e suportes aos quais tem acesso para se apropriar e criar.
De acordo com nossa compreensão, o “ingresso no desenho/apropriação”
demanda que a mediação do adulto seja, ao contrário, mais presente (IAVELBERG,
2006, p. 49). Isto significa que ninguém poderá desenhar ou aprender por ela.Wilson
afirma que a “arte segue um desenvolvimento espontâneo e há muito tempo se
considera errado, influenciar a criança” (IAVELBERG, 2006, p. 53).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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RAMOS, Nuno. Cartaz da exposição Nuno Ramos, 2014. Sescro blogspot. Disponível
em: <http://sescro.blogspot.com.br/2014_04_06_archive.html>. Acesso em 29 jan. 2017.
______. Foto do artista, Rascunho website. Disponível em: <http://rascunho.com.br/
nuno-ramos/> Acesso em 29 jan. 2017.
______. Imagens das telas em exposições Só lâmina, Sesc. Ormnews website, Disponível
em: <http://www.ormnews.com.br/noticia.asp?noticia_id=608420>. Acesso em 29 jan.
2017.
______. Catálogo, Arte Sesc, Só Lâmina. Disponível em: <www.sesc.com.br/portal/
publicacoes/cult/livro/so_lamina/so_lamina>. Acesso em 02 fev. 2018.
ROCHA, Maria Consuelo Sinotti. Museu de arte Leopoldo Gotuzzo: contribuição
e integração com o ensino de arte através do seu setor educacional. Pelotas, 2010. 107f.
TCCP (Especialização em artes visuais patrimônio cultural). Instituto de Artes e Design.
Universidade Federal de Pelotas, 2010.
111
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II - MEMÓRIA, EDUCAÇÃO
E CIDADANIA
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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ideia de tradição não é de algo fixo e imutável, como o senso comum costuma
percebê-la. Para os autores, a tradição é constantemente renovada, recriada, destruída
e reinventada diariamente. Essa dinâmica só é possível por conta da capacidade de
readaptação da tradição, em decorrência de sua estabilidade sociocultural. Percebemos
que Ferreira (2010, p. 16) concorda e complementa as ideias anteriormente
discutidas, ao afirmar que: “Continuidade e mudança, longe de serem vistas como
pares opostos são, na verdade, o motor dessa experiência do passado no presente, que
busca necessariamente, o futuro”.
Podemos constatar que o processo de construção dos patrimônios e a invenção
das tradições não são neutros. Também isentas de neutralidade, as políticas de
memórias costumam constituírem-se em políticas de esquecimentos (FERREIRA,
2009; CHAGAS, 2002; MICHEL, 2010). Portanto, é facilmente detectado que,
em processos de consolidação de memórias sociais, os esquecimentos configuram-
se como a outra face da mesma moeda (POLLAK, 1989), aspectos que podem
contribuir para acirrar a concorrência das memórias.
Com bases nos aspectos elencados e conectando os aspectos teóricos aos
empíricos observados em nossa pesquisa, defendemos que estamos longe de reforçar
essencialismos. Adotando uma postura científica participante, percebemos, em
decorrência das observações em campo e da reivindicação memorial de alguns
atores que compõem a rede estudada, que a patrimonialização e a salvaguarda das
tradições doceiras em Morro Redondo podem estar contribuindo para acirrar
disputas memoriais no município.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
[...] uma vez que o objeto permite discutir amplas dimensões da cidade: a existência de confeiteiros
homens, ao mesmo tempo que existe uma tradição que vincula a arte doceira ao universo feminino;
a circularidade de saberes entre diferentes classes sociais e a conseqüente transformação do modo-
de-fazer; a contribuição da etnia negra, além de outras etnias (FERREIRA et al., 2008, p. 110).
Baseados na percepção dos doces finos como fato social total, percebemos a
semelhança em relação ao patrimônio doceiro colonial e à necessidade de concebê-
los como tal. O acompanhamento do processo da salvaguarda em Morro Redondo
tem demonstrado que existem disputas memoriais e identitárias, a partir das quais
alguns sujeitos ganham destaque e outros são postos à margem.
Com isso, pretendemos contribuir para a problematização de que é de suma
importância que as comunidades locais percebam a necessidade de garantir a presença
de múltiplas vozes no plano de salvaguarda das tradições doceiras coloniais, tal como
prevê a indicação do IPHAN ao defini-lo como uma “[...] política orientada para
aumentar a participação democrática dos cidadãos na formulação, no planejamento,
execução, avaliação e acompanhamento de políticas de preservação do patrimônio
cultural” (IPHAN, 2011, p. 02). Segundo o IPHAN, o plano de salvaguarda refere-se
ao
[...] planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, combinadas entre atores de diferentes
segmentos da sociedade e executado de modo compartilhado, participativo. Visa ao apoio e à
continuidade de existência do bem cultural de modo sustentável, através do fomento à produção,
reprodução, transmissão, e divulgação dos saberes e práticas a eles associados; e do apoio à
autodeterminação e organização dos grupos detentores desses saberes e práticas para a gestão do
seu patrimônio (IPHAN, 2011, p. 02).
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Por volta do ano de 1888, algumas famílias alemãs provocadas por situações desfavoráveis e em
busca de terras novas para plantar e assim melhorar as suas condições de vida, deixaram suas
moradias em São Lourenço do Sul e chegaram a terra que hoje pertence ao município de Morro
Redondo, na localidade São Domingos, por terem sido estes lotes de terra, vendidos por José
Domingos de Almeida (PDE, 2015, p. 06).
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[p]romover a reflexão, observação e interação das diversas parcelas da sociedade com o patrimônio
cultural do município, com ênfase na sua história e memória, através da seleção, preservação
e comunicação dos bens culturais de interesse público confiados à guarda, enfatizando o
valor educativo, turístico e social da instituição, ancorada na perspectiva da diversidade e da
multiculturalidade (Regimento Interno do MHMR, 2016).
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a historiadora Beatriz Muniz. Segundo matéria escrita pelo jornalista Diones Forlan
Nunes da Silva5, divulgada na página Morro Redondo On-line,
Participaram da reunião o prefeito Diocélio Jaeckel, vice prefeito Velocino Leal, presidente
da câmara Thiarles Schneider, vereadores Marcio Zanetti e Silvia Wahast Islabão, assessora do
deputado estadual Pedro Pereira Angélica dos Santos, assessores do deputado estadual Zé Nunes,
secretários municipais, representantes da Emater Municipal, Sebrae, Embrapa, prefeito de Arroio
do Padre Leonir Baschi, Naira Amaral representando a prefeitura do Capão do Leão, associação dos
empreendedores de turismo de Morro Redondo, professores e alunos da UFPEL, Museu de Morro
Redondo (SILVA, 2018).
O DISCURSO DA AUSÊNCIA
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
não tiveram o seu lugar de fala no processo, como é o caso dos que residem no
Quilombo Urbano Vó Ernestina e dos negros que vivem na zona rural do município.
Perguntamo-nos: Como foi possível existir essa lacuna, justamente num processo de
concepção de ações para a salvaguarda, que prevê a participação democrática de
todos os segmentos sociais? Questionamo-nos, também, se tal ausência se configurará
em futuras ações que terão o turismo voltado à elucidação da contribuição dos
imigrantes como os detentores do saber doceiro, de forma a cristalizar as tradições
doceiras e as dinâmicas culturais em Morro Redondo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1 Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – Campus de Santo Ângelo, e-mail: [email protected]
2 Mestra em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Docente no Departamento de Ciências Sociais
Aplicadas da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Santo Ângelo, e-mail:
[email protected]
3 Mestra em Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Santa Maria, Arquiteta e Docente no Departamento
de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de
Santo Ângelo, e-mail: [email protected]
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
CONTEXTO HISTÓRICO
ITÁLIA E A EMIGRAÇÃO
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BRASIL E A IMIGRAÇÃO
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central. Por último, já no último quartel do século XIX, os italianos chegam para
completar o povoamento da província, ocupando-se do Nordeste, junto à região
serrana e no centro, próximo à atual cidade de Santa Maria.
Os imigrantes desejados, agricultores, colonos e artesões, emigraram para a
América entre o final do século XIX e início do século XX. Na Itália, com o fim
do feudalismo e a inserção da industrialização, gerou-se um excedente de mão-de-
obra. Já no Brasil, o cenário era inverso. Com a abolição da escravatura, o país passava
por uma carência de trabalhadores. Como afirma Giron (1980), imigrantismo e
abolicionismo são aspectos da mesma questão.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Colônia Guaporé.
Frosi e Mioranza (1975) estabelecem dois momentos distintos da imigração
italiana: num primeiro momento, a ocupação de terra é feita por imigrantes italianos
que, de Porto Alegre, são destinados para as colônias já citadas; num segundo
momento, toma vulto a migração interna que ocupa espontaneamente novas terras.
Subindo o território, como citado acima, em direção norte, houve o
reestabelecimento na região noroeste. Muitos casais, fundadores de novas
aglomerações em diferentes regiões do estado, migravam um dia após o casamento.
Havia a necessidade de encontrar novos espaços para fixarem residência, construir as
grandes famílias e trabalhar com animais, cultivos, comércio ou pequenas indústrias.
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Nesta tentativa de manter sua identidade cultural, deixaram marcas no espaço que são testemunhas
da imigração (...). A reprodução em solo brasileiro de uma cidade e organização territorial que
lembrasse muito a terra natal foi um dos artifícios utilizados pelos imigrantes italianos, para
aumentar o sentimento de pertencimento àquele local (SCALZER; GENOVEZ, 2012, p. 3-4).
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Eloquente em sua simplicidade, austera ou com ornamentação singela, não tem a opulência do
mármore ou o esplendor da talha dourada, mas não resulta de relações sociais injustas, como a
escravatura, que marcou quase toda a arquitetura histórica luso-brasileira (POSENATO, 1983, p.
66).
AS ORIGENS VÊNETAS
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CONSTRUÇÕES PROVISÓRIAS
ARQUITETURA PERMANENTE
• PERÍODO PRIMITIVO
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• PERÍODO DE APOGEU
• O PERÍODO TARDIO
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
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tem, para nós, uma relevância que implica cultura, natureza e modos de vida.
Dos territórios acima nominados, dois deles são espaços em que processos de
extensão universitária têm incidência considerável. Essas ações envolvem Extensão-
Pesquisa-Formação. Diante disso, no próximo tópico abordaremos essa dimensão
da extensão como forma de compreender a relação estabelecida e os impactos na
promoção da cultura, de modo geral.
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CONCLUSÕES
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REFERÊNCIAS
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1 Doutoranda em História da Literatura – Universidade Federal do Rio Grande (FURG) – Professora na Rede
Pública Estadual – [email protected]
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observando que, desde o início, se esclarece esta relação: “Nas reflexões que
introduzem o termo, Proust fala de forma precária, como se apresentou em sua
lembrança, durante muitos anos, a cidade de Combray, onde, afinal, havia transcorrido
parte de sua infância” (BENJAMIN, 1989, p. 106). Até aquela tarde, diz Benjamin,
em que o sabor da madeleine (espécie de bolo pequeno) o houvesse transportado de
volta aos velhos tempos, Proust estaria limitado àquilo que lhe proporcionava uma
memória sujeita aos apelos da atenção. Esta seria, conforme Benjamin, a mémoire
volontaire, a memória voluntária.
A evocação do passado, através dos esforços da inteligência, constitui trabalho
inútil, como se lê nas primeiras páginas da obra proustiana:
É trabalho baldado procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência serão inúteis. Está
escondido, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que este
objeto material nos daria), que estamos longe de suspeitar. Tal objeto depende apenas do acaso
que o reencontremos antes de morrer, ou que não o encontremos jamais (PROUST, 2016, p. 54).
[...] chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus
hábitos, um pouco de chá. A principio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando. Ela então
mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter
saído moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago (PROUST, 2016, p. 54).
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condição de cidadãs brasileiras, comuns, com pouco acesso ao ensino formal, minha
avó e tias-avós, certamente, durante o período de repressão aos descendentes de
alemães, considerassem que o ideal fosse se portarem conforme o que era instituído.
Conforme os ditames do poder.
A lembrança situa-se no cruzamento entre a semântica e a pragmática, já que
ela é, alternadamente, buscada e encontrada. Lembrar-se é ter uma lembrança ou ir
atrás de uma lembrança. Paul Ricoeur (2007, p. 25) remete ao que consta na Ética de
Spinoza, na Segunda Parte – “A Natureza e a Origem da Mente”, na sua Proposição
18: “Se o corpo humano foi, uma vez, afetado, simultaneamente, por dois ou mais
corpos, sempre que, mais tarde, a mente imaginar um desses corpos, imediatamente
se recordará também dos outros”. Tal axioma encaminhou-se à seguinte conclusão:
Compreendemos, assim, claramente, o que é a memória. Não é, com efeito, senão uma certa
concatenação de ideias, as quais envolvem a natureza das coisas exteriores ao corpo humano,
e que se faz na mente, segundo a ordem e a concatenação das afecções do corpo humano. Em
primeiro lugar, digo apenas que é uma concatenação de ideias as quais envolvem a natureza das
coisas exteriores ao corpo humano, e não que é uma concatenação de ideias, as quais explicam
a natureza dessas coisas. Pois trata-se, na realidade das ideias das afecções da corpo humano,
as quais envolvem tanto a natureza do corpo humano quanto a natureza dos corpos exteriores
(SPINOZA, 2009, p. 35).
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autor observa que seus pais estavam abertos a muitas influências, sendo em parte o
que eram porque viviam em tal época, em tal país, em tais circunstâncias políticas
e nacionais: “Meus pais eram franceses dessa época, foi então que assimilaram
alguns hábitos e assumiram alguns traços que não cessariam de fazer parte de suas
personalidades e que se impuseram cedo a minha atenção” (HALBWACHS, 1990,
p. 40).
Uma das razões por que me envolvi nesta pesquisa foi a intenção, por meio
dos estudiosos aqui elencados, de alcançar algum entendimento para a forma de agir
dos adultos que povoam minhas memórias de criança. Certamente, o convívio com
os brasileiros e, à medida que as gerações se sucederam, e talvez pelo fato de que a
família se constituiu em âmbito urbano, os usos e costumes, assim como o idioma
do povo local, foram sendo naturalmente assimilados, passando os membros daquele
grupo a se reconhecerem como brasileiros em todos os aspectos da vida diária. Do
núcleo inicial que se estabeleceu em Feliz nada se sabe de algum membro que tenha
permanecido naquela região. Foram avançando e formaram suas famílias entre Cruz
Alta, Iraí e Santa Rosa.
Os ensaios reunidos no livro Nós, os teuto-gaúchos, anteriormente citado, trazem
memórias, pesquisas e reflexões que abrangem diferentes aspectos relacionados à
origem germânica dos autores elencados. Entre estes escritos, optei, preferencialmente,
relacionar na presente pesquisa aqueles que se reportam ao uso do idioma alemão
e suas implicações à época do Projeto de Nacionalização de Getúlio Vargas. Donald
Schüler em “A mãe que perdi” apresenta um questionamento a respeito do idioma,
da condição dos imigrantes e de seus descendentes:“Reflito sobre a minha condição
teuto-brasileira constrangido. Cercado destes morros, açoitado por estes ventos,
bronzeado por estes sóis, como sentir-me teuto? Teuto-brasileiro? O substantivo
composto marca síntese ou dilaceramento?” (FISCHER; GERTZ, 1996, p. 270). Por
que refletir sobre a questão teuto-brasileira, indaga Schüler. De teuto resta o quê? O
sangue? Este sangue, diz ele, já foi aquecido pelos trópicos desde as primeiras décadas
do século XIX. Época em que seus avós, conforme explica o autor, atravessavam os
mares seduzidos por douradas promessas de um imperador carente de súditos para
guarnecer as desprotegidas fronteiras do sul. Quanto ao idioma, Schüler diz:
A língua? Eu a cultivo e guardo, precariamente, é verdade, mas o suficiente para ler clássicos e
modernos. Chego a comover-me com a sonoridade das palavras, com o ritmo das frases. Surpreendo-
me percorrendo parágrafos de Nietzsche e de Heidegger, sem pensar no sentido, atento apenas à
massa verbal, como que confiado ao embalo das ondas. Falta-me, entretanto, o exercício vivo da
língua que me é solicitada só em momentos raros (SCHÜLER, 1996, p.183).
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pessoa tenha interesse em determinado momento histórico de que tenha feito parte
juntamente com outros membros de determinado grupo, talvez até o interesse seja
maior, contudo, pode não conservar lembrança alguma a ponto de não reconhecer
quando o descrevem, uma vez que, desde o momento em que tal fato se deu, saiu
deste grupo e a ele não retornou mais. “Há pessoas de quem dizemos que estão
sempre no presente, isto é, que eles não se interessam se não pelas pessoas e pelas
coisas no meio das quais elas se encontram no momento, e que estão em relação
com o objeto atual de sua atividade, ocupação ou distração” (HALBWACHS, 1990,
p. 20). Algumas linhas adiante, diz o autor, que todo o conjunto de lembranças
que se possa ter em comum com tal grupo ao qual já não se pertence mais pode
desaparecer bruscamente. Esquecer um período de sua vida, completa Halbwachs,
é perder o contato com aqueles que nos rodeavam. O excerto a seguir ratifica o
exposto acima:
Permita-me, Senhor, ir mais longe na minha procura, ó minha esperança; e não se distraia a minha
atenção. Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde estão. Mas se isso ainda não me é
possível, sei, todavia, que onde quer que estejam, aí não são futuras nem passadas, mas presentes.
Na verdade, se aí também são futuras, ainda lá não estão, e se também aí são passadas, já lá não
estão. [...] Ainda que se narrem, como verdadeiras, coisas passadas, o que se vai buscar à memória
não são as próprias coisas que já passaram, mas as palavras concebidas a partir das imagens de
tais coisas, que, ao passarem pelos sentidos, gravaram na alma como que uma espécie de pegadas
(Santo Agostinho 2001, p. 115).
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Os representantes do governo Vargas chegaram aos níveis mais privados possíveis de intervenção,
como a prática de arrancar os panos bordados escritos em língua alemã, que enfeitavam a parede
das casas dos camponeses, rasgando-os e queimando-os como indícios de propaganda nazista. Sem
entender absolutamente o que significavam as palavras que os panos traziam. Estes “enviados”
do nacionalismo criavam inimigos entre camponeses que viam seus casebres destruídos, em
determinadas situações, do único enfeite que possuíam: um pano com inscrições em letras góticas.
Significavam ditos populares de conteúdo religioso: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, “Se
tiveres paz no coração, teu casebre será um palácio” (CAMPOS, 2006, p.111).
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As interdições que atingem o discurso, diz Foucault (1996, p.6), revelam sua
ligação com o desejo e com o poder: “Nisto não há nada de espantoso, visto que
o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também aquilo que é objeto de desejo”.
Numa sociedade como a nossa, escreve Foucault em A ordem do Discurso,
conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. Mas a interdição, diz ele, é o mais
evidente, o mais familiar. Não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar
de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa.
Foucault aponta para três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou
se compensam e formam uma teia complexa que se modifica ininterruptamente,
observando que há setores em que a teia apresenta-se mais cerrada: são as regiões da
sexualidade e as da política.
Há, sem duvida, em nossa sociedade e, imagino, em todas as outras, mas segundo um perfil e
facetas diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos,
dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí
de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande
zumbido incessante e desordenado do discurso (FOUCAULT, 1996, p. 9).
Era o bilinguismo como experiência de angústia. Introduziu para sempre na minha existência a
ideia de que falar é perigoso. A ideia de que nas línguas estão contidas coisas por causa das
quais podemos ser punidos. Naturalmente, em casa ainda se liam algumas coisas em alemão e
sobretudo nos comunicávamos, no âmbito familiar, com a linguagem afetiva. Falávamos mais baixo
e, escondidamente, também rezávamos em alemão. Mas o alemão, passava a ser, desde aí, uma
língua interditada (STEIN, 1996, p. 340).
Atualmente consigo explicar o que acontecia naqueles anos, mesmo por que acabei estudando
fenômenos de etnicidade. A valorização e autovalorização positiva de um grupo, e de um grupo
étnico em particular, sofrem oscilações que variam conforme as circunstâncias políticas, sociais,
econômicas ou, resumindo, conforme as circunstâncias culturais (WEBER, 1996, p. 56).
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Se nos ativermos às impressões que fizeram sobre nós os acontecimentos, quer a atitude de nossos
pais em face dos acontecimentos que terão mais tarde significação histórica, quer os costumes
somente, os modos de falar e de agir de uma época, em que se distinguem elas de tudo aquilo que
ocupa nossa vida de criança, e que a memória nacional não reterá? Como a criança seria capaz de
atribuir valores diferentes às partes sucessivas do quadro que a vida desenrola diante dela, e por
que ficaria sobretudo admirada dos fatos e episódios que mantêm a atenção dos adultos por que
estes dispõem, no tempo e nos espaço, de muitos termos de comparação? (Halbwachs, 1990, p.
41).
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
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grupo. Segundo Barth (2011, p. 189), “os grupos étnicos são categorias de atribuição
e identificação, realizadas pelos próprios atores, e assim, têm a característica de
organizar a interação entre as pessoas”, ou seja, as características femininas que
marcam o modo de vida da mulher pomerana na comunidade, são mantidas e
reinventadas dentro do próprio grupo social.
A partir do século XIX, a imigração europeia foi incentivada para o Brasil, como
forma de garantir a posse e a exploração de regiões pouco povoadas, garantindo a
produção de gêneros alimentícios para o mercado interno. Em se tratando da causa
da imigração europeia para o Brasil, destaca-se a necessidade do governo imperial
de promover a ocupação de parte das terras ainda inabitadas no território brasileiro.
Ressalta-se que essas terras foram ocupadas por imigrantes europeus, pois eram
devolutas, e sem interesse dos charqueadores e estancieiros que ocupavam a região.
Como fala Salamoni (1995, p. 12), “hoje, a maior comunidade pomerana
de todo o mundo vive no Brasil”. Ou seja, o território brasileiro abarca grande
parte de um grupo étnico com características peculiares, que constituem marcas na
população até os dias atuais. Em se tratando do começo do processo imigratório,
Cerqueira (2010, p. 873) diz que
O grande impulso foi dado em 1858, pela criação da Colônia Rheingantz, na região da atual São
Lourenço, que na época fazia parte do território de Pelotas. Tratava-se de uma imigração de língua
alemã, porém com forte presença da etnia pomerana, cuja presença é um diferencial da composição
étnica da zona colonial da Serra dos Tapes, no sul gaúcho.
Atualmente a base produtiva encontra-se mais restrita, as principais atividades comerciais são a
produção de leite, o cultivo de soja e, nas últimas décadas, o fumo tem sido o grande carro chefe
da economia local, sendo um dos cultivos mais rentáveis e mais presentes entre os agricultores
familiares da região da Serra dos Tapes.
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mulher sempre exerceu e exerce um papel primordial dentro da colônia, pois suas
atividades são fundamentais para o funcionamento da propriedade, cabendo a ela
cuidar dos filhos, da casa, dos afazeres com pequenos animais da propriedade3, do
jardim, da horta, preparar comida, além de ajudar o marido na lida camponesa.
O domínio reservado às mulheres não se inscreve unicamente sob o teto da
casa; as mulheres também trabalham na lavoura, executando praticamente tudo o
que os homens fazem: semeiam, capinam, colhem e fazem aplicação de agrotóxicos
na plantação (BAHIA, 2011).
A metodologia do trabalho está sustentada na história oral, utilizando-se de
algumas narrativas e memórias femininas de mulheres que vivem no contexto
camponês pomerano na Serra dos Tapes. Na revisão teórica são elencados inúmeros
autores que abordam diferentes conceitos, mas que se cruzam para a proposta do
trabalho, dentre os quais Louro (1997) e Meyer (2004), para abordar as questões
de gênero, é utilizado Barth (2011) para tratar da etnicidade, Salamoni (1995),
Cerqueira (2010) e Krone (2014), para a imigração pomerana. Ferreira e Amado
(2006) e Bosi (1994) para tratar da metodologia de história oral, assim como outros
para a contextualização geral do grupo étnico pomerano.
METODOLOGIA
Nessa linha, a história oral, centra-se na memória humana e sua capacidade de rememorar o
passado enquanto testemunha do vivido. Podemos entender a memória como a presença do
passado, como uma construção psíquica e intelectual de fragmentos representativos desse mesmo
passado, nunca em sua totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção
(MATTOS; SENNA, 2011, p. 96).
3 Entendido como galinhas, patos, marrecos, pintinhos etc., os quais necessitam de um cuidado diário.
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A proposta deste trabalho busca falar de autores que tratam destas temáticas,
bem como trazer resultados, frutos de depoimentos e narrativas de mulheres que
vivem no contexto pomerano.
É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos
que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro”
universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida, por algumas mulheres.
Sem dúvida, desde muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas
exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas oficinas e nas lavouras (LOURO,
1997).
Para as mulheres foram atribuídos determinados papéis sociais, fazendo-as
acreditar que determinadas funções a ser exercidas eram naturalmente do universo
feminino. Entretanto, essa identidade é construída, os sujeitos se identificam, social e
historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de
gênero. É evidente que essas identidades (sexuais e de gênero) estão profundamente
interrelacionadas com a linguagem e com práticas muito frequentes no grupo social,
que as confundem, tornando difícil pensá-las distintivamente (LOURO, 1997).
Nesse sentido, mulheres pomeranas, ao longo dos anos, foram se adequando a um
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
O processo de educação de homens e mulheres supõe uma construção social e corporal dos sujeitos.
Implica na transmissão/aprendizagem de princípios, valores, conhecimentos, habilidades, supõe
também a internacionalização de gestos, posturas, comportamentos, disposições “apropriações” a
cada sexo (LOURO, 1996, p. 41).
4 De acordo com Pierre Bourdieu (1996), o habitus são modos de conduta a inculcar nos indivíduos por meio de
disposições internas e que se constituí em práticas de todo um grupo social.
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Entre os pomeranos, o trabalho, o comércio e o cotidiano são os temas preferidos pelos homens;
crianças, casa e religião, são consideradas assuntos de mulher. As exceções aparecem na medida
em que algumas mulheres da comunidade ganham destaque quando assumem a liderança
econômica da casa ou participam mais ativamente das decisões realizadas no âmbito da igreja, da
escola e do sindicato.
5 Entende-se como mulher agricultora, que trabalha na lavoura, agricultura e/ou campo.
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Foram feitas entrevistas com três mulheres de uma mesma família, que
representam três gerações de idades diferentes. A mulher da primeira geração possui
66 anos, a da segunda, 40 anos, e a da terceira, 20 anos.
As entrevistas foram feitas com perguntas amplas, em que as entrevistadas
puderam falar sobre sua vida, sobre suas concepções em relação ao trabalho feminino,
sobre as tarefas que exercem no dia a dia, sobre como foram suas infâncias, suas
oportunidades de estudo, e como se enxergam enquanto mulheres dentro deste
grupo étnico.
A seguir são apresentadas as narrativas dessas mulheres, que são todas
descendentes de pomeranos e vivem na zona rural da Serra dos Tapes; são trazidos
seus relatos gerais sobre suas concepções do papel social enquanto mulher na
propriedade, em que falam de seus afazeres, suas tarefas e perspectivas.
Abaixo é apresentado o relato de I.S., a entrevistada da primeira geração,
mulher de 66 anos, agricultora aposentada:
Agora eu estou aposentada, já não trabalho mais tanto, mas desde de cedo tive que trabalhar
na lavoura, minha família era grande, éramos seis irmãos. Naquela época, não podíamos estudar,
geralmente só estudávamos até 3º ou 4º série e depois tinha que ajudar em casa e na lavoura.
Depois nós começávamos a sair pros bailes e arrumar namorado, depois casei, tive minha filha e
assim a vida foi passando, sempre ajudei meu marido na lavoura, nós plantávamos de tudo: batata,
cebola, feijão, milho, e outras coisas. Uma coisa que sou sempre eu que faço são as bolachas
(doss) na páscoa e no natal, isso eu gosto, fazer pão sempre foi uma coisa passada de geração em
geração para as mulheres da minha família, sempre se dizia que uma menina que não sabe fazer
pão não podia casar, no tempo da minha mãe, não tinha forno e fogão essas coisas, ainda tem
alguns desses fornos de rua para se assar o pão, geralmente sempre se fazia o pão no sábado para
todo o resto da semana. Além disso eu tinha muitas tarefas que só eu fazia como fazer pão, fazer
manteiga, e schimier6. Parece que a mulher sabe organizar melhor todos os serviços (I.S., 2019).
Ao final de sua narrativa a mulher lembra que “[...] quando eu era solteira,
todas as famílias queriam casar suas filhas com rapazes ricos, que tivessem muita
terra e muitos animais, pois para os pomeranos ter muitas e muitas terras sempre foi
riqueza” (I.S., 2019).
Na segunda geração, a entrevista foi com F.R., mulher de 40 anos, agricultora
ela revela que:
No campo só trabalhamos, é todos os dias, apenas no domingo tem um pouco de descanso. Mas
tem muitos serviços que eu tenho que fazer todos os dias, como tratar os animais, tirar leite das
vacas, limpar a casa, fazer pão, recolher os ovos, lavar roupa, fazer comida, cuidar da horta e do
jardim, plantar flores, fazer compotas de pêssego e pepino, além de muitos outros que não lembro.
Essas tarefas só eu faço, meu marido nunca me ajuda. Já sou casada a mais de 20 anos e ele nunca
lavou roupa por exemplo. Além de todas essas tarefas eu ainda ajudo meu marido e meu filho na
6 Doce de melancia feito em tacho. No contexto pomerano é considerado uma atividade feminina.
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lavoura, tenho que fazer todas as coisas da casa e ainda ajudar na lavoura, além disso, tem serviços
na lavoura que só a mulher faz, no meu caso só eu é que planto milho (Figura 2) e preparo patos
e galinhas pro consumo da casa. Uma coisa interessante de falar é que ganhei da minha tia uma
máquina de fazer manteiga (Figura 3), minha tia não se casou, daí ela deu pra mim, isso também
é uma coisa que faço todos os sábados, a manteiga caseira. Mas lembro que com minha mãe e
minha avó também era assim, com muitas mulheres da minha idade é a mesma coisa, parece que
todo mundo se conforma [...] sempre me pareceu que as mulheres da colônia tem uma vida difícil,
o que sempre vi no meu pai, vejo hoje no meu marido, os homens tem mais independência, saem
a hora que querem, vão pra venda, se reúnem com outros homens pra jogar carta, gastam mais
dinheiro, e mulher não, a grande maioria nem sabe dirigir, mas agora isto está mudando um pouco,
eu até dirijo, mas só trator (risadas) que é para trabalhar, mas carro que é para passear ninguém
me ensina (F.R., 2019).
Minha concepção enquanto mulher pomerana é diferente das gerações anteriores. Na nossa
comunidade e na vizinhança, as meninas da minha idade querem casar cedo e depois que
casam acabam trabalhando na agricultura. Eu percebo como o trabalho de mulheres mais velhas
é complicado. Primeiro se casam, depois tem filhos e ainda assim precisam se dedicar pra uma
vida complicada na agricultura. Logo os anos vão passando e é difícil da vida mudar. Mas hoje
com a tecnologia no campo e a internet, celular, muitas coisas já melhoraram, muitas mulheres já
dirigem, são mais independentes. Mas mesmo assim, muitas mulheres ficam por gerações fazendo
as mesmas coisas: cuidando do marido, dos filhos, da casa e da lavoura. E durante muito tempo foi
assim, como antigamente não tinham escolas, as mulheres também não estudavam, se casavam
cedo e trabalhavam na agricultura, eu não quero trabalhar na agricultura, quero estudar e ter uma
profissão diferente para não precisar morar na zona rural (A.R., 2019).
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Figura 2 – Máquina de plantar milho – instrumento muito usado pelas mulheres nas plantações.
Figura 3 – Máquina manual de fazer manteiga – herdada por gerações de mulheres dentro da família.
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As duas primeiras mulheres falam de tarefas que são praticadas por muitas
camponesas, como fazer o pão caseiro, que, segundo ela, era uma tarefa que toda
menina antes de casar deveria saber. Na casa da entrevistada, foi registrado o pão
caseiro sendo feito no forno de rua, elucidado na figura 3.
Na terceira entrevista, a jovem relata sobre seus desejos de ter uma vida
diferente das mulheres mais velhas da sua comunidade, pois relembra que cresceu
num contexto de muito trabalho, no qual a mulher tem muitas tarefas, e que todo
esse trabalho exaustivo nem sempre é valorizado, pois em determinadas ocasiões é
menosprezada pelos homens da casa.
As mulheres, ao fazerem as suas narrativas, na maioria das afirmações,
direcionam-se para mulheres do seu convívio, e que lhe ensinaram algo que lhes
foi importante. Logo, suas comparações e lembranças estão sempre contextualizadas
dentro do seu grupo étnico, dos pomeranos, com a cultura com a qual se identificam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Sul. 2018. 93 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de Licenciatura em Geografia,
Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2018.
SALAMONI, G. ACEVEDO, H. ESTRELA, L. Os Pomeranos: Valores Culturais da
Família de Origem Pomerana no Rio Grande do Sul – Pelotas e São Lourenço do Sul.
Pelotas: Editora Universitária, 1995.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
FONTES ORAIS
S., I. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
K., F. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
A., R. Entrevista [abr.2019]. Entrevistadora: Karen Laiz Krause Romig, 2019, Canguçu - RS.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.
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INTRODUÇÃO
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Este estudo faz uso da História Oral como meio de aproximação com
a memória de sujeitos que vivenciaram o processo de nacionalização do ensino
enquanto alunos de escolas étnicas religiosas/luteranas. Assim, a memória destes
sujeitos se apresenta como fonte histórica desse trabalho, enquanto a História Oral
corresponde à principal referência metodológica para a elaboração, sistematização
e análise das fontes orais. Assim, vale dizer que a História Oral, como as demais
metodologias de pesquisa, estabelece e ordena os procedimentos de um trabalho
(AMADO; FERREIRA, 2006). Trata-se, portanto de um
5 Alemãs, italianas, polonesas, japonesas. Para saber mais sobre essas escolas étnicas, ver: Kreutz (2010).
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específicos. A História Oral pode ser assim entendida como um evento motivado
por um encontro entre entrevistado e entrevistador, com o objetivo de produzir um
texto/documento gerado por um processo dialógico, em que a lembrança do passado
de um é motivada pelas questões apresentadas pelo outro. Porém, cabe lembrar,
conforme Alberti (2005), que a entrevista é uma fonte de pesquisa e não a história
propriamente dita e, como as demais fontes, necessita de interpretação e análise, para
refletir sobre o conteúdo da narrativa e produzir conhecimento histórico.
Cabe observar que o relato oral é uma representação sobre o acontecimento
a partir do olhar do entrevistado, em que ele se autorrepresenta como sujeito
individual e coletivo. Ecléia Bosi (2016) chama a atenção para a importância em
considerar as experiências de vida e da subjetividade dos participantes. Para a autora,
“A memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com
a classe social, com a escola, com a igreja, enfim com os grupos de convívio e os
grupos de referência peculiares a este indivíduo” (BOSI, 2016, p. 17). Ressalta-se,
assim, que a memória está ressignificada a partir das relações estabelecidas com o
meio social no qual o indivíduo está inserido (HALBWACHS, 2003).
Semelhantemente, ao analisar entrevistas, é importante lembrar que os sujeitos
da pesquisa estão falando de um lugar no presente, logo não irão rememorar
totalmente o passado e, sim, falar sobre ele, ressignificando-o. O indivíduo que
rememora amadureceu durante esse intervalo de tempo, igualmente, ele reelaborou
o que viveu a partir do tempo transcorrido. Candau (2016) vai se referir a um
processo de organização e categorização da memória em que “[...] o narrador
parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de sua vida que
julga significativos no momento da narrativa” (CANDAU, 2016, p. 71). Assim, é
importante levar em consideração a forma como essas memórias se constituíram ao
longo do tempo e a maneira como foram expressas no momento da narrativa.
As narrativas são, assim, importantes instrumentos para auxiliar na compreensão
de perspectivas cotidianas em que o pesquisador tem a oportunidade de constituir
suas próprias fontes. Esse é o caso do presente estudo, que está motivado por
entender as consequências do processo de nacionalização do ensino sob a óptica do
aluno teuto-brasileiro que vivenciou na prática essa experiência.
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6 Os narradores ao longo do texto são mencionados pelo nome e sobrenome e a referência completa da entrevista
encontra-se no final do trabalho, junto às referências bibliográficas.
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[...] perguntaram para os alunos se era ensinado o alemão, ai os alunos responderam que só a
língua portuguesa, ai se acalmaram e fizeram uma revista nos livros dos alunos e do professor para
ver se tinha alguma coisa em alemão, mas não encontraram nada (WILLE, 2018).
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Seyferth (1997) ressalta que a ameaça nazista foi utilizada nesse período para
desculpar os excessos políticos cometidos principalmente através da violência
simbólica sobre as escolas estrangeiras. Além disso, no testemunho de Herta
Tessmann (2018), o fato da nacionalização do ensino ter coincidido com a Segunda
Guerra Mundial tornou-se um agravante, pois o governo brasileiro apertou ainda
mais a fiscalização sobre a literatura alemã naquele período. A respeito da fiscalização
nesse período alguns recordam a atuação de Silvia Melo, representante regional da
Secretaria Estadual de Educação, que fazia visitas periódicas nas escolas étnicas para
acompanhar o desenrolar do processo de nacionalização nesses educandários.
Para a maioria dos narradores, existia, na época, uma severa fiscalização por
parte das autoridades em relação ao uso das línguas alemã e pomerana, o que gerava
certa tensão entre os colonos, pois eles afirmam que não tinham culpa de não
saber falar o português, sendo que eles não tiveram outro ensinamento em sala de
aula a não ser o alemão. Segundo Martim V. Wille (2018), “Tinha que falar! Tinha
que aprender! Tinha que mudar, nos vivíamos num país que era comandado por
luso-brasileiros, então a transformação foi se fazendo aos poucos”. Para ele, havia
também muita resistência por parte das próprias crianças das comunidades teuto-
brasileiras que se negavam a aprender o português, pois não queriam deixar de falar
o alemão. “Então tinha momentos que o professor se obrigava a ser mais ríspido
com essas crianças, pois era para o bem delas” (WILLE, 2018). Com isso, é possível
observar que, muitas vezes, o estado dependeu da assistência do professor, pois não
conseguiu subjugar as comunidades teuto-brasileiras a abandonar a tradição e a
cultura germânica.
Atualmente, alguns indícios apontam que a resistência, que teve como
princípio de ação manter a identidade étnica, colaborou com a preservação da
cultura e da memória teuto-brasileira. Muito disto se deve ao fato de que muitas
famílias teuto-brasileiras criaram estratégias para burlar a fiscalização e salvaguardar
sua memória da destruição. Conforme explicitado por Ilma B. Reichow (2016), que
ainda mantém o hábito da leitura das cartilhas utilizadas durante o período de sua
escolarização, suas cartilhas passaram por muitos anos esquecidas debaixo do porão
da casa, onde elas foram escondidas pelo medo da repressão. Corroborando tais
afirmativas, Ilsa K. Neunfeldt (2018) recorda que foi uma época bem difícil, porque
“a fiscalização vinha nas casas das pessoas vistoriar e pegava os livros para serem
queimados”. Recorda, ainda, que seu pai tinha certa quantidade de livros em alemão,
os quais ele teria escondido, pois não queria se desfazer deles, mas também não
poderia mantê-los dentro de casa e comprometer a integridade de sua família. Então
[...] eu ainda me lembro que o meu pai pegou os livros e colocou dentro de uma caixa cobriu
com plástico e os enterrou no mato e lá os deixou por um bom tempo [...]depois quando tudo
se acalmou, ele desenterrou os livros dele, mas sempre manteve-os meio escondidos em casa
(NEUNFELDT, 2018).
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que, na maioria das casas, na prática, a fiscalização nunca tenha chegado, segundo
os testemunhos dos entrevistados. Porém, Candau (2016, p. 128), alerta que “[...]
o silencio ou a negação não significa sempre que é esquecimento”, ou que algum
fenômeno não tenha acontecido, visto que muitas pessoas tendem a negar certas
memórias que lhe causaram sofrimento. Ou seja, a fiscalização pode até ter ocorrido,
mas o sujeito para não sofrer optou pelo esquecimento, sendo assim, é preciso
relativizar. Para o autor, esquecer muitas vezes é “[...] a condição indispensável para
seguir adiante” (CANDAU, 2016, p. 128).
As memórias evidenciam que a política de nacionalização do ensino foi além
da proibição do uso da língua. O governo usou-se da autoridade dos interventores
estaduais que fiscalizaram as salas de aula e as moradias, numa tentativa de apagamento
da memória alemã através da destruição generalizada de qualquer vestígio de leitura
alemã. E é nesse sentido que Herta M. Tessmann (2018) complementa que foi um
tempo de muita apreensão, ao recordar que sua mãe possuía certa quantidade de
literatura alemã que tinha herdado do seu pai dos quais ela não queria se desfazer.
Então, segundo Herta, a sua mãe escondeu “a Bíblia e os livros que ela tinha em casa
num fundo falso embaixo do armário, [...] porque vistoriavam as casas”. Recorda
também que alguns dos seus livros escolares ficaram retidos na escola e que nunca
mais os recebeu. “[...] não sei o que fizeram com eles, mas eram meus! Meu pai os
tinha comprado” (TESSMANN, 2018). A narradora ressalta, assim, o valor cultural,
afetivo e monetário que as cartilhas e demais livros tinham para a família.
Por outro lado, é importante ressaltar que, no momento em que a nacionalização
do ensino começou a ganhar espaço em âmbito nacional, muitas das escolas étnicas já
haviam percebido a necessidade de se integrar com a língua portuguesa. Conforme
recorda Eurico Wolter (2016), que estudou antes da fase repressiva da nacionalização,
ele afirma ter estudado com um currículo em alemão, mas teve aulas de ensino da
língua portuguesa. Ao mesmo tempo, Martim V. Wille (2016) recorda que iniciou a
sua alfabetização em língua alemã, mas que já passou a ter aulas de português antes
de se impor a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em sala de aula.
Porque as crianças não sabiam falar o português aí tinha que adaptar elas aos poucos [...] Então a
substituição do ensino de alemão para o português vinha acontecendo naturalmente [...] a língua
portuguesa foi sendo introduzida aos poucos, ainda lecionavam um dia ou dois dias por semana,
no meu tempo, em alemão (WILLE, 2016).
Cabe lembrar que isso não foi uma prática comum a todas as comunidades
escolares teuto-brasileiras. Porém, destaca-se com a narrativa a mobilização de
algumas escolas teuto-brasileiras em se integrar com a comunidade luso-brasileira,
visando principalmente à expansão das atividades comerciais e novas oportunidades
de trabalho. Desta maneira, para alguns, a nacionalização do ensino rompeu com
o desenvolvimento natural das escolas étnicas ao intervir e acelerar um processo
que teria se dado ao natural. Porém, segundo Seyferth (1997), romper com o
modelo tradicional de ensino elementar, numa perspectiva de homogeneizar a
educação no Brasil, ia muita além da questão linguística. “Nacionalizar significava,
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das memórias escolares expostas neste texto foi possível observar
alguns aspectos que merecem ser evidenciados no conjunto da análise. Nelas fica
claro que a nacionalização do ensino não só interrompeu o uso da língua alemã nas
escolas étnicas, mas mudou toda a estrutura curricular dessas escolas que passaram
de um currículo secular e religioso, que retratava aspectos culturais importantes da
etnia, como a língua, os costumes e a religiosidade com ênfase no ensino religioso e
suas ramificações sendo o ponto central, seguido das práticas de leitura, escrita e as
operações elementares da matemática, para um currículo que valorizou conteúdos
seculares e patrióticos. Esse novo currículo objetivou inculcar um sentimento de
brasilidade, através da imposição da língua portuguesa escrita e falada, da prática
do civismo e do ensino de história e geografia do Brasil. Assim, a nacionalização
do ensino, enquanto uma reforma social, não objetivou apenas transformações
educacionais, mas também a formação de uma cultura nacional alinhada aos
interesses estatais.
O quadro de concepções sobre o contexto permite inferir que a política da
nacionalização do ensino exerceu um efeito de mudança sobre essas pessoas fazendo
com que muitas se isolassem e outras se sentissem desafiadas a aprender. Além
disso, as mudanças no currículo dificultaram em certa medida o aprendizado desses
sujeitos, sendo que os conteúdos ministrados na língua portuguesa, num primeiro
momento, não eram compreendidos. Desta maneira, as narrativas refletem as tensões
sofridas com a proibição da língua alemã e o medo de não se adaptar ao uso da
língua portuguesa. Em contrapartida, os sujeitos apresentam memórias marcadas
por continuidades e interrupções, refletidas em suas vivências domésticas e alinhadas
com as tradições étnicas e culturais.
Tendo em vista os aspectos observados, destaca-se que a política de
nacionalização do ensino foi além da proibição do uso da língua, houve uma
tentativa de apagamento da memória alemã através da destruição generalizada de
toda e qualquer forma de expressão estrangeira em prol de uma cultura nacionalista.
Por outro lado, fica claro que estas pessoas não estavam alienadas aos acontecimentos
em voga no país, pelo contrário, não só acompanhavam as discussões como se
preparavam para se salvaguardar frente a possíveis fiscalizações por parte do governo.
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REFERÊNCIAS
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2, p. 107-112 jan./jun. 2012. Disponível em: <revistapos.cruzeirodosul.edu.br>. Acesso em
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DREHER, Martin Norberto. Igreja e Germanidade: estudo crítico da história da Igreja
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LEHRERKALENDER. Merk uns Taschenbuch fur Lehrer an deutschen Schulen in
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NEITZKE, Adolfina K. Entrevista [abr. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016,
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
WILLE, Martim V. Entrevista [maio. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu
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WILLE, Martim V. Entrevista [jul. 2018]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2018, Canguçu -
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Oikos, 2014.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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[...] A etnicidade não é vazia de conteúdo cultural (os grupos encontram ‘cabides’ nos quais pendurá-
la), mas ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta. Ela implica sempre
um processo de seleção de traços culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los
em critérios de consignação ou de identificação com um grupo étnico [...] (POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011, p. 129).
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[...] Por isso, é um tecido memorial coletivo que vai alimentar o sentimento de identidade. Quando
esse ato de memória, que é a totalização existencial, dispõe de balizas sólidas, aparecem as
memórias organizadoras, poderosas, fortes, por vezes, monolíticas, que vão reforçar a crença de
uma origem ou uma história comum ao grupo. Quando há uma diluição desses marcos, confusão
de objetivos e opacidade de projetos, as memórias organizadoras não chegam a emergir, ou
permanecem fracas, esparsas: nesse caso a ilusão do compartilhamento se esvanece, o que
contribuiu para um desencantamento geral. [...] Não se deve procurar nenhuma cronologia nesse
modelo. Pois como já destaquei várias vezes, é no mesmo movimento dialético que a memória
vem confortar ou enfraquecer as representações identitárias,e estas vêm reforçar ou enfraquecer a
memória. [...] (CANDAU, 2014, p. 77-78).
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NARRATIVAS DA DOCÊNCIA
Quadro 1- Apresentação dos entrevistados, nome, formação/função, local de atuação, grupo étnico majoritário, tipo
de entrevista e data da entrevista.
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Sim, era só de tarde, primeiro começou de tarde, depois aumentou de manhã e de tarde, aí depois
começou a se pagar por mês as crianças, era uma mixaria, mas pagavam, tinha muitos que não
eram da igreja, agora é, uma aluna que foi minha ainda me disse que tem o material, eu só sei dizer
que plantada a semente foi se vingou, se cresceu, só Deus sabe, eu plantei Deus regou, isso que eu
posso dizer, mas levamos gente para a igreja, e como eu sempre fui, teatro nós fazíamos, não sei o
teatro cresceu comigo[...] (Entrevista Ida Strelow de Castro).
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[...] quando o pastor João Alves7, já estava aqui, ele já estava doente, eu fiquei quatro anos na
Coxilha dos Campos8, aí eu vim de lá em 1959, em 1960 eu ajudava ele, naquele tempo as aulas
não iam até perto do Natal, então eu já estava livre, ou nos sábados, nas escolas dominiciais, eu
ajudava ele, quase no final do ano, ele tocava violino e eu ensaiando os versinhos, a gente fazia o
programa de Natal [...] (Entrevista Nívea Prestes).
[...] então, naquele tempo ainda não era prefeito, era subentendente, foi lá onde o pai lecionava,
lá na casa dele, em Campos Lima, em Caneleira e disse: olha tu tens que ir para a Maciel, é o único
que pode acertar aqueles italianos, então o pai foi para lá, mas aí depois teve que fazer concurso
para se efetivar lá (Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero).
Um dos filhos do professor ressalta que ele ministrou aulas em outra escola
rural antes de se estabelecer na Escola Garibaldi onde lecionou por mais de duas
décadas e foi o principal protagonista. Segue o depoimento:
7 Pastor negro que atuou na zona rururbana de Pelotas, próxima a “Comunidade da Cerquinha”.
8 Região do interior do município de Canguçu.
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A primeira foi a Garibaldi, eu nem sei que não foi, não tenho datas.
Foi 1929 que começou as aulas
Que começou em 1929?
Sim, em 1929 foi construída e em 1929 começou as aulas.
Então, o papai deu aula em outra escola antes, lá no Rincão da Caneleira, já ouviu falar nesse
nome?
Sim, é ali perto neh.
É ali perto. Eu me lembro, não sei que idade eu tinha, vinha o papai chegando da outra escola, um
dia de chuva, naquele tempo usavam essas capas que esses gaúchos usam e chapéu redondo para
não se molhar. Vinha chegando da outra escola para a Escola Garibaldi (Entrevista Neri Rodeghiero,
2016).
Conforme será pontuado nesta pesquisa, José Rodeghiero não exerceu somente
a função de professor na Colônia Maciel, mas esteve integrado à comunidade local.
Com base nas entrevistas realizadas, pode-se notar que o professor era participativo nas
famílias e nas questões da região. Em algumas notícias, veiculadas no jornal “Diário
Popular”, é possível perceber que o professor era membro influente na “Sociedade
Cooperativa Vitivinícola”, uma associação organizada para tratar questões referentes
à plantação de uvas na Colônia Maciel. De acordo com os periódicos locais, o
professor exercia a função de secretário e de orador nos momentos necessários. Com
isso, pode-se observar que a permanência do professor na escola e, mais do que isso,
a própria manutenção da escola foi influenciada pela figura pessoal do professor e o
vínculo com a comunidade. Na notícia do Diário Popular, é reproduzido o discurso
do orador da sociedade, o professor José Rodeghiero (DIÁRIO POPULAR,
11/10/1938, p. 12).
Nas entrevistas com os filhos dos professores estes trazem a seguinte memória:
Eu já falei pra vocês já né, que eu passei... O pessoal lá fora muitos chamavam o papai de doutor
né, doutor, porque ele que entendia, tinha livros de medicina e tal, então primeiros socorros era
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com ele ali, ai coisarada nem encaminhava [?] pra Pelotas só tinha [...] Daí trazia os doente...
(Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero);
Papai abraçou o cara, o cara era brigão, sabe quem era esse cara? Aquele que matou um se
guerriando. [...] era mais alto pouco coisa. Mas era um touro de forte e abraçou o cara com e
tudo aqui assim, torceu, dobrou os braços deles, dominou o cara né. Ai ele disse assim, “Professor,
o senhor eu respeito”. “Então vai pra casa, te manda pra casa”. Ele obedecia e foi pra casa...
(Entrevista Ariano e Natal Rodeghiero).
De manhã e de tarde, depois ia fazendo aula até não sei que horas da noite, com aqueles lampiões,
minha nossa. [...] 1º, 2º, 3º, 4º e 5º ano, tudo misturado, era só uma salinha pequena, tu viu ali
o tamaninho do colégio, dividia entre manhã e tarde. Muitos alunos, apesar de que a gurizada
respeitava o professor. Mas era um espetáculo, a palmatória comia, era o tempo da palmatória,
tinha um gurizinho tinhoso [explica como é a palmatória], tinha um guri lá que seguido entrava na
palmatória, o bichinho era teimoso. Não se ouvia um barulhinho no colégio, ninguém conversava
(Neri Rodeghiero, 2016).
Eu acho que ele estudou foi sozinho, eu sei que ele foi nomeado, naquele tempo não dizia prefeito
era interventor, foi nomeado pelo interventor, não me lembro, não sei quem era. Não sei como é
que ele aprendeu, lendo em livros talvez, o papai sabia um monte de coisa, ele entendia, 5 matérias
assim e era puxado viu, entrava noite a dentro [...] Ah sim, de manhã e de tarde [perguntado se
ministrava aula o dia inteiro], depois ia fazendo aula até não sei que horas da noite, com aqueles
lampião, minha nossa (Neri Rodeghiero, 2016).
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Depois fiz magistério e a gente observava as aulas dos professores, e eu como professora era
observada também, por exemplo, eu fiz de tudo nesta escola, eu dava injeção, eu cortava cabelo,
fui vice diretora nos últimos tempos, fui do Conselho de Direção, fui secretária de Pais e Mestre,
assim mesmo com tanto envolvimento no Assis Brasil, todos os sábados ia trabalhar na escola
dominical da igreja, o meu conhecimento do magistério e da prática de escola dominical me
ajudaram muito na minha formação (Entrevista Nívea Prestes).
Isto, aí depois eu fiz outra prova para eu poder lecionar aqui. Eu tenho os papéis tudo aqui, e
lecionamos, organizamos as festas, Natal, Páscoa, todas as festas religiosas tinha. [...] Nós não
recebemos nada., pouca coisa, uma vez as crianças pagavam pouca coisa e o salário não tinha,
não tinha salário, eu trabalhava de manhã pelo que comia, uma vez nós ganhamos um dinheiro do
governo, as crianças pagavam, mas era pouca coisa (Entrevista Ida Strelow de Castro).
Eu fui muito tempo sacristão desse padre Schimidt, ele veio da Alemanha e gostava muito do
meu pai, até depois que saiu ele veio aqui em Pelotas visitar o meu pai, agora eu não sei, faleceu.
(Entrevista Ariano e Natal Rodeguiero).
Acontecia as festas com a igreja e a escola trabalhando juntas para organizar (Entrevista Neri
Rodeguiero).
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locais. Esses convívios são relembrados pelos sujeitos como facilitadores no exercício
da docência. Como reforça Ida e Nívea:
[...] eu que não trabalhava com escola bíblica naquele tempo, a gente não sabia, eu vi o pastor
Alves dando, mas bem diferente que a gente faz hoje, claro, doutrina não é a mesma coisa, mas
na prática, mas ele não apresentava nenhuma figura, nenhum brinquedo, contava uma história,
cantava um pouquinho e fazia uma oração, antes um pouco da hora do culto (Entrevista Nívea
Prestes).
[...]aí eu vim para a cidade e continuei com o pastor Alves, com escolas bíblicas, aí ele viu o
meu interesse aí eu fiz uma provinha e passei, aí podia lecionar para os primeiros anos eu podia
lecionar, aí o governo nos deu um prédio para uma pessoa que tinha um terreno que não era da
igreja. Aí recebemos o prédio, o diretor o falecido pastor João Alves, aí eu dei aula, mas o nosso
maior interesse era a religião, então eu sempre contava história bíblica, mandamentos, tudo o que
a gente tinha, os hinos, sempre ensinava, era o nosso objetivo, e nos domingos nós levávamos
uma turma de crianças para a igreja, nas escolas bíblicas lá no centro, assim funcionou este colégio
(Entrevista Ida Strelow de Castro).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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familiar e gradualmente se expande nas relações com o grupo e sua cultura. A escola
é um espaço no qual a linguagem é ensinada de acordo com as obrigatoriedades
do sistema, os meios de comunicação, e, sendo a língua portuguesa a língua da
escola, a língua pomerana é silenciada institucionalmente. Mas não só a escola
provoca essa negação, os meios de comunicação de massa também. Ao não haver
veículos de comunicação na língua pomerana, muitas famílias que desejam preservar
a fala pomerana dos filhos optam por evitar o uso demasiado de tecnologias, pois
constatam que “as crianças não querem mais falar o pomerano porque assistem
televisão, em português” – fala comum entre as mães da comunidade.
E como os meios de comunicação são também um instrumento de produção
do valor social da língua, as famílias vivem uma angústia muito grande, pois sabem
que a vida social será a de negação do direito de exercício da língua materna. Nesse
sentido, o que Roncarati (2008) nos indica é que a condição de grupo cultural se
apresenta em uma situação de risco, pois os instrumentos de reprodução da mesma
não estão postos em ação. O autor acrescenta que a rejeição do aluno em relação
a sua fala intensifica a baixa autoestima do aluno, ocasionada comumente pelo
desprestígio relacionado à sua fala. O pomerano ainda é estereotipado como dialeto,
acirrando o conflito sociocultural de preconceito linguístico. O autor conclui que
os valores atribuídos às variantes linguísticas estão intrinsecamente relacionados
às questões de poder e de dominação que conferem maior valor a determinadas
comunidades de fala e convicção de superioridade da escrita em relação à mesma.
Durante roda de conversa, numa das escolas da Serra dos Tapes, uma das alunas, que
só falava o pomerano quando ingressou na escola, não quer mais falar a língua, pois
disse que era ‘feio’ e que ‘algumas pessoas acham engraçado’.
Apesar da constituição de 1988 ter possibilitado debates acerca de lutas políticas
em relação aos direitos de cultura e língua, e viabilizado o reconhecimento do Brasil
como país pluricultural e plurilíngue, ainda não é efetivo o processo de ocupação
dos espaços como escolares, pois mesmo em municípios que têm a língua pomerana
como co-oficial é rara a presença de educadores falantes do pomerano.
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A esse alunado não é dada opção: ele é obrigado a aprender a língua majoritária do país e a se
tornar bilíngue. [...] É sintomático de o que cabe a quem na sociedade brasileira. E quem deve se
tornar bilíngue é o índio, é o surdo, são os imigrantes e seus descendentes. Esse caso ilustra o pano
de fundo no qual assenta a escolarização de minorias –não só no Brasil, mas no mudo todo: a sua
inscrição em uma relação desigual de forças, de poder. Toda e qualquer reflexão teórica, toda e
qualquer prática educativa que perca isso de vista, corre o risco, a meu ver, de também se perder
na ingenuidade (MAHER, 2007, p. 69).
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autor Bordieu (1996) afirma que as questões que abarcam “sociologia da cultura, a
sociologia da linguagem é logicamente indissociável de uma sociologia da educação”.
A práxis requerida é de avivamento da cultura. As crianças pomeranas têm o direito
de manifestar sua língua materna na escola. Para Bourdieu (1996), a existência do
conceito de cultura legítima inclui o direito de exercício da condição linguística em
mesmo grau de validade social com as demais culturas presentes no espaço.
Ao se restringir práticas de uso da língua materna nos espaços escolares,
ganha poder de existência o padrão linguístico e cultural estabelecido pelo grupo
dominante, no caso, o português. Com isso, os direitos linguísticos são aviltados.
O resultado da falta de prestígio conferido aos diferentes povos no meio
educacional é representado em ações, até mesmo, entre as crianças, fruto de
preconceito e estereótipo em relação à língua e ao modo de vida, produzindo,
muitas vezes, escárnio, o que também corrobora para o abandono da língua materna
por parte de muitos pomeranos e evasão escolar.
A falta de políticas públicas contínuas desconsidera a necessidade de constituição
dos direitos do povo pomerano, de acordo com Thum (2014, p. 2): “Vivemos um
tempo em que emergem novos direitos sociais, que tem base na identidade e nos
processos de luta por garantia de direitos consuetudinários, como um modo de
proteção e promoção dos povos e comunidades tradicionais”. Esse conceito fortalece
a urgência da concretude em salvaguardar sua língua e cultura.
Ações de formação continuada para educadores da comunidade local também
promovem a valorização da língua e da cultura, pois, por meio da formação
continuada, ampliam-se as potencialidades de exercício educativo-didático da
relação cultura local e currículo. Portanto, o patrimônio cultural é promovido
quando o currículo é reflexionado para atender às demandas o grupo cultural que
habita o entorno da escola.
Para Thum (2014, p. 6), “Uma pedagogia que se enraíze a partir da cultura
local e que produza pertencimento do aluno ao seu universo de significações é
fundamental”. Os questionamentos feitos ao decorrer do texto são na verdade fruto
de um somatório de negações feitas às crianças e aos sujeitos que vivenciam o
descaso com seu modo de vida, depreciação da sua fala, fortalecida pelos momentos
em que as crianças sofrem preconceito com sua língua materna, por não fazer parte
da hegemonia dominante e estabelecida como culta e bonita.
Bagno (1999) reforça a ideia de que a língua não está em crise, conforme dito
por alguns gramáticos e a mídia. O que está em crise é o modelo de ensino que
busca a padronização linguística, pois se desconsideram as diferentes manifestações
linguísticas que contemplam a diversidade cultural do Brasil. Por fim, consideramos
necessário fomentar estratégias educacionais que fortaleçam compreensão do
diferente e valorizem os diferentes modos de vida, cultura e línguas maternas.
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REFERÊNCIAS
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1 PNPD-Capes-História Universidade de Passo Fundo, Brasil. Doutora em Cultura e Arte para América Latina
e O Caribe, Universidad Pedagógica Experimental Libertador-Instituto Pedagógico de Caracas,Venezuela. E-mail:
[email protected]. Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de
Nível Superior-Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
209
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
católicas etc.), o que traz consigo que aquelas pessoas curtam a natureza, a arte
funerária inscrita nas esculturas e monumentos, mas de igual modo, muitas vezes,
ficam detidas frente aos epitáfios lendo aquelas escritas que contam outras histórias
desde a saudade da ausência eterna. “Además, se le convertirá en um lugar de la vida,
en um teatro de atividades diversas, a la vez museos, centro comercial de arte y de
“souvenirs”, lugar de celebraciones serenas y divertidas, bautismos y matrimonios”
(ARIÈS, 1984, p. 497) O cemitério, então, de lugar feito para albergar mortos,
inicialmente isolado e tenebroso, passa a ser um sítio de conversações, intercâmbios,
um lugar primordialmente estético a partir da presença da estuaria, que vale a pena
destacar que, sendo arte, também é uma forma de irradiação ideológica (KOTHE,
1986) já que ressalta o poder das personagens significativas (MOLINA CASTAÑO,
2007), ao longo do tempo.
Dentro de todo esse processo, a ideia das construções arquitetônicas dos jazigos,
que formam parte de nossa pesquisa vinculada ao presente ensaio, atinge compor o
que podemos chamar de “tradicional” por estar presente em outros cemitérios da
América Latina, por exemplo, o Cementerio General del Sur2 (Caracas,Venezuela),
El Saucito (San Luis Potosí, México)3, Presbítero Matías Maestro (Lima, Perú),
com profusão de estatuária de corte neoclássica, inclusive em seus materiais de
construção, e igualmente uma estrutura memorial dirigida a heróis pátrios ou locais,
escritores e outros de destaque social e histórico. De igual maneira, a presença de
uma grande incorporação de símbolos pertencentes a sistemas de organização ou
crenças, como o caso de maçonaria, espírita, e por serem laicos, muçulmanos, entre
outros detalhes. Porém, dentro da diversidade que envolve a multiculturalidade,
sobretudo, de cidades fronteiriças, como o caso concreto de São Borja e Santa Vitória
do Palmar4, a concepção da arquitetura funerária tem sua própria marca vinculada
fundamentalmente a aqueles materiais que fazem parte do entorno geográfico
local. Assim, podemos encontrar duas possibilidades a destacar: a) jazigos com uma
estatuária proveniente de lojas, ou seja, feita em série (o que acontece também
com alguns epitáfios), o que remete a uma repetição de alegorias exatamente iguais
tanto no mesmo cemitério quanto em outros distantes do mesmo estado; b) jazigos
construídos com material do próprio cemitério e feitos sob critério pessoal, como
o caso que ressaltamos na figura 1.
2 Ver: GONZÁLEZ MUÑOZ, Jenny. Monumentos funerarios para angelitos en el Cementerio General del Sur.
Una visión memorial sobre la muerte. In: Revista Memória em Rede, v. 7, n. 13, 2015, p. 97-112. Disponível em:
<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/view/6308/4538>. Acesso em 10 jun. 2019.
3 Ver: VÁZQUEZ SALGUERO, David Eduardo; CORRAL BUSTOS, Adriana. Monumentos funerarios del
Cementerio del Saucito: San Luis Potosí, 1889-1916. San Luis Potosí: El Colegio de San Luis, 2004.
4 Limitando com Argentina e com Uruguai, respectivamente.
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Figura 1 - Jazigo de João Baptista de Almeida. Cemitério Municipal de Santa Vitória do Palmar, RS.
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com deus, neste caso cristão, o que pode se explicar por médio da incorporação da
cruz na parte mas alta do túmulo. Esta materialidade é outra forma de ritualização, já
não na forma do mito, mas como a configuração simbólica do terrenal (o cemitério)
e a passagem para o tempo indefinido e eterno (PEREIRA, 2009). Aqui não está
presente o granito, o mármore, o bronze, porque a real valorização consiste na
vinculação com a terra, com o lugar cenário de grande parte da vida do ente cujo
corpo ali descansará em paz, como aqueles que ele mesmo cuidou.
212
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Por sus rasgos esenciales el epitafio se distingue del elogio fúnebre por dos razones
fundamentalmente: la primera de ellas relativa a la mayor extensión de este último, y la segunda,
porque en general el elogio fúnebre era compuesto para ser insertado en un texto histórico o
biográfico (OSTOS; ESPINOZA URETA, 2015, p. 33-34).
Dentro de todo esse processo cultural, além dos elogios e qualificações morais,
está a característica do epitáfio como texto que demostra a existência da diversidade
étnica numa localidade, o que pode ser visto desde vários elementos, sendo o idioma
o traço mais significativo, tanto por sua configuração de coesão grupal quanto
por seu sentido de pertença à cultura e ao país original do ente falecido, quem,
sem dúvida, é parte de uma imigração. Assim, no Cemitério Vera Cruz de Passo
Fundo, encontra-se o túmulo de Wei Ming Chien, no qual se podem observar os
dados identificatórios (nomes e datas), na grafia portuguesa, e um epitáfio maior
em grafia chinesa. O fato da incorporação do idioma materno na configuração
de um texto funerário, que forma parte de um contexto cultural diferente, aponta
ao estabelecimento do indivíduo social à solidificação de sua identidade. Essa
identidade própria não deve ser submetida à implantação de outra cultura, ou seja,
não existe cabimento para pensar numa possível transculturação (ORTIZ, 1987),
vista como a minimização de uma cultura por outra supostamente melhor. Neste
sentido, a língua, como elemento de coesão social, tem a faculdade de unir grupos
por compartilhar os mesmos códigos, por isto, grupos distintos se agrupam numa
espécie de “clanes” ou clubes nos quais se sentem com a liberdade de se expressar
à vontade, sem ser observados como “diferentes”, porque muitas vezes o distinto é
“feio” (ECO, 2015) e, portanto, não bem aceitado. “En todo sistema cultural, sus
prácticas, patrones y códigos están sujetos a un número corto o amplio de principios
que se expresan a través del lenguaje, el cual simultáneamente, ejerce coerción
sobre las ideas, las prácticas y los patrones de cada cultura” (RODRÍGUEZ SALA-
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Figura 2 - Epitáfio descritivo de possível imigrante asiático. Cemitério Vera Cruz Passo Fundo, RS.
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Figura 3 - Vista de jazigo de possíveis imigrantes de origem árabe. Cemitério Nossa Senhora de Conceição, São Borja,
RS.
TALVEZ EPÍLOGO
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dar olhada melhor (OSTOS; ESPINOSA URETA, 2015), o que trouxe consigo
um novo hábito no caminhante dentro do qual igualmente esteve a reverência para
o ente defunto e uma espécie de tristeza sobre seu destino, mas um destino do
qual ele mesmo, ainda vivo, nunca vai poder escapar. Com a transformação das
geografias e das arquiteturas urbanas, o epitáfio terá um lugar quase de privilégio
porque estará encaixado num lugar de memória específico, o cemitério, de maneira
que ele também experimentará mudanças tanto em sua linguagem quanto em
seu tratamento, enfoque e direção. Assim, o texto funerário, muitas vezes, passa a
ser um texto literário, carregado de poesia, elogios, louvores, coexistindo aqueles
de tipo religioso: “Senhor é refúgio para os oprimidos, uma torre segura na hora
da adversidade” (Salmos 9:9); amoroso: “Tributo de amor conjugal”; informativo:
“faleceu desastradamente”; de denúncia: “foi queimada e assassinada”; de consolo
perante a adversidade: “as mãos que te tiraram a vida jamais matarão o amor
em nossos corações”; de nostalgia: “saudades de seus familiares”; de dor infinita:
“lágrimas de dor de tua mãe”; de ofício: “o maquinista”; de grupo: “médium do
Centro Espirita Gadalow”; moral: “foi bom pai bom amigo e bom cidadão”; de
lembrança sobre o inevitável da morte: “éramos como vocês vejam em que estado
estamos”; e evidentemente aqueles de nossa mostra neste artigo: os pertencentes a
imigrantes – “nasceu no Reino de Portugal”. Enfim, a morte é o corpo que ali jaz,
a alma que vai em paz, “o silencio”.
O epitáfio como texto concebido pelas sociedades evolui com elas mesmas,
por isso vai incluindo, dentro de sua estrutura, modelos de conformação histórica
contemporânea desde seu próprio desenho. Um fato bem interessante é o caso
da fabricação do epitáfio em massa, ou seja, a comercialização de um texto,
originalmente feito para identificar quem jaz ali no túmulo em restos mortais, para
logo ir se transformando em escrita mais elaborada, inclusive elaborada pelo próprio
defunto ainda vivo (Rilke, por exemplo), até chegar a dito epitáfio em série que não
necessariamente marca uma descontextualização ou falta de interesse por parte do
emissor, porque mesmo parecendo distante pode abarcar o que se precisa expressar
sem tanta ganância literária.
Ao longo dos tempos, a configuração dos túmulos tem mudado e inclusive
deixado de existir para dar lugar à cremação sem lugar material de memória, mas
o epitáfio tem sobrevivido sendo uma importante ferramenta para a eternização
da memória daqueles que morrem em outras terras, muitas vezes bem distintas às
próprias, em outras culturas e idiomas.
REFERÊNCIAS
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O campo de estudo que envolve o trato com a morte bem como os cemitérios
tem sido cada vez mais ampliado e consolidado entre os pesquisadores(as)
brasileiros(as), nas últimas décadas, o que podemos perceber pela grande quantidade
de publicações de obras, artigos e revistas que se propõem às investigações nessas
linhas de pesquisa2. Portanto, o presente artigo tem o intuito de contribuir com os
estudos no campo da História e do patrimônio cultural, para isso utilizando como
objeto de pesquisa os cemitérios luteranos do campo, no município de Pelotas, no
Rio Grande do Sul, na atualidade.
Desse modo, o trabalho pretende apresentar um viés do que está sendo realizado
no projeto Cemitérios do Campo: História, patrimônio e religiosidade3, projeto que, por
sua vez, visa a identificar, mapear e analisar os cemitérios rurais no município de
Pelotas. O estudo centra-se na perspectiva de investigação de cemitérios afastados
do centro urbano, pois pouco se tem trabalhado nessa linha em contraponto a uma
gama de trabalhos encontrados sobre os cemitérios centrais e urbanos. Logo, para
compreender os cemitérios do campo pelotenses, é necessário compreender suas
formações históricas, pois eles estão incluídos num processo histórico no qual a
configuração social atual descende da imigração de povos europeus, durante o século
XIX, para o Brasil. Em vista disso, é importante salientar a ampla diversidade social
1 Licenciando em História pela Universidade Federal de Pelotas; Bolsista de Iniciação Científica financiado pelo
CNPq; e-mail: [email protected].
2 Para esse trabalho, algumas das obras com a qual dialogamos mais diretamente: REIS, 1952; ARAÚJO, 2008;
BELLOMO, 2008; BLUME,2015; BORGES, 2002; CYMBALISTA, 2002; MOTTA, 2009;
3 Projeto coordenado pelo Professor Doutor Mauro Dillmann, vinculado ao departamento de História, da
Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), e ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPEL. E-mail:
[email protected]
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4 Entende-se colônia como a região rural na qual foram inseridos os grupos de imigrantes europeus e seus
descendentes, ao longo do século XIX, na região Sul do Brasil.
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Dein schweres Leiden hat ein Ende, erlöst bist du von deiner Qual,
Wir drücken deine lieben hände und grülsen dich zum letzten Mal.
Ruhe sanft, o liebe, gute Mutter, schlaf wohl denn, gute Nacht!
Dich drückt nicht mehr Sorg’und Kummer, der herr hat alles wohl gemacht.
O liebste Mutter schlaf in Frieden, schlummre sanft in stiller Gruft,
Ruhe sanft, bis Gott dich ruft. (Projeto Cemitérios do Campo, 2019).
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Figura 5: Túmulo do Cemitério Comunidade Dona Figura 6: Túmulo do Cemitério da Comunidade São Pedro
Júlia, 4º distrito, Triunfo. da Chicuta Oliveira, 4º distrito, Triunfo.
Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019. Fonte: Projeto Cemitérios do Campo, 2019.
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Figura 7: Túmulo do Cemitério da Comunidade Luterana União Picada Ritter, 6º distrito, Santa Silvana.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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231
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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4 Atualmente, existem defensores tanto da primeira quanto da segunda terminologia. Em defesa da segunda, entre
vários, coloca-se Daniel Aarão Reis e sua obra Ditadura e Democracia no Brasil: Do golpe de 1964 à Constituição de
1988, editora Zahar, 2014. Quanto àqueles que advogam a primeira, posicionam-se Pedro Pomar, Armando Boito
Jr., e outros. Ver os artigos O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar, disponível em: <https://www.
brasildefato.com.br>, e Os civis vestiram a farda?, in: Jornal da Unicamp, Campinas, 31 de março a 6 de abril de 2014.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Para los arquitectos, el objetivo del monumento era causar impacto. El monumento es de estilo
neoclásico, pero escapa a lo común, al “evitar la utilización del viejo concepto de una estatua sobre
un pedestal, que todo el mundo conoce. Es preciso, por lo tanto, que cada brasileño cuelgue este
cuadro en la pared de su memoria y que, a partir de ahora, sigamos un caminoo de más justicia
y libertad en nuestro país [Declaraciones de Eric Perman, arquitecto del monumento, Jornal do
Comércio, 28 de abril de 1988]. Según el grupo impulsor del monumento, se trataba de retratar
la tortura, pero sin revanchismo: “de ahí la idea del marco, dando la impresión de un cuadro que
pertenece al passado”. El arquitecto explica que las dos láminas representan el corte, la tortura, en
tanto el cable de acero que sostiene al torturado simboliza la fuerza mayor, el dominio y el poder
que dejan impotente a la víctima. Observa que el marco también significa el límite, la falta de
libertad y de democracia, la restricción del espacio. “La figura está en el espacio con liviandad, a
pesar del peso del tema. Da la impresión que el hombre torturado vuela. En verdad, renace en el
dolor de la posición uterina” [Paulo Fernando Craveiro, Caderno de Política, 26 de agosto de 1993].
La vuelta a la posición fetal simboliza, asimismo, el inicio de la vida. Nuevamente, pasado y futuro
se conectan (BRITO, 2003, p. 120 – aspas no original, interpolação nossa).
5 A Praça Padre Henrique é uma praça atípica; não possui os objetos tradicionais desse tipo de espaço. Ela foi idealizada
e executada como “espaço de memória”, não de lazer. Padre Antônio Henrique Pereira Neto era auxiliar de D. Hélder
Câmara (então Arcebispo das cidades de Recife e Olinda, que denunciava, principalmente no exterior, o emprego de
violência pela ditadura brasileira contra os opositores). Ele foi sequestrado, torturado e assassinado na madrugada do dia 27
de maio de 1969, em Recife, por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e por agentes da polícia civil
de Pernambuco, sendo seu corpo encontrado em lugar ermo da cidade universitária da UFPE com marcas de sevicias. Cf.
<http://memoriasdaditadura.org.br/memorial/antonio-henrique-pereira-neto-padre-henrique/>.
6 Posteriormente, outros monumentos foram construídos pelo país. O Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos
Políticos, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, inaugurado no dia 8 de dezembro de 2014; o Monumento aos Mortos e
Desaparecidos Políticos, no Campo de Pólvora, cidade de Salvador/BA, em 28 de agosto de 2015; Monumento aos Mortos e
Desaparecidos na Luta Contra a Ditadura Militar, em Goiânia/GO, inaugurado em 27 de agosto de 2004, são exemplos.
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8 Autor de cinco volumes: A ditadura envergonhada (v. 1), A ditadura escancarada (v. 2), A ditadura derrotada (v. 3), A
ditadura encurralada (v. 4) e, finalmente, A ditadura acabada (v. 5). O volume 2 é o que trata com minúcia da tortura,
embora o tema perpasse toda a obra.
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Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio,
o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade.
[...] A tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade
dos militares da época e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos
ditatoriais. [...] A tortura tornou-se matéria de ensino e prática rotineira dentro da máquina militar
de repressão política da ditadura por conta de uma antiga associação de dois conceitos. O primeiro,
genérico, relaciona-se com a concepção absolutista da segurança da sociedade. Vindo da Roma
antiga (“A segurança pública é a lei suprema”), ele desemboca nos porões: “Contra a Pátria não
há direitos”, informava uma placa pendurada no saguão dos elevadores da polícia paulista.9 Sua
lógica é elementar: o país está acima de tudo, portanto tudo vale contra aqueles que o ameaçam.
O segundo conceito associa-se à funcionalidade do suplício. A retórica dos vencedores sugere uma
equação simples: havendo terroristas, os militares entram em cena, o pau canta, os presos falam, e
o terrorismo acaba (GASPARI, 2014, p. 13, 14, 19).
9 Percival de Souza, Autópsia do medo, p. 183. Esta nota faz parte do texto transcrito.
10 Sobre catástrofe, este artigo assume a definição elaborada por Nestroviski e Seligmann-Silva (2000, p. 8), que,
partindo das origens etimológicas do termo (do grego kata + strophé = “virada para baixo”; ou outra tradução
possível: “desabamento”, ou “desastre”; ou mesmo o hebraico Shoah), definiram-na como “evento que provoca
trauma, outra palavra grega, que quer dizer ‘ferimento’”. Essa definição valoriza a percepção dos sujeitos, não o
acontecimento em si; o decisivo não será a dimensão do evento, mas sua repercussão pelos sujeitos.
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Por monumento, no sentido mais antigo e original do termo, entende-se uma obra criada pela mão
do homem e elaborada com o objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das
gerações futuras algumas ações humanas ou destinos (RIEGL, 2014, p. 31).
O sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”,
“lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do seu propósito é
essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção,
uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado
por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas
rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças (CHOAY, 2006, p. 17-18, aspas da autora).
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inclusive a vida em nome da liberdade (Amparo Araújo – Coordenadora do Tortura Nunca Mais de
Pernambuco).
É muito forte (Elzita Santa Cruz, mãe do desaparecido político Fernando Santa Cruz).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fácil dizer que devemos esquecer tudo em nome da conciliação nacional, enquanto existem tantas
famílias que buscam seus filhos sem saber se estão vivos ou onde estão, se estão mortos e em
quais cemitérios foram enterrados. Não queremos vingança, mas sim justiça (Rosalina Santa Cruz,
cujo irmão, Fernando, foi preso em 1974 e desde então está “desaparecido”) (FREMBERG, 2015).
12 Para essa importante relação, impossível de ser tratada no limite espacial deste trabalho, recomendamos a obra
Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, organizada por Stella Bresciani e Márcia Naxara,
2. ed., Campinas, SP, editora da Unicamp, 2004.
13 Sobre a expressão entre aspas, ver Ribeiro Jr. (2019).
242
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INTRODUÇÃO
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mais intenso a partir de 1898, quando a Liga Operária Internacional sofreu uma
cisão, entre um grupo liderado por Francisco Xavier da Costa e outro por José Rey
Gil e José Tolentino. Isso fez com que a LOI se transferisse para a Rua Concordia
(atual José do Patrocínio), n. 55 (post. 205) (PETERSEN, 2001. p. 123-129). Para
esta mesma área se transferiram, também, no ano de 1902, a Sociedade Floresta
Aurora (para o mesmo endereço) e o jornal O Exemplo (Rua Concórdia, n. 2;
post. 20), respectivamente o principal clube social negro e o principal jornal desta
comunidade, consolidando esse bairro como espaço organizativo (O Exemplo.
Porto Alegre, p. 1, 13 dez. 1902 e p. 1, 24 jan. 1903; A Federação. Porto Alegre, p. 2,
21/11/1903; MÜLLER, 2013, p. 77-136).
Durante as comemorações do dia 13 de maio de 1910, um grande cortejo foi
formado por sociedades com forte presença negra como a Floresta Aurora, a Lyra
Oriental e o jornal O Exemplo, além da FORGS e outros sindicatos operários. O
préstito saiu da Rua da José do Patrocínio em direção ao arrabalde do Menino Deus,
tomando a Rua 13 de Maio (atual Getúlio Vargas) e a Rua José de Alencar, subindo a
Estrada do Laboratório (Rua Correia Lima) até a Rua Santa Cruz (Rua Cleveland),
onde seria construído o Asylo 13 de Maio, destinado ao abrigo de trabalhadores
que haviam sido escravizados. O retorno se deu por caminho similar, mas o cortejo
terminou pela Rua João Alfredo até o Areal da Baronesa, na Rua Miguel Teixeira, n.
28A (post. 102), onde se localizava a sede da Lyra Oriental (O Exemplo. Porto Alegre,
p. 1-2, 2 mai. 1910). Assim como o trajeto de 1º de Maio, esta ação tinha por função
marcar a presença das sociedades negras e do movimento sindical naquele espaço,
fazendo com que a caminhada dos militantes fosse também um sinal de ocupação
do espaço.
Quanto à presença sindical especificamente, ela se tornou bem maior depois da
Greve de 1906, pois foi nessa ocasião que surgiu o projeto da Federação Operária
do Rio Grande do Sul (FORGS), cujo endereço de correspondência e posse da
diretoria se deu na casa de Francisco Xavier da Costa, na Rua Cel. Genuíno, n. 46
(post. 329) (SCHMIDT, 2004, p. 207-214). A Cidade Baixa também foi o espaço
organizativo de categorias específicas, como os padeiros da União dos Empregados
em Padaria, que ocuparam diferentes sedes na Rua Lopo Gonçalves no início da
década de 1910 (Correio do Povo. Porto Alegre, p. 4, 16 jul. 1911; A Voz do Trabalhador,
Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912). No final deste decénio, numa zona contígua à
Cidade Baixa, os trabalhadores dos bondes e dos serviços de eletricidade vão se
reunir no Sindicato da Força e Luz, na Rua da Azenha, n. 172 (post. 320). O grupo,
de orientação libertária, se caracterizava por rivalizar com os militantes da FORGS
(PETERSEN, 2001, p. 367).
Na década de 1900, também existiu uma expansão das organizações em direção
ao leste, para o arrabalde do Bom Fim. Depois de 1907, uma série de associações e
a própria FORGS deslocaram suas atividades para o Salão Santa Catharina, na Rua
da Aurora (atual Rua Dr. Barros Cassal), n. 168 (post. 790) (A Democracia, Porto
Alegre, p. 1, 16 jun. 1907; O Alfaiate, Porto Alegre, p. 4, 12 out. 1907; Correio do
Povo, Porto Alegre, p. 4, 12/8/1909 e p.4, 18/4/1909; Echo do Povo, Porto Alegre, p.
3, 25/4/1910). A partir da conquista da hegemonia do movimento operário pelos
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anarquistas em 1911, a FORGS passou a alugar uma sede própria na Rua Santo
Antônio, n. 157 (post. 804), também no arrabalde do Bom Fim, o que permitiu uma
grande concentração de sindicatos num mesmo espaço físico, ao mesmo tempo
em que permitiu a consolidação dessa região como um território da militância
libertária (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 1, 17 fev. 1911; A Voz do Trabalhador,
Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912). Nessa ocasião, avançou o projeto (que não se
concretiza) de construção de um Atheneu Operário no Campo da Várzea, no atual
Parque Farroupilha (LUCAS; PETERSEN, 1991, p. 185-188), o que demonstrava
um desejo de consolidar não apenas a expansão, mas também uma presença mais
perene na periferia da cidade.
Nesse mesmo período, desenvolveram-se organizações operárias na Colônia
Africana, região contígua ao Bom Fim, que se caracterizava pela grande presença de
trabalhadores negros (ROSA, 2011, p.1-20). Nessa região, havia uma forte presença
de operários empregados nas pedreiras que se localizavam próximas daquele arrabalde
(SILVA JR, 1994, p. 97-99). Foi ali onde se fixou, no ano de 1916, a Escola Moderna,
na Rua Ramiro Barcellos, n. 197 (post. 1548) (A Federação, Porto Alegre, p. 1, 17
mai. 1917), instituição em que atuaram, como Professores, Lyra Pinto Bandeira,
Polidoro Santos e Djalma Fettermann, constituindo-se num espaço de difusão do
pensamento libertário em Porto Alegre. Durante a Greve Geral de 1917, o Salão
União e Progresso, na Rua Casemiro de Abreu, n. 49 (post. 310), foi o principal
espaço de reunião da Liga de Defesa Popular, entidade responsável pela coordenação
do movimento (SILVA JR, 1994, p. 290). Durante a década de 1920, a Colônia
Africana se mantém como um dos refúgios do sindicalismo de resistência em Porto
Alegre, principalmente em sua expressão anarquista. Nessa região se estabeleceram,
entre 1924 e 1927, a sede da FORGS, na Rua Esperança (depois Miguel Tostes),
n. 102 (post. n. 700), o Centro Libertário Feminino, liderado por Alzira Werhauser,
na Rua Esperança, n. 74 (post. 596), e a Federação Operária Local de Porto Alegre
(FOLPA), na Rua Castro Alves, n. 645 (O Syndicalista, Porto Alegre, p. 1-6, 1 fev.
1924; p. 3, 24 out. 1925; p. 4, 25 nov. 1926 e p. 8, fev. 1927). Destaca-se aqui o Salão
Modelo como ponto de encontro privilegiado para os trabalhadores daquela região.
Dando continuidade na expansão das atividades do movimento para o norte da
cidade, a partir da Greve de 1906, surge com força a ação dos militantes no arrabalde
dos Navegantes. Esta expansão também acompanhou o caminho das indústrias, pois
ocorreu num momento em que a atividade fabril se fixava naquela área da cidade.
Em 1907, a União Operária Internacional, dos militantes anarquistas, mudou sua
sede para a Avenida Missões, n. 26 (post. 98) no Salão 1º de Maio, argumentando
que estava em busca dos espaços onde viviam os verdadeiros operários industriais (O
Alfaiate, Porto Alegre, p. 4, 12 out. 1907). O Salão, a propósito, se consolidou como
um dos principais locais de reunião do arrabalde dos Navegantes4. O desejo político
de avançar territorialmente as atividades do movimento pode ser observado pelo
trajeto do 1º de Maio de 1907, quando a caminhada iniciou-se na Rua Ramiro
4 O Salão 1º de Maio também é identificado como salão da Avenida Missões ou da esquina da Avenida Germânia.
A partir da leitura dos Livros de Imposto por Valor Locativo, foi possível identificar a taverna de Henrique Lauenstein
(Missões, n. 26) como endereço mais compatível com esta localização.
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Barcellos, para tomar a Rua Voluntários da Pátria rumo ao arrabalde dos Navegantes,
entrando pelo bairro fabril através da Avenida Germânia (Cairú) até o arrabalde de
São João, tomando a Rua Benjamin Constant e a Cristóvão Colombo até chegaram
à Chácara de Germano Petersen, no Mont’Serrat; depois, o caminho de volta seguiu
até o arrabalde da Floresta novamente (A Democracia, Porto Alegre, p. 1, 9 jul. 1907).
É muito significativo que o grande dia do movimento operário se iniciasse e se
encerrasse dentro dos bairros proletários, sequer aproximando-se do Centro da
cidade.
Durante a Greve de 1917, o Navegantes foi palco de diversas reuniões no Salão
During, na Avenida Brazil n. 143 (post. 548) e no Salão 1º de Maio, na Avenida
Missões. Esta greve foi a maior das mobilizações trabalhistas na Primeira República,
contando com a participação de diversas categorias e forte presença feminina,
principalmente das tecelãs que trabalhavam neste arrabalde e fundaram o Centro
Feminino dos Navegantes. Nessa região, surgiu o primeiro grupo comunista da
cidade, a União Maximalista, fundada por Abílio de Nequete em sua barbearia,
na Rua Conde de Porto Alegre, n. 55 (post. 468) (O Syndicalista, Porto Alegre,
p. 4, 2 ago. 1919). Nos anos 1920, essa área se constituiu em outro refúgio (junto
com a Colônia Africana) para os militantes do sindicalismo de resistência, para
onde se deslocaram a sede da FORGS, para a Rua do Parque, n. 112 (post. 460), a
União dos Ofícios Vários, dos comunistas, na Rua do Parque, n. 74 (post. 310) e a
Sozialischt Arbeiter Verein, dos anarquistas alemães, na Avenida Minas Gerais, n. 12
(atual Avenida Farrapos) (Der Freie Arbeier, Porto Alegre, p. 7, 19 ago. 1922; Hammer
und Sichel, Porto Alegre, p. 3, 7 jun. 1924, p. 3; O Syndicalista, Porto Alegre, p. 3, 24
out. 1925).
Além destes arrabaldes, também foram palco de importantes ações organizativas
o Parthenon, a Tristeza, o São João, a Várzea do Gravatahy e outras áreas com presença
de trabalhadores organizados. Depois de identificados (pelo menos de forma inicial)
onde estes territórios se conformaram durante a Primeira República, é preciso dar
um salto temporal para a atualidade e analisar como as marcas desta longa história
de luta sobreviveram no tempo presente.
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janela da Rua Vasco Alves, próximo à Usina do Gasômetro, uma delas (a de n. 341),
apesar das intervenções posteriores, ainda é o mesmo endereço da Secretaria do
Grêmio de Artes Graphicas de 1905, um dos principais locais da socialdemocracia
em Porto Alegre (A Democracia, Porto Alegre, p. 2, 21 mai. 1905; Koseritz Deutsch
Volkskalender, Porto Alegre, p. 167, 1915)5.
Outro bairro com grande quantidade de edificações “sobreviventes” ligadas à
organização do operariado é o bairro Floresta. Esta região da cidade foi o centro
da mobilização sindical durante a Primeira República; mesmo assim, a maior parte
destes endereços não possui qualquer tipo de identificação que faça uma ligação
com a história deste movimento. A casa de Theo Wiederspahn, na Rua Comendador
Coruja, n. 337, é considerada um monumento arquitetônico, mas quase ninguém o
relaciona com a HandwerkVerband (Associação dos Artesãos) da qual foi sede a partir
de 1930. Na Rua Comendador Azevedo existem dois endereços (n. 518 e n. 444)
que foram sede da Allgemeiner Arbeiter Verein (Associação Geral dos Trabalhadores),
durante os anos 1910. Esse último, inclusive, era a sede do Burguer Club (depois
Sociedade Flórida), um dos principais clubes sociais daquele arrabalde (A Voz do
Trabalhador, Porto Alegre, p. 4, 11 ago. 1912; Correio do Povo, Porto Alegre, p. 2, 8 jan.
1915; Das Handwerk, Porto Alegre, p. 9, jan. 1931). Curiosamente, em seu frontão,
ainda sobrevivem duas mãos enlaçados, símbolo da solidariedade, como um indício
persistente de uma memória quase esquecida. Em condições de maior precariedade
e anonimato está a antiga Livraria Internacional de Friedrich Kniestedt, em frente à
Estação Rodoviária, na Rua Voluntários da Pátria, n. 1195. Hoje, o endereço abriga
uma fábrica de sacos de aniagem, mas, no passado, o prédio foi centro de difusão do
anarquismo em Porto Alegre, tendo abrigado a sede da Federação Operária Local;
foi igualmente o núcleo da luta antinazista na cidade, onde se iniciou a organização
da Liga dos Direitos Humanos (Liga Für Menschenrechte), em 1933 (KNIESTEDT,
1989, p. 139-157). Também precária é a situação do prédio na Rua do Parque, n.
460, que foi sede da FORGS e abrigou o 2º Congresso Operário Regional em
1925 (O Syndicalista, Porto Alegre, p. 3, 24 out. 1925 e p. 8, fev. 1927). Este endereço
está localizado em área contígua ao bairro Floresta, região correspondente ao antigo
arrabalde dos Navegantes (atualmente bairro São Geraldo). O prédio está sem uso e
em estado precário, sendo parte importante da história do movimento operário que
está em risco de desabamento ou demolição.
Na Cidade Baixa, outra região de desenvolvimento ativo das organizações de
classe, também se encontram edificações que deveriam ser considerados lugares de
memória. Na Rua Lopo Gonçalves, nos números 103 e 566, ainda existem as casas
que sediaram a União dos Empregados em Padaria, no início da década de 1910
(Correio do Povo, Porto Alegre, p. 1, 17 fev. 1911; A Voz do Trabalhador, Porto Alegre,
p. 4, 11 ago. 1912). Essa última está muito próxima da Travessa dos Venezianos, local
histórico importante, pois preserva exemplos de moradias populares do começo
do século XX. Neste caso, a sede dos padeiros poderia ser integrada a um circuito
de memória mais amplo daquele bairro. Em direção ao Parque Farroupilha, fica
5 Em relação à sede do Musterreiter, existe uma foto desta taverna no compêndio histórico Riograndense
Musterreiter, publicado em 1913.
252
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6 Apesar da correspondência do jornal ser endereçada a Francisco Grecco, a pedreira, localizada na antiga Rua
Caldre Fião, está registrada nos Livros de Imposto por Valor Locativo e nos registros dos Livros de Imposto Predial
como sendo de Jesus Ribas.
253
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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Leopoldo: Editora Unisinos, 2005 (original de 1924).
DE PAULA, Amir El Hakim. A relação entre o Estado e os sindicatos sob uma
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Kniestedt também foi um imigrante alemão. Revista Brasileira de História, São Paulo:
ANPUH, v. 6, n. 11, 1985/1986.
KNIESTEDT, Friedrich. Memórias de um imigrante anarquista.Tradução, Introdução,
Epílogo e Notas de Rodapé: René E. GERTZ. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia e
Espiritualidade Franciscana. 1989.
LONER, Beatriz Ana. O projeto das ligas operárias do Rio Grande do Sul no início da
República. Anos 90, Porto Alegre, v. 17, n. 31, jul. 2010.
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gaúcho (1870-1937). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Editora Tchê, 1991.
MÜLLER, Liane Susan. As Contas do Meu Rosário São Balas de Artilharia. Porto
Alegre: Pragmatha, 2013.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, n.
10. São Paulo: PUC-SP, 1993, p. 13.
ROSA, Marcus Vinicius de Freitas. Colônia Africana, arrabalde proletário: o cotidiano
de negros e brancos, brasileiros e imigrantes num bairro de Porto Alegre durante as primeiras
254
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su perfil como atractivo turístico. De hecho, recibe entre 250 y 280 mil turistas y
alrededor de 600 mil visitantes por año (MINTUR, Anuario estadístico 2018)3.
El proceso de patrimonialización del bhcs supuso un significativo cambio en
relación con las maneras en que el lugar ha sido habitado. En efecto, de acuerdo
con el último censo nacional de 2011, la población estable del barrio ascendía
aproximadamente a 188 personas, sin embargo, antes del inicio de las obras de
patrimonialización eran unos 1550 habitantes (INE, 1963). Esta disminución de la
población, que puede reconocerse desde la década de 1960 a la actualidad, da cuenta
de los efectos que los procesos de patrimonialización, y la aceleración del consumo
turístico a ellos asociada, determinan en algunos territorios, si bien este aspecto es
de singular importancia en el sitio analizado, se ha entendido que no hace al eje de
este artículo abundar en su desarrollo4.
EL PROCESO DE PATRIMONIALIZACIÓN
El Sur. Así se llama el barrio, que desde el punto de vista estético representa un montón de
escombros y desde el punto de vista higiénico, un foco permanente de infección.
El Sur, el viejo barrio del sur, echado sobre las murallas históricas es como un atorrante, melenudo, y
sucio, harapiento, inútil para sí y para los demás. No cabe a su favor la consideración de que guarda
ruinas de casas donde vivieron patricios venerables, ni tampoco la que asila a un pobrerío que no
encontrará mañana albergue tan barato. Y no caben esas consideraciones porque esas casuchas
que otrora honraran Artigas y Lavalleja y que aún antes sirviese de morada a nobles españoles e
hidalgos portugueses, han sido después y comúnmente refugio de ganapanes, lupanares, muchas
veces domicilio de malsanos sujetos. Pedro Oroná (La Colonia, 28 de marzo de 1907).
3 En los estudios turísticos se distingue turista de visitante: el primero es quien, en su viaje, pernocta en el destino
fuera de su lugar de residencia, mientras que al hablar de visitantes se hace referencia tanto a quienes solo visitan
por un día un sitio como a quienes pernoctan en él.
4 Para mayor desarrollo de este asunto ha sido tratado, al menos en forma general, por XXXX en otras publicaciones.
5 La primera se asocia más directamente al proceso de recuperación patrimonial del área, que determinó la
expulsión de la población histórica (perteneciente a sectores populares) durante la década de 1960 y primeros años
de la siguiente y su sustitución por nuevos sectores sociales (principalmente de clase media, muchos extranjeros)
que instalaron sus viviendas en el viejo barrio popular. En tanto que la segunda gentrificación o expulsión de
esa población que se había instalado en las décadas de 1970 y 80 en el barrio, estuvo asociada a la progresiva
turistización del área, orientada a la actividad comercial.
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Sin embargo, poco tiempo después, empiezan a ser visibles las muestras iniciales
de interés “patrimonialista”. Desde1917, en que, dos jóvenes arquitectos, Mauricio
Cravotto y Enrique Durán Guani publicaron un breve informe sobre el estado de
la plaza y, más intensamente en la década de 1920, se produjeron varios artículos,
proyectos de ley e iniciativas de la sociedad civil que, sin embargo, no llegaron a
cuajar en la protección del lugar.
El aspecto general de la Ciudad Vieja, al recorrer sus calles, es sugestivo; todavía quedan algunas
notas interesantes que permiten y estimulan a la imaginación a reconstruir el ambiente, si no
propiamente del Fuerte Portugués, sí el ambiente postcolonial; el primitivo ambiente patricio,
derivado del primero colonial; la planimetría general, el pavimento de algunas callejas, uno que
otro ejemplar de arquitectura portuguesa y española, viviendas modestas o ejecutadas con restos
de ambas, las ruinas de la Comandancia, los restos de la casa del virrey, los muros negruzcos del
convento de San Francisco Javier, complementado todo ello por las masas informes de las baterías
de San Pedro y Santa Rita y por los trozos despedazados de murallas, que se hace sentir más aún
por la tranquilidad, quietud y silencio que imperan en la histórica ciudad (CAPURRO, 1928, p. 106).
Si el Estado adquiriese ese núcleo de edificación colonial de escaso costo, podría transformarlo en
un lugar de singularísimo interés. Sin modificar su estructura edilicia y arquitectural, restaurando
inteligentemente algunas casas, conservando todo lo existente de valor tradicional, demoliendo las
construcciones que no sean de la época colonial y realizando una obra de higiene indispensable,
se obtendría la finalidad que persigo con la iniciativa de esta ley. El barrio quedaría separado de
la ciudad moderna de Colonia por una ancha calle circundante y una verja de estilo que permitiera
una vigilancia eficaz. […] tratando así de evitar que el abandono, la ignorancia o un mal entendido
[sic] concepto de progreso completen la obra del tiempo, destruyéndola definitivamente. […] En
el interés de evitar que se consumen esos hechos que harían irremediable –para más adelante–
cualquier gestión o iniciativa tendente al restablecimiento de la ciudad del siglo XVIII […]
(CAPURRO, 1928, p. 278-280).
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Al exhibirse las excavaciones que dejaron al descubierto los vestigios de la puerta y el puente
levadizo de la histórica ciudadela de Colonia, las autoridades municipales comprometieron ante el
pueblo que serían restauradas para la permanencia evocativa
[…] Han transcurrido casi 7 años de aquella solemne ceremonia. Con el tiempo la inicial excavación
tuvo el decoro de ser rellenada cubriendo una de las viejas piedras sobre la cuales giraban los
goznes del puente levadizo. Otras seculares piedras permanecieron tiradas sobre el predio con
ignorancia de su venerable pasado (LA COLONIA, 1968, p. 1).
La zona donde se realizaron las excavaciones estaba ocupada por viviendas, por
lo que las propiedades próximas al área, donde más tarde se haría la reconstrucción
parcial de la muralla, fueron afectadas por la aplicación de la resolución del Poder
Ejecutivo 989 de 1976, luego enmendada por una posterior, la 1457 del mismo
año, por la que se declaró al bhcs Monumento Histórico Nacional. De acuerdo
con esta resolución los padrones 159, 170, 171, 172 y 2149 “quedan afectados por
las servidumbres que resulten impuestas por la calidad, características y finalidades
de los bienes, de acuerdo con el artículo 8º de la ley 14.040, de 20 de octubre de
1971”7 (Res. 1457/076), estos predios fueron adquiridos en diciembre de 1972 por
el Estado en aplicación de los criterios de expropiación por compra definidos en la
ley 14040 (MEC, 1994, p. 25).
Si bien este proceso se articuló aplicando la normativa legal, cabe considerar
que, para varias familias de la zona, implicó el traslado (prácticamente expulsión)
de sus viviendas cuyo mantenimiento resultaba imposible de afrontar por los
moradores. Aunque en el marco del desarrollo del terrorismo de Estado en Uruguay
en el contexto de la última dictadura, esta forma de violencia contra la población
pueda resultar muy menor, parece oportuno, cuando menos, hacer una mención al
fenómeno.
A partir del retorno de la democracia en Uruguay, en marzo de 1985, se
inició efectivamente el proceso para la presentación de la candidatura del bhcs para
su inclusión en la Lista del Patrimonio Mundial, que se concretó, finalmente, en
diciembre de 1995. Este proceso dio continuidad a la serie de obras que se habían
emprendido desde comienzos de la década de 1970, e intensificado hacia 1980 en
ocasión de la celebración del 300 aniversario de la fundación de la plaza. De este
modo, durante la segunda mitad de la década de 1980 y comienzos de la de los 90
se realizaron diversas intervenciones en edificios que se integraron a la ruta de los
museos de la ciudad (tal el caso del museo del Azulejo, en 1986, o el museo Casa
Nacarello, en 1993) así como excavaciones arqueológicas en el espacio urbano (el
7 El mencionado artículo indica que las “servidumbres serán: 1.o La prohibición de realizar cualquier modificación
arquitectónica que altere las líneas, el carácter o la finalidad del edificio. 2.o La prohibición de destinar el
monumento histórico a usos incompatibles con las finalidades de la presente ley. 3.o La obligación de proveer a la
conservación del inmueble y de efectuar las reparaciones necesarias para ese fin […]. 4.o La obligación de permitir
las inspecciones que disponga la Comisión […]”.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
ejemplo posiblemente más conocido de los cuales es el área de la llamada casa del
Gobernador). El bhcs fue incluido en la Lista del Patrimonio Mundial bajo el criterio
iv que establece la condición de “ser un ejemplo eminentemente representativo de
un tipo de construcción o de conjunto arquitectónico o tecnológico o de paisaje
que ilustre uno o varios periodos significativos de la historia humana”.
Se propone el bhcs para su inscripción en la LPM sobre la base de los criterios ii, v y vi de la
Convención, a saber:
a) De acuerdo con el criterio ii la arquitectura del bhcs, dada su huella urbana, y sus construcciones,
representan, tal como ha sido remarcado antes, un ejemplo único en la región. Ella ejerció, de todos
modos, una influencia indudable en el desarrollo de la arquitectura civil de las dos orillas del Río
de la Plata, en sus modelos coloniales, en los que se descubren formas y ejemplos de influencia
portuguesa notable. […]
b) De acuerdo con el criterio v: el bhcs, constituye un ejemplo característico de formas de
construcción en que se produce una superposición de las tradiciones portuguesas e hispánicas.
Esta fusión original se ha enriquecido, a partir de la segunda mitad del siglo XIX, en el marco de
una modestia popular que caracteriza y da su propio perfil a la atmósfera urbana del barrio, de
carácter notablemente armónico, por la presencia e influencia de artesanos constructores italianos
y franceses (MEC, 1994, p. 62-63)8.
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de la Plata y la región del Atlántico Sur, lo que explica la larga lucha entre los
imperios coloniales ibéricos por su control.
Desde el punto de vista de la condensación material, es decir la manera en que
se constituyen los dispositivos patrimoniales que soportan ese relato (la singularidad
lusitana del sitio en una región dominada por los lenguajes hispánicos), los referentes
narrativos se asientan fuertemente en la trama portuguesa, la arquitectura vernácula
(intervenida) y la muralla (reconstruida). En tanto que la dimensión simbólica del
bien, algo así como los referentes inmateriales del relato (prácticamente limitados
a su carácter de enclave de disputa geopolítca), se sostiene principalmente en las
maneras en que se interpreta el patrimonio (incluido el paisaje natural de la costa
del Río de la Plata y el horizonte) a través de los guiones propuestos por los guías
turísticos y las descripciones que circulan en forma de promoción turística.
De este modo, el relato patrimonial consolidado se constituye en un dispositivo
para el encuadramiento de la memoria (POLLACK, 2006, p. 26-27):
Decir que el entorno es sociofísico ya no es considerarlo solo como un conjunto de fuerzas que
afectan la conducta, sino como un producto material y simbólico de la acción humana (Stokols,
1982). Esta formulación se basa en una distinción entre diversos lugares, sitios y espacios (settings
y places), lo que equivale a conceptualizar en términos espaciales los elementos del entorno
ecológico. Este enfoque se acompaña del reconocimiento de su dimensión social, expresada en
términos de significados. Para Stokols, el entorno sociofísico es un compuesto de rasgos materiales
y simbólicos cuyo estudio requiere la comprensión, en el mismo análisis, de los elementos llamados
“subjetivos” y “objetivos”. Son los ocupantes de los diversos marcos espaciales los que los hacen
pasar de una mezcla de elementos materiales a un sitio simbólicamente significativo.
[…] el uso de conceptos como los de significado simbólico, nos remite a la idea de representación:
el espacio representa y se representa a sí mismo.
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y fijo, anclado en una narrativa configurada a comienzos del siglo xx que parece
resultar inmune a la resignificación o resemantización efecto de las transformaciones
en la historiografía. Lo interesante del fenómeno, es que, a pesar de su permanente
actualización como efecto de su condición de sitio de conmemoración del pasado,
el relato patrimonial aparece como blindado a cualquier modificación. A efectos
de dar una más amplia explicación sobre el fenómeno que se pretende señalar, se
ha considerado oportuno referir a tres aspectos en los que el relato patrimonial
del bhcs hace silencio, a pesar de que la historiografía ha producido significativas
reflexiones en torno a ellos en las últimas décadas.
El primero de los aspectos que el relato patrimonial del bhcs no incorpora en
modo alguno (ni material ni inmaterialmente) tiene que ver con las referencias a
la población indígena que habitaba el territorio donde se asentó y creció la ciudad
antes de la llegada de los europeos a la región y que convivió – en forma no siempre
pacífica – con los europeos durante la época colonial. El segundo aspecto tampoco
incorporado al relato tiene que ver con la presencia de población de origen africano
y su descendencia, aunque Colonia del Sacramento funcionó como puerto de
ingreso de personas esclavizadas africanas comerciadas por la Corona Portuguesa
(principal pero no únicamente durante el período de dominación lusitana de la
plaza). Por último, tampoco han aparecido nuevas miradas o componentes al relato
durante los últimos años, a pesar de las transformaciones del clima político respecto
del pasado reciente del Uruguay y sus impactos en la historiografía actual.
En efecto, desde la década de 1980, sobre todo luego del retorno de la
democracia, los estudios relativos al pasado precolonial del territorio en el que hoy
se encuentra Uruguay han tenido enormes avances. Un fenómeno similar se ha
producido en los últimos veinte años en relación con el trabajo sobre el pasado
reciente.
En relación con las cuestiones relativas a la población nativa del territorio
oriental, la evidencia científica, tanto en los aportes de la arqueología como los
de la antropología (principalmente en la rama biológica), contradice la versión de
“país sin indios” que caracteriza a la historiografía tradicional (SANS, 2009). Esta
vertiente del avance científico, que podría tener su reflejo en la narrativa del sitio
analizado no ha sido recogida. Incluso, a pesar de que existen abundantes evidencias
de la presencia indígena en el territorio donde se asentó la plaza, tanto por las
crónicas de los primeros exploradores europeos como por la abundancia de restos
materiales (reunidos en sendas colecciones, algunas de ellas en posesión pública9),
ningún dispositivo patrimonial del sitio tiene por función recuperar esos aspectos
de la historia articulándolos con la del sitio patrimonializado en tanto que lugar en
el territorio.
Por otro lado, tampoco las nuevas líneas de investigación acerca del devenir
de la población africana y su descendencia en el territorio del actual Uruguay han
afectado el relato estereotipado del sitio. Si bien estos estudios aún son escasos y,
9 Tal es el caso de las colecciones que componen el acervo del Museo Indígena Roberto Banchero, cuya
localización en la zona noroeste de la península casi al final de la Av. Gral. Flores, así como su discurso museográfico,
lo mantienen apartado de los recorridos habituales de los visitantes.
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Los críticos que denuncian las lagunas del patrimonio oficial -ya sea en discursos contra el elitismo
o en nombre de la precisión científica- o que condenan la falta de autenticidad, quizá de realidad,
del patrimonio descuidan el hecho de que el patrimonio no es la Historia, puesto que él tiene por
objetivo atestar la identidad y afirmar valores -si es necesario, debido incluso al falseamiento de
la verdad histórica-. Es por eso por lo que la Historia parece con tanta frecuencia “muerta” para el
entendimiento común, y el patrimonio, al contrario, parece “vivo” en la diversidad de los usos y
en la creatividad de las prácticas que lo acompañan. De esta forma, la recolección, la clasificación,
la exposición y la interpretación de una cultura material acabaron por confundirse con el proyecto
de apropiación y de transmisión, alimentando la crónica de una toma de conciencia patrimonial
(POULOT, 2008, p. 33).
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Mantener la cohesión interna y defender las fronteras de aquello que un grupo tiene en común,
en lo cual se incluye el territorio (en el caso de estados); he aquí las dos funciones esenciales de la
memoria común. Eso significa proporcionar un marco de referencias y de puntos de referencia. Es,
por lo tanto, absolutamente adecuado hablar, como hace Henri Rousso, de memoria encuadrada,
un término más específico que memoria colectiva. Quien dice “encuadrada” dice “trabajo de
encuadramiento”. Todo trabajo de encuadramiento de una memoria de grupo tiene límites, ya
que no puede ser construida arbitrariamente. Ese trabajo debe satisfacer ciertas exigencias de
justificación. Rechazar tomar en serio el imperativo de justificación sobre el cual reposa la posibilidad
de coordinación de las conductas humanas significa admitir el reino de la injusticia y de la violencia
(POLLACK, 2006, p. 25).
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Finalmente, para el caso del bhcs, el discurso patrimonial se instala fuera del
debate historiográfico, se asienta en certidumbres.Transcurre disociado de la reflexión
historiográfica y antropológico-arqueológica. De este modo, la representación
del pasado que se hace a través del patrimonio, se conforma por superposición
progresiva: los patrimonios consagrados no se revisan ni se resignifican, para nuevos
asuntos se crean nuevos patrimonios, es decir nuevos dispositivos. Cabe preguntarse
si esta condición que parece ser genérica en el modelo uruguayo, que muestra al
patrimonio como recurso de encuadramiento de la memoria, es aplicable a otras
realidades.
TRABAJOS CITADOS
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Qual o impacto de não vermos, com mais frequência, a presença das mulheres
na constituição dos lugares urbanos, nos mapas da cidade, como protagonistas
nas páginas que contam a nossa história? Como fazer surgir cidades outras, mais
inclusivas e representativas para nós, mulheres? Como fazer da cidade um espaço
de reconhecimento para outras mulheres? Como permitir que o espaço público
seja retirado de uma situação predominantemente masculina e se abra para uma
realidade outra? É necessário criar escritas diversas. Refletindo sobre a construção
das memórias das mulheres, negligenciadas na concepção das cidades e da arquitetura
O tema será abordado por meio dos trabalhos poéticos Cidade só para homens (2019)
e Outra Cidade (v. 1, 2019), que surgem da reflexão sobre as relações entre as ruas e
representatividade nas cidades por meio da palavra e da imagem.
Sabemos que a palavra, na sua função nominalista de identificar os dados do real, é também uma
forma de qualificar o mundo, dando sentido e pautando as ações sociais. Esse processo de outorga
de significado é, pois, criador de realidade e instaurador da coerência que organiza a percepção do
mundo (PESAVENTO, 2001, p. 99).
Por que não encontramos tantas mulheres ao nosso redor? Por que não lemos,
com maior frequência, seus nomes em placas, enquanto andamos pelas ruas, calçadas,
miolos de quadra? Como poderemos sentir-nos representadas numa cidade que não
foi pensada para que a mulher se sinta parte dela? Não basta participar da política
e eleger democraticamente representantes, é necessário ser apreciada para além do
espaço expositivo de um museu ou da galeria, ou em festas, ou dias dedicados a uma
suposta homenagem. É preciso reconhecer-se na esfera pública, estar presente nas
ruas.
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A força dos nomes e suas designações ajudam a compreender o sentido da cidade. Em tempos mais
antigos eles sempre ajudaram a perceber o desenrolar das práticas sociais, o linguajar popular de
determinada época e a importância de determinados tipos populares. Mais recentemente, com a
substituição por nomes de pessoas, que nada representam no imaginário popular, eles acabam
sendo esquecidos ou completamente desligados de seu significado (SOUZA, 2001, p. 141).
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para além do título e, principalmente, do uso dado pela população, já que nem de
“becos sem saída” poderiam ser chamados uma vez que faziam conexão com as ruas
perpendiculares a eles. Eram ruas convencionais, mesmo que, por vezes, descritas
como “estreitas”, escuras e “ladeirentas”. Sobre os acontecimentos da virada dos
séculos XIX para XX, a autora diz:
O beco foi identificado como o reduto das socialidades condenadas, era um espaço maldito da
cidade, freqüentado pelos “turbulentos” da urbe. A situação se definia tanto mais grave por que
tais espaços estigmatizados se achavam encravados no centro da cidade, que se encontrava
em processo de renovação e saneamento, tanto técnico quanto moral. Verdadeiros “lugares de
enclave”, eles ameaçavam a ordem, pois expunham, pela contigüidade inevitável e indesejável, o
mau lado da urbe. Para os cidadãos da Porto Alegre ordenada e disciplinada que viviam no centro,
o “pecado” morava ao lado (PESAVENTO, 2001, p. 98).
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É curioso pensar que tanto Pesavento (2001) quanto Souza (2001) destacam
fatos da cidade pelas palavras do cronista porto-alegrense Coruja (1983). Ele dá
nome a uma das ruas que configura o quarteirão onde o trabalho Outra cidade (2019)
surgiu, em Porto Alegre/RS, casualmente formado, também, pela Rua Pelotas,
cidade que me recebe enquanto realizo esta pesquisa. Didi-Huberman (2013, p. 67)
diz que “a arte da memória não se reduz ao inventário de objetos trazidos à luz,
objetos claramente visíveis [...], mas também, e principalmente, uma anamnese para
compreender o presente”.
O trabalho Cidade só para homens (2019) surge da observação do entorno de um lugar
já conhecido: meu lugar em Porto Alegre. Encontrei um colonizador, um cronista, uma
figura religiosa, uma cidade e um grupo de homens que lutou numa guerra. Ampliando
esta análise do quarteirão, percebi que não seria assim tão fácil sentir-me representada de
alguma forma. Percebi que não encontrava mulheres ao meu redor e, dentre todas outras
questões que poderiam ser aqui abordadas, Cidade só para homens (2019) é um recorte
dentro de uma gama extensa de possibilidades de cidade que poderiam ser pesquisadas
e fala da minha experiência como mulher nesse lugar urbano. O desejo de criar outra
cidade nasceu junto à vontade de comprovar que eu poderia sim encontrar mulheres nos
arredores dos meus bairros em Porto Alegre e Pelotas/RS.
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A escolha dos lugares mapeados se deu, primeiramente, por conta dos centros
das cidades e dos bairros onde vivo. São minhas microcidades, meus territórios,
meus lugares de memória em cada cidade. Em Outra Cidade (2019), contudo, vejo
a oportunidade de desenhar uma cidade que abre os braços para que seja possível,
enfim, fazer a conexão com algumas das mulheres com quem venho construindo
uma amizade por meio das leituras e críticas. Seja pela cidade ou pela produção
acadêmica e poética, vejo nesta discussão um potencial para iniciar uma pequena
mudança, mesmo que interna, e honrar aquelas que lutaram, ou ainda lutam, para
resistir ao apagamento.
Em 1953, Jane Jacobs escreveu A cidade é para as pessoas e, neste texto, crítico
quanto às formas como o futuro das cidades vinha sendo conduzido, afirma que
a complexidade e a vivacidade dos centros urbanos não deveriam ser conduzidas
unicamente por um grupo de profissionais da área de planejamento urbano, mas
sim por todos, independentemente da existência ou não de conhecimento técnico.
A autora destaca sobre a não necessidade de um diploma acadêmico para que sejam
elaboradas as perguntas certas sobre o que é importante numa cidade. “Deixemos
que os cidadãos decidam quais resultados finais querem atingir, e que, assim o
fazendo, eles adaptem o maquinário urbanístico a estes propósitos” (JACOBS, 1953).
A série Cidade só para homens (2019) é composta por quatro mapeamentos
principais: dois em Pelotas/RS e dois em Porto Alegre/RS. Neste artigo, discorrerei
somente sobre os mapas da capital do estado do Rio Grande do Sul, fazendo justiça
aos referenciais teóricos que trouxe4. Os mapas apresentados trazem um levantamento
das ruas com nomes de homens (em vermelho), mulheres (em azul), datas, lugares
e fatos históricos (em verde), por fim, ruas internas a conjuntos de edificações e/
ou sem identificação (em cinza). O primeiro trabalho da série é Porto Alegre só para
homens: Centro Histórico [4/4] (Figura 1). Nas cartografias, foram realçadas apenas
ruas, não estando todos os espaços públicos, que englobam o conceito de logradouro,
abrangidos.
4 Os outros mapas podem ser visualizados no portifólio online de uma das autoras: <www.fernandafedrizzi.com/
csph>.
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É necessário que se pense também em quem são essas mulheres que receberam
destaque na malha da cidade. OViaduto da Conceição faz referência a Nossa Senhora
da Conceição, figura religiosa, assim como Santa Rita. Sobre Mercedes e Carmem
nada foi possível ser encontrado além de outras ruas que carregam os mesmos nomes
acompanhados de sobrenomes. Nesses casos, a Rua Mercedes Azzolini, no bairro
Belém Novo, homenageada pela Associação de Moradores da Ponta Grossa em 2005
(PORTO ALEGRE, 2007, p. 87), e a Praça Carmem Miranda, no bairro Itu-Sabará,
homenageando a reconhecida artista portuguesa (idem, p. 28). Luciana de Abreu,
porto-alegrense nascida no século XIX, foi professora, escritora, integrante do
Partenon Literário e defensora dos direitos femininos (idem, p. 71). Anita Garibaldi
foi costureira e guerrilheira, tendo lutado no Uruguai e na Itália, chamada também
de “heroína de dois mundos” (idem, p. 16).
Devido ao baixo índice de mulheres homenageadas nessas ruas, decidi testar
cartografias diversas, nas quais, inicialmente, isolo as ruas que homenageiam homens
e, nos seguintes, os elimino e, nos últimos, deixo somente as mulheres. Na imagem
seguinte (Figura 3), exibo um compilado desses mapas. É perceptível que, mesmo
com o apagamento da identidade das mulheres, a cidade ainda conseguiria manter-
se funcionando, conectada, devido à ínfima importância que elas, assim como os
grupos de ruas marcados em verde e cinza, parecem possuir nesta malha urbana.
Uma cidade que, aparentemente, não necessita dessas outras representações. Mede-
se aqui o pertencimento pela não-presença das mulheres na cidade cartografada.
Aliás, o apagamento de todas as ruas que não carregam nomes de homens altera
muito pouco a percepção dessa cidade.
275
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Figura 3: Compilado de outros mapas criados para Porto Alegre só para homens: Centro Histórico [1/4H], [3/4] e
[1/4M] respectivamente, e Porto Alegre só para homens: Floresta [1/4H], [3/4] e [1/4M], 2019.
Um primeiro passo para entender por que não há mais ruas que carregam
nomes de mulheres seria pensar nos motivos pelos quais as cidades não foram
constituídas como espaços para a mulher e como isso resulta na negação de sua
presença nos espaços públicos. Nochlin (2016) nos alerta que não devemos cair na
tentação de justificar essa ausência identificando aleatoriamente ruas com nomes de
mulheres e, tampouco, diferenciando os feitos femininos e masculinos. Essas seriam
análises rasas.
As coisas como estão e como estiveram, nas artes, bem como em centenas de outras áreas, são
entediantes, opressivas e desestimulantes para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram
a sorte de nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo homens (NOCHLIN,
2016, p. 8).
276
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
breve histórico sobre essa pessoa. Constam, dentre os mais de nove mil logradouros
de Porto Alegre, 379 verbetes nos quais se encontram os nomes das mulheres
homenageadas. É justo notar que grande parte das ruas que carregam nomes de
mulheres encontra-se nas zonas limítrofes da cidade, em processo de urbanização
ou ainda não oficialmente urbanizadas e, justamente por isso, essa questão surgiu
somente quando da criação de novos bairros. O documento não pensa mais a fundo
a questão da representatividade das mulheres nas cidades, mas destaca brevemente
sobre como a situação presente no ano de 2007 demonstrava certa preocupação
com identidade e cidadania na capital. É justo que as ruas com nomes de mulheres
representem apenas, e aproximadamente, 4% das ruas de Porto Alegre? Dentre os
outros 96% das ruas, encontram-se fatos históricos, lugares, flora, fauna, porém,
predominantemente, nomes de homenageados homens. A maioria dos nomes de
mulheres está localizada em bairros periféricos ou em locais afastados do centro. Os
centros, de modo geral, são as regiões mais reconhecidas da cidade, mais acessíveis e
mais lembradas, mais frequentes no imaginário e na memória da cidade.
Denominar os logradouros implica participação – um nome de rua diz muito sobre a população
que ali vive, a qual, através dos meios disponíveis, pode indicar qual personalidade ou fato deseja
ver homenageado, destacado, lembrado. Dessa forma, dar nome aos logradouros deixa de ser ato
singelo, passa a conferir identidade social. A presença feminina na denominação é uma das formas
de reverenciarmos a memória de mulheres trabalhadoras, ativistas, militantes e organizadoras das
causas das mulheres. Mulheres que nos deixaram como legado suas experiências de luta e de vida
quando, na coragem, romperam o silêncio e denunciaram a opressão e todas formas de violação,
buscando construir uma sociedade mais justa e igualitária para todos (PORTO ALEGRE, 2007, p. 5).
OUTRAS CIDADES
277
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Cidade, apresentei os textos sobre os quais discorri aqui e, em grupo, pensamos uma
cidade outra para o Centro Histórico de Porto Alegre. Neste processo de resgate
das memórias afetivas através da reescrita da cidade pensamos em homenagear a
Dona Eva, como era carinhosamente chamada, que faz parte da memória social
e afetiva da cidade, tendo lutado, como empreendedora cultural, pela manutenção
e ampliação do Theatro São Pedro e do Complexo Cultural Multipalco, batizado,
após sua morte, em 2018, de Multipalco Eva Sopher. O nome da Rua Riachuelo,
tradicional família da elite de Porto Alegre, passou a chamar-se, ao menos neste dia,
Rua Eva Sopher.
Os nomes dos logradouros têm realmente muito a ver com o imaginário da população. É aqui
que ela expõe suas particularidades, seus tipos e seus valores, ligados às práticas do cotidiano. À
medida que as mudanças vão sendo impostas, de cima para baixo, pelo Estado ou pela Edilidade,
sem que haja qualquer envolvimento da população em relação a elas, os novos nomes passam a
custar mais para serem assimilados ou se fixa o nome sem a menor relação com a história local
(SOUZA, 2001, p. 152).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
REFERÊNCIAS
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1983.
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BRESCIANI, Maria Stella. (org.). Palavras da Cidade. Porto Alegre: Ed. Universidade/
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2017.
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Centauro, 2001.
LIMA, Fernanda F. L. Website da artista. Disponível em: <www.fernandafedrizzi.com>.
Acesso em 10 nov. 2019
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artístico. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/arteversa/?p=138>. Acesso em 10 nov.
2019.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? Tradução de Juliana
280
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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Figura 2: Construção da primeira casa em alvenaria, no lado esquerdo da fotografia, em fase de construção.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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PERCURSOS DA PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO NA ESPANHA E ANDALUZIA
KAREN VELLEDA CALDAS1
FLÁVIO SACCO DOS ANJOS2
JAVIER BUENO VARGAS3
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4 Técnica pela qual o conservador-restaurador preenche uma lacuna pictórica procurando disfarçar ou camuflar
a intervenção, tornando-a o mais discreta possível. Etimologicamente o termo provém do grego, «mimetés», que
significa imitação, sendo muito utilizado na biologia para se referir à capacidade de certos seres vivos, como,
por exemplo, as borboletas, de se assemelharem seja com o meio no qual habitam seja com outras espécies mais
protegidas com as quais ou à custa das quais vivem (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2019).
293
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[…] la formación de una especie de escuela de restauración en palacio, ante la urgencia de atender a
la puesta en orden de las obras afectadas, y la preocupación por parte de los pintores-restauradores
de revisar el resto de las obras propriedad de la corona que, por otras razones, en especial por la
falta de cuidado a lo largo del tiempo, presentaban un estado lamentable (GONZÁLES-VARAS,
2018, p. 150).
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DE LACANAL, 2018, p. 225), sendo seguido por Vicente Poleró y Toledo em 1855.
Foi Goya quem defendeu, no ambiente espanhol, o respeito à obra original, sendo
nos anos 1800 que emerge uma estreita relação entre a Conservação e a atuação dos
poderes públicos, restando timbrada em normativa jurídica.
No entanto, a construção dessas normas não se deu de modo linear. As
Comissões de Monumentos de Espanha, criadas na primeira metade do século
XIX (1837), tinham como tarefa conservar os bens adquiridos pelo Estado depois
da Desamortização de Mendizábal5, fato ocorrido em 1836. Essas comissões eram
formadas por expertos em literatura, ciências e artes e tinham caráter consultivo.
Havia também uma comissão central em Madrid, a qual foi suprimida em 1857
quando foi integrada à Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, porém esta
não tinha autoridade sobre as comissões provinciais (GARCÍA MORALES; SOTO
CABA, 2011, p. 55). Esse sistema, além de contar com poucos recursos financeiros,
se mostrava inadequado, especialmente na designação dos membros das comissões,
como sustenta Mirambell Abancó (2016, p. 111). Os conceitos de “interesse
público” e “Patrimônio Nacional” delimitaram uma mudança significativa, a qual
vem ao encontro das novas concepções de cultura que converteram os poderes
públicos em depositários e responsáveis pela proteção e tutela patrimonial (RUIZ
DE LACANAL, 2018, p. 235).
Apesar disso, o critério de restauração existente, claramente definido em
legislação datada de 1850 e identificado como “Restauração de estilo”, explica a
coincidência entre a formação artística e a formação para a restauração (RUIZ DE
LACANAL, 2018, p. 283). Ademais, demonstra a aceitação da teoria de Viollet-
Le-Duc, o qual em 1868 foi nomeado acadêmico honorário da Real Academia de
San Fernando de Madrid (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 109), havendo este
priorizado uma busca de maior veracidade de estilo do que propriamente de materiais
e de técnicas (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016, p. 111). Declarada monumento
nacional em 1844 e restaurada entre os anos de 1859 e 1901, a Catedral de León é
considerada o modelo da restauração estilística na Espanha. Nessa intervenção, cuja
proposta inicial foi de desmonte total do edifício e sua posterior reconstrução com
materiais melhores, admitia-se que teriam que ser retirados todos os elementos que
não caracterizavam o edifício como gótico, e “reemplazarlo con elementos que
garantizaran un edificio unitario estilísticamente. Para ello, Laviña [o arquiteto da
primeira fase] debía ponerse en la piel del arquitecto medieval” (MIRAMBELL
ABANCÓ, 2016, p. 112).
Em verdade, o século XIX é marcado por contradições. Ainda que se perceba
maior intenção de preservação, com o despertar dos sinais de identidade no
patrimônio e com o fortalecimento da consciência das tutelas, trata-se de um período
de grandes perdas patrimoniais. Com o objetivo de evitar a dispersão que ocorria
de modo frequente, foi sancionado um decreto em 1854 que se converte num
marco para a realização de catálogos para a documentação e consequente mitigação
5 Processo de expropriação forçosa dos bens da Igreja Católica com o objetivo de enfrentar os altos custos
envolvidos na guerra contra os carlistas e como último recurso para recuperar os cofres públicos devido a perda das
colônias na América. O objetivo seria leiloar os bens para sanar as contas do Estado espanhol.
295
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El decreto-ley incluía como parte del Tesoro Artístico Nacional no sólo a los monumentos, sino
también a sitios y lugares de reconocida y peculiar beleza. Por su parte, la Ley de 1933 hablaba de
cuantos inmuebles y objetos muebles de interés artístico, arqueológico, paleontológico o histórico
hubiera en España, aunque de antigüedad no menor a un siglo (ALVAREZ ALVAREZ, 1989, p. 97).
É também em meados dos anos 1930 que se impõe a ideia de uma Espanha
unificada através da ditadura franquista (1936-1975), a qual esteve diretamente
integrada com a Igreja Católica. No âmbito internacional, a Conferência
Internacional para a Conservação do Patrimônio histórico artístico e arqueológico,
que originou a Carta de Atenas de 1931, é um marco significativo que repercute
também na Espanha. No entanto, a área patrimonial sofre perdas significativas
durante o período da Guerra Civil. É deste período (1938) a criação do Servicio de
Defensa del Patrimonio Artístico Nacional – SDPAN, cuja missão era reparar, conservar
e reconstruir as propriedades artísticas danificadas durante a guerra, bem como
recuperar as obras de arte em posse do governo republicano. Este já havia criado, em
1936, alguns serviços de proteção de bens artísticos, qual seja a Junta de Incautación
y Protección del Patrimonio Artistico e suas delegações territoriais. O SDPAN finalizou
suas tarefas de recuperação em 1943, mas se manteve ativo como órgão encarregado
de restaurar obras de arte, passando a Comisaría General del Patrimonio Artístico
Nacional (1968-1974) e Comisaría Nacional del Patrimonio Artístico Nacional (1974-
1976). Em síntese, o cenário das competências em relação à defesa patrimonial se
modificou somente quando se restaura a democracia na Espanha, as quais foram
divididas enquanto atribuições do Ministerio de Cultura e das Consejerías de Cultura
das comunidades autônomas. Paradoxalmente, a lei republicana de 1933 regulou a
questão da conservação do patrimônio histórico espanhol durante todo o período
franquista.
Do ponto de vista da formação, a base na Espanha orientava-se para o campo
das artes até a tomada de consciência acerca da diferença entre o mètier de pintor
e o de conservador-restaurador. Na Catalunha, destaca-se a atuação de Manuel
Grau Mas, o qual fez parte do primeiro atelier de restauração oficial no Museu de la
Ciudadela de Barcelona (posteriormente denominado Museu de Arte da Catalunha),
no período republicano (1931-1939). O profissional ingressou na Real Academia
Catalã de Belas Artes de San Jorge de Barcelona com um discurso baseado na ideia
de reconhecimento da profissão de restaurador no mundo acadêmico, defendendo
que a restauração não era uma atividade criativa (MIRAMBELL ABANCÓ, 2016,
p. 177).
Um dado importante na consolidação da área foi a Missão da UNESCO na
Espanha. Esta teve por objetivo a criação de um serviço de conservação e restauração
que respondesse aos princípios estabelecidos pelo organismo internacional, os quais
foram apresentados por Paul Coremans, em 1959, em texto que colocou as distintas
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La mayoria de países europeos disponen de un inventario desde hace decenas de años, mientras
que más del cuarenta por ciento de los tesoros artísticos españoles continúan sin poseer esta
mínima garantia. El desconocimiento de lo que España posee, se agrava ante la dispersión del
patrimônio [...] y ante la falta de médios de protección [...] las desapariciones del patrimônio
continúan passando desapercebidas, y aún conosiéndose, no se sabe en qué basar su reclamación.
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La evolución de los acontecimentos históricos sucedidos durante estas últimas décadas, que
tambien han sido las primeras de un nuevo siglo e incluso podemos aventurar que las de una
nueva era, nos lleva a la necesidad de reafirmar y profundizar en este compromisso ético que, en
efecto, comporta la tarea de velar no solo por la conservación y preservación del patrimônio cultural
sino incluso, mas allá, por la necesidad de renovar constantemente el sentido y significado que el
passado y la memoria, el patrimônio cultural, asumen en nuestras sociedades (GONZÁLES-VARAS,
2018, p. 15).
Por fim, cumpre-nos destacar que este trabalho não se esgota nestas páginas,
ainda que tenha cumprido com seus objetivos de trazer um panorama geral do
percurso da área do patrimônio no contexto Espanhol. Em certa medida, fatos,
como os mencionados acima, ocorridos em Borja e Estella, também demonstram
que a fragilidade da área não é privilégio de países como o Brasil, cuja trajetória na
preservação do patrimônio carece de tradição assim como de efetividade legal.Assim,
pode-se afirmar que, embora a Espanha esteja atualmente integrada ao panorama
cultural europeu, abordando o patrimônio e suas metodologias através da área de
Conservação como um campo do conhecimento e uma atividade eminentemente
transversal e identificada com os princípios do Tratado de Bolonha, percebe-se
que, tal como ocorre no Brasil, há um longo percurso a ser transposto para que as
questões patrimoniais sejam efetivamente colocadas como prioridade tanto pelo
estado como, particularmente, pelo conjunto da sociedade.
particularidade que lá não há a obrigatoriedade de vinculação de seus profissionais para o exercício profissional, tal
como ocorre no Brasil. A Espanha ainda conta com Associações de profissionais, tais como a Asociación Profesional
de Conservadores Restauradores de España – ACRE, que está igualmente imbuída da missão de exigir a regulação
da profissão.
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REFERÊNCIAS
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Ao mesmo tempo na família ocorre a transmissão de valores materiais, culturais, morais, religiosos
e outros nem tanto pelo ensino, mas muito mais pela vivência; e assim intensifica-se o processo
da educação para a liberdade e a responsabilidade, criando condições para escolhas dos melhores
meios para a realização da própria pessoa, e, finalmente, o indivíduo tem uma retaguarda mais
firme para introduzir-se nos vários setores da sociedade como escola, trabalho, lazer, religião, etc.
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Rosa: O pai era uma pessoa que só trabalhava na lavoura. Era uma pessoa bruta. Meu pai era uma
pessoa muito bruta com a gente, muito enérgico e hoje eu vejo que não precisava existir aquilo.
Mas existia. E eu acho que Deus fez aquilo pra dobrar ele porque ele era uma pessoa ignorante,
bruta e que não acreditava em nada. Então a minha mãe sempre dizia “credo Turíbio porque fazer
isso”. Era bruto, era bravo.
[...]
Ele passou dias e dias, semanas e semanas, que ele não comeu, que quase não dormiu, que
passou encerrado fazendo orações de joelho pedindo e aquilo dali transformou ele assim do nada.
Ele começou a enxergar mais as pessoas e ajudar mais as pessoas (ROSA MARIA CORTEZ DO
NASCIMENTO, 2018).
4 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Rosa, São Miguel das Missões/RS.
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Romilda: Era boa! Era boa, eles não era ruim pra gente não. Só se agente desobedecia daí o relho
pegava senão era uma maravilha. (silêncio)
[...]
Barbaridade, Deus me livre. Tinha que ir pra roça trabalhar desde os oito anos. E se não fosse a vara
pegava. Eu pegava até no arado do boi, boi xucro, tenho o sinal aqui oh (mostra uma cicatriz na
perna).(silêncio).Tu conhece um arado de boi filha? Agora eu fico olhando, os novo não estão mais
igual a gente não (ROMILDA DE MORAES, 2017).
Romilda traz relatos de uma realidade na qual a infância inexiste. Sua mãe
falece aos 42 anos de idade deixando três filhos pequenos para serem criados pelo
pai, que, igualmente ao caso de Rosa, era rígido e violento na criação das crianças.
Os contextos do trabalho e da necessidade permeiam este período narrado
pela entrevistada, cujas marcas não apenas foram gravadas na memória, mas também
no corpo, como a cicatriz produzida quando de acidente com arado de boi na
lavoura. Silêncios e pausas durante a entrevista, quando da abordagem deste tema,
caracterizam ressignificação de memórias dolorosas das quais Romilda não sente falta
na atualidade. A reconstrução memorial destes fatos é, segundo Candau (2012, p. 09),
mais do que uma tentativa de reconstrução fiel do passado, mas o enquadramento
desses a fim de alcançá-los quando necessário bem como de conviver com os
mesmos na atualidade. Assim, uma nova imagem pode ser construída, incluindo
ou excluindo elementos que, como ainda pensa Caudau (2012, p. 16), também
modelam as identidades dos indivíduos. Como bem lembra o autor, assim como
memórias auxiliam na construção de identidades, da mesma forma, possuem o
poder de arruinar o sentimento que se tem por elas.
Romilda se faz benzedeira desde os seus trinta anos de idade e inicia sua
atividade após um câncer do qual teria se curado após súplicas a Deus. Apesar de
ter buscado suporte médico científico bem como realizado cirurgia para a retirada
do tumor que lhe afetava a mama, conta que seus pais eram benzedores. Ambos,
praticantes do espiritismo, teriam-na incentivado a aprender o ofício, mas a mesma
relutante expressava aos mesmos que tudo aquilo era “amolação e que desejava
aprender a trabalhar”6. Como ponto marcante em sua vida relata ainda que foi
praticamente forçada a casar:
5 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes, São Miguel das Missões/RS.
6 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moares, São Miguel das Missões/RS.
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Romilda: Foi meu pai que queria e naquele tempo era o pai que mandava e não tinha de não querer.
Juliani: Com que idade foi isso?
Romilda: Com dezoito anos. Era o ritual daquilo, todos. Tinha que sair de casa (ROMILDA DE
MORAES, 2017).
Jovencilio: Eu estudei até o terceiro ano sabe por quê? Porque naquela época não tinha um ano pra
estudar uma matéria então tu tinha o livro pra estudar, tu lia aquele livro e aí tava pronto o livro
e passava pro segundo, passava pro terceiro, pro quarto e se quisesse fazer num ano tudo podia.
Hoje não, se tu tá no primeiro ano tu passa um ano no primeiro ano, depois outro ano no segundo
7 Entrevista realizada em 27 de dezembro de 2017 na residência de Romilda de Moraes, São Miguel das Missões/
RS.
8 Entrevista realizada em 26 de março de 2018 na residência de Jovencilio do Nascimento, interior de São Miguel
das Missões/RS.
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ano e assim por diante. Aquele tempo não, era diferente, agente começava a estudar então tinha o
livro, estudou aquele livro passava pro segundo e assim era (JOVENCILO DO NASCIMENTO, 2018).
Marlene: Era difícil, mas era boa. Todo mundo trabalhava. O meu pai era serrador e tinha uma
serraria então a gente tinha que puxar água pra colocar na caixa pra tocar a serra. Nós era tudo
pequeno, uns cinco ano e já ajudava tudo. A gente meio ajudava e trabalhava (MARLENE MACHADO
CASSIANO, 2017).
Cipriano: Na época o pai era muito cruel no ensinamento. Não tinha estudo, mas tu apanhava pra
aprender a respeitar os outros, ser uma pessoa digna. Não podia aparecer quando tinha bastante
gente e num olhar tu sabia e não podia interferir nas conversas dos mais velhos. Levantava a
cadeira pros mais velhos e era assim o ensinamento. Agora em dia tá tudo diferente não respeitam
mais (CIPRIANO DORNELES, 2017).
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Laídes: Eu sempre to falando pra essa juventude, nós era dez filhos e minha mãe não se incomodava,
meu pai não se incomodava, era mesmo que não ter. Era serviço e serviço e só! Rezava pra chegar
o sábado (silêncio) (LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).
Laídes: No sábado nós varria tudo os terreiro e fazia limpeza, matava porco, matava galinha, era
coisa mais linda do mundo pra mim era o sábado! Natal então a gente nem sabia! A mãe dizia
“essa semana é natal crianças! Temos que lidar com as bolacha”. Tudo caseiro mulher, tudo, coisa
mais boa, que vida! A gente era pobre, feliz, mas não sabia! (LAÍDES DUTRA DA SILVA, 2017).
10 Entrevista realizada em 19 de junho de 2017 na residência de Laídes Dutra da Silva, São Miguel das Missões/RS.
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Ordonesa: Depois que morreu meu marido fiquei só eu pra trabalhar e o gurizinho era pequeno e
eu levava ele no bercinho e botava ele na sombra na casa da mulher que eu ia trabalhar. Daí eu
ia lavar roupa, trabalhar, limpar a casa pra ela. E assim nós vivemos. Mas graças a Deus nunca me
faltou nada na minha casa, sempre com o congelador sempre cheio de tudo que era coisa de comer.
Graças a Deus nós trabalhava (ORDONESA ANTUNES MARTINS, 2018).
O menino ao qual a entrevistada se refere é seu neto, filho de sua filha de criação.
Após a morte do marido, precisa trabalhar para sustentar ambos, referenciando que,
desta forma, nunca teria faltado nada em sua casa. O trabalho é assim, também,
definição da posição social ocupada, conduzindo desta maneira conflitos, práticas
sociais e produções simbólicas, as quais, segundo Bordieu (2001, p. 14), confirmam
ou transformam as visões de mundo construídas entre os sujeitos, seja pela força ou
pelo reconhecimento decorrentes de sua prática profissional. Portanto, conforme
reforça o autor, estrutura-se um poder de construção da realidade, o que legitima e
domina uma classe sobre a outra.
11 Entrevista realizada em 23 de março 2018 na residência de Ordonesa Antunes Martins, São Miguel das
Missões/RS.
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REFERÊNCIAS
12 Entrevista realizada em 31 de dezembro 2017 na sede da Secretaria Municipal de Turismo de São Miguel
durante a realização do Encontro de Benzedores. São Miguel das Missões/RS.
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FONTES ORAIS:
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IV - MEMÓRIAS DIFÍCEIS
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Il existait en Béotie, à Lébadée, près du sanctuaire de Trophonios, une source de Léthé, à côté d’une
source de Mémoire, Mnêmosunê. C’est là que les Anciens localisaient l’une des entrées dans le
monde infernal. Enfin, géographiquement, « le fleuve de Léthé » désigne le Limée une rivière de
Lusitanie2.
Ao lado de uma fonte da memória, está colocada uma fonte do Léthê, uma
fonte do esquecimento. Essa ambiguidade reflete a questão que o esquecimento
coloca a quem se dedica ao estudo da memória: o esquecimento deve ser entendido
como um mal a ser evitado, ou pode ser, de alguma forma, benéfico? O Léthê é
um rio infernal, mas seu poder é unicamente destrutivo, ou pode ser criativo? Pode
causar mal, ou também pode curar, regenerar? Essas são algumas questões iniciais,
ao longo do presente texto, a partir das quais, navegando com diferentes pensadores,
objetiva-se refletir sobre o papel do esquecimento nas sociedades contemporâneas,
bem como levantar alguns problemas que envolvem o estudo da relação entre
1 Doutor em História pela PUCRS; Pós-Doutorando pelo PPGMP/UFPel; Bolsista CAPES/PNPD; e-mail:
[email protected]
2 Em tradução livre: “Existia na Beócia, em Lebadade, perto do santuário de Trófonos, uma fonte de Lethe, ao
lado de uma fonte de Memória, Mnemosine. É aqui que os antigos localizam uma das entradas do mundo infernal.
Finalmente, geograficamente, “o rio de Lethe” significa a Limea um rio da Lusitânia”.
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memória e esquecimento. Num artigo tão breve, não é possível reconstruir todas
as abordagens que se dedicam aos estudos da memória, são elencados, ao longo
do texto, alguns autores que refletem diferentes temas e problemas relacionados
às tensões entre memória e esquecimento, especialmente ao longo do século XX.
Entre esses autores, Nietzsche (1998) parece fornecer uma resposta sobre o papel do
esquecimento.
Nietzsche (1998), na obra “Genealogia da Moral”, define o esquecimento
não como algo passivo, mas como uma força, uma atividade essencial, direcionada
contra uma cultura do excesso de informações que debilita o exercício da memória.
“Assim, o esquecimento não é tomado como apagamento, mas como integração
da experiência: aquilo que tendo sido digerido integra-se à existência de modo
orgânico, deixando de ocupar as forças da consciência” (RATTO, 2016, p. 88). O
esquecimento figura, nesse sentido, como saudável para a existência.
Esquecer não é uma simples vis ineritae (força inercial), como crêem os superficiais, mas uma força
inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado,
vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao
qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa
nutrição corporal ou “assimilação física” (NIETZSCHE, 1998, p.47).
315
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Esta memoria colectiva, constituida por la presebcia de los otros, es también una actualización y
reconstrucción del pasado; el pasado entonces para Halbwachs nunca vuelve puro, sin o que es
modificado debido a la tensión que el presente genera sobre el acto de recordar (COLACRAI, 2010,
p. 67).
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De fato, uma memória exercida é, no plano institucional, uma memória ensinada; a memorização
forçada encontra-se assim arrolada em benefício da rememoração das peripécias da história comum
tidas como os acontecimentos fundadores da identidade comum. O fechamento da narrativa é
assim posto a serviço do fechamento identitário da comunidade. História ensinada, história
aprendida, mas também história celebrada. À memorização forçada somam-se as comemorações
convencionadas. Um pacto temível se estabelece assim entre rememoração, memorização e
comemoração (RICOEUR, 2007, p. 98).
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A política de esquecimento não seria o negativo de uma política da memória? Sob quais condições
podemos dizer que a instrumentalização do esquecimento pode advir de uma anti-política
da memória ou de uma política da anti-memória? Toda a expressão do esquecimento pode se
assemelhar a uma anti-política da memória? Quais são os objetivos almejados pelas autoridades
públicas ao recorrerem ao instrumento do esquecimento? (MICHEL, 2014, p. 15).
325
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seria impossível, portanto, seleções sempre são feitas. Obviamente, tais seleções estão
relacionadas aos princípios dos grupos que estão instalados no poder.
Podemos dizer assim que certos acontecimentos passados, em razão de seu peso traumático e
sua carga emocional, tendem a ser rejeitados da esfera consciente das lembranças de uma dada
sociedade em um determinado momento de sua história (o que não quer dizer que essa rejeição
apareça na totalidade dos membros dessa sociedade) (MICHEL, 2014, p. 17).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
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PATRIMÔNIO CULTURAL
O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo valor estético
– e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental
- que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal ou administrativo.
Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade política, ambos os aspectos sancionados
pela opinião pública: essa dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da
civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relativamente ao passado, de suas
diversas apropriações e da construção das identidades (POULOT, 2009, p. 13).
332
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La gestión de riesgos constituye una herramienta eficaz para la salvaguarda del patrimonio
museológico, su protección y su uso. Se trata de una metodología a través de la cual las instituciones
responsables de la custodia de bienes culturales puedan prepararse para evitar su exposición a
agentes externos, garantizando su preservación y acceso a la ciudadanía (ICCROM, 2016, p. 6).
5 Senior Conservation Scientist, Preservation Services Division | CCI – Canadian Conservation Institute.
6 Project manager – Conservation of Collections | ICCROM – International Centre for the Study of the
Preservation and Restoration of Cultural Property.
7 Disponível em: <https://www.canada.ca/en/conservation-institute/services/agents-deterioration/dissociation.
html#def1>. Acesso em: 25 mar. 2019.
333
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também são importantes sistemas de proteção. A sala no qual o objeto está exposto
e os sistemas de conservação destes espaços constituem mais um invólucro museal.
O edifício do museu, os materiais construtivos, os sistemas de proteção, os recursos
estruturais etc. devem ser analisados com a mesma perícia que os anteriormente
citados. A localização da instituição é importante, levando em consideração seu
endereço físico e arredor. E, por fim, considera-se a região ou zona geográfica em
que o museu está situado, já que existe uma grande diferença entre um museu
situado em uma região de praia e outro perto de um grande centro industrial, por
exemplo.
Os invólucros devem ser atentamente observados, pois “cuando se usan
correctamente, proporcionan protección a los objetos del museo. Pero también pueden
contener diferentes fuentes de peligro para los objetos” (ICCROM, 2018, p. 51).
Os três tipos de ocorrência dos riscos dizem respeito à frequência com que
os agentes de degradação aparecem. Classificam-se em eventos raros, eventos
frequentes e processos acumulativos. Os eventos frequentes ocorrem várias vezes
durante um século e fazem parte da rotina museal. Os Processos acumulativos dizem
respeito aos eventos que podem ser pequenos, sob o ponto de vista de riscos de
perda de acervo, mas grandes em quantidade, haja vista que são considerados muito
frequentes (ICCROM, 2018).
334
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
O secretário disse ter ficado impressionado com a situação das instalações elétricas que, segundo
ele, estão em estado deplorável. “O museu vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservadas,
alas com infiltrações, uma situação de total irresponsabilidade com o patrimônio histórico”, afirmou
o secretário (NASCIMENTO, 2004).
O Museu Nacional foi fundado em 1818, por Dom João VI. Teve o seu
edifício tombado8 em 1938, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e possui tutela da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
8 Tombamento no Livro Histórico (Nº inscr.: 051; v. 1; f. 010; Data: 11/05/1938) e no Livro de Belas Artes (Nº
inscr.: 023; v. 1; f. 005; Data: 11/05/1938) o edifício do Museu Nacional, inclusive a Coleção Arqueológica Balbino
de Freitas. IPHAN. Lista dos Bens Culturais Inscritos nos Livros do Tombo Histórico (1938 – 2012). Rio de Janeiro,
2013 (p. 113).
9 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/03/album/1535940297_655202.html#foto_gal_1>.
Acesso em: 25 mar. 2019.
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Los eventos considerados ‘raros’ ocurren con menor frecuencia que una vez cada ~ 100 años.
En consecuencia, este tipo de eventos no son parte de la experiencia directa de la mayoría de las
personas que trabajan en el museo. Desde la perspectiva del total del patrimonio museológico de
una nación, estos eventos pueden producirse cada pocos años, y desde una perspectiva global,
estos eventos pueden convertirse en rutinarios (ICCROM, 2016, p. 55).
337
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CONCLUSÕES
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REFERÊNCIAS
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Acesso em 05 mar. 2019.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente – Séculos XVIII-
XXI. Do monumento aos valores. Tradução Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009.
341
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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Em sua história, a cidade permitiu (ainda que por vezes escapando aos que a controlavam
politicamente) que um número crescente de pessoas vivesse nela a experiência estimulante da
multiplicidade dos encontros e do confronto da diversidade de valores, tornando-se, desde o
Renascimento, cada vez mais decisivamente, a matriz das principais tendências da cultura moderna
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e contemporânea. Comparando sua experiência particular com a dos outros, o indivíduo pode se
conhecer melhor; pode perceber o que ele tem de comum com os demais e o que o diferencia deles.
Pode distinguir o que nele existe de mais universal e pode, culturalmente, se universalizar mais,
incorporando ao seu conhecimento os conhecimentos alheios. Essa incorporação lhe permitirá
fazer opções mais conscientes e, por isso, efetivamente mais livres. A cidade, pois, não engendra
automaticamente a cidadania, mas passa a ser o lugar onde pode ser travada com melhores
possibilidades a luta pela efetivação da cidadania (KONDER, 1994, p. 79-80).
344
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A questão, pois, é saber em que condições a cidade pode aparecer como um lugar que possa ser
definido por seu caráter identificador; um lugar que permita que seus habitantes se reconheçam
e se definam por meio dele, que, por seu caráter relacional, permita a leitura da relação que os
habitantes mantêm entre si, e por seu caráter histórico, possibilite que os habitantes reencontrem
os vestígios de antigas implantações, seus sinais de filiação.
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Imagens da cidade vivida povoam nossas memórias. Caminhamos pela cidade e percebemos, em
nós, sentimentos diversos sobre pessoas de nossa rede de pertença (e outras que estranhamos),
sobre ruas que nos são familiares (evitamos outras), sobre espaços frequentados (ignoramos
outros), sobre transeuntes que nos atiram à atenção (evitamos a proximidade com alguns); enfim,
esses tantos arranjos sociais configuram um sentido de ser e estar na cidade (ROCHA; ECKERT,
2010, p. 85).
Medos, ódios, insensibilidades, indiferença. Novas maneiras de viver, sentir perceber e interpretar
os encontros na cidade. As classes média e alta passam a identificar o espaço público como perigoso
e buscam organizar os encontros públicos por meio da seletividade e separação. A segregação
torna-se, assim, complementar à violência urbana (FERREIRA NETO, 2004, p. 8).
A potência heterogênea que a cidade subjetiva nos apresenta não é somente dos loucos ou dos
artistas. Há cidades invisíveis que se escondem em cada encontro. Há universos que se abrem à
medida que acreditamos ser mais além de nós mesmos, revirando-nos do avesso, numa experiência
que flerta com a loucura em sua dimensão criativa e produtora de mais mundos (PAULON, 2017,
p. 783).
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[...] o que as legislações de Saúde e Direitos Humanos induzem nossas cidades a fazerem, quando
propõem transformar o modo de atenção asilar em Saúde Mental para um cuidado em rede
psicossocial, é alinharem-se a um tempo em que se tornou incontornável, se não ‘comviver’, no
mínimo confrontar-se com a existência desses radicais diferentes que já não podem ficar confinados
em espaços a eles antes destinado (PAULON, 2017, p. 781).
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por lembranças e esquecimentos que jamais são ingênuos ou ao acaso, pois sempre
carregam intencionalidades.
Os referentes teóricos do campo da Memória Social mostraram-se profícuos
para a reflexão à qual nos propusemos, ao evidenciarem que a memória precisa ser
dialética e estar aberta às transformações, apresentando-se como possibilidade de
ruptura e transformação criativa. Uma memória voltada à manutenção de valores e à
legitimação de desigualdades históricas jamais pode ser confundida com a memória
que se põe a serviço do bem estar social, das transformações que ensejamos e da
visibilidade daqueles que, ao longo do tempo, foram excluídos das narrativas oficiais
que compõem as memórias coletivas.
A luta antimanicomial não é assim tão jovem; já são décadas de esforços
de organismos internacionais convergindo com a ideia de que práticas
efetivamente terapêuticas, inclusivas e cidadãs, no âmbito da saúde mental, não
são apenas possíveis, mas necessárias e fundamentais, tanto para os sujeitos que
padecem de sofrimentos psíquicos quanto para a sociedade enfrentar-se com sua
diversidade. Em nível nacional e internacional, não faltam experiências e legislações
que embasem a necessária reformulação do modelo psiquiátrico até então vigente,
calcado no isolamento e na exclusão social da loucura. Entretanto, todo este
aparato ainda não alcançou seu objetivo com plenitude, pois o maior desafio que se
apresenta diz respeito a uma mudança cultural, o que engloba um trabalho coletivo
que depende não apenas de usuários, familiares e profissionais engajados, mas da
conscientização de gestores públicos e da própria sociedade civil.
Felizmente, ao longo desse tortuoso caminho, identificamos outras instituições,
grupos e pessoas que podem juntar forças na efetivação desse projeto. Os museus
visitados e que serviram de inspiração para esta reflexão teórica são a prova disso.
Apesar de todas as dificuldades e resistências enfrentadas pelas reformas psiquiátricas no
Brasil e no mundo, permeadas por interesses políticos e econômicos, uma concepção
asilar de tratamento psiquiátrico é cada vez mais anacrônica e ultrapassada.
Isso é perceptível quando edificações que outrora serviram de enclausuramento de
corpos e desperdício de vidas, simbolicamente, são ressignificadas e passam a atuar
justamente para não nos deixar esquecer a forma desumana como, historicamente,
lidamos com a doença mental. O esquecimento que recai sobre as memórias dos
loucos, devido à sua exclusão do contato social no espaço citadino, é lastimável,
mas, mais abominável ainda, seria não dispormos de lugares de memória que se
propusessem a debater tal assunto, lançando luz sobre uma temática que muitos
desejam silenciar.
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REFERÊNCIAS
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______. Etnografia de e na rua. In: ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornélia.
(Org.). Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2013b; p. 21-46.
______. Narrar a cidade: experiências de etnografias da duração. In: POSSAMAI, Zita
Rosane. (Org.). Leituras da cidade. Porto Alegre: Evangraf, 2010, p. 85-108.
352
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una huella, un rastro, una traza visual del tiempo que quiso tocar, pero también de otros tiempos
suplementarios – fatalmente anacrónicos, heterogéneos entre ellos – que no pueden, como arte
de la memoria aglutinar. Es ceniza mezclada de varios braseros, más o menos caliente (DIDI-
HUBERMAN; CHÉROUX; ARNALDO, 2013, p. 9).
Lo interesante es la modificación que una misma imagen sufre a partir de los elementos que se
le van agregando o los contextos de acción donde fueron y son usadas. Si inicialmente eran una
simple foto que identificaba a un ciudadano en un documento público, a medida que la propia
354
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Segundo López (2011, p. 121), “no se trata de ir ‘más allá’ de las imágenes, sino de
entender cómo éstas traen consigo ya una manera de hacer hablar a la historia otros lenguajes; y
con ello, una manera de hacer hablar a las voces que no han sido escuchadas”, o que reafirma
a necessidade de compreender os usos que são dados aos documentos fotográficos
como suporte visual que transmite inumeráveis sensações e que apoiam constantes
processos sociais e políticos das vítimas.
Em resumo, foram compreendidos os usos simbólicos como aqueles em que
a fotografia é composta de subjetividades, gera sentimentos e é ressignificada, seja
durante comemorações ou rituais que permitam a evocação. Os usos políticos
provêm à fotografia o papel argumentativo, de exigência pública de reconhecimento
de direitos violados e de resistência das famílias que lutam perante a invisibilidade
estatal e social. O uso político é visível em marchas, audiências, manifestações. Por sua
vez, o uso documental conserva um sentido que vai além do estético, as imagens são
instrumentos que permitem documentar, construir histórias e apresentar denúncias.
As fotografias podem fazer parte de dossiês ou álbuns, que são fonte de informação
e podem ser provas úteis na luta contra a violação dos direitos humanos.
A Colômbia tem convivido com um longo conflito armado interno, que afeta
grande parte de sua população (direta ou indiretamente), que envolve diversos tipos
de violação dos direitos humanos. Nas palavras da professora María Teresa Uribe: “el
nuestro es un conflicto multipolar, fragmentado, diverso, prolongado en el tiempo y diferenciado
en los espacios, lo que quiere decir que no es compatible con experiencias de conflicto y guerra
vividas por otros países […]” (URIBE, 2005, p. 15). O conflito colombiano não possui
um único autor armado que possa ser responsabilizado pelos crimes cometidos em
todo território nacional.
Foram contabilizadas 82.998 pessoas vítimas de desaparição forçada, segundo
relatório de 2018, do Observatorio de Memoria y Conflicto do Centro Nacional de
Memoria Histórica (CNMG), o qual ainda identifica como principais perpetradores
os grupos paramilitares, as guerrilhas e agentes do Estado3.
Nesse contexto de violência, grandes laços de solidariedade foram formados
entre as vítimas. Essa união tem sido fundamental para empreender processos de
construção da memória na Colômbia. ASFADDES iniciou, em 1982, a busca por
pessoas desaparecidas em decorrência do conflito armado colombiano, buscando,
ao mesmo tempo, a recuperação da memória por meio de uma luta constante, em
meio a uma sociedade que, em muitos momentos, prefere ignorar ou manter-se
3 Para mais informações, ver: <http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/noticias/noticias-cmh/en-
colombia-82-998-personas-fueron-desaparecidas-forzadamente>.
355
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
La memoria es, ante todo, una acción viva de continua lucha, de resistencia y dignidad de las
víctimas, en donde el pasado y el presente se unen para dejar huella en el futuro de los ausentes.
Esa es la memoria, poder hacer presente el pasado para no olvidar a los enemigos de la vida,
aquellos que les negaron a nuestros seres queridos la posibilidad de alcanzar sus metas, de cumplir
sus proyectos de transformación de la injusticia por la justicia. En fin, la memoria es la vida a cambio
de la muerte (ASFADDES, 2008, p. 80).
A PESQUISA
Para identificação e análise dos usos das fotografias relacionadas com a defesa
dos direitos humanos em casos de desaparição forçada, foi realizada, na ASFADDES
(Medellín), uma pesquisa qualitativa, divididas em quatro fases, as quais especificam
as atividades que foram necessárias para atender aos objetivos da pesquisa proposta.
356
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
USO SIMBÓLICO
Figura 3: Fotografias exibidas na Semana del Detenido Desaparecido em maio de 2019, em Medellín.
360
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USO POLÍTICO
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Figura 4: Comemoração do Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados em Medellín, 30 de agosto
de 2018.
USO DOCUMENTAL
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
documento que é gerado na busca por informações e esclarecimento dos fatos sobre
o desaparecimento de seus familiares. Nesses arquivos, é possível identificar diversos
tipos de documentos, como recortes de imprensa, documentos pessoais, processos
que foram iniciados pelos familiares, entre outros. A figura 5 exibe um exemplo
de arquivo pessoal – nesse caso, o de Fernando Gavíria, detido/desaparecido –,
produzido por seus familiares durante a busca por informações sobre o paradeiro.
Em alguns casos, encontramos como primeiro documento dos dossiês pessoais uma
foto do desaparecido – iniciando com um rosto e uma identidade da pessoa que se
busca.
A fotografia como documento pode acompanhar as narrativas dos outros
documentos que compõem os arquivos. Contextualizadas, complementam ou
completam os dados sobre os desparecidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
363
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
REFERÊNCIAS
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1 Mestranda em Direito pelo PPG Stricto Sensu da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI) campus de Santo Ângelo. Bolsista CAPES/PROSUC. Bacharela em Direito pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Campus de Santo Ângelo. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa (CNPQ) Direitos de Minorias, Movimentos Sociais e Políticas Públicas, vinculado ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu - Mestrado e Doutorado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI), Campus Santo Ângelo/RS. Pesquisa temas relacionados a mulheres Trans, identidade, cultura e
diferença. [email protected].
2 Pós-Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Possui mestrado e Doutorado em
Direito, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e graduação em Direito pela Universidade de Cruz Alta.
Atualmente, é professor do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIJUÍ, Ijuí/RS,
e do Programa de Pós-Graduação em Direito da URI, Santo Ângelo/RS. Coordenador Acadêmico do PPGD/
URISAN. Editor da Revista Científica Direitos Culturais. Membro fundador da Casa Warat Buenos Aires e da
Editora Casa Warat. Advogado criminalista. [email protected].
3 Doutoranda (PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPEL/RS). [email protected].
4 Termo utilizado para abarcar todas as Transidentidades, em especial as mulheres Trans, de modo a não engessar e/
ou buscar padrões de autoidentificação de gênero que engessem a liberdade dos sujeitos que assim se reconhecem
(LANZ, 2017).
366
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
fêmea. É essa transgressão das normas de gênero que identifica a mulher Trans na
sociedade, o que não deixa de ser uma forma de ousar, de transcender um sistema de
hierarquização dos sujeitos há muito tempo existente (LANZ, 2017, p. 69).
Nessa mesma linha, mulheres travestis são geralmente lançadas ao mercado
do sexo, fazendo da rua um lugar social, espaço que lhes é negado no mercado
de trabalho, nos educandários e em tantos outros espaços (LANZ, 2017, p. 95).
A resistência dos movimentos em unificar essas identidades múltiplas como Trans,
ou gênero divergente, acaba por discriminar os sujeitos que assim se reconhecem,
enfraquecendo grupos que buscam o mesmo fim – o direito de viver como desejam
e como se reconhecem. Ou seja, dentro dos grupos de pessoas Trans, acaba sendo
fomentada uma forma de hierarquização de identidades, assim, onde esses sujeitos
poderiam encontrar amparo, acabam por encontrar uma segregação semelhante a
do restante da sociedade quanto a suas formas de expressão. Mas, como tanto se
questiona: o que é ser mulher? “A mulher? É muito simples, dizem os amadores de
fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para
defini-la” (BEAUVOIR, 1980, p. 25). Todavia, ser mulher vai além da genitália,
transcende questões biológicas e adentra na seara social, identitária e pessoal
de cada indivíduo que assim se reconhece e deseja viver. Em outras palavras, se
alguém se sente mulher e assim deseja viver, que mal há? De acordo com essas
normas socialmente impostas, um homem que passa a se vestir como mulher está
em desacordo com as normas adequadas (LANZ, 2017, p. 69). Uma das questões
urgentes é a de que indivíduos que transgridam tais ideais de conduta social, muitas
vezes, são vítimas dos mais diversos tipos de discriminação, seja pela
ausência de um olhar governamental, legal ou social, seja pela violência a
que são submetidos cotidianamente, figurando na sociedade como minorias. Nesse
ensejo, Angelin e De Marco aduzem que:
369
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Ainda no que se refere à violência, especificamente no sentido de gênero, esta acarreta desigualdade
social, na medida em que muitas vezes é fomentada pelas estruturas de poder, por agentes em
diversas esferas, segregando alguns indivíduos da vida em sociedade (SAFFIOTI, 2015, p. 74-5).
Sabemos também que as identificações, além de plurais, são dominadas pela obsessão da diferença
e pela hierarquia das distinções. Quem pergunta pela sua identidade questiona as referências
hegemônicas, mas, ao fazê-lo, coloca-se na posição de outro e, simultaneamente, numa situação
de carência e por isso de subordinação (SANTOS, 1994, p. 31).
370
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
mulheres Trans, as quais possuem uma estimativa de vida que dificilmente ultrapassa
35 anos de idade. Conforme atenta Benevides:
O modo como essas mortes ocorrem é sempre muito violento. O assassinato por tiros encabeça
a lista de mortes, mas não são um ou dois tiros, é uma execução. Há casos em torno de 20, 30
tiros, como se o assassino quisesse matar também a alma da vítima. Expurgar de vez a
existência Trans. E é assim que eles fazem! Muitos destes assassinatos são cometidos por pessoas
sem relação direta com a vítima, o que demonstra a Transfobia presentes em todos os casos que
vem sempre acompanhados de requintes de crueldade. E são as travestis e transexuais, em geral
as profissionais do sexo, negras e em situação de vulnerabilidade social, as mais expostas
(BENEVIDES, 2017, p. 8, grifo nosso).
[...] denota o ódio às prostitutas, em um país que ainda não existe uma lei que regulamente a
prostituição que, apesar de não ser crime, sofre um processo de criminalização e é constantemente
desqualificada por valores sociais pautados em dogmas religiosos que querem manter o controle
dos seus corpos e do que fazemos com eles. Este comportamento da sociedade é constantemente
reforçado pelas representações preconceituosas que o senso comum detém da imagem da
prostituta e estão relacionadas aos comportamentos considerados como imorais pela sociedade
(ANTRA, 2017, p. 18).
371
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Trans de nome Joana, a qual, assim como tantas Trans brasileiras, é oriunda de família
humilde formada por três irmãos, sendo ela a mais jovem. Joana, que possuía nome
de registro masculino, se enquadrava, aparentemente, no padrão da unidade, em
razão de biologicamente estar de acordo com a legislação (SINASE). Porém, do
parecer psicológico realizado pela psicóloga da Unidade, o qual está acostado aos
autos, constou:
Quando perguntado para a adolescente como ela deseja ser chamada, ela responde que prefere
que se refiram a ela pelo nome de Joana. Por este motivo, nesta avaliação será feita referência à
adolescente pelo nome de Joana; cabe destacar que na sua aparência física, também existe
identificação com o sexo feminino (BRASIL, TJRS, Processo nº 029/5.16.0000902-8, p. 144, grifo
nosso).
Eu não tava mais fazendo programa, eu tinha parado com tudo, tava estudando, tava tudo, eu
nem saia mais de noite, não tava fazendo coisa errada. Não teve nenhuma ocorrência depois que
aconteceu essa outra coisa, que eu fui presa, passou dois anos e não teve nada mais no meu nome
(JOANA, 2018).
372
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
sua assistida. Já Joana, quando indagada pela equipe acerca do lugar que considerava
ideal para sua permanência enquanto privada de liberdade, demonstrou receio em
permanecer tanto numa unidade para o sexo biológico masculino quanto para o
sexo biológico feminino, em razão da discriminação que poderia sofrer em relação à
aparência física destoar de sua genitália, em ambos os locais. Ainda assim, referiu que,
num local composto por internas do sexo feminino, talvez se sentisse mais à vontade,
mas, por sua fala, observa-se que nem mesmo Joana sabia onde era realmente seu
lugar.
Assim, preliminar às narrativas e vivências de Joana, no que concerne ao
sistema socioeducativo, é fundamental buscar compreender alguns pontos acerca
de memória e identidade, a fim de que se perceba a importância da narrativa da
adolescente sobre sua passagem pelo CASESA. Nesse aspecto, mostra-se essencial
perceber que a memória advém de uma construção social, tal qual o gênero e a
identidade. Em outras palavras, a memória é uma forma de reconstruir o passado,
alimentando, assim, a construção constante daquele que a invoca ao narrar fatos de
sua vida, fatos esses que o constituem/moldam enquanto sujeito (CANDAU, 2012,
p. 10-16). É visível, junto às narrativas de Joana, o sentimento de preconceito em
relação a sua identidade de gênero enquanto mulher Trans.
Por outro lado, a importância do narrado pela adolescente ocorre tendo em
vista suas vivências, mas, para que haja vivências, há que existir um sujeito, e, no caso
em tela, o sujeito é Joana. Assim, a essencialidade de sua identificação neste trabalho
se dá, primeiramente, atentando para a premissa de nominá-la, afinal, poderiam
ser aqui analisadas outras tantas meninas Trans que, cotidianamente, adentram ao
sistema socioeducativo; todavia, o caso ora analisado é o dela. Acerca da necessidade
de se nominar os sujeitos, Candau preleciona que: “[...] apagar o nome de uma
pessoa [...], é negar sua existência, reencontrar o nome de uma vítima é retirá-la
do esquecimento, fazê-la renascer e reconhecê-la conferindo-lhe um rosto, uma
identidade” (CANDAU, 2012, p. 68).
Desse modo, não há forma mais justa de se adentrar nas vivências Trans senão
contemplando as vozes das adolescentes que já tiveram sua liberdade privada e, de
igual sorte, dos servidores que as recebem e, preparados ou não, convivem diariamente
com estas múltiplas formas de identidade existentes na sociedade, obrigando-se a
encontrar a melhor forma de conviver com a diferença.
Por outro lado, tal qual preleciona Touraine, existem experiências pessoais que
acabam por se tornar uma espécie de consciência coletiva (TOURAINE, 2007,
p. 92). Eis que situações de dominação, tal qual o gênero, ainda que atinjam cada
indivíduo em suas particularidades, acabam por fomentar debates e pautas voltados a
grupos maiores e igualmente violados. Daí a importância da narrativa de Joana, pois
a adolescente, ao passo que sua identidade desafia a Unidade e seu funcionamento,
prova que o Sistema Socioeducativo não está adequado às novas identidades e
expressões de gênero. Nesse ensejo, adentrando ao universo desta adolescente Trans,
quando questionada sobre quem é, referiu:
373
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Eu sou Joana, uma transexual, Trans, travesti, eu não sei como é o nome certo pra vocês que
estudam, mas eu sou mulher, sempre me senti mulher. Mas eu não gosto muito que me chamem
de travesti, parece que eu sou montada, forçada. Eu sou Joana, sou transexual, porque trans é
menina que nem eu, que parece guria, e travesti é aquele que de dia é homem e de noite se veste
de mulher (JOANA, 2018).
Tu sabia Dona que quando eu ia procurar trabalho, nunca me davam? Era só eu chegar nos lugar
que já me olhavam torto, e diziam que não tinha vaga, que iam ligar, e nunca ligavam. Gente que
nem eu não tem vaga em nada. Ninguém vai botar uma bicha num mercado numa loja, isso não
tem como (JOANA, 2018).
A rua é ruim, dá medo, eu já apanhei, geral acha que a gente tá lá porque é vagabunda, mas não.
Eu to lá porque ninguém me deu oportunidade. Daí na rua, eu ganho meu dinheiro sabe, os cara
procuram, os casado também, dizem que eu sou bonita, ligam direto. Mas tem os que levam a
gente pra motel, depois querem larga na rua sem paga, daí a gente cobra e apanha, daí registram
parte que a gente roubou eles, ou os que dizem que como a gente tem pinto, tem que fazer
programa de graça, não tem vergonha na cara. Por causa disso eu fui presa já, um inferno, porque
se a gente não recebe, mesmo sendo errada a gente bate né, vai fazer o que. Ninguém quer dizer
que saiu fazer programa com a bicha né? (JOANA, 2018).
Sem que fosse necessário questionar acerca de sua passagem pelo Sistema
Socioeducativo, Joana por conta própria passou a narrar o ocorrido. Segundo ela,
muitos clientes, após a realização do programa sexual, se negam a pagar o acordado
e, por essa razão, ocorrem desentendimentos que, na maioria das vezes, ensejam
agressões físicas e boletins de ocorrência junto à Delegacia de Polícia. Foi desta
forma que a adolescente, ainda no ano de 2014, adentrou ao Poder Judiciário para
sua primeira audiência de apresentação.
374
M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
CONCLUSÃO
7 O termo bitada seria o ato de um interno arremeçar comida no rosto do outro (JOANA, 2018).
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Por fim, não se pode fazer do Sistema Socioeducativo um vilão, eis que não
cabe somente a ele a responsabilidade de solucionar a problemática que envolve
pessoas Trans. Todavia, é necessário e urgente um olhar voltado ao diferente, na
medida em que a sociedade se constrói cada vez mais plural e diversa, e necessita
evoluir no sentido de assegurar proteção a todos os cidadãos, sem distinção. As
narrativas Trans atentam para a invisibilidade, restando como questionamento: até
quando os sujeitos Trans possuirão somente a margem social como ambiente de
vivência e de resistência de suas identidades?
REFERÊNCIAS
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
FONTES ORAIS:
JOANA. Entrevista concedida a Lucimary Leiria Fraga. Santo Ângelo-RS, 10 out. 2018.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
COLONIALISMO ESTRUTURAL:
REPRESENTAÇÕES PÚBLICAS DA ESCRAVIDÃO
NO BRASIL
ELIS MEZA1
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
Se a gente dá uma volta pelo tempo da escravidão, a gente pode encontrar muita coisa interessante.
Muita coisa que explica essa confusão toda que o branco faz com a gente porque a gente é preto.
Prá gente que é preta então, nem se fala (GONZALEZ 1984, p. 229).
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O passado da escravidão está impregnado e esse é o imaginário das pessoas, esse é o imaginário
que as pessoas têm quando eu entro no elevador da Faculdade de Educação e elas não me veem
como aluna do curso de especialização, elas vão a meu passado lá, vão ver a figura do escravizado
(LOPEZ 2015, p. 316).
Uma diretora de uma famosa revista fez 50 anos ontem 08/02 e comemorou com seus amigos num
hotel luxuoso na Bahia com vários artistas famosos, até aqui tudo bem! A decoração da sua festa
foi Brasil Colônia Escravocrata, com direito a mulheres pretas vestidas de mucama ambientando
a festa e recebendo os convidados, como vimos na foto até o trono da sinhá tinha. Terão pessoas
nesse post que falarão que não viram problemas nenhum que é mimimi e por aí vai, pois qdo não
se sabe argumentar utilizam dessas falácias pra tentar reverter o irreversível. A branquitude (não
5 Declarações disponíveis em <https://www.facebook.com/gti24horas/posts/272906426676286>. Acesso em
18 set. 2018.
6 Ver reportagem em <https://claudia.abril.com.br/noticias/festa-15-anos-escravidao/>. Acesso em 20 mar. 2018.
7 Outro caso nesta mesma linha foi uma mãe que fantasiou o filho de “escravo” para a festa de Halloween da
escola. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2018/10/29/mae-fantasia-filho-
de-escravo-para-festa-de-halloween-em-escola-de-natal-vamos-abrasileirar-esse-negocio.ghtml>. Acesso em 20
nov. 2018. A senhora pintou o menino de “preto” e colocou “marcas de chicotadas” além de colocar correntes em
mãos e pés.
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M E M Ó R I A E PAT R I M Ô N I O : T R A M A S D O C O N T E M P O R Â N E O
estou falando do indivíduo e sim de uma sociedade privilegiada por ter a pele alvo mais que a
neve) voltando...
A branquitude ama vivenciar o ranço da escravidão, pq a final de contas eles gostariam que não
tivesse acabado mas, será que acabou? Vivemos na tal escravidão moderna, onde nossas dores
viram fantasias, decoração de festas pra beneficiar o mal gosto das sinhás e sinhóres. A senzala
moderna continua sendo o quartinho da empregada. Quando leio sobre escravidão dá um nó na
garganta, arrepia a pele e é óbvio que sinto meu corpo doer, sinto as dores dos meus ancestrais,
afinal de contas fazem apenas 131 anos que o Brasil “deixou” de ser escravocrata. Nossas dores
não pode ser fantasias, estampa de roupa ou decoração. O problema do racismo nem é dos pretos
e de vcs que estão sentados nesse trono aí da foto trabalhados no privilégio, sendo assim revejam!
E a sua riqueza hoje tem sangue indígena e preto, o que vc faz pra reparar essa história? E eu cobro
mesmo, seja na internet ou cara a cara, pq aqui não passa batido não. Um povo sem história é
um povo sem memória, a nossa história nesse país foi escrita com sangue, morte e dor e estamos
aqui pra dar uma nova sequência para que não esqueçamos o nosso passado porém reescrever
essa história atual de luta, resistência e sorriso, pq sorrir para nós tbm é um ato político! O tempo
fechou pra vcs branquitude e agora não abaixaremos mais a cabeça até que todxs pretxs sejam
realmente livres8.
Sou bisneta de escrava, neta de escrava forra e minha mãe conhecia na fonte as histórias sobre
o flagelo do povo negro. Protesto pelos direitos da minha raça desde que preta não entrava na
sala das sinhás. Gentem, essas feridas todas eu carreguei na alma e trago as cicatrizes. A maioria
do povo negro brasileiro. Feridas que não se curaram e são cutucadas para mantê-las abertas
demonstrando que “lugar de preto é nessa Senzala moderna”, disfarçada, à espreita, como se
vigiasse nosso povo. Povo que descende em sua maioria dos negros que colonizaram e construíram
o nosso país9.
Elas não estavam ali como convidadas, mas como um acessório de cena, um ornamento. As pessoas
brancas vão sentando naquele trono e as modelos negras vão adornando aquela imagem, como
se fosse um objeto. Isto remete mesmo ao tempo da escravidão, onde as pessoas negras eram
realmente objetos10.
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Podemos ver como tal reflexão é necessária a partir das discussões sobre
políticas de patrimônio cultural, espaços de memórias e identidades culturais, mas
não pode ser deixada de fora a importância da reflexão em torno da materialidade
nas tentativas de manutenção do status quo colonial e suas possibilidades para
desmontá-lo.
Gostaria de apontar que, de igual forma, considerando que as fotografias são
uma metalinguagem, não quero reproduzir fotografias que mostrem representações
de pessoas escravizadas engrilhetadas, ou em posições inferiorizadas, porque
isto constituiria uma promoção, mesmo que não intencional, da ideologia que
fundamenta a nostalgia colonial. Nesse sentido, no pé de página forneço os links
que permitem conferir algumas imagens dos acontecimentos discutidos no texto,
sem divulgar mais uma vez tais imagens.
As memórias de afrodescendentes continuamente são desrespeitadas, na
prevalência de discursos sobre a servidão e o castigo, quando não da ausência,
negando a escravidão ou diluindo suas caraterísticas no discurso da democracia
racial ou da “escravidão branda”. Mas, por outro lado, também tais representações
não são homogeneamente aceitas, sendo que ativistas negras e negros têm
desenvolvido contradiscursos, tal como expressei nos três exemplos analisados,
e como historicamente tem acontecido, inclusive para que atualmente possa ser
feito esse tipo de análises. De fato, diversas pessoas têm compartilhado o seguinte
pensamento frente ao cenário da nostalgia colonial: “Se a casa grande sente falta dos
tempos de senzala, então devemos lembrar como se bota fogo no engenho”11.
A crítica da persistência de representações racistas e colonialistas em torno da
escravidão ‒ que aqui temos abordado desde a noção da nostalgia ‒, é fundamental
para a promoção da cidadania e, portanto, nos estudos em torno de políticas de
memória, precisamos continuar dando atenção às teorizações e práticas que
se relacionam a esses discursos públicos, mas principalmente colaborar com os
contramovimentos que envolvem pessoas negras. Isto é por um lado entender o lugar
de fala (RIBEIRO, 2017) de quem lidera as críticas antirracistas, anticolonialistas e
antisexistas, mas também aceitando a necessidade de rever as próprias atitudes e
privilégios.
AGRADECIMENTOS
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REFERÊNCIAS
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METODOLOGÍA DE ESTUDIO
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toda persona de la que se considera que apoya a la guerrilla de una u otra forma (incluso si
los insurgentes utilizan la fuerza para obtener, por ejemplo, alimentos o dinero de los civiles), se
ha hecho extensiva, al parecer, a todos los que expresan insatisfacción ante la situación política,
económica y social, sobre todo en las zonas rurales.
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Figura: Identificación del origen y tratamiento archivístico de los FUD en las políticas de reparación
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Los archivos de derechos humanos de memoria histórica y conflicto armado, comprenden las
Agrupaciones documentales de diversas fechas y soportes materiales, reunidas o preservadas por
personas, entidades públicas y privadas, del orden nacional e internacional, cuyos documentos
testimonian y contribuyen a caracterizar las graves violaciones de los Derechos Humanos, las
infracciones al Derecho Internacional Humanitario y hechos relativos al conflicto armado [...] (2017,
p. 21-22).
El archivo hoy en día se considera de Forma creciente como el lugar donde la memoria social ha
sido (y es) construida. […] El documento, por lo tanto, se convierte en un significado cultural, una
construcción mediatizada y cambiante, y no una plantilla vacía donde verter los actos y los hechos.
2 Estos principios fueron adoptados por la Asamblea General de las Naciones Unidas en 1996 y actualizados
posteriormente por la experta independiente Diane Orentlicher. Recuperado de <http://www.idhc.org/esp/
documents/PpiosImpunidad.pdf>
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Desde esta perspectiva, los FUD son un dispositivo que privilegia unos campos
de información que configuran el testimonio, registran unas categorías de hechos
víctimizantes, entre otra información, que constituye la base material para el RUV y
que dan cuenta de la magnitud documentable de la memoria. Por lo anterior, estos
documentos vehiculizan creencias y visiones sobre la guerra, con lo cual inciden en
la construcción y recuperación de la memoria.
CONSIDERACIONES FINALES
3 Tomado del XIII Informe sobre los avances de la política pública de atención, asistencia y reparación integral a las
víctimas del conflictoRecuperado de: <http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/descargas/informes2018/
xiii-informe-gobierno-nacional_julio2018.pdf. Consultado el día 25 de junio de 2019>.
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REFERENCIAS
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[...] uma passarela rodeada por um espelho d’água com 242 esguichos que dá acesso a um
prédio com hall para exposições e salas multimídia. A edificação conta com um terraço-jardim
que funcionará como mirante para os morros da cidade, áreas verdes do campus e o Centro de
Convenções. O prédio, todo idealizado em vidro para estimular o contato com a natureza, ainda
dará acesso a um monumento em formato de coração em meio a outro espelho d’água. No entorno,
o projeto prevê a plantação de 242 espécies de árvores que florescerão em tempos distintos durante
todas as estações do ano, e uma espécie de arquibancada ao ar livre com platôs para descanso e
contemplação (Projeto Memorial UFSM, 2018).
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sítio que sediava a antiga boate. Este é a representação dos espaços que
Despliegan su propia memoria, a menudo sin rastros, a veces por medio de huellas más o menos
legibles, ya sea se encuentren abandonados o, por el contrario, se los conserve (ROBIN, 2014, p.
125).
Por isso, estes locais, marcados pela dor ou que são eleitos para receber ações
de representação desta, dão lugar a manifestações públicas, como menciona Ferreira
(2012) com respeito ao local do atentado à bomba na estação de metrô madrilenha,
Atocha, ocorrido em 2004, quando, algumas horas após o ocorrido, o espaço já
começava a receber velas e flores dedicadas a homenagear as vítimas. Da mesma
forma, a frente da boate Kiss, tão logo liberada pelos profissionais envolvidos na
investigação, começou a receber flores, fotografias, banners e diversas manifestações
daqueles que perderam seus entes. Logo, discute-se na mídia regional e nas redes
sociais as possibilidades e necessidades ou não da criação de um memorial naquele
local que já havia sido transformado em espaço de homenagem. Por isso, desde 2013,
a fachada do prédio é palco de diversas manifestações, inclusive transformando-se
com o passar do tempo, de flores e cartazes para banners plotados, para pinturas e,
atualmente, para grafites substituídos anualmente. Essas manifestações variam entre
homenagens aos anjos que partiram e frases de indignação e solicitações de justiça.
Adentrando na possibilidade de criação de um memorial no espaço da boate,
mesmo sem definições de projetos, discussões a respeito do destino do prédio são
travadas entre o poder municipal e as associações, dando início a um processo de
desapropriação dele.Assim, é pertinente salientar que, para a construção do memorial
dedicado as vítimas do incêndio, o prédio da antiga boate será destruído, sem deixar
rastros físicos dele.
A destruição do prédio da boate e a construção de um novo espaço, que aliena
totalmente os indicativos físicos do acontecimento, poderia, a princípio, provocar
uma sensação de apagamento da memória. Contudo, ao aproximar-se dos sujeitos
que levam este processo adiante, mães e pais que perderam seus filhos no incêndio, é
possível perceber o quanto estes desejam que aquele espaço seja transformado de um
local de dor num local de amor. Desta forma, conforme cita Jean-Louis Tornatore
(2010), quando aponta a possibilidade de existência de duas formas de emoção
patrimonial vinculadas ao castelo de Luneville na França, incendiado acidentalmente
em 2003, sinaliza-se que pode haver duas formas de emoção patrimonial vinculadas
ao local, seja do cidadão que lamenta pela perda da história vinculada ao castelo ou
aqueles que choram a partir de suas memórias afetivas com o local citado. Neste
caso, podemos comparar com o anterior que a construção do memorial às vítimas
da Kiss vincula-se ao desejo de pais e mães de que não se esqueça do que aconteceu,
ensejo que se supõe alcançado a partir de um memorial, fosse este constituído a
partir da edificação anterior ou não. E, ao mesmo tempo, o local deve representar o
amor que estes sentem pelos filhos que ali tiveram suas vidas ceifadas. Desta forma,
as ruínas do prédio da casa noturna fogem a esta proposta, justificando assim a
sobreposição do local pelo memorial que poderá cumprir ambos os papéis.
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A memória da tragédia não deve ser esquecida ou apagada. Com esse objetivo, a fachada proposta,
em toda sua força, austeridade e pesada materialidade, remete ao trauma ali ocorrido. Por outro
lado, ao atravessar essa barreira por sua abertura central, entra-se em um espaço de linhas leves,
proporções delicadas e materiais agradáveis. Um espaço que, sendo circular, não possui lados,
onde todos os visitantes se veem, identificam-se e confortam-se. Atinge-se assim a transformação
da memória negativa que existe ali em uma oportunidade de reflexão; busca-se, na coletividade,
acolhimento e apoio para as famílias das vítimas e toda a comunidade de Santa Maria (Projeto 1º
colocado. IAB-RS, 2018)4.
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Puede contener tanto dimensiones meramente semánticas y/o emocionales, como materiales;
incluye múltiples actividades y actitudes cuyos propósitos amplios pueden verse como el cierre o
alivio de las heridas/traumas no reparables o compensables […] (PIÑEROS, 2008, p. 763).
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[...] um novo campo de ação patrimonial dedicado à compreensão das memórias difíceis, pois os
efeitos destas novas formas de comemoração do passado, ainda não estão claras e, tampouco
existe um consenso no que diz respeito aos métodos experimentados pelos meios de transmissão
destas novas memórias (BEZZERA E SERRES, 2015, p. 175).
Contudo, todos convergem num mesmo sentido, que pode ser traduzido
através das falas de Posso em entrevista feita por Ferreira, quando este discorre a
respeito da proposta de criação do Centro de Memória para Paz em Bogotá, o qual
surge como uma ação de reconhecimento da dignidade das vítimas, em busca da
transformação do futuro a partir da criação não de um lugar que sirva para lamento,
mas que seja visitado como local de aprendizado, democracia, direitos humanos e
paz (FERREIRA, 2017).
Assim, tudo que aqui foi discutido é parte integrante do processo de
construção da memória em Santa Maria em busca do não esquecimento e de justiça
e em homenagem às vítimas. Por isso, tratar da ‘tragédia’ de Santa Maria, como é
identificada, inclusive pelo nome dado à associação que leva adiante a causa, é buscar
reconhecer os indicadores destes processos que legitimam as ações da AVTSM para
a criação do memorial.
Por esse motivo, este artigo buscou, de forma preliminar, trazer à tona uma
breve análise dos casos memoriais de Santa Maria. Fazem-se presentes as principais
indagações que vieram à tona neste primeiro ano de projeto de pesquisa, buscando
entender como estes elementos constroem as narrativas oficiais que poderão
constituir o memorial a ser construído no local da boate Kiss.
Na sequência, buscar-se-á perceber como se constituíram as mobilizações,
durante e pós incêndio, e como essas refletem atualmente, seja por meio da ação
profissional ou mesmo por meio das solidariedades da esfera civil, local, regional,
nacional e internacional. Também, após o epicentro do incêndio, pretende-se
presenciar as ações realizadas nos então marcados como lugares de memória e como
ocorrem os processos de transmissão da memória atrelada a eles, tais como na Tenda
da Vigília e as ações lá empreendidas, os eventos relacionados aos aniversários de
cada mês e ano do incêndio, ou no próprio Memorial da Vida a ser construído no
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REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Maria Leticia M. Memória, paz e reconciliação: entrevista com Camilo Posso.
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IAB-RS. Projeto 1 colocado. IAB-RS, 2018. Disponível em: <https://concursos.arqs.
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Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Estimativa do ano 2018, população de
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