Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher Édouard Louis
Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher Édouard Louis
Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher Édouard Louis
I
II
III
IV
Citações
Créditos
I
Tudo começou com uma foto. Eu não sabia que essa imagem existia
nem que estava comigo — quem me deu, e quando?
A foto fora tirada por ela quando tinha vinte anos. Imagino que tenha
precisado segurar a máquina fotográfica ao contrário para enquadrar o
próprio rosto na objetiva. Na época, os celulares não existiam e
fotografar a si mesmo não era uma coisa óbvia.
Ela estava com a cabeça inclinada para o lado e sorria um pouco, o
cabelo penteado e liso sobre a testa, impecável, seu cabelo loiro em
volta de seus olhos verdes.
Como se quisesse seduzir.
Não encontro palavras para explicar, mas tudo nessa foto, sua pose,
seu olhar, o movimento do cabelo, evoca liberdade, uma infinidade de
possibilidades à sua frente, e talvez, também, felicidade.
Eu tinha me esquecido, acho, de que ela era livre antes do meu
nascimento — feliz?
Devo ter pensado nisso algumas vezes quando ainda morava com
ela, que um dia ela deve ter sido forçosamente jovem e cheia de
sonhos, mas quando encontrei essa foto fazia muito tempo que eu já
não pensava nisso, era uma compreensão, uma consciência abstrata
demais. Nada ou quase nada do que eu soube dela na minha infância,
em contato com seu corpo por quinze anos, poderia me lembrar isso.
No dia da briga com meu irmão mais novo — era verão. Eu tinha
voltado de uma tarde na escadaria da prefeitura da cidade, quando
estourou uma briga com meu irmão mais novo na sua frente. Entre
gritos e injúrias, meu irmão me disse, tentando encontrar o tom mais
ofensivo possível, No fim, a cidade toda ri de você pelas costas. Todo
mundo fala que você é viado.
Não foi tanto o que ele falou que me magoou, nem o fato de eu
saber que aquilo era verdade, mas o fato de ele ter falado na sua frente.
Fui até meu quarto, peguei a garrafa com areia colorida que estava
em cima do armário, voltei para perto do meu irmão e quebrei a
garrafa no chão, diante dele. Era uma garrafa que ele tinha feito na
escola. A professora tinha sugerido às crianças da classe mergulhar
grãos de areia em corantes e depois encher garrafas de coca-cola com
essa areia, para fazer objetos coloridos; ela havia perguntado ao meu
irmão menor para quem ele queria dar sua garrafa e ele me escolheu,
foi por mim que ele havia se esforçado, foi por mim que havia passado
um dia inteiro fazendo esse objeto.
Quando quebrei a garrafa a seus pés, ele deu um grito agudo e
chorou, o rosto escondido, enfiado no assento do sofá. Você se
aproximou de mim, me deu um tapa e disse que nunca tinha visto
uma criança tão cruel. Eu já havia me arrependido do que tinha feito,
mas não consegui me controlar. Fiquei com raiva do meu irmãozinho
por ele ter revelado, na sua frente, algo sobre mim, sobre a minha
vida, sobre o meu sofrimento.
Não queria que você soubesse quem eu sou.
Nos primeiros anos da minha vida, vivi com medo de que você me
conhecesse. Quando havia reuniões de pais e professores na escola, ao
contrário das outras crianças que tinham notas boas, eu dava um jeito
para que você não soubesse. Escondia os convites, queimava-os.
Quando, no fim do ano, era apresentado um espetáculo no salão de
eventos da cidade com peças curtas, músicas, coreografias, as outras
crianças convidavam os pais e toda a família. Eu fazia o que podia para
garantir sua ausência. Dizia que as danças e as músicas eram sem
graça, inventava problemas técnicos, não passava para você as datas
certas do espetáculo. Mentia para você. Mais tarde descobri as cenas,
frequentemente repetidas nos filmes e nas séries de TV, da criança
que, no palco, espera ver os pais aparecer no auditório para admirarem
o espetáculo que ela preparou pensando neles o ano todo,
obstinadamente, e não me reconheci nem na espera nem na decepção
por sua ausência. Como se toda a minha infância, no fundo, tivesse
sido vivida ao contrário.
No ano em que ela quis tirar férias — entrou na cozinha e disse que
tinha tomado a decisão. Tiraríamos férias. Lembrava-se de suas
temporadas na montanha, quando criança, quando os médicos a
mandavam ao Maciço Central para tratar da sua grave asma. Eu estava
com meu pai, vendo televisão, e ela declarou: Vamos viajar para as
montanhas. Meu pai riu. Continuou vendo seu programa e comentou,
Que ideia é essa agora?
Ela tinha estado com uma assistente social na véspera. A assistente
explicara que havia programas do Estado para famílias como a nossa,
que não tinham dinheiro para tirar férias, e ela começou a ter
esperança.
Passou a ir toda hora ao pequeno prédio onde ficavam os escritórios
do serviço social, nos limites da cidade, perto da metalúrgica. Voltava
com pilhas de papéis debaixo do braço, certificados, documentos que
acabavam de ser impressos, ainda mornos depois de saírem da
impressora, e com uma energia que eu nunca tinha visto nela, nem
em seu corpo nem em seu rosto.
Punha os documentos sobre a mesa e os desdobrava para mostrá-
los a meu pai, mas ele não tirava os olhos da TV. Respondia que isso
não o interessava, e ela permanecia ali, imóvel. Virava-se para mim,
mas eu também não escutava, não sei por quê, talvez porque
inconscientemente imitasse meu pai, talvez porque a descrição de
seus procedimentos me entediasse.
Meu pai continuou a fazer pouco-caso dela, mas ela não desistiu.
Eu a via ir à mercearia da cidade, geralmente várias vezes por dia, para
usar a impressora perto do caixa da loja.
Pedia a meu pai os documentos que um dia, no ano anterior, ele
havia organizado e guardado, mas ele respondia que não sabia mais
onde tinha posto. Dizia isso com um sorrisinho cruel nos lábios.
Ela esperava. Esperava que ele saísse para o bar e ia fuçar as gavetas
dele. Não se contentava em abri-las, tirava-as da estrutura do móvel e
colocava-as no chão. Sentava-se diante delas e tirava as pilhas de
papéis uma a uma, telefonava, deixava recados, ligava de novo quando
não respondiam, atravessava ruas, preenchia mais formulários, até o
dia em que nos disse que estava tudo certo, ela tinha vencido, sua
frase encobriu o barulho da televisão: Vamos tirar férias no próximo
verão. Sorria. (Seu rosto muito radiante de repente.) Meu pai disse que
não iria conosco, que ficava melhor na casa dele, mas nada do que ele
dissesse poderia atingi-la naquele estado, agora ela o desprezava
graças à sua vitória sobre ele. Tinha em seus dossiês fotos da
cidadezinha de montanha para onde eu iria com ela, fotos da casa
também, e por meses antes da partida olhou para elas todos os dias, de
manhã, à noite antes de dormir, centenas de vezes. No dia em que nos
contou a novidade, com a certeza de ir, ela me soprou no ouvido, para
que meu pai não ouvisse, Enfim vou ser feliz.
Tento me lembrar: seu pai morreu quando ela tinha dez anos. Foi um
incidente de que falava muito. Guardava uma carta de no máximo
umas vinte linhas que ele tinha escrito em seu leito no hospital,
quando soube que ia morrer. Às vezes, uma ou duas vezes por ano, ela
abria a carta cuidadosamente dobrada e guardada num envelope
amarelado e a relia, sentada na beira da cama. Eu olhava pela porta
entreaberta e tentava entender que sentimentos a transpassavam.
Não tenho mais nada para dizer sobre sua infância, nada além desse
universo operário e dessa perda do pai.
Sua mãe — minha avó — era uma pessoa discreta, tímida, apagada —
tudo o que se esperava de uma mulher. Falava baixo, cozinhava e
cuidava da casa, desaparecendo no final das refeições em família para
lavar a louça, enquanto os homens continuavam conversando e se
servindo de mais vinho. Nasceu nos anos 1930 e com seis ou sete anos
fora forçada a deixar o Norte onde vivia por causa dos bombardeios da
Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto não pôde aprender a ler e
recuperou esse atraso sozinha, mais tarde na vida. Vivia uma
existência modesta, criara quatro filhos, minha mãe e seus irmãos e
irmãs, seu marido morreu jovem, mas ela não era infeliz. Quando eu ia
passar alguns dias com ela nas férias escolares, minha avó comentava
sobre minha mãe: “Me faz mal ver minha filha sofrer tanto. Nunca
imaginei ver sua mãe assim”.
Ela o detestava, mas ficou com ele por causa dos dois filhos, por eles.
Ela me dizia que não queria que crescessem sem pai, que não queria
ser “responsável”. E sistematicamente acrescentava: E então ir
embora, bem que eu queria, mas para onde?
No entanto, depois de mais dois ou três anos com ele, ela não
aguentou. Soube que ele ia para a cama com outras mulheres, mentia
para ela. Ele bebia cada vez mais. Alguns dias — como seu filho anos
mais tarde, como meu irmão mais velho, como uma repetição exata de
vidas — acordava às sete, oito da manhã para ir trabalhar e já estava
bêbado sem nem começar a beber, o álcool não saía mais de seu corpo,
e ela foi embora.
Mudou-se para a casa da irmã num conjunto habitacional na
periferia de uma pequena cidade industrial, perto de supermercados
abarrotados e de lojas enormes de jardinagem.
Tinha vinte e três anos, dois filhos, não tinha uma casa para morar
nem emprego nem carteira de motorista nem amigos que pudessem
ajudá-la. O único sonho que restava, o único sonho ainda possível para
alguém como ela, era voltar para trás, Voltar no Tempo. Isso
aconteceu poucos anos depois da fotografia, de seu autorretrato.
Por que tenho a impressão de estar escrevendo uma história triste, sendo
que meu objetivo era contar a história de uma libertação?
Alguns meses depois ela conheceu meu pai. Para ela, a única forma de
fugir dali era encontrar outro homem. Apaixonou-se, foram morar
juntos, tiveram um filho, eu, ela se sentia bem com ele por ele ser
diferente, mas logo ele virou outra pessoa — ou seja, como todos os
outros.
Com frequência se recusava a falar com ela por vários dias
seguidos, sem motivo. Se alguém tentava dizer alguma coisa, ficava
nervoso.
Ela encolhia os ombros, sua vida tinha virado um encolher de
ombros infinito: “Não sei por que seu pai é tão lunático assim, com
ele a gente nunca sabe o que esperar”.
Estava com ele havia apenas alguns anos, mas só falava da relação
deles no passado, No começo ele me levava à praia no domingo, íamos às
lojas, ele não era como agora. Convidava os amigos para dançar. Ele usava
perfume, e naquela época, sabe, não era como hoje, os homens nunca
passavam perfume, não se usava. Mas seu pai, sim. Ele, sim. Ele era
diferente. Era tão cheiroso.
Ele não queria que ela usasse maquiagem, mesmo que ela quisesse
desesperadamente, esperava que ela cozinhasse e que cuidasse da casa
para toda a família, não queria que ela tirasse carteira de motorista,
pelo menos a dissuadia de fazer isso, e sobretudo voltava para casa
tarde da noite, ou de madrugada, depois de ter desaparecido por
horas, o corpo encharcado de álcool. “É uma palavra que não uso
muitas vezes, mas nesse caso acho que posso dizer, seu pai é
alcoólatra.”
Um dia, na festa da cidade organizada pelo time de futebol local,
meu pai gritou com ela na frente de dezenas de pessoas, “Ei, sua vaca
gorda, vem cá”. Vi os rostos à sua volta se contorcerem de rir. Ela me
pediu que voltasse para casa com ela. Chegando em casa, sentada no
sofá, chorou. Eu tinha oito anos e era a primeira vez que a via chorar.
Ela dizia entre soluços, Não sei por que seu pai precisa me humilhar
assim.
Sentia-se humilhada, mas ela não tinha escolha, ou pensava que
não tinha, a fronteira entre as duas coisas é difícil de definir, e ela
ficou com ele por vinte anos.
Ela não realizou seus sonhos. Não conseguiu consertar o que via
como a sucessão de acidentes que constituía sua vida. Não conseguiu
encontrar uma maneira de viajar no tempo.
Será que estou sendo vítima de uma ilusão? Será que é porque nós
dois nos distanciamos dessa violência que vejo o passado dela apenas
como uma sucessão de tragédias e privações? Sei também que ela
nunca aceitou seu destino. Quando falava de sua formação de
cozinheira interrompida pela primeira gravidez, dizia que poderia ter
recebido uma ótima educação se não tivesse tido meu irmão: “Todos
os meus professores me diziam que eu era muito inteligente,
principalmente em geografia”. Quando eu perguntava sobre sua
família e seus antepassados, ela sempre afirmava que vinha de uma
família decadente da grande aristocracia francesa.
Ela tinha certeza de que merecia outra vida, de que essa vida existia
em algum lugar, abstratamente, num mundo virtual, de que seria
necessário muito pouco para alcançá-la, e de que sua vida só era o que
era no mundo real por acaso.
Então ela estava morando com esse homem que já não amava muito,
meu pai. Ele trabalhava na fábrica durante o dia, voltava à noite, ela
servia o jantar.
Peter Handke escreveu um resumo do cotidiano de sua mãe na
Áustria nos anos 1920: “Pôr a mesa, tirar a mesa; ‘Todos têm o que
precisam?’ Abrir as cortinas, fechar as cortinas; acender a luz, apagar a
luz; ‘Não deixem a luz do banheiro acesa’; dobrar, desdobrar; esvaziar,
encher; ligar, desligar. ‘Por hoje, é só’.”
Minha mãe vivia a milhares de quilômetros da Áustria, sua vida
acontecia cerca de meio século depois, suas condições financeiras
eram diferentes, no entanto sua vida era praticamente igual, até
mesmo as frases que dizia.
De manhã, quando eu não estava na escola, a via ir fazer compras
na mercearia, voltar, fazer o almoço, servir o almoço, tirar a mesa,
lavar a louça, limpar a casa, passar roupa, arrumar a cama dos filhos,
fazer o jantar durante a tarde, esperar meu pai, nos servir, tirar a mesa
do jantar, lavar a louça da noite.
A mesma repetição, os mesmos gestos, essa jornada típica se
repetia quase todos os dias sem exceção, a não ser quando ela exigia
uma ajudinha minha ou da minha irmã para lavar a louça.
Outra pergunta: será que sou capaz de entender a vida dela se essa
vida foi especificamente marcada por sua condição de mulher?
Se sou construído, percebido e definido pelo mundo que me cerca
como um homem?
À noite depois da fábrica meu pai ia para o bar com aqueles que
chamava de seus colegas. Muitas vezes levavam os filhos junto, mas ele
não me levava porque tinha vergonha de mim e de meus trejeitos
femininos, os trejeitos que me separavam dos outros na escola. Eu
ficava em casa com minha mãe e minha irmã mais velha, e foi com elas
que cresci.
O que é um homem? A virilidade, o poder, a camaradagem com
outros meninos? Eu não tinha nada disso. A ausência do risco de
agressão sexual? Eu não estava protegido disso.
Da mesma forma que Monique Wittig afirma que as lésbicas não
são mulheres, que elas escapam dessa identidade restrita, a pessoa que
eu sou nunca foi um homem, e é essa desordem da realidade o que
mais me aproxima da minha mãe. Talvez aqui, nesse não lugar do meu
ser, eu possa tentar compreender quem ela é e o que viveu.
Mas continuando: a chegada dos dois novos filhos. Ter um filho a mais
nesse ambiente é adicionar complicações à vida; ter dois a mais, é uma
catástrofe. Havia sete pessoas na casa, nós, os cinco filhos, e meus
pais.
Nessa configuração, até se alimentar ficou complicado. Uma vez
por semana, minha mãe gritava da cozinha “Vamos a Pont-Rémy,
ponha o sapato!”. Eu sabia o que queria dizer essa frase. Era lá que
uma associação distribuía cestas básicas. Minha mãe queria que eu os
acompanhasse porque sabia que a presença de uma criança suscitaria a
compaixão das mulheres que distribuíam comida e que, me vendo,
talvez acrescentassem um pacote de macarrão ou de biscoitos.
A pobreza se impõe sempre com um manual de conduta que
ninguém precisa publicar para conhecer: ninguém me falou, mas eu
sabia que não devia contar aos outros na nossa cidade sobre as
excursões à associação que distribuía comida. Eu não falava disso
também com meus pais, íamos lá, pegávamos a comida e voltávamos
sem dizer nada, como se aquilo nunca tivesse acontecido.
O que ela podia fazer? Fazia o que podia para não ficar totalmente
sufocada:
Zombava do corpo das outras mulheres: Essa daí parece uma tábua de
passar roupa, totalmente lisa.
Será que é uma coisa em que você pensa com frequência? Um dia
você acreditou que a amizade poderia tirá-la dessa vida — foi em
2006, você e meu pai estavam na quermesse da cidade e você falou
com Angélique. Não se tratava de você conhecer ou não Angélique,
era outra coisa. Ela era responsável pela rede elétrica da região.
Trabalhava num escritório, fizera dois ou três anos de universidade, e
esses detalhes bastavam para separá-la radicalmente de uma família
como a nossa; ela não era amiga de gente como nós, e sim de
professores, funcionários da fábrica, da prefeitura, de todos aqueles
que víamos todos os dias nas ruas e que podíamos cumprimentar, mas
com quem nunca falávamos, outra casta — pois todo mundo sabe que,
ao contrário do que se possa imaginar, quanto maior a proximidade
física, como no interior, mais rígidas são as fronteiras de classe.
Foi meu pai quem se aproximou dela — ele a viu sozinha a poucos
metros do grupo de vocês e notou que, além de estar sozinha, ela
chorava. Vocês normalmente iam embora cedo da quermesse, mas
naquele ano ficaram mais tempo que das outras vezes, a praça da
cidade já estava deserta quando meu pai foi até Angélique para
perguntar o que estava acontecendo e sugerir que ela fosse à nossa
casa beber alguma coisa, para consolá-la — acho que ele gostava dela
também, acho que todos aqueles anos foi apaixonado por ela sem
confessar, mas não importa, ele sempre teve essa propensão a ajudar
os outros, é verdade, você reclamava disso, me dizia sempre que não
entendia por que meu pai era tão cruel com a própria família e tão
gentil e até generoso com os outros, com os desconhecidos, sempre
pronto a ajudar, prestar serviço, a desenrascar, como ele dizia, acho
que é porque estava oprimido com a vida em casa e queria fazer sua
família pagar por ser sua família, por serem os rostos de sua
infelicidade, mas essa é outra história. Angélique fez que sim com a
cabeça sem dizer nada, eu via as lágrimas em seu rosto, como duas
linhas brilhantes e quase paralelas. Meu pai pôs a mão em seu ombro e
ela foi conosco até em casa. Sentada no sofá contou a vocês o que
estava acontecendo, me lembro de suas frases, como e por que o
homem que ela amava acabara de deixá-la, como tinha medo, na idade
em que estava, de acabar sozinha e sem filhos. Dizia tudo isso entre
soluços e longas inspirações.
Meu pai a abraçou, e você conversou com ela, Angélique. Você
disse frases que normalmente são ditas nessas situações, que tudo vai
ficar bem, que logo ela ia esquecer, que nunca se deve contar com os
homens. Eu olhava para você do sofá e não sabia como descrever o que
sentia, aquela fascinação de ter alguém de um meio diferente do nosso
em casa, como nas vezes em que o médico passava à noite e nossos
corpos mudavam apenas por causa da presença dele, nos portávamos
de outro modo, falávamos de outro modo, tínhamos medo de que
qualquer gesto revelasse nossa inferioridade social.
De uma hora para outra todas as conversas com você passaram a ser
brigas. Quando você apontava para alguma coisa e me dizia Oia, em
vez de Olha, como eu tinha feito desde os primeiros anos da minha
vida, como sempre fizemos, eu corrigia você: É olha que se diz, não
oia. Quando você começava uma frase com Se eu ter, eu corrigia, Se
eu tiver, você está falando errado!
Dizia frases exóticas para você, diretamente importadas do mundo
que eu agora frequentava: Está quase na hora do chá, você sabe onde
deixei meu jornal? Dava conselhos: Por que você não põe um pouco de
música clássica para os meus irmãos ouvirem, Mozart ou Beethoven? É
muito bom para o cérebro, sabe. Você arqueava as sobrancelhas, Esse aí
está ficando louco de vez. Criei cinco filhos, não vai ser ele quem vai
me ensinar como educar as crianças.
*
A vida continuava, e para ela a vida continuava parecendo uma luta
contra a vida. Meu irmão e minha irmã mais novos tinham catorze
anos e já começavam a se afastar da escola, a não ir mais às aulas, suas
notas em todas as matérias despencavam. Ela sabia que sem diploma a
vida deles seria igual à dela e se desesperava, “Mesmo eu
pressionando e dizendo para irem à escola, eles não querem. Ontem
perguntei Vocês vão querer contar moedas como eu a vida inteira?
Mas eles se irritam quando eu falo isso. O que eu posso fazer?”.
Meu irmão menor mergulhava em uma forma de vida radicalmente
contemporânea que ela não conhecia, para a qual não tinha nem
vocabulário nem remédio. Ele acordava de manhã às dez e ligava seu
video game. Jogava o dia todo até de madrugada. Descia apenas uma
vez por dia até a cozinha para pegar sua comida. Não comia com a
família, levava o prato para o quarto. Estava engordando, não tinha
amigos, seu rosto se desvanecia em tons acinzentados.
Meu irmão mais velho, por sua vez, afundava em seus problemas
com álcool. Batia na mulher com quem vivia, como fizera com
Angélique, ela telefonava para a minha mãe no meio da noite para
avisar que na próxima vez ia dar queixa.
Quando falava comigo sobre isso, minha mãe tentava com todas as
forças negar as evidências: “Vi seu irmão mais velho ontem e acho que
está tudo bem, ele me prometeu, vai parar de beber”. E então ele
recomeçava, bebia, ficava violento, e ela recomeçava também,
recomeçava a mentir para si mesma, como num ciclo infernal: “Sei
que ele exagerou, mas foi a última vez, agora ele entendeu, deu um
basta, não vai beber mais. Eu o vi, tive uma boa conversa com ele, e
ele me jurou que nunca mais vai tocar numa gota de álcool”.
Obstinava-se em negar a realidade, mas eu percebia, ela enxergava
no destino dos filhos a repetição infernal dos mecanismos que haviam
destruído sua própria vida, como o ciclo inquebrável de uma maldição.
Dizia às vezes rindo: Monica Bellucci é a tradução em italiano de
Monique Bellegueule. Monique Bellegueule, Monica Bellucci. Sou a
Monica Bellucci francesa. Jogava o cabelo para trás ao dizer isso, como
uma atriz de cinema.
Uma noite, no ano seguinte à minha quase morte, meu telefone tocou.
Sua voz ressoou na escuridão em torno de mim: “Pronto. Eu
consegui”. Eu estava lendo no sofá e fiquei surpreso ao ver seu
número no visor. Ela falava rápido, a voz ofegante, com a excitação de
uma adolescente. Era minha mãe, mas de repente parecia mais jovem
do que eu.
Logo entendi do que se tratava e respondi, também excitado:
“Conta! Como aconteceu?”. Ela recuperou o fôlego: “Como sempre
ele não voltava, você conhece ele. Bom. Tinha saído desde nem sei
que horas, eu tinha feito comida, e estava esperando. Mas aí eu disse
para mim mesma: Acabou. Não vou mais esperar. Nunca mais vou
esperar ele. Cansei de esperar”.
Depois que passei a não morar mais com ela, via apenas violência em
sua vida. Em meu novo mundo, as mulheres não eram tratadas como
minha mãe era e como fora, ou como outras mulheres da nossa cidade
eram tratadas. Nunca tinha visto um homem insultar sua mulher na
frente dos outros em Amiens, nunca tinha visto rostos inchados como
o da minha irmã depois das brigas com o homem com quem ela vivia,
ou como o rosto de Angélique depois das brigas com meu irmão. Eu
não conhecia ninguém no liceu ou na universidade que pudesse dizer
como eu podia dizer: Minha irmã apanha do homem com quem ela
vive e meu irmão bate na mulher com quem ele vive.
(Claro que também havia violência contra as mulheres em Amiens,
mas não a mesma e, se fosse o caso, não de maneira sistemática.)
Era como se, em contato com os corpos da burguesia de Amiens,
eu pudesse ver o mundo da minha infância, a posteriori, pela
diferença entre os mundos. Aprendi a ver a violência ao me distanciar
dela, e a via em todos os lugares.
Eu achava que ela devia se apressar. Quando falava com ela, nas
poucas vezes em que fiz isso depois que fui embora da nossa cidade,
encorajava minha mãe a deixar meu pai. Dizia que ela não podia
desperdiçar a vida com um homem que a fazia infeliz e a humilhava.
Ela respondia “Vou fazer isso, quero fazer, mas agora não posso, é
muito difícil com seus irmãos”. (Não me dava conta de que era verdade,
não via essas dificuldades que se apresentavam para você.) Eu insistia,
repetia que ela não devia esperar, que a urgência era a da sua
liberdade, que depois ela cuidaria de meus irmãos, e ela respondia,
“Sim, em breve, você vai ver, em breve”.
Naquela noite em que acabou fazendo isso, quando me ligou,
concluiu seu relato com uma voz triunfante e vaidosa: “Viu, não falei
que eu ia fazer isso? Já tinha feito com meu primeiro marido, podia
fazer uma segunda vez. Eu sabia que podia fazer uma segunda vez”.
E também reclamava de não ter muito trabalho. Esse trabalho que ela
detestava quando vivia com meu pai, por ser um componente de sua
vida sofrida, de repente se tornou um dos instrumentos de sua
libertação. Todas as palavras, todas as realidades mudavam de sentido.
Ela havia deixado meu pai já fazia muitos meses e morava com meus
irmãos menores numa habitação social, nos limites da cidade, para
onde fora realocada pela assistência social. Contava, entusiasmada:
Tem quartos em cima! Seu irmão e sua irmã têm cada um seu quarto.
Gabava-se: Você viu como sei me virar, encontrei uma habitação
social na mesma hora. Seu pai não ia saber fazer isso!
Como dizer sem parecer ingênuo ou sem recorrer a uma frase feita, idiota:
Fiquei emocionado ao ver você feliz.
Como em todas as metamorfoses, o desenrolar da sua forjou-se em
um encontro. O encontro ocorreu numa noite, na casa de uma amiga
da nossa cidade que a convidara para seu aniversário. O irmão dessa
amiga estava lá, minha mãe nunca o tinha visto; ele morava em Paris,
onde era zelador.
Ele tentou seduzir minha mãe a noite toda e ela não procurou
resistir, pelo contrário, queria ter uma aventura e o encorajou a
continuar, mas avisou: Não deixo mais os homens me enganarem!
Eles se reencontraram. Ele adorava o jeito alegre e festivo da minha
mãe, sem saber que essa personalidade acabara de desabrochar, que
durante vinte anos fora sufocada.
Ele pediu que ela se mudasse com ele para Paris, mas ela não
aceitou. Queria ter certeza de que o conhecia, “Já me deixei levar por
dois homens, não vai acontecer uma terceira vez! Amo demais minha
liberdade. Agora que tenho, não a deixo mais”.
Os dois se aproximaram, ela entendeu que ele não seria como meu
pai ou como seu primeiro marido: “Com ele sou eu que comando. Eu
dou as cartas”.
Em sua vida, o amor sempre foi um espaço em que ou se
comandava ou se era comandada, não um espaço de suspensão das
relações de poder.
Em Paris, ela começou a dizer frases novas que refletiam sua nova
existência, Fui passear no jardim de Luxemburgo hoje, Bebi uma coisinha
em um café perto de casa.
Não sei se ela sentia dentro de si a revolução que a simples
possibilidade de pronunciar essas frases constituía, frases que quando
cheguei a Paris associei ao mundo intelectual e burguês, aos
privilegiados, às Memórias de Simone de Beauvoir e, portanto, ao
oposto radical de tudo o que ela tinha sido.
Quando falava da nossa cidade, ela suspirava, “Ah, a mentalidade
do interior! Nunca mais na minha vida eu poderia morar no campo
agora que estou na cidade, isso é certo”.
No entanto. No entanto, ela está feliz. Sempre diz isso para mim. Não
sei mais o que ou como pensar. Talvez a questão não seja saber o que
significa mudar, mas o que significa felicidade. Não encontro resposta,
mas sei que a existência da minha mãe hoje, o que ela se tornou, me
força a enfrentar a pergunta.
Minha mãe mudou de sobrenome, como eu. Ela não queria mais se
chamar Bellegueule, o nome que ganhei quando nasci e que
compartilhei com ela, um nome pesado, popular. Escolheu para si
mesma um sobrenome composto do sobrenome de solteira de sua
mãe e do de seu pai adotivo. Quando me mostrou sua nova carteira de
identidade, me disse “Parece nobre, né?”.
Comprou romances água com açúcar nos supermercados. Não
queria mais ver televisão, ela que na minha infância tinha visto todos
os dias. “Na TV só tem bobagem.”
Conjugou sua vida no futuro pela primeira vez: “Daqui a dez anos,
quando ele — seu companheiro — não trabalhar mais, vamos comprar
um trailer e morar em toda a França, vamos viajar. Sempre sonhei com
uma vida de viagens”.
capa
Luciana Facchini
foto de capa
Daria Piskareva
preparação
Ciça Caropreso
revisão
Erika Nogueira Vieira
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CDD 843
** Ela tinha razão não somente sobre ela, mas sobre meu irmão
também. Uma metamorfose engendra outras. Depois que ela foi
embora, ele encontrou um lugar para morar, amigos, novas ocupações.
Ele me disse um dia Eu me transformei, tinha virado um zumbi.
[ «« ]