O Acontecimento - Annie Ernaux

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DADOS DE ODINRIGHT

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ANNIE ERNAUX

O acontecimento

Tradução
ISADORA DE ARAÚJO PONTES
Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Epígrafe
O acontecimento

Notas
Sobre a autora
Meu duplo desejo: que o
acontecimento se torne escrita.
E que a escrita seja acontecimento.

MICHEL LEIRIS

Talvez a memória não seja mais do


que olhar as coisas até o limite.

YŪKO TSUSHIMA
DESCI NA ESTAÇÃO BARBÈS.
Como da última vez, um grupo de
homens esperava debaixo do metrô elevado. As pessoas
avançavam na calçada com sacolas rosa das lojas Tati.
Peguei a avenida Magenta, reconheci a loja Billy, com
anoraques pendurados do lado de fora. Uma mulher vinha
na minha direção, usava meias pretas com desenhos que
cobriam suas pernas grossas. A rua Ambroise-Paré estava
praticamente deserta até os arredores do hospital. Segui o
longo corredor de arcos do pavilhão Élisa. Da primeira vez,
eu não tinha percebido o coreto no pátio que acompanha o
corredor envidraçado. Eu me perguntava como veria tudo
isso depois, quando fosse embora. Abri a porta 15 e subi os
dois andares. Na recepção do serviço de exames, entreguei
o cartão com o meu número. A mulher procurou numa pasta
e retirou um envelope pardo que continha alguns
documentos. Estendi a mão, mas ela não me entregou o
envelope. Deixou-o sobre o balcão e me disse para sentar e
esperar ser chamada.

A sala de espera se divide em duas seções contíguas.


Escolhi a mais próxima da porta do médico, onde também
havia mais gente. Comecei a corrigir as redações que tinha
levado comigo. Logo depois de mim, uma moça muito
jovem, loira e de cabelo comprido, entregou seu número.
Notei que também não lhe deram o envelope e que ela
também seria chamada. Já estavam esperando, sentados
um longe do outro, um homem de cerca de trinta anos, com
trajes da moda e uma leve calvície, um jovem negro com
um walkman, um homem de uns cinquenta anos, com o
rosto marcado, afundado na cadeira. Depois da loira chegou
um quarto homem, sentou com determinação, tirou um livro
da maleta. Daí, um casal: ela, de legging, com uma barriga
de grávida, ele de terno e gravata.
Não havia jornais na mesa, apenas folhetos sobre a
necessidade de comer laticínios e “como viver sua
soropositividade”. A mulher do casal falava com seu
companheiro, levantava-se, abraçava-o, acariciava-o. Ele
permanecia quieto, imóvel, as mãos apoiadas em um
guarda-chuva. A loira mantinha os olhos baixos, quase
fechados, a jaqueta de couro dobrada sobre os joelhos,
parecia petrificada. A seus pés estavam uma grande bolsa
de viagem e uma pequena mochila. Fiquei me perguntando
se ela tinha mais motivos para estar com medo do que os
outros. Pode ser que tivesse vindo buscar o resultado antes
de viajar no fim de semana, ou de voltar para a casa dos
pais no interior. A médica saiu do consultório. Era uma
jovem esguia e exuberante, de saia rosa e meias pretas.
Chamou um número. Ninguém se mexeu. Era de alguém da
seção ao lado, um garoto que passou tão rápido que só
pude ver uns óculos e um rabo de cavalo.

O jovem negro foi chamado, depois mais alguns da outra


seção. Com exceção da mulher do casal, ninguém falava
nem se mexia. Só levantávamos os olhos quando a médica
aparecia na porta do consultório ou quando alguém saía.
Seguíamos a pessoa com o olhar.

O telefone tocou várias vezes, para consultas ou


informações sobre horários. Numa delas, a recepcionista foi
buscar um biólogo para responder a uma pessoa que tinha
ligado. Ele disse, e depois repetiu, que “não, está num nível
normal, completamente normal”. Aquilo ecoava no silêncio.
A pessoa do outro lado da linha com certeza era
soropositiva.

Tinha acabado de corrigir minhas redações. Eu revia


constantemente a mesma cena, embaçada, de um sábado e
de um domingo de julho, os movimentos do amor, a
ejaculação. Era por causa dessa cena, esquecida por meses,
que eu estava ali. O enlace e a gesticulação dos corpos nus
me soavam como uma dança da morte. Parecia que aquele
homem, que eu havia aceitado rever com certa preguiça,
tinha vindo da Itália só para me transmitir o vírus da Aids.
No entanto, eu não conseguia ver a relação entre isso, os
gestos, a tepidez da pele, do esperma, e o fato de estar ali.
Pensei que nunca haveria nenhuma relação entre o sexo e
outra coisa.
A médica chamou meu número. Antes mesmo que eu
entrasse no consultório, ela me deu um largo sorriso. Tomei
isso como um bom sinal. Fechando a porta, disse muito
rápido, “negativo”. Dei uma gargalhada. O que ela disse em
seguida na consulta não me interessou. A médica tinha um
ar alegre e cúmplice.
Desci a escada a todo vapor, refiz o caminho no sentido
inverso sem olhar para nada. Eu dizia a mim mesma que
tinha sido salva mais uma vez. Gostaria de saber se a moça
loira também tinha. Na estação Barbès, as pessoas se
amontoavam frente a frente nas plataformas, vez ou outra
com sacolas rosa das lojas Tati.

Eu me dei conta de que tinha vivido esse momento no


Hospital Lariboisière do mesmo modo que vivi a espera pelo
veredito do dr. N., em 1963, com o mesmo horror e a
mesma incredulidade. Minha vida se situa, então, entre a
tabelinha e o preservativo de um franco vendido nas
máquinas. É uma boa maneira de medi-la; mais segura que
outras, para dizer a verdade.
EM OUTUBRO DE 1963,em Rouen, esperei mais de uma semana
que minha menstruação descesse. Era um mês ensolarado
e ameno. Eu me sentia pesada e pegajosa em meu casaco
de inverno retirado cedo demais do armário, sobretudo
quando eu estava dentro das lojas de departamento por
onde flanava, comprava meias, à espera do retorno das
aulas. Ao voltar para o meu quarto na cidade universitária,
na rua d’Herbouville, tinha sempre a esperança de ver uma
mancha na calcinha. Comecei a escrever na agenda todas
as noites, em maiúsculas e sublinhado: NADA. Quando
acordava de madrugada, logo sabia que não havia “nada”.
No ano anterior, na mesma época, eu tinha começado a
escrever um romance, e isso me parecia tão distante, como
se nunca mais fosse se repetir.

Certa tarde fui ao cinema ver um filme italiano em preto


e branco, O emprego. Era lento e triste, a vida de um garoto
em seu primeiro emprego, num escritório. A sala estava
quase vazia. Vendo o corpo frágil, numa capa de chuva, de
um funcionário menor, suas humilhações; diante da agonia
sem esperanças do filme, eu soube que minha menstruação
não desceria.

Numa noite, acabei aceitando ir ao teatro com umas


moças da cidade universitária que tinham um ingresso a
mais. Era Entre quatro paredes e eu nunca tinha visto uma
peça contemporânea. A sala estava lotada. Olhava o palco,
distante, violentamente iluminado, e não parava de pensar
que minha menstruação não vinha. Só lembro da
personagem de Estelle, loira com um vestido azul, e do
Garoto vestido de lacaio, com os olhos vermelhos e sem
pálpebras. Escrevi na agenda: “Formidável. Se ao menos eu
não tivesse essa REALIDADE nas minhas entranhas”.

No fim de outubro, parei de acreditar que ela poderia


descer. Marquei uma consulta com um ginecologista, o dr.
N., para o dia 8 de novembro.

No fim de semana do Dia de Todos os Santos, voltei para


a casa dos meus pais, como de costume. Temia que minha
mãe fizesse perguntas sobre o atraso. Tinha certeza de que
ela olhava as minhas calcinhas todos os meses, quando
separava a roupa suja que eu trazia para ser lavada.

Segunda-feira, acordei com o estômago embrulhado e


um gosto estranho na boca. Na farmácia me deram
Hepatoum, um líquido denso e verde que piorou meu enjoo.

O., uma garota da cidade universitária, propôs que eu


desse aulas de francês no lugar dela no Instituto Saint-
Dominique. Era uma boa oportunidade para ganhar um
pouco de dinheiro além da bolsa de estudos. A diretora me
recebeu, o Lagarde et Michar 1 do século 16 na mão. Eu
disse que nunca tinha dado aula e que estava assustada.
Era normal, e até ela, durante dois anos, só tinha
conseguido entrar na sala de aula de filosofia com a cabeça
baixa, olhando para o chão. Sentada em uma cadeira em
frente à minha, ela encenava essa lembrança. Eu só
conseguia prestar atenção em seu crânio coberto pelo véu.
Saindo com o Lagarde et Michard que ela havia me
emprestado, eu me vi na sala do primeiro ano do ensino
médio diante das adolescentes e tive vontade de vomitar.
No dia seguinte liguei para a diretora e recusei as aulas. Ela
me pediu secamente que devolvesse o manual de literatura.

Sexta-feira, dia 8 de novembro, andando na direção da


praça do Hôtel-de-Ville para pegar um ônibus e ir à consulta
do dr. N. na rua La Fayette, cruzei com Jacques S., um
estudante de letras, filho de um diretor de fábrica da região.
Ele queria saber o que eu estava fazendo do outro lado do
rio. Eu disse que estava com dor de estômago e que ia me
consultar com um estomatologista. Ele me corrigiu
categoricamente: o estomatologista não cuida do estômago,
mas de infecções na boca. Temendo que ele suspeitasse de
alguma coisa por causa da minha gafe e quisesse me
acompanhar até a porta do consultório, me despedi de
repente com a chegada do ônibus.
Bem no momento em que eu estava descendo da maca,
com meu grande suéter verde caindo sobre as coxas, o
ginecologista me disse que com toda a certeza eu estava
grávida. O que eu achei que fosse um problema de
estômago era náusea. De todo modo, ele me receitou
algumas injeções para fazer a menstruação descer, mas não
parecia acreditar que surtiriam efeito. Na porta, sorria com
um ar jovial, “os filhos do amor são sempre os mais
bonitos”. Era uma frase horrorosa.
Voltei a pé para a cidade universitária. Na agenda,
consta: “Estou grávida. Que horror”.

No início de outubro, eu tinha transado várias vezes com


P., um estudante de ciências políticas que havia conhecido
durante as férias, e a quem depois visitara em Bordeaux.
Sabia estar num período de risco segundo a tabelinha, mas
não acreditava que aquilo poderia “pegar” no meu ventre.
No amor e no gozo, não me sentia um corpo
intrinsecamente diferente do corpo dos homens.

Todas as imagens da minha estadia em Bordeaux — o


quarto na rua Pasteur com o barulho incessante dos carros,
a cama estreita, o terraço do café Montaigne, o cinema
onde havíamos assistido a um filme B, O rapto das sabinas
— não tinham mais do que um único significado: eu estava
ali e não sabia que estava engravidando.

A enfermeira da universidade me deu uma injeção à


noite, sem fazer nenhum comentário, e outra no dia
seguinte pela manhã. Era o fim de semana do dia 11 de
novembro. Voltei para a casa dos meus pais. Em certo
momento tive um rápido e curto corrimento de sangue
rosado. Botei a calcinha e o jeans manchados sobre a pilha
de roupa suja, bem à mostra. (Agenda: “Um único
vazamento. O suficiente para enrolar minha mãe”.) De volta
a Rouen, liguei para o dr. N., que confirmou meu estado e
anunciou que enviaria meu atestado de gravidez. Recebi no
dia seguinte. Parto de: Senhorita Annie Duchesne. Previsto
para: 8 de julho de 1964. Vi o verão, o sol. Rasguei o
documento.

Escrevi para P. dizendo que estava grávida e que não


queria o filho. Tínhamos nos despedido sem certezas sobre
a nossa relação, e eu senti certa satisfação em incomodar a
sua tranquilidade, mesmo não tendo nenhuma ilusão sobre
o profundo alívio que lhe causaria a minha decisão de
abortar.

Uma semana depois, Kennedy foi assassinado em Dallas.


Mas isso já não me despertava nenhum interesse.

Os meses seguiram banhados por uma luz embaçada e


pálida. Eu me vejo nas ruas andando sem parar. Todas as
vezes que pensei nesse período, me vieram à mente
expressões literárias como “a viagem”, “além do bem e do
mal”, ou ainda “viagem ao fim da noite”. Elas sempre me
pareceram corresponder ao que vivi e senti naquele
momento, algo indizível e de certa beleza.

Há muitos anos estou às voltas com esse acontecimento


da minha vida. Ler o relato de um aborto em um romance
me arrebata, num sobressalto sem imagens nem
pensamentos, como se as palavras se transformassem
instantaneamente em sensação violenta. Da mesma forma,
quando ouço por acaso “La javanaise”, “J’ai la mémoire qui
flanche”, ou qualquer outra música que me acompanhou
nesse período, fico perturbada.

Faz uma semana que comecei esta narrativa, sem


nenhuma certeza de continuá-la. Só queria testar meu
desejo de escrever sobre isso. Um desejo que me
atravessava constantemente sempre que eu estava
trabalhando no livro que venho escrevendo há dois anos. Eu
resistia, mas não conseguia deixar de pensar nisso. Ceder
ao desejo me parecia assustador. Mas me dizia também que
poderia morrer sem ter feito nada desse acontecimento. Se
havia uma culpa, era essa. Uma noite sonhei que segurava
um livro que havia escrito sobre meu aborto, mas não se
podia encontrá-lo em nenhuma livraria e ele não era
mencionado em nenhum catálogo. Na parte inferior da
capa, em letras grandes, constava ESGOTADO. Não sabia se
esse sonho significava que eu devia escrever este livro ou
se seria inútil fazê-lo.
Com este relato, foi o tempo que se pôs em movimento e
que me conduz apesar de mim. Sei agora que estou tão
decidida a ir até o fim, aconteça o que acontecer, como
estava quando, aos 23 anos, rasguei o atestado de
gravidez.

Quero mergulhar mais uma vez nesse período da minha


vida, saber o que se encontra ali. Essa exploração vai se
inscrever na trama de um relato, o único capaz de recuperar
um acontecimento que era apenas tempo dentro e fora de
mim. Uma agenda e um diário íntimo mantidos durante
esses meses vão me trazer as referências e as provas
necessárias ao estabelecimento dos fatos. Vou me esforçar,
acima de tudo, para me aprofundar em cada imagem, até
que tenha a sensação física de “alcançá-la”, e que surjam
algumas palavras sobre as quais eu possa dizer “é isso”.
Ouvir de novo cada uma dessas frases, que não se
apagaram em mim, cujo sentido na época deve ter sido tão
insuportável, ou, inversamente, tão reconfortante, que
afundo em desgosto ou doçura ao pensá-las hoje.

Que o modo como vivi essa experiência do aborto — a


clandestinidade — remonte a uma história superada não me
parece um motivo válido para deixá-la enterrada — mesmo
que o paradoxo de uma lei justa seja quase sempre obrigar
as antigas vítimas a se calar, em nome de que “tudo isso
acabou”, de maneira que o mesmo silêncio de antes
encubra o que aconteceu. É justamente porque nenhuma
interdição pesa mais sobre o aborto que posso, deixando de
lado o senso coletivo e as fórmulas necessariamente
simplificadas, impostas pela luta das mulheres dos anos
1970 — “violência contra as mulheres” etc. —, enfrentar, na
sua realidade, esse acontecimento inesquecível.
Dir. São punidos com prisão e multa 1) o autor de toda e
qualquer manobra abortiva; 2) os médicos, parteiras,
farmacêuticos e culpados de ter indicado ou facilitado essas
manobras; 3) a mulher que provoca um aborto a si mesma
ou que o consente; 4) a incitação ao aborto e a propaganda
anticoncepcional. A proibição de residência pode, além
disso, ser aplicada contra os culpados, sem prejuízo, para
aqueles da 2ª categoria, da privação definitiva ou
temporária de exercer sua profissão.

Novo Larousse Universal,


edição de 1948
insensível de dias a serem
O TEMPO DEIXOU DE SER UMA SEQUÊNCIA

preenchidos com aulas e apresentações, idas a cafés e à


biblioteca, convergindo para os exames e as férias de verão,
para o futuro. Tornou-se uma coisa sem forma que avançava
dentro de mim e era preciso destruir a todo custo.
Eu ia às aulas de literatura e de sociologia, ao
restaurante universitário, frequentava cafés no almoço e, à
noite, o La Faluche, bar dos estudantes. Não estava mais no
mesmo mundo. Havia as outras garotas, com seus ventres
vazios, e eu.

Para pensar minha situação, eu nunca empregava os


termos que a designam, nem “estou esperando um filho”,
nem “grávida”, muito menos “gravidez”, que rima com
“estupidez”. Eles implicavam a aceitação de um futuro que
não se realizaria. Não valia a pena dar um nome para algo
ao qual eu tinha decidido dar um fim. Na agenda, escrevia:
“isso”, “essa coisa”, uma única vez “grávida”.
Eu passava da incredulidade de que aquilo estivesse
acontecendo comigo, justo comigo, à certeza de que tinha
necessariamente de acontecer comigo. Era o que me cabia
desde a primeira vez que tinha gozado embaixo dos lençóis,
aos catorze anos, e a partir daquele momento — apesar das
preces à Virgem e a diferentes santas — nunca mais me
furtei à experiência, sonhando persistentemente que eu era
uma puta. Chegava a ser um milagre que não tivesse
passado por isso antes. Até o verão anterior, eu tinha
conseguido, às custas de muito esforço e humilhação —
chamada de cadela e biscatinha —, não transar por
completo. Minha salvação só veio com a violência de um
desejo que, mal acomodado nos limites do flerte, me levou
a temer até um simples beijo.
Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha
classe social de origem e o que estava acontecendo comigo.
A primeira a fazer um curso superior numa família operária
e de pequenos comerciantes, eu tinha escapado da fábrica
e do balcão. Mas nem o vestibular nem a graduação em
letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma
pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o
alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia
em mim era, de certa maneira, o fracasso social.

Estava totalmente decidida a abortar. Isso me parecia,


senão fácil, pelo menos realizável, e não exigia nenhuma
coragem em especial. Uma provação corriqueira. Bastava
seguir o caminho trilhado por uma longa coorte de mulheres
antes de mim. Desde a adolescência, eu tinha acumulado
relatos, lidos em romances, trazidos pelos rumores do bairro
nas conversas cochichadas. Havia adquirido um vago saber
sobre os meios a serem utilizados, a agulha de tricô, o cabo
da salsinha, as injeções de água com sabão, a equitação —
a melhor saída era encontrar um médico clandestino, ou
uma mulher com o belo epíteto de “fazedora de anjos”,
ambos muito caros, embora eu não tivesse ideia de preço.
No ano anterior, uma mulher divorciada tinha me contado
que um médico de Estrasburgo a ajudara a se livrar de uma
criança. Sem dar mais detalhes, ela só disse “eu me
agarrava à pia de tanta dor”. Eu também estava disposta a
me agarrar à pia. Não achava que pudesse morrer por
causa disso.

Três dias depois de rasgar o atestado de gravidez,


encontrei no pátio da faculdade Jean T., um estudante
casado e assalariado, que dois anos antes tomara
emprestadas minhas anotações de uma disciplina sobre
Victor Hugo que ele não tinha podido frequentar. Seu
discurso aguerrido e suas ideias revolucionárias vinham a
calhar. Fomos beber na praça da Gare, no Métropole. Num
dado momento, dei a entender que estava grávida, sem
dúvida porque achava que ele poderia me ajudar. Sabia que
ele militava numa associação semiclandestina que lutava
pela liberdade da contracepção, o Planning Familial, e
imaginava uma possível ajuda por essa via.
Na hora ele manifestou uma expressão de curiosidade e
prazer, como se me visse com as pernas abertas, o sexo à
disposição. Ou talvez achasse prazerosa a súbita
transformação da boa estudante de ontem em garota
encurralada. Queria saber de quem eu estava grávida,
desde quando. Era a primeira pessoa para quem eu
contava. Mesmo se não tivesse nenhuma solução para me
oferecer naquele momento, sua curiosidade era uma
proteção. Ele me convidou para jantar na sua casa, nos
arredores de Rouen. Eu não queria voltar sozinha para o
meu quarto na cidade universitária.

Quando chegamos, sua mulher dava de comer ao filho,


acomodado num cadeirão. Jean T. disse a ela sucintamente
que eu estava com problemas. Um amigo chegou. Depois
de pôr a criança para dormir, ela nos serviu um coelho com
espinafre. A cor verde embaixo dos pedaços de carne me
dava enjoo. Pensava que no ano seguinte estaria igual à
mulher de Jean se não abortasse. Depois do jantar, ela foi
com o amigo buscar um material para a escola onde era
professora e eu comecei a lavar a louça com Jean T. Ele me
abraçou e disse que tínhamos tempo de transar. Eu me
soltei dos braços dele e continuei a lavar os pratos. O filho
chorava no quarto ao lado, eu tinha vontade de vomitar.
Jean T. me pressionava por trás sem deixar de secar a louça.
De repente retomou seu tom habitual e fingiu ter querido
medir minha força moral. Sua mulher voltou e eles me
convidaram para ficar. Era tarde, e nem um nem outro devia
estar com disposição para me levar para casa. Dormi num
colchão inflável na sala. Na manhã seguinte voltei para meu
quarto na cidade universitária, de onde havia saído no dia
anterior, no começo da tarde, com meu material das aulas.
A cama estava arrumada, tudo estava igual e quase um dia
inteiro tinha se passado. É por esse tipo de detalhe que
podemos medir o início da desordem em nossa vida.
Não julgava ter sido tratada com desprezo por Jean T.
Para ele, eu tinha passado da categoria de garotas que não
se sabe se aceitam transar para aquela de garotas que, sem
dúvida alguma, já transaram. Numa época em que a
diferença entre as duas importava muito e condicionava a
atitude dos rapazes em relação às garotas, ele se mostrava
acima de tudo pragmático, com a certeza, aliás, de que eu
não ficaria grávida, visto que já estava. Foi um episódio
desagradável, mas de todo modo irrelevante considerando o
meu estado. Ele tinha prometido procurar o endereço de um
médico e eu não contava com mais ninguém.

Passados dois dias, fui encontrá-lo em seu escritório e ele


me levou para almoçar numa cervejaria no cais, ao lado da
estação rodoviária, num bairro demolido durante a guerra e
reconstruído em concreto, aonde eu nunca ia. Eu começava
a vagar, não frequentava mais a área e os locais por onde
costumava andar sempre no mesmo horário com os outros
estudantes. Ele pediu sanduíches. Sua atração por mim não
diminuía. Disse rindo que poderia me pôr uma sonda com a
ajuda de amigos. Não posso afirmar que fosse uma
brincadeira. Depois falou dos B., um casal cuja mulher tinha
feito um aborto dois ou três anos antes. “Ela quase morreu,
aliás.” Ele não tinha o endereço dos B., mas eu poderia
entrar em contato com L.B. no jornal em que ela trabalhava
como freelancer. Eu a conhecia de vista, tínhamos cursado a
mesma disciplina de filologia, era uma moça pequena e
morena, com óculos grandes, de aspecto severo. Durante
uma apresentação ela havia recebido um elogio entusiástico
do professor. Eu ficava mais tranquila de saber que uma
garota como ela tinha feito um aborto.
Quando acabou seus sanduíches, Jean T. afundou na
cadeira sorrindo com os dentes à mostra: “Como é bom
comer”. Estava enjoada e me senti sozinha. Tinha
começado a entender que ele não tinha vontade de se
meter muito naquela história. As garotas que queriam
abortar não se enquadravam nas regras morais
estabelecidas pelo Planning Familial ao qual ele pertencia. O
que ele desejava era se acomodar na primeira fila e
continuar seguindo minha história. Algo como assistir a tudo
e não pagar por nada: ele tinha me avisado que, na
condição de membro de uma associação militante pela
maternidade desejada, não poderia “moralmente” me
emprestar o dinheiro para abortar na clandestinidade. (Na
agenda: “Comi com T. no cais. Os problemas estão se
acumulando”.)

A busca começou. Eu precisava encontrar L.B. Seu


marido, que eu já tinha visto várias vezes no restaurante
universitário distribuindo panfletos, parecia ter sumido. Ao
meio-dia e no início da noite, eu percorria as salas, me
postava no saguão, na porta de entrada.
Duas noites depois, esperei L.B. em frente ao Paris-
Normandie. Não tinha coragem de entrar e perguntar se ela
já havia chegado. Temia que achassem minha atitude
suspeita e, acima de tudo, não queria incomodar L.B. no
local de trabalho para falar de um assunto que quase a
tinha matado. Na segunda noite chovia, eu estava sozinha
na rua, sob meu guarda-chuva, lendo no automático as
páginas do jornal pregadas na grade em frente ao muro,
olhando ora para um lado da rua de l’Hôpital, ora para o
outro. L.B. estava em algum lugar de Rouen, era a única
mulher que podia me salvar e não aparecia. De volta à
cidade universitária, em minha agenda: “Esperei mais uma
vez L.B. debaixo da chuva. Ausente. Estou desesperada.
Essa coisa precisa desaparecer”.

Eu não tinha nenhum indício, nenhuma pista.

Embora muitos romances se referissem a um aborto, eles


não forneciam detalhes a respeito do modo como ele se
dava exatamente. Entre o momento em que a moça
descobria estar grávida e aquele em que não estava mais,
havia uma elipse. Na biblioteca, procurei nos arquivos a
palavra “aborto”. Todas as referências eram de revistas
médicas. Peguei duas delas, Les archives médico-
chirurgicales e La revue d’immunologie. Esperava encontrar
informações práticas, mas os artigos só tratavam das
consequências do “aborto criminal” e isso não me
interessava.
(Os nomes e números, Per m 484, nº 5 et 6, Norm. Mm
1065, aparecem na folha de rosto do meu caderno de
endereços da época. Com um sentimento de estranheza e
fascinação eu observo esses traços rabiscados com uma
caneta esferográfica azul como se tais provas materiais
detivessem, de forma opaca e indestrutível, uma realidade
que nem a memória, nem a escrita, em razão de sua
instabilidade, vão me permitir alcançar.)

Certa tarde, saí com a intenção de encontrar um médico


que aceitasse fazer meu aborto. Esse ser tinha de existir em
algum lugar. Rouen havia se tornado uma floresta de pedras
cinza. Eu estudava as placas douradas dos consultórios, me
perguntando quem estaria por trás delas. Não conseguia me
decidir a tocar o interfone. Esperava um sinal.
Segui na direção de Martainville, imaginando que, nesse
bairro pobre, um tanto miserável, os médicos deviam ser
mais compreensivos.
Fazia um sol pálido de novembro. Enquanto eu
caminhava, não me saía da cabeça o refrão de uma canção
que escutávamos sem parar, “Dominique nique nique”,
cantada por uma freira da ordem dominicana acompanhada
de seu violão, a Irmã Sorriso. A letra era edificante e
inocente — a freira não sabia que niquer quer dizer “foder”
—, mas a melodia era alegre e dançante. Isso me enchia de
força em minha busca. Cheguei à praça Saint-Marc, as
barracas da feira estavam empilhadas. Ao fundo se via a
loja de móveis Froger, à qual eu tinha vindo quando menina
com minha mãe para comprar um armário. Eu nem olhava
mais as placas na porta, vagava sem propósito.
(No Le Monde, há cerca de dez anos, soube do suicídio
da Irmã Sorriso. O jornal contava que, depois do imenso
sucesso de “Dominique”, ela havia tido frustrações de todos
os tipos com sua ordem religiosa, tinha largado o hábito e
fora viver com uma mulher. Aos poucos parou de cantar e
caiu no esquecimento. Ela bebia. Essa sinopse me deixou
transtornada. Fiquei com a sensação de que fora aquela
mulher em ruptura com a sociedade, a excluída mais ou
menos lésbica, alcoólatra, aquela que não sabia quem se
tornaria um dia, que havia me acompanhado pelas ruas de
Martainville quando eu estava só e perdida. Nos unia um
abandono apenas deslocado no tempo. E naquela tarde eu
devia minha coragem de viver à canção de uma mulher
que, depois, iria se perder até a morte. Desejei
intensamente que ela tivesse sido ao menos um pouco feliz
e que, nas noites de uísque, conhecendo agora o sentido da
palavra, ela tenha pensado que, no final das contas, tinha
fodido as boas freirinhas.
A Irmã Sorriso é dessas mulheres, jamais encontradas,
mortas ou vivas, reais ou não, com quem, apesar de todas
as diferenças, eu sinto ter alguma coisa em comum. Elas
formam em mim uma cadeia invisível em que convivem
artistas, escritoras, heroínas de romance e mulheres da
minha infância. Tenho a impressão de que minha história
está nelas.)
Como a maioria dos consultórios médicos dos anos 1960,
o do clínico geral do boulevard Yser, perto da praça
Beauvoisine, parecia uma sala burguesa, com tapetes,
estante com porta de vidro e uma escrivaninha estilosa.
Impossível dizer por que eu fui parar nesse belo bairro, onde
morava o deputado de direita André Marie. Já era noite e
talvez eu não quisesse ir embora sem ter tentado nada. Um
médico mais velho me atendeu. Eu disse que estava
cansada e que não menstruava mais. Depois de ter feito um
exame atento com um dedo sob uma luva de borracha,
declarou que eu certamente estava grávida. Não tive
coragem de pedir que me fizesse um aborto, apenas
supliquei que fizesse minha menstruação descer, não
importava como. Ele não respondeu e, sem me olhar,
começou a diatribe habitual contra os homens que
abandonam as moças depois de terem tido o seu prazer.
Prescreveu comprimidos de cálcio e injeções de estradiol.
No final ele se acalmou um pouco quando soube que eu era
universitária e me perguntou se conhecia Philippe D., filho
de um de seus amigos. Eu de fato o conhecia, um moreno
de óculos, do tipo católico certinho, havíamos cursado latim
no primeiro ano da faculdade e depois ele tinha ido para
Caen. Lembro-me de ter pensado que não era o tipo de
homem que poderia ter me engravidado. “É um rapaz
gentil, né?” O médico sorria e pareceu feliz com a minha
aprovação. Havia esquecido por que eu estava lá. Parecia
aliviado quando me acompanhou até a porta. Não me disse
para voltar.
Moças como eu estragavam o dia dos médicos. Sem
dinheiro e sem contatos — senão não teriam ido parar no
consultório deles às cegas —, elas os obrigavam a se
lembrar da lei que podia enviá-los à prisão e proibi-los de
exercer a profissão para sempre. Eles não ousavam dizer a
verdade, que não iam pôr tudo a perder por causa dos belos
olhos de uma mocinha estúpida o bastante para se deixar
engravidar. A menos que eles preferissem sinceramente
morrer a infringir uma lei que deixava as mulheres
morrerem. Mas todos deviam imaginar que, mesmo
impedidas de abortar, elas encontrariam um jeito de fazê-lo.
Diante de uma carreira destruída, uma agulha de tricô na
vagina não pesava muito.

Precisei me esforçar para abandonar o sol de inverno da


praça Saint-Marc, em Rouen, a canção da Irmã Sorriso e até
o consultório discreto do médico de quem não me lembro do
nome, no boulevard Yser. Para fugir da submersão das
imagens e agarrar essa realidade invisível, abstrata,
ausente da lembrança, e que no entanto me lançava à rua
em busca de um improvável médico: a lei.
Ela estava em todo lugar. Nos eufemismos e lítotes da
minha agenda, nos olhos protuberantes de Jean T., nos
casamentos forçados, no filme Os guarda-chuvas do amor,
na vergonha daquelas que abortavam e na reprovação dos
outros. Na impossibilidade absoluta de imaginar que um dia
as mulheres pudessem decidir abortar livremente. E, como
de costume, era impossível determinar se o aborto era
proibido porque ruim, ou se era ruim porque proibido.
Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei.

Eu não achava que as injeções do médico surtiriam


efeito, mas queria tentar tudo. Com medo de que a
enfermeira da universidade suspeitasse de alguma coisa,
perguntei a uma estudante de medicina que eu via sempre
no restaurante universitário se ela poderia aplicá-las. Ela
enviou outra estudante ao meu quarto, uma loira, muito
bonita, descontraída. Ao vê-la ali, me dei conta de que
estava me tornando uma pobre coitada. Ela me deu a
injeção sem perguntar nada. No dia seguinte, como
nenhuma das duas estava disponível, sentei na cama e eu
mesma enfiei a agulha na coxa, fechando os olhos. (Na
agenda: “Duas injeções e nenhum efeito”.) Mais tarde eu
descobriria que o médico do boulevard Yser tinha me
prescrito um medicamento para impedir abortos
espontâneos.

(Sinto que o relato me arrasta e impõe, sem que eu


saiba, um sentido: o da marcha inelutável da infelicidade.
Me obrigo a resistir ao desejo de descer precipitadamente
os degraus dos dias e das semanas, tratando de conservar
por todos os meios — a busca e o registro dos detalhes, o
emprego do imperfeito, a análise dos fatos — a interminável
lentidão de um tempo que se espessava sem avançar, como
o tempo dos sonhos.)
Eu continuava a frequentar as aulas, a biblioteca. No
verão anterior, tinha escolhido com entusiasmo o tema da
minha monografia: as mulheres no surrealismo. Agora
aquilo não me soava mais interessante do que a conjugação
em francês arcaico ou as metáforas na obra de
Chateaubriand. Lia com indiferença os textos de Éluard,
Breton e Aragon, exaltando mulheres abstratas, mediadoras
entre o homem e o cosmos. Anotava aqui e ali uma frase
que se relacionava a meu tema. Mas não sabia o que fazer
com as anotações que eu tinha feito e me sentia incapaz de
submeter ao professor o projeto e o primeiro capítulo que
ele tinha pedido. Associar as informações umas às outras e
integrá-las em uma construção coerente estava além das
minhas capacidades.
Desde o ensino médio eu lidava bem com os conceitos.
Não deixava de notar o caráter artificial das dissertações e
outros trabalhos universitários, mas tinha certo orgulho de
me mostrar habilidosa, e esse parecia ser o preço a pagar
por “viver com a cara nos livros”, como diziam meus pais, e
lhes consagrar meu futuro.
Agora, o “céu das ideias” tinha se tornado inacessível
para mim; eu me arrastava abaixo dele com o corpo atolado
na náusea. Ora tinha esperanças de ser de novo capaz de
refletir quando tivesse me livrado do meu problema, ora me
parecia que a bagagem intelectual era no meu caso uma
construção artificial que havia desmoronado
definitivamente. De certa maneira, minha incapacidade de
redigir a monografia era mais assustadora que a
necessidade de abortar. Era o sinal indubitável da minha
desgraça invisível. (Na agenda: “Não escrevo mais, não
estudo mais. Como sair daqui”.) Tinha deixado de ser
“intelectual”. Não sei se esse sentimento se dispersou. Ele
causa um sofrimento indizível.

(Mais uma vez a impressão recorrente de não ir longe o


bastante na exploração das coisas, como se algo muito
antigo me detivesse, algo ligado ao mundo dos
trabalhadores manuais, do qual eu vim, um mundo que
temia as elocubrações, ou ao meu corpo, a essa lembrança
dentro do meu corpo.)

Toda manhã, acordava achando que as náuseas tinham


passado e, exatamente quando pensava isso, eu as sentia
chegar em uma onda insidiosa. O desejo e o nojo da comida
não me abandonavam. Um dia, passando em frente a uma
charcutaria, vi umas salsichas. Entrei e comprei uma, que
devorei logo em seguida, na calçada. Em outra ocasião,
implorei a um garoto que me oferecesse seu suco de uva,
tinha tanta vontade daquele suco que teria feito qualquer
coisa por ele. Alguns alimentos me causavam repugnância
só de olhar; outros, mais agradáveis à vista, se
decompunham em minha boca, anunciando sua futura
putrefação.
Numa manhã, esperando com outros estudantes o fim de
uma aula para entrar em determinada sala, as silhuetas de
repente se dissolveram em pontos brilhantes. Só deu tempo
de me sentar nos degraus da escada.
Anotei na agenda: “Tonturas constantes”. — “Às 11
horas, vontade de vomitar na B.M. [biblioteca municipal].”
“Ainda me sinto mal.”

No primeiro ano da faculdade, eu sonhava com alguns


rapazes, sem que eles soubessem. Eu os perseguia, sentava
meio perto deles no anfiteatro, prestava atenção na hora
em que iam ao restaurante, à biblioteca. Esses romances
imaginários pareciam pertencer a um tempo distante, sem
gravidade, quase um tempo de garotinha.

Em uma foto do mês de setembro anterior, estou


sentada, os cabelos sobre os ombros, bem bronzeada, com
uma echarpe no decote canoa do chemisier listrado,
sorridente, sensual. Sempre que a olhava, pensava que essa
era a minha última foto de garota, desenvolvendo-se na
ordem invisível e perpetuamente presente da sedução.

Numa noite em que tinha ido com umas garotas da


cidade universitária ao La Faluche, fiquei interessada pelo
rapaz, loiro e agradável, com quem passei a noite
dançando. Era a primeira vez desde que me descobri
grávida. Nada impedia, então, que um sexo se retesasse e
se abrisse, mesmo quando já havia no ventre um embrião
que receberia sem reclamar um jato de esperma
desconhecido. Na agenda: “Dancei com um rapaz
romântico, mas não consegui fazer absolutamente nada”.

Todos os comentários me pareciam pueris ou frívolos. O


costume de algumas garotas de contar sua vida cotidiana
tim-tim por tim-tim me era insuportável. Certa manhã, na
biblioteca, uma menina de Montpellier com quem eu tinha
cursado filologia sentou ao meu lado. Ela me descreveu em
detalhes seu apartamento novo na rua Saint-Maur, a
proprietária, a roupa secando na entrada, seu trabalho de
professora numa escola particular na rua Beauvoisine etc.
Essa descrição minuciosa e alegre de seu universo me
parecia louca e obscena. Tenho a impressão de ter decorado
todas as coisas que essa garota me disse naquele dia, com
seu sotaque do Sul — com certeza foi justamente pela
insignificância, que tinha para mim um sentido
aterrorizante: o sentido de minha exclusão do mundo
normal.

(Desde que comecei a escrever sobre esse


acontecimento, tento trazer à luz do dia o máximo possível
de rostos e nomes de estudantes em meio aos quais eu ia
me transformando e que, com exceção de dois ou três,
nunca mais revi depois de partir, no ano seguinte. Saídos
um a um do esquecimento, eles se reacomodam
espontaneamente nos locais onde eu os encontrava com
frequência, a faculdade de letras, o restaurante
universitário, o La Faluche, a biblioteca municipal, a
plataforma da estação onde se amontoavam na sexta-feira
à noite à espera do trem que os levaria de volta para suas
famílias. É uma multidão que ressuscita, e que me captura.
É ela que, mais do que as lembranças pessoais, devolve
meu ser de 23 anos — me faz entender a que ponto eu
estava imersa no meio estudantil. E esses nomes e rostos
explicam minha desordem: em relação a eles, a esse mundo
de referência, eu tinha me tornado por dentro uma
delinquente.

Não me permito escrever esses nomes aqui porque não


são personagens fictícios, mas seres reais. No entanto, não
consigo acreditar que existam em algum lugar. Num certo
sentido, seguramente tenho razão: a forma que têm hoje —
seus corpos, suas ideias, sua conta bancária — não guarda
nenhuma relação com a forma que tinham nos anos 1960,
essa que vejo quando escrevo. Quando sinto vontade de
procurar esses nomes na lista telefônica, logo me dou conta
do erro.)

Aos sábados eu voltava para a casa dos meus pais. A


dissimulação do que estava acontecendo comigo não
custava muito, era o estado normal de nossa relação desde
minha adolescência. Minha mãe pertencia à geração de
antes da guerra, a do pecado e da vergonha sexual. Eu
tinha certeza de que suas crenças eram inabaláveis e minha
capacidade de suportá-las só não era maior do que a dela
de se convencer de que eu as compartilhava. Como a
maioria dos pais, os meus imaginavam que podiam detectar
infalivelmente, à primeira vista, o menor sinal de desvio.
Para deixá-los tranquilos, bastava visitá-los regularmente,
com um sorriso e a cara lavada, levar a roupa suja e partir
abastecida.

Numa segunda-feira, voltei da casa deles com um par de


agulhas de tricô que tinha comprado num verão para fazer
um casaco que nunca terminei. Grandes agulhas de um azul
metálico. Eu não tinha saída. Decidira agir sozinha.

Na noite anterior, tinha ido ver Minha luta com umas


garotas da cidade universitária. Eu estava muito agitada e
pensava sem parar no que ia fazer no dia seguinte. Mas o
filme me lembrou de algo evidente: o sofrimento que eu ia
me impor não era nada comparado àquele vivido nos
campos de concentração. Eu tirava dali coragem e
determinação. Saber que me preparava para fazer o que
tantas outras já tinham feito antes de mim também me
dava forças.

Na manhã seguinte, me deitei na cama e introduzi com


cuidado a agulha de tricô no meu sexo. Eu tateava sem
encontrar o colo do útero e parava logo que sentia dor.
Percebi que não conseguiria sozinha. Minha impotência me
desesperava. Eu não era capaz. “Nada. Impossível, que
droga. Estou chorando e não aguento mais.”
(Pode ser que um texto como este provoque irritação, ou
repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma
coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de
escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar
essa experiência até o fim, estarei contribuindo para
obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do
lado da dominação masculina do mundo.)

Depois da minha tentativa infrutífera, liguei para o dr. N.


Disse que não queria “mantê-lo” e que tinha me
machucado. Era mentira, mas queria que ele soubesse que
estava disposta a tudo para abortar. Ele me disse para ir
imediatamente ao seu consultório. Achei que fosse fazer
alguma coisa por mim. Me recebeu silenciosamente, de cara
séria. Depois do exame, declarou que tudo corria bem.
Comecei a chorar. Ele estava prostrado na mesa, a cabeça
baixa, parecia abalado. Achei que ele ainda resistia e que ia
ceder. Ele levantou a cabeça: “Não quero saber aonde você
vai. Mas você vai tomar penicilina, oito dias antes e oito dias
depois. Vou prescrever a receita”.

Saindo do consultório, me culpei por ter estragado minha


última chance. Eu não tinha conseguido entrar de verdade
no jogo que o desvio da lei exigia. Teria sido preciso mais
lágrimas e súplicas, uma representação melhor do meu
desespero real, para que ele entendesse meu desejo de
abortar. (Foi o que pensei por muito tempo. Erroneamente,
talvez. Só ele poderia dizer.) Pelo menos ele queria impedir
que eu morresse de septicemia.
Não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem
ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na
linguagem.

(Noite passada, sonhei que estava na situação de 1963 e


procurava um modo de abortar. Quando acordei, percebi
que o sonho tinha me devolvido exatamente a desolação e
a impotência nas quais eu estava mergulhada naquela
época. O livro que estou escrevendo me soou como uma
tentativa desesperada. Como no orgasmo, quando, num
relâmpago, temos a impressão de que “tudo está aqui”, a
lembrança do meu sonho me convencia de que eu tinha
conseguido sem esforço o que busco encontrar pelas
palavras — tornando inútil o meu processo de escrita.
Mas agora que a sensação vivida desapareceu quando
acordei, a escrita encontra uma necessidade ainda mais
forte, justificada pelo sonho.)

No meio universitário, as duas garotas que eu


considerava minhas amigas não estavam mais lá. Uma
tinha ido para o sanatório de estudantes de Saint-Hilaire-du-
Touvet; a outra cursava psicopedagogia em Paris. Eu tinha
escrito a elas dizendo que estava grávida e que queria
abortar. Elas não julgavam, mas pareciam aterrorizadas.
Não era do medo dos outros que eu precisava, e elas não
podiam fazer nada por mim.

Conhecia O. desde o primeiro ano da faculdade, o quarto


dela era no mesmo andar que o meu, saíamos juntas com
frequência, mas eu não a considerava uma amiga. Nas
fofocas que costumam caracterizar as relações entre as
garotas, sem as afetar ou envenenar, eu concordava com
aqueles que a julgavam irritante e grudenta. Sabia que ela
era louca para descobrir segredos que poderiam servir
como um tesouro a ser oferecido aos outros e fazer dela
mesma, por uma hora, mais interessante do que grudenta.
Enfim, uma burguesa católica que respeitava os
ensinamentos do papa sobre a contracepção, ela deveria ter
sido a última pessoa em quem eu confiaria. Foi ela, no
entanto, a minha confidente até o fim de dezembro.
Constato o seguinte: o desejo que me impelia a falar da
minha situação não se importava com as ideias e
julgamentos possíveis daqueles em quem eu confiava. Na
impotência em que me encontrava, esse era um ato — cujas
consequências me eram indiferentes — por meio do qual eu
tentava arrastar o interlocutor para a visão estarrecedora do
real.

Então, eu mal conhecia André X., estudante do primeiro


ano de letras, cuja especialidade era contar num tom frio as
histórias horríveis tiradas da revista Hara-Kiri. Mudando de
assunto numa conversa em um café, contei que estava
grávida e que ia fazer qualquer coisa para abortar. Ele ficou
petrificado, me encarando com seus olhos castanhos.
Tentou em seguida me convencer a seguir a “lei natural”, a
não cometer o que considerava um crime. Ficamos muito
tempo nessa mesa do Métropole, perto da porta que dava
para a rua. Ele não me deixava ir embora. Por trás da sua
obstinação em me fazer renunciar a meu projeto, eu
percebia uma imensa perturbação, uma fascinação
assombrada. Meu desejo de abortar suscitava uma espécie
de sedução. No fundo, para O., André, Jean T., meu aborto
era uma história da qual não se sabia o fim.

(Hesito em escrever: revejo o Métropole, a pequena


mesa em que estávamos, perto da porta que dava para a
rua Verte, o garçom impassível que se chamava Jules e que
associei ao garçom de O ser e o nada, que não era um
garçom, mas fingia ser um etc. Ver pela imaginação ou
rever pela memória é a parte que cabe à escrita. Mas “eu
revejo” serve para registrar o momento em que tenho a
sensação de alcançar a outra vida, a vida passada e
perdida, sensação que a expressão “é como se eu ainda
estivesse lá” traduz espontaneamente de modo tão
preciso.)

O único que não parecia interessado era aquele de quem


eu estava grávida, que me mandava cartas esporádicas de
Bordeaux, nas quais aludia às dificuldades para encontrar
uma solução. (Na agenda: “Ele está deixando eu me virar
sozinha”.) Deveria ter concluído que ele não sentia mais
nada por mim e que só tinha uma vontade: voltar a ser
quem era antes dessa história, o estudante preocupado
apenas com as provas e o futuro. Mesmo que eu devesse
ter pressentido tudo isso, não tinha forças para terminar,
adicionar à busca desesperada por um modo de abortar o
vazio de uma separação. Era, enfim, com plena consciência
que eu ocultava a realidade. E, se me sentia devastada ao
ver rapazes nos cafés brincando ou rindo ruidosamente —
naquele momento ele decerto estava fazendo a mesma
coisa —, isso me dava também uma razão para seguir
incomodando sua tranquilidade. Em outubro, tínhamos
combinado passar as férias de Natal na neve, com um casal
de amigos. Eu não pretendia mudar esse plano.

Chegávamos ao meio de dezembro.


Minha bunda e meus seios esticavam os vestidos, eu
estava pesada, mas as náuseas tinham passado. Às vezes
esquecia que estava grávida de dois meses. Sem dúvida
esse apagamento do futuro, que anestesia a mente da
angústia da data-limite, faz com que as garotas deixem
passar as semanas, depois os meses, até chegar a termo.
Deitada na cama, no sol de inverno que preenchia a janela,
eu escutava os Concertos de Brandemburgo, exatamente
como no ano anterior. Tinha a impressão de que nada tinha
mudado na minha vida.
No meu diário, “tenho a impressão de estar grávida com
abstração” — “encosto na minha barriga, está aqui. E sem
mais imaginação. Se eu deixar o tempo passar, no próximo
mês de julho vai sair uma criança de mim. Mas eu não a
sinto”.

Uns dez dias antes do Natal, quando eu já não esperava


mais, L.B. bateu na porta do meu quarto. Jean T. havia
cruzado com ela na rua e tinha avisado que eu queria vê-la.
Ela ainda usava seus grandes óculos de armação preta,
intimidadores. Sorria para mim. Sentamos na minha cama.
Ela me deu o endereço da mulher que cuidou de seu
problema, uma auxiliar de enfermagem de certa idade, que
trabalhava numa clínica, sra. P.-R., no impasse Cardinet, no
17o arrondissement de Paris.2 Devo ter rido da palavra
impasse, que casava com a figura romanesca e sórdida da
fazedora de anjos, mas ela explicou que o impasse Cardinet
dava para a grande rua Cardinet. Eu não conhecia Paris, e
para mim essa rua só evocava uma loja de bijuterias, a
Comptoir Cardinet, que todo dia anunciava no rádio. L.B. me
explicava com tranquilidade, até bom humor, o modo de
proceder da sra. P.-R.: com a ajuda de um espéculo, ela
introduzia uma sonda no colo do útero, e aí era só esperar o
aborto espontâneo. Uma mulher séria e limpa, que fervia
seus instrumentos. Nem todos os micróbios, porém, eram
destruídos pela ebulição, e L.B. havia contraído uma
septicemia. Isso não aconteceria comigo se logo depois eu
pedisse a um clínico geral uma receita de antibiótico, com
um pretexto qualquer. Eu disse que já tinha uma receita de
penicilina. Tudo parecia simples e reconfortante — afinal de
contas, L.B. estava diante de mim, e tinha saído dessa. A
sra. P.-R. cobrava quatrocentos francos.3 L.B. se ofereceu
espontaneamente para me emprestá-los. Um endereço e o
dinheiro eram as únicas coisas no mundo de que eu
precisava naquele momento.

(Me limito a empregar as iniciais para designar essa que


vejo agora como a primeira das mulheres que me apoiaram,
essas guias que com conhecimento, gestos e decisões
eficazes me fizeram atravessar, da melhor maneira, essa
provação. Queria escrever aqui seu sobrenome e seu belo
nome cheio de simbologia, dado por pais refugiados da
Espanha franquista. Mas a razão que me inclina a fazer isso
— a existência real de L.B., cujo valor seria revelado aos
olhos de todos — é a mesma que me impede. Não tenho o
direito, pelo exercício de um poder não recíproco, de expor,
no espaço público de um livro, L.B., uma mulher real, viva —
como a lista telefônica acaba de me confirmar —, que
poderia retrucar com toda razão que ela “não me pediu
nada”.

Domingo passado, voltando da costa normanda, fiz um


pequeno desvio por Rouen. Caminhei pela rua du Gros-
Horloge, fui até a catedral. Sentei no terraço de um café no
Espace du Palais, recém-construído. Por causa do livro que
estou escrevendo, pensava sem parar nos anos 1960, mas
nada no centro da cidade, degradada, colorida, me dava
essa sensação. Esses anos só me eram acessíveis por um
esforço difícil de abstração, que me obrigava a despojar a
cidade de suas cores, devolver às paredes sua tinta escura
e austera, às ruas de pedestres os seus carros.
Eu observava os transeuntes. Entre eles, como nessas
vinhetas de paisagens em que linhas contornam a forma
dos personagens que precisam ser descobertos, talvez
estivesse um ou outro desses antigos estudantes de 1963,
que revejo com tanta nitidez enquanto escrevo, e que agora
me são invisíveis. Na mesa ao lado da minha havia uma
bela moça morena, de pele cor de mate, boca pequena e
volumosa, que me lembrava L.B. Me agrada pensar que era
sua filha.)

Ir para o Maciço Central, reencontrar P., embora sem a


menor certeza de que ele quisesse me rever, gastar parte
do dinheiro que era indispensável para pagar o aborto, nada
disso era razoável. Mas eu nunca tinha esquiado e precisava
de uma espécie de período de carência antes de ir ao
impasse Cardinet, no 17o arrondissement.

Olho no guia Michelin o mapa de Mont-Dore, leio os


nomes das ruas, Meynadier, Sidoine-Apollinaire, Montlozier,
rua du Capitaine-Chazotte, praça du Panthéon etc. Descubro
que o rio Dordogne atravessa a cidade e que há um
balneário termal. É como se eu nunca tivesse ido lá.
Na minha agenda, “dançamos no Casino” — “vamos à
Tannerie” — “ontem à noite, la Grange”. Mas só vejo neve e
o café lotado onde nos sentávamos no fim da tarde, com a
jukebox que tocava “Si j’avais un marteau, ce serait le
bonheur” [“Se eu tivesse um martelo, seria a felicidade”].

Lembranças de cenas seguidas de brigas e lágrimas, sem


palavras. Não consigo identificar o que P. era naquele
momento para mim, o que eu queria dele. Talvez obrigá-lo a
reconhecer como um sacrifício, até mesmo uma “prova de
amor”, esse aborto, ainda que eu tivesse tomado a decisão
em função do meu desejo e dos meus interesses.
Annick e Gontran, estudantes de direito, não sabiam que
eu estava grávida e que queria abortar. P. não via por que
lhes contar, considerava-os burgueses conformistas demais
para uma revelação como aquela — eles estavam noivos e
não dormiam juntos. Ele parecia, acima de tudo, ansioso por
não estragar a atmosfera das férias com aquilo. Era só eu
mencionar o assunto que ele se aborrecia. Não tinha
encontrado nenhuma solução em Bordeaux. Duvidei que
tivesse procurado.

O casal, abastado, estava hospedado em um hotel antigo


e chique; P. e eu, em uma pequena pensão. Transávamos
pouco, e rapidamente, sem aproveitar a vantagem que meu
estado proporcionava — o mal estava feito —, assim como o
desempregado não aproveita o tempo e a liberdade
proporcionados pela ausência de trabalho, ou o doente
terminal a permissão de comer e beber de tudo.

Um tom leve de provocação era a regra dos diálogos


entre o grupo, às vezes interrompidos por incidentes leves
ou um comentário agressivo, logo contidos pelo desejo do
consenso. Eles haviam se saído bem nas aulas, tinham
preparado os trabalhos; a despreocupação a que se
entregavam com vontade coroava o bom desempenho
como estudantes. Eles queriam se divertir, dançar, assistir a
Testamento de um gângster. Minha única verdadeira
ocupação no trimestre tinha sido procurar um meio de
abortar. Eu me esforçava para ficar à altura do bom humor
generalizado, mas não acho que tenha conseguido. Era uma
garota que ia no embalo.

Eu só via interesse nas atividades físicas, com a


esperança de que um esforço intenso, ou uma queda,
pudesse desenroscar “aquilo”, tornando inútil minha visita à
mulher do 17o arrondissement. Quando Annick me
emprestava seus esquis e calçados, que eu não tinha
condições de alugar, eu caía sem tentar me segurar,
acreditando toda vez que forçava o choque que me
libertaria. Um dia, enquanto P. e Annick se recusavam a ir
mais alto, eu empreendi, na companhia apenas de Gontran,
a subida do Puy Jumel com minhas botas de couro falso,
largas, que se enchiam de neve. Avançava com os olhos
fixos na inclinação, ofuscados pelo brilho cintilante,
arrancando com cada vez mais dificuldade as botas da neve
pulverulenta, tendo apenas um desejo: fazer aquele
embrião se soltar. Estava convencida de que devia alcançar
o topo e o limite de minhas forças para me livrar daquilo. Eu
me exauria para matá-lo embaixo de mim.
Todas as vezes que pensei na semana em Mont-Dore, vi
uma vastidão ofuscante de sol e neve que conduziria às
trevas do mês de janeiro. Talvez porque uma memória
primitiva nos faça ver toda a vida passada sob a forma
elementar da sombra e da luz, do dia e da noite.

(Escrevendo, sempre surge a questão da evidência: além


do diário e da agenda do período, acho que não disponho de
nenhuma certeza a respeito dos sentimentos e
pensamentos, devido à imaterialidade e à evanescência
daquilo que atravessa a mente.
Só a lembrança das sensações ligadas a seres e coisas
fora de mim — a neve do Puy Jumel, os olhos arregalados de
Jean T., a canção da Irmã Sorriso — me traz a prova da
realidade. A única memória verdadeira é material.)

No dia 31 de dezembro, fui embora de Mont-Dore no


carro de uma família que aceitara me levar até Paris. Eu não
participava da conversa. Em certo momento, uma mulher
disse que a moça que morava no quarto de empregada
tinha tido um aborto espontâneo, “ela gemeu a noite toda”.
Da viagem, só guardei o tempo chuvoso e essa frase. É uma
daquelas frases que, ora assustadoras, ora reconfortantes,
mais ou menos anônimas, me conduziram em direção à
provação, me acompanhando como um viático até que
chegasse a minha vez.
(Tenho a impressão de que só comecei a fazer este relato
para chegar a essas imagens de janeiro de 1964, no 17o
arrondissement, da mesma forma que, aos quinze anos, eu
vivia para colher uma ou duas imagens de mim no futuro:
viajando a um país longínquo, fazendo amor. Ainda não sei
quais palavras virão para mim. Não sei o que a escrita está
trazendo. Queria atrasar esse momento, ficar um tempo
ainda nessa espera. Medo, talvez, de que a escrita dissolva
essas imagens, como as do desejo sexual que se apagam
instantaneamente depois do orgasmo.)

Na quarta-feira, dia 8 de janeiro,4 fui a Paris para


encontrar a mulher e resolver com ela os detalhes práticos,
o dia, o dinheiro. Querendo economizar a viagem, pedi
carona ao pé da colina Sainte-Catherine. Na minha situação,
um perigo a mais ou a menos não fazia diferença. Caía uma
neve derretida. Um carro grande parou, “um Jaguar”, foi o
que o motorista respondeu quando lhe perguntei. Ele
segurava o volante com os braços esticados, estava de luva,
não falou nada. Me deixou em Neuilly, e peguei o metrô.
Quando cheguei ao 17o arrondissement, já estava escuro.
Na placa da rua se lia “passage Cardinet”, e não “impasse
Cardinet”; era um sinal que me tranquilizava. Cheguei ao
número…, um imóvel vetusto. A sra. P.-R. morava no
segundo andar.
Milhares de moças subiram uma escada, bateram numa
porta atrás da qual havia uma mulher de quem nada
sabiam, a quem confiariam seu sexo e seu ventre. E essa
mulher, a única pessoa capaz de fazer o sofrimento passar,
abria a porta, de avental e chinelo de estampa de bolinhas,
um pano de prato na mão: “Pois não, senhorita?”.

A sra. P.-R. era pequena e cheinha, usava óculos, um


coque grisalho, roupas escuras. Lembrava as mulheres mais
velhas do interior. Fez com que eu entrasse rápido na
cozinha estreita e sombria, depois passasse para o quarto
um pouco maior, com móveis antiquados; eram os dois
únicos cômodos da casa. Ela me perguntou quando tinha
sido minha última menstruação. Três meses — segundo ela,
era o momento adequado para agir. Abriu meu casaco e
apalpou meu ventre com as duas mãos, por cima da saia,
exclamando com certa satisfação, “você está com uma
barriguinha!”. Disse também, erguendo os ombros, quando
falei dos meus esforços esquiando, “imagine só, ele ganhou
forças!”. Ela falava dele alegremente, como de um animal
maligno.

Eu estava de pé perto da cama, diante dessa mulher de


pele acinzentada, que falava rápido, com gestos nervosos.
Era a ela que eu ia confiar o interior do meu ventre, era aqui
que tudo se passaria.

Ela me disse para voltar na quarta seguinte, o único dia


em que ela poderia trazer um espéculo da clínica onde
trabalhava. Ela introduziria uma sonda, e mais nada, nem
água com sabão, nem água sanitária. Confirmou seu preço,
quatrocentos francos em espécie. Ela tomava as rédeas
com determinação. Sem familiaridade — não se dirigia a
mim de modo informal — e discreta — não fazia nenhuma
pergunta —, ia ao essencial, data da última menstruação,
preço, técnica utilizada. Essa materialidade pura tinha algo
de estranho e reconfortante. Nem sentimentos, nem moral.
Por experiência, a sra. P.-R. certamente sabia que um
discurso limitado aos detalhes práticos evitava lágrimas e
desabafos que fazem perder tempo, ou mudar de ideia.

Mais tarde, lembrando-me de seus olhos que piscavam


rápido, do lábio inferior que ela mordia de vez em quando,
de alguma coisa imperceptivelmente assustada naquela
mulher, eu diria que ela também tinha medo. Mas, assim
como nada poderia me impedir de abortar, nada a faria
desistir. Pelo dinheiro, naturalmente, e talvez também por
um sentimento de ser útil às mulheres. Ou, ainda, para ela,
que passava o dia esvaziando penicos de doentes e
parturientes, pela satisfação secreta de ter, em seu quarto e
sala, na passagem Cardinet, o mesmo poder dos médicos
que mal lhe diziam bom-dia. Era preciso então cobrar caro,
pelos riscos, por esse saber que nunca seria reconhecido e
pela vergonha que teriam dela logo em seguida.

Depois dessa primeira visita à passagem Cardinet,


comecei a tomar penicilina e dentro de mim só havia
espaço para o medo. Eu via a cozinha e o quarto da sra. P.-
R., não queria imaginar o que ela ia fazer. No restaurante
universitário, dizia às garotas que eu iria remover uma
grande pinta nas costas e que estava com medo. Elas
pareciam surpresas de me ver manifestar tamanha angústia
por causa de uma intervenção que, no final das contas, era
leve. Dizer que eu estava com medo me tranquilizava:
durante um segundo, podia acreditar que, no lugar de uma
cozinha e uma velha auxiliar de enfermagem, o que me
esperava era uma sala de operação brilhando e um
cirurgião com luvas de borracha.

(Não é mais possível sentir agora o que eu devia estar


experimentando naquele momento. É só quando vislumbro,
ao acaso, numa fila de supermercado ou dos correios, uma
mulher qualquer de uns sessenta anos, de aspecto rude e
antipático, e a imagino remexendo dentro do meu sexo com
um objeto desconhecido, que me aproximo vagamente do
estado em que estive mergulhada durante uma semana.)

Na quarta-feira, dia 15 de janeiro, peguei um trem para


Paris no começo da tarde. Cheguei ao 17o arrondissement
mais de uma hora antes do horário combinado com a sra. P.-
R. Vaguei pelas ruas ao redor da passagem Cardinet. Fazia
um tempo ameno, úmido. Entrei em uma igreja, Saint-
Charles-Borromée, onde passei um bom tempo sentada
pedindo para não sofrer. Ainda não era a hora. Esperei num
café perto da passagem Cardinet, tomando um chá. Na
mesa vizinha, estudantes, os únicos clientes, jogavam 421,
e o dono do café brincava com eles. Eu olhava o relógio a
cada instante. Na hora de ir, desci até o banheiro, pelo
hábito inculcado desde a infância de tomar precauções
antes de um evento importante. Olhei para mim mesma no
espelho da pia, pensando algo como “é comigo que isso
está acontecendo” e “eu não vou aguentar”.

A sra. P.-R. tinha preparado tudo. Vi sobre o fogão uma


panela com água fervendo onde deviam estar os
instrumentos. Ela me acompanhou até o quarto, parecia
apressada para começar. No final da cama ela instalara uma
mesa, coberta por uma toalha branca. Tirei a meia, a
calcinha, e acho que fiquei com a saia preta porque era
larga. Enquanto eu tirava a roupa, ela me perguntou “você
sangrou muito quando perdeu a virgindade?”. Disse para
me deitar na cama, apoiar a cabeça sobre o travesseiro, e
pôr o quadril e as pernas, dobradas, em posição elevada
sobre a mesa. Não parava de falar enquanto fazia o
trabalho, deixando claro mais uma vez que estava
introduzindo apenas a sonda, nada mais. Mencionou o caso
de uma mãe de família encontrada morta na semana
anterior, largada numa mesa de jantar por uma mulher que
tinha injetado água sanitária nela. A sra. P.-R. falava de
modo exaltado, visivelmente indignada por tamanha falta
de consciência profissional. Eram palavras com o objetivo
de me reconfortar. Eu teria preferido que ela não tivesse
dito aquilo. Mais tarde, imaginarei que ela estava puxando a
brasa para a sua sardinha.
Ela estava sentada de frente para a mesa, ao pé da
cama.
Eu via a janela com as cortinas, outras janelas do outro
lado da rua, a cabeça grisalha da sra. P.-R. entre minhas
pernas. Não tinha imaginado que eu poderia estar ali. Talvez
tenha pensado nas garotas que, naquele mesmo instante,
estavam debruçadas sobre os livros na faculdade, na minha
mãe passando roupa e cantarolando, em P. andando em
uma rua de Bordeaux. Mas não precisamos pensar nas
coisas para que elas estejam ao nosso redor, e foi sem
dúvida a certeza de saber que para a maioria das pessoas a
vida seguia seu curso como antes que me levava a repetir
“o que eu estou fazendo aqui?”.

Chego até a imagem do quarto. Ela excede a análise. Só


posso mergulhar nela. Tenho a impressão de que aquela
mulher em plena atividade entre minhas pernas, que
introduz o espéculo, me faz nascer.
Eu matei minha mãe em mim naquele momento.

Durante anos vi esse quarto e essas cortinas como eu os


via da cama onde estava deitada. Talvez tenha se tornado
um cômodo claro, com móveis da Ikea, dentro de um
apartamento de um jovem executivo que comprou o andar
inteiro. Mas nada pode me tirar a certeza de que esse
quarto guarda a lembrança das garotas e mulheres que
foram até ali para serem perfuradas com uma sonda.
Houve uma dor atroz. Ela dizia “pare de gritar, querida” e
“eu preciso fazer meu trabalho”, ou talvez outras palavras
que queriam dizer a mesma coisa, a obrigação de ir até o
fim. Palavras que encontrei depois nos relatos de mulheres
que abortaram clandestinamente, como se naquele
momento só pudesse haver essas palavras de necessidade
e, às vezes, compaixão.

Não sei mais quanto tempo ela demorou para introduzir a


sonda. Eu chorava. Parei de sentir dor, apenas uma
sensação de peso no ventre. Ela disse que tinha acabado,
que eu não devia tocar em nada. Tinha posto uma boa
camada de algodão, caso vazasse um pouco de água. Podia
ir ao banheiro tranquilamente, andar. Em um ou dois dias
aquilo iria embora, caso contrário eu devia ligar. Tomamos
café na cozinha. Para ela também tinha sido difícil, mas
estava feito. Não lembro em que momento dei o dinheiro.

Ela queria saber, preocupada, como eu voltaria para


casa. Fazia questão de me acompanhar até a estação Pont-
Cardinet, de onde um trem me levaria diretamente à
estação Saint-Lazare. Eu queria ir embora sozinha e não vê-
la mais. Mas não quis ofendê-la recusando uma gentileza
que, naquele momento, eu não desconfiava ser ditada pelo
medo de me encontrarem desmaiada na porta da casa dela.
Ela vestiu um casaco e ficou de pantufas.

Lá fora, tudo se tornou subitamente irreal. Andávamos


uma ao lado da outra no meio da calçada e avançávamos
para o fim da passagem Cardinet, que tinha a perspectiva
barrada pelo muro de um prédio, deixando passar apenas
uma fenda de luz. É uma cena lenta, o dia não está mais
muito claro. Nada da minha infância ou da minha vida de
antes me conduziu até ali. Cruzamos com alguns
transeuntes, parecia que eles me olhavam e que, ao ver
nossa dupla, sabiam o que tinha acabado de acontecer. Eu
me sentia abandonada pelo mundo, exceto por essa
senhora de casaco preto que me acompanhava como se
fosse minha mãe. Na luz da rua, fora de seu antro, com sua
pele cinzenta, ela me provocava aversão. A mulher que
estava me salvando parecia uma bruxa ou uma velha
cafetina.
Ela me deu um bilhete e esperou comigo na plataforma
até que chegasse um trem para Saint-Lazare.

(Não tenho mais certeza se ela calçava pantufas. E se lhe


atribuí esse costume das mulheres que saem assim de casa
para fazer compras na mercearia do bairro, foi porque para
mim ela é uma figura do meio popular, do qual eu estava
me distanciando.)

Nos dias 16 e 17 de janeiro, esperei as contrações.


Escrevi a P. que não queria nunca mais revê-lo e a meus
pais para dizer que não voltaria para casa no final de
semana porque ia ver as Valsas de Viena — cartazes desse
evento estavam espalhados por toda a parte em Rouen, e
me deram um pretexto cuja veracidade eles poderiam
conferir no jornal.
Nada acontecia. Eu não sentia dor. Na noite do dia 17,
uma sexta-feira, fui até o correio perto da estação e liguei
para a sra. P.-R. Ela me disse para voltar a vê-la no dia
seguinte pela manhã. No meu diário, onde não há mais
nada escrito desde o dia 1o de janeiro, anotei na data de
sexta-feira, dia 17, “ainda estou esperando. Amanhã
voltarei à casa da fazedora de anjos, já que ela não
conseguiu”.

Sábado, dia 18, peguei bem cedo o trem para Paris. Fazia
muito frio, tudo estava branco. No vagão, atrás de mim,
duas garotas falavam sem parar e riam de tempos em
tempos. Escutando-as, eu me sentia sem idade.
A sra. P.-R. me recebeu com exclamações sobre o frio
glacial e me fez entrar rapidamente. Um homem estava
sentado na cozinha, mais jovem do que ela, com uma boina
na cabeça. Ele não parecia surpreso ou incomodado por me
ver. Não lembro se ficou ou se foi embora, mas deve ter dito
algumas palavras, pois achei que fosse italiano. Na mesa
havia uma bacia cheia de água fumegante onde boiava um
cano fino e vermelho. Compreendi que era a nova sonda
que ela pretendia enfiar em mim. Eu não tinha visto a
primeira. Aquilo parecia uma serpente. Do lado da bacia,
havia uma escova de cabelo.
(Se eu tivesse de representar por um único quadro esse
acontecimento da minha vida, pintaria uma mesa pequena
encostada na parede, coberta de fórmica, com uma bacia
esmaltada onde flutua uma sonda vermelha. Ligeiramente à
direita, uma escova de cabelo. Não creio que exista um
Ateliê da fazedora de anjos em nenhum museu do mundo.)

Como da primeira vez, ela me disse para ir até o quarto.


Eu não tinha mais medo do que ela ia fazer. Não senti dor.
No momento em que retirou a primeira sonda para
introduzir a da bacia, ela berrou, “você está em pleno
trabalho!”. Era uma frase de parteira. Eu não tinha pensado
até ali que tudo isso podia se comparar a um parto. Ela não
me pediu mais dinheiro, só queria que depois eu devolvesse
a sonda, pois era difícil conseguir desse modelo.

No meu compartimento, na volta de Paris, uma mulher


lixava as unhas interminavelmente.

O papel prático da sra. P.-R. termina aqui. Ela havia


concluído sua tarefa, iniciara o processo para eliminar o
problema. Não tinha sido paga para me assistir na etapa
seguinte.

(No momento em que estou escrevendo, refugiados


kosovares em Calais tentam entrar clandestinamente na
Inglaterra. Os coiotes exigem somas enormes e às vezes
desaparecem antes da travessia. Mas nada detém os
kosovares, nem qualquer migrante dos países pobres: eles
não têm outra salvação. Perseguem-se os coiotes, deplora-
se a existência deles como há trinta anos a das mulheres
que abortavam. Não se questionam as leis e a ordem
mundial que os induzem. E deve muito bem haver, entre os
coiotes de imigrantes, como antigamente entre aqueles de
crianças, alguns que são mais sérios do que outros.

Arranquei bem rápido da minha caderneta de endereços


a página onde figurava o nome da sra. P.-R. Nunca o
esqueci. Reencontrei esse sobrenome seis ou sete anos
depois, em um aluno da quinta série, loiro e taciturno, com
dentes cariados, grande e velho demais para aquela turma.
Nunca pude chamá-lo para tomar a lição, ou ler seu nome
numa folha, sem associá-lo à lembrança da mulher da
passagem Cardinet. Esse garoto só existiu para mim
acoplado a uma velha fazedora de anjos, de quem parecia
ser o neto. Quanto ao homem que eu tinha encontrado na
cozinha da sra. P.-R., sem dúvida seu companheiro, revi-o
por muitos anos em uma pequena mercearia de Annecy, na
praça da Notre-Dame: um italiano com sotaque forte e uma
boina na cabeça. Tanto que hoje não consigo mais distinguir
a cópia do original, a ponto de realocar na passagem
Cardinet, em um sábado glacial de janeiro, aquele que me
vendia fitas de entretela e botões de jarina nos anos 1970,
ao lado de uma pequena mulher ágil e sem idade.)

Ao descer do trem, liguei para o dr. N. Disse que haviam


posto uma sonda em mim. Talvez eu tivesse a esperança de
que ele me dissesse para ir a seu consultório, como no mês
anterior, e desse prosseguimento à tarefa da sra. P.-R. Ele
ficou mudo, depois me aconselhou Masogynestril.5 Pelo seu
tom, compreendi que me ver era a última coisa que ele
desejava e que eu não devia mais telefonar.

(Eu não podia imaginá-lo — como agora sou capaz de


fazer — subitamente molhado de suor em seu consultório
ao ouvir aquela voz de moça declarando que estava
andando por aí havia dois dias com uma sonda no útero.
Paralisado pelo dilema. Se aceitasse vê-la, a lei o obrigava a
retirar o mais rápido possível aquele dispositivo e fazê-la
continuar a gravidez não desejada. Se recusasse, ela podia
morrer por isso. Nenhuma das alternativas era boa, e ele
estava sozinho. Então, Masogynestril.)

Entrei na farmácia mais próxima, em frente ao Métropole,


para comprar o remédio do dr. N. Era uma mulher: “Você
tem receita? Não podemos vender esse medicamento sem
receita”. Eu estava no meio da farmácia. Atrás do balcão,
dois ou três farmacêuticos de jaleco branco me olhavam. A
falta de receita sinalizava a minha culpa. Eu tinha a
impressão de que eles viam a sonda através das minhas
roupas. Foi um dos momentos em que estive mais
desesperada.

(Você tem uma receita? Precisa de uma receita! Nunca


mais pude escutar essas palavras, e ver a cara do
farmacêutico logo se fechar quando a resposta era não, sem
ficar arrasada.

Escrevendo, devo às vezes resistir ao lirismo da cólera ou


da dor. Não quero fazer neste texto o que não fiz na vida
naquele momento, ou que fiz muito pouco — gritar e chorar.
Somente permanecer o mais perto possível da sensação de
um fluxo inerte do sofrimento, como a que tive com a
pergunta de uma farmacêutica e com a visão de uma
escova de cabelo ao lado da bacia de água onde estava
imersa uma sonda. Pois a perturbação que sinto ao rever
imagens, ao voltar a escutar palavras, não tem nada a ver
com o que eu sentia então; é apenas uma emoção da
escrita. Quero dizer: que permite a escrita e constitui o
signo de sua verdade.)

No final de semana, só ficavam na cidade universitária as


estudantes estrangeiras e algumas cujos pais moravam
longe. O restaurante universitário, ao lado, estava fechado.
Mas eu não tinha necessidade de falar com ninguém. Na
minha lembrança não há medo, mas uma certa
tranquilidade, a de não ter mais nada a fazer além de
esperar.

Eu não conseguia ler nem ouvir discos. Peguei uma folha


de papel e desenhei a passagem Cardinet tal como a vi ao
descer da casa da aborteira, muros altos que se aproximam,
com uma fenda ao fundo. Foi a única vez em minha vida
adulta que tive vontade de fazer um desenho.

No domingo à tarde caminhei pelas ruas frias e


ensolaradas de Mont-Saint-Aignan. A sonda não me
incomodava mais. Era um objeto que fazia parte do meu
ventre, uma aliada que eu só reprovava por não agir rápido
o suficiente.
No meu diário, dia 19 de janeiro: “Pequenas dores. Fico
me perguntando quanto tempo vai levar para esse embrião
morrer e ser expulso. Uma corneta tocava ‘A marselhesa’,
risos no andar de cima. E assim é a vida”.

(Pois então, não era bem um sofrimento. Seria preciso,


talvez, procurar o que realmente era aquilo na necessidade
que eu tive de me imaginar de novo naquele quarto,
naquele domingo, para escrever meu primeiro livro, Les
armoires vides [Os armários vazios], oito anos depois. No
desejo de condensar, naquele domingo e naquele quarto,
toda a minha vida até os vinte anos.)

Na segunda de manhã, fazia cinco dias que eu vivia com


uma sonda. Por volta do meio-dia, peguei o trem para Y.,
para um bate e volta até a casa dos meus pais, temendo
que eu não estaria em condições de vê-los no sábado
seguinte. Talvez, como de costume, eu tenha tirado cara ou
coroa para saber se daria tempo de correr esse risco. O
tempo estava esquentando, minha mãe tinha aberto as
janelas dos quartos. Verifiquei minha calcinha. Estava toda
molhada de sangue e água que escorriam pela sonda que
começava a sair do sexo. Eu via as casinhas baixas do
bairro, os jardins, a mesma paisagem desde a minha
infância.

(Uma outra imagem, de nove anos antes, desliza agora


sobre essa. A da grande mancha rosada, de sangue e
humores, deixada no meio do meu travesseiro pela gata
morta enquanto eu estava na escola e já enterrada quando
voltei, numa tarde de abril, com seus gatinhos mortos
dentro dela.)

Peguei o trem das quatro e vinte para Rouen. O trajeto


durava só quarenta minutos. Como de costume, eu levava
Nescafé, leite condensado e uns pacotes de biscoito.

Naquela noite, no cineclube do La Faluche ia passar O


encouraçado Potemkin. Fui com O. Algumas dores, para as
quais eu não tinha dado atenção no começo, pressionavam
meu ventre em intervalos. A cada contração eu encarava a
tela segurando o fôlego. Os intervalos diminuíam. Eu não
acompanhava mais o filme. Apareceu um enorme pedaço de
carne suspenso por um anzol, cheio de vermes. Foi a última
imagem que guardei do filme. Levantei e corri até a cidade
universitária. Deitei e comecei a me agarrar à cabeceira da
cama, me contendo para não gritar. Vomitei. Mais tarde, O.
entrou, o filme tinha acabado. Ela sentou perto de mim, sem
saber o que fazer, me aconselhando a respirar como as
mulheres no parto sem dor, feito um cachorrinho. Eu só
conseguia arfar entre as dores e elas não paravam. Tinha
passado da meia-noite, O. foi dormir dizendo para chamá-la
caso precisasse. Nem eu nem ela sabíamos como seria a
etapa seguinte.

Senti uma vontade violenta de cagar. Corri para o


banheiro, do outro lado do corredor, e me agachei na
privada, de frente para a porta. Via o piso entre minhas
coxas. Eu empurrava com todas as minhas forças. Aquilo
jorrou como uma granada, num esguicho d’água que se
espalhou até a porta. Vi um bonequinho pender de meu
sexo na ponta de um cordão avermelhado. Eu não tinha
imaginado ter aquilo dentro de mim. Era preciso que eu
voltasse com ele até meu quarto. Peguei com uma mão —
era estranhamente pesado — e avancei no corredor
apertando-o entre minhas coxas. Eu era um animal.

A porta de O. estava entreaberta, havia luz, chamei-a


baixinho, “pronto”.

Estamos as duas no meu quarto. Estou sentada na cama


com o feto entre as pernas. Não sabemos o que fazer. Digo
a O. que é preciso cortar o cordão. Ela pega a tesoura, não
sabemos em que lugar cortar, mas ela o faz. Olhamos o
corpo minúsculo, com uma grande cabeça, os olhos são
duas manchas azuis sob as pálpebras transparentes. Parecia
uma boneca indiana. Olhamos o sexo. Temos a impressão
de ver um início de pênis. Então eu tinha sido capaz de
fabricar isso. O. senta no banco, chora. Choramos
silenciosamente. É uma cena sem nome, a vida e a morte
ao mesmo tempo. Uma cena de sacrifício.
Não sabemos o que fazer com o feto. O. vai até seu
quarto pegar um saco de torradas vazio e eu o ponho
dentro. Vou até o banheiro com o saco. Parece que tem uma
pedra lá dentro. Viro o saco na privada. Puxo a descarga.

No Japão, os embriões abortados são chamados de


“mizuko”, os filhos da água.

Os gestos da noite se fizeram por si mesmos. Naquele


momento, eram os únicos que podiam ser feitos.
Por suas crenças e seu ideal burguês, O. não estava
preparada para cortar o cordão de um feto de três meses. A
essa altura, talvez ela se lembre desse episódio como uma
desordem inexplicável, uma anomalia em sua vida. Talvez
ela condene as IVG.6 Mas foi ela, de quem volto a ver o
rostinho franzido em prantos, apenas ela que esteve a meu
lado naquela noite, num papel improvisado de parteira, no
quarto 17 da cidade universitária feminina.

Eu perdia sangue. No começo não dei importância, achei


que já tinha terminado tudo. O sangue saía aos borbotões
do cordão cortado. Estava esticada na cama sem me mover
e O. passava toalhas de banho em mim que se
encharcavam rapidamente. Eu não queria saber de
médicos, até ali tinha me virado muito bem sem eles. Quis
me levantar, e só vi fagulhas brilhantes, pensei que fosse
morrer de hemorragia. Gritei que precisava de um médico
imediatamente. O. desceu para chamar o porteiro, ele não
respondia. Em seguida, houve algumas vozes. Eu tinha
certeza de que já tinha perdido sangue demais.

Com a entrada em cena do médico, começa a segunda


parte da noite. De experiência pura da vida e da morte, ela
se tornou exposição e julgamento.

Ele sentou na minha cama e me segurou pelo queixo:


“Por que você fez isso? Como você fez isso, responda!”. Ele
me encarava com olhos brilhantes. Eu implorava para que
ele não me deixasse morrer. “Olhe para mim! Jure que
nunca mais fará isso! Nunca!” Por causa de seus olhos
loucos, acreditei que fosse capaz de me deixar morrer se eu
não jurasse. Ele pegou seu receituário, “você vai ao hospital
Hôtel-Dieu”. Eu disse que preferia ir a uma clínica. De modo
firme, ele repetiu “ao Hôtel-Dieu”, deixando claro que o
único lugar para uma garota como eu era o hospital. Disse
que eu tinha de pagar a visita. Eu não conseguia me
levantar, ele abriu a gaveta da minha escrivaninha e pegou
o dinheiro na minha carteira.

(Acabo de achar entre meus papéis essa cena, escrita há


vários meses. Percebo que eu tinha usado as mesmas
palavras, “ele era capaz de me deixar morrer” etc. São
também as mesmas comparações que me vêm sempre que
penso no momento em que aborto no banheiro, o jorro de
um obus ou de uma granada, a tampa de um barril que
pula. Essa impossibilidade de dizer as coisas com palavras
diferentes, essa união definitiva da realidade passada e de
uma imagem que exclui qualquer outra me parecem a prova
de que realmente vivi assim o acontecimento.)

Desci do quarto numa maca. Tudo estava embaçado, eu


estava sem meus óculos. Então os antibióticos e o sangue
frio da primeira parte da noite não tinham servido para
nada, tudo ia acabar no hospital. Tinha a sensação de ter
agido bem até a hemorragia. Eu procurava o erro, que com
certeza tinha começado com o cordão que não deveria ter
sido cortado. Eu não tinha mais controle de nada.

(Sinto que nada vai mudar quando este livro estiver


pronto. Minha determinação, meus esforços, todo esse
trabalho secreto, até clandestino, pois ninguém desconfia
que estou escrevendo sobre isso, vai desaparecer
imediatamente. Não terei mais nenhum poder sobre meu
texto, que será exposto como foi meu corpo no Hôtel-Dieu.)

No hall do hospital, me passaram para uma cama com


rodinhas, que embicaram de frente para o elevador, entre
as pessoas que iam e vinham. Minha vez de ser levada não
chegava nunca. Apareceu uma moça com uma barriga
enorme, acompanhada de outra mulher, que devia ser sua
mãe. Ela disse que ia parir. A enfermeira a repreendeu,
ainda faltava muito. A moça queria ficar, houve uma briga e
ela foi embora com sua acompanhante. A enfermeira deu de
ombros, “aquela ali está aprontando com a gente há quinze
dias!”. Entendi que era uma moça de vinte anos, sem
marido. Ela havia mantido o bebê, mas não era mais bem
tratada do que eu. A moça abortada e a mãe solteira dos
bairros pobres de Rouen estavam no mesmo barco. Talvez
tivessem mais desprezo por ela do que por mim.

Na sala de cirurgia, fiquei nua, com as pernas levantadas


e presas aos suportes por uma correia, sob uma luz
violenta. Eu não entendia por que precisava ser operada, se
não havia mais nada a ser retirado do meu ventre. Implorei
ao jovem cirurgião para me dizer o que ele ia fazer. Ele se
posicionou de frente para minhas coxas abertas, gritando:
“Eu não sou o encanador!”. Foram as últimas palavras que
escutei antes da anestesia.

(“Eu não sou o encanador!” Essa frase, como todas as


que marcam esse acontecimento, frases muito ordinárias,
proferidas por pessoas que falavam sem refletir, ainda
repercute em mim. Nem a repetição, nem um comentário
sociopolítico podem atenuar a violência: eu não “esperava”
por isso. De modo fugaz, creio ver um homem de branco,
com luvas de borracha, que me enche de pancada gritando
“eu não sou o encanador!”. E essa frase, inspirada talvez
por um esquete de Fernand Raynaud que fazia a França
inteira rir, continua a hierarquizar o mundo em mim, a
separar, como que a golpes de cassetete, médicos de
operários e de mulheres que abortam, os dominantes dos
dominados.)
Acordei, estava de noite. Escutei uma mulher entrar e
gritar para eu ficar calada pelo amor de Deus. Perguntei se
tinham tirado meus ovários. Ela me tranquilizou com
brutalidade: fizeram simplesmente uma curetagem. Eu
estava sozinha no quarto, vestida com a camisola do
hospital. Escutei choros de bebê. Meu ventre era uma
concavidade flácida.
Soube que havia perdido durante a noite o corpo que eu
tivera desde a adolescência, com seu sexo vivo e secreto,
que tinha absorvido o sexo do homem sem se alterar — e
assim se tornado ainda mais vivo e secreto. Eu tinha um
sexo exposto, rasgado, um ventre raspado, aberto para o
exterior. Um corpo parecido com o de minha mãe.

Olhei a folha de papel pendurada no pé da cama. Nela


estava escrito “útero gravídico”. Eu estava lendo pela
primeira vez essa palavra “gravídico”, e ela me
desagradava. Quando lembrei da palavra em latim —
gravidus, pesado —, entendi qual era o sentido. Não entendi
por que escreveram isso, se eu não estava mais grávida.
Não queriam, então, dizer o que havia acontecido comigo.

Ao meio-dia, deixaram a meu lado uma carne cozida


sobre um repolho esmagado, cheio de nervos e veias
protuberantes, que ocupava o prato todo. Não consegui
nem encostar. Tinha a impressão de que me davam minha
placenta para comer.
No corredor reinava uma grande agitação que parecia
irradiar do carrinho de comida. Em intervalos regulares,
uma voz de mulher gritava alto, “uma gemada para a sra. X
ou Y que está amamentando”, como um privilégio.

O residente da noite anterior passou no quarto. Ele não


se aproximou, parecia sem jeito. Achei que estivesse com
vergonha por ter me maltratado na sala cirúrgica. Fiquei
constrangida por ele. Engano meu. Ele estava
envergonhado apenas porque — já que não sabia nada
sobre mim — tinha tratado uma estudante da faculdade de
letras como se fosse uma operária têxtil ou uma caixa de
supermercado, como descobri naquela mesma noite.
Todas as luzes estavam apagadas fazia bastante tempo.
A enfermeira da noite, uma mulher de cabelos grisalhos,
voltou ao meu quarto e se aproximou silenciosamente da
cabeceira da minha cama. Na penumbra da luz noturna, eu
via sua expressão bondosa. Ela cochichou, num tom de
bronca: “Na noite passada, por que você não disse ao
doutor que era como ele?”. Depois de alguns segundos de
dúvida, eu compreendi o que ela queria dizer: do mundo
dele. Ele só havia descoberto que eu era universitária
depois da curetagem, certamente pela minha carteirinha do
plano de saúde de estudantes da França. Ela imitava o
espanto e a cólera do residente, “mas afinal, por que ela
não me disse isso, por quê?!”, como se ela própria estivesse
indignada pela minha atitude. Devo ter pensado que a
mulher tinha razão e que era minha culpa se ele tinha se
comportado de modo violento: ele não sabia com quem
estava falando.
Ao deixar meu quarto, aludindo a meu aborto, ela
concluiu com convicção, “você está bem mais tranquila
assim!”. Foi a única palavra de consolo que me ofereceram
no Hôtel-Dieu e que eu atribuí não tanto a uma
cumplicidade entre mulheres, mas a uma aceitação das
“pessoas humildes” pelo direito dos “superiores” de se
colocarem acima da lei.

(Se eu tivesse descoberto o nome desse residente de


plantão da noite do dia 20 ao 21 de janeiro de 1964, e se
me lembrasse dele, não hesitaria em registrá-lo aqui. Mas
seria uma vingança inútil e injusta na medida em que seu
comportamento devia ser apenas uma amostra de uma
prática geral.)

Meus seios começaram a inchar e a doer. Disseram que


devia ser a descida do leite. Não havia imaginado que meu
corpo pudesse fabricar leite para alimentar um feto de três
meses morto. A natureza continuava a trabalhar
automaticamente na ausência. Enfaixaram meu peito. Cada
volta da faixa achatava mais e mais meus seios, como para
empurrá-los para dentro. Achei que nunca mais voltariam ao
normal. Uma auxiliar de enfermagem pôs uma chaleira na
mesinha de cabeceira, “quando você tiver bebido tudo, não
vai mais sentir dores nos seios!”.
Falei da hemorragia e da prática punitiva do Hôtel-Dieu a
Jean T., L.B. e J.B., que vieram me ver, os três juntos. Fiz um
relato bem-humorado, que eles gostaram de escutar —
omiti os detalhes que, depois disso, nunca mais esqueci.
L.B. e eu comparávamos com prazer nossos abortos. J.B.
contou que uma mulher da venda da esquina havia dito que
não valia a pena ir até Paris para abortar, tinha uma fulana
no mesmo bairro que só cobrava trezentos francos.
Brincávamos pensando nos cem francos que eu poderia ter
economizado. Agora podíamos rir da humilhação e do medo,
de tudo aquilo que não nos impedira de transgredir a lei.

Não lembro ter lido nada durante os cinco dias que


passei no Hôtel-Dieu. Não se podia ouvir rádio. Em três
meses, era a primeira vez que não esperava por mais nada.
Ficava deitada, via pela janela os telhados de outra ala do
hospital.

Os recém-nascidos choravam intermitentemente. Não


havia nenhum berço no meu quarto, mas eu também tinha
dado à luz. Não me sentia diferente das mulheres da sala
vizinha. Tinha a impressão, inclusive, de que eu sabia mais
do que elas por causa dessa ausência. No banheiro da
cidade universitária, eu tinha parido uma vida e uma morte
ao mesmo tempo. Pela primeira vez, sentia-me parte de
uma cadeia de mulheres por onde passavam as gerações.
Foram dias cinza de inverno. Eu flutuava na luz no meio do
mundo.
Fui embora do Hôtel-Dieu no sábado, 25 de janeiro. L.B. e
J.B. se encarregaram das formalidades e me acompanharam
até a estação. Da agência dos correios vizinha, liguei para o
dr. N. para lhe dizer que tinha acabado tudo. Ele me
aconselhou a tomar penicilina de novo — não tinham me
dado nenhum remédio no hospital. Voltei para a casa de
meus pais e, sob o pretexto de uma gripe, logo fui deitar.
Pedi que chamassem o dr. V., que cuidava de toda a família.
Avisado sobre meu aborto pelo dr. N., ele devia me
examinar discretamente e receitar a penicilina.

Assim que minha mãe se afastou, o dr. V. começou a


cochichar com excitação, querendo saber quem tinha feito
aquilo. Disse, debochando, “por que você foi para Paris, se
na sua rua tinha a dona… [eu não conhecia o nome que
citou], ela faz isso muito bem!”. Agora que eu não precisava
mais delas, choviam fazedoras de anjos por todo lado. Mas
eu não tinha nenhuma ilusão, o dr. V., que votava na direita
e estava sempre na primeira fileira da missa de domingo, só
me daria depois o endereço de que eu precisava antes.
Sentado na minha cama, aproveitava sem esforço a
cumplicidade que ele sempre manifestara em relação à boa
aluna de “meio modesto”, que talvez passasse para o seu
mundo.

Uma única lembrança dos dias na casa dos meus pais,


depois do hospital. Estou meio recostada na cama, com a
janela aberta, lendo Gérard de Nerval, na edição da coleção
10-18. Olho minhas pernas de meias finas pretas estendidas
no sol; são as pernas de uma outra mulher.

Voltei para Rouen. Era um mês de fevereiro frio e


ensolarado. Não acho que retornei para o mesmo mundo.
Os rostos dos transeuntes, os carros, as bandejas na mesa
do restaurante universitário, tudo que eu via parecia
transbordar de significados. Mas, justamente por causa
desse excesso, eu não conseguia compreender nenhum.
Havia, de um lado, os seres e as coisas, que significavam
até demais; e, de outro, as frases, as palavras, que não
significavam nada. Eu estava em um estado febril de
consciência pura, além da linguagem, que a noite não
interrompia. Dormia um sono leve, no qual tinha certeza de
estar acordada. Diante de mim, flutuava um bonequinho
branco, como aquele cachorro que, mesmo depois de seu
cadáver ter sido jogado no éter, continua a seguir os
astronautas em um romance de Jules Verne.

Eu ia à biblioteca trabalhar em minha monografia,


negligenciada desde a metade de dezembro. Ler me tomava
muito tempo, parecia que eu estava decifrando um código.
O tema da monografia, a mulher no surrealismo, eu o via
num conjunto luminoso, mas não conseguia decompor essa
visão em ideias, exprimir num discurso linear o que
percebia sob a forma de uma imagem onírica: sem
contornos e, no entanto, de uma realidade irrefutável, mais
real ainda do que os estudantes debruçados sobre os livros
e o bedel gordo rondando as garotas que pesquisavam
referências no arquivo. Eu estava ébria de uma inteligência
sem palavras.

Escutava em meu quarto “A paixão segundo São João”,


de Bach. Quando vinha à tona o solo do evangelista
recitando em alemão a paixão de Cristo, parecia que minha
provação de outubro a janeiro era contada em uma língua
desconhecida. Depois vinham os coros. Wohin! Wohin! Um
horizonte imenso se abria, a cozinha da passagem Cardinet,
a sonda e o sangue se fundiam no sofrimento do mundo e
na morte eterna. Eu me sentia salva.

Eu andava pelas ruas com o segredo da noite do dia 20


ao 21 de janeiro em meu corpo, como uma coisa sagrada.
Não sabia se tinha estado à beira do horror ou da beleza.
Sentia orgulho. Provavelmente o mesmo dos navegantes
solitários, dos drogados e ladrões — o de ter ido até onde os
outros jamais pensariam em ir. Com certeza foi algo desse
orgulho que me fez escrever este texto.

Certa noite, O. me levou para uma pequena festa. Me


sentei no fundo do subsolo, e olhava os outros dançarem,
espantada com o prazer que sentiam e cuja intensidade
ainda revejo no rosto resplandecente de Annie L., de vestido
de lã branco, na moda naquele inverno. Eu era a convidada
deslocada em um ritual cujo sentido me era desconhecido.
Numa tarde, acompanhei um estudante de medicina,
Gerard H., até seu quarto na rua Bouquet. Ele tirou meu
suéter e meu sutiã, eu via meus seios achatados e flácidos
— tinham estado cheios de leite duas semanas antes.
Gostaria de ter falado disso e da sra. P.-R. Não quis mais
nada com esse rapaz. Apenas comemos o bolo que a sua
mãe tinha feito.

Numa outra tarde, entrei em uma igreja, Saint-Patrice,


perto do boulevard de la Marne, para dizer ao padre que eu
tinha abortado. Logo em seguida, me dei conta do meu erro.
Eu me sentia na luz e para ele eu estava no crime. Ao sair,
soube que o tempo da religião tinha acabado para mim.

Mais tarde, em março, na biblioteca revi Jacques S., o


estudante que havia me acompanhado até o ônibus,
quando fui pela primeira vez ao ginecologista. Ele me
perguntou em que ponto estava minha monografia. Saímos
em direção à entrada. Como de costume, ele dava voltas
em torno de mim enquanto falava. Ia entregar em maio sua
monografia sobre Chrétien de Troyes e parecia surpreso que
eu ainda estivesse no começo da minha. Com meias-
palavras, o fiz compreender que eu havia feito um aborto.
Foi talvez por ódio de classe, para desafiar aquele filho de
diretor de fábrica que falava dos operários como se fossem
de outro mundo, ou por orgulho. Quando captou o sentido
das minhas palavras, ele ficou imóvel, me encarou com os
olhos dilatados, atordoado por uma cena invisível,
atormentado por uma fascinação que eu sempre vejo nos
homens, nas minhas lembranças.7 Ele repetia,
desorientado, “tiro meu chapéu, minha cara! Tiro meu
chapéu!”.

Voltei ao consultório do dr. N. Depois de um exame


minucioso, ele me disse sorrindo, num tom de elogio e
satisfação, que eu tinha me “saído bem”. Sem perceber,
também ele me incitava a transformar a violência vivida em
uma vitória individual. Me ofereceu um diafragma como
meio de contracepção a ser colocado no fundo da vagina e
dois tubos de gel espermicida.

Não devolvi a sonda à sra. P.-R. Achava que, pelo preço


que pagara, podia evitar isso. Um dia peguei o carro dos
meus pais e fui jogá-la numa mata à beira da estrada. Mais
tarde me arrependi desse gesto.

Não sei quando voltei ao mundo que chamamos normal,


essa formulação vaga mas cujo sentido todo mundo
entende, quer dizer, o mundo em que ver uma pia brilhante
ou a cabeça dos passageiros em um trem não provoca mais
questões nem dores. Comecei a escrever minha monografia.
Cuidava de crianças à noite e trabalhava como telefonista
para um cardiologista para reembolsar aos poucos o
dinheiro do aborto. Fui ao cinema ver Charada com Audrey
Hepburn e Cary Grant, e Peau de banane [Casca de
banana], com Jeanne Moreau e Belmondo, filmes que não
me deixaram nenhuma lembrança. Cortei o cabelo, troquei
os óculos por lentes, que pareciam tão difíceis de se ajustar
nos olhos quanto botar o diafragma no fundo da vagina.

Nunca mais vi a sra. P.-R. Nunca mais parei de pensar


nela. Sem saber, essa mulher provavelmente gananciosa —
mas com uma casa pobre — me arrancou de minha mãe e
me jogou no mundo. É a ela que eu deveria dedicar este
livro.

Durante anos, a noite do dia 20 ao 21 de janeiro foi um


aniversário.

Sei hoje que eu precisava dessa provação e desse


sacrifício para desejar ter filhos. Para aceitar essa violência
da reprodução no meu corpo e me tornar, por minha vez,
lugar de passagem das gerações.

Terminei de pôr em palavras isso que se revela para mim


como uma experiência humana total, da vida e da morte, do
tempo, da moral e do interdito, da lei, uma experiência
vivida de um extremo a outro pelo corpo.

Eliminei a única culpa que senti a respeito desse


acontecimento — que ele tenha acontecido comigo e que eu
não tenha feito nada dele. Como um dom recebido e
desperdiçado. Pois, para além de todas as razões sociais e
psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe
uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas
aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro
objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu
corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem
escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência
completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.
HOJE DE TARDE, VOLTEI À PASSAGEMCardinet, no 17o
arrondissement. Preparei meu itinerário com um mapa de
Paris. Queria encontrar o café onde havia esperado até dar
a hora de ir para a casa da sra. P.-R. e a igreja na qual tinha
ficado por um bom tempo, Saint-Charles-Borromée. No
mapa, só aparecia a Saint-Charles-de-Monceau. Achei que
talvez fosse a mesma, que tivesse mudado de nome. Desci
na estação Malesherbes e andei até a rua de Tocqueville.
Eram por volta de quatro horas e fazia muito frio sob um
baita sol. Na entrada da passagem Cardinet, haviam posto
uma placa nova. Deixaram a antiga, escura, ilegível. A rua
estava vazia. Na fachada de um imóvel, no nível da rua,
havia um grande letreiro, “Associação dos sobreviventes dos
campos nazistas e dos deportados do departamento de
Seine-et-Oise”. Não me lembrava de já tê-lo visto.
Cheguei ao número da sra. P.-R. Parei diante da porta,
que estava fechada e só podia ser aberta com um código
digital. Avancei pelo meio da rua, olhando em direção ao
fundo, a fenda de luz entre os muros. Não cruzei com
ninguém e nenhum carro passou. Tinha a impressão de
reproduzir os gestos de um personagem sem sentir nada.
No final da passagem Cardinet, virei à direita e procurei a
igreja. Era Saint-Charles-de-Monceau, e não Borromée.
Dentro, havia uma estátua de santa Rita e supus que
deveria ter acendido uma vela para ela naquele dia, porque
dizem que era a santa das “causas impossíveis”. Peguei a
rua de Tocqueville. Fiquei me perguntando em qual café eu
havia esperado a hora do meu compromisso, tomando um
chá. Por fora, nenhum deles me dizia nada, mas eu tinha
certeza de que reconheceria se visse o banheiro, no
subsolo, até onde desci logo antes de ir para a casa da sra.
P.-R.

Entrei no café Brazza. Pedi um chocolate e peguei as


redações que tinha para corrigir, mas não li nem uma linha.
Dizia a mim mesma, sem parar, que devia ir até o banheiro.
Dois jovens se beijavam, inclinados sobre a mesa. Acabei
me levantando e perguntei ao garçom onde era o banheiro.
Ele apontou para a porta no fundo do café. Dava
diretamente para um cubículo com uma pia, um espelho, à
direita uma segunda porta, do vaso sanitário. Era um
banheiro turco. Não consegui lembrar se o do café de 35
anos antes era assim. Na época, não era um detalhe que
chamaria minha atenção, quase todos os banheiros públicos
eram assim: um buraco no cimento com um espaço de cada
lado para apoiar os pés e se agachar.

Na plataforma da estação Malesherbes, pensei que tinha


voltado à passagem Cardinet acreditando que fosse me
acontecer alguma coisa.
De fevereiro a outubro de 1999
Notas

1. Livro didático em dez volumes sobre literatura francesa da Idade Média até o
século 21, lançado em 1948 e adotado nas escolas por décadas. (N.E.)
2. “Impasse”, em francês, além de designar uma situação difícil, também é um
“cul-de-sac”, uma rua sem saída. (N.T.)

3. Cerca de 900 euros em 2022.


4. Escrever a data é para mim uma necessidade ligada à realidade do
acontecimento. E é a data que, em certo momento, para John Fitzgerald
Kennedy — 22 de novembro de 1963 —, para todo mundo, separa a vida da
morte. (N.A.)
5. Não tenho certeza do nome desse antiespasmódico uterino, que não é mais
vendido. (N.A.)
6. IVG, Interruption Volontaire de Grossesse [Interrupção Voluntária da
Gravidez], designa na França, desde 1975, os casos de aborto por razões não
médicas. (N.T.)

7. E que eu logo reconheci em John Irving, em seu romance As regras da casa de


sidra. Sob a máscara de um personagem, ele olha as mulheres morrendo em
abortos clandestinos atrozes, depois as ajuda a abortar propriamente em uma
clínica modelo ou educa a criança que elas abandonam após o parto. É um
sonho de sangue e de glória em que ele conquista e regulamenta o poder sobre
a vida e a morte das mulheres. (N.A.)
Catherine Hélie

Annie Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, na França.


Estudou na universidade de Rouen e foi professora do
Centre National d’Enseignement par Correspondance por
mais de trinta anos. Seus livros são considerados clássicos
modernos na França. Em 2017, Ernaux recebeu o prêmio
Marguerite Yourcenar pelo conjunto de sua obra.
Copyright © 2000, Éditions Gallimard, Paris
Copyright da tradução © 2022 Editora Fósforo

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,
arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a
permissão expressa e por escrito da Editora Fósforo.

Cet ouvrage a bénéficié du soutien des Programmes d’aides à la publication de


Institut Français. [Este livro contou com o apoio à publicação do Institut
Français.]

EDITORAS Rita Mattar e Maria Emilia Bender


ASSISTENTE EDITORIAL Mariana Correia Santos
PREPARAÇÃO Leda Cartum
REVISÃO Eduardo Russo e Paula B. P. Mendes
DIREÇÃO DE ARTE Julia Monteiro
CAPA Bloco Gráfico
IMAGEM DA CAPA Arquivo privado de Annie Ernaux (direitos reservados)
PROJETO GRÁFICO Alles Blau
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Página Viva
VERSÃO DIGITAL Marina Pastore

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ernaux, Annie
O acontecimento [livro eletrônico] / Annie Ernaux ; tradução
Isadora Pontes. -- 1. ed. -- São Paulo, SP : Fósforo, 2022.
ePub

Título original: L'événement


ISBN 978-65-89733-78-2

1. Aborto - França 2. Ernaux, Annie, 1940- 3. Escritoras


francesas - Autobiografia I. Título.
22-98914 CDD-848.092

Índice para catálogo sistemático:


1. Escritoras francesas : Autobiografia 848.092

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Editora Fósforo
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