O Fabuloso e Triste Destino de Ivan e Ivana - Maryse Condé

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Copyright © EDITIONS JEAN-CLAUDE LATTÈS, 2017

Título original: Le fabuleux et triste destin d'Ivan et d'Ivana

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro,
através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Direitos desta tradução adquiridos pela


EDITORA ROSA DOS TEMPOS
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20921-380 – Rio de Janeiro, RJ
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Produzido no Brasil
2024

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C749f
Condé, Maryse
O fabuloso e triste destino de Ivan e Ivana [recurso eletrônico] / Maryse Condé ;
tradução Natalia Borges Polesso. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Rosa dos Tempos, 2024.
recurso digital
Tradução de: Le fabuleux destin d'Ivan et d'Ivana
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-89828-27-3 (recurso eletrônico)
1. Romance guadalupense. 2. Livros eletrônicos. I. Polesso, Natália Borges. II. Título.
24-87688
CDD: 843.72976
CDU: 82-31(722.1)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


Para Richard, para Régine, sem os quais este livro não poderia ter sido
escrito.
Para Maryse.
“Savana de horizonte puro, savana que se agita com as carícias
ferventes do vento do leste.”
Como cantou Léopold Sedar Senghor.
Para Fadèle, que talvez conheça um mundo completamente diferente.
SUMÁRIO

PREFÁCIO
IN UTERO OU BOUNDED IN A NUTSHELL
EX UTERO
NA ÁFRICA
FORA DA ÁFRICA
ASSUNTOS DO ÚTERO: DAQUI NÃO SE ESCAPA
EPÍLOGO
COLOFON
O FABULOSO E TRISTE DESTINO DE IVAN E IVANA
PREFÁCIO
MARYSE CONDÉ E O PODER DE SUAS NARRATIVAS
FABULOSAS
Djamila Ribeiro

Maryse Condé é uma das grandes escritoras de nosso tempo. Autora


consagrada de peças de teatro, contos e mais de vinte livros – alguns deles
já traduzidos para o português brasileiro, como O Evangelho do novo mundo
–, publicou este O fabuloso e triste destino de Ivan e Ivana em francês em
2017, quando completou 80 anos.
Cidadã do mundo, nasceu na ilha de Guadalupe, território localizado no
Caribe e ocupado pela França; viajou e conviveu com a diáspora africana
em diversos países, vendo muito daquilo que está na sua escrita. É doutora
em Literatura Comparada pela Universidade de Sorbonne, na França, e
professora emérita na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos.
Maryse Condé publicou seu primeiro romance aos 40 anos de idade.
Por ser uma mulher negra caribenha, Condé trava uma grande batalha
contra as políticas de tradução, ainda coloniais, para que suas obras sejam
compartilhadas. São circunstâncias como essa que fazem da sua premiação
no New Academy, uma das mais destacadas láureas literárias dos últimos
anos,1 um fato festejado tanto pelo reconhecimento da excelência de sua
escrita quanto pelo memorável feito de o destaque literário internacional
ser do sul global.
Como a autora disse em uma entrevista, “O mundo muda e o escritor
muda com ele.” Por isso, a Editora Rosa dos Tempos está preparando uma
série de publicações de Condé no Brasil, livros que já são sucesso de
público e crítica no exterior e que abordam contextos e dilemas muito
diferentes entre si, mas sempre trazem o Caribe de fundo. Nos próximos
anos, nós, aqui, vamos conhecer mais a imensidão dessa brilhante
escritora.
Este livro sobre Ivan e Ivana foi originalmente publicado em uma época
próxima ao massacre ocorrido na redação do jornal Charlie Hebdo, em
janeiro de 2015, perpetrado por dois irmãos muçulmanos que justificaram
o ataque em razão de uma charge do jornal retratando Maomé. Essa ação
está dentro do que, genericamente, chamamos de “jihadismo”, mas que
pode assumir diversos significados a depender do contexto local – a
complexidade do termo está presente nesta obra de Condé. Temos o
costume, no Brasil, de associá-lo à compreensão, por certo grupo de
muçulmanos, de que é necessária a imposição de violência para lutar uma
“guerra santa” em nome daquilo que eles entendem ser os valores do Islã.
Neste livro, em que um dos cenários é a acusação de radicalismo
jihadista de um dos personagens centrais, a escrita antiessencialista, avessa
a heroísmos morais de quem quer que seja, é um deleite para a leitora e o
leitor, e põe em xeque nossas crenças pessoais em muitos momentos.
Para o público brasileiro, que já teve contato com alguns de seus livros,
O fabuloso e triste destino de Ivan e Ivana tem a inconfundível marca da
autora, o seu jeito fluido de transitar pela história de seus personagens.
Entre os inúmeros temas que Condé aborda, encanta-me sua sofisticação
em tratar do “radicalismo” – essas aspas foram propositais – e da
resistência. Talvez quem tenha lido Eu, Tituba: bruxa negra de Salem,
publicado também pela Rosa dos Tempos, e que foi escrito mais de trinta
anos antes deste livro, consiga se lembrar da descrição dos maroons, um
grupo “radical” negro, que se autodeclarava purista, mas que vivia em
inúmeras contradições.
Para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de ler suas outras
obras e estreiam por esta, Condé tem o mérito de não poupar ninguém
daquilo que nos faz humanos. A autora caribenha mistura caminhos
irônicos, informações históricas, reflexões críticas e um humor agradável, a
fim de contar uma história sobre o amor de dois irmãos afetado pela
progressiva angústia que leva ao radicalismo destrutivo.
Este romance, situado no século XXI no Caribe, na África e na Europa,
traz a relação umbilical e a trajetória dos gêmeos Ivan e Ivana – fruto da
relação entre, Simone, de Guadalupe, e Lansana, do Mali. Aqui, seguimos
os irmãos até o final, quando estão na França em situações muito distintas,
mas que se encontram dramaticamente.
Os gêmeos são mais do que dois lados de uma mesma moeda, são o
retrato de uma realidade contemporânea marcada por intolerâncias de
raça e gênero, além de desigualdades sociais. A aparente dupla contradição
do título “fabuloso e triste destino” é bem representativa da escrita de
Condé, se analisarmos com minúcia.
Este livro nos catapulta dos lugares-comuns de maniqueísmos fáceis e
promove um mergulho profundo na complexidade humana. Em um
contexto de inúmeras dificuldades e opressões, de situações difíceis
protagonizadas por pessoas que estão longe de serem santas, mas que
também podem procurar o melhor de si, e em meio a outras, que caem
em uma espiral de arruinamento, há o olhar dessa feiticeira das palavras,
que desvela temas tão profundos com a sutileza de quem conta uma
fabulosa história.

1. Em 2018 foi criado o New Academy Prize in Literature, uma alternativa ao Prêmio Nobel de
Literatura, que não ocorreu naquele ano em razão de escândalos em torno do prêmio tradicional.
Lentamente a tua vida te levou ao nocaute.
Alain Souchon, “Le Bagad de Lann Bihoué”
IN UTERO
OU
BOUNDED IN A NUTSHELL
(Hamlet – William Shakespeare)

Como se obedecesse a um sinal, uma força invencível cerca os gêmeos. De


onde ela vem? O que ela quer? Eles tinham a impressão de estar
brutalmente virados de cabeça para baixo, obrigados a deixar a guarida
tépida e plácida na qual tinham vivido por semanas. Um cheiro horrível
tomava suas narinas pouco a pouco, enquanto faziam essa descida forçada,
cheiro que era como uma mixórdia pútrida. O que tinha um botão entre as
pernas precedendo outra, menor, menos formada e cujo sexo era cavado
com uma grande cicatriz. Ele abriu passagem com cabeçadas pelo
corredor apertado, cujas paredes se afastavam lentamente.
Naquele momento, um único acontecimento tinha embelezado o
tempo. Estar um junto ao outro constituía em seu principal hábito. Não
tinham experimentado nada a não ser estarem bem próximos e respirarem
o cheiro ácido, mas agradável, que os envolvia por todos os lados. A
guarida onde haviam passado longas semanas estava escura. Nenhuma luz.
No entanto, era porosa para todos os barulhos. Em meio aos sons que
recebiam, acabaram por reconhecer um e compreenderam que ele vinha
daquela que os carregava. Doce, melodioso, sempre igual a si mesmo,
derramava sobre eles sua plenitude harmônica. Por vezes, se alternava
com outros, mais agudos, menos íntimos e agradáveis. De repente, surgia,
em alguns momentos, uma verdadeira algazarra, um concerto de
sonoridades confusas e metálicas.
Os fetos, continuando sua descida forçada, logo se encontram em uma
passagem com paredes íngremes que a eles parecia interminável. Em
seguida, desembarcaram em um espaço circular, estranhamente movediço
e móvel. Depois de tê-lo atravessado, caíram bruscamente sobre uma
superfície plana, cheia de luzes que lhes machucavam os olhos. Ali, foram
agarrados pelos ombros, contato que os incomodou tanto quanto a
claridade que os machucava. Por instinto, para se defender, eles colocaram
os punhos sobre os olhos. Ao mesmo tempo, um vento desconhecido
encheu seus pulmões, fazendo-os sufocar e, apesar disso, abriram sua
boca, de onde saíram gritos emaranhados, que não podiam controlar. Sem
cuidado, foram embebidos em um líquido morno que não tinha nem o
cheiro nem o gosto daquele a que estavam acostumados. Seus corpos, dos
quais passaram a ter consciência, foi envolvido. Foram postos sobre uma
almofada de carne abundante cujo odor penetrante invadiu suas narinas
como um perfume. Aquele bem-estar curou-os da horrível travessia que
tinham acabado de fazer. Adivinharam que repousavam sobre o seio
daquela que os tinha carregado e de quem conheciam apenas a voz. Com
volúpia descobriram seu cheiro, descobriram seu toque. Se puseram a
chupar gulosamente os odres repletos de um líquido saboroso que lhes
enchia a boca. A vida deles começou naquele momento.
Palavras de Simone sussurradas aos ouvidos de seus gêmeos recém-
nascidos:
— Bem-vindos! Meus dois pequenos, menino e menina, tão parecidos
um com o outro que o olho desavisado pode facilmente confundir. Sejam
bem-vindos, eu digo a vocês! A vida na qual vocês desembarcaram e de
onde não sairão vivos não é uma tigela de toloman. Alguns até a chamam
de infame, outros de megera indomável, outros ainda de cavalo coxo de
três patas. Mas que pena! Eu vou recortar para vocês um travesseiro
de nuvens que colocarei sob a cabeça de vocês e os encherá de sonhos. O
sol que ilumina toda a desolação em que vivemos não será mais ardente
do que o amor que terei por vocês. Bem-vindos, meus pequenos!
EX UTERO

Os primeiros meses dos gêmeos no mundo foram desagradáveis. Eles não


conseguiam se acostumar a levar vidas separadas: dormir no moisés
separados, se revezarem no banho, tomar a mamadeira um depois do
outro. No começo, bastava que um deles fizesse um ruído, chorasse ou
urrasse, para que o outro imediatamente o imitasse. Levaram algum
tempo para se separar daquela infeliz sincronização. Pouco a pouco, o
mundo ao redor deles foi tomando forma e cor. Seus primeiros
maravilhamentos chegaram a eles com um raio de sol. Ele entrou pela
janela bem aberta da casa e aterrissou sobre a esteira onde dormiam. No
caminho, mudava suas formas maliciosas, o que os forçava a rir, e esse riso
soava como sinos. Decoraram rapidamente seus nomes, aguçando os
ouvidos, agitando seus pezinhos quando enunciadas as sílabas tão fáceis de
se guardar na memória. Mas não sabiam que o vigário de Dos d’Âne, um
gordo obtuso, tinha se recusado a batizá-los:
— Como! – ele declarou a Simone furioso. – Você deu a eles nomes
iguais! Ivan, Ivana! A eles que já não têm um pai! Quer fazer deles
verdadeiros descrentes!
A verdade é que, na família de Simone, era comum os nascimentos
múltiplos e quase singulares. No século XIX, seu ancestral Zuléma, o
primeiro de uma gravidez de quíntuplos a ver o dia, fora convidado à
Exposição Universal de Saint-Germain-en-Laye para mostrar o que poderia
acontecer com um descendente de escravizados quando este respira os
aromas da civilização. Engravatado, vestido com um traje de três peças, ele
era agrimensor de profissão. Aprendera sozinho as melodias da ópera pelo
hábito de escutar um programa na Rádio Guadalupe, intitulado
“Classique? Vous avez dit classique!”. Foi ele que introduziu o gosto pela
música que se espalhou por todas as gerações.
Depois, os gêmeos descobriram o mar e a areia. Que maravilha aquela
quentura que escorria fluida entre seus dedos rechonchudos de unhas cor-
de-rosa como as conchas. Todos os dias, Simone os colocava num carrinho
de mão, que fazia às vezes de carrinho de bebê, e os levava até uma
pequena baía de Dos d’Âne e o vento marinho acariciava-lhes o rosto
enquanto ressoava uma grande voz maternal.
Quantos anos se escorreram nessa felicidade, quatro ou cinco? Sua mãe,
cujo rosto descobriram bastante cedo, sempre inclinada sobre eles, lhes
parecia bela com sua pele de veludo negro e seus olhos brilhantes que
mudavam de cor de acordo com o espírito do tempo. Ela sussurrava
cantigas que os alegravam. Quando ia trabalhar, com suor na testa, ela os
colocava em um tipo de cesto que cobria com um véu e que deixava
debaixo das árvores. E as mulheres que trabalhavam com ela vinham os
ver contentes. Eles compreenderam rápido que ela se chamava Simone:
três sílabas harmoniosas e fáceis de lembrar e de repetir.2 Pouco a pouco, o
cenário de suas vidas se desenhava. Eles não tinham irmãos ou irmãs e
apenas partilhavam o amor de sua mãe com uma velha avó e aquilo estava
bom. O mais maravilhoso era a areia, que não se cansavam de fazer se
derramar. Areia clara. Areia dotada de um odor que penetrava nas narinas.
Areia que se afrouxava sob o corpo e que se podia jogar para cima.
Ao fim de alguns meses, eles se puseram em pé e caminharam sobre as
pernas tortas em arco, que pouco a pouco se endireitaram e se tornaram
duas belas colunas. Eles também falaram muito rápido e tentavam
experimentar o mundo ao seu redor. Aprenderam a não fazer barulho
quando era necessário. Então, Simone pôde levá-los ao coral à noite.
Comportados como se fossem estátuas, chupando os polegares, ficavam
sentados nos banquinhos e marcavam o compasso da música. Conhecido
de uma ponta a outra de Guadalupe, o coral era especializado em antigas
canções do país. Então, o canto mougué remontava aos velhos tempos da
escravidão, quando pessoas negras viviam acorrentadas:
— Mougué yé kok-la chanté kokiyoko.
Como “Adieu foulard, adieu madras”, datado do tempo em que a
multidão cantava no cais quando os navios da Compagnie Générale
Transatlantique iam de Guadalupe para o porto marítimo de Le Havre
com os costados carregados de funcionários partindo em férias
administrativas.
— Lencinhos de adeus, madras de adeus, colar de ouro de adeus, colar de
contas de adeus.
Quanto a “Ban mwen na ti bo” fora composta bem no período
doudouiste, em um momento em que o créole era considerado chilro de pas-
sarinho e não uma língua de protesto.
— Ban mwen ti bo, dé ti bo, twa ti bi lanmou.
Depois de cantar, Simone dançava descalça e sua silhueta arqueada se
destacava da silhueta das outras mulheres, incapazes de rivalizar com tanta
graça e beleza. Com frequência estava acompanhada de sua mãe, ela
também de pele negra, mas de cabelos brancos, polvilhados como o sal.
Sua mãe se chamava Maeva. Ela não tivera leite em seus seios e alimentou
seus filhos a colheradas de mingau saboroso. Maeva e Simone se davam as
mãos, se encurvavam, saltavam e batiam os pés. Foi o primeiro espetáculo
oferecido às duas crianças.
Simone não deixava de lhes explicar por que se chamavam Ivan e Ivana,
e por que ela havia batido de frente com o padre. Ivan! Se chamava o czar
de toda a Rússia, um homem extravagante e atrabiliário, que vivera no
século XVI. Ivana era uma versão feminizada do seu nome. Em sua
juventude, Simone fora muito pobre para comprar uma entrada para o
Cinéma Théâtre, no Champ d’Arbaud, em Basse-Terre. Ela apenas assistia
às sessões que passavam no Ciné Bravo, uma associação cultural, que
punha uma lona branca na praça central de Dos d’Âne. Foi assim que ela
viu uma série de filmes, sem compreender nada, os olhos cheios de uma
cavalgada de imagens que a música seguia passo a passo. As crianças se
sentavam na primeira fila, em cadeiras de ferro numeradas. Os corpos-
velhos, como besouros em tempo de chuva, saíam de todas as aberturas de
suas casas. Todo mundo tagarelava muito alto até que um gongo pedia
silêncio. Aí a magia começava. Um desses filmes impressionara-a
particularmente, e se chamava Ivan, o Terrível. Ela não guardou o nome do
diretor e pouco se importava com o dos atores. Ela guardava dentro de si
apenas uma suntuosa efervescência de imagens.
Uma vez que Ivan nascera primeiro, mas Ivana se refugiava atrás de seu
irmão como se ele fosse o mais velho, destinado a comandá-la sempre e
em toda parte. Ele foi o primeiro a aprender a dançar, enchendo de
admiração todos ao seu redor, com seu senso inato de ritmo.
Uma data se faz necessária. Quando eles tinham cinco anos, Simone lhes
deu um longo banho, e os vestiu com suas melhores roupas, dois collants
de algodão cru, bordados em ponto-cruz e os levou para serem
fotografados no estúdio Catani. Era uma obrigação da qual qualquer
habitante de Guadalupe, propriamente dita (como a gente dizia naquele
tempo), não poderia se furtar. Louis Catani era filho de Sergio Catani, um
italiano vindo de Turim nos anos 1930, porque ele não queria, como seus
irmãos, se casar com uma Fiat. Nem o motor nem a carroceria dos carros
o interessavam. Somente o rosto áspero e cheio de espinhas dos homens
ou, ao contrário, liso e de pele bem firme. Olhos morrentes ou
penetrantes como flechas. Confortavelmente apoiado no dote de sua
mulher, uma rica herdeira descendente dos primeiros colonos, em outras
palavras, uma blanc pays, Sergio Catani abriu um estúdio de fotografia, que
batizou de Reflets dans un Œil, por onde logo toda a Basse-Terre desfilou.
Nos finais de semana, ele instalava seus equipamentos no campo e captava
tudo aquilo que passava diante de seus olhos. Publicou três livros, hoje
esquecidos, mas que, na época, conheceram grande sucesso: Gente da
cidade, Gente do campo e Gente do mar.
O retrato de Ivan e Ivana figura na página 15 do primeiro volume sob a
rubrica de: “Les Petits Amoureux”, os pequenos amantes. Vemos duas
crianças de mãos dadas, sorrindo para a lente. O menino é mais escuro do
que a menina, vá entender, mas mesmo assim adorável.
Em torno de Ivan e Ivana estão apenas mulheres: a mãe, a avó, tias e
primas, tias-avós, primas emprestadas. São elas que se revezam no papel de
dar banho, vestir e encher suas barrigas de comida.
Ivana era a mais sonhadora dos dois. Ela examinava as flores, as folhas, as
levava até suas narinas para sentir seu perfume e procurava se cercar de
todos os tipos de animais domésticos. O que a fascinava mais era o canto
dos pássaros, as cores das borboletas que suas mãos rechonchudas e
desajeitadas se esforçavam para pegar em pleno voo. Sua mãe a enchia de
beijos e, para demonstrar seu amor, inventava canções que pertenciam
somente a Ivana.
Ivan considerava a irmã como sua propriedade pessoal e tolerava de mau
grado o amor dela pela mãe. Assim que teve idade suficiente, era ele quem
a banhava, escolhia suas roupas, disciplinava suas madeixas crespas com
óleo de semente de mamona. À noite, mais de uma vez, Simone os
encontrou dormindo nos braços um do outro, o que lhe desagradou. No
entanto, ela não se atreveu a intervir. A força daquele amor a intimidava.
Os primeiros anos se passaram então numa felicidade mais do que
perfeita.
O lugar onde Ivan e Ivana nasceram se chamava Dos d’Âne, uma vila nem
mais bonita nem mais feia do que essas cidades espalhadas ao longo da
costa sota-vento. O único adorno dessas vilas é o mar desmesurado, o céu
rosa ou azul sobre as cabeças, o verde esmeralda dos canaviais.
A escola. Ocupava o centro de Dos D’Âne. Tinha sido reformada de
cima a baixo pela assembleia da cidade, depois de Hugo, um ciclone dos
mais terríveis que Guadalupe jamais vira. Se localizava no topo de uma
colina em cujas encostas ficavam as casas. Ivan e Ivana ficaram sabendo
bem rápido que não tinham pai em Guadalupe. O pai deles, Lansana
Diarra, veio se apresentar em Pointe-à-Pitre, com um conjunto tradicional
Mandinka. Foi o tempo de fazer um filho em Simone e voltar para casa no
Mali. Ele havia prometido enviar uma passagem de avião para ficarem
juntos, mas não o fez. Simone raramente saía de seu país. Às vezes, o coral
era convidado para ir à Martinica e à Guiana. Lansana Diarra aparecia
regularmente, enviando cartões e cartas para seus filhos. É por isso que
Ivan e Ivana cresceram com o sonho de um país mágico onde seus pais se
reencontrassem. O pai mais a mãe.
Lansana Diarra vinha originalmente de Segu, no Mali, e fazia parte da
família real que outrora tinha governado aquele reino. Hoje, arruinada
pela colonização, a família fora para Kidal e vivia do tráfico de noz-de-cola.
Em vez de ir à escola, Lansana e seu irmão, Mady, montavam no lombo de
um camelo vociferante, de índole infernal, e carregavam enormes sacos de
nozes. Às vezes iam até Taudeni, a grande cidade que produz sal. Sombras
saíam de todas as paredes e de todos os bosques espinhosos. Quando não
estavam viajando com o pai, Lansana e Mady ficavam ao lado da mãe, em
um mercado imundo e barulhento. Um dia, quando passavam diante de
uma casa, que nunca tinham notado até aquele momento, Lansana foi
atingido por uma música que de repente encheu seus ouvidos. Dois
instrumentos se respondiam, um magricela meio berrante, o inimitável
ngoni, o outro amplo, majestoso e grave, que ele nunca tinha escutado
antes. Os instrumentos pararam e uma voz humana se ergueu, a de um
griô, com uma harmonia indescritível. Lansana estacou. No dia seguinte,
como se fosse guiado por um ímã, ele voltou ao mesmo lugar. E depois no
dia seguinte e nos outros. Isso já durava quase uma semana, quando a
porta da casa se abriu bruscamente. De lá saiu um homem alto e magro,
com o rosto macilento debaixo dos cabelos grisalhos tão longos e
desgrenhados quanto os de uma criança mimada. Ele gritou para Lansana:
— O que tu quer?
Lansana só desejava fugir dali, mas o homem o deteve pelo punho e
disse com mais calma, como se tivesse se dado conta da brutalidade:
— Por que está fugindo? Não fez nada de errado. A música é pão doce e
açucarado que se partilha com todos.
Ele puxou Lansana para dentro da casa e Lansana viu outro homem, este
branco, com a cabeça coberta de cabelos crespos segurando um enorme
instrumento que tinha a forma de um violino. Aqueles homens eram o
célebre griô Balla Fasseke e o não menos célebre violoncelista Victor
Lacroix. Foi assim que Lansana se tornou aluno dos melhores músicos do
seu tempo.
Quando tinha seus dezessete anos, ele também adquiriu um renome sem
igual. Aos vinte, era convidado para todos os lugares. Foi a Tóquio,
Jakarta, Pequim e Paris, onde se apresentou diante de uma multidão em
êxtase.
Desde os primeiros anos, Ivana se revelou dada à escola. A professora lia
em voz alta seus deveres de francês e lhe dava boas notas. Era mesmo uma
pequena menina sábia e obediente, sempre tinha uma palavra agradável na
boca, um sorriso parecido com uma flor desabrochada no canto de seus
lábios. Todo o mundo a amava, principalmente as tias do coral. Elas
afirmavam que Ivana iria longe e que ela tinha uma voz de ouro que
saberia cativar seu público em Basse-Terre e além.
No entanto, ninguém suportava Ivan, que era desobediente, sempre com
alguma injúria pronta para sair de sua boca, uma verdadeira pestinha. A
camisa aberta no peito suado, ele desafiava homens e mulheres bem
maiores que ele, os desrespeitava constantemente. Seu apelido era
“malandrinho” e foi bem-merecido. Mas com o passar dos anos a afeição
entre as duas crianças não arrefeceu.
A voz rouca e cortante de Ivan ficava doce quando se dirigia à irmã.
Bastava ela aparecer para que ele parasse com suas bravatas e virasse um
cordeirinho. Ivan se lembrava confusamente do prazer que o corpo de sua
irmã havia lhe dado. Quando? Ele não sabia mais. Em uma outra vida?
Qual? Então, Ivana lhe dava um pouco de medo, por conta desse desejo
que ela continuava despertando nele. Sua pele marrom, seus seios em
forma de conchas, os pelos espessos de seu púbis.
Segunda data que não se pode esquecer. Quando eles tinham dez anos,
Simone os levou a Basse-Terre. Basse-Terre era uma cidade pequena sem
grande originalidade. Somente os monumentos construídos por Ali Tur
chamavam atenção. Esse arquiteto tunisiano foi contratado pelo governo
para reparar danos causados pelo ciclone de 1928. Particularmente, as
pessoas admiram a assembleia e a prefeitura. Simone ia regularmente a
Basse-Terre para comprar folhas de pauta nas quais ela transcrevia suas
composições musicais. Ela raramente levava os filhos consigo. Como ia
pagar por três lugares de ida e volta no ônibus? Como ia achar o que
comer, mesmo que fosse um sanduíche de bacalhau, comprado em um
dos restaurantes baratos no entorno do mercado?
Contudo, daquela vez, enfiou na cabeça que queria lhes agradar.
Subiram no ônibus “Fé em Deus”, que levou uma boa hora para chegar. A
estrada que ia de Dos d’Âne a Basse-Terre era suntuosa mesmo como
diziam os folhetos turísticos, sem exagero. Era ladeada por flamboyants
que durante a estação ficavam escarlates. Dava para o mar, e se viajava
entre o azul do céu e o tapete azul fosforescente estendido à esquerda dos
carros.
Quando chegaram ao mercado barulhento e multicolorido, como todos
os mercados nos trópicos, eles quiseram comprar frutas de casca marrom
que se chamavam sapotis e que davam seu nome a uma pele negra e
aveludada. Como começou a querela com a vendedora? Ninguém sabe. O
fato é que seu cabelo estava mal-ajeitado no madras xadrez amarelo e
verde, suas bochechas brilhando de suor, amaldiçoou Simone e as crianças
junto dela. Em um créole vulgar e agressivo, ela os repreendeu
severamente:
— Olhem só esses maltrapilhos, pretos miseráveis, reclamando que as
minhas frutas não são tão doces. Gente como vocês não deveria nem estar
nesse mundo.
Desde aquele dia, Ivan e Ivana compreenderam que faziam parte da
camada mais desfavorecida da sociedade, aquela que insultam como
querem. Em Dos d’Âne não se davam conta das diferenças sociais. Com
exceção da escola e da prefeitura, não havia prédios grandes, não havia
casarões bonitos, não havia jardins floridos. Todos moravam em casebres
mais ou menos miseráveis. Havia apenas quem tentasse ganhar a vida da
melhor forma que podia, e que tinha a esperança de encontrar alguma
alegria.
Eles perceberam de uma só vez que suas peles eram negras, seus cabelos
crespos e que a mãe deles se exauria nos campos por uma miséria de
salário. Aquilo causou uma grande dor no coração de Ivana. Ela promete a
si mesma que um dia vai vingar a mãe e que vai ofertar a ela as doçuras
que merece. Sim, um dia vai derramar doces açucarados em sua boca.
Ivan, ao contrário, se encheu de raiva contra a vida, contra o destino que
tinha feito dele um desfavorecido.
Simone não fazia a menor ideia do que se passava no coração de cada
um de seus filhos. Para ela, a querela com a mulher do mercado fora banal
e sem gravidade. Sua maior dor vinha talvez de Lansana, que a havia
seduzido com a promessa de um país onde a cor não contava, onde não
havia nem ricos nem pobres. Lansana era um falador, e isso é tudo o que
se pode dizer.
Quando Simone, Ivan e Ivana saíram do mercado, pegaram o caminho
de uma loja que se chamava Au Lac de Côme, perto da assembleia. Lá se
vendiam acordeões, saxofones, instrumentos de corda e todo o tipo de
tambor: os altos, sobre os quais o tambouyé podia se sentar, e os bem
pequenos, que se podia levar sobre a cabeça. O destaque da loja era uma
guitarra que tinha pertencido a Jimi Hendrix e uma cítara de John Lennon.
O dono era um velho mulato3 que tinha vivido seu tempo de glória
acompanhando Gérard La Viny quando ele cantava no La Cigale, em
Paris. Ele alerta severamente as crianças:
— Não toquem em nada, por favor.
Vindo depois da briga no mercado, esse comentário acabou por
exasperar Ivan, e as pequenas coisas, que às vezes têm grandes efeitos,
começaram a fazer dele um terreno fértil para a revolta.
Desde esse dia, as notas de Ivan na escola pioraram e ele se tornou
verdadeiramente um “malandro”, como tinha sido apelidado de
brincadeira. Mesmo com sua pouca idade, começou a roubar e a furtar.
Simone não sabia o que fazer. Nascia nela então uma ideia que tomava
cada vez mais forma. Ela devia contar a Lansana que o filho com quem ele
nunca tinha se preocupado poderia estar se tornando uma ameaça.
O pior não tardou a acontecer. A volta às aulas de outubro levou à escola
de Dos d’Âne, o senhor Jérémie, um negro de pele clara, um chaben, de
cabelos grisalhos bem curtos, rosto quadrado devorado por uma barba de
aiatolá. Ele não era um homem comum. Não se podia confiar em sua
camisa de um algodão ruim e em sua calça jeans grande comprada na
promoção. Ele tinha rodado o mundo. Por quais países tinha viajado? Não
se sabia exatamente. Cochichavam que ele tinha sido enviado a Dos d’Âne
por conta de problemas disciplinares. Aí as opiniões variavam, alguns
sustentavam que ele tinha feito filhos em tantas mulheres quanto há fios
de cabelo em uma cabeça; outros, que ele estava namorando homens; e
outros, ainda, que ele tinha ficado rico por causa de drogas. A verdade
ninguém podia afirmar com certeza.
O senhor Jérémie foi nomeado encarregado da turma dos formandos.
Turma que até agora era o orgulho de Dos d’Âne e da qual, todos os anos,
os resultados satisfatórios eram incontáveis. Infelizmente, desde sua
chegada, os alunos que eram brilhantes e aplicados foram deixados à
própria sorte. Nada de perguntas, nada de explicações, quase nada de
redações. O senhor Jérémie passava as horas proferindo monólogos
intermináveis, nos quais queria reformar o mundo: era preciso, por
exemplo, lutar contra as ideias ocidentais, ele expunha a superioridade de
certas religiões e de certas formas de pensamento. Ele rapidamente fez
amizade com Ivan que estava repetindo o último ano. Logo Ivan passou a
ficar todo o seu tempo livre enfiado com o professor.
Por fanfarronice, sem pensar de verdade sobre as coisas, ele fazia eco às
ideias do professor:
— A França é um país de raça branca – repetia depois do professor. – É
sabido! Gente tão bem posicionada quanto o general de Gaulle disse isso.
Nós, os pretos, não temos nada a ver com a França.
Simone aguentava aquelas blasfêmias com a indulgência que ela
reservava aos filhos. Ivan era um boca-suja, todo mundo sabia, mas
ninguém prestava atenção às ideias dele, pois, no fundo, ele não era tão
mau.
Quando uma noite ela recebeu a visita do senhor Ducadosse, um
assessor do prefeito, ela ficou perplexa. O senhor Ducadosse era um ho-
mem pequeno com a pele da cor da noite e o cabelo estranhamente ruivo.
O cigarro, que ele consumia abusivamente, tinha deixado suas gengivas e
dentes escurecidos.
— Preste atenção no teu filho – ele disse com gravidade. – O senhor
Jérémie está colocando ideias estranhas na cabeça dele. Ele o fez um
crítico, diria até um inimigo!, da França, essa que nos transformou de
selvagens africanos em homens civilizados.
Na verdade, Simone não compreendia bem suas palavras. Passara sua
existência no bagaço da cana e nunca tinha se perguntado sobre sua
condição e sobre a condição de seu país. Passou a noite em claro e pela
manhã decidiu agir. Como, ainda não sabia.
Na realidade, o senhor Jérémie não era nem homossexual, nem gay, nem
makoumé, como se comentava à boca pequena. Ele também não gostava de
mulheres. Ele só pensava em política. Uma carta de denúncia tinha
informado o Ministério da Educação de que, durante os cinco anos que
desaparecera da França, ele tinha passado no Afeganistão ou na Líbia. Isso
parecia suspeito. O que ele andava maquinando naqueles países de má
reputação? Conforme de praxe, o Ministério da Educação levou um tempo
até abrir uma investigação. Quando se decidiu, as pistas estavam frias e não
se pode provar nada contra o senhor Jérémie. Portanto, era impossível
retirá-lo do cargo, como se desejava. Só se pôde mandá-lo de volta ao seu
país de origem, Guadalupe, e reservá-lo à escola de Dos d’Âne, aquele
buraco perdido. O senhor Jérémie, de nome Nicéphale – o nome de
alguém que dorme ao relento, como teria julgado um estalajadeiro do
século XVI, recusando um quarto ao viajante –, se encantou com a
amizade de Ivan por razões que não tinham nada a ver com seu belo físico,
seus músculos delineados e seu sexo proeminente que parecia estar
sempre ereto. Primeiro, ele achou que Ivan tinha exatamente o dobro da
idade de seu filho, morto no ventre da mãe quando de um bombardeio da
OTAN. Ele sentia que, no terreno daquele espírito ainda bruto e pouco
instruído, suas ideias germinariam como arbustos brilhantes. Ele gostava
principalmente do modo como o garoto o escutava, com um ar meio
entediado, meio encostado numa poltrona, com as mãos cruzadas sobre a
barriga. Assim ele se deixava levar:
— Você não pode nem imaginar como é o inverno quando chega no
deserto. O vento corta por todos os lados berrando: “Faro dans les Bois!”.
Os cristais se agarrando aos galhos das raras árvores duras a distância,
como cruzes de um calvário. Elas mudam de cor conforme os raios do sol,
suspenso no meio do céu, e, principalmente, se azulam com a lua, quando
ela se ergue naquela imensidão. É mesmo um verdadeiro conto de fadas
que acontece. Eu, na minha reles gandourah, com os pés calçando as
minhas botas ruins de papelão, mesmo assim eu não tinha medo do frio.
Eu gostava daquele país mais do que do meu, pois era o país de Alya, ela
tinha me escolhido, eu, o estrangeiro, e ainda mais negro, e que não falava
a língua dela. Por causa da minha cor, sua família, seus irmãos
principalmente, não queriam que nos casássemos. Multiplicaram as
exigências, que eu me esforçava para cumprir. Por fim, exigiram que eu
me tornasse muçulmano. Eu tinha aceitado, sabendo que a circuncisão
seria dolorosa e faria escorrer muito sangue. Foi nada! Um pedacinho
pequeninho de carne! Mas com o meu sexo remendado, eu pude penetrar
Alya tantas vezes quantas queria e a fazia gemer debaixo de mim. Nossa
felicidade durou sete meses. Sete pequenos meses. Depois eles a mataram.
Eles mataram a minha amada. Uma noite que eu estava no bar, bebendo
chá verde com uns camaradas, um crepitar nos precipitou para fora. Na
nossa frente, todo o bairro ardia. As chamas alaranjadas já lambiam o céu.
“Estão todos mortos!”, gritavam os que tinham escapado, fugindo
cobertos de sangue. Foi ali que a minha vida parou.
No dia seguinte à visita um tanto inquietante do senhor Ducadosse,
Simone foi se encontrar com seu amigo Pai Michalou. Chamavam-no de
Pai, pois tinha a cabeça toda branca. Na realidade, ele não era velho: no
máximo uns cinquenta anos. Vivera por muito tempo na França. Depois,
cansou de montar automóveis, ele que não tinha dinheiro para um e
andava no RER, o trem sempre cheio, sempre atrasado ou sempre com
algum defeito. Então, voltou para casa e retomou o serviço que seu pai e
seu avô exerciam antes dele. Por um tempo, quis ficar junto com Simone,
dividir casa e viver como marido e mulher. Ela não quis, com o pretexto de
que os gêmeos não tolerariam ter um padrasto. Na verdade, ela tinha um
sonho guardado. Um dia, Lansana voltaria e eles retomariam o tempo
perdido. Michalou não se preocupava tanto assim, pois ela abria sua cama
quando ele queria. No momento, ele estava ocupado remendando suas
redes e a escutou com atenção, ergueu os ombros e depois disse:
— No nosso país, há pessoas que dizem que seríamos mais felizes se
fizéssemos nosso caminho, politicamente falando, sozinhos. Isso não é
verdade, olhe ao redor, olhe os haitianos e os dominicanos, por exemplo.
O senhor Jérémie talvez seja um separatista. Quem sabe? Por cautela, é
melhor afastar o teu filho dele.
— Como? – lamentou Simone. – O que quer que eu faça com o menino?
Para onde quer que eu o mande?
— Ele tem que idade? Você poderia fazê-lo trabalhar em algum lugar. O
pagamento dele, por menor que seja, te ajudaria.
Simone não ficou contente com essa ideia. Ela também foi pedir um
conselho para sua mãe. Se, aos sessenta anos de idade, Maeva parecia
pálida, não fora sempre assim. Tinha sido das mulheres mais notáveis de
sua geração. Ela possuía um dom sem igual, o dom da segunda visão. Esse
dom um dia caiu sobre ela sem aviso. Aos dezesseis anos, enquanto fazia a
sesta, viu seu pai, Ti-Roro, despencar do telhado que ele fazia, pois era
pedreiro, e aterrissar no meio dos escombros cortantes como serras.
Depois disso, ela viu o furacão Hugo se dissolver em meio a toda sua
desolação. Depois, vira a cana-de-açúcar da usina de Blanchet incandescer
na noite. Ela vira crianças sufocadas por infestações de vermes, e homens e
mulheres se esvaindo em diarreias esverdeadas. De Basse-Terre até Pointe-
à-Pitre, tinham medo de sua boca. Foi então que o padre Guinguant
chegou lá da sua Grã-Bretanha e a arrastou para o seu confessionário. O
que ela estava fazendo? – ele perguntou. Será que não sabia que Deus agia
em segredo e que seus caminhos são inescrutáveis? Ela corria o risco da
danação eterna se continuasse assim. Desde então, Maeva se calou e agora
fazia parte da massa de fiéis, vestida de preto, que comungava diariamente.
Porém seu dom não se apagou. Ela via seus netos, Ivan e Ivana, envoltos
em um véu vermelho, espesso, sanguinolento. O que aquilo significava?
Qual era o destino deles? Maeva escutou sua filha com atenção e depois
encolheu os ombros.
Tirar Ivan da escola? Por que não?
Estando as duas mulheres de acordo, Maeva trancou sua porta e mãe e
filha se dirigiram ao ensaio do coral. Os ensaios aconteciam todos os dias e
às vezes duravam horas. Quando as coristas iam embora, frequentemente
a lua já estava alta e o luar suave e doce pairava com um charme
Â
inesperado sobre Dos d’Âne, aquele lugar de extrema feiura. As tocas de
sapo se metamorfoseavam em crisálidas, prontas para se tornarem
borboletas e levantarem voo. Em outros momentos, ficava escuro como
breu. Procurando o caminho e tropeçando nas pedras soltas da estrada, as
mulheres tinham a impressão de estar abrindo os portões do inferno e
seguindo seu próprio cortejo fúnebre.
O repertório do coral era bem variado. As coristas evitavam as canções
muito fáceis ou muito conhecidas, tais como “Ban mwen um tibo” ou
“Maladie d’amour”… e se dedicavam a uma verdadeira pesquisa nas
profundezas da tradição do país. Elas não recusavam compositores
modernos, tais como Henri Salvador ou Francky Vincent. Foi assim que,
uma noite, Maeva encontrou uma melodia de uma cantora que ninguém
conhecia: Barbara. As mulheres a escutaram com a mais viva atenção:
Un beau jour
Ou peut-être une nuit
Près d’um lac, je m’étais endormie
Quand soudain, semblant crever le ciel
Et venant de nulle part
Surgit un aigle noir4
No final da música, tinham a mesma expressão:
— Isso não é nada bom pra gente – uma teve a coragem de se
pronunciar.
— Ninguém vai gostar disso – sustentou outra.
Maeva estava com muita raiva:
— Como é que é? Por quê? Barbara é uma das maiores cantoras do nosso
tempo.
Causa perdida, não conseguiu driblar a oposição das outras coristas.
Anos mais tarde, quando da inauguração do Memorial ACTe, o coral já
tinha alcançado franco sucesso com uma canção bastante conhecida de
Laurent Voulzy. Aquilo havia dividido o país, aqueles que defendiam o
créole estavam indignados. De onde saiu esse gosto por canções francesas?
Além disso, o coral tinha um nome ridículo, Les Belles du soir, as belas da
noite. Aquilo bem provava a alienação das cantoras. Por outro lado, o
presidente da Assembleia Regional havia feito uma grande doação de
milhares de euros, o que permitiu às Belas da Noite irem à Martinica.
Simone se pôs então a procurar um emprego para seu filho. Em um país
onde 35% da população estava desempregada, não foi uma tarefa fácil. Ela
subiu e desceu muitas escadas, bateu em muitas portas, enviou currículo,
deu telefonemas, esperou horas e horas em salas vazias, e sempre se
deparava com a mesma resposta: não estamos contratando.
Quando ela já estava desencorajada, o La Caravelle que estava sendo
inaugurado em Cotê sous le Vent aceitou entrevistar Ivan. La Caravelle
pertencia à rede Coralie, que espalhava seus hotéis pelo mundo. O carro-
chefe sem dúvida fica nas Seicheles. Dado, no entanto, o caráter familiar e
modesto do turismo em Guadalupe, nenhum investimento de grande
envergadura fora feito. O La Caravelle era um prédio qualquer atrás de um
jardim. Fincadas num gramado, duas palmeiras-do-viajante estendiam seus
braços rígidos.
Ofereceram a Ivan um posto de segurança.
De fato, a violência tinha se instalado no país. Havia comunidades,
lugares, bairros onde ninguém se atrevia a ir depois de certa hora. Os mais
velhos contavam aos jovens incrédulos que, em outros tempos, não se
fechavam nem as portas nem as janelas, e ninguém nem sabia para que
serviam chaves e cofres. Deram a Ivan uma calça de um tecido grosso e
azul, uma camiseta e um boné da mesma cor. E, principalmente, deram-
lhe uma arma, uma Mauser. Uma arma, ele jamais tinha imaginado
possuir uma, mesmo em seus sonhos mais loucos. O senhor Esteban, um
policial aposentado devidamente credenciado, veio ensinar a equipe a
atirar.
— Acima de tudo, não mirem nas pernas dos bandidos que encontrarem
– ele recomendava. – Uma vez recuperados, eles voltarão ao crime. Mirem
na cabeça, mirem no coração para que morram e não voltem nunca mais
para incomodar.
Desde então, Ivan conheceu duas paixões. A que tinha pela irmã, que
amava e desejava a cada dia mais, a ponto de acordar à noite certo de que
o irreparável tinha acontecido. E a que tinha por sua arma, sua Mauser. Ele
amava ficar sentindo o peso daquele pedaço de metal frio e duro, fazer
pose, fazer de conta que tinha avistado um alvo. Ele sonhava em cravar
uma bala em uma presa viva. Foi assim que matou várias das galinhas
brancas que Simone criava para ter no final do mês e vender no mercado.
Ele se sentia um deus, um rei, ele se sentia todo-poderoso.
Infelizmente, essa felicidade foi curta como são todas as felicidades.
Primeiro, ele soube que aquela Mauser estava ultrapassada e não tinha
nenhum valor. Ela vinha de um lote irregular, comprado por um preço
baixo, por uma pessoa da cidade grande que saiu fugida de Guadalupe.
Uma noite, o sujeito atirou num ladrão que vinha roubá-lo e o atingiu
mortalmente na cabeça. Não ficou um dia sequer na prisão, mas sua casa
havia sido manchada de sangue e pichada com “assassino” nas portas e
janelas. Assim ele entendeu que era melhor colocar o Atlântico entre ele e
aquele país. Essa descoberta machucou Ivan profundamente. Sua arma era
barata, um brinquedo, um mero brinquedo. O mais grave estava por vir.
Não tinha uma semana que ele trabalhava no Caravelle quando o diretor
de Recursos Humanos, um grandalhão suado da cidade, chamou-o. Ele
cravou seus olhos azuis como dois pedaços de céu em Ivan e perguntou:
— Você é o Ivan Némélé? Que idade você tem?
Ivan ficou boquiaberto. Ele costumava enganar nesse quesito, pois era
forte e corpulento. Mas, dessa vez, farejou o perigo. O homem da cidade
continuou:
— Temos informações sobre o seu cadastro e soubemos que você ainda
não tem dezesseis anos. Então não podemos confiar uma arma a um
menor de idade, sob pena de incorrer nos piores processos judiciais.
Devolve a tua arma! Devolve!
Como Ivan hesitava petrificado, o homem arrancou o cinturão que ele
tinha no corpo. No entanto, não demitiram Ivan. Simplesmente trocaram
seu cargo. Deram a ele um uniforme de cor neon e o encarregaram de
cuidar da piscina onde se banhavam as crianças pequenas. Ivan sentiu
aquilo como uma humilhação terrível, como uma cilada maligna que se
armava contra ele.
Foi neste dia que começou a sua radicalização, palavra que usamos hoje
a torto e a direito. Ela não vem do seu tempo na prisão, como poderia se
pensar. Até então Ivan ouvira as histórias do senhor Jérémie de pawols en
bouch,5 sem dar valor. Agora ele entendia que o mundo era algo diferente
do que ele imaginava. Que a Terra não era redonda, mas atravessada por
fendas, falhas nas quais um indivíduo como ele, sem defesa, sem apoio,
poderia perder a vida.
Agora que não fazia mais parte da equipe de segurança no Caravelle, ele
tinha muito tempo para ir à casa do professor. Jérémie adorava as visitas e
tagarelava incansavelmente sobre a ferida que havia ensanguentado sua
vida.
— Depois da morte de Alya, atentados, tocaias, emboscadas, nada mais
disso fazia sentido para mim. Compreende? Eu não sou um muçulmano
de verdade. Não acreditava que reencontraria a minha amada me
esperando sentada no Paraíso, com tudo o que eu tinha perdido. Eu sabia
que não a encontraria mais. Minha felicidade tinha se acabado. Então,
voltei à França e fiz o curso do Ministério da Educação. Acabou que o
curso me deu um cargo em um colégio miserável, em um bairro podre de
periferia. Lá, que surpresa, os alunos, meninos e meninas, me adoraram.
Eles gostavam dos contornos da minha vida. Os países que eu tinha
conhecido, eles queriam ir lá. Minhas aulas eram sobre contar a eles as
minhas aventuras e aconselhar os mais aventureiros nas escolhas de suas
destinações. Infelizmente, o diretor do colégio desconfiou de mim. Ele me
denunciou. Você sabe o resto.
Sim, Ivan sabia o resto da história. Gente feliz não tem história, já dizia o
conhecido ditado popular.
Quanto a Ivana, ela era feliz. Era bonita. Era a primeira de sua classe no
francês, em matemática e até nos esportes, pois tinha acabado de ser
escolhida capitã da equipe feminina de vôlei da escola. Ela sempre fora
dotada de um traço alegre na voz e havia sido escolhida como solista do
coral. Um dia, quando ela se apresentava na igreja de Dournaux, uma
pequena cidade costeira localizada a cerca de vinte quilômetros de Dos
d’Âne, foi notada por um professor de música aposentado que lhe ensinou
a Ave Maria de Gounod e a de Schubert, o que lhe valeu um convite para ir
à Guiana e para cantar na igreja de Apatou, diante de uma plateia de
negros quilombolas. Sabe-se que para ser feliz nessa Terra é preciso uma
boa dose de cegueira. Ivana a tinha. Foi assim que ela se recusou a encarar
o quadro de miséria extrema no qual havia crescido e se convenceu de que
um dia tudo mudaria. Assim, ela não queria ver como Simone murchava e
desbotava nos canaviais na época da colheita ou atrás da banca do
mercado. Convenceu-se de que chegaria um tempo quando ela mudaria o
curso do destino de sua mãe. Existia apenas um ponto sobre o qual estava
lúcida: a natureza de seus sentimentos por seu irmão. Ela tentava em vão
colocá-los na conta do fato de serem gêmeos, mas, sabia, eram anormais.
Às vezes ela ficava mexida quando o via vestido com sua velha camiseta
preta varrendo o quintal e os arredores da casa ou era tomada por calafrios
quando suas mãos se encontravam em uma tigela de café ou em um
simples pão trançado. É sabido, eles nunca trocaram uma palavra
imprópria sequer ou realizaram algum gesto deslocado. Ela sabia, no
entanto, que aquela efervescência ardente que carregavam dentro deles
iria incendiá-los e consumi-los. Desde que Ivan começara a ir pela manhã
ao Caravelle, ela gozava de um descanso, pois via menos o irmão.
Um dia que voltava do canal, com um garrafão cheio de água,
equilibrado na cabeça, uma mobilete vermelha passou de raspão e quase a
atropelou.
— Essa tarefa não é para você. Você é bonita demais! – gritou uma voz. –
Deixa que eu carrego no teu lugar.
Ivana reconheceu com surpresa Faustin Flérette, o filho de Manolo, o
padeiro. Manolo era um mulato e tinha um lugar privilegiado em Dos
d’Âne. Ele parecia rico. Para lá e para cá com o prefeito, recebia em sua
mesa vereadores e deputados que vinham de Basse-Terre. Crescera em
Marseille, onde seu pai se refugiara, durante a guerra, para proteger sua
companheira, uma judia. Não aprendeu grande coisa – foi expulso do
colégio René Char já na quinta série –, a não ser fazer pães e bolinhos,
como fougasses e panisses. No domingo, os carros dos burgueses lotavam a
única rua de Grande Anse para esvaziar a loja de Manolo de suas iguarias.
Faustin, seu filho mais velho, tinha terminado o segundo grau com uma
menção honrosa. Porém, por causa de um erro administrativo, seu dossiê
desapareceu e ele não conseguiu a bolsa que merecia. Esperando que esse
erro fosse reparado, trabalhava no colégio como tutor e ensinava álgebra e
geometria às crianças que tinham dificuldades nesses domínios. Ivana
zombou:
— Como! Você não quer que eu carregue esse peso? É você que vai
colocá-lo na cabeça?
— É claro que não – ele reclamou rindo. – Eu vou colocar aqui atrás da
minha mobilete.
Desde aquele dia, uma relação, que não era fácil de definir, nasceu entre
os dois adolescentes. Da parte de Faustin existia, sem dúvida, o desejo de
um jovem homem por uma garota atraente, apesar de sua classe social
inferior. Ele queria levá-la para a cama, mas não pensava naquilo de um
modo muito cru. Ivana, de sua parte, ficou lisonjeada. Mas para ela era,
primeira e principalmente, um modo de se afastar de Ivan, uma tentativa
de direcionar a outro o que sentia pelo irmão.
A partir daquele dia, Faustin ia todas as manhãs encontrar Ivana. Ela
usava um capacete deselegante, é preciso dizer, se sentava na traseira da
motinho dele e se deixava levar até Dournaux, onde era o colégio. À noite,
Faustin a levava de volta para Dos d’Âne. Eram cheios de charme aqueles
trajetos pelas estradas da Côte sous le Vent! Quando o sol, dominador e
cruel, ainda não tinha se levantado, apagando todas as sombras, nivelando
os relevos, a paisagem era banhada numa luz leitosa encantadora. À noite,
o domínio é da escuridão absoluta. Ouve-se apenas a grande voz uivante
do mar cujas ondas se juntam e rolam do fundo do horizonte.
Uma noite, Faustin e Ivana encontraram Ivan, que desta vez, ao
contrário de seu costume, havia voltado para jantar em casa. Enquanto
Simone preparava os mariscos lambis que ela tinha ido comprar às pressas
para o seu filho amado, ele assistia a uma partida de futebol na televisão de
tela plana. Quando os viu chegar, se levantou, os olhos e a boca abertos de
estupor. Ignorando a mão que Faustin lhe estendia, ele interpelou a irmã:
— De onde saiu esse aí?
Ivana deu uma explicação confusa, enquanto Faustin saía pela porta
prudentemente, sem esperar ajuda. Simone colocou sobre a mesa fatias de
abacate, arroz créole e um fricassê de lambi que parecia muito apetitoso.
Porém, o jantar se passou sem que uma palavra sequer fosse pronunciada
entre a mãe e os filhos. Ivana tinha medo. Um pressentimento terrível a
invadia. E ela não estava errada. Perto da uma hora da manhã, escondendo
em suas roupas a faca de cozinha de sua mãe, Ivan foi esperar Faustin na
saída do bar Rhum Encore, onde, com seus amigos, ele enchia a cara.
Quando ia saindo, Ivan seguiu em seu encalço até a beira-mar. Lá, a
silhueta dos dois adolescentes desapareceu na escuridão. O que aconteceu?
Nunca saberemos. Porém, no dia seguinte, dois pescadores, voltando de
Antígua, encontraram o corpo de Faustin retalhado, banhado em uma
poça de sangue. Mil testemunhas se apressaram para falar da rixa mortal
que ele tinha com Ivan, que foi preso perto das dez horas no hotel
Caravelle. Alguns turistas ofendidos fizeram suas malas e aquilo deu má
reputação ao lugar. Um helicóptero transportou com urgência Faustin
Flérette ao hospital de Pointe-a-Pitre, onde três médicos se debruçaram
sobre ele.
Essa foi a primeira condenação de Ivan, a primeira vez que ele foi em
cana, como dizemos aqui. Por ter ferido Faustin, foi condenado a dois anos
de reclusão. Ele conseguiu relativo abrandamento da pena, por causa de
seu advogado, um defensor público, sr. Vinteuil. O sr. Vinteuil era
conhecido pela natureza de suas alegações. Uns as achavam excelentes.
Outros, tendenciosas, marcadas por uma total falta de compreensão sobre
a realidade guadalupense. Ao que diz respeito a Ivan, ele o retratou como
um miserável furioso por ver sua irmã usada como um joguete, um pedaço
de carne para o prazer do filho de um quase bem-nascido. Na verdade,
nada tinha se passado entre Faustin e Ivana, fora alguns beijos e carícias.
Mas como provar?
Manolo, o pai de Faustin, não sossegou. Dois anos de prisão por ter
retalhado seu filho, isso não era pagar caro. Ele decidiu se vingar. Ah sim!
Era preciso erradicar da Terra aquela família que a empesteava com seus
miasmas. Pressionou seu amigo prefeito para riscar Simone da lista de
necessitados, que a cada mês recebiam uma esmola de alguns euros, e,
também, expulsá-los do HLM, conjunto de habitação social, que ela
ocupava havia vinte anos, bem antes dos gêmeos nascerem. Uma manhã,
Simone e Ivana foram tiradas de suas camas por agentes e jogadas na
calçada com seus pobres pertences. Não contavam, porém, com Maeva,
que não dessatisfeita em acolher a filha e a neta em sua exígua casa. Rogou
a Kukurmina, o mestre do invisível, que se esconde no infinitamente
pequeno e brilha no infinitamente grande, que intercedesse. Não dava
mais para os poderosos continuarem a esmagar e humilhar os fracos
impunemente. Parece que Kukurmina a escutou, pois três dias depois, ao
se levantar no meio da noite para ir mijar, os pés de Manolo tropeçaram
em um objeto desconhecido e ele caiu de cara no chão, rachando seu
crânio na quina da banheira. Foi um choque que mexeu com o país
inteiro. Que coisa foi o funeral de Manolo! Seus pais e seus aliados vieram
de todos os lugares de onde moravam: Paris, Marselha, Estrasburgo, Lyon,
Lille. Pois era um fato conhecido: há dois tipos de guadalupenses. Os que
estão desempregados no interior do país e os que vegetam em empregos
insignificantes na metrópole. Há alguns sortudos que escapam dessa regra
e se refugiam no estrangeiro, mas esses privilegiados são raros. A família
de Manolo transformou o momento de luto em passeio turístico. Alguns
alugaram carros e foram dar um mergulho nas águas geladas do Matouba,
rio de águas escuras, rio de águas cor de ferrugem. Uns tiravam selfies e
eram levados às rochas entalhadas de Trois-Rivières e à rotatória Lucette
Michaux-Chevry de Montebello. Outros voavam até os Saintes ou Marie-
Galante para passar o dia.
— Não é verdade que o mar do Caribe é mais azul que o oceano
Atlântico – reclamava uma irmã de Manolo.
Ela morava em Saint-Malo e era casada com um bretão, ilustrando assim
a atração secular que une os bretões aos antilhenses.
O que contribuiu para o caráter festivo da ocasião foram as comidas
suculentas que eram servidas em abundância. Primeiro tinha “linguiça,
aquelas de dois dedos de espessura que se enrola de maneira loquaz,
aquela grande e corpulenta, o bénin com gosto de tomilho, o violento de
uma pimenta incandescente” (a descrição é de Aimé Césaire), os
caranguejos recheados, a mistura de temperos, a caçarola de atum, o
fricassê de polvo chatrou e os lambis… Durante a cerimônia religiosa, o
prefeito não deixou o vigário fazer a homilia e subiu diretamente ao
púlpito:
— Um provérbio africano diz que um ancião que morre é uma biblioteca
que queima – disse ele. – Manolo conhecia as tradições que ninguém mais
conhece e está levando-as com ele.
Deveríamos corrigir o prefeito? Não se trata de um provérbio africano,
mas de uma célebre frase de Amadou de Hampâté Ba, um dos maiores
pensadores da África Ocidental. Não valeria a pena. O senhor prefeito já
fazia uma pose para ser fotografado e aparecer no Facebook.
Na saída da cerimônia, uma chuva torrencial começou a cair, grossa e
cortante. Era a prova de que o defunto se arrependia da vida.
E aí estavam Maeva e Simone obrigadas a viver sob o mesmo teto, elas
que nunca tinham se dado bem de verdade. De fato, quando tinha quinze
anos, Simone saíra da casa da mãe, farta de seu constante fanatismo
religioso, alternado com as crises em que tinha visões. Simone foi morar
com Fortuneo, um haitiano desengonçado que de vez em quando alugava
os braços às fábricas para a colheita de cana-de-açúcar, de vez em quando
cuidava de jardins particulares. Fortuneo era um falador incansável, mas
Simone sempre o ouvia com prazer.
— Quando eu nasci – ele contava – eu era tão preto, azul, na verdade,
que a mãe não sabia distinguir minha cara da minha bunda. Ela me deixou
cair no chão. Fiz um calombo enorme na cabeça que guardo até hoje. O
calombo da loucura? Quando eu estava na barriga da minha mãe, eu não
estava sozinho. Tinha um irmão, um gêmeo, se pode dizer. Mas ele
morreu ou, mais exatamente, ele entrou em mim. Devia ser músico. Às
vezes ele enche a minha cabeça com suas melodias. Eu não consigo ouvir
nada. É por isso que eu fico olhando as pessoas ao meu redor como um
ababa, um idiota. Em outros momentos, dura como uma safira, sua voz
fica girando como um vinil no meu cérebro.
Foi Fortuneo quem iniciou Simone na música, ele que tocava muitos
instrumentos e, além de tudo, tinha uma voz muito melodiosa. Graças a
ele, ela vasculhou em sua memória e se lembrou dessas canções de ninar,
dessas melodias que ouvia na infância sem prestar muita atenção. À noite,
eles passavam horas cantando em seu pedacinho de jardim, com as costas
apoiadas na sebe de rosa caiena enquanto a lua ia e vinha no meio do céu
como um grande farol enlouquecido. Infelizmente, passados cinco anos de
convivência, Fortuneo partiu para se juntar ao irmão nos Estados Unidos.
Seu irmão lhe garantiu que lá não faltaria trabalho. O que se seguiu para
Simone foi um período nebuloso, em que ela passou de cama em cama, de
homem em homem, de machista em machista. Então, a brisa do amor e
da música operou um milagre. Em uma dessas noites, igual a qualquer
outra, ela foi a um ensaio do coral. Perto das 22 horas, chegou um grupo
de homens em trajes pouco comuns. Estavam vestidos com um tipo de
túnica de algodão que cobria parte da larga calça. Simone soube depois
que eram trajes africanos, boubous. Eles seguravam nas mãos estranhos
instrumentos musicais. Um deles, visivelmente o líder do grupo, dirigiu-se
ao coral, ao mesmo tempo intimidado e repelido pela estranheza daqueles
recém-chegados.
— Este instrumento aqui – ele explicou – se chama kora. Seu som
acompanhava as proezas de nossos reis e os seguia nos campos de batalha.
Este é um balafon. Cada uma das ripas que o compõem emite um som
diferente e o essencial é aprender a mesclar as harmonias. Este pequenino
teimoso e obstinado é o ngoni, que se esgueira por todos os lugares.
O homem que falava passeando seu olhar de fogo sobre o público era o
primo do famoso Mori Kanté, que tinha encantado Guadalupe no ano
anterior e lotado o estádio de Abymes com milhares de espectadores. Seu
nome era Lansana Diarra. Entre ele e Simone, o amor nasceu
instantaneamente. O primeiro olhar que trocaram entre si mudou a visão
do mundo que tinham. As estrelas brilharam em seus olhos e parecia que
se conheciam há muito tempo. Desde sempre, na verdade.
Depois do ensaio, eles saíam pela noite. As estrelas, que tinham feito seus
olhos brilharem, haviam voltado para o céu e deixado para trás um
bruxuleio muito doce, de compreensão, de engajamento. Lansana e
Simone se deram as mãos.
— Você é uma mulher ou uma fada? – perguntou Lansana. – Na minha
vida repleta de ruídos de amor, nunca encontrei ninguém como você. Me
conta a sua vida.
Simone riu de bom grado.
— Não há nada para contar. Parece que a minha vida começa hoje, pois
antes de ti nada aconteceu.
Lansana partiu depois de quinze dias em Guadalupe, durante os quais
Simone e ele não se separaram. No aeroporto, eles se beijaram com paixão
e Lansana sussurrou:
— Eu vou te levar para Kidal, onde eu moro. Você vai ver como a cidade
é diferente de todas as outras. Ela faz frente ao deserto, de onde tira sua
potência.
Algum tempo depois, Simone percebeu que estava grávida e enviou
cartas e mais cartas para Lansana. Sem resposta. Ela não podia acreditar.
Aquele homem que o hálito quente do Sahel lhe trouxera era, afinal, como
todos os outros? Meses se passaram, ela acabou acreditando. Ivan e Ivana
nasceram, ela tinha se tornado uma mãe solteira. Como tantas outras ao
redor dela. Por que algumas terras são mais férteis do que outras para as
mães solteiras? As mulheres são mais bonitas e sedutoras? Os homens têm
o sangue mais quente? Ao contrário. Esses são os lugares de grande
aflição. O ato sexual é a única dádiva. Dá aos homens a sensação de ter
realizado uma proeza e às mulheres a ilusão de serem amadas.
Depois de um dia exaustivo, passado no mercado onde ela tentava
vender suas franguinhas, Simone voltou para a casa de sua mãe. Na sala de
jantar apertada, mas meticulosamente arrumada, a mesa já estava posta.
No ar flutuava um cheiro delicioso de diri e arengsaur. Simone sentiu um
certo aborrecimento. Ela sabia o que aquilo significava. Sua mãe, que
sempre a culpou por ser desorganizada, estava lhe dando uma lição de
bom comportamento. Maeva saiu da cozinha enxugando as mãos no
avental que sempre usava.
— Tive de novo aquele sonho – ela disse angustiada.
— Que sonho? – perguntou Simone irritada.
— O mesmo. Vejo Ivan e Ivana em uma névoa cor de sangue. O que isso
quer dizer?
— Nada de mau, seguramente – disse a outra, dando de ombros. – Eles
se amam demais para se machucar.
Ela não sabia que o amor é tão perigoso quanto o não amor. Que um
grande autor inglês disse: “Todos nós matamos aquele que amamos.”
Fincada no topo de uma colina, cercada por falésias implacáveis pelos dois
lados, a prisão de Dournaux data do século XVIII. Da época em que os
rebeldes que sonhavam se livrar do rei eram enviados para meditar sobre
seus crimes. Sua história é ilustrada por numerosos acontecimentos. O
mais espetacular se chama La Grande Évasion e data de 1752. Armados
com cordas robustas de karata, os insurgentes desceram pelas falésias até
uma pequena enseada onde cúmplices os esperavam. Esses os conduziram
em mar aberto até um navio batizado La Goëlette. O que aconteceu depois?
Houve uma desavença? Por quê? Nunca saberemos. Em todo caso, os
insurgentes atiraram uns contra os outros, do primeiro ao último. O navio
fantasma então ficou à deriva no Canal de Dominique e despejou na costa
da Martinica uma safra de cadáveres fedorentos. Aos poucos, alas foram
construídas no edifício central, pois a prisão de Dournaux estava
superlotada como todas as prisões do mundo. O motivo é simples. Em
todos os lugares existem pessoas que não respeitam a lei, que riem dela e
que a burlam.
Foi para essa prisão que levaram Ivan. Foi jogado no prédio A, onde se
agrupavam as pequenas delinquências. Lá se contava um bom número de
detentos culpados de terem maltratado suas parceiras. Cobertas de
hematomas ou de sangue, dependendo do caso, elas tiveram força para ir à
delegacia e a ousadia de dar queixa. Foram ouvidas e consequentemente
seus algozes, para sua grande surpresa, foram presos. Como? Não
podemos bater nas mulheres hoje em dia, diziam a si mesmos! Desde os
primórdios, nossos ancestrais lançam mão disso. O mundo está mudando?
Ivan ficou mortificado por estar preso no pavilhão das pequenas
delinquências. Ele preferia ter entrado no pavilhão B ou no pavilhão C, ou
ainda na ala de segurança máxima, onde por vezes se viam os reclusos
andando em círculos no pátio cercado de arame farpado sob a guarda de
um enxame de guardas e sobre os quais os jornais escreviam todos os tipos
de histórias. Um dos presos foi batizado de Le Criquet, o grilo, devido à
magreza e também à periculosidade, pois era capaz de reduzir a nada uma
multidão de pessoas. Outro foi batizado de La Mangouste, o mangusto,
pois era ardiloso e cruel. Outro ainda, Le Mamba noir, mamba negra, pois
superava todos os outros em crueldade. Paciência, sussurrava uma voz
interior, o seu dia vai chegar e você vai forjar seu nome no céu em letras
de fogo e todos vão se lembrar de você.
Ivan fez amizade com Miguel, filho do doutor Angel Pastoua. Cinco
anos mais velho que Ivan, Miguel o colocou sob sua asa. Se ele estava na
prisão era porque tinha furado os olhos de sua esposa, Paulina, que ele
suspeitava ser amante de um libanês, comerciante de tecidos na rua de
Nozières. Miguel era o filho de um “rebelde”, como se chamavam os
antilhenses que tinham se recusado a prestar serviço militar e se juntaram
à Frente de Libertação Nacional na Argélia. Depois disso, anistiado, ele
voltou ao país e se tornou um de seus maiores cardiologistas. Aquilo
bastou para que Miguel, constantemente confrontado com a imagem
desse pai corajoso, se tornasse um delinquente desde tenra idade. Como o
senhor Jérémie, ele contava a Ivan seus pensamentos:
— Albert Camus disse “Entre a revolução e a minha mãe, eu escolho a
minha mãe.” Você sabe quem é Albert Camus, não é? – Ivan não
respondeu àquela pergunta, pois ele nunca tinha ouvido falar naquele
nome. Inconsciente da ignorância, Miguel continuou. – Albert Camus
disse a maior verdade que há. Meu pai me dá dor de cabeça com suas
histórias da FLN, de como ele lutou, como conheceu Frantz Fanon, tal e
coisa e coisa e tal. Tudo isso me entediava. Para mim, a Argélia era só
Blida, de onde era a minha mãe, que eu não vi mais. Eu vivi com ela até os
meus sete anos, depois o meu pai teve a péssima ideia de me fazer vir para
junto dele.
Miguel decretou uma quantidade de regras peremptórias: não se deve
pôr os pés na igreja, muito menos confessar-se ou comungar. A Igreja
Católica tinha apoiado a escravidão. Padres, por exemplo o padre Labat,
tiveram escravos. Ao contrário, era preciso se interessar pelo Islã, religião
desprezada pelos ocidentais, mas cheia de grandeza e dignidade. Era
preciso deixar Guadalupe o mais rápido possível, onde nada nunca
acontecia, e chegar a outras partes do mundo onde a luta contra os
poderosos inflamava-se.
Para Ivan, esses dois anos na prisão foram benéficos, se podemos assim
dizer. Pela manhã, eles faziam bolas e raquetes de tênis. Montavam as
peças para toca-discos ou diversos instrumentos musicais. À tarde, todos os
tipos de professores voluntários vinham dos colégios das redondezas. Eles
ensinavam francês, matemática, história e geografia. Ivan naturalmente já
conhecia Vitor Hugo, mas se iniciou nas palavras de Rimbaud, Verlaine,
Lamartine e principalmente de um certo Paul Éluard.
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom.
Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.6
Ivan se deu conta de que não compreendia bem o que aqueles versos
significavam. Mas ele sabia por intuição que aquilo não importava nem um
pouco. A poesia não era feita para ser compreendida. Ela era feita para
vivificar o espírito e o coração. Ela era feita para que o sangue circulasse
mais alegre nas veias. No final do seu tempo de prisão, ele recebeu o seu
diploma de ensino fundamental com a menção honrosa. O júri escreveu
uma anotação que surpreendeu.
— Se Ivan Némélé quisesse se esforçar, só teríamos elogios para fazer.
Quando Ivan saiu da prisão, Ivan e Ivana se encontraram paralisados de
timidez. Por dois longos anos, se viam apenas uma vez por semana, no
caos e na desordem da sala superlotada das visitas, se comunicando por
uma grade e às vezes sendo obrigados a berrar para se fazer ouvir.
Fragmentos de conversas estrangeiras se misturavam às deles.
Agora que estavam tão próximos um do outro, não ousavam se olhar
nos olhos nem se tocar, muito menos se beijar. De comum acordo, se
dirigiram a um lugar que gostavam: a Pointe Paradis, uma pequena
enseada, onde antes os corsários de todas as nacionalidades observavam os
galeões espanhóis carregados de riquezas que cobiçavam. Foi lá que o
célebre Jean Valmy caiu em uma emboscada dos soldados do rei. Trazido
de volta à França por traição, foi enforcado na praça de Grève.
Ivan pousa sua cabeça na doce almofada da barriga de sua irmã e
sussurra:
— Penso em você o dia todo. Fico me perguntando o que você está
fazendo, do que está cuidando. Tentando imaginar os teus pensamentos,
eles se tornam os meus e eu me torno você. No fim das contas, eu sou
você.
Ivana se segurava para perguntar a ele o que faria com seu belo diploma
novinho quando ele fez a última pergunta que ela esperava:
— Já ouviu falar de um tal de Paul Éluard?
Ela encolheu os ombros, perplexa:
— Sim, é claro.
Ele insistiu:
— O que sabe dele? Ele foi privado de sua liberdade? Ele ficou preso e
por quanto tempo?
— Não sei de nada disso.
Depois começou a despejar as banalidades que tinha aprendido sobre
Paul Éluard.
Poeta surrealista. Discípulo de André Breton até ser expulso do
movimento, grande amigo de René Char. Era evidente que seu irmão não
a ouvia mais. Ele havia construído em sua cabeça seu próprio Paul Éluard,
um escritor que lhe convinha. Simone de Beauvoir escreveu que você
nunca deve conhecer seus leitores. Na minha opinião, a recíproca é
verdadeira. Os leitores sempre imaginam um belo escritor, manejando
elegantemente o verbo, cheio de humor, de espírito efervescente. É muito
provável que fiquem desapontados com a realidade. O ócio é a mãe de
todos os vícios.
Ao sair da prisão, Ivan ficou sem trabalhar durante quase um ano. No
Caravelle não o queriam mais: um condenado. Embora fosse
regularmente às instalações da associação de reintegração, encarregada de
o ajudar, essa nada lhe oferecia. Por um tempo conseguiu trabalho em um
circo, o circo Pipi Rosa, vindo da Venezuela e que percorreu todas as ilhas
do Caribe. No entanto, ver aqueles animais infelizes, trancados em jaulas,
principalmente um casal de leões, atordoados em sua pelagem carcomida,
o deprimia. Ao cabo de duas semanas, ele pediu demissão. Então, Pai
Michalou tentou ajudá-lo e propôs que dividissem o seu saintois, seu barco
pesqueiro, e enfrentassem o oceano. Desde as 4 da manhã, os dois
navegavam mesmo com a bruma espessa acumulada durante a noite
pesando sobre seus ombros. De repente, o céu clareava. Então eles
armavam ou levantavam suas armadilhas, lançavam suas redes
repetidamente. Mas a pesca hoje não é o que costumava ser. Voltavam à
terra firme com a embarcação metade vazia e Ivan se cansou.
Por fim, um acontecimento extraordinário mudou sua vida. O sr.
Jérémie criou sua escola particular e pediu que ele fosse um dos tutores.
Logo, começaram a chover perguntas na cabeça das três mulheres.
Estavam perdidas em conjecturas. Como o sr. Jérémie, que, todos sabiam,
não cheirava bem para o Ministério da Educação, que não tinha relações
de prestígio nem um tostão furado, poderia abrir uma escola particular?
Na verdade, o Institut de la Lumière Aveuglante, o Instituto da Luz
Cegante, era uma ramificação de uma florescente universidade popular na
França, fundada por um filósofo da moda, e de quem daremos apenas as
iniciais para não incorrer em processos judiciais: BC. (Não confundam
com a expressão inglesa BC, Before Christ, que quer dizer Antes de
Cristo.) No tempo em que esteve na França, o sr. Jérémie foi até
Noirmoutier, onde ficava a universidade de BC. Os dois homens se
tornaram amigos, e ainda se aproximaram mais por causa da morte similar
de suas companheiras. BC, em geral, uma pessoa austera e taciturna,
ficava mais doce ao falar do falecimento:
— Nossas vidas eram uma só. Olhávamos para a mesma direção.
Sorríamos nos mesmos momentos. Nós éramos uma só pessoa.
Sua mulher fora atropelada por um mau condutor e morrera na hora
com a criança que ela carregava no ventre. BC e o sr. Jérémie
compartilhavam o projeto de criar uma universidade em Guadalupe, mas
ignoravam que precisariam de quase oito anos para conseguir. O Institut
de la Lumière Aveuglante tinha três divisões: Letras, Ciências Humanas e
História. Não havia aulas. Eram conferências, colóquios, seminários
conduzidos por sumidades vindas da França e principalmente da Inglaterra
e dos Estados Unidos da América. O sr. Jérémie tinha apenas o modesto
título de diretor adjunto da parte de Ciências Humanas. No entanto, sabia-
se que ele era responsável por tudo. Foi ele quem alugou a antiga clínica
do doutor Firmin, abandonada há anos. Foi ele quem mandou restaurá-la,
deu-lhe orgulhosa aparência com sua escrita majestosa: “La Lumière
Aveuglante: Centro de Pesquisas Fundamentais.” Foi ele que deu uma
entrevista que fez um estardalhaço numa rádio independente de reputação
contestatória. Foi ele que se escondeu por trás da escolha de seus
palestrantes e dos assuntos de suas aulas. Por exemplo: “Escravidão, crime
contra a humanidade”; “Capitalismo e escravidão”; “Para que serve a
literatura”; “Conscientização dos povos oprimidos”; “Prejuízos da
globalização”; “Para a libertação do homem”. Aparentemente, o papel de
Ivan importava menos ainda. Sua função era garantir que os DVDs e Blu-
rays necessários para os palestrantes estivessem disponíveis quando eles
precisassem. Ele garantia também a limpeza dos lugares, comandava uma
equipe de faxineiras munidas de vassouras e sempre prontas para se
lamentar de como a vida estava cara. Aquele foi o melhor período de sua
existência. O mundo se desconstruía e se reconstruía diante dos seus olhos.
As mentiras, os mitos, os subterfúgios sumiram. Ele entendia que anos de
potência imperialista, injusta e arbitrária, tinham causado os males pelos
quais as pessoas sofrem hoje. Ele voltava à noite para Dos d’Âne realizado
e falante. Pegava sua irmã pela mão e a conduzia em charlestons ou boogie-
woogies endiabrados, danças um pouco ultrapassadas, mas que continuam
a ser pretexto para contorções e saltos engraçados. Como, pela primeira
vez na vida, dispunha de um pouco de dinheiro, ele cobria a irmã de
presentes: colar de contas de ouro, brincos de argola. O mais espetacular
foi um anel, dentro do qual ele mandou gravar as palavras ti amo.
Como Ivana ficava bonita assim arrumada! Ela estava na idade em que a
adolescente se tornava uma jovem mulher. Suas bochechas redondas, sua
barriga e suas coxas tinham desaparecido e ela esticara como uma bengala
kongo. Simone a olhava com um misto de emoção e ciúme involuntário.
— Eu era bonita assim nessa idade?
Que nada! Maeva a tinha metido nos canaviais. É fato, a cana não é mais
o inferno que costumava ser. São máquinas que cortam. Os vestidos de
amarrar, acolchoados, tão caros a Joseph Zobel, desapareceram. No
entanto, o que resta a ser feito nos campos é terrível. Simone usava meias
grossas de algodão, mas as pernas estavam cheias de arranhões e as mãos
de calos. Sua pele era negra e rachada.
Desde sua abertura, o Institut de la Lumière Aveuglante foi objeto de
uma animada paixão. Se inscreveram trezentos alunos somente no mês de
outubro; é verdade que as taxas de escolaridade eram mínimas e que se
recrutava desde o nível do ensino fundamental. O instituto também foi
alvo de críticas raivosas. Como o poder público tolerava aquele
monumento ao ódio cara a cara com a metrópole, se perguntavam os
bem-nascidos? Como permitem que alguns professores sustentem que as
Cruzadas constituíram a primeira empreitada colonial, que o grande
Napoleão Bonaparte fora apenas um escravagista vil, que um presidente
da república, admirado por todos, havia sido conivente com os
colaboracionistas?
O que pôs lenha na fogueira foi uma conferência de BC, vindo da França
em pessoa. Foi intitulada: “As feridas psíquicas da dominação”. Dada a sua
notoriedade, ele foi convidado a aparecer na televisão num horário de
muita audiência. Era um belo cinquentão. O som da sua voz, o modo
como mantinha a cabeça e, principalmente, seu olhar inquietante
indicavam que ele se achava um dos seres mais inteligentes da Terra. Ele
explicou calmamente que a dependência na qual as Antilhas eram
mantidas há séculos, dependência que tinha mudado de nome, mas cuja
natureza continuava fundamentalmente a mesma, havia causado traumas
irreversíveis na personalidade dos habitantes. Se pensar bem, aquela
opinião não era mais do que uma reedição dos escritos de Césaire (“Este é
o único batismo de que me lembro até hoje…”, escreve o escravizado
coberto com o sangue do seu senhor que ele acabara de matar em Et les
chiens se taisaient) e de Frantz Fanon. No entanto, dada a época em que
vivemos, tais proposições estão carregadas de uma periculosidade
particular. Não fazia nem uma semana que BC tinha entrado em seu avião,
e a Companhia Republicana de Segurança, de capacetes e botas, invadiu o
Institut de la Lumière Aveuglante. Eles dispersaram os estudantes que
estavam lá, entraram no escritório do sr. Jérémie onde ficava uma foto
gigantesca de Martin Luther King e lhe disseram que o Instituto estava
fechado: ordens do Ministério do Interior. Antes de partir, eles colocaram
lacres em todos os lugares.
Os alunos, furiosos, organizaram uma marcha e pediram a todos os
partidos, de esquerda e de direita, que se manifestassem com eles contra
este grande ataque à liberdade de expressão. Não foram ouvidos. Um
magro fluxo de homens e mulheres se reuniu na Praça de la Victoire. O
medo começou a se instalar. Souberam que reforços do CRS tinham
desembarcado da Martinica e da Guiana. Foi então que o sr. Jérémie se
suicidou. Ele andou até um canavial não tão distante de sua casa e meteu
uma bala na cabeça. Os trabalhadores agrícolas encontraram seu corpo já
devorado por grandes pássaros marinhos, os malfinis.
Como o funeral do sr. Jérémie foi diferente do de Manolo, alguns anos
antes! Dessa vez, se podia contar nos dedos da mão os enlutados: sua velha
mãe, que chorava lágrimas quentes e se perguntava o que ela tinha feito
para merecer um filho assim; seu meio-irmão, que nunca tinha se dado
bem com ele e dirigia um táxi pirata em Fontainebleu. O sr. Jérémie não
tinha mulher nem em casa nem fora dela, nem fam dero, ni fame jardin. Por
isso não tinha filhos bastardos, naturais ou adulterinos. BC não pôde estar
presente no enterro, pois estava na Tunísia, a convite de seus irmãos
muçulmanos. Mas deu grande importância aos eventos de La Lumière
Aveuglante e batizou uma sala de sua universidade com o nome do
falecido: Sala Nicéphale Jérémie.
Aquela morte causou em Ivan uma enorme devastação. Se o sr. Jérémie
fosse seu pai, ele não teria chorado mais. Como sempre acontece nesses
casos, ele se culpava por coisas sem importância. Como quando parecia
entediado cada vez que ouvia a história repetida de seu caso de amor com
Alya. Ou ao não ter escondido seu ceticismo quando o sr. Jérémie entoava
sua teoria favorita:
— A África dominará o mundo depois da China. E, quando eu digo a
África, não estou pensando em África negra e África branca como dizem
os ocidentais. Estou falando do conjunto do continente. Dos povos unidos
pela mesma religião.
Como resultado, Ivan ia ao bar todos os dias e passava noites inteiras lá.
Eles o pegaram completamente bêbado perto de casa. Simone e Ivana,
assustadas, se perguntavam se ele também não iria dar cabo de sua vida.
Uma tarde, ele recebeu a visita de Miguel, de quem tinha ficado
próximo. Miguel havia encontrado um filão e queria compartilhar a nova.
Alix Avenne, um importante negociante de vinhos, não podia recusar nada
a seu pai, que o operara de coração aberto alguns anos antes. Tinha
acabado de abrir uma fábrica de conservas de peixe e por isso procurava
jovens de confiança que entregassem as encomendas de hotéis,
restaurantes e particulares. Cobravam os valores devidos e todo mês
pagariam à empresa “SuperGel”.
— Peixe congelado! – lamentou Maeva. – Ka sa yé sa! Então agora é
assim! Quando eu era pequena, a gente jogava o peixe ainda se mexendo
na panela.
Ivana tinha outras ideias na cabeça. Ela nunca gostara de Miguel, que
tinha cometido o crime inominável de ter cegado sua parceira. Aquela
carinha de anjo só podia esconder pensamentos vis. Obviamente, Ivan fez
o que deu na cabeça. Seduzido, enfiou seus poucos pertences em uma
mochila e foi com Miguel, que lhe ofereceu hospedagem.
Nos primeiros meses, tudo correu às mil maravilhas. Aos sábados, Ivan
desembarcava em Dos d’Âne, dirigindo uma caminhonete com os dizeres:
“Nosso peixe é fresco, só nossos clientes são quentes.” Vestia um uniforme
pimpão e carregava quilos de peixes congelados, fatias de atum vermelho,
pargos e vivanots vermelhos, peixes-gato multicoloridos que sua mãe
cozinhava numa caçarola.
Nas férias de Toussaint, Ivana ia encontrá-lo. Como todas as coisas da
Côte sous le Vent, Pointe-à-Pitre parecia distante, uma cidade estrangeira.
Ivana tinha ido apenas uma ou duas vezes para cantar a Ave Maria de
Gounod na catedral Saint Pierre e Saint Paul. Com suas ruas principais
congestionadas, suas lojas libanesas berrando os últimos zouks, a
cidadezinha a assustava. Mas Paulina que, apesar dos olhos cegados,
voltara a viver com Miguel e até lhe dera um filho, comprometeu-se a
fazê-la mudar de ideia. De braços dados, levava-a para passeios
intermináveis.
— Para aqueles que não a conhecem, é verdade que Pointe-à-Pitre pode
parecer sem graça – ela dizia. – Mas é outra coisa quando a vivenciamos.
Eu nasci no Canal Vatable, em uma casa da diocese, porque minha mãe a
alugava do presbítero. Ela esfregava o chão, polia a prataria e arrumava as
camas para os padres. Diziam que eu e meus dois irmãos, por causa dos
nossos olhos azuis e cabeleira loura, éramos filhos de um dos padres. Um
sul-africano que veio de Durban. Não foi comprovado. Minha mãe levou
seu segredo para o túmulo. Quando eu era pequena, o grande terror de
todos os que viviam nos bairros pobres eram os incêndios. Montes de
casas pegavam fogo. As pessoas perdiam suas propriedades e às vezes até
seus filhos.
“Um final de tarde, minha mãe e eu tínhamos ido na catedral para
assistir à coroação da Virgem. Sabe a festa que acontece sempre no 15 de
agosto? Quando voltamos, a nossa casa luzia como uma tocha com os
meus dois irmãos dentro. Desde aquele dia odeio a pobreza, sua
insalubridade, sua precariedade. É por isso que fico com o Miguel. Ele
pode até fazer suas malandragens de preto, afirmar que aos seus olhos
nada importa, mas ele é burguês, filho de burguês. A mãe dele era uma
camponesa argelina com quem seu pai não quis se casar. Preferiu uma
mulata bonita como Marie-Jeanne Capdevielle, com quem se sentava em
sua sala.”
Ivana não sabia o que responder. Ela mesma ignorava se odiava a
pobreza. Estava acostumada. Assistia às sessões do Ciné Club da escola.
Lia tudo o que caía em suas mãos: Balzac, Maupassant, Flaubert, que
faziam parte do currículo escolar, mas também Julio Verne, Marguerite
Duras, Yasmina Khadra e René Char, nos quais percebeu a beleza como
um sonho que não conseguimos decifrar: “Derrière ta course sans crinière, je
saigne, je pleure, je m’enserre de terreur, j’oublie, je ris sous les arbres. Traque
impitoyable où l’on s’acharne, où tout est mis en action contre la double proie: toi
invisible et moi vivace.”7
Assim que terminasse o colégio, escolheria uma profissão: enfermeira
para cuidar dos fracos e desvalidos ou policial, para os proteger. Ela ficava
em dúvida entre as duas vocações.
No quarto mês, tudo mudou. Miguel desapareceu com sua mulher e seu
filho. Primeiro pensaram que ele tinha voltado à Guiana, para Saint-
Laurent-du-Maroni, de onde Paulina era. Nada disso. Nem estavam em
Blida com a mãe de Miguel. A polícia, finalmente alertada, descobriu que
eles haviam pegado um avião para Paris e depois para a Turquia. A partir
daí, perderam o rastro deles. Então Alix Avenne tomou conhecimento de
um gasto desconhecido. As notas estavam superfaturadas. Algumas sequer
tinham sido pagas. Havia um furo enorme no caixa. Prenderam Ivan.
Certamente, ele foi cúmplice, pois morava na casa de Miguel e fazia par
com ele. Pela segunda vez, Ivan foi para cadeia, e Simone chorou
amargamente.
Foi então que sua vontade de escrever a Lansana Diarra se enraizou e se
fortaleceu. Ivan cresceu como pôde, sem um pai para lhe levar pela mão
pelo caminho da vida. Lansana se lembrava dos belos sonhos que tiveram
durante a gravidez? Porém, uma preocupação imediatamente lhe
acometeu. Como entrar em contato com Lansana? Agora não se escreve
mais com folha de papel e envelope. É preciso saber o endereço de e-mail
dos correspondentes e saber usar um computador. Depois das reflexões e
das lágrimas, ela se decidiu. Ela endereçou sua carta ao sr. Lansana Diarra,
musicista do conjunto instrumental, Bamako, República do Mali. No
correio, o simpático funcionário a aconselhou a escrever seu endereço no
verso da missiva:
— Assim, se ela não for entregue, a carta volta para você – aconselhou. –
Ao menos saberá alguma coisa.
Simone chorou mais amargamente ainda e Ivana experimentou um
profundo sentimento de revolta quando elas viram a foto de Ivan na
primeira página do jornal local. O fotógrafo aplainou sua testa e olhos,
aumentou o maxilar e as orelhas, dando-lhe assim as feições de um
perfeito bandido. Esse também foi o conteúdo do artigo que seguia a foto,
obra de um jornalista visivelmente pago por Angel Pastoua. Ele fez de Ivan
o cabeça do esquema. Foi esse vagabundo, saído de Dos d’Âne, que
perverteu o filho de alguém notável. O processo parecia todo arranjado.
Mas eles não tinham contado com o senhor Vineuil. Ele não apenas não
havia retornado para sua terra natal, Clermont-Ferrand, mas acabara de se
casar com uma mulher negra. Nem békée, nem mulata, nem chappé-coolie,
nem bata-zindien nem chabine, nem câpresse, nem marrom, nem vermelha.8
Negra. Tinha socorrido Ivan uma primeira vez e pediu para ser seu
defensor público novamente. O quê! Ele não permitiria que os fracos
pagassem mais uma vez pelos poderosos e fossem destruídos por causa
deles.
Uma prisão ultramoderna acabara de abrir em Bel Air. À noite, para
evitar a fuga dos detentos, a prisão era iluminada como um transatlântico
no mar. De modo que as pessoas não podiam dormir por quilômetros no
entorno da prisão e uma petição circulava. Na prisão, havia escritórios
equipados com computadores e ditafones. Todos os dias, o sr. Vineuil se
encontrava com seu cliente e o interrogava longamente sobre sua vida.
Que prazer era falar de si, mergulhar em sua intimidade mais secreta,
atualizar seus pensamentos mais profundos. Ivan ficou surpreso ao
descobrir.
— Por que o sr. Jérémie se tornou seu ídolo? – perguntou o sr. Vineuil.
Ivan hesitou, se debatia com a pergunta em sua cabeça, depois se
decidiu:
— Antes dele, fora minha irmã, minha mãe e minha avó, ninguém se
interessou por mim.
— E o que ele explicou? O que ele deu para você ler, por exemplo?
— Um monte de livros: Frantz Fanon, Jean Suret-Canale e,
principalmente, muitos autores negros americanos traduzidos para o
francês. Confesso que não os li muito, pois me entediavam um pouco.
— E o que lhe interessava, então?
— Era a vida do sr. Jérémie. Sua vida mesmo. Ele tinha vivido no
Afeganistão, no Iraque. Ele estava na Líbia no ano em que Kadhafi foi
morto.
O sr. Vineuil, ao escutar aquelas palavras, se sobressaltou:
— O que ele pensava de Kadhafi ? O via como um ditador ou um herói?
— Aos seus olhos, era um herói. Ele o adorava.
— E ele encorajou você a partir para a Síria ou para a Líbia?
Ivan ergueu os olhos para o céu.
— Partir? Como partir? Ele sabia que eu não tinha um tostão nem pra
comprar uma passagem de ônibus pra ir até Basse-Terre ou Pointe-à-Pitre.
Ele vivia repetindo que eu tinha que melhorar o mundo ao meu redor.
— Melhorar? Como assim?
— Ele dizia que cada um devia fazer a sua parte. Nunca entendi o que
aquilo significava.
Tudo aquilo terminou em absolvição total, tudo acompanhado por uma
sentença comunitária de interesse geral.
Durante a argumentação do sr. Vineuil, alguns, especialmente as
mulheres, choraram. Outros aplaudiram. Ao final, a sala se levantou e o
aplaudiu de pé.
Â
Ivan voltou para Dos d’Âne como um vencedor. Sua mãe alugou uma
caminhonete, bandeira flamulando ao vento, buzinando sem parar.
Durante todo o caminho, surpresas, as pessoas saíam de suas casas e se
perguntavam o que estava acontecendo. Ensurdecidos por seus problemas
e dificuldades da vida, eles nunca tinham nem ouvido falar de Ivan e não
sabiam que uma vez na vida a justiça havia sido feita. Na praça central de
Dos d’Âne, as crianças de colégio, balançavam suas bandeirinhas
tricolores, cantando “La Marseillaise”. O prefeito, que todos sabiam, que
era fã de discursos, não deixava passar nem uma oportunidade. Ele se
gabava da França justa e tolerante que não permitia que um de seus filhos
fosse condenado erroneamente. Muitos espectadores ficaram chocados
que Ivan não disse uma palavra sequer e não misturou sua voz ao concerto
de elogios à pátria mãe. A verdade é que ele não conseguia concatenar as
palavras. Estava como um lençol lavado na máquina, torcido e depois
estendido numa corda. Ele não se sentia agradecido pelo que o sr. Vineuil
tinha feito, porque não compreendia nada dos acontecimentos ao seu
redor. Ele se lembrava das palavras enigmáticas de Miguel:
— Vou antes de você – ele tinha dito misterioso na véspera do seu
desaparecimento. – Vou escrever para você e contar como foi e se você
deve vir com Ivana.
Assim que tiveram tempo, Ivan e Ivana foram para Pointe Paradis, seu
lugar favorito. Ivan cobriu sua irmã com beijos apaixonados, enquanto ela
sussurrava em seu ouvido:
— Não vá mais para a prisão, eu imploro. Pense em mim. Eu sofro
demais quando você não está aqui. Todo esse ano, durante a prisão
preventiva, eu pensei que fosse morrer. Eu nem conseguia me concentrar
direito nos estudos.
Ivan se sentou na areia e olhou o mar que espumava aos seus pés. Ele
repetia, sem se dar conta, as palavras que Miguel tinha dito:
— Um dia, nós vamos partir. Vamos fugir.
— Para onde você quer que partamos? – ela disse surpresa.
— Não sei. Mas nós vamos para um lugar mais justo e mais humano.
Seis meses depois, a pena de serviço comunitário de Ivan o levou à
empresa CariFood, criada por dois médicos nutricionistas, pais de famílias
numerosas. CariFood era reconhecida como utilidade pública e
amplamente financiada pelo Ministério dos Territórios Ultramarinos, e se
beneficiava igualmente de sólidas subvenções vindas do Conselho
Regional. Nada disso surpreendia quando era sabido que CariFood
sustentava uma linguagem de natureza satisfatória para todos os tipos de
nacionalismo. Os dois médicos nutricionistas que estavam à frente da
companhia tinham demonstrado que as comidas que nutriam os bebês no
Caribe não tinham nenhum elemento nutricional das Antilhas, nem
inhame, nem batata-doce, nem mandioca, nem couve-chinesa, nem fruta-
pão, nem banana-da-terra, nem banana-poyos. Assim, as crianças poderiam
desenvolver uma perigosa alienação alimentar, e corria-se o grande risco
de desnaturar o paladar dos mais novos, acostumando-os a sabores
estrangeiros indesejáveis.
A dúzia de homens e mulheres que trabalhavam em uma espaçosa
oficina que antes pertenceu à fábrica Darboussier recebeu Ivan sem muito
entusiasmo. Imagine só, um condenado cuja fotografia se espalhou por
todos os jornais. Deram-lhe uma quitinete minúscula em um edifício
perto dali, em Morne de Massabielle. Como Ivan nunca tinha morado
sozinho e não sabia cozinhar, criou o hábito de ir duas vezes por dia a um
café-restaurante, À Verse Toujour. Lá ele foi imediatamente reconhecido,
circulavam as palavras, “condenado pela justiça”, e ele se viu relegado a
uma extrema solidão. Isso o afetou profundamente, mas não o impediu de
continuar a ir ao À Verse Toujour, pois o ambiente o tinha seduzido. É
verdade! O bairro de Massabielle não se parecia com nenhum outro. Uma
só torre de quinze andares garantia sua modernidade. Ela ficava cercada de
casas de madeira entre pátios e jardins ou casas altas e baixas, que com
suas estreitas varandas, onde palmeirinhas floresciam atrás das
balaustradas de ferro vazadas, lembravam uma época passada. Uma escola
particular de boa reputação ficava lá. Consequentemente, pela manhã,
enxames de crianças de uniformes brancos e azuis jogavam amarelinha
enquanto esperavam o início das aulas.
De tanto esbarrar com a vizinha no vestíbulo exíguo que antecedia sua
quitinete, Ivan acabou por conhecê-la melhor. Ela era uma mestiça
espanhola com toda a petulância que se associa a esse país. Ela logo contou
para ele sua história.
Quando ela estudava fisioterapia, sua mãe, Liliane, guadalupense da
comunidade Vieux Habitants, fora enviada a um pequeno spa com termas
no sul da França. Lá, apesar do espetáculo angustiante oferecido pelos
corpos pálidos e obesos dos hóspedes, vivera um belo amor com Ramon,
um jovem espanhol, que à procura de trabalho se obrigou a cruzar os
Pireneus. Quando voltou a Paris, ela se deu conta de que estava grávida.
Quando finalmente descobriu o paradeiro de Ramon, ele tinha se casado
com Angela, seu amor de infância, e havia migrado para a Argentina,
sempre à procura de trabalho. Tristemente, batizou sua filha de Ramona,
ao mesmo tempo uma lembrança de seu pai e de uma música romântica
que sua mãe cantava quando era criança:
Ramona, j’ai fait un rêve merveilleux
Ramona, nous étions partis tous les deux
Nous allions lentement
Loin de tous les regards jaloux
Et jamais deux amants
N’avaient connu de soir plus doux.9
Ramona cresceu em Vieux Habitants com sua mãe. Seguindo seus passos,
tinha estudado fisioterapia e trabalhava no Centro de Reeducação, o
Karukera. Aqui, porém, termina a semelhança entre mãe e filha. Enquanto
Liliane só sabia assistir ao mês de Maria ou às Vésperas dependendo da
estação, rolar as contas de seu rosário e se ajoelhar duas vezes por mês na
frente do comungatório depois de ter confessado seus raros pecados
devidamente, Ramona era um escândalo, uma devoradora de homens. Ela
decidiu bem rapidamente provar Ivan, um condenado talvez, mas bastante
bonito. Um metro e oitenta de altura, quadris estreitos, constituição
atlética sob suas roupas um tanto deselegantes, é preciso dizer.
Ela primeiro o convidou para tomar um ti-punch, acompanhado de
linguiça bem apimentada ou chips de banana-da-terra, salgados à
perfeição. Quando isso se mostrou insuficiente, ela o convidou para jantar
e assistir à televisão por um longo tempo. Nada disso deu certo. Por volta
da meia-noite Ivan deu um beijo casto em sua testa e foi para casa. Uma
noite ela não aguentou mais. Vestiu um roupão atraente que realçava os
lugares certos e foi bater na porta de Ivan. Ele abriu a porta parecendo
aborrecido porque estava mandando um SMS para Ivana e disse de modo
bem rude:
— O que você quer?
Ramona fechou o roupão em seu peito.
— Um ladrão! – suspirou. – Tenho certeza de que tem um ladrão na
minha casa.
Com um suspiro, Ivan se armou de um cabo de vassoura e atravessou o
corredor. Uma vez na casa de Ramona, ficou evidente que a quitinete,
calma e tranquila, não escondia nenhum malfeitor. Ele deu de ombros.
— Viu só, está enganada. Não tem ninguém.
Se jogando contra ele, Ramona lhe tascou um beijo apaixonado bem na
boca. Sem titubear, ele a afastou e a obrigou a se sentar no sofá.
— Vou te explicar – ele sussurra – com calma.
— Explicar o quê?
— Eu amo uma garota e não posso enganar ela – ele disse sério. –
Entende? Ela está em mim e eu não paro de pensar nela nunca.
Ramona o olha fixamente e seus olhos se arregalam de estupor.
— Mas o que isso quer dizer?
Ela não compreendia. Não tinha pedido a ele que namorassem ou que se
casassem. Somente um pouco de prazer. Não seria a primeira vez que um
homem, apaixonado por uma mulher, cederia a outro desejo.
Ivan conseguiu enfim sair daquela situação e voltou para casa sem ter
cedido aos encantos de Ramona. No dia seguinte, à tarde, uma viatura da
polícia para na frente do CariFood e dois policiais armados desceram. Eles
entraram na oficina e se dirigiram ao canto onde Ivan arrumava
metodicamente os pequenos potes em caixas de papelão.
— Você é Ivan Némélé?! – eles gritaram. – Ramona Escudier acusou
você de estupro.
— Mas eu não fiz nada – implorou Ivan, estupefato. – Eu nem encostei
nela.
Os outros funcionários da empresa já se aglomeravam na sala assim
como uma pequena multidão na porta da CariFood. Sem ouvir Ivan, os
policiais o puseram para fora e o empurraram violentamente para dentro
do carro. Ivan foi levado à delegacia de polícia de Pointe-à-Pitre, onde um
policial registrou sua acusação. Depois, ele foi jogado em uma cela cercada
por grossas barras de ferro. Tentava pôr seus pensamentos em ordem.
Tinha que contatar o sr. Vineuil o mais rápido possível. Ele viria em seu
socorro, a menos que as repetidas escapadas de seu cliente o
desencorajassem. Por volta das 18 horas, um homem gordo vestido com
esmero, uma máquina fotográfica apoiada em seu confortável abdômen,
veio vê-lo de perto.
— De novo você, Ivan Némélé. Agora você é estuprador.
— Eu nem encostei nela – Ivan protestou novamente.
O homem deu de ombros e, sem pedir permissão, metralhou-o com sua
objetiva.
Sejamos breves. Dois fatos contraditórios aconteceram ao mesmo
tempo. Primeiro, mais uma vez, o rosto de Ivan vai parar na primeira
página do Tropicana, o jornal local, seguido de um artigo que fazia dele o
inimigo público número um. Segundo, Ramona voltou a ter bom senso e
retirou sua queixa. Ivan foi liberado. No entanto, depois de tal escândalo,
CariFood não o quis mais.
— É isso que é o mundo? – ele se pergunta esmagado, sentado no ônibus
que o levava a Dos d’Âne. – Amigos que te abandonam sem dar
explicação? Mulheres que te caluniam? Jornalistas que escrevem mentiras
sobre a gente? Pessoas prontas para te tirarem um pedaço? Mal posso
esperar para receber minha carga de explosivos e destruir a todos.
Mas ele não sabia como.
A paisagem suntuosa que desfilava pela direita e pela esquerda do ônibus
não o aprazia. Para dizer a verdade, ele nem a notava. Não tinha sido
treinado para prestar atenção às belezas da natureza. O mar, o céu, as
árvores eram para ele elementos tão familiares ou indiferentes quanto a
sua própria figura.
Em Dos d’Âne, a vida não era cor-de-rosa. Ivana, que se preparava para
tentar entrar na faculdade, estava praticamente invisível. Assim que
acabavam as aulas, ela se juntava aos jovens que fariam o mesmo exame e
estudavam juntos até às 2 ou 3 da manhã. Depois disso, exausta, morta de
cansaço, ia abraçar o irmão que a esperava no aconchego de sua cama.
Maeva, antes valente, agora não conseguia se levantar, muito menos andar,
e passava a maior parte do tempo prostrada na cama. Ela fazia discursos
incompreensíveis, com os olhos cheios de lágrimas, apontando para uma
imagem do Sagrado Coração de Jesus colocada na cabeceira de sua cama.
— Jesus Cristo, o filho de Maria, está sentado à direita de seu Pai. Olhem!
Seu coração sangra por todos os pecados que cometemos. E há um que o
faz sofrer mais. Esse pecado, ninguém ousa dizer qual é. Um pai não deve
dizer da filha que foi ele quem a fez e que por isso tem todos os direitos
sobre ela. O mesmo serve para um irmão.
Quanto à Simone, o silêncio de Lansana Diarra partia seu coração. Havia
quase dois anos que ela esperava sua resposta e nada vinha. Ela o
imaginava fazendo seus concertos, com aplausos inebriantes,
cumprimentando os fãs, e aquilo a enfurecia. Consequentemente, ela
professava contra os homens, o que desagradou ao Pai Michalou. Ele
resmungava:
— Me ouça bem, não se deve colocar todos os homens no mesmo saco.
Eu mesmo nunca te fiz nenhum mal. Se você quisesse, eu tinha criado seus
gêmeos como se fossem meus próprios filhos.
O senhor prefeito fez um gesto de bondade. Ele recrutou Ivan para
trabalhar com os trabalhadores que estavam construindo a midiateca.
Uma midiateca em Dos d’Âne, quem diria? Por que não? Todas as cidades
brigam para ter uma, e se não conseguem é o que toca a todos. Agora Ivan
fazia parte de uma equipe que quebrava pedras, aplainava vigas ou
misturava cimento, algo que ele nunca havia aprendido a fazer. Se
levantou de madrugada, tomou banho com água fria no pátio, depois veio
tomar um café que sua mãe, de pé desde cedo, serviu só para ele.
Aparentemente, a mãe e o filho não tinham nada para conversar. Na
realidade, as palavras doces circulavam silenciosamente entre eles, cheias
de amor e de carinho que nutriam um pelo outro. Investiam esse peso nas
frases mais banais.
— Quer um pão trançado?
— Não, prefiro um pão torrado.
O trabalho de Ivan o embrutecia. No entanto, ele parecia não se
importar em reduzir seu peso a carne e ossos. Qualquer coisa era me-
lhor do que o encontro assustador de seus pensamentos com as
deformidades do mundo.
De repente, tudo se iluminou. No mês de junho, aconteceu um primeiro
evento extraordinário. Ivana passou nas provas para a universidade com
menção honrosa. Para dizer a verdade, aquilo não foi uma surpresa para
ninguém. Ela sempre fora uma das primeiras em todas as matérias. Mas
ver o nome dela impresso em uma lista de aprovados no liceu de
Dournaux foi um pouco confuso para Ivan:
— Sem dúvida, ela ficou com o cérebro – pensou ele rindo de alegria –,
eu sou um pacote de músculos.
Maeva encontrou forças para se ajoelhar aos pés de sua cama e obrigar
sua neta a fazer o mesmo para recitar uns dez rosários a fim de dar graças.
Deo gratias. Simone foi mais longe. Ela tirou de suas parcas economias
porque, devido à sua idade avançada, não trabalhava mais com cana, mas
cuidava dos filhos de um casal de mulatos que morava em Dournaux.
Ganhava um pouco mais e pôde encomendar uma torta de caranguejos e
um bolo mármore de um bufê. Ela decorou com flores a sala de jantar da
casa. Convidaram uma dezena de jovens. Escolheram os melhores zouks,
e a festa durou quase até de manhã. Ninguém achou nada de mais em ver
Ivan e Ivana sempre juntos. Estavam acostumados com aquilo. Todos
ainda se lembravam, eram muito jovens, dez ou doze anos. Os grandes
tambouyés de Morne à l’Eau vieram fazer um concerto na praça central.
Entre eles, Lucas Carton, cuja fama era inigualável e a quem todos
chamavam de mestre. Durante o intervalo, Ivan pegou corajosamente um
tambor ka mais alto que ele próprio e fez sua irmã dançar, erguendo sua
saia até suas panturrilhas esguias, para o deleite dos espectadores
animados.
— Quem te ensinou a tocar ka? – perguntou Lucas Carton, pasmo.
— Ninguém – respondeu Ivan com seu ar fanfarrão.
Simone veio em seu socorro.
— Eles têm isso no sangue. O pai deles é um dos maiores músicos do
Mali.
— Salif Keita? – perguntou Lucas, que conhecia um pouco daquele
mundo.
Dois anos antes, fora convidado para um festival no Mali e conheceu um
novo som, vindo do Caribe.
Segundo evento extraordinário: Simone enfim recebeu a resposta que
esperava de Lansana, postada do Canadá, de Montreal. Lansana relatava os
tristes acontecimentos que tinham sacudido sua vida e explicava seu
silêncio. Depois da morte do coronel Kadhafi, gangues armadas até os
dentes tinham invadido seu país e estavam descendo até Bamako. Em
Kidal, seu quartel-general, instalado na mesquita El Aqbar, queriam mudar
os modos de vida e restaurar a religião. Foram-se os dias, asseguramos, em
que se prostravam diante de ídolos, em que manuscritos centenários eram
tratados como relíquias. Acima de tudo, foram-se os dias de cantar, dançar
e fazer música. Apenas o silêncio agradava a Deus e era obrigatório.
Um dia, uns marginais entraram no estúdio de gravação que Lansana
tinha construído com muito custo e levaram tudo, antes de se lançarem
contra o músico infeliz, refugiado num canto, e de deixarem-no para
morrer. Os vizinhos, alertados, levaram-no ao hospital onde ele passou seis
meses, enquanto os piores excessos eram cometidos de norte a sul no país.
Uma vez curado, amedrontado, Lansana se viu obrigado a se exilar no
Canadá, onde ele tinha excelente fama. Lá o festejaram. Agora ele não
queria mais ficar no Canadá, mas voltar ao Mali, onde a resistência se
organizava. Sua fuga para o Canadá lhe parecia agora um ato de covardia.
Era preciso corajosamente tentar destruir aqueles que tanto mal fizeram.
Ele não parava de pensar em Ivan e Ivana, mas não podia trazê-los ao Mali,
antes que os problemas fossem resolvidos.
— Não sei quanto tempo isso vai levar – ele escrevia. – Seis meses, um
ano, dois anos. O que sei é que lhes enviarei duas passagens de avião.
Junto com a carta, Lansana mandou uma foto que fez Simone chorar
muito. Ela o viu em sua nova aparência: seco como uma vara de goiabeira,
em seu boubou largo, os cabelos parcos e agrisalhados, o rosto enrugado,
um corpo grande e doente, apoiando-se sobre duas muletas. O tempo não
o havia poupado.
Ivan e Ivana não deram importância àquela foto. Haviam sonhado muito
com o pai quando eram pequenos, pois a infância imagina a família como
um círculo mágico, desenhado em torno de suas angústias. No fundo, não
tinham vontade alguma de se separar da mãe, que era uma vítima que o
destino tratou muito mal. Tinham menos vontade ainda de ir ao Mali, esse
país africano com o qual não partilhavam a religião e cuja língua não
conheciam. Pois sabiam que no Mali, como no resto da África, não se
falava uma só língua, como na França ou na Inglaterra, e sim dezenas
delas, talvez centenas de dialetos. Vizinhos de porta não se entendiam. O
que fariam naquela bagunça? Ivana pensava principalmente que ela havia
atingido a idade de suavizar o destino de Simone. Ela não tinha se decidido
entre duas carreiras: enfermeira, para cuidar dos mais fracos e mais
desvalidos, ou policial, para os proteger. Foi assim que Ivana decidiu voltar
ao Centro de Orientação Pedagógica de Dournaux.
O liceu de Dournaux não foi, como a escola comunitária de Dos d’Âne,
completamente destruído pelo ciclone Hugo. Isso fez com que fosse
reconstruído em linhas ultramodernas. Do jeito que estava, era uma
colcha de retalhos de pavilhões de madeira espalhados em um pátio de
concreto. Aqui e ali algumas árvores cresciam tristemente: mogno
hondurenho, ébanos. A responsável pela orientação escolar, uma jovem da
metrópole, com a tez bronzeada dos muitos banhos de sol, olhava Ivana
com comiseração.
— Então, você nunca saiu de Guadalupe e fez todo o percurso escolar
em Dos d’Âne!
Um pouco envergonhada com a entonação, Ivana explicou que não
sentia falta das saídas. E ela foi muitas vezes à Martinica, duas vezes à
Guiana e até mesmo uma vez para o Haiti.
— Mas por que está se limitando a essas duas atividades, policial ou
enfermeira? – A jovem continuou. – Com essa sua menção honrosa nos
exames escolares, você poderia se candidatar aos exames de admissão das
Grandes Écoles.
Ivana balançou a cabeça bruscamente. Ela não queria esses trabalhos de
prestígio. Simplesmente queria servir aos humildes, como ela.
— Eu acho que seria melhor escolher polícia, isso vai lhe permitir
conhecer o mundo ao redor. Há academias de polícia excelentes na França.
Ivana se arriscava, visto que não tinha intenção de partir sozinha para a
metrópole. Ela teria a companhia de seu irmão.
— Seu irmão? – repetiu a moça, surpresa.
— Sim, meu irmão gêmeo.
A jovem fez então um gesto conciliatório:
— Ele poderia se tornar um aprendiz.
— Um aprendiz, mas onde?
— Isso vai depender das ofertas. Será preciso contactar o CFA.
Mas o homem dá e Deus tira. O encontro planejado não pôde acontecer
na data prevista, pois dias mais tarde Maeva morreu. Tinha o hábito de
pedir a Simone que colocasse sua poltrona no pátio, para que pudesse se
banhar na luz e apertar a mão fraterna do Compadre General Sol.
Um meio-dia, perto da hora do almoço, Simone a encontrou caída no
chão. Será que quis se levantar e tentar andar sozinha? Havia batido em
uma pedra e sua cabeça estava banhada em sangue coagulado. Foi o tempo
de chamar os vizinhos, de correr para o doutor Bertogal, o único que não
se importava com quem pagaria seus honorários, e estava morta, não sem
antes ter sussurrado ao ouvido da filha chorosa: “Presta bastante atenção
em Ivan e Ivana. Sonhei com eles novamente essa noite, banhados em
uma poça de sangue.”
Simone ficou espantada com a violência de sua dor pela morte daquela
mãe que acreditava não amar e que sempre fazia cara feia para suas
decisões e escolhas. O que as aproximava era sua paixão em comum pela
música e pela beleza dos cantos que elas ensaiavam no coral. Do mesmo
modo, Ivan e Ivana se surpreenderam ao chorar. Sua avó fora a única
pessoa a tratá-los como criminosos em potencial, como se eles
carregassem em si mesmos os germes de um crime abominável. Eles não
podiam esquecer isso.
Quando tinham quinze anos, enquanto descansavam um nos braços do
outro, ela invadiu o quarto deles e os separou com violência, gritando:
— Seus dois malditos! Dois malditos! É isso que vocês são!
— Mas não estamos fazendo nada de mau – protestaram.
Maeva não queria saber de nada. Não fosse a intervenção de Simone, ela
teria pegado a primeira vassoura e espancado os netos. Desde esse dia,
nunca mais dormiram juntos. Ninguém podia adivinhar as motivações
secretas da conduta de Maeva, nem compreender por que ela quis
inscrever no repertório do coral “L’Aigle noir”, de Barbara. Ela também
havia sido estuprada pelo pai. Não era um homem que contava vantagem,
falador e seguro de si. Ao contrário, era um negro com cara de penitência,
tímido e mal resolvido, de calças puídas. Mesmo assim, ele partiu para
cima dela, quando ela tinha doze anos, e, alguns anos depois, para cima de
sua irmã mais nova, Nadia. Quando ele caiu do telhado da casa que ele
fazia, Maeva experimentou uma alegria da qual nunca se perdoou e depois
roubou-lhe todos os momentos de prazer. Ela se lembrava de seu cheiro
de cigarro e a queimadura que ele infligiu a seu sexo. Isso durou mais ou
menos cinco anos, e depois ele deixou a mulher e suas duas filhas e saiu de
casa. Durante anos Maeva preparou sua roupa mortuária: um vestido
créole, chamado matador, de percal preto enfeitado com motivos brancos,
um xadrez madras preto e branco, chinelos de veludo roxo. Como estava
linda vestida com essas roupas, ela que durante os últimos anos de sua vida
parecia tão insignificante. A morte é a grande equalizadora, pois ceifa
tanto presidentes da República quanto varredores de rua, os notáveis e os
indigentes. No entanto, a forma como cada pessoa a recebe denuncia as
diferenças existentes entre as classes sociais. Simone só podia pagar um
enterro de terceira classe para sua mãe. Dessa forma, a funerária Veloxia
pendurou enfeites pretos na porta e na janela, estampados com as letras
prateadas MN: Maeva Némélé, e dispuseram lírios brancos que
destacavam a pobreza da cena. O único elemento harmonioso: a soupe
grasse para o velório, preparada por Anastasia, a vizinha, uma saborosa
mistura de cebola, cenoura, batatas e carne de boi. Durante dois dias, a
casa não se esvaziava, pois Maeva não era uma desconhecida. Ela não
apenas fazia parte do coral como ninguém se esquecia da força de suas
visões do passado, quando ela ficava ereta como um I, com os punhos
erguidos para o céu. Um público enlutado enchia a pequena igreja. O
senhor prefeito fez uma homilia bastante notável. Ele não conseguia
aplacar o remorso que sentia por ter expulsado Simone do conjunto de
habitação social do município. Foi por isso que ele ofereceu a Ivan fazer
parte da equipe que estava construindo a midiateca. O prefeito planejava
oferecer a Ivan que ingressasse no serviço de limpeza das vias públicas,
pois não existem empregos estúpidos, apenas pessoas estúpidas. No
entanto, quando ele o fez, sua oferta foi recusada com altivez. Ivan não
tinha nenhuma vontade de manusear o lixo de Dos d’Âne. Não tinham
acabado de encontrar em uma lixeira um menino com horas de vida, o
que levou a polícia de Basse-Terre a ser enviada até lá? Além disso, ele
partiria para a metrópole com sua irmã e faria um curso em uma fábrica
de chocolates da periferia parisiense.
De fato, esse boato começava a se espalhar e logo se tornou certeza. As
mulheres balançavam a cabeça dolorosamente: ela vai se sentir bem
sozinha, a Simone! Mas como dizem os ingleses: Every cloud has a silver
lining. Tudo tem seu lado bom. A condição de Simone mexeu com o
coração de Pai Michalou. Ele compreendeu que o momento era ideal para
lhe fazer a oferta de que ficassem juntos. Naquele momento, Simone foi
triplamente afetada: pelas tristezas de Lansana Diarra, pela morte de sua
mãe e pela partida próxima de seus filhos. A velhice cairia sobre ela em seu
isolamento.
Um domingo, Pai Michalou meteu seu único terno e foi até a casa de
Simone para lhe fazer uma proposta. Eles namoravam há dez anos. Era
um fato, ele não lhe oferecia riqueza, mas uma companhia para todos os
momentos. Simone o escutava, de cabeça baixa, sem trair suas emoções.
Quando ele se calou, ela simplesmente disse:
— Meus filhos viajam no fim do mês de agosto. Assim que eles partirem,
eu vou viver com você.
Depois disso, como que para selar o acordo, eles fizeram amor, não de
um jeito mecânico e rotineiro, como faziam nos últimos tempos, mas com
paixão, como se eles se redescobrissem e se desejassem de novo.
Aquele que deixa um país definitivamente ou por um tempo longo muda
completamente de personalidade. Uma voz, que ele nunca tinha ouvido
antes, ergue-se das árvores, das pradarias, das margens e sussurra palavras
muito doces em seu ouvido. As paisagens se enchem de uma harmonia
desconhecida. Ivan e Ivana não foram exceção a essa regra. Assim que a
data de sua partida foi acertada, eles começaram a ver Guadalupe com
outros olhos, como um familiar que estamos prestes a perder. Alugaram
duas mobiletes na loja de bicicletas Nestor e percorreram os arredores de
Dos d’Âne, de preferência aos domingos, quando as estradas estavam
semidesertas, com exceção dos ônibus. Eles foram primeiro à reserva do
Comandante Cousteau, com a qual nunca se importaram. Rodeados por
uma multidão de turistas, porque esta gente não conhece sábado nem
domingo, subiram num barco com casco de vidro para descobrir o
esplendor do fundo do mar. Depois, alugaram um saintois e remaram até
uma ilhota plana e rochosa que se erguia em duas colunas de pedra. Se
chamava a Tête à l’Anglais, porque os arbustos espinhosos do mesmo
nome abundavam ali. Iguanas de olhos oblíquos não fugiam com a
aproximação dos visitantes, mas os olhavam de cima a baixo. Ivana, que
amava as carícias do sol, tirou suas roupas para se esticar sobre a areia.
Doente de desejo, Ivan se dizia: “E se eu transar com ela como estou
pensando!” Para se acalmar, ele foi dar um mergulho no mar, que estava
mais frio devido a uma corrente do norte. Ivana gostaria de se sentar em
um catamarã e ir para Saintes, Terre de Bas, onde haviam passado tantos
acampamentos de férias organizados pela prefeitura quando eram
crianças. Para Ivan, aquelas lembranças, ao contrário, eram odiosas. Ele se
lembrava da triste construção de madeira onde eram colocados, úmida e
abafada, das camas estreitas, da comida insípida. Um dia, passando fome
com Frédéric, companheiro de infortúnio, ele matou uma das galinhas do
vizinho a pedradas, depenou-a com destreza e cozinhou-a na fogueira.
Tendo esse crime sido prontamente descoberto, ele recebera uma das mais
severas surras de sua vida. Ivan e Ivana combinaram de relembrar as
melhores férias da adolescência com Adèle, meia-irmã de sua mãe, filha
natural do mesmo pai ausente e invisível, de quem não se sabia o
paradeiro e a identidade exata. Desde então, Adele e Simone ficaram com
raiva uma da outra por motivos pouco claros e não se viam mais. Simone
fez tudo o que estava em seu alcance para os impedir de ir a Port-Louis,
onde morava Adèle:
— Ela nem se mexeu quando mamãe morreu – reclamou.
— Talvez ela nem tenha ficado sabendo – respondeu Ivana, conciliadora.
– Ela mora do outro lado do país.
— Estão falando de um dos seus meninos no jornal – Simone disse. – Ele
foi preso.
— Como eu – replicou Ivan. – Já estive de volta duas vezes. – Sim, mas
no seu caso foi injusto, porque você não fez nada.
Ah! A cegueira das mães antilhenses que perdoam tudo de seus filhos.
No fim das contas, os dois jovens não prestaram mais atenção ao que a
mãe dizia e tomaram o caminho de Port-Louis.
Quem diz que um litoral se parece com outro litoral não sabe do que
está falando. Em primeiro lugar, a cor da água nunca é a mesma.
Iridescente com os raios do sol, ora violeta, ora verde, como a tinta que
não usamos mais porque não escrevemos mais à mão, ora pastel. Da
mesma forma, a areia muda ora para marrom, como a crina de uma fera
selvagem, ora para amarelo-claro como a penugem de um patinho recém-
nascido. Assim também o firmamento brilha de maneira diferente.
Tia Adèle morava na ponta extrema do litoral. Menos miserável que
Simone por ser funcionária pública e varredora da prefeitura, ela ocupava
uma grande casa que dividia com as filhas. A mais nova tinha acabado de
terminar a escola, mas, sendo menos sortuda do que Ivana, não tirou um
diploma. Adèle se parecia com Simone. Ivan e Ivana ficaram surpresos ao
encontrar pedaços do rosto de sua mãe misturados a traços desconhecidos.
O coração de Adèle estava pesado de dor e ela logo desabafou com os
sobrinhos. Cinco anos antes, seu filho Bruno havia partido para procurar
trabalho na França. Por causa de sua boa constituição física, foi
rapidamente recrutado pela empresa Noirmoutier, como segurança. Era o
paraíso! Todo mês ele mandava metade de seu salário para Port-Louis. Ele
prometeu a Adèle e suas irmãs que as levaria para sua casa em Savigny-sur-
Orge e revelaria a elas as maravilhas de Paris, a Cidade Luz. De repente,
silêncio total. Depois de tentar telefonar a ele em vão dezenas de vezes,
Adèle se lembrou de um primo distante, desempregado, que morava em
Sarcelles, e pediu-lhe que intercedesse. O primo foi até a empresa
Noirmourtier, onde soube que, uma noite, Bruno não chegou ao trabalho.
Como também não o encontrou em sua casa, seu amigo, Malik Sansal,
ficou preocupado e avisou à polícia, que não fez nada. O desaparecimento
durava três anos. Desaparecimento! Pela segunda vez, Ivan se deparava
com aquela palavra, rígida como uma parede eriçada de arame farpado,
assustadora como a morte. Primeiro Miguel. Agora Bruno. O que é feito
das pessoas que desaparecem? Para onde elas vão? Ivan imaginou o limbo
frio e glacial.
— Vocês não imaginam o menino bom que ele era – contou a tia com
pesar. – Ele só gostava de mim e das irmãs, principalmente de Cathy, de
quem era padrinho.
Ao escutar aquela voz trêmula, Ivan se arrepiou. Ele se ouviu prometer
que procuraria o rastro de Bruno assim que chegasse à França. De repente,
a mater dolorosa foi buscar seus pobres tesouros, uma pasta cheia de fotos
de pouco valor.
— Essa aqui parece com ele alguns dias depois que começou a trabalhar
para a empresa Noirmoutier – explicou – essa aqui é do casamento. Aqui,
é a menina com quem ele se casou, uma argelina, Nastasia.
— Uma argelina – exclamou Ivan. – Talvez ele simplesmente esteja na
Argélia, com a família da esposa.
Adèle sacudiu a cabeça.
— A família da esposa mora em Aulnay-sous-Bois, para onde imigrou
nos anos cinquenta.
— Onde está Nastasia? Vou procurar ela.
Adèle disse:
— Nastasia também desapareceu. Ela foi uma péssima influência para
meu filho, foi por causa dela que ele se tornou muçulmano.
Tudo aquilo fazia Ivan se lembrar da história do sr. Jérémie.
— A gente não deve se converter ao Islã – disse Adèle categoricamente. –
Nós guadalupenses fomos educados na religião católica. Sabemos que há
apenas um Deus em três pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
— Um só Deus! Para cuidar de nós – Ivan não conseguiu não zombar.
Os olhos de Adèle logo se encheram de lágrimas.
— Você tem razão! O que eu fiz para merecer isso?
O desaparecimento de Bruno estava no cerne de todas as conversas em
Port-Louis, como Ivan e Ivana perceberam a caminho do bar local. Um
certo Jeannot, amigo inseparável e que visitou Bruno um mês antes de seu
desaparecimento, lamentava-se:
— Eu levei rum para ele. Um rum bom, Damoiseau et Bologne. Com
frieza, ele esvaziou a garrafa na pia, me dizendo que não tocava mais
naquele veneno. Além disso, ele não ouvia mais música, ele que tinha
fundado comigo um conjunto em Port-Louis. Estava completamente
mudado.
— Eu acho que ele foi se juntar ao jihad na Síria – exclamou um outro
jovem.
— Na Síria? O que você quer dizer que ele foi fazer lá?
O grupo se separou sem entrar em acordo sobre as possíveis motivações
de Bruno.
Jihad! Aí está uma palavra de que o sr. Jérémie não gostava e que o
deixava irritado, se lembra Ivan.
— Jihad! Jihad! Todas as religiões fazem proselitismo. Se esqueceram da
Inquisição e de quando os autos de fé queimavam em todas as esquinas.
Ao voltar a Dos d’Âne, Ivan acordou à noite pensando em seu futuro.
Um tal Sergio Poltroni, vindo da Itália, mas radicado na França, era dono
de uma chocolataria em Saint-Denis e estava contratando um aprendiz.
Graças à generosidade do governo, ele receberia uma modesta quantia
mensal. Aquilo em nada agradou a Ivan, que não tinha vontade de se
tornar chocolateiro. Em primeiro lugar, ele não gostava de chocolate e, em
segundo, havia algo de risível nesse projeto. Para se consolar, repetia para
si mesmo que de alguma forma tivera sorte. Assim ele podia acompanhar
Ivana à França, caso contrário, o que seria dele sem ela.
Para sua surpresa, no início do mês de agosto, Simone recebeu uma
pesada carta registrada: uma carta de Lansana e duas passagens aéreas nos
nomes de Ivan e Ivana Némélé, emitidas pela companhia Jet Tours. A Jet
Tours, sendo uma empresa de descontos, oferecia um itinerário muito
complicado. Primeiro uma escala de três horas em Paris, depois um dia em
Marselha, depois um dia em Oran antes de chegar a Bamako, de onde
finalmente se chegava a Kidal. Três dias de viagem, era muito! Lansana
explicou por que voltou antes do que esperava ao Mali, porque a situação
política parecia se acalmar graças ao apoio de uma potência estrangeira.
Essa potência tinha expulsado os invasores do país para o norte e todos
tentavam retomar a vida normal. Mas severamente debilitado e
praticamente sem dinheiro, ele não podia sustentar como pretendia dois
adolescentes de dezessete anos. É por isso que tinha encontrado trabalho
para eles. Ivana trabalharia em um orfanato, que recebia crianças cujos
pais haviam sido mortos durante a guerra pelas hordas de invasores. Ivan
faria parte da milícia nacional que, com suas patrulhas, protegia o país. Ao
receberem tal carta, Ivan e Ivana fizeram um muxoxo. Para começar, a
dificuldade da jornada os desanimou. Ver o pai, como já disse, só os
interessava pela metade. Quanto aos empregos que ele propunha, não
tinham nada de interessante. Por que ir para tão longe para ocupar
funções subalternas?
Mas Simone ficou furiosa. Não tinha pedido ajuda a Lansana por nada.
Ivan e Ivana teriam de ir ao Mali e adiar seus projetos na França, que eram
mesmo pouco interessantes. Por Ivana, ainda relevaria, mas Ivan
realmente queria se tornar um chocolateiro? Pai Michalou por sua vez deu
razão aos gêmeos, pois a televisão mostrava imagens desoladoras da
África. As guerras se sucediam, os emigrantes fugiam em todas as direções
e alguns países já não tinham governo. Simone teimou e acabou tendo a
última palavra. Com a morte na alma, os gêmeos tiveram de obedecer. Foi
com o mesmíssimo aperto no coração que abraçaram e beijaram a mãe.
De fato, ela tinha sido autoritária como o diabo, e muitas vezes exigente,
mas seu amor e sua devoção a eles nunca vacilaram.
Como o avião da Jet Tours saía às 4 horas da manhã, eles tiveram que
descer para Pointe-a-Pitre na véspera e passar a noite na casa de uma
parente, Mariama, que morava na Colina Verdol, bairro popular ao
extremo, cheio de crianças de todas as idades e de todas as cores. Na frente
da casa dela, erguia-se a torre do hospital geral, em cuja fachada brilhavam
três letras vermelhas: CHU, Centro Hospitalar Universitário. Ivana sentiu
uma profunda nostalgia ao pensar que ela jamais trabalharia ali, vestida
com o uniforme branco das enfermeiras. Tia Mariama fizera seu melhor,
arroz créole, fatias de abacate, um fricassê de porco com curry.
— O que vocês vão fazer na África? – ela perguntou. – Dizem que lá as
pessoas são selvagens.
— Somos metade africanos – respondeu Ivan, em um tom zombeteiro. –
Você não sabe que nosso pai é do Mali?
O que se julga depois dessa conversa é que nem Mariama nem os
gêmeos sabiam das origens do povo de Guadalupe. Eles ignoravam que o
povo das Antilhas tinha sido levado da África em navios negreiros e
poderia retornar à África para procurar seus ancestrais. Em sua defesa,
digamos que ouviram muito pouco sobre o grande ataque à costa africana.
Como a maioria de seus congêneres, eles pensavam que os negros eram
nativos do Caribe. Foi na pálida antemanhã que eles tomaram o voo da Jet
Tours. Se em Paris só tiveram tempo de trocar de avião, em Marselha
tiveram um dia inteiro para matar. O que fazer em uma cidade
desconhecida com tão pouco dinheiro no bolso? Ivan e Ivana andaram até
o Vieu-Port, depois devoraram um sanduíche em um dos inúmeros cafés,
olhando com inveja os restaurantes de luxo que a todos ofereciam o
melhor ensopado de peixe, de acordo com seus anúncios. Depois daquele
almoço frugal, Ivana propôs que visitassem o Chatêu d’If. Aquilo não
interessava nada a Ivan, que nunca tinha ouvido falar de Alexandre
Dumas, nem do conde de Monte-Cristo. De todo modo, eles decidiram de
comum acordo subir até a basílica de Notre Dame de la Garde, pensando
na felicidade que a mãe sentiria se a tivesse visitado. Pela primeira vez
estavam sozinhos, livres para agir como queriam. Sentiam que entravam
na idade adulta, o que fazia despertar neles um medo delicioso.
Eles não gostaram de Oran, onde Ivana buscou em vão a lembrança de
Albert Camus e de sua infância necessitada. Depois de um atentado, as
ruas ficaram cercadas de militares com armas que inspecionavam as
sacolas de compras das mulheres ao voltarem do mercado abarrotadas de
comidas inocentes. Todos aqueles fuzis pareciam perigosos e
provavelmente seriam apontados para os passantes se eles assim
desejassem. Qual havia sido o motivo do atentado? Ivan e Ivana
perceberam que não sabiam nada sobre o mundo ao seu redor. Em Dos
d’Âne, apesar da pobreza e da angústia que isso causava, eles viviam em
um casulo.
Finalmente chegaram ao Mali e aterrissaram no aeroporto de Bamako.
2. Na tradução perdeu-se o jogo de palavras. Em francês o nome “Simone” pronuncia-se com duas
sílabas “si-mon”, como seu relativo masculino, “Simon”. Na língua original, o jogo de pronúncia
quase idêntica se repete com os nomes “Ivan” e “Ivana”. [N. E.]
3. Em respeito às idiossincrasias culturais do Caribe e às decisões da autora Maryse Condé, optou-se
por manter a tradução literal das palavras francesas mulâtre e mulâtresse para “mulato” e “mulata”
em todas as ocorrências do livro. Não obstante, não se ignora o debate em curso no Brasil acerca do
uso das expressões, no qual o leitor e a leitora são convidados a se aprofundar. [N. E.]
4. “Um belo dia/ Ou quem sabe uma noite/ Perto de um lago, eu adormeci/ Quando de repente,
parecendo o céu se estilhaçando/ Vinda do nada/ Surge uma águia negra.” [N. T.]
5. Provérbio créole, em português há o similar “palavras ao vento”. [N. E.]
6. “Na saúde recobrada/ No perigo dissipado/ Na esperança sem memórias/ Escrevo teu nome/ E
ao poder de uma palavra/ Recomeço minha vida/ Nasci pra te conhecer/ E te chamar/
Liberdade.” “Liberdade” de Paul Éluard, na tradução de Carlos Drummond de Andrade e Manuel
Bandeira in R. Magalhães Jr. Antologia de Poetas Franceses (do Século XV ao Século XX). Rio de Janeiro:
Gráfica Tupy, 1950. [N. T.]
7. “No teu encalço, sem crina, eu sangro, eu choro, eu me encerro de terror, eu esqueço, eu rio
debaixo das árvores. Caça impiedosa em que se persiste, em que tudo se põe em ação contra a
dupla presa: você invisível e eu vivo.” [N. T.]
8. Exemplos da variedade de denominações utilizadas no Caribe para se referir a diferentes
tonalidades de pele. Os mesmos são intraduzíveis para o português brasileiro e, portanto, optou-se
por manter como definido pela autora. [N. E.]
9. “Ramona, eu tive um sonho maravilhoso/ Ramona, nós dois fomos embora/ Fomos
devagarinho/ Para longe de todos os olhares ciumentos/ E nunca dois amantes/ Conheceram uma
noite tão doce”. [N. T.]
NA ÁFRICA

O Mali ocupava um lugar de destaque nos livros de história. Ninguém


esqueceu a célebre peregrinação do imperador Kan Kan Moussa que
distribuiu tanto ouro ao chegar a Meca que o preço daquele metal precioso
baixou. Da mesma forma, todos já leram o livro de Djibril Tamsir Niane,
Soundjata ou O épico do Mandingo, graças ao qual conhecemos os feitos
heroicos do rei Soundjata, que apesar de uma infância difícil estava
destinado a se tornar um herói:
“Escutem, filhos do Mandingo, filhos do povo negro, escutem a minha
palavra, eu vou contar-lhes sobre Soundjata, o pai do Clair-Pays,
do país da savana, o ancestral daqueles que tensionam arcos, o mestre de
cem reis vencidos.
“Vou contar a vocês de Soundjata, Manding-Diara, leão do Manding,
Sogolon Djata, filho de Sogolon, Nare Maghan Djata, filho de Nare Mgha,
Sogo Sogo Simbon Salaba, herói de muitos nomes.
“Eu vou contar a vocês de Soundjata, aquele cujas façanhas assombrarão
por muito tempo os homens. Ele foi grande entre os reis, ele foi
incomparável entre os homens; ele foi amado por Deus.”
A história fala também do esplendor de certos reinos, como o de Ségou,
que fez verter tanta tinta. Curiosamente, foram os Toucouleurs que
fizeram o jihad para impor um deus único que enfraqueceu a região e fez
dela um fruto maduro para a colonização. Ivan e Ivana não sabiam nada
desse passado. Na verdade, eles não sabiam nada da África, além das
imagens negativas da televisão: golpes de Estado perpetrados por militares
ignorantes, fome, epidemias de Ebola que os africanos, sem ajuda do
exterior, não são capazes de curar. Eles ficaram surpresos de achar Bamako
uma cidade agradável. Belas árvores que faziam sombra nas avenidas que
se cruzavam em ângulos retos. Pararam em frente ao Grand Marché,
cercado por uma paliçada de madeira esculpida com todos os tipos de
animais. Admiraram as tapeçarias e tapetes no Marché Rose. Dentro, se
surpreenderam com as cores muito vivas das frutas e por seu tamanho
excepcional: mangas, goiabas, cerejas. Não se atreveram, porém, a
comprá-las e prová-las, uma peculiar desconfiança os detinha. Lansana
havia enviado a eles o endereço de um restaurante administrado por uma
de suas irmãs — minha irmã de leite, ele disse. O restaurante se chamava
Aux délices du Sahel. Era apenas uma barraca modesta com divisórias
feitas de palha trançada. A tia Oumi era uma mulher gorda, malvestida em
seus tecidos índigo, mas calorosa. Ela os beijou carinhosamente,
exclamando:
— Vocês são realmente da família Diarra. Os dois são a cara do pai.
Então, ela os apresentou aos poucos convidados presentes, e explicou a
eles:
— Esses aqui são os filhos do meu irmão Lansana. Eles moram em
Guadalupe com a mãe. Agora vieram morar com o pai.
Morar com ele! Ivan e Ivana não se atreveram a protestar. Ivan tendo
respondido à pergunta: “O que querem beber?” com “um copo de cerveja,
por favor”, fez a tia fechar a cara.
— Aqui não servimos nada de álcool – ela disse severamente. – Vocês
podem tomar tudo o que quiserem, por exemplo, suco de bissap, sou eu
mesma quem faz.
Um garçom deixou na frente de Ivan e Ivana dois grandes copos cheios
de um líquido rosa vivo, bem como dois pratos contendo camarões
esqueléticos e arroz.
De repente, o restaurante foi invadido por dois homens de uniforme
militar. Eles usavam chéchia da cor vermelha, parecida com aquela dos
antigos soldados senegaleses, e o mesmo uniforme verde-garrafa.
— Quem são eles? – perguntou Ivan, intrigado.
— São a milícia – a tia explicou. – Na semana passada, aconteceu um
atentado terrível no hotel Metropolis: mais de vinte e sete mortos. Desde
então, foi decretado estado de emergência, fala-se em instaurar um toque
de recolher, o que não fará bem aos nossos negócios.
— Mais um atentado? – Ivan se espanta de novo. – Em Oran foi a mesma
coisa.
A tia encolheu os ombros.
— Um punhado de pessoas achava que a influência ocidental pesava
muito sobre nós e afirmava que era preciso remediar isso – ela continuou.
– Segundo eles, nossa educação deve ser totalmente repensada e a religião
deve ser onipotente. É a mesma coisa que está acontecendo no Líbano, em
Camarões, e olhe que nem estou falando da Síria ou da Líbia.
Cada dia mais, desde que tinham saído de Guadalupe, Ivan e Ivana se
encontravam jogados em um meio que lhes era desconhecido, atravessado
por tensões que eles eram incapazes de elucidar.
Por fim, perto das 17 horas, eles precisaram novamente pegar a direção
do aeroporto para embarcar em um avião com destino a Kidal, que se
encontrava a menos de uma hora de voo dali. O céu estava riscado de
listras escarlates. Sobrevoavam regiões vermelhas onde não havia nem
sinal de vida, nem árvores, nem casas, nem animais, para grande surpresa
dos gêmeos que nunca haviam visto o deserto. Lansana estava esperando
por eles no aeroporto cercado por uma dúzia de meninos e meninas que
ele empurrou na frente dele, apresentando-os um a um.
Esse é o seu irmão, Madhi, ele dizia. Esse é o seu irmão, Fadel, essa é a
sua irmã Oumou, essa é a sua irmã Rachida.
Isso durou quase uma hora. Ivan e Ivana ficaram surpresos, pois eles
pensavam que eram os únicos filhos de Lansana. Não sabiam que os
termos “irmão e irmã” abrangiam também primos diretos, primos de
primeiro grau, primos de segundo grau, sobrinhos, sobrinhas, enfim, toda
uma família. Lansana deve ter sido forte e bonito. Agora murcho e magro,
andava apoiado em duas muletas e mancava muito.
Ivan e Ivana se surpreenderam de não sentirem nada por ele nesse
primeiro encontro. Ivan até o achou antipático com seu rosto amassado,
seus olhos estreitos, sua cabeça meio careca, seus dentes amarelados e os
pelos grisalhos saindo de seu nariz e orelhas. Bah, ele disse a si mesmo.
Talvez o afeto seja forjado aos poucos no cotidiano?
Lá fora, o ar estava seco e escaldante, o calor abafado, ainda mais
abafado do que em Bamako. A noite caiu bruscamente e sem aviso, uma
noite opaca como eles nunca tinham visto e de onde podiam sair todos os
tipos de gênios mágicos. Os medos de infância se erguiam brutalmente
dentro deles. Foi, sem dúvida, numa noite como essa, que Ti-Sapoti
prendeu suas vítimas, comovidas com seu corpo de criança, e as arrastou
para a morte.
Seguindo Lansana, que andava com ajuda das bengalas, chegaram a uma
vila que devia ter sido imponente. Era cercada por um muro circular
contendo meia dúzia de casas, saqueadas pelos jihadistas durante sua
investida. Eles foram particularmente implacáveis com a casa de música,
em que havia, além de instrumentos preciosos, um estúdio de gravação
altamente sofisticado. Esteiras foram colocadas no chão do pátio, e todos
se sentaram para compartilhar o jantar, servido em uma enorme travessa
comum. Ivan e Ivana, que nunca haviam comido com as mãos, deram o
seu melhor para imitar os outros convivas. A refeição estava quase
terminando quando apareceu um homem corpulento, mas pequeno,
vestido com o uniforme militar, um fuzil pendurado a tiracolo.
— É Madiou – Lansana disse, apresentando-o para Ivan e sinalizando
para que se sentasse ao lado dele. – É o comandante-chefe da milícia,
encarregado da segurança não apenas da nossa vila, mas de todo o país.
Você vai trabalhar sob suas ordens.
Depois de ter engolido alguns bocados, Madiou fez um sinal para que
Ivan o seguisse e o conduziu até um lugar do pátio. Lá, ele o olhou de
cima a baixo.
— Quanto você mede? – interrogou com autoridade.
— Um metro e noventa e dois – respondeu Ivan surpreso com a
pergunta.
— Quanto você pesa?… Perto de cem quilos, imagino. Aposto que você
acha que isso é o suficiente. Infelizmente, não é o peso dos músculos que
conta, é o do cérebro. É ele que toma as decisões, é ele que faz a gente agir
e lutar contra o medo.
A impressão desagradável que Madiou imediatamente lhe causou apenas
aumentou no dia seguinte, quando ele foi para o quartel Alpha Yaya. Por
todo o país, chamavam-no de Madiou El Cobra como num filme
americano. Um estoque de histórias sobre ele circulava. Era um
aventureiro contumaz. Passara muitos anos na Legião Estrangeira, até que
foi demitido devido a um caso sombrio. Dizia-se à boca pequena que se
tratava do estupro de um garotinho, rapidamente abafado pelas
autoridades superiores. Todos ficaram chocados e aluídos quando foi
nomeado comandante-chefe da milícia nacional. Desde o começo, ele fez
Ivan sentir o peso de sua autoridade, escolhendo-o para as missões mais
perigosas e mais tortuosas. Por exemplo, ir até o meio do deserto para
vigiar as possíveis idas e vindas de suspeitos; até a mesquita às sextas-feiras
estudar os rostos dos fiéis após a pregação dos imãs, sermões que Ivan não
entendia, porque eram feitos em uma língua que ele desconhecia:
bambara, malinké, fulani ou sarakolé; invadir escolas corânicas e garantir
que as crianças que balançavam a cabeça entoassem bem as suratas. Ao
fim de algumas semanas, Ivan não aguentou mais e confidenciou à irmã.
— Era melhor ter ido pra França – afirmou – aprender a fazer chocolate.
Se isso continuar assim, vou acabar dando o cano nesse Madiou.
Ivana o ouvia com estupor. Ela, ao contrário, desde sua chegada a Kidal,
nadava em felicidade e tinha se apaixonado por tudo que a cercava:
primeiro as paisagens, essas extensões semidesérticas de uma admirável
cor acastanhada, e, além disso, as pessoas, cuja beleza e elegância
transfiguravam as vestes humildes. Ela, que gostava de música, se
apaixonou pelas cantigas dos griôs e griotes e tinha aulas com um aluno de
Fanta Demba, a grande voz infelizmente hoje apagada. Ela estava
aprendendo as línguas nacionais e já sabia gorjear em bambara ou fulani.
Seu trabalho a fascinava. O orfanato Soundjata Keita, onde ela trabalhava,
tinha apenas cerca de vinte crianças, porque as famílias africanas, muito
sólidas, se recusavam a se separar daquelas cujos pais tinham morrido em
um ataque. Sempre um tio, uma tia, uma prima brigavam para cuidar
delas.
De manhã, Ivana dava banho nos pequenos, os alimentava dando
comida na boca, os ensinava a estarem limpos e, sobretudo, ensinava as
cantigas de roda que embalaram sua infância: “Savez-vous planter les choux,
à la mode de chez nous”, ou então: “Frère Jacques, frère Jacques dormez-vous,
dormez-vous, sonnez les matines, ding, deng dong.”
Ela implorou ao irmão:
— Eu te imploro, tenha paciência. Pensa na dor da mamãe se sairmos
tão cedo assim do Mali. Em alguns meses, se você ainda estiver infeliz,
vamos nos aconselhar e tomar uma decisão.
Ivan, que não conseguia recusar nada a sua irmã, se resignou a
permanecer em Kidal, onde ele não demorou a fazer dois amigos. O
primeiro se chamava Mansour. Era filho de uma irmã de Lansana, morta
quando ele nasceu, depois de um parto bastante doloroso. Todos
culpavam Mansour por essa tragédia e o infeliz não conseguia superar
aquilo. Ele era o bode expiatório do grupo: um fracote mal-humorado e
nada atraente, além disso, acometido por uma voz em falsete que fazia a
todos os que o ouviam estourar de rir. Por causa de um sopro no coração,
foi expulso da milícia, o que pouco contribuiu para sua reputação. Ele
também era repreendido por nunca ter feito nada de bom. No momento,
trabalhava em um restaurante do centro da cidade que se chamava Le
Balajo, um tipo de bar sem nada de especial, administrado por franceses,
onde ele desempenhava funções pouco honrosas, como lavar a louça.
Ivan e ele ficaram amigos de cara. Sentiram imediatamente que tinham
sido feitos da mesma matéria de que são feitos os perdedores na vida. Ivan,
na verdade, nunca tinha tido amigos, obcecado que era por sua irmã. Ele
descobriu o prazer de encontrar um ser cujas reações, as tensões, as
conclusões eram próximas às suas. Ele falou para Mansour sobre sua
infância, o que o surpreendeu, pois sempre pensara que ela não oferecia
nenhum interesse. Encontrava palavras inesperadas para descrever seu
país, sua mãe, sua avó e mil pequenos acontecimentos que de repente
surgiam e ocupavam sua memória. À noite, Ivan e Mansour aproximavam
seus banquinhos dobráveis e conversavam noite adentro. Mansour,
silencioso diante das provocações que recebia, falava sem parar. Ele
gostava de repetir:
— É preciso deixar esse país. É um feudo da Europa onde nada de
original é criado e de onde nada de bom pode sair. É para a Europa que se
tem de ir e de lá atingir o coração do capitalismo.
Ivan o escutava sem estar completamente convencido. Mas ele não
queria tomar parte na violência, assim como não queria fazer chocolate. Ir
para a Europa, sim, ele desejava isso, mas não para destruir o capitalismo.
Para encontrar condições de vida melhores, superiores àquelas que ele
conhecera em Guadalupe e no Mali. Às vezes, Mansour proferia acusações
das mais graves: Lansana é um bêbado, ele afirmava, um marabu-
conhaque, um muçulmano que não respeita a proibição do álcool.
— Um marabu-conhaque? – repetiu Ivan, estupefato. – Por que você diz
isso?
Mansour baixa a voz:
— Você não viu o jeito como ele se comporta quando chega em casa à
noite? Ele anda troncho, depois se tranca em casa e não sai mais até as
primeiras horas da manhã. É porque está bêbado e fica bebendo álcool.
Ao ouvir essa história, Ivan se pôs a observar seu pai, que ele já não
carregava em seu coração. Percebeu bem rápido que Mansour tinha se
enganado completamente. Não era com álcool que Lansana se trancava
em casa, mas com mulheres, pelas quais ele parecia ter um apetite
insaciável. Mulheres. Todos os tipos de mulheres. Algumas eram mulheres
casadas, tentando pagar as contas do mês. Outras eram jovens, inocentes e
impressionadas pelo prestígio daquele homem duas vezes mais velho que
elas. Outras eram simplesmente profissionais, especialistas em amor pago.
Ivan ficou horrorizado com aquela libertinagem, pois o amor que ele tinha
pela irmã o protegia, o deixava casto. Para ele, o corpo de uma mulher era
sagrado. Ele não compreendia possuir sem amar. A hipocrisia de seu pai,
um exímio professor, sempre citando o Corão, o deixava repugnado.
A cada dia que passava, Ivan detestava mais a vila e suportava cada vez
menos a autoridade de seu pai. Lansana mandava nele como se ele fosse
um menino de dez anos e não hesitava em colocá-lo em seu lugar na
frente de testemunhas. Ele o tinha apelidado de “aquele que caminha sem
saber onde põe os pés”. Ivan não compreendia por que aquilo fazia todo
mundo rir e não parava de se perguntar: Lansana era um vaidoso, um
inconsequente ou só um tolo acometido pela cegueira?
Uma noite, Mansour deixou seu banquinho dobrável mais perto de Ivan.
Sentia-se que ele estava no auge de uma forte emoção e à beira de uma
confissão terrível.
— Ontem, conheci um certo Ramzi – sussurrou ele –, um
contrabandista de origem libanesa. Com um grupo de outros caras, ele vai
me levar para a Líbia e depois para a Europa, o coração de todas as ações
terroristas. Você quer se juntar a nós?
Como Ivan tinha ficado boquiaberto, ele insistiu:
— Isso não vai te custar nem 500 francos ocidentais, pois Ramzi não faz
isso para ganhar dinheiro. Ele tem fé. É preciso destruir o mundo da
vassalagem do qual fazemos parte.
Ivan sacudiu a cabeça em negativa e se desculpou. Não podia se separar
da irmã, deixá-la para trás sozinha naquela vila, onde ela não conhecia
muita gente, e se engajar em uma outra causa.
Alguns dias depois, Mansour desapareceu, deixando, como lembrança
para Ivan, seu exemplar do Corão, com a seguinte dedicatória: Nós nos
reencontraremos um dia. Teu irmão que te ama e te amará para sempre. Depois
que Mansour desapareceu, se soube muito sobre ele. Imagine que no
Balajo ele se entregava a estrangeiros, turistas, é claro, que lhe pagavam
caro pela posse de seu corpo. A polícia revelou que, segundo informações
recebidas, Mansour havia partido para a Bélgica para se juntar a um grupo
de terroristas que planejava um atentado. Infelizmente ninguém na vila
pôde fornecer informações ou confirmar essas suspeitas.
Ivan pensava muito em Mansour. Desde sua partida, a vila lhe parecia
ainda mais vazia. Ninguém com quem conversar. As noites intermináveis
eram atravessadas por melodias agudas de cantores reunidos na casa de
Lansana. Ele tinha sempre o mesmo pesadelo. Via seu amigo bem
agasalhado e usando um gorro de lã, colocando bombas em aeroportos e
disparando balas Kalashnikov contra convidados sentados em mesas na
frente de bares. Contra sua vontade, ele admirava a coragem do amigo e
nunca deixou de lamentar sua partida.
Foi então que Ivan fez um segundo amigo, bem diferente de Mansour e
ao mesmo tempo sutilmente parecido. Era um miliciano que se chamava
Ali. Era bonito, um colosso de quase dois metros de altura, de pele clara,
pois sua mãe pertencia aos mouros. No entanto, ele era objeto de
constantes ataques e cruéis zombarias da parte dos outros milicianos, que
tinham ciúmes de sua origem aristocrática. Ele era o filho de um
comentador do Corão bem conhecido e de uma cantora que alguns
comparavam à grande Oum Kalsoum.
Sua amizade com Ivan começou no dia em que receberam a mesma
missão. Eles foram encarregados de ir a Kita, um pequeno vilarejo, uns 50
quilômetros distante de Kidal, onde agricultores tinham sido mortos e seus
rebanhos de cabras levados.
— Essa missão é a mais idiota que alguém podia imaginar – declarou Ali,
se sentando ao lado de Ivan no jipe militar. – Sim, de acordo com todas as
possibilidades, foram terroristas, agora eles já levaram a maior parte dos
rebanhos para um local seguro e estão assando algumas cabras, abrigados
nas falésias.
— Você não deveria falar assim – Ivan observou – Você não sabe em que
ouvidos essas zombarias podem cair. Esse campo está cheio de garotos
prontos para delação, prontos para vender os menores rumores para ficar
bem aos olhos do comandante-chefe.
— E você não tá junto – afirmou Ali, ligando o motor. – Eu te observo
há semanas. Como se chama o país de onde você vem? Pois eu sei que
você é estrangeiro.
— Sou de Guadalupe – respondeu Ivan. – Não é bem um país, é um
departamento ultramarino da França.
— Um departamento ultramarino da França! – Ali zomba. – O que isso
quer dizer?
Ivan tentou explicar a estranheza do lugar de onde ele vinha e acabou
repetindo as palavras que ouviu da boca do sr. Jérémie. Pintou uma terra
degradada, jovens desempregados reduzidos às drogas e à violência.
— É, bom – comentou Ali. – Aí está mais um lugar para ser libertado.
Depois de um tempo de silêncio, ele continuou:
— Se continuarmos em frente, chegaremos bem rápido na Argélia. De lá
será mais fácil pegar um avião para França, ou melhor, para a Bélgica.
— França? Bélgica?! – gritou Ivan.
De novo ele ouvia falar da Europa como um lugar onde seria bom
recomeçar a vida. Ele insistiu:
— Por que você quer ir à França?
Ali não respondeu àquela pergunta.
O vilarejo de Kita contava com uma centena de almas. As ruas desertas.
No interior das casas, as mulheres cujos maridos tinham sido assassinados
choravam todas as lágrimas de seus corpos.
— Perdemos nossos maridos e nossos rebanhos, tudo de uma vez – se
lamentavam. – O que fizemos para merecer essa sorte?
— Vocês sem dúvida ofenderam Deus – Ali respondeu a elas secamente.
Em Kidal, ele não demorou para convidar Ivan para ir ao verdadeiro
palácio onde seus pais moravam – tapeçarias, cortinas de seda, tapetes de
lã de qualidade, divãs profundos como túmulos – ele tinha se instalado em
um quarto estreito, de teto baixo, mobiliado de maneira simples com uma
cama e alguns pufes de couro marrom. Ivan entendeu muito rapidamente
por que seus três irmãos mais novos o tinham apelidado de Aiatolá. Ele
não bebia, não fumava, fazia suas cinco orações com devoção, era o
primeiro a chegar à mesquita às sextas-feiras e, quando tinha um
momento livre, triturava as contas de seu terço islâmico e entoava suratas.
Havia apenas duas coisas que ele se permitia: comida e, como Lansana,
mulheres. Ele tinha a seu dispor um cozinheiro marroquino, uma espécie
de gnomo corcunda, que preparava refeições suculentas, tajines, faisão
com mel ou abóboras recheadas repousando sobre um leito de ervas
aromáticas. Quanto às mulheres, ele recebia duas ou três todas as noites,
que o acariciavam até o amanhecer.
Uma noite, de repente, ele pergunta a Ivan:
— Você é virgem, não é?
O sangue subiu ao rosto de Ivan, que não respondeu.
— Eu nunca te vi interessado em uma mulher – seguiu Ali. – Nem
tremer diante de uma. Parece que tu nem as nota.
Ivan, que já tinha recuperado um pouco seus sentidos, se lançou em uma
explicação complicada:
— É que estou perdidamente apaixonado por uma mulher que deixei em
Guadalupe. Se olho para outra, tenho a impressão de que a estou traindo.
Ali se estourou de rir:
— Você não vai me fazer aceitar essa humilhação. Todos os homens têm
na cabeça uma mulher inacessível que eles adoram e respeitam. Isso não os
impede de ter prazer com as outras, as mais comuns. De modo que esse
belo objeto que tu carrega aí na frente nunca foi usado antes? Duro como
uma espora, nunca penetrou no casulo secreto da mulher e faz brotar a
deliciosa água marinha. É inacreditável.
No dia seguinte à conversa, ele convidou três mulheres para jantar, que
obviamente destinava a seu amigo: Rachida, Oumi e Esmeralda. Eram
lindas, com seus sutiãs empinando os peitos, suas cinturas de vespa e as
curvas suaves de suas nádegas que a roupa não conseguia esconder. Se
Rachida e Oumi eram nativas, Esmeralda era indiana de Kerala. Por sete
anos, estudou em um templo posições amorosas mais ousadas do que as
do Kama Sutra. Uma de suas especialidades chamava-se broutard. Era uma
carícia tão insidiosa que deixava um pouco louco quem a recebia. A outra,
os anéis pequenos, não ousaremos descrever aqui.
Assim que o último bocado foi engolido, Ali se levantou dizendo às
mulheres:
— Deixem-no exausto. Não poupem sua arte. Não se esqueçam de nada.
Nem de toques, nem felação, nem sodomia. Encham-no de carícias. Não
deixem nenhuma polegada de sua pele intocada.
Então, ele fechou a porta atrás de si e desapareceu. Essa primeira noite
deu a Ivan prazeres inefáveis, mas também um profundo sentimento de
vergonha. Parecia que os rugidos, gemidos e gritos que seu corpo
produziu eram os de um porco chafurdando em seu chiqueiro. Terminado
o ato, que durou horas, sem nem agradecer as três mulheres, ele correu
para casa. Ele gostaria de ter se atirado nos braços de Ivana e suplicado
que ela lhe perdoasse. Mas ele não podia alcançá-la, pois ela dormia
castamente no recinto reservado às jovens. Então ele se jogou no quarto
de banho e se ensaboou da cabeça aos pés para dissipar a memória
daqueles horrores.
No dia seguinte, uma batalha que ele não tinha previsto começou.
— Você tem que se tornar muçulmano – disse Ali abruptamente. – Você
tem que se converter ao Islã.
— E por quê? – retorquiu Ivan. – As pessoas ficam na religião da mãe que
as criou e da sociedade a que pertencem.
— É absolutamente necessário – insistiu Ali. – Só estou pensando no seu
bem. Se você morrer com armas na mão, vai direto para o Jardim de Alá.
Lá, você terá setenta e duas virgens para deflorar, enquanto as Houris,
com seus longos cabelos negros, dançarão ao seu redor.
— Quem está falando de morrer com armas na mão? – perguntou Ivan.
Ali se dirige à sua mesa e pega um maço de documentos.
— Temos que sair deste país que, disfarçado de muçulmano, obedece
apenas aos ditames do Ocidente. Esse mesmo Ocidente que transformou
seu país em um departamento ultramarino da França. Está tudo escrito aí.
Nós vamos até Amharic na Argélia e de lá ao Iraque.
Ivan gritou seu último argumento:
— Eu não posso abandonar minha irmã. Chegamos juntos aqui no Mali.
Vamos ficar juntos. Partiremos juntos daqui.
Ali fica vermelho de raiva:
— Se você for, sua irmã nem vai se importar. Não ouviu dizer que El
Hadj Mansour está apaixonado por ela e que pediu a mão dela a seu pai?
Ivan partiu para cima dele e o enforcou até que quase perdesse o ar.
— O que está dizendo, mentiroso sujo?
— Eu só estou te dizendo a verdade – gaguejou Ali se debatendo muito.
Ivan saiu correndo pela noite opaca. Ele correu até a casa de El Hadj
Mansour, o imã da mesquita de Kerfalla. Mas o imã estava ao lado da cama
de um moribundo, disseram seus empregados. Ivan então tomou a direção
do orfanato Soundjata Keita onde, ele sabia, sua irmã ainda trabalhava
apesar da hora tardia. Na verdade, no quarto que lhe fora atribuído, ela
acabara de tirar o uniforme branco com bordado vermelho e estava com
os seios à mostra, apenas de calcinha. Ivan disse a ela:
— Sabe o que eu ouvi?! – ele gritou. – Que El Hadj El Barka quer se
casar com você!
Ivana o abraçou e ele a cobriu de beijos.
— É problema dele se ele está apaixonado por mim – disse ela com
doçura. – É verdade mesmo que ele pediu minha mão ao nosso pai, eu
recusei, pois você sabe bem que eu te amo.
Ivan entregava seus beijos com paixão, apertando seu corpo febril contra
o dela, amplamente desnudo. Naquela noite, chegaram bem perto de fazer
amor.
Quando eles saíram do orfanato e chegavam à praça central, foram
testemunhas de um espetáculo surpreendente. Alguns homens armados e
usando balaclavas pretas desceram de dois ou três jipes. Apavorados, os
gêmeos se enfiaram numa rua secundária e conseguiram chegar em casa.
Quando acordaram no dia seguinte, souberam que um comando de
terroristas havia matado cerca de trinta homens e mulheres durante a
noite, atirando ao acaso nas pessoas inocentes que tomavam seu chá de
hortelã na frente dos bares e incendiaram vários bairros da cidade.
Ali foi levado ao tribunal militar de exceção presidido por El Cobra. Na
verdade, se dizia que ele teria sido cúmplice daqueles terroristas e os tinha
ajudado a matar os inocentes bebedores de chá. Depois de menos de uma
hora de deliberação, ele foi então condenado a permanecer no sol, um
suplício que data do tempo do imperador Kankan Moussa (sim, ele
mesmo) e consiste em amarrar uma pessoa e abandoná-la completamente
nua aos ferozes raios de sol do deserto até que as veias de sua cabeça
inchem e se rompam. El Cobra encarregou Ivan de levar a Kidal o cadáver
ensanguentado de seu amigo, que foi jogado sem cuidado nenhum numa
vala comum. Ivan pensou que ele mesmo fosse morrer também. Depois
disso, correndo risco das piores represálias, ele não voltou mais à caserna
de Alfa Yaya. Ficou o dia todo prostrado na esteira, incapaz de se
alimentar. Saía de seu torpor apenas para responder aos comentários
idiotas de Lansana.
— Esse Ali bem que mereceu isso que aconteceu com ele. Era um
traidor, um terrorista.
A relação entre Ivan e seu pai se deteriorou definitivamente. Certo que
nunca havia sido muito cordial, nem mesmo afetuosa, como aquela entre
Lansana e Ivana. No entanto, pai e filho sempre exibiram uma fachada de
bom entendimento. Agora isso tinha acabado. Lansana resmungava para
quem quisesse ouvir:
— É um delinquente. A mãe dele me escondeu isso. Duas vezes ele foi
preso.
Ivan, de sua parte, dizia a todo mundo que Lansana era apenas uma
criação do Ocidente e que sua música não era páreo para a dos gênios: Ali
Farka Touré ou Salif Keïta. O principal ponto de discórdia é que Ivan se
recusava obstinadamente a voltar para a caserna. Furioso, Lansana
arrotou:
— Eu que não vou ficar entretendo preguiçoso que não faz nada.
Numa noite em que Ivan estava deitado sobre sua esteira como de
costume, vieram lhe dizer que um visitante chamava por ele. Um
homenzinho de cabeça raspada o esperava em um vestíbulo da casa
principal.
— Sou Zinga Messaoud – ele se apresentou. – Vamos para outro lugar,
pois as paredes têm ouvidos.
Foi só quando chegaram na rua que Zinga decidiu falar:
— Você era o melhor amigo de Ali Massila, não é?
— Era meu irmão – respondeu Ivan, lutando contra as lágrimas.
— Muitos de nós não apoiam o que fizeram com ele – prosseguiu Zinga
– e queremos nos vingar. Você quer vir comigo?
Zinga conduziu Ivan para um bairro fora do centro, onde ficavam as
moradias populares do governo, todas parecidas. Chegando em uma delas,
Zinga se adiantou e levou Ivan ao terceiro andar. Lá, ele tirou um pequeno
instrumento de seu bolso e soprou três vezes. Depois, deu duas batidas na
porta de madeira. Após algum tempo, alguém abriu a porta por dentro e
eles entraram em um salão pouco iluminado, onde os esperava um
homem de uns quarenta anos. Ele se levantou, fez a volta em sua mesa e
estendeu a mão para Ivan.
— Me chame de Ismaël – ele diz.
Ismaël vinha da Índia, de um vilarejo muçulmano de Rajani. Ele tinha o
cabelo cortado em tonsura e usava roupas largas e de cores escuras.
Foi assim que Ivan foi recrutado pelo Exército das Sombras. Os recrutas
eram convocados para o Exército das Sombras que, dentro da milícia
oficial, não tinha outra função senão frustrar seus planos e colocar seu
comando em dificuldades. Ivan teve, portanto, que vestir novamente o
uniforme militar e, fingindo ir para Canossa, teve que retornar à caserna
de Alfa Yaya. Ao retornar, foi recebido em seu escritório pelo próprio El
Cobra. Que lhe deu um sorriso venenoso.
— Até que enfim voltou a si.
— Me perdoe se fui burro.
El Cobra acentuou seu sorriso.
— Eu não culpo você – ele disse. – Não foi culpa sua. Esse Ali, ele te
pegou pelos sentidos. Rachida, Oumi e Esmeralda descreveram todo o
caso para nós. Esmeralda tinha escondido uma câmera na roupa e nós
pudemos ver o delito.
— Rachida, Oumi e Esmeralda então são espiãs! – ele exclamou com
estupor.
El Cobra ficou com um ar pretensioso.
— Elas trabalham pra gente. Se você as vir, elas vão te prestar os mesmos
serviços que já prestaram e dessa vez você não vai ter que pagar preços
exorbitantes.
Enquanto isso, El Hadj Mansour, o imã da mesquita de Kerfalla, estava
bem decidido a se casar com Ivana. Ele já possuía três mulheres e sete
filhos e filhas, o que já bastava para satisfazer a qualquer homem. Mas
aquela frangota vinda de longe que ramalhava o bambara com um sotaque
adorável e que desnudava suas pernas longas em shorts de algodão branco
nunca usados pelas mulheres do Mali fazia seu sangue ferver. Não era a
primeira vez que uma beldade, tendo recusado um pretendente, mudava
de ideia e reconsiderava sua decisão se o pretendente rejeitado soubesse se
cercar da ajuda necessária. E, bem, El Hadj Mansour pôde contar com a
ajuda de Garifuna, um dibia que veio do país Igbo e que os acasos da vida
trouxeram para os arredores de Kidal. Sua reputação era incomparável. Ele
morava a cerca de dez quilômetros de distância, em um planalto
semideserto, onde sua cabana de taipa se erguia misteriosa e estranha. Ele
não era um feiticeiro, uma criatura malévola, que despeja as piores
catástrofes sobre os indivíduos se solicitado. Era mais um homem que
trabalhava de duas maneiras, com a mão direita e com a mão esquerda, a
boa e a ruim. Ou seja, ele fazia, ao mesmo tempo, o bem e o mal. Ao
redor de sua casa, entre os cactos e ervas selvagens, foram colocados jarros
de todos os tamanhos nos quais ele trancava os espíritos dos mortos antes
de permitir que se infiltrassem nos recém-nascidos.
El Hadj Mansour chegou na casa dele ao cair da noite, pois alguns
assuntos se concluíam melhor na obscuridade. Garifuna o reconheceu sem
dificuldade:
— Você de novo! Que bons ventos o trazem aqui dessa vez? –
proclamou.
— É que preciso de uma mulher.
— Mais uma! – Garifuna sorriu. – Você as coleciona.
El Hadj Mansour fez um gesto amplo com a mão.
— O que você quer? As mulheres são a nossa única consolação nessa
terra cheia de pessoas más. É o que nos ensina o Corão.
Então, ele entregou a peça de percal branco e as nozes-de-cola que tinha
trazido em pagamento pelo trabalho. Garifuna pegou as coisas, depois
despejou numa cabaça de cocções de plantas que tirou de potes colocados
nas prateleiras, lavou bem o rosto, principalmente os olhos, acendeu sete
velas, o número é fatídico, e se pôs a entoar lentamente palavras
incompreensíveis.
Depois de uma meia hora desse pequeno jogo, ele se sobressaltou, olhou
El Hadj Mansour nos olhos e disse:
— Essa mulher pertence integralmente a outro homem.
— Isso não me dá medo – retorquiu El Hadj Mansour. – É por isso que
eu vim ver você. Você é bastante forte para resolver esse problema. Eu
confio muito.
Garifuna acende de novo duas de suas velas que tinham se apagado e
lava os olhos novamente e com cuidado. Depois de um tempo, ele retoma:
— O que eu não entendo é a natureza desse homem. Não é um amante
comum. Ele nasceu com ela e eles compartilham a mesma vida.
Subitamente ele dá um grito:
— Ela tem um irmão gêmeo?!
El Hadj Mansour não sabia de nada disso. Ele tinha visto Ivan algumas
vezes na vila de Lansana Diarra, mas ignorava seu grau de parentesco com
Ivana.
— Esse seu assunto está me parecendo bem complicado – ele disse a El
Hadj Mansour. – Se informe e volte aqui para me ver em quatro dias.
Quando a lua estiver cheia, eu poderei me beneficiar dos aromas que sua
luz oferece. Eu saberei exatamente o que fazer.
— Quanto tudo isso vai me custar? – perguntou El Hadj Mansour,
inquieto.
— Bem caro – declarou Garifuna acendendo um lampião de óleo que
estava em uma mesa baixa. – Pois vou repetir, seu assunto é complicado.
El Hadj Mansour percorreu pensativo os dez quilômetros que o
separavam de Kidal. A lua, que reinava pálida no meio do céu, ainda não
estava cheia. Sua luz transfigurava as colinas de areia, as falésias eram
animais pré-históricos, que pareciam prestes a se lançar sobre os viajantes.
Porém, o imã tinha medo. Ele estava muito absorto em seus pensamentos.
Não compreendia nada do que estava acontecendo. Como uma irmã
poderia pertencer integralmente ao seu irmão? O que significava a
expressão de Garifuna: “Eles compartilham a mesma vida”?
El Hadj Mansour não era um ingênuo. É que no Mali não se conhecia o
incesto, e as pessoas estavam pouco habituadas às elucubrações dos
psiquiatras e dos psicanalistas.
Chegou aos portões de Kidal sem incidentes. Ao passar em frente à vila
de Lansana Diarra, percebeu que uma pequena multidão se aglomerava ali
e que a entrada estava guardada por milicianos armados. Ele se informa e
fica sabendo que o célebre cantor de jazz Herbie Scott juntou sua voz à de
Lansana, acompanhado pela grande orquestra do Cairo. El Hadj Mansour
não gostava dessas combinações, acreditando que cada forma de música é
uma voz distinta, particular, estrangeira, que não combina
necessariamente com as outras. Porém, estacionou o carro e entrou na vila
para observar o que ali se passava. Recusando-se a se sentar na zona
reservada para os VIPs, escolheu um lugar mais discreto, de onde pudesse
observar os movimentos dos jovens aglomerados à esquerda do palco.
Entre eles estavam Ivan e Ivana. Ele nunca tinha notado como os dois se
pareciam: os mesmos olhos amendoados, pretos e brilhantes, um pouco
mais tristes em Ivana, a mesma boca polpuda, um pouco mais generosa
em Ivan, o mesmo queixo escavado com uma covinha, mais arredondado
em Ivana. O que chamou a atenção é que os gêmeos se moviam da mesma
forma, com os mesmos gestos, as mesmas expressões. O irritante El Hadj
Amou Cissé veio neste momento para encontrar El Hadj Mansour, sentou-
se confortavelmente ao seu lado e começou uma conversa insípida. El
Hadj Mansour não aguentou e o interrompeu:
— Lansana deve estar feliz de ter filhos tão bonitos.
El Hadj Amadou Cissé fez um bico:
— Ele não está tão feliz assim, eu acho. O filho dele não quer fazer nada.
Ele se recusa a partir para o norte com as milícias, onde receberia
pagamento melhor. O pobre Lansana está tendo que dobrar os concertos
de música para sobreviver. Acredite em mim, esses gêmeos não são bem
um presente.
Era bem isso que El Hadj Mansour queria saber.
Quando o concerto terminou, a plateia se levantou e aplaudiu os
músicos de pé. Não era um sinal da perfeição de sua arte, pensou El Hadj
Mansour, sempre crítico. Os espectadores queriam só mostrar que tinham
adotado modos ocidentais.
Quatro dias mais tarde, El Hadj Mansour voltou à casa de Garifuna. Ele
encontrou o dibia sentado fora de casa, mexendo nas chamas de uma
fogueira brilhante.
— Entendi tudo – ele disse –, me traga uma galinha jovem, branca e
imaculada e um garnisé de penas vermelhas. As duas aves não devem
ultrapassar os cinco meses de idade. Vou trabalhar nelas, provavelmente
vou fazer um purê delas que você vai misturar com patê de pombo. Você
servirá para Lansana e seus filhos, que você convidará para jantar em sua
casa, o que não deve ser muito difícil.
O tempo de cumprir aquelas ordens foi bastante longo: persuadir
Lansana a vir jantar, acompanhado de seus dois filhos. Neste meio-tempo,
a primeira esposa de El Hadj Mansour, sua bara muso, a preferida,
encarregada de preparar esta refeição, jogou no lixo a tigela que seu
marido lhe dera porque ela não gostou da cor do patê que ela continha. O
trabalho, portanto, falhou completamente.
Enquanto isso, se Ivan não se afastou de Kidal e da vila de seu pai, onde
se sentia mal, porque a multidão de irmãos e irmãs lhe tirava o ar, é
porque tinha um excelente motivo. Recrutas do Exército das Sombras, que
usavam falsamente o uniforme da milícia, se reuniam todas as noites no
vasto pátio que se estendia atrás do alojamento de Ismaël e recebiam uma
educação ministrada por muitos mestres. Ismaël foi sem dúvida o mais
brilhante deles. Ele falava com um tom que era ao mesmo tempo suave e
peremptório:
— Somos repreendidos por não gostar de música e por proibi-la. Não é
verdade. O que colocamos acima de tudo é o silêncio que permite ouvir a
É
voz de Deus. É necessário silenciar todos os ruídos, todos os sons
parasitários.
Ao escutar Ismaël, Ivan revivia as palavras do sr. Jérémie e se repreendia
por não ter prestado atenção o suficiente. Sem dúvida ele era muito jovem
ou muito imaturo. Os recrutas se sentavam embaixo de uma lona azul e
anotavam em cadernos todos iguais. De pé, num pequeno palco, Ismaël e
as outras sumidades se dirigiam a eles com um microfone e faziam
desenhos em um quadro, curiosamente pintado de verde, para ilustrar
suas falas. A primeira lição foi sobre as Cruzadas. Ismaël demonstrou que
essa foi a agressão fundamental cometida pelos ocidentais contra o Islã.
Aquele que o Ocidente venerava como mártir, o rei da França Luís IX,
conhecido como São Luís, foi na verdade o primeiro agente do
imperialismo. Um imperialismo que nunca deixou de ameaçar a paz do
mundo.
A segunda lição foi sobre a escravidão. Claro que os sultões árabes a
tinham praticado, enchendo seus haréns de belezas negras, compradas a
preço de ouro. Mas sua escravização não era desumanizante e não podia
ser comparada à brutalidade do tráfico de escravos que reduziu milhões de
homens à condição de mercadorias, de animais selvagens. Ismaël
descreveu a estrutura dos navios negreiros, o cheiro pestilento dos porões
e os repetidos estupros de mulheres e meninas impúberes. Ele passou
gravuras que representavam os mercados de escravos das ilhas do Caribe.
Examinavam os dentes dos que estavam à venda, seus testículos eram
pesados, a profundidade de seu ânus era verificada para se certificar de que
não havia nenhuma doença perigosa escondida.
Essas aulas começavam depois do último chamado rouco do muezim e
terminavam às 22h30. Por volta das 21 horas era servido um lanche. Todo
dia igual, peixe defumado, ovos cozidos e cuscuz de milheto.
Estranhamente, essa frugalidade não gerava monotonia. Pelo contrário!
Vivificava o pensamento. As perguntas se sobrepunham na mente de Ivan.
Por que a era dos descobrimentos resultou no isolamento e no desprezo
de milhões de seres humanos? Por que os conquistadores se revelaram tão
rapidamente bandidos e assassinos? Ismaël explicou calmamente. A
descoberta não foi um momento de curiosidade, tolerância e partilha. Os
descobridores vieram fincar bandeiras, usurpar, subjugar tudo o que era
diferente.
Uma noite, Ismaël pegou o braço de Ivan com naturalidade e o levou
para dentro de seu escritório.
— Estou bem satisfeito com você. É preciso que você se torne um de
nós, que você se converta ao Islã.
— Me converter ao Islã? – disse Ivan. – Por que isso? Isso seria trair a
minha mãe e a minha avó que tinham uma fé tamanha na religião católica.
— É porque elas foram abusadas pelos mitos e mentiras e nunca
conscientizadas – retorquiu Ismaël. – Se você se tornar muçulmano, você
será nosso irmão plenamente. Você vai trabalhar para restaurar nossa bela
religião, tão desacreditada, tão incompreendida, sua grandeza e sua força.
A noite toda Ivan ficou com aquelas palavras rolando e rolando em sua
cabeça. As ideias de Ismaël tinham um lado bom. Na verdade, se converter
o aproximaria de seu pai e do resto da família. Ao mesmo tempo, ele
enganaria El Cobra e outros pessimistas.
Pela manhã, sua decisão estava tomada. Se Lansana manifestou a maior
das alegrias com o anúncio – até que enfim esse garoto rebelde cedeu –
não foi o mesmo com Ivana. Quando seu irmão confessou sua intenção,
ela fez que não com a cabeça com firmeza.
— Não vou seguir com você por este caminho. Essa religião me repugna.
Olha bem o que acabou de acontecer na Nigéria: meninas levadas de suas
escolas à força e vendidas como esposas ou concubinas para homens que
elas não conheciam, os meninos massacrados.
Era a primeira vez que eles pensavam diferente. Ferido de surpresa, Ivan
explica mais a fundo seu pensamento. Se tornar muçulmano era para ele
apenas uma maneira de se integrar a uma sociedade que, na verdade, o
repelia. Tendo resolvido suas diferenças, os gêmeos se abraçaram, felizes
por compartilharem da mesma opinião.
Não tem nada mais diferente do que um batismo católico e um
muçulmano. O batismo católico é todo pompa e circunstância. Perto da
pia batismal, o recém-nascido nos braços do padrinho e da madrinha usa
um vestido de renda branca cuja cauda às vezes se assemelha à de um
vestido de noiva. Mal se consegue distinguir o padre através da nuvem de
fumaça criada por seus coroinhas em sobrepelizes vermelhas balançando
seus incensários. Em seguida, ele faz uma longa homilia na qual compara
os cristãos a soldados da fé. O batismo muçulmano pode ser resumido a
uma breve cerimônia. O imã do bairro raspa o cabelo de quem entra na
religião e lança seu nome em todas as direções. A coisa toda leva apenas
alguns minutos. Mas Lansana fez de maneira bem diferente.
Ele convidou inumeráveis Diarra para ir a Kidal. Eles foram em massa,
vestidos com suas melhores roupas. Contava-se entre os Diarra aqueles
que moravam em Villefranche-sur-Saône, onde tinham criado uma start-up
que os tinha tornado milionários. O mais observado dos presentes, no
entanto, era, sem dúvida, El Cobra, vestindo seu uniforme militar, sua
Kalashnikov chacoalhando sobre seu quadril. Ele sorria para a direita e
para a esquerda, pavoneava-se, tentava impressionar. Esse homenzinho
simbolizava toda sua duplicidade de um poder que nada sabia de sua
condenável violência, mas a usava para sua segurança. Ele estava
acompanhado de um jovem mestiço de olhos lânguidos que pareciam
maiores com kajal, como os de uma mulher, e que ele dizia ser seu filho
adotivo. As pessoas cochichavam que não era bem isso, que na verdade ele
era seu amante, a prova dos nove da realidade que ele escondia. Como
saber a verdade? De qualquer forma, ele foi muito gentil com Ivan e
Lansana, cuja música ele afirmava adorar.
No dia seguinte, quando Ivan foi à reunião do Exército das Sombras,
Ismaël passou de novo o braço por seus ombros com familiaridade e o
conduziu para dentro de seu escritório.
— Estamos muito felizes com a decisão que você tomou. Para
demonstrar sua satisfação, o comandante do Exército das Sombras te fez
uma grande homenagem. Ele te encarregou da eliminação de El Cobra.
— Eliminação? O que isso quer dizer – gaguejou Ivan apavorado.
— Isso quer dizer – explicou Ismaël – eliminação física, morte,
assassinato.
Ivan não gostava muito de El Cobra, mas assassiná-lo! Além disso, fora-
se o tempo em que o porte de uma arma o intoxicava. Como na milícia ele
manuseava Kalashnikovs e fuzis sempre, tinha medo de seu poder de
destruição. Ele murmurou, horrorizado:
— Por que você pensou em mim? Só faz alguns meses que fui recrutado
para o Exército das Sombras. Vocês não podem escolher alguém mais
antigo para essa missão, mais capaz?
Ismaël sacudiu a cabeça.
— Vou repetir, isso é uma grande honra que estamos te dando. Todos
estamos de acordo sobre a tua inteligência e bravura.
Ivan protestou em vão:
— Mas eu nunca matei ninguém.
Ismaël lhe deu um cutucão afetuoso.
— Ah bom, você vai começar, então, e vai ver que pegamos gosto pela
coisa!
Depois ele ficou sério.
— Você tem quatro semanas para agir. Você pode, é claro, se cercar de
outros recrutas do Exército das Sombras. Mas deve saber que isso precisa
permanecer secreto.
Ivan voltou para a vila tremendo, com as pernas moles. Nem em seus
piores pesadelos ele sonhara que tal situação ocorreria. Agora ele tinha
quatro semanas para matar um homem feito de carne e osso como ele.
Pensou em fugir. Mas para onde ir? Ele era prisioneiro, tão vulnerável
quanto se estivesse preso em uma cela. Passou os dias seguintes traçando
planos que lhe pareceram uns mais risíveis do que outros. Diante de sua
extrema angústia, decidiu pedir ajuda a seu amigo Birame Diallo. Se tinha
notado Birame, não foi por causa de sua constituição estonteante e seus
músculos, estatura rara para um Fulani, mas porque a cada aula, com duas
rugas na testa, ele atacava Ismaël e o outros mestres com perguntas:
— O que devemos pensar de Cristóvão Colombo? Ele também era um
desgraçado?
Ou então:
— O livro de Eric Williams, Capitalismo e escravidão, tem o lugar que
merece nos cursos escolares?
Ivan foi se sentar ao lado de Birame, durante o almoço, na cantina da
caserna Alfa Yaya e conseguiu sussurrar:
— Preciso falar com você. Mas ninguém pode ouvir. Podemos nos
encontrar a sós?
Birame tinha um ar de dúvida. Depois de um silêncio, ele disse:
— Não vejo outro lugar que não na minha casa. Minha mãe morreu no
ano passado. Meus dois irmãos mais velhos estão na França à procura de
trabalho. Eu moro sozinho com meus irmãos pequenos que nunca estão
em casa.
À noite, Ivan foi a uma casa de taipa, localizada em um bairro populoso.
Depois do chá de hortelã, ele contou seu problema. Birame escutou sem
dizer uma palavra e depois soltou o ar longamente por entre os dentes:
— Bom, aí está um rito de passagem terrível que vão te submeter.
— Ismaël não para de repetir que isso é uma grande honra – explicou
Ivan –, que o comandante militar me deu uma grande honra.
Os dois garotos deram a mesma risada sem graça. Depois Birame disse:
— Me deixa pensar. Eu procuro você quando tiver uma ideia.
Quase uma semana mais tarde e como o tempo pareceu longo demais
para Ivan, Birame o convidou novamente para ir à casa dele. Dessa vez, ele
ofereceu uma bebida de gengibre antes de tomar um ar de quem tinha
refletido.
— Se prepare para um assassinato em massa, pois El Cobra nunca se
desloca sem uma legião de guarda-costas, amigos e parentes.
— Um assassinato em massa! – se assustou Ivan. – O que quer dizer?
— Quero dizer que você vai precisar de mais gente ao teu redor. Pode
contar com a minha ajuda e a do meu irmão mais novo. Detestamos El
Cobra e seu bando. Tenho um plano para propor. El Cobra é um amante
de música techno. Todo sábado, ele vai à Ultra Vocal, uma casa de
espetáculos que se especializou nesse tipo de música. Depois de uma hora,
ele se levanta e vai dançar sozinho. Temos que esperar por esse momento.
— Não entendo nada do que está falando. O que quer dizer com
assassinato em massa?
Birame olhou em seus olhos.
— Eu quero dizer que não vai dar para atirar apenas em El Cobra, mas
também nos guarda-costas, nos parentes e nos amigos que compõem sua
corte e que o acompanham.
Ivan ficou sem voz, pasmo e assustado ao mesmo tempo. Birame
continuou suas explicações sem emoção:
— Precisamos estar encapuzados para que os sobreviventes do massacre
não nos reconheçam. Talvez tenhamos que usar um cinturão de dinamite
e nos explodirmos quando a missão terminar. Então, você sabe, iremos
direto para o Paraíso.
Ivan evitou encolher os ombros. Ele não acreditava nessa história de
Paraíso.
Duas semanas se passaram antes que ele aceitasse o plano que lhe foi
oferecido. Finalmente, decidiu agir. Birame não negligenciou nenhum
detalhe e o encontrou às 21 horas, quando o show começou. Para não
chamar atenção, estavam separados na Ultra Vocal e ficaram bastante
distantes um do outro. Não se reuniram na hora em que El Cobra foi
dançar sozinho. Então, puseram as balaclavas e atiraram, executando sua
missão de morte.
A boate Ultra Vocal fora construída nos anos 1980 por um empresário
francês, homossexual, que adorava música techno. Era uma construção
sem beleza, mas cuja acústica era perfeita. Tinha recebido grupos vindos
do mundo inteiro, mas seu maior sucesso tinha sido um conjunto japonês
que tocava canções do Ocidente e do Oriente.
Naquela noite, sábado, dia 11 de fevereiro, uma multidão enegrecia a
praça de l’Amitié, para a qual a Ultra Vocal se abria. Jovens meninas, jovens
garotos, alguns de calças curtas, pois apenas os menores de dezoito anos
gostavam de música techno em seu desejo confuso de se rebelar contra as
tradições do país. Apreciar aquela música que vinha dos Estados Unidos da
América, de Detroit, era a garantia de que eram modernos. Ninguém
lançou um olhar suspeito sequer aos quatro milicianos armados que se
misturavam aos que chegavam. Pelo contrário, a presença confortante
deles dava uma impressão de segurança. A boate se encheu rapidamente.
Às 21h10, o show começa com um pouco de atraso, pois um dos
músicos tivera uma diarreia violenta e precisou aliviar o intestino. Então,
muito fraco, foi obrigado a ir para casa e assim escapou do massacre que se
seguiu. Às 21h37 El Cobra se levantou e subiu alguns degraus que iam da
parte mais baixa até onde a plateia estava, perto do palco sobre o qual os
músicos estavam sentados. Ele começou a dançar, de olhos fechados, um
pouco pesadamente, como um pássaro sem asas. Ninguém entendeu
quando ele caiu no chão, com o crânio estourado, o sangue jorrando da
testa como um gêiser. Ninguém entendeu ainda quando a plateia
ensanguentada começou a cair a torto e a direito, enquanto os milicianos
escorados no fundo da boate descarregavam metodicamente suas armas.
Por brincadeira, os dois irmãos de Birame lançaram uma granada que
abriu um buraco monstruoso na plateia. Foi sem correr o menor risco que
os quatro milicianos se retiraram, empurrando as pesadas portas blindadas
à sua frente, despojando-se das balaclavas, atravessando o vestíbulo onde
cochilava um velho guarda que tiveram a fantasia de matar. Eles saíram e
atravessaram a praça de l’Amitié sem pressa. Foi então que o pânico
começou na boate Ultra Vocal e que os espectadores correram para fora
berrando. Era tarde demais. Os quatro milicianos só tiveram de acelerar o
passo e se refugiaram na casa de Birame, a poucos metros de distância.
Depois de algumas horas, um comunicado reivindicou o atentado. Foi
assinado com: “Exército das Sombras. Não vos deixaremos em paz
jamais.” Esse comunicado lançou o país à incompreensão e ao pânico.
Quem era esse Exército das Sombras? O que queria? Naquele momento,
parecia tudo estar indo bem. As tribos mouras que flertavam com os
terroristas acabavam de se unir ao governo. Este último havia promulgado
um código da pessoa e da família que lhe rendeu os maiores elogios do
Ocidente. O governo decretou um funeral com honra nacional para El
Cobra. Ele foi enterrado no cemitério de Rawane. Seu filho adotivo
caminhava chorando na frente do cortejo, cercado de personalidades das
mais destacadas do regime. O cortejo foi seguido por uma multidão
compacta de gente vinda de Tombuctu, de Gao, de Djenném de Ségou,
enfim, de todos os lugares do Mali. Alguns intrépidos tinham vindo a Kidal
de cavalo, no lombo de pequenos garanhões mouriscos cujos cascos
levantavam poeira, ou no lombo de camelos mais lentos. Foi uma
cerimônia bonita, sem dúvida, e El Cobra, tão desacreditado em vida, se
tornou um mito: aos dez anos ele tinha matado um leão e, tendo feito um
cinturão com sua cauda, bateu à porta da casa onde os sábios se ocupavam
do bem-estar da tribo. Aos quinze, matou um homem que tinha tentado
estuprar sua irmã e, quando o tribunal o inocentou, a multidão de seu
vilarejo o levou triunfante pelas ruas e isso e aquilo.
Quanto a Ivan, ele estava tomado de uma excitação sombria. Era como
se o sangue que ele derramara a princípio relutante de repente o inspirasse
com um surpreendente vigor. Ele estava tomado por uma transformação
que não controlava. O Corão que ele havia lido até então para adquirir
consciência voltou para assombrá-lo e ele recitava as suratas inteiras de
memória. Estava constantemente preocupado com a ideia de Deus e
caminhava com nova autoridade na vila. Confrontava o pai abertamente:
— Devemos fazer nosso mea-culpa – argumentava. – Talvez tenhamos
merecido essa tragédia.
Lansana ficava com raiva e berrava:
— O que está dizendo? Você é burro. Esse governo não é perfeito, mas
faz o seu melhor. A rebelião do norte foi acalmada. No código da família,
ele estabeleceu em duas o número de esposas que um polígamo pode ter.
O que mais ele pode fazer?
Ivan foi encontrar Ivana que, ao contrário, não parava de chorar, por
causa do atentado na Ultra Vocal ela tinha perdido duas de suas melhores
amigas. Ele lhe disse sem rodeios que ela não deveria mais usar os shorts
de linho branco que ela tanto amava e que deixavam suas pernas desnudas.
— Não usar mais short? – ela exclamou. – E por quê?
Ele tomou um ar compenetrado.
— Os shorts excitam o desejo dos homens e, portanto, a ira de Deus.
— Excitam o desejo dos homens – ela repetiu siderada – e, portanto, a
ira de Deus? Você fala como um velho devoto.
— Eu sou um jovem devoto – ele corrigiu friamente. – Não se ofenda,
mas seu comportamento deve mudar em alguns detalhes. Você não pensa
em Deus o bastante.
Ela o olhou boquiaberta.
— De que Deus você está falando? – ela replicou. – Eu não sou
muçulmana e não sigo os preceitos de Alá.
Era a segunda vez que suas opiniões divergiam. Uma fissura se
desenhava no edifício de seu belo amor, deu-se conta Ivan, apavorado.
Então, ele a agarrou e a cobriu de beijos e não disse mais nada.
Alguns dias depois, o governo nomeou o sucessor de El Cobra,
Abdouramane Sow, um homem imaculado desta vez, um ex-pacificador
que havia servido no Haiti nas forças da MINUSTAH, que já no dia
seguinte à sua nomeação reuniu os milicianos. Segundo ele, o recente
ataque fora um negócio interno. Certamente, a milícia nacional abrigava
traidores, assassinos, amigos de terroristas. O Exército das Sombras era o
núcleo da milícia. Essa lucidez surpreendeu mais de um, a começar por
Ivan.
Desde o atentado cometido, Birame e Ivan tinham se aproximado muito
um do outro. Ao meio-dia, lado a lado, almoçavam tristes na cantina da
caserna. À noite, Ivan tomava chá de hortelã, jantava na casa de Birame,
passava a noite lá, antes de se instalar completamente. Ele, que odiava o
número de parentes amontoados na casa de Lansana e a inevitável
promiscuidade que se seguia, gostou daquele lugar, três cabanas
dilapidadas e desertas, porque os irmãos mais novos de Birame, ocupados
com atividades misteriosas, drogas leves, drogas pesadas, frequentação
assídua de prostitutas no bairro do Tombo, jogos de azar, só vinham
dormir de madrugada. Ivan passava a noite na casa que tinha pertencido à
mãe de Birame. Pela janela aberta, ele vigiava as flutuações da lua. Se
deleitava com o cheiro de esterco causado pelo excremento de algumas
cabras criadas no quintal, com o cacarejar das galinhas, com um galo de
plumagem vermelha cantando no meio de três galinhas cinzentas.
Isso durou perto de duas ou três semanas, uma noite, quando ele dormia
nu, como de costume, por causa do calor, Birame entrou na casa e se
jogou sobre ele, agarrando-lhe a boca e tentou penetrá-lo. Ivan teve força
suficiente para empurrar o agressor contra a parede.
— Você está louco – ele exclamou.
Estava perplexo, pois não era inocente. Por conta de seu belo corpo, ele
frequentemente via o desejo se erguer nos olhos de outros homens e já
tinha se defendido contra seus avanços. Mas, dessa vez, não suspeitou de
nada.
Birame não se deixou esmorecer. Com o sexo ainda ereto e o peito
arfante, ele disse:
— Você não gosta de mulher, todo mundo sabe. Então, eu achei que
você fosse como eu, que amava garotos.
— Seu porco – Ivan rugiu. – Há quanto tempo você pratica esse vício?
— Não é um vício – replica Birame. – Ninguém é responsável por sua
orientação sexual. Nós nos submetemos, é assim. Há doze anos, quando
descobri que era gay, eu quis me matar. Então, um pastor do meu pai me
iniciou e eu segui a correnteza.
— Você seguiu a correnteza? – Ivan disse horrorizado com a calma do
outro.
Birame encolheu os ombros.
— Você não imagina quantos respeitáveis pais de família são na verdade
gays. El Cobra, o primeiro. Você não ouviu as histórias que circulavam
sobre ele?
Depois de tal desventura, Ivan não teve mais a menor dúvida sobre ser
amigo de Birame e sobre permanecer em sua vila. Ele voltou para a casa
de Lansana. Lá, uma multidão se apinhava nas casas de taipa. Parentes
cansados de se preocupar com terroristas tinham vindo de cidades e
vilarejos do norte onde moravam, em busca de um pouco de segurança.
Ainda assim, Ivan encontrou um lugar para colocar sua esteira perto de
um grupo de homens de cabelos brancos que se diziam seus tios. Um deles
contava sobre as últimas agressões a que tinha sido submetido:
— Foi antes do casamento da minha sobrinha Lalla Fatima com Mossoul
– ele dizia. – Vimos eles crescerem. Naquele dia, todo mundo estava
contente. Todo mundo estava cantando e dançando quando de repente
três homens armados e encapuzados invadiram o lugar. Mas dessa vez
nossos guardas souberam se defender. Eles pularam nos homens e os
derrubaram no chão. Depois disso, recolhi minha família e fugimos.
Ivan reencontra sua irmã maravilhado.
— Estou feliz – ela disse ao vê-lo – que você voltou para nós. Nosso pai é
muito autoritário, isso é um fato, mas nos ama muito e não é um homem
mau.
— Não é um homem mau – retorquiu Ivan. – No entanto, ele ofende
Deus com todas as suas ações. Ele fuma cigarros Job e joga as bitucas por
aí. Noite após noite, ele traz mulheres para cá, às vezes três meninas
jovens, ainda impúberes.
— Mas em nenhum lugar do Corão diz que um homem não pode
namorar mulheres. Do que você o culpa? É o seu emprego na milícia que
mudou seu caráter dessa maneira? Você está se radicalizando.
Ela usa essa palavra pela primeira vez. Até então, não tinha consciên­cia
da mudança que acontecia em seu irmão. De repente, ela se dá conta de
sua extensão total. Mudanças profundas ocorreram na vila. Agora Lansana
vivia abertamente com Vica, uma haitiana, cantora com uma bela voz de
contralto, que ele tinha encontrado em um concerto em Roterdã. Vica
perdera o marido e os seis filhos no último terremoto em Porto Príncipe.
Passara uma semana sob os escombros até os socorristas a retirarem de lá
sob aplausos da multidão. Desde então, colocou um pé no ocultismo e
passa a maior parte do tempo cantando canções tradicionais haitianas:
Twa fey
twa rasin
jeté blyé ranmassé songé
mwen gen basen lwa
mwen twa fey tombé ladan’n
chajé bato z’anj la.
Vica e Ivana se davam maravilhosamente bem, falavam créole e
cochichavam pequenas confidências.
Lansana também tinha metido na cabeça regulamentar a condição dos
griôs. Na verdade, como as famílias abastadas que asseguravam a sua
subsistência já não o podiam fazer, devido à insegurança que reinava no
país, muitas vezes eles se viam reduzidos à mendicância. Eles apareciam
sem serem convidados em batizados ou casamentos, cantando uma canção
de louvor em troca de um prato de fonio. Por que o Estado não lhes pagava
algum subsídio e os tornava algo como funcionários públicos, como
aconteceu na Guiné no tempo de Sékou Touré?
Essa ideia não era unanimidade. Seus críticos sustentavam que o que
tinha acontecido na Guiné aconteceria no Mali: griôs cantando a torto e a
direito pelos méritos do regime e pela grandeza dos ministros. Não se deve
esquecer que os griôs originalmente não se importavam nem com a
fortuna nem com o poder, mas com o mérito. Eles cobriam de louvor
aqueles que eram dignos disso. Todas essas objeções não impediram os
esforços de Lansana. Apesar das querelas, os griôs vindos de todos os
cantos do país correram até Lansana para conhecer seu benfeitor.
Enfim, como se essas novidades não fossem suficientes, Lansana criou
um conjunto que por provocação chamou de La Voix de Dieu, A Voz de
Deus, pois ele queria dizer a todos que a música é algo sublime que deve
ser salvaguardado a todo custo. Ivan então ficou isolado, pois sua irmã
estava monopolizada por Vica e principalmente pelo pai. À noite, munida
de um computador, ela pesquisava nomes de griôs, seus endereços, seus
instrumentos preferidos, bem como seus repertórios.
Lansana multiplicava os concertos e os encontros por todo o Mali. Foi
assim que ele decidiu ir se apresentar em Tombuctu, uma escolha que não
foi por acaso. A pérola do deserto, tão elogiada por René Caillé, durante
muitos meses foi ocupada militarmente pelos jihadistas. Eles tinham
destruído seus mausoléus e tentavam afanar os manuscritos raros
guardados nas mesquitas. Por conta da intervenção de uma potência
estrangeira, eles foram expulsos e retiraram-se para o deserto mais
próximo, mas continuaram a aterrorizar os habitantes. Ivan insistiu em
participar para não ficar mais separado da irmã. A viagem devia ser feita
em duas etapas. Uma primeira parte por estrada até Gao, pelas margens
do Niger. Depois de Gao a Tombuctu se ia pela hidrovia do Joliba.
Lansana, portanto, comprou quatro assentos no convés do Capitaine
Sangara.
— Qual é a necessidade de uma cabine? – disse de modo seco a Ivan,
como se ele estivesse reclamando. – Um lugar no convés já basta. É um
trajeto de dois ou três dias apenas.
Não fossem os sentimentos que seu pai lhe inspirava, Ivan teria achado
esta viagem pelo Joliba muito charmosa. De manhã, quando abriam os
olhos, estavam imersos em uma brancura de algodão. Nenhum ruído.
Envoltos em névoa, os pescadores Somona já estavam jogando suas redes.
O barco deslizava nas ondas e as formas maciças de animais adormecidos
podiam ser vistas nos campos. Quando o sol aparecia, imediatamente
começava sua ascensão no céu. O calor o seguia e invadia pouco a pouco a
terra, tanto que as portas das casas, até ali hermeticamente fechadas, se
abriam lentamente como grandes olhos amedrontados. As crianças
tomavam o caminho da escola, enquanto os pequeninos resfolegavam no
relativo frescor da manhã. A partir do meio-dia tudo caía numa calma e
num silêncio. Ao entardecer, cantores e músicos vinham de todos os
cantos do barco, que se tornava uma orquestra itinerante.
Assim que chegaram em Tombuctu, a noite se apressou em cair.
Grandes listras vermelhas riscavam o céu e uma sombra azulada começava
a escurecer o reboco branco das casas. Tombuctu estava sitiada, com os
jihadistas tendo feito uma ameaça clara de ataque. As ruas estavam
desertas. Apenas soldados brancos e negros circulavam a pé ou em jipes
militares. Eles paravam de modo rude os poucos passantes e pediram-lhes
seus documentos de identidade. Para a surpresa de Lansana, ninguém foi
recebê-los no cais. De todo modo, eles sabiam aonde ir. A pé, se dirigiram
para a casa de El Hadj Baba Abou, um árabe, antigo xeque da mesquita de
Sankoré. Ele teve os dois olhos furados pois se recusara a entregar aos
jihadistas os manuscritos raros que sua biblioteca guardava. Apesar dessa
deformidade, ele permanecia afável e cortês. Expressou sua preocupação
porque soube que, devido ao estado de emergência, a apresentação seria
cancelada.
— Apresentação cancelada? – exclamou Lansana. – É exatamente isso
que os jihadistas querem. Querem nos forçar a obedecer aos ditames do
Deus colérico e maligno que eles inventaram, destruindo tudo o que é
belo e bom na vida.
— O que é belo e bom na vida? – perguntou Ivan em tom sarcástico.
— Fazer música, literatura, é isso que é belo e bom – respondeu
Lansana.
El Hadj Baba Abou estendeu uma mão apaziguadora para cortar a
querela que nascia e mandou um de seus empregados buscar informações.
Esse voltou um pouco depois: a apresentação estava mesmo cancelada.
Lansana então teve um daqueles ataques de fúria que eram típicos dele e,
sem dizer uma palavra e em poucos minutos, engoliu a saborosa refeição
que o cozinheiro de El Hadj Baba Abou havia preparado. Depois, saiu
rapidamente, arrastando Vica atrás dele.
Instantes mais tarde, enquanto El Hadj Baba Abou mergulhava em sua
leitura do Corão, Ivan acompanhou sua irmã até a casa das mulheres,
onde ela deveria passar a noite.
— Que desajeitado o nosso pai! – ela disse com raiva. – Que grosseiro!
Ivana deu de ombros, indulgente.
— El Hadj Baba Abou e ele se conhecem há anos, desde que eram
estudantes. Não se meta em seus assuntos.
No entanto, a viagem teve seus encantos. Kidal não se comparava a
Tombuctu, que é um objeto literário. Ivan nunca tinha visto tal acúmulo
de mesquitas e santuários que são as obras-primas da arte africana. Ele
entrou em madraças onde jovens com gorros brancos na cabeça entoavam
versos do Corão. Seu coração saltava no peito. E se Deus realmente
existisse? E se essa vida na terra, precária e decepcionante, fosse uma
preparação para os esplendores do lado de lá? À noite, ele se perdia na
obscuridade das ruas estreitas e sinuosas. Aqui e ali algumas luzes
tremulavam. Tudo o que se ouvia era o bater dos pés dos soldados que
patrulhavam as redondezas. Aquilo não o assustava. Pelo contrário. A
cidade parecia-lhe mais protegida do que Kidal.
Todas as noites, ele saía à procura de Lansana, que desaparecia
misteriosamente com Vica, logo depois do jantar. Infelizmente, não
encontrava o pai em lugar algum. Geralmente terminava a noite no lotado
caravançará de Albaradiou, onde se podia admirar três acrobatas Fulani
fazendo travessuras.
Ciente do prejuízo que o cancelamento da apresentação tinha causado a
Lansana, o governador-geral de Tombuctu mandou que ele voltasse para
Kidal com sua família em um carro que fazia parte de sua frota pessoal:
um Mercedes 280 SL, chamativo e azul como o céu. Isso fez Ivan pensar
muito. Os governantes obtêm todas as doçuras da terra? Mulheres,
casarões, carros. Assim, El Hadj Baba Abou, um homem notável a quem
ele tanto admirava por sua postura e conhecimento das suratas, nada
possuía, enquanto esse obscuro governador-geral parecia estar rolando no
ouro. Isso reforçou sua consciência de que o mundo era malfeito, e voltou
sem entusiasmo à caserna Alfa Yaya.
Entramos agora numa parte da nossa história que não é confiável. Nós
não dispomos de nenhuma prova do que realmente se passou. Nos
apoiamos em suposições, talvez até fantasiosas.
Todas as cidades têm seu bairro de imigrantes. Quer venham do Burkina
Faso, do Benim, de Gana ou do Congo, os homens vão para o estrangeiro
em busca da mais escassa das mercadorias: o trabalho. Geralmente deixam
para trás as mulheres e os filhos. Os bairros de imigrantes são miseráveis,
malconservados, frequentemente bastante insalubres.
Os botecos, restaurantes, bares, cafés, antros de jogos de azar, chame
como quiser, abundam em todas as ruas. Kidal não foi exceção à regra
geral. Seu bairro de imigrantes chamava-se Kisimu Banco. O governo
falava repetidamente em demoli-lo, mas nunca o fez.
Porque Lansana frequentava assiduamente L’Étoile de neiges, uma
taverna mal iluminada, administrada por um mouro, El Hassan, uma
espécie de bordel onde se fazia um grande comércio de carnes femininas.
Diz-se que lá Lansana era como um peixe na água e multiplicava as
parceiras, às vezes muito jovens. Diz-se mesmo que ele se encontrava com
meninas impúberes de doze ou treze anos. Quem se ofende com esse
comportamento? O fato é que Lansana foi morto a facadas no caminho de
volta do L’Étoile de neiges. Uma briga com um adversário desconhecido
acabou em briga? Ele foi vítima de um marido ciumento ou de um pai
furioso ao ver sua filha deflorada? De um bandido, um ladrão, um
criminoso como tantos que são encontrados soltos pela noite? Em outro
ponto, as versões novamente diferem. Alguns disseram que Lansana caiu
em uma encruzilhada, outros não muito longe de sua casa. Outros ainda,
que ele foi assassinado em sua cama e que o crime foi maquiado como
suicídio.
Essa morte causou uma comoção imensa pelo país. Os griôs vinham de
todos os lugares para entoar louvores à sua família, os Diarra, que tão
brilhantemente governara Segou. Não deixaram de destacar os talentos
desse filho de origem régia que não teve vergonha de se dedicar à música.
Sua vila foi por alguns dias um coração vivo e palpitante do qual
escapavam os mais diversos sons.
A polícia conduziu bem a investigação. Prendeu todas as pessoas que
tinham intrigas com Lansana e Deus sabe que eram uma legião. Mas ela
não prendeu Ivan, que brigava com o pai por qualquer coisa, pois, no Mali,
o parricídio é desconhecido. Ensopar uma arma no sangue do próprio pai
é uma loucura que pertence apenas aos ocidentais.
Lansana tinha escondido bem seu jogo. Em uma conta na Suíça, ele
havia guardado os frutos da venda de seus discos, comercializados no
Japão, onde era muito apreciado. Então, Ivan e Ivana tiveram a mesma
ideia: trazer a mãe para perto. Com certeza seria uma agradável surpresa.
Simone nunca tinha saído das Antilhas. Por muitos meses ela viveu
separada de seus filhos. Para sua surpresa, receberam uma resposta
negativa ao convite. Surpresa! Pai Michalou e ela tinham se casado. Para
tanto, estavam ampliando e reformando a casa de Pai Michalou em Pointe
Diamant e não podiam perder tempo com uma viagem.
Ivan e Ivana receberam essa resposta como um tabefe, embora Ivana
tentasse se consolar pensando que sua mãe não envelheceria sozinha, mas
apoiada em um companheiro.
O segundo choque veio de Vica. À noite, ela se punha fora de casa,
vestida apenas com uma calcinha vermelha. Durante horas ela proferia
palavras incompreensíveis, enquanto em intervalos regulares esvaziava
pequenos copos cheios de um líquido que tirava de garrafas marcadas com
“Rhum Barbancourt”. Os esforços que faziam para levá-la de volta à sua
cama geralmente terminavam em brigas pontuadas por berros.
Finalmente, depois de duas semanas nessa função, ela se recompôs e
embarcou em um avião em Bamako com destino a Port-au-Prince.
— Essa vila cheira mal! – gritou antes de ir embora. – Toda noite vejo
Lansana que anda de um lado para o outro. Um crime foi cometido e não
sabemos quem é o culpado.
Foi só Vica virar as costas que as más línguas começaram a estalar. Ela
tinha ido se reencontrar com um homem, um homem com quem nunca
tinha rompido, e quase vinte anos mais jovem. O mesmo que veio passar o
último inverno trancado em sua cabana. Era um poeta, um certo Jean-
Jacques, apelidado de batráquio por causa de seus dois olhos grandes
como os de um sapo. Muito conhecido no Haiti, todos os dias declamava
seus textos durante horas na rádio nacional. Pouco depois de sua partida,
Ivana recebeu um pacote de Vica, uma carta cuidadosamente lacrada em
um envelope pardo. Nele tinha uma pequena coleção de poemas intitulada
Mon pays verse des larmes de sang, meu país derrama lágrimas de sangue.
Aqui está o texto da carta recebida por Ivana:
Minha querida irmãzinha,
Sinto muito a sua falta e me lembro de nossas longas conversas na minha casa
quando falávamos dos nossos sonhos. Eu já estou na minha ilha, ao mesmo tempo
monstruosa e magnífica. Nas calçadas, ao redor do Marché de Fer, telas naïfs se
amontoam. Algumas são obras geniais. Vemos loas descendo do céu em balanços
dourados. Em todos os lugares canções, música.
Mas nosso povo é pobre demais para se abrigar e ainda se abriga em tendas de
lona rasgadas. As crianças correm por toda parte, com fome, nádegas e as partes
íntimas de fora. É uma desolação que não há igual no mundo.
Envio-lhe a coleção de poemas de um jovem que é mais que meu irmão. Saboreie
cada gota desta poção mágica.
Te abraço,
Sua irmã, Vica
Infelizmente, Ivana não apreciava o que não compreendia. Por isso era
louca por René Char. Por isso também nunca abriu esse livro e Mon pays
verse des larmes de sang permaneceu intocado. Que nos seja permitido dar
nossa opinião sobre esse ponto. Ivana cometeu um grande erro ao não
folhear este livro, pois continha verdadeiras pérolas. Como o poema que
aparece na página 10. Começava com uma reminiscência do grande Aimé
Césaire: “Sangue! Sangue! Apenas sangue em minha memória. Minha
memória está repleta de sangue.” A partir do verso seguinte, porém,
afastava-se desse modelo e caía no créole: “Pigé zié, pigé zié.” Tornava-se
então uma composição digna do melhor de Sonny Rupaire, nosso poeta
nacional.
Quanto a Ivan, sua determinação de deixar a vila se fazia mais e mais
urgente. Não apenas porque ela estava superlotada, invadida por falsos
parentes, bocas inúteis e desempregados profissionais. Nem porque estava
atormentada por espíritos malignos, como afirmava Vica, mas porque ali
começavam a circular fofocas, fofocas infames. Lansana vivo, sua presença
amordaçava todas as bocas. Uma vez que estava morto, elas se abriram,
riram largo. Por qual motivo? Julguem. O que se escondia por trás daquele
menino com corpo de atleta que não fodia a torto a direito? Ele não era
conhecido por ter uma amante, enquanto na sua idade ele poderia ter sido
pai de um ou dois filhos. O que ele estava escondendo? A explicação era
óbvia, não era? Então, os jovens começaram a tirar vantagem na frente de
Ivan. Momo Diallo, o dramaturgo bem conhecido, apelidado de Tennessee
Williams, escreveu a ele propondo ser o convidado de honra da estreia da
Parada Gay de Bamako. O mais grave é que esses infames rumores
forçaram as portas da caserna de Alfa Yaya e a invadiram. Ivan se viu
enfeitado de um apelido que traduzimos muito mal: “Aquele que não sabe
usar a sua aresta.” Em vez de empunhar suas Kalashnikovs, os recrutas
começaram a se exibir. Um dia, o comandante-chefe de sua divisão o
trancou em seu escritório e se jogou em cima dele.
— Eu não gosto de homens – ele protestou, ao ponto de começar a
chorar.
— De outros! Você prefere talvez os mais jovens, menos corpulentos que
eu.
Exausto, Ivan não sabia para onde se virar. O que seria disso? Esse
pensamento não o deixava. Foi então que lhe ocorreu uma ideia, uma
ideia que poderia ter tido um homossexual que se recusasse a sair do
armário: arranjar uma mulher. Sim, ele teria que conseguir uma esposa na
frente de toda a cidade. Mas onde encontrar? Foi com desgosto que
imaginou o corpo de uma dessas mulheres encostado no dele.
Depois de dias de hesitação, ele voltou sua atenção para uma
companheira próxima de Ivana, o que talvez fosse uma forma de não se
afastar completamente de sua irmã. Aminata Traoré ainda não tinha vinte
anos. Todos a achavam linda, com um curioso nariz pequeno e reto e
olhos brilhantes. Sua personalidade, ainda em desenvolvimento devido à
sua juventude, inspirava doçura. Como Ivana, trabalhava no hospital
Soundiata Keita, e adorava os pequeninos de quem se ocupava. Seduzi-la
foi uma coisa fácil. Algumas palavras bem lapidadas. Alguns sorrisos,
alguns presentes, em particular rahat lokoum, balas de goma, que ela
adorava e que eram vendidas na cidade, no mercado negro.
Chegado o momento, o grande momento da conquista. Aminata Traoré
não morava longe da vila Diarra. Depois de tomar o chá de hortelã, Ivan
não teve nenhuma pena de se trancar com ela em seu quarto. Sem
qualquer desejo, ele se aproximou daquele corpo lindo ofertado. Primeiro,
ele teve medo de fazer uma performance ruim. Felizmente a natureza veio
em seu socorro. Ele se saiu muito bem.
— Como estou feliz – gemeu Aminata, quando o ato foi consumado. –
Nunca acreditei que pudesse um dia ser tão feliz. Faz tempo que eu te
observo, e eu não sou a única. Mas você parece fora de alcance, inacessível.
Exasperado com aquela verborragia, Ivan não encontrou nada para
responder. O que não esperava, estava cheio de vergonha e teve a
detestável sensação de ser um enganador. Rapidamente, ele se despediu e
voltou para casa.
A noite estava escura, o que se somou ao seu sentimento de ter
cometido um ato desprezível. Muito rapidamente, no entanto, a notícia de
sua relação com Aminata chegou a todos na vila.
Uma noite, Ivana adentrou a casa dele.
— Como estou feliz pelo que acabo de saber – ela exclamou. – Parece
então que você quer se casar com a minha amiga Aminata Traoré?
— Me casar? – rosnou Ivan. – Isso é dizer demais.
— Quais são as suas intenções? – Ivana perguntou com seriedade. – Ela é
jovem, é pura, merece que você a faça esposa.
Aquela insistência não era completamente inocente. Ao saber sobre o
caso do irmão, Ivana tinha chorado muito. Seu irmão, que ela acreditava
ser dela desde o nascimento. Seu irmão, a quem alguns chamavam de seu
amante. Pois ela se censurou por esse ciúme que estava fora de lugar. Seu
irmão não era sua propriedade.
— Eu não vou lhe esconder nada – Ivan explicou a ela. – Os homens
provam certos desejos que são desconhecidos para as mulheres.
Então, ele abraçou apertado a irmã com uma paixão que se distanciava
dos toques sem prazer que teve com Aminata. O espaço em seu peito foi
escavado para que ela aconchegasse a cabeça. As pernas dela foram feitas
para se moldar ao longo das dele. Seu sexo, ah, seu sexo, Ivan não ousava
pensar naquilo. A mãe e a irmã mais nova de Aminata se mudaram para
Deus sabe onde, e Ivan logo foi morar com ela. Viver em sua companhia
não carecia de aspectos positivos. Ela fazia luzir e reluzir os botões de seu
uniforme da milícia. Ela lhe fazia grandes boubous para que ele pudesse
relaxar no caminho de volta da caserna. Ela encerava e engraxava seus
sapatos, sem deixar de preparar seus chinelos para que ele repousasse os
pés. Todas essas atenções, no entanto, eram irritantes. Era para isso que
uma mulher servia? Por comparação, pensava na irmã, independente,
mimada pela mãe e que não podia fazer nada com seus dez dedos. Mas
tinha lido André Breton, Paul Éluard, René Char e era uma pessoa culta.
Ivan se entediava com Aminata. Terminada a refeição, ele lia seu Corão,
anotando as passagens mais difíceis para pedir explicações a Ismaël, seu
chefe no Exército das Sombras. Durante esse tempo, Aminata via
programas idiotas na televisão, hábito do qual ele não se preocupou de
curá-la, pois ao menos, naqueles momentos, ela se calava. Uma noite, ela
se aproximou dele com uma expressão vitoriosa que o fez temer o pior.
Ela se ajoelhou aos seus pés.
— Tenho uma grande e bela surpresa para lhe fazer – disse. – O Senhor
abençoou nossa união. Estou grávida de um filho seu.
Grávida! Já! Pensou Ivan horrorizado. Não faz nem três meses que
viviam juntos. Ela continuou, sem perceber como suas palavras ecoavam
nele:
— Tata Rachida me palpou o ventre e ela acha que é um menino. Que
orgulho!
No dia seguinte, na caserna, Ivan, mal recuperado de suas emoções,
voltava do exercício quando foi informado de que uma visita o esperava.
Era Ivana, toda animada.
— Ela está grávida – exclamou. – Você tem que se casar.
— Por quê? – ele retorquiu calmamente. – Lansana por acaso se casou
com nossa mãe quando ela estava grávida? Maeva, nossa avó, por acaso era
casada? Eu não seria o primeiro homem a ser pai de um bastardo.
Foi então que Ivana entrou em um violento estado de cólera ao qual
Ivan não pôde resistir e seu casamento foi decidido. As informações nos
permitem afirmar que a raiva de Ivana era falsa. Graças às reclamações
lacrimosas da inocente Aminata, Ivana não ignorava o comportamento do
irmão: um amante relutante, pouco inclinado a carícias, preferindo dormir
de boca aberta a se interessar pelo corpo nu contra o seu.
— Ele me dá as costas na cama. – reclamava Aminata. – Ele me dá as
costas e eu tenho que dormir ao lado dessa montanha de indiferença.
Ivana sabia que seu império estava intacto. Essa reencenação foi apenas
um pretexto para esconder uma paixão que nada podia abalar.
O casamento de Ivan superou em pompa a celebração de seu batismo.
Não foi apenas dos quatro cantos do país que os Diarra, os Traoré,
parentes e amigos vieram, mas de todos os cantos da Terra por onde
estavam dispersos para encontrar subsistência. Todos lamentavam a
ausência de Lansana. Como ele teria ficado feliz e orgulhoso de ver seu
filho se casar, criar raízes em solo maliano. Ele estava de volta à sua fonte.
Enfim, a convidada mais colorida foi uma irmã, uma prima, uma tia de
Aminata, não se sabe como chamar, Aïssata Traoré, que dava aulas na
Universidade McGill, no Canadá. Ela tivera que sair rapidamente do Mali,
depois da publicação de seu primeiro livro, L’Afrique à l’encan, a África em
leilão, e desde então publicava regularmente discursos políticos nos quais
criticava a África em geral. Era uma mulher bela e forte. Diziam que ela
vivia com um canadense, mas ela tomou o cuidado de não o levar com ela.
Aqueles que cruzaram com ela pelas ruas a seguiam longamente com os
olhos, intrigados com suas vestimentas estranhas: uma calça saruel com
fundilhos largos, roupa tradicionalmente reservada aos homens, e uma
túnica de corte militar. Aïssata tinha uma conta no Brelan d’as, um bar no
centro da cidade, onde dezenas de jovens matavam as aulas da escola
superior, se amontoando para ouvi-la. Pela primeira vez, Ivan sentiu uma
atração que não pôde dominar por uma mulher. Ele gostava do formato
de seu rosto, suas formas ao mesmo tempo delgadas e harmoniosas e,
principalmente, de seu jeito mordaz e zombeteiro. Ao anoitecer, ao levá-la
para casa, imaginou que poderia passar a noite com ela para conversar ou
acariciá-la, não sabia o que queria. Não ficou surpreso quando Ismaël o
instruiu a enviar-lhe um convite para vir e dar uma palestra para o
Exército das Sombras. A princípio, Aïssata fez a difícil e só concordou no
último minuto, um dia antes de voltar ao Canadá.
Quando chegou no lugar do Exército das Sombras, o pátio estava cheio
de gente. Cadeiras e bancos tinham sido colocados ali. Os professores
todos sentados sobre um estrado em torno de Aïssata. Ela começou a falar
com sua voz alegre e seu sotaque estrangeiro:
— Não estou tentando me desculpar – ela disse ao seu público –, mas
compreender. O jihadismo é o resultado de séculos de opressão e exclusão.
Ele não nasceu com a guerra do Golfo, e os Bush, pai e filho, são apenas
marionetes. Ele se enraíza na colonização e talvez até antes dela.
De repente ela levantou um punho de vingança.
— Mas os jihadistas só sabem matar e matar. A morte não é a resposta. É
preciso que nos engajemos em uma nova forma de diálogo entre os povos,
que não existam mais dominantes e dominados.
Ao escutá-la, o corpo inteiro de Ivan começou a tremer. Saberia ela onde
estava? Conhecia a verdadeira natureza daqueles que a cercavam? Bastava
que Ismaël desse um sinal aos inúmeros portadores de Kalashnikovs que
passeavam livremente para que ela fosse abatida.
No entanto, a coisa se passou sem incidentes e terminou com uma
ovação em pé. Depois, Ismaël e alguns membros da sua equipe levaram
Aïssata até La Criée, um restaurante de peixes, administrado por um
marselhês, que se gabava de seus cinquenta anos de África e que não se
incomodava com os muitos atentados. Comeram ostras que chegavam por
cargo expresso e se encheram de bebidas de gengibre, pois a maioria das
pessoas presentes eram muçulmanas e não tocavam em álcool.
Nas primeiras horas da manhã, Ismaël pede a Ivan que acompanhe
Aïssata.
— Cuide dela – ele sorri. – Você sabe que a essa hora tudo pode
acontecer.
De fato, as ruas de Kidal eram da cor de nanquim. Postes de luz
plantados irregularmente iluminavam alguns quadrados de calçada. Além
disso, uma sombra densa reinava. Com o coração batendo forte, Ivan
pegou o braço de Aïssata e o trajeto transcorreu sem problemas. Quando
estava se dirigindo para o quarto, ela pegou a mão dele e puxou-o para si,
sussurrando:
— Você deseja tanto quanto eu. Por que nos privarmos disso?
Na manhã seguinte, Ivan acordou sozinho na cama, meio coberto por
um lençol amassado. Tentou se levantar, mas suas pernas estavam bambas.
Por que estavam frouxas? Era como se um incêndio se alastrasse dentro
dele e lhe tirasse todas as forças. Conseguiu entrar na sala ao lado onde,
chorando, Aminata abraçava Aïssata, estritamente vestida com um tailleur
azul-marinho e casaco pendurado no braço, enquanto o guarda colocava
sua bagagem em um táxi. Ivan não entendia nada do que se passava dentro
dele. Tinha sonhado com a febre e a paixão da noite que acabara de
terminar? Como ele tinha voltado para dormir junto de sua mulher?
Durante esse tempo Aminata e Aïssata se abraçavam carinhosamente.
Quando Aïssata entrou no táxi, Aminata começou a chorar.
— Ela não ficou tempo suficiente – choramingou.
Ivan não soube o que responder. Sim, ele tinha sonhado? A partir dali,
todas as manhãs, ele começou a vigiar a bicicleta do carteiro, esperando
uma carta de Aïssata, mas ela nunca lhe deu um sinal de vida. Ele chegou a
comprar seu último livro Le Viol d'un continent, o estupro de um
continente, mas não conseguiu lê-lo além da página 10.
Pouco a pouco, ele caiu na rotina do tédio. Aminata não tinha mais
cabeça para fazer amor, para implorar pelas carícias que lhe eram
dispensadas com parcimônia. Ela só estava preocupada com o que
acontecia dentro de seu corpo, passeando a mão de seu marido sobre a
barriga para que ele pudesse acompanhar as travessuras de seu feto.
— É um menino – ela dizia. – Olha a forma da minha barriga. E depois,
o doutor confirmou na última ecografia. Vamos chamá-lo de Fadel. É um
nome de que sempre gostei. É o de um menininho que foi transformado
em pássaro pelo mágico Soumahoro Kanté. Ele conseguiu escapar da
gaiola onde ele o havia trancado. Você conhece esse conto?
Ivan, ouvindo essa história pela centésima vez, balançou a cabeça em
negativa. Às vezes, ele se pegava chorando sem entender por quê.
O que poderia tê-lo consolado era a presença de sua irmã, se jogando em
seus braços para receber seus carinhos. Mas Ivana estava invisível.
Cortejada por uma meia dúzia de apaixonados, ela passava a maior parte
de seu tempo se defendendo das investidas. Enfim, para Ivan, a vida não
tinha mais sabor. Foi então que um evento inesperado e de extrema
gravidade ocorreu.
Uma manhã os milicianos foram convocados em uma das salas da
caserna de Alfa Yaya. Aqueles que tinham que ir se exercitar não foram.
Desde o dia anterior, os militares da reserva foram chamados e aqueles
que patrulhavam o Norte em busca de terroristas foram trazidos de volta à
cidade em caminhões cheios. Ao final da manhã, perante toda a assembleia
de oficiais e em traje de gala, Abdouramane Sow falou em tom solene. A
perícia balística realizada na Alemanha deu seus resultados. Hoje tivemos a
prova de que os assassinos de El Cobra, os perpetradores do massacre da
casa de espetáculos Ultra Vocal, não eram jihadistas, mas milicianos.
— Foram quatro – afirmou. – Dois armados com Kalashnikovs cujos
números temos, outros dois armados com Lugers, que devem ter obtido
de um traficante de armas. Logo saberemos o nome de todos os crápulas,
nós vamos prendê-los e vamos infligir o castigo que merecem.
Ivan conseguiu voltar para casa onde, graças à televisão ligada o dia
todo, graças a Djenaba, a criada, ele soube que um toque de recolher havia
sido decretado. Toque de recolher! Isso significava que ninguém devia se
aventurar fora de casa depois das 22 horas e que, a partir das 20 horas, um
controle de identificação seria efetuado. Aminata não estava lá para
discutir sobre esse terrível evento. Ela estava, sem dúvida, ocupada em
falar com uma de suas amigas sobre o conteúdo de sua barriga.
Quem nunca experimentou um grande medo não sabe como o ser
humano se comporta nesses momentos. O sangue fica mais vivo, mais
alerta e circula melhor. O cérebro é percorrido por decisões rápidas cujos
prós e contras ele pesa num piscar de olhos. Em uma palavra, a
inteligência fica aguçada. Ivan de repente entendeu que um perigo terrível
o ameaçava e que ele deveria fugir o mais rápido possível. Sair da cidade.
Sair do país. Ele escreveu uma carta com a intenção de que apenas uma
pessoa lhe pusesse os olhos, Ivana, e explicou rapidamente seu plano. Não
vai partir nem em direção à fronteira norte, nem em direção ao leste, nem
ao oeste, crivado de patrulhas de milicianos. Preferiria pegar a rota do sul e
seguir em direção a Gao, de onde seria muito fácil para ele chegar a
Niamey, no Níger. Chegando lá, com seu passaporte de cidadão francês em
dia, ele não teria nenhuma dificuldade em pegar um avião para a França.
Quando
estivesse instalado em Paris, mandaria buscá-la. Quando terminou de
redigir a carta, um pensamento atravessou sua mente. Ele precisaria de
dinheiro? Ele sabia que Aminata, desconfiada dos bancos, sabe-se lá o
porquê, guardava dinheiro na cômoda do quarto. Correu até lá. Depois de
esvaziar algumas gavetas, pôs as mãos no tesouro e o embolsou sem
remorsos. Por precaução, decidiu não ficar mais em casa. Correu para a
casa de Cheikh Anta Diop, para onde iam sem-teto de todos os tipos. Uma
jovem usando um cachecol grosso no estilo jihadista segurava o registro de
acolhimento. Ela o examinou da cabeça aos pés.
— Você é um sem-teto? – disse a ele zombando.
Ivan na hora inventa uma história mirabolante: tinha brigado com a
mulher e não queria passar a noite sob o mesmo teto. A garota deu de
ombros para dizer que não acreditava em uma palavra sequer daquela
narrativa, mas lhe indicou um dormitório superlotado.
Durante a noite, ele não conseguiu pregar os olhos, incomodado com as
conversas e as idas e vindas daqueles que queriam encontrar o sono. Pela
janela aberta chegavam miados de gatos que brigavam por uma presa ou
por um território, e o barulho da enxurrada de ratos que se seguiam.
Às 5 horas da manhã, chegou à rodoviária. Infelizmente, todos os carros
que iam para Gao já tinham partido e ele teve que recorrer a um ônibus
que servia as localidades vizinhas. Desejava ir a El Markham, uma pequena
cidade localizada a cinco quilômetros de Gao, explicou ao motorista, um
grandalhão desajeitado que estava palitando e escovando os dentes. Ivan se
sentou na última fileira do veículo e enrolou um lenço em volta do rosto
para esconder suas feições. Só chegaram em El Markham ao anoitecer.
Se Ivan estivesse com outro estado de espírito, ele certamente teria
notado o esplendor das paisagens. Ao redor de Kidal ficam as marchas do
deserto. A areia é rainha. Parece um gato selvagem, ocre ou lilás conforme
a imaginação do sol plantado reto no céu como um olho bem aberto que
não pisca. Pouco a pouco a pedra reaparece e são falésias cortantes e
pontiagudas que brotam. Eles pararam para comer em uma pousada
administrada por um casal de italianos. O cardápio consistia em uma
saborosa sopa de legumes, frango e polenta. Ivan teria gostado de ficar
conversando com seus donos sorridentes e joviais, para compreender por
que dois ocidentais deixaram para trás os esplendores do Capitólio e da
Torre de Pisa para virem se enfiar ali.
Além do brilho do rio que se estende até onde a vista alcança, a aldeia de
El Markham não valia muito a pena: duas ou três ruas que se cruzavam em
ângulos retos, ladeadas por chapas de metal ou cabanas de barro. Suas ruas
fervilhavam de vida, cheias de homens de todas as idades, inclusive
contrabandistas, reconhecidos por seus olhares, trafegando em barulhentas
motos.
Ivan tremia dentro de sua camisa de algodão, pois a noite estava fria.
Para se aquecer, foi ao La Bonne Table, um restaurante apertado, sujo e
pouco convidativo como todo o resto do lugar. Em um canto, uma
televisão microscópica estalava. Depois de alguns minutos, um jovem veio,
se sentou à sua mesa e falou com ele.
— Desculpe-me – respondeu Ivan. – Mas eu não falo a língua.
— É bambara, irmão mais velho – se surpreendeu o jovem. – Você é
então um estrangeiro? De onde você vem?
Essa pergunta inocente trouxe de volta à memória de Ivan os anos que
ele vivera em Guadalupe. Ele se esquece de todas as sombras e elas se
adornaram de nostalgia. Naquele tempo, parecia que era feliz e sem
preocupações. Pensou sobretudo em sua mãe.
— Não me chame de irmão mais velho – respondeu secamente ao
menino, pois sua vida na vila de Lansana o fez não gostar dessa expressão.
– Saiba que venho de muito longe, do outro lado do mundo. E você? Você
é de Markham?
Em vez de responder, o jovem apontou a mala pousada ao seu lado.
— É a sua mala? – ele perguntou. – Está fechada com chave? Você
carrega a chave em um lugar seguro? No pescoço, por exemplo?
— Por que está me perguntando todas essas coisas – Ivan disse irritado.
— É que El Markham é um lugar perigoso. Só tem ladrões, golpistas e
bandidos. Eu sei do que estou falando. Me chamo Rahiri. Eu e meu irmão
temos um jipe e transportamos viajantes há cinco anos. Conhecemos
todos os postos de fronteira e todos os aduaneiros.
— Vocês têm um jipe? – Ivan o interrompeu subitamente interessado. –
Poderiam me levar a Niamey ou mesmo até Gao? Meu passaporte está em
dia. Estou em busca de um aeroporto de onde poderei pegar um voo para
a Europa.
O jovem fez um bico.
— Niamey é muito perigoso, tem policiais demais lá – ele disse. –
Podemos pensar em tudo isso quando o meu irmão voltar, pois é ele quem
decide.
Quando terminavam a refeição, um ensopado de carneiro, um homem
entrou: grande, gordo, careca, com roupas justas demais. Rahiri se
levantou apressado e correu em sua direção.
— Aí está Ousmane – exclamou. – Meu irmão mais velho. Fez boa
viagem?
Sem responder, Ousmane estendeu uma mão mole para Ivan e sentou-se
à mesa. Rahiri explicou a discussão. Por sua vez, Ousmane sacudiu a
cabeça fazendo uma careta negativa.
— Niamey é muito perigosa – repetiu. – Mas vamos conversar sobre isso
amanhã. Acabo de fazer 500 quilômetros. Estou morto de cansado. Vamos
descansar.
Os três homens saíram na noite aclarada apenas por uma lua crescente.
Desceram a rua principal até um tipo de praça, onde passaram por
homens que ali jaziam deitados sobre os bancos, esteiras ou até no chão de
pedras.
Chegaram em frente a uma casa cuja placa dizia “Quartos para alugar”,
Ousmane tirou uma chave do bolso e eles entraram: três quartos de uma
sujeira repugnante, um banheiro com uma fossa cavada no meio, ao estilo
turco. Um cheiro forte de urina e de excrementos tomou Ivan de assalto.
No entanto, disse a si mesmo que, naquelas circunstâncias, não poderia ser
muito difícil. Então, foi para um dos quartos e, sem reclamar, se deitou no
colchão de ar que Rahiri apontou para ele. Apesar do mau cheiro e dos
mosquitos, adormeceu imediatamente.
Dormiu durante uma ou duas horas quando ouviu a porta ranger um
pouco. Uma mulher entrou vestida com uma pesada burca azul-marinho.
Ela se sentou ao lado de Ivan e com um humor alegre, lhe pareceu,
começou a morder sua orelha. Depois desceu até sua boca e lhe deu
muitos beijos. Ivan ficou surpreso com aquela audácia. Mas estava cansado
demais para resistir.
— Tire essa roupa – ele disse. – É ridícula.
Ela lhe obedeceu, retirando o pesado véu azul que a envolvia, e ele se viu
abraçado a um esqueleto. Apavorado, correu para o interruptor. A peça
sórdida estava vazia. Fora um sonho. Um pesadelo.
Quando despertou pela segunda vez, feixes de luz cercavam a janela. Ele
chamou seus companheiros, mas eles não responderam. A casa estava
deserta. Rahiri e Ousmane tinham desaparecido. Sua mala também, ele
percebeu. Correu para fora. Naquele momento, o céu estava azulado. Os
homens que dormiam na praça tinham enrolado suas esteiras e lavavam o
rosto no chafariz público. Um entre eles, com as bochechas cobertas de
espuma de sabão, se barbeava assoviando. Nada de Rahiri. Nada de
Ousmane. Como um idiota, Ivan correu para o La Bonne Table, onde
havia jantado no dia anterior. O restaurante estava fechado. Ele deu chutes
furiosos na grade de ferro que estava trancada, mas ninguém respondeu ao
barulho. Ainda nada de Rahiri ou Ousmane. Ivan pegou a direção oposta
do caminho que acabara de percorrer, aventurando-se nas ruas vizinhas,
uma das quais se chamava zombeteiramente Rua Générale de Gaulle.
Depois de um tempo teve que se resignar: tinha se comportado como um
ingênuo. Se deixou levar como um bobo. Os dois homens o tinham
roubado.
O que se faz quando nos encontramos sem documentos, sem dinheiro,
sem amigos a quilômetros da nossa casa? A gente chora. Só podemos
chorar. Sentado em um banco público, Ivan não sabia que seu corpo
continha tantas lágrimas.
Aos poucos, no entanto, um pouco de coragem voltou ao seu coração.
Antes de se considerar derrotado, ainda precisava tentar agir. Rahiri e
Ousmane não haviam desaparecido. Eles deviam ter deixado rastros.
Alguém os conhecia por aqui. Na noite anterior, durante o jantar, o
garçom havia falado com eles como se fossem clientes costumeiros.
Decididamente, Ivan se levantou e voltou ao La Bonne Table. Ao se
aproximar, um homem, um homem branco, aproximou-se dele, parou ao
vê-lo com um ar perplexo e agarrou seu braço, sussurrando:
— Não fique aqui, venha comigo.
Ivan tenta se desvencilhar.
— Você está louco! Me deixa!
O homem olha para a esquerda e para a direita e, baixando a voz,
pergunta:
— Você é Ivan Némélé? Acabo de ver você na televisão. Sua cabeça está a
prêmio.
— O quê?! – grita Ivan, recuperando imediatamente o uso de suas
pernas.
Se pôs a correr de mãos dadas com aquele desconhecido.
Os dois homens entraram em um jipe escangalhado, estacionado ali
perto.
O homem branco era magro, até ascético, o rosto emaciado e os olhos
de um azul vivo. Seus cabelos de longos cachos grisalhos se encaracolavam
até seus ombros. Era um verdadeiro Jesus Cristo! Fez rugir o motor de seu
carro quando deu a partida como se estivesse num carro de corrida.
Depois de uns minutos, estendeu a mão para Ivan.
— Sou Alix Alonso – se apresentou. – Parece que você é o responsável
pelo atentado que levou Boris Kanté, dito El Cobra, à morte.
Fora do carro, o cenário era de cartão-postal: céu azul onde o sol ia
lentamente tomando seu lugar, rio cintilante sem ondulações, falésias de
pedra avermelhada. Dentro, uma conversa febril entre dois homens muito
agitados.
— Eu? – exclamou Ivan. – Nunca. Não cometi esse crime!
Ele sabia que de fato se devia sempre clamar pela inocência, até nas
piores circunstâncias.
— Você vai estar seguro com a gente – disse Alix Alonso. – Eu moro
sozinho com a minha mulher e nós nunca recebemos ninguém.
Durante 10 quilômetros, o carro costeou o rio. Subitamente, ele deu as
costas ao rio, virou à esquerda e pegou um caminho pedregoso e
esburacado. Eles passam por baixo de um arco sobre o qual estão escritas
as seguintes palavras: “The Last Resort”. Ivan tentou recorrer às suas
memórias do colégio, mas não entendeu o que elas significavam.
Numa curva apareceu uma casa de pedra, espaçosa, mas sem beleza,
rodeada por uma grande varanda, abrigada por guarda-sóis de listras
amarelas. Uma mulher estava ali, meio reclinada em uma poltrona, as
costas repousando em uma pilha de almofadas. Os pés estavam envoltos
em chinelos de lã azul-marinho sem sola como se não os estivesse usando.
Alix explicou a Ivan:
— É a minha mulher, Cristina. Ela não pode se locomover.
Cristina tinha os mesmos olhos azuis que o marido, e seu sorriso era de
uma graça singular. Suas feições foram se desfazendo conforme o marido
explicava a ela as circunstâncias em que ele conhecera Ivan e quem ele era.
— Você não precisa temer nada conosco – ela garantiu por sua vez. –
Alix deve ter dito: não recebemos ninguém.
Naquele momento, Alix pega no braço de Ivan com familiaridade e o
conduz para dentro. Ao mobiliário básico não faltava charme. Alix, à
frente de Ivan, abriu a porta de um quarto confortável com vista para um
jardim.
— Aqui você está em casa – ele repetiu com um grande sorriso.
Ivan descobriu com muito espanto que Alix e Cristina raramente saíam
de The Last Resort. Eles não tinham amigos, nem empregados
trabalhando para eles. Para distrair Cristina, Alix tinha uma televisão
gigantesca e das mais sofisticadas, em que se podia assistir aos canais mais
improváveis, por exemplo, o de Wallis e Futuna. Assistiam a reuniões
intermináveis nas quais o rei condecorava alguns de seus súditos. Foi assim
que Ivan foi informado sobre o tsunami que varreu Kidal depois de sua
partida. Birame e seus dois irmãos mais novos foram presos em Djenné,
onde se refugiavam na casa de um parente. Curiosamente, Ismaël não fora
interrogado. Nem qualquer membro do Exército das Sombras. O que
rasgou e fez sangrar seu coração, é que depois de sua partida Ivana e
Aminata foram presas. Ele não sabia que elas não tinham permanecido
muito tempo detidas, porque ambas tinham álibis incontestáveis. Na noite
do atentado que ceifou a vida de El Cobra, as enfermeiras do hospital
Soundjata Keita juraram que estavam dando mingau aos pequenos antes
de colocá-los na cama. As más línguas cochichavam outra história
completamente diferente: afirmavam que a Abdourhamane Sow estava
apaixonado pela bela Ivana, que ele gostaria de tomar como segunda
esposa e rapidamente a libertou com a cunhada.
— Deixe esse tumulto para lá – aconselhou Alix a Ivan. – Quando as
coisas se acalmarem, eu mesmo irei procurar sua irmã em Kidal. Trago ela
aqui. Então vocês dois pegarão o avião para Niamey, que fica a apenas
quinhentos quilômetros de distância, mais ou menos.
— Você está esquecendo que eu não tenho passaporte! – reclamou Ivan.
Alix disse zombeteiro:
— Eu arranjo um pra você – prometeu. – O que você prefere? Líbio,
libanês, sírio, não tem nada mais florescente que a indústria de passaportes
falsos neste país.
Cristina apertava a mão de Ivan e perguntava com doçura:
— Ivana é sua irmã gêmea, não é? Como eu sou gêmea de Alix.
Ivan tinha apenas um arrependimento. O de não ter feito amor com
Ivana antes de ser separado dela! Todos aqueles anos de paixões platônicas
foram absurdos! Quando ele a encontrasse, ele se vingaria! Ele a faria
gritar e berrar e se contorcer debaixo dele! Mas será que a veria
novamente um dia? Talvez tenha sido punido por causa de sua falta real ou
imaginária com Aïssata. Às vezes, ele chorava amargamente.
Alix Alonso e Cristina Serfati se conheciam desde o berço porque eram
filhos rejeitados de duas famílias de acrobatas que se apresentavam no
circo La Septième Merveille, o circo da sétima maravilha. Tinham nascido
no mesmo dia do mesmo ano, o que os autorizava a pensar que não eram
simplesmente feitos um para o outro, mas que eram também uma só
pessoa. Aos dezoito anos, se casaram, sem poder mais adiar a fusão de seus
seres.
O La Septième Merveille foi criado em Bordeaux, em 1758, por Thibault
de Poyen. Sabemos que ele era mestiço, filho de uma mulher que devia ser
da Nigéria, e de Aymery de Poyen, um francês que caçava escravos na
África. O pequeno Thibault foi levado para a França ainda muito jovem e
temos todas as cartas que sua mãe, Ekanem Bassey, escreveu para se
inteirar de sua condição. No entanto, não sabemos as razões que poderiam
explicar o nascimento desse circo. Talvez tenha sido a nostalgia de
Thibault, seu arrependimento a respeito de sua mãe ou de sua terra
perdida que o levou, quando atingiu a maioridade, a colecionar animais
selvagens, domadores, acrobatas e dançarinas de todos os tipos. Ainda
assim, o La Septième Merveille se tornava cada vez mais popular. No
verão, ele divertia as crianças do sul da França. No inverno, viajava para as
regiões de língua francesa da África. Os dois países em que teve mais
sucesso foram a Argélia e o Mali, onde montava as suas coloridas tendas
perto de Bamako.
Infelizmente, a colonização que destrói todas as coisas o matou como
matou o resto, enquanto o gosto pelo circo diminuía e desaparecia no
mundo.
Quando La Septième Merveille fechou definitivamente suas portas em
1995, Alix e Cristina não tiveram qualquer dificuldade de serem chamados
pelo circo Barnum, nos Estados Unidos da América. Infelizmente, na
véspera de sua partida, na festa de despedida, Cristina, que executava um
número acrobático, teve um terrível acidente. Ela sobreviveu, mas ficou
paraplégica. Alix e ela venderam tudo o que tinham na França e decidiram
se refugiar no Mali, que tinham conhecido quando crianças com os pais.
Seus primeiros anos não foram um mar de rosas. Não gostavam da
cidade onde viviam, uma mistura de tradições sustentadas e os excessos
nascidos da sociedade de consumo. Além disso, Alix estava exausto,
dividido entre o trabalho numa fábrica de cosméticos gerida por alemães e
os cuidados constantes que dispensava a Cristina, de quem não deixava
ninguém se aproximar. Depois de alguns anos teve um golpe de sorte,
aconteceu. Ele descobriu uma fórmula original para fazer manteiga de
karité e a vendeu para seus patrões a preço de ouro. Então, com sua
mulher, comprou um pedaço do deserto e o transformou em oásis. Com
muito amor, Alix conseguiu devolver a Cristina um pouco do uso de seus
braços, mas isso foi tudo.
Ivan nunca foi próximo de pessoas brancas. Era uma espécie que ele
observava de longe, em Guadalupe. Certamente ele não sentia nenhuma
agressividade contra eles. Porque, apesar das lições do sr. Jérémie, para ele
a colonização permaneceu uma noção abstrata. Então parecia-lhe que as
pessoas da mesma cor foram mais os arquitetos de seu infortúnio. Os
brancos eram simplesmente seres misteriosos que falavam francês com
um sotaque estranho. Ávidos pelo sol, o sol que tanto faz mal, lotavam as
praias a qualquer hora do dia e se enfileiravam nas calçadas para assistir
aos desfiles carnavalescos. Pela primeira vez ele se viu na intimidade de um
casal de brancos.
Primeiro, Cristina se sentia desconfortável com ele. Ela tremia ao ouvir o
som de sua voz, de suas raras gargalhadas. Uma vez por semana, quando
Alix ia a El Markham para renovar as provisões, ela não gostava de ficar
sozinha com ele. Aos poucos, porém, esse gelo derreteu e ela se tornou
mais acolhedora. Ivan ficou surpreso ao achá-la bela, com sua tez leitosa,
sua magreza extrema e seus cabelos, que nem um fio branco ousava
perturbar, um tom castanho que caía sobre seus ombros.
Sem compartilhar com Alix a intimidade de seus cuidados, ele começou
a fazê-la comer e beber como um bebê. Ele descascava suas frutas.
Empurrava sua poltrona até a galeria e descia ao jardim para lhe mostrar
as flores que acabavam de desabrochar. Na hora da sesta, redescobrindo
sem saber os gestos de seus ancestrais, ele a abanava para que não sentisse
muito calor. Seus sentimentos por Cristina eram um misto de ternura e
compaixão, ah, como ela tinha sofrido! E de desejo, sim de desejo, quando
revelava partes aveludadas de sua pele.
Ele folheava com ela álbuns de fotografias que tinham imagens de
quando ela era acrobata, seu corpo magnífico realçado por um maiô preto.
— Não sei dizer o que sentia – dizia ela – quando estava lá em cima
pendurada, o salão do circo brilhando de luzes aos meus pés. Imagino que
seja isso que se experimenta no momento da morte: o espírito voa para
longe e abandona o corpo, um invólucro grosseiro e desajeitado. Eu me
sentia como uma divindade.
É pouco dizer que Alix e Cristina se adoravam. Eles eram um pelo outro.
Eram irmão e irmã, pai e filha e amantes, consumando essa fusão
profunda que Ivan tinha sonhado ter com Ivana.
Uma tarde que tomavam a fresca na varanda, Cristina disse a ele:
— Você é o filho que eu e Alix não pudemos ter. Você é tudo aquilo que
nos faltava.
Ele deu uma gargalhada.
— Seu filho? Eu, um negro? Vocês dois, brancos.
Ela o olha bem dentro dos olhos.
— Negro, branco! O que isso quer dizer? São palavras que dividem, que
o ser humano inventou para se fazer mal. A cor não existe. Eu vou repetir,
você é nosso filho, e isso é tudo.
A noite se lançou vorazmente sobre The Last Resort. Era todo dia o
mesmo drama. O sol, mortalmente ferido, corria para se refugiar em um
cantinho da abóbada celeste, não sem ter espalhado longas linhas
escarlates. Sua rival, a lua, não conseguia substituí-lo. Ela inflava e inflava
bem. Mas terminava sempre por desaparecer. Assim a escuridão se
instalava.
Com frequência, Cristina pedia para passear ao longo do rio que corria
não muito longe dali. Ela observava seus redemoinhos, certa de que eram
causados pelas batalhas dos grandes peixes-boi vindos das águas frias do
Norte, e ficava horas os observando. Alix tinha muita dificuldade em levá-
la para casa, ele que não gostava da opacidade impenetrável que se
espalhava por toda parte. Geralmente, em casa, antes de se separar, o trio
bebia uma xícara de uma perfumada infusão de tamarindo que Alix
preparava. Então Cristina e ele davam um beijo na testa de Ivan e se
dirigiam para o quarto deles. Depois, Ivan voltava para o seu quarto pelas
marquises.
Uma noite tudo mudou. Alix empurrou sua xícara ainda pela metade.
— Vamos parar de fingir – ele afirmou. – Ivan, você vem com a gente.
Então ele se levantou, empurrando diante de si a cadeira de rodas de
Cristina. Ivan teve a franqueza de admitir para si mesmo que só estava
esperando por esse momento. Sem fazer o menor protesto, se levantou e
os seguiu. Se ouvimos críticas de pessoas sensatas que afirmam estar
chocadas com esse ménage à trois é porque não sabem o quanto aquelas
horas foram banhadas de poesia. Quanta ternura foi dispensada com as
mãos. O corpo de Cristina era o de uma jovem com os seios empinados, a
barriga lisa, as pernas harmoniosas como as colunas de um templo. O
corpo de Alix, ao contrário, era poderoso e atarracado. Ivan era um jovem
touro capaz de satisfazer toda a humanidade. Se amaram até de manhã
sem se cansar. Daí em diante, isso se tornou um hábito.
Presa o dia todo em sua cadeira de inválida, incapaz de mover as pernas,
Cristina sonhava com uma vida totalmente diferente daquela que ela
realmente tinha. Todas as manhãs ela contava a história para seus dois
amantes, que também eram seus dois filhos, pois ela lhes dava a maciez de
seus seios surpreendentemente jovens e vigorosos.
— Meu corpo era tão leve, mais fluido que uma bola de sumaúma – ela
dizia. – Eu ziguezagueava no céu. Às vezes, me sentava numa nuvem e me
balançava para a frente e para trás. De onde me pendurava, eu via a terra
rachada de sol. Por gosto, descia para pousar no topo de uma árvore.
Gostava particularmente dos flamboyants ou dos jacarandás. Também
gostava do cheiro de ilangue-ilangue, de rosa caiena e arbustos de arum.
Às vezes, eu descia ainda mais baixo e ficava com vontade de correr com
os beija-flores, os foufou-phalle verde. Toda vez que eu chegava bem por
último, embora ele parasse em cada flor.
Quando estava sozinho com Ivan, Alix chorava muito.
— É culpa minha. Sim, é culpa minha o que aconteceu com ela. Eu
nunca deveria ter me afastado. Em vez disso, deixei-a sozinha para explorar
o espaço.
Ivan secava suas lágrimas.
— Não diga besteiras. O que aconteceu com ela certamente não é culpa
sua.
Um dia, Alix olhou dentro de seus olhos.
— Você não sabe o que aconteceu naquela noite de gala quando ela
sofreu aquele terrível acidente. Tínhamos que ter subido juntos nos
trapézios, voar e jogar pétalas de rosas vermelhas nos espectadores. Mas
antes do número eu me senti mal. Então eu a deixei ir sozinha. Você
entende que eu sou culpado.
Desconcertado, Ivan o abraçou, sem saber o que dizer para consolá-lo.
Quatro semanas se passaram nessa felicidade perfeita. Ivan tinha a
impressão de ter encontrado reunidas em Cristina, uma mãe, uma irmã e
uma amante, enquanto Alix lhe parecia um duplo, um pouco assustador,
despertando a selvageria de seu desejo. Apenas a ausência de Ivana o fazia
sofrer. Ah! se ela estivesse presente seria a felicidade perfeita, a plenitude
infinita.
O que ninguém esperava era que Alix encontraria o rastro de Rahiri e
Ousmane. O que aconteceu por puro acaso. Uma terça-feira, quando
estava no mercado de El Markham, viu dois homens perto da loja de
tecidos da esquina, eles se pareciam exatamente com a descrição que Ivan
tinha dado. Ele os ameaçou com a Mauser que carregava sempre, entre o
corpo e a camisa. Na verdade, esse porte de arma era uma isca. Alix era
pacifista. Em maio de 1968, quando as forças da CRS e estudantes
travavam uma guerra de morte nas ruas de Paris, ele e Cristina fundaram
uma associação chamada Sur les traces du Mahatma Gandhi. Eles também
se opuseram ferozmente à guerra na Argélia e ficaram do lado dos
rebeldes. Na verdade, a Mauser era apenas para causar seu pequeno efeito.
Rahiri e Ousmane sentaram-se à mesa. Admitiram ter roubado Ivan.
Haviam vendido sua mala e suas roupas, que eram de boa qualidade, mas
ainda guardavam seu passaporte, um passaporte francês com o qual
esperavam obter uma fortuna. Rahiri e Ousmane concordaram com Alix
que a polícia não deveria se envolver no caso e em troca de seu silêncio se
ofereceram para levar Ivan a Niamey. Eles conheciam lugares na fronteira
onde não havia delegacias ou postos alfandegários.
Ao ouvir aquela história, Ivan deu um pulo.
— Eles só vão querer me entregar à milícia e embolsar a recompensa! –
gritou.
Alix sacudiu a cabeça com firmeza.
— Sob o risco de decepcioná-lo, vou lhe dizer que eles não sabem o que
você fez em Kidal nem que você está sendo procurado pela milícia. As
pessoas olham para a televisão sem assistir a nada. Eles vão levar você até
Niamey, de onde você vai pegar seu avião tranquilamente para a França.
Uma vez lá, você vai escrever para sua irmã ir ao seu encontro.
Tentando manter as aparências, o trio ficou arrasado. Então, Ivan estava
partindo. O que seria de Alix e Cristina privados de sua juventude, de sua
beleza, de seu ardor. O tempo que se seguiu passou na mais profunda
desordem.
Na véspera do dia em que Ousmane e Rahiri deveriam vir buscá-lo, Alix
levou Ivan para dentro de uma salinha cuidadosamente trancada a cadeado
nos fundos da casa. Deslizou uma divisória de porta e descortinou um
verdadeiro arsenal de guerra: metralhadoras, fuzis, pistolas. Como Ivan
não escondeu seu espanto, ele explicou:
— Você sabe que eu sou pacifista. Mas eu não iria ficar num lugar como
esse tão isolado sozinho com uma mulher deficiente. Em caso de agressão,
eu devo ao menos ter como me defender.
Então, ele lhe dá uma Luger, que Ivan guarda cuidadosamente em seu
estojo de couro preto.
— Toma – ele continuou entregando também um envelope bem cheio. –
Você vai precisar.
O envelope continha um maço de dólares. Ivan se perguntou como
encontrar palavras de agradecimento alegres o suficiente. Ele entendeu o
que Adão provou quando foi expulso do paraíso terrestre. The Last Resort
foi um refúgio de paz de onde o destino o empurrava pelos ombros para
retomar o curso caótico e infeliz de sua vida.
Durante essas quatro semanas, ele conheceu a intimidade de dois seres
fora do comum e tinha vivido com eles uma relação profunda e complexa.
Alix e Cristina não sabiam nada sobre ele e, no entanto, tinham aberto
seus braços para recebê-lo. Será que voltaria a vê-los um dia? Talvez nunca
mais nesta Terra. Talvez no mundo invisível que nos promete a religião.
Na manhã seguinte, Rahiri e Ousmane bateram à porta de The Last
Resort às 4 horas da manhã. Apesar de sua dor, Alix, sempre generoso,
havia preparado sanduíches para eles levarem no caminho. Cristina
soluçou e cobriu o rosto de Ivan com beijos.
No entanto, Alix estava errado o tempo todo. Rahiri e Ousmane sabiam
perfeitamente quem era Ivan e estavam bem cientes do valor da
recompensa por sua captura. Assim que estavam a uma boa distância de
The Last Resort, eles se lançaram sobre Ivan, amarraram selvagemente
seus punhos e tornozelos com cordas fortes de cânhamo, colocaram um
capuz grosso sobre sua cabeça para que ninguém ouvisse seus gritos e
pegaram a direção de Kidal para entregá-lo aos milicianos.
O que Alix também não sabia era que estes dois bandidos pretendiam
revelar o esconderijo onde Ivan se refugiara e fizeram um esboço perfeito
de The Last Resort para entregá-lo a Abdourhamane Sow.
E Ivana, você deve estar se perguntando? O que aconteceu com ela? Não
sabemos nada sobre esse assunto. Perdão, amigo leitor. É que ela está
menos envolvida que seu irmão nesses tristes eventos. Tememos compor
uma história muito tediosa, baseada no horário do hospital Soundjata
Keita, onde ela trabalhava. Seis horas da manhã: despertar os pequenos.
Colocá-los no penico para que aprendam a usá-lo. Café da manhã: cozido
de milho e biscoitos de sorgo. Longas horas de exercícios para despertar a
mente. Almoço: cozido de milho, peixe defumado, ovos cozidos, bebida de
gengibre. Sesta, fim da sesta, jogos educativos. Leituras de livros infantis.
Tempo livre. Vinte horas: dormir.
Vocês enxergam que essa rotina não é lá muito atraente. No entanto,
quando pensamos nisso, percebemos que há muitas lacunas em nossa
história. Assim, não falamos sobre o comportamento de Ivana logo após a
morte de Lansana. Ao contrário do irmão, Ivana era apegada ao pai. Ela
até se deu conta de que ele tinha feito falta em sua infância, que ele era a
causa do sentimento de vulnerabilidade e de precariedade que a tinha
assombrado todos esses anos. Enquanto Ivan saía de casa quando queria
brincar de pés descalços – brincadeiras que duravam horas e das quais ele
voltava cheio de machucados e calombos, com a roupa rasgada – ela ficava
perto da mãe para sabiamente ler os livros que pegava emprestados na
biblioteca da escola. Além disso, ela o responsabilizava pelo estado de sua
mãe, que chegava do trabalho exausta, com as pernas pesadas, se jogando
em uma cadeira para tomar fôlego antes de se ocupar do jantar. Todo
aquele rancor, todas aquelas tensões tinham desaparecido quando ela viu
Lansana no aeroporto e ele a chamou carinhosamente de “minha filha”.
Desde então ela só tinha uma preocupação: ser fiel ao que ele esperava
dela. Assim que quando de sua morte, ela chorou muito e recebeu com
sofrimento as condolências de parentes e amigos.
Como homenagem, ela decidiu retomar suas atividades e criou, com
ajuda da Fundação Jean Belucci, nome de um suíço que deixara sua
considerável fortuna ao país, os arquivos sonoros, batizados de Sons do
Mali. Não se tratava apenas de recensear os griôs vivos e de levantar seu
repertório de canções de maior importância, mas também de procurar os
falecidos que em seu tempo impressionaram suas comunidades e fizeram
um trabalho valioso. Por isso, Ivana ia aos vilarejos mais remotos e se
esforçava para buscar os talentos que se escondiam.
Falamos muito pouco de Ivana desde que seu irmão decidiu se meter
com Aminata Traoré. Assim como todo mundo, ela também tinha ou­vido
a fofoca que circulava em torno de Ivan e, por causa disso, havia sofrido
muito. Ela sabia que ele não era homossexual e podia ter explicado as
razões de seu comportamento com as mulheres. Ela foi, no entanto,
obrigada a ficar calada. Na verdade, o que é mais condenável aos olhos dos
homens comuns? Ser homossexual ou incestuoso? Hipócritas que fingiam
ignorar, como bem escreve François Mauriac, que toda família é um ninho
de víboras! O pai deseja e estupra a filha. O filho cobiça a irmã. Quanto a
mãe e filho, o caso é amplamente conhecido. A decisão de viver com
Aminata pareceu-lhe um subterfúgio eficaz e, graças a isso, ela encontrou
paz e felicidade por alguns meses.
Quando seu irmão decidiu se casar com Aminata, embora o pressionasse
a consumar essa união, ela pensou em seu foro íntimo que ele estava
fazendo demais. O fato de Aminata estar grávida não lhe parecia um
argumento forte. Em Dos d’Âne, uma em cada duas crianças não conhecia
o pai. Caso soubessem o nome, era como o de uma divindade que se
reverenciava de longe.
O que lhe deu um golpe fatal foi a descoberta de que Ivan havia se
tornado um terrorista e tinha, sem dúvida, participado do assassinato de El
Cobra.
De repente tudo virou cinzas. Onde estava Ivan? Onde ele se escondia?
Ele tinha conseguido chegar a Niamey para ir à França como desejava na
carta que rabiscara para ela? Em desagrado extremo, ela foi até Malaika,
uma famosa vidente, a fim de desvendar os segredos do destino. Malaika
morava no distrito de Kisumu Banco, distrito que já conhecemos, e vinha
do Benin, país apreciado por seus adivinhos e feiticeiros. Ela viveu por
muito tempo na periferia de Paris e cuidou da carreira de conhecidos
políticos de direita. Quando foram derrotados nas últimas eleições, ela se
encontrou na miséria e teve que ir ao encontro de sua irmã que morava no
Mali. Era uma mulher de formas volumosas, não longe dos cem quilos, e
que mesmo assim se deslocava com grande leveza.
Como todos aqueles que afirmam desvendar os segredos do invisível, ela
acendeu uma boa dúzia de velas ao seu redor, ficou um tempo em silêncio
e depois declarou:
— Eu só vejo sangue, sangue ao meu redor. Para saber de onde ele vem,
qual é a causa, você deve me trazer dinheiro.
Então, ela anunciou uma quantia tão considerável que Ivana deu um
pulo. Como ela conseguiria dar um jeito, ela que só conhecia gente morta
de fome, griôs sem dinheiro, ricos apenas em acordes musicais? Ela saiu
cambaleando da casa de Malaika, determinada a nunca mais perguntar
nada a ela.
Nós já descrevemos o bairro Kisumu Banco, populoso, sujo, barulhento
com todas as músicas do terceiro mundo. Podiam ser ouvidas melodias de
reggae e de salsa misturadas às batidas do hip-hop e às lúgubres
declamações do rap. Homens em busca de aventura abordaram aquela
linda jovem, que parecia não temer a noite.
Foi pela manhã que os policiais vieram prendê-la. Muito educadamente,
eles a conduziram até a cela 4×4 onde Aminata já estava. As duas
mulheres se abraçaram chorando, enquanto Aminata sussurrava:
— Aïssata bem que me disse para desconfiar dele, pois ele frequentava a
companhia de gente estranha.
Na tarde de sua prisão, enquanto Ivana estava deprimida em sua cela,
Abdourhamane Sow apareceu. Ela conhecia Abdourhamane. Ela não tinha
feito nada que chamasse atenção desse aspirante que já possuía duas
esposas, uma muito bonita, de Mogadíscio. Um dia em que ela foi até a
caserna de Alfa Yaya para ficar admirando os exercícios militares dos
milicianos, deixou seus olhos recaírem sobre ele. Ele insistiu que Ivana
fosse a casa dele para tomar um copo de bissap com seu irmão Ivan:
mobiliário luxuoso, divãs de couro branco se alternando com divãs de
couro roxo, cortinas trabalhadas penduradas nas paredes.
— É um dos nossos melhores recrutas! – ele disse, dando a Ivan uma
olhada lisonjeira.
Ivana, que sabia o quanto o irmão detestava posições militares, ficou
surpresa com aquela observação. Abdourhamane Sow já ia para outro
assunto e descrevia os anos que passara no Haiti:
— É uma ilha maravilhosa – ele afirmou – cuja criatividade não para de
nos surpreender. Nos mercados de Port-au-Prince se vende arte naïf. Vocês
sabem o que é pintura naïf ?
Nem Ivan nem Ivana eram capazes de responder àquela pergunta. Em
Guadalupe, eles conviviam com muitos haitianos que não eram pintores,
mas pobres miseráveis, explorados, humilhados por seus líderes e que
exerciam os ofícios mais servis para sobreviver. Vica, a companheira de
Lansana, também pintara um quadro do sofrimento de seu povo.
Abdourhamane continuava:
— Para eles a arte é uma poção mágica que apesar das vicissitudes da
vida dá força e coragem àqueles que a bebem.
Apesar de ter ficado muda durante essa visita, Ivana acabou se tornando
um objeto de paixão para Abdourhamane. Ele chegou ao ponto de pedir
sua mão à Lamine Diarra, que, desde a morte de Lansana, agia como a
grande anciã na vila.
Naquela noite, quando Abdourhamane entrou na cela, tinha a cara
muito séria.
— Você está livre – ele disse a Ivana, apontando a saída da cela.
Livre? Ela o olhava com espanto. Ele continuou, olhando-a com seus
olhos em brasa:
— Eu te amo demais para te fazer mal. Vá para sua casa.
— Isso quer dizer que meu irmão é inocente? – perguntou Ivana.
— Não, ele é culpado, temos provas.
Ivana assim retornou à vila dos Diarra, onde ninguém a esperava e onde
alguns já se regozijavam com o seu aprisionamento.
Desde então, ela vivia no limbo, se vestindo automaticamente, comendo
sempre a mesma coisa e se ocupando das crianças de que cuidava sem vê-
las. Para compartilhar sua solidão, todas as noites ela jantava com
Aminata, que agora falava de Ivan com todas as suas qualidades. Segundo
ela, era terno, carinhoso, sempre pronto para fazer amor. Ivana, que sabia
que era tudo mentira, não se preocupava em contradizê-la. Assaltada por
outros pensamentos, acabou por lhe perguntar:
— Você não notou nada de diferente no comportamento dele? Pareceu a
você que ele se radicalizava?
Aminata fez um gesto de ignorância.
— Radicalizado? O que isso significa? Ele se comportava como um bom
muçulmano, e isso é tudo. Não faltava jamais com suas orações, lia o
Corão. Se você visse o exemplar que ele deixou, está todo anotado! Ele
não fumava, não bebia, fazia caridade. É isso que é se radicalizar?
Ivana não sabia mais de nada. Voltava para casa pelas ruas escuras e
desertas. Quando ela chegava na vila Diarra, ninguém dormia. Até as
primeiras horas da manhã ela vivia uma vida pulsante e barulhenta.
Alguns tocavam kora para acompanhar suas canções tradicionais. Outros
jogavam dama e principalmente cartas. No jogo de belote, exclamações
agudas atravessavam o ar:
— Belote! Rebelote! Trunfo!
Outros ainda debatiam tristemente o assunto que monopolizava a mente
de todos: o estado da África com o êxodo dos migrantes para a Europa.
— E enquanto eles acolhem alguns de braços abertos, reclamam que não
nos querem. Eles fingem que nossos países não estão em guerra. Mas qual
é a diferença entre as granadas que caem do céu e a fome que te mata do
mesmo jeito? É o racismo de novo e de novo.
Todas aquelas conversas paravam quando Ivana aparecia, porque as
pessoas gostavam dela e sentiam pena. Infelizmente ela era insensível a
esses sinais de respeito e carinho. Só pensava em se trancar em sua própria
casa, esperando que um raio caísse e que mais uma vez sua vida ruísse. Foi
bem o que aconteceu.
Uma noite, voltou para casa mais cedo do que o de costume, foi dormir
sem jantar e procurava o sono. Para ela, o sono não oferecia nem repouso
nem relaxamento. Não era mais do que uma proteção contra os terríveis
sofrimentos de todos os dias. Devia ser perto da meia-noite, quando
Magali, sua empregada, entrou no quarto e ligou a luminária de cabeceira
e se inclinou sobre ela murmurando com uma voz urgente:
— Irmã mais velha, irmã mais velha, acorda. O sr. Abdourhamane Sow
está aqui e quer ver você.
Estupefata, Ivana se vestiu novamente, abrindo os olhos confusos e
incertos.
— Abdourhamane Sow? É isso, o Abdourhamane Sow?
A empregada baixou a cabeça em afirmativa:
— O que eu disse a você, irmã mais velha? – ela pergunta.
— Vá ver o que ele quer – continuou, Ivana, confusa.
Contudo, ela não teve nem tempo de vestir um robe e de se levantar,
Abdourhamane já havia entrado no quarto e mandado Magali sair. Pela
primeira vez, Ivana o viu sem o uniforme militar, vestido com um
gandourah branca que expunha suas formas atléticas. Uma barba sedosa
cobria suas bochechas. Seus cabelos se cacheavam levemente, herança
talvez de algum ancestral Tuaregue. Ele era, por deus, um homem bonito
e forte, ela se dava conta. Ele se sentou ao pé da cama.
— Estou com o seu irmão – ele disse.
— Meu irmão! – ela exclamou, atônita.
Abdourhamane aquiesceu:
— Dois bandidos acabaram de me ligar: eles o capturaram enquanto ele
tentava fugir para Niamey. Vão entregá-lo a mim em troca do resgate
prometido. Depois, eu o entregarei aos milicianos, para que eles lhe
inflijam o castigo merecido. É isso que você quer?
Ivana começou a chorar e sacudiu a cabeça.
— Não, claro que não, você sabe, não é o que eu quero.
— Então? O que você quer? – disse Abdourhamane, olhando para ela
com seus olhos negros.
Mais uma vez, possuímos poucas informações confiáveis sobre os eventos
que se seguiram. A partida de Ivan e Ivana do Mali é assunto de tantas
fofocas e invenções que não conseguimos ver com clareza. O que temos
como certo é que no dia seguinte a essa visita, Abdourhamane Sow não
apareceu na caserna de Alfa Yaya, fato que não era surpresa. Era uma
sexta-feira e sabemos que, nos dias de mesquita, ele gostava de rezar
muito, ler o Corão e fazer rondas pelos bairros pobres para ali distribuir a
sua esmola. No início da tarde, três ou quatro jipes, carregados de
milicianos armados, tomaram uma das estradas que levavam ao sul. Os
passantes os observavam com inquietação. Para onde estava indo aquele
comboio? Combater jihadistas? Ainda era preciso prever as mortes, sempre
as mortes?
No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, foi a vez de Barthélemy,
motorista particular de Abdourhamane Sow, pegar a estrada para o sul no
volante de uma Range Rover. Como os vidros eram escuros, não se podia
saber quem estava dentro do veículo. No entanto, temos certeza de que
eram Ivan e Ivana.
Barthélemy não era apenas o motorista particular de Abdourhamane.
Aquele haitiano, que estava ao seu serviço desde quando ele trabalhava
para a MINUSTAH, em Port-au-Prince, tinha transportado suas amantes e
entregado a ele as jovens que ele cobiçava. Veio junto quando o homem
voltou para o Mali.
Barthélemy e seu misterioso carregamento, que não é misterioso para
nós, rodaram por três ou quatro horas. Depois pararam para dormir em
um desses caravançarás sem grande conforto que oferecem aos viajantes
comida malfeita. Os clientes olhavam para Ivan, imaginando onde teriam
visto aquele rosto. Ninguém o reconheceu com certeza. Então o bigode, a
barba e as costeletas que ele deixou crescer não serviam para nada, a não
ser para dar um ar um pouco marcado como Sese Seko em Une saison au
Congo, de Aimé Césaire.
Estranhamento, em seu íntimo, Ivan estava profundamente
desapontado. Ele teria gostado de se exibir de mostrar a todos que tinha se
atrevido a atacar El Cobra e dizer aos quatro cantos do país. O anonimato
em que foi obrigado a se esconder privou-o da bravura e da audácia do seu
ato.
Nossos três viajantes cruzaram a fronteira no posto de Kifuma onde os
policiais e aduaneiros carimbaram seus salvo-condutos com desenvoltura.
Depois disso, chegaram a Niamey em algumas horas. Ao contrário de
Tombucto, a Pérola do Deserto, Niamey nunca foi uma escala importante
para caravanas. Nunca viu longas filas de camelos, com os flancos
carregados de riquezas, que se dirigiam para os sultanatos do norte da
África. Na verdade, sua prosperidade de origem recente data de um século
atrás.
A Range Rover dos viajantes se dirigia ao aeroporto, pois
Abdourhamane tinha recomendado a Barthélemy colocar Ivan e Ivana no
primeiro avião que partisse para Paris. Infelizmente, uma surpresa os
esperava. A companhia Air France, fiel aos seus hábitos, tinha começado
uma greve. Sabemos quando uma greve começa, mas nunca quando
termina. Nossos três viajantes tiveram então que se refugiar em um hotel
chamado Waterloo, hotel bem detestável, uma estrela, pois seus recursos
eram limitados.
Não descrevemos o comportamento de Ivan e Ivana desde que se
reencontraram. O que não era nada de novo. Depois de tantas semanas de
separação e de inquietude, depois de tanto desejo reprimido, a felicidade
do reencontro os aniquilou. Eles só sabiam se abraçar e sussurrar palavras
doces no ouvido um do outro. Barthélemy, que desconhecia a natureza do
vínculo que os unia, tomou-os por um casal de namorados vivendo o
início de sua paixão. Ironicamente, uma canção conhecida em todo o
Caribe lhe veio à mente: “Ah, n’aimez pas sur cette terre, quand l’amour s’en va
il ne reste que des pleurs.” Ah, não se ama nesta terra, quando o amor acaba,
só restam lágrimas.
Sob seus ares desmaiados, no entanto, Ivan e Ivana sofriam um martírio.
Por um lado, para salvar a vida de seu irmão, Ivana teve que ceder a
Abdourhamane. Ela se culpava pelo prazer que ele lhe arrancara, pelos
gemidos e gritos que, a contragosto, ela soltara naqueles momentos de
paixão carnal. Como o corpo é vil e miserável, ela repetia a si mesma. À
noite, ela não conseguia dormir. Quanto a Ivan, ele não conseguia
esquecer as horas passadas com Alix e Cristina, cuja memória ficara
incrustada em sua carne.
O hotel Waterloo possuía um refeitório detestável como o resto do
edifício, onde pela manhã se podia engolir um café da manhã frugal. Em
três dias nossos amigos já se rastejavam por lá, se perguntando quando sua
espera terminaria. Na manhã do quarto dia, um vendedor de jornal entrou
no refeitório. O Niamey Matin tinha uma manchete que chamou a atenção
de Ivan: “Operação espetacular: descoberto o esconderijo de Ivan
Némélé.” Se seguia um artigo que contava como os milicianos de
Abdourhamane Sow tinham invadido The Last Resort, onde dois
estrangeiros, Alix e Cristina Alonso, tinham escondido Ivan Némélé
durante muitas semanas. Aqueles dois miseráveis tinham recebido a
punição merecida e haviam sido mortos.
O jornal caiu no chão, enquanto as mãos de Ivan tremiam. Apunhalado
pela dor, ele se apoiou na mesa, o corpo balançando com os soluços
roucos e dolorosos como os de uma criança.
— Por quê? Por que eles os mataram? – balbuciou Ivan. – Alix e Cristina
eram pacíficos, seus corações eram bons como um bom pão, ternos e
compreensíveis.
Juntado o jornal, Barthélemy estendeu-o para Ivana que então o leu.
O assassinato de Alix e Cristina fez brotar em Ivan uma cólera que ele
jamais tinha conhecido.
Se perguntarem a minha opinião, eu direi que foi neste momento que ele
se radicalizou, como disseram. Todo o horror do mundo se revelou para
ele. Parecia que estava dividido em dois campos: o dos ocidentais e de seus
bons alunos, e o dos outros. Os primeiros se diziam vítimas e fingiam ser
atacados sem razão, pois não tinham feito nada de mau a ninguém e
estimavam todas as identidades, a liberdade de expressão, o amor entre as
pessoas do mesmo sexo e permitiam aos homossexuais que adotassem
crianças. Mas na realidade, isso não era a verdade. Era um jogo
massacrante que acontecia. Os dois campos eram ferozes e implacáveis,
um mais do que o outro. Só se sabia responder a essa violência com mais
violência. Sem esforços para encontrar um diálogo, para elaborar
compromissos. Em Genebra, conferências pela paz se abriam. Sem
resultado. As bombas continuavam a cair ainda mais potentes.
Foi aí, eu creio, que Ivan decidiu destruir essa sociedade odiosa que
estava ao seu redor. Na minha opinião, foi aí que ele decidiu mudar o
mundo. Como? Ele ainda não sabia.
A greve da Air France terminou. Tinha durado uma semana. Uma
semana durante a qual viajantes infelizes lotaram os hotéis. Aqueles que
não podiam atrasar seus negócios tentavam chegar à Europa por todos os
meios possíveis. Um dia antes de os deixar, Barthélemy convidou seus
companheiros para jantar no conhecido restaurante Le Trigonocéphale,
porque uma estranha simpatia tinha se desenvolvido entre eles.
A Trigonocéphale é uma cobra pequena e venenosa, nativa da Martinica.
Por que ele deu seu nome a este restaurante administrado por franceses da
região de Estrasburgo? Definitivamente um mistério!
Barthélemy zombou:
— É o irmão mais velho que convida vocês – ele disse. – Vou dar um
jeito de ele pagar por esse jantar.
Ivan não tinha a menor vontade de ir com ele. Desde que soube da
morte de Alix e Cristina, não tinha mais vontade de nada. A todo
momento, a imagem deles lhe vinha ao coração e ele só faltava sufocar.
Tinha apenas uma ideia na cabeça: fazer uma última peregrinação ao The
Last Resort, encher os olhos com o que dele restou e mergulhar na
memória dos que se foram. Mas as margens do Joliba, onde ficava The
Last Resort, estavam a cerca de quinhentos quilômetros de Niamey. Ele
não se atreveu a pedir a Barthélemy que fizesse uma viagem daquelas, o
que ele certamente recusaria. Além disso, Ivan não queria se aproveitar da
generosidade de seu carrasco. Foi preciso toda uma persuasão de Ivana,
com os braços em volta de seu pescoço, para convencê-lo a seguir seus
companheiros de viagem até o restaurante.
Apesar do nome incongruente, Le Trigonocéphale era uma construção
magnífica e atrativa, situada nos arredores da cidade. A elite de Niamey
frequentava o restaurante. As refeições tinham a particularidade de serem
entrecortadas por apresentações da melhor qualidade. Dançarinas do
ventre vindas do Egito e da Turquia, acrobatas vindos da Ucrânia,
atiradores de facas que pareciam mirar no coração de seus parceiros,
malabaristas e ventríloquos se sucediam. O destaque do jantar, no entanto,
era fornecido pelas adivinhas da boa fortuna. Cabeças com turbante,
vestidas com roupas brilhantes, elas agarravam as mãos das pessoas e
fingiam ler o futuro. Uma delas se plantou diante de Ivan, que lhe
estendeu a palma da mão com indiferença. Ela mal o olhou, recuou e o
questionou com pavor.
— Quem é você? Ao teu redor eu vejo rios de sangue, choro,
assassinatos. Você não é um desses terroristas temidos, é?
Ivan lhe respondeu calmamente:
— Eu sou quem eu sou.
Depois disso ele jogou uma nota que tinha deixado separada para ela.
No dia seguinte, às 17 horas, irmão e irmã pegaram o avião para Paris.
Os raios do sol se pondo desenhavam grandes Vs escarlates no céu: V de
Vingança. Sim, pensava Ivan, era preciso vingar Alix e Cristina. Mas como?
FORA DA ÁFRICA

Ivan e Ivana desembarcaram no aeroporto de Roissy numa manhã que,


aos seus olhos ainda incendiados pelas cores do Mali, pareceu cinza e suja.
Muito embora fossem os primeiros dias de setembro, ainda fazia bastante
frio. Por sorte, uma de suas “mães” da vila dos Diarra tinha tricotado para
eles alguns suéteres aconchegantes, infelizmente, de um chocante verde-
espinafre para Ivan, e de um rosa-salmão para Ivana. Hugo, um primo do
Pai Michalou, que por muito tempo apertou os parafusos nas fábricas de
automóveis da ilha de Seguin e agora desfrutava de uma magra
aposentadoria, veio para ajudá-los. Ele tinha muito orgulho de ter um
carro, um Ford de um modelo antediluviano que ainda rodava com
alegria. Ao sair do aeroporto, eles rodaram ao longo de uma estrada já
cheia de veículos. Depois de um túnel, entraram em Paris. Ivan e Ivana
nunca tinham visto prédios tão altos e enegrecidos, maciços, formando ao
longo da calçada uma formidável muralha. Plantadas em intervalos de
distância regulares, as lâmpadas emitiam uma luz fantasmagórica e
amarelada. Apesar de ser muito cedo, as ruas não estavam desertas. Já
havia homens e mulheres e até mesmo crianças se dirigindo até a boca do
metrô, enquanto os carros lúgubres como rabecões se impacientavam
diante dos sinais vermelhos. Essa atmosfera pouco convidativa penetrava
bem no fundo do coração. Ivan, que não gostava de Kidal, imediatamente
sentiu que não gostaria de Paris. Por que esse epíteto de Cidade Luz que
lhe fora atribuído? Se lembrou que o Pai Michalou a comparou a uma bela
odalisca que fulminava aqueles que a admiravam.
Percorreram quilômetros até chegarem em uma das entradas de Paris,
pois Hugo morava em Villeret-le-François, uma parte da periferia que, aos
recém-chegados, pareceu ser onde Judas perdeu as botas. Hugo repetia
orgulhosamente que em Villeret-le-François estavam reunidas pessoas de
todas as nacionalidades:
— Temos indianos – ele dizia –, paquistaneses e até japoneses. Logo os
brancos serão uma minoria entre as pessoas de outros lugares.
Ele mantinha um forte sotaque de Guadalupe e, ao ouvi-lo, Ivan reviveu
sua infância e seus momentos de felicidade.
Depois de um trajeto que pareceu longo, o carro parou enfim em
Villeret-le-François. Estacionou à frente de uma Cité, uma espécie de
conjunto habitacional de periferia, detestável, quatro ou cinco torres de
muitos andares, cercadas por um muro decrépito.
— Pronto, chegamos – disse Hugo. – É a Cité André Malraux.
Antigamente, esse lugar era chamado Mamadou. Foi na época do Chirac,
que muito se orgulhava disso. Ele não hesitou em mandar instalar
eletricidade e água encanada para os lixeiros que trouxe da África.
— O quê! – exclamou Ivan, colocando os pés no chão. – Trouxeram
africanos para tirar o lixo das lixeiras francesas!
Aparentemente Ivan nunca tinha ouvido a célebre canção do bravo
Pierre Perret:
On la trouvait plutôt jolie Lily
Elle arrivait des Somalies.
Dans un bateau plein d’émigrés
Qui venaient tous de leur plein gré vider les
poubelles à Paris!10
Hugo não parecia nada chocado.
— Chirac tratava esses lixeiros como a menina dos olhos dele. Hoje está
tudo degradado. Elevadores nem sobem mais aos andares. Um bando de
traficantes vende drogas nas grades das escadas.
Hugo dividia seu apartamento de três cômodos e sua vida com Mona,
uma mulher da Martinica, envelhecida, mas bem bonita e atraente, que já
se apresentara no La Cigale, em Paris. Ela até conseguiu um grande
sucesso ao adaptar os sucessos de Luis Mariano: La vie est un bouquet de
violettes.
L’amour est un bouquet de violettes
L’amour est plus doux que ces fleurettes
Quand le bonheur en passant vous fait signe et s’arrête
Il faut lui prendre la main
Sans attendre à demain.11
Agora ela trabalhava na cantina do colégio de Villeret-le-François e era
incansável sobre o comportamento deplorável dos jovens que ali
encontrava.
— Eles são mal-educados – afirmava ela. – Agressivos, sempre prontos
para retrucar. Não é de admirar que eles acabem indo para o jihad, na Síria
ou em outro lugar.
No dia seguinte de sua chegada, enquanto Ivana corria para a escola
de polícia onde ela estava inscrita, Ivan tomava preguiçosamente a direção
do estabelecimento onde deveria acontecer sua aprendizagem. Durante os
meses que passaram no Mali, a perspectiva dessa aprendizagem lhe
pareceu cada vez mais inverossímil: fazer chocolate! Não era ridículo?
Como a empresa ficava em outra parte da periferia, ele tinha que tomar
um RER lotado com gente malcheirosa, para sua grande surpresa. Na
véspera, no carro de Hugo, ele não tinha inalado os odores daqueles
corpos mal lavados, daquelas brilhantinas e daqueles perfumes baratos.
Aproveitando-se da multidão, homens de rostos carmesim e ar falsamente
indiferente agarravam-se às partes arredondadas dos corpos das jovens. O
que deixou Ivan chocado foi a abundância de árabes. As garotas, com os
cabelos cobertos por um véu de cor escura, os garotos, com as bochechas
cobertas por barbas frisadas. Que rosto surpreendente tinha a França, disse
a si mesmo. Ele se perguntou se um dia ele teria um lugar.
Os edifícios da chocolataria Crémieux, fundada em 1924 por Jean-
Richard, que tinha o mesmo sobrenome, não tinha vista para a rua;
mesmo assim, um cheiro forte de chocolate invadia as calçadas. Era
preciso entrar por um corredor e atravessar um pátio calçado, onde lixeiras
transbordantes ficavam de guarda. No vestíbulo pouco iluminado, Ivan se
apresentou ao recepcionista, um homem pouco amável, que procurou em
vão seu nome numa pilha de registros.
— Você não está em lugar nenhum – concluiu ele de modo seco.
Ivan explicou a ele que estava inscrito como aprendiz há mais de um ano
e que a direção havia permitido aquele atraso. Como ele não tinha
nenhuma carta, nenhum papel para provar, o homem sacudiu a cabeça
depois a mão e lhe indicou uma cadeira para se sentar.
— Você se explica com o sr. Delarue – ele disse.
Ivan se sentou. Aos poucos o vestíbulo se enchia de homens de todas as
idades compartilhando o mesmo modo inseguro.
É com eles que vou trabalhar?, se perguntou Ivan. Aquela perspectiva o
repelia. Parecia-lhe que era um prisioneiro decifrando nos rostos cada
condenação.
Depois de uma hora de espera e apesar disso, ele se levantou, saiu para o
pátio e se encontrou na calçada. Chovia, uma chuva penetrante, fina, sem
violência, mas que adicionava uma profunda tristeza ao dia. Foi para
chegar ali que ele primeiro tinha saído de Guadalupe e depois do Mali?
Se sentou novamente no RER e voltou a Villeret-le-François, onde deu
uma volta para se familiarizar com o bairro. O que ele viu não o alegrou
muito: edifícios sem beleza que mereciam todos uma boa demão de tinta.
Praças de quadrados gramados decadentes. Um terreno baldio onde
crianças jogavam futebol. Ele se perdeu no labirinto de ruas estreitas no
caminho de volta para a Cité André Malraux. Quando entrou no salão da
torre A, se deparou com dois mastodontes que avançaram rapidamente
em sua direção.
— Quem é você? Aonde vai? – perguntou um deles com a voz ar-
rogante.
A resposta de Ivan não lhe agradou, pois disseram a ele com frieza:
— Vem com a gente. Você vai explicar ao chefe o que está tramando
aqui.
Ivan só pôde obedecer e subir a escada poeirenta. Os dois homens o
precederam até um apartamento no terceiro andar e lhe mostraram um
assento onde podia se sentar. Depois de quase uma hora, uma porta se
abriu e Ivan se viu diante da última pessoa que esperava encontrar:
Mansour, seu amigo Mansour que morava na mesma vila em Kidal. Era
um Mansour impossível de se reconhecer. Vestido como nunca o vira. Ele,
que sempre estava malvestido com boubous e saruel desbotados, tinha se
tornado um verdadeiro ícone da moda. Usava um elegante terno azul-
escuro. Seu pescoço estava encerrado em um alto colarinho branco. Seus
cabelos bem penteados pareciam abundantes. Enfim, ele parecia uma
versão africana de Karl Lagerfeld. Mansour e Ivan se abraçaram.
— Mansour, Mansour – exclamou Ivan. – O que você está fazendo aqui?
Eu achei que estivesse na Bélgica.
O outro sacudiu a cabeça em negativa.
— Sim, eu fui até lá, mas não fiquei. Nada de bom, nada de suculento
naquele país. Nada do que a gente esperava. Decepcionado, vim para na
França e aqui encontrei a felicidade. E você? Me conta de você. Parece que
você se tornou o que eles chamam de “terrorista”. Eu achei que você
estivesse preso em Kidal. Me conte, me conte.
Ivan fez um gesto evasivo. Não gostava de voltar àquela parte da vida
que o obrigava a se questionar sobre a conduta de sua irmã. Como ela
tinha conseguido sua libertação?
— Me conte – disse Ivan –, o que você está fazendo em Villeret-le-
François?
— Me ouça direitinho, se fizer o que eu digo, vai se sair como eu, eu me
dei bem.
A partir daquele dia, Ivan trabalhou para Mansour. Bem, trabalhar é um
modo de dizer! Antes julguem. Ele acordava ao meio-dia. Como dormia
em um colchão num canto da sala de jantar, aquilo obrigava Hugo e Mona
a táticas elaboradas quando tomavam café da manhã, para não o
incomodar. Depois, ele ia para o minúsculo banheiro, que inundava sem
nunca se preocupar em limpar e organizar. Depois, ele se vestia como
nunca antes. Sendo que nunca se importou com o que vestia, agora ele se
punha a imitar Mansour. Eram gravatas-borboleta, plastrão de seda,
gravatas de bolinhas ou listras, camisas justas, ternos Giorgio Armani. Ele
passou a gostar de tergal, fio a fio, linho, comparando materiais tão
diferentes entre si. Foi assim que conseguiu comprar uma jaqueta de couro
vermelha que usava como um toureiro e uma roupa de couro preta que
poderia tê-lo feito passar por homossexual. Você deve se perguntar de
onde ele tirava os meios para se vestir dessa maneira. É que agora o
dinheiro corria pelas mãos de Mansour e pelas suas.
Seu trabalho consistia em encher os saquinhos de uma droga que
chegava em pacotes de quatrocentos ou quinhentos gramas, antes de
entregar por pagamentos exorbitantes no bar La Porte Étroite, cujo dono
era Zachary, um servo-croata. Em troca, Zachary lhe entregava maletas
cheias de dinheiro cuidadosamente contado com antecedência, que ele
levava de volta para Mansour. Nada de cartão de crédito, nada de cheque.
Dinheiro, somente dinheiro. Os cabeças desse tráfico eram invisíveis, sem
dúvida abrigados em seus luxuosos apartamentos em Paris ou nos
subúrbios ricos. Ivan dava o seu melhor, tendo apenas uma esperança no
coração: ganhar bastante dinheiro para encontrar um apartamento onde
pudesse viver sozinho com Ivana. Mansour tinha prometido a ele.
A atitude de Ivan perante as drogas era a de pétrea indiferença. Ele não
tinha a consciência de estar fazendo mal ao se tornar um traficante.
Não podia acreditar que aquele pó branco, aparentemente inofensivo,
como a farinha de trigo dos pastéis de Simone, fosse capaz de liberar a
imaginação, atiçar os impulsos e destruir os seres humanos. Continuou
seu tráfico sem o menor remorso, nem um sobressalto sequer de
consciência.
À noite, ele seguia Mansour. Para um rapaz como ele, que não bebia e
que, principalmente, não namorava, os encantos da vida noturna eram os
mais limitados. Mansour frequentava, no centro de Paris, La Baignoire,
uma boate que antigamente atraía os homossexuais mais célebres. Diziam
que Marcel Proust adorava tomar banho na piscina que ela abrigava no
terceiro subsolo e que ele organizava suntuosas viagens com seus
companheiros de passagem. Mansour era muito ocupado. Preferia
donzelas loiras e peitudas. Era chocante, considerando como as garotas de
seu país o tratavam no passado. Agora, em Paris, o dinheiro que ele
torrava lhe dava acesso direto à posse dos corpos dessas belas estrangeiras.
Ivan, que primeiro se entediou muito com La Baignoire, pouco a pouco
foi tomando gosto pelo jogo. Ele não se contentava mais em apenas ficar
mexendo nas alavancas das máquinas caça-níqueis do primeiro andar. Se
iniciou na roleta e especialmente no bacará. Gostava do charme
aristocrático dos salões onde as mesas eram dispostas; o imprevisto dos
jogos era uma fonte de entusiasmo para ele. A voz do crupiê, sombria e
fatídica, parecia pronunciar os ditames do destino. Ao seu redor, aos
jogadores não faltava originalidade. Por exemplo, Ivan fez amizade com
uma velha condessa sem dinheiro que se denominava Gloria Swanson e a
seu amante Hildebert, um pintor de paredes, quarenta anos mais novo que
ela. A condessa e Hildebert frequentemente o convidavam para seu
apartamento no Boulevard Suchet para tomar uma taça de champanhe
porque tomavam uma caixa por dia. Ainda que Ivan não bebesse álcool,
ele gostava da companhia deles. Infelizmente, nada daquilo durou. Depois
de alguns meses desse comércio, a condessa entrou em um coma alcoólico
do qual não saiu mais e ele teve que ir ao Père Lachaise pelas vielas
repletas de túmulos com nomes variados. Assim, ele descobriu que era
possível enfrentar o anonimato da morte. Alguns dos seres cujos nomes
estavam nas sepulturas, Ivan nunca ouvira falar. Quem foi Jim Morrison?
O que ele tinha feito para merecer um longo epitáfio? Quando Hildebert
lhe explicou o porquê, ele foi tomado por novas ideias. Por que ele
também não poderia transcender o destino? É fato que ele não era músico,
nem pintor, nem escritor e não tinha nenhum dom. Mas poderia assinar
um ato extraordinário que mexeria com o mundo e assim vingaria Alix e
Cristina, ele sempre voltava a isso. A morte de Alix e Cristina nunca saiu
de sua mente. Às vezes, dizia a si mesmo que era o responsável por aquilo,
que havia manchado a vida generosa deles. Então seu peito se rasgava e ele
começava a chorar.
Um dia, ao sair de La Baignoire, quando estava neste estado de
depressão, Mansour perguntou a ele intrigado:
— O que há com você? Por que chora?
Ivan conta o episódio que viveu no The Last Resort. Quando se calou,
Mansour encolheu os ombros.
— Esse Alix e essa Cristina eram brancos, não eram?
— Por que essa pergunta? O que quer dizer? – indagou Ivan.
Mansour explicou:
— Quero dizer que eles pertenciam a outra espécie que não a nossa. Eu,
se vir um branco caindo na água, vou ajudá-lo a se afogar.
Era contra essas teorias ineptas que Alix e Cristina se levantaram. Aos
seus olhos, a cor não existia. No entanto, Ivan não expressou seus
pensamentos, ele sabia que o outro não o entenderia.
Quando a manhã amarelada se erguia sobre os telhados de Paris, eles
geralmente iam tomar café da manhã em um bar chamado L'Éteignoir.
Ivan esvaziava várias xícaras de café, ouvindo Mansour falar de suas
lembranças:
— Na Bélgica, eu fazia parte de uma célula H4, encarregada de preparar
os atentados nos aeroportos, nas estações de trem ou no metrô. Depois de
um tempo, matar essas pessoas que não entendiam por que estavam
morrendo e a quem o mundo dava o nome de mártir me parecia um
absurdo. Desde então, me recusava a obedecer às instruções que recebia e
fui tomado por covarde. Tive que fugir para a França para preservar
minha vida e então eu conheci Abou. Ele era traficante de drogas. Um
africano como você e eu, nem mais bonito nem mais educado. Ele me
abriu os olhos. Ao lado dele, compreendi o verdadeiro mecanismo do
mundo. O dinheiro é o mestre absoluto. É preciso ganhar dinheiro e todos
os meios são válidos.
No domingo, Ivan não acompanhava Mansour. Ele se dedicava à
irmã, que levava uma vida bem diferente da dele, estudiosa e organizada.
Às 7 horas da manhã, ela já estava de pé, limpa e vestida. Às 8 horas, descia
as escadarias do bloco A do prédio e atravessava rapidamente o trecho
lúgubre de terra que a separava da rua. Depois, se sentava em um RER
que a conduzia ao bulevar Brune, em Paris. Era então que se preparava
para se tornar guardiã da paz, como havia sempre sonhado. Os
professores, encantados com seu rosto, não paravam de elogiar aquela
linda martinicana (os franceses sempre confundiam Martinica e
Guadalupe, perdoai-lhes), tão talentosa e que iria longe.
Quando Ivan entrava em seu quarto, no domingo de manhã, sentada em
sua escrivaninha, ela já preparava os deveres do dia seguinte. Ivana nunca
deixava de dar um sermão sério em seu irmão.
— Você abandonou os estudos – ela lhe dizia – e é uma pena. Mamãe e
eu estamos de coração partido. Preste atenção nesse Mansour, não se
envolva em histórias obscuras. Ouvi dizer que ele está metido com o
tráfico de drogas que acontece aqui na nossa Cité. É daí que vem o
dinheiro dele.
Ivana não exagerava. Simone ficou muito zangada quando, pelas
indiscrições do Pai Michalou, soube o que Ivan estava tramando. Seu filho
era um traficante de drogas! Nunca! Ela pensou em ir ela mesma até a
França para dar um sermão nele e fazê-lo ficar com vergonha de sua
condição. Simone falava furiosa. Cansado de ouvi-la, Pai Michalou acabou
contando o que estava fazendo:
— De que adianta essa viagem? – ele perguntou. – Esse rapaz nunca te
escutou e sempre fez o que dava na telha. Fique tranquila, é um bom
remédio, como diz o provérbio.
Desde então, Simone não falou mais em pegar um avião. Limitou-se, dia
após dia, a mandar e-mails e dar telefonemas ao filho, que eram tanto de
desculpas quanto de ameaças.
No domingo, ao meio-dia, ele convidou a irmã para almoçar em seu
restaurante favorito, Le Pavillon Lenôtre, que ficava no meio do Bois de
Boulogne. Esse elegante pavilhão datava de 1920 e sua especialidade era
robalo servido com puré de castanhas. Às vezes, ele também convidava
Hugo e Mona, mesmo que não se dessem tão bem os três. Hugo e Mona
não escondiam que achavam as companhias de Ivan duvidosas, até mesmo
perigosas. Esse Mansour era um notório traficante procurado pela polícia.
Essa vida durou mais ou menos três meses. No fundo, Ivan estava cada
vez mais insatisfeito. Em que se transformaram suas ambições e sonhos,
seus projetos?
Uma tarde, quando estava indo até Mansour, como de costume, para
pegar o seu carregamento de drogas, encontrou o apartamento vazio, as
portas escancaradas, os móveis virados e o conteúdo das gavetas espalhado
pelo chão como em filme policial americano. Ele foi correndo ao térreo
para saber explicações. O hall estava vazio. Ninguém. O que estava
acontecendo?, ele se perguntou. Teve então a ideia de correr para La Porte
direto, e na pressa derrubou duas crianças que jogavam bola lá embaixo. A
grade de ferro da La Porte estava abaixada, o que era estranho,
considerando que já passava das 13 horas. Felizmente, Ivan conhecia a
entrada do depósito que servia como quarto dos fundos. No terceiro
toque da campainha, Zoran, primo de Zachary, acabou por abrir.
— Você! – ele exclama com os olhos arregalados de estupefação. – Você é
louco de vir aqui.
— Quero ver o Zachary – respondeu Ivan febril.
O outro ficou olhando, olhos esbugalhados.
— Você ainda não sabe? De manhãzinha, policiais vieram prender
Mansour. Eles certamente vão atacar sua rede. Então, Zachary foi logo
embora. Neste momento, Mansour deve estar no Fleury-Mérogis.
Na realidade, Zoran estava errado. Mansour tinha sido levado para a
prisão de La Santé. Vacilante, Ivan voltou a Cité André Malraux,
convencido de que, de uma hora para outra, policiais viriam sobre ele para
prendê-lo.
Mas os dias se passaram e nada disso aconteceu.
Vocês se perguntam por qual razão Ivan não foi preso também. Não
sabemos e não podemos fornecer qualquer explicação. De toda forma, ele
continuou em liberdade, apesar do medo que o atormentava e fazia com
que ficasse enfiado na casa de Hugo.
Foi aí que ele recebeu uma carta de sua mulher, Aminata Traoré, de
quem ele tinha se esquecido completamente. Ela lhe informava que o filho
deles tinha nascido e se chamava Fadel, bonito como um astro. E se ele
tinha um computador e um endereço de e-mail para que ela enviasse a ele
fotos da maravilha que os dois tinham feito. Havia revirado o céu e a terra
para encontrar seu endereço e se preparava para ir buscá-lo assim que
tivesse os meios. Isso aumentou o estado de pânico no qual Ivan vivia. O
que ele faria com uma mulher e um filho, ele que não tinha nada de nada?
Onde os abrigar? Como os alimentar? O dinheiro ilícito tem a
particularidade de ser logo gasto. Ivan não guardou nada das consideráveis
somas que passaram pelas suas mãos e ficou reduzido a viver à custa da
irmã que, por causa de sua brilhante educação, recebeu uma bolsa de
estudos de Guadalupe. Mona procurou e encontrou um trabalho para ele.
Detestável, para dizer a verdade! Lavar a louça na cantina do colégio onde
ela trabalhava. Apesar de sua repugnância, Ivan dizia que, se a situação não
melhorasse, ele se resignaria a aceitar aquela oferta.
Dezembro trouxe um inverno excepcionalmente frio. Todos os dias os
gramados decadentes da Cité André Malraux ficavam cobertos por um
espesso tapete branco, enquanto um vento glacial e insano circulava entre
as torres. Nenhuma criança jogando bola nos estacionamentos.
Entrouxados de roupa até os olhos corriam para o hall dos prédios e
tentavam manter as portas fechadas para se protegerem das correntes de
ar. Com exceção de Mona e Ivana, ninguém mais saía do apartamento.
Para lutar contra a depressão, Hugo secava copos e copos de rum Depaz,
e, meio bêbado, ficava falante, ele que geralmente era taciturno. Contava a
Ivan, que também não punha nem o nariz para fora de casa, que aquilo ali
o fazia lembrar do terrível inverno de 1954. Ainda jovem, ele trabalhava na
ilha Seguin. Os pássaros tombavam do céu congelados nos pés dos
transeuntes. Nessa época, foi criada a associação dos chiffonniers do
Emaús, essas pessoas que recolhiam trapos e pedaços
de tecido, e o abade Pierre, um jovem padre até então desconhecido, deu
voz a favor dos sem-teto. Mona, por sua vez, estava feliz porque tinha três
netos para os quais, com a aproximação do Natal, montou uma árvore. As
estrelas e as luzinhas multicoloridas lembravam a Ivan os natais ternos de
sua infância. Ele ia com sua mãe e avó à igreja de Dos d’Âne, cuja feiura
ficava momentaneamente borrada. Naquela ocasião, ela vibrava como um
navio. Vestidos de branco, os integrantes do coro que ensaiaram semanas
inteiras se sentavam em bancos à esquerda do altar, com os filhos entre as
pernas. Sob as abóbadas, o hino “Meia-noite cristãos” explodia e enchia o
público com seu fervor.
— Por que você se converteu ao Islã? – Mona perguntava a ele com
frequência, enquanto decorava sua árvore de Natal. – As cerimônias da
nossa religião são tão belas.
Ivan confessava que não sabia mais o que o tinha empurrado na direção
daquela conversão. Hoje o Islã tinha se tornado uma parte integrante de
sua vida. Ele, que raramente abria um livro, nunca se cansava de ler e reler
suratas. Avançou hesitante:
— É que essa religião me pareceu tolerante e generosa também.
Mona o olhou zombeteira.
— É próprio de todas as religiões – ela afirmou.
Sem dúvidas, Mona tinha razão.
Tiveram um Natal branco. Ah, os Natais brancos, quando a canção
insidiosa de Bing Crosby pairava no ar:
I’m dreaming of a white Christmas,
Just like the ones I used to know,
Where the treetops glisten
And children listen
To hear sleigh bells in the snow.12
Para o ano-novo, Ivana usou um vestido assinado por Jean-Paul Gaultier,
que seu irmão tinha lhe dado no tempo de seu esplendor. Que linda ela
estava com aquele vermelho e aquele ouro! Ela superava de longe a esposa
do filho de Mona, uma mulher cabila que se levava a sério, porque havia
estudado enfermagem e trabalhava em um grande hospital. Mona estava
de folga do trabalho. Tinha preparado uma morcela bem temperada,
bolinhos, empadas de carne e a maravilha das maravilhas, um pâté en pot,
uma especialidade martinicana que requer todos os miúdos do carneiro.
Essa suntuosa refeição foi naturalmente acompanhada por uma grande
variedade de ponches e durou até altas horas da madrugada. Todo mundo
estava rindo e brincando, especialmente o filho de Mona, vindo para a
ocasião de Montpellier, onde morava com a família.
Somente Ivan estava sentado isolado e não conseguia partilhar do bom
humor geral. Agora ele não comia mais porco nem bebia álcool. Mais do
que nunca, a lembrança de Alix e Cristina o assombrava. Parecia que podia
respirar o cheiro deles, mergulhado nas delícias de seus seres. Um doloroso
pressentimento o aturdiu. Ele sentia que o céu lhe concedia uma última
trégua antes do golpe fatal. O que o futuro ainda lhe reservava, ele não
cansava de se perguntar, com angústia.
Dois dias depois, o carteiro lhe entregou uma carta registrada. O diretor
da prisão de La Santé o convocava com urgência, que fosse munido de seu
documento de identidade. Permita-nos dar uma olhada mais de perto
nessa missiva bastante surpreendente. Fora datilografada em papel
timbrado comum e trazia um grande selo como assinatura. O que
significava? O que queriam com Ivan?
— Nada – assegurou Hugo. – Se quisessem prender você por causa das
suas ligações com Mansour, já teriam feito isso há muito tempo. A polícia
já teria caído em você com força e o levado com eles.
Segundo Nathaniel Hawthorne, a prisão é uma flor obscura do mundo
ocidental. A prisão de La Santé não se enquadrava nessa descrição.
Localizada no coração do 14o arrondissement de Paris, é uma ampla
construção sem grandes peculiaridades. Seus muros maciços de pedra são
caiados de branco. Uma porta em arco dá acesso a um grande pátio
pavimentado. Apesar dessa aparência comum, o pressentimento que
preenchia o coração de Ivan tornou-se mais intenso. Ele sentia uma força
maléfica que o esperava dentro daquele edifício. Como
um animal, ela se lançaria sobre ele e o destroçaria. Foi conduzido a um
escritório onde ficava uma foto majestosa do presidente da república. Três
homens o esperavam. Dois eram policiais uniformizados, rostos
arrogantes e pálidos sob seus quepes achatados. O terceiro, um civil de
rosto agradável, a pele um pouco bronzeada sob os cabelos castanhos e
crespos, esse sorriu afavelmente e se apresentou:
— Me chamo Henri Duvignaud. Sou advogado do seu primo, Mansour.
Meu pai era de Guadalupe como vocês – completou.
Cortando aquelas amabilidades, sem perder sua irritação, um dos
policiais puxou um fichário azul e o abriu.
— Temos uma péssima notícia para lhe dar. Se demoramos para entrar
em contato com você, foi porque primeiro o procuramos em Guadalupe e
depois no Mali.
O segundo começou a falar e com os olhos baixos disse:
— Seu primo, Mansour Diarra, se suicidou em sua cela. Ele deixou uma
carta para você.
Se suicidou? Ivan se recusava a compreender o sentido daquela palavra.
Aqui está o texto da carta de Mansour para Ivan, que, por esforços de
pesquisa, acabamos por descobrir. Ela não é muito longa, mas está
carregada de emoção:
Meu querido Ivan,
Você se lembra do que eu disse: “Basta ter dinheiro. É preciso ter dinheiro e todos
os meios são válidos.”
Veja, me enganei, porque aqui estou na ponta da corda. Talvez você tivesse
razão. Para mudar o mundo, é preciso atacar o coração e o cérebro das pessoas.
Mas como conseguir isso? O coração e o cérebro se tornaram duros como pedra e
estão escondidos no interior do corpo.
Se estou escrevendo para você, é porque você é mais do que um irmão, você é a
única pessoa nessa terra que me estimava e me levava em consideração. Tenho
certeza de que nós nos veremos em algum lugar.
Com carinho,
Mansour.
Não vamos nos deter nas penosas formalidades que Ivan teve de enfrentar.
Antes, insistiremos no imenso desânimo que se apoderou dele. Ia e vinha
como um zumbi. Sem a ternura da irmã, sem as atenções de Mona que,
sob seus ares de harpia, escondia um coração maternal de ouro, ele teria
perdido o juízo. O momento mais doloroso foi, sem dúvida, o enterro de
Mansour, pois o jogaram em uma vala comum, no cemitério municipal de
Villeret-le-François.
Henri Duvignaud insistiu em estar presente. Embora não tenha deixado
de aludir às suas origens, não conhecera o pai, nem nunca esteve em
Guadalupe. Crescera com sua mãe no luxuoso apartamento
de seus avós maternos. Por gerações, os Duvignaud foram advogados de
negócios pagos por sua rica clientela em dinheiro vivo. Eles se casavam
com mulheres talentosas, pianistas, violonistas ou violoncelistas que se
contentavam em encantar os amigos da família. Apenas uma delas, Araxi,
de origem armênia e que inflamou o coração de Joseph Duvignaud, oitavo
do nome, ficou conhecida e foi convidada a fazer um solo de violino no
Carnegie Hall. Henri foi o primeiro dos Duvignauds a se interessar por
problemas sociais. Ele criou uma associação para defender os sans-papiers
que agora pululavam.
Depois do enterro do Mansour, enganchou seu braço no de Ivan.
— Eu poderia ver você novamente? – perguntou com um ar sedutor.
Se cochichava que ele era homossexual e, com frequência, amante de
quem defendia. De todo modo, isso não podia ser provado. Ivan andava
por uma névoa espessa, tentou se recompor e encontrou forças para
responder:
— Me daria muito prazer rever você.
Então, Henri Duvignaud desliza por sua mão um cartão de visitas. Ele
dividia com dois outros advogados, também interessados em problemas
sociais, um escritório localizado na praça do Châtelet. Ivan foi até lá no dia
seguinte.
— Como você está se sentindo? – perguntou Henri, sempre muito afável.
– O que tenho a dizer a você é de extrema gravidade. Eu acho que o seu
primo não se suicidou, como a polícia diz. Mas que ele foi torturado e
morto pelos golpes que recebeu.
Ivan se recompôs e gritou:
— Torturado!
— Você não notou os hematomas que cobriam seu rosto e as enormes
feridas mal cicatrizadas em sua cabeça?
Não, Ivan não tinha notado nada disso, porque a dor o cegava. Henri
recomeçou com veemência:
— Você não sabe como esses interrogatórios acontecem. A polícia não
está nem aí para esses pequenos traficantes, esses pequenos dealers como o
seu primo. O que eles querem é ter os nomes dos barões, das potências
que trazem as drogas dos países mais longínquos e que as encaminham
para onde querem. Para isso, qualquer coisa vale.
Ivan tinha a impressão de estar ouvindo uma história digna de um filme
policial.
— O que vamos fazer? – implorou.
— Agora, tentar obter provas – respondeu Henri. – Peço que procure
pessoas que testemunharão sobre a doçura de caráter do seu primo. É
preciso que todos saibam que ele foi uma vítima que foi levada à morte.
Terminada aquela conversa, Ivan se encontrou na beira do Sena, ao lado
de um alfarrabista, que vendia edições originais do romance de André
Gide, Os frutos da terra. Como tinha chegado ali? Como seu corpo tinha-lhe
obedecido? Como ele pôde evitar todo aquele trânsito e entrar na faixa de
pedestres, ele não sabia. Sentiu como se tivesse levado um golpe na cabeça
que o deixara semimorto.
Como de costume, o dia estava cinza e chuvoso. Ivan se sentou dentro
de um ônibus cheio que, com muitas paradas, deveria levá-lo ao Boulevard
Brune. Ao se lembrar das boas lições de sua mãe, ele deu seu lugar a uma
velha senhora com quem ninguém estava se importando.
— Eu lhe agradeço – ela diz.
Depois, sacudindo a cabeça de um jeito triste, ela continuou:
— Antes, as pessoas não eram assim como hoje, indiferentes, ocupadas
consigo mesmas e sem empatia por aqueles que as rodeiam. Assim que me
viam, se levantavam e ofereciam seu assento. Agora, vivemos numa época
em que ninguém sabe para onde olhar. E todos esses atentados…
Ivan não pôde responder a ela, pois foi empurrado para mais longe por
uma jovem que entrava no ônibus vitoriosamente, com um carrinho de
bebê.
Como em toda vez em que era ferido, só considerava um refúgio: os
braços de sua irmã. A École Nationale de Police, no Boulevard Brune,
ficava em um edifício elegante e moderno, todo de vidro e concreto. Ivan
atravessou um vestíbulo cujas paredes estavam forradas de fotos de
policiais em ocupações pacíficas: uns conduziam crianças pela rua, outros
empurravam cadeiras de rodas de deficientes, outros ainda ajudavam
famílias de regiões alagadas a entrar em barcos. Um grupo até compunha
uma orquestra.
Ao saber do motivo da visita, olhos brilhando, o recepcionista, um
branco sem graça, elogiou Ivana Némélé, tão charmosa e tão bem-
educada. Depois de alguns instantes a própria Ivana apareceu e é verdade
que ela estava adorável com a jaqueta verde-escura que usava por cima do
uniforme.
— Está tudo como você deseja, Branca de Neve? – o recepcionista
perguntou a ela com um sorriso malicioso.
— Está tudo bem – respondeu Ivana, pegando pelo braço seu irmão que,
estupefato, perguntou a ela em voz baixa:
— Você deixa ele te chamar de Branca de Neve?
— É uma brincadeira nossa – ela respondeu calmamente. – Uma
brincadeira inocente. Não caia na armadilha de quem vê racismo em tudo.
Ela o conduziu até um bar, não muito longe, que se chamava Le
Bastingage. Uma vez lá dentro, o significado daquele nome tão estranho
ficou evidente. As paredes eram cobertas de fotografias de viajantes
sorridentes e felizes no convés de transatlânticos em alto-mar. Na verdade,
Le Bastingage pertencia a um ex-funcionário da Compagnie Générale
Transatlantique, que o abriu depois de sua aposentadoria. Era cheio de
frequentadores regulares. Uns jogavam dardos, outros cartas ou dominó. A
atmosfera familiar lembrava Ivan daquelas dos bares de Dos d’Âne, onde
os clientes estalavam os dedos nas mesas de madeira branca. Um dos
garçons perguntou para Ivana:
— O que você quer? Um pretinho, como sempre?
Dessa vez, Ivan não se deu ao trabalho de levar como ofensa e guardou
seus pensamentos para si. Ele explicou o melhor que pôde sobre a
conversa que acabara de ter com Henri Duvignaud. Depois de ouvi-lo,
Ivana balançou a cabeça com firmeza.
— Não se meta nesses assuntos – ela recomendou. – Eu vi logo que esse
advogado está apenas tentando fazer as pessoas falarem sobre ele, e você
corre o risco de ser levado a um território muito perigoso. Tortura? E
depois o quê? É como estar no meio da guerra da Argélia quando a polícia
obedecia e seguia as ordens de um governo em pânico que não sabia a
quem recorrer. A polícia, ao contrário, é feita para apoiar, ajudar os
desvalidos, protegê-los de todos os perigos.
Ivan não se atreveu a protestar, pois, desde que morava na França, ele
sentia que sua irmã se afastava dele. Ela estava cada vez mais absorvida por
seus cursos, seus novos colegas e seu novo modo de vida. Ele estava
seguindo seu próprio caminho, com as mãos cheias de cinzas.
Depois de um tempo, um trio entrou no bar: dois jovens, uma garota,
vestida como Ivana, de jaqueta verde-escura e com o mesmo uniforme.
Eles se sentaram à mesa com eles sem nem pedir permissão e ela os
apresentou a Ivan.
— É você o famoso irmão gêmeo? – perguntou Aldo, um dos garotos,
cara larga e quadrada sob cabelos escuros e lisos. – Eu também tenho uma
irmã gêmea, mas é bem diferente. A gente se detesta desde a barriga da
nossa mãe, dá pra dizer. Aos dezesseis anos, ela conheceu um indiano de
Goa que veio aperfeiçoar seu francês em Paris. Eles se casaram e foram
embora. Ninguém tira da minha cabeça que ela não o amava e só queria
colocar oceanos de distância entre a gente.
Todo mundo riu. Depois a conversa descambou para os fatos
corriqueiros da escola. Os alunos policiais estavam entusiasmados com a
simulação de um atentado que acabara de acontecer.
Ivan se esforçava para mostrar uma expressão interessada. Mas não
estavam falando do que era real. Era um simulacro, uma ficção, um jogo.
A morte de Mansour, sim, era muito real. Nada o faria ressuscitar.
Um dos membros do grupo propôs que fossem jantar. Eles foram a um
restaurante coreano do bairro. Uma sala despretensiosa lotada de clientes
visivelmente preocupados com suas despesas. Prazer simples na imagem
dessas pessoas simples. Ivan, que já havia comido nos restaurantes mais
sofisticados, achou a comida insípida. No entanto, ele foi forçado a fingir
que estava com apetite e a participar da conversa. Pareceu-lhe, à parte ele
mesmo, que Ivana era tratada com uma familiaridade protetora que o
chocava. Aldo flertava abertamente com ela, e Ivan sofria por ser excluído
dessa intimidade, por não entender as piadas, por não rir dos trocadilhos.
Perto das 22 horas, ele pegou o RER com Ivana. Nos assentos, homens e
mulheres dormiam curvados de cansaço. Era isso então a vida? Ah sim, era
preciso destruir o mundo e o refazer conforme quisessem.
E, se Ivana esperava que Ivan se livrasse de Henri Duvignaud, ela estava
enganada. Dois dias depois, o advogado telefonou de novo para Ivan para
que ele o acompanhasse ao campo de refugiados de Cambrésis. Há anos,
Cambrésis era como Calais, uma praia purulenta na face da França. Tanto
os governos de direita como os de esquerda tinham tentado fazê-lo
desaparecer sem sucesso. Se aglomeravam ali eritreus, somalis,
comorianos e também africanos ocidentais, todos possuídos pelo sonho de
ir para a Inglaterra, onde encontrariam, eles acreditavam, trabalho e
abrigo.
— Por que você quer que eu o acompanhe até um lugar desses? – Ivan se
surpreendeu.
Henri Duvignaud não se deixou demover e explicou:
— O governo quer porque quer evacuar o campo e transferi-lo para um
acampamento a alguns quilômetros de distância. Lá, dizem eles, tudo é
seguro; há escolas para as crianças e um centro de saúde. Àqueles que
pedirem asilo político na França, será oferecido trabalho. Eles dizem que
esse novo acampamento é mais digno de verdadeiros seres humanos.
— Tudo isso me soa bem – afirmou Ivan. – O que você tem a dizer?
— Quero que você veja por si mesmo a separação que existe entre o que
é dito e o que é feito – afirmou Henri. – A polícia vai se encarregar de
evacuar os imigrantes de Cambrésis, eles querendo ou não. À força, se
preciso for. Então, você entende que o que aconteceu com o seu irmão
não é fruto da minha imaginação perturbada.
Ivan preferiu não contar nada sobre esses projetos à Ivana e, depois de
uma noite em claro, decidiu aceitar o convite de Henri Duvignaud. No
volante de um Renault Mégane, bem-vestido e usando um chapéu Fedora
cinza-escuro, o advogado veio busca-lo às 8 horas da manhã na Cité André
Malraux. Isso lhe deu a oportunidade de receber das mãos de Mona uma
xícara do café jamaicano Blue Mountain, que ela afirmava ser o melhor do
mundo. Como sempre, ela voltava ao passado. Envolta em seu quimono
de listras amarelas, se deteve longamente nos belos dias de sua juventude e
chegou até a cantar uma cançãozinha de Francis Cabrel: “Chez la dame de
Haute-Savoie.” Quando ela decidiu ficar quieta, Henri Duvignaud a encheu
de elogios.
Finalmente os dois homens conseguiram se liberar.
— Eu odeio autoestradas – disse Henri, saindo do estacionamento. –
Nosso trajeto pelas nacionais será mais longo e mais monótono.
Aquilo não desagradava a Ivan, que desde sua chegada à França nunca
tinha saído da região parisiense. Apesar disso, ele desfrutou plenamente
daquele passeio inesperado. A despeito do inverno, algumas árvores
permaneciam enfeitadas de verde. Os vilarejos e cidades pelas quais eles
passavam eram pobres, mas lhes pareciam acolhedores. Não chovia
excepcionalmente. Um sol inesperado brilhava em meio a um céu azul
pálido.
Um pouco antes do meio-dia, eles chegaram a Cambrésis. Subitamente,
o vento se ergueu e expulsou todas as nuvens. Cambrésis se resumia a duas
ou três ruas paralelas ladeadas pelas fachadas de imóveis em mau estado.
Ao longe se podia ver o mar manso e sem relevo, cujas ondas vinham
morrer nos quilômetros de praia salteados de dunas onduladas como seios
de mulheres envelhecidas. Em contraste, Ivan se lembrou das praias
ensolaradas e vibrantes de sua infância, às quais ele tinha prestado tão
pouca atenção. Infelizmente, tinha sido assim. Ele não dava qualquer
importância ao que possuía. Por causa de sua imprudência e leviandade,
Alix e Cristina haviam sido assassinados. Às vezes se lembrava do corpo de
Cristina abrindo-se contra o dele e desejava desaparecer também.
No passado, o campo de refugiados de Cambrésis se limitava a dois
ginásios graciosamente oferecidos pela municipalidade. Hoje, ele se
estendia por quilômetros e quilômetros, e nada parecia poder conter sua
expansão. Sob o céu de inverno, fileiras de casebres de madeira ou chapas
de metal remendadas estavam plantadas tortuosamente ao longo de vielas
estreitas, cheias de uma lama avermelhada que grudava nas solas dos
sapatos. Os imigrantes se vestiam aleatoriamente, obviamente graças à
gentileza de seus simpatizantes. Os policiais, tão numerosos quanto eles,
iam e vinham sempre com ar ameaçador. No entanto, Ivan não
testemunhou nenhum ato de brutalidade. Os policiais se comportavam
mais como mentores, carregando crianças pequenas nos braços, ajudando
homens e mulheres idosos a caminhar.
Henri Duvignaud e Ivan logo foram notados.
— Quem são vocês? – disse um policial, correndo na direção deles. –
Não queremos jornalistas aqui.
— Não somos jornalistas – protestou Henri, e explicou que ele era o
presidente e fundador da La Main Ouverte, a mão aberta, uma associação
de amparo.
A sede da associação La Main Ouverte dava para uma pequena praça
curiosamente chamada de Aux Bourgeois de Calais, aos burgueses de
Calais. Em uma sala suscintamente mobiliada, muitos franceses cercados
por um punhado de migrantes ocupavam seus lugares em cadeiras
dispostas em semicírculo ao redor de uma longa mesa. Ao ver Henri
Duvignaud, um francês de cabelos brancos e barba de Papai Noel, se
levantou rapidamente e disse em tom de reprovação:
— Esperávamos que viessem bem mais cedo. A maioria de nossos
protegidos não pôde fazer nada a não ser obedecer à ordem de deixar o
campo.
Henri Duvignaud se sentou à mesa e começou a falar. Tomado por seu
constante sentimento de rejeição, Ivan encontrou uma cadeira na última
fileira. Ele não entendia quase nada do que estava acontecendo ao seu
redor. De repente, o jovem que estava perto dele se apresentou com um
sorriso:
— Me chamo Ulysse Témerlan. E você?
— Ivan Némélé e sou de Guadalupe.
— De Guadalupe? Tem imigrantes que vêm de Guadalupe? – perguntou.
– Eu sou da Somália. De um vilarejo chamado Mangara. Meu pai era
diretor de escola, o que explica o meu nome, Ulysse, e também o do meu
irmão, Dedalus.
Esses nomes, Ulysse, Dedalus, não traziam nada ao espírito de Ivan, que
nunca tinha ouvido falar de James Joyce. A beleza de seu vizinho não
deixou de impressioná-lo. Ulysse era alto, tinha quase dois metros de
altura. Cabelos cacheados coroavam seu rosto de traços simétricos. Apesar
de seu traje surrado, uma espécie de parca de cor bege e calças verdes
curtas demais, sua aparência era resplandecente.
Como Henri Duvignaud não parava de falar de coisas incompreensíveis e
de abrir pastas e pastas, depois de um tempo Ivan e Ulysse preferiram sair.
Em um bar perto dali, Ulysse pediu uma cerveja.
— Você bebe álcool? – disse Ivan com um tom de reprimenda. – Então
você não é muçulmano?
Ulysse deu de ombros.
— Sim, eu sou muçulmano, mas você sabe, eu sei, todas essas bobagens
e tal. Eu adoraria conhecer Guadalupe. Acredita que, quando eu era
pequeno, tive uma professora que vinha de Vieux Habitants. Ela nos
ensinou a recitar: “Nasci em uma ilha apaixonada pelo vento, onde o ar
reflete açúcar e canela” ou qualquer coisa assim. Conhece esse poema?
Não, Ivan não conhecia o poema de Daniel Thaly. Porém, Ulysse não
ouviu sua resposta, pois era um falador e já estava perdido em suas
lembranças:
— Mangara, o vilarejo de onde eu venho, era uma verdadeira maravilha.
Datava do século XVI. À noite, eu ainda sonho com ele. Imagine as casas
escavadas na falésia, os burros levando suas cargas por ruelas íngremes. No
sábado, tinha feira de animais, e nós, crianças, íamos lá provocar as vacas
enormes de olhos vermelhos. Infelizmente, quando eu tinha dez anos,
meu pai morreu. Contam que ele foi envenenado por vizinhos invejosos.
Nunca saberei a verdade. Tudo o que eu sei é que depois disso minha mãe,
que não tinha nenhum recurso, foi obrigada a partir para Mogadíscio,
pedir abrigo à sua irmã. Foi ali que as dificuldades começaram. Meu
irmão, meus primos e eu tentamos conseguir dinheiro de todas as formas
possíveis e imagináveis. Roubávamos tudo o que encontrávamos. Uma vez
roubamos estrangeiros que estavam dando a volta ao mundo em seu iate
de luxo e tinham parado por conta de uma avaria no motor. Eles tiveram
pena de nós e passaram a nos comprar frutas e legumes regularmente.
Cansados de miséria, meus primos emigraram para a Europa. Depois de
dois anos de tribulações, chegaram na Inglaterra e nos contaram do
milagre. Nos convidaram para ir se juntar a eles, porque tinham
encontrado trabalho. Trabalhar! A partir dali, meu irmão e eu só tínhamos
uma ideia na cabeça: era nossa vez de ir embora. Dedalus e eu pegamos a
estrada para a Líbia, de onde diziam que centenas de barcos saíam para as
cidades da Europa. Infelizmente, a Líbia estava um verdadeiro caos. Ao sair
de um bar, durante uma rixa, meu irmão foi morto e eu tive que enfrentar
o mar sozinho. Faz três anos que ando em círculos em Cambrésis. Não sei
dizer quantas vezes eu tentei ir para a Inglaterra, mas sempre fui rejeitado.
Só que isso não vai mais acontecer, porque eu desisti da travessia.
— Então, decidiu ficar na França? – disse Ivan surpreso. – Você vai pedir
asilo político?
Ulysse fez uma careta.
— Não sei ainda.
Por que Ivan teve a impressão de que Ulysse escondia seus projetos? Essa
impressão se acentuou quando voltaram para a sala de reunião da
associação e Ulysse pediu que Henri Duvignaud o levasse até Paris.
— Paris? – se surpreendeu Henri Duvignaud.
— Sim – respondeu Ulysse com desenvoltura. – Uns amigos me
convidaram para passar alguns dias com eles. Eles moram no Boulevard
Voltaire, mas, pode me deixar em qualquer lugar, eu me viro.
Algum tempo depois, apesar de sua falta de entusiasmo, Ivan teve que
aceitar a oferta de Mona e trabalhar para o colégio Marcellin Berthelot.
Em vez de cuidar da cantina como tinham falado, ele foi alocado nos
serviços mais duros, os de limpeza. Era preciso esfregar o chão das salas de
aula, esvaziar os cestos de lixo, encher de giz as caixas, passar uma espécie
de verniz nos quadros-negros. O pior era varrer os pátios de recreação
glaciais, que a geada deixava escorregadios e perigosos. Como todo o
trabalho tinha que ser concluído antes da chegada dos alunos e da abertura
dos portões às 8 horas, isso significava que Ivan se levantava de madrugada
todos os dias, bebia uma xícara de café Blue Mountain ou não, atravessava
os estacionamentos ventosos da Cité André Malraux tremendo e
caminhava a pé até o colégio pelas ruas que iam aos poucos despertando.
Quando ele olhava para sua própria vida, não a compreendia. Mais uma
vez se perguntava se era porque tinha se recusado aprender a ser um
chocolateiro que estava naquela situação deplorável. Quando ele vivia em
Guadalupe, seu coração batia numa antecipação feliz. O que tinha
acontecido? Por que o azar não parava de persegui-lo? Ele não tinha
amigos. Ninguém com quem contar, ninguém com quem compartilhar
sua angústia. Ivana parecia cada vez mais distante. Ela mal lhe dava um
beijo apressado na testa, pela manhã e pela noite, antes de se trancar em
seu quarto. Ele não aguentava mais as críticas constantes de Hugo e
principalmente de Mona que, tendo conseguido um emprego para ele,
achava que podia dizer qualquer coisa.
Às sextas-feiras, Ivan ia piamente à mesquita, chamada Mesquita
Radogan, por causa do nome de seu imã. Ele não ia lá apenas para rezar,
pois estava em constante conversa com esse deus que o havia criado e
agora parecia tê-lo esquecido. Por que ele tolerava o mal e a maldade dos
vivos? Essa pergunta ficava girando em sua cabeça. Se gostava de ir à
mesquita, era porque gostava de se misturar à humilde multidão de
homens que se prostravam em direção a Meca. Naqueles momentos, seu
sentimento de solidão desaparecia. Tinha a impressão de encontrar irmãos
tão desamparados, tão vulneráveis quanto ele, para quem, talvez, a
felicidade pudesse chegar.
Numa sexta-feira, apareceu um novo imã.
Ao contrário do imã Radogan, um personagem sem sal, que mal falava
francês, o novo imã tinha muito carisma. Ele se parecia bastante com
Ulysse: pele marrom, cabelos pretos e lisos como os dele, olhos brilhantes,
a voz forte e poderosa. Ivan não demorou a ter informações a seu respeito,
porque não se imagina o falatório que são os lugares de oração. No
refeitório da mesquita os fiéis, enquanto bebericavam seu chá de hortelã,
conversavam sobre tudo. O novo imã se chamava Amiri Kapoor. Era do
Paquistão e tinha passado muito tempo em Kano, uma cidade sagrada no
norte da Nigéria.
Ivan ficou comovido com seu sermão:
— Tome seu destino em suas próprias mãos – ele declarou com uma voz
vibrante. – Não aceite mais ser desprezado, esnobado como se fosse uma
criança que não serve para nada. Devemos por todos os meios, quero dizer
todos os meios, destruir o mundo ao nosso redor e, em suas ruínas,
construir um refúgio mais acolhedor para a humanidade.
Não era a primeira vez que Ivan ouvia aquele tipo de discurso. Mas,
naquele dia, ele ressoou de um modo particular dentro dele. Se sentiu
investido de uma energia nova, pronto para enfrentar tudo. Como ele
gostaria de falar com esse imã. Infelizmente, quando empurrou a porta de
sua sala de espera, uma dúzia de fiéis já havia ocupado o lugar e ele se
retirou decepcionado.
Naquela mesma noite, ele recebeu um telefonema de Ulysse,
convidando-o para ir jantar com ele. Ulysse tinha mantido sua palavra:
havia deixado o campo de Cambrésis e tinha encontrado trabalho em
Paris. Ivan ficou com inveja daquilo. Encontrar trabalho em Paris e um
trabalho bem pago, aquilo era um milagre. Para ele tal sorte não sorria!
Embora não desejasse continuar sua associação com esse mau muçulmano
que se envolveu com o álcool, aceitou o convite, ciente de como suas
noites eram tristes na Cité André Malraux. Ivana se trancava em seu
quarto com suas anotações datilografadas e seus livros do curso. Hugo não
demorava a se juntar a um de seus amigos guianenses. Ele ficava limitado à
companhia de Mona, que não parava de sorrir e ficava cantarolando. Ou
então ele ficava assistindo a filmes estúpidos na televisão.
Contra todas as probabilidades, Ivan passou a gostar de Paris. Ele sabia
que aquela cidade nunca seria dele. Ele nunca encontraria um lugar ali. No
entanto, sua vivacidade em todas as horas, dia e noite, era benéfica como
uma droga. Cada uma de suas avenidas lhe soprava aos ouvidos uma
melodia cativante que despertava o desejo de dançar. Tudo era diferente
da melancolia de Villeret-le-François. Os passantes pareciam mais abertos e
alegres. Era como se estivesse apaixonado por uma mulher cuja beleza,
inteligência e qualidades tornavam-na inacessível.
Ulysse morava no coração de Paris, bem no Boulevard Voltaire, num
prédio que parecia bem bonito, mas com séria desvantagem: não tinha
elevador. Ivan teve que mexer os quadris subindo seis lances íngremes de
escada cobertos por um carpete bastante surrado. Quando Ulysse veio
abrir a porta, pareceu-lhe que não o reconhecia. Tinha desaparecido o
imigrante embrulhado na parca surrada e calças horríveis que vira há
algumas semanas. Ulysse estava vestido com a maior das elegâncias,
cuidado, como Mansour nos velhos tempos, de terno de risca, o colarinho
amarrado com um grande lenço de seda azul. De onde vinha essa
transformação? Como explicar? Ivan deteve suas perguntas e seguiu seu
anfitrião por um labirinto de quartos bem decorados até um lindo
aposento com uma cama coberta por rico cobertor marroquino.
— Bem, bem! Você ganhou na loteria? – perguntou a Ulysse, fingindo
uma brincadeira.
Ulysse sacudiu a cabeça em negativa:
— Eu te falei, achei um trabalho.
Acendeu um cigarro, pois aquele mau muçulmano não apenas bebia
como também fumava.
— É que é um trabalho um tanto especial, que vou te explicar, pois eu
penso que um cara como você, constituído assim, poderia tirar proveito
disso. Você não sabe o horror que era o campo de Cambrésis, onde passei
três longos anos. Não estou falando da sujeira dos chuveiros e banheiros
que tínhamos que compartilhar com dez ou doze. Vou poupar você de
falar da comida nojenta que era servida em bares que se intitulavam
restaurantes. Falo da promiscuidade que ali reinava, dos estupros
cometidos diariamente contra mulheres, adolescentes e às vezes até
crianças. Enfim, contra todos aqueles que eram vulneráveis. Tive sorte de
sair de lá, porque conheci um casal que me ajudou muito.
Depois de um silêncio, ele continuou com um tom um pouco
envergonhado:
— Eles propuseram que eu me tornasse um acompanhante.
— Acompanhante? – repetiu Ivan confuso. – O que isso quer dizer?
O tom envergonhado de Ulysse se acentuou. Ele fez um gesto vago.
— Eu acho que é uma palavra inglesa ou espanhola, não sei. Não tem
importância. Sabe, as mulheres não são mais o que eram antigamente.
Elas também não são nada do que diziam no nosso país. Elas têm
vontades, as mulheres. Elas têm energia. Elas têm desejos. Quero dizer dos
desejos carnais. Elas sabem o que querem e querem homens capazes de
satisfazê-las e de lhes fazer provar dos prazeres da vida. Todos os prazeres,
entende?
Não, Ivan não entendia nada.
— O que você está dizendo? – perguntou de novo.
Ulysse decidiu pôr as cartas na mesa.
— Quero dizer que você pode fazer milhares de euros por mês, se você
souber se servir das armas que o destino lhe deu. Quanto mede seu pênis?
— O quê? – exclamou Ivan, acreditando ser um mal-entendido.
Ulysse ergue uma mão apaziguadora.
— Estou brincando, estou brincando. Vamos falar sério. No momento,
estou acompanhando três mulheres: uma delas dirige uma agência de
publicidade; outra é uma atriz conhecida, cujos primeiros filmes são
promissores; a terceira é uma médica especializada em cirurgia estética.
Nenhuma delas reluta em me dar todo o dinheiro de que preciso.
Aos poucos a verdade surgiu para Ivan, pois ele não era completamente
ingênuo. Pior do que tudo que ele podia imaginar, Ulysse ainda entregava
seu corpo às mulheres por dinheiro. Ele não valia mais do que um
prostituto. Um fluxo de bile escaldante encheu sua boca. Quase vomitou,
se levantou e caminhou em direção à saída.
— Não seja ridículo – disse Ulysse, tentando impedi-lo.
Ivan não o ouvia mais. Descendo as escadas de quatro em quatro
degraus, aterrissou na calçada e com seu pulo quase derrubou um casal.
Sem saber direito o que estava fazendo, atravessou o boulevard e se pôs a
correr adiante, como há anos não corria, e as pessoas assustadas paravam
para deixar passar aquele negro grande, mais rápido que o mítico Thiam
Papagallo. Ele empurrou o portão de uma praça, que de dia era cheia de
bebês em seus carrinhos, crianças pedalando em seus triciclos, mas
naquela hora estava deserta, e deixou-se cair num banco cuja frieza o
agarrou através da espessura de suas roupas. A vontade de vomitar não o
deixava. Sentia-se degradado, sujo. Ele gostaria de ser criança novamente
quando Simone ensaboava seu corpo com sabão de Marselha e derramava
cabaças e cabaças de água morna em sua cabeça. Enquanto ele permanecia
imóvel imerso em seu desgosto, um jovem parou na frente dele e lhe deu
um sorriso inequívoco.
— Você não está com frio? – ele sorriu.
O sangue de Ivan correu em suas mãos, que ele não pôde controlar, e
elas pularam na garganta do sedutor. É isso que o mundo oferece:
prostituídos, homossexuais e acompanhantes. Tudo o que é torpe.
Conseguimos reconstruir com exatidão os eventos dessa noite fatal.
Empregamos a palavras “fatal” propositalmente, pois, aos nossos olhos, é
neste momento que se completa a radicalização de Ivan, que estávamos
tentando acompanhar e compreender ao longo da narrativa. Até agora,
alguns acontecimentos de sua vida, particularmente a morte de seus
amados Alix e Cristina, não o tinham conduzido a uma mudança radical.
De repente todas essas peripécias ganham um novo relevo espantoso. A
morte de Mansour, a degradação de Ulysse assumiram um caráter
determinante.
Os gritos do homem que ele segurava pelo colarinho chamaram atenção
de uma multidão de passantes que se dirigiam ao Bataclan, onde naquela
noite aconteceria um show. A socos e pontapés, eles conseguiram libertar
a vítima. Mas Ivan era tão grande e tão forte que escapou deles e
conseguiu fugir. Entrou em um táxi que estava passando pelo Boulevard
Voltaire. Esse táxi era conduzido por um negro, um negro de Guadalupe,
Florian Ernatus que, ao ver um homem de sua raça em dificuldade,
perseguido por um bando de brancos, só pôde ir ao seu auxílio. Tal
conduta tem se tornado cada vez mais rara e merece ser destacada. Os
brancos, por outro lado, sempre se mataram. Tomando como exemplo os
nazistas e os judeus. Mas os negros, ao contrário, motivados por suas
teorias da negritude, da solidariedade racial, acreditavam que deveriam
sempre se ajudar. Tais ideias não prevalecem mais hoje.
— Para onde você vai? – perguntou Florian Ernatus a Ivan, pisando no
acelerador.
— Eu não sei… Sim, eu vou para Villeret-le-François – balbuciou Ivan.
Prostrado no assento, enquanto em volta do carro, lançado a toda
velocidade, desfilavam as luzes dos bares e prédios, ele, que nunca falava
de si, começou a contar sua história de vida.
— É a mesma coisa em todo o mundo – diz Florian erguendo os ombros.
– Você acha que as coisas são melhores para mim? Primeiro que nunca
conheci meu pai. Questionando minha mãe, ela acabou me dizendo que
ele se chamava Bong. Era um filipino que limpava cabines a bordo do
navio de cruzeiro Empress of the Seas quando a companhia Crosta fazia
escalas nas Antilhas. Minha mãe era babá do caçula de uma família de
mulatos ricos que estava viajando para comemorar seu décimo aniversário
de casamento. Será que ela estava falando a verdade? Eu não sei de nada.
Durante anos, andei de pés descalços ou de tênis, porque não tinha
dinheiro para comprar um bom par de sapatos. Por um tempo trabalhei
nas plantações Filipachi. Infelizmente, um belo dia, uma rajada de vento
derrubou as bananeiras e fiquei desempregado. Então trabalhei na
suinocultura Salomon, mas os porcos pegaram dengue e tiveram que
fechar. Foi só em Paris que encontrei trabalho. Este táxi não é meu, sou
apenas o motorista.
O que Florian não dizia era como tinha procurado e procurado seu pai.
Ele tinha ido à Jamaica, onde a companhia Crosta tinha suas instalações e
por três vezes havia sido contratado para as cozinhas. Mas, entre as
centenas de filipinos que limpavam as cabines, ele nunca encontrou o que
se chamava Bong.
Só podemos elogiar a maneira como Florian Ernatus se comportou com
Ivan. Ele o levou a Villeret-le-François e, sem levar em conta as voltas e
desvios que foi obrigado a fazer apesar do seu GPS, não lhe pediu um
tostão. De graça. Chegando na Cité André Malraux, ele ajudou Ivan a
subir as escadas da torre onde morava. Entrou com ele no pequeno
apartamento de Hugo, abriu seu futon e colocou-o na cama como faria
uma mãe. Podemos afirmar com certeza que, a partir daquele momento,
o comportamento de Ivan mudou visivelmente. Ficou mais taciturno.
Nunca mais houve um sorriso e muito menos uma gargalhada. Sempre
pronto para dissecar os menores acontecimentos de sua vida cotidiana.
Passou a semana enrolado em seu futon, a testa coberta de compressas.
Ivana perdeu dois dias de aula para cuidar dele. Embora Mona continuasse
dizendo que era apenas uma gripe e que o médico não deveria ser
chamado, ela estava preocupada. Finalmente, Ivan abriu os olhos, se vestiu
e foi para a mesquita, determinado a falar com o imã Amiri Kapoor. Ele
sentia, aquele homem transformaria sua vida.
O imã Amiri Kapoor o recebeu em seu escritório que embasbacava por
seu luxo todos aqueles que ali entravam. Naquela mesquita miserável, um
antigo ginásio doado pela municipalidade à sua população muçulmana,
que crescia sem parar, ele conseguiu arrumar um espaço de beleza.
Caligrafias pretas ou douradas cobriam as divisórias, bem como fotos dos
principais locais de oração do mundo: Meca ficava ao lado do Gólgota,
Notre Dame de Paris com a abadia de Westminster. O imã tinha um perfil
muito interessante. Era filho e neto de imãs, dois rigoristas que haviam
levado muito além o nome de deus na pequena aldeia de Ragu, localizada
a poucos quilômetros de Lahore. Ele tinha quinze anos quando seu pai o
obrigara a enviar uma carta cumprimentando o Aiatolá Khomeini, que
acabara de anunciar uma fatwa contra Salman Rushdie. Assim devem
perecer os maus muçulmanos, trovejou seu pai. Passara então três anos em
Medina, cidade austera, onde ressoam desde cedo os chamados do
muezim. Quando ele morou em Kano, fez maravilhas, tirando a poeira,
reorganizando as instituições da cidade sagrada onde muitas vezes a
oração não passava de um recitativo monótono.
Amiri Kapoor repousa sobre Ivan seu olhar penetrante.
— Primeira pergunta: por que você se converteu ao Islã? Eu sei que no
lugar de onde você vem, o cristianismo é rei. Por que essa conversão?
Ivan pensou por um instante:
— Não sei muito bem. Eu morei no Mali. Na vila onde morava com
minha irmã, nós éramos os únicos católicos e eu me sentia sempre
estrangeiro, pisando em falso. Eu acredito que quis me aproximar do meu
pai, com quem me dava bastante mal.
O imã se surpreende:
— Então você tem uma irmã?
— Uma irmã gêmea – respondeu Ivan, tomado, contra sua vontade, pela
paixão que o dominava quando se mencionava de Ivana. – Saí do ventre de
nossa mãe antes dela e sou um garoto. Por essas duas razões, eu deveria
me considerar superior. Mas não é assim. Ela é tão talentosa e eu tão
inferior a ela, eu a adoro.
— Devemos adorar apenas a Deus – cortou secamente o imã.
Aquela reprimenda brutal doeu em Ivan.
O imã continua com mais doçura:
— A sua fé em Deus é tão cortante quanto uma arma? Você é capaz de
matar por ela?
Ivan hesita de novo. É certo que ele tinha feito parte do esquadrão que
matou El Cobra, mas apenas obedecendo por medo ou covardia a ditames
do Exército das Sombras. Aquele ato não tinha nascido de uma vontade
pessoal.
— Sim – ele afirmou, no entanto. – Eu sou capaz.
O que se segue é uma longa troca de olhares. Amiri Kapoor
compreendia que aquele garoto, ainda inocente, incapaz de enxergar
claramente dentro de si, era, no entanto, feito de uma matéria excepcional,
aquela que gera discípulos de primeira linha. Bastava ajudá-lo, livrá-lo de
algumas escórias, por exemplo, esse amor intempestivo pela irmã.
Ele remexeu nas gavetas de sua escrivaninha, tirou dali um volumoso
dossiê e o abriu.
— Você está livre na terça e na quinta à noite? – perguntou ele. – Se sim,
eu te encarrego de ajudar os alunos da escola do Corão. Você vai ler os
deveres deles, vai fazer anotações, vai tentar fazer com que se aproximem
de Deus, pois você é capaz, eu sinto.
Depois de um silêncio, ele continuou:
— Preciso dizer que, em troca dos teus serviços, posso apenas oferecer
uma pequena remuneração. Você conhece a situação financeira das
mesquitas na França…
Ivan fez um gesto rápido.
— Não é questão de dinheiro. Eu faria de graça se o senhor me pedisse.
Como a vida é surpreendente! Na mesma semana, Ivan encontrou duas
formas de atividades honrosas. O diretor do colégio Marcellin Berthelot,
que nunca tinha prestado atenção nele, o chamou em seu escritório. Para
sua grande surpresa, ele lhe ofereceu um trabalho para substituir o vigia
que um infeliz acidente de carro tinha levado ao hospital por longos
meses.
— Não tem nada de mais para você fazer – ele garantiu. – Simplesmente
vigiar os alunos que ficam para estudar. A senhora Mona Hincelin me
informou que você fez excelentes estudos secundaristas e que eu poderia
conseguir facilmente seu histórico na secretaria da educação de
Guadalupe.
Ivan deu graças a Deus que por uma vez parecia se preocupar com ele.
A partir dali ele compartilhou seu tempo entre o colégio Marcellin
Berthelot e a escola do Corão da mesquita. Tinha um fraco pelas horas
que passava na mesquita, pois lá ele ficava rodeado de jovens pelos quais
ele tinha, sem saber por quê, uma profunda afeição. Ele, que não conhecia
a expressão segunda ou terceira geração, compreendeu logo seu
significado. Aqueles adolescentes jamais chegariam ao país de seus
ancestrais. Eles não os conheciam. Nascidos na França, acreditavam que
eram franceses, orgulhosos de terem edificado a torre Eiffel e escavado o
canal Saint-Martin. Alguns deles eram netos de harkis e não sabiam que
seus avós tinham dado uma boa ajuda à França, quando ela precisou.
Viviam numa ignorância abençoada. Até que o inesperado insulto “árabe
sujo” irrompesse por um apontador de lápis perdido ou um livro escolar
rasgado. Certamente tinham cabelos crespos e tez caramelo. Mas eles
eram árabes, se perguntavam? A propósito, o que é um árabe? Aqueles que
levavam a investigação adiante descobriam os culpados principalmente por
sua religião: o Islã. Eles não conseguiam superar. Aquela baboseira a que
nem davam muito valor os fazia culpados: responsáveis por atos cometidos
em países desconhecidos e tão distantes quanto o Paquistão ou a
Indonésia.
Pela primeira vez, Ivan foi forçado a pensar o que era o Islã. Religião de
guerrilha, diziam uns. E não estão todas as religiões fazendo proselitismo e
se regozijando com o número daqueles que elas convertem? Religião
misógina, diziam outros. O cristianismo não é também assim? Não faz
muito tempo, se perguntavam se as mulheres eram dotadas de uma alma
eterna como a dos homens.
Ao contrário dessa ocupação, Ivan não gostava de suas novas funções no
colégio Marcellin Berthelot, onde não apreciava os alunos, que
considerava pretensiosos, com os olhos fixos nas Grandes Écoles. Lá ele
passava a maior parte do tempo impedindo que os colossos da terceira
série intimidassem os pequenos da sexta série. Ele dispersava as brigas na
saída e colocava ordem no que antes dele não passava de caos. Muito
rapidamente, estava sendo chamado de Batman pelas costas. Ao saber
desse apelido, questionou Serge, um menino com quem tinha feito
amizade.
— Batman? Por que vocês escolheram me chamar assim? – disse
surpreso.
Sem hesitar, Serge respondeu:
— É porque você sempre vem em socorro dos mais fracos.
Ivan não ficou satisfeito com aquela resposta. Não era o que ele queria,
ele queria mudar o mundo. O único problema é que ele não sabia como
começar. Esperava que o imã Amiri Kapoor pudesse vir em seu auxílio,
mas nada tinha acontecido ainda. Às vezes tinha a impressão de que o imã
o observava e se dava o tempo de uma reflexão.
Não é preciso dizer que Ivan e Ivana não tinham lá muita coisa em
comum e que cada dia mais viviam em planetas diferentes. Se Ivan sofria
muito com essa situação, Ivana parecia não se dar conta. Ela estava feliz,
até realizada. Tinha passado nos exames e entrado no segundo ano da
École Nationale de Police. Ela já se encarregava de pequenas atividades,
das quais estava orgulhosa: fazer parte das patrulhas nos bairros pouco
seguros, ficar perto das escolas e ajudar os pais acompanhados de crianças
pequenas a atravessar as ruas, às vezes mesmo organizar o trânsito. No
domingo, ela era invisível. Não era mais uma dúvida se Ivan almoçaria
com ela. Ivana visitava lugares como a Notre Dame de Paris, Montmartre
e principalmente os castelos do Loire, em particular o castelo de
Chambord, pelo qual tinha uma predileção. “Construído no coração do
maior parque florestal fechado da Europa, se trata do mais amplo castelo
do Loire. Tem um jardim ornamental e um parque de caça, considerado
um monumento histórico.” Tinha uma grande amiga chamada Maylan.
Era uma aluna da academia de polícia, loira, de origem búlgara, e dotada
de uma bela voz. Já se achando uma Sylvie Vartan, ela cantava solos em
concertos organizados por diversas associações de caridade. Ivana e
Maylan eram inseparáveis. Quando não estavam juntas, tinham conversas
intermináveis ao telefone, o celular deslizando pela orelha. Por todos esses
motivos, Ivan a detestava.
Por que ele tinha aceitado ir até Fontainebleau, onde ela se apresentava
na fazenda dos pais? Sem dúvida foi por conta do início da primavera que
tinha lhe dado asas. Um sangue mais alegre parecia correr nas veias. No
lugar do gordo sol de Guadalupe seguido de longos períodos de chuva, no
lugar do calor sufocante que reinava todo o ano no Mali, aquela
diversidade era abençoada. A mesma paisagem se transformava de um mês
para o outro como se um feiticeiro a tivesse tocado com sua varinha
mágica.
Os pais de Maylan moravam numa fazenda espaçosa, localizada não
muito longe da floresta de Fontainebleau. Para o concerto da filha, eles
não tinham deixado nada ao acaso. Dispuseram no pátio principal grandes
gazebos brancos que abrigavam mesas redondas e cadeiras. Não fossem os
odores desastrosos advindos de um chiqueiro próximo dali, que o vento
levava em intervalos, tudo teria sido perfeito. Ivan se sentou com a irmã
que muito rapidamente encontrou os amigos, cuja companhia parecia lhe
agradar. No palco, homens executavam um dueto: “Perrine était servante,
Perrine était servante chez monsieur not’ Curé. Diguedondaine.” São canções
antigas locais, explicaram a Ivan. Aparentemente conquistado, o público
aplaudiu num rompante. Ivan não. Depois de uma hora, ele não suportava
mais o tédio daquela reunião e os murmúrios insípidos da plateia. Partir,
ele tinha que partir.
Se levantou, cochichando no ouvido de sua irmã, surpresa:
— Já volto. Não se preocupe.
Ele saiu e se encontrou numa estrada de terra. O sol atirando raios cada
vez mais fortes, o suor começando a escorrer em seu rosto. Ele não sabia
onde ficava a estação de Fontainebleau e para chegar lá resolveu pegar
carona. Teve que esperar o quinto veículo para que um motorista parasse.
Um loiro dirigindo um Volkswagen colocou a cabeça para fora da porta.
— Para onde tu vai? – ele perguntou com um sorriso.
Vindo de um perfeito desconhecido, aquele “tu” mais direto sur­preendeu
Ivan.
— Vou para a estação de Fontainebleau. É pra lá que quero ir.
O loiro deu uma gargalhada.
— Tu tá no caminho certo. Se andar mais uns vinte quilômetros, vai
chegar.
Diante da cara desconcertada de Ivan, ele continuou:
— Estou brincando. Sobe. Eu também estou indo para a estação. Eu te
deixo lá.
Continuou com a mesma familiaridade:
— Me chamo Harry. E tu? Onde trabalha?
Ivan foi incapaz de responder àquela pergunta. O outro insistiu:
— Nos La Pallud? Nos Dumontel? Em qual haras?
— Eu não trabalho em um haras – Ivan contestou. – Fui convidado para
um concerto.
— Para um concerto? Pensei que trabalhasse nos Dumontel. Eles
empregam muita gente como tu.
Como tu? O que aquilo queria dizer? Será que Harry não tinha notado
nem o seu elegante terno de seda selvagem, nem sua bela camisa de
colarinho engomado, nem seus sapatos de boa qualidade, últimos vestígios
da sua elegância dos tempos de Mansour. Ele só tinha notado sua cor. Ele
só havia visto o homem preto, o negro, como se dizia antigamente, e, a
seus olhos, ele só podia ser um subalterno. Antes de dar partida no motor,
Harry remexe nos CDs que tinha no carro.
— Boto um Coluche pra ti? Tu quer ouvir? São regravações dos
melhores esquetes.
Ivan foi pego de surpresa e só conseguiu gaguejar uma resposta:
— Coluche? Não conheço.
Ele tinha uma vaga lembrança de um homem gordo de macacão, com
uma franja na testa. Mas nunca havia prestado atenção nos discursos.
— Não é possível – exclama Harry, arregalando os olhos azuis. – Tu
nunca ouviu falar de Coluche nem de Restos du Coeur?
Aujourd’hui on n’a plus le droit,
Ni d’avoir faim ni d’avoir froid.
Dépassé le chacun pour soi,
Quand je pense à toi je pense à moi.13
O que eu fiz de errado?, se perguntou Ivan quando o carro começou a
andar. Harry sabia o nome dos grandes percussionistas de Guadalupe e da
Martinica? Felizmente, o trajeto foi rápido. Ivan desceu na estação e
gaguejou alguns agradecimentos.
Quando ele chegou em Villeret-le-François, Mona tirava cartas para ela
mesma na sala de estar.
— Você já voltou? – disse surpresa. – Onde está Ivana?
Então ela continuou sem esperar resposta:
— Hoje as cartas só me dizem de tristeza. Escuridão sobre escuridão.
Valete de espadas sobre valete de espadas.
A curva no relacionamento de Mona e Ivan tinha mudado
significativamente. No começo, ela juntava suas críticas às de Hugo e o
considerava um malandro. Ela constantemente o comparava a seu filho,
um simples e bem-conceituado professor de história em sua faculdade
provinciana. Pouco a pouco, ela começou a tratá-lo de maneira diferente.
Poderíamos sugerir que talvez a boa aparência de Ivan tenha muito a ver
com isso. Seu sexo, apertado nas calças e que parecia sempre a ponto de
transbordar, lembrava a Mona o tempo em que, apaixonada por belos
homens, acumulava amantes e amantes. No entanto, vamos descartar essa
calúnia. Digamos apenas que o caráter e a solicitude de Ivan a
conquistaram. Foi com ela ao mercado da Croix Nivert, empurrando o
carrinho pesado de provisões que depois ele levou para cima pela íngreme
escadaria do prédio.
Ivan se sentou na frente da televisão, decidido a esperar a volta da irmã
para conversar com ela. Que prazer Ivana tinha na companhia que a
rodeava? Teria se esquecido das ambições que a guiavam quando morava
em Guadalupe? Infelizmente, por volta das 22 horas, Ivana ligou para
Mona dizendo que passaria a noite na casa de Maylan. Ivan, cada vez mais
deprimido, desdobrou seu futon e tentou dormir.
No dia seguinte, ele foi novamente até o imã Amiri Kapoor, para
conversar com ele e obrigá-lo a cuidar de seus problemas. Ele estava
mergulhado em seu Corão, enquanto bebia uma xícara de café.
— Que bons ventos o trazem? – perguntou caloroso. – Só ouço coisas
boas a seu respeito. Os jovens dizem que você é um educador sem par.
Ivan se encolheu em sua poltrona e respondeu, lúgubre:
— Não é a impressão que tenho. Na minha opinião, tudo vai mal.
Então ele se pôs a narrar, nos mínimos detalhes, as experiências que
vivera nas últimas semanas, sem silenciar sobre os contratem-
pos que teve com Ulysse.
O imã o ouvia com extrema atenção, sem interromper. Quando Ivan se
calou, surpreso consigo mesmo daquele mergulho nas águas do mal-estar
que carregava em si, sem suspeitar abertamente o imã tirou uma folha
datilografada de uma gaveta de sua escrivaninha e a estendeu para ele.
— Primeiro leia – ele disse. – Leia. Só o conhecimento salva. Muitas das
perguntas que você se faz não estão sem resposta.
Ivan dá uma olhadela na lista de livros. Ele encontra ali nomes, títulos
que Ismaël tinha indicado a ele quando era membro do Exército das
Sombras e, bem antes dele, o sr. Jérémie quando ele estava na escola em
Dos d’Âne: Frantz Fanon, Eric Williams, Walter Rodney, Jean Suret-
Canale… Ele nunca tinha se dado ao trabalho nem de comprar nem de
estudar aqueles livros, do que agora ele se arrependia.
— Espere – diz ele –, eu não lhe expliquei o mais sofrido. Você não
imagina o quanto eu me importo com a minha irmã gêmea. Eu diria até
que ela é tudo para mim. Mas agora ela está cada vez mais longe. Está
absorta em seus estudos e na vida que leva na França. Não sou nada para
ela e isso me causa muita dor.
O imã deu de ombros.
— A mulheres são espíritos pequenos, deixe isso para lá. Eu lhe digo
francamente que você ama demais a sua irmã. Isso é um sentimento
pouco saudável. Se ela está se afastando de você, deixe-a partir. É pelo bem
de vocês dois.
Ninguém nunca tinha falado de forma tão brutal com Ivan. Que
menosprezo, que masmorra, que prisão sua vida se tornaria se Ivana não
mais a iluminasse. O imã continuou:
— Agir, é disso que você precisa. Passar ao ato. Vou lhe encaminhar a
um grupo de jovens que lhe ajudarão a se tornar um homem. Um
verdadeiro homem. Eu entendo você. A sociedade ocidental na qual nos
encontramos imersos perecerá, pois está muito segura de si e acumula
erros sobre erros. Só nos importa que ela não nos leve para sua perdição.
Nas semanas seguintes, Ivan se sentiu cada vez mais sozinho, apesar das
promessas que o imã lhe havia feito. Ivana multiplicava as ausências:
cursos de idiomas no exterior, férias em países ensolarados. Foi assim que,
com Maylan, ela foi a Portugal, a Faro, uma pequena estância à beira-mar.
Ela conseguiu até mesmo a proeza de ficar três dias inteiros sem telefonar
ao irmão.
Durante esse tempo, Hugo e Mona, apertados na Cité André Malraux,
encorajavam os dois jovens a procurar sua própria acomodação. Mona,
que sempre dava um jeito em tudo, encontrou um apartamento, mal
localizado, é verdade, de frente para o mercado Croix Nivert. Da manhã à
noite, se podia ouvir os gritos dos vendedores, elogiando tal artigo ou
produto. Era também todo o dia um fedor de frutas, legumes, carne e
peixe. Infelizmente, o negócio não deu certo, o dinheiro dos gêmeos não
era suficiente. Isso se somou ao sentimento desencorajador que Ivan
experimentava. Ele sabia, não havia lugar para ele naquele país que se
proclamava tão generoso, pátria universal de todos os homens. Se ele
desaparecesse, quem perceberia? Ivana talvez. Então, ela apoiaria a testa
no peito de Maylan e se consolaria.
Foi no dia 2 de outubro que Ivan conheceu Abdel Aziz Isar,
recomendado a ele pelo imã. Guardem bem essa data de 2 de outubro,
pois ela é fatídica e, aos nossos olhos, marca o começo do fim. Abdel Aziz
Isar morava em Villeret-le-François, em um prédio um pouco mais
agradável que o de Ivan. Lá, os elevadores funcionavam e o pátio não
estava cheio de traficantes. Ele recebeu Ivan com frieza como se
desconfiasse dos fracassados que Amiri Kapoor vivia mandando até ele.
Embora fosse muçulmano, Abdel Aziz tinha nascido em Varanasi, na
Índia: na margem esquerda do Ganges, o rio sagrado, onde seu pai, Azouz,
tinha uma loja bem elegante de roupas femininas. Em 1948, aconteceu a
dolorosa divisão da Índia, Azouz se recusou a deixar o país natal, pois
acreditava que todas as religiões poderiam conviver harmoniosamente.
Quando sua loja foi incendiada pela terceira vez e ele foi deixado para
morrer numa calçada, decidiu voltar para Dhaka com sua família. Abdel
Aziz, portanto, cresceu com essas histórias de violência e terror. Ele
perguntou secamente a Ivan:
— O que você espera de mim? O que quer fazer da vida? Quer ficar na
Europa ou partir para um dos nossos países?
— Eu prefiro ficar em Paris – respondeu Ivan, pensando em Ivana, de
quem ele não queria nunca se separar. – Mas o que importa? Eu vou
executar as missões das quais você vai me encarregar, do jeito que você
achar melhor.
Abdel Aziz escrutinou Ivan da cabeça aos pés.
— Você sabe manejar uma arma? Explosivos?
— Sim – afirmou Ivan. – No Mali, eu fazia parte da milícia nacional,
onde aprendemos esse tipo de coisa.
O olhar de Abdel Aziz se tornou mais penetrante.
— Você já matou um homem? – perguntou abruptamente.
Ivan hesitou, depois repetiu sua explicação costumeira:
— Sim, mas eu fazia parte de um comando, cujos membros foram
designados. Eu não agia de acordo com uma escolha pessoal.
Apesar de sua rudeza, Abdel Aziz não deixou de lhe oferecer um chá de
hortelã, servido por uma jovem de cabelos castanhos cobertos com um
lenço preto, e de sorriso devastador.
— Minha mulher, Anastasie – ele a apresentou.
E, com um lirismo inesperado, complementou:
— Nos conhecemos em Falloujah. Sim, aquele desolado campo cheio de
pedras foi o cenário do nosso amor, um amor vigoroso que resistiu bem a
muitas armadilhas. Nós temos três crianças. Três meninos.
Quando terminou o chá, Ivan se dirigia até a porta, Abdel Aziz disparou
uma flecha:
— Você não tem barba.
Com a mão na maçaneta da porta, Ivan parou.
— Barba? – ele repetiu um pouco surpreso.
De fato, a barba de seu interlocutor, bonita e bem-cuidada, dava
maturidade a seu rosto ainda juvenil.
Ivan continuou com um tom de desculpas:
— É uma recomendação do Corão e não um mandamento.
A partir daquele dia, porém, ele deixou crescer uma barba que Ivana e
Mona foram unânimes em criticar. Apesar dos óleos essenciais com que
ele passava em suas bochechas, a barba permaneceu rala, escassa e não o
ajudou em nada. Depois de algumas semanas, ele se resignou a raspá-la
por inteiro.
O que Abdel Aziz não disse foi que durante suas muitas estadas em
Falloujah, ele passou com os mais altos dignitários do regime. Trabalhava
para o conselho que administrava a cidade. Era responsável por fazer
cumprir suas decisões em matéria jurídica. Então, ele era ativo em todas as
execuções públicas. Dava tiro na cabeça de mulheres adúlteras. Cortava as
mãos de ladrões. Marcava com ferro quente aqueles que mereciam. Em
resumo, era um assassino! O que Abdel Aziz também não disse foi que sua
esposa Anastasie era filha de um dos generais de Saddam Hussein.
Ivan não deve ter visto Abdel Aziz por duas ou três semanas, a ponto de
pensar que o outro o havia esquecido. Quando recebeu um SMS,
convocando-o para uma reunião, conheceu uma dezena de rapazes, alguns
muito jovens, outros ainda adolescentes, de dezessete ou dezoito anos no
máximo. A maioria vivia na Síria, no Líbano, Irã ou Iraque e tinham
tomado parte em diversas ações punitivas. Estavam em Paris apenas para
cumprir ordens do comandante supremo que projetava os atentados. De
qual natureza? Ninguém sabia ainda. O que chocou Ivan foi a presença de
duas garotas, duas irmãs gêmeas, Botul e Afsa. De origem turca, elas
tinham vivido em Bruxelas e chegado havia pouco tempo na França. Em
Bruxelas, tinham feito parte de um conjunto, as Amazones, e um dia
esperavam se tornar cantoras de sucesso. A menos que a morte chegasse
antes. Uma eventualidade que não lhes dava medo. A morte não era o
arrebatamento supremo? Botul e Afsa vieram a ter uma influência
considerável na vida de Ivan. Ele se tornou um amigo e ia vê-las
cotidianamente no apartamento que elas ocupavam num flanco de
Villeret-le-François. Os sentimentos que elas lhe inspiravam eram os mais
complexos. Ele admirava suas formas esbeltas, seus olhos brilhantes e seus
lábios superiores muito curtos que revelavam dentes de esmalte
deslumbrante. Admirava acima de tudo a inteligência delas. Queria que a
irmã se parecesse com elas. Que ela fosse rebelde e zombeteira como elas.
Que tivesse olhar crítico sobre a sociedade ao seu redor. Que manifestasse
a todo momento sua desconfiança com o Ocidente. Em vez disso, Ivana se
tornava cada dia mais submissa e hipócrita. Com Maylan, ela ia ao cinema,
a shows e se entusiasmava com filmes e livros nada interessantes, que ela
julgava excelentes.
— Nada te interessa – dizia ao irmão. – Você não gosta de nada. Se
queixa de tudo.
Ela tinha razão, Ivan dizia a si mesmo. Suas reprimendas eram
certamente merecidas. No entanto, como fingir ser outro?
Como Botul e Afsa tinham oferecido a ele ingressos para o espetáculo de
um grupo que tinha um nome surpreendente, Les Berbères Chantantes, as
berberes cantantes, ele foi logo convidar Ivana, que para sua surpresa se
recusou categoricamente a acompanhá-lo.
— Você não quer ir? – ele se surpreendeu. – Por quê?
Ela fez um ar de desaprovação.
— Eu acho que a plateia vai ser quase toda de magrebinos. E não vou
esconder que eu não gosto muito dos árabes.
— Você não gosta de árabes! – exclamou ele abismado. – Como você
ousa dizer uma coisa assim? É como se alguém dissesse que não gosta de
pretos. Os árabes são nossos amigos. E digo mais, eles são nossos irmãos –
ele se corrige ao lembrar das lições do sr. Jérémie. – Eu até considero que
são os modelos, os mestres do pensamento. Foram colonizados como nós.
Na Argélia, eles se libertaram com o preço de uma guerra terrível.
Ivana não se deixou intimidar.
— Talvez você esteja dizendo a verdade – ela disse. – O que eu sei é que
os homens árabes não podem ver uma mulher sem dar uma cantada e sem
fazer avanços grosseiros. As garotas com seus lenços ridículos estão
sempre lá, olhando para eles como se fossem deuses.
As gêmeas não tardaram em confiar a Ivan a parte mais secreta de suas
vidas. Até os vinte anos, no meio de uma família cegada por problemas de
sobrevivência, pai vigia noturno, mãe faxineira, foram amantes. Não
gostavam nem de homem nem de mulher. Elas dormiam nos braços uma
da outra, fazendo amor com paixão. Apenas o desenho de seus corpos as
satisfazia. Uma noite seu sono foi bruscamente interrompido. Elas viram o
anjo Gabriel sentado, chorando, ao pé de sua cama. Erguendo a cabeça, as
fitou com seus olhos cheios d’água e lhes explicou como a natureza de sua
relação ofendia a Deus. Era um crime o que elas cometiam, ele lhes fechou
para sempre as portas do Paraíso. Aquela cena teve nelas um efeito
devastador. Elas então tiveram consciência de seus atos e não pecaram
mais, pondo um fim em sua relação.
Duvida-se do efeito que tal confissão produziu em Ivan. Certamente ele
sempre soube que os sentimentos e o desejo que sentia por Ivana não
eram naturais, gêmeos ou não. No entanto, ele nunca os considerou uma
ofensa contra Deus. Ivan se confortava com o pensamento de que não
estava fazendo nada de errado. Nunca havia tocado o corpo da irmã de
forma indecente. Ele estava voluntariamente se iludindo e escondendo a
verdade? Ivana era realmente uma causa de danação?
Agora, o mal-estar de Ivan ficava mais agudo. Em todos os momentos, o
medo de sua culpa o obcecava. Ele repetia a si mesmo que, fora aquilo, sua
vida era exemplar. Fazia suas cinco orações, jejuava durante o Ramadã,
nunca deixava de ir à mesquita às sextas-feiras. Além disso, apesar da
modéstia de seus recursos, fazia caridade sempre que possível. Lia e relia
piamente seu Corão.
Se alguém se deu conta da radicalização de Ivan, foi o advogado Henri
Duvignaud, que soube de seu desentendimento com Ulysse. As razões
pareciam evidentes para ele. Então ele decidiu convidar Ivan para jantar, a
fim de tirar a história a limpo. Henri Duvignaud era um adepto fervoroso
dos prazeres noturnos. Para ele, a vida começava depois do pôr do sol.
Paris era uma sucessão de bares onde o álcool era generoso, de
restaurantes onde a comida era boa, de lugares onde encontravam-se
indivíduos sofisticados e muito curiosos. Ele levou Ivan ao Caravansérail,
que ficava em Porte Maillot, e cujo chef havia vivido muito anos no Japão,
depois na China, antes de se fixar em Paris.
Por baixo de suas maneiras efusivas e seu sorriso de estrela perpetua-
mente pendurado nos lábios, Henri sabia julgar os homens. Ele sentia que
Ivan pertencia à espécie de que são feitos os rebeldes mais perigosos.
Logo que foi servida a entrada, delicadas vieiras recheadas, ele
perguntou abruptamente a Ivan:
— Parece que você não está mais indo ver Ulysse?
Ivan esvaziou seu copo de granadina e respondeu negativamente à
pergunta.
— Pelo que você o culpa? – insistiu Henri. – É um garoto gentil e
também muito merecedor.
— Merecedor? – exclamou Ivan. – Você sabe o que ele faz?
Ivan deixa escapar seu furor:
— Ele se prostitui com mulheres por dinheiro.
Henri olha Ivan nos olhos.
— Você preferiria que ele ficasse no campo de Cambrésis, que ele
continuasse a ser estuprado por conta de seu belo rosto, ser insultado por
causa de sua cor, que ele continuasse a correr atrás de uns poucos euros
por tarefas humilhantes e, por fim, que fosse espancado até a morte como
Mansour? Preferiria isso? Você preferiria isso? Ficar no inferno? O mundo é
um negócio sujo do qual, como diz o provérbio africano, ninguém sai vivo.
Ivan empurra seu prato e Henri Duvignaud continuou com firmeza:
— Não julgue! Não julgue, eu te peço. Vire as costas a mim também,
porque você não consegue ouvir a verdade.
Ivan se inclinou para a frente e as palavras sibilaram por seus lábios.
— Então você dá sua bênção a todas as torpezas que acontecem no
mundo? Para mim, você é tão desprezível quanto Ulysse. E a palavra de
Deus, para você ela não conta?
— Se Deus existe, o que não é certo – zombou Henri –, Ele é Amor.
Você nunca pensa nessa característica.
Ivan se levantou e disse num tom involuntariamente teatral:
— Eu acho que nós não temos mais nada para conversar.
Então, ele saiu do restaurante a passos largos e foi pego pela noite. Ele
caminhou em frente sem saber para onde estava indo. O bairro ao seu
redor era elegante e intensamente iluminado. A contragosto, ele olhava os
passantes com ressentimento, como se fossem culpados. Culpados de quê?
De se sentirem bem na própria pele quando ele se sentia tão mal na dele.
Depois de um tempo, com raiva, se sentou em um banco.
Ao vê-lo, um casal de amantes ocupados em se beijar se levantou rápido
como se estivessem com medo e foram embora. Ivan ficou imóvel por um
longo tempo. Quando decidiu retomar seu caminho, se deparou com uma
entrada de metrô que o conduziu ao RER. Ao falar com ele sobre o amor
de Deus, Henri o tocou mais fundo. De repente pensou que tinha sido
injusto com Ulysse, uma vítima como ele, e que buscava sobreviver da
melhor maneira possível.
Naquela hora, o RER estava quase deserto. Mulheres do Leste Europeu,
usando longos vestidos floridos, cantavam para desviar a atenção dos raros
viajantes que jovens batedores de carteira furtavam sorrateiramente. Ivan
sentia a mesma repulsa toda vez que entrava naquele lugar fedorento e
cheio de correntes de ar.
Por fim, ele chegou a Villeret-le-François. Na noite morna, Ivana,
ladeada pela inevitável Maylan, estava sentada num dos bancos dispostos
nos arredores da Cité. As duas mulheres tinham acabado de ver um filme
que, tagarelas, tentaram explicar a ele, porque já não se lembravam do
título exato: Les Bronzés do ski? elas se perguntaram. Enquanto subiam as
escadas empoeiradas, Ivana pegou Ivan pelo braço.
— Eu ainda não contei a você a notícia boa. Estou tão feliz – ela afirmou.
– Entre tantas candidaturas, a polícia da municipalidade de Villeret-le-
François escolheu a minha. A minha, imagina! É aqui que vou fazer meu
estágio no mês que vem!
— Se você está feliz, eu também estou – respondeu Ivan. – Mas o que
isso mudará?
— Estarei a dois passos do meu local de trabalho – ela respondeu. – Não
vou precisar me levantar ao amanhecer como agora, não vou ter que
engolir meu café da manhã sem mastigar, não vou precisar pegar esse RER
horrível, sempre lotado.
Chegando no terceiro andar, quando Ivan se dirigia ao quarto de sua
irmã, como de costume para conversar, ela o parou:
— Estou morta de cansada. Te dou boa noite. Que a tua noite seja cheia
de bons sonhos.
Surpreso, ele a observou fechar a porta atrás de si.
Ivan então passou a semana mais terrível de sua existência. Ele observava
os mínimos sorrisos e gestos de Ivana para entender o que estava
acontecendo. O que ela estava escondendo dele?
Uma noite, ao voltar do colégio Marcellin Berthelot, ele esbarrou em um
homem que estava esperando na minúscula sala de estar. Jovem, pele tão
marrom quanto a de um mestiço, bastante bonito. O estranho se levantou
rapidamente e exclamou:
— É você o irmão! O gêmeo! Estou feliz de conhecer você. Sou Ariel
Zeni, o melhor amigo da sua irmã, se me atrevo a dizer.
Ivana então saiu de seu quarto, arrumada e perfumada. E, ao vê-la, Ariel
cantarolou zombeteiramente na direção de Ivan a melodia da conhecida
canção de Adamo:
— Você me permite, senhor, que eu leve sua irmã?
O casal desapareceu com uma gargalhada. Ariel Zeni, esse nome de
sonoridade estrangeira, não era o de um judeu? Ivan, que nunca assistia às
imagens que a televisão transmitia em loop, não sabia grande coisa sobre o
conflito entre Israel e Palestina. Às vezes, algumas cenas de casas
destruídas ou de mulheres chorando ao lado de seus filhos machucados o
comoviam, mas isso era tudo. Agora ele não tinha nem simpatia nem
antipatia pelos judeus. Ele nunca tinha entendido por que os nazistas os
atacaram e tinham buscado a solução final. No momento, ele não
compreendia muito pelo que os culpavam. Por formar uma comunidade
unida e solidária, isso é um crime? Subitamente, ser judeu tomava a
aparência de ser rival. Ariel era um rival?
Ivana voltou um pouco antes da meia-noite com a cara alegre, de quem
tinha se divertido.
— Tu ainda tá de pé? – ela exclamou com surpresa ao ver Ivan, seus
olhos fixos na tela da televisão.
Ivan esbravejou:
— Quem é esse Ariel? É um judeu, não é?
Ivana revirou os olhos:
— Ah tá, agora você tem alguma coisa contra os judeus?
Ivan agarrou-a pelo pulso.
— Faz quanto tempo você o conhece? O que há entre vocês? Onde vocês
foram?
Ivana disse secamente:
— Você não tem o direito de me fazer nenhuma pergunta. Por isso, não
vou responder.
No dia seguinte, quando já tinha praticamente se perdido nos tormentos
pelos quais vivia, recebeu um novo SMS de Abdel Aziz Isar, o convidando
para ir vê-lo. Neste dia, Abdel Aziz estava sozinho, estava um pouco
menos frio e duro do que na visita anterior.
— Os contornos do atentado estão se desenhando – ele afirmou. –
Provavelmente vai acontecer na noite de Natal, para causar impacto. A
forma que assumirá será diferente, as diretivas vão mudar. Os atentados
em massa que faziam sessenta ou oitenta vítimas não são mais
apropriados. Os líderes preferem pequenos eventos produzidos
simultaneamente no mesmo dia e em locais diferentes. Assim, eles estão
prevendo um sequestro com reféns em uma casa de repouso da polícia
municipal, outra em uma escola judaica, outra provavelmente em uma
igreja.
Abdel Aziz estendeu a Ivan um envelope bem cheio com páginas
cobertas de inscrições datilografadas. Ele estava encarregado de ir a
Bruxelas para pegar uma carga de armas de fogo.
— Você vai até essa garagem, a garagem Keller – declarou. – Vai
perguntar por Séoud e vai alugar um carro por três dias. Dá e sobra tempo
para ir e voltar de Bruxelas. Você não vai dar seu nome de verdade, é claro.
Vai apresentar essa carteira de identidade. Em Bruxelas, você vai ficar no
número 13 da rua d’Ostende, onde mora o meu primo Zyrfana. Lá você
vai pegar o lote de armas que ele terá escondido em estojos de
instrumentos musicais. Você não tem nada a temer. Se a polícia parar você
na estrada, está dito na carteira de identidade que você é luthier e que faz o
comércio de violões, violoncelos, guitarras… Você vai me trazer essa carga
que usarei quando for a hora.
No estado de espírito em que ele se encontrava, essa missão na Bélgica
teve o efeito de uma feliz escapada para Ivan. Dois dias depois, ele pegou a
estrada com um sentimento de liberdade. Deixava para trás suas
preocupações e angústias relativas à irmã, e tinha a impressão de reviver. O
sol, que havia nascido, lhe sorria convidativo do meio do céu. Seu sangue
voltou a correr nas veias, vivo e quente. Ele dirigiu por horas e depois
parou para descansar e comer em um posto de conveniência da rodovia.
Com um ruidoso fundo de jazz, os convivas comiam batatas fritas e
esvaziaram canecas de uma cerveja chamada La Mort Subite, nome que
primeiro o encantou e depois o fez refletir. Morte súbita, morte imediata.
Não era isso que os jihadistas procuravam? Se destruir e depois ser
arrebatado para o Jardim de Alá e gozar da suculência das virgens. De
repente, essas ideias lhe pareceram absurdas, infantis. Como podiam se
satisfazer com elas? É assim que queriam mudar o mundo? Se matando?
Não seria melhor aguçar a mente e fortalecer os músculos para uma
revolução? Ele não sabia mais, ele não compreendia mais o que o tinha
guiado. As objeções do sr. Jérémie lhe voltavam confusamente à memória.
Infelizmente, ele as tinha ouvido mal e não se lembrava de nada.
Percorreu os últimos quilômetros que o separavam de Bruxelas
mergulhado em devaneios profundos.
Bruxelas não deve ser comparada a Londres, Paris ou Nova York. Menor,
parece uma prima do interior diante de parentes mais sofisticados. No
entanto, emana dela um charme um tanto antiquado. Ivan gostou de
dirigir por suas avenidas, menos congestionadas que as de Paris e ladeadas
por árvores bem aparadas.
Se perdeu sem querer e levou quase uma hora para encontrar a rua
d’Ostende, uma ruela tranquila em um bairro onde as lojas só ofereciam
objetos de outros lugares: tapetes de oração, bolsas de água quente,
ponchos, hijabs, burcas, rosários, o Corão e buchas multicoloridas. A
Europa havia de repente desaparecido, substituída por culturas distantes.
Os passantes também vinham de outros lugares: do Magreb, da Turquia,
da Índia e do Paquistão.
Zyrfana era um brutamonte de nariz adunco, muito agradável e jovial,
diferente de seu primo. Abraçou Ivan como se o conhecesse há tempos.
— Fez boa viagem? – perguntou. – Não tinha muitos policiais na estrada?
Depois do último atentado, eles estão por toda parte.
Ivan respondeu que para sua surpresa não havia visto nenhum. Zyrfana
tinha um apartamento bem bonito e levou Ivan até um quarto mobiliado
com bom gosto, coberto de fotos de Mohammed Ali.
— Chorei como uma criança no dia de sua morte. É o meu herói –
explicou a Ivan. – Não apenas porque ele se converteu ao Islã. Mas porque
fez de seu corpo um templo. Devemos imitá-lo e cada um de nós deve
fazer de seu corpo a mais bela obra. Eu estava mesmo indo para a
academia. Quer vir comigo?
Ivan retrucou que não tinha nada para fazer exercícios com ele. Nem
mesmo roupa de banho.
— Não tem problema – disse Zyrfana que correu até seu quarto e voltou
com um short listrado.
Os dois desceram as escadas. A noite caiu e o ar começava a ficar mais
frio. Os passantes cada vez mais numerosos enchiam as calçadas. Uma a
uma as vitrines se acendiam e uma espécie de intimidade reconfortante
emanava daquele bairro cosmopolita. Ouvia-se uma música vinda sabe-se
É
lá de onde. Zyrfana e Ivan foram para o Centre Équinox. Por quase duas
horas, apesar da fadiga da viagem, Ivan pedalou, saltou, ergueu pesos e se
esticou em todas as direções. Aquela exaustão do corpo era estranhamente
benéfica. Ivan se tornava novamente o menino que havia sido quando ia
nadar em Dos d’Âne, indo até o alto-mar. Quando enfim ele chegava à
praia, exausto, se aconchegava na irmã.
Zyrfana se revelou um excelente cozinheiro: fez uma torta de frutos do
mar e uma torta de damasco. Quando Ivan o cumprimentava pelo jantar,
ele disse com tristeza:
— Se você tivesse vindo comer aqui no mês passado, era a minha mulher
que você cumprimentaria, Amal. Ela tinha mãos de fada.
Ivan sentiu que Zyrfana só estava esperando para falar desse assunto:
— Onde ela está agora? – perguntou.
— Ela me deixou – explicou Zyrfana, com uma voz lúgubre. – Quando
ela soube que tinha sido eu a fornecer as armas do último atentado no
aeroporto, ela não disse nada, só partiu. O pior é que levou nosso pequeno
Zoran com ela. Desde então, estou completamente sozinho.
— Partiu? – se espantou Ivan. – Então ela não era uma verdadeira
muçulmana?
— Era melhor do que você – respondeu Zyrfana, seco e com veemência.
– O pai dela era um imã bem conhecido em Lahore. Ela tinha catorze anos
quando ele a levou para sua primeira peregrinação a Meca. Ela recitava o
Corão, que conhecia de cor. Mas ela dizia que não tínhamos entendido
nada de sua mensagem. Que tínhamos um método ruim para mudar o
mundo. Não compreendíamos as palavras de Deus que ordenavam: “amai-
vos uns aos outros” e não vos matai uns aos outros.
Essas eram as dúvidas que acometiam Ivan! Como suas preocupações
eram próximas!
Talvez Amal tivesse razão? Quem sabe?
Zyrfana se levantou e correu até seu quarto, ao voltar tinha os braços
carregados de álbuns de fotografias de um bebê rechonchudo, depois um
garotinho solidamente plantado sobre seus pés, Zoran, em todos os
lugares Zoran. Não é preciso dizer, era uma criança bonita.
— Você ainda não é pai! – apontou Zyrfana. – Você não sabe o que é ter
uma criança, um filho. É isso que dá vontade de mudar o mundo, a tiros de
Kalashnikov, se preciso for. Para que ele não seja relegado ao último
assento da classe por causa da cor de sua pele ou por qualquer outra razão
tão fútil quanto. Que não seja zombado por seus colegas, nem
transformado em saco de pancadas. Que não tenha diante de si um futuro
de desemprego, mas, ao contrário, as mais belas perspectivas. Antes de
Zoran, eu não prestava para nada. Foi ele quem fez de mim o que sou: um
combatente, um soldado de Deus.
Ivan não respondeu nada, mesmo que compreendesse perfeitamente o
que tinha acontecido com Zyrfana. Era a sua vida que o outro contava. Ele
também tinha sido ignorado. Ele também havia sido ignorado pelos
professores e professoras. Ele também fora ridicularizado por seus
companheiros. Ele também se viu desempregado aos vinte anos.
Dois dias depois, ele retomou o caminho à França. Na volta, assim como
na ida, ele não encontrou nenhum policial na estrada. Ele entregou a
Abdel Aziz três violoncelos, três violinos e um número incalculável de
guitarras cujos estojos tinham fundos duplos e estavam cheios de armas de
fogo.
— Com isso, faremos um belo “noturno” – debochou Abdel Aziz.
Evidentemente que Ivan não pegou a alusão a Mozart, mas estava
perfeitamente ciente de que seu interlocutor pensou que estivesse fazendo
uma piada das boas.
Nós sabemos o que você está pensando. Mais uma vez, você vai nos
criticar por não falarmos o suficiente sobre Ivana, por não retratarmos
seus estados de espírito tão minuciosamente quanto fazemos com os de
Ivan. Perdão! Vamos tentar reparar esse erro.
Ivana tinha mudado consideravelmente ao longo dos últimos meses. A
menina corpulenta e sorridente tinha dado lugar a uma jovem mulher cuja
beleza era estonteante. Seu olhar, cheio de uma melancolia profunda, ia
direto ao coração. Ivana estava rasgada. Se encontrava na posição de um
piloto em alta velocidade dirigindo por uma estrada acidentada e sabendo
que o resultado da corrida seria fatal. Ela, assim como Ivan, nunca tinha
ignorado que os sentimentos que ela e o irmão experimentavam não eram
naturais. Mas Ivana sempre fez o que estava ao seu alcance para dominá-
los. Agora, já não podia mais e tinha recorrido a medidas drásticas. Não, é
claro que ela não gostava de Ariel Zeni. Então, como ela o tinha
conhecido? Do modo mais banal: ele era monitor na École Nationale de
Police, onde ela fazia seu curso. Tendo vivido longos anos em Israel, Ariel
era especialista em luta antiterrorista. Pois, se Tel Aviv não havia se
tornado uma cidade segura, ao menos não era mais o lugar de todos os
perigos como antes. Seus ônibus não eram mais armadilhas mortais.
A brancura do corpo de Ariel lhe dava nojo, lembrava aqueles pratos
baratos de manjar-branco que Simone adorava. Acostumada à firmeza do
irmão, ela achava o desenho de seu sexo, olhando através do uniforme de
polícia, achatado e sem relevo. No entanto, estava bem decidida a casar-se
com ele, a ir viver com ele em um apartamento modesto que ele tinha em
Clamart e a dar-lhe filhos.
Num dia em que estava particularmente desesperançada, deixou que ele
a beijasse. Apesar de sua boca lhe parecer sem graça e sem gosto, ela
aceitou se casar. Chegou a marcar a data para uma cerimônia de noivado
para a qual convidariam amigos e na qual ele colocaria em seu dedo uma
aliança de lápis-lazúli que, se vangloriava, tinha pertencido à mãe.
Como confessar seus projetos a Ivan? Como ele reagiria? Em seu
desconforto, decidiu se aconselhar com Mona. Se Hugo e Mona sempre
manifestaram pouca consideração por Ivan, se o julgavam não prestar para
nada, talvez até um mau sujeito, eles adoravam Ivana. Era a filha que não
tiveram. Apreciavam sua doçura e sua extrema gentileza.
Uma noite em que estavam sozinhas, Ivana perguntou a Mona:
— Você nunca achou nada estranho nos sentimentos que eu e Ivan
temos um pelo outro?
Mona largou a xícara de chá de jasmim e balançou a cabeça:
— Vocês são gêmeos. Quer dizer, uma só pessoa cortada em duas e
partida em corpos diferentes. Não devemos julgar como todo mundo,
como pessoas normais. Não, eu nunca achei nada de chocante na atitude
de vocês.
— Como eu vou confessar a ele que estou noiva de Ariel? – seguiu Ivana.
– Como ele vai lidar com a notícia? Será que não corro o risco de levar
uma bofetada ou um golpe mortal?
Para ganhar tempo, Mona tomou um gole de chá e então se decidiu,
falando devagar:
— É claro que Ivan não vai ficar contente de saber. Mas você deve dizer a
verdade logo a ele. Quanto mais demorar, mais difícil será.
Mas nem no dia seguinte, nem no outro, nem nos dois dias que se
seguiram, Ivana encontrou forças para revelar seus projetos ao irmão. Ela
se reprimia. Se culpava pela manhã quando subia as ruas que começavam a
ficar frias e eram percorridas por rajadas de vento, quando se dirigia à
delegacia municipal de polícia. Se culpava à noite, quando voltava para a
Cité André Malraux. Aquilo a desgastava, a deixava ansiosa, a tornava mais
desejável, e Ariel Zeni não conseguia tirar os olhos dela.
Durante esse tempo, Mona a pressionava com perguntas:
— Já contou a verdade para Ivan? – perguntava todos os dias.
Ivana sacudia a cabeça:
— Não, ainda não – dizia. – Você já viu a cara dele esses dias?
De fato, Ivan só pensava no atentado, cuja data se aproximava. Abdel
Aziz tinha dado todas as instruções. Mas ainda faltavam alguns pontos a se
precisar: agiriam nas primeiras horas da manhã ou esperariam a noite? O
plano era o seguinte: ajudado por três cúmplices, Ivan deveria invadir a
casa de repouso do centro municipal de polícia. Os quatro homens tinham
que abater o máximo de vítimas que conseguissem, voltar rapidamente
para o carro estacionado na rua du Chasseloup-Laubat e correr para a
Bélgica. Dessa vez, não era para voltarem a Zyrfana, mas se refugiarem na
casa de um certo Karim, que morava na pequena cidade de Molenbeek.
Tudo aquilo apavorava Ivan, que não estava nada pronto. De jeito
nenhum. Ele não tinha vontade de assassinar policiais idosos afligidos por
todos os males da velhice e alguns completamente acamados. Como um
ato assim mudaria o mundo?
O centro municipal de polícia era composto por dois edifícios iguais,
ligados por uma galeria cheia de entulho junto à calçada: de um lado era a
casa de repouso, batizada Rene Colleret, nome de um obscuro secretário
da Habitação do Estado, e a outra era o centro de formação, intitulado La
Porte Étroite, a porta estreita, homenagem ao romance de André Gide.
Ivan se perguntava por que não davam preferência para atacar esse
segundo edifício, cheio de policiais e estagiários, jovens e vigorosos. Claro,
eles não estavam armados, mas aqueles ao seu redor eram e seriam bem
capazes de se defender.
Esse tempo de hesitação durou quase uma semana, até a noite que
antecedeu o atentado, pouco antes da meia-noite, Ivan arrebentou a porta
do quarto da irmã com um chute magistral. Estava fora de si e parecia
bêbado, ele que nem tocava em álcool. Transpirava um suor grosso. Seus
olhos estavam vermelhos e esbugalhados.
— Sabe o que eu ouvi?! – ele berrou. – Você é amante daquele bosta?!
Ivana colocou devagar a mão sobre a boca dele como já tinha feito
centenas de vezes quando de suas brigas de criança.
— Espera, eu te explico o que está acontecendo.
Sem ouvi-la, Ivan atirou-a sobre a cama com o joelho e, jogando-se sobre
ela, arrancou-lhe as roupas, despindo-lhe o corpo sedutor. Ao passo que se
despia das suas roupas também, arrancando a cueca Calvin Klein de cor
azul que usava. Suas mãos apertavam a garganta e os seios de Ivana, que
começou a gemer.
— Vai, vai, se é isso que você quer!
Selvagem, ele respondeu:
— Eu já devia ter feito isso há muito tempo.
Mas ali, no momento de penetrá-la com sua ereção monstruosa, ele se
levantou, olhou para ela como se estivesse se desculpando e saiu correndo
do quarto.
Ivana conseguiu se sentar na beirada da cama. Ela murmurou como um
apelo:
— Volta, volta!
As lágrimas escorriam grossas de seus olhos, traçando vincos luzentes
em sua face. Pelo que ela chorava? Pelo ato carnal que tanto desejavam os
dois e que pareciam incapazes de realizar? Ivana chorou a noite toda. Pela
manhã, vestiu tristemente seu uniforme de policial municipal e foi para a
casa de repouso, onde chegou às 6h30. Todas as manhãs, antes de começar
suas aulas no prédio de La Porte Étroite, ela passava uma ou duas horas
trabalhando com as cuidadoras que a adoravam e a tinham apelidado de
“Pequena Madre Teresa”.
Mas nós sabemos o que atormenta a mente de vocês. Vocês querem
saber o que aconteceu com Ivan, com sua monstruosa ereção. Voltemos
então. Arrumando suas roupas como podia, Ivan saiu do quarto da irmã,
atravessou a sala de estar como uma bola de fogo e a parou no corredor do
prédio bem na hora que sua vizinha Stella Nomal, voltando de uma sessão
de cinema, abria a porta do seu apartamento de dois cômodos. Stella
Nomal era uma jovem da Guiana, que tinha vindo a Paris estudar direito.
Infelizmente, o direito não lhe serviu bem e, aos vinte e dois anos, ela se
encontrou desempregada. Ivan e ela se conheciam, pois du-
rante mais de um ano, no colégio Marcellin Berthelot, lado a lado, eles
tinham limpado as salas sujas e varrido as folhas mortas dos pátios. Uma
época, Stella se sentia muito atraída por Ivan, um negro bem bonito, mas,
diante de sua indiferença, ela se resignou a olhar para outros lugares.
Quando ela o viu no corredor, metade vestido, se esforçando para fechar
sua braguilha, ela exclamou perplexa:
— O que foi que te aconteceu?
Ivan não pareceu ouvi-la e bruscamente a arrastou para dentro do
apartamento. Sem uma palavra, ele a jogou sobre o sofá e a penetrou
violentamente. Espíritos amargos vão dizer que se tratava de um estupro,
pois é assim que chamamos todas as relações sexuais não consensuais. Não
vamos discutir esse ponto. Estupro ou não, Stella sentiu prazer. Mas de
repente, Ivan começou a chorar.
— O que foi que te aconteceu, meu querido? – murmurou Stella com
doçura. – Parece que você tem uma tristeza tão grande.
Ivan enxugou os olhos com punhos fechados e pela primeira vez em sua
vida se lançou em uma confissão que nunca tinha feito a ninguém.
— Você deseja a sua irmã? – ela exclamou chocada e excitada ao mesmo
tempo. – Como é possível?
Ele não a ouviu e continuou falando. Stella e Ivan passaram o resto da
noite abraçados um ao outro, dormindo, sonhando, fazendo amor,
conversando sobre coisas íntimas. Ivan chorava muito e Stella o consolava.
— Se você a deseja desse jeito – ela perguntou –, por que você não fez o
que ela te pediu?
— Ela era ao mesmo tempo o meu sol e minha danação – Ivan
continuou, triste.
Quando Stella acordou, às 6 horas, ela se viu sozinha na cama.
Mecanicamente, se vestiu e, como todos os dias, pegou o caminho do
colégio Marcellin Berthelot.
Na manhã seguinte, quando o rosto de Ivan apareceu na primeira página
de todos os jornais, acompanhado dos comentários menos lisonjeiros:
“bruto”, “assassino”, “monstro”, Stella acreditou ter sonhado com aquela
noite. Seria o mesmo homem? O ser frágil e machucado que ela abraçou,
que pegou seu seio como se fosse uma criança, seria ele esse bárbaro
impenitente? Em desespero, foi procurar uma unidade de apoio
psicológico, criada pela prefeitura de Villeret-le-François. A psicóloga que a
atendeu era uma mulher bonita e de aparência fútil, que não tinha cara de
psiquiatra. Ela ouviu sem dizer uma palavra, depois perguntou:
— Você se deu conta de que esteve muito perto da morte? Ele podia ter
te matado.
— Ele! – exclamou Stella, encolhendo os ombros. – Ele não faria mal a
uma mosca.
— No entanto, ele assassinou sessenta pessoas na casa de repouso –
replicou a psiquiatra.
Anjo ou demônio? Ivan estava definitivamente na segunda categoria.
Os detalhes do atentado de Villeret-le-François são conhecidos, bem
conhecidos. Eles foram publicados nas primeiras páginas dos jornais do
mundo inteiro, mesmo nos mais baixos jornalecos da Indonésia e da
Turquia. Se esse atentado pareceu particularmente hediondo, era porque
tinha como alvo funcionários aposentados, velhos que haviam consagrado
sua existência para defender sua sociedade e que agora eram vítimas do
peso dos anos. Porém, há um aspecto que só o advogado Henri Duvignaud
teve a intuição e que ninguém saberia compreender, se não lesse A balada
do cárcere de Reading, do célebre autor irlandês Oscar Wilde.
Reproduziremos aqui alguns versos desta balada:
Pourtant chacun tue ce qu’il aime
Salut à tout bon entendeur
Certains le tuent d’un œil amer
Certains avec un mot flatteur
Le lâche se sert d’un baiser
Et d’une épée l’homme d’honneur.14
Damos aqui a descrição dos fatos como pudemos reconstituí-los. Quando
Ivan e seus três cúmplices desceram do carro, estacionado na esquina da
rua du Chasseloup-Loubat, visto o horário matinal, o bairro dormia, quase
deserto. Só erravam os cães sem dono revirando as lixeiras. Ivan e seus
companheiros assassinos desceram na casa de repouso René Colleret às 7
horas em ponto. Uma hora antes, uma campainha estridente tinha soado
para acordar os pensionistas e os informar de que o tempo de dormir tinha
terminado e que o dia estava começando. As cuidadoras logo subiriam
pelas escadas, para tomar conta dos andares e conduzir ao banheiro os
aposentados que não conseguiam mais se controlar. A escuridão lhes dava
medo. Eles a preenchiam com criaturas vindas de sua imaginação, cada
vez mais ameaçadoras e apavorantes. No dormitório do segundo andar, o
ex-sargento Piperu, que havia sempre provocado a Musa, escrevia
fervorosamente seu sonho da noite num caderno de espiral, como fazia
todas as manhãs. O que ele não sabia era que em alguns minutos uma bala
atravessaria seu peito e que seu caderno cairia de suas mãos com um texto
inacabado. No subsolo, os encarregados da cozinha se ocupavam de
preparar os pratos do café da manhã, que seriam levados para os quartos.
A tarefa de Ivan e de seus companheiros era das mais simples. Ela
consistia em entrar nos quartos e atirar em tudo o que se mexia. Ivan
estava calmo e resoluto, pois não era o momento de nutrir qualquer
escrúpulo, nem de se perguntar se aquilo era um modo de mudar o
mundo. Precisava cumprir sua tarefa.
Porém, sabemos que um grão de areia sempre pode enguiçar a
engrenagem da máquina mais bem lubrificada. Dessa vez, o grão de areia
se chamava Élodie Bouchez, a última recruta do contingente de
cuidadores. Antes, Élodie Bouchez sonhava em ser enfermeira, mas não
havia passado no concurso para entrar na profissão. Recorreu então à
profissão de cuidadora, primeiro com um pouco de desprezo, mas depois,
aos poucos, passou a amá-la e a dedicar-se com a maior diligência. Nesse
dia, devido aos atrasos do RER, chegou mais tarde ao trabalho. Da calçada,
ela ouviu os tiros das Kalashnikovs e os gritos dos feridos e se perguntou o
que estava acontecendo. Um atentado? Não era impossível, pelos tempos
em que viviam. Ela correu então para dar um alerta em um bar ali perto,
chamado À Verse Toujours. O bar tinha acabado de abrir e o garçom, um
jovem árabe de cabelos cacheados, esfregava o chão com moleza. Os dois
correram para o telefone e chamaram reforços na prefeitura.
Enquanto isso, Ivan e seus companheiros assassinos tinham chegado no
terceiro andar da casa de repouso. Era ali que Ivana estava, debruçada
sobre o guarda Rousselet, envergonhado de mais uma vez ter feito suas
necessidades nas calças. Ivana e o guarda Rousselet se davam muito bem:
durante anos Rousselet tinha prestado serviços em Deshaies, na Côte sous
le Vent, e para ele Guadalupe não tinha segredo nenhum. Os dois sabiam
descrever a areia clara das praias, o mar suntuoso, a vista que, de um certo
ponto, se estendia até a ilha de Antigua, as amendoeiras de folhas largas e
lustrosas, verdes e vermelhas. Em suas descrições, eles não esqueciam nem
as casas de madeira, risonhas sob o sol, apesar de sua miséria, e as crianças
de todas as cores que brincavam nos arredores.
Com o barulho que fizeram os assassinos ao entrar no dormitório, Ivana
ergueu os olhos e se deixou cair sobre a cama do guarda Rousselet,
abraçando o velho pelas costas ossudas. Ela olhou Ivan no fundo dos
olhos. Todo o amor e o desejo que eles sentiam um pelo outro passaram
por essa troca. Eles reviveram suas vidas inteiras, como aqueles que
estiveram perto da morte o fazem. Ivan e Ivana se veem novamente desde
o momento em que saíram do ventre de Simone, numa noite quente e
perfumada de setembro, até aquela manhã cinzenta de outono, já marcada
pela geada. Algumas imagens flutuavam luminosas. Quando eles
começaram a ficar em pé, Simone os media apoiados no batente da porta
da casa. Por muito tempo foram do mesmo tamanho. De repente, um ano,
Ivan se meteu a crescer e em poucos meses tinha ultrapassado sua irmã
por uma cabeça. Aquilo a deixava pasma, admirada com aquele corpo que
crescia ao lado do seu. Que belo invólucro para conter seus músculos.
Durante muito tempo, eles acompanharam a mãe no coral e cantarolavam
com a mesma voz infantil que ninguém notava. Um belo dia, um milagre
aconteceu. Inesperado, como todos os milagres.
Na igreja de Dos d’Âne, bem como em toda Guadalupe, todo dia 15 de
agosto acontece uma cerimônia chamada “o coroamento da Virgem”.
Nessa ocasião, os padres caçam as crianças de pele mais clara que podem
encontrar, as mestiças mais bonitas, as enfeitam com um par de asas de
anjo, com um vestido esvoaçante azul cor do céu e as fazem subir no altar
para coroar uma estátua de gesso, representando a Virgem Maria.
Enquanto isso, em um canto da igreja fica um coro de crianças que canta
cantigas e cantigas. Ivan e Ivana fizeram parte desse coro. Um dia, a voz de
Ivana sai de sua garganta e explode soberana, preenchendo a nave com sua
harmonia. Ivan a escuta e se pergunta que maravilhas o corpo de sua irmã
continha. A partir desse momento, Ivana foi chamada dos apelidos mais
diversos “a sereia”, “o rouxinol”, e foi convidada a se apresentar sozinha
em todas as igrejas de Guadalupe. Depois de um concerto na catedral de
Pointe-à-Pitre, um escritor que acabara de receber o Prêmio Carbet a
batizou “a flauta mágica”. Essas qualidades provavam que Ivana era
alguém fora do comum.
No dia do atentado, Ivan não pensou nem uma nem duas vezes. Sem
hesitação ele apontou seu fuzil para Ivana e atirou. Era a única coisa a se
fazer, o único ato sensato a se fazer. Ivana compreendeu perfeitamente.
Então ela abriu seu peito para melhor receber as balas, com reconheci-­
mento. Mortalmente ferida, desabou ao pé da cama. Depois desse ato, a
intenção de Ivan era a de voltar sua arma contra si e se suicidar.
Infelizmente, as coisas aconteceram de outro modo.
A prefeitura tinha alertado o GIGN, o Grupo de Intervenção da Guarda
Nacional, que mandou dois esquadrões de atiradores de elite, comandados
pelo sargento Raymond Ruggiani. A prefeitura tinha recomendado que
tentassem capturar os jihadistas vivos. Desse modo, tentariam fazê-los
falar para obter informações sobre aqueles que davam as ordens de
execução. Antes que Ivan tivesse tempo de agir como pretendia, Raymond
Ruggiani puxou suas pernas. Ivan caiu, derrubando seus companheiros
assassinos. Banhados em sangue, foram jogados em uma ambulância e
levados rapidamente para o hospital Villeret-le-Francois.
A quilômetros dali, por conta da diferença de fuso horário, Guadalupe
estava mergulhada na escuridão. Uma noite atravessada pelos espíritos
habituais de Ti Sapoti, a besta Man Hibè e Masala Makalou: uma noite
bem banal, oras! Não para Simone que, sempre teve um sono de bebê.
Fora para a cama ardendo em febre, como se estivesse com malária,
dengue, zika, enfim, uma dessas doenças frequentes em países onde os
mosquitos são reis. Se levantou três vezes para tomar um galão d’água e
fazer com que seus dentes parassem de bater e seu barulho não acordasse
Pai Michalou, deitado ao seu lado. Depois que tinha se casado com ele,
Simone estava feliz. Ela só reclamava de uma coisa, que ele gostava de
rabiscar contas e reclamar que não tinha dinheiro. Ao menos, não o
suficiente para pensar em passar as férias de Natal em Villeret-le-François,
afirmou categoricamente. Cansada de ouvi-lo repetir sempre as mesmas
coisas, Simone, que há tanto tempo não via os filhos, passou por cima dele
e concordou com Ivana. Ela havia obtido um empréstimo no trabalho para
trazer a mãe e o padrasto no próximo Natal.
Em seu sono febril, Simone via sua mãe em prantos e sabia que ela lhe
trazia uma notícia terrível. Qual? Angustiada, ela acordou antes do dia
nascer e saiu da cama com cuidado para não incomodar Pai Michalou, que
sempre dormia um sono pesado depois do sexo. Na sala de jantar exígua,
ela ligou mecanicamente o botão do rádio e ficou sabendo das primeiras
notícias. Mais um atentado na metrópole! Dessa vez em uma casa de
repouso da polícia, anuncia a voz da locutora. Aquela notícia a teria feito
dar de ombros, o terceiro atentado em menos de dois anos, quando uma
dor inesperada lhe cravou o peito. Dessa vez, ela sentia, as coisas eram de
uma natureza particular. E teriam consequências muito próximas dela.
Não se enganava. Estava prestes a beber seu café quando três homens de
terno e gravata irromperam atormentados e gaguejantes:
— Simone, a sua filha foi morta no atentado.
— Morta! – exclamou Pai Michalou, que naquele momento preciso saía
de seu quarto.
— Rápido, rápido! Você precisa ir à metrópole! – berram os três homens
que tinham sido enviados pela prefeitura.
— Onde vocês querem que arranjemos dinheiro para isso? – disse Pai
Michalou.
— Mas somos nós que pagaremos – responderam os três homens.
Não é surpresa se naquele momento só tivessem falado de Ivana. A
identidade de Ivan, assim como a dos outros terroristas, ainda não havia
sido descoberta e demoraria vários dias para que isso acontecesse. Por
outro lado, foi fácil descobrir quem era Ivana Némélé, de Guadalupe,
policial municipal, voluntária da equipe de cuidadores.
Então, a partir das 14 horas, a Guadalupe inteira soube que ela havia
dado à luz a uma mártir. Na verdade, aquilo não surpreendia ninguém. Se
Bernadette Soubirous e outras Madres Teresas tinham a pele branca, nós
sabíamos que a ilha regurgitava mulheres negras não canonizadas, sem
marido, sem dinheiro, mas que tinham criado seus filhos no respeito dos
mandamentos de Deus e da Igreja. Uma equipe de televisão foi entrevistar
Simone. Infelizmente, ela chorava muito e não serviu de nada. Ela repetia
sem parar:
— Pitite an mwen! Minha pequenina!
Sem poder falar com ela, filmavam Pai Michalou, que teve tempo de
vestir seu melhor terno e se embelezar. Todos terão direito a seus quinze
minutos de fama, declarou Andy Warhol. Foi o que aconteceu com Pai
Michalou. Diante das câmeras, ele explicava complacentemente que, se
Ivana não era sua filha biológica, certamente era sua filha espiritual. Ele a
conhecia desde que nascera. Foi em suas mãos que a parteira a colocou
quando ela saiu do ventre de sua mãe. Para corroborar suas afirmações, foi
procurar na cômoda os álbuns de fotos de Simone em que Ivana aparecia
em todas as idades: um bebê dando os primeiros passos, uma menininha
mostrando seus primeiros incisivos, uma adolescente exibindo seu
primeiro penteado com cabelos alisados.
Em todo o país, conforme a notícia do ataque se espalhava, as pessoas
invadiam ônibus e convergiam para o aeroporto Pôle Caraïbes, de onde
souberam que Simone deveria partir, no final da tarde. Os que tinham a
possibilidade se reuniram por um momento na igreja. Não era o clima de
carnaval que reinava. Ao contrário. Nada de máscaras goudron, feitas de
alcatrão, nada de máscaras conns, com seus grandes chifres, nem de música
akiyo. Não havia lugar para a alegria. Planava uma grande dor, misturada
com orgulho, porque finalmente uma pessoa de Guadalupe chegava à
primeira página dos jornais. No avião da Air Madinina, a tripulação,
inquieta, levava à Simone uma taça de champagne atrás das outras,
camarões, caviar, salmão que ela não conseguia engolir e que deixava
intocados para Pai Michalou. As oito horas de voo passaram tão rápido
que pareceram alguns minutos.
Quando Simone chegou ao aeroporto de Orly, a febre caiu brutalmente.
Em pé, num canto, dois homens sacudiam uma placa, a cara formal.
— Você é a mãe de Ivana Némélé? – perguntou um deles com uma frieza
chocante.
Com seu colega, ele foi enviado pela prefeitura de Villeret-le-François. A
atitude dos dois homens, tão diferente do calor que ela havia deixado em
Guadalupe, gelou o coração de Simone. Felizmente, Pai Michalou estava
lá. Ela se apoiou com mais força nele.
Os dois emissários da prefeitura não tinham nem mesmo um carro,
precisaram se enfiar em um táxi da companhia G7, que pegou a estrada
para Villeret-le-François. Embora fossem apenas 9 horas da manhã, perto
da prefeitura, uma bela construção de aspecto imponente, uma multidão
se acotovelava: curiosos, uma junção de jornalistas da imprensa escrita e da
televisão. Flashes crepitavam. Cidades mais distantes que Marselha, Nice e
Estrasburgo mandaram seus repórteres. Em uma sala triste do primeiro
andar, o sofrimento era indescritível. O prefeito, um homem branco,
grande e sem graça, com um bigode atravessado no rosto sem cor, se
esforçava para dominar o barulho e fazer sua homilia:
— A França está aflita – afirmou – com essa nova tragédia, horrorizada
com o que acaba de acontecer, esta monstruosidade que se soma a tantas
outras. A França está em prantos, aflita, mas ela é forte, ela será sempre
mais forte, eu garanto a vocês, do que os fanáticos que hoje querem
golpeá-la.
Ninguém prestava atenção em Simone e Pai Michalou. Ninguém tinha a
mesma cor que eles, e eles se sentiam perdidos e isolados. Onde estava
Ivan? – se perguntava febrilmente Simone, que esperava vê-lo no
aeroporto. Tinha telefonado, mas só ouviu grunhidos ininteligíveis em
resposta. Onde ele poderia estar quando tal tragédia se abateu sobre sua
família? Sem contar seus sentimentos particulares pela irmã, ele sempre foi
um filho amoroso e atencioso. Não deixaria a mãe sozinha em um
momento de tamanho sofrimento. Quanto mais tempo passava, mais a
angústia crescia no coração de Simone e mais as premonições sombrias
sobre o filho a invadiam. Hugo e Mona não lhe serviram de ajuda alguma
e ficaram tão surpresos quanto ela com a ausência de Ivan. Não havia
ninguém para responder às perguntas angustiadas que ela fazia a si
mesma.
Neste momento de desespero extremo, dois golpes a abalaram muito. O
primeiro foi quando, no dia seguinte à sua chegada, teve que ir reconhecer
oficialmente o corpo de sua filha. O hospital Villeret-le-Francois contava
com uma equipe de especialistas cuja reputação era inigualável e chamada
de Les Pareurs de Mort, os curtidores da morte. Não é que fossem
embalsamadores propriamente ditos, porque a arte de embalsamar é
pouco praticada na França. Eram verdadeiros ourives que sabiam devolver
o caráter aveludado à carne lavrada pelas feridas, redesenhar um sorriso
nos lábios ofegantes, numa palavra, recriavam o aspecto de vida. A equipe
de curtidores da morte ainda não havia feito seu trabalho quando Simone
se viu frente a frente com sua filha, a tez terrosa, o pescoço escondido sob
uma grande bandagem, enrolada em um roupão branco no fundo de uma
das gavetas do necrotério.
O outro golpe veio no dia seguinte, quando ela foi se prostrar na capela
construída na catedral de Saint Bernard du Tertre. Ela quase desmaiou na
frente de todos aqueles caixões com flores de perfume forte que
murchavam lentamente. Ela precisou esperar vários dias e várias noites
antes de ouvir qualquer explicação sobre a ausência de Ivan.
Uma manhã, quando engolia tristemente seu café da manhã no modesto
apartamento de Hugo e Mona, o advogado Henri Duvignaud chegou
acompanhado do prefeito que vinha pessoalmente prestar suas
condolências. Henri Duvignaud tomou a mão gelada de Simone entre as
suas.
— Tenha coragem, madame Némélé – disse ele. – O que tenho para
dizer é terrível.
Ele afirmou que Ivan se encontrava gravemente ferido no hospital de
Villeret-le-François e que tinha feito parte do comando dos jihadistas.
— Os testes de balística ainda não foram feitos – seguiu Henri. – Mas de
acordo com as minhas deduções, eu posso afirmar que ele foi o assassino
da irmã dele.
Somos agora forçados a chafurdar no páthos mesmo que amemos tão
pouco. Ao ouvir essas palavras, Simone caiu desmaiada. Ela poderia até ter
passado da vida para a morte, caso Mona não tivesse uma eficiente
caixinha de remédios que foi buscar às pressas no banheiro. Derramou
álcool de menta entre os dentes cerrados da infeliz. Esfregou suas
têmporas com bálsamo de tigre. Fez a mulher respirar óleos essenciais.
Depois de uma hora de agitação, de choro e de soluços, Simone voltou a si
e murmurou com uma voz moribunda, olhando Henri Duvignaud com
seus olhos vermelhos:
— Você está completamente louco! Ivan não tem nada a ver com esses
jihadistas. E sobre matar a irmã, ele seria incapaz. Ele a adorava!
— É precisamente por isso – respondeu Henri Duvignaud, antes de se
lançar em uma longa história, empregando toda a habilidade de um
advogado experiente em batalhas de oratória.
Quando ele se calou, Simone, que não parou um minuto de olhá-lo com
seus olhos de fogo, exclamou:
— Você não entendeu nada! Nada! Meus filhos não são perversos e eu
vou repetir que Ivan nunca poderia ter matado Ivana!
No silêncio glacial que se seguiu, o prefeito se apressou a declarar que o
estado estava cuidando das passagens aéreas para Guadalupe da falecida
Ivana, de Simone, Pai Michalou e de uma delegação da prefeitura liderada
por um funcionário público chamado Ariel Zeni. Apesar da regra da
separação de poderes, o estado se comprometia também a pagar as
despesas da cerimônia religiosa que aconteceria em Dos d’Âne. Simone
conhecia esse Ariel Zeni? Ela sabia que ele era o noivo de sua filha? Ele
viria no decorrer da tarde para apresentar-lhe seus respeitos e
condolências.
Seria um grave erro acreditar que todas as pessoas caribenhas, em maior
parte, de Guadalupe e da Martinica, padecem desse complexo de
lactification, de embranquecimento, denunciado por Frantz Fanon em sua
famosa obra Pele negra máscaras brancas, e que se sintam lisonjeadas com as
menores marcas de admiração e estima que os brancos lhes dispensam.
Com frequência, é o contrário que acontece. Ariel Zeni percebeu quando
foi cumprimentar Simone e quem a cercava. Assim que ele entrou no
apartamento, ondas de ódio o atingiram no rosto. Ele mudou de
identidade. De repente se viu como um traficante de escravos na costa de
Moçambique, um partidário do trabalho forçado na Costa do Marfim, um
colono-proprietário de hectares de cana-de-açúcar em uma ilha nas
Antilhas. Tinha acabado de mutilar duas pernas e cortar um membro de
um de seus escravos. Ele, cujos avós foram vítimas de pogroms na Polônia,
cujos pais escaparam por pouco do campo de concentração de Auschwitz,
ele que se considerava a grande vítima do Ocidente. Não é necessário
recordar aqui a solução final defendida pelos nazistas, todo mundo sabe
bem.
No entanto, Ariel e Simone entraram em acordo muito rápido, pois
partilhavam o mesmo amor imenso pela falecida Ivana. Sobretudo,
partilhavam a mesma tenacidade cega, recusando-se a se dobrar ao que se
tornava a verdade inapelável a cada dia. Para eles, Ivan não era um
terrorista. Não conseguiam explicar o que ele estava fazendo entre os que
estavam na casa de repouso em Villeret-le-François naquela manhã. Ele
não tinha matado a irmã: essa ideia não era verossímil.
— Eu não conhecia muito Ivan – Ariel repetia. – Mas era um garoto
alegre, aberto, equilibrado.
— Tinha a boca suja – acrescentou Simone. – Mas seu coração era bom.
Quando ele era pequeno, não queria comer as galinhas que criávamos no
nosso quintal, os coelhos que vinham das nossas tendas. “Eles são meus
irmãos”, ele dizia. “Somos iguais.”
Para Ariel e Simone, aquilo era um imenso engano que se dissiparia um
dia. Juntos, pediram para ir ao hospital Villeret-le-Francois para ver Ivan,
que diziam estar entre a vida e a morte. Ariel estava convencido de que sua
condição de policial lhes abriria todas as portas. Infelizmente, receberam
uma recusa. Os jihadistas, um dos quais agora falecido, restando apenas
três, não estavam autorizados a receber visitas. Um cordão de policiais
guardava ferozmente a entrada do pavilhão onde eles estavam.
Em sua tristeza, Simone não estava inteiramente sozinha. Todos os dias,
Henri Duvignaud ia vê-la, mas eles acabaram brigando de novo e ela o
proibiu de ir ao apartamento. Simone também recebeu a visita de Ulysse.
Pobre Ulysse! Desistiu do seu trabalho lucrativo de acompanhante. Na
verdade, ele se apaixonou por Céluta, uma garota do seu país, que o vento
e a miséria tinham arrastado até Paris, onde ela fazia faxinas, e se
amontoou com ela em um miserável apartamento chambre de bonne,
pequeno como um quarto de fundos. Desde então, suas atividades de
acompanhante, que para ele eram apenas um trabalho, tinham mudado de
natureza e se tornado uma traição a seu coração e seu corpo. O pior é que
ele não sabia que, para arredondar as contas do mês, Céluta se entregava
por algum dinheiro para os burgueses com quem ela trabalhava. A vida é
surpreendente, não é? Ela tem um senso de humor do qual nem todo
mundo ri.
Foi de braços dados que Ariel e Simone foram ao aeroporto de Orly para
embarcar para Guadalupe. Pai Michalou andava atrás, de cara feia, porque
aquele branco metido tinha-lhe roubado a cena. Era para ele que corriam
os jornalistas, para ele que estendiam os microfones. Ariel, que tinha a
fisionomia bastante frágil, se endireitava e estufava o peito, dando ao seu
rosto jovem uma expressão exaltada.
— As palavras cor e raça deveriam ser banidas do vocabulário – ele
clamava com fervor. – Elas fizeram mal demais à humanidade. Por causa
delas, partes inteiras do mundo foram mergulhadas no obscurantismo e na
servidão. Por causa delas, povos foram assassinados, enquanto outros se
diziam os descobridores, os vencedores, os que davam lições sobre as
sociedades que tinham o direito de dominar. Eu nunca nem tinha visto
que a cor de Ivana era diferente da minha. Para mim, apenas sua alma
importava.
Não vamos nos alongar muito nesta estada em Guadalupe. Apenas
apontaremos alguns fatos. Uma multidão considerável aguardava a
chegada deles no aeroporto Pôle Caraïbes. Um cortejo composto de
veículos de todas as qualidades subiu até Dos d’Âne, que em toda a sua
história nunca conhecera tamanha multidão. Por muitas vezes, nós
Â
sublinhamos a feiura de Dos d’Âne. Dissemos que parecia um sapo
atropelado por um carro, jogado na beira da estrada. No entanto, no dia
do funeral de Ivana, a cidade se adornou com uma beleza singular. Mãos
anônimas juntaram flores na igreja, pequena demais para conter uma
multidão daquelas: antúrios brancos, tuberosas, lírios-de-cana. Todas as
comunidades de Guadalupe, da Martinica e da Guiana tinham enviado
delegações de crianças de escola, vestidas de branco, balançando bandeiras
tricolores. E havia também representantes de associações religiosas, padres
e até mesmo um contingente de freiras enclausuradas, que desceram do
alto da montanha de Matouba, onde ficava o convento. Em sua homilia, o
prefeito destacou a proximidade dos departamentos ultramarinos com a
França naquele dia. Não dividiam apenas moradias sociais e seguro-
desemprego. Comungavam do sofrimento indizível infligido por um
evento sem par. Depois do prefeito, Ariel Zeni subiu ao púlpito e recitou
um poema de sua composição que encheu os olhos de todos com
lágrimas:
— Ela era nosso raio de alegria, ela era uma pequena rosa que
regávamos, ela era a brisa perfumada que refrescava o suor de nossos
pescoços.
O poema está na página 301 do Florilégio de Guadalupe, publicado pela
bem conhecida editora haitiano-canadense Mémoire d’Encrier. A opinião
geral é que esta cerimónia religiosa dedicada a Ivana Némélé, vida ceifada
em plena juventude, foi inesquecível. Aqueles que tiveram a sorte de estar
presentes foram transformados. Acabaram-se as ambições pessoais e
egoístas. Tal tragédia levou os presentes a dar um sentido às suas vidas, a
lutar para melhorar a sorte de todos. Ivana Némélé, que sonhara ser
policial para ajudar os desvalidos, se tornava um modelo que todos
deveriam seguir. Depois da cerimônia, quando todos tinham voltado para
suas casas com o coração balançado, meditando sobre os eventos daquele
dia, no jornal da televisão das 20 horas, a âncora Estelle Martin perdeu seu
sorriso e anunciou aquela notícia incrível: Ivan Némélé, gêmeo da santa
que tinham acabado de enterrar, fazia parte do grupo terrorista e havia
morrido no hospital de Villeret-le-François. Ao ouvir tal notícia, em Basse-
Terre e em Grande-Terre, as pessoas saíram para a frente de suas casas e se
puseram a chorar. Meu Deus! Ah, mas Guadalupe era digna de pena!
Agora que tinha acabado de aparecer ao mundo como o berço de uma
mártir, sua imagem se degradava e o lugar se tornava o berço de um
assassino.
Pouco antes da meia-noite, um cometa atravessou o céu espalhando sua
cauda inimitável e todos entenderam que era uma noite extraordinária. A
partir de então, Simone Némélé ocupou um lugar especial na narrativa
nacional de Guadalupe. (Mas narrativa nacional? Existe uma coisa assim?
Se Guadalupe é um departamento ultramarino, não tem narrativa
nacional além da de sua metrópole.) Simone, uma mulher de aparência
humilde, pariu o melhor e o pior. Ela tinha carregado em seu ventre um
anjo e um demônio. Panfletos começaram a circular e começaram a ser
vendidos nos mercados por poucos centavos. Eles detalhavam a vida de
Simone e traziam na capa uma foto dela tirada na igreja de Dos d’Âne,
com as mãos cruzadas na altura do coração, os olhos erguidos ao céu.
Esses panfletos vinham da gráfica Bénizat, já conhecida por A chave dos
sonhos e Dez conselhos para se dar bem na vida, traduzidos do inglês
americano.
Uma vez recuperada de sua dor, Simone se entregou e esse jogo de bom
grado. Ela fez um círculo de orações que cresceu tão rapidamente que se
tornou a alma de uma seita chamada Sentier Lumineux, caminho
luminoso. A partir de então, ela mudou completamente sua aparência,
adotando o que convinha para um ser meio sobrenatural, forjado na fé e
no amor. Não penteava mais seus cabelos que, embaraçados, começaram a
se assemelhar àqueles das crianças consideradas favoritas em alguns países
da África Ocidental. Ela rejeitou as cores e se vestia apenas de branco, com
túnicas soltas de algodão amarradas na cintura por um cordão e feitas para
ela gratuitamente pela sra. Esdras, a costureira. Abandonou os sapatos e
tinha os pés descalços, as unhas crescendo acinzentadas e afiadas como
conchas de moluscos.
Todo terceiro domingo do mês, cercada por seus fiéis, ela subia na Mesa
sagrada, antes de retornar e se afundar em orações na nave principal.
Enquanto isso, Pai Michalou fazia cara feia. Não tinha desprezado toda as
baboseiras religiosas durante toda sua vida para acreditar nelas agora na
velhice. Muitas vezes pensava em seguir seu próprio caminho, em
recuperar sua tranquilidade, isto é, pensava em deixar Simone. Só que ele
não conseguia se decidir, pois a amava, a sua velha negra que tanto sofrera
e, além disso, fazia amor tão bem. Foi então que Simone cometeu o ato
diante do qual ele fez objeção. Um belo dia, ela o abandonou sem dizer
nada e foi morar em uma casa colocada à sua disposição por um de seus
fiéis. Não precisava mais de homens. Deus bastava.
Muitos pontos permanecem envoltos em incerteza na nossa história. O
que aconteceu com o corpo de Ivan, que não foi trazido de volta a
Guadalupe? Parece que foi enterrado às pressas com os dos outros
terroristas, jogado numa vala comum do cemitério de Villeret-le-François.
Os fiéis de sempre acompanharam o caixão: Hugo, Mona, o advogado
Henri Duvignaud, Ulysse e Stella Nomal. Mona soluçava sem parar e
balançava a cabeça, repetindo incansavelmente:
— Ele não merecia tal fim! Ele não merecia tal fim!
Stella Nomal, muda, se perguntava com qual Janus Bifrons ela havia feito
amor. A polícia prendeu Abdel Aziz, mas não conseguiu fazer nada contra
ele. Uma vez liberado, ele voltou para seu país natal com sua esposa,
provavelmente para continuar seus crimes por lá. Durante algumas
semanas tudo se acalmou, a vida retomou seu curso de sempre.
No mês de dezembro, em Guadalupe, aconteceu um evento que teria
um alcance considerável. Um alcance que ultrapassou as fronteiras desse
pequeno país, estendendo-se a Martinica, Guiana, Suriname e até mesmo a
algumas ilhas de língua inglesa, como Trinidad e Tobago. Dezembro, mês
do Advento, é pio e calmo no Caribe. Tudo se transforma no milagre, cuja
memória se celebra com fé no dia 25. Cânticos adornam essas semanas de
espera. Alguns são bem conhecidos: “Michaud veillait la nuit dans sa
chaumière” ou então “Voisins, d’où venait ce grand bruit qui m’a réveillé cette
nuit?”.15 A temporada de furacões acabou. Os ventos fortes dormem
tranquilos. O mar voltou a ser macio, “sábio como uma imagem”, como
se diz dos dóceis, e de dia os peixes-voadores se jogam em seus flancos lhe
dando um brilho prateado. Na noite do 20 de dezembro, um grupo de
estrangeiros apareceu na porta do cemitério de Briscaille em Dos d’Âne e
perguntou onde estava o túmulo de Ivana Némélé. Temos que perdoar a
ignorância dessas pessoas, pois eram haitianos que estavam em alerta por
uma estrela misteriosa que começou a brilhar acima de suas casas na aldeia
de Petit Goave. Ela tinha deixado a eles uma trilha. Tinha protegido sua
travessia. Nenhum guarda-costeiro os confundiu com clandestinos
tentando se infiltrar em território proibido. Eles cercaram o túmulo de
Ivana, o qual tinham a intenção de cobrir com velas e flores e onde eles
queriam passar a noite rezando. Foi então que uma equipe de televisão,
alertada por rumores, foi filmá-los. Desde então, todos os anos, na data
fatídica de 20 de dezembro, as pessoas se reúnem para a peregrinação da
“petite soeur de la blesse”, irmãzinha dos feridos como agora Ivana é
chamada. Para medir plenamente o fervor expresso por este nome, é
preciso saber que “blesse” é uma palavra créole que também significa grosso
modo “ferida”. Se trata das cicatrizes dos golpes dados pela vida, que não
se apagam jamais e permanecem sempre dolorosas.

10. “A gente acha sempre linda, a Lily/ Ela veio da Somália/ Num barco cheio de migrantes/ Que
vieram todos por livre vontade para esvaziar/ As lixeiras em Paris.” [N. T.]
11. “O amor é um buquê de violetas/ O amor é mais doce que essas florezinhas/ Quando a
felicidade passageira acena e para/ É preciso que a peguemos pela mão/ Sem esperar o amanhã.”
[N. T.]
12. “Estou sonhando com um Natal branco,/ Igualzinho aos que eu conheci,/ Em que a ponta das
árvores brilha/ E as crianças param/ Para ouvir o sino dos trenós na nave.” [N. T.]
13. “Hoje não temos mais o direito,/ Nem de passar fome nem de passar frio./ Ultrapassado o cada
um por si,/ Quando penso em você, penso em mim.” [N. T.]
14. “Porém todos matam o que amam/ Cumprimento a todos os bons entendedores/ Alguns
matam com um olhar de amargura/ O covarde se serve de um beijo/ E de uma espada, o homem
honrado.” [N. T.]
15. “Michaud vigiava à noite em sua cabana” ou “Vizinhos, de onde veio aquele barulho alto que
me acordou ontem à noite?” [N. T.]
ASSUNTOS DO ÚTERO:
DAQUI NÃO SE ESCAPA

Sabemos que, para vocês leitores, um enigma permanece. Parece mais


importante esclarecer as observações sustentadas por Henri Duvignaud
quando ele foi ver Simone. Naquele dia, ele falou com autoridade do
crime cometido por Ivan. Segundo ele, Ivan era o assassino da irmã. No
entanto, ao que sabemos, ele não tinha visto Ivan, embora em várias
ocasiões, usando sua condição de advogado, tenha pedido à prefeitura
permissão para visitá-lo em seu leito de hospital. A cada vez, a prefeitura
respondia que o estado de Ivan, muito fraco e tendo perdido tanto sangue,
não permitia visitas. Baseado em quê? No entanto, a principal pergunta
que você se faz é a seguinte: Por que dar tanta importância às palavras de
Henri Duvignaud? É que o advogado era dotado de uma inteligência
acima do normal. Além de seus brilhantes estudos de direito, ele tinha
passado para a prestigiosa École des Sciences Politiques de Paris e
estudado por três anos em Harvard, a melhor universidade dos Estados
Unidos da América, o que o tornava capaz de falar bem francês e inglês.
De volta a Paris, tornou-se o discípulo favorito de André Glucksmann,
citando páginas inteiras de sua obra: La Cuisinière et le mangeur d’hommes, a
cozinheira e o devorador de homens.
Henri Duvignaud tinha ideias bem fixas no que diz respeito a Ivan e
Ivana. Ele dava de ombros quando ouvia certas alegações. Para ele, o triste
destino de Ivana era uma ilustração contundente da globalização que
sopra sobre nós como um vento ruim. Na nossa época, é sabido, já não há
mais um país de origem onde passamos a vida inteira até ao momento da
morte; não há mais fronteiras atrás das quais nos confinamos ad vitam
aeternam, em uma palavra, não mais um esquema de vida bem traçado.
Ivana Némélé, nascida em Dos d’Âne, Guadalupe, foi levada a quilômetros
de distância de seu país natal, para uma periferia parisiense chamada
Villeret-le-François, onde ela se encontrou imersa em um drama que a
ultrapassou e destruiu sua pequena realidade. É claro, a história de Ivana e
Ivan ainda punha um ponto final, mais um, no mito da negritude. A noção
de raça não implica mais nenhuma solidariedade. Pior, isso não tem mais
sentido há eras. O que fascinava Henri Duvignaud estava em outro lugar,
na interpretação individual desses destinos pouco comuns.
Para se proteger, ele citava o doutor Eisenfeld, um especialista em
medicina fetal mundialmente conhecido que era um de seus amigos. Se o
conhecia tão bem, era porque ele havia evitado uma pesada condenação de
prisão para seu filho, traficante de drogas. No ventre da mãe, Ivan e Ivana
tinham primeiro sido um óvulo apenas. Depois, uma mutação aconteceu.
O professor garantiu a ele que tal fenômeno não é raro. Ao contrário, é
frequente, mesmo que não saibamos exatamente as causas. Talvez uma
mudança no metabolismo ou nos hormônios? Em geral, quando ocorre tal
fenômeno, a mãe que carrega percebe: febres, hemorragias.
Provavelmente essa mutação ocorreu pouco antes do parto. Também,
Simone Némélé, já atormentada por outros fatores, não se deu conta de
nada, e o óvulo, dividido em dois, veio ao mundo. Isso explicava por que
Ivan e Ivana tinham ficado tão próximos um do outro. O tempo de
adaptação das duas vidas separadas foi muito curto. O que complicou
ainda mais as coisas foi que os fetos não eram do mesmo sexo. Um era um
pequeno macho, o outro uma pequena fêmea. Então eles desenvolveram
um modus vivendi muito íntimo. Se abraçavam, se beijavam, se invadiam
quando lhes convinha.
O professor Eisenfeld explicou a Henri Duvignaud que essas
manifestações eram puramente mecânicas. Elas não implicavam nenhuma
busca por prazer, nenhum gozo sexual. Era talvez uma maneira simples de
partilhar os fluxos vitais. O momento de seu nascimento não melhorou
em nada, pois a consagração da existência separada de Ivan e Ivana causou
um profundo trauma. Tinham guardado o hábito e a nostalgia do tempo
em que viviam em estreita comunhão. Na verdade, tudo com que
sonhavam era voltar àquele tempo bendito.
Isso lhes parece mais ou menos convincente agora? Mas, vocês
questionarão, se isso for verdade, por que Ivan matou Ivana? Aí Henri
Duvignaud ficava menos categórico, mais hesitante. Suas palavras se
embaralhavam. Ele avançava em um território desconhecido, amplamente
feito de suposições. Desde que o mundo é mundo, poetas e filósofos de
todas as nacionalidades nos repetem que o amor e a morte são a mesma
coisa que evoca a mesma noção do absoluto. São impermeáveis aos
caprichos do tempo, à opinião pública e aos caprichos da vida cotidiana. As
pessoas de Guadalupe, em sua sagacidade, entenderam bem, pois as duas
palavras lanmou (l’amour, o amor) e lanmo (la morte, morte) são separadas
apenas pelo fino de uma vogal. Ivan e Ivana, não podendo se perder
carnalmente um no outro, consideraram que a morte era a única saída
para eles. Ivan, ao dar a morte a ela, Ivana, ao aceitá-la, provaram a
eternidade de seu amor.
Vocês estão totalmente convencidos? Talvez não. Alguns de vocês
estimarão que eles só precisavam fazer amor. Não voltemos a este ponto.
Eles não podiam. Toda a educação deles os proibia.
Temos dito e repetido, o atentado em Villeret-le-François suscitou uma
forte reprovação no mundo inteiro: Índia, Indonésia, Austrália, Inglaterra,
para citar apenas alguns países, e foi apelidado, por alusão a um episódio
bíblico, de O Segundo Massacre dos Inocentes. Mesmo aqueles que em
seus foros íntimos detestavam a polícia e os chamavam de “porcos” ou
“assassinos” ficaram profundamente chocados com o destino reservado às
pessoas envolvidas. A descrição desse dia memorável está em todos os
jornais. Foi assim que ela acabou em um jornal canadense nas mãos de
Aïssata Traoré que era, lembram, a prima da mulher de Ivan. Chocada
com a leitura do Devoir, deixou cair a xícara de café que estava bebendo.
Aïssata Traoré deixou a universidade Mc Gill, em Montreal, onde ocupava
um cargo importante, e foi lecionar por alguns meses em uma pequena
faculdade em Chicoutimi. Neste lugar mais modesto, tinha muito tempo
para se dedicar à sua atividade favorita: a redação de ensaios políticos
sulfurosos. Acabara de publicar, um atrás do outro, dois livros que fizeram
muito barulho, o primeiro intitulado L’Occident et Nous, o ocidente e nós, e
o segundo, Le Terrorisme depuis la victoire de Bouvines em 1214 jusqu’à nos
jours?, o terrorismo desde a vitória de Bouvines em 1214 até os nossos
dias?. Ela pintou os cabelos de vermelho para provar que as mulheres
negras eram tão livres quanto as outras para escolher a cor das madeixas,
mas isso é outra história.
Com uma vida sexual intensa, Aïssata guardava uma lembrança única da
noite que tinha passado com Ivan. Imperecível. Raramente um parceiro
lhe parecera tão gentil, atencioso, curiosamente infantil. Ela pegou o
telefone rapidamente e ligou para sua prima em Bamako. Chorava, meio
pasma. Desconhecidos haviam pichado sua casa com tinta vermelha:
Mulher de assassino = Assassina. Assim ela não saía mais de casa. Há dois
dias, quando estava indo ao mercado público comprar dois quilos de arroz
branco, foi agredida por clientes furiosos por vê-la ir e vir em liberdade. A
babá do seu filho não se atrevia mais a ir passear com o pequeno Fadel,
pois as pessoas se juntavam atrás deles e tentavam jogar pedras no
carrinho de bebê.
— Isso não pode continuar. Eles vão acabar te matando – exclamou
Aïssata, aterrorizada. – Você tem que sair do Mali.
— E para onde você quer que eu vá? – gemeu a infeliz Aminata. – Não
temos parentes ou amigos em nenhum lugar do mundo.
Em alguns dias Aïssata moveu o céu e a terra e fez um giro em seus
relacionamentos. Em vão. Ninguém queria se intrometer no destino de
um jihadista que acabou, no fim, recebendo o que merecia. Foi então que
ela se deparou com o nome de Henri Duvignaud, frequentemente citado
na imprensa francesa. Só ele, protegido por sua profissão, ousou defender
Ivan. Acontecia que Aïssata e Henri Duvignaud eram conhecidos de longa
data. No tempo em que ele era estudante em Paris, os dois fizeram um
curso juntos na prestigiosa escola da rua Saint Guillaume. Tinham até
esboçado um flerte, enquanto bebiam uma xícara de chá.
Aïssata bombardeou Henri Duvignaud com e-mails, SMS, WhatsApp.
Ele acabou respondendo e, apesar da distância, eles entraram num acordo.
Sem cair numa hagiografia, sem pintar um retrato idealizado de Ivan, eles
iam se esforçar para fazer justiça e mostrar como um pequeno menino de
Guadalupe se viu envolvido em ações não compreendidas completamente.
Que forma eles dariam a esse apelo? Talvez eles produzissem um livro a
quatro mãos que publicariam por uma grande editora. Henri Duvignaud
se gabava de ter conhecidos na Gallimard, na Grasset e na Seuil. Após
muitas discussões, Henri Duvignaud deixou um recado simples no celular
de Aïssata:
— Venham!
Aïssata e Aminata se encontraram em um apart-hotel da avenida
Leonardo da Vinci, no aristocráticos 16ème arrondissement de Paris.
Enquanto Aïssata adorava a cidade e sonhava levar sua família para lá,
Aminata, que estava ali pela primeira vez, ficou logo horrorizada com
tudo. Não se deixou seduzir pelas avenidas repletas de carros reluzentes e
principalmente pelos prédios altos, tão altos que barravam o céu. Onde
estava o sol, a lua, as estrelas? Desaparecidos. Todo dia a mesma claridade
amarelada e difusa banhava as pessoas e as coisas. Uma noite, seus passos a
levaram à beira do Sena. Ela chorou ao ver o rio humilhado, forçado a
correr entre margens rígidas, feitas de pedra e ferro. Não era de se
surpreender que Aïssata pudesse ficar naquele luxuoso arrondissement, isso
porque estava secretamente rolando em ouro. Um banqueiro canadense
conhecido por suas ideias de extrema direita vinha apoiando-a
generosamente há anos. Se ela mantinha essa ligação em segredo, era por
duas razões. A primeira é que não queria adicionar seu nome à triste lista
de mulheres negras que se casam com homens brancos ou fazem amor
com eles. A segunda é que suas ideias de extrema esquerda a obrigavam a
fingir certo comportamento. No entanto, foi graças ao dinheiro desse
amante que ela foi para a Índia e escreveu sobre a condição das mulheres e
dos intocáveis. Foi também graças a esse dinheiro que ela se opôs, em
vários livros, às ditaduras de certos países árabes e, sobretudo, e esse era
seu assunto favorito, que denunciava repetidamente os delitos da Europa.
Aminata e Aïssata se jogaram nos braços uma da outra. A lembrança de
Ivan tão bonito e tão forte passou por elas. Por outro lado, elas não
pensavam em Ivana porque ambas percebiam na irmã uma formidável
rival e sentiam que ela possuía o coração de seu irmão integralmente.
Fazia tempo que Aïssata não via o pequeno Fadel, que agora caminhava
seguro com seus dois anos. Ele se parecia com o pai, tinha os olhos
amendoados, a boca bem desenhada com lábios avantajados. Mas ele
levava ao extremo a doçura que caracterizara Ivan. Pode-se mesmo dizer
que seu sorriso e seu olhar eram preciosos. Era visível que ele nunca seria
um combatente vingativo. Aïssata gostaria que o filho de Ivan não fosse
um perdedor como seu pai fora.
No dia seguinte da chegada delas, Henri Duvignaud foi buscar as duas
mulheres para jantar. Tinha reservado uma mesa no Astoria, um
restaurante de frutos do mar, bem chique, longe dali. Na hora de ir, ele
pegou na mão de Aminata.
— Não se preocupe com nada – ele disse com delicadeza. – Aïssata e eu
faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para limpar a memória dele e
explicar como Ivan se tornou um terrorista.
Aminata se solta rapidamente.
— Meu marido não era um terrorista – ela exclama. – Eu lhe proíbo de
dizer coisas assim.
Aïssata conseguiu acalmar sua prima e o jantar ocorreu sem outros
incidentes. Os três até entraram num acordo. Diante de seu sorvete de
coco, Henri Duvignaud murmurou triste:
— Estamos todos convencidos de que o mundo deve mudar.
Infelizmente não sabemos como.
No dia seguinte, Aïssata e Henri Duvignaud se puseram a trabalhar.
Antes mesmo de traçar a primeira linha do livro que pensavam escrever
juntos, encontraram o título: O jihadista recalcitrante. Aquele era um título
provocativo, capaz de suscitar artigos nos jornais e gerar vendas
importantes, Henri Duvignaud tinha certeza disso.
Eles organizavam seu tempo rigorosamente. Todas as manhãs, Aïssata
pegava o ônibus para ir até a casa de Henri Duvignaud, que tinha relocado
seus horários de trabalho para a tarde ou a noite. Um secretário, treinado
para isso, expedia centenas de cartas a todos aqueles que conheciam Ivan
em Guadalupe e no Mali. Infelizmente, as respostas eram raras, sendo
esses dois países pertencentes à tradição oral. As pessoas se ocupam mais
em inventar histórias absurdas sobre seus vizinhos do que em responder a
formulários de perguntas. Ainda assim, aos poucos, a obra tomava forma.
Era bem natural que Henri Duvignaud levasse Aminata e Aïssata à casa
de Hugo e Mona. Eles continuavam atordoados com o drama que
acontecera na casa deles, em seu modesto apartamento de três cômodos,
localizado em uma periferia monótona. Sobretudo Mona estava
inconsolável com a morte de Ivana. Frequentemente Ariel Zeni também ia
a Villeret-le-François. Sua história tinha corrido o mundo e tinham lhe
dado o apelido um pouco zombeteiro de “noivo entorpecido”. Ele tinha
criado uma teoria pouco verossímil, que explicava mais ou menos a
presença de Ivan entre os terroristas. Como todos sabiam, Ivan estava
desempregado, e curto de dinheiro. Assim, ele prestava seus serviços a esse
comando da morte, cegamente, sem saber o que esperavam dele. Essa
explicação tinha apenas um mérito, permitia que se falasse com nostalgia e
pesar dos falecidos, Ivana e Ivan. Então, aos poucos, Ivan também se
adornava com as cores da santidade.
Note-se, Mona se aproximou de sua vizinha Stella Nomal, na qual não
prestava atenção alguma. Agora eram íntimas, se tratavam por tu, por
minha querida, meu bem, meu doudou que não terminava mais. Stella
Nomal fazia as compras no mercado para Mona. Ela levava a roupa da
vizinha para a lavanderia e comprava na farmácia bálsamos para artrose. A
verdade é que as duas mulheres estavam escondendo algo que queimava
igualmente em seus corações.
Um evento considerável tinha de fato ocorrido algumas semanas antes.
Acabava-se de revelar a morte de Ivan e o papel que ele tinha
desempenhado no atentado. Os jornais estavam dando tudo o que podiam
sobre o assunto. Publicaram sua foto tirada em um determinado ângulo
para fazer com que ele parecesse ter cara de assassino. Não paravam de
repetir que, ao contrário do que acreditavam, Ivan Némélé havia se
radicalizado há muito tempo. Desde o Mali, onde participara do
assassinato de um importante líder da milícia nacional. Se tinha
conseguido fugir do país, foi porque se beneficiou de cúmplices do mais
alto nível. Quais? Ainda não sabíamos, mas a investigação estava em
andamento. Em resumo, Ivan Némélé era um indivíduo muito perigoso.
Uma noite, Stella Nomal entrou às pressas na sala onde Mona tricotava
um colete para o seu quarto netinho que acabara de nascer. Ela desabou
sobre uma poltrona e começou a chorar.
— Eu não consigo mais suportar a maneira como falam dele. Eu não
posso viver sem ele – gemeu.
— Ele? De quem você está falando? – perguntou Mona.
Sem transição, como se estivesse se libertando de um grande peso, Stella
contou sobre a extraordinária noite que vivera com Ivan na véspera do
atentado:
— Ele nunca antes tinha prestado atenção em mim. Não foi um gesto
brutal, um estupro. Ao contrário. Eu me deixei ser tomada sem protestar.
Eu queimava em suas mãos – tentou explicar procurando palavras. – Fui
consumida. Parecia que ele havia acendido uma brasa muito doce dentro
de mim. Às vezes, ele parava e me trazia de volta à terra. Recuperávamos
o fôlego antes de partirmos novamente para o sétimo céu. Não sei quanto
tempo tudo durou.
Mona, animada, não conseguiu conter sua curiosidade e acumulava
perguntas das mais indiscretas até que Stella Nomal parou-a chorando
mais alto.
— Não posso falar mais nada. Eu, que conheci tantos homens, não posso
comparar aquele momento a nenhum outro. É um segredo isso que conto
aqui. Não conte a ninguém.
Mona com frequência precisava se conter para não revelar nada a Hugo.
Às vezes, a verdade passava perto de escapar de seus lábios. Se segurava o
melhor que podia.
Algum tempo depois, no 20 de dezembro exatamente, um outro evento
inesperado aconteceu. Sim, foi no 20 de dezembro, a mesma data: a data
em que os haitianos iluminados tinham seguido uma estrela milagrosa que
os havia conduzido para perto de Ivana, no cemitério de Dos d’Âne. Como
os reis magos da Galileia seguindo a estrela vespertina, como Cristóvão
Colombo e suas três caravelas seguiram o sol com obstinação, canta Sheila.
Aí termina toda semelhança. Na verdade, o Natal em Villeret-le-François
não tem nada a ver com o Natal em Guadalupe. Nada de vizinhos
reunidos diante das casas na noite morna para os concertos de canções
natalinas. Nada de porcos ansiosos sabendo que o seu fim se aproxima e
que em breve se transformarão em linguiça ou ensopado. Em Villeret-le-
François, alguns raros sinais recordam-nos o aniversário deste mistério
sublime que abalou a humanidade inteira.
Por exemplo, a prefeitura pendurava algumas lâmpadas multicoloridas
nos galhos das árvores que beiravam as avenidas principais. Nos sábados
um homem gordo, vestido de Papai Noel, tirava fotos com as crianças no
supermercado local. O Natal em Villeret-le-François era um período
bastante triste, principalmente para os sem-teto e para os que não tinham
família, cada vez mais numerosos, e que não sabiam a quem recorrer.
Para não ceder à melancolia ambiente, Aminata e Aïssata não se
opuseram a que Mona decorasse uma árvore em homenagem ao pequeno
Fadel. Verdade que Fadel era muçulmano. Mas o Corão não atribui um
lugar bem especial a Jesus? Portanto, seria uma blasfêmia conceder-lhe um
nascimento extraordinário do qual a árvore de Natal seria o símbolo?
Indiferente a todas essas banalidades, a criança maravilhada estendeu as
mãos impacientemente na direção das luzinhas. Foi então que Stella
Nomal empurrou a porta e entrou sem bater, como estava acostumada,
pois ela tinha uma cópia das chaves de Mona. Era visível em sua expressão
que alguma coisa importante estava acontecendo. Seu rosto estava
marcado por uma excepcional gravidade, os olhos erguidos para o céu, a
echarpe azul que usava para se proteger da chuva, porque é claro que
chovia, flutuava ao redor de sua cabeça. Parecia que um artista jocoso
havia pintado à sua maneira a Anunciação feita a uma mulher negra.
— Sente-se – Mona disse a ela, correndo a sua volta. – Quer uma xícara
de chá?
Stella Nomal não respondeu. Pegando as mãos de Mona, ela abre seu
casaco e as leva lentamente até seu ventre, que ninguém ainda tinha
notado o arredondado suave.
— São as crianças que carrego – ela afirmou piamente.
— Crianças de quem? – perguntou Aminata com um timbre sem doçura,
pois ela não gostava nada de Stella Nomal, achava-a indiscreta, invasiva e
não queria admitir que estava simplesmente com ciúmes daquela bela
guianense.
Stella Nomal lançou sobre ela um olhar que a trespassou sem a ver e
continuou com a mesma gravidade:
— Estou falando de Ivan, é claro. Acabo de voltar do médico. Ele me
disse que são gêmeos que eu espero. Gêmeos dele!
Mona conseguiu impedir Aminata de se lançar sobre Stella e segurá-la
em sua cadeira, enquanto ela chorava de soluçar. Enquanto isso, Aïssata
procurava febrilmente seu telefone para informar Henri Duvignaud do
evento imprevisto que acontecia. O advogado estava inacessível. Pela
manhã, ele havia ido a Calais, onde estava sendo desmantelada “a selva”. A
associação dele tinha sob seus cuidados uma centena de menores
resolutos, custasse o que custasse, a ir para a Inglaterra e com quem ele
não sabia o que fazer. Apesar de seu autocontrole habitual, Aïssata
também não estava longe de começar a chorar. Seu coração foi dilacerado
por uma violenta decepção. A memória de sua noite pouco comum fora
estragada. Aquele Ivan que ela julgara tão diferente, que ocupava um lugar
tão especial em sua memória, era afinal um homem, um mulherengo
como os outros. Capaz de fazer amor com três mulheres e procriar
bastardos sem remorso.
Então, das três mulheres que cercavam Stella Nomal, duas estavam
absorvidas por considerações egoístas. Apenas Mona estava sensível à
natureza milagrosa dessa gravidez. Ivan, odiado por todos, jogado
sumariamente na vala comum de um cemitério, renascia para a vida e se
vingava. Isso deveria ter sido destacado de forma magnífica: por fogos de
artifício traçando suas descidas luminosas no céu, por tiros de canhão, por
fogos de bombinhas estalando entre os pés dos passantes. Na falta disso,
taças de champanhe cheias de líquido espumante. Mona não tinha nada
daquilo à sua disposição, exceto uma garrafa de rum La Mauny. No
entanto, Aminata e Aïssata já estavam se despedindo.
No RER que as levava a Paris, absorvidas por suas dores, elas não
prestavam nenhuma atenção aos olhares dos viajantes surpresos com os
suspiros e murmúrios de Aminata. Quando chegaram na Avenida
Leonardo da Vinci, Aïssata ressuscitou um costume que tinha em
Chicoutimi: ela se sentou sozinha no fundo de um bar e fingiu estar
perdida em pensamentos. Os amantes do exotismo não deixaram de se
aglomerar em torno dessa negra sozinha. Às vezes ela os seguia e essa era
uma maneira eficaz de se curar de seus problemas. Em Paris,
aparentemente, os amantes do exotismo são menos ousados do que em
Chicoutimi, porque ninguém se aproximou dela e, tristemente solitária,
ela saiu do bar onde estava e voltou na chuva para o seu apart-hotel.
No dia seguinte, ela encontrou Henri Duvignaud em seu escritório e
contou a ele o episódio surpreendente que se desenrolou em Villeret-le-
François. O advogado ficou muito animado e exclamou:
— Você disse gêmeos?
— Foi isso que ela disse – respondeu Aïssata sem alegria.
— Você está se dando conta! Eu espero que ela esteja dizendo a verdade
– diz Henri Duvignaud cada vez mais animado. – Vamos batizá-los de Ivan
e Ivana e eles escreverão a sequência da história.
Aïssata deu de ombros.
— Talvez eles deem uma nova versão da vida ao pai deles, bem diferente
daquela que nós projetamos contar.
— O que importa – disse Henri Duvignaud. – A verdade não existe. É
essa a constatação que nós advogados fazemos todos os dias. Existe a
verdade do acusado, a verdade do denunciante, a verdade das testemunhas
e temos que navegar, encontrar um meio-termo entre todas essas
afirmações.
Então, ele pegou Aïssata pelo braço e a arrastou para fora dali, até um
restaurante que levava o nome de Au Ver Luisant, ao vaga-lume.
EPÍLOGO

Colocamos um fim no triste e fabuloso destino de Ivan e Ivana Némélé,


gêmeos bivitelinos. Fizemos o nosso melhor, verificamos a exatidão dos
fatos, sem esquecer os pormenores. No entanto, se o que diz Henri
Duvignaud é verdade, se trata apenas de nossa interpretação de uma
verdade possível. Já estamos ouvindo os comentários depreciativos sobre
Ivan, “que inverossímil ter imaginado um homem de Guadalupe se
radicalizando e virando um terrorista! Não é possível”.
Para essa observação, nós respondemos que vocês se enganam. A sra.
Pandajamy, pesquisadora respeitada, que trabalha com as Antilhas por
conta da União Europeia, afirmou que, nos guetos de ilhas diferentes, os
jovens estão se convertendo ao Islã em massa e alguns deles partem para ir
lutar nos países do Oriente Médio.
Sobre Ivana, essa personagem parece a vocês pouco convincente. Parece
curioso que, dada a sua beleza e o seu encanto, não tenha sido seduzida,
ainda quando adolescente em Dos d’Âne, por algum mulherengo
impenitente, que tenha guardado no fundo do coração uma chama que só
ardia pelo irmão.
No entanto, o que choca mais é o amor platônico entre nossos dois
heróis. A tristeza é que vocês dão um lugar muito importante ao sexo. O
amor é um sentimento de grande pureza que não implica necessariamente
sua consumação física. Nós decidimos não mudar uma linha em nossa
história. É isso, e é pegar ou largar.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub
pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S. A.
O fabuloso e triste destino de Ivan e Ivana
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122411775ed122414120.html

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ivana?from_search=true&from_srp=true&qid=trZOTnhllT&rank=1

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