A Seca de 1932 e o Governo Provisório No Ceará

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

PRISCILLA RÉGIS CUNHA DE QUEIROZ

A SECA DE 1932 E O GOVERNO PROVISÓRIO NO CEARÁ

NITERÓI – RJ
2020
PRISCILLA RÉGIS CUNHA DE QUEIROZ

A SECA DE 1932 E O GOVERNO PROVISÓRIO NO CEARÁ

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História do Instituto de História
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em História.

Área de concentração: História Social.

Orientadora:
Profa. Dra. María Verónica Secreto de Ferreras

NITERÓI, RJ
2020
ESPAÇO PARA FICHA CATALOGRÁFICA
PRISCILLA RÉGIS CUNHA DE QUEIROZ

A SECA DE 1932 E O GOVERNO PROVISÓRIO NO CEARÁ

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História do Instituto de História
da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de doutor
em História.

Área de concentração: História Social.

Aprovada em 7 de julho de 2020.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________
Profa. Dra. María Verónica Secreto de Ferreras – Universidade Federal Fluminense – UFF
Orientadora

__________________________________________________
Prof. Dr. Mario Grynszpan – Universidade Federal Fluminense – UFF
Arguidor interno
__________________________________________________
Prof. Dr. José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Arguidor externo

__________________________________________________
Prof. Dr. Frederico de Castro Neves – Universidade Federal do Ceará – UFC
Arguidor externo

__________________________________________________
Prof. Dr. Vanderlei Vazelesk Ribeiro – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO
Arguidor externo

NITERÓI- RJ
2020
À minha família e a Ricardo Oliveira
AGRADECIMENTOS

Neste momento de encerramento da jornada que foi a escrita deste trabalho de


doutoramento, agradeço as pessoas que me acompanharam e incentivaram:
Minha orientadora, Professora María Verónica Secreto de Ferreras, meus mais
sinceros agradecimentos pela confiança depositada em mim e pelo apoio na construção
da pesquisa.
Aos membros da banca, Prof. Dr. José Augusto Pádua, Prof. Dr. Frederico de
Castro Neves, Prof. Dr. Mario Grynszpan e Prof. Dr. Vanderlei Vazelesk Ribeiro,
agradeço pela disponibilidade e atenção prestada no momento da defesa.
Ao Departamento de História da Universidade Regional do Cariri e ao Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, responsáveis pelo
Doutorado Interinstitucional firmado entre essas instituições, agradeço pela oportunidade
com especial atenção às coordenadoras Ana Maria Mauad, Giselle Venâncio, Sônia
Meneses e Verónica Secreto, bem como os docentes que se dispuseram a longa viagem
desde o Rio de Janeiro até o Cariri cearense para ofertar disciplinas e trocar ricas
experiências no decorrer de 2017, todo meu respeito e admiração. Faço ainda menção às
disciplinas ministradas pelas professoras Ismênia Martins, Giselle Venâncio e Ana
Mauad, cujos ensinamentos de História e de vida guardarei comigo.
À Universidade Federal do Cariri, especialmente ao grupo reunido em torno do
Instituto de Estudos do Semiárido (IESA), professores, servidores, funcionários e alunos
do Bacharelado em História, em Icó, e também aos colegas do Centro de Ciências Sociais
Aplicadas (CCSA), em Juazeiro do Norte. A aprovação do afastamento e a confiança
concedidos a mim por vocês garantiu a consolidação da minha qualificação profissional,
direito fundamental, agora, como tantos outros, em disputa. Torço para que a universidade
pública brasileira e os sujeitos que a compõem possam continuar cumprindo seus papéis
sociais ao tempo em que renovem sua vocação solidária e seu compromisso com os rumos
do país.
Aos funcionários do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Ceará, Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro e Biblioteca do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), meu
muito obrigada por se manterem atentos ao dever de democratizar o acesso às
informações do Brasil.
Aos colegas de doutorado: Airton de Farias, Daniela Medina, Fagno Soares,
Fátima Pinho, Helonis Brandão, Jaqueline, Marcos Felipe, Rafael Dias, Raimundo Alves,
Rubia Cavalcanti, Simone Silva e Viviane Prado, pelos momentos de descontração e
apoio mútuo, meu agradecimento. Regracio Jucieldo Alexandre e Sandra Nancy, com
quem compartilhei a morada, os sabores e os belos caminhos da cidade do Rio de Janeiro
ao longo do estágio doutoral, em 2018.
Aos NMCR’s, Amanda Teixeira, Ítalo Bezerra, Jucieldo Alexandre, Patrícia
Alcântara, Sávio Samuel e Simone Pereira, pela companhia diária, garantidora da
sanidade em meio às dificuldades da vida, agradeço.
Às amigas Maria Rosângela e Jane Peixoto, pela dedicação em manter acessa a
chama da amizade, meu muito obrigada.
Aos amigos Juliana Linhares e Adeilton Rodrigues, pelo companheirismo e apoio.
A Ricardo Oliveira, que me acompanha todos os dias em qualquer empreitada, e
que, com ainda mais afinco e leveza, me apoia a cada desafio. Renovo aqui meu elo de
amor e cumplicidade. Amo você!
Por fim, aos meus pais, Vilma e Carlos Ronaldo, aos meus irmãos Patrícia e Carlos
Átilla, a minha cunhada Ariane e as minhas adoradas sobrinhas, Ana Luiza e Ana Beatriz,
obrigada pelo eterno apoio e por demonstrarem total fé em mim. Amo vocês.
RESUMO

Esta tese investiga a forma como se deu o combate à seca de 1932 no Ceará, situando
historicamente seus termos no processo de conformação do governo provisório varguista (1930-
1934). Ao tempo em que os primeiros sinais da severidade da estiagem foram reconhecidos em
1930, a disputa pelo controle da Presidência do Estado se acirrou, impactando na atenção dada
à crise climatérica. O mesmo ocorreu em outros momentos de instabilidade política no novo
regime. Com o agravamento da seca, o Governo Provisório renovou o compromisso com os
estados atingidos, mas apesar do ímpeto de mudança estrutural, recorreu à velhas respostas para
dar conta do histórico problema. Por meio de fontes diversas, sobretudo, jornais, documentação
oficial produzida em nível local e nacional e relatos memorialísticos, analisamos como as
principais instâncias encarregadas dos socorros públicos, a saber, Interventoria Federal de
Obras Contra as Secas e Ministério da Viação e Obras Públicas, passaram a se ocupar da crise
social. Percebeu-se que ao longo do Governo Provisório (1930-1934) o debate em torno da seca
foi gradativamente ampliado à medida em que o próprio estado pós-revolucionário se adensava.
Nesse contexto, a questão climatérica foi redimensionada, passando a fazer parte de debates
acerca dos usos dos recursos naturais nacionais e do ordenamento constitucional da nação.

Palavras-chave: Governo Provisório. Seca. Ceará.


ABSTRACT

This research investigates how the 1932 drought was fought in Ceará, historically located its
terms in the process of forming the Vargas interim government (1930-1934). At the time when
the first signs of the severity of the drought were recognized in 1930, the dispute for the control
of the State Presidency intensified, impacting the attention given to the climate crisis. The same
occurred at other times of political instability in the new regime. With the worsening drought,
the interim government renewed its commitment to the affected states, but although the impetus
for structural change, it resorted to old responses to manage the historical problem. Through
various sources, mainly newspapers, official documentation produced at the local and national
level and memorial reports, we analyze how the main applied instances in charge of public
action, namely, Federal Intervention of Works Against Droughts and Ministry of Traffic and
Public Works, started to deal with the social crisis. It was noticed that throughout the interim
government (1930-1934) the debate about drought was gradually widened as the post-
revolutionary state itself became more and more dense. In this context, the climate issue was
re-dimensioned, becoming part of debates about the uses of national natural resources and the
constitutional order of the nation.

Keywords: Provisional Government. Drought. Ceará.


LISTA DE ABREVIATURAS

ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro


AL Aliança Libertadora
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
CPDOC Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
FGV Fundação Getúlio Vargas
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
LEC Liga Eleitoral Católica
PRP Partido Republicano Progressista
PSD Partido Social Democrático
PSN Partido Social Nacionalista
PRP Partido Republicano Progressista
SADAT Sociedade Amigos de Alberto Torres
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig. 1 ARACATY – Jardim remodelado durante a administração revolucionária, f.


90
Fig. 2 Mapa de localização dos Campos de Concentração, f. 97
Fig. 3 Despesas Anuais do DNOCS (1909 – 1959), f. 125
Fig. 4 Canteiro de obras de construção do Açude Lima Campos, em 1932, f. 153
Fig. 5 Barragem Lima Campos depois de concluída (1933), f. 155
Fig. 6 Cava para construção do Açude Acarape, em 1910, f. 156
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1 - REVOLUÇÃO, POLÍTICA E SECA .......................................................... 29
1.1 Antecedentes da Revolução no Ceará .................................................................29
1.2 Política Velha .....................................................................................................42
1.3 Nova Política? A Interventoria de Fernandes Távora .........................................54
CAPÍTULO 2 - ENTRE NOVOS ARRANJOS E VELHAS RESPOSTAS ......................... 74
2.1 “Temos novo Interventor!”: A Interventoria de Carneiro de Mendonça .............74
2.2 “Nos braços da horrível situação”.......................................................................86
2.3 José Américo, o Ministro das Secas .................................................................106
CAPÍTULO 3 – A AÇÃO DA INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS NO CEARÁ
................................................................................................................................................. 123
3.1 A operacionalização do combate à seca no Governo Provisório .......................123
3.2 “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”: críticas à ação da IFOCS .......134
3.3 Seca e açude: a experiência de combate à seca em Icó, Ceará. .........................144
CAPÍTULO 4 - A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DEBATE AMBIENTAL NO GOVERNO
PROVISÓRIO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA QUESTÃO DA SECA............... 168
4.1 Governo e sociedade: interseções no debate ambiental ....................................168
4.2 Regionalização do debate ambiental e as possibilidades para o combate à seca no
Boletim da IFOCS..........................................................................................................187
4.3 A Constituição de 1934, a questão ambiental e a inclusão da seca no texto
constitucional .................................................................................................................203
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 221
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 227
a) Documentos........................................................................................................227
b) Bibliografia ........................................................................................................233
13

INTRODUÇÃO

Desde o esgotamento decorrente da estiagem à violência das cheias, água e natureza são
protagonistas na História do Nordeste. Sobre isso, em meio a sua exposição sobre as ações do
Governo Provisório nos Boletins, em 1935, o Engenheiro Henrique Novaes rememorou suas
incursões sertão adentro, afirmando que era preciso amainar o contraste violento que abatiam a
região colocada sempre “quase que entre a vida e a morte”.

Desde 1904 – quando o percorri em parte, pela primeira vez, no curso de uma das suas
maiores estiagens – sofro uma verdadeira fascinação pelo Nordeste brasileiro! -
Originalíssimos – como tais não tendo paralelos noutras regiões do Brasil e alhures.
[...] o que mais me feriu em 1904, foi presenciar morrer gente de fome dentro do
Brasil; extasiei-me, depois, vendo o sertão nordestino ressuscitar no verde de suas
caatingas exuberantes, na pujança de seus cercados fenomenalmente produtivos, nas
alcatifas douradas de seu penhasco, nas formas carnudas e arredondadas de seus
rebanhos numerosos e na alegria comunicativa de sua gente, logo esquecida.1

Entre a morte causada pela seca e o renascimento ocasionado a cada chuva, segundo
Novaes, enganavam-se “os que o imaginam um Saara, sem o benefício das precipitações
hídricas. Aí chove, como noutras regiões do Brasil”; a grande questão evidenciada era que a
chuva ocorria “irregularmente no correr dos anos, irregularmente no correr de uma estação,
ainda irregularmente sobre a própria superfície” (Arrojado Lisboa). 2 Assim, após muitas outras
secas e os socorros empregados pela República brasileira em cada um desses momentos, ainda
era preciso ajustar a contradição entre a hostilidade das águas e a sua ausência, situação
entendida como a responsável por tornar os estados brasileiros ressequidos retardatários da
economia nacional.
Os predicados geográficos da Região Nordeste3 são favoráveis à construção de represas.
Seu solo, de formação cristalina, abona por todos os recintos à construção de açudes; a presença
de vales, baixios e várzeas favorecem o estabelecimento de caminho para as águas represadas.

1
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91.
2
Ibid., 1935.
3
Segundo Cotel, a primeira divisão regional oficial do Brasil foi institucionalizada a partir da Circular No. 1 de
31 de janeiro de 1942 da Secretaria da Presidência da República. O principal articulador e teórico da feitura da
divisão foi Fabio Macedo Soares Guimarães, então Chefe da Divisão de Geografia do Conselho Nacional de
Geografia do IBGE. O estudo para a divisão regional de Guimarães foi publicado em 1941 na Revista Brasileira
de Geografia, “sua proposta original dividiria o país em cinco principais regiões: Norte, Nordeste, Leste, Sul e
Centro Oeste”. COTEL, Fabio Betioli. As divisões regionais do IBGE no século XX (1942, 1970 e 1990).
Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/990. Acesso: 8 de julho de 2020. O termo Nordeste
foi incorporado ao texto da tese diante de sua presença em fontes do período. Como explica Albuquerque Jr.,
com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, no mandato do Presidente Delfim Moreira, em 1909,
políticos e intelectuais ligados a IOCS tentam suprimir eventuais sentidos dúbios sobre àquele espaço. “Eles
tentam construir uma imagem e um texto único, homogêneo para a região (...). O Nordeste deveria ser visto e
14

“oásis, Templo, Santuário”, “Baluarte”, o açude constitui, para o nordestino daquelas


ribeiras sertanejas assoladas pelas secas, um espelho d’água e de vida no meio da
ressecada natureza; um espelho de esperança no seio da atordoante incerteza que
acompanha a marcha das estações. Até a própria língua parece atestar a relação vital
entre o açude e o sertanejo: o açude sangra quando transborda e chora quando a sua
fralda fica umedecida pelas infiltrações. 4

Esses feitios marcam a paisagem nordestina, compondo assim a existência sertaneja.


Nesse bojo, a comparação entre o homem e o mundo natural são mobilizados para a repetição
da formulação da grande açudagem como a resposta melhor indicada para resolver o problema
da falta ou excesso de água, em um duplo milagre das águas sem as inundações.
Ao longo do Governo Provisório, convergiram interesses de construção de açudes, a
irrigação, a psicultura e a defesa de iniciativas em prol dos recursos naturais. Mas, a mobilização
para empregar planos de modificação da lógica de socorros, e mesmo velhas respostas, contudo,
mais uma vez só foi empregada quando os horrores da seca bateram à porta.
Durante a seca de 1932, relatos de carestia, doenças e migração ganharam as páginas
dos jornais. Quando pelos caminhos das estradas de ferro e de chão batido, os retirantes passam
a ser percebidos em seu triste deslocamento em busca de socorros, o governo recém-
estabelecido precisou apresentar soluções concretas de auxílio. A população nos
abarracamentos das obras cresceu com rapidez, ao mesmo tempo em que se ampliavam também
suas necessidades de consumo e sobrevivência. Homens, mulheres e crianças saídos de várias
partes do sertão buscaram condições diferentes de vida no espaço pouco promissor das áreas de
construção. Como indicou o engenheiro Piquet Carneiro, “as maiores vítimas nas “retiradas”,
que são as crianças, os velhos e as mulheres, ficará zelando pela criação”, enquanto a maioria
dos homens iria “procurar recursos em trabalhos públicos”. 5
Segundo José Américo, então Ministro de Viação e Obras Públicas, Getúlio Vargas,
chefe do Governo Provisório, estivera solidário aos flagelados, “ele sempre deu muita

lido numa só direção para que seu efeito de verdade fosse eficiente politicamente”. ALBUQUERQUE Jr., Durval
Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. p.84. Em outras passagens, sobretudo
aquelas que se remetem a debates políticos, permanece o uso do termo Norte. Seguimos o raciocínio adotando
por Raimundo Lopes que, refletindo sobre a noção de Norte construída durante o Governo Provisório, indica a
dimensão processual da construção da região geopolítica de Norte, “sugerindo que essa palavra/categoria tem
significados e abrangência na conjuntura especifica do Governo Provisório”. In. LOPES, Raimundo Hélio. Um
Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 32. Tese
(doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-
Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p.41.
4 MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE,
DPG. PRN, HME, 1994. p. 9.
5 CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio Rodrigues
& c. 1935. P. 7.
15

assistência”. No entanto, sobre a liberação das primeiras verbas, a narrativa de Américo indica
que o processo não foi facilitado de pronto.

Nessa oportunidade, eu estava no ministério, e comecei receber pedidos de socorro.


Apelos do ceara, da paraíba, de toda parte. Procurei o ministro da fazenda, Osvaldo
aranha, e ele me disse que ao não havia disponibilidade de recursos. Mas aconteceu
que ele teve que ir à Argentina a passeio, e Getúlio me nomeou para responder
cumulativamente pela pasta dele. Fui a ministério da fazenda e perguntei ao secretário,
Rubem rosa, se havia uma verba disponível. A resposta foi que havia apenas dez
contos. Eu disse: “então você faz uma abertura de crédito”. Ele abriu o crédito. Fui a
Getúlio e disse: “Recebi um pedido de socorro e já compreendi que, dando instruções,
não poderia dar resultado. Assim, vou diretamente”. Ele assinou o crédito. No dia
seguinte, parti daqui do Rio para socorro o Nordeste. Fui diretamente ao Ceará. 6

Nos embates pela memória e pela história do combate aos efeitos das secas no Brasil,
Américo descreve a recusa da liberação de verbas por parte de Osvaldo Aranha como resultado
de má vontade para com a questão, afinal, diante da existência, mesmo que exígua de créditos,
a resolução do problema surgiu da força de vontade e do trânsito de Américo junto a setores
importantes do governo. O desfecho da questão, conseguido somente com a ausência de Aranha
no Ministério, aponta o início dos socorros quase que como obra do acaso, apontando para a
persistência da dificuldade de verbas para os socorros.
Certificando a relevância das contribuições de Américo, e também indicando novos
contornos do combate à seca durante o Governo Provisório, Molle indica que a seca de
1931/1932 “marcou o início de um quinquênio áureo sob a impulsão do Ministro José Américo
de Almeida e do Inspetor da IFOCS, Luiz Augusto da Silva Vieira”. Naquele momento,
segundo Molle, houve a disponibilização de grandes quantias, despendidas de acordo com as
indicações de técnicos competentes que viabilizaram a “importação de uma moderna
maquinaria [...] e a abertura do leque de atividades que passou a abranger com mais ênfase a
agricultura, a irrigação o reflorestamento, a psicultura, foram os elementos que concorreram
para este renascimento”, conferindo novo perfil aos trabalhos em prol da superação das
recorrentes crises no Nordeste no período pós Revolução de 1930.
Entre as medidas para prevenir e atenuar os efeitos das secas periódicas, o governo
estabelecido após a vitória dos revolucionários de outubro de 1930, priorizou a regularização
do regime das águas nas zonas assoladas por meio de barragens. A utilização das águas far-se-
ia por meio da ação pública e de prêmios e subvenções às empresas particulares, bem como a
observação meteorológica, para conhecimento do clima e dos recursos naturais. As ações
visavam permitir a ampliação do trabalho agrícola e industrial, desenvolvendo a riqueza local

6
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo; FLAKMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. P. 213.
16

e o aumento da população do Nordeste, que seria finalmente inserido na empreitada nacional.


Tais aspirações se desdobraram na criação de leis adequadas ao uso dos recursos naturais. O
ponto de contato entre esse debate ambiental e o combate à seca deu-se em torno da
constitucionalização dos socorros aos estados afetados, tornando-os perenes, pelo menos na
letra da lei. A Constituição, guardiã dessas e outras novidades e demandas, teve vida curta e
logo foi esquecida diante da eclosão do golpe que deu início ao Estado Novo varguista.
Ao final desse período, porém, a situação ainda parecia incerta:

Não nos esqueçamos, porém, do que foi dito logo no início destas apreciações; os
problemas do Nordeste são complexos e não dependem somente da Engenharia! É na
verdade uma nova civilização que ali se está criando sob o amparo da água, os grandes
vales reanimados pelos rios ressuscitados, os quais, antes, só se apresentavam como
fantasmas de destruição nas inundações pavorosas. 7
Assim, pois, enquanto não temos os grandes açudes e as grandes redes de irrigação
que tanto aspiramos com o seu completivo indispensável da drenagem, cumpre-nos
lançar mãos de outros meios, muito valiosos, embora menos custosos, de combate aos
flagelos multiformes da seca. 8

Nesse texto vinculado no Boletim publicado pela Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas (IFOCS) em 1934, percebe-se que a própria Inspetoria de Secas, instituição
historicamente responsável por operacionalizar o combate ao flagelo das secas no Brasil, faz
ecoar seu descontentamento quanto à superação dos efeitos das estiagens no Nordeste.
Em 1935, quando uma nova Constituição havia sido promulgada e os horrores da seca
deram lugar a um inverno satisfatório, na tentativa de imprimir melhor entendimento acerca da
ação do governo provisório, iniciativas de recapitulação das ações governistas foram acionadas.
De acordo com o editorial no Boletim da Inspetoria, o engenheiro Henrique Novaes foi
escolhido para tratar das várias facetas do Governo Provisório em torno da questão da seca.
Segundo o artigo da IFOCS, Novais conseguiu demonstrar que os esforços do Governo
Provisório não possuíam somente preocupações de caráter econômico, mas de “civilização e
expansão política, ao mesmo tempo”.9

Assim, pois, não é o substancioso relatório do Engenheiro Henrique Novaes apenas


uma simples exposição do que ele viu e observou, mas também uma obra de crítica e
de ideias, de que resultem, em cada linha, a fé ardente e o vivido entusiasmo que o
autor adquiriu no estudo das nossas causas, pela função que o Nordeste virá a
desempenhar na futura grandeza do Brasil. 10

O editorial do Boletim indicou que o trabalho compilado por Novaes foi além do
frequente argumento que encerrava os trabalhos de combate às secas como obras de caridade,

7
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1934. Vol. 3. N.º 3. p. 100.
8
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 81.
9
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91.
10
Ibid., 1935.
17

pois certificava a importância dada a região das secas pelo Governo Provisório que, ciente dos
desafios daquele momento, pavimentava o futuro da nação, considerando as contribuições do
Nordeste. Evidenciada a consonância com as opiniões de Novaes, o editorial garantiu a
republicação do material escrito por Henrique Novaes ao longo dos volumes do Boletim
referente ao ano de 1935.

[...] comparando e analisando em detalhes, pode o ilustre emissário dos “diário


associados” apresentar um relatório em que os resultados do seu exame são expostos
com a sinceridade conveniente. Ainda bem que não é o engenheiro Novaes um filho
do Nordeste nem a ele se acha ligado qualquer laço, circunstância que maior valor dá
ao seu testemunho do trabalho que vem realizando a inspetoria de secas. 11

Na opinião do conselho editorial, a escolha de Novaes para a observação das ações


revolucionárias no Nordeste não poderia ter sido mais acertada, pois a isenção do engenheiro
garantia fidedignidade ao seu relato e, evidentemente, as suas conclusões. De fato, Novaes não
se furtou a oportunidade de concluir que o trabalho do Governo Provisório, em boa parte
operacionalizada pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, não desapontou às
expectativas nacionais. Na opinião do engenheiro, o Nordeste estava progredindo pelas mãos
do novo governo. Essas e outras percepções foram largamente propagadas pelos Diários
Associados e pelos Boletins da Inspetoria de Secas.

O uso das águas, o aproveitamento das terras, a distribuição das culturas, o


escoamento das colheitas, o aperfeiçoamento da pecuária, a modernização dos
transportes, a psicultura [...], inúmeros são os capítulos interessantíssimos desta obra
formidável de estabilização da vida no Nordeste, - obra por si demonstrativa da
energia e do alto sentimento de nacionalidade do povo brasileiro. 12

Em seu balanço, Henrique Novaes informou visitas à açudes, campos agrícolas, canais
de irrigação e estradas recém-construídas, elaborando um relatório que abordava, a partir de
suas impressões, as bases sob as quais a ação do Governo Provisório assentou a política de
socorros aos estados atingidos pela seca. Quando iniciou a viagem no dia 14 de fevereiro,
partindo do Rio de Janeiro, Henrique Novaes esteve acompanhado pelo Dr. Luís Vieira,
Inspetor de Secas, com quem dividiu todo o trajeto. Após longa viagem aérea, desembarcaram
inicialmente na cidade de João Pessoa, na Paraíba, terra do relevante Ministro de Viação e
Obras Públicas, José Américo de Almeida. Seguidos por fortes chuvas, no dia seguinte entraram
no sertão pela Paraíba e pelo Rio Grande do Norte. Na ocasião, o engenheiro certificou que os

11
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91-92.
12
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1935. Vol. 3. N.º 6. p. 226.
18

responsáveis pelas obras não regatearam “recursos diretos para amenizar a situação penosa de
meio milhão de flagelados”.13
Novaes cruzou suas impressões sobre o combate à seca promovidos pelo Governo
Provisório com suas memórias de outras experiências de campo no Nordeste. Estabelecendo
alguma distância entre o combate à seca promovido no passado e no Governo Provisório, o
engenheiro evidenciou a melhoria na região relacionando-a à ação revolucionária.
Explico assim a satisfação com que recebi a perspectiva de uma excursão pelas obras
que a Inspetoria de Secas está fazendo nessa região. Depois de 1904, percorri o Ceará
e trabalhei no Rio Grande do Norte em 1912; de 1921 a 1923, colaborei, na medida
de minhas forças, com o Dr. Arrojado Lisboa, no período áureo da Inspetoria; voltei
ao Rio Grande do Norte, em 1924 e, em 1928, novamente. [...] Posso apreciar,
portanto, em longos intervalos e com a visita de agora, o grande progresso do Ceará,
do Rio Grande do Norte e da Paraíba, para o qual tem contribuído decisivamente a
sábia política em relação a ele adotada pelos governos citados. 14

Novaes exalta o passado áureo da Inspetoria, marcando sobretudo a figura quase


mitológica do Engenheiro Arrojado Lisboa, grande entusiasta das pesquisas de campo com
relação aos males da seca. Para Novaes, seria perceptível um “rendimento sensivelmente
melhor do que o das tentativas anteriores”, levadas a efeito, inclusive, em melhor situação
financeira do que aquela que o país atravessou no momento em que eclodiu a revolução. 15
Sobrepondo novas e antigas imagens, Novaes entrelaçou passado, presente e futuro,
revelando a extensão das intervenções no sertão nordestino motivadas pelo combate à seca.
Sobre o presente transformado, Novaes evidenciou o impacto da beleza, da magnitude e da
modernidade das construções efetivadas pelo regime revolucionário. O engenheiro elencou a
beleza da nova ponte “Otto Alencar” sobre o rio Acaraú, e indicou como o período produziu
obras realmente monumentais como o açude General Sampaio, “o maior lago artificial” no
Nordeste. Novaes fez questão de mencionar a ida até Banabuiú para “apreciar o trabalho
mecânico de construção da plataforma” construída naquele lugar.
Delimitando seu trajeto, Novaes evidenciou seu frenético deslocamento pelas antigas
linhas férreas que cruzavam o Ceará, mas também utilizando a nova rodovia transnordestina. O
engenheiro ressaltou a sobreposição nem sempre bem-sucedida de políticas públicas de
combate à seca. Ao visitar um dos mais relevantes símbolos do pretérito combate à seca, o
histórico Açude Cedro, em Quixadá, Novaes ressaltou que as belas linhas da construção,
expoente máximo da boa técnica de engenharia do século XIX, não estavam comportando, em
suas margens, áreas irrigáveis como aquelas preconizadas pelo plano de melhorias elaborado

13
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 94.
14
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91-92.
15
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91.
19

pelo Ministério da Viação. Novaes projeta mudanças vindouras pautando-se na certeza da


perenidade das ações de Vargas e na força do povo do Nordeste, ambos merecedores da mais
sólida confiança. 16
A partir do relatório de Novais, percebe-se que os frutos da ação do governo repousaram
na opinião pública a partir da confiança ampla do Chefe do Governo e na capacidade
administrativa do Ministro da Viação e Obras Públicas – o preclaro Dr. José Américo de
Almeida, que se estabelece, já naquele momento imediato aos socorros de 1932 como
personalidade que “pôs todo o seu grande prestígio na obtenção de recursos para a imensa obra
do preparo do Nordeste para a vida e para o progresso”. Ao seu lado, o Inspetor de Secas, o
engenheiro Luiz Augusto da Silva Vieira, - é laureado por suas “altas qualidades de comando
e de decisão o recomendam, como um complemento condutor de homens e capitais, a se
empenharem na solução de difíceis problemas nacionais”. 17
O Governo Provisório foi marcado profundamente por disputas de projetos políticos
variados. Como sinaliza Ângela de Castro Gomes, na introdução do livro Regionalismo e
Centralização política: partidos e Constituinte nos anos de 1930, “a marca essencial desses sete
anos é a instabilidade, corporificada nas lutas e nos choques ocorridos entre as numerosas e
distintas forças sociais que então disputam um espaço político maior no cenário nacional”.18
Para dar conta dessa turbulência em toda a sua complexidade, busca-se compreender os
eventos ocorridos ao longo do Governo Provisório no Ceará, retomando a maneira como esses
acontecimentos foram vivenciados por seus participantes e contemporâneos, em suas diferentes
e conflitantes versões. Assim, urge perceber os meandros da luta pelo poder, observando como
no período em questão, revolucionários, elites decaídas e sociedade em geral firmaram práticas,
demandas, discursos, críticas e alianças, rompendo, assim, com as análises que se concentram
unicamente no embate “Tenentismo versus Oligarquias”.
Dulce Pandolfi indica que a região Norte é, sim, um núcleo do tenentismo e “cumpria a
missão de fortalecer o Governo Provisório”, sobretudo através da ação de seus interventores. 19
Todavia, concordo com Hélio Lopes que atenta para a necessidade de perceber esses sujeitos
de maneira mais ampla, pois “no pós-30, o tenentismo não dá conta completamente do projeto
defendido e executado pelos interventores e revolucionários nortistas”, projeto que culmina,

16
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 95.
17
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 95.
18
GOMES, Ângela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. P. 25.
19
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 237.
20

inclusive, com a formação do Bloco do Norte chefiado por Juarez Távora.20 No Ceará, percebe-
se que as pressões internas e os desdobramentos da crise climatérica foram relevantes para a
viabilização das Interventorias e mesmo para a execução de medidas em prol do Governo
Provisório. Nesse sentido, afim de captar essas especificidades, foi necessário dar atenção às
críticas e demandas estrategicamente publicadas pela imprensa local.
Grande parte dessas críticas pautava-se na nova racionalidade modernizante ensejada
pelo advento da Revolução. Os idealizadores do processo revolucionário e os envolvidos na
construção do novo governo propugnavam a necessidade de descontinuação do tempo por meio
de uma ruptura com o passado. O discurso e as práticas mobilizadas para tal conferiam ao
Governo Provisório um clima de inflexão histórica. A defesa da ruptura com o passado arcaico
é mobilizada em momentos muito díspares, às vezes para solicitar condutas políticas e
administrativas específicas, outras para demandar novos e velhos arranjos para os socorros das
vítimas da seca.
Maria do Carmo Campello de Souza, em Estado e Partidos Políticos do Brasil (1930 a
1964), indica a importância da constituição das Interventorias para o período, considerando que
essas novas instâncias públicas podem ser entendidas como instrumentos fundamentais para o
projeto de centralização política, empreendido no pós-1930 e consolidado a partir de 1937. A
pesquisadora lembra que para realizar uma análise preocupada com os significados de suas
Interventorias no período “é necessário distinguir entre os estados mais fortes e os mais fracos”.
Segundo Souza, enquanto havia crises para manutenção das Interventorias de São Paulo e
Minas Gerais, por exemplo, nos estados nortistas, considerados mais fracos, o processo de
subordinação das Interventorias era mais simples.
A análise de Maria do Carmo Campello de Souza aplica-se ainda ao caso cearense
quando a autora indica que os primeiros interventores desses estados foram alçados aos postos
com base numa regra elementar que presumia que, “quem quer que estivesse na oposição contra
Washington Luís passaria a situação”.21 No Ceará, Fernandes Távora, opositor ao antigo
regime, que inclusive se achava preso pelo então presidente do estado José Carlos de Matos
Peixoto no momento em que a revolução eclode, assume como primeiro Interventor do estado.
Porém, a manutenção do civil Fernandes Távora no cargo dependeu da sua capacidade de lidar
com a situação política interna e externa, intento no qual ele foi malsucedido. Após a crise

20
LOPES, Raimundo Hélio. Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte
e a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p.22.
21
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
omega, 1976. P. 92-94.
21

atravessada por Fernandez Távora, o militar Carneiro de Mendonça assume o comando do


estado tratando as disputas internas de uma maneira diferente, conseguindo, assim, manter-se
no cargo até a constitucionalização do país. Dessa forma, busca-se atentar para a inserção dessas
personagens em sua historicidade.
Ao tratar da maneira pela qual os estados do Norte se posicionaram durante a Revolução
de 1930, bem como quanto a constitucionalização do país, Dulce Pandolfi (1980), assim como
Campello de Mello, apontam o Norte como foco de um impulso político importante para o
cenário nacional. O relevante trabalho, A Trajetória do Norte: Uma tentativa de ascenso
político, de Pandolfi, apoiou as considerações acerca da forma como o Bloco do Norte
desempenhou seu papel de suporte ao Governo Provisório, reverberando na participação de
suas Interventorias em momentos decisivos para o Governo. Esse importante artigo de Pandolfi
e a pesquisa de Hélio Lopes (2014) foram fundamentais para o desenvolvimento das
ponderações quanto a dinâmica nacional na qual a Interventoria do Ceará estava inserida e,
assim, pensar o campo político como algo dinâmico, mutável, mas verdadeiro “nas cabeças e
nas mentalidades”, tal como indica René Remond. Como adverte o historiador francês, “O
próprio político está em evolução permanente. É preciso ter uma definição ampla deste”, porque
“Não é um fato isolado. Ele está evidentemente em relação, também, com os grupos sociais e
as tradições do pensamento”.22
Segundo Durval Muniz de Albuquerque Jr., desde a seca de 1877-1879, a partir da
cobertura jornalística da calamidade, vultuoso repasse de verbas foi concedido para socorrer os
atingidos, fazendo com que a “bancadas ‘nortistas’ no Parlamento descobrissem a poderosa
arma que tinham nas mãos, para reclamar tratamento igual ao dado ao ‘Sul’”. Como indica o
historiador, nesse movimento, o fenômeno climático se transmuta em problema nacional,
passando a ser “o problema de todas as províncias e, depois, dos Estados do Norte”. 23 A seca
de 1932 também viria a ser pauta nacional extremamente permeada pelos discursos políticos.
As conjunturas sacudidas pelos eventos influíram na forma como a sociedade cearense
negociou com a crise social decorrente da seca nos primeiros anos da década de 1930.
Ainda durante a década de 1920, as chuvas escassas e mal distribuídas impactavam a
economia da região Norte do Brasil. O ano de 1929 tivera chuvas a contento, mas a partir de
1930, a crise recrudesceu, culminando no triste cenário de 1932. A calamidade estendeu-se,

22
REMOND. René. O retorno do político. In: CHAUVEAU, Agnes; TÉTARD, Philippe (orgs.). Questões para
a história do presente. Bauru: Edusc, 1999. P. 58-59.
23
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 3ª ed., Recife: FJN, Ed.
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. P. 70.
22

desde o Piauí e parte do Maranhão, até os vales do Vasa-Barris e Itapicuru, na Bahia. As


maiores secas registradas no Nordeste foram: a de 1723 a 1727, que atingiu a orla habitada do
litoral, imolando sobretudo os mais pobres e escravos dos engenhos de açúcar; a de 1790 a
1793, e a de 1877 a 1879 que depois de anos de chuvas mais ou menos regulares, surpreendeu
a região que viu seus esquemas de sustentação social desfeitos. Em 1932, o novo ciclo de
calamidades sociais consumou-se, resultando em abatimento econômico, migração, fome e
desalento. A trajetória desse território esteve marcada nos primeiros anos da década de 1930
pelos desdobramentos dos períodos de seca, pelas ações do movimento tenentista e pela onda
de mudanças decorrentes da Revolução de 30.
A proposta de estudo inicialmente submetida ao Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal Fluminense objetivava investigar as transformações
sociais decorrentes do processo de construção do Açude Lima Campos em um período que
compreende a realização dos primeiros trabalhos para definição do projeto, em 1912, até o
término da barragem em 1932. Porém, ao longo da pesquisa, percebe-se que as questões
relacionadas ao combate à seca de 1932 estavam intimamente ligadas às decisões tomadas pelos
revolucionários nos níveis estadual e federal. A tese, desse modo, passou a investigar as
mudanças políticas e administrativas decorrentes da Revolução de 1930 no Ceará, afim de
perceber como estas transformações influenciaram no combate à seca de 1932. Nesse sentido,
trataremos da construção do Açude de Lima Campos, em sua estrutura material e seus
significados sociais, a partir dessa questão central. Defendemos que esse momento de seca é
marcado pela projeção de um novo Estado, de novas maneiras de fazer política e, sobretudo da
projeção de um ímpeto novo para o combate à seca que, esbarrando em velhas estruturas
políticas, não lograram o êxito desejado. Contudo, o movimento entre o projeto de combate à
seca e a execução real das ações resultou em algo novo que deve ser historicamente situado.
Para observar os meandros dessas questões, tratou-se com um conjunto diverso de
fontes. Ao longo da pesquisa foram elencadas e inventariadas possibilidades metodológicas
para a construção e sistematização da análise dos registros disponíveis. Nesse processo
destacamos o uso do acervo digital disponibilizado pela Biblioteca Nacional. A partir do acervo
da Biblioteca Nacional, sobretudo o conteúdo da Hemeroteca disponibilizado on-line, relatos
sobre disputas políticas e sobre os desdobramentos da seca são evidenciados enquanto
informações imprescindíveis para a compreensão das tramas políticas pós-revolucionarias e a
abrangência e recepção das medidas de socorros efetivados naquele momento. Os jornais
utilizados foram privilegiados por serem de diferentes regiões do estado do Ceará e terem em
comum a publicação cotidiana de matérias sobre a Revolução de 1930, a consolidação da
23

Interventoria Federal no Ceará, a seca de 1932 e as ações de açudagem da Inspetoria de Obras


Contra as Secas. Visando a escrita dos capítulos, atentamos para as matérias que debatiam o
processo de constitucionalização do país; disputas e aspectos técnicos quanto a chamada
“solução hídrica”; e notícias sobre a movimentação dos sertanejos que buscavam socorros
públicos.
A partir dos jornais, percebemos as estratégias de controle dos flagelados durante a seca
de 1932 no Ceará por parte do poder público. Neles, analisamos as denúncias acerca da situação
precária dos retirantes e a pressão social por mais socorros. Entendo que os textos jornalísticos
associados a outras fontes podem também apontar para a construção de uma imagem específica
dos sertanejos naquele momento.
É certo que o trato com essa documentação exige cuidados que passam pela necessidade
de tornar evidente que o jornal é um veículo permeado por interesses diversos que devem ser
levados em conta no momento da análise. Assim, a lista dos periódicos foi construída, levando-
se em consideração os pontos de vista editorais, além do período e capacidade de circulação no
estado do Ceará.
Durante o período de estágio doutoral, realizamos importante etapa de pesquisas para
execução da tese. No Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tivemos acesso a importante
bibliografia sobre a revolução de 1930, o Governo Provisório e a Constituinte de 1934. A
instituição possui finalidade cultural que extravasa as fronteiras do conhecimento a respeito da
cidade do Rio de Janeiro, englobando dados sobre todo o Brasil. A respeito do Ceará,
apreciamos, em seu acervo, obras literárias, estudos, documentos diversos que contemplam
aspectos históricos, geográficos, científicos e culturais, abrangendo os mais diversos períodos.
Na Biblioteca Nacional tratamos com um acervo bastante amplo de livros e documentos
históricos. As pesquisas realizadas nessa importante instituição fizeram parte de todo o estudo.
Além desse acervo de pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, destacamos a oportunidade de
análise das fontes disponíveis no Arquivo Nacional. Contando com variada gama de
documentos produzidos pelo Estado Brasileiro, o Arquivo dispõe de farto material sobre o
Governo Provisório, bem como de tantos outros momentos da História brasileira. Os
documentos selecionados para a presente pesquisa são provenientes dos fundos referentes ao
Gabinete Civil da Presidência e dos Ministérios da Viação e Obras e Públicas e Agricultura.
Além do evidente ganho para a feitura da tese, a oportunidade de conhecer melhor tão
importante centro de pesquisa foi fundamental para pensar a política de acesso à informação do
nosso país e do Ceará em especial.
24

Na Fundação Getúlio Vargas tivemos acesso a importante conjunto documental


referente a vida e trabalho de importantes personagens do Governo Provisório. Os acervos
físicos e digitais referentes a trajetória do cearense Juarez Távora, por exemplo, proporcionarão
a sustentação de hipóteses defendidas nos primeiros capítulos da tese.
Os trabalhos de exploração, investigação e desenhos de projetos anunciados pelos
diferentes grupos de engenheiros acabaram por definir caminhos para sanar um dos maiores
problemas da nação: as crises de abastecimento d’água. E, apesar das contendas existentes entre
diferentes projetos de intervenção técnica, a construção de obras modernas e de grande porte
para represamento de água e irrigação de lavouras foi levado adiante. Perseguindo essa questão,
nos debruçamos sobre o Fundo de Irrigação e Açudagem disponível do Arquivo Público do
Ceará, em Fortaleza.
A exploração inicial desse material conduziu aos ofícios enviados pelas câmaras de Icó
e Iguatu a respeito do número de construções já existentes nas localidades. A documentação foi
digitalizada e transcrita. Os documentos, datados do final do século XIX, indicaram a relação
entre esses saberes técnicos institucionalizados e os tantos saberes passados de geração a
geração.
Foram utilizados documentos oficiais, sobretudo aqueles produzidos pelos Ministérios
da Viação e Obras Públicas, Ministério da Agricultura e Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas, além de cartas e registros memorialísticos produzidos pelos ex-ministros José Américo
e Juarez Távora e um ex-funcionário da Inspetoria. Essas memórias são entendidas como parte
de uma tentativa de construção de um passado específico, uma tentativa de organizá-lo. Dessa
forma, foi necessário problematizar o lugar social do autor com o objetivo de fazer um uso
responsável das obras como fontes históricas. Destaca-se ainda o uso dos Boletins editados pela
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Em seus vários artigos, as publicações
promovidas pela Inspetoria deram a ver projetos e ações em prol da transformação do território
sertanejo. Essa escrita de caráter oficial projetou sentidos por meio de palavras e imagens,
dividiu com jornais do período, institutos históricos e academias literárias a tarefa de imaginar
a nação, sinalizando os caminhos de seu progresso e, ao mesmo tempo, estabeleceu os termos
de sua memória institucional.
Para dar conta dos estudos referentes ao terceiro capítulo da tese, onde analisamos as
ações e as mudanças pelas quais a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas passou no
período, tratamos com os Boletins técnicos da IFOCS. Neles, investigamos a relação entre as
imposições técnicas de trabalho por parte da Inspetoria e o cotidiano dos sertanejos
25

arregimentados para a lida nas obras de açudagem. Os documentos encontram-se digitalizados


e disponíveis para a consulta física na biblioteca do DNOCS.
Os Boletins contêm registros sobre a execução de obras, fotografias, desenhos técnicos
e cartográficos, além de artigos de opinião social e política. Esses elementos foram analisados
ao longo da escrita da tese de doutoramento.
Os Boletins da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas foram viabilizados pelo
governo Federal e pelo Ministério da Aviação e Obras Públicas com periodicidade de
publicação que variou ao longo das décadas. Entre 1934 e 1935, os Boletins foram mensais,
depois, entre 1936 a 1941, a publicação passou a ser viabilizada a cada três meses.
Os Boletins estão disponíveis na Biblioteca do DNOCS, bem como digitalizados em
CD-ROM. O material foi disponibilizado dentro das comemorações relativas aos 103 anos do
DNOCS e é fruto de uma parceria celebrada entre o Departamento Nacional de Obras Contra
as Secas (DNOCS), Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste (ETENE) e o
Centro de Treinamento e Desenvolvimento (Cetrede). São mais de 10 mil páginas colocadas à
disposição de pesquisadores que compreendem as publicações sistematizadas entre 1934 e
1994.24
O conteúdo desses CD’s está agrupado sob títulos que dão conta das alterações no nome
da própria instituição: os Boletins do período de 1934 a 1941, têm como título “Boletim da
IFOCS”; de 1942 a 1969, “Boletim do DNOCS” e de 1970 a 1994, “Boletim Técnico do
DNOCS”.
Os Boletins, de modo geral, expõem o objetivo da Inspetoria de Obras Contra as Secas
(IOCS): o enfrentamento sistemático dos efeitos danosos das estiagens. No entanto, é possível
perceber que o conteúdo da publicação abrange aspectos variados desse objetivo central. Afinal,
historicamente, as ações entorno do combate às secas mudavam, ampliando-se, sobretudo,
quando as crises climáticas batiam à porta, bem como diante das flutuações políticas e
econômicas, como veremos.
No primeiro capítulo “Revolução, Política e Seca”, iniciaremos o trabalho de pesquisa
analisando os primeiros relatos sobre a crise climatérica, em 1930, ainda na vigência do regime
político anterior a Revolução. Em seguida, investigaremos as mudanças implementadas pelo
primeiro Interventor nomeado por Getúlio Vargas e o modo como a questão da seca é tratada
em seu breve governo. Naquele momento, por todo o país e também no estado do Ceará, apesar

24
Fonte: REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.
Ministério da Aviação e Obras Públicas. Publicação Mensal. Tipografia Minerva – Assis Bezerra. Intervalo de
análise para este exercício: 1934 a 1945.
26

da repressão constante, e mesmo por conta dela, havia uma importante miscelânea de atores
políticos construindo ações e identidades. Em meio a essas lutas cotidianas ocorrem
transformações e embates, tornando turbulentos os anos em que o Governo Provisório tenta
implementar sua agenda revolucionária. Nesse sentido, importa recuperar a ação desses atores
a fim de legitimar suas experiências políticas e culturais, olvidadas por narrativas e projetos de
Brasil que condenam a sociedade brasileira como apolítica e não solidária. É nessa dinâmica
que emerge a implementação das lógicas revolucionárias no Ceará. Iniciamos nossa análise
nesse contexto, para então, compreender como se deram as ações em torno daquele que sempre
foi considerado como o grande problema do Ceará: a seca.
No segundo capítulo da tese, Entre novos arranjos e velhas respostas, trataremos do
momento em que a crise climatérica se acirra, abordando as ações do Interventor militar,
Capitão Carneiro de Mendonça, relacionando-as com as atitudes tomadas pelo então Ministro
da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida.
As mudanças ocorridas nos primeiros anos da revolução no Ceará demonstraram que o
rumo para a acomodação do projeto revolucionário não era estável, pelo contrário. Como
veremos, a substituição de Fernandes Távora, primeiro Interventor do Ceará, pelo militar
Carneiro de Mendonça, fez ferver o caldeirão de tentativas de reorganização do cenário político
do estado do Ceará em meio a piora das condições de vida dos mais pobres atingidos pelos
desdobramentos da seca.
No terceiro capítulo intitulado A ação da Inspetoria de Obras Contra as Secas no Ceará,
abordaremos a execução do combate à seca em um ângulo mais específico, observando de perto
a atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Nele, trataremos das modificações
que a Inspetoria passou em decorrência do novo regime e analisaremos a execução da obra do
Açude Lima Campos, construção apontada como marco para o combate perene aos efeitos da
seca. Além disso, trataremos do cotidiano na obra, enfocando as dificuldades enfrentadas pelos
sertanejos e funcionários da IFOCS envolvidos nas frentes de serviço.
Ao longo de mais de cem anos de construção de pontes, estradas, açudes e tantas outras
obras, a Inspetoria de Obras Contra as Secas realizou uma sistemática intervenção no semiárido
brasileiro, sendo um dos primeiros órgãos criados para essa finalidade. Considerando as
análises presentes nos trabalhos Um Monumento ao Sertão: ciência, política e trabalho na
construção do Açude Cedro (1884-1906), da historiadora Renata Felipe Monteiro, e Um projeto
de “combate às secas” os Engenheiros Civis e as Obras Públicas: Inspetoria de Obras Contra as
Secas (IOCS) e a Construção do Açude Tucunduba 1909-1919, de Aline Silva Lima,
27

percebemos a constante dificuldade na organização do retirantes nas frentes de trabalho. Essas


circunstâncias foram mais uma vez vivenciadas no contexto da seca de 1932.
Na década de 1930, a Inspetoria de Obras Contra as Secas precisou negociar com a
sistemática intervenção institucional promovida pelo Ministério da Viação e pelo próprio
Governo Provisório. Essas pressões foram mediadas pela reafirmação da capacidade técnica da
Inspetoria. A lisura dos processos de licitação e mesmo a confiabilidade das obras realizadas
por ela foram colocadas em xeque constantemente. Como veremos ao longo do capítulo,
observa-se que, diante da incapacidade de rechaçar as pressões do campo político, a Inspetoria
de Secas contava com um baixo grau de autonomia naquele momento.
A cada novo governo, a pressão sobre a lógica dos trabalhos de combate às secas se
renovava, impactando na liberação de verbas e na perenidade dos trabalhos do órgão. Somente
com a exacerbação das crises climatéricas as obras caminhavam, o mesmo ocorreu nos
primeiros anos da década de 1930. Além disso, as escolhas políticas e o ideário revolucionário
impactaram de maneira peculiar às definições de ações de intervenção no semiárido brasileiro
promovido pela Inspetoria.
A construção do Açude Lima Campos abordada no capítulo pode ser vista como
elemento da nova fase na história desta autarquia federal que tem seus esforços reavaliados,
investimentos financeiros e sociais renovados. O grande reservatório e o seu processo tenso de
construção conferem feições específicas à cidade e faz daquele território um misto interessante
de vivências de diversas temporalidades.
A frente de trabalho para a construção do reservatório Lima Campos, como tantas outras
constituídas em momentos de seca profunda, foi formada por sujeitos que circularam entre
cidades e estradas em busca de condições de vida e trabalho. Em um jogo de escalas,
atentaremos aos desafios experimentados dentro desse canteiro de obra organizado pela IFOCS
em Icó afim de favorecer a inteligibilidade das ações de técnicos e operários.25
Por fim, no quarto e último capítulo, A institucionalização do debate ambiental no
Governo Provisório, consta a análise da movimentação para inclusão do combate às secas no
texto da nova carta constitucional promulgada em 1934. Esse processo chama atenção por
revelar meandros da institucionalização da questão da seca e revelar os pontos de contato entre
essa pauta e o pensamento ambiental engendrado no início da década de 1930. A assinatura da
Constituição de 1934, que encerra nosso recorte temporal, põe fim ao Governo Provisório. No
decorrer do capítulo percebe-se que o pensamento ambiental gestado em 1930, delineado de

25
CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII. In:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
28

forma ampla ao longo do século XX, está relacionado à ação do poderio técnico institucional
mobilizado para a consolidação de dispositivos jurídicos para a preservação do meio ambiente
brasileiro. Nesse contexto, instituições civis e governistas promoveram o debate sobre o uso
dos recursos naturais nacionais, oportunizando a construção de uma legislação florestal federal.
Parte desses esforços foram mediados pelos escritos de Alberto Torres, postulados que
influenciaram na posição assumida por intelectuais e políticos da época.
No decorrer do capítulo, apontou-se ainda como nesse contexto o debate sobre o
reflorestamento do território cearense esteve presente nas páginas do Boletim da Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas, medida essa percebida como possibilidade para o combate
aos efeitos da seca. Por fim, observaremos como a análise científica e proteção da natureza
foram também importantes para a composição da defesa da constitucionalização da questão da
seca. Naquele contexto de ampliação da pauta ambiental, ações de proteção dos recursos
naturais compuseram o conjunto de argumentos em prol da inclusão do combate à seca na carta
magna.
29

CAPÍTULO 1 - REVOLUÇÃO, POLÍTICA E SECA

1.1 Antecedentes da Revolução no Ceará

O regime republicano brasileiro foi construído através de pactos entre governadores,


clientelismo, liberalismo e uso da força contra dissidências políticas e movimentos organizados
em prol da melhoria de vida e trabalho. Ao longo das primeiras décadas do século XX, com
intensidades diversas em cada uma das regiões brasileiras, a República, por meio de seus
agentes, buscou superar suas contradições e atingir a governabilidade em meio às crises
econômicas externas e internas, mas também às convulsões sociais que estremeceram sua frágil
estrutura e marcaram época.
Perseguições e arbitrariedades foram perpetradas contra opositores das classes militar,
política, proletária e intelectual. Apesar de regida pelo constitucionalismo, ao longo do tempo,
a jovem democracia, notadamente excludente, cometeu abusos e arbítrios rompendo direitos
civis, sociais e políticos, indicando um permanente clima de autoritarismo e ameaça à cidadania.
Estes elementos marcaram a formação do Estado brasileiro, conferindo instabilidade ao
período.
No artigo Perseguições políticas e desterros na República brasileira (1889-1937),
Antônio Gasparetto Júnior analisa como a Primeira República possuiu um caráter autoritário
que vitimou autoridades políticas e cidadãos comuns. Brasileiros e estrangeiros, nas mais
diversas regiões do país, “sofreram, de uma forma geral, igualmente com o arbítrio, convivendo
com perseguições, com desterros ou, em casos mais agudos, com a morte”. A recorrência de
institutos jurídicos, sobretudo o estado de sítio na República brasileira era comum,
aproximando o Estado de Direito firmado pela Constituição de 1891, de um Estado ditatorial. 26
Artur Bernardes manteve o estado de sítio implementado por seu antecessor por 1.287
dias sob o ensejo de dar fim às revoltas tenentistas e movimentos operários. Depois dele,
assumindo a presidência do Brasil em 15 de novembro de 1926, Washington Luís encerrou o
estado de sítio, dando início a um afrouxamento do aparato de repressão. No entanto, em 12 de
agosto de 1927, foi promulgado o Decreto Legislativo nº 5.221, a chamada Lei Celerada, que

26
Gasparetto lista a seguinte sucessão de implementação do Estado de Sítio na primeira República: o estado de
sítio foi declarado na Primeira República duas vezes por Floriano Peixoto, “para combater a Revolução controlar
a Revolta da Vacina; por Hermes da Fonseca, contra as revoltas da Chibata e do Juazeiro; por Wenceslau Braz,
no contexto da Primeira Guerra Mundial; por Epitácio Pessoa, contra a crise que resultou na Revolta do Forte de
Copacabana; por Artur Bernardes, com o pretexto de combater revoltas políticas no sul do país; e por Washington
Luís, que tentaria se proteger via estado de sítio do avanço da Aliança Liberal liderada por Getúlio Vargas”.
(GASPARETTO, 2015, p. 286).
30

abriu caminho para nova onda de repressão contra sindicatos e centros operários. Logo após,
Washington Luís aplica o recorrente “antídoto” constitucional, a fim de sufocar a Aliança
Liberal liderada por Getúlio Vargas. Mais uma vez o estado de sítio é decretado no Brasil. O
grupo alçado ao poder com a vitória da chamada Revolução de 1930, por sua vez, fendeu os já
frágeis pilares democráticos dissolvendo o poder legislativo, esvaziando o poder judiciário e
destituindo o poder executivo.
No Brasil da Primeira República, no que diz respeito à ação dos trabalhadores, havia
múltiplas tendências nos movimentos organizados, bem como disputas de projetos no interior
das entidades operárias e peculiaridades em suas expressões regionais. Em consonância com o
quadro nacional, no Ceará as organizações fundadas ao longo das décadas de 1910, 1920 e
início de 1930, tinham em geral o objetivo de promover a luta por educação, proteção social e
melhores condições de trabalho, mas também diferentes aportes ideológicos e práticas
contestatórias.
No final do século XIX e início do XX, pulularam movimentos associativistas,
organização de partidos, ações populares de rua e fundação de jornais. Em comum: a exposição
das carestias que marcavam a vida dos trabalhadores e as críticas e desilusões com o regime
republicano. Desse posicionamento crítico no Ceará, organizou-se “a construção de um novo
léxico político (pugna, luta, união, solidariedade, combate), criando e recriando (e atualizando)
alegorias e símbolos caros à tradição do movimento operário [...]”. A imprensa operária é
documento/memória, nada neutro, para o estudo das lutas, diferenças e identidades da
experiência dos trabalhadores do período. 27
Na capital do estado, Fortaleza, e no interior a carestia de vida motivava a contestação.
As notícias sobre a movimentação dos trabalhadores corriam todo o estado. Um jornal do
interior do estado, A Imprensa, de 1925, fez chegar à cidade de Sobral a adesão da Phenix
Caixeiral a “greve pacífica” deflagrada contra a companhia de transporte Light, na Capital.28
Ocorre que a empresa havia diminuído os horários dos bondes de segunda classe, mais baratos,

27
GONÇALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Ceará: histórias e memórias. In. Uma nova História
do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004, pp. 259-286. p. 260.
28
A empresa deu início aos serviços em Fortaleza em 1913, produzindo energia elétrica e com a detenção do
transporte público, por bondes, até 1947. Tais serviços modificaram a vida cotidiana na capital. Eduardo Oliveira
Parente, na dissertação Operários em movimento: a trajetória de luta dos trabalhadores da Ceara Light (Fortaleza,
1917 – 1932), argumenta que existiu uma interessante trajetória de luta dos trabalhadores da Light, atraindo
atenção e a repressão do governo. Greves foram organizadas por esses trabalhadores em 1917, 1919, 1925, 1929
e 1932. “cada uma delas com reinvindicações específicas, projetando as pautas do grupo e amealhando apoios
diversos”. Em 1929, estreitaram as relações com o comunismo imprimindo aspectos diferenciados às antigas
paralizações. Em 1930, dialogaram com a Legião Cearense do Trabalho. Em 1932, a intervenção do Ministério
do Trabalho denota a implementação do sindicalismo oficial no Ceará, bem como a aplicação da legislação
trabalhista e ampliação do papel do Estado como mediador das relações trabalhistas.
31

obrigando os trabalhadores a tomar os carros mais caros na saída do expediente. Na edição de


sete de outubro do mesmo ano, o jornal informa que “terminou a greve, graças a ação enérgica
do Governo, reprimindo as depredações”. No entanto, nos dias que se seguiram ao declarado
fim do movimento, a persistência da diminuição dos horários dos bondes de segunda classe fez
eclodir novo boicote: “os bondes de primeira classe continuavam a viajar vazios. O povo prefere
os de segunda classe, continuando, assim, a greve pacífica”.29
Durante a passagem do século XIX, especificamente nas secas de 1877, 1889, 1900,
1915 e 1919, novas experiências de trabalho modificaram a vida dos camponeses atingidos
pelas crises sociais. O recrutamento de imigrantes como operários de construção em grandes
obras de socorros públicos, consolidou-se como via para combater o ócio das multidões com
trabalho e, ao mesmo tempo, viabilizar serviços urbanos e obras como açudes e estradas de
ferro.30
Como indica Neves, desde os desdobramentos da seca de 1877, uma parcela da
população de retirantes era mobilizada por todo o país, a partir da premissa que relacionava
trabalho e "socorros públicos", entendidos como assistência concedida em troca de serviços
prestados. Assim, “os valores ligados ao trabalho poderiam ser combinados às necessidades
momentâneas de assistência às vítimas de calamidades - especialmente calamidades ‘naturais’,
como a seca”.31 Homens, mulheres e crianças eram inseridos como mão de obra sujeita a
superexploração nas mais diversas obras de infraestrutura que sustentariam as bases de uma
economia capitalista.
As reivindicações desses trabalhadores, decerto repercutiam na sociedade como informa
o periódico A Ordem: Trabalho e justiça, de janeiro de 1924, sediado na cidade de Sobral. Nele,
observam-se notícias que tratam das queixas de trabalhadores envolvidos na construção de
açudes na região. Devido ao atraso nos pagamentos, o grupo paralisou suas atividades na
tentativa de pressionar pelo recebimento dos salários atrasados há dez meses no canteiro do
açude Pilões.
Em 1928, nas palavras de Moreira da Rocha, então Presidente do Estado do Ceará, a
garantia de todos os direitos advinha do respeito às medidas de ordem. Sob a orientação da
justiça, mas também da “inteireza moral”, o estado detinha o poder e o dever de prevenir a

29
Jornal A Imprensa, 9 e 14 de outubro de 1925.
30
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das secas: arranjos e desarranjos nas fronteiras do trabalho (1877-
1919). Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal
do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de História, Fortaleza, 2014.
31
NEVES, Frederico de Castro. Caridade e controle social na Primeira República (Fortaleza, 1915). Estud. hist.
(Rio J.) vol.27 no.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014. p.118
32

“consumação das tentativas de subversão da ordem”. A repressão “legal, enérgica e continuada


dos delitos” consumaria a prevenção ao caos social. Somente através das ações do Estado
haveria uma época de tranquilidade “indispensáveis ao desenvolvimento das forças criadoras
do Ceará”. O comportamento ideal dos trabalhadores concorreria para a “prosperidade dentro
do mútuo respeito e do labor pacífico em que os povos se engrandecem e naturalmente se
auxiliam”.32
Sem citar piquetes ou paralisações e sem dar ênfase às “repressões enérgicas”, o
governador resume o tópico acerca do uso do efetivo da força pública destinada a manter a
ordem nos 82 municípios indicando um clima de tranquilidade. Dando a impressão que havia
tão somente o combate ao cangaceirismo, – amplamente noticiado nos periódicos do estado do
Ceará – arremata que mesmo o combate ao banditismo estava em “perfeita ordem”.33
Ao passo em que agiu para a suspensão de direitos jurídicos, civis e sociais de opositores
e marginalizados, a estrutura republicana fez reiterado uso de suas engrenagens para proteger
os interesses das oligarquias dominantes. Tais grupos de poder, consolidados através de
arranjos econômicos, políticos e até parentais, possuíam o bom arbítrio político e jurídico para
resolver suas pendengas. Ainda com base no relatório de Moreira Rocha, observa-se que os
conflitos entre esses grupos existiam, inclusive exigindo a interferência do governo.
Finalizando o curto parágrafo sobre a ordem pública, Moreira da Rocha deixa escapar que “um
ou dois municípios, onde se manifestaram velhas rixas de famílias”,34 exigiram atenção. Nesse
caso, não se tratava de manter a ordem ou combater condutas, e sim promover “entendimentos
pacíficos”.35
No mesmo período, relacionados a um catolicismo de direita, ganha força a iniciativa
dos Círculos Operários Católicos. Os discursos e atividades relacionadas a eles pautaram parte
de arsenal de combate ao comunismo. Inseridos no contexto de efervescência política e social,
esses grupos tiveram mais tarde, diálogo direto com a pauta trabalhista do governo Vargas.
Estes esforços de aproximação com as demandas sociais fizeram com que a igreja católica se
tornasse um importante pilar para a estabilidade política do Ceará.
Como indica Jovelina Santos, os Círculos Operários Católicos cearenses tiveram início
com a fundação do Círculo de Operários e Trabalhadores Cristãos de Fortaleza, em 1915. A
partir da década de 1920, com a constituição de grupos vinculados ao ideário comunista ou

32
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1928, p. 42.
33
Id., 1928, p. 42.
34
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1928, p. 42.
35
Id., 1928, p. 42.
33

mesmo ao socialismo libertário no meio operário, a premissa assistencialista dos círculos


começou a dividir espaço com o sistemático combate a infiltração desses ideários considerados
subversivos. Durante a década de 1920, encontramos Círculos Operários em vários municípios
do Estado, em Aracati (1920); Limoeiro (1928); Baturité (1924); Sobral (1921); Redenção
(1925); dos bairros de Fortaleza, temos antes de 1930, o registro do Círculo de Parangaba
(1923).36
Inicialmente o objetivo circulista era assistencialista, sobretudo nas áreas rurais. Durante
os anos de 1930, o movimento experimentou um expansionismo bem-sucedido que parece
denotar as boas relações entre o projeto católico e a implementação do trabalhismo e o Estado
varguista. Ainda em 1933, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio reconheceu os
Círculos Operários como órgãos de utilidade pública. Com o tempo, o “projeto político-
teológico” circulista serviu de instrumento da Igreja Católica para sua inserção no mundo do
trabalho e na política. Em maio de 1944, através do Decreto-lei n.º 7.164, os círculos católicos
operários passam a serem considerados órgãos consultivos do Ministério do Trabalho.37
As posições anticomunistas e circulistas católicas ganhavam eco através das páginas do
Jornal O Nordeste. Fundado em junho de 1922, o periódico projetou-se enquanto voz ativa no
processo de formação das representações negativas do comunismo no Ceará. Nesse intento, o
folheto apoiou a Revolução de 1930 e a ditadura do Estado Novo. Além disso, o grupo católico
atuou diretamente no pleito de 1934, falando ao eleitor católico, disseminando as ideias da Liga
Eleitoral Católica (LEC) e do Partido Republicano Progressista (PRP) pela instalação de um
“Estado forte” no Brasil. 38
Como se observa, a participação política no período foi forjada e experimentada de
formas diversas: cotidiano de ações coletivas de contestação, construção de espaços e grupos
de natureza política com matrizes e escopos diversos, todos dispostos a se posicionarem no
campo da política.
As páginas dos jornais foram também utilizadas como arma frequente na seara política.
Diversos jornais do período contribuíram para a exposição das críticas aos governos locais e
nacionais, influindo diretamente no cenário político local, ora na criação de agremiações, ora
sustentando posicionamento ou mesmo apoiando candidaturas oficiais. Tanto assim que, em

36
SANTOS, Jovelina. Círculos Operários no Ceará: “instruindo, educando, orientando, moralizando” (1915 –
1963). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004. p. 12.
37
SANTOS, Jovelina. Círculos Operários no Ceará: “instruindo, educando, orientando, moralizando” (1915 –
1963). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004. p. 35.
38
Cf. PINTO, José Aloísio Martins. Brasil soviético?! Nunca: anticomunismo e Estado autoritário no jornal
católico “O Nordeste” (Fortaleza/CE, 1930 – 1945). 2012. 335 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2012.
34

Fortaleza, na eleição para uma cadeira na câmara dos deputados, em 30 de setembro de 1928,
Maurício de Lacerda, candidato abertamente apoiado pelos jornalistas Júlio Ibiapina e
Demócrito Rocha, obteve expressiva votação – 680 votos, enquanto o desembargador José
Moreira, candidato do governo, obteve apenas 448 votos. 39
No que diz respeito à miscelânea de narrativas jornalísticas do período, destacam-se
alguns dos mais importantes periódicos da época: O jornal O Ceará surgido a seis de junho de
1925, sob a direção de Júlio Matos Ibiapina; o longevo O Povo de Demócrito Rocha, jornalista
totalmente engajado nos movimentos políticos da época, um dos fundadores do Partido da
Mocidade40; o periódico A Reação que surgiu no mesmo período organizado por Américo
Palha, um dos dirigentes do centro cívico Carlos Prestes; o Jornal A Razão de Raimundo do
Monte Arrais também compôs a efervescência política do período.
O engajamento de jornais e agremiações cearenses às propostas de mudança da
República ficou ainda mais evidente com a acolhida dada à caravana democrática, chegada em
Fortaleza no dia 5 de agosto de 1928, da qual faziam parte Assis Brasil, Maurício de Lacerda,
Nereu Ramos, David Doff Lessa, Dante Delmonte, Roberto Macedo e Idelfonso Simões Lopes
Filho.41
Além da capital, a campanha da Aliança Liberal atingiu o interior do Ceará, chegando
ao Cariri. Conforme testemunho de Fernandes Távora:

Enquanto oradores falavam, inflamadamente, em prélios eleitorais à boca das urnas,


em direito de voto, em garantias legais do cidadão, e outras patacoadas semelhantes,
a multidão displicente mantinha nos lábios um riso de mofa, como a indagar-lhes
sarcasticamente, se até ali tinham vindo para repetir-lhe tais baboseiras [...] quando,
porém, os discursadores, compreendendo a psicologia do povo, aludiam à
reivindicação pelas armas e declinavam o nome de algum chefe revolucionário, a
multidão se transformava e, numa exaltação que raiva pelo delírio, atroava os ares
com ovações intermináveis. 9...0 ainda mais, nos casebres dos pobres sertanejos viam-
se, por toda parte, pequenas bandeiras encarnadas e, em diversos roçados os
trabalhadores erguiam-nas, também, nos cabos das enxadas dando vivas à aliança
liberal!42

39
Anselmo comenta ainda que Maurício de Lacerda era um dos mais festejados oradores em comícios populares
ocorridos em Fortaleza em idos do ano de 1928. Segundo Anselmo, Maurício de Lacerda se destacava por, ao
contrário dos demais, pregar a revolução e fazer aberta apologia ao tenente Carlos Prestes. In. SILVA, Otacílio
Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970, p. 26-28.
40
O Partido da mocidade constituía-se de jovens intelectuais, jornalistas e estudantes, tendo como objetivos
“arregimentação dos operários em forte núcleo eleitoral das classes; pelo combate ao latifúndio; pela luta contra
a arma política do reconhecimento no congresso; pela fiscalização das eleições e moralização do voto”. In.
MONTEIRO, Aberlado F. História dos partidos políticos no Ceará. Fortaleza: Tipografia minerva, 1965, p. 51.
41
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
26.
42
TÁVORA, Fernandes. Algo em minha vida. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961. pp.107-108.
35

Com a distância no tempo e recorrendo a memória, a imagem do apoio à AL, faz-se em


tintas vivas. Távora, comprometido com o movimento e, mais tarde, nomeado o primeiro
interventor de Vargas no Ceará, tece um quadro em que a revolução parece irresistível. Otacílio
Anselmo, por sua vez, no livro A revolução de 30 no Ceará, valoriza a existência de “estado de
ansiedade do povo cearense pelo movimento revolucionário”.43
Ambos em suas falas posteriores ao ocorrido põem o processo em termos teleológicos.
Produzem uma escrita de si ao mesmo tempo em que rememoram o período. Partícipes do
processo, os militares citados buscam relacionar a predestinação do movimento à necessária
mudança do país.44 O objetivo do movimento para eles não poderia ser mais justo: jogar por
terra a herança republicana execrada em sua totalidade, abrindo caminho para “uma nova Era
em que se processaria o início de acentuadas reformas políticas e sociais”.45 Com isso, elegem
uma narrativa vencedora que, condenando a Primeira República percebida em bloco, projetam-
na no tempo como obsoleta, hegemônica, por fim, velha.
Como dito anteriormente por meio de jornais, políticos e intelectuais organizaram seus
discursos; as posições, no entanto, nem sempre foram iguais. Enquanto os jornais Gazeta de
Notícias e O Ceará, adotaram postura de “antipatia” à causa; o jornal A Razão, por sua vez,
logo se posiciona a favor da candidatura de Vargas e ao programa da Aliança Liberal. Sobre
sua tomada de partido, os diretores do periódico lembram que não havia entendimento entre
estes e qualquer outro jornal da capital do Ceará sobre o processo de sucessão eleitoral.
Tentando transparecer independência, esclarecem a espontaneidade com que decidiram ficar ao
lado da coligação gaúcha-mineira.
Denotando tal posição, o jornal A Razão, ao longo do mês de fevereiro de 1928, noticia
fartamente convenções e definições da Aliança Liberal, indicando que suas ações estariam
estampadas também nas páginas de todos os jornais do país.
Em 31 de julho de 1928 a manchete do Jornal A Razão indicou com entusiasmo a adesão
de João Pessoa, presidente da Paraíba, à Aliança Liberal. Nos dias que se seguiram, o espírito
de transformação que embalava parte do povo brasileiro e dos cearenses foi resumido pelo
editor geral do jornal, Alpheu Aboim que, acompanhado de Monte Arraes, César Cals, José de
Borba, Carvalho Albuquerque, Quintino Cunha entre outros, assinaram a nota “aplausos à
atitude de presidente Joao Pessoa”. Na coluna, exaltaram “a manifestação do partido

43
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
29.
44
Ver: TÁVORA, Fernandes. Algo em minha vida. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961.
45
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
29.
36

republicano mineiro, a frente única dos políticos gaúchos, a repulsão formal do presidente João
Pessoa” o grupo que ostentava “o lábaro dos anseios de liberdade política do norte do Brasil”.
Mais tarde, esse grupo encabeçou manifestações pró-Vargas na capital.
Em julho de 1929, o tópico fixo “Momento político nacional” passa a estampar todas as
capas do jornal A Razão. Entre os dias 26 e 27 de julho, as chamadas revelam que o Presidente
Washington Luiz, diante das investidas de Vargas, pediu o apoio dos presidentes dos estados à
candidatura de Júlio Prestes. Segundo o jornal, o cearense José Carlos de Matos Peixoto,
governador do Ceará desde julho de 1928, atendeu ao chamado.
No editorial de 1º de agosto de 1929, o grupo do mesmo periódico adverte que
“numerosas são as forças que se apresenta, para sufragar a chapa da aliança”. O novo Presidente
do Estado, José Carlos de Matos Peixoto, que assume mandato em 12 de julho de 1928, é
apontado como um dos principais articuladores dessa posição. Ao longo de várias inserções
dessa mesma edição do jornal, a bancada cearense é também descrita como apoiadora da
candidatura paulista.
Argumentando que nada sobra para o Norte diante da união “antipatriótica” entre o
Estado de São Paulo e o Palácio do Catete, diz: “chamamos à Razão os Josés Peixotos, os
Euricos Valles, os Juvenais Lamartines, etc. [...] para que não se tornem partícipes de uma
política de compressão sobre os seus próprios conterrâneos”.46 Tais cidadãos deveriam, pois,
abandonar os interesses de São Paulo, e dar preferência aos do Brasil e aos dos próprios estados
que presidiam. Ao presidente Washington Luiz, críticas ainda maiores. Na qualidade de
comandantes dos governadores, deveria pensar na gravidade excepcional em que coloca o país,
pois: “Transacionando com os presidentes estaduais” estaria oficializando a tirania paulista,
usando dos excepcionais poderes que exercia para enfraquecer “o vínculo federalista”. 47
A atitude do Washington Luiz, coligando-se aos chefes das oligarquias estaduais,
descritos como “impatrióticos e antirrepublicanos, empolgados exclusivamente pelas vantagens
dos cargos que já ocupam ou do que pensam em ocupar”, estaria evidenciando a extorsão aos
estados, pois o presidente teria feito uma condenável “adesão inconstitucional ao princípio da
dominação paulista” pelos diversos recursos e expedientes que a “pose do poder confere”.48
A crítica de parte da imprensa cearense à ingerência política de oligarquias regionais e
do governo central advém do desejo de evidenciar as pautas locais. No entanto, a adesão ao
novo projeto de país esbarra ora na permanência do domínio hegemônico paulista, ora na

46
Jornal A Razão, 1 de agosto de 1929.
47
Ibid., 1929.
48
Ibid., 1929.
37

comodidade em prosseguir com o modelo liberal-federativo. Os mais inquietos com a posição


de derrotados no jogo político e econômico somaram-se aos esforços de tomada de poder pelas
urnas, juntando-se a liderança mineira, gaúcha e paraibana que se organizou em torno da
Aliança Liberal.
A plataforma da AL contemplava positivamente as especificidades da região atingida
pelas secas ao prometer a elaboração de um plano técnico, compreendendo estudos do solo, das
culturas propícias ao território e obras.49 Dessa maneira, o cronograma aliancista indicava
consciência quanto a face econômica da região e, ao apontar as possibilidades de abertura de
estradas e a construção de barragens, demonstrava entender os desejos daqueles sujeitos
dispostos a apoiar a aventura revolucionária. Esses elementos programáticos, decerto
impulsionaram setores oligárquicos cearenses a aderirem à campanha de Getúlio Vargas e João
Pessoa, respectivamente candidatos a Presidente e Vice-Presidente da República.
Os desarranjos da política local, a não cooptação de agentes e demandas de setores
políticos emergentes, o descontentamento com os excessos da República e a crise econômica
evidenciada de 1929, somam-se a outro importante fator para explicar a expressiva adesão no
Ceará ao movimento que culminou na chamada revolução de 1930: a região norte perdia
gradativamente sua força política e algo precisava ser feito a esse respeito.
Em A Trajetória do Norte: Uma tentativa de ascenso político, Dulce Pandolfi indica o
peso do avanço dos cafeicultores paulistas e mineiros para as demais regiões do país ao longo
da Primeira República. Nesse momento, o Norte perdeu espaço no vaivém político nacional e
a fragilidade da posição política terminou por compor o conjunto de interesses que promoveu
a consolidação da região como agente político de peso sob os auspícios de seu mentor, Juarez
Távora.
A pouca expressividade econômica e política da região impactava no não encaixe do
estado na política nacional. Assim, o Norte estariam em posição subalterna no grande jogo
nacional, pois a “política dos governadores”, implementada pelo Presidente Campos Sales
(1889-1902), que sustentava o pacto republicano de defesa dos poderes estaduais em prol da
manutenção do poderio central, marginalizava aqueles com pouco a contribuir. Como indica
Pandolfi, a fragilidade da posição do Norte no cenário nacional criava “terreno fértil para o
fortalecimento das oposições e explica o impacto da Revolução de 1930 na Região”.50

49
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
25.
50
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 342.
38

Mesmo reconhecendo a fragilidade de sua posição, diante do protagonismo dos grupos


políticos e econômicos do sul e sudeste, nordestinos com e sem projeção nacional, chamavam
atenção dos homens de responsabilidade do país para com seus filhos preteridos. Assim,
jornalistas, grandes produtores, membros da classe política e do proletariado buscaram
evidenciar o caráter desigual das ações do governo federal.
No Jornal O Ceará, por exemplo, observa-se o descontentamento sobre a maneira como
as necessidades do estado são tratadas pelo governo central. Para os editores do periódico, os
habitantes daquela região viviam “na federação brasileira como ‘párias’ que sobrecarregados
de deveres não tinham seus direitos atendidos”. Em meio à possibilidade de nova crise social
decorrente de estiagens no Ceará, fez-se sentir, mais uma vez, o pouco apreço dos “dominadores
da Nação” para com os cidadãos do estado. Enquanto que ao Ceará o Presidente da República
Washington Luís negava alguns milhares de contos, “que nos transformaria [o Estado] em uma
das unidades mais ricas da federação”, gastava 30 mil contos em uma estrada de ligação entre
o Rio de Janeiro a Petrópolis. Os mais de cem mil contos gastos na rodovia ligando o Rio a São
Paulo suscitam uma conclusão bastante contundente: “Por essas iniquidades é que, pouco a
pouco, se vai desenvolvendo a desarmonia na união brasileira”.51
Diante da disputa verificada entre as pretensões de Antônio Carlos e as de Júlio Prestes,
desenhou-se a indicação do nome de Getúlio Vargas. Através da oxigenação do ambiente
político nacional, o protagonismo do Norte vai sendo pleiteado para a formação de uma união
mais ampla. Só uma aliança prévia de presidentes de província viria a realocar os Estados do
Norte na equação nacional.
A posição dos jornais cearenses e dos grupos políticos representados por eles é difusa.
Ao tempo em que reconhecem, de forma geral, que a nação está cansada desse domínio
alternado de Minas e São Paulo, nem sempre se dispõem a romper com o estado de coisas e
apoiar a quebra do pacto nacional até então em vigor.
O jornal O Ceará até abre espaço, ainda em 1928, sob o clima tenso de pré-eleições,
para a publicização das ações de Getúlio Vargas, dando importância, por exemplo, a caravana
comandada pelo novo governador dos Pampas. O texto indica que Getúlio Vargas estaria
tentando “captar as simpatias dos elementos esquerdistas regionais” para que o país, “liberto

51
Editorial “Iniquidades que revoltam”. Jornal O Ceará, 7 de março de 1928. “o periódico circulou entre os anos
de 1925 e 1930, combatendo o abuso das oligarquias, o coronelismo com seu voto de cabresto e as contradições
da Igreja Católica. Percebia origens sociais e econômicas em movimentos como o Cangaço.” Lucíola Limaverde;
Gilmar de Carvalho. Jornal O Ceará: Exemplo de Mídia Combativa na Década de 1920. Anais do Intercom –
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação – Natal, RN. Setembro de 2008. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-1785-1.pdf>
39

das disseções locais, se imponha nas deliberações da política nacional”. No entanto, “não haverá
remédio dentro da lei, para evitar a imposição do sr. Washington Luiz”. A saída pelas armas
naquele momento não parece boa aposta: “a opinião do povo sensato é que é mil vezes
preferível suportar os maus governos a confiar em patriotas fracos que pregam a revolução para
vender seu apoio por maior preço”. O descrédito na política profissional parecia maior, mesmo
estando em jogo a nova disposição de forças no cenário nacional.
Coroando os meses de exposição política, em 20 de outubro de 1929, no Rio de Janeiro,
foram lançadas as candidaturas de Getúlio Dorneles Vargas e João Pessoa Cavalcante de
Albuquerque ao Catete. Em torno deles surgiu a Aliança Liberal, formada pelos estados de
Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, iniciativa criada pelo Dr. Antônio Carlos Ribeiro
de Andrade, governador do estado de Minas. A Aliança constituiu-se como coligação de forças
políticas contra o poder oligárquico que dominava o cenário nacional. Além do partido
democrático, a Aliança obteve apoio dos tenentes. E, contanto com apoio da maioria dos
governos estaduais, os candidatos da situação eram Júlio Prestes de Albuquerque e Vital Batista
Soares, respectivamente governadores de São Paulo e da Bahia.
A matéria “O Ceará, honrando as suas tradições, manifesta-se solidário com a Aliança
Minas-Rio Grande do Sul”, de dois de agosto de 1929, informa sobre o comício realizado em
Fortaleza. Anunciado para as 6 horas da tarde, na Praça do Ferreira, o ato teve que ser
remanejado para área menos reconhecida como ponto de debate político, a Praça Pelotas.
Poucos minutos antes do horário marcado, quando o aglomerado começava a se reunir, o
governo do Estado com objetivo de impedir a reunião, sob a justificativa de ordens da
municipalidade, mandou comunicado de não permissão ao evento. Os organizadores então
transferiram a ação para distante do centro da cidade.
Segundo o periódico, a multidão seguiu firme até a nova área de manifestação entoando
aclamações aos estados e líderes que compunham a Aliança Liberal. O teor animado dos
discursos deu o tom à adesão a Aliança Liberal no Ceará. Na rua, juntando-se a outras
experiências políticas de contestação à República, foram sendo construídos os apoios à AL.
Nesse clima de contestação e descontentamento com os moldes republicanos que favoreciam o
Sul em detrimento do Norte do país, vários grupos ofereceram rápido apoio à Aliança.
Finalmente na Praça Pelotas, Quintino Cunha falou à multidão sobre liberdade e patriotismo,
seguido do acadêmico Hermes Barroso que falou em nome do “Comitê acadêmico pró-Getúlio
Vargas”, fundado pelos estudantes de direito da Capital.
Em 14 de fevereiro de 1930, o Jornal A Razão indica a recente coligação entre os jornais
O Povo, O Ceará e A Reacção, informando que todos os folhetins solicitaram que os
40

comerciantes da cidade fechassem “as suas portas ao primeiro sinal da aproximação da caravana
Liberal”. Segundo o anúncio, Fortaleza estaria preparada para receber e hospedar a comitiva
liberal: lenços encarnados, “símbolos da valentia gaúcha” seriam a saudação. Dando
continuidade a expectativa com a chegada da comitiva, mas também acerca da pretensa
mudança que aquilataria o país, concluem poeticamente a representação da Aliança Liberal
como um “rio caudaloso em investidas doidas rasgando os grotões infectos que constituem a
politicalha infame e torpe que está comprometendo os créditos do Brasil”.
Em matéria do dia 16 de fevereiro de 1930, Batptisa Luzardo rechaça a postura da
polícia diante da caravana que, felizmente não se caracterizou por “nenhum atentado
criminoso”, mas foi “ridícula” por acossar a multidão reunida na Praça Fernandes Vieira, onde
“até um quartel provisório foi instalado”. Não menos vexatória e autoritária teria sido a medida
policial que encheu a Praça do Ferreira de soldados, “alinhados ao longo dos passeios, num vis-
à-vis irritante aos que ali se apinhavam para saudar os propagadores dos grandes ideais
democráticos”. A demonstração de força dos grupos políticos no poder acabou por fomentar o
orgulho dos organizadores da atividade que, ciente do potencial da sua ação se congratularam
de seu ânimo: “ao belicoso aparato policial, o nosso povo respondeu com o mais solene desdém
[...] o mais eloquente atestado do quanto confia na vitória final”.
Não havendo maiores repreendas ou episódios de violência, a Caravana Liberal
percorreu ainda o interior do Ceará visitando Quixadá, Senador Pompeu, Aurora, Missão Velha
e Juazeiro do Norte. Nesta última, a caravana foi recebida pelo prefeito Alpheu Ribeiro Aboim,
reconhecido entusiasta da Aliança; a recepção é descrita no jornal como “a verdadeira
apoteose”. O mesmo desfecho pacífico não se observou em outras partes do Norte. Sobre isso,
a edição de 12 de fevereiro de 1930 do A Razão vinculou telegrama de Getúlio Vargas
lamentando a repressão ocorrida em Mossoró, onde a polícia usou armas letais para reprimir o
movimento. Na cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, faleceu Francisco
Ribeiro, atingido gravemente no conflito ocorrido durante comício promovido pela Caravana
Liberal. Em São Paulo também ocorreu repressão à campanha aliancista, a polícia prendeu
vários menores por distribuírem material de propaganda dos candidatos liberais.
As críticas ao modo como os governos estaduais partidários à candidatura situacionista
e as artimanhas do próprio governo federal contra o avanço da Aliança estamparam muitas
outras páginas do jornal. O artigo “Os últimos dias da ditadura brasileira”, por exemplo,
41

alarmou que as ações do presidente contra magistrados país afora terminariam por “arrastar o
país ao choque das armas”.52
Alguns apoiadores cearenses dedicaram-se a tornar mais intensa a movimentação
Aliancista no Ceará. Ainda ao longo do mês de fevereiro de 1930, outra caravana percorreu a
zona jaguaribana do estado, dessa vez conduzida por Demócrito Rocha. A área em questão que
vinha sofrendo os efeitos da crise social decorrente da estiagem recebeu a comitiva de maneira
efusiva, com destaque para a recepção na cidade de Russas que recebeu o “grande curso de
automóveis” com rojões e banda de música. Enquanto isso, na capital, os comícios populares
ocorriam sob a responsabilidade do Comité Acadêmico Pró-Aliança Liberal.53
Entre greves e paralisações dos trabalhadores, organização de partidos e associações
classistas de origens diversas, mas também dentre as páginas dos jornais, comportamentos
políticos de diversas matrizes e influências acabaram por formar uma paisagem política propícia
ao apoia à AL.
Mais tarde, a Revolução de 1930 como grande acontecimento político-social eclodiu.
Esse evento, no entanto, não deve ser encarado como se estivesse encerrado em si mesmo,
inclusive, e principalmente, para o intento do presente trabalho, deve ser entendido e percebido
em articulação com os outros níveis do real. O teor regional recorrente nas críticas ao governo
federal apontava para o enfraquecimento de elites políticas locais – incapazes de modificar a
situação - e, ao mesmo tempo recomendavam as vias para a devida inclusão do Norte à União,
como região capaz de produzir. Com indica Pandolfi, a fragilidade da posição desse território
no cenário nacional criava “terreno fértil para o fortalecimento das oposições e explica o
impacto da Revolução de 1930 na Região".54

52
Jornal A Razão, 12 de fevereiro de 1930.
53
Jornal A Razão, 28 de fevereiro de 1930.
54
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 242.
42

1.2 Política Velha

A estrutura política da Primeira República foi assinalada pelo domínio das oligarquias
nos mais diversos âmbitos da vida pública do estado. O pacto entre governadores e União, e
destes com os poderes municipais, viabilizava o andamento da República. Problemas de
governabilidade e de inclusão dos diversos atores sociais, no entanto, continuavam embalando
contendas políticas nas mais diversas esferas. No Ceará a situação não era diferente.
A oligarquia Nogueira Accioly, que ocupou o governo do Ceará entre 1896-1912, deu
lugar para a participação política de outras facções oligárquicas, quebrando o monopólio do
Partido Republicano Cearense. Antigos representantes do poder Aciolino ramificaram-se em
grupos que fundaram os partidos Conservador e Democrata. Segundo Simone de Souza, entre
estes partidos não havia “clivagem ideológica, nem diferenças de programas partidários”.
Catalisando outra vertente de poder no Ceará, em 1920, Manuel do Nascimento Fernandes
Távora funda o Partido Republicano com um grupo de dissidentes do partido democrata.55 Este
era o quadro geral dos partidos políticos cearenses quando José Carlos de Matos Peixoto
assumiu a cadeira do governo do Estado. 56
Eleito por força do acordo entre conservadores e democratas, e enfrentando críticas ao
conteúdo clientelista da República, Peixoto tentou animar a classe política local com o objetivo
de demonstrar conformidade nas relações entre União, Estados e Municípios. Em mensagem
enviada à Assembleia Legislativa, em 1929, diz:

Sendo a harmonia entre a União e os Estados condição precípua da subsistência do


regime federativo, é dever imperioso de cada chefe de Estado fazer convergirem os
seus esforços no sentido de estreitar cada vez mais os laços que prendem umas às
outras as unidades da federação, assegurando, destarte, pela cordialidade reciproca
das suas relações, a indissolubilidade do vínculo institucional. 57

A eficácia da estratégia, segundo Peixoto, estaria no reforço coletivo das estruturas


políticas frente ao clima de turbulência. O caminho mais seguro estaria na boa condução dos

55
SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP, 1982. P. 2.
56
José Carlos de Matos Peixoto, cearense, natural da cidade de Iguatu (CE), em 1884, entre 1924-1928 foi
secretário do Interior e Justiça no governo do desembargador Moreira da Rocha, colaborando na reformulação
da Constituição cearense. “Por consenso de todos os partidos políticos do estado, foi escolhido para governar o
Ceará no período 1928-1932. Renunciando à cadeira na Câmara dos Deputados, tomou posse no governo do
estado em 12 de julho de 1928, mas foi deposto pela Revolução de 1930, capitaneada por Getúlio Vargas. Em
seu lugar, no dia 8 de outubro, assumiu o governo provisório do estado Manuel Fernandes Távora. Mudou-se
então para o Rio de Janeiro, montou banca de advogado e conquistou a cátedra de direito romano nas Faculdades
de Direito de Niterói e do Rio de Janeiro”. In. MORAES, Kleiton. Verbete “Matos Peixoto”. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEIXOTO,%20Matos.pdf>.
57
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1929, p. 2.
43

negócios públicos e no controle dos gastos, sobretudo com o funcionalismo municipal. Nessa
intenção, o Presidente do Estado promoveu um congresso reunindo todos os prefeitos do Ceará
para viabilizar a organização das contas dos municípios e, assim, a viabilidade do governo em
vigência.

Parece-me que da troca das ideias que foram aventadas da permuta das sugestões e
dos alvitres que se levantaram, da discussão dos problemas que condicionam o
progresso de nossa terra, em suma, da aproximação entre governo do estado e os
governos locais, resultou uma nobre exaltação do sentimento de solidariedade entre
as células vivas questão os municípios e o organismo por elas constituído, que é o
estão.58

O saldo do encontro, segundo Peixoto, foi uma discussão inteligente seguida da redação
de teses que, nas mãos da Assembleia estadual, promoveriam o progresso do Estado. Estava
em jogo a “objetivação do fim patriótico” e, também, a defesa da classe política. Afinal, uma
condução política elevada daria a todos a impressão de que as facções partidárias não eram
“elementos perturbadores da ação”.59
Na mesma mensagem, que possuía uma estrutura de relatório, o Presidente do Estado
argumentava que os dez últimos anos propiciaram um “surto de vida nova” no Ceará, mas que
o verdadeiro crescimento econômico seria alcançado num futuro próximo. No texto, seu
governo é projetado como aquele que irá promover a mudança no estado, uma expansão “que
será verdadeiramente auspiciosa”. Bastaria superar o “problema primordial”: a seca.60
As estiagens que periodicamente assolavam diversas regiões do Brasil passaram a ser
alvo de preocupações sistematizadas por parte do poder central diante do cenário de ebulição
social que emergiu com a grande seca de 1877-79. Quando as dificuldades em manter os antigos
e consolidados sistemas de apoio, baseados nas relações paternalistas ruíram diante da
magnitude do problema, fazendo ver para além da questão climática, a estiagem configurou-se
enquanto questão social nacional. Encarada como questão social, a seca gerou novos e
impactantes desdobramentos. Como aponta Frederico de Castro Neves, a estiagem de 1877-79
tornou-se um marco na compreensão da questão das secas no Brasil. As respostas, a partir de
então, deveriam ser cada vez mais abrangentes, de forma a amparar a continuidade da produção
nas áreas afetadas, bem como garantir a sobrevivência de milhares de pessoas. 61

58
Ibid., 1929, p. 8.
59
Ibid., 1929, p. 9.
60
Ibid., 1929, p. 2.
61
Cf. NEVES, Frederico Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), p.
75. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico Castro (org.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
44

Nos primeiros meses de 1930, a escassez de chuvas no interior do estado motivou


apreensão e disputas políticas. O jornal A Razão, de 2 de junho 1930, alardeava: “a seca vem
chegando”. A ameaça, naquele momento, estava circunscrita a “população rural”, ou seja, ainda
não confrontava as sensibilidades dos núcleos urbanos de maior porte. O quadro social, porém,
é descrito como fadado à crise, sobretudo porque as providências necessárias para barrar os
efeitos recorrentes da seca ainda não estariam sendo tomadas pelo governo do estado.

Até a imprensa da capital do país já se vem ocupando da crise climatérica que ameaça
roubar-nos vidas preciosas e esgotar parte das energias dos nossos laboriosos povos.
Avizinha-se, portanto, a seca com todo o cortejo de misérias e o governo do estado
permanece indiferente a sorte dos habitantes de uma das mais futurosas zonas do
Ceará [...].62

De todas as zonas que mais sofreram com a insuficiência de chuvas, destacava-se, à


época, a de Jaguaribe, de onde alguns cearenses já começavam a partir em demanda para outros
lugares que lhes pudessem proporcionar meios de subsistência. Os sertanejos deveriam, dado o
desamparo decorrente de uma estação chuvosa inconstante, antes de recorrer ao êxodo, ter sua
subsistência assegurada pelo Estado. José Peixoto é chamado a tomar providências urgentes.
Além do amparo imediato, a matéria chama atenção para outros pontos interessantes.
Nela, para aplacar os maléficos efeitos da seca, antes de tudo, o Estado deveria suspender a
arrecadação do imposto rural, afim de que os sertanejos não ficassem completamente
desfalcados das suas economias. Apesar da argumentação generalizadora, o imposto atingia
principalmente os grandes proprietários. Por fim, argumentava que é dever da República
amparar os cidadãos de forma perene, com medida que se “afigura de grande alcance
patriótico”: a construção de açudes, a saber, a “grandiosa barragem de Orós”. 63
Esses elementos recorrentes em crises passadas foram acessados regionalmente e
reverberaram nacionalmente através de fluxos de informação que compreendiam jornais locais
e nacionais. A ação de atores políticos nas cercanias cearenses, e principalmente, na Capital
Federal era decisiva para isso. Assim, a situação da população da região do baixo Jaguaribe
continuou ocupando espaço na imprensa brasileira. Os termos das denúncias se sustentavam no
combate à fome e à emigração dos braços cearenses. Esse intento só seria alcançado através do
comprometimento dos políticos locais dentro e fora do Ceará.
Em outra edição, o jornal expõe os dilemas internos para diminuir os problemas dos
sertanejos castigados pela crise. Sem chuvas, os jaguaribanos não conseguiram garantir a

62
Jornal A Razão, 2 de junho de 1930.
63
Ibid., 1930.
45

colheita do ano, e ainda se acham sujeitos à pesada tributação oriunda do imposto estadual rural.
Em face desta situação, os atingidos começaram a protestar contra a arrecadação. O jornal não
indica a envergadura das colheitas destruídas, nem nomeia os pleiteadores da causa, mas
continua fazendo eco dos clamores solicitando aos poderes competentes a remissão do tributo.
A medida seria um “indispensável auxílio aos nossos irmãos ameaçados do flagelo da seca”.
Esperavam que o Presidente do Estado “saberia compreender a situação angustiosa que reina
na região em apreço”. Os pedidos foram evanescidos por Matos Peixoto que, “cerrou os ouvidos
e nem sequer mandou sustar a cobrança do extorsivo tributo, que tanto vexame está cansando
no interior do Estado”.64
Diante da recusa dos poderes locais, a demanda passou a se concentrar nas solicitações
ao governo federal: era preciso que os políticos cearenses se empenhassem em exigir verbas
para a construção de obras públicas. Segundo o texto, o governo devia voltar as suas vistas para
“outros trabalhos em que todos os jaguaribanos pudessem empregar a sua atividade, tais como:
as estradas de rodagem daquela região, e acima de tudo isto, a construção do porto de
Fortaleza”. As medidas são apresentadas como inadiáveis. A negativa ao pedido ocasionaria
cenas terríveis, já conhecidas pela população de dentro e fora do estado. O triste passado era
acessado para elaboração de uma quase ameaça. Se o governo não desejasse “receber a notícia
do êxodo da população daquela faixa do nosso território” deveria beneficiar os irmãos cearenses
no presente. Afinal, essa multidão poderia bater à porta de qualquer um, ela iria “para qualquer
parte onde possa ter assegurada a sua subsistência”.65 Um futuro promissor estava em jogo, mas
o caminho até ele não era simples.
No que diz respeito a concretização de grandes obras, a costura política não era fácil.
Sobre isso, observa-se como as relações entre as esferas da administração republicana eram
delicadas e emergiam sempre como foco de crítica. Segundo matéria vinculada no jornal,
reconhecidamente de oposição ao governo Peixoto e declarado apoiador da AL, a política do
governo cearense vivia diariamente a tentar proclamar sua influência junto ao poder central,
tanto que “os demais caciques dos estados brasileiros só faltam morrer de inveja”. O governo
do estado estaria tentando demonstrar sua inserção política através de corriqueiras notícias nos
Jornal do Ceará e Correio do Ceará. Nelas, alardeavam telegramas provenientes do Rio de
Janeiro informando que ministros de todas as pastas atendiam às solicitações feitas pelo Sr. José

64
Jornal A Razão, 20 de junho de 1930.
65
Ibid., 1930.
46

Peixoto, as benesses, no entanto, limitavam-se a nomear um felizardo qualquer para um cargo


menor.66
Quando se tratava de obras de vulto, os esforços do Presidente e da bancada cearenses,
mesmo coligados, pouco adiantavam. Prova disso foi o corte de 1.200 contos de réis numa das
verbas da Rede de Viação Cearense, feito pelo então Ministro da Viação Victor Konder. A
medida acertou em cheio centenas de servidores e também o prestígio político de Matos
Peixoto. O momento não poderia ser menos oportuno, ocorrendo alguns dias depois de Peixoto
solicitar a construção de obras públicas na zona jaguaribana assolada pela seca. 67
A busca por verbas e auxílios do governo federal para socorro ocorriam em uma
dinâmica bastante delicada que ganhava as páginas dos jornais ao menor descompasso nas
negociações. Sobre o imbróglio entre as esferas estaduais e federais acerca dos arranjos em
tempo de seca, envolvendo o Presidente do Estado e o Ministro da Viação, os posicionamentos
da imprensa eram diversos.
Enquanto parte da imprensa condenou o Ministro Vitor Konder por haver negado umas
tantas medidas solicitadas pelo Sr. Presidente do Estado em favor das populações flageladas
pela seca, o jornal A Razão criticou mais severamente o gestor local. Na matéria “Clamores
injustificados”, os editores indicam que “ao Presidente do Estado e não ao Ministro da Viação
cabe a culpa de não ser socorrido o Ceará”. Uma dimensão interessante é colocada pelo
noticioso, pois o Sr. Victor Konder havia negado as urgentes medidas necessárias à salvação
dos cearenses, por precaução de que as alegações a respeito da seca fossem falsas. Diz o artigo:
“o seu juízo, embora fatalíssimo para o Ceará, apoia-se, contudo, em razões, algo justificáveis”,
os representantes do Estado não estariam inspirando confiança, suas falas pareciam não
corresponderem à verdade, ou pelo menos, poderiam estar sendo tomadas como exageradas
quanto a realidade do quadro. 68
O motivo para tal situação de desconfiança quanto a seriedade da crise no Ceará teria
sido gestada na conduta do Sr. Matos Peixoto.

Como acreditar que pese sobre o Ceará tão graves calamidades, dirá sr. Ministro da
viação, quando todos os jornais registraram que o atual presidente aumenta o seu
fausto, comprando à praça os melhores e, mas suntuosos automóveis, projetando a
reforma da residência presidencial e até encenando, com luzido séquito, uma viagem
principesca aso grandes centros do velho mundo? 69

66
Jornal A Razão, 16 de maio de 1930.
67
Ibid., 1930.
68
A Razão, 4 de junho de 1930.
69
Ibid., 1930.
47

Ver-se aí a crítica aos padrões da política cearense, sobretudo a figura do Presidente do


Estado. A admissibilidade do problema da seca e de sua extensão pelo Estado brasileiro passaria
pela conduta da política local e, diretamente, pela do próprio chefe do governo. A realidade
modesta da população não combinaria com a conduta nababesca de seus governantes, mesmo
argumento que reverberou junto a renovação da crítica ao imposto rural. Somente governantes
descolados da realidade do povo julgariam “possível exigir da população um tributo como o do
imposto rural, representado numa cota superior as cobradas por estados florescentes como os
de Minas, Rio e outros [...]”. 70 O tema dos impostos sobre o produtor rural continuou sendo
relacionado à crise no baixo Jaguaribe, expondo as responsabilidades compartilhadas pelo
Governo do Estado e pelos Ministérios para com o socorro dos flagelados. Assim, a seca é o
“nó górdio” da dinâmica política entre estado e federação.
A partir dos movimentos entre os níveis de governo no período, tendo a seca como mote,
percebem-se as tentativas de projeção do estado do Ceará nos espaços do poder federal. Antes
mesmo da posse de Júlio Prestes, o governo que não viria a se concretizar graças ao sucesso da
Revolução de 1930, existiu uma tentativa de assegurar ao Ceará um Ministério no governo
Prestes.

Sendo, das unidades federais, o Ceará a mais necessitada de auxílio do governo central
na realização de medidas tendentes a neutralizar, ou minorar sequer, os efeitos das
secas nordestinos; ocupando o nosso estado, no país, um lugar de certo destaque,
queiram ou não os derrotistas do nosso valor, nada mais justo, nada mais razoável,
pleitearem os nossos homens públicos um ministério. 71

A existência de tão severo mal que implicava no desenvolvimento da Região deveria


ser compensada com mais espaço político. Em prol da defesa das necessidades locais, “[...]
merecemos um ministério e, com isto, só temos a lucrar, desde que o cearense que ocupar –
Matos Peixoto ou João Thomé, se comprometerem de que é imperioso dever seu muito fazer
por nós”. Segundo o texto, no entanto, uma coisa deveria se impor para galgar o justo lugar à
mesa nacional e, ao mesmo tempo, defender o bom nome do Ceará: os políticos da terra não
deveriam adquirir tal assento como parte do jogo político baixo, como se fora a título de
“compra pelos 85.000 votos que nos fizeram dar ao sr. Júlio Prestes. Não humilhem o Ceará
colocando-o na triste condição de comprador de pastas ministeriais [...].” 72

70
Ibid., 1930.
71
Jornal A Razão de 25 de setembro de 1930.
72
Jornal A Razão, 25 de setembro de 1930.
48

Nos círculos cearenses do Rio de Janeiro e na imprensa local, as discussões sobre o


histórico problema da seca tornavam o campo político um território minado para as fileiras da
política cearense. Diante disso, Matos Peixoto definiu viagem à capital do país. Com a ida
marcada para os princípios de outubro, o Presidente Peixoto tentava dar continuidade a
estratégia de inserção política dos cearenses e, assim, se mostrar habilitado para a defesa das
pautas locais no circuito nacional.
No artigo “Daqui pra lá já muita gente tem morrido”, do A Razão, percebe-se que na
viagem ao Rio de Janeiro, Peixoto buscava expor, mesmo que tardiamente, a situação dolorosa
dos flagelados cearenses. A ação significava mover uma peça local no tabuleiro nacional,
iniciando o futuro presidente Júlio Prestes na pauta da seca. A estratégia parecia promissora ou
estaria sendo vendida como sendo, pois noutra coluna, intitulada “Três nortistas no ministério”,
havia a indicação de que “íntimos do sr. Júlio Prestes afirmam que no ministério do futuro
governo estão incluídos três estadistas do Norte”.73 Essas movimentações ocorridas no final da
década de 1920, denotam a maneira com que eram urdidas as ações em prol de demandas por
verbas, projeção política e de protagonismo econômico para o Ceará.
A imprensa carioca continuou dando visibilidade a questão da seca, focalizando
aspectos sociais da crise no estado, mas também evidenciando o cenário político do Ceará.
Segundo compilação realizada pelos editores do jornal cearense A Razão, o periódico carioca
O Globo voltou a tratar da situação cearense acentuando que, até aquele momento, os sertanejos
estariam abandonados por sua representação federal, que, “preocupada, apenas com a política,
não tem agido junto ao poder central em favor dos flagelados”.
Influenciando a paisagem política, figuras de relevo da Igreja Católica começaram a se
posicionar nacionalmente, dando visibilidade ao problema. O apelo de Dom Manuel, Arcebispo
de Fortaleza, estaria causando verdadeiro impacto sobre a questão, à revelia das ações
contraproducentes dos congressistas cearenses. Além do O Globo, o jornal Correio da Manhã
realçou o gesto do clérigo diante do sofrimento do povo cearense. Descrevendo o êxodo das
populações flageladas e o espetáculo doloroso de miséria e fome que oferece o Ceará ao país,
o Correio reafirma o descaso dos poderes constituídos pela sorte dos sertanejos. 74
Nesse contexto, as propaladas críticas locais ao Presidente do Estado do Ceará passam
a figurar na imprensa nacional sempre aninhadas ao desenho pouco elogioso dos congressistas
cearenses. Apreciando a atitude de Peixoto diante da calamidade, O Globo afirma que competia

73
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1930.
74
Jornal A Razão, 25 de setembro de 1930.
49

ao chefe do estado cearense tomar as rédeas da situação, uma vez que a representação do Ceará
nada tinha feito. Ele deveria recorrer ao governo federal em busca de ajuda no combate à seca.75
A imprensa da capital do país insiste no descompasso entre as narrativas sobre a
propagação dos efeitos da seca no estado e os desdobramentos políticos do posicionamento dos
deputados e membros do executivo acerca da crise climática e das verbas para socorro da
população. Ocupando-se disso, o jornal cearense A Razão reverberou a posição do periódico
carioca Jornal do Brazil sobre a seca no Ceará. Apesar de afirmar a necessidade de serem
prestados urgentes socorros às populações flageladas, o periódico acentuou que o deputado
cearense Eduardo Girão teria dito que “as chuvas caíram com relativa normalidade.” E que,
portanto, “Houve inverno regional”. A observação coloca em perspectiva a abrangência da crise
climática e, sobretudo, a pertinência de seus usos pelos políticos cearenses.76
Na sequência do imbróglio, mais uma vez os apelos provenientes de Dom Manuel
causam maior impacto na capital brasileira que as manifestações não tão bem coordenadas dos
políticos cearenses. No Rio de Janeiro, o Arcebispo entra de vez na dinâmica política que
envolve a questão da seca, dirigindo à bancada cearense pedido de ajuda aos flagelados,
causando, segundo os relatos que chegaram de lá, “viva impressão”. A questão da seca,
sobretudo a capacidade de mobilizá-la como parte de um arsenal político, naquele momento
dependia da forma e da força com as quais os grupos e indivíduos a manejavam para se
inserirem no jogo político.
Ante o cenário de ebulição nacional, Peixoto busca transparecer tranquilidade e
consciência dos problemas do Ceará. Os caminhos apresentados por ele continuam em
consonância com o contexto de expansão da economia capitalista, indicando inclusive a
importância do desenvolvimento de planos de modernização, tal qual se verificava mundo
afora. Na tentativa de projetar caminhos futuros, tratou da seca na mensagem oficial endereçada
à Assembleia Legislativa do Ceará. Nela, Peixoto indica que a resposta para o problema
histórico do estado estaria na ampliação da açudagem e dos canais de transporte e de
comunicação, bem como na modernização de técnicas agronômicas. O algodão, gênero agrícola
que mais concorria para a riqueza do Estado, poderia ser ainda melhor aproveitado desde que
avançasse o desenvolvimento da agricultura mecânica e científica. Em sua visão, naquele
momento a atividade agrícola estaria marcada pelo signo do rotineiro e antiquada. Peixoto de
Matos acreditava ser possível contornar a crise superando os empecilhos que “travavam o
progresso econômico” do Ceará. A despeito das críticas construídas pela oposição e do cenário

75
Ibid., 1930.
76
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1930.
50

de crise decorrente da seca, que o próprio Peixoto assegurava interna e externamente, ele
afiança: “não se pode negar que as nossas condições econômicas sejam boas”.77
As crises econômicas ocorridas em 1920 no Brasil, acrescidas dos severos
desdobramentos da quebra do mercado internacional, em 1929, concorreram para o difícil
cenário produtivo do período.

No curso da década de 1920, após o recesso dos dois primeiros anos, decorrência da
crise internacional, a indústria parece ter retomado o desenvolvimento em 1922, e
sobretudo em 1923, para sofrer um séria queda em 1924, da qual só se recuperaria,
parcialmente, nos últimos anos do período, sem atingir o nível de 1923. (FAUSTO,
1997, p. 38).78

Mesmo após as sucessivas crises ao longo da década de 1920, a ascendência da produção


agrícola sobre a industrial manteve-se mesmo depois de 1930. Assim, a derrocada da Primeira
República não correspondeu à ascensão da burguesia industrial, nem das classes médias. A
grande depressão de 1929 afetou de maneira diferente as diversas nações pelo mundo. No
Brasil, o café, um dos seus mais relevantes produtos de exportação, teve seu valor de venda
enfraquecido, gerando sérios problemas econômicos no país. A crise mundial, no entanto, não
produziu a revolução que se avizinhava.
Como afirma Boris Fausto:

É possível mesmo especular sobre a eventualidade da queda da República Velha,


independentemente dela [a crise econômica]. Mas as contradições da economia
cafeeira, das instituições que consagravam seu predomínio ganharam outra
dimensão.79
Em meio a tais eventos de natureza econômica, em 1º de março de 1930, ocorreu a
eleição direta para Presidente do Brasil, a última eleição do período conhecido como “República
Velha” (1889-1930), seus resultados foram divulgados em 21 de maio. Júlio Prestes foi eleito
presidente, mas não chegou a tomar posse. A Revolução de 1930 sustou governos estabelecidos
e impediu novas posses. Getúlio Vargas e seus interventores assumiram o poder em seguida. A
disputa eleitoral ocorreu em meio a confusões e fraudes de toda ordem.
No Ceará, a cobertura do pleito feita pelo jornal A Razão elevou o tom das críticas à
estrutura do poder oligárquico, direcionando as mais ácidas considerações ao Presidente do
Estado do Ceará, José Peixoto: “Já pode ser considerado o Rei da Fraude”, pois, em todo o
Estado teria acontecido “a mais aviltante bacanal eleitoral”.

77
Mensagem enviada à assembleia legislativa pelo presidente do estado José Carlos de Matos Peixoto, de 1929,
p. 31.
78
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
79
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
51

O apurado nos locais das eleições aponta que em quase todos os municípios foi
conspurcado o direito de voto do povo. Para os aliancistas, “diante de semelhantes misérias, a
revolução está plenamente justificada”:

Como havíamos denunciado, o pleito de 1º de março, no Ceará constituiu a maior


vergonheira eleitoral de que há espaço na história do Ceará. Em quase todos os
municípios, as eleições foram clandestinamente fabricadas com muitos dias de
antecedência, tendo para isso o sr. José Peixoto forçado grande parte dos magistrados
cearenses a enlamear a sua toga no pântano pestilento em que a presente situação
afoga. Na própria capital do estado reinou a maior orgia, vendo-se os principais
auxiliares do governo transformados em fornecedores de almoço para eleitores
miseráveis que tinham sido subornados no próprio palácio do governo. 80

As notícias do interior do Estado eram tampouco animadoras. Os telegramas aninhados


nas páginas do jornal passaram uma imagem bem nítida da bambochata de 1º de março. Em
Aquiraz as seções eleitorais mal funcionaram, já que o processo teria sido fraudado, tratando-
se de uma eleição “clandestina”. Lá, assim como em Maranguape, partidários da Aliança
Liberal organizaram protestos contra a “vergonhosa fraude”. Onde não funcionou seção
alguma, os eleitores impossibilitados de votar assinaram protestos, “visto que o juiz leigo se
recusou a mandar o tabelião tomar declaração de voto”. Em Guaramiranga não houve eleição,
pois no dia anterior, “à noite, atas falsas foram feitas na residência de juiz local”. No município
de Pedra Branca teria ocorrido situação similar: locais de votação fechados, rumores de eleição
feita de forma fraudulenta na calada da noite.81
Em Acarape, Riacho do Sangue e Pereiro, urnas não foram abertas, as de Quixadá
funcionamento irregular, pois o presidente abandonou os trabalhos. Perto dali, em
Quixeramobim, juízes, tabeliões e mesários considerados governistas também se fizeram
ausentes. Parte do pleito foi transferida para o cartório local, em Senador Pompeu. Em Iguatu,
poucas seções abertas, porém sem mesários. Os edifícios destinados à votação permaneceram
fechados. Somente a primeira seção funcionou com regularidade e, mesmo diante do caos, o
juiz local negou votação em cartório, motivando abaixo-assinado de eleitores prejudicados.82
Cachoeira e Cedro tiveram seções fechadas e impossibilidade de votar em cartórios. Em
Aurora, o juiz Jayme Magalhães fugiu para o Crato pretextando doença e 200 eleitores
aliancistas não puderam votar no cartório. Ainda na região do Cariri, em Missão Velha, juiz e
mesários “ausentaram-se para lugar desconhecido” e outro correspondente local informou que
o juiz teria fabricado números antes de evadir-se. Na cidade de Juazeiro do Norte, reduto

80
Jornal A Razão, 4 de março de 1930.
81
Jornal A Razão, 4 de março de 1930.
82
Ibid., 1930.
52

aliancista, somente a nona seção funcionou e as demais ficaram fechadas sob protesto de fiscais
da AL. Em Barbalha, o eleitorado cruzou as ruas declarando seu voto, visto que as seções foram
fechadas. O juiz barbalhense seguiu para o Crato e na ausência da autoridade maior, o escrivão
teria se apoderado dos títulos que se achavam no cartório, “declarando que não os entrega
porque não o quer”. Os eleitores alijados de seus direitos protestaram realizando comícios para
denunciar a fraude.83
Em Crato, lugar preferido dos juízes fujões, a eleição ocorreu normalmente até às 14h,
quando, segundo telegrama vinculado no jornal, percebendo a possível vitória aliancista,
“começou a fraude eleitoral”. Eleitores que já haviam votado em outras seções foram recebidos
para novo voto às 20h da noite, os trabalhos de apuração foram interrompidos e os livros
levados. Fiscais constataram seções fechadas em Várzea Alegre. Em Campos Sales deram conta
de que a eleição fraudulenta teria sido feita na casa do prefeito. Em Milagres, foi aberto o
edifício da primeira seção, comparecendo apenas o juiz de direito. Porém, “Soldados e capangas
armados percorreram as ruas, provocando desordens”. O sargento Francisco Ferreira prendeu,
“sem motivo”, fiscais aliancistas.
O afinco do jornal em reportar tantos casos aponta para a tentativa de desacreditar de
vez os termos pretensamente democráticos do regime vigente. A demonstração da disseminação
do caos eleitoral por todo o estado motivou resposta oficial na documentação da Presidência do
Estado do Ceará. Em mensagem apresentada à Assembleia Legislativa, lida na abertura da 2ª
Sessão Ordinária da Décima Legislatura, no dia 1º de julho de 1930, o Presidente do Estado do
Ceará, José Carlos de Matos Peixoto, com a distância temporal a seu favor, mas não menos
imerso num contexto conturbado, tenta acalmar os ânimos em poucas linhas:

As relações do Estado do Ceará com a União e com os Estados têm sido de máxima
cordialidade. A agitação política, que perturbou recentemente a vida da nação no
decurso da campanha presidencial não logrou alterara harmonia e a união de vistas
reinantes entre este Estado e as demais unidades da Federação. Sumamente cordiais
têm sido também as relações entre o governo do Estado e os municípios. No dia 1 de
março próximo findo, realizou-se a eleição para presidente e vice-presidente da
República, saindo triunfante do pleito os nomes dos eminentes e preclaros estadistas
drs. Júlio prestes de Albuquerque e Vital Henrique Baptista Soares. O veredicto das
urnas, no Ceará, pôs em relevo a disciplina e patriotismo dos partidos que apoiam o
governo do Estado.84

83
Ibid., 1930.
84
Mensagem do presidente do estado do Ceará, José Carlos de Matos Peixoto, apresentada à Assembleia
Legislativa e lida na abertura da 2ª sessão ordinária da décima legislatura. 1º de julho de 1930. Typografia
Gadelha. Ceará. pp. 2-3.
53

Ao longo da Primeira República, o acesso ao poder dos grupos oligárquicos é garantido


por eleições fraudulentas, avalizando a continuidade do sistema e a permanência das oligarquias
no poder. As eleições ocorridas em 1930 seguiram esse script, ocorreram “a bico de pena”, ou
seja, num processo eleitoral caracterizado pelo ardil nos sistemas de qualificação do eleitor e
apuração do pleito. As críticas ao processo eleitoral desgastaram profundamente a credibilidade
das instituições democráticas ao longo desse período. Não tarda, a revolta contra tal estado de
coisas culmina na negação da herança republicana e criminalização de suas estruturas. Ainda
em 1930, esvai-se totalmente a projeção de governo dos recém-eleitos.
O cenário torna-se extremo no dia 3 de outubro de 1930. No Rio Grande do Sul, a
revolução eclodiu depondo Washington Luís. Pouco tempo depois, em 8 de outubro, caiu o
governo do Ceará. Diante da investida realizada pelos revoltosos do 23º Batalhão de Caçadores,
procedente de Sousa (PB), retirou-se do poder Matos Peixoto, então ocupante da cadeira da
Presidência do Ceará. Os apoiadores da revolução e do novo regime assumem a
responsabilidade de renovar o Estado e a prática política, mas a tarefa mostrar-se-á intricada.
Enquanto os revolucionários tomavam o país, o povo retirava da Cadeia Pública os
presos José de Borba, Paes Castro, João Marinho, Luís Brígido Nunes e Alfeu Aboim. O ilustre
encarcerado Dr. Fernandes Távora, irmão do proeminente revolucionário Juarez Távora, preso
na secretária de Polícia pelo então Presidente do Estado Matos Peixoto, também foi libertado
e, junto com os demais partidários da revolução, foi levado para a Praça do Ferreira. Lá, sob o
comando do jornalista Demócrito Rocha, na sacada da “Rotisserie Sportman”, realizou-se o
comício da vitória. O próprio Távora diante da multidão anunciou que assumiria o governo do
Estado na qualidade de Interventor da nova era republicana (MOTA, 1999, p. 256-257). Seu
governo, iniciado em 14 de novembro, no entanto, dura pouco, pois a dinâmica política no
Ceará continuava sinuosa. Apesar da aparente força dos recém-empossados, o clima de
incertezas que marcam o período é indelével.
Mesmo perdendo a hegemonia política do estado, a família Acióli e demais grupos
oligárquicos mantêm-se na dinâmica local. Do lado vencedor, a recém-empossada família
Távora tenta implementar os ideais tenentistas. Declaradamente contrária ao modus operandi
da política oligárquica decadente, o novo grupo terá que lidar com pressões vindas de dentro e
de fora da política local. A queda do governo Fernandes Távora, oito meses depois da sua posse,
54

revela a magnitude do choque político no Ceará e impactará na forma como as políticas de


combate à seca serão implementadas durante o Governo Provisório, como se verá a seguir. 85

1.3 Nova Política? A Interventoria de Fernandes Távora

Para o grupo que emerge vitorioso em 1930, saneamento moral e das contas públicas
eram pontos importantes para consolidar um novo momento do Brasil e para o estado do Ceará.
A fim de soterrar o passado para a consolidação do presente revolucionário, condutas muito
específicas foram cobradas dos vencedores.
Em seu discurso de posse como chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas indicou
que o movimento revolucionário, vitorioso em outubro de 1930, contou com o povo das
diversas regiões do país para subjugar um “governo já em agonia”. Aos camaradas da Junta
Governativa, indicou a convicção de substituir “o regime de ficção democrática” por outro “de
realidade e confiança”. A mensagem recomendou que era preciso refletir sobre a “obra de
reconstrução” que lhes cumpria realizar. A empresa aludida exigiria “reajustamento social e
econômico de todos os rumos”.86
Para o real exercício das funções públicas cabia desmontar a “máquina do filhotismo
parasitário”. Isso significava combater o “caciquismo eleitoral” através da ação de homens
“capazes e de reconhecida idoneidade moral”.87 No que diz respeito às mudanças financeiras e
econômicas da nação, Vargas sentenciou que havia uma série de providências a serem
executadas, entre elas, “a restauração do crédito público e o fortalecimento das fontes
produtoras”.88 No Ceará, até aquele memento, esteve enredado em eleições fraudulentas e

85
“Távora acabou, entretanto, por entrar em choque com a guarnição do Exército sediada em Fortaleza, sendo por
isso exonerado do governo em setembro de 1931, quando foi substituído pelo Capitão Roberto Carneiro de
Mendonça. Segundo Juarez Távora em seu livro Uma vida e muitas lutas, a divergência entre a corrente tenentista
e Fernandes Távora remontava à data da posse deste, pois, desde a preparação da revolução no Ceará, ficara
acertada a designação do major João Silva Leal, do Colégio Militar de Fortaleza, para assumir o governo do
estado após a vitória do movimento. Para resolver a questão, em setembro de 1931 foi constituída uma comissão
especial integrada por Osvaldo Aranha, ministro da Justiça, o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro e Pedro
Ernesto Batista, interventor no Distrito Federal, a qual, embora isentando de culpa Fernandes Távora, julgou
mais acertado que o Governo Provisório aceitasse sua exoneração”. In. PECHMAN, Robert. Verbete
“Fernandes Távora”. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/manuel-do-nascimento-fernandes-tavora> Acesso dia 12 de setembro de 2018.
86
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em 28 de julho de 2018.
87
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em 28 de julho de 2018.
88
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível
em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em: 28 jul. 2018.
55

convivia com crises sociais periódicas exacerbadas a cada estiagem prolongada. Já ao longo da
década de 1930, como visto anteriormente, parte do estado, sobretudo a região jaguaribana, já
exigia atenção da sociedade devido à seca.
Com a vitória das fileiras revolucionárias, as promessas de mudança e melhoria de vida
deveriam ser executadas pelos novos chefes da nação. No Ceará, segundo Simone de Souza,
havia um candidato dos tenentes para assumir a governança do estado, o major João da Silva
Leal. Porém, as operações militares decorrentes da tomada de poder exigiram a ação do militar
na cidade de Sousa, na Paraíba. Sua ausência do Estado no momento em que eclode a revolução
possibilitou a indicação do líder civil Fernandes Távora para a chefia do governo estadual.89
Depois que Matos Peixoto abandonou seu posto no governo do Ceará, ante a
aproximação do 23º Batalhão de Caçadores, os partidários da Aliança Liberal e de Getúlio
Vargas presos por ordem de Peixoto são libertados. Entre eles está Fernandes Távora que, em
praça pública, assume o papel central nas comemorações e ascende como novo chefe do
executivo, representante do Governo Revolucionário no Ceará.90 O momento é de comoção,
mas também, a aberta participação na campanha aliancista, a experiência política e,
principalmente, suas conexões com figuras importantes do processo revolucionário foram
decisivas para sua proclamação como Interventor Federal. À revelia das projeções anteriores, a
soma desses elementos garantiu a confirmação do médico Manuel do Nascimento Fernandes
Távora, irmão do herói revolucionário Juarez Távora, no dia 14 de novembro de 1930, dada
pelo chefe do Governo Provisório Getúlio Vargas.91
O novo chefe do Executivo Estadual buscou ater-se a política tenentista, que precisou
ser constantemente reforçada e justificada. Para tal, tinha a seu dispor um poder bastante amplo.
O decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, em seu artigo 11º, ato inaugural do pós-
revolução, definiu a silhueta do Governo Provisório, instituindo a figura do Interventor Federal.
Haja vista a dissolução dos congressos federais, estaduais e municipais, além da dissolução de

89
Cf. SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP.
90
SOUZA. Ibid., p. 5-6.
91
O capital político de Fernandes Távora foi amealhado ao longo dos anos através de engajamento político dentro
e fora das estruturas oficiais. Ele foi eleito deputado estadual no Ceará entre 1913 e 1914, depois de 1918 até
julho de 1920. Logo depois, liderou a Reação Republicana, que promoveu a candidatura de Nilo Peçanha à
Presidência da República em oposição a de Artur Bernardes. Foi também redator-chefe do jornal A Tribuna,
entre 1920 a 1925. No final daquele anos, quando a Coluna Prestes invadiu o Piauí, ameaçando o Ceará, o jornal
fechou e Fernandes Távora exilou-se na Europa. Fernandes Távora foi também o fundador do Partido
Democrático do Ceará e da Aliança Liberal no Ceará. Cf. PECHMAN, Robert. Verbete “Fernandes Távora”.
Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/manuel-do-nascimento-
fernandes-tavora> Acesso dia 12 de setembro de 2018.
56

todos os órgãos deliberativos do Estado brasileiro, o texto possuía o conteúdo discricionário da


nova governança e indicava que os Interventores Federais acumulariam funções executivas e
legislativas. Nomeados para cada um dos estados brasileiros, os escolhidos tinham amplos
poderes, delimitados somente pelo Chefe Maior do Governo.

§5º Nenhum interventor ou prefeito nomeará parente seu, consanguíneo ou afim, até
o sexto grau, para cargo público no Estado ou §6º O interventor e o prefeito, depois
de regularmente, empossados, ratificarão expressamente ou revogarão os atos ou
deliberações, que eles mesmos, antes de sua investidura, de acordo com a presente lei,
ou quaisquer outras autoridades; que anteriormente tenham administrado de fato o
Estado ou o município, hajam praticado. §7º Os interventores e prefeitos manterão,
com a amplitude que as condições locais permitirem, regime de publicidade dos seus
atos e dos motivos que os determinarem, especialmente no que se refira à arrecadação
e aplicação dos dinheiros públicos, sendo obrigatória a publicação mensal do
balancete da Receita e da Despesa. §8º Dos atos dos interventores haverá recurso para
o Chefe do Governo Provisório. 92

Ao tempo que a existência da interventoria significava novos termos para jogos de poder
locais e para o início do processo de apagamento da agora Velha República, a instituição
demarcava a centralização do poder no governo federal.93 Indicado como aquele que, ao lado
do povo, fiscalizaria todo e qualquer servidor público da nação, o Chefe do Governo Provisório
era o limite da ação dos poderosos interventores. A ele caberia, inclusive, as nomeações e
demissões de quaisquer funcionários públicos, inclusive do interventor. 94 Nesse sentido, os
enunciados proferidos pelo Chefe do Governo deveriam servir de bússola para a implementação
das interventorias. Naquele momento de transição, no entanto, a pacificação dos ânimos não
seria tarefa fácil.
Além de garantir a implementação do novo governo, caberia ao interventor o
saneamento moral, político e fiscal das unidades federativas. Competiria a eles, incluindo aí
Fernandes Távora, ações que iam desde a implementação de um bom ensino público até a
apuração de eventuais crimes de responsabilidade por parte dos governos anteriores.95

92
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
93
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
94
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
95
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível
em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em: 28 jul. 2018.
57

Segundo Maria do Carmo Campello de Souza, o desmantelamento da estrutura


republicana anteriormente baseada na política dos estados, anunciado pelos revolucionários,
chegou a provocar certa modernização do Estado. No entanto, não foram realizadas mudanças
intensas na estrutura socioeconômica existente.96 Essa “modernização conservadora” se deu de
forma peculiar de região para região, pois novos grupos e velhos interesses foram cooptados e
burocratizados no sistema político implementado.
No Ceará, a institucionalização do poder no período pós-revolucionário ocorreu sobre
uma estrutura política repleta de resquícios clientelistas. Nesse cenário, a crescente
centralização política rivalizou com as tentativas de manutenção dos poderes locais que
marcaram a construção das novas representações em torno da unidade nacional. Nesse
movimento, a elevação do Norte como região geopolítica associada a reconhecidas pautas,
como as relacionadas a seca, foram mote da representação regional no período.
Perante tão complexo conjunto de ajustes e demandas, a capacidade dos revolucionários
elevados ao poder de romper com a estrutura anterior esteve em evidência. Apesar da clareza
expressa na letra dos decretos, a nova burocracia e os novos agentes do estado se relacionaram
ora de forma conflituosa, ora de maneira auto afirmadora dentro de um quadro político maior.
Assim, o novo chefe do executivo estadual precisaria construir apoios para se manter no
comando.
Com a Revolução bem-sucedida, os irmãos Manuel e Juarez Távora alcançaram postos
e visibilidade importantes. No imediato pós-revolução, diversos telegramas que elogiavam a
figura heroica de Juarez e a ascensão de Fernandes Távora eram vinculados diariamente nos
jornais. Neles, a figura dos irmãos se confunde. Sem ainda utilizar a nova nomenclatura de
Interventor, o jornal A Razão, de 11 de novembro de 1930, na coluna intitulada “O Presidente
do Estado recebeu os seguintes telegramas”, dá conta das homenagens provenientes das cidades
de Sobral, Massapê, Pacatuba, Mossoró e Fortaleza. Apesar do título, as mensagens falavam da
“vitória libertadora” da revolução que “o grande Juarez libertador do Norte idealizou”, e não
citavam o irmão ocupante do cargo mais alto do estado, Fernandes Távora.
Proveniente de diversas partes do país, a ode à família Távora era também
frequentemente enviada ao Gabinete do Presidente Getúlio Vargas. Uma delas, dando notícias
de uma pequena cidade do Ceará, Iracema, aplaude a atuação de Juarez Távora: “povo deste
município, em recompensa relevantes serviços prestados causa revolucionaria grande soldado
Juarez Távora, delirantemente, aclama mesmo general brigada exército nacional. saudações

96
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
omega, 1976. P. 85.
58

cordiais”. A assinatura ao final do telegrama chama atenção: Fernandes Távora, interventor.97


O próprio interventor comunica ao Chefe do Governo Provisório acerca da homenagem ao
irmão, evidenciando o crescente capital político de Juarez Távora e, porque não, o próprio. A
tentativa parece-nos, é de fortalecer a projeção da família dentro do governo a partir do
reconhecimento da ação revolucionária de ambos. Assim, a ampliação do poderio dos Távora
a nível nacional poderia convergir para maior inserção das demandas da família e do próprio
Norte.
Investigando a trajetória da região conhecida como Norte, durante o Governo Provisório
Varguista (1930-1934), o historiador Raimundo Hélio Lopes argumenta que, nesta conjuntura,
a região geopolítica tornou-se importante força política liderada por Juarez Távora,
pejorativamente chamado de “Vice-rei do Norte”.98 O grupo de interventores nortistas,
nomeados pelo próprio Juarez, desenvolveu uma identidade política específica e figuraram
como principais apoiadores de Governo Provisório.
Defendendo um plano de projeção regional para o Norte, por consequência, em oposição
à manutenção de poder de estados como São Paulo, entre outros da União, os autodeclarados
“revolucionários nortistas” consolidaram um processo de implementação das interventorias
diretamente ligado à liderança de Juarez Távora. O Delegado do Norte nomeado por Vargas
chefiou o grupo mediando os conflitos internos e defendendo as demandas da região. Como
explica Lopes, havia laços de proximidade construídos entre os interventores da região,
“durante os dois primeiros anos do Governo Provisório, a atuação política de Juarez se centrava
em ouvir e orientar esses personagens, através da troca de cartas e, principalmente, de
telegramas”.99 Para Pandolfi, a Delegacia Militar do Norte desempenhou sua função principal,
pois alinhou a Região à revolução.100 Na medida em que a Delegacia do Norte oficializava a

97
ANRJ - Fundo 35 - Gabinete Civil da Presidência da República. Lata 16. Telegrama enviado ao Presidente do
Governo Provisório, enviado pelo Interventor do Ceará Fernandes Távora. Cidade de Iracema – CE, datado de
15.01.1931.
98
Para Lopes, a trajetória pessoal Juarez Távora, marcada pelo ímpeto revolucionário, simbolizava o combate aos
podres arranjos da velha República. Através disso, Juarez figurou entre os líderes do pós-revolução. O epiteto
“vice-rei” foi construído logo depois do desfecho vitorioso de 1930, apontada por Lopes como sendo o “outro lado
da moeda daquela que nomeia o puro e grande revolucionário nortista um autêntico herói da revolução...” E “os
“súditos” do Vice-reinado são a identidade negativa dos revolucionários nortistas. Lopes, Raimundo Hélio Um
Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 32. Tese (doutorado)
– Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em
História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. pp. 29-31.
99
Lopes, Raimundo Hélio. Um Vice-Reinado Na República do Pós-30: Juarez Távora, As Interventorias do Norte
e a Guerra de 1932. Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC. Rio de Janeiro, 2014. p.18.
100
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. pp. 247-348.
59

proeminência do papel dos militares e das pautas tenentistas na região, a situação política do
civil Fernandes Távora na Interventoria do Ceará se complicava.
Uma vez no cargo de maior poder do Ceará, Manuel Fernandes Távora emitiu diversos
decretos que versavam sobre novas atribuições do judiciário e a modernização e reconfiguração
da burocracia do Estado, bem como regiam a nomeação dos interventores municipais. Com tom
assertivo, indicando a força de seu julgamento, o recém Chefe do Executivo emitiu nota oficial
com recomendações aos novos Interventores Municipais:

[...] os prefeitos municipais, sendo pessoas da imediata confiança do Interventor


Federal, só serão conservados em seus cargos enquanto bem servirem à causa pública
e ao programa da revolução. 2) os prefeitos, representantes diretos do Interventor, no
município, e, portanto, depositários do pensamento revolucionário, não podem nem
devem imiscuir-se, nas competições partidárias, limitando-se tão somente às suas
funções administrativas, que abrangem a dupla alçada do Executivo e do
Legislativo.101

No intuito de orientar as chefias municipais, o Interventor Federal julgou


“imprescindível ministrar-lhes algumas instruções”, sempre tendo por base o programa
revolucionário, mas também a própria ascendência. Os novos prefeitos escolhidos pelo
Interventor teriam a manutenção de seus poderes regulada pela vontade de Fernandes Távora,
evidenciando o poder atribuído a ele pelo cargo. As prerrogativas que a legislação conferia ao
Interventor pareciam, inicialmente, concorrer para a consolidação da gestão de Fernandes
Távora. Afinal, caberia a ele o exercício não só do Poder Executivo, como também do Poder
Legislativo.

[...] os limites da ação interventorial, na reorganização político-administrativa do


estado, são determinados pelas próprias condições do interventor. Este faz parte de
uma facção oligárquica, embora na condição de oposição. Assim, as medidas de
modernização administrativas que empreende trazem as marcas da facciosidade
política, como a reorganização dos municípios cearenses e a reforma do judiciário. A
nomeação dos prefeitos das comarcas cearenses daria ensejo a um processo de
sistemáticas críticas ao interventor. (SOUZA, 1982, p. 10).

A possibilidade de expandir a já crescente influência da família Távora por todo o


Estado poderia assentar-se nos poderes de nomeação e exoneração dos prefeitos, bem como de
revogação ou suspensão de atos ou resoluções municipais, tal como estabelecia o decreto n.º
19.398.
A imprensa será uma aliada importante de Fernandes Távora, sobretudo nos primeiros
momentos de seu governo. Diante do clima de incertezas que marca a pós-revolução, o

101
Nota oficial do Interventor Fernandes Távora. Fortaleza, 28 de novembro de 1930. Cf. MOTA. 2000. p. 33-34.
60

interventor tenta esclarecer a nova realidade brasileira e cearense por meio de notas e decretos
vinculados nos jornais. Portanto “assegura a todos os habitantes do estado os direitos e
liberdades individuais” diante da dissolução do poder legislativo e da ampla atribuição do poder
executivo, informa sobre a manutenção das atribuições do poder judiciário:

O presidente do Estado do Ceará, por aclamação popular, doutor Manuel do


Nascimento Fernandes Távora, considerando que se torna urgente esclarecer a opinião
pública ante o movimento revolucionário, que se vem operar neste estado;
Considerando que cumpre ainda ao atual Governo Provisório expor, em linhas gerais,
a sua ação no que diz respeito às suas próprias atribuições, bem como ao
funcionamento dos outros poderes e, assim, no tocante aos direitos e liberdades
individuais: DECRETA: Art. 1. O atual Governo Provisório do Ceará assegura a todos
os habitantes do Estado os direitos e liberdades individuais, bem como a normalidade
da vida econômica social, para o que continuam em pleno vigor a constituição e leis
ora vigentes, em tudo quanto se referem àqueles direitos e liberdades.102

Interessante notar que Fernandes Távora incluiu a expressão “por aclamação popular”
em seus decretos. A distinção é peculiar para o membro de um grupo de novos chefes do
executivo empossados sob a influência de Juarez Távora e diretamente pelas mãos de Vargas.
Nesse caso, a autoafirmação aparece como tentativa de justificar seus atos, respaldando-os
dentro do círculo revolucionário nortista para além do fato de ter desbancado um rival militar e
do parentesco com o herói revolucionário e, de maneira mais ampla, perante a sociedade num
contexto de insegurança generalizada. Ao que parece, para imprimir tranquilidade ao clima pós-
revolução, era decisivo a definição da forma como as demais mudanças seriam recebidas.
Apesar dos esforços de esclarecimento, a situação foi evoluindo para uma atmosfera de
descontentamentos que originou até mesmo uma rede de fofocas e acusações.
O disse me disse se aprofundou, chegando às páginas dos jornais. No A Razão, 26 de
novembro de 1930, acompanha-se o ambiente de denuncismo que obrigou Fernandes Távora a
se pronunciar publicamente. Acusações escritas, umas anônimas, outras assinadas, chegavam
constantemente aos membros do governo implicando “não só em perda de tempo consumindo
na sua leitura, mas também, não raro, vexame as pessoas atingidas por tais informações muitas
vezes malévolas e tendenciosas”. Diante disso, o Interventor informou que só leria as
“representações que lhe forem dirigidas por meio de petições, com as formalidades legais; e,
sempre que for verificada a falsidade de qualquer denúncia ou representação, [...] o governo
ordenará a punição do culpado”, mediante a instauração de processo criminal. 103 Medidas como
essa promoveria a outrora inimaginável separação entre o povo e o governo revolucionário,

102
Jornal A Razão, 9 de outubro de 1930.
103
Jornal A Razão, 26 de novembro de 1930.
61

pretensamente acessível, diferente da política existente até então. As contradições da tomada


de poder tornar-se-iam cada vez mais evidentes.
No Ceará, o aprofundando às mudanças implementadas por parte do interventor federal,
tal como desejado pelo governo revolucionário, acirrou ânimos e ampliaram incertezas,
dissabores que marcam o período. Por meio do decreto n.º 193, de 29 de maio de 1931,
Fernandes Távora alterou a divisão administrativa do Estado, desagradando a muitos.
Defendendo critérios de racionalidade administrativa, o interventor radicalizou a política
centralizante do governo federal, chegando a mais intensa intromissão na esfera municipal. O
decreto estabelecia que para a constituir município a comunidade deveria ter uma população
nunca menor de quinze mil habitantes e uma renda anual não inferior a trinta mil contos de réis
entre outros fatores de valor. O cumprimento desses critérios reduziu os 85 municípios
cearenses a 51 (SOUZA, 1980, p. 12). A reorganização municipal foi imediatamente criticada,
pois a exigência de uma renda anual era considerada elevada, tendo em vista a pobreza da
região. Então, membros das comunidades atingidas passaram a solicitar a restauração de seus
municípios.
O caso de Porangaba, anexada a capital Fortaleza, é interessante por ter sido encampada
até mesmo pela impressa aliada de Fernandes Távora. Depois que moradores da localidade
organizaram manifestos e abaixo-assinado contra a medida, o jornal fortalezense A Razão
noticia a movimentação e coloca-se como favorável à causa. O “apelo justíssimo”, subscrito
por mais de 200 pessoas, tem vinculado poderoso argumento: “além de muitas outras razões,
acresce a de que o município de Porangaba nunca, nos últimos anos, ter rendido menos de oito
contos”.104 Percebe-se que a reorganização do espaço e das fronteiras do Estado estava
acompanhando as mudanças já colocadas na seara administrativa.
Aos recém-empossados administradores municipais eram cobrados o cumprimento de
suas funções com extrema observância aos ditames revolucionários. Eles deveriam dar conta
de seus atos via relatórios mensais, contendo balancetes de receita e despesas do município, e,
trimestrais contendo relatos mais completos. Dessa maneira, o presente estava sendo vigiado
de muito perto sem descuidar do passado. Os erros, sobretudo, seriam investigados e noticiados.
Seguindo a indicação do governo central, o Interventor do Ceará indicou que cada
prefeito deveria encaminhar “rigoroso balanço” comprovando os atos de seus antecessores. A
ele, no entanto, faltava “competência para isentar de responsabilidade as administrações
anteriores, cujas contas só o Interventor compete aprovar”. Incongruências seriam verificadas

104
Jornal A Razão, 27 de novembro de 1930.
62

e punidas e aos culpados caberia “indenizar o erário municipal de todos os gastos que não forem
plenamente comprovados com documentos legais” e somente o representante da Revolução no
Ceará teria prerrogativas para julgar os indícios encontrados. E ainda, “a escusa de ter agido de
acordo com a extinta câmara municipal cuja aprovação não sanará atos ilegais”. 105 O clima de
caça às maledicências da antiga República deveria desembocar na dura penalização das antigas
oligarquias, tal como sugerido pelo cronograma revolucionário.
Seguindo com suas lições, ainda na nota oficial dirigida aos prefeitos recém-nomeados,
Fernandes Távora contempla outra crítica alardeada contra a Velha República, o nepotismo. Os
prefeitos não poderiam nomear parentes seus, “consanguíneos ou afins, até o sexto grau”. Mas,
talvez, recordando que ele próprio estava ligado por laços de parentesco a um importante líder
nacional e figura central na estratégia política do novo regime e do Norte em especial, emenda
a ordem indicando ressalva: “a não ser um de confiança pessoal”.106
No que diz respeito a família Távora, até aquele momento sua trajetória foi construída
de maneira peculiar. Em conjunto, os Távora promoveram ações de caráter contestatório
partindo de suas posições no seio militar ao longo de toda a década de 1920, bem como
construíram bases políticas partidárias que, mesmo não sendo muito sólidas na capital e interior,
renderam-lhes mandatos políticos em mais de uma ocasião. Esses caminhos forjaram uma
distinção política no cenário regional e nacional ao longo do Governo Provisório, e mesmo
depois dele. Tais conquistas, percebidas de modo a focalizar as trajetórias individuais,
promovem outros entendimentos, afinal, enquanto o irmão Juarez foi, devido a suas ações
intrépidas e revolucionárias erigido personalidade nacional, o irmão Manuel teve muita
dificuldade para se manter no mais alto cargo que ocupou. Em um momento nacional delicado,
ele precisou dosar as tintas de suas decisões e manejar o peso da figura emblemática do irmão
herói.
Para seguir manobrando seu governo diante de contradições e projetos de poder,
Fernandes Távora avança dando visibilidade a seus posicionamentos. Um episódio envolvendo
o Interventor Municipal de Crateús nomeado por ele faz com que encarnasse a altivez do cargo
que ocupava. Dirigindo-se mais uma vez ao grande público, noticia o seguinte telegrama na
imprensa:

Acusando recebimento seu telegrama e mais signatários comunicando partidos


conservador crateuense havia hipotecado solidariedade política ao Interventor doutro
José Furtado, tenho declarar que desaprovei tal ato contrário princípios meu governo

105
Jornal O Povo, 21 de outubro de 1931.
106
Jornal O Povo, 21 de outubro de 1931.
63

e programa revolucionário. Interventores devem apenas administrar municípios e não


se imiscuírem política local. Fernandes Távora, Interventor.107

O discurso político dos revolucionários sempre primou pela lógica do enfrentamento


das facções oligárquicas que estiveram no poder, e Távora sustentou essa bandeira
pessoalmente diversas vezes. Assim, precisava demonstrar que não compactuava com a visível
permanência das redes que sustentavam as antigas oligarquias. Porém, desvincular-se da
estrutura oligárquica e da política não era tarefa fácil. Afinal, ele não sustentava patentes
militares, elemento vinculado à lisura tenentista não politiqueira. E mais, Manuel Fernandes
Távora possuía carreira política reconhecida. Assim, a impossibilidade de o novo regime
suprimir as estruturas que marcavam a antiga república, associada a trajetória política de
Fernandes Távora tinham potencial problemático no contexto de consolidação do projeto
revolucionário no Ceará.
Ao final do seu governo, remetendo-se as celeumas envolvendo a paisagem política do
período, Fernandes Távora justifica as críticas recebidas dos companheiros revolucionários
cearenses:

Para substituir os antigos prefeitos e outros funcionários, lancei mão dos homens mais
idôneos, nos respectivos municípios, dando naturalmente, preferência aos que comigo
haviam curtido longo ostracismo, comungando as ideias que nos levaram a revolução.
Houvesse eu agido de modo contrário, e os meus incontáveis detratores alegariam mui
coerentemente, aliás, que tudo ficara na mesma; que eu, de mãos dadas com os
decaídos, era um autêntico reacionário, digno, portanto, de desprezo e de anátemas.108

Para Távora, à revelia do apregoado pela revolução, não seria possível lançar mão de
indivíduos que fossem completamente desassociados da política. No entanto, importava elevar
os que, como ele, sempre promoveram ações de oposição àqueles que ocuparam os espaços de
poder no antigo regime. Em suas palavras, a primazia para ocupar os cargos pós-devassa
revolucionária deveria ser, portanto, de quem viveu o tempo das antigas oligarquias no
ostracismo.
Seja pela falta de quadros revolucionários, adesão à revolução por parte de oligarcas ou
por cooptação de sujeitos que de alguma forma circulavam no mundo político do regime
passado, agentes políticos conhecidos foram sendo nomeados para funções administrativas
importantes. Isso provocou hostilidade entre o Interventor e diversos setores da sociedade,

107
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
108
TÁVORA. Manuel do Nascimento Fernandes. Administração Manuel do Nascimento Fernandes Távora. Rio
de janeiro 1931. P. 29. In. SOUSA. 1980. p. 11.
64

inclusive com grupos que apoiavam o governo cotidianamente. Como disse Fernandes Távora,
a quantidade de seus detratores era incontável.
Nesse contexto, e diante da modernização conservadora que marcou o Governo
Provisório, setores populares buscaram manter içada a bandeira da moralização expressa nos
ideais revolucionários. O recado era dado cotidianamente, sem ressalvas. O texto que se seguia
a manchete “Cuidado, sr. Interventor de Iguatu!”, por exemplo, era claro: o momento até podia
não ser para ódios e vinganças, mas também não comportava facilidades e contemporizações.

Consta-nos que o Interventor de Iguatu, sr. Antônio Gonçalves de Carvalho, cidadão


deveras querido pela sociedade de sua terra, está dando, em prejuízo da sua
popularidade, braço forte a políticos que serviram ao governo, passado. É um grave
erro de que deve expungir, inicialmente, a sua administração. Ele, que mereceu, pelas
suas atitudes definidas no momento incerto da luta, o alto posto em que o colocou a
confiança do dr. Fernandes Távora, não deve criar, com atenções e complacências
exageradas, estorvos à boa marcha [...].109

A abertura dada pelo novo Interventor Municipal a políticos reconhecidamente ligados


ao governo deposto foi considerada inaceitável, pois importava prosseguir com a campanha de
moralização a fim de conduzir a construção do novo Estado. Assim, cabia ao Interventor
Federal e a sociedade observar bem de perto a construção dessas novas alianças, evitando que
juntamente a elas emergissem velhas práticas.
Ao longo do Governo Provisório, o processo de modificação da paisagem política
confundiu-se com a consolidação de nova burocracia estatal, marcando o momento político
nacional e influindo na maneira como o novo governo se firmou em cada um dos estados da
Federação. No Ceará, à medida que o Interventor exercia seu poder e implementava mudanças,
descontentamentos e contradições se avolumavam, exigindo a repactuação dos ideais
revolucionários. O modo como Fernandes Távora se posicionou dentro dessa dinâmica
implicou diretamente na viabilidade de seu governo.
No artigo “Campanha moralizadora” percebe-se como algumas das engrenagens
políticas mais antigas objetivavam prosseguir atuando na máquina pública do novo Governo.
Nele, até mesmo o jornal reconhecidamente favorável ao Interventor abandona a postura
conciliatória. Parafraseando o General Juarez, representação perfeita da estirpe Távora, o jornal
situacionista abandona as ressalvas e anuncia: a revolução tem a combater “a praga do
adesismo”. Sobre o Ceará, área de domínio do irmão Manuel Fernandes, “a coisa não foi outra”,
pois “situacionistas sistemáticos transformaram-se, num passe de magia, em revolucionários
ardentes”. E o novo governo, “que não pode fugir às contingencias humanas do erro, precisa

109
Jornal A Razão, 8 de dezembro de 1930.
65

nortear-se pela voz da imprensa desinteressada, que auxiliou a derroca das oligarquias”.110
Indicando a fragilidade da gestão Fernandes Távora, o periódico puxa para si – e para a
imprensa de modo geral - a função de fiscalização dos rumos da Revolução. Esse
posicionamento demonstra que os rumos nacionais não seriam resultado somente da ação da
classe política.
A possibilidade de agregação das chamadas elites decaídas e de toda sorte de adesistas
mencionada pelo jornal decorria do fato de haver identificação ideológica entre estes setores.
Isso soava como indício precoce das contradições presentes no projeto pretendido pela agenda
revolucionária. Oligarquias decaídas e oligarquias dissidentes não haviam sido totalmente
desalojadas dos espaços de poder do estado. Elites e suas demandas continuaram em primeiro
plano, inclusive em um momento em que a crise climatérica se desdobrava em crise social.
Estas estratégias são fundamentais para o entendimento acerca da forma como o Governo
Provisório conduziu as políticas de socorros e combate à seca no Ceará.
Na matéria “Tudo por Deus e pela Pátria”, assinada pelos editores Aragão e
Albuquerque, do jornal O Debate, de Sobral, no norte do Ceará, o bem-estar do povo deveria
ser o protagonista da História nacional. Afinal, o povo era sempre o grande mártir, pois, no
Brasil, infelizmente, “o estado de desassossego e desarmonia é o mais acentuado possível [...]
as verdes esperanças que nos alimentavam já vão, uma a uma, se dissolvendo ao sopro quente
da realidade dos fatos e das coisas”. Em meio a intrigas políticas locais, nas quais o próprio
jornal estava inserido, o programa da revolução, “traçado pelo punho impoluto do glorioso
Joaquim Távora” estaria sendo miseravelmente “degenerado pelos atuais pseudo chefes da
nação”, as “politicalhas, que sempre foram as maiores desgraças dos povos” estavam se
infiltrando no “mecanismo orgânico do Brasil novo, corrompendo-o, deturpando-o,
avassalando-o. Os apóstolos de ontem se vão pouco a pouco metamorfoseando em opressores
de hoje”.111
Ainda nessa edição do periódico sobralense, outra matéria conta sobre como antigos
opositores a Fernandes Távora passaram a lhe dedicar préstimos. Vilebaldo Aguiar é o exemplo
apontado. Histórico apoiador do Presidente do Ceará deposto, Matos Peixoto, e inimigo
declarado do jornal O Debate, Aguiar estaria novamente inserido nas redes de poder locais.
Segundo o noticioso, “depois de vencida a revolução, ‘hostes peixotistas’ teriam passado por
uma rápida metamorfose”. Prosseguindo com o tom irônico, os editores se remetem aos

110
Jornal A Razão, 17 de novembro de 1930.
111
Jornal O Debate, 5 de março de 1931.
66

momentos que antecederam a implementação da Interventoria no Ceará: logo que teve a notícia
“da fuga do seu papai, Peixoto” subiu à cabeça de Aguiar – e por extensão, das oligarquias até
então no poder – “uma onda de desespero [...] Mas havia uma tábua de salvação, uma única:
aderir ao movimento regenerador”. Entre ameaças de publicar terríveis histórias sobre o Aguiar,
os jornalistas insistem que os “elementos decaídos” estariam de volta ao poder, é que essa triste
realidade “exige às vistas das autoridades do Estado”. Passados poucos meses da Revolução, a
capacidade do Interventor de desarraigar a politicagem fazendo valer os interesses do povo é
novamente questionada.112
Ainda ao norte do Estado, observa-se que a gestão revolucionária não estaria
funcionando a contento em muitos níveis. Como no episódio em que funcionários da Estrada
de Ferro de Sobral se dirigiram até o prédio do jornal O Debate para denunciar que a confiança
pública estava sendo quebrada. Dando conta de perseguição sofrida, os ferroviários expuseram
a conduta de Luciano Veras, novo chefe da Rede de Viação Cearense. Diante disso, o jornal
discute a implementação do novo governo: “no regime revolucionário, da lei, do direito [...]
não há lugar para os perversos e os perseguidores”. O novo governo deveria se ocupar das
“mazelas do povo”. 113
A seca será o elemento crucial para que críticas ainda mais ácidas ao governo do
Interventor Fernandes Távora começassem a pulular, até mesmo nos periódicos que há tempos
se dedicavam a apoiar o projeto revolucionário. No jornal A Razão, de 12 de novembro de
1930, o papel da imprensa enquanto fiscalizador das ações do governo é novamente esclarecido.
Com a matéria “Piedade para os famintos” o jornal expõe uma carta anônima descrita como de
“colaboração ao jornal”.
Na missiva, o redator do jornal é convidado pelo interlocutor inominado a refletir sobre
as dificuldades decorrentes da seca, mas também a se posicionar de maneira incisiva, pelo bem
dos mais atingidos pela crise.

Sr. Redator, A Razão, como está traçado no seu programa, é um órgão, um paladino
defensor da causa do povo. Eis o motivo, Sr. Redator, de mim, pobre diabo que sofre,
amargamente, nas aduncas e poderosas garras da miséria, - vir, humildemente, pedir-
lhe um favor, além do mais que já me tem prestado, por meio do seu jornal. Sr.
Redator, dê guarita a estas linhas traçadas por uma pessoa velha e enferrujada. 114

A dureza das linhas era direcionada à pessoa do Interventor Fernandes Távora. Este,
mesmo sendo parte da “gloriosa e bendita estirpe dos Távora” não tem seu nome laureado como

112
Jornal O Debate, 5 de março de 1931.
113
Ibid., 1931.
114
Jornal A Razão, 12 de novembro de 1930.
67

o do irmão. Juarez sim é delineado como aquele que terá o nome escrito, “com letras d’ouro,
nas páginas da nossa história”, que figuraria ao lado do mártir João Pessoa Cavalcanti de
Albuquerque, “o grande e renomado estadista que se sacrificou”. As lendas Juarez Távora e
João Pessoa teriam forjado um caminho esplêndido para o país, longe daquele “Brasil dos
Washingtons [...] Lamartines, Zé Peixotos”. Quase que em contraposição ao governo de
Fernandes Távora e do não citado Getúlio Vargas, a pátria de Juarez Távora e de João Pessoa
era descrita como o lugar onde seriam exaltados os “pobres e dos oprimidos que viviam sob o
jugo esmagador de um regime de politicalha sórdida!”.115
No texto, Manuel Fernandes Távora deveria fazer o melhor dos governos, pois Juarez
Távora, “o terror dos ladrões, tratou da semente e a semente germinou, nasceu e cresceu, e
faltando-nos, tão somente, colhermos os saborosos frutos de um regime de liberdade e justiça,
direito e fraternidade". Cabia ao Interventor, finalmente, abandonar a retórica de combatente da
revolução e tratar da crise social que se aprofundava. Diz a carta:

Exmo. sr. Presidente: talvez já vos tenhais desocupado um pouquinho. A revolução


triunfou, como o havia de ser, custasse o que custasse. Dos campos de luta voltam,
trôpegos e cansados, os briosos soldados [...] cessaram as hostilidades. O alvíssimo
manto da paz e da vitória descansa, docemente sobre a nação. Não poderei, vós,
lançardes uma olhada de compaixão para os pobres miseráveis que se encontram a
enfrentar esses terríveis fantasmas do desemprego, fome e miséria? [...] é possível que
60% da população do Ceará esteja sofrendo grande necessidade? Oh! Sim! Em cada
semblante esboça-se um doloroso sorriso de amargura; em cada corpo uma
assemelhada caveira se deixa ver. Fantasmas tristes, dignos de comiseração
atravessam as praças e as ruas das cidades; as estradas poeirentas do sertão adusto e
as pastagens secas das capoeiras queimadas pela canícula abrasadora de uma seca de
77!116

Para denunciar a possibilidade de aprofundamento da crise decorrente da seca, o texto


publicado no jornal faz importante referência a um dos mais impactantes momentos de crise
social ocorridas no Ceará: a seca de 1877. A carga dramática acessada no momento de
explanação sobre o aprofundamento da seca no estado está expressa na escolha do evento
rememorado pelo autor da carta, bem como segue presente até mesmo na assinatura que consta
ao final do texto assinado por “Um faminto”. O autor imprime contornos específicos ao tema
quando seleciona cuidadosamente uma série de referências e as expõe num panorama que
aponta para a catástrofe. Nele, não há sequer uma ação do novo governo em prol do problema
da seca evidenciada. A paralisia diante do histórico problema não combinava com o desejo de
mudança e modernização projetado pelos novos governantes.

115
Jornal A Razão, 12 de novembro de 1930.
116
Ibid., 1930.
68

Enquanto transcorria o movimento revolucionário, o prolongamento da estiagem na


zona jaguaribana, alardeada ainda sob o governo Matos Peixoto, desestabilizava os arranjos
paternalistas que estruturavam as relações sociais daquele território. A calamidade,
anteriormente tratada com desconfiança nos jornais e nos meios políticos locais e nacionais, foi
parcamente rebatida pelo novo regime. A situação é atualizada no texto intitulado “Fome na
zona jaguaribana”:

Aqueles infelizes conterrâneos estão debatendo-se em uma crise de verdadeira


calamidade [...] há muito que se alimentam exclusivamente de macambira, trazida do
Planalto da serra do Apody, que dista, para muitos, de duas a três léguas, e em cuja
trajetória sofrem terríveis crises, próprias de um estado de completo enfraquecimento
orgânico.117

Restou aos mais carentes arcar com os desdobramentos mais nefastos da realidade.
Desconsiderando possíveis mudanças no aparato estatal decorrentes da Revolução de 1930, o
argumento da nota reivindica medidas de maneira genéricas, e desconfiando da inexistência de
um plano de combate à seca, diz: “Se, da parte dos poderes públicos, não houver qualquer
medida tendente a minorar tão aflitiva atuação, o colono jaguaribano irá pouco a pouco
morrendo de inanição”. Conhecedores do histórico de incipiente retorno ao teor urgente da
demanda, finalizam anunciando a certeza do desfecho trágico, o sertanejo morreria “talvez nas
proximidades do inverno”.
A maneira como os pedidos são elaborados indica que, diante da recorrência da
calamidade, sociedade e representantes políticos já dispõem de um vasto arsenal de exemplos
nefastos, bem como de uma lista de demandas não atendidas. Assim, os relatos das tragédias e
as exigências para contê-las estavam presentes na memória nacional, prontamente organizadas
para a mobilização em mais um momento crítico. Restava saber se o novo governo estaria apto
a responder a crise de uma maneira nova e mais efetiva. Até aquele momento, no entanto, as
habilidades do Interventor e da Interventoria haviam sido questionadas várias vezes. A fé nas
respostas à seca era pouca. Afinal, como em 1877, horrores já aconteceram sem jamais encerrar
a questão. Os socorros sempre chegavam tarde demais.
Seguindo com a estratégia de publicar as correspondências que davam conta de temas
importantes, o Interventor do Ceará anuncia no jornal A Razão, de 1º de dezembro de 1930, sua
ação diante da calamidade. Dirigindo-se ao Ministro da Viação e Obras Públicas, diz: “peço
permissão relembrar vossa excelência extrema urgência a socorro flagelados então morrendo

117
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
69

de fome na zona Jaguaribe. Atenciosas saudações”. 118 Preferindo arriscar demonstração de


pouca fluência política, o Interventor expõe que aquele não era o primeiro pedido de auxílio
encaminhado ao governo federal, ele estava “relembrando” a urgência da causa. Ao que parece,
valia muito mais esclarecer ao público que, apesar da mudança de regime político, o caminho
continuava sendo o mesmo: lembrar ao governo federal a triste sina sertaneja.
Como visto anteriormente, a falta de coordenação entre os agentes políticos fazia a
questão da seca ser discutida, muitas vezes, de maneira enviesada. Agora, ao contrário dos
episódios ocorridos ainda no governo Matos Peixoto, não havia mais poder legislativo e, por
consequência, findara o intermédio dos representantes cearenses que, sempre envolvidos em
seus próprios interesses e disputas, por vezes atrapalhavam. No entanto, apesar de mais curto,
o caminho para resolução da demanda ainda parecia tortuoso.
Com a crescente centralização do poder nas mãos do executivo federal, a
responsabilidade sobre a questão da seca, recai nos termos da relação Interventoria-Ministérios-
Presidente. Ao chefe local restava sensibilizar a sociedade, uma vez que juntos poderiam instar
o Ministério de Obras Públicas e Viação, mas, principalmente, o Presidente Getúlio Vargas,
que detinha a palavra final sobre todas as questões nacionais.
Com o desenrolar da crise, as relações entre Interventoria e Ministério da Viação se
estreitam. Afinal, a proposta revolucionária era refundar o Estado brasileiro, ampliando a
centralização do poder federal e diminuindo a antiga lógica oligárquica e clientelista do
passado, inclusive no que se refere a seca. A velocidade dessa modernização e as relações entre
os níveis de governo quando a crise se assevera, no entanto, deixariam em má situação os
brasileiros que apoiaram o projeto revolucionário, como abordará o capítulo seguinte.
Ainda jogando com a publicação dos telegramas, a Interventoria anuncia logo que
recebe resposta do Ministro da Viação e Obras Públicas: “Comunico vou propor nomeação
interina de Dr. Almeida até solução definitiva. Vencidas primeiras dificuldades, penso remeter
até amanhã numerário. Conto instalar dentro em breve, em Fortaleza, a sede da Inspetoria e do
distrito. Américo Ministro Viação”.119 O Ministro José Américo de Almeida - paraibano,
político de relevo nacional, um dos mais proeminentes nomes do Governo Provisório - esclarece
que o momento ainda é de organização da pasta. Ainda assim, entre nomeações interinas e
“primeiras dificuldades” havia a tentativa de implementar um plano maior, mais duradouro, que
envolveria, inclusive, a transferência da sede da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas

118
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
119
Jornal A Razão, 6 de dezembro de 1930.
70

para a capital do Ceará. Mas, o momento já era nacionalmente reconhecido como temerário e,
mais uma vez, a pressão da calamidade dita o ritmo e o teor dos arranjos.
Diante da persistência da estiagem, uma gama de reivindicações e denúncias passa a ser
evidenciada. Jornal O Debate, edição de 26 de fevereiro de 1931, traz a matéria “O fantasma
negro da fome invade, sinistramente, os lares dos sentenciados. Socorro “Seu” Távora!”. O
longo título parecia se remeter aos episódios mais alarmantes das secas anteriores, quando
cortejos de famintos adentraram cidade, estabelecendo-se nas praças, próximos aos lares das
famílias mais proeminentes do estado. O teor principal da matéria, no entanto, era a paralização
dos serviços agrícolas da Colônia Correcional, na Fazenda Três Lagos. Segundo o texto, o
fechamento do equipamento era culpa da condução pouco efetiva que o Interventor estava
executando. O fechamento do equipamento era resultado da conjuntura de descontrole sobre a
calamidade, prestes a se tornar generalizada.

O povo tem fome de pão e de justiça. Quando a justiça falta, o povo chora angustiado
e espera. Mas quando a fome bate à choupana do pobre e a mesa pequena do
remediado, o estomago da criatura não pode esperar! [...] guarde estas palavras na
memória, Dr. Távora: seja humanitário, ou humano, socorra a estes desgraçados. Eles
não exigem a sua esmola. A esmola é humilhante. Eles querem trabalho. Tenha
compaixão, pelo amor de Deus!120

O impacto da falta de chuvas sob a já fragilizada rede de segurança que envolvia os mais
pobres era mote para as mais diversas demandas aos poderes públicos. Durante esses períodos,
as muitas fragilidades ficavam à mostra, trazendo à tona os cortes de verba, os duros impostos,
a delicada economia, as técnicas incipientes, os equipamentos públicos defasados, os projetos
de modernização engavetados (estradas, porto, obras públicas em geral); enfim, aqueles
momentos de estiagem faziam com que a sociedade cearense olhasse para si e deixasse ver nas
páginas dos jornais nacionais suas dificuldades. A seca, entendida aqui como crise social,
provocava debates de toda ordem.
Falando “em nome dos flagelados cearenses”, em telegrama enviado ao Gabinete da
Presidência do Governo Provisório, em 1931, Fernandes Távora agradece o crédito
extraordinário aberto em benefício dos atingidos pela seca.121 O Interventor descreve a resposta
governamental como um “gesto de altruísmo”. 122 A solução, no entanto, é de contingência, ou
seja, bem distante de ser o pontapé inicial para uma política pública que permitisse encerrar
definitivamente as amarguras do estado do Ceará.

120
Jornal O Debate, 26 de fevereiro de 1931.
121
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Telegrama Interventor do Ceará Manuel Fernandes
Távora. Protocolo de recebimento de 2 de agosto de 1931.
122
Ibid., 1931.
71

Ao longo do governo do primeiro Interventor Federal do Ceará, expectativas e ideias


disseminadas pelos revolucionários não haviam sido correspondidas. Fernandes Távora recebeu
duras críticas ao ceder espaço para antigos políticos cearenses num contexto de pretensa
renovação. Além disso, colecionou desafetos ao modificar a lógica burocrática da máquina
pública e efetivar a reorganização administrativa do Estado à revelia de interesses locais. No
que diz respeito a questão da seca e seus desdobramentos, o Interventor não combateu o flagelo,
recorrendo ao governo federal sem alcançar medidas definitivas. Nesse contexto, o apoio e o
parentesco com o ilustre Juarez Távora não impediram que a Interventoria de Fernandes Távora
definhasse. Tudo isto ocorreu diante das tentativas de consolidação do Norte, enquanto grupo
político de relevo no panorama nacional. Para completar o difícil cenário do início do Governo
Provisório no Ceará, Fernandes Távora envolveu-se numa disputa com a guarnição do Exército
sediada em Fortaleza.
Segundo Juarez Távora, em seu livro Uma vida e muitas lutas, a divergência entre a
corrente tenentista e Fernandes Távora remontava a movimentação revolucionária que
culminou na posse deste.123 O fato de o Major João Silva Leal, do Colégio Militar de Fortaleza,
ter sido preterido diante da manobra de Fernandes Távora no calor da vitória revolucionária,
não havia sido superado. Para deliberar sobre o embate, uma Comissão especial foi formada
em setembro de 1931. Nela, Osvaldo Aranha, ministro da Justiça, o general Pedro Aurélio de
Góis Monteiro e Pedro Ernesto Batista, Interventor no Distrito Federal, isentaram Fernandes
Távora, mas a celeuma não findou rapidamente.124
Em carta escrita à mão, endereçada ao Presidente Getúlio Vargas, Fernandes Távora
revela a pressão sofrida por ele para que abandonasse a Interventoria do Ceará, ao mesmo tempo
em que indica as tentativas do governo federal de mantê-lo no cargo.

Havendo, há dias, deposto em mão de v. exa. O cargo de Interventor Federal, no


Ceará, venho, por meio desta reiterar aquele pedido, pois, a demora da minha
substituição está ocasionando prejuízos aos interesses do estado. Julgo desnecessário
revelar, aqui, os motivos da minha renúncia, bastando relembrar que esta obedeceu,
principalmente, ao desejo de poupar a v.exa. mais algum aborrecimento, depois de
tantas que já lhe amargam estes poucos meses de governo. Cumpre, entretanto,
reafirmar, nestas linhas, a sinceridade com que sempre agi na minha administração,
colimando o bem da minha terra e a gratidão por todas as considerações e gentilezas
com que houve por bem enviar-me v. exa. 125

123
TÁVORA, Juarez. Uma vida e muitas lutas; memórias. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1973-76. 3 v.
124
PECHMAN, Robert. Da Revolução de 1930 ao Estado Novo. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/manuel-do-nascimento-fernandes-tavora.
Acesso em: 17 mar. 2018.
125
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Carta escrita por Fernandes Távora. Rio de Janeiro,
19.8.1931.
72

Diante da crise política, Fernandes Távora viaja ao Rio de Janeiro na tentativa de


costurar uma saída digna para seu governo. De lá, em 18 de agosto de 1931, escreve a missiva
indicando a resolução de declinar ao posto que lhe foi confiado. Percebe-se que Vargas resistiu
em aceitar a exoneração solicitada por Fernandes Távora, mas o teor da carta em evidência
parece revelar um Fernandes Távora já vencido pelas circunstâncias. Restou a ele um último
pedido, uma tentativa de proteger o capital político que lhe restara: “ouso solicitar a bondosa
atenção de v. exa. para a sorte de uns velhos e devotados correligionários que comigo
partilharam, minha luta sem tréguas a dureza das injustiças e dos sacrifícios, já que outra causa
lhes não posso legar, na hora do ostracismo”. 126 Por fim, abandonando de vez a expressão “por
aclamação popular”, assina como “Patrício e correligionário”, empenhando ainda apoio ao
governo e ao país. A função de Interventor Federal parecia definitivamente ter ficado para
trás.127
Depois dos reiterados pedidos de exoneração e contando com o aval da Comissão
especial formada para julgar a difícil situação política no Ceará, Vargas envia correspondência
para Fernandes Távora aceitando a renúncia.

[...] sou obrigado, em virtude dos motivos superiores que a ditaram, a aceitar a vossa
renúncia do cargo de Interventor Federal do Ceará. Lamentando o vosso afastamento
do governo daquele estado, no exercício do qual demonstrantes tanto interesse e
dedicação para cabalmente desempenha-lo, cumpro o grato dever de agradecer-vos os
inestimáveis serviços prestados, com inexcedível zelo e patriotismo, durante a vossa
permanência naquela alta função. Aproveito o ensejo para reiterar-vos os meus
préstimos de sincera estima e constante apreço.128

A delicadeza da situação deve ser posicionada dentro do processo de consolidação do


Norte enquanto núcleo político. Afinal, a região geopolítica era sustentada por uma dinâmica
que, em alguma medida, transcendia ao poder de Vargas, ao tempo em que impactava
diretamente no andamento do projeto revolucionário. O grupo estava se constituindo como um
importante foco de apoio ao Governo Provisório. Qualquer mal-estar naquela região poderia
deixar transparecer ruídos na gestão do Governo, bem como arranharia a imagem de um de seus
mais valorosos símbolos, o General Juarez Távora.
A situação do Estado – e da família – de Juarez Távora inspirava cuidados. Enquanto
representante maior dos interesses do Norte junto ao Governo, Juarez precisava assumir
também a função de elemento agregador do grupo sob sua liderança, e isso implicava na

126
Ibid., 1931.
127
Ibid., 1931.
128
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Carta escrita por Fernandes Távora. Rio de Janeiro,
19.8.1931.
73

responsabilidade de superar os interesses mais pessoais. Assim, diante da pressão exercida pelos
membros do exército cearense, o já bastante criticado governo de Fernandes Távora não pôde
contar com a influência de seu mais valoroso defensor e findou oito meses depois de seu início.
Sai o civil Fernandes Távora, entra o militar Carneiro de Mendonça que irá encarar a difícil
missão de acalmar os ânimos e atravessar o agravamento da seca no Estado.
74

CAPÍTULO 2 - ENTRE NOVOS ARRANJOS E VELHAS RESPOSTAS

2.1 “Temos novo Interventor!”: A Interventoria de Carneiro de Mendonça

Quando foi indicado ao posto de Interventor do Ceará, Roberto Carneiro de Mendonça


possuía um histórico de comprometimento com a causa tenentista e bom trânsito na recente
estrutura burocrática do Governo Provisório. Antes disso, participou da Revolta de 5 de julho
de 1922, movimento que deu início a série de revoltas tenentistas que marcaram a década de
1920. Contida a convulsão, Carneiro de Mendonça foi preso e desterrado para a ilha de
Fernando de Noronha, de onde só saiu depois de quatro anos para ser mais uma vez forçado ao
expatrio, dessa vez, na ilha da Trindade, no litoral do Espírito Santo. Em 1928, sua sentença
final marcou a crueza da pena a ele infligida anteriormente, o juiz proferiu sentença de reclusão
de apenas um ano e poucos meses, pena inferior ao tempo do desterro. Somente com o sucesso
da Revolução de 1930 e a anistia decretada por Vargas, Mendonça foi novamente incorporado
às fileiras do Exército, foi promovido a Capitão em novembro do mesmo ano. Depois, agrupou-
se definitivamente aos ideais professados pelas correntes tenentistas favoráveis ao
aprofundamento das reformas instituídas pela revolução, filiando-se ao Clube 3 de Outubro.
Assim, esteve apto a servir o novo governo e, ainda em 1931, assumiu o posto de oficial de
gabinete do ministro da Guerra, depois, a Interventoria Federal do Ceará.129
Em sua atuação como Interventor do Estado do Ceará, Carneiro de Mendonça procurou
honrar sua boa fama de isento e técnico perfil projetado para os interventores saídos das fileiras
militares, sobretudo no que concerne a lida com as forças políticas locais. No jogo que precedeu
o repactuamento das atuações dentro da paisagem política pós-1930, os grupos locais se
dividiram, fazendo com que Mendonça oscilasse entre os ideais do Clube 3 de Outubro e a

129
Roberto Carlos Vasco Carneiro de Mendonça nasceu no Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1894. Concluiu
o curso primário no Rio de Janeiro, cursou depois a Escola Militar do Realengo. Tornou-se aspirante em abril e
segundo-tenente em dezembro de 1918, passando então a integrar a Comissão de Limites Brasil-Peru até 1920.
Após deixar a interventoria do Ceará, em 28 de agosto de 1934, foi promovido a major e serviu como oficial de
gabinete do ministro da Guerra. Foi enviado por Vargas para resolver crises políticas no Pará e no Maranhão,
nos dois momentos, assumiu brevemente a interventoria dos dois estados. Reformado no posto de major em
março de 1937, assumiu a direção da Carteira de Redescontos do Banco do Brasil, da qual se exonerou em 1944.
Com a deposição de Vargas (29/10/1945) e a posse em seu lugar do presidente do Supremo Tribunal Federal,
José Linhares, Carneiro de Mendonça foi nomeado ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Durante sua
gestão, tomou várias iniciativas no sentido de transformar as leis trabalhistas. No mesmo ano, Carneiro de
Mendonça apoiou o candidato da União Democrática Nacional (UDN) à presidência da República, brigadeiro
Eduardo Gomes, associando-se assim a antigetulistas de todos os matizes. Entretanto, o brigadeiro Eduardo
Gomes foi derrotado pelo marechal Eurico Dutra e, com a posse deste (31/1/1946), Carneiro de Mendonça deixou
o ministério. Faleceu no Rio de Janeiro em 12 de abril de 1946. Adaptado de LEMOS, Renato. Carneiro de
Mendonça. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
75

aproximação com a Liga Eleitoral Católica do Ceará (LEC). Havia um bloco concentrando
oligarquias tradicionais em torno da LEC, segmento que logo se converteu em partido político,
outro grupo formado pelos antigos oligarcas ligados a família Acióli, cabeças do antigo Partido
Republicano Conservador, naquele momento organizado sob a nomenclatura Partido
Republicano Nacionalista do Ceará. E, por fim, existia ainda os representantes locais do Clube
3 de Outubro, organização tenentista, reunidos no recém-fundado Partido Social Democrático
(PSD) no Ceará, grupo encabeçado pelo ex-Interventor Fernandes Távora, o major João Silva
Leal e o influente jornalista Demócrito Rocha entre outros.130
Depois que o tribunal especial presidido pelo Ministro da Justiça Osvaldo Aranha
inocentou Fernandes Távora, mas indicou sua substituição, Mendonça foi designado para chefia
do Estado do Ceará. Os jornais do período que há tempos davam conta do descrédito de
Fernandes Távora mostraram-se receptivos aos novos caminhos da Revolução no Ceará.
“Temos novo Interventor!”, bradava o jornal A Razão, antigo apoiador de Fernandes
Távora. O complemento da manchete era ainda mais ardiloso: “Que não incida nos erros do sr.
Fernandes Távora!”.

Estamos com um novo interventor. Foi nomeado para substituir o sr. Fernandes
Távora, conforme fora previsto pelas “démarches” que acompanhamos, tão de perto,
destas colunas, o capitão do exército Roberto Carneiro de Mendonça, oficial dos mais
brilhantes, ligado ao Ceará por grandes laços afetivos. 131

Mendonça havia passado pelo Ceará anos antes, onde conheceu sua esposa. Nas terras
alencarinas deixou alguns amigos como o monsenhor Salazar da Cunha que, em entrevista ao
jornal A Razão, elogiou a escolha do novo Interventor, descrito como possuidor das mais nobres
qualidades cívicas e morais. E mais, na tentativa de dirimir as desconfianças quanto a origem
do militar, o religioso recomendou que, mesmo não sendo “filho do Ceará, foi casado aqui com
uma cearense a quem amou mais do que a si próprio, já estando assim ligado à nossa terra pelos
laços do coração”. Assim, aconselhou: “o povo cearense deve recebê-lo de braços abertos”. 132
Desse modo, repleto de boas referências e, sobretudo por ser identificado como um novo ponto

130
Ao longo de sua gestão, diferente de Fernandes Távora, Carneiro de Mendonça conciliou-se com as oligarquias
mais tradicionais, aliou-se a Igreja, segmento atuante no processo político-partidário no período pós-
revolucionário através das ações da Liga Eleitoral Católica (LEC). Mais tarde, a LEC vai compor o grupo bem-
sucedido nas eleições realizadas no Ceará, corroborando a reanimação do organismo oligárquico tradicional.
Abordaremos esse ponto com mais profundidade no quarto capítulo da tese que tratará das movimentações em
torno da Constituinte, em 1934. Ver: LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
131
Jornal A Razão, 24 de agosto de 1931.
132
Jornal A Razão, 16 de setembro de 1931.
76

de partida para a retomada do projeto revolucionário no Ceará, Mendonça angariou importante


apoio dentro de setores conservadores da sociedade, incluindo as fileiras da Igreja Católica.
Durante os primeiros meses sua conduta foi frequentemente comparada às
desventuradas ações de Fernandes Távora. Pelos argumentos proferidos pela imprensa, o fato
de ser militar contou como um importante elemento de distinção. Fazer parte das Forças
Armadas, no imaginário brasileiro, sobretudo naquele momento pós-revolução, representava a
garantia de uma posição ilibada, diametralmente oposta à politicagem abominada. Sua presença
no comando do Estado surgiu, assim, como via para a definitiva integração do Ceará ao projeto
revolucionário e ajustamento do Bloco do Norte no cenário político brasileiro.
O primeiro momento de implementação do novo governo no Ceará foi bastante
conturbado.

Vamos a caminho de integração mais perfeita nos moldes revolucionários. Assim é


de esperar. Porque, tal qual ia decorrendo a administração pública, com o regime da
camaradagem política do sr. Fernandes Távora, que se mostrou débil para conter as
ambições dos seus antigos partidistas, tudo poderíamos ser, menos a representação
legítima do esforço que visava regenera o país dos velhos moldes carunchosos,
prejudiciais ao progredimento coletivo. 133

Os desarranjos políticos decorrentes do governo Fernandes Távora assumiram


proporções perigosas na medida em que começaram a impactar no enquadramento do Ceará aos
moldes revolucionários e relacionados ao Bloco do Norte. Mesmo assim, sob o risco de
vertiginoso declínio do governo Fernandes Távora implicar no futuro político de sua família, e
arranhar o importante papel que Juarez Távora vinha desenvolvendo enquanto responsável por
gerir a Delegacia Militar do Norte, mantiveram-se as posturas contrárias a Fernandes. Na visão
do jornal, proteger e, sobretudo fazer avançar o projeto revolucionário, valia mais.

Daí a razão pela qual o sr. Fernandes Távora viu-se desajudado da solidariedade geral.
E o movimento contra as forças tentaculares da politiquice, que se infiltrava
sorrateiramente nas artérias do estado, de tal sorte tomou corpo que a permanência do
ex-interventor constituiria verdadeira imposição contra as aspirações renovadoras que
a mocidade, civil e militar, pleiteavam com nobre espírito cívico. A revolução não se
fez com o fito de substituir apenas os homens que detinham ao poder. Para isso, o
esforço dispendido, com sacrifício de vidas preciosas, redundaria inútil [...] esperava-
se que [Fernandes Távora], com o penhor de um passado de lutas republicanas,
enveredasse à trilha larga das reformas, não olhando gregos nem troiano,
compenetrado unicamente das altas responsabilidades que o movimento triunfante
depusera às suas mãos. Infelizmente, porém, não correspondeu o mesmo à justa
expectativa. E, por isso, aí já tem substituto. É de esperar que o capitão Roberto
Carneiro de Mendonça se distancie do rumo ingrato que perdeu o sr. Fernandes Távora
[...].134

133
Jornal A Razão, 24 de agosto 1931.
134
Ibid., 1931.
77

Como argumenta Dulce Pandolfi, “o projeto político de união do Norte, presente em


todo o período de Governo Provisório (1930-1934), sofreria contínuos rearranjos, conforme o
movimento da conjuntura” (1980: 343), acentuando o caráter conturbado daquele momento.
Descontentamentos locais, mas também os ajustamentos do grupo nortista fizeram a crise do
governo Fernandes Távora culminar com a saída do Interventor civil. Isso reforça que mesmo
diante da relevância de Juarez, o grupo geopolítico do Norte possuía pautas e demandas que
iam além da figura de seu líder ou das necessidades individuais de cada um dos estados que se
achavam coadunados em torno do bloco. Importava muito mais manter o Norte como jogador
de relevância nacional. Essa constatação é fundamental para compreensão de algumas decisões
tomadas por Carneiro de Mendonça ao longo de seu governo como, por exemplo, o envio dos
batalhões ao conflito Constitucionalista Paulista, em 1932, e sua postura diante do processo de
constitucionalização do país, em 1934.
Os arranjos para a posse do novo Interventor foram largamente noticiados pela imprensa
do Rio de Janeiro e do Ceará. Ainda no Rio de Janeiro, Carneiro de Mendonça foi recebido no
Palácio do Catete pelo Presidente Getúlio Vargas que se propôs a realizar um “grande almoço”
para Mendonça, que lhe seria oferecido no Beira Mar Cassino.135 Enquanto isso no Ceará, a
amplitude da participação nos preparativos para recepção de Mendonça certificavam o desejo
de diversos segmentos sociais em alinhar-se com o futuro governo. Em uma das muitas reuniões
noticiadas na imprensa cearense, o Major João Marinho, professor do Colégio Militar, aparece
como o presidente da comissão responsável por recepcionar o novo Interventor. O grupo estava
dividido em subcomissões organizadas de acordo com o engajamento social de seus partícipes:
subcomissão de imprensa, de comércio, de classes e de municípios. Além disso, outras
sociedades de classe externalizaram a adesão aos preparativos de boas-vindas, e com isso a
adesão ao novo governo, como a Phenix Caixeiral, Liga Deus e Mar, entre outras.136
Mendonça assumiu o cargo de Interventor Federal, para o qual foi nomeado pelo
Governo Provisório, em 21 de agosto de 1931, em um momento de reconfiguração dessa esfera
administrativa em nível nacional. A exemplo disso, ainda em 1931, o Governo Provisório
publicou o novo Código dos Interventores. O texto foi recebido pela imprensa cearense como
necessário, sobretudo “diante da desorientação reinante nos quesitos administrativos e sobre o
que deveria ser de competência federal ou estadual”, comentário que se adequa a opinião geral
sobre o saldo negativo da primeira Interventoria no Ceará. Sem o código, teriam sido “grandes

135
Jornal A Razão, 30 de agosto de 1931.
136
Jornal A Razão, 2 de setembro de 1931.
78

e lamentáveis os erros”. O Código dos Interventores estava sendo amplamente discutido pela
imprensa nacional. No jornal carioca O Globo, a impressão era de que os líderes revolucionários
apoiaram o novo texto e realçaram o primor da obra escrita pelo ministro Oswaldo Aranha. 137
As mudanças demonstraram que a marcha para a adequação do projeto revolucionário
não era inabalável, pelo contrário. Algumas notícias indicaram, inclusive, que a situação
política da Delegacia do Norte, comandada por Juarez Távora, preocupava Vargas, que estaria
pessoalmente envolvido na substituição dos interventores da Paraíba e Alagoas. Vargas também
se mantinha vigilante à turbulência política em Minas Gerais e São Paulo.138
Com a chegada de Mendonça, pulularam tentativas de reorganização do cenário político
do estado do Ceará. Associado à manutenção da campanha desabonadora contra Fernandes
Távora, setores da imprensa e da classe política tentaram promover o desmonte da rede criada
pelo primeiro Interventor cearense. Em Aracati, por exemplo, no litoral do Ceará, a Associação
dos Empregados do Comércio, aproveitando os novos ventos trazidos com a nomeação de
Mendonça, solicitaram mais atenção. Apoiados pelo jornal da cidade, os associados informaram
que, apesar das boas condições econômicas, a cidade padecia de pouca infraestrutura. Segundo
a nota, ao tempo em que Aracati permanece no injustificável apagamento político, outras
cidades com rendimentos inferiores realizam benefícios urbanos. A cidade de Cascavel,
localizada nas proximidades, “está reformando a estrada de rodagem, reconstruindo o mercado
e construindo um jardim moderno”.139 O problema estaria relacionado à gestão municipal
nomeada por Fernandes Távora.

[...] precisamos para o município de um legítimo administrador revolucionário, sem


ligações diretas ou indiretas com os elementos decaídos, que ainda não temos. [...] o
fato de estar o governo do estado entregue ao ilustre dr. Fernandes Távora deu ensejo
ao partido conservador, agora transformado em tavorista considera-se “de cima” como
evidentemente está; de sorte que a facção democrata, vendo-se sem prestigio, tornou-
se acéfala. 140

Esperava-se que o Capitão Carneiro de Mendonça, seguindo o programa revolucionário,


alijasse de vez os conservadores da posição que não mais lhes cabia, mas que também não desse
guarita aos democratas, “que também são falhos de credenciais para o poder”. A solução,
segundo a Associação, era chamar a direção de Aracati os “elementos independentes, que são
os legítimos intérpretes do pensamento popular”.141 Quem sabe, os egressos das mesmas fileiras

137
Ibid., 1931.
138
Jornal A Razão, 3 de setembro de 1931.
139
Jornal A Razão, 11 de setembro de 1931.
140
Ibid., 1931.
141
Jornal A Razão, 11 de setembro de 1931.
79

comerciais que alardeavam a acusação, fossem merecedores dos cargos, afinal, diante de tantas
denúncias poucos sobraram para a função.
Outros pedidos da mesma natureza passaram ao público, como o de um grupo
proveniente da comunidade de Massapê, que também solicitou a troca de prefeito. Alegando
fazer parte de um grupo específico, o de aliancistas históricos, foram à impressa protestar contra
a permanência na prefeitura do cidadão Francisco Cavalcante Rocha. Segundo os subscritos no
abaixo-assinado, Rocha jamais teve apoio local, pois havia sido nomeado “sem consultar
interesses do município”, constituindo-se assim, “de um parasita” que não produziu
melhoramentos, “ocupando-se de baixa politicagem com elementos decaídos, adotando em sua
gestão hábitos do processo velho regime [...] mantendo-se no cargo amparado apoio oficial”.142
Em comum aos argumentos apresentados estava a constatação de que o período de más
desígnios executados ao longo do governo Fernandes Távora poderia significar apenas uma
crise momentânea, desde que as respostas aos problemas fossem oferecidas rapidamente pelo
novo Interventor. Era preciso um ritmo novo, acelerado e mais digno, “o sr. Capitão Carneiro
de Mendonça - síntese da aspiração do povo cearense – deve ir ao sertão ver de perto, auscultar
o organismo sertanejo” e prescrever “a receita salvadora”.143

“O interior carece do olhar da revolução”


Observe de visu, sr. Interventor; o decesso político que os maus governos ali
implantaram. Anuncia-se como certa a viagem do sr. Interventor federal ao interior
do estado. A ser verdadeira a notícia muito terá que observar o sr. Capitão carneiro de
Mendonça. A vida dos nossos sertões oferece sob os seus múltiplos aspectos, os
flagrantes mais originais de modorra política, entravamento econômico e
desorganização social [...] Duas famílias, uma de cada facção eram, em via de regra,
que gozavam as delícias das posições cômodas e rendosas. [...] O partido que estava
de cima tinha ingerência na administração, e, governando sozinho, vedava ingresso
ou colaboração de qualquer ouro na coisa pública. Monopólios vergonhosos,
concessões extravagantes e desonestas, cumulavam de envolta com a absoluta inercia
das questões econômicas. [...] e assim, economicamente, o sertão era um
descalabro.144

Os quarenta anos de vida republicana foram descritos no texto como de um “feudalismo


sui generis”, em que reinava mandonismo, procrastinação de direitos, negação de justiça,
covardia da força massacrando os humildes. Essas eram as bases das críticas, quase cotidianas,
à classe política local disposta em um sistema arraigado, e não completamente destituído pelo
novo governo. O argumento remonta aos precedentes de confrontação entre tenentismo e
oligarquias, que perduraram durante o Governo Provisório. Assim, o sertão do ponto de vista

142
Jornal A Razão, 27 de agosto de 1931.
143
Jornal A Razão, 27 de setembro de 1931.
144
Ibid., 1931.
80

político é confirmado como campo de violência, do interesse e do entravamento. Só uma


verdadeira revolução poderia transformá-lo.
O governo que se iniciava era interpelado pela sociedade que impunha a ele difíceis
tarefas. As demandas que seguiram à queda de Fernandes Távora estavam calcadas na correção
dos erros cometidos por ele, na correção da revolução que ele não pôde ou não quis realizar.
Isto significava finalmente integrar o Estado nos rumos da revolução nacional, implementando
vasto programa de reformas, quer na esfera administrativa, quer na órbita política, porventura
a mais sinuosa. Outro ponto, não menos necessário, consistia em reintegrar o Estado
definitivamente no regime da ordem e da lei, implantando a disciplina revolucionária no
interior, ação projetada como caminho para superação do passado oligárquico.
Nesse sentido, uma das questões mais sensíveis herdadas pelo novo governo era a
divisão administrativa do Estado. Mendonça argumentava que a sede dos governos municipais
deveria estar assentada em locais com melhor situação econômica e jurídica, congregando os
principais núcleos das populações, bem como o comércio, a indústria, e, principalmente, os
meios de transporte. Qualquer nexo contrário implicaria na ineficiência da fiscalização das
rendas e do exercício dos poderes constituídos, principal preocupação da lógica de centralização
do poder implementada ao longo do Governo Provisório e consolidada ao longo dos demais
governos Vargas.
Anteriormente no Ceará, a criação e a extinção de municípios foram ancoradas em
conchavos e interesses de ordem partidária. Esse modo de proceder afetou as relações
comerciais, políticas e jurídicas, principalmente no interior do estado. Segundo setores mais
críticos, a questão partidária permeou o modo como Fernandes Távora implementou a divisão
administrativa realizada em seu governo, causando enorme ruído político, sendo, inclusive, um
dos elementos responsáveis pelo desgaste de sua administração. Para que a nova Interventoria
não fosse acusada de incorrer no mesmo erro, através do decreto 429, de 30 de dezembro de
1931, Mendonça nomeou uma comissão chefiada por um técnico renomado no Ceará e no
Brasil para rever a divisão administrativa do Estado. Para tal tarefa, o novo Interventor deveria
examinar os atos de Fernandes Távora, sobretudo “a pedra de toque do descredito do seu
governo”: o decreto da reorganização municipal. Nele haveria muitas injustiças e a
predisposição para assegurar prestígio político.145

145
Em posição política desfavorável, o ex-interventor decidiu dedicar-se a amparar seu partido nos diversos
municípios do estado. Movimento muito criticado pela imprensa. Para seus opositores, continuasse Fernandes
Távora no governo, “a anarquia seria inevitável”, seu modo de governar subverteria a ordem das coisas,
“convulsionando o estado com a irrupção de lutas partidárias neste e naquele município, onde o tavorismo
81

Depois do estudo minucioso das condições especiais de todas as localidades do estado,


aquela comissão que teve como principal membro o ilustrado engenheiro Thomaz
Pompeu Sobrinho nome de relevo nos meios científicos do país, apresentou bem
elaborado parecer propondo a alteração da divisão administrativa, tendo está
interventoria facultada aos interesses a remessa de sugestões, após publicação da
proposta para um exame detalhado. 146

Ultimados os trabalhos, a nova divisão foi oficializada pelo decreto n.º 1.156, de 4 de
dezembro de 1933, entrando em vigor no mês seguinte. Na nova divisão administrativa do
Estado o número de municípios foi aumentado de cinquenta e um para um total de sessenta e
seis municípios. Em seu relatório de Gestão, Mendonça resume a questão dizendo ter julgado
que a nova divisão correspondeu às necessidades de todas as regiões, “elaborada que foi com
meditação e estudo imparcial dos fatores naturais e políticos de cada localidade, pois não se
compreendia que a revolução de 3 Outubro deixasse de encarar uma face tão importante da
administração pública”. 147

Os municípios passaram a ser a expressão de uma realidade ambiente, sem as


maquinações facciosas que caracterizavam a maioria deles, no regime passado, uma
vez que, em conjunto, foram observados os seguintes critérios: maior facilidade e
comodidade das populações na obtenção dos serviços públicos, continuidade
territorial em toda área das divisões mantidas ou criadas; e fixação das fronteiras, de
preferência pelas linhas naturais. 148

Durante sua administração, Carneiro de Mendonça buscou ampliar este primeiro aceno
ao proceder técnico que conduziu a resolução da questão política-administrativa. Em meio a
crises que sacudiriam seu governo, o novo Interventor seguiu projetando o uso dos parâmetros
técnicos, sobretudo na reformulação do aparato de execução de projetos e obras de combate à
seca, sempre em conjunto com a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas e o Ministério de
Viação e Obras Públicas. No entanto, as pressões da realidade nem sempre permitiram que
novas e melhores respostas fossem implementadas. Além disso, o argumento que defendia a
técnica, muitas vezes, era usado para mascarar objetivos outros. Em meio a criação de órgãos

procurasse desfraldar pendão rubro da discórdia”. Felizmente outro é o cenário para a revolução no Ceará”.
Jornal A Razão, 24 de set 31.
146
MENDONÇA, Carneiro. Relatório da Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.47.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul.
2018.
147
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
148
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. de 2018.
82

consultivos e fiscalizadores, de caráter técnico, a municipalidade passou a ser integrada ao


projeto mais amplo de estruturação do Estado do Ceará e do país após a Revolução de 1930.
Os esforços para reestruturação administrativa do Estado, alardeada como exemplo de
condução técnica, permeada, inclusive, pela frequente justificativa de moralização do país, na
prática acirravam o processo de centralização das decisões na figura do Interventor e,
consequentemente, do Governo Provisório. Além da delimitação dos municípios, Mendonça
incluiu mecanismos de controle como a criação de três zonas providas de um delegado especial,
“de inteira confiança da Interventoria”. A esse delegado cabia a fiscalização imediata das
prefeituras e a emissão de pareceres à Interventoria que verificava a vida administrativa de cada
uma das cidades, “informando diretamente sobre as medidas de ordem a serem postas em
prática”. 149 O foco da fiscalização esteve, sobretudo, nas construções propiciadas através da
disponibilização de verbas solicitadas, principalmente no período de seca. Posteriormente,
criou-se uma repartição especial para o estudo dos negócios municipais, desaparecendo aquelas
delegacias cujas funções passaram a ser exercidas pelo chefe do novo departamento. 150
As modificações administrativas concebidas pelos novos departamentos criados por
Mendonça representavam novo nível de profissionalização dos processos de concretização das
obras públicas. Nesse ensejo, o Departamento dos Negócios Municipais, criado em 27 de
janeiro de 1932, seria responsável pelos serviços de estudo, orçamentos, balancetes e balanço
de prestação de contas, especialmente sobre situação financeira, trabalhos e obras executadas
em todo o estado. A renovação do modo de executar esses serviços reconstruiu o quadro dos
profissionais envolvidos no tema, chegando a incluir, entre outros, o posto de consultor jurídico
com o fim especial de emitir pareceres sobre as questões de ordem jurídica e elucidar as dúvidas
quanto aos atos administrativos.
No intuito de renovar a estrutura administrativa e dando sinais de boa compreensão dos
anseios de seus governados, Mendonça aprofunda a apuração de eventuais crimes de
responsabilidade do regime anterior. Em seu governo, a justiça especial, composta das
Comissões de Sindicâncias e das Juntas de Sanções, instaladas desde junho de 1931, ganharam
folego novo.151 Logo em seus primeiros meses de governo, o Capitão Carneiro de Mendonça

149
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. de 2018.
150
Ibid., 1934.
151
As sentenças proferidas pela junta de sanções eram executadas na capital pelo procurador fiscal da prefeitura;
nos municípios do interior pelo procurador fiscal e, a falta deste, pelos promotores de justiça. A comissão de
sindicância reunia-se duas vezes por semana no edifício da extinta Assembleia Legislativa e era composta de
três membros. Ver: Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 61.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul.
2018.
83

acatou o pedido do Major Dias de Freitas, Presidente da Comissão de Sindicância responsável


por investigar possíveis crimes administrativos do governo deposto e pediu a decretação do
sequestro preventivo dos bens do então presidente do estado, Dr. José Carlos de Matos Peixoto.
A medida foi comemorada como garantia da necessária indenização diante da alardeada
“incontestável e provada distração dos dinheiros públicos”. 152
Além de Peixoto e do passado anterior à revolução, Fernandes Távora passou a ser
apontado como exemplo de má conduta, e ainda como expoente dos descaminhos enfrentados
ao longo do processo de implementação da Interventoria no Estado. Carneiro de Mendonça
seria o “homem talhado a realizar a obra de saneamento que o Sr. Távora ensaiou,
tremulamente, receoso de ferir interesses partidários”. Assim, para levar a Interventoria do
Estado adiante, Mendonça precisaria renegar as decisões do primeiro Interventor e executar
planos novos, a começar pela exoneração dos partidários de Fernandes Távora.
O clima nos órgãos estaduais foi mote para a matéria de 24 de setembro de 1931, no
jornal A Razão. Os ocupantes dos cargos de confiança, por exemplo, já eram instados a solicitar
a exoneração, “experimentam alguns nisso a mais indisfarçável tristeza”. Acomodados no
poder, esses indivíduos começaram a tomar decisões que criaram conflitos nas esferas,
administrativa e política “sua mania foi perseguir [...] e, porque lhes tiram da boca a mamadeira,
suspiram, madalenamente, estas palavras de desespero; não era esta a revolução que
sonhávamos!”.153
Para responder a essa importante demanda, Mendonça tenta evidenciar a formação de
uma equipe de governo plural e sem resquícios da velha política em consonância com o novo
Código de Interventores. Em telegrama endereçado ao Gabinete do Presidente do Governo
Provisório, ele especifica a composição do Conselho Consultivo do Estado:

Cumprindo determinação art. 4º código de interventores, tenho honra propor vossa


excelência seguintes cidadãos para constituição do conselho consultivo este Estado:
João nogueira, engenheiro; Joaquim Magalhães, contabilista; Francisco de Paula
rodrigues, agricultor e medico; Antônio Nunes valente, comerciante; comandante
Mário Hecksher, oficial marinha.154

A construção de uma nova estrutura político-administrativa ocorreu de maneira gradual,


passando por um processo jamais completo de “montagem de mecanismos jurídico-
institucionais e políticos bastante complexos, destinados a viabilizar o controle do poder central

152
Jornal A Razão, 3 de setembro de 1931.
153
Jornal A Razão, 24 de setembro de 1931.
154
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Telegrama Interventor do Ceará Carneiro de
Mendonça sobre a composição conselho consultivo do estado. Data de recebimento dia 10 novembro 1931.
84

sobre as esferas estratégicas da economia”. 155 Estes mecanismos foram sendo construídos sobre
estruturas políticas regionais, “subordinando-as ao mesmo tempo que as absorvia ou
circunscrevia seu âmbito de atuação; tudo isso através de ensaios e erros, numa série que vinha
já de antes de 1930”. 156 Nesse ínterim, as ações do Governo Provisório no Ceará precisaram
ser direcionadas para dar conta das medidas de combate à seca necessárias no período,
engendrando assim, práticas políticas, sociais e culturais novas e ligeiramente anteriores a
chamada “Revolução de 1930”.
Quando tomou posse em agosto de 1931, Carneiro de Mendonça mostrou-se ciente da
situação e das demandas do Ceará. Em seu discurso, ainda no Rio de Janeiro, procurou dar
relevo ao seu programa de política e administração. Declarou que os cearenses podiam contar
com sua grande vontade, esperando que, também ele, obtivesse a colaboração de seus futuros
governados. Prosseguiu revelando o intuito de praticar uma “elevada política de moralidade” e
resumiu seu plano numa simples sentença: “cogitarei, sobretudo, de dar ao povo boa justiça,
larga instrução e assistência, a mais eficiente possível, à pobreza do estado, às vítimas do flagelo
das secas”. 157
A opinião que se segue às palavras de Mendonça, apesar de exporem admiração pela
disponibilidade do Capitão à elevada causa mencionada por ele, revelam o pensamento acerca
da questão da seca e do papel que o Estado vinha desempenhando para a resolução do problema.
Estaria Carneiro de Mendonça pronto para “atirar-se às incertezas de uma precária interventoria
de um pequeno estado do Norte”?
Mas o sr. Carneiro de Mendonça ainda não conhece as condições financeiras do estado
que vem governar. Por isso, naturalmente, é que promete da nos “larga instrução”.
Ignora, de certo, as desesperadoras aperturas do nosso erário público, que lhe não
permitem, por mais que sinceramente o deseje, por mais que corajosamente se esforce,
a fazer grande coisa em matéria de instrução ou em qualquer outra que demande de
despesas extraordinárias. Pela mesma gravíssima razão, limitadas, muito limitadas,
terão de ser, necessariamente, as suas realizações quanto à assistência à pobreza, às
vítimas do flagelo das secas. 158

Durante seu mandato, Mendonça teve eventuais discordâncias com o Governo


Provisório sobre o modo como os repasses eram feitos ao Estado do Ceará. Em um episódio
registrado pelas correspondências enviadas pelo Interventor Carneiro de Mendonça ao Gabinete
Civil da Presidência, classificada como confidencial, o Capitão Carneiro de Mendonça, num
arroubo de aborrecimento, envolve Juarez Távora e o próprio Presidente numa troca desgastante

155
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
ômega, 1976. P. 84-85.
156
Ibid., 1976, p.84-85.
157
Jornal A Razão, 27 de agosto de 1931.
158
Jornal A Razão. 27 de agosto de 1931.
85

de mensagens. Mendonça chega a pedir sua exoneração a Vargas, alegando que atendendo
razões já apresentadas ao Sr. Delegado Federal do Norte, solicitava que “vossa exa. se digne
dispensar-me do cargo para qual fui honrado confiança do vosso governo”. As causas são
entendidas como fúteis por Vargas, que indica seu descontentamento com o gesto do Capitão
em anotações feitas a mão no documento.

De acordo com informações transmitidas gabinete do governo e major Távora, todos


pedidos por ele feitos forram encaminhados aos ministérios a quem cabe providenciar,
como se faz com o expediente de todos os interventores. Esses assuntos sempre podem
ser resolvidos imediatamente e dos pedidos vale alguns foram feitos a dois ou três
dias.159

No telegrama seguinte, Vargas anota que em sua administração, “não pretende o chefe
do governo com a soma de serviços que tem a atender, estar acompanhando o expediente das
repartições públicas nem de seus ministérios”, sugerindo o conteúdo da resposta a ser redigida
pelo gabinete, indica ter “grande apreço seus serviços e qualidades morais”.160
A resposta a Mendonça enviada pela Secretaria da Presidência assume o tom
conciliador:

Ao capitão Carneiro de Mendonça


Fortaleza
Interventor Federal
De acordo informações transmitidas pelo gabinete governo e major Távora, posso
afirmar que todos os vossos pedidos foram encaminhados aos ministérios respectivos
aos quais cabiam providencias, como é feito com o expediente de todos s
interventores. Esses assuntos nem sempre podem ser resolvidos imediatamente e
alguns dos vossos pedidos foram feitos há dois ou três dias. Caso seja apenas esses os
motivos, não se justifica o vosso pedido de despensa... pois trata-se de ocorrências
comuns de administração, não podendo o chefe de governo, com a avultada soma de
serviços que tem que atender, estar sempre acompanhando o expediente das
repartições públicas nos diversos ministérios. Por ter grande apreço vossos serviços e
qualidades morais, confesso-me surpreendido atitude assumistes.
Saudações. 161

O modo como Mendonça se posicionou neste primeiro momento, diante de, como indica
a carta da secretaria da presidência, “ocorrências comuns de administração”, chama atenção. O
fato de ter recorrido ao Delegado do Norte e, ainda assim, propor sua demissão ao Chefe de
Governo diante da demora, aparentemente normal, das demandas feitas, indica o descompasso

159 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
160 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
161 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
86

entre as instâncias estaduais e federais, bem como entre o Interventor do Ceará e o centro do
Governo Provisório.
É certo que o sucesso para viabilizar os socorros aos flagelados, prover o estado das
mudanças e modernizações pleiteadas internamente e manter-se no cargo, dependia diretamente
da capacidade do Interventor para mobilizar o governo federal. Ainda assim, Carneiro de
Mendonça não se exime de demonstrar contrariedade. Para lidar com a grande questão histórica
que lhe caiu ao colo, a Seca, e contornar os atritos com a Presidência, Mendonça estabelece
uma parceria mais sintonizada com a Inspetoria de Obras Contra as Secas e o Ministério da
Viação e Obras Públicas.
Escolhido para debelar a crise política no estado, Carneiro de Mendonça chega com
muitas responsabilidades, mas também com certo respaldo. Como militar, possuía as credencias
de entrada. Mas, para fazer jus a sua escolha, deveria suprir os desejos locais por mudanças e,
assim, poderia refundar as amarras do Governo Provisório num dos mais visados estados do
Norte e, de fato, tornar o Ceará partícipe de um novo país.

2.2 “Nos braços da horrível situação”

Noticiando a calamidade no Vale do Jaguaribe, os jornais indicam que a fome, resultante


das últimas crises climatéricas, transformou a zona do baixo Jaguaribe num campo de
necessidades.
Diariamente a romaria de famintos percorre a nossa cidade implorando socorro para
mitigar os seus sofrimentos. Urge por parte do governo o início de serviços nas
estradas e nos açudes, afim de que o nosso povo encontre no trabalho, um meio de
subsistência. 162

A retórica que relacionava a solução para as crises em períodos de seca com a


disponibilização de postos de trabalho, novamente pauta largamente o debate. Durante o final
do século XIX e início do XX, esse argumento deu base ao recrutamento de homens, mulheres
e crianças, famílias inteiras, para o trabalho em obras de construção de açudes, estradas, entre
outros. A medida foi engendrada como meio de controle social e também como via para
viabilização das demandas por melhorias de infraestrutura e modernização do Ceará.
Ao longo dos últimos meses de 1931 a situação dos assolados pela seca no Estado piorou
bastante. Em telegrama endereçado a Getúlio Vargas, Carneiro de Mendonça explica as
dificuldades enfrentadas pelos cearenses em face ao agravamento da seca, que estaria levando

162
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1931.
87

seu governo “nos braços da horrível situação”. A população assolada pela fome já se colocava
em marcha para a capital. Além disso, a região jaguaribana, diretamente atingida, já registrava
mortes diante da falta absoluta recursos. A argumentação dizia que não era tempo de cruzar os
braços abandonando o povo por cujo bem-estar o Presidente era responsável direto, assim como
o Interventor. Diz Mendonça:

[...] tomo liberdade sugerir v. ex. determinar seja entregue aqui, inspetor federal dr.
Luiz vieira, intermédio banco brasil, adiantamento trezentos contos, por conta crédito
referido mil contos. Tendo entrado entendimento inspetor dr. Vieira, estou informado
situação zona assolada seria fortemente atenuada e beneficiada trabalho definitivo
construção canais irrigação Santo Antônio Russas e construção Icó, Jaguaribe Mirim.
Para isso seria necessário apenas v; ex. determinar remessa mais duzentos contos além
trezentos tocou Ceará, concorrendo assim vosso patriótico governo ato benemerência
e humanidade, salvando more gloriosos filhos do brasil, dignos melhor sorte. É o apelo
dirijo v. ex., certo será tomado devida consideração diante rigorosa realidade situação.
Grato seria meu governo v. ex. se dignasse algo dizer respeito. 163

Mendonça realiza o pedido de crédito evidenciando haver discutido o tema com o


Inspetor encarregado dos trabalhos da seca, Luiz Vieira, demonstrando, assim, que a
Interventoria estava alinhada meticulosamente aos planos da Inspetoria de Obras Contra as
Secas. Além disso, aponta antecipadamente os rumos dos gastos, indicando o plano para
abordar o problema: a construção dos canais de irrigação.
Além de Luiz Vieira da IFOCS, o Ministro de Viação e Obras Públicas, José Américo
de Almeida, aparece como importante interlocutor de Mendonça. Apesar da demora na
liberação da verba ser o mote do telegrama em questão, o Interventor faz questão de mencionar
a aplicação de Américo frente a questão da seca: “Não obstante todo interesse parte V. exa. do
ilustre Ministro José Américo, até presente momento não chegou aqui notícia trezentos contos
cabem Ceará, por conta crédito mil contos socorrer estados nordestinos”. 164 Em um contexto
de restrição dos espaços políticos tradicionais, a estratégia política aplicada por Mendonça
durante a crise era incluir diretamente o Ministro de Viação e Obras Públicas nas negociações
das verbas, bem como permanecer atuante nas ações e elaboração de planos para o combate à
seca previstas pelo governo federal.
Mais tarde, Mendonça envia telegrama a Vargas que confirmava o envio da verba via
Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, afirmando ter recebido “além trezentos contos

163
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama de Carneiro
de Mendonça para Getúlio Vargas, em 30 de setembro 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
164
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama de Carneiro
de Mendonça para Getúlio Vargas, em 30 de setembro 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
88

aludidos, parte crédito orçamentário destinado primeiro distrito, corrente exercício perfazendo
total 458:333$500”. 165
Diante do quadro de agravamento da calamidade no Ceará, Carneiro de Mendonça
enviou novo e alarmante telegrama à Presidência da República.

Urgente ao sr. Presidente.


Lamento comunicar v. ex. situação zona jaguaribana assolada seca, vai-se agravando.
Povo faminto ataca comercio ameaçando engenheiros inspetoria secas, reclamando
trabalho. Tive ontem ciência mortes motivadas flagelo e conflito virtude situação. Sei
demora remessa credito motivada dispositivos código contabilidade. Tomo liberdade
solicitar vossa excelência ordens dispensa formalidades fim evitar maiores desgraças.
Certo espírito humanitário vossa excelência não deixará desamparo infelizes patrícios
cujos interesses vossa excelência designou-me para zelar, aguardo ordens.
Saudações. 166

Chama atenção o relato sobre saques ao comércio local e à Inspetoria de Secas. Como
indica Frederico de Castro Neves (2002), houve, desde a seca de 1887, um processo de
formação e organização periódica da multidão como sujeito político coletivo. Esses eventos
“demonstram uma determinada forma de “negociação” política que possui características
específicas e que não pode ser avaliada a partir dos padrões e códigos da política dita
“moderna”.” Nessas ações surgidas em períodos de seca, ocorridas no entorno dos locais das
obras públicas ou nas áreas urbanas e comerciais, “a multidão escolhe as suas estratégias em
função das opções disponíveis”.167 Segundo Neves, ao longo do tempo, consolidou-se uma
tradição dos movimentos de multidão em períodos de seca que se estendeu, segundo o
historiador, até os anos 1950. Assim como se observa na fonte citada, a existência de alvos
específicos, a indicação do sujeito “povo” – conotando o caráter coletivo da ação, deixam ver
a existência de padrões e objetivos na ação dessa multidão. Não se tratava de uma ação
irracional: diante da situação de calamidade na qual estavam inseridos, estavam buscando
alimentos e “reclamando trabalho”.168
Desde agosto de 1931 o foco dos relatos era a penúria da região jaguaribana. Em geral,
a saída para o problema era oferecer trabalho para os flagelados que se avolumavam.

165
Ibid., 1931.
166
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama Carneiro
Mendonça, dia 5 de novembro 1931. Calamidade seca 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
167
NEVES, Frederico Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), p. 75.
In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico Castro (org.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002 p. 14-
15.
168
Importa considerar os saques de maneira diferente daquela que os descreve como simplesmente espasmódico,
como tradicionalmente eram consideradas pelos estudos dos movimentos no campo. A fome é elemento a ser
considerado, no entanto, existe um caráter estratégico, e não simplesmente biológico. A fome, ela “não prescreve
que eles devam se rebelar nem determina as formas de revolta”. E.P. Thompson. Economia moral revisitada. In.
Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 150.
89

Trabalho para os flagelados, apenasmente! Povo sofredor nordestino! Vez por outra
entra-lhe, portas a dentro, a visita periódica das secas. E o flagelo bate-lhe de rijo no
dorso, açoitando lhe até a alma, amargurando-lhe as horas sombrias de desesperança
dantesca. Há dois anos que as populações do Jaguaribe curtem as agonias desse lento
calvário. Marcham, abatidas pela sorte implacável, sob o olho coruscante e ameaçador
do sol que é todo um braseiro consumidor. E os gritos dos pais aflitos, o pranto das
mães que veem a prole agonizar lentamente, apegados, todos, ao lar que as gerações
passadas construíram, como que mal repercute dentro da pátria, que já se acostumou
a fatalidade que nos depaupera e mata. Por que o poder público não corre pressuroso
em socorro dos nossos irmãos? É tempo de socorrer os famintos; é tempo de um gesto
que minore todo esse horror que devora os trabalhadores de grande parte do hinterland
nordestino. Para obviar os males em que nos debatemos, e que pesam sobre todos nós
esmagadoramente, por ora, seria possível atacar, a preços reduzidos, algumas das
grandes obras de que tanto carece o interior, com proveito certo para o dia de amanhã
e mais a vantagem da fixação do homem ao solo, enquanto a voragem passa. Bem
poderá o novo interventor, o capitão Carneiro de Mendonça, fazer ecoar nosso brado
aos ouvidos do Sr. Getúlio Vargas. 169

Misturados à estrutura de sentimentos que sustenta a percepção da seca, associada à


resignação quanto a periodicidade das tragédias, se repetem as críticas ao poder público e os
pedidos para construção de obras de socorros públicos pleiteadas dentro da confluência dos
interesses públicos e privados. As obras são justificadas enquanto solução para a crise
migratória e como via moralizadora dos sertanejos desvalidos, muitos em estado de
mendicância. Porém, a edificação de açudes, estradas e até mesmo prédios e praças públicas,
tinha em sua delimitação e escolha interesses que perpassavam o presente catastrófico e se
projetavam num futuro mais duradouro, “com proveito certo para o dia de amanhã”.
As obras dos chamados “socorros”, mobilizadas ao longo das crises de estiagem, eram
uma oportunidade para a transformação dos sertões do semiárido. As consequências mais
profundas dessa confluência de socorros e modernização era descortinar o caminho para
alavancar, finalmente, os territórios historicamente negligenciados pela política nacional e
causticados pela fúria - quase humana - da natureza.
Ao longo do Relatório de Governo escrito por Carneiro de Mendonça ao final do seu
mandato existem diversas fotografias de benfeitorias construídas durante seu governo. Boa
parte realizada em tempo de seca, as obras de melhoria e modernização foram executadas
sobremaneira por conta das verbas angariadas nesse período.170

169
Jornal A Razão de 28 agosto 1931
170
O período mais asseverado de seca, em 1933, deu lugar ao prosseguimento de obras de melhoria da
infraestrutura do estado. Para dar conta desse volume de afazeres, e demonstrando a tentativa de dar
prosseguimento a postura de maior sistematização e organização desse tipo de trabalhos a nível estadual, o
Interventor do Estado do Ceará reorganizou a antiga Diretoria de Viação e Obras Públicas do Estado que ficou,
por meio do decreto n.º 1.019, de 15 de maio de 1933, constituída por três divisões e uma administração central.
As obras executadas e/ou fiscalizadas pela Diretoria chamam atenção, entre eles estão: a construção de uma
galeria de águas pluviais na capital, com extensão de 418 metros, composta de três trechos de capacidades
diferentes; 140 metros de canais de ligação de bocas de lobo; A pavimentação da cidade, feita pelo estado sob a
supervisão da Diretoria alcançando as Ruas Senador Almino, Rua Dr. João Tomé, Rua Tristão Gonçalves e Rua
90

Figura 1 – ARACATY – Jardim remodelado durante a administração revolucionária

Fonte: MENDONÇA, 1931. p. 35.

Destacadas juntamente com os dados de prestação de contas, as obras não são descritas
como benesses dos tempos sombrios. No entanto, outros setores da sociedade não se eximiram
em reconhecer a obviedade.

De fato, ninguém deseja seca para o Ceará, mas incontestavelmente a seca nos traz
algum bem. Todo mundo sabe que aqui no Ceará, só se trabalha nestes tempos de
grandes calamidades. O governo federal, só nestes tempos bicudos, se lembra do
pobre do nordeste.
Empolgado com uma política nojenta não se preocupa, absolutamente, com os
problemas inaudíveis do Brasil cuja solução está a seu cargo porque se comprometeu
solenemente a trabalhar pelo progresso de nossa grande pátria.
A prefeitura de sobral nunca se achou em tamanha atividade.
Mais de 1300 operários trabalhando diariamente, empedram, abaúlam, a jardinagem,
arborizam e concertam as ruas principais praças da cidade.
E devemos tudo isto à seca e à ação construtora e progressista do Te. Floriano
Machado digno e atual prefeito de Sobral. E diga-se que a seca não nos traz o bem.171

Como evidenciado no texto publicado no jornal, era perceptível que a seca trazia em seu
bojo, vantagens: a atenção política e as verbas públicas eram ampliadas e a disponibilidade de
mão de obra garantia perspectivas de um futuro diferente, talvez melhor e mais moderno. À

25 de Março, abarcando com isso, vias importantes do centro da capital, indo em direção à praia e ao antigo
porto da cidade. Esses melhoramentos foram executados a partir da mão de obra dos flagelados. Estradas ligando
municípios do estado também foram executadas pela Diretoria, algumas delas em parceria com a Inspetoria de
Obras Contra as Secas como, por exemplo, a Estrada Santos Dumont a marés iniciada pelo estado, foi concluída
pela inspetoria. Além do calçamento das ruas, a Diretoria de obras Públicas construiu e melhorou açudes de
médio e pequeno porte, tal como previa a organização dos esforços de socorros prevista pelo Governo Provisório,
ao qual cabia a construção de obras de maior porte. O Açude de Santo Antônio do Pitaguary, por exemplo, teve
sua estrutura renovada pela Diretoria “merecendo francos elogios do público e até da impressa” pela velocidade
com que executou o serviço.
171
Jornal O Debate, 21 de maio de 1932.
91

medida que respondia às demandas por socorros aos flagelados, o Governo Provisório também
atendia antigos anseios por novidades. Assim, as frentes de trabalho tinham a função de agrupar
os flagelados que, mediante o trabalho nas obras, garantiam o acesso aos socorros
providenciados pelo governo, mas também proporcionavam a edificação do futuro, revelando
outras possibilidades e sensibilidades aos períodos de seca, sobretudo nas áreas mais urbanas.
No texto publicado no Jornal O Debate, observa-se ainda que os flagelados relacionados
ao progresso recém-experimentado são chamados de “operários”, evocando uma lógica do
trabalho que diferia do cotidiano de trabalho no campo. Nesse espaço novo, os sertanejos
precisavam tratar com uma pluralidade de situações que forjaram experiências de vida e
trabalho específicas. Essa vivência marca os canteiros das obras realizadas durante a seca de
1932. No terceiro capítulo da tese abordaremos o cotidiano de um desses canteiros de obras, o
açude Lima Campos, e a mobilização de camponeses como operários da seca lá ocorrida.
Em 1932, além dos trabalhos nas obras do governo, flagelados foram incorporados aos
batalhões provisórios surgidos no Ceará durante a Revolução Constitucionalista de 1932, em
São Paulo.172 A formação dos batalhões de voluntários foi parte do conjunto de ações que visava
combater a chegada da multidão de retirantes aos centros urbanos cearenses.

Essa incorporação, de certo modo compulsória, por mais que não aparecesse na
imprensa, certamente era de conhecimento da população, que acompanhava todo o
processo cotidianamente, a partir dos jornais, dos comícios, dos desfiles, dos panfletos
presentes no Ceará durante a guerra. Não houve a divulgação de nenhuma
manifestação formal contra a medida, já que os aliados de Getúlio Vargas não
mostravam constrangimento com ela. 173

Segundo Raimundo Hélio Lopes, a também chamada Guerra de 1932 tornou o cenário
político e social nacional ainda mais instável, fazendo com que os governos federais e estaduais
exigissem da sociedade em geral envolvimento em todos os momentos do conflito. Como
demonstra o autor, o embate fratricida ocorrido em São Paulo desenvolveu-se na verdade, em
muitas outras frentes. No Ceará, o conflito está conectado a eventos numa perspectiva mais
ampla com “a chamada ‘Revolução de 30’, sua política administrativa, as diversas
Interventorias estaduais, os projetos de República e Constituições que se confrontavam, as

172
Como explica Lopes, no Ceará o nome da guerra ocorrida em terras paulistas em 1932, se convencionou como
“Revolução Constitucionalista de 32”, inclusive nos compêndios cearenses. As nomenclaturas que o conflito
recebeu ao longo do tempo são impregnadas de sentidos políticos que abarcam as várias memórias e
interpretações do conflito, inclusive dentro da numerosa historiografia que analisa o tema. (2009, p. 13).
173
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 140.
92

reformulações do Exército Brasileiro, a seca nordestina, dentre outros”.174 Lopes afirma que em
meio as querelas em torno do alistamento e das gratificações, diferentes perfis de sujeitos
compuseram os Batalhões de Voluntários. Entre eles estavam alguns retirantes da seca que,
negociando saídas para a situação de calamidade em que viviam, tornaram-se parte do esforço
de guerra.
Em seu relatório, o Interventor Carneiro de Mendonça argumenta que o Estado dispunha
apenas de um corpo de segurança pública com um batalhão de infantaria, cuja responsabilidade
era a de assegurar a ordem cotidiana. Não podendo prescindir dele, foi preciso criar corpos
provisórios, cujas despesas correriam por conta da verba consignada no decreto federal n.º
21.607 de 11 de junho de 1932. Foram organizados três batalhões provisórios e um contingente
que, em tempo oportuno, seguiria com destino ao sul do país.175
Em 4 de agosto de 1932, a Interventoria baixou decreto dando providências para
legitimação das famílias das praças que seguiram para aquela operação. 176 A inclusão de
benefícios às famílias, decerto contava como ponto positivo àqueles chefes de família alistados
nos batalhões. No entanto, muitos retornavam do conflito e não recebiam a remuneração devida,
retomando assim o cotidiano de miséria que impregnava os lares dos pobres cearenses.
Abandonados pelo Governo Provisório, muitos recorriam a violência, assaltando, inclusive a
mão armada, os comércios locais.177
A todo o momento, a argumentação dos governos local e central era de que a formação
dos contingentes e dos esforços para combater os revoltosos em São Paulo cumpria a função
patriótica de defender a unidade nacional. Nas palavras do Interventor, o Ceará estaria
“corroborando as tradições heroicas dos seus filhos, se assegurou uma parcela de dedicação, na
grande obra de integridade nacional, representada pela vitória da causa legal, ou seja, a
confraternização de todos os brasileiros”.178 Evidentemente, desta feita estaria também o
governo do Ceará depositando seus filhos já sofridos pelos horrores da seca para a causa
revolucionária outubrina e do Norte. Sem a estiagem dificilmente a Interventoria teria
conseguido formar seus batalhões provisórios. Provavelmente, muito menos cearenses tivessem
seguido para a guerra patriótica em outro contexto que não o de crise climatérica. Além disso,

174
LOPES, ibid. p. 17.
175
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 34. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
176
Ibid., 1934, p. 34.
177
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 147.
178
Ibid., 1934, p. 34.
93

a formação do contingente de soldados teve, para os poderes locais, a função primordial de


diminuir a multidão de flagelados a espera de socorros nas ruas, campos de concentração e
canteiros de obras.179
Antes de surgir o conflito em São Paulo, em meio a seca, o rumo que o processo político
nacional estava tomando acerca dos encaminhamentos sobre as eleições para a Assembleia
Nacional Constituinte, era pouco apreciado por Carneiro de Mendonça. Em julho de 1932, ele
enviou carta solicitando sua demissão a Getúlio Vargas, mas a eclosão da Revolução
Constitucionalista fez com que retrocedesse, declarando seu apoio ao governo federal.180
Adotando a narrativa vitoriosa que favorecia o Governo Provisório, frequentemente
colocado à prova naquele momento, Carneiro de Mendonça remete-se a um “ambiente de
cordialidade geral”. Sobre a participação do Ceará na Revolução Constitucionalista de 1932,
em seu relatório de final de governo, Mendonça chama atenção para os esforços coordenados
pela Interventoria do Ceará.

O governo com as cautelas que o momento exigia e com a cooperação quase unanime
da população, evitou que o estado tivesse ensanguentado o seu solo com lutas inglórias
e injustificáveis. Nenhum plano de revolta teve começo de execução no estado, mas
o Ceará não devia se limitar a essa situação de defesa interna, cabia-lhe o dever moral
e material de concorrer para o reestabelecimento da ordem nacional profundamente
abalada por aquele movimento sedicioso.181

Dulce Pandolfi indica que o papel desempenhado pelo Norte no conflito contra a revolta
sulista foi muito importante para a relação entre o grupo nortista e o Governo Provisório e que
mesmo depois de dois anos do movimento revolucionário de 30, os estados dessa Região
empenharam um dos mais efetivos apoios políticos recebidos por Vargas. Apenas no Norte se
realizaram mobilizações populares em apoio a Vargas e, consequentemente, em protesto ao
movimento constitucionalista.182
No Ceará, como em todo o país, a mobilização para a guerra se efetivou com apoio da
imprensa, chegando ao ponto de as preocupações com o envio dos batalhões a São Paulo
eclipsarem os horrores da seca. Nas palavras de Lopes, “a imprensa cearense durante a Guerra

179
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 142.
180
LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
181
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
182
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 347.
94

de 1932 passou por uma reconfiguração, na qual os assuntos bélicos foram hegemônicos em
suas páginas, sendo mais numerosos que os relacionados à seca”.183 Apesar da aparente
desconexão entre o conflito e a seca, governo e imprensa percebiam o alistamento dos
sertanejos como fundamental para contingenciar a crise social. Carneiro de Mendonça, em
documentação oficial, lembra que parte da oferta voluntária saía dos Campos de Concentração
de flagelados, indicando inclusive que o 2° e o 3° batalhões eram formados por civis com
aparência não apropriada: “seria conveniente evitar embarque batalha traje civil devido
desagradável impressão chegada aí com roupas vivem sertão, aspecto flagelados”. 184
Em meio às demandas por serviços de socorro aos flagelados, e de ações para evitar a
aglomeração de desvalidos, a Interventoria tomou severas providências para tratar outra
importante questão: a falta de gêneros alimentícios de primeira necessidade.

Para o governo providenciar


O açambarcamento dos gêneros de primeira necessidade, farinha, feijão, rapadura,
arroz e outros estão, nas feiras de domingo, sendo executados pelos comboieiros
vindos de municípios longínquos. Isso constitui, sem dúvida, um abuso que é preciso
por cobro. Ainda na feira última parte da população da cidade ficou desprovida de
farinha porque o comboieiro comprou a toda por atacado. Assim, esse gênero que
estava a 35$000 por alqueire no início da feira poucas horas após alcançou a cotação
de ... 48$000, havendo ainda por cima excesso de compradores e falta do gênero.
Habituados a especular com a miséria do povo, com a desgraça das gentes os
compradores do sertão atacaram toda a farinha, ficando a cidade desprovida este
gênero.185

Ocasionada pela ação de açambarcadores, especuladores, atravessadores e comerciantes


mal-intencionados, a falta de alimentos e a elevação dos preços dos gêneros preocupava
profundamente a sociedade cearense, já combalida pela carestia e pela evidenciação cotidiana
da pobreza nas cidades e no campo. Para regular o mercado a Interventoria criou órgãos
voltados ao controle e fiscalização da circulação de gêneros alimentícios no estado.
Após ser considerado estado de calamidade no Ceará, por decreto n.º 564, de 14 de abril
de 1932, foi restabelecido o Comissariado da Alimentação Pública para regular as relações
comerciais de gêneros no Estado. O decreto redigido com autorização de Getúlio Vargas
deixava sob a responsabilidade do Comissariado as seguintes ações:

a) a verificação semanal do estoque de gêneros alimentícios e de primeira necessidade,


armazéns, trapiches, depósitos e demais estabelecimento congêneres, afim de

183
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 19.
184
ANRJ - Gabinete Civil da Presidência República. Série 14.5. Telegrama de 14 de julho de 1932. Cf. LOPES p.
138.
185
Jornal A Ordem, 13 de março de 1932.
95

conhecer de sua qualidade e procedência; b) inquerir do custo de produção desses


gêneros, os preços de aquisição nos centros produtores ou a entrada nos mercados e
dos preços pelos quais os mesmos são vendidos aos consumidores; c) a limitação dos
preços máximos porque poderão ser vendidos os gêneros de primeira necessidade,
publicando semanalmente as respectivas tabelas, com a aprovação da interventoria;
d) assegurar o abastecimento de gêneros indispensáveis à alimentação pública e
proibir a saída de produtos alimentícios, desde que os estoques existentes não sejam
bastante para o consumo interno do Estado.186

Logo depois, em 17 de outubro de 1932, por meio do decreto n.º 796, foi criada em
substituição ao Comissariado da Alimentação, a Comissão de Abastecimento Público, que ficou
incumbida da fiscalização em todo Estado. Suas principais funções eram organizar na capital o
cadastro de todos os armazéns, mercearias e quaisquer estabelecimentos em que sejam expostos
à venda gêneros de primeira necessidade; proceder ao levantamento do estoque de artigos
alimentícios existentes naqueles estabelecimentos comerciais; manter perfeito serviço de
estatística dos gêneros alimentícios entrados na capital do estado, por qualquer via; organizar
semanalmente e fazer publicar todos os sábados tabelas de preços máximos para a venda de
gêneros alimentícios; obter cotação de diferentes artigos no interior, na capital e as demais
praças do país; solicitar das repartições públicas informações sobre os preços de transportes de
mercadorias; finalmente, exercer rigorosa fiscalização relativa à execução das tabelas de preços
em vigor. 187
O objetivo das ações era, portanto, adquirir gêneros alimentícios quando necessário e
assim, estabelecer o equilíbrio do consumo e venda de alimentos, coibindo a ação maliciosa de
açambarcadores e especuladores em geral. A possibilidade de requisitar ou desapropriar por
necessidade pública toda espécie de gêneros demonstra a abrangência da crise alimentar
naquele momento, bem como a capacidade de intervenção exercida pelo Governo Provisório
na sociedade.
Com a criação da Comissão de Abastecimento Público, todo comerciante ficou
impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o
intuito de provocar elevação de preços. Aquele que tentasse burlar as normas e fiscalizações e,
não foram poucos os infratores, seria condenado a multa de 500$00 a 1:000$000, e ao dobro,
nas reincidências. A ação incidiu sobre toda a variedade de comércio do Ceará, alcançando
comerciantes grossistas e retalhistas, bem como e fundamentalmente, àqueles negociantes
responsáveis pelo fornecimento de alimentos aos serviços da Inspetoria Federal de Obras

186
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 62. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso dia: 07 de julho de 2018.
187
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 65. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso dia: 07 de julho de 2018.
96

Contra as Secas. Isso, decerto impediu somente algumas das tentativas de exploração da crise
alimentar que afligia a população em geral.
Também por decreto, n.º 566, de 14 de abril de 1932, a Interventoria Federal criou no
Estado, em caráter provisório, o Departamento das Secas para centralizar e uniformizar os
serviços de socorros, demonstrando mais uma vez que ao longo da seca de 1932, o Governo
Provisório, e no Ceará, a Interventoria de Carneiro de Mendonça, buscaram construir um
aparelho administrativo organizado para executar e dirigir os serviços de socorros aos
flagelados.
O Departamento das Secas, por intermédio de representantes nos Estados, tinha também
o encargo de fiscalizar a execução dos compromissos assumidos em defesa dos pobres. A
emigração dos flagelados ficou subordinada a ajuste prévio entre o Departamento das Secas e
o governo, bem como os arranjos que pudessem interessar a emigração por parte de autoridades
estaduais, empresas, firmas industriais e particulares para onde se destinassem os sertanejos que
buscavam socorros. Ao Departamento das Secas cabia assegurar a manutenção dos flagelados,
fixação de salários normais e demais garantias dos interesses dos emigrantes. 188Assim estava
organizada a defesa pública contra a crise social ao longo da seca de 1932 pela Interventoria.
O deslocamento “deveras temível para a saúde e a tranquilidade públicas das populações
sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital”189 foi um dos
principais focos da ação da Interventoria de Carneiro de Mendonça durante a seca. A fim de
diminuir o fluxo de flagelados pelas ruas das cidades e prevenir as ações coletivas de
contestação, dentre outras medidas, o poder público organizou Campos de Concentração190,
“por onde transitou mais de um milhão de pessoas, atendidas com serviços profícuos de higiene
e assistência, sendo grande número delas localizado em diversos Estados do Norte, que para
este fim receberam auxílio da União na importância de 4.812 contos”. 191

188
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 63. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
189
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 62. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
190
Hoje, a ideia de campos de concentração está associada às medidas implementadas na Alemanha, entre os anos
de 1933 e 1945. Os campos de concentração nazistas foram implementados com a finalidade de aprisionar e
executar prisioneiros de guerra e prisioneiros políticos, particularmente, judeus foram sistematicamente
assassinados, durante o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial. Assim, importa ressaltar que os Campos de
Concentração que haviam no Ceará eram diferentes. No Ceará, os Campos de concentração foram utilizados
para confinar famílias inteiras, controlando e vigiando uma multidão antes aglomerada de maneira
desordenada. Segundo os idealizadores dessa medida, a concentração dos flagelados da seca tinha o objetivo
de diminuir os desdobramentos nefastos causados por surtos de doenças, desabastecimentos, etc. Como indica
a historiografia sobre a criação dos campos, a medida contou com apoio da sociedade.
191
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso: 21 de dezembro de 2019. p.379.
97

Evitando que, durante a fase aguda da seca, os flagelados percorressem as ruas da


cidade, com grave perigo para a saúde pública, foi determinada a construção no local
“urubu”, próximo à capital, de um campo de concentração, constante de oito galpões
com 59 metros de comprimento por oito de largura, sendo 6 cobertos de zinco e 2 de
lona; instalações sanitárias para os dois sexos, banheiros, cozinha e farmácia,
encanamentos d’água, serviço de instalação elétrica. Esses serviços foram executados
dia e noite, ininterruptamente, com a colaboração da Diretoria de Saúde Pública, na
parte atinente à higiene. 192

Após a criação do Departamento das Secas, a Interventoria do Ceará buscou concentrar


os flagelados em pontos diversos. Foram criadas, sob a fiscalização do Departamento das Secas,
sete concentrações, depois reduzidas a cinco: Patú, em Senador Pompeu; Buriti, no município
de Crato; Quixeramobim, no município de mesmo nome; Cariús, em São Mateus; Ipu, no
município de mesmo nome; Campos do Urubu e Otavio Bonfim, na capital do estado,
Fortaleza.193
Figura 2 – Mapa de localização dos Campos de Concentração.

Fonte: Jornal Diário do Nordeste, 29.05.2017. Disponível em: <http://plus.diariodonordeste.com.br/campos-de-


concentracao-no-ceara/> Acesso em: 9 jan. 2019.

Homens, mulheres e crianças dirigiam-se a zonas urbanas e territórios menos atingidos


pela seca por meio de longas caminhadas; alguns pereciam pelas estradas. Outras famílias
vinham de trem, pelos vagões da Rede de Viação Cearense (R.V.C), que naquele período já
contava com dois ramais que cortavam o Estado: um ligava o sul do Ceará e o sertão central, o

192
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 255. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
193
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 630. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
98

outro partia de Sobral, região Norte do Estado. Uma multidão se dirigiu à Fortaleza. A presença
“indesejável” de centenas de sujeitos pobres e maltrapilhos desagradava e, apesar de não ser
uma “invasão” inédita, assustava.194

O POVO no Campo de Concentração dos Flagelados, em Tauápe


Chegaram, á noite, mais 1349 Retirantes
O Serviço de Abastecimento – Construção de Barragens – Cenas Impressionantes
Fez ontem uma semana que chegou a Fortaleza a primeira leva de flagelados vindos
do sul do estado e já hoje se acham abrigados na antiga feira do Matadouro Modelo e
nos albergues de Otavio Bonfim e Polícia Marítima cerca de 3000 infelizes vítimas
da seca. Ontem, chegaram a esta capital duas composições ferroviárias trazendo
retirantes. Na primeira, que parou às 19 horas na proximidade do Matadouro Modelo,
vieram 239 pessoas e a segunda, que chegou no mesmo local pouco depois das 22
horas, conduziu 1.110 flagelados. Foram ao todo, em um só dia 1.349. Hoje, às 14
horas, deverá chegar um outro trem especial trazendo mais de 500 retirantes.
Visita ao Campo de Concentração do Matadouro
Hoje, às 10 horas do dia, o diretor do O Povo, acompanhando o Dr. Ubirajara de
Negreiros, percorreu demoradamente a antiga feira do Matadouro Modelo, no Tauápe,
onde se acham concentrados mais de dois mil retirantes.
Na lagoa do Tauápe
Quando o carro chegou à lagoa do Tauápe, vimos ali cerca de trezentas mulheres e
crianças, banhando as e lavando roupas e redes. Os guardas civis vigiavam a lagoa,
impedindo que as pobres mulheres fossem perturbadas em seus trabalhos higiênicos
por curiosos...195

Frederico de Castro Neves elenca “novas sensibilidades” em relação à percepção das


multidões por parte da sociedade imersa nas crises climatéricas. A miséria, percebida, sobretudo
nos momentos em que os flagelados invadem a urbanidade, está relacionada a decadência física
e moral dos “invasores” que trazem consigo a peste, a violência e a degeneração. Nesse ensejo,
a caridade, associada a assistência aos pobres retirantes vai se tornando um pilar do modo como
a situação é ajustada, principalmente diante da relação destes com os fundamentos que já
norteavam as negociações em momentos de seca, a saber: o paternalismo e a moral religiosa. O
Estado é paulatinamente instado a adentrar essa sensibilidade, a assumi-la. A valorização da
moral ligada ao trabalho também se verifica. Através do trabalho, mendigos e desocupados
poderiam ser redirecionados ao convívio social, longe da vagabundagem e da baderna,
frequentemente relacionada à população pobre e a revolta que marca os momentos de carestia.

194
Ver RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza,
Museu do Ceará/SECULT, 2004.
195
Jornal O Povo. 16 de abril de 1932. Disponível em:
https://www20.opovo.com.br/app/acervo/noticiashistoricas/2014/04/16/noticiasnoticiashistoricas,3032795/o-
povo-no-campo-de-concentracao.shtml.Acesso em: 08 jan. 2019.
99

Por fim, destaque para a vigilância e desconfiança direcionada à multidão, incentivo perfeito às
práticas de controle e isolamento. 196

As estruturas de sentimentos aqui delineadas, portanto, conformam o ambiente social


e político onde se instituirão daí por diante as relações entre os retirantes e o universo
da vida urbana. A permanência de elementos característicos do modelo paternalista se
combina e se fusiona com novas noções e outros conceitos sobre a vida social e
comunitária e, especialmente, sobre a divisão da riqueza social em momentos de
escassez. [...] os movimentos da multidão, portanto, que irão se intensificar nos anos
seguintes, vão encontrar estas estruturas de sentimentos já razoavelmente
estabelecidas e daí por diante deverão, dentro dos termos ditados por elas, negocias
com as autoridades. 197

Entre antigas e novas respostas, durante a seca de 1932, o Estado interveio de maneira
sistemática. A tentativa de controlar e isolar a multidão por meio da criação de Campos de
Concentração promovia o confinamento das famílias que antes perambulavam em busca de
socorros. Pensados para agrupar esses indivíduos, os Campos contavam com o funcionamento
de serviços de assistência, mas também com barreiras que impediam que os indesejados
visitantes chegassem aos centros urbanos, sobretudo à capital.

No momento em que a seca de 1932 é declarada, a capital começa a tecer uma rede
de relações com as quais se cria um cenário de terror. A imagem da preocupação com
a seca e mais ainda com o flagelo dava respaldo e legitimidade aos projetos das elites
para o controle da situação. Os poderes públicos bem como a burguesia de Fortaleza
entendiam que era urgente conter a força demolidora da multidão que chegava de
todas as partes do Estado.198

Em seu relatório de final de governo, Mendonça dá destaque à atuação de José Américo


frente a liberação de recursos para os socorros, “com as verbas enviadas pelo Ministério da
Viação, o Departamento das secas alimentou um número considerável de famintos, acima das
previsões”.199 Os pedidos enviados pela Interventoria e o Gabinete da Presidência, depois
encaminhados ao Ministério da Viação e Obras Públicas, solicitavam verbas e autorização para
requisição de gêneros, em caso de emergência, para o abastecimento dos centros de serviços e

196
Cf. NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de
Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000. p. 92-99.
197
Ibid., p. 98-99
198
Ver: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza,
Museu do Ceará/SECULT, 2004. p. 40
199
A título de auxílio, em 1932, o estado recebeu do Ministério da Viação: Dia 20 de abril....260:000$000; Dia 2
de maio....200:000$000; Dia 11 de maio ....200:000$000; Dia 24 de maio....200:000$000; Dia 8 de
junho....200:000$000; Dia 18 de agosto....650:000$000; Dia 13 de setembro....700:000$000; Dia 1 de
novembro....800:000$000; Dia 7 de dezembro ....300:000$000; 14 de dezembro....500:000$000; 1933: Dia 25
de janeiro: ....1.000::000$000; Dia 1 março ....1.500:000$000; Total: ....6.510:000$000. Relatório de
administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 64. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
100

Campos de Concentração de flagelados.200 Além dos vários créditos extraordinários abertos


pelo Estado201 e as importâncias enumeradas – ver nota -, o Departamento de Secas recebeu do
Ministério da Viação a importância de cento e cinquenta contos de réis (150:000$000), para
abrir e custear despesas com a manutenção dos fornecimentos aos operários empregados via
IFOCS.
A concentração dos retirantes da seca nesses campos durou um ano, principiada em
março de 1932 e encerrada entre março e abril de 1933, com o início das chuvas que banharam
plantações, cabeceiras de rios e preencheram barragens no estado. Em maio de 1933, já não
existiam concentrações no Estado. No entanto, restou o aumento da pobreza urbana que já
permeava o cotidiano, sobretudo em Fortaleza, ampliando a ocupação nos bairros Otávio
Bonfim e Arraial Moura Brasil, impulsionando o processo de formação de favelas na cidade.
O desmantelamento da já frágil economia cearense ocorrida durante a Seca de 1932
ocasionou ainda efeitos que se projetaram com severidade no ano de 1933. Visando a retomada
da atividade agrícola, mas também fazer retornar os retirantes aos seus municípios de origem,
o governo distribuiu sementes e passagens. Emblematicamente, ainda em 1933, no mês de
setembro, Carneiro de Mendonça inaugurou a Exposição Agropecuária e Indústrias Correlatas,
viabilizada pelos trabalhos dos alunos da Escola de Agronomia. Exteriorizando a recuperação
do Estado, após a seca, Mendonça recebeu seus principais interlocutores do período de crise,
os Ministros da Agricultura, Juarez Távora, e da Viação e Obras Públicas, José Américo, entre
outras figuras ilustres.

A afluência de pessoas interessadas em assuntos agropecuários excedeu à expectativa,


manifestando as mesmas magníficas impressões do importante certame. Foi um
acontecimento de grande relevância e de especial significação para aqueles que
conhecem as dificuldades da nossa agricultura e pecuária e certamente há de produzir
resultados benéficos às principais fontes de produção do estado.202

Mesmo alardeando e projetando tempos melhores, os desdobramentos duradouros da


seca fizeram persistir a pressão para que o governo federal tornasse perenes os auxílios aos
estados assolados pela seca. A partir disso, os deputados nortistas envolvidos nos trabalhos da

200
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
2018.
201
“Contribuiu o estado, assim, com a importância de 505:000$000, quinhentos contos de reis, para os serviços de
socorro e assistência aos flagelados, sem contar com alguns serviços efetuados com as próprias verbas
orçamentárias”. Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 64.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul.
2018.
202
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 270. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
101

Constituinte de 1934, se esmeraram para que houvesse a inclusão da questão da seca no texto
constitucional aprovado.
Em 1933, Carneiro de Mendonça pede, mais uma vez, sua exoneração do cargo de
Interventor Federal. Ele já havia solicitado seu desligamento das funções em outros momentos,
pouco antes da revolução constitucionalista de 1932. Quando a situação do conflito em São
Paulo arrefeceu e as dificuldades decorrentes da seca diminuíram, Mendonça proferiu
novamente sua contrariedade a Vargas, pessoalmente e por meio de correspondências. Segundo
Renato Lemos, em carta enviada em 2 de fevereiro de 1933, Carneiro de Mendonça expôs sua
opinião “em relação à organização de um partido político revolucionário, por intermédio do
qual a revolução defenderá nas urnas a ideologia implantada pelo movimento vitorioso em
outubro de 1930”.203
O saldo do governo de Carneiro de Mendonça, nas palavras do presidente Getúlio
Vargas, quando em visita ao Norte, incluía a boa relação entre ele e seus governados:

A profícua obra administrativa do Capitão Carneiro de Mendonça há de encontrar


continuadores no seio da nova geração cearense, herdeira de gloriosas tradições de
inteligência, de cultura, de ação persistente e empreendedora — geração que, entre os
seus representantes de maior relevo, viu destacar-se a individualidade precursora de
Juarez Távora, denodado paladino do movimento de renovação nacional e, hoje, um
dos construtores do novo regime. Antevejo e presságio o progresso e o
engrandecimento do Ceará. Nem poderia deixar de ser assim. O Ceará, rico de homens
notáveis pelo pensamento e pela ação; berço do maior romancista nacional, que
perpetuou na sua arte, primacial pela brasilidade, a beleza dos horizontes em que
Iracema viveu e morreu de amor, e o verde dos "mares bravios" onde o jangadeiro
audaz, entre o céu e as águas, afronta o desconhecido; o Ceará, terra fraternal, que,
pelo impulso cívico de seus filhos, foi a primeira a livrar-se da mácula da escravidão;
o Ceará, cujas valorosas populações, quando agredidas pelas calamidades naturais,
nas épocas dolorosas em que a gleba nativa lhes nega o indispensável à vida, obrigadas
a abandoná-las, encontram ainda energias para incorporar à economia nacional
regiões desertas, mas opulentas; o Ceará, lendário nas suas glórias, resistente nas suas
horas de infortúnio. 204

O apoio amealhado ao longo dos anos por Carneiro de Mendonça foi confirmado
durante os rumores de sua saída do governo do Ceará. Telegramas enviados por apoiadores de
diversas matrizes, provenientes de todas as partes do Estado, solicitaram que Vargas não
aceitasse a demissão de Mendonça.

203
LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
204
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933, p. 381. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso em: 21 dez. 2019.
102

Recebido em 9 de janeiro 1934, o telegrama do Centro baturitenses informa o


sentimento unânime de seus associados e de todo município de Baturité contra a demissão
pedida pelo Interventor Carneiro de Mendonça. O presidente poderia “quando muito licenciá-
lo sem nomear outro substituto, evitando assim que o Ceará venha sofrer dias amargos de
implantação de governo partidário”. O sentido da solicitação parecia ser a tentativa de fortalecer
o capital político do Interventor, pois, segundo o telegrama, “Diante dessa manifestação grande
massa popular todas as classes ontem, Interventor está disposto a ceder o povo apelo a vossa
excelência”.205 Assim, ao Presidente caberia convencê-lo a ficar.
A Liga Católica, importante núcleo político do período, também enviou
correspondência ao Gabinete Civil da Presidência. Datado de 5 de janeiro de 1934, o texto
avisava que, seguindo o apelo das classes representativas do Estado, a Liga Eleitoral Católica,
“exprimindo anseio geral da população do Ceará, pede vossa excelência, converter em licença
a exoneração solicitada pelo Interventor Carneiro de Mendonça”. Afirmando dar conta do
ardente “desejo do povo” que manifestava empolgante homenagem ao Interventor que, tal qual
já adiantara telegramas anteriores, havia declarado que se conformaria com os pedidos da
população “desde que vossa excelência assim julgue útil interesse da revolução”. 206
Como se percebe, pela defesa de sua gestão, apesar das frequentes cobranças públicas
para que se mantivesse longe das oligarquias tradicionais, Mendonça conseguiu relativa
“conciliação entre os grupos políticos locais em luta pelo poder no Ceará – Oposicionistas
(oligarquias decaídas) e situacionistas (facção tavorista)”.207 No transcurso do seu governo,
observa-se a abertura de espaço político na nova Interventoria para setores das oligarquias
“decaídas”. Simone de Sousa chama atenção para o caso da Secretaria de Justiça e Negócios do
Interior, importante posto da máquina administrativa do Estado, ocupada pelo magistrado
Olívio Câmara, “identificado com os grupos mais tradicionais do Estado”.208
Somente com as contendas em torno da composição da constituinte federal, em 1933,
as disputas políticas voltam ao centro do debate, com destaque para o aglomerado de forças
reacionárias em volta da Liga Eleitoral Católica (LEC), bloco que recebeu apoio de Carneiro
de Mendonça.

205
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
206
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
207
SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP, 1982. P. 22-23.
208
SOUZA, ibid.
103

Em carta endereçada ao Presidente Vargas, datada de 23 de outubro de 1933, Mendonça


entrega o cargo de Interventor Federal.209 Em papel timbrado do gabinete da Interventoria
Federal ele explica que tal como previamente combinado com Vargas durante a última
audiência que tiveram, reafirmava a resolução de afastar-se da Interventoria Federal do Ceará.
E, de acordo com as instruções que recebeu naquela ocasião, escrevia a missiva, enviando-lhe
logo que se encerrou a visita de Vargas a região.
Na carta, Mendonça não deixa registrados os temas que motivaram a exoneração, por
achar desnecessário por serem “assunto por demais ventilado pessoalmente e por cartas, fio que
v.exa. nenhuma dúvida terá quanto a sinceridade dos meus propósitos, pela certeza de que não
me animam intenções subalternas”. 210

Conforme tive oportunidade de declarar a v.exa., não tenho – e nem poderia tê-lo –
candidatos ao cargo que devo deixar dentro em breve. Isso, porém, não impede que,
melhor conhecendo o meio, eu cumpra, quando mais não fosse, por elementar
lealdade, o dever de esclarecê-lo sobre os pontos que, ao meu ver, devem ser tomados
em consideração Para que a substituição se processe num ambiente de paz e
tranquilidade que todos sinceramente devem desejar.211

Para ele, qualquer que seja o pretendente escolhido, “por mais respeitável que seja o seu
nome, ainda que amparado num passado de honradez e dignidade, encontrará imediata oposição
e fará de pronto ressurgir a velha política de campanário, se saído de quaisquer das correntes
políticas aqui existentes”. Para justificar a opinião, Mendonça evoca a “maior crise climática”
da História do Ceará e seus desdobramentos danosos para a economia local, realidade que fazia,
em sua opinião, do Ceará um Estado frágil que não suportaria naquele momento, uma luta
política. Assim, Carneiro fazia jus ao apoio recebido, buscando emplacar um substituto que se
encaixasse nos arranjos costurados por ele ao longo de sua gestão e, ao mesmo tempo,
fortalecendo sua boa fama de defensor dos ideais revolucionários.

Se, porém, v.exa. atentando para essas observações que faço movido tão somente pelo
desejo de bem servi-lhe, servindo a revolução, escolher para seu delegado neste
estado, um elemento completamente estranho á política, absolutamente desligado de
compromissos partidários, se possível, estranho ao meio, cujo passado seja penhor de
honradez e trabalho, a substituição se processará sem quebra do ambiente de paz e
tranquilidade em que aqui vivemos. O povo cearense, como em geral, todo o povo
brasileiro, está farto de política nas administrações. 212

209
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
210
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
211
Ibid., 1933.
212
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Carta endereçada ao
Presidente Vargas, datada de 23 de outubro de 1933. Acesso em: 02 de maio de 2018.
104

O povo cearense “bom, generoso e hospitaleiro, completamente emancipado do ridículo


e injustificável espírito regionalista”, não imporia dificuldades, ao contrário, tudo facilitaria,
desde que o substituto para lá designado, se ativesse unicamente aos “propósitos de administrar
rigorosamente dentro das normas escritas pela revolução vitoriosa em outubro de 1930”.
Mendonça conclui a carta colocando-se à disposição para continuar contribuindo com o país,
“coloco-me à vontade para mais uma vez assegurar a v.exa. que regressando ao seio da minha
classe, lá continuarei a ser o mesmo modesto soldado da revolução”.
Dando conta do recebimento dos pedidos pela permanecia de Mendonça, Vargas
responde a carta com cortesia em 30 de outubro 1933. Reafirmando a confiança no Capitão,
pede a opinião para promover o preenchimento do cargo no Ceará, acenando positivamente,
portanto, ao pedido feito por Mendonça na carta de exoneração. Quanto ao momento da saída
do Capitão do governo do Ceará, Vargas faz questão de indicar que o período de debate em
torno da Constituição, não era propício. No entanto, não podia mais opor-se por mais tempo “a
pedido tão insistentemente reiterado”.213
Carneiro de Mendonça escreveu ao ministro José Américo sobre as motivações que o
levaram a solicitar a exoneração. O texto, sem datação clara, taxado como “reservado”, indica
haver correspondência de teor político entre os dois.
Diz Mendonça,
Acuso telegrama urgente ontem qual chegou justo momento acabava receber
manifestação elementos do povo pedindo minha permanência ao menos até o início
trabalhos construção porto oportunidade que aproveitei expor sinceramente
imperiosas razões minha resolução. Meditei maduramente sobre dificuldades situação
geral consequência últimos acontecimentos políticos, bem como sobre embaraços
minha substituição tem trazido a Juarez. 214

Escrita antes da efetivação da exoneração, ocorrida em definitivo somente em outubro,


Mendonça adianta que sua postura de descontentamento com os rumos políticos da nação era
frequente, o que estaria reverberando em outras relações políticas, incluindo aí os laços com
Juarez Távora. Apesar da insistência com o pedido, Mendonça titubeia em sua decisão na
missiva para Américo e confidencia:

Se por qualquer motivo que deixo juízo amigos minha exoneração for considerada
agravante para a situação geral, peço então ao chefe de governo que me conceda
licença ou chame ao Rio determinando passagem do governo ao secretário do interior,

213
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Carta endereçada ao
Interventor Carneiro de Mendonça, datada de 30 de outubro de 1933. Acesso em: 02 de maio de 2018.
214
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16- Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
105

cuja atuação quatro interinidades asseguram continuação da tranquilidade aqui


reinante.215

Em meio a dúvidas, Mendonça confia a Américo não só a disseminação da sua resolução


entre aliados, mas pede também conselhos para lidar com a turbulência, pedindo-lhe para “dar
ciência a demais amigos signatários do telegrama, bem como Martins Almeida e Ruy Carneiro
dos quais recebi também palavras amigas sobre assuntos. Aguardo ordens possível brevidade a
fim de orientar-me”. 216 Concluindo a carta que envia a Américo, Mendonça deixa seu desejo
final bem claro, “Espero farão justiça acreditar que se tivesse havido perturbação da ordem
jamais alegaria tais razões e cumpriria meu dever sacrificar causa revolução que é do Brasil”.217
Julgava que havia dado amostras de que seus mais autênticos empenhos estiveram sempre
subordinados aos interesses públicos.
Américo é lembrado com louvor no relatório final de Mendonça, que afirma a
necessidade de exaltar sempre os serviços do Ministro:

Mais uma vez, surge a figura do grande ministro – JOSÉ AMERICO DE ALMEIDA,
(destaque do autor), justamente chamado – salvador do nordeste – a quem o Ceará
deve a continuidade de sua vida econômica e financeira e apropria conservação dos
núcleos de população sertaneja. Se, na fase aguda da seca, o eminente brasileiro se
dignara observar, in loco, a situação do Nordeste, para reclamar providências sobre a
execução das obras de emergência, arriscando a sua própria vida, retornou a esta gleba
adusta para estudar, em benefício direto do povo, a melhor maneira de operar a
desconcentração que se impunha. Num gesto altamente dignificante e nobre, que
caracteriza os atos de sua vida pública – o ministro José Américo de Almeida
autorizou a Rede de Viação Cearense a fornecer, por intermédio da administração do
Estado, as passagens precisas ao transporte dos flagelados aos seus municípios e como
medida complementar, mandou fornecer, com requisição desta interventoria,
passagens para cerca de 15.000 flagelados que tomaram rumos diversos, uns para o
norte, outros para o sul. 218

Como visto ao longo do texto, para viabilizar os esforços, a Interventoria do Ceará


seguiu solicitando ao governo federal para custear as despesas a serem efetuadas uma vez que
a situação financeira do Estado não permitia. Para tal, desenvolvem fluxos, setores e planos de
combate à seca, estabelecendo estrita relação com o Ministro José Américo. Nas palavras do
Interventor Carneiro de Mendonça, “Graças à atuação patriótica do exmo. Sr. Ministro da
Viação, dr. José Américo de Almeida – a quem o Ceará, é por demais grato e reconhecido – em

215
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
216
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
217
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
218
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 66. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
106

abril de 1932 foram remetidos os primeiros numerários a este estado”.219 Tendo em vista tais
argumentos, o tópico que se segue versará sobre essa relação entre Interventoria e Ministério
em prol dos socorros aos flagelados e para a consolidação de um projeto amplo e duradouro de
combate à seca, que nem sempre pode ser viabilizado.

2.3 José Américo, o Ministro das Secas

Em novembro de 1930, o General Juarez Távora, admirado em todo o Brasil, veio a sua
terra natal, o Ceará, junto a outro importante personagem do processo revolucionário, o
paraibano José Américo de Almeida. A passagem de José Américo e do General Juarez Távora
pela cidade de Cedro, Centro-Sul do Ceará, foi descrita como sendo uma “festa republicana”.
Um “bloco de famílias e pessoas de distinção local, notando-se ainda muitos populares” correu
à estação para receber a comitiva.220
A oportunidade de estar na presença de personagens tão conhecidos animava a grande
recepção aos heróis de outubro de 1930 que representavam o triunfo da empreitada
revolucionária. Quando os cidadãos locais souberam que dali o préstito seguiria viagem, via
Paraíba, resolveram então aguardar a comitiva no entorno da estação. Quando o troly motor
apontou na curva da linha, fogos de artifício foram disparados e a banda de música iniciou uma
marcha triunfal. Os jornais cearenses deram publicidade à festa em Cedro, indicando que
Américo e Juarez foram recebidos com flores, ovacionados pela plateia formada pelo povo dos
arredores que demonstrava o “contentamento de se verem, livres da tirania e de vislumbrarem
dias de paz e de progresso para o Nordeste”. 221 Havia, lá, clérigos, funcionários públicos,
artistas e operários numa recepção tão magnânima que a comitiva revolucionária pernoitou na
cidade. No dia seguinte, “por iniciativa de gentis senhoritas”, organizou-se uma caminhada
pelas ruas centrais da cidade, frente à bandeira nacional e a de João Pessoa. Tudo num tom de
lição cívica.
Os dois ilustres nordestinos estavam na região a pretexto de realizarem uma visita ao
local do futuro açude Orós222, exprimindo assim que o grupo vitorioso em outubro já aprontava

219
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 63. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
220
Jornal A Razão, 19 de novembro de 1930.
221
Jornal A Razão 19 de novembro de 1930.
222
“Segundo a conceituação nordestina, chama-se Açude qualquer reservatório de água nascido da interceptação
de uma corrente, e compreende ao mesmo tempo a barragem, isto é, um dique de terra ou concreto que detém
o curso d’água e o lago por ele formado. Em rios não perenes, como são os nordestinos – exceções importantes
o São Francisco e Paraíba-, os açudes recebem água apenas na estação chuvosa, podendo ou não o nível da
água atingir a cota de repleção e extravasar pelo vazadouro, ou seja, “sangrar”.” In. GUERRA, Paulo, de Brito,
107

a materialização dos compromissos feitos pela Aliança Libertadora quando em suas incursões
pelo Ceará prometeram erigir um país renovado. Para as bandas do Ceará, essas obrigações se
desdobrariam, no nível local, com a construção de açudes, de estradas e do porto de Fortaleza.
Era isso que se esperava do novo governo.
José Américo de Almeida foi nomeado Ministro da Viação e Obras Públicas no mês de
novembro de 1930, início do Governo Provisório. Nos jornais a escolha foi recebida de forma
positiva, sobretudo diante da projeção nacional que a figura do paraibano ganhou no desenrolar
da campanha revolucionária. Outro ponto sempre lembrado pelos jornalistas era a relação de
proximidade entre Américo e João Pessoa, vice da chapa de Vargas assassinado antes das
eleições de 1930.

José Américo vinculou-se à ideologia renovadora com raízes tão profundas e com
tamanha sinceridade, acompanhado a obra e as atitudes do grande e inesquecível João
pessoa. [...] a região flagelada e heroica não poderia enviar melhor representação para
o governo federal. Ele resume as qualidades admiráveis de tenacidade e de bravura
cívica dos homens que aqui lutaram pela queda das oligarquias infamantes que nos
degradavam. [...] José Américo de Almeida será também um porta-voz de
Pernambuco junto ao governo da república. Já não há fronteiras entre a terra onde
brilhou a estrela fulgurante de João Pessoa.223

As notícias da indicação de Américo para o Ministério da Viação e Obras Públicas224


correram o Ceará num misto de pesar e confiança. Pesar porque o cargo foi inicialmente
oferecido ao cearense Juarez Távora, o que causou verdadeiro frisson nos círculos nortistas que,

A civilização da seca. O Nordeste é uma História mal contada. Fortaleza: Ministério do Interior. Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas, 1981. p. 143. A barragem do Açude Orós, localizada no município de
Orós, no Ceará, represa as águas do rio Jaguaribe, relevante bacia hidrográfica do estado, drenando cerca de
25.000 km2. Suas funções incluem a perenização do rio Jaguaribe; irrigação do Médio e Baixo Jaguaribe;
piscicultura; culturas agrícolas de áreas de montante; turismo e aproveitamento hidrelétrico. A obra foi
viabilizada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, inaugurada em 11 de janeiro de
1961, por Juscelino Kubitschek de Oliveira. As expectativas em torno das possibilidades de represar as águas
do Boqueirão de Orós se iniciaram ainda durante o Império, mas só durante o regime republicano, com a
criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), estudos técnicos foram iniciados. Durante a seca de
1919, o governo federal contratou a firma norte-americana Dwight P. Robinson & Co. afim para novos estudos.
As novas instalações foram destruídas durante uma enchente em 1924. A diminuição das verbas
disponibilizadas para a Inspetoria de Obras Contra as Secas fez paralisar as obras. Durante a Seca de 1932, o
combate à seca ganhou novo impulso, e mais uma vez, discutiu-se a construção do Orós, resultando na
atualização do projeto técnico para a barragem. Na década de 1957, novas definições técnicas foram inseridas
no planejamento. Em outubro de 1958 foram escavadas as fundações do Açude. Em 1960 os ritmos de
construção foram acelerados e, em 1961, a obra foi concluída. Disponível em:
https://www.dnocs.gov.br/barragens/oros/oros.htm. Acesso em: 12 jan. 2019.
223
Jornal A Razão 11 de novembro de 1930 do jornal carioca Diário da manhã, de 9 de novembro de 1930.
224
O Ministério de Indústria, Viação, Obras Públicas, em 1892. O decreto n.º 8.205, de 8 de setembro de 1910,
desanexou os negócios da Agricultura, Industria e Comercio da Pasta, ficando o escopo reduzido e
nomenclatura Ministério da Viação e Obras Públicas. Ver: JESUS, Jupira S. Palhano de. Viação e Obras
públicas (Elementos para a História do Ministério). Coleção Mauá. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e
Obras Públicas. Serviço de documentação, 1955.
108

já confiantes na atuação do militar frente à pasta responsável por questões como o combate à
seca e infraestrutura, lamentaram quando o General Távora declinou ao convite.
Em carta escrita a Vargas, Juarez lembra que recusou imediatamente a solicitação feita
pelo Presidente para que assumisse o Ministério da Viação, mas, por insistência de Oswaldo
Aranha, e “pelo desejo de servir ao seu governo e, indiretamente ao Nordeste”, acabou
aceitando o cargo momentaneamente. A decisão não durou muito. Segundo Juarez, desde o
momento em que aceitou a pasta “uma luta penosíssima” se travou em sua consciência.225 O
desfecho da luta foi recusar mais uma vez o cargo ofertado: “Deponho em suas mãos a pasta de
ministro com que v. exa. me honrou, para volver ao seio dos meus camaradas de exército”,
reafirmando seu lugar de atuação primordial, o de integrante das forças armadas. 226 A vontade
de simplesmente retornar às funções militares sustenta-se por pouco tempo. Depois de
negociações importantes, Juarez torna-se Delegado do Norte, cargo mais condizente com seus
anseios de consolidar o regime revolucionário na região por meio da ação coordenada em bloco,
agrupando estados e demandas daquele território.227
Durante a viagem ao Norte, Juarez reafirmou a recusa ao cargo de Ministro da Viação
e indicou José Américo para a colocação:

Telegrafo-lhe de pleno coração do Nordeste onde povo vibra de entusiasmo e


esperanças obra reivindicadora revolução nacional. Estudando conscienciosamente
situação geral desta zona país tenho concluído ser necessária minha assistência
imediata junto governos recém estabelecidos afim mais prontamente consolidar
regime revolucionário. Venho por isso declinar irrevogavelmente da honra vossencia
me conferiu incluindo-me no seu Ministério, pois estou convencido poderei prestar
melhores serviços seu governo e revolução conservando-me em contato com meus
camaradas Exército de cujo seio não desejo afastar-me nesta quadra difícil de
transição revolucionária. E já que vossencia em sua última entrevista comigo externou
o desejo de, na hipótese de eu renunciar a pasta da Viação, confiá-la a um
representante do Norte, tomo a liberdade de lembrar-lhe para substituir-me o nome do

225
FGV – Carta de Juarez Távora a Getúlio Vagas agradecendo e recusando sua nomeação para Ministro da Viação
e Obras Públicas, Rio de Janeiro. Classificação: GV c 1930.11.04. Série Correspondência. Data de Produção:
04/11/1930; Microfilmagem: rolo 2 fot. 0192 a 0192/3
226
FGV – Carta de Juarez Távora a Getúlio Vagas agradecendo e recusando sua nomeação para Ministro da Viação
e Obras Públicas, Rio de Janeiro. Classificação: GV c 1930.11.04. Série Correspondência. Data de Produção:
04/11/1930; Microfilmagem: rolo 2 fot. 0192 a 0192/3
227
Sobre o papel desempenhado por Juarez Távora junto ao Bloco do Norte, Lopes afirma que: “Juarez Távora
como um dos grandes heróis do movimento de 30, várias articulações políticas eram feitas com o objetivo de
colocá-lo no centro do novo governo. Essas articulações tiveram como protagonistas principais muitos
revolucionários nortistas, bem como outras figuras importantes do Governo Provisório. Elas tiveram como
ponto de partida a instabilidade dos primeiros meses do pós-revolução, marcado por grandes incertezas. Nesse
momento, no qual diversas possibilidades de configuração política se abriram, o nome de Juarez foi cogitado
para assumir cargos de alto destaque nacional”. ver: LOPES, Raimundo Hélio. Um Vice-Reinado Na República
do Pós-30: Juarez Távora, As Interventorias do Norte e a Guerra de 1932. Tese de Doutorado apresentada ao
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC. Rio de Janeiro, 2014.
P.60.
109

Dr. José Américo de Almeida, não só como um pócito de justiça ao seu mérito pessoal
mas também como uma merecida homenagem a Paraíba gloriosa de João Pessoa.228

Como argumenta Hélio Lopes, ao passo em que entra em contato com os revolucionários
nortistas, Juarez consolida a recusa ao cargo de Ministro, reafirmando sua vontade de ajudar os
novos governantes do Norte na estabilização da região e materialização do projeto
revolucionário. Assim, manteve-se no seio militar e em seu lugar de herói da Revolução, mas
sempre muito próximo às instâncias de poder recém-estabelecidas. Américo foi alçado ao
Ministério da Viação, seguindo a vontade de Vargas e de Juarez, mantendo o cargo nas mãos
de algum representante da região historicamente assistida pela pasta.229 Américo, inegável líder
revolucionário nortista, teve seu nome acolhido sem altercações. Vargas, registrou em seu
diário, em 10 de novembro de 1930: “Távora telegrafou de Natal, declinando do cargo de
ministro da Viação e lembrando o nome de José Américo, conforme ficara combinado. Aceito
a sugestão e telegrafo a ambos”.230
Quando Juarez ofereceu a indicação do nome de Américo para o cargo, e foi atendido
por Getúlio Vargas, irrompeu nova onda de esperança acerca das possíveis ações do Ministério
de Viação e Obras Públicas para o Ceará e para a região atingida pela seca.

Está confirmada a notícia de que, afinal, por insistência do general Juarez Távora e
com o assentimento do presidente Getúlio Vargas, o dr. José Américo de Almeida,
ocupará o Ministério da Viação. Conforme prevíamos, o dr. José Américo não quis
aceitar a elevada investidura pelo fato do general Juarez Távora representação perfeita
e condignamente o pensamento da Paraíba e do seu povo, ou melhor, de todo o Norte,
do qual é o chefe supremo; mas, tais foram os argumentos expandidos, tão poderosas
foram as razões e as conveniências de ordem geral e particular, expostas e focalizadas
pelo bravo soldado da República que o dr. Jose Américo não pode deixar de atendê-
lo.231

A recepção da negociação acerca da chefia do Ministério da Viação, segundo o artigo


do jornal A Razão, era de que os nortistas e os brasileiros em geral saíram ganhando, pois, “livre
de certas injunções inerentes ao cargo de ministro, o preclaro general Juarez Távora com o seu
imenso prestígio estenderá sua ação profícua, diligente e patriótica a todos os ramos da
administração púbica”. Assim, Américo e Juarez cooperariam com o governo da República para
solucionar os mais variados problemas que acometiam o país e, em especial, o Norte.

228
FGV - Arquivo Juarez Távora. R. 2285-2287/3695. Apud LOPES, 2014. p. 90.
229
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 90.
230
VARGAS, Getúlio. Diário. Volume 1. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995,
p. 24. Apud LOPES, ibid., 2014. p. 90.
231
Jornal A Razão 11, de novembro de 1930.
110

Depois da visita ao local onde seria construído o reservatório de Orós, a comitiva seguiu
para Belém. O novo Ministro da Viação, tendo visto com seus próprios olhos a situação do
povo, estaria capacitado para tratar de necessidades reais. Para os observadores locais, a
edificação de reservatórios e a construção de estradas a ser chefiadas por Américo faria com
que Ceará, Paraíba e toda a região fossem amparados, finalmente.232
Getúlio Vargas disse, em discurso proferido em Fortaleza, que desde o início de seu
governo interessou-se pelo problema das secas, e que a nomeação de Américo, realizada “muito
deliberadamente”, contava a favor dessa preocupação com o Norte. Para ele, José Américo
como Ministro da Viação, significava o sucesso na viabilização de parte das promessas feitas
quando ainda era candidato à Presidência. Na opinião dele, e de muitos, Américo de Almeida
era um “profundo conhecedor das necessidades e do ambiente nordestino”, os “vaticínios” do
presidente não haveriam de estar errados. 233
José Américo de Almeida, quinto filho de família numerosa, nasceu no município de
Areias, Paraíba. Abandonou o Seminário em 1904 e ingressou no Liceu Paraibano, depois,
cursou a Faculdade de Direito de Recife, formando-se em 1908. Ao lado do tio e padrinho,
Valfredo Leão, então presidente do Estado, ingressou na vida política. Mais tarde, foi nomeado
promotor em Sousa, sertão paraibano, onde acompanhou a calamidade da seca. Américo
enfrentaria outros cenários de crise climatérica em 1932 e 1952, nessas ocasiões, como Ministro
de Estado.234
No cenário político da nova República, Almeida abriu caminho como uma das figuras
mais admiradas e elogiadas, inclusive destacando-se entre os Ministros nomeados por Vargas.
Mesmo diante das frequentes contestações que o novo governo recebia, Américo destacava-se
positivamente: “em que pese aos extremados esmiuçadores de falhas nos atos dos homens de
governo, destacava-se, resistindo a todas as críticas, a figura moça do sr. José Américo de
Almeida, cuja atuação [...] vem despertando as melhores simpatias”.235
Desde os primeiros momentos da Revolução de 1930, Américo, juntamente com alguns
outros nortistas de seis estados, com destaque para a atuação do cearense Juarez Távora,
iniciaram movimentações para construção do bloco político e militar do Norte. Segundo Lopes,
no dia 9 de outubro, imediatamente após o golpe, mesmo sem a oficialização da queda da

232
Ibid., 1930.
233
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso em: 21 dez. 2019. (p. 375).
234
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo FLAKSMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 19-25.
235
Jornal A Razão, 21 de agosto de 1931.
111

República, Juarez nomeou José Américo de Almeida, à época presidente provisório da Paraíba,
para o cargo de governador-geral do Norte, afim de que Américo concentrasse as funções do
governo federal naquele lugar. A decisão foi o “primeiro passo para o surgimento do Norte do
pós-30, pois com um governo autônomo em relação ao processo revolucionário nacional, mas
dependente do seu desenrolar, foi iniciada a (re)organização político administrativa da
região”.236
A propósito da anunciada fundação do Bloco do Norte, Américo de Almeida encarou
algumas críticas quanto a um possível favorecimento dos estados da região. O Bloco
Geopolítico encabeçado por Juarez Távora foi visto como um grupo responsável pela sua
nomeação e interessado em adicionar suas demandas aos interesses da nação. Américo
comentou que os esforços regionais não deveriam ser percebidos como divisionistas, mas como
parte dos esforços para implementação dos objetivos da revolução. Essa, sim, “um bloco só e
representado por todo o povo brasileiro solidário com os ideais que a inspiram e que a
animam”.237 Américo frisou que a ideia do Bloco do Norte até podia fazer crer que “no
setentrião se cogita de qualquer coisa diferente do que se está fazendo no Sul”, mas que, na
verdade, o Norte não poderia realizar sozinho os postulados revolucionários, nem tão pouco o
Sul. Antes de se identificar como nortista apresentou-se como revolucionário, guardião da
unidade nacional defendida pela Revolução de 1930, que era, sobretudo, “um movimento de
brasilidade”. Por fim, reconheceu que “o Norte, como o Sul, tem problema à parte, requerendo
também soluções particulares”.238 Trabalhar pela resolução dos problemas nacionais passou a
ser sua bandeira pessoal, mas a crise climatérica recrudesceu em 1932, exigindo dele atenção
especial aos desvalidos. Nesse momento delicado para o Brasil e para a organização do Norte,
Almeida reconhecidamente ligado ao grupo que compunha o novo Bloco, passa a ser
responsável pela pasta incumbida dos esforços de infraestrutura e dos socorros aos flagelados
da seca. Assume, portanto, essa função a partir desse lugar, a partir dessa trajetória.
Segundo Jivago Correia Barbosa, José Américo de Almeida, em 1950, durante sua
campanha para o Governo da Paraíba, ostentou o título de “salvador dos sertões” como uma
espécie de slogan. Essa boa fama se originou com sua atuação no Ministério da Viação e Obras
Públicas durante o Governo Provisório. Ao longo da crise, Américo foi muitas vezes apontado
como “salvador” das vítimas das secas. Com isso, seu capital político foi ampliando e sua

236
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 74.
237
Jornal A Razão, 29 de agosto de 1931.
238
Ibid., 1931.
112

popularidade estendeu-se por todo o país. Suas ações, amplamente divulgadas pela imprensa
brasileira, fizeram dele o “Ministro da Secas”.239
Em uma das primeiras entrevistas concedidas por Américo como ministro, o tom
empregado por ele a respeito do ritmo de construção de grandes obras não foi animador. José
Américo afirmou que o governo não cogitava realizar onerosos empreendimentos que pesassem
nos combalidos cofres da União. Falando a um jornal carioca, num texto vinculado
posteriormente no periódico cearense A Razão, o titular da Viação afirmou que a “situação de
apertura” em que se encontrava o país, tornava bastante delicado o período pós-revolução.
Naquele momento, todos os envolvidos na nova administração do país primavam pela cautela,
sobretudo diante do desconhecimento das reais condições financeiras do Estado. Assim,
segundo Américo, realizações maiores só poderiam ser feitas mais adiante. Américo encerrou
sua fala de maneira firme: “Posso afirmar que o Governo Provisório não cogita presentemente
de novas iniciativas que não desaconselhadas pelo estado crítico que atravessam as finanças
brasileiras”.240
No entanto, aos poucos a cautela deu lugar à elaboração de planejamentos mais
audaciosos, que reverberavam na modificação da estrutura do Ministério e dos órgãos sob sua
tutela, o que, naturalmente, influiu na maneira como o novo Ministro passou a ser percebido
pela sociedade brasileira. A nova racionalidade pública e reformismo implementada por
Américo eram parte do programa revolucionário tenentista, inspirado nas instruções de cunho
nacionalista do Clube 3 de Outubro. Ao tempo em que criticava o tenentismo “em seus
desgovernos e excessos”, falava em nome do movimento “ao lançar o libelo exemplar contra a
República Velha [...]”.241 Os vínculos com o tenentismo foram fundamentais para o modo como
conduziu o Ministério e, posteriormente, para a concretização de sua candidatura à Presidência
da República, em 1937.
Na entrevista que concedeu ao Diário da Manhã, de Recife, Américo externou a ideia
de deslocar do Rio de Janeiro para o Ceará a sede da Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas, numa demonstração clara da sua intenção de rever a lógica administrativa do Ministério
e assim imprimir sua marca ao combate à seca. A permanência da Inspetoria no Rio de Janeiro
era vista como empecilho aos trabalhos nos estados, razão de ser da Instituição. O aceno foi

239
. BARBOSA, Jivago Correia. Política e assistencialismo na Paraíba: o governo de José Américo de Almeida
(1951-1956). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de
Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2011. p. 229-230.
240
Jornal A Razão, 2 de setembro de 1931.
241
CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, p. 32.
113

encarado como “uma prova evidente de que apreendeu magnificamente os pontos essenciais”
das demandas cearenses.242 Esse gesto, que seria tão simbólico, no entanto, não foi viabilizado.
A realidade precisava ser mudada, mas as estruturas eram mais arraigadas que supunha
Américo.
Era meu pensamento transferir para o Ceará a sede da inspetoria, por ser o Nordeste
o campo de sua atividade. Parecia-me que, por maior que fosse a necessidade da
estreita ligação entre qualquer serviço Federal e o Centro de administração pública de
que ele dependa, não poderia essa condição dominar, a ponto de afastar o seu elemento
principal de direção dos elementos técnicos, administrativos e operário em ação. [...]
Impunha-se, portanto, a integração definitiva da inspetoria no coração da zona
flagelada, no anfiteatro das secas, cujos efeitos teria que combater.243

Nas palavras de Américo, o “vício da permanência da sede da inspetoria no Rio de


Janeiro”, decorria da lógica centralizadora da Instituição. Essa concentração administrativa e
geográfica tornou a Inspetoria, “improdutiva, principalmente por sua absorção burocrática”. As
mudanças capitaneadas por Américo resultaram em uma verdadeira queda de braços entre ele
e seus subordinados, respingando na boa fama do Ministro: [...] é exato que não o pouparam
alguns acusadores, muitos dos quais o alvejaram duramente, quando s. exma. ordenara, como
medida de salvação geral, a diminuição de despesas do ministério e a dispensa, dos cargos de
vários servidores da nação.244
As críticas direcionadas a José Américo incluíam ainda a revisão dos custos
administrativos da Inspetoria de Secas operada por ele. Na ocasião, o número de funcionários
foi diminuído e, apesar de manter o quadro de funcionários previsto no orçamento, Américo
inaugurou um regime que permitiu o afastamento “de elementos inválidos ou inaproveitáveis”.
Além disso, combateu a onerosa prática da contratação de “diaristas nos escritórios dos distritos
e, principalmente, na administração Central”. As críticas a esse cronograma de otimização dos
gastos públicos dificultaram a tomada de decisão em relação a mudança da sede da IFOCS,
impactando ainda na maneira como a Inspetoria passou a operar. Américo optou pela
manutenção da sede da Inspetoria no Rio de Janeiro sob argumentação de garantir a
proximidade “entre os chefes de cada serviço em contato direto com o ministério de que
depende”. 245
Para dar conta das mudanças que pretendia, o Ministro aprontou um novo
regulamento para o órgão.

242
Jornal A Razão, 11 de novembro de 1930.
243
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 192.
244
Jornal A Razão 21 de agosto de 1931.
245
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 193.
114

Ao tratar do novo regulamento da Inspetoria, o texto do relatório final de gestão do


Ministro assume um tom impessoal para imprimir a superioridade das intenções do chefe da
pasta:
O ministro da viação opôs todas as resistências aos apelos que refletiam interesses
privados ou de zonas, para não se desviar do programa de construções que se traçara.
Não se pode calcular que reserva de energia e espírito de renúncia foram necessários
para manter esses planos de ação, sobranceiros a todas as solicitações que derivam de
um regionalismo exagerado ou de ambições pessoais mal encobertas. 246

Segundo o registro de gestão, foi adotado o “critério invariável” de que todas as obras
deveriam passar por uma “apreciação superior” das questões econômica e social, e serem
resultado de “rigorosos estudos técnicos” que as justificassem. Nenhuma seria executada sem
passar pelo crivo central, sem constar como parte da “orientação geral do problema da seca” e
sem projetos definitivos. Dessa maneira, percebe-se que a estrutura administrativa foi
reconfigurada na superfície através de demissões e novos regulamentos, mas a centralização
das decisões acerca dos socorros foi mantida. Porém, sob nova tutela: o poder não mais estaria
com a cúpula da Inspetoria, mas, sim, com o Ministro.
A fim de agir em prol do estudo in loco e para compensar a não transferência da sede
da IFOCS, o Inspetor de Secas passou a ser obrigado a vistoriar os locais de trabalho, no
mínimo, três vezes por ano. Para dar conta da supervisão de todo o território, o Ministério
regulamentou novas áreas de atuação para a Inspetoria. Ao invés dos três distritos, manteve
apenas dois; o primeiro em Fortaleza, a cujo encargo ficam as obras e serviços no Estado do
Ceará e Piauí; o segundo em João Pessoa, compreendendo os trabalhos nos Estados de
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. “Por serem menos assolados, os Estados da Bahia,
Sergipe e Alagoas ficarão a cargo de um subdistrito, com sede em São Salvador”.247
O plano de combate às secas sugerido pelo Ministro da Viação e Obras Públicas
consistia, sobremaneira, em ampliar o serviço de construção de obras, adotando um ritmo
acelerado e uma organização sistemática. A viabilização dessas obras foi incluída no programa
de realizações da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Cabia a IFOCS fornecer auxílio
direto aos Interventores dos Estados, para que as obras pudessem ser executadas em parceria
com chefes estaduais. As obras de emergência seriam fiscalizadas pela Inspetoria. A ela caberia
organizar, em cooperação com os Ministérios do Trabalho e Agricultura, colônias agrícolas, em
zonas como o Piauí e Maranhão, para nelas localizar os emigrantes que não pudessem ser
aproveitados nos serviços das zonas diretamente atingidas pela seca. Segundo opinião de Juarez

246
ALMEIDA, ibid., 1933. p. 193.
247
Ibid., 1933. p. 193.
115

Távora, essas medidas eram, sem dúvida, “um programa de ação equilibrado e eficiente”, digno,
por isso mesmo, de ser adotado, daí em diante, dentro das possibilidades financeiras de cada
período governamental, até a solução definitiva do problema fosse viabilizada. 248
O auge das ações era a construção de pequenos, médio e grandes açudes, distribuídos
pela zona atingidas pelas secas. A ideia, nada nova, era promover o armazenamento de água
nos anos de inverno. Água suficiente para atender, nos anos de escassez, os imperativos da vida
sertaneja, matar a sede dos rebanhos e fertilizar a terra. A inovação seria a sistematização da
irrigação das terras adjacentes. Nesse momento, a irrigação passou a ser uma ação chave,
elemento a ser privilegiado para resolução do problema da seca, mais importante do que já
havia sido em esquemas de combate as secas anteriores. Segundo avaliação realizada por Juarez
Távora, quando ocupante do cargo de Ministro da Agricultura, naquele momento o serviço de
açudagem deveria “estar intimamente ligado ao de irrigação, dele decorrente”.249
As obras contra as secas pensadas ao longo da gestão de Américo constavam como parte
de um plano de conjunto. A reorganização dos órgãos responsáveis pelos socorros foi o
primeiro passo em direção a concretização de um novo modo de tratar o problema. Segundo
Américo, foi preciso redefinir o modo como a Inspetoria utilizava seu orçamento, deixando de
concentrá-la na “burocracia absorvente” e, principalmente, recusar totalmente o uso das verbas
da Inspetoria “ao sabor de influências estranhas à sua finalidade”. Esse desvio das funções da
Instituição era, na opinião do Ministro, o que esterilizava as atividades da IFOCS, sempre
parciais, “por falta, sobretudo, de um plano de conjunto, numa eterna sangria do erário público,
sem nenhuma perspectivada solução definitiva do problema”.250 A função da Inspetoria foi
transformada de maneira a priorizar o foco da atuação do plano ministerial de combate às secas:
importava suprir o Nordeste de água. Nesse sentido, “Está a sua função limitada, propriamente,
ao problema da água, que é o problema do Nordeste. O desenvolvimento da região sob os
demais aspectos será encargo de outros serviços públicos”. 251 No entanto, o ponto fundamental
se manteve; a Inspetoria das secas continuava tendo sua ação limitada pela escassez das verbas
orçamentárias que lhe eram concedidas.

248
ANRJ - Fundo 35 - gabinete civil da presidência da república. Lata 28 – ministério da agricultura. Ano 1932,
p. 39. Relatório Do Ministro Juarez Távora Sobre A Situação financeira, Econômica E Administrativa Do
Norte Ao Presidente Getúlio Vargas. Acesso em: 03 de maio de 2018.
249
Ibid., 1932, p. 39.
250
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 189-194.
251
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 190.
116

Por meio das ações previstas no novo regulamento da Inspetoria, aprovado pelo decreto
n.º 19.726, de 20 de fevereiro de 1931, a complexidade dos serviços do órgão foi eliminada,
fazendo a Inspetoria concentrar suas atividades na disseminação de obras de açudagem e
irrigação, deixando assim, de construir portos e ferrovias. Rodovias somente seriam construídas
pela IFOCS se consideradas indispensáveis à execução de planos principais.252 A solução
apontada, no entanto, não foi unânime e se modificou ao sabor de novas descobertas e,
principalmente, de novos governos.
Em 1932, a açudagem apontava para o papel decisivo do governo em prol do bem-estar
das populações atingidas pelas estiagens, mas, sobretudo, a possibilidade de transformação da
economia dos estados atingidos através da implementação sistemática do aproveitamento
racional das águas por meio da irrigação.

[...] o que convém, precipuamente, como correção da natureza semiárida do Nordeste,


é o armazenar a água copiosa que, distribuída irregularmente, se escoa pelo seu solo,
impermeável e declivoso. Obstar essa perda pela açudagem, em larga escala, é solução
direta do problema da seca, visando estabilizar a população sujeita a um desastrado
nomadismo e aproveitar terras propícias a todas as culturas agrícolas. 253

A empreitada somava-se aos esforços de auxiliar fazendeiros e pequenos proprietários


de terras, provendo-lhes instruções acerca da construção de açudes, detalhes sobre as formas e
dimensões adequadas para sangradouros, muralhas e comportas. Assim, a edificação de
reservatórios alcançaria resultados práticos e verificáveis. Nesse sentido, o Estado projeta-se
como força catalizadora dos esforços para modernização da sociedade, estruturalmente e
culturalmente.
A paisagem natural do sertão nordestino oferecia vantagens para esse intento. Segundo
Américo, bastava “restaurar a terra”, isto é, fechar os boqueirões. Outras condições naturais
colaboravam para esse plano de ação: “rios de correnteza e volume suficiente para a capacidade

252
Em “O sertão descoberto aos olhos do progresso: a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918)”, o
historiador Kleiton de Sousa Moraes (2010) proporciona um bom entendimento sobre a história da Inspetoria
de Obras Contra as Secas (IOCS) quando trata das relações de poder que permeavam a execução das
intervenções da instituição no semiárido brasileiro. Kleiton Moraes percebe que o órgão federal, desde o seu
estabelecimento, passou por tensões que marcaram seu desenvolvimento, mas esteve sempre permeado pela
proeminência de seus responsáveis, bem posicionados na configuração científica brasileira. Como será
demonstrado no próximo capítulo da tese, com as mudanças implementadas em 1932, nota-se que a Inspetoria
tem suas funções práticas e também sociais, reavaliadas, passando a ter sua autonomia comprometida pelas
determinações do Ministério da Viação. Assim, no período em questão, o capital político de seus responsáveis
esteve ainda mais a reboque de definições externas, relacionadas a dependência das verbas públicas já
observadas em períodos anteriores, mas também da profunda interferência promovida pelo Ministro da Viação
José Américo.
252
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
253
Ibid., 1933. p. 194.
117

dos reservatórios e áreas próprias à irrigação”. Sendo assim, o planejamento ministerial incluía
também a construção de açudes menores, pois haveria “exemplos, em todo o Nordeste, de
pequenos reservatórios que têm resistido mais de um ano de estiagem. E secas de mais de dois
anos são acidentes de raríssima exceção”.254 No plano proposto, consequentemente, importava
“a disseminação das obras de açudagem e irrigação [...] Fica, assim, eliminada a complexidade
dos serviços da inspetoria que a tornavam uma obra dispersiva e de difícil e onerosa
execução”.255
Ao direcionar a ação da IFOCS na construção de grandes barragens, o governo
determinou áreas específicas para receber esses empreendimentos de acordo com as quatro
bacias principais do semiárido nordestino, que passaram a constituir os sistema gerais de obras:
Sistema de Acaraú, no Ceará; Sistema do Jaguaribe, no Ceará; Sistema do Alto-Piranhas, na
Paraíba; e Sistema do Baixo-Assú, no Rio Grande do Norte. Os grandes diques a serem
edificados nessas áreas seriam complementares à pequena e média açudagem e, segundo o
projeto ministerial, comporiam a “solução integral” ao problema das secas. 256 Além disso, o
foco com a parceria privada mostrava-se promissora.

Um dos serviços verdadeiramente útil ao Ceará seco é esse que a IFOCS está
prestando aos proprietários de terras: mandando proceder os estudos auxiliares a
construção dos açudes particulares. Inúmeros reservatórios têm sido construídos
nessas condições e outros estão sendo estudados e em via de construção. Se bem que
o açude particular beneficie, em regra geral, unicamente os proprietários dos mesmos,
todavia não deixa de concorrer diretamente para a riqueza dos municípios onde os
mesmos são construídos, aumentando-lhes as possibilidades agrícolas e assegurando
o desenvolvimento da indústria e pecuária. 257

A água, ou melhor, a falta d’água, era o problema primordial para o sucesso das culturas
e da criação. A construção de reservatórios e a sua equilibrada distribuição através dos vastos
sertões do Ceará poderia mudar, num futuro próximo, os rumos da resolução do grande
problema da seca. O assunto devia interessar sobremaneira os proprietários de terras, mas não
resolvia a situação do sertanejo mais pobre.
Em 1932, o Ministério incluiu facilitar, por todos os meios possíveis, a açudagem média
e pequena em sistema de cooperação com todos os estados, municípios e particulares. O auxílio
pecuniário era pago em prestações no decurso da construção. Além dele, o estudo, projeto e

254
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
255
Ibid., 1933. p. 190.
256
Ibid., 1933. p. 190.
257
Jornal A Ordem, 30 de maio de 1930.
118

orçamento feitos pelos técnicos da Inspetoria eram oferecidos gratuitamente, facilitando assim
o início e andamento dos trabalhos. A principal regra era construir açudes associados à
irrigação: “Só será permitida a açudagem em terras que se prestem a irrigação e cultura agrícola
afim de que essa obra não venha a ser simples aguada”. Para o abastecimento regular da
população o Ministro indicava que a necessidade de estabelecer um sistema especial de poços,
passíveis de perfuração pelo regime de cooperação. 258
A açudagem em cooperação não era uma medida inédita. No início do século XX, o
governo era instado a construir açudes públicos, mas também auxiliar na edificação de tantos
outros em regime de cooperação, oferecendo estudos, empréstimos e prêmios. A ideia foi
acatada e a IFOCS criou um programa de açudagem em regime de cooperação. Nele, a
Inspetoria realizava os estudos necessários para o começo dos trabalhos e concedia prêmios de
até 50% do total do orçamento de obras particulares, chegando a 70% para obras promovidas
por iniciativa pública, estadual ou municipal. Como lembra Paulo de Brito Guerra, “comuns
foram os casos de açude construído apenas com o dinheiro do prêmio, quando o proprietário
utilizava toda a força de trabalho da fazenda, incluindo os filhos, os animais, as carroças e
viaturas”.259 O regime de cooperação foi bastante empregado no Ceará, Paraíba e Rio Grande
do Norte. Guerra indica que, conforme sua análise, no Ceará foram construídos cerca de 100
açudes, entre 1915 e 1965, em regime de cooperação.260
Diante de tantos planos e mudanças administrativas, persistiam os apelos que
descreviam os horrores cotidianos da seca e sua generalização. Os tristes efeitos econômicos e
sociais da crise chegavam todos os dias ao Ministro e ao Chefe do Governo Provisório, um
cenário comparado a um cataclisma “que se abateu sobre todo o Norte, na sua força destruidora
ou nos seus reflexos”.261 O Ministro então decidiu ver a calamidade com seus próprios olhos.

Quis ir, em pessoa, verificar os novos aspectos dessa calamidade, para poder imprimir,
as medidas de salvação pública uma norma prática, sugerida pela experiência direta

258
A perfuração de poços de maneira institucionalizada já fazia parte das primeiras ações de combate às secas. Em
relato endereçado ao Presidente da Província Henrique D’Ávila, Ernesto Lassence narra esforços de combate
à seca de 1887. O engenheiro se refere ao péssimo estado das estradas de rodagem, a falta de material
apropriado e muitas outras dificuldades enfrentadas para barrar o Rio Acarape. Na ocasião, diante da situação
de calamidade em que viviam os sertanejos residentes próximos ao local da obra, decidiu mandar perfurar uma
cacimba de alvenaria na praça da matriz da localidade, chamada Montenor e viabilizar uma estrada ligando o
povoado à Vila de Pacatuba. Essas medidas, muito mais que o represamento do rio, pareciam surtir efeito na
vida da população. IHGB – Apontamentos sobre as secas do Ceará por Ernesto Antonio Lassence Cunha. [S.L.,
1889]. Lata 330. Pasta 8.
259
GUERRA, Paulo, de Brito, A civilização da seca. O Nordeste é uma História mal contada. Fortaleza: Ministério
do Interior. Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, 1981. p. 85.
260
GUERRA, ibid., 1981. p. 85.
261
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 191.
119

de suas necessidades. E partiu para o Norte, em abril de 1931, dominado dos aflitivos
cuidados de que a ação do governo fosse sensível e eficiente, com a presteza que a
situação exigia.262

Suas impressões se sobressaem no texto quase sempre impessoal do Relatório


Ministerial. A população é descrita de maneira a exteriorizar a memória histórica e literária
sobre o flagelo das secas, uma multidão de “populações famintas” que “escoavam-se, em massa,
perambulando pelas estradas, sem destino certo”, extenuada pela irregularidade das chuvas.
Mais uma vez, o Nordeste do Brasil inspirava a narrativa do doloroso flagelo com todo o
“cortejo de aterradores desastres, que acompanham essas crises econômicas”. 263
Diante do quadro, urgia, antes de tudo, “uma vastíssima organização de trabalho, para
comportar os milhares de homens válidos que ainda podiam dar alguma coisa de si, antes que
fossem mais devastados pela fome”. A moral do trabalho sustenta, mais uma vez a lógica da
política pública, inspirando o Ministro José Américo a resguardar a dignidade dos sertanejos
que seriam empregados para produzir obras de caráter preventivo, evitando, assim, “a
humilhação da esmola”.
Ocorre que para implementar seu programa de racionalização da construção de obras
era preciso, além de muitos braços para o trabalho duro, projetos técnicos viáveis, prontos para
execução. As novas respostas, no entanto, esbarravam em velhos problemas:

Não foi possível utilizar, para logo, toda essa legião de necessitados em obras
públicas, por falta de projetos definitivos e de material de construção suficientes. Para
atalhar o êxodo iminente, foi preciso organizar, no Ceará, onde a crise apresentava
mais graves proporções, sete Campos de concentração: em Fortaleza (Urubu e Otávio
Bonfim), Patú, Quixeramobim, Crato (Buriti), Carius e Ipú. Os Campos de Otávio
Bonfim e Quixeramobim tiveram pouca duração.264

O Relatório Ministerial apontou que a crueza da situação e o volume de pessoas


necessitadas de socorros suplantou o desejo de renovação ostentado pelo Governo Provisório.
A justificativa, entretanto, deixava pouco evidente a persistência de uma estrutura de combate
à seca executada de maneira oscilante e a reboque de decisões e orçamentos que arfavam a cada
novo governo, a cada novo projeto.
Os planos de modernização do Ministério indicavam o desejo de só manter a fórmula
de assistência, expressa em medidas como o dos Campos de Concentração e a migração,
enquanto as obras para resolução final da seca não tivessem um desenvolvimento satisfatório.

262
Ibid., 1933. p. 195.
263
Ibid., 1933. p. 195.
264
Ibid., 1933. p. 190.
120

Mas a cada dia as concentrações de retirantes tornavam-se ainda mais numerosas, numa
agitação que o ritmo lento de liberação de verbas e de arranjos técnicos não acompanhava.
Nesse movimento, as perspectivas de transformação e modernização do combate às secas se
esvaziavam. Os socorros imediatos aos flagelados, evidentemente, pouparam muitos sertanejos
da morte, mas não sem cobrarem o preço do confinamento inumano nos campos, ou da rotina
extenuante nas obras públicas.
A persistência das velhas soluções historicamente ineficazes, diminuiu as possibilidades
de implementação de respostas que de fato atingissem as maiores causas da aflição em tempos
de recrudescimento das secas, e deixa ver a incapacidade do Governo Provisório em
implementar, de maneira realmente abrangente, as iniciativas sistemáticas, modernizantes e
moralizantes prometidas pelo movimento revolucionário.
O projeto de combate às secas planejado pelo Ministro Américo de Almeida, iniciado
com a reformulação administrativa, não foi plenamente executado. Segundo Américo, “a
calamidade pública transformou, porém, um plano de realizações concretas em obra de
assistência”.265 Essa justificativa, no entanto, exime da narrativa oficial outras questões
relevantes. Além das restrições orçamentárias decorrentes da política de arrocho fiscal
implementada durante o Governo Provisório, a amplitude das reformas modernizadoras e
moralizadoras propostas por Américo devem ser consideradas. Frente ao recrudescimento da
estiagem durante sua gestão, Américo e o Governo Provisório representado por ele, com efeito,
tornou mais dinâmica a lógica de combate à seca, sobretudo com a reorganização da IFOCS.
Contudo, as dificuldades em implementar mudanças diante de críticas severas, bem como a
manutenção da lógica centralizadora das decisões, agora, na pessoa do Ministro e do Presidente,
fizeram emperrar o impulso de renovação presente nos projetos alardeados pelo Governo
Provisório.
Ao solicitar sua exoneração do cargo, Américo recebe longa carta de Getúlio Vargas,
convidando-o para assumir a função de embaixador junto ao Vaticano, em julho de 1934.

Prezado e eminente amigo embaixador José Américo de Almeida, ao conceder a


Vossa Excelência a exoneração, que me solicitou, do cargo de Ministro de Estado dos
Negócios da Viação, quero significar-lhe, mais uma vez, os sentimentos de particular
apreço pelos relevantes serviços que prestou à nação, durante a sua fecunda e
esclarecida gestão naquela pasta. Pela retidão do caráter, pela perfeita lealdade de sua
conduta, pela grande inteligência e rara compreensão dos nossos mais sérios
problemas administrativos e sociais, Vossa Excelência conseguiu realizar, no alto
posto que lhe confiou o Governo Provisório, uma obra que honra e dignifica os
postulados da Revolução brasileira. As populações da zona flagelada do Nordeste

265
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
121

guardarão, para sempre, o nome de Vossa Excelência. Filho daquelas regiões, antes
desamparadas, Vossa Excelências teve a fortuna de contribuir, decisivamente, para
minorar os sofrimentos dos sertanejos nordestinos, pondo em prática, sábia e
seguramente, o programa de utilização econômica das terras devastadas pelas secas.
Administrador escrupuloso, com larga visão política, espírito dedicado ao estudo e
análise minuciosa das questões nacionais, Vossa Excelência tornou-se merecedor da
simpatia dos seus concidadãos. Seguro de que Vossa Excelência, na chefia da
embaixada brasileira junto à Santa Sé, continuará a elevar o renome do Brasil, formulo
os mais sinceros votos para que tanto nesse como em outros cargos, sejam os seus
talentos aproveitados em benefício do progresso da nossa pátria. 266

Ao pedir sua exoneração do cargo de Ministro, ao fim do Governo Provisório, Américo


recebe de Vargas a oferta de ser embaixador junto à Santa Sé. Apesar de tentadora, a oferta é
recusada, sobretudo diante da pressão política vinda de sua terra natal, a Paraíba. Os
correligionários paraibanos, diante da efervescência dos debates em torno da
Constitucionalização do país, o convencem, então, a concorrer ao Senado, cadeira ocupada por
Américo até 1935, quando anuncia abruptamente sua saída da vida política, voltando a ela em
1937, para concorrer à Presidência do Brasil. 267
José Américo teve uma carreira política ligeiramente conturbada, porém, exitosa, antes,
durante e depois da Revolução de 1930.268 Com a publicação do livro A Paraíba e seus
problemas, em 1923, Américo passou a ser identificado com a questão da seca. Na obra,
Américo abordou questões referentes ao clima, ao homem nordestino, e às possibilidades da
política hidráulica, bem como à questão econômica e aspectos sociais do Nordeste durante o

266
O documento original encontra-se sob os cuidados da Fundação Casa José Américo de Almeida e também está
disponível, na íntegra, em CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de
Almeida. Apêndices. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 492.
267
Naquele momento, logo após deixar o Ministério da Viação, o jogo político paraibano torna-se um campo
minado, ocasionando alijamento dos correligionários de Américo, e, por consequência, dele próprio. A seu
pedido, Vargas o nomeia para uma vaga no Tribunal de Contas da União. Algum tempo depois, em 1937,
Américo causa nova perplexidade, inclusive a Vargas, quando é cogitado à Presidência da República. “Américo
apresenta-se à convenção nacional de 25 de maio de 1937 e recebe o apoio da maioria esmagadora dos governos
estaduais situacionistas. Apenas os estados sulinos do Rio Grande e São Paulo apoiam Armando de Sales
Oliveira. Tão nítidos alinhamentos políticos parecem indicar o candidato nordestino como o representante
oficial do governo. No entanto, a aliança é mais aparente do que real: os preparativos do golpe de 10 de
novembro há muito já estão a caminho, como José Américo narra em sua entrevista, confirmada por
depoimentos e documentos da época”. CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José
Américo de Almeida. Apêndices. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 37.
268
Jivago Correia Barbosa, tratando do governo de José Américo de Almeida (1951-1956), eleito após disputada
campanha política na Paraíba, comenta que “desde a morte de João Pessoa, fato esse que serviu de pretexto
para a “Revolução” de 1930, três grandes nomes se destacaram na política paraibana, quebrando com a
hegemonia do antigo bloco oriundo da escola política da primeira República liderada por Epitácio Pessoa. José
Américo de Almeida, Argemiro de Figueiredo e Ruy Carneiro dominaram o cenário político durante os trinta
anos subsequentes a “Revolução” de 1930 e juntos, os três governaram a Paraíba por mais de quinze anos
(Argemiro de Figueiredo: 1936-1939; Ruy Carneiro: 1940-1945 e José Américo: 1951-1956)”. In. BARBOSA,
Jivago Correia. Política e assistencialismo na Paraíba: o governo de José Américo de Almeida (1951-1956).
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciências
Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2011. p. 29.
122

governo do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922).269 Esse primeiro esforço para com os
desvalidos do Nordeste permearam toda a sua trajetória dali em diante. A maneira como tratou
a questão da seca marcou sua vida literária e política, sendo tema mais que recorrente na série
de entrevistas concedidas por ele e nas obras de caráter autobiográficas que escreveu. Dessa
maneira, os problemas em torno da seca, do Nordeste e do Estado brasileiro foram incorporados
à memória histórica e afetiva em volta de José Américo.270

269
CARNEIRO, Joaquim Ostente. José Américo no contexto da problemática da região semiárida do Nordeste
brasileiro. Fundação Casa de José Américo. 2004. Biblioteca Nacional. N. V 212, 2, 53 n. 7.
270
Ver: CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Aspásia Camargo
e Eduardo Raposo. CPDOC/FGV - Fundação Casa José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984; ALMEIDA, José Américo de. Eu e Eles. 3 Ed. João Pessoa: A União, 1994. ______. Memória: antes
que me esqueça. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976.
123

CAPÍTULO 3 – A AÇÃO DA INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS NO


CEARÁ

3.1 A operacionalização do combate à seca no Governo Provisório

Ao longo da década de 1930, transformações políticas, econômicas e sociais influíram


diretamente na estruturação do Estado brasileiro e, consequentemente, em seus esforços para
combater o flagelo das secas. Nesse período, o governo pós-revolucionário coincidiu com os
desdobramentos da grande seca de 1932. Essa confluência inseriu-se ainda no contexto da
expansão da economia capitalista, quando observamos a importância do desenvolvimento de
projetos de modernização mundo afora, associado ao avanço tecnológico nos transportes e nas
comunicações. Esse processo social impulsionou o desenvolvimento da moderna engenharia
que atuou diretamente nos esforços de intervenção no semiárido brasileiro, sobretudo nos
momentos de seca. Através desse movimento, acompanhamos muitas dualidades: vales e
estradas, seca e represamento d’água, engenheiros e multidão, enfim, modificações sociais e da
natureza estabelecidas ao longo da conformação da paisagem sertaneja.
Em meio a esse turbilhão de novidades e pressões o andamento das ações da Inspetoria
de Obras Contra as Secas, principal agente operacionalizador dos socorros aos estados atingidos
pela seca, foi renegociado. No novo governo, José Américo de Almeida foi nomeado Ministro
da Viação e Obras Públicas e conduziu o engenheiro Artur Fragoso de Lima Campos ao cargo
de Inspetor de Secas. Pouco tempo depois de assumir o posto, Lima Campos morreu em
acidente de avião na Bahia, e o engenheiro Luiz Augusto da Silva Vieira ficou com a chefia da
Inspetoria. O novo encarregado manteve a construção de grandes reservatórios d’água como
principal antídoto contra as secas, incluindo a intensificação da construção de longas rodovias.
Por meio disso, o Governo Provisório buscou implementar uma nova lógica de condução dos
problemas nacionais.271
Aqui, analisaremos como o objetivo da Inspetoria de Secas de enfrentamento
sistemático dos efeitos danosos das estiagens foi mantido, historicamente, de forma irregular
diante de repasses monetários e escolhas políticas oscilantes. Como veremos as condições de
ação da Inspetoria mudavam, ampliando-se quando as crises climáticas se exacerbavam. A
partir desse entendimento, focaremos no processo de construção do Açude do Estreito, mais
tarde denominado Lima Campos, em Icó, projetado em 1912 e concluído somente em 1932 em

271
Uma dessas grandes intervenções na paisagem dos sertões foi a construção da rodovia Transnordestina que
mais tarde seria incorporada à BR 116. O objetivo principal era assegurar a ligação entre a capital do estado
do Ceará, Fortaleza, ao Sudeste.
124

um momento de tensão social em meio a grande estiagem, mas também de rearranjo público
para o combate à seca.
A opção pela açudagem empregada nos primeiros anos da década de 1930 não era
novidade. Até o início do século XIX, a construção de barragens ainda era incipiente, refletindo,
segundo Molle, a fraca densidade de povoamento. No entanto, ao final do século XIX, uma
nova onda de produção de estudos para a construção de açudes foi efetivada e, associada a ela,
houve a propagação de iniciativas particulares para a construção de pequenos açudes que, mais
tarde seriam inventariados pela União.272
Os terríveis eventos de morte e carestia que marcaram a grande seca de 1877, motivaram
o debate sobre essa questão em sessões do Instituto Politécnico, sob a presidência do Conde
D’eu. Desses debates surgiram as primeiras propostas de construção sistemática de açudes para
suprir de água o interior da Província do Ceará e demais assolados pela seca. Até então, o foco
estava nos açudes menores executados pelos governos das Províncias. Também como
desdobramento daqueles eventos traumáticos, fora nomeada uma comissão com a incumbência
de percorrer a província do Ceará estudando os meios práticos de abastecimento d’água para
assegurar a produção e a vida nos rincões menos favorecidos do Brasil. A comissão, no entanto,
pouco se deslocou pelo sertão, e, mantendo-se nas imediações de Fortaleza, propôs, entre outras
coisas, a construção de 30 açudes, com capacidade para evitar parte os efeitos terríveis de uma
seca como também das inundações.
No final do século XIX e início do XX destaca-se a projeção da construção de obras
monumentais, contando com o apoio direto do Governo Imperial, iniciativa marcada pela
construção do açude Cedro, em Quixadá (CE), concluída somente em 1906. As grandes somas
de dinheiro público empregadas na construção dos grandes açudes ocasionaram o retorno do
debate sobre a eficácia desses empreendimentos. No entanto, essa solução, chamada de
“solução hídrica”, permaneceu vigente por muito mais tempo. Durante a seca de 1900, por
exemplo, mesmo diante de um cenário de crise econômica, iniciou-se obras de quatro grandes
açudes de terra, empregando pelo menos 80.000 pessoas.
Ao longo do tempo, houve grande variação do orçamento da União disponibilizado para
o combate à seca. Os valores destinados à Inspetoria de Secas refletem esse fato.

272
Cf. MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife:
SUDENE, DPG. PRN, HME, 1994.
125

Figura 3 – Despesas Anuais do DNOCS (1909 – 1959)

Fonte: MOLLE, 1994. p. 41

Na imagem, as setas apontam a ampliação do orçamento do órgão associada a momentos


de crise climatérica severa, evidenciando que a repercussão das secas era essencial para a
definição das políticas governamentais e dos recursos a serem liberados. As ações da então
chamada Inspetoria de Obras Contra as Secas, fundada em 1909, tiveram impulso com a seca
de 1915. Durante os três anos seguintes, a tarefa da então Inspetoria se sobrepôs à ação da
Comissão das Obras Novas Contra as Secas, chefiada pelo engenheiro Aarão Reis, produzindo
trabalhos suplementares de açudagem. Depois, o ano de 1919 marca um novo patamar de
combate à seca com a chegada ao poder do primeiro presidente oriundo “do Norte”, o paraibano
Epitácio Pessoa. Os anos de 1919-1922 e 1931-1935 foram períodos de grandes investimentos
públicos. Após o golpe de Estado de 1937, iniciou-se um novo declínio, em parte revertido
depois da Segunda Guerra Mundial. Somente ao final dos anos 1950 novas perspectivas se
abriram. O Presidente Kubitscheck voltou a priorizar os esforços de açudagem. Durante essa
década, foram concluídos 36 açudes, com destaque para as obras em Pernambuco, Ceará, Bahia
e Paraíba.273
Nesse histórico, merece destaque o mandato de Epitácio Pessoa que consagra a opção
pela grande açudagem como resposta aos clamores dos flagelados. Para isso, contratou
empresas inglesas e norte-americanas, que adquiriram grandes instalações e iniciaram as obras.
No entanto, quando a maioria dos trabalhos havia apenas começado, deu-se a passagem de
governo e, o sucessor, Artur Bernardes suspendeu-as. No ano seguinte à saída de Pessoa, em

273
MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE,
DPG. PRN, HME, 1994. p.39
126

1924, “todas as obras (açudes, ferrovias, estradas, entre outros) foram paralisadas por falta de
verbas, as quais passaram de 146.000 contos de reis em 1922 para 11.700 em 1924 e 3.827”.
No governo Washington Luiz também reinou a indiferença ao tema da seca; segundo relatos,
ele “apressou-se em vender, como ferro velho, todo o material que se encontrava no
Nordeste”.274
A descontinuidade dos trabalhos acarretou a perda de quase todos os esforços
empregados anteriormente e enxurradas destruíram fundações de muitos dos açudes iniciados.
Segundo José Américo, durante a seca de 1932, quando o Governo Provisório se deu conta da
nova leva de problemas decorrentes da estiagem, percebeu também a incipiência do
planejamento prévio executado por eles, assim, trabalharam a partir de projetos e estudos
antigos. O Ministro José Américo chegou a confirmar o aproveitamento de fundações de obras
inacabadas: “Quando cheguei ao Ministério, retomei tudo. [...] criou-se o departamento, os
planos de obras – que nós chamávamos de “sistema” – os açudes que deviam ser feitos [...] o
que eu fiz depois foram os açudes do Plano Epitácio”.275
Ao mesmo tempo em que promovia transformações no Estado depois da Revolução de
Outubro de 1930, o governo precisou atender as muitas demandas do período, entre elas, a crise
social decorrente da seca de 1932. Assim como em outros momentos, durante o Governo
Provisório a dinâmica política e a irrupção de tensões decorrentes da estiagem foram os
principais gatilhos para a execução prática da missão de combate à seca. Nesse difícil contexto,
foi preciso negociar com a desejo de pautar os socorros públicos de uma nova forma e, diante
do colapso social, Ministério e Inspetoria de Secas recorreram, então, a velhas respostas, sendo
a principal delas, a utilização da mão de obra dos retirantes que, mesmo sendo considerada ao
longo das décadas como de “fraco valor e rendimento”, seguiu sendo o principal motor das
transformações implementadas nos tempos de seca, sobretudo na construção de açudes.
Nos primeiros momentos de vigência do governo revolucionário, o Ministro da pasta da
Viação e Obras Públicas José Américo promoveu imperiosas mudanças na Inspetoria Federal
de Obras Contra as Secas, principal órgão responsável por operacionalizar os socorros públicos
desde a proclamação da República. A reforma da Inspetoria de Secas previa dar-lhe “um caráter
mais de acordo com os fins precípuos a que sempre fora destinada”, preconizando ideias
dominantes de combate a hipertrofia dos serviços nos Estados. Assim, as modificações na
Inspetoria buscavam restringir o raio de ação da Instituição ao “ambiente realmente flagelado”,

274
In. O. JUREMA. A seca no Nordeste, Apud. MOLLE, 1994. p. 34.
275
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo; FLAKMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 220.
127

e, assim, limitar “a instalação conveniente daquela repartição dentro do campo de sua


atividade”. A iniciativa de arrancar a direção superior do Rio de Janeiro, e implementar
mudanças abrangentes na contratação e manutenção de servidores, no entanto, esbarrou em
“sérias dificuldades”. Firmaram-se, porém, “diretrizes lógicas para orientação desses serviços,
não somente no tocante à grande açudagem e à irrigação, como quanto à média e pequena
açudagem e ao serviço rodoviário”. 276
A reconfiguração se efetivou em 1931 por meio da redação de um novo código de ação
para a IFOCS, através do Decreto N. 19726, de 20 de fevereiro de 1931.

Art. 1º A Inspetoria Federal de Obras contra as Secas terá a seu cargo:


a) construção de açudes e canais de irrigação;
b) a perfuração de poços;
c) a construção das estradas de rodagem que constituam as linhas tronco do
Nordeste;
d) a execução de quaisquer serviços que tenham por fim atenuar os efeitos do
regime irregular dos cursos da água, bem como as que forem necessários ao
conhecimento científico e econômico da região semiárida. 277

No que diz respeito aos serviços sob responsabilidade da Inspetoria, percebemos o


direcionamento da Instituição para a construção de açudes e canais de irrigação, bem como de
obras que apoiassem esse intento como, por exemplo, a construção das estradas de rodagem. A
ação de caráter mais emergencial, atendendo diretamente a população, seria a perfuração de
poços. As possibilidades incluídas no novo regulamento redimensionam os esforços entorno da
irrigação e das parcerias entre público e privado, e esclareciam as possibilidades de celebração
de contratos e acordos para que os trabalhos executados pela Inspetoria pudessem ser
arrendados por estados e municípios. Estudos, projetos, orçamentos e obras especiais ordenados
pelo Ministro da Viação conduziriam ações da Instituição.
Em 1931, antes mesmo da eclosão dos piores desdobramentos da seca no período, o
Governo Provisório indicou que os trabalhos de grande açudagem se limitariam a quatro
sistemas, concentrando os recursos da União na formação ordenada de reservas d’água. As
áreas foram escolhidas de acordo com seu potencial para a execução de serviços regulares de
irrigação que, naquele período, esteve conexa à difusão dos grandes reservatórios. Para Novaes,

276
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97
277
Até então a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, atualmente denominada DNOCS, passara por uma
série de leis e decretos que regularam suas ações e definiram a abrangência de seus objetivos, bem como
apontaram as linhas fundamentais da sua organização. A primeira delas, de 1909, Decreto 7619, de
21/10/1909, criou a instituição, à época Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS. Logo em seguida, pelo
Decreto 9256, de 28/12/1911, reorganizou serviços a cargo da IOCS. Outras mudanças de regulamento
ocorreram em 1915, 1916, e 1919, esse último para a já denominada Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas.
128

“Quem conhece o tema das secas reconhecerá, certamente, quão acertada foi a fixação deste
amplo programa de açudagem, visando correlatamente a irrigação”.278
Seriam esses grandes sistemas:
I. Sistema do Acaraú, compreendendo obras de açudagem e irrigação necessária
à regularização do regime e aproveitamento das terras irrigáveis da bacia do rio
Acaraú, no norte do Ceará.
II. Sistema do Jaguaribe – idem, idem, idem, na bacia do rio Jaguaribe, no Ceará.
III. Sistema do alto piranhas – idem, idem, idem da bacia superior do rio Piranhas,
na Paraíba.
IV. Sistema do Baixo Assú – idem, idem, idem, na bacia do rio Assú, no rio grande
do Norte. 279

A prévia escolha não excluía a análise e eleição de sistemas menores, ou


complementares, desde que fossem executados em colaboração com os Estados interessados, a
partir da açudagem particular ou ainda se fossem fruto da cooperação dos agricultores ou
criadores com o governo federal. É possível destacar que, nesse contexto, as obras de açudagem
foram pensadas de maneira a incluir reflexões sobre o conhecimento hidrológico para a devida
estabilização das obras, mas também em potencialidades mais amplas, não mais como unidade
isolada, mas como aparelho para o progresso rural, por contar com um conjunto das
intervenções que garantiria mudanças nas atividades produtivas à suas margens.
Os esforços na parceria com proprietários para a construção de açudes particulares,
destaque no plano de combate à seca do período, também foram alvo de críticas. A construção
das barragens particulares se dava por meio da disponibilização de estudos e ou prêmios em
dinheiro por parte do Estado brasileiro, afim de cobrir parte dos custos privados. Como indicou
Henrique Novaes, após inspecionar algumas das obras da Inspetoria de Secas, “raro é o pequeno
lavrador que usufruem o prêmio em questão; são, antes, os capitalistas de toda ordem,
detentores de maiores propriedades, que a eles concorrem mais se exasperam e reclamam,
quando não satisfeitos na imediata solução de seus desejos”. 280
As especificações das obras, dependentes de estudos de campo e de escritório, eram
muitas vezes contrariadas no momento da construção, ocasionando edificações incipientes e
frágeis. O pouco controle sobre a qualidade e a eficácia desse programa para a região foi,
segundo Novaes, considerável falha do Governo Provisório, que, no entanto, ainda poderia ser
corrigida. Na opinião do experiente engenheiro, a questão estava intrinsecamente relacionada
ao êxito do projeto revolucionário, assim sendo, a resolução da questão incluiria a concentração

278
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91.
279
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
280
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935. Vol. 3. N.º 5. p. 180.
129

de esforços federais na grande açudagem, “a artilharia de grosso calibre”, capaz de combater


efetivamente as estiagens.
Quanto ao sistema rodoviário, o governo teria firmado o programa efetivo de suas
realizações somente nas linhas tronco interestaduais. As linhas secundárias seriam de
responsabilidade dos estados ou municípios. Assim foram definidas as linhas rodoviárias dentro
do programa de ação da União no território flagelado:

a) De Recife, Pernambuco, a Fortaleza (Ceará), passando por Olinda, Itauassu,


Goiana, Soledade, Patos, Pombal, Souza, São João do Rio do Peixe, Umari, Icó,
Limoeiro, Russas, Guarany e Pacatuba;
b) De Fortaleza (Ceará), a Teresina (Piauí), passando por Sobral, Ibiapina, Campo
Maior e Altos;
c) Rodovia principal do Rio Grande no Norte, partindo do ponto mais
conveniente e a) e indo entroncar-se nela novamente em Limoeiro (Ceará), passando
por Parelhas, Acari, Currais Novos, Angicos, Assú e Mossoró.
d) Ligação central Ceará Piauí, partindo de Icó (Ceará) e terminando em Floriano
(Piauí), servindo, pelo traçado mais conveniente, a Iguatu, São Mateus, Campos Sales,
Picos e Oeiras. 281

O programa delineado pelo Governo Provisório, mesmo em meio a contingências


políticas e econômicas como a Revolução Constitucionalista em São Paulo, promoveu
sensivelmente a ampliação do território de atuação da Inspetoria, estendendo sua ação a
Pernambuco e Bahia que, nunca dantes, haviam sido contemplados na divisão das verbas
destinadas ao combate à seca. Dessa maneira, as fronteiras do histórico problema foram também
redefinidas. As linhas geográficas para o empreendimento revolucionário de combate às secas,
foram assim traçadas com base no “trabalho de cooperação, estabelecido de maneira precisa
entre a união e os estados de fato flagelados”. No entanto, como indica Novaes, “ainda não
estava em desenvolvimento o programa tão criteriosa e carinhosamente estudado” quando foi
posto à prova ante os horrores da exacerbação da crise climatológica de 1932. 282
Em agosto de 1932, em meio aos horrores do flagelo noticiados Brasil afora, o Inspetor
Geral, Dr. Luís Vieira, chegou a Fortaleza dando conta de um “Vultuoso programa das obras
contra as secas”. O engenheiro e Inspetor Geral das Secas concedeu entrevista ao Jornal O Povo
sobre sua viagem através do estados acossados pela seca. Alguns dos trechos foram transcritos
pelo periódico do munícipio de Sobral, A Ordem.283 Realizando um breve histórico dos serviços
realizados no Nordeste, o Inspetor de Secas Luís Vieira indicou que os serviços sob a

281
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
282
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
283
Jornal A Ordem 2 a 7 de agosto 1932.
130

responsabilidade da IFOCS estavam em pleno vapor, com foco na açudagem e na construção


de estradas.284
No que diz respeito à açudagem, Vieira disse que desde o início da seca, especificamente
no Ceará, foram iniciadas as construções dos açudes General Sampaio, Estreito (Lima Campos)
e Feiticeiro. Com a ampliação das verbas, foi autorizada ainda a construção do Choró cujos
trabalhos estão avançando em agosto de 1932. Além deles, existiam condições de serem
construídas as barragens Cariús, Quixeramobim, Pedra Branca, Jaibara, Cará e outros. As
visitas preparatórias para a construção dar-se-iam em seguida, para optarem por duas opções
mais convenientes.
Chamando atenção para cifras gigantescas, o entrevistado garantiu que os novos
reservatórios a serem construídos no Ceará poderiam armazenar mais de 1bilhão de metros
cúbicos d’água, dando assim a medida da transformação da paisagem da seca no semiárido
brasileiro. Assim, mesmo diante de um quadro político pretensamente renovado pelas ideias
revolucionárias, a imponência das grandes obras de açudagem, como no passado, tinha efeito
mais manifesto, por isso continuaram sendo de maior aceitação pela sociedade. Foi patente que
o “açodamento em construir mais e maiores barragens foi por vezes responsável pela
implantação de obras em locais carentes de terras agricultáveis e jusante” 285, e que, mais uma
vez, as obras-monumentos eram defendidas para fazer crer nos esforços dos administradores.
Assim, durante o Governo Provisório, ter-se-ia consumado planos de envergadura para
a região e esforços similares teriam ocorrido somente pelas ações do também nordestino
Presidente Epitácio Pessoa.286 No entanto, apesar das décadas de combate às secas, o sumo
esforço de salvação do Nordeste esbarrou no desguarnecimento dos estados para o
enfrentamento das crises periódicas. A irrigação, por exemplo, apresentou um incremento lento,
emergindo somente na segunda metade do século XX como segmento norteador da
estabilização da produção rural.
À revelia dos grandes projetos desejados e redigidos pelos órgãos do Governo
Provisório responsáveis pelo combate à seca, ao seu final, alguns indivíduos bem situados no
cenário de debate sobre as secas construíram críticas aos arranjos tomados até naquele início da
década de 1930. Entre eles, o engenheiro Piquet Carneiro287 que enumerou um conjunto de

284
Ibid., 1932.
285
In. O Pontes. DNOCS – Pensamento e diretrizes. Apud MOLLE, 1994. P. 147.
286
ALMEIDA, José Américo de. As secas do Nordeste. Exposição feita na Câmara dos Deputados em 10-11-
1953. Debates e Repercussões. Serviço de Documentação do Ministério da Viação e Obras Públicas.
287
Bernardo Piquet Carneiro, (1860 – ‘936), carioca, formou-se na Escola Central da Corte, atual Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Veio para o estado do Ceará em 1887 como titular do cargo de engenheiro-chefe
da Estrada de Ferro de Baturité (Rede de Viação Cearense). Em 1900 passou a chefiar a Comissão do Açude
131

ações voltadas para a população atingida pelos desdobramentos das estiagens. Piquet escreveu
um memorial de proposições complementares passíveis de serem tomadas diante do estado das
obras em execução pela Inspetoria de Secas. Nele, o engenheiro apontou considerações
relevantes sobre como se achavam os socorros implementados pela IFOCS, sob os auspícios do
governo Vargas, em 1935.288
Escrito em 1935, as indicações de Piquet destacam-se pela quase singeleza das
propostas. Tendo sido elaboradas quando já assentava a memória acerca dos horrores da
estiagem, as formulações do experiente engenheiro parecem repousar na descrença da mudança
drástica no combate à seca prometida pelo novo governo. Justificando suas proposições a partir
de sua experiência como engenheiro que esteve engajado nas obras no sertão, Piquet formula
indicações para melhorar as condições de vida na zona árida, “capazes de evitar as aflitivas
retiradas e a dizimação do gado”.

Não pretendo aqui descrever o que os outros fizeram, mas apenas relatar o que tive
ocasião de observar quando me coube dirigir serviços de socorros durante a seca de
1900; e, depois, por espaço de 8 anos, em trabalhos de açudagem e irrigação. Foi
nesses períodos que tive oportunidade de verificar que soluções, então julgadas
econômicas e de efeito imediato para minorar os males causados. 289

Explicando que tudo deveria passar pelo bom uso dos recursos que a natureza oferece,
Piquet da atenção às seguintes soluções: cacimbas, poços profundos, bombas de elevação e
bebedouros. A partir delas seria possível preparar os terrenos, obter água do subsolo para
consumo doméstico e de animais, realizar reservas de cereais na proporção das necessidades de
cada fazenda, ou da casa de moradia, para o período de 3 anos. Além disso, o engenheiro indica
a necessária disponibilização de pequenas máquinas agrícolas e ferramentas e a organização de
3 a 5 turmas volantes para cada Estado, afim de dar execução aos serviços indicados. Segundo
Piquet, todos esses pontos deveriam estar sob direção de auxiliares agrônomos.
Após acompanhar a larga execução de obras pelo Ministério da Viação no socorro aos
flagelados, Piquet propõe a retomada das mais antigas e simples medidas de combate às secas.
As opções apontadas por ele se contrapõem ao vulto das ações efetivadas pelo Governo

de Quixadá, deixando o cargo quando a comissão deu lugar a recém-criada Inspetoria de Obras Contra as
Secas, primeira nomenclatura do atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Depois,
se ocupou na Fiscalização de Estradas de Ferro, voltando ao Rio de Janeiro em 1914.
288
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. Localização acervo biblioteca Nacional. I. 111,7,18
289
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 3.
132

Provisório. Indo na direção oposta às grandes obras, Piquet parece indicar pouca fé na lógica
dos arranjos executados nos primeiros anos da década de 1930 para a solução das crises
climatéricas.
Após a inclusão do combate às secas na Constituição de 1934, Piquet reafirma a
necessidade de se manter vigilante pela concretização dos recentes pactos pelo combate às secas
como medida sistemática e contínua. O temor no descumprimento das promessas do Estado
para com os flagelados mostra-se acertado. Piquet lembra, por exemplo, a necessidade de
providenciar, junto ao Ministério da Fazenda, para que a contadoria Central da República
escriturasse créditos e que o Ministério da Viação determinasse a criação de caixa de depósito,
tal como ficou estabelecido na Constituição de 1934, no artigo 177.290 Em meio as sutilezas da
ordem do discurso, o engenheiro convida às certezas da prática.
Na visão de Piquet, as obras executadas eram importantes, mas decorriam de um
direcionamento político passível de crítica, sobretudo quando se observava que grandes obras
nem sempre garantiriam a sobrevivência das famílias mais atingidas.

Adotadas essas providências e prosseguida, com atividades, as que já estão em vigor,


de perfuração de poços tubulares, construção de açudes particulares e de rodovias,
pode-se garantir a defesa do lar, nos períodos calamitosos está devidamente iniciada
e que, em breves anos. 291

Para o relevante interlocutor, o protagonismo da IFOCS no combate às secas foi


eclipsado pela louvação às personalidades políticas como, José de Almeida e Getúlio Vargas.
Assim, Piquet rememora o valor do saber técnico de engenheiros e da Inspetoria de Secas, que
historicamente foram o esteio dos socorros públicos desde o início da República brasileira.

[...] cabe-me antes dizer, em sinal de homenagem à memória de Lima Campos e de


consideração a seus dignos sucessores, que as observações a seguir excluem qualquer
desapreço, porquanto visam apenas combater o conceito injusto que se faz da região
do nordeste, como inabitável, e a mal fundada crença de que a açudagem é uma
medida ineficaz para os fins desejados.292

290
Além do caráter perene dos socorros, que foi a principal reinvindicação dos defensores da proposta, o texto
constitucional indicava a realização de serviços de assistência, a União, os Estados os municípios assolados
pelas secas, que deveriam concorreram com 4% da receita tributária sem aplicação, isto é, da receita tributária
que não tivesse agravante, sendo três quartas partes destinadas a – obras normais do plano de estabelecido e o
restante depositado em caixa especial. CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de
providências complementares que se acham em execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio
de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio Rodrigues & c. 1935. P. 7.
291
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 3.
292
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 7.
133

Rememorando o passado, criticando o presente e atentando seus interlocutores para a


pouca solidez do futuro projetado pelo governo, o engenheiro Piquet aconselhou sobre o uso
das terras irrigáveis dos açudes, indicando que a força da natureza expressa na duração das
secas deveria se manter como norte para utilização das águas.

Realmente a eficácia dos açudes não está em seu número, como, em publicações se
tem dado a entender, mas na duração das águas que são represadas, podendo-se de um
modo geral afirmar que os açudes com profundidade inferior a 8 metros não resistem
a mais de 2 Anos de secas consecutivas. 293

Assim, até mesmo as possibilidades revolucionárias da irrigação propagadas pelo


governo, foram criticadas por Piquet, que chegou a citar dúvidas sobre as aplicações da recém-
inaugurada obra do reservatório e área irrigável no Açude Lima Campos, em Icó. Ao criticar a
atuação dos socorros públicos no período de seca de 1932, o engenheiro Piquet Carneiro, que
emprestou seu nome à ponte inaugurada em 1939, na entrada do município de Icó, argumentou
que era preciso admitir que, no que tange às estiagens, as incertezas sempre devem ser
consideradas.
No saldo final de sua apreciação acerca do que foi executado para o combate às secas
nos primeiros anos de 1930, Piquet não se furta a oportunidade de pontuar a contrariedade com
que viu o descompasso entre os níveis de atuação governamental. Na opinião dele, a desarmonia
se expressava, sobretudo, ao se observar o peso desigual dado às contribuições ao combate às
secas por parte da classe técnica, antes mais valorizada, e pela classe política, que naquele
momento se projetava como “renovada”.
Das trinta grandes obras de açudagem iniciadas em 1932, quatorze adentraram o ano de
1933. No que diz respeito ao plano rodoviário, foram concluídos 2.462km, outros 3.701km
foram transferidos à responsabilidade de programas seguintes. O ex-funcionário do DNOCS em
Icó, Sr. Júlio Cosmo, disse em suas memórias sobre as obras do órgão de combate às secas, que
o patriotismo daqueles tempos, expressava-se pela alta administração públicas que afastara “a
desastrosa paralisação das grandes obras que estavam em andamento ao findar o ano de
1933”.294 No entanto, no trecho seguinte, Júlio, que passou toda a vida envolvido nos trabalhos

293
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 7.
294
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d]. A brochura contendo anotações datilografadas de Júlio Cosmo Rodrigues foram cuidadosamente
preservadas pela família Rodrigues, tendo sido disponibilizadas para pesquisa acadêmica em 2015 no âmbito
dos trabalhos do projeto de cultura “Nas águas da Memória: história local, trabalho e cultura na ocupação da
localidade de Lima Campos, Icó-CE”, inscrito junto à Pró-Reitoria de Cultura da Universidade Federal do
Cariri. Coordenado por mim, o projeto visava produzir uma história local mais democrática, a cargo da própria
comunidade, produzindo material para pesquisas sobre a história de ocupação da comunidade de Lima Campos
134

contra às secas em Icó, assume que, diante das “reduções forçadas e as paralisações
desmoralizadoras” restou à Inspetoria promover “um programa conservador de obras” dentro
do qual a manteve, “tanto quanto possível, a continuidade indispensável ao aproveitamento
inteligente dos trabalhos executados”, com a “intensidade que lhe permitiram os recursos”. 295

3.2 “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”: críticas à ação da IFOCS

Associando demandas antigas e ideais de renovação, o governo pós-revolucionário


produziu uma ação de combate à seca permeada pelo sentido moral, patriótico e racional,
elementos que deram base às primeiras medidas do Governo Provisório. Nesse contexto, o
corpo técnico da IFOCS, outrora projetado como coletivo intelectual responsável pela
transformação do território assolado pela seca, cedeu lugar aos agentes políticos no panteão da
transformação da região semiárida.
O projeto que abalizou as ações políticas dos revolucionários de 1930, bem como as
mudanças administrativas promovidas pelo Governo Provisório, influíram no entendimento
histórico acerca da seca e de seus combates. O apego ao discurso em prol da defesa da
moralidade do gasto público e atenção aos negligenciados pelo antigo regime, calcava a
exigência por novas relações políticas e uma nova arquitetura institucional. As ideias por trás
desse movimento se espraiaram, chegando a influir nas demandas estabelecidas durante a seca
de 1932. Nesse sentido, aventar providências somente para efeito de publicidade era uma das
mais severas críticas endereçadas aos órgãos responsáveis pelo combate à seca.
A indignação nas palavras que se referiam à situação vexatória que se debatia sobre o
semiárido eram decorrentes das desventuras políticas ao longo das secas periódicas.
Argumentos como esses, pautados na crítica ácida, alicerçaram também as demandas por mais
recursos ao longo do Governo Provisório. No Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932,
acompanhamos os rumores acerca do “Nordeste flagelado pelas secas” e a conexão estabelecida
entre a realidade catastrófica e o senso de patriotismo.

a partir da memória dos moradores da localidade. Ressalta-se que após análise da forma e do conteúdo da fonte,
sobretudo confrontando dados com artigos publicados nos Boletins da IFOCS, observou-se que alguns trechos
presentes nos escritos de Júlio Cosme constam no Boletim de abril de 1934 VOL 1 – N. 4. Assim, cabe
esclarecer que não havendo condições de datar com precisão os escritos de Júlio Cosmo, as citações Ipsis
litteris das suas memórias aqui utilizadas foram creditadas a ele quando não foi possível identificar
duplicidades com os textos dos boletins analisados, salvo engano.
295
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d]. p. 14.
135

Continua a desolação pelas terras que Tristão Gonçalves e tantos outros vultos de
nossa história ergam com o seu sangue de heróis. O Ceará, mais uma vez, padece de
fome e sede em um século a que se convencionou chamar de eletricidade num país
que pelos seus dirigentes, ensaia uma regeneração e uma organização em todos os
seus aspectos, políticos e morais. Não podemos compreender nunca que se alegue
razoes econômicas quando se faz mister evitar a morte – pela fome e pela sede de
tantos brasileiros. As populações do baixo Jaguaribe sucumbem por mais dizer sem
assistência dos homens que são responsáveis pelo destino de seu povo.296

Logo nos primeiros momentos do Governo Provisório, os males da seca fizeram-se


presentes e as impressões sobre as verbas até então disponibilizadas aos serviços de emergência
nas zonas secas foram consideradas irrisórias e insuficientes. A sorte das zonas assoladas era
das piores, não chovia desde dezembro de 1931, e, segundo as críticas, o Governo ainda não
havia se dado ao trabalho de “auscultar o estado das populações”, mas não perdia a ocasião de
fazer declarações sobre a “penúria nordestina”. Os rumos escolhidos pelos revolucionários no
poder não parecia ser o melhor para a região. Parte do problema era o pagamento dos técnicos
que, segundo denúncia, englobavam cerca de 5% do percentual empregado na remuneração dos
servidores. Para os críticos, eram valores avultados que poderiam ser melhor empregados na
compra de material e pagamento de custos das obras. Em meio a “umas das mais terríveis secas
da história”, o Ministro José Américo, não estaria suficientemente interessado “pela sorte de
seus patrícios”.

Os cofres da nação supridos mais vez pelos impostos exorbitantes extorquidos a


economia de nosso povo, sempre são declarados sem um numerário quando se faz
imprescindível evitar que os nordestinos morram a fome, ou realizar qualquer obra
que venham beneficiar esta parte setentrional do Brasil. 297

Inegavelmente, a penúria da seca era o principal ponto evocado, mas, também era
evidente a demanda por investimentos na região. Os horrores da seca poderiam ser o mote para
tempos realmente melhores, e aí morava parte da indignação com o novo regime que sempre
propalou intenções de modificar o país por meio da modernização. No entanto, naquele
momento, a ação empregada pelo Governo Provisório foi pouco concreta em relação aos
milhares de brasileiros do setentrião. Tão velho como o Brasil, o problema social das secas
poderia ser redimensionado no novo contexto político, acreditavam.

Que podemos esperar de um governo que se diz restauração, de moralidade, de justiça,


de ordem, de regeneração de confraternização e de patriotismo, se ele não se interessa
vivamente, verdadeiramente pelos seus súditos mais afastados e os deixa morrer a
falta de pão que o diabo amassou. Que é do sr. José Américo, que superintendente a
pasta da viação num regime criado pelo idealismo e quando é o único ministro do
norte, e, assim por todos os motivos, com que mais obrigação tem de contemplar com

296
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
297
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
136

olhos de irmão a angustiosa situação de quantos perecem desassistidos das


providencias governamentais?! Para quem apelar?298

Entretanto, segundo as críticas, nunca em tempo algum, e mesmo naquele momento,


“houve falta de dinheiro para gastos suntuosos com regabofes oficiais para recepções a figurões
estrangeiros”. Não fosse o povo sertanejo, “que verdadeiramente morre a fome e sede”, tão
pacato e crente nas funções do governo, haveria nova ebulição nacional. Se não fosse a
docilidade do sertanejo, segundo a crítica, a situação calamitosa na região jaguaribana não
chegaria ao patamar de penúria alcançado em 1932, e os homens públicos fariam mais que
promessas.
A questão dos valores gastos na obra fora também ponto de atenção àqueles que
acompanhavam os desdobramentos dos socorros. Nesse ensejo, entidades como a Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas seriam averiguadas de perto. Na fala proferida pelo
engenheiro Pereira de Miranda da IFOCS:

Gastaram-se nessa construção, Sr. Inspetor, 7.800 contos de reis, incluindo o acervo
de materiais existente no acampamento, e a despesa do material empregado na estrada
de acesso Choró – Quixadá. Em muito menor tempo poderia ter sido ela concluída;
bem inferior seria o seu custo se não houvesse iniciado numa fase de calamidade das
maiores, senão a maior, talvez, até hoje, registrada na história triste e sombria das
secas do nordeste, este pedaço do Brasil, sofredor e sem altivo, martirizado e sempre
forte. 299

Para o engenheiro, a calamidade aparece como embargo para um uso racional das
verbas. Fossem feitas em melhor momento as obras seriam mais eficientes, porém, como é
possível observar, a seca era, pois, a premissa para o início de esforços mais vultuosos por parte
da Federação. Pereira de Miranda prossegue:

O dinheiro que o Governo Provisório do Brasil mandou para o Nordeste, pela mão do
ilustre ministro José Américo, não só matou a fome desse povo necessitado; não lhe
garantiu, tão somente, a vida; esse povo soube ser grato; manifestando, firmando,
pujantemente a rija fibra do nordestino cheio de estoicismo sublime de resignação, ele
regou, com o seu suor, as inúmeras obras que, hoje, vemos por toda parte, iniciadas
umas, em franco prosseguimento outras; e se terminarem várias; concluídas diversas,
como sejam os açudes Choro, Lima Campos, Joaquim Távora, Pilões, Soledade,
Riacho dos cavalos, Totoró, Itaberaba, aforra as centenas de quilômetros de estradas
de rodagem comas respectivas obras parte que se estiram e serpenteiam do Piauí à
Bahia. 300

Como expresso na fala do engenheiro da IFOCS, os trabalhos de combate à seca


envolviam estudo e construção de grandes barragens, num misto de modernização e caridade

298
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
299
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 109.
300
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 110.
137

para com o flagelado transmutado, pela pedagogia do trabalho, em operários. Como indicou o
Thomaz Pompeu o êxito das iniciativas para construção de grandes obras era duvidoso porque,
de fato, “sobrepunham-se a vistosa realização de obras, agora monumental, aos morosos
estudos básicos, essenciais para projetá-las e executá-las”, estes levavam tempo e rendiam
poucas homenagens. Por outro lado, “os dados (técnicos) registrados, conquanto importantes,
ainda não bastava; eram incompletos e alguns evidentemente viciados ou carentes de correção”,
esse fato implicava no desempenho duvidoso das obras realizadas pela Inspetoria.301
Com o dinheiro enviado pelo Governo Provisório, a técnica dos engenheiros e os braços
sertanejos, a execução de grandes obras de captação de água, associadas a intensificação da
construção de estradas e de canais de irrigação, seriam capazes de produzir um uso mais
racional do solo, das plantas e das águas. Os fins justificariam os custosos meios. As escusas
do engenheiro podem ser lidas a partir de um quadro mais amplo de críticas à atuação da
Inspetoria de Obras Contra as Secas.
Como parte das mudanças políticas e de escopo na década de 1930, mas também por
não conseguir romper com a lógica patrimonialista e titubeante do planejamento e execução
dos planos de combate à seca construída ao longo dos anos pelo Estado brasileiro, a Inspetoria
esteve envolta em diversos escândalos que impactaram na recepção da sua propalada missão
histórica de combate à seca. O montante de trabalho ocasionava problemas diversos dentro e
fora dos canteiros de obras; além disso, o gasto excessivo do dinheiro público e problemas de
execução das obras colocava a Inspetoria e figurões da política nacional em maus lençóis junto
à boa-fé pública.
No jornal A Razão de 17 novembro de 1930, irregularidades e inquéritos administrativos
na Inspetoria de secas e na Rede de Viação Cearense são sondados. No jornal o texto iniciava-
se indicando “Sugestões que o governo poderia aproveitar”, pois, corria na IFOCS, desde o
início da administração Urbano de Almeida,302 um inquérito para apurar a responsabilidade nas
inúmeras irregularidades verificadas naquela repartição. A tese era de que o departamento
federal, com as suas inúmeras ramificações nos estados de atuação, transformara-se a “mercê

301
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Orientação científica na luta contra as secas. Apud. MOLLE, François.
Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN, HME,
1994. p. 35.
302
Antônio Urbano de Almeida, nasceu no município de Quixadá, Ceará em 1900. Formou-se em engenharia civil
pela Escola de Minas de Ouro Preto, em 1924. Iniciou sua carreira trabalhando na Rede de Viação Cearense,
especificamente na ligação férrea entre Ceará e Paraíba. Logo depois da Revolução de 1930, assumiu a chefia
do 1º Distrito da então Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (atual DNOCS), sediado em Fortaleza,
iniciado inquéritos para apurar malfeitos na Instituição, postura persecutória antenada a atuação do primeiro
Interventor federal do Ceará, Fernandes Távora. Em 1931, ocupou o cargo de Prefeito de Fortaleza.
138

do filhotismo e da falta de compostura funcional”, em viveiro de trapaceiros que “aumentavam


as suas fortunas particulares em detrimento do erário público”.303
Segundo o jornal, não foi sem júbilo que o Ceará recebeu a notícia de uma devassa nas
regras e nos mistérios da “velha casa de malandragem e defesa”. O jovem dr. Urbano de
Almeida apontou os nomes para formar a comissão de inquérito, assim, esperava-se que logo
as mazelas na inspetoria surgiriam aos olhos do público. Apontou-se a família Demétrios como
a que mais se aproveitou das verbas que o governo federal, de tempos em tempos, enviava. Essa
suposição inicial, no entanto, era tomada no artigo como problemática, pois poderia restringir
o interesse da comissão. Segundo o folhetim, os membros da comissão de inquérito não
poderiam se perder, voltando suas vistas “exclusivamente para os membros da família
Demétrio, sem se aperceberem de inúmeros outros responsáveis pelas irregularidades da
inspetoria e que enriqueceram escandalosamente, às vistas do público”.304 Como se percebe, as
impressões em torno das ações da Inspetoria não eram das melhores. O argumento é concluído
com acidez: “A verdade portanto, é que naquela repartição agiam tantos espertalhões, tamanha
leva de ambiciosos, que dificilmente se conclui quem mais avançou”.305
Os escândalos administrativos envolvendo a Inspetoria eram descritos como vergonha
nacional. As divulgações contra a Inspetoria Federal de Obras Contra Secas fervilhavam e o
periódico dedicou uma série de matérias e informações que vinham sendo colhidas a respeito
da Inspetoria de Secas, contando, inclusive, com entrevistas. No exemplar de A Razão, 13 de
abril de 1931, o jornal ouviu o sr. Mario Rozal, ex-funcionário da IFOCS. As motivações para
as denúncias, segundo Rozal, era sua vontade de justiça, de esclarecer “a verdadeira situação
dos homens e das coisas” focalizadas no trabalho da Inspetoria. O Engenheiro Urbano, parte do
corpo técnico da IFOCS, verdadeiro homem de ciência, foi eximido das críticas. Sua atitude
perante os escândalos foi descrita por Rozal como moralizadora, em face dos manejos
indecorosos dos grandes ladrões. A resolução do problema, no entanto, estaria no alto escalão
do Governo Provisório. O retorno do comando local da Inspetoria acerca das revelações foi
desacreditado por Rozal que caracterizou a nota publicada na Impressa pelo Dr. Urbano de
fraca, “extemporânea e inoportuna”.
As revelações do ex-funcionário, além de publicadas pelo jornal, foram transmitidas
àqueles que, naquele momento, foram identificados com detentores das rédeas do
funcionamento da Inspetoria, o Presidente Vargas e o Ministro da Viação. Via telegrama, Rozal

303
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
304
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
305
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
139

informa que a roubalheira era promovida há muito tempo, executada por outros funcionários da
instituição:

Fortaleza, 14, 12, 1930. Presidente República. Ministro Viação. Rio de Janeiro
[...] Desde ano passado venho publicando imprensa local graves ocorrências
inspetoria denominada quadrilha chefiada Aberlado santos. Transmiti vários
telegramas Washington Luiz, pedindo comissão inquérito não sendo atendido. Atual
administração ouviu-me inquérito Sobral foram apresentadas centenas documentos
comprovantes roubalheira família Inspetor José Ayres, pagamento indecisões
forquilha ocorrido setembro 1928 causou revolta geral, Joaquim Demétrio roubou
cerca de cinquenta contos seu irmão José Ayres.
Continuarei enfrentando campanha arriscando perder própria vida patrioticamente
desejando moralidade república. Rogo vossa excelência pelo sangue sagrado João
Pessoa salvar obras Nordeste das garras quadrilhas ladrões. Respeitosas saudações.
Mario Rozal. 306

Todo o imaginário construído ao longo da campanha eleitoral e mais tarde adensada


pelas ações revolucionárias de 1930 fora mobilizado pelo ex-funcionário da IFOCS para
denunciar problemas na Inspetoria. Nesse ensejo, a postura acusatória surge como defesa da
República. As considerações acerca da forma como a Inspetoria atuava era definidora para a
recuperação moral e social na nação. Tendo tão importante causa em mente, Mario Rozal
continuou com o tom belicoso da entrevista, indicando que fora “testemunha das mais grossas
patifarias” e que havia de “frisá-las todas”. A despeito dos históricos serviços prestados pela
Inspetoria ao combate à seca, o ex-funcionário indica o grau de insatisfação alcançado pelo
órgão naquele momento: “A inspetoria de secas a bem da moralidade pública do país deveria
ser extinta aproveitando-se certos funcionários honrados, que lá existem e metendo-se a
guabirúzada na cadeia”.307
Tal estado de coisas se devia aos inúmeros casos de desvios constatados nas obras
espalhados pelo Ceará. Em matéria de 3 de abril do mesmo ano, referindo-se às roubalheiras
dali mesmo, O Jornal publica o seguinte comentário: “A São Francisco, o bondoso Santo que
igualmente foi levado no embrulho, só lhe rogo uma coisa: - dê-me saúde e tempo para realizar
a grande obra de saneamento moral da legendária inspetoria de secas”. Em outra nota, de 27 de
abril de 1931, falando sobre o açude Santo Antônio de Russas, a dupla Aberlado dos Santos e
Jonas Demétrio, Inspetores da IFOCS, são indicados como aqueles que fazem sumir o pudor, o
critério, o brio das ações de combate ao flagelo. Nas obras do açude Forquilha, a pedreira que
fornecia parte do material para a obra, distante 3 quilômetros do local do açude, a Inspetoria
pagava aos Demétrio como se fosse de 7 quilômetros. Em um caso de desvio de material de

306
Transcrito em O Jornal de 13 de abril de 1931.
307
O Jornal de 13 de abril de 1931.
140

construção, em Sobral, uma fábrica de mosaico, estaria consumindo, exclusivamente cimento


da Inspetoria. Os envolvidos nos desvios vendiam até mesmo as barricas vazias, com as iniciais
IFOCS ao comércio sobralense.308
Averiguada e exposta pela sanha investigativa do primeiro Interventor cearense, a
Inspetoria sofreu uma devassa tornada pública. No entanto, com a queda de Fernandez Távora
e a reacomodação burocrática e política promovida pelo novo Interventor, Capitão Carneiro da
Cunha, o desfecho do ruidoso inquérito da Inspetoria não foi o esperado pelo ex-funcionário
Mário Rozal ou pela sociedade brasileira imersa na pauta moralizadora que emergiu com a
Revolução de 1930. Segundo o mesmo O Jornal, o Ministro da Viação confirmou o parecer da
junta de correição do Rio de Janeiro, mandando arquivar o processo instaurado na IFOCS, no
Estado do Ceará, contra o engenheiro Aberlado Andrea dos Santos e senhores Adalgizo
Bezerril, Jonas Demétrio, Batista Demétrio e outros funcionários do quadro da mesma
repartição. O processo, instaurado por ordem do ex-Interventor Fernandes Távora, no início de
seu governo e presidido pelo engenheiro Antônio Urbano de Almeida, tiveram estrondosa
vitória dos acusados. Mais que chamados de volta ao serviço ativo da Inspetoria, foram
restituídos de seus vencimentos, suspendidos durante o tempo que estiveram afastados.309
Passada a seca, as críticas a Inspetoria voltaram aos jornais, em matérias poucas
elogiosas. O Jornal, sediado em Sobral, passou a dar conta da principal reclamação daquele
momento: as contas atrasadas da Inspetoria. No exemplar de 3 de setembro de 1933, a partir de
reportagens publicadas no O Povo, de Fortaleza, o periódico sobralense endossa as críticas à
IFOCS a respeito das dificuldades que estão sendo criadas relativamente ao pagamento de
pequenos fornecedores. As dívidas da Inspetoria, no entanto, eram somente parte do problema:

Os senhores da Inspetoria estão opondo serias dificuldades quando se trata de gente


modesta sem recomendação sem apoio e sem pistolão. Enquanto se verifica esse
revoltante procedimento, os grandes, os eminentes, os empapados que ganham
centenas de milhares de contos, sem mais delongas recebem os pacotes. É O Povo
quem diz isso. 310

A inconstância nos repasses financeiros era antiga e patente. Como afirmou José
Américo, a dificuldade em conseguir a liberação de verbas junto ao governo federal sempre
foram responsáveis por tradição de impontualidades nos pagamentos da Inspetoria, motivando
uma anedota há muito conhecida entre os envolvidos no combate à seca: Conta-se mesmo no
Ceará que diante dessas questões, “encontrando-se Arrojado Lisboa em inspeção ao Orós,

308
O Jornal de 3 e 17 de abril de 1931.
309
O Jornal de 18 de novembro de 1932.
310
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
141

perguntou-lhe um caipira: “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”. Um dos elementos
mais dramáticos da matéria acerca da dívida pós seca de 1932 era a denúncia sobre a
seletividade com que o órgão quitava as dívidas, priorizando os fornecedores com trânsito
político, levando fornecedores de menor trato à bancarrota. Segundo a denúncia, os
prejudicados deviam erguer seu protesto, recorrendo ao Ministro José Américo para enquadrar
os funcionários relapsos e “todos os cabotinos e sabujos que só diante dos potentados se
manifestam atenciosos e solícitos”.311
A situação dos que tinham negócios com a Inspetoria era difícil naquele momento. As
denúncias chamavam de asfixiante e opressiva a posição dos que exploravam o comércio de
fornecimento da IFOCS, sobretudo porque tinham que concorrer com empresas relacionadas a
funcionários do órgão. Com a dificuldade de crédito e cercado de inadiáveis compromissos em
consequência da falta de prestação de contas por parte da Inspetoria, os fornecedores instalados
nas proximidades das obras esperavam pelo pagamento por meses, tendo, inclusive, que
recorrer a “agiotas gananciosos e desalmados” para tocar seus negócios.312
O Ministro José Américo era frequentemente citado nas matérias sobre as dívidas da
IFOCS pois, “entendido como é em assuntos econômicos, a sua palavra merecido acatamento”.
O patriotismo do “incansável e sempre leal e sincero” emérito Ministro seria fundamental para
que mais crédito fosse disponibilizado o quanto antes. As atitudes do “ilustrem filho do
Nordeste”, permaneceria na admiração e conceito de seus conterrâneos, desde que a causa da
região recebesse atenção. As palavras, em geral, respeitosas, tornavam o Ministro o responsável
pelas ações da Inspetoria. No exemplar de 17 dezembro de 1933, os atrasos de pagamento da
Inspetoria vêm à tona.
Manchetes como “O Money vem aí”, do O Jornal, de agosto de 1933, expõem a
expectativa para a disponibilização das verbas pelo Governo Provisório. Segundo notícias do
próprio Ministro José Américo para o chefe da Inspetoria, em Fortaleza, a verba de trinta mil
contos, criada para socorrer o pagamento das dívidas da Inspetoria estava garantida. O Estado,
em sérios apuros econômicos decorrentes da incipiente economia duramente afetada pela
estiagem, poderia respirar melhor.313 A bancada cearense esteve também mobilizada, junto ao
Governo Provisório, para afrouxar “um pouco os cordéis da bolsa econômica e enviarem para
o Ceará, a importância mais ou menos suficiente para solver os compromissos da Inspetoria”.

311
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
312
O Jornal 3 de setembro de 1933.
313
O Jornal de 6 de agosto de 1933.
142

O Deputado cearense Figueiredo Rodrigues e Valdemar Falcão, solicitaram o máximo


andamento de decreto para liberação dos valores. 314
Nem todos aprovavam as decisões tomadas pelo Ministro José Américo. Para o
engenheiro Piquet Carneiro, a supressão da Diretoria de Obras e Viação, no respectivo
Ministério foi um dos problemas do combate à seca efetivado pelo Governo Provisório:

Esse antigo departamento, que esteve sempre a cargo de engenheiros de prestígio pelo
seu passado, e que eram a tradição viva de nossos serviços públicos, mantinham pela
autoridade do próprio cargo, o respeito devido aos contratos e impediam mesmo a
invasão da política na administração. Suprimida àquela diretoria e criadas, em
substituição, inspetorias com sede nesta capital e em detrimento, portanto, dos
serviços em estados que lhes estavam confiados, em breve reconheceu-se seus
inconvenientes ante as irregularidades no andamento dos processos e na observância
dos contratos como a fé sentir a comissão revisora de contratos, em 1921. Dessa
desorganização foi que resultaram graves abusos, que são de domínio público, mas
que não me cabe aqui citá-los. 315

Para ele, havia valor no engajamento dos engenheiros que, “por seu preparo e
idoneidade”, estudavam os socorros em tempo de calamidade “de acordo com a situação
econômica, em que se encontra o país”. Ao pontuar cirurgicamente a falha, Piquet critica o
caráter generalista do planejamento feito no Governo Provisório, ao tempo em que se ressente
da diminuição da figura do engenheiro como real responsável pelo combate aos efeitos das
secas. A acusação se faz de maneira expressa: “Dessa desorganização foi que resultaram graves
abusos, que são de domínio público, mas que não me cabe aqui cita-los”. 316
Além de perder espaço de destaque na opinião pública, o funcionamento e credibilidade
da Inspetoria foram alvos de outras tantas críticas. O nepotismo nas obras, por exemplo, marcou
o saldo que se fez sobre a ação da Inspetoria durante o auge da seca de 1932. Nas obras do
açude Tucunduba, por exemplo, o Governo Federal criou uma verba de 400 contos para a
consolidação da barragem pública, “que realmente estava merecendo as vistas dos poderes
competentes”. A direção desse serviço coube ao Dr. José Olímpio, Chefe da 3ª residência da
estrada de rodagem Ceará-Teresina e da construção do açude Jaibara, portanto, um técnico com
experiência no ramo do combate à seca.
O ilustre profissional Doutor Olímpio, no entanto, destacou para Tucunduba um
funcionário seu afeiçoado, que, segundo matéria de setembro de 1933, recebeu “poderes para
dar as cartas de jogo e mão”. A atividade da Inspetoria passou, então, a ser medida pela forma

314
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
315
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 9
316
Ibid., 935. P. 9
143

inconveniente com que uma série de outras alocações de caráter nepotista se deram na obra. As
implicações da prática antiética se expressavam no andamento técnico dos trabalhos, elemento
profundamente disseminado pela Inspetoria como sendo a marca da atuação do órgão.

Referido funcionário que é extremamente partidário do nosso clássico e sertanejo


axioma “Mateus, primeiro os teus” colocou jeitosa mente os seus filhos (3) e um
futuro genro! E vai levando o serviço com a presteza de quem não tem vontade de
chegar ao ponto de destino. Ao que estamos informados a folha administrativa é
superior à folha operária! 317

A matéria leva a crer que a razão de ser da obra de Tacunduba seria mais um favor de
ordem pessoal do que de benefício público, pondo em xeque a lógica de socorro aos flagelados
que permeava a missão da Inspetoria. O atraso de cerca de 10 meses verificável naquela obra,
por exemplo, tornava altamente repreensível o funcionamento dos trabalhos da IFOCS,
sobretudo porque a demora na entrega poderia significar a perda do contexto em que a
disponibilidade de mão-de-obra e verbas públicas era facilitada. Na marcha lenta, o açude não
seria concluído em dois anos, tempo suficiente para que a chuva e a produção se adensassem.
Na tentativa de contornar parte de escândalos como esses, o Ministro José Américo
nomeou uma Comissão de técnicos para inspecionar as obras a cargo da Inspetoria, a qual
deveria percorrer os mais diversos pontos de obras espalhados pelo Estado do Ceará. 318 Os
problemas nas obras e nas prestações de contas ganharam espaço na mídia, mas foram, ao longo
do tempo, obscurecidos ou diminuídos na memória institucional da Inspetoria e do combate à
seca de 1932.
Em meio aos socorros, uns se despojavam de possíveis lucros e haveres, enquanto outros
viam seus capitais redobrados da noite para o dia: “Tira-se o couro de uns e dá-se a camisa de
luxo a outros”.319 Em meio a críticas como essa, mas, sobretudo, diante das dificuldades que
fizeram demorar a execução de obras de acumulação de água, os projetos de modernização da
agricultura e a promoção da irrigação fizeram-se precários por ainda muito tempo.
Ainda assim, o argumento prosseguia, sendo que era urgente que o governo mantivesse
os repasses de verbas, pois o salvamento dos flagelados era muito mais importante. Bastava
olhar quantas vidas eram salvas e bem empregadas nas construções que transformariam o
Sertão. O açude Lima Campos, construído no município de Icó durante o auge da seca, era
exemplo disso. Trataremos dos detalhes dessa empreitada a seguir.

317
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
318
O Jornal de 8 de dezembro 1932.
319
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
144

3.3 Seca e açude: a experiência de combate à seca em Icó, Ceará.

Em 1912, foi feito o primeiro orçamento para a construção do açude Estreito, idealizado
para ser, na época, um grande reservatório para a região com capacidade de acumular
119.741.150m³ de água. Ao mesmo tempo, foram estudados e orçados outros dois: o Poço dos
Paus, na localidade de São Mateus, atualmente município de Jucás, com capacidade de
619.563.125m³ e o Riacho do Sangue, em Cachoeira, hoje Solonópoles, com capacidade de
61.424.100m³.320
Sob o comando do engenheiro Jules Jean Revy, foram realizados estudos preliminares
sobre as possibilidades de construção de açudes e reservatórios. Os resultados das pesquisas
multidisciplinares da Comissão de Açudes produziram uma seleta lista de lugares aptos a
receber as obras públicas: Boqueirão de Lavras (localizada na vila de Lavras, comarca de Icó),
Boqueirão de Arneirós (vila de Arneirós), Boqueirão de Quixeramobim (vila de
Quixeramobim) e, finalmente, “[...] o açude conhecido pelo nome de Sitiá” (Quixadá). As
instruções da comissão apontam que entre os reconhecimentos e explorações, julgaram aqueles
lugares propícios à edificação de reservatórios. O proeminente farmacêutico Rodolfo Teófilo
foi contrário às iniciativas do grupo, pois, segundo ele, já se reconhecia que nessas terras havia
bons trabalhos de construção para o convívio com a seca.

[...] a vinda d’essa comissão seria recebida com verdadeiro jubilo pela opinião
pública, se diversos factos não tivessem anteriormente provado a nulidade de tarefas
d’essa ordem. Para a construção de açudes, melhoramento de incontestável utilidade,
não era preciso vir uma comissão de engenheiros. Os habitantes do interior, e muitos
d’eles analfabetos, perfeitamente conhecedores do terreno, constroem açudes, que
servem perfeitamente às suas necessidades, com muita economia e sem os preceitos
de engenharia. 321

Com seu judicioso comentário, Teófilo põe em xeque o saber científico e desmerece a
base para a consolidação das ações de açudagem ocorridas em muitos lugares. Apesar de ter se
aventurado no campo científico ao longo da vida, o farmacêutico revela, sem pudor, que “[...]
sem os preceitos de engenharia” os interioranos cearenses desprovidos do acesso a saberes
formais, já construíam açudes perfeitamente compatíveis com a realidade do lugar. À revelia
das vozes dissonantes como a de Teófilo, o trabalho da Comissão de Açudes seguiu rumo ao
semiárido.
O intuito era eleger os locais indicados para a açudagem dando prioridade aos custos
mais baixos. Estudou-se a topografia, a flora, a produtividade do solo, os recursos hídricos e os

320
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I. Icó, 1995. p. 149.
321
THEOPHILO, Rodolfo. História da Secca do Ceará. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 275.
145

cultivos praticados nas localidades, bem como se verificou as informações acerca da


demografia e economia. No âmbito dessa sondagem, a Câmara Municipal de Icó foi
questionada sobre a realidade local. A resposta, despachada no dia 13 de outubro de 1884,
endereçada ao Presidente da Província do Ceará, Carlos Honório Benedito Otoni, lembrava a
existência dos açudes do lugar e indicava pontos ajustados para a construção das barragens
públicas. O ofício esclarecia que, para a realização das obras públicas, poderiam ser utilizados
mestres sertanejos com muita prática nesse tipo de trabalho.322
A Câmara de Icó revelou a seguinte situação: existiam entre 50 e 60 açudes particulares,
mas nenhum público. A existência desses reservatórios corroborava a opinião de Teófilo: a
comunidade local já recorria ao represamento d’água e dominava bem a técnica. Mesmo sendo
descritos como de pequeno porte, já se fazia um uso racional das estruturas, que foram avaliadas
como em boas condições. O documento advertia ainda que, apesar da serventia das pequenas
barragens, elas estavam localizadas em terrenos particulares e que nos momentos de grande
estiagem, apenas as cacimbas guardavam alguma água. Contudo, os problemas maiores
residiam no difícil processo de desapropriação.323 Por fim, o ofício aponta para a confiança na
solução oferecida pela comissão, considerando que a construção de um açude em Icó poderia
ser fundamental para a sobrevivência nos períodos de seca. 324
Em fevereiro de 1911 o projeto de construção do grande açude do Estreito, em Icó, foi
elaborado pelo Dr. Carlos Pinto de Almeida. Os estudos previam um reservatório com um custo
orçado em 2.174 contos de réis. Aprovado, conforme aviso de 07 de setembro de 1912, a obra
deveria ser destinada à concorrência pública no início de 1913, o que não ocorreu. Segundo a
Inspetoria, falhas no projeto impediram o desenvolvimento da construção. O ponto mais
problemático teria sido a desproporção entre a capacidade da bacia hidráulica e a descarga anual
do Rio São João, muito aquém do necessário para suprir o açude projetado.
A retomada da obra se dá apenas durante as calamidades decorrentes da grande seca de
1932, quando a dificuldade técnica apresentada em 1912 foi rapidamente corrigida. De acordo
com as memórias do escritor Júlio Cosmo Rodrigues, ex-funcionário do DNOCS, o açude Lima

322
MAPURUNGA, José. Bem-vindo ao reino do louro e da peixada: Icó Patrimônio Nacional. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2009, p. 14.
323
As desapropriações ocorridas no momento da construção da barragem de Lima Campos, já em 1932, podem
estar associadas à manutenção de uma grande propriedade particular, mas, também a existência de pretensões
públicas para a região. Nas décadas seguintes, o DNOCS ampliou sua participação junto à localidade investindo
largamente no sistema de colonato a partir dos canais de irrigação aprimorados ao longo dos anos, assim,
atualmente, se observa que a especulação imobiliária e mesmo a construção de obras de caráter público,
esbarram na existência de um verdadeiro cinturão de terras cuja posse é deste órgão no município de Icó.
324
MAPURUNGA, José. Bem-vindo ao reino do louro e da peixada: Icó Patrimônio Nacional. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2009, p. 14.
146

Campos era, até o ano de 1932, “[...] apenas uma fazenda de criação de gado e outros animais,
a qual pertencia ao Sr. Ananias Evangelista, proprietário da fazenda Estreito. Com a
exacerbação dos efeitos da falta d’água, a construção do reservatório foi agilizada”.

[...] O Nordeste lutava com escassez de chuvas desde 1.930. Em 1931, motivos
prementes de economia influíram para que a realização sistemática do programa de
inspetoria não fosse iniciado com intensidade, vendo-se entretanto o governo federal,
obrigado a conceder pequenos créditos especiais, principalmente pelo fim do ano, com
o objetivo de socorrer certas regiões mais atingidas pela seca que então se
pronunciava. 325

Sobre o resgate do projeto do açude durante os tempos de seca, observa-se que o objetivo
da Inspetoria era o de enfrentamento sistemático dos efeitos danosos das estiagens, no entanto,
é historicamente possível perceber que o poder público manteve suas ações de forma irregular
ampliando-as, sobretudo, quando as crises climáticas batiam à porta, momento em que havia
disponibilidade de mão de obra barata e maior pressão social. O considerável contingente de
retirantes que circulou durante a seca de 1932 foi o responsável pela execução do projeto.
Os trabalhos de exploração, investigação e desenhos de projetos são anunciados pelos
diferentes grupos de estudiosos interessados em definir caminhos para sanar um dos maiores
problemas da nação: as crises de abastecimento d’água. Apesar das contendas existentes entre
os diferentes projetos de intervenção técnica, a construção de barragens de grande porte para
represamento de água e irrigação de lavouras foi levada adiante.
A açudagem apontava para o papel decisivo do governo em prol do bem-estar das
populações atingidas pelas estiagens. A construção de açudes seria, agora, de iniciativa pública.
A empreitada se somava aos esforços de auxiliar fazendeiros e pequenos proprietários de terra,
provendo-lhes de instruções acerca da construção de açudes, detalhes sobre as formas e
dimensões adequadas para sangradouros, muralhas e comportas. Entre os lugares propícios para
a edificação desses tipos de reservatório estava o município de Icó, na região centro-sul do
Ceará.
Os termos das pretensões da Inspetoria com relação às terras do Vale do Salgado, em
Icó, visavam à conformação da área por meio de uma ação técnica. De acordo com os estudos
realizados em 1931, pouco antes da confluência dos rios Salgado e Jaguaribe, o vale se alargava
em várzeas extensas, largas, planas, compreendendo todo o curso inferior dos riachos Mucururé
e São João, à margem esquerda e Bezerros, Capim Pubo e Bebedouro à margem direita, os
quais são os seus afluentes mais importantes. Naquele lugar, segundo o encarregado pelas ações

325
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d].
147

da Inspetoria Federal de Combate às Secas, engenheiro Luiz Vieira, as várzeas “[...] satisfazem
a todas as condições para a implantação da irrigação: terras excelentes e topografia propícia
tanto à distribuição quanto à drenagem”. 326
O reservatório do “Estreito”, mais tarde batizado de Açude “Lima Campos” em
homenagem ao antecessor de Luiz Vieira, falecido num acidente de avião, teve sua construção
iniciada em 13 de abril de 1932 em plena fase aguda da seca, sendo concluída em 31 de
dezembro do mesmo ano e inaugurada em 06 de janeiro de 1933.
Getúlio Vargas recebeu o seguinte telegrama sobre a entrega da obra:

Foi inaugurado o açude Lima Campos. (Ceará), 6 – centro dos exportadores, centro
dos importadores, jornais do nordeste e correio do Ceará, congratula-se com v. ex.
pela inauguração do açude Lima campos realização que vem comprovar a boa vontade
patriótica do governo de v. ex., no sentido da solução do problema das secas. – Pedro
Riquet, Freitas Rala, Moacyr Bezerra Nathaniel Cortez.327

A construção do Lima Campos inspirou uma nova política de combate à seca naquela
região, ensejando medidas práticas para a inclusão daquele território na economia nacional.
Segundo dados do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, de 1934, no texto
“Memória Descritiva”, assinado pelo chefe da Inspetoria de Secas, engenheiro Luiz Viera, a
capacidade de armazenamento de água do reservatório chegava a 58.269.000m³ e a irrigatória,
de 1.000 hectares. Na apresentação desse artigo, Vieira indica que, naquele momento, a
Inspetoria já projetava “[...] derivar, futuramente, para a bacia do “Lima Campos” águas do
açude “Orós”, por meio de um túnel de três quilômetros de extensão, ficando assim o
reservatório apto a irrigar 9.5000 hectares [...],” fazendo da construção do Lima Campos uma
das primeiras peças do importante projeto de intervenção no semiárido gestado nos primeiros
anos da década de 1930. 328
As obras no Lima Campos incluíam a edificação do “[...] açude, canais de irrigações e
rodovias, compreendendo como tais, Lima Campos Icó, Lima Campos - Iguatú, e Lima Campos
– Orós”. 329
A realização de obras de açudagem e irrigação previa estabilizar colheitas
transferindo, aos poucos, a agricultura para as zonas banhadas pelas águas dos reservatórios, o
que propiciaria a gradativa transição da dependência dos anos chuvosos para o regime de
rotação das culturas e aproveitamento “[...] dos tratos de terrenos bons, mas inacessíveis aos

326
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 5.
327
Jornal carioca Correio da Manhã, 10 de janeiro de 1933.
328
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
329
Ofício do engenheiro hidráulico Jules Jean Revy para o 1º engenheiro Costa Couto, em 12 de dezembro de
1884. Ministério da Agricultura, 1885, A-U, p. 50. Disponível em:
http://www.crl.edu/brazil/ministerial/agricultura. Acesso em: 02 de janeiro de 2020.
148

sistemas irrigatórios”. As margens dos grandes reservatórios e a possibilidade da piscicultura


seriam o futuro das áreas modificadas física e economicamente em nome do combate às secas.
Para tanto, se fazia necessário muito mais que a caneta dos engenheiros: “[...] É na verdade uma
nova civilização que ali se está criando sob o amparo da água, os grandes vales reanimados
pelos rios ressuscitados, os quais, antes, só se apresentavam como fantasmas de destruição nas
inundações pavorosas”.330 As mudanças na natureza conduzidas pela vontade política eram a
chave para a solução dos complexos problemas do Nordeste.
No artigo publicado no Boletim da IFOCS, Vieira não se detém às indicações sobre o
cotidiano da obra, mas, somente à explanação acerca dos recursos naturais da área, devidamente
analisada pelo viés técnico. A paisagem natural é apresentada e valorada com base no interesse
de transformar insumos naturais em potencialidades materiais. As observações de Vieira
apontam, ainda, para a projeção da irrigação na região, demonstrando que para além da
construção dos reservatórios e dos socorros urgentes mais uma vez mobilizados no período de
seca, o Governo Provisório pretendia investir em áreas que suportassem investimentos futuros.
Verificando o relato do Inspetor de Secas do Boletim da IFOCS, de 1934, percebe-se
que a construção do açude do Estreito não se prestava apenas ao socorro dos flagelados
necessitados de trabalho e víveres, mas, se destacava por integrar a realização de um projeto
mais audacioso, que faria reverberar aquele momento como sendo de excepcional planejamento
para a resolução do problema das secas. Ainda em seu artigo, Vieira chama atenção para a
localização do reservatório que, situado na parte baixa do curso do Rio Salgado, nas várzeas do
Icó, seria parte integrante do sistema de irrigação de Orós, ou do Jaguaribe. Desse modo, o
Lima Campos guardava em seu projeto recente a indicação expressa de fazer valer suas águas
aos esforços de irrigação das terras nordestinas, estando ligado aos planos futuros de
modificação da capacidade hídrica do Ceará.

O interesse era o início imediato da irrigação de uma parte das várzeas. O projeto do
sistema aceita, portanto, a solução progressiva para sua construção com o
estabelecimento imediato dessa irrigação parcial, mediante a construção do açude
Lima Campos, convindo, entretanto, que os canais tenham as dimensões definitivas,
apesar de extensão limitada à zona a irrigar. 331

A ação da Inspetoria seria de alterar as terras que “[...] se prestam de maneira notável
ao estabelecimento de um sistema de irrigação, pela sua qualidade, conformação e situação”. A
barragem de Lima Campos tinha a vantagem de reunir esses atributos, além de ser uma “[...]
das mais baratas do Nordeste”. A projeção era de que o Lima Campos pudesse arcar com a

330
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1935. Vol. 3. N.º 6. p. 226.
331
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 7.
149

responsabilidade de irrigar uma área de 2.000 hectares com recursos próprios. Nas contas da
Inspetoria, as várzeas de Icó atingiam cerca de 10.000 hectares, havendo a necessidade de
complementar as águas do reservatório Lima Campos com uso do açude Orós para a realização
completa do programa de irrigação das terras aráveis daquela localidade. 332
Valer-se das várzeas de Icó significava percebê-las através do olhar técnico. No entanto,
vez ou outra, o Inspetor de Secas, Luiz Vieira, permite entrever suas impressões sobre o povo
do local, mencionado em meio às descrições sobre a irregularidade das chuvas. Para ele, as
condições “[...] não consentem nunca o aproveitamento econômico, sistemático e completo
dessas grandes e feracíssimas tratos de terra”, fazendo com que o povo do campo, diante das
parcas condições de plantio, se apegasse à “[...] produção excessiva nos bons invernos” que
davam “[...] a ilusão de uma riqueza permanentemente mas se anula por completo nos invernos
maus ou na seca”. Aos seus olhos, o sertanejo surge como “iludido” pelos “[...] anos de
bonança”, facilmente esquecendo-se da “[...] fatalidade da seca” que, assim, “[...] o encontra
desprevenido”. Dessa forma, cabia ao trabalho técnico e à ação governamental a construção de
açudes e o investimento na irrigação que, “[...] bem escolhida e bem dirigida”, mudaria a região
que se beneficiasse com a água armazenada nas épocas de excesso. Finalmente, o sertão estaria
“[...] independente da variação de precipitações de chuva”. 333
Apenas na década de 1930 a Inspetoria “[...] se aproximou da irrigação do ponto de vista
agronômico e das pesquisas agrológicas”. Essa tendência se evidenciava ainda no artigo 10, do
novo regulamento da IFOCS: “[...] a Inspetoria só construirá açudes ou auxiliará a sua
construção em terras que se prestem à irrigação e à cultura agrícola”. 334 Depois dessa diligência
do Governo Provisório, somente em dezembro de 1945 o Presidente José Linhares e o Ministro
Maurício Joppert da Silva, agenciando uma nova reformulação da Inspetoria, transformando-a
em DNOCS, criam o Serviço Agroindustrial e o Serviço de Piscicultura, voltado para
implementação das proposições das comissões técnicas empregadas em 1932.
O foco na irrigação, no entanto, só viria a tomar corpo a partir dos planos realizados ao
longo dos anos 1932-33. Por mais que se esperasse para breve o início de vários desses
empreendimentos, “[...] rigorosamente feitos no campo”, problemas com a liberação de
orçamento e de caráter técnico impediram sua plena execução. A esse respeito, ainda em 1934,
um dos boletins da Inspetoria identifica que, por mais que fossem dignos os esforços nessa

332
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
333
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
334
DNOCS. Registro histórico. Disponível em:
https://www.dnocs.gov.br/php/comunicacao/registros.php?f_registro=2& Acesso em: 27 de abril de 2019.
150

seara, sabia-se que os projetos “[...] eram em geral incompletos, sentindo-se os engenheiros não
raro em dificuldades, quando projetavam obras de irrigação, devido à insuficiência desses
elementos indispensáveis aos cálculos”. Segundo o texto, “[...] a deficiência daqueles dados,
procurados pelos cientistas que às vezes nos visitavam, criava-nos uma situação embaraçosa”,
contudo, assumir essa dificuldade visando dar prosseguimento à ampliação das áreas irrigadas,
demonstra a importância dada ao assunto. 335
Dessa maneira, o processo de construção do açude Lima Campos trouxe transformações
que passaram pela consolidação da açudagem, enquanto solução reconhecida para os problemas
inerentes às estiagens. Tal processo engendrou uma experiência específica de trabalho nas obras
do açude.
No começo do Governo Provisório, a tentativa de remodelar a organização do Ministério
da Viação e Obras Públicas marcou o início da gestão de José Américo. Assim como propunha
o ideário revolucionário de 1930, suas atenções se voltaram para a modificação dos parâmetros
da ação. Quando, porém, a crise climática se ampliou, a Inspetoria, igualmente modificada a
partir do crivo do novo governo, carecia de um planejamento real e de projetos aprovados nos
termos propostos por aquele Ministro. Uma vez definido o novo fluxo de socorros e verbas, a
Inspetoria e o Ministério recorreram a antigos projetos de intervenção no semiárido. Nesse
sentido, um dos estudos em melhor condição de ser posto em prática era o do açude Estreito.
Como indica Cosmo,

[...] O único na ocasião em condição de ser aprovado era o do açude Lima Campos
(Ex-Estreito I) ora em conclusão no escritório do I Distrito em Fortaleza. Essa obra
foi atacada imediatamente. Assim foi incumbido da construção do açude, o grande
prático em construção de açude, já falecido, Sr. Sebastião de Abreu, o qual chegava
ali na casa grande da fazenda Estreito no dia 13 de abril de 1932 [...].336

No Ceará, a experiência do sertanejo na construção de açudes se mostrou viável, sendo


utilizada, mais uma vez, na edificação da barragem em Icó, a partir do alistamento de milhares
de retirantes. Segundo o relato de Cosmo, Sebastião Abreu, o encarregado da obra, buscou
minimizar as tensões no entorno do populoso acampamento, de forma a organizar o
337
atendimento aos que procuravam ocupação na frente de trabalho.

335
BOLETIM ABRIL, 1934, vol. 1, n. 4, p. 180.
336
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 3.
337
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 3.
151

Ainda segundo Cosmo, o ano de 1932 apresentou-se incerto “[...] com pequenas chuvas
em janeiro e essas cessaram por completo em março sem com tudo garantir o desenvolvimento
das plantações”. A gravidade da situação foi utilizada para pressionar um maior repasse de
verbas e socorros, que foram então “[...] encaminhadas para a população mobilizada para os
trabalhos em regime de emergência”, como já observado em secas anteriores. 338
Em Icó, diante da profusão de flagelados, a primeira medida tomada foi o alistamento
dos muitos retirantes que ocupavam os arrabaldes das obras da IFOCS. No Jornal O Povo do
dia 17 de maio de 1932, as diversas secas são representadas como a principal razão para a
migração dos cearenses.339 Contudo, conclui:
A zona do Nordeste representa o papel de mãe ingrata, paupérrima, cujas tetas não
alimentam os próprios filhos. O homem aqui sempre lutou muito mais que seu irmão
do restante do Brasil. Como não há mal que não traga um bem, no expressivo dizer
popular, por ser assim caldeado no sofrimento, o nordestino se afigura o tipo mais
forte da raça brasileira e por isso é que ele lá fora, sabe triunfar com relativa facilidade,
sendo considerado, nisso se lhe fazendo justiça, o trabalhador infatigável, o operário
por excelência, com a vantagem de adaptar-se às asperezas de qualquer indústria ou
meio de vida [...].340

O jornal lembra que há um ponto positivo no terrível contexto em meio ao sofrimento:


o “operário por excelência” se agiganta. As características apontadas para o sertanejo revelam
um ideal de trabalhador que guarda a versatilidade diante da “aspereza de qualquer indústria”.
Quando pequenos proprietários, arrendatários, agregados, famílias inteiras foram pressionados
a sair do campo em favor da grande propriedade, ou empurrados para cidades maiores em
função da redução do rendimento do minifúndio, o trabalho é mencionado como caminho da
redenção. Esses sujeitos passaram a se dedicar a atividades variadas, que iam desde trabalhos
artesanais, como marceneiros e ferreiros, até atividades extenuantes de carregadores e
escavadores.
A maior afluência de flagelados para a obra do açude do Estreito se iniciou em abril de
1931, “[...] lá aguardavam socorros mais de 3000 pessoas”. 341 A população nos abarracamentos
das obras cresceu com rapidez, ao mesmo tempo em que se ampliaram também suas
necessidades de consumo e sobrevivência. Homens, mulheres e crianças oriundos de várias

338
Ibid., p. 2.
339
Sobre o importante fluxo de migração de cearenses para a Amazônia, segundo Barboza, “[...] apesar da
decadência da exploração da borracha no Norte e o surgimento de outros destinos, a Amazônia continuou sendo
um dos polos de atração de retirantes nas secas de 1915 e 1932”. Sob o governo Varguista, o fluxo foi ampliado
com a campanha “Marcha para o Oeste”, em 1938. Cf. BARBOZA, Edson Holanda Lima. Entre narrativas,
usos e abusos: migrações de cearenses para a Amazônia (1877-1945). In: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes;
NEVES, Frederico de Castro. Capítulos de História Social dos Sertões. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura
Editorial, 2017, p.143- 158.
340
Jornal O Povo, dia 17 de maio de 1932.
341
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
152

partes do sertão, buscaram condições diferentes de vida no espaço pouco promissor das áreas
de construção. Quando mais uma vez os desdobramentos da seca se intensificaram, os
planejamentos prévios para o combate à estiagem, iniciados com as mudanças executadas pelo
Ministro da Viação na organização da Inspetoria, cederam lugar aos socorros intensivos
pautados em premissas anteriores.
As velhas respostas foram empregadas, suscitando, rapidamente, conhecidos problemas
e reclamações, sobretudo, acerca da permanente fragilidade dos acampamentos e sobre a
atuação dos responsáveis pelas obras. A magnitude da miséria e a necessidade de socorros na
mesma proporção tornava dúbia a opinião geral a respeito das ações da Inspetoria, ora descritas
como “improvisações”, ora definidas como “esforços notáveis”. 342 A justificativa para adotar
as mesmas medidas tomadas em outros momentos de calamidade, se assentava na “[...]
afluência de famintos desnorteados”.343
Em Icó, o número de flagelados aumentou bruscamente, atingindo em outubro de 1931
“[...] a soma vertiginosa de 75.000 almas”. O número de pessoas abarracadas, naquele
momento, era “[...] maior que a de muitas capitais de estado”, sendo praticamente impossível
dar conta, com os recursos materiais de que então dispunha a Inspetoria, dar assistência à
multidão.344 O enorme contingente e suas demandas exigiram que os responsáveis pela obra
criassem postos de trabalho, condições de higiene e arranjos de controle dentro do canteiros de
obras.
No começo da construção do açude Lima Campos, foi deslocado uma grande massa que
antes se concentrava em Buriti e Cariús, onde havia também o projeto de um reservatório.
Aquelas pessoas eram transportadas via estrada de ferro em condições sub-humanas, em vagões
fechados e despejadas na estação da Água Fria, de onde seguiam a pé para o Estreito. Chegando
ali, parte do contingente era alojado em barracas de zinco ou cobertas com folhas. Sem
instalações adequadas, as necessidades fisiológicas se viam atendidas em fossas a céu aberto.
345

Cosmo informa que em Icó, havia aproximadamente 300 mulheres alistadas na obra do
açude. Segundo o relato, muitas eram de famílias numerosas, compostas por “[...] 8, 10 e mais
pessoas” tendo como amparo único o chefe, “[...] cuja diária de 2.500 era evidentemente
insuficiente às exigências de alimentação”. Em diversos casos, se tratavam de viúvas ou “[...]

342
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
343
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
344
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
345
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I, Icó, 1995, p. 147.
153

mulheres abandonadas” as responsáveis por suas famílias compostas, às vezes, por “[...]
crianças de 10, 12 e 15 anos”, que, em muitas situações, logo se viam órfãs de pai e mãe. Nesses
casos, dada à situação periclitante de crianças e jovens desamparados, os encarregados da obra
admitiam os menores nas residências de concentração e frentes de trabalho, onde buscavam
“[...] com o suor do rosto o sustento de seus irmãos”. 346
A construção definitiva do reservatório do Estreito teve início no dia 11 de abril de 1932,
tendo sido concluída antes da chegada das chuvas de inverno em 1933. Logo após o alistamento
dos operários, começaram os serviços de “[...] desmatamento, destocamentos, escavação de
fundação da barragem” num ritmo de trabalho acelerado que “[...] funcionava dia e noite”,
indicando os tempos de atividade contínua aplicados aos sertanejos que se ocuparam da obra,
que, aliás, foi a mais acelerada realizada pela IFOCS dentro do conjunto edificado nos esforços
da seca de 1932.

Figura 4 – Canteiro de obras de construção do Açude Lima Campos, em 1932.

Crédito da imagem: Amílcar Pellon (acervo da família). Disponível em: https://lehmt.org/2020/06/25/lugares-de-


memoria-dos-trabalhadores-39-campo-de-concentracao-de-senador-pompeu-ce-frederico-de-castro-neves/
Acesso: 24 de julho de 2020.

346
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 4.
154

Segundo dados do Boletim da Inspetoria, “[...] a afluência de famintos desnorteava”,


pois não havia infraestrutura prévia e a recorrente improvisação achou seu limite quando uma
“[...] avalanche humana se precipitava para os lugares onde se iniciava uma obra ou se supunha
iniciar”.347
No Lima Campos, o número de famílias às margens da obra aumentou ao longo dos
trabalhos. A disputa por uma vaga era acirrada, exigindo que engenheiros e encarregados
estabelecessem critérios de seleção dos operários em meio à enormidade da multidão.
Desprovidos de condições materiais adequadas para iniciar a construção do açude, os que
tinham algum “[...] arremedo de ferramentas eram admitidos imediatamente”. Com um
agrupamento de flagelados exigindo qualquer tipo de ocupação, a fim de contornar a convulsão
social, “os que nem esses instrumentos possuíam recebiam socorro direto, a esmola humilhante,
mas inevitável”, sendo assim dissociados do trabalho entendido como moralizante e desejável
pela sociedade do período.348
Os canteiros de obras possuíam uma população mista que ia além da propriamente
operária. Havia outra composta de “[...] fornecedores e de pequenos comerciantes e artífices e
até de desocupados, cujos hábitos e costumes pouco diferem dos daquela, por um fenômeno,
talvez de absorção, ou por adaptação ao meio”. Às margens das obras, eram construídas casas
residenciais para os diversos auxiliares que se ocupavam da edificação do açude. Além dessas,
“[...] poucas eram as de construção sólida e somente aquelas servidas d’água e esgotos”, os
tantos outros locais de moradia, majoritariamente, eram “[...] de taipa ou de tijolos em preto,
sem o menor arremedo de comodidade, tendo como aparelho sanitário rudimentaríssimas
fossas”. A disposição dos casebres formava ruas “[...] sem simetria, cheias de cotovelos, e
praças poliédricas irregulares”. A parca organização e o pouco fundamento de “[...] choupanas
de folhas secas ou barracões cobertos de zinco”, eram vistos pelos técnicos da inspetoria como
“[...] reflexo da indolência dos seus ocupantes”. 349
A população densa e variada fez surgir, ao redor dos açudes. povoados de casebres
rústicos, “[...] mas que no conjunto não impressiona pessimamente”.350 As construções feitas
nas proximidades do Lima Campos, erguidas em 1932, pouco sofreram modificações ou
melhorias nos anos seguintes, conforme indicam relatos e fotografias vinculados aos boletins
da Inspetoria.

347
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 92.
348
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
349
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
350
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262-263.
155

Figura 5 – Barragem Lima Campos depois de concluída (1933)

Fonte: Boletim da IFOCS, 1934, vol.1, n. 1.

Segundo relato do engenheiro Henrique Novais, em relatório sobre a obra de combate


às secas ao longo do Governo Provisório, as cidades da região cresciam continuamente. Núcleos
novos de população haviam se formado a partir das aglomerações nos locais de construção das
barragens, estimulados a princípio pelos trabalhos de construção e, depois, garantidos pelas
reservas d’água dos grandes açudes. Esses centros deram origem a núcleos urbanos e
comerciais, sobretudo, nas zonas de irrigação.351 No período, em meio a esses pequenos núcleos
interioranos, a capital do Estado do Ceará, Fortaleza, se destacava com prosperidade decorrente
de sua capacidade produtiva, que se refletia nas receitas do município.352
O cotidiano das obras era duro, o trabalho muito pesado. A grande maioria das
atividades era executada manualmente, inclusive, por ocasião do atraso na entrega de
ferramentas e na realização de obras auxiliares como as das estradas de rodagem, que
facilitariam o trânsito de pessoas e materiais. Ainda em Icó,

[...] os trabalhos foram executados manualmente, inclusive a compactação do material


empregado na construção da barragem, que foi feita à malhos de madeira,
movimentados por braços humanos. Muitos daqueles malhos chegavam a pesar 15
quilos e de acordo com as exigências da administração, tinha que os mesmos serem

351
Em 1935, o desempenho do Governo Provisório em diversas áreas foi analisado por encomenda dos “Diários
Associados”. Nessa ocasião, os trabalhos em torno dos socorros para com os flagelados da seca foram
observados pelo engenheiro Henrique Novais que visitou açudes, campos agrícolas, canais de irrigação e
estradas recém-construídas, elaborando um relatório que abordava, a partir de suas impressões, as bases sob as
quais a ação do governo se assentou no combate à seca.
352
Para Henrique Novais, as construções urbanas na capital se expandiam em um “[...] ritmo constante, em média,
ligeiramente superior a uma habitação por dia, sejam 367 em 1931, 461 em 1932, 379 em 1933 e 384 em 1934”.
In: Boletim Junho. 1935, vol. 3, n. 6, p. 226.
156

elevados até a altura dos joelhos, para provocar maior peso e firme compactação. Para
aquele serviço, eram escolhidos os fortes e sadios, recebendo os mesmos uma pequena
diferença de salários com relação aos demais que executavam outros trabalhos. 353

Nas palavras do memorialista Miguel Porfírio, percebe-se que no andamento das obras,
em Icó, até mesmo a compactação do material empregado na construção da barragem foi
realizada a partir da força individual. O relato indica que, apesar do alarde acerca do uso da
técnica e do ímpeto modernizador propagado a cada nova obra de combate à seca, o dia a dia
das obras era pautado pela precariedade e improvisação. Expediente comum ao longo dos anos
de atuação da Inspetoria.

Figura 6 – Cava para construção do Açude Acarape, em 1910.

Fonte: Arquivo Nacional. Fundo: Fotografias Avulsas - BR RJANRIO O2

Tal estado de coisas impactava diretamente na qualidade das obras executadas e,


sobretudo, na salubridade do trabalho dos operários. Corroborando a narrativa memorialista, o
Boletim da Inspetoria indicou que naquela turbulenta situação,

[...] aceitava-se como ferramenta tudo que lembrasse mesmo de longe um instrumento
de trabalho. Picaretas, enxadas, carrinhos de mão surgiram de todos os feitios e de

353
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I. Icó, 1995. p. 152.
157

todos os materiais, ora reduzidos a uma sombra do que haviam sido, ora caricatura
grotesca do instrumento que procuravam imitar. 354

Os esforços na limpeza de terrenos, derrubada de plantas, abertura de caminhos e na


construção de barragens, eram atividades conhecidas pela maioria dos homens e mulheres do
campo, no entanto, a exaustiva rotina impunha uma nova lógica, bem como novos métodos. O
tempo de trabalho era outro. O ritmo medido pelo relógio do encarregado da obra se distanciava
do cotidiano dos roçados familiares, impondo uma cadência diferenciada às vidas e às
modificações da paisagem natural do sertão.
Nesse contexto, os retirantes, agora operários da seca, remanejavam saberes adquiridos
no trabalho das fazendas e sítios e, decerto, conferiam um novo formato às suas práticas diante
das diferentes condições de trabalho. Portanto, adaptavam e repassavam saberes e artes que
circulavam no transcorrer do tempo. Tal como sugerido por Michel de Certeau, é possível
refletir e problematizar como esses sujeitos, submetidos a uma situação desfavorável
conseguiam, em um espaço provisório e em um tempo inconstante, alcançar objetivos e atender
seus interesses criando diferentes modos de vida.355
Sobre essa questão, segundo relato do médico Absalão de Almeida, do serviço clínico
da Inspetoria de Secas, a disciplina no serviço e as “[...] medidas impostas pela higiene e
profilaxia, em defesa da saúde individual e coletiva”, trouxeram a população de retirantes para
outro plano de organização e trabalho, um fator “[...] de justiça mais precisa” que suscitava na
massa de trabalhadores “[...] o sentimento de gratidão”. 356
Entretanto, os trabalhadores
afirmavam a capacidade que dispunham de ação direta, mesmo diante da fragilidade de sua
posição ante o momento de tamanha necessidade.
A população que ocupava as frentes de trabalho se compunha de cearenses vindos de
vários pontos do Estado do Ceará, eram também paraibanos, norte-rio-grandenses,
pernambucanos e piauienses. O ameaçador aglomerado de retirantes no entorno das obras do
açude ficou retido na memória do engenheiro. Diante do amontoado desordenado, encarregados
da obra exigiram que a multidão se transformasse em uma fila, obrigando que cada indivíduo
percorresse um “[...] enorme curral de cuja abertura única, saíam os flagelados, um a um”.
Diante da pressão exercida pela multidão em busca de socorros, contrataram o máximo possível
de retirantes, dando início a “[...] um trabalho imaginário cujo efeito se iria manifestar mais

354
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
355
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 46-47.
356
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
158

tarde pelo encarecimento das obras”.357 À vista disso, tendo posto de trabalho definido, ou não,
os retirantes que atravessavam o curral imposto para ordenamento da turba aparentemente
irracional “[...] recebia a diária de mil réis para a sua manutenção”.358
Segundo relatos do corpo técnico envolvido nas obras, a cada imposição os
trabalhadores exigiam explicações que, de acordo com suas palavras, eram concedidas de
maneira “leal e sincera”. Porém, nesse contexto de dominação e controle, os esclarecimentos
não eram aceitos de maneira passiva, não sem “[...] resmungar sempre e não acreditar nunca”. 359
A desconfiança quanto à eficácia dos tratamentos médicos impostos aos trabalhadores é um
bom exemplo disso. Diante da propagação de doenças nos abarracamentos, rumores e agitação
se multiplicavam.
Acerca das tentativas de ordenamento dos canteiros, vale informar que os operários
assumiam verdadeiras práticas cotidianas de resistência.360 Conforme relato presente nos
Boletins da IFOCS, as vacinas “[...] não lhe merecem franca simpatia”, um recenseamento “[...]
parece-lhe um chamado para a guerra”. Diante da obrigatoriedade da vacina, os sertanejos
diziam: “[...] a minha natureza não pode, não desejo botar peste em meu corpo”. 361 Nesses
casos, restava às partes envolvidas flexibilizar os termos que marcavam o exíguo espaço de
proximidade entre os indivíduos com premissas técnicas e a miríade de famílias de origens e
composições diversas que buscavam sobreviver e trabalhar. Ambos os lados negociaram sua
posição elaborando estratégias de dissimulação e vigilância. Por parte dos responsáveis pela
obra e pelo atendimento médico, surgiu uma postura mais flexível pautada na persuasão,
buscando agir “[...] pela simpatia que se lhe infunde”. 362 Desse modo, o contexto de dominação
tornava-se permeado por relações pessoais estabelecidas em prol da superação da disparidade
entre as visões de mundo.
Nesses locais, marcados profundamente pelo impacto da aglomeração de famílias
inteiras em situação de calamidade, a ausência de água, entre outros fatores, ocasionou sérios
problemas no estado sanitário da população, concentrada nas áreas de escavação e construção
dos reservatórios.363

357
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
358
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
359
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
360
Sobre a noção de “práticas cotidianas de resistência”, ver: SCOTT, James C. A Dominação e a arte da
resistência. Discursos ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.
361
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
362
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
363
Durante o século XIX, a cólera-morbus devastou os sertões, resultando em morte e despovoação de áreas.
Depois, a peste bubônica e a varíola compuseram o fúnebre quadro das agruras do sertão ressequido. Em 1878,
quando dados apontam que a população de Fortaleza era de cerca de 170.000 habitantes, estima-se que
morreram de varíola cerca de 35.000 pessoas. Sobre os impactos epidêmicos no Ceará, ver: ALEXANDRE,
159

A situação foi agravada quando a falta d’água, considerada a razão do êxodo das
famílias em busca de socorros públicos, atingiu também as áreas atendidas pelo governo. O
volume de água necessário para o abastecimento das obras era grande, pois, além de ser usada
para alimentar o imenso contingente de pessoas agrupadas nos canteiros, era igualmente
destinada às várias etapas das construções:
Ela [água] escasseava assustadoramente nos locais das obras; houve onde para as
necessidades de construção esse líquido era transportando de 10 e mais km de
distância e nesse mister foram gastas somas consideráveis. Água de beber era ainda
mais difícil em quantidade e quase sempre de péssima qualidade. 364

Eram enormes as dificuldades para suprir os acampamentos. Em se tratando da abertura


de rodovias, ampliavam-se as distâncias entre as áreas de trabalho e os locais de abastecimento.
Os problemas se acumularam tanto, que alguns trechos cearenses da transnordestina não foram
executados, naquele momento, por ausência absoluta de condições de suprimento d’água, “[...]
cuja obtenção só era possível a mais de 20 km”.365
Nas frentes de trabalho para a construção dos reservatórios, a falta d’água teve
consequências mais infaustas, indo além do comum encarecimento das obras na construção de
estradas, posto que “[...] verificava-se em geral o aumento do índice epidêmico à medida que a
água diminuía”. 366
Na seca que abrangeu o triênio de 1931 a 1933, os mais intensos surtos
epidêmicos foram de tifo, paratifo e disenteria.367
Segundo explanações nos Boletins da Inspetoria sobre a cruzada “verdadeiramente
redentora” contra as epidemias, construiu-se, nessa direção, parte de seu legado no Nordeste,
garantindo “[...] sua estabilidade política, social e econômica”. Ao tempo em que se armazenava
a água copiosa, pretendiam “[...] armazenando no cérebro do homem do sertão as precisas
noções de defesa sanitária apontando-lhe, deste jeito, uma estrada melhor para o seu futuro que
é o futuro mesmo da nossa terra”.368 O modo como esse objetivo civilizacional era perseguido,

Jucieldo Ferreira. Quando o anjo do extermínio se aproxima de nós: representações sobre o cólera no semanário
cratense O Araripe (1855-1864). (Dissertação) Mestrado em História - Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2010.
364
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
365
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
366
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
367
Segundo relatos do médico Absalão de Almeida, durante a crise de 1932 centenas de milhares de retirantes
“[...] depauperados e desalimentados, exaustos das longas caminhadas, quase nus e sem higiene [...]” que
ocuparam as proximidades das obras da Inspetoria, sofreram com doenças como as febres do grupo tifo, as
disenterias, as febres eruptivas, notadamente sarampo e varicela. Ao lado dessas epidemias, surgiram ainda
várias outras “[...] síndromes de avitaminoses como perda da visão noturna, pruído eczematiforme, nos lábios,
em todo o contorno da boca, indo até as bochechas, escarras linguais superficiais, queda dos dentes com
comprometimento dos maxilares”. In: BOLETIM JUNHO, 1934, vol. 1, n. 6, p. 264.
368
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 3. p. 129.
160

no entanto, tornava, muitas vezes, a situação das frentes de trabalho mais delicadas, ampliando
os embates entre trabalhadores e funcionários da IFOCS.
Em Icó, quando os abarracamentos insalubres que abrigavam os retirantes vivenciaram
o surgimento de epidemias, foi instalado um pequeno hospital para atendimento dos casos mais
graves com apenas um médico, um farmacêutico e alguns enfermeiros improvisados.
Naquele período, a Inspetoria mensurou a virulência da epidemia de paratifo atribuindo
a ela grande parte do terrível total de cerca de 16.000 óbitos verificados nos “[...] acampamentos
das obras federais de socorro, a despeito da assistência médica efetiva e de todos os cuidados
de profilaxia, de higiene, de alimentação e terapêutica empregados pelo governo na defesa da
vida daquela triste gente”. 369
No relatório apresentado ao Ministro da Viação acerca dos serviços desse período
fatídico, o Inspetor Federal de Obras contra as Secas prestou homenagem aos funcionários que
sobreviveram ao cataclismo, bem como aos que sucumbiram durante as atividades da
Inspetoria, ações essas descritas como uma grande obra nacional.

Os funcionários das obras contra as secas, no cumprimento do dever cívico e


humanitário que lhes confiou o governo da república, não vacilaram um momento em
expor-se a contaminação do terrível morbus, transportando-se para qualquer ponto da
zona flagelada, onde a sua presença era reclamada pela premência da salvação dos
famintos. Foi assim que muitos pagaram com a vida essa abnegação, jazendo hoje
obscuramente nos longínquos sertões do Ceará, da Paraíba e do Rio Grande do
Norte.370

No artigo “Considerações em torno do serviço médico profilático da Inspetoria Federal


de Obras Contra as Secas”, o médico Fernando Leite menciona a atuação profilática da
Inspetoria “[...] às populações operárias” do sertão nordestino como uma de suas conquistas
mais patrióticas, pois, “[...] Integrando-se intimamente na sua magna função – problema da
água – que é o problema do Nordeste – expressão do ministro José Américo, tem ela, por outro
lado, grandemente concorrido para este outro não menos urgente problema que é a saúde dos
nordestinos”. Além dos muitos retirantes, as epidemias vitimaram também técnicos da
Inspetoria, como o engenheiro Moacir Monteiro Avidos, responsável pela construção do açude
Piranhas, que pereceu diante de uma infecção de tifo. Outras informações como essa, em jornais
e na literatura, davam conta das “[...] cicatrizes mais profundas” oriundas das dificuldades
enfrentadas durante os trabalhos executados ao longo da seca de 1932.
As ações da Inspetoria eram coordenadas por um corpo de engenheiros e de sanitaristas.
Ocupados no combate às doenças que acometiam grandes contingentes de retirantes dentro e

369
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 239.
370
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 239.
161

fora das frentes de trabalho, trataram também das fragilidades físicas e promoveram ações de
cunho educativo. Segundo o Boletim, as ações de prevenção que consistiam, principalmente,
em ministrar os medicamentos, tratamentos necessários e cuidados com o vigor físico,
protegiam não só das doenças, mas, garantiam a “[...] sadia obra de patriotismo, uma vez que
do braço forte do campônio depende o equilíbrio das rendas públicas”. 371 Tratamentos
necessários, contudo, nem sempre bem-sucedidos diante da péssima nutrição dos sertanejos
abrigados nas obras.
De modo geral, as condições de vida das famílias obrigadas a migrar por víveres e
trabalho, eram de penúria. Mesmo aquelas vinculadas a alguma frente de trabalho dispunham
de uma péssima alimentação:

Feijão, milho, arroz e farinha, para só falar nessas substancias alimentícias mais
comuns, eram importadas, datando de vários anos em depósitos, e, sem embargo das
exigências e fiscalização da administração da obra, deterioradas em sua maioria e
incapazes de produzirem as calorias indispensáveis aos organismos humanos. 372

O desabastecimento nas regiões assoladas pelas secas, especialmente nos canteiros das
obras públicas, decorria não somente da escassez de gêneros alimentícios, mas também dos
problemas envolvendo irregularidades no fornecimento e a suspenção de verbas para a compra
necessária. O Jornal carioca Correio da Manhã, de 10 de janeiro de 1933, trouxe a seguinte
notícia sobre o tema:

O flagelo da seca no Nordeste


A luta contra os exploradores dos flagelados
Fortaleza, 9 – A situação no interior do estado esteve alterada em mais de um ponto,
em consequência da atitude desalmada de alguns fornecedores de gêneros aos
flagelados que trabalham nas obras contra as secas.
Punidos por irregularidades verificadas nos referidos fornecimentos, aqueles
comerciantes ameaçaram suspender os fornecimentos, chegando alguns deles a
executar ameaças. O fato exasperou os ânimos da imensa massa de flagelados a
serviço do governo em regiões longínquas e desertas, onde não há estabelecimento de
gêneros.
A situação assumia maior gravidade dada a circunstância da falta de crédito e de
dinheiro, porque pudessem abastecer-se em outras fontes.
Graças, porém, as imediatas providencias do governo federal, remetendo os recursos
necessários, ficou a interventoria deste estado habilitada a solucionar a questão,
providenciando para que fosse iniciado o fornecimento.
Em Icó, longínquo município do sertão, fecharam onze barracões de fornecimento e
em Ouro Branco e São Miguel, todos os que ali existiam, ficando sem meios de
subsistência cerca de onze mil operários. 373

371
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1934. Vol. 1. N.º 3. p. 129.
372
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
373
Jornal Correio da Manhã, de 10 de janeiro de 1933.
162

Para solucionar os problemas a contento, o governo da União e a Interventoria, por


solicitação da Comissão de Abastecimento, fez seguir para aqueles municípios os tenentes José
Augusto de Oliveira e Enir de Alencar, com a incumbência de requisitar aos estabelecimentos
fornecedores os gêneros necessários que persistiam retidos em seus comércios. Segundo o
artigo do jornal, as providências deram bons resultados, sendo a situação normalizada. Os
comerciantes que atenderam à representação da Comissão de Abastecimento receberam
pagamentos atrasados, que, até aquele momento não haviam sido totalmente quitados. Em
virtude das medidas encaminhadas pela Interventoria do Ceará, o Departamento das Secas
recebeu 150 contos enviados pelo Ministro da Viação. O jornal indica ainda outro problema no
fornecimento de gêneros. Como resultado da inspeção, no trecho Fortaleza-Russas, foram
multados quatorze negociantes responsáveis por adulteração de pesos e medidas, “[...] onde os
quilos não pesavam 900 gramas no máximo e os metros de uma forma geral tinham oitenta a
noventa centímetros”. As multas aplicadas foram revertidas em benefício dos flagelados
abrigados nos campos de concentração do Estado.
Nesse cenário de má nutrição, esgotamento físico, carência de mantimentos e condições
de trabalho insatisfatórias, famílias inteiras compostas por indivíduos já debilitados
sucumbiram ao quadro de moléstias. Em novembro de 1932, o estado de calamidade sanitária
se aprofundou nos diversos locais de atuação da Inspetoria e a contínua afluência de retirantes
tornou rápida a propagação dos males.
Muitas foram as vidas perdidas nas epidemias ocorridas durante a seca de 1932. O
número de vítimas fatais apresentado no Boletim da Inspetoria foi de 22.616 pessoas, das quais
14.738 crianças e 7.878 adultos, contabilizadas aí as mortes nos campos de concentração
administrados pelo governo cearense. 374 Às margens do que viria a ser o açude Lima Campos,
foi elevado o número de pessoas que morreram devido à epidemia que acometeu a população
no período de construção do reservatório. Para cuidar dos mortos, improvisou-se um cemitério
cercado por arame farpado em forma de roçado, no qual muitos eram sepultados ou jogados em
valados. 375

374
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
375
Cf. LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e memórias. Vol. I. Icó, 1995. Como não havia estatísticas naquele
tempo, não temos registros sobre o número de óbitos ali ocorridos. Hoje, na fala do povo da cidade de Icó, se
escuta sobre a existência de um antigo cemitério e dos horrores dos tempos da seca de 1932, mas, a investigação
a respeito dos significados que a memória local tece diante da existência de tamanha tragédia está por ser
efetivada. Evocado como protetor contra as epidemias, a comunidade tem hoje São Sebastião como Santo
Padroeiro. A escolha do santo está envolta em disputas. Algumas narrativas sobre o tema apontam que a
iniciativa foi da esposa do responsável pela obra, o Sr. Sebastião de Abreu, com o objetivo de inscrever o nome
do marido na história da comunidade.
163

Em dezembro de 1932, uma comissão de engenheiros chefiada pelo dr. Sampaio Corrêa
foi enviada ao sertão, visitando obras orientadas pela Inspetoria de Secas. A equipe constatou
a seriedade dos problemas que acompanhavam a propalada transformação do Nordeste. A partir
dessa observação, uma missão médica iniciou uma campanha de combate às doenças
infectocontagiosas, orientando o modo como os encarregados pelas obras tratavam as
epidemias.
A missão mandada pela saúde pública do Rio, chefiada pelo Dr. Bonifácio Costa,
auxiliados pelos drs. Amadeu Fialho, Garcia Rosa e Otavio de Oliveira e com o
concurso de 16 enfermeiros, soube se impor por sua dedicação, seu saber e sua
atividade que se refletiam no magnifico sucesso da debelação completa da epidemia
de tifo-desinteria, graças à vacinação intensa que efetuaram e à campanha de
vacinação sistemática e educação sanitária que a Inspetoria prossegue. 376

Para prosseguir com a abordagem preventiva indicada pela missão médica, a Inspetoria
solicitou, em regime de urgência, vacinas anti-tificas que foram manipuladas em laboratórios
do Rio de Janeiro. Graças ao programa de vacinação implementado, a seca de 1932 não teve
grandes surtos de varíola, como os verificados em outras estiagens severas. A comissão foi
dissolvida em maio de 1933, tendo introduzido normas incorporadas ao trato com as multidões
mantidas nas frentes de trabalho da Inspetoria de Secas. A colaboração com os estados
permaneceu somente até 04 de outubro de 1933, quando, por motivos de economia, tornou
autônomo o serviço de assistência médica da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.
Consolidada a chegada das chuvas, a rede de assistência médica organizada durante a
seca de 1932 foi minguando. Em abril do mesmo ano, o Ministro da Viação tentou, sem sucesso,
estabelecer a assistência por intermédio da Cruz Vermelha brasileira. Ao receber a recusa, José
Américo instituiu, em junho, o serviço por meio de caixas médicas operárias, superintendidas
pelas diretorias de saúde dos estados interessados. O novo sistema exigiu decreto especial sobre
descontos em folha, sendo transformado, no mês de setembro, em assistência gratuita. As
despesas com pessoal e material eram custeadas pelas verbas de emergência da Inspetoria,
continuando, porém, a gestão dos serviços, os governos estaduais, com a implementação do
modelo em 1º de outubro de 1932.
Passados os principais eventos da seca daquele fatídico ano, a Inspetoria contabilizou,
em janeiro de 1933, 46 postos médicos de socorro ou assistência, a saber: 24 no Ceará, 9 no
Rio Grande do Norte e 13 na Paraíba. Dos 24 do Ceará, 5 correspondem aos campos de
concentração. Em dezembro de 1933 o número de postos médicos estava reduzido a 20: Ceará
8, Paraíba 5, R. G. do Norte 3, Piauí 2, Bahia 1 e Pernambuco 1. A ação de assistência médica

376
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
164

levada a cabo pela Inspetoria de Secas entre 1932 e 1933 custou 2.219:015$530, dos quais
25:031$400 foram investidos na fabricação de vacinas nos laboratórios do Rio de Janeiro.377
Além das mudanças nos protocolos e instalações médicas efetivadas no período de
maior incidência das doenças, buscou-se remediar os problemas de abastecimento de água nas
frentes de trabalho, sobretudo, por meio da perfuração de poços profundos; da construção de
cacimbas conjugadas e protegidas; do transporte longo realizado em caminhões tanques e do
transporte a partir da força animal para médias e curtas distâncias. Além disso, depois da seca
de 1932 a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas caminhou em direção à modernização
de seus serviços. No açude General Sampaio, por exemplo, na construção iniciada em 1932 e
concluída em 1935, foi implementada pela primeira vez a técnica de compactação mecanizada,
medida que proporcionava enormes contrastes com as condições de trabalho manual impostas
aos trabalhadores do Lima Campos.
O ano de 1933 apresentou-se próspero. Informações chegavam de todo o Nordeste
trazendo “[...] notícias animadoras, anunciando chuvas abundantes em toda parte”. Estava,
assim, “em festa o sertão”.378 As chuvas, porém, não caíram de maneira homogênea. Em Icó,
relatos indicaram que naquele ano “[...] o açude tomou uma pequena quantidade d´água, porém
as chuvas cessaram para reapareceram em março, quando o açude aumentou de volume
d´água”.379 Importa salientar, também, que a incidência das águas demarcou mudanças na
relação entre a União e os estados assolados pela seca.
Com a chegada do inverno de 1933, rumores sobre o fim da seca ganharam os jornais.
Nesse momento, iniciaram-se as dificuldades orçamentárias. Naquele ano os efetivos de
operários ainda estavam a postos. Quando as verbas para os pagamentos diminuíram, se fez
necessário impor revezamento de trabalhadores.

Atrasada em seus pagamentos desde novembro desprovida de recursos, a dispensa e


o encaminhamento do operário foram nessa ocasião medidas de execução dificílima.
Em fevereiro chuvas cessaram para só reaparecerem na segunda quinzena de março.
Houve assim um novo refluxo de operários nos serviços; em princípio de março havia
ainda flagelados nas obras e permanecia de pé a necessidade de manter obras em
funcionamento. 380

377
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
378
Jornal Correio da Manhã, 13 de janeiro de 1933.
379
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 13.
380
Ibid., p. 7.
165

Só em maio de 1933 foram distribuídos os primeiros recursos para os pagamentos dos


atrasos, “[...] assim mesmo em proporção insignificante pois diante de um déficit de 28.700
contos, a Inspetoria recebeu nessa ocasião 7.100 conto de reis". 381Apesar disso, a atuação da
Inspetoria, no Ceará, não cessou com a conclusão dos açudes, denotando que o planejamento
da atuação pública no Estado era mais amplo. A ocupação das áreas próximas aos açudes
construídos durante o Governo Provisório foi um desdobramento interessante desses
encaminhamentos dos rumos no combate às secas, desejados pelo poder público nos primeiros
anos da década de 1930.
Depois de concluído o açude Lima Campos, o prosseguimento dos trabalhos da
Inspetoria, em Icó, conferiu novas feições à localidade que, agora, contava com um promissor
espelho d’água. Lá, às margens do reservatório, surgiram novas estruturas para implementação
de esforços de pesquisa e irrigação, sugerindo o prosseguimento do plano de intervenção da
Inspetoria de Secas na lógica da produção econômica da região.
No Boletim da IFOCS de junho de 1935, o agrônomo J. Guimarães Duque, então
Inspetor Regional da Comissão de serviços complementares daquele órgão, informou os
desdobramentos da construção do açude Lima Campos dando conta da implementação do Posto
Agrícola do reservatório d’água, em Icó. Segundo seu relato, ainda em 1933, no mês de outubro,
começou a formação de uma grande sementeira para produção de mudas nas proximidades da
barragem do Lima Campos, especificamente na margem esquerda do canal principal de
irrigação. A partir da produção desse equipamento público, a Inspetoria deu suporte ao retorno
do sertanejo aos trabalhos da lavoura promovendo a distribuição de sementes de que o interior
estava completamente desprovido. 382
Ante o desejo de retorno às antigas moradas e pressões políticas pela diminuição das
verbas dos socorros, uma parte do operariado deixou as proximidades do antigo canteiro de
obras, porém, outra permaneceu aos pés do açude, permitindo que a Inspetoria prosseguisse
com os projetos que faziam parte do seu programa geral. 383 Nesse ínterim, se avolumaram as
demandas dos trabalhadores remanescentes da obra do reservatório.

381
Ibid., p. 6-7.
382
Já no primeiro trimestre de 1935, no posto da Inspetoria em Icó, havia 60 espécies de plantas em estudo nas
sementeiras, além de viveiros e plantações, lavouras de rendimento, espécies frutíferas e florestais, forrageiras
e hortícolas. As pesquisas lá desenvolvidas objetivavam produzir espécies adaptáveis ao solo e ao clima da
região, para consolidar uma “[...] produção acima da média e resistência a doenças, sua área aumentada com o
plantio da semente já colhida no posto”. In: Boletim Junho, 1935, vol. 3, n. 6, p. 230.
383
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 7.
166

Muitos dos operários que deixaram a obra, não dispunham de recursos e condições de
retornarem as suas terras abandonadas a quase dois anos, outros ainda não
conformados com o inverno, os quais atribuíam que em futuro próximo poderia se
repetir outro fenômeno igual ao ano que passou, logo que cessaram-se as chuvas,
procuraram de imediato as localizarem na bacia do açude, visando ali obterem
vazantes ou terrenos úmidos com a finalidade de trabalharem e dali conseguirem o
sustento para suas famílias e terem melhores condições de vida. 384

Os operários exigiram que a IFOCS passasse a mediar as “[...] demarcações de vazantes


em toda orla do açude”, além de fazer a distribuição de terrenos “[...] a todos quantos
necessitavam de um lote de vazante, esta operação se deu em todo açude e foram atendidos
centenas de famintos”. 385 No mês de janeiro do ano seguinte, efetivou-se a compra de 622
hectares de terra nas várzeas de Icó entre os canais de irrigação norte e sul. Nelas, a Inspetoria
iniciou a construção dos prédios do posto e dos trabalhos agrícolas de preparo do solo, etc. 386
No que diz respeito à ocupação das margens do açude, Cosmo informa que houve
alguma melhoria na produção local motivada pelo uso das águas represadas do Lima Campos.
Os “vazanteiros”, trabalhadores ocupantes das áreas da vazante do açude, passaram a plantar
arroz com sucesso. Deles, era cobrada uma taxa de dez mil réis por cada lote de 30 metros de
frente, a extensão variava dependendo da ocupação ou não de lotes vizinhos ou da existência
de riachos nas proximidades das áreas demarcadas. O ano de 1934 apresentou chuvas mais
regulares proporcionando uma boa safra de algodão no município de Icó e nos estados
beneficiados pelos socorros do ano de 1932.
Nas memórias do antigo funcionário da Inspetoria, os horrores da seca de 1932 se
encerraram quando, em 1934, o Lima Campos teve um acúmulo de água ainda maior, superior
ao período anterior. Cumprindo sua função, a água represada teria motivado uma nova leva de
demarcações de vazantes, inclusive alguns lotes secos para lavouras, ensejando “[...] trabalhos
que se desenvolveram igualmente ao ano de 1933, onde observamos que a produção duplicou
assustadoramente”. Apesar de não dispor de dados estatísticos, Cosmo certifica “[...] com muita
segurança” o devir da Inspetoria de Secas que, ao se esforçar na construção do reservatório em

384
Ibid., p. 13.
385
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 13.
386
A estrutura contava com “[...] dois grandes ripados para produção de mudas, um barracão para embalagem de
mudas, um dito para máquinas de lavoura e almoxarifado, uma casa depósito e beneficiamento das colheitas,
um estábulo para animais de trabalho e reprodutores, um silo aéreo, um galpão para feno e uma casa de
residência para o agrônomo encarregado”. O engenheiro indica, ainda, que os terrenos foram comprados dos
herdeiros de Melcchiades Pinto Nogueira, à margem direita do riacho são João, medindo “[...] 6”22 hectares,
sendo 300 irrigáveis para lavoura, 322 de terrenos altos próprios para florestas e pastagens”. Os primeiros
responsáveis pelo posto foram os agrônomos Ignácio Ellery Barreira e Klaus Fest. Em 1935, o serviço ficou
ao encargo do agrônomo Raul Miranda Pereira de Mello. Cf. Boletim Junho, 1935, vol. 3, n. 6, p. 230.
167

Icó, propiciara verdadeira mudança na localidade, promovendo uma produção excepcional, das
melhores e mais do que se esperava”. 387

387
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p.14.
168

CAPÍTULO 4 - A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DEBATE AMBIENTAL NO


GOVERNO PROVISÓRIO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA QUESTÃO DA
SECA

4.1 Governo e sociedade: interseções no debate ambiental

Pensando as origens da ecologia política no Brasil a fim de refletir sobre seu sentido
fundador, o historiador José Augusto Pádua indica a existência de um entrelaçamento do
desenrolar do debate ecológico-político no Brasil e o desenvolvimento do pensamento
brasileiro acerca do projeto nacional. A relação entre esses segmentos, perceptível desde as
primeiras reflexões acerca do sentido histórico nacional, suscita questões entorno da relação
entre natureza, o modelo de exploração econômica e a disputa entre padrões sociais pretendidos
para a nação.388
É com esse impulso que encontramos a formulação da primeira legislação realmente
abrangente e sistemática para o uso dos recursos naturais brasileiros na década de 1930. Ao
longo dos primeiros anos de seu governo, Getúlio Vargas esteve comprometido com uma
política de desenvolvimento promovida pelo Estado e, apoiado pelo tenentismo, buscou
negociar com a vertente conservadora da revolução formada principalmente por dissidências
oligárquicas e por liberais de classe média defensores de uma reforma liberal-democrática do
regime republicano, a ser precedida pelo retorno à constitucionalidade.389 Para dar conta dessas
pressões conservadoras e adotar uma política industrializante de desenvolvimento nacional,
Vargas contou com a ação de revolucionários como o cearense Juarez Távora, militar
comprometido, sobretudo, com ideais reformistas e nacionalistas.
Mesmo diante do caráter aparentemente conflitante das administrações encabeçadas por
Getúlio Vargas, é possível inferir que a condução de sua política econômico-administrativa
produziu um impacto considerável na economia brasileira e no uso de seus recursos naturais.390

388
PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo – IUPERJ, 1987,
p. 14.
389
SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no Brasil: uma análise comparada dos
projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do tenentismo e da cúpula militar do
Estado Novo. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Econômica.
São Paulo, 2011, p. 160. Sobre a heterogeneidade da coalização revolucionária de 1930, ver: SKIDMORE,
Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).
390
Sobre o impacto das políticas econômicas implementadas por Getúlio Vargas existem posturas diferentes por
parte dos pesquisadores. Para alguns, como Celso Furtado, as políticas varguistas tiveram impacto questionável
no desenvolvimento e industrialização do país. Em outras análises, a influência das políticas econômicas de
Vargas é reconhecida, porém, entendidas como inconsistentes. Uma terceira vertente de estudos sugere que os
governos Vargas foram fundamentais para o desenvolvimento industrial brasileiro. Cf. ARVIN-RAD, Hassan;
WILLUMSEN, Maria José; WITTE, Ann Dryden. Industrialização e desenvolvimento no Governo Vargas:
169

Nos anos de 1930, em meio a um regime inconstitucional, a reorganização do Estado brasileiro


promovida pelo Governo Provisório atuou diretamente na reconfiguração da produção, da
legislação e da administração do país, abrindo espaço para a sistematização de uma nova
condução da questão ambiental brasileira. Nesse período, medidas foram tomadas de forma a
disciplinar o acesso aos recursos naturais necessários para a elevação intensiva da produção
nacional, expandindo as possibilidades para a institucionalização de políticas ambientais. Para
tanto, profissionais de vários ramos de estudo como botânicos, geólogos, agrônomos e juristas
foram inseridos no debate institucional de superação do “atraso colonial” numa atmosfera de
delimitação dos usos dos recursos naturais do Brasil. 391 Ao longo desse capítulo, perceberemos
como isso se deu no âmbito do Ministério da Agricultura e da Inspetoria Federal de Combate
às Secas e os pontos de contato entre as questões ambientais e a profusão de respostas para o
combate à seca baseada em medidas de preservação e incremento dos recursos naturais no
semiárido brasileiro.
Segundo José Luiz Andrade Franco, nas décadas de 1930-1940, além dos debates sobre
trabalho, indústria, sistema jurídico-institucional, cultura, patrimônio histórico e educação,
também a discussão acerca da proteção à natureza foi significativa. 392

No caso da proteção à natureza, havia um grupo razoavelmente organizado,


constituído em sua maioria por cientistas, intelectuais e funcionários públicos, que
pretendeu garantir que políticas relacionadas à conservação do patrimônio natural
brasileiro fossem implementadas pelo Estado. A maneira como esse grupo se inseriu
no contexto político-intelectual da época e o seu relativo sucesso estiveram associados
ao fato de ter relacionado as suas preocupações com a proteção da natureza com a
questão da identidade nacional, o que implicou na apropriação e elaboração de
tradições de pensamento que envolviam um conhecimento científico do mundo
natural e a ideia de que ele devia ser conservado por motivos econômicos e estéticos.
393

Nesse sentido, os esforços na busca pelo progresso que envolveram remodelações e a


ampliação do escopo de atuação e mesmo da projeção simbólica do Estado perante a sociedade,
atingiram o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio que, em 1930, passou a ser o
Ministério da Agricultura tornando-se um “[...] grande espaço de organização do pensamento

uma análise empírica de mudanças estruturais. In: Estudos econômicos, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 127-166,
jan./abr. 1997.
391
FERREIRA, Marcus Bruno Malaquias Ferreira; SALLES, Alexandre Ottoni Teatini. Política Ambiental
Brasileira: Análise histórico-institucionalista das principais abordagens estratégicas. Revista de Economia, v.
43, n. 2 (ano 40), mai./ago., 2016.
392
FRANCO, José Luiz de Andrade. A primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96. p. 78.
393
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96. p. 78.
170

científico nacional, submetendo as principais entidades de pesquisa e normatização da natureza


ao seu controle”. 394 Tendo esses ideais em mente, o revolucionário Juarez Távora assumiu o
importante Ministério. Seu primeiro ato foi nomear uma comissão de técnicos composta pelos
agrônomos Edmundo Navarro de Andrade, Adrião Caminha, Juvêncio Mariz de Lyra e
Waldemar Raythe, o médico veterinário Guilherme Edelberto Nermsdorff e o funcionário do
Tribunal de Contas, bacharel José Solano Carneiro da Cunha, para estudar e propor a reforma
ministerial.395 Naquele período, a pasta centralizou ações variadas submetendo órgãos diversos
como o Museu Nacional, Jardim Botânico e o Observatório Nacional, entre tantos outros setores
incumbidos de compilar dados acerca dos recursos nacionais.
A mudança foi criticada na imprensa que, além de apontar ressalvas acerca da
possibilidade de “perniciosos efeitos” sobre a liberação de verba para órgãos como aqueles
elencados, considerou a reforma “apressada e incoerente”, posto que fora operacionalizada em
apenas três meses.396 Outra importante parte das reclamações dizia respeito à dispensa, em
massa, de funcionários (112 ficaram em disponibilidade e 142 foram exonerados, além de um
sem-número de contratos não renovados) e a diminuição de vencimentos considerada injusta e
até ilegal. Juarez Távora respondeu a elas afirmando que “[...] não podia deixar de sofrê-las, no
Brasil, uma reforma que, visando ampliar e melhorar toda a atividade de um Ministério, como
o da Agricultura – teve de subordinar-se às disponibilidades de um orçamento precaríssimo”.
397
Para Távora, ainda assim, teria sido possível reorganizar os quadros ministeriais aumentando
a intensidade e extensão de suas funções.
Sobre essa empreitada, Vargas pontua suas impressões em carta como resposta ao
pedido de dispensa do cargo de Ministro dos Negócios e da Agricultura, enviado por Távora:

Folgo em registrar que, no exercício daquele alto cargo, vossa excelência teve ensejo
de prestar a sua passagem, em tão importante departamento da administração superior
do país, com iniciativas de resultados fecundos para o desenvolvimento da economia
nacional.
Pioneiro da revolução, vossa excelência se revelou, do mesmo passo, conhecedor das
leis necessárias ao nosso progresso, e demonstrando sempre qualidades morais e
intelectuais admiráveis, traçou diretrizes novas para a solução de problemas de que
depende o aproveitamento racional das nossas fontes de riquezas e de energia. Basta
mencionar a reorganização modelar dos serviços do ministério da agricultura, a
elaboração dos códigos florestal, de caça e pesca, das águas e das minas, a criação do
banco nacional de rédito rural, da escola de agronomia, da escola nacional de

394
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 20.
395
AN – Fundo 35: Gabinete Civil da Presidência da República. Lata: 28 – Ministério da Agricultura. Consulta
em: 03 mai. 2018.
396
Jornal Correio da Manhã, 20 de novembro de 1932.
397
AN – Fundo 35 (...), loc.cit.
171

veterinária, do instituto de biologia animal, do conselho técnico da produção, para se


ter ideia da obra realizada, no cargo que lhe confiou o governo provisório. 398

Entre os agradecimentos pela dedicação e lealdade expressas por Távora, Vargas


evidencia a capacidade organizadora do cearense que ajudou o governo a pôr em prática os
ideais revolucionários na elaboração de uma nova e robusta legislação, com o intento de balizar
o desenvolvimento de um projeto nacional. Tais normas marcaram a institucionalização de
elementos na relação entre o homem e a natureza, influenciando largamente uma série de
debates ecológico-políticos posteriores. Como se pode observar, após a eclosão da Revolução
de Outubro o Ministério da Agricultura tornou-se um extraordinário núcleo de elaboração de
projetos de lei e políticas, processo consolidado a partir da profunda reestruturação ministerial
encabeçada por Távora.
Távora compôs uma das principais bases de apoio do Governo Provisório entre 1930-
1934, exercendo liderança considerável em grupos formados por militares, intelectuais e
políticos preocupados com os rumos do país. Uma dessas agremiações era o “Club” 3 de
Outubro, que abrigava defensores da prorrogação do Governo Provisório e do adiamento da
reconstitucionalização do país, entre outras pautas. Em consonância com esses ideais, Távora
solicitou seu desligamento do Ministério da Agricultura às vésperas da promulgação da nova
Constituição:
Amanhã deverá ser promulgada a nova constituição do Brasil e, segundo tudo indica,
dentro de 48 horas, v.exa. estará eleito presidente constitucional da segunda república.
Considero, assim, encerrada a missão que v.exa. houve por bem confiar-me de dirigir
a pasta da agricultura na vigência do governo provisório. 399

Apesar da usual demonstração de lealdade a Vargas, a escolha do simbólico momento


para o afastamento do governo indica um compromisso maior com os ideais revolucionário,
ponto relevante para compreender como se deu sua atuação frente ao Ministério da Agricultura
e, assim, como a questão ambiental foi conduzida naquele período.
Durante o tempo em que esteve à frente do ministério, Távora expressou sua posição
ideológica ligada à vertente do tenentismo de tendência nacionalista suscitada em 1930. 400

398
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Documento produzido no Rio de janeiro em 23 de julho de 1934.
399
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Exoneração para Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 15 de julho de 1934.
400
Segundo Saes, o tenentismo nacionalista foi “[...] uma das principais forças dirigentes do movimento
revolucionário de 1930” e, “[...] por ter integrado o poder na primeira fase do governo de Getúlio Vargas”,
apresentou “[...] as condições de formular mais solidamente o seu projeto de país, tendo a oportunidade de
executar alguns de seus itens devido à presença de representantes seus dentro do aparelho de Estado”. Cf.
SAES, Guillaume Azevedo Marques. SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no
Brasil: uma análise comparada dos projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do
tenentismo e da cúpula militar do Estado Novo. (Tese) Doutorado em História Econômica. Universidade de
172

Como parte do grupo do Clube 3 de Outubro, bem como associado aos Interventores do Norte,
Távora e os demais tenentistas nacionalistas julgavam necessário ao novo regime discutir os
paradigmas liberais fundadores da República. Expondo as linhas gerais do projeto político,
social e econômico do Clube 3 de Outubro, o documento “Esboço do Programa Revolucionário
de Reconstrução Política e Social do Brasil” reuniu contribuições de vários de seus membros,
entre eles Juarez Távora. O texto expressava uma profunda crítica à República Velha e tentava
imprimir um viés tecnocrata ao pensamento do período:

É preciso não repetir o erro dos idealistas de 89. Aproveitemos as conquistas de outros
povos, as lições da política mundial, o adiantamento da sociologia, mas sem
perdermos a noção da realidade brasileira e sem abjurarmos as tradições nacionais.
Realizemos a democracia, entregando o governo aos que trabalham e produzem.
Asseguremos bom rumo à administração, facultando aos especialistas interferência
eficiente na gestão dos negócios públicos. 401

O programa sugeria a construção de uma administração nacional federativa e


centralizada, principalmente no que fosse relacionado às medidas técnicas necessárias para
fazer evoluir o país. Nesse sentido, como indica Guillaume Azevedo Saes, mesclando pautas
como responsabilidade fiscal e moralização administrativa, tão presentes no discurso tenentista
da década de 1920, as bandeiras do tenentismo pós-1930 incluíram a representação de classe, a
reforma agrária e a adoção de conselhos técnicos.402 Tais ideais foram defendidos diretamente
por Távora, assim como seu engajamento por um Estado forte e centralizador interessado nas
medidas em prol de uma política de bem-estar social e de uma regulação técnica da produção e
dos recursos nacionais, marcando sua passagem pelo Ministério da Agricultura.
Em meio às crescentes transformações políticas e sociais, a ocupação do território
nacional foi viabilizada por projetos de controle, estudo e identificação da natureza que
contaram com a ação direta do Ministério da Agricultura e de órgãos subordinados a ele, como
o Serviço Geológico, o Serviço Florestal e o Serviço de Águas, todos voltados para a
modernização e integração nacionais mediadas pela técnica. A tendência de valorização da
abordagem tecnicista naquele período se expressou ainda na fundação do Instituto Brasileiro de

São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-
Graduação em História Econômica. São Paulo, 2011, p. 151.
401
Club 3 de Outubro – Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução Política e Social do Brasil – 1932
– fevereiro. In: República dos Estados Unidos do Brasil. Annaes da Assembleia Nacional Constituinte. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1935, vol. III, p. 187-245.
402
Cf. SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no Brasil: uma análise comparada dos
projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do tenentismo e da cúpula militar do
estado Novo. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Econômica.
São Paulo, 2011.
173

Geografia e Estatística (IBGE) em 1934, peça fundamental no processo de construção de


políticas públicas e direitos sociais ao longo da década de 1930. Essa abordagem marcou
também o impulso para a educação no campo através das escolas agrícolas, colônias agrícolas
e hortos florestais mediados por pesquisadores ligados ao Museu Nacional e associações sociais
de caráter civil.
Ainda nos primeiros anos da década de 1930, a busca por inovações técnicas extrapolou
a seara da estatística e da educação adentrando os campos do Direito, “[...] especialmente os
relacionados a questões territoriais e de proteção da natureza”. 403 Nesse contexto, a legislação
reguladora dos recursos naturais da década de 1930 emergiu dos debates no âmbito do projeto
nacional de desenvolvimento econômico para o país, bem como dos desdobramentos sociais
em torno de uma nova maneira de ver o mundo marcada pelo cientificismo. Naquele momento,
governantes e pensadores propuseram modelos diferentes para o desenvolvimento do país,
refletindo sobre como se relacionar com a natureza e de como tornar essa relação
economicamente produtiva e culturalmente civilizatória. Desse modo, em 1930 permanece o
traço característico da tradição ecológico-política brasileira de estar atrelada à reflexão sobre o
sentido histórico do Brasil. 404
Dessa maneira, pode-se afirmar que o fato definidor do pensamento ambiental gestado
em 1930, que veio a se conformar de maneira mais ampla no transcorrer de todo o século XX,
é a disseminação do poderio técnico institucional para a modificação e preservação do mundo
natural através da elaboração de leis e normas. Nesse ambiente, entidades civis e forças
governistas fomentaram o debate sobre o uso dos recursos naturais nacionais, propiciando a
elaboração de uma legislação florestal federal. Parte desses esforços foram mediados pelos
escritos de Alberto Torres. 405
O ímpeto nacionalista, centralizador e antioligárquico que permeou o pensamento de
grande parte dos intelectuais e políticos de 1930 esteve relacionado à produção do jurista

403
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 20.
404
Cf.: PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo – IUPERJ,
1987.
405
Alberto de Seixas Martins Torres nasceu em Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, em 1865 e faleceu em 1917.
Bacharel em Direito formado pela Faculdade de Direito de Recife, Torres elegeu-se deputado estadual e federal
na década de 1890. Foi presidente do Estado do Rio de Janeiro e Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Escreveu sobre os problemas nacionais e se destacou nas formulações sobre o pensamento ruralista brasileiro.
“Concebia o Brasil como um país de natureza essencialmente agrária, opondo-se assim a qualquer veleidade
industrialista. Nacionalista, defendia o fortalecimento do Executivo, convocando os intelectuais a participar da
organização da sociedade”. Suas ideias foram largamente utilizadas na década de 1930, sobretudo pelo
movimento Integralista. Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/alberto_torres
174

Alberto de Seixas Martins Torres, um ávido defensor da tradição agrícola brasileira, que
estendeu suas preocupações do campo do Direito aos temas como as transformações
climatéricas, a educação para o desenvolvimento do homem do campo, entre outros. O discurso
de Torres pelo saneamento dos sertões, por exemplo, fazia dele “[...] um defensor do
desenvolvimento do campo como mola propulsora da economia brasileira”. 406

Para Torres, as grandes causas de fraqueza física do brasileiro tinham, principalmente,


três naturezas: cósmico-sociais, decorrentes da falta de estudo do clima e das
condições da vida sã em nossos meios, geralmente úmidos e quentes, e das sucessivas
transformações climatéricas; escassez e impropriedade dos alimentos; e causas
econômicas, sociais e pedagógicas, relativas à prosperidade e à educação do povo. Os
fatores patológicos cooperavam para a nossa decadência física. Em relação às medidas
profiláticas, como as campanhas de controle epidêmico, Torres compreendia que
todos os esforços governamentais eram incompetentes, ou simples desvios, na
localização dos fatos reais. Mal atacavam as moléstias e nunca extinguiam as
predisposições mórbidas. Era preciso, antes de tudo, resolver o problema geral da
economia nacional. 407

Influente, sobretudo, nos seus últimos anos de vida, o republicano Alberto Torres foi,
após sua morte, alçado ao panteão dos principais intérpretes do Brasil na década de 1930 e, logo
depois, teve sua obra associada ao Integralismo e ao pensamento autoritário da década de 1960.
Suas formulações estiveram próximas das contribuições de Euclides da Cunha, Friedrich
Ratzel, Herbet Spencer e Auguste Comte, para citar alguns. Tornou-se referência para
intelectuais, militares, médicos, engenheiros, advogados, políticos e sujeitos de origens e
práticas diversas que compartilharam expectativas e decepções em relação ao regime
republicano e que, tocados por tradições e construções semânticas antecedentes a eles,
influenciaram formas de pensar e de transformar o Brasil. 408
Hansen (2018) considera Alberto Torres como o precursor “[...] do discurso
conservacionista moderno no Brasil”, vendo sua obra como fundamento jurídico das “[...]
propostas de Códigos e reformas que ocorreram anos depois através da participação de

406
GÓIS JÚNIO, Edivaldo. Alberto Torres e os higienistas: intervenção do Estado na educação do corpo (1910-
1930). In: Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.4, p.1445-1457, 2014, p. 1452.
407
Ibid., p. 1451.
408
De acordo com a historiadora Ângela de Castro Gomes, entre a Abolição e a proclamação da República,
seguindo até a década de 1940, no Brasil se passaram “[...] 60 anos estratégicos para a formação de um
diagnóstico sobre características e problemas magnos do país, com a decorrente elaboração de propostas de
possíveis áreas de intervenção política”. Nesse ínterim, em meio à conformação do “pensamento social
brasileiro”, os intelectuais, durante a primeira metade do século XX, explanaram sobre seus ímpetos de
modernização e construção do Brasil. Segundo Gomes, esses intelectuais formavam um grupo difícil de
padronizar, composto por intermediários e intérpretes da sociedade que, em geral, desfrutavam de grande poder
de influência política.
175

herdeiros assumidos de seu pensamento”.409 Como árduo defensor da revisão constitucional,


Torres foi influência marcante na construção do texto do Código Florestal de 1934 e da nova
Carta Constitucional elaborada do mesmo ano.

Ele [Torres] julgava que a fonte da impossibilidade do Brasil se alçar ao quadro de


grandes nações do globo se dava pelo aspecto desorganizado de sua elite pensante e
burocrática, incapazes de atentar para os problemas práticos que deveriam ser
resolvidos pela ação do Estado. Tomando um tortuoso caminho, a política nacional e
as ações estatais sofriam com o descompasso de perseguir ficções teóricas dos
manuais de ciência política e direito constitucional estrangeiros lidos nos boulevares
da capital e encontrar na realidade uma prática incompatível e fundada em fatores
culturais e territoriais sem correspondência com as concepções abstratas. Note-se que
Torres em momento algum cai no atalho perigoso e muito comum à sua época de
acusar a incapacidade racial do brasileiro em se adaptar às verdadeiras ideias
civilizadas. 410

Outro elemento imprescindível para a compreensão da influência do pensamento de


Alberto Torres na construção de uma regulação ambiental na década de 1930 é o conteúdo
espacial de sua teoria de interpretação da nação e das instituições brasileiras

O espaço em que uma população se desenvolve não é uma marca determinista em seu
caráter, mas um condicionador que exige do político – alçado a condição de prático
capaz de realizar as sínteses sociais e intuir os caminhos para o futuro – seu
conhecimento, atenção e, sobretudo, respeito. Se o lugar não determina, ele ao menos
implica limites à racionalidade política através da formação de uma base material,
relevando as riquezas e subilhando as escassezes, criando as condições em que o
espetáculo da vida se desdobra em direção a formação da nacionalidade e da
organização social. 411

Assim, Torres se torna um dos fundadores do Geodireito no Brasil, área resultante do


interesse de institucionalizar e regulamentar a autoridade sobre o território, pois, “[...] tratava-
se de desenhar novas instituições que coincidissem com as características específicas de cada
nação, algo que Torres trazia em seus textos também”.412 Tal lógica compunha o
posicionamento de cunho conservacionista de Torres de matriz norte-americana, que professava
um conservacionismo voltado à harmonia entre as nações com críticas ao uso geopolítico da
proteção dos recursos naturais. Dessa forma, Torres defende um nacionalismo conservacionista
não isolacionista promovido por um Estado capaz de organizar a nação. 413

409
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 21 e p. 38.
410
Ibid., p. 32.
411
HANSEN, 2018, p. 33.
412
Ibid., p. 48
413
Cf.: HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
176

No Brasil, a produção das legislações que regeram a proteção e o uso dos recursos
ambientais mesclou as premissas conservacionistas e preservacionistas.414 No século XIX, tais
correntes constituíram majoritariamente o debate sobre as políticas de proteção à natureza.
Apesar de possuírem características aparentemente contraditórias, ambos os posicionamentos
apresentavam pontos de contato mundo afora. Surgido nos Estados Unidos, o preservacionismo
possuía uma base romântica e atuava na promoção dos processos de delimitação de territórios.
Já o conservacionismo, de origem europeia, teve a silvicultura como base. Essa segunda
vertente ideológica foi sendo permeada pela defesa do desenvolvimento e pela lógica do não
desperdício, desdobramento que ganhou adeptos nos Estados Unidos ainda no século XIX.
Atento às discussões em curso, o conservacionista Alberto Torres chamou atenção para o uso
problemático do solo e a água no Brasil apontando saídas de caráter técnico, principalmente
com base nos saberes agrônomos.
Em 1932, um grupo formado por mais de cinquenta figuras de destaque na sociedade
pós-revolução de 1930 fundou a Sociedade Amigos de Alberto Torres (SADAT), entre eles
estavam Juarez Távora, Fernandes Távora, Oliveira Viana e Roquette-Pinto. O objetivo
principal da agremiação era debater as mais relevantes questões nacionais a partir do
pensamento de Alberto Torres. O Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no dia 20 de
novembro de 1932 informou que o grupo de estudiosos da obra de Torres iria “[...] constituir
em sociedade para analisar e propagar as ideias e os ensinamentos do sociólogo brasileiro”. A
associação não teria fins literários, mas, sim, o interesse de “[...] desenvolver as ideias e estudos
que foram deixados em tese pelo autor”, sendo propósito do coletivo criar núcleos diversos para
averiguar “[...] as atuais condições de vida das várias regiões do país”. 415
De caráter civil, a sociedade foi fundada no Rio de Janeiro, contudo, expandiu-se por
outras localidades com a instalação de centros regionais em diversos estados brasileiros como
Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Goiás e São Paulo. Suas atividades se
encerraram, provavelmente, em 1945.416 Os estudos torreanos417 promovidos pela entidade
eram divulgados por meio de palestras e publicações que abordavam temas como imigração,
parâmetros para a educação rural e o aproveitamento dos recursos naturais nacionais. A

414
BRITO, Bárbara Lis Rabelo; BRITO, Daguinete Maria Chaves; SOUZA, Ester Almeida de. Pressupostos
teóricos de proteção da natureza. Planeta Amazônia: Revista Internacional de Direito Ambiental e Políticas
Públicas. Disponível em: https://periodicos.unifap.br/index.php/planeta ISSN 2177-1642 Macapá, n. 7, p. 141-
147, 2015.
415
Jornal Correio da Manhã, 20 de novembro de 1932.
416
O Jornal cearense A Razão, de 19 de junho de 1936, como representante da sociedade dava conta dos graves
desentendimentos entre membros da sede, no Rio de Janeiro, afirmando que a associação estava prestes a ser
encerrada.
417
Termo cunhado por Oliveira Vianna para tratar dos estudos da Obra de Alberto Torres.
177

agremiação contou com bastante adesão sociocultural na década de 1930, influenciando


amplamente os debates acerca da Constituinte de 1933-34.
Segundo seu estatuto, redigido em 1935, a Sociedade Amigos de Alberto Torres
pretendia refletir a respeito de questões como habitação rural, educação sanitária, higiene
escolar e alimentação, tendo como ponto de partida os estudos sobre Alberto Torres. Nessa
direção, o objetivo da agremiação era “[...] fazer crer que dentro do nosso meio, com os nossos
recursos, se forma uma consciência nacional, tendência a realizar a grande aspiração de Alberto
Torres” que era fazer do Brasil a “[...] Pátria comum com a organização que lhe é mais
conveniente”.418 Os amigos de Alberto Torres seriam “[...] todos aqueles que se preocupam
lealmente com os problemas brasileiros, no seu conjunto ou nas suas particularidades”. 419
O interesse torreano pela organização do Estado, pelos rumos da produção agrícola e
pela defesa dos recursos naturais do país se expressou em estudos e se fez prática, sobretudo,
dentro do Ministério da Agricultura, na ocasião chefiado por torreanos antes e depois da
revolução. No Governo Provisório, a cadeira da Agricultura foi entregue ao líder tenentista
Juarez Távora, que em obras como À guisa de depoimento sobre a revolução brasileira de
1924, bem como na contribuição deixada nos manifestos e cartas de princípios do Clube 3 de
Outubro, evidenciou sua aproximação com as ideias de Alberto Torres, mesmo não tendo sido
discípulo direto daquele, chamado à época de “O Pensador”.
Em relatório apresentado ao chefe do Governo Provisório datado de 1º de maio de 1933,
o então Ministro da Agricultura, Major Juarez Távora, especifica a nova organização do
Ministério e a atuação da pasta em face da economia nacional:

Somos um país onde tudo está por organizar-se, e no qual nada é mais desorganizado
do que a produção. Disse o mais profundo e realista dos nossos sociólogos – Alberto
Torres – que “a nossa atividade agrícola, desde os tempos coloniais, tem sido um
processo de devastação da terra, sem protesto de ninguém”. Urge que reajamos contra
esse saque às riquezas naturais do país, que já duram séculos – encaminhando-nos
decisivamente pela senda da racionalização de nossa produção. Essa tarefa cabe,
inteira, ao Ministério da Agricultura [...]. 420

As inserções de Távora à frente da pasta da Agricultura foram, assim, eivadas das ideias
de Alberto Torres, particularmente, sobre a racionalização e organização do Estado. O
pensamento de Torres acerca da regulamentação do serviço florestal, de projetos referentes à
reforma agrária e da abertura de estradas, também foi incorporado ao projeto de intervenção do

418
SOCIEDADE (...), 1935, p.14.
419
Passagem acerca de reunião da SADAT, Jornal Correio da Manhã, 10 de janeiro de 1933.
420
AN – Fundo 35: Gabinete Civil da Presidência da República. Lata: 28 – Ministério da Agricultura. Consulta
dia 03 de maio de 2018.
178

Ministério da Agricultura conduzido por Távora. Essas pautas foram fartamente divulgadas
pela Sociedade Amigos de Alberto Torres através de reuniões, notas à imprensa e publicações
diversas.
A SADAT tinha a clara intenção de agir para a consolidação da revolução e para o
progresso nacional. Nessa direção, seus membros e a diretoria, muitos deles ocupantes de
cargos no Governo Provisório, falavam diretamente ao chefe do governo por meio, inclusive,
das páginas dos jornais, envolvendo boa parte da nação no processo de negociação. No dia 10
de janeiro de 1933, no Jornal Correio da Manhã, a diretoria recém-empossada da SADAT
informou ao Sr. Getúlio Vargas a opinião dos torreanos acerca do processo de
constitucionalização do Brasil. A agremiação deu salvas ao anteprojeto constitucional que
incorporou as preocupações do grupo ao propor a socialização da caça e a obrigação de manter
os parques florestais para resguardar a fauna e a flora por parte dos estados. De acordo com a
Sociedade, uma vez transformado em lei, o anteprojeto teria consolidado os devidos cuidados
para o combate à “[...] constante destruição das reservas naturais”, tão bem estudadas pelo
patrono da SADAT em “Fontes da Vida no Brasil”.
Como explica Silva,
As discussões ganham destaques na imprensa e em periódicos especializados,
mobilizando intelectuais de formações variadas como Monteiro Lobato, Roquette
Pinto, A. J. Sampaio (botânico e diretor do Museu Nacional, de reconhecida projeção)
José Vidal, Berta Lutz, Armando Magalhães Corrêa, dentre muitos outros, e também
associações como o Centro Excursionista do Rio de Janeiro, fundado em 1919, a
Federação Brasileira para o Progresso feminino, sob liderança de Berta Lutz, bióloga
do museu nacional, Sociedade Amigos de Alberto Torres, fundada em 1932, os Clubes
de amigos da Natureza, a sociedade geográfica do Rio de Janeiro e a sociedade amigos
das árvores, fundada em 1931, a academia brasileira de ciências e jornais como, por
exemplo, o correio da manhã.421

Segundo Silva, organizados coletivamente ou mesmo em iniciativas solo, a partir de


instituições científicas e associações cívicas, diversos sujeitos demandaram operações político-
administrativas para a elaboração de medidas no âmbito legal, capazes de assegurar políticas
públicas que contemplassem a discussão sobre os recursos naturais.

Os argumentos assentavam-se na busca dos parâmetros definidores da modernidade


que tinham na técnica os seus principais suportes; deixava-se submerso um outro
entendimento, presente na sociedade civil organizada, sobre a questão da natureza,
que a colocava sob a proteção e abrigo do preceito que a considerava um monumento
e, enquanto tal, parte do patrimônio nacional, como reivindicava a Academia
Brasileira de Sciências, a partir da proposta do professor Mello Leitão. 422

421
SILVA, Z. L. da. As percepções das elites brasileiras dos anos de 1930 sobre a natureza: das projeções
simbólicas às normas para o seu uso. In: ARRUDA, G. (org.). Natureza, Fronteiras e Território. Londrina:
EDUEL, 2005, p. 177-215; p. 191-192.
422
SILVA, 2005, p. 180.
179

Tais iniciativas foram engendradas, sobretudo, para influir nos processos de


reconstrução das leis que regiram a relação com a natureza num momento em que o debate
constitucional se sobressaía. Através de eventos públicos, artigos em jornais e revistas e de
ações educativas, o movimento ganhou expressão impulsionando debates no âmbito da
Constituinte de 1934, propondo medidas para a eficaz proteção à natureza. 423

Se era um assunto que já estava nas pautas dos jornais, em 1933 passou a ser a seção
permanente, Monumentos Naturaes e Proteção à Natureza, do suplemento Ilustrado
do prestigioso e crítico Correio da Manhã, que saía aos domingos. A iniciativa é
explicada como a decorrência da publicação no referido suplemento – de janeiro a
outubro de 1933 – do Curso de Phytogeographia e Proteção à Natureza, ministrado
pelo prof. A. J. Sampaio, do Museu Nacional. com o seu término, o jornal decidiu
ampliar o debate para todos aqueles que se interessassem pela causa ambiental,
explicando aos leitores os objetivos almejados com a criação da seção. Empenhado
nesse debate em defesa da Natureza, o Correio da Manhã divulga eventos, palestras,
“cartas”, comentários e, também, o texto na íntegra do decreto n. 23.791, de 23 de
janeiro de 1934, pelo qual o Presidente Vargas cria o Código Florestal. 424

Ao mesmo tempo em que viabilizaram as discussões acerca do descaso com os recursos


naturais brasileiros através de pesquisas, debates e denúncias sobre a devastação de florestas
endereçados principalmente ao Estado, grupos como a SADAT publicizaram a questão de
maneira eficiente, apontando para a construção de uma prática participativa sobre o tema
ambiental. Nesse movimento, a institucionalização do debate acerca do uso dos recursos
naturais com vias ao desenvolvimento nacional se delineou ao longo da década de 1930 em
“[...] uma outra perspectiva sobre a natureza que a inscreve no âmbito das relações sociais, ao
atribuir-lhe o sentido de “Monumento” e, enquanto tal, de interesse comum aos habitantes do
país”.425
De 8 a 15 de abril de 1934, no Rio de Janeiro, os debates públicos sobre o tema
culminaram com a realização da 1ª Conferência Brasileira de Proteção à Natureza. No exemplar
do Correio da Manhã de 10 de janeiro de 1933 observamos detalhes sobre o evento, descrito
como um “empreendimento da Sociedade dos Amigos das Árvores” (SADAT), entidade
presidida pelo professor Leôncio Corrêa. A conferência foi dividida em seções sobre o solo,
flora, reflorestamento e fauna; antropologia voltada para a discussão sobre habitação rural e
defesa indígena; educação; legislação e exposição de arte contando com telas paisagísticas,
mapas, projetos de arquitetura, etc. Estiveram representadas diversas associações: a Associação

423
Ibid., p. 177-215; p. 180.
424
Ibid., p. 193-194.
425
SILVA, 2005, p. 183.
180

Brasileira de Educação, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a Liga Brasileira de


Higiene Mental, a Academia Brasileira de Ciências, o Instituto Histórico de Ouro Preto, o
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Sociedade de Amigos de Alberto Torres, entre
outros. É importante realçar que o evento contou ainda com o patrocínio do chefe do Governo
Provisório, Getúlio Vargas, evidenciando a relação estreita entre as associações civis e o poder
público acerca da pauta. Assim, a Conferência Brasileira de Proteção à Natureza “[...] refletiu
a mobilização e o tipo de pensamento presentes nas organizações da sociedade civil e
instituições públicas preocupadas com a conservação da natureza”. 426

A realização da Conferência indicava a existência de uma maior veiculação da questão


da proteção à natureza entre a opinião pública, que por meio da atuação de uma série
de entidades da sociedade civil, pressionava no sentido de uma política mais efetiva
por parte do governo. Pressões que foram, em certa medida, bem-vindas e assumidas
naquele momento. 427

Segundo Leôncio Corrêa, presidente da Sociedade dos Amigos das Árvores, no discurso
da sessão inaugural da conferência, a SADAT se colocou como a sentinela vigilante do nosso
ameaçado patrimônio florestal. Evidenciando a satisfação do segmento civil acerca do decreto
do Código Florestal, Correa diz ser essa uma das mais relevantes legislações assinadas pelo
Governo Provisório para o futuro econômico do país, pois, a medida institucionalizava e
assegurava a proteção à natureza.428 Como esclarece Franco (2002), a argumentação de Corrêa
em torno da proteção da natureza estava baseada em dois pontos principais: o primeiro era de
que a natureza devia ser valorizada enquanto recurso econômico, devendo ser utilizada de
maneira racional. O segundo, indicava os recursos naturais como “[...] objeto de culto e fruição
estética”. 429
Ao longo das primeiras décadas do século XX, o debate ambiental alternou-se entre as
concepções conservacionistas, que previam a racionalidade na utilização dos recursos naturais
e os conceitos preservacionistas, que se ocupavam com a faceta transcendental do mundo
natural:
No Brasil dos anos 1930-1940, os conceitos de proteção, conservação e preservação
eram, portanto, intercambiáveis, ambos apontando, ao mesmo tempo, para as noções

426
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. JAN. 2002. p. 77-96; p. 78-79.
427
Ibid., p. 79.
428
Cf.: Alberto José Sampaio (relator). Relatório Geral da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza,
In: Boletim do Museu Nacional, vol. XI, nº 1, março de 1935, p. 15-16 Apud FRANCO, José Luiz de Andrade.
A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da Identidade Nacional. VARIA
HISTÓRIA, nº 26, JAN. 2002. p. 77-96; p. 80.
429
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. JAN. 2002. p. 77-96; p. 79.
181

de que a natureza deveria ser, enquanto conjunto de recursos econômicos, explorada


racionalmente no interesse das gerações futuras, e que enquanto diversidade
biológica, objeto de ciência e contemplação estética, deveria ser protegida. 430

Tais elementos influíram na elaboração de discussões e ações no âmbito público e


privado pelo mundo e, também, no Brasil.431Ao transmitir o cargo ao novo Ministro Odilon
Braga, Távora elenca as mudanças ocorridas durante sua gestão para a transformação do Estado
brasileiro. Segundo ele, antes da revolução de outubro de 1930 o Ministério da Agricultura
tinha a fama de ser um aparelho demasiadamente burocrático e, por isso mesmo, “rígido e
inoperante”. Esse estado de ineficiência fomentada pelo antigo regime causou prejuízos à
condução da melhoria da produção nacional. Portanto, o Ministério da Agricultura precisou ser
fartamente modificado.
Ciente da responsabilidade que assumia ao receber um Ministério encarregado de
grande parte do encargo da administração pública para o fomento das atividades produtivas do
país, Távora se dispôs a cumprir tal função como um “dever de patriotismos”. Imbuído desse
espírito, se baseou no diagnóstico de três deficiências fundamentais na estrutura do Ministério
da Agricultura: má estrutura orgânica do aparelho; recrutamento inadequado do pessoal técnico
que devia dirigi-lo e deficiência dos recursos orçamentários destinados a movimentá-lo. 432 A
partir disso, por 19 meses “de atividade pacífica” Távora priorizou algumas ações, a primeira
delas se referia à atuação do Ministério frente à economia brasileira.

Num país, como o nosso, onde, nem o produtor, geralmente, pobre e ignorante, pode
resolver, por si só, o problema de sua organização e defesa, nem o Poder Público,
desorientado e também empobrecido, logrará, tão cedo, atender, diretamente, a cada
produtor necessitado – só há uma saída razoável pra a pronta e eficiência organização
da produção: - é o grupamento destas em federações estaduais e, finalmente, da
aglutinação dessas federações, em confederações nacionais, capital da república. 433

Para o futuro do país e do Ministério, Távora indica a necessidade de organizar e fazer


crescer o Banco Nacional de crédito rural. Naquele momento, a obra de organização e defesa
da produção nacional era, em sua opinião, a pedra fundante de um programa sindical-
cooperativo traçado e adotado pelo Ministério da Agricultura, com o objetivo de atender ao

430
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 83.
431
Ibid., p. 77-96; p. 81.
432
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Documento produzido Rio de Janeiro, 15 de julho de 1934.
433
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Vargas aceitando saída de Távora do Ministério. Rio de janeiro, 23 de
julho de 1934.
182

produtor rural, até então negligenciado, paradoxalmente, num país qualificado como
“essencialmente agrícola”.434 O segundo elemento destacado por Távora dizia respeito ao
controle e aproveitamento das riquezas naturais, “[...] até agora entregues à cupidez ou
inconsciência dos apetites individuais”. 435 Os problemas já se achavam equacionados dentro
dos quatro códigos que tivera “[...] a fortuna de referendar como ministro da agricultura do
Governo Provisório – o de caça e pesca, o florestal, o de águas e o de minas”. 436 Da execução
dos dois primeiros estavam incumbidos, respectivamente, os conselhos de caça e pesca e
florestal, naquele ínterim, em meados de 1934, já em plena atividade. Os dois últimos, recém-
sancionados, se encontravam em vias de serem executados pelos serviços de águas e de fomento
da produção mineral do Ministério da Agricultura. Aqui, daremos atenção ao Código Florestal.
A ampliação do debate acerca da relação da sociedade brasileira com seus recursos
naturais culminou com a promulgação do Decreto Federal 24.643, de 10 de julho de 1934, que
fez vigorar o Código das Águas e o Código Florestal, datado de 23 de janeiro de 1934, Decreto
23.793/34, que previa a obrigatoriedade de autorização para a “[...] derrubada de florestas em
propriedades privadas”, o “[...] aproveitamento de lenha para abastecimento de vapores e
máquinas” e a “[...] caça e pesca nas florestas protetoras e remanescentes”. 437
O Código foi elaborado por uma subcomissão que redigiu o anteprojeto do texto com
base em debates internos, mas, igualmente, de acordo com sugestões de membros da sociedade
civil como a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e a Sociedade dos Amigos das Árvores.
A imprensa do período tratava o tema como sendo o “Problema Florestal Brasileiro”, reunindo
questões econômicas relativas ao abastecimento de lenha, por exemplo, e tópicos como a
inconstância das chuvas e a incidência de doenças ocasionadas pela ausência da vegetação. 438
Sancionado por Getúlio Vargas, o Código estabelecia regras de exploração e
preservação das florestas brasileiras.
O “modelo” de floresta era a silvicultura ordenada e produtiva. Por ser a esmagadora
maioria das florestas no Brasil classificada como de “rendimento”, essa denominação
é reveladora da destinação prevista para essas florestas. A exploração florestal, à

434
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Vargas aceitando saída de Távora do Ministério. Rio de janeiro, 23 de
julho de 1934.
435
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
436
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
437
BRASIL, Código Florestal, 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/D23793impressao.htm Acesso: 11 de novembro de 2019.
438
Cf.: HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
183

época, apresentava uma outra classificação das florestas, dividindo-as entre


homogêneas e heterogêneas. 439

O primeiro Código Florestal nacional se aplicava “[...] às florestas como às demais


formas de vegetação reconhecidas de utilidade às terras que revestem”. 440 Como parte de um
conjunto de políticas públicas e leis que previam a organização burocrática e territorial do
Estado, o Código Florestal definia ainda os termos para o incremento da produção nacional.
Segundo Carvalho, no texto do Código, a exploração das florestas e mesmo a definição sobre
o que seria as florestas brasileiras passou às mãos do Estado, e não mais da iniciativa privada:
“[...] Dessa forma, pode-se entender o Código Florestal de 1934 como parte do esforço do
Estado em modernizar, ordenar a produção e, consequentemente, controlar e ordenar o próprio
território”.441 Nele, pela primeira vez, “[...] a proteção da natureza figurava como um princípio
fundamental tanto para a União como Estados”.442 Além disso, importa atentar que, geralmente
pautada pelo argumento de defesa e/ou preservação dos recursos naturais, a construção de áreas
protegidas “[...] pode ser considerada importante estratégia de controle do território”, visto que
delimitava espaços e estabelecia formas de uso e ocupação. 443

O Código Florestal de 1934 despontou como o resultado de um debate amplo que


envolveu setores da sociedade civil extremamente permeada por figuras de relevo da política
nacional. Essa demanda foi institucionalizada pelo Ministério da Agricultura por meio da
elaboração de um anteprojeto escrito pela comissão chefiada por Luciano Pereira da Silva, que
se destacou como consultor jurídico e autor do Código auxiliado por Augusto de Lima,
responsável pela redação da Lei do Serviço Florestal Brasileiro, que presidiu a subcomissão do
Código Florestal. 444
No texto, quatro tipos de florestas foram definidos:

1. As “protetoras”, que, por sua localização, servissem, conjunta ou


separadamente, para qualquer dos fins seguintes: a) conservar o regime das águas;
b) evitar a erosão das terras pela ação dos agentes naturais; c) fixar dunas; d)

439
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016; p. 420.
440
BRASIL, Código Florestal, 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/D23793impressao.htm Acesso: 11 de novembro de 2019.
441
Ibid., p. 417-442; p. 422.
442
CASTELO. Thiago Bandeira. Legislação florestal brasileira e políticas do governo de combate ao
desmatamento na Amazônia legal. Ambiente & Sociedade. São Paulo, v. XVIII, n. 4, p. 221-242, out./dez.
2015, p. 222.
443
MEDEIROS, Rodrigo. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente &
Sociedade – vol. IX, nº 1, jan./jun. 2006, p. 41 – 64.
444
Cf.: Hansen, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em...) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
184

auxiliar a defesa das fronteiras, de modo julgado necessário pelas autoridades


militares; e) assegurar condições de salubridade pública; f) proteger sítios que por
sua “beleza natural mereçam ser conservados”; e g) asilar espécimes raros da
fauna indígena; 2. as “remanescentes”, que são aquelas que formam parques ou
assemelhados; 3. as “modelos”, que são “as artificiais constituídas apenas por
uma, ou por limitado número de essências florestais, indígenas ou exóticas, cuja
disseminação convenha fazer-se na região”; 4. todas as demais florestas eram
consideradas de “rendimento”. 445

O texto do Código apresentou, além da classificação dos tipos de florestas, a criação do


Fundo e Conselho Florestal; percentuais mínimos de conservação de vegetação nativa em
imóveis rurais; previu a reposição legal da floresta e até a isenção tributária sobre florestas em
áreas particulares, incluindo aí impostos de terra.
Percebe-se nesse conjunto de medidas um ímpeto conservacionista manifestado, por
exemplo, na acepção avançada de áreas de preservação ambiental e na criação de unidades de
conservação. Se antes havia somente uma legislação endereçada ao uso econômico dos recursos
florestais, naquele momento essa preocupação surge enquanto conjunto normativo com
relevante aspecto de proteção ecológica preparado em diálogo com demandas sociais. Afinal,
o Código eleva as florestas à categoria de bem de interesse coletivo, endossando a leitura
patrimonialista dos recursos naturais. Esse movimento culminou, na Constituição de 1934, com
a delimitação da responsabilidade da União e dos estados para com a proteção dos bens naturais
de valor estético e histórico, entendidos como patrimônio nacional.
Falando ao seu sucessor, Távora não dispensa a oportunidade de sublinhar a importância
“[...] para a coletividade nacional, do rigoroso cumprimento dos códigos”, afinal, as normas já
estavam em consonância com a nova Constituição, prevendo a revisão de todos os contratos
referentes à exploração da energia hidroelétrica, para abastecimento público do país: “[...] Só
essa tarefa vai exigir de vossa excelência muita coragem cívica que espero não lhe faltará, ainda
mesmo nos transes mais difíceis”. 446
Partindo da verificação da pouca aplicação das disposições desse Código, especialistas
argumentam sobre o insucesso do Código Florestal de 1934. 447 De fato, apesar de ser resultado
de um ambiente de mobilização pelo uso racional dos recursos nacionais e uma reação ao
comprovado desmatamento em favor do plantio de café, o Código Florestal de 1934 não foi
facilmente implementado. No entanto, é possível ver na institucionalização do amplo debate

445
BRASIL, 1949, art. 3º a 7º.
446
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
447
CASTELO, Thiago Bandeira. Legislação florestal brasileira e políticas do governo de combate ao
desmatamento na Amazônia Legal. Ambiente & Sociedade. São Paulo, v. XVIII, n. 4, p. 221-242, out.-dez.
2015, p. 223.
185

sobre o uso dos recursos naturais e na inclusão desse tópico para a condução dos rumos
nacionais, termos relevantes para a proteção do meio ambiente.
Apesar de não se tratar de uma legislação “ambiental”, o Código foi, segundo Carvalho
(2016),“[...] parte de uma longa tradição de legislação florestal que regula a utilização das
florestas, mas é também parte do esforço de implantação no Brasil de um projeto modernizador
que procurava industrializar o país”, portanto, estava relacionado ao ensejo “de produção de
um “homem novo” e uma “natureza nova”, adequados ao projeto industrializante.448
Nesse sentido, importa ressaltar ainda que o Código Florestal influiu na formulação de
certo entendimento sobre a propriedade privada, pois, negava seu usufruto absoluto ao proibir
cortes de árvores em certas áreas e obrigava o replantio em outras, por exemplo, assim como
previa a delimitação ainda que incipiente de parques nacionais e estaduais. O Código também
estabelecia a criação de uma fiscalização ostensiva por meio da Guarda Florestal. O Código de
Águas, por sua vez, instituía normas para o controle da água, mesmo aquela que corresse em
propriedades privadas. Para Dean (1996), tal legislação “[...] Foi uma rejeição histórica do
liberalismo e uma reversão para o controle estatal, abafado desde os primeiros dias do império,
mas agora revivido sob a bandeira de um nacionalismo modernizante e tecnocrata”. 449
Chama atenção o fato de que as leis e normativas sobre o uso dos recursos naturais
produzidas em 1934 vigoraram por longos anos. Somente com a Lei Federal nº 4.771, de 15 de
setembro de 1965, foi constituído um novo Código Florestal Brasileiro. Essa nova baliza
regulatória foi implementada em associação com um conjunto de subsídios do setor rural
estabelecida pela ditadura civil-militar instalada em 1964. A longevidade do Código Florestal
de 1934 leva em conta a profundidade do debate sobre a questão ambiental no início de 1930,
por outro lado, redimensiona as críticas de não implementação dessa legislação evidenciando
como o marco regulatório atuava, de fato, acerca da propriedade privada. Como indica
Carvalho, “[...] o Código Florestal não era tão draconiano com a propriedade privada como
aparentava à primeira vista”, no parágrafo único do art. 11, por exemplo, garantia “[...] ao
proprietário, em tais casos, a indenização de perdas e danos comprovados, decorrentes do
regime especial a que ficar subordinado” e o uso das áreas protegidas em suas propriedades. 450

448
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016, p. 418.
449
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia.
das Letras, 2004. p. 275-276.
450
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016, p. 423
186

Além disso, as falhas do Código Florestal se expressavam nas muitas aberturas para o
desmatamento de madeiras de lei mediante replantio, pois, na medida em que uma área com
redução de florestas ao mínimo previsto no Código era vendida, sua porção de floresta era
novamente calculada como um todo, desprezando o fracionamento inicial. Dessa forma, a área
era repassada a um novo proprietário. Brechas como essa eram recorrentes, sobretudo, diante
dos poucos recursos de que dispunha o Estado, responsável por fazer valer as normas e fiscalizar
sua aplicação. A relativa boa convivência dos proprietários com o Código se expressava,
portanto, nos espaços de manobra existentes na lei para a devastação com fins econômicos e na
possibilidade de escapar da fiscalização incipiente da Guarda Florestal e dos Conselhos
Federais de Florestas. Além, é claro, do alardeado uso da força econômica por parte dos
proprietários que pressionavam ou cooptavam por meio de propinas fiscais e tribunais. 451
É preciso, ainda, entender como a redação dos marcos legais foi associada às pautas
regionais. Para isso, discutiremos como o debate sobre as matas e o reflorestamento presentes
no Código foi tratado nas páginas do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas,
visando a ampliação de medidas para o combate à estiagem.

451
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia.
das Letras, 2004. p. 277-303.
187

4.2 Regionalização do debate ambiental e as possibilidades para o combate à seca no


Boletim da IFOCS

Tal qual se elaborava desde o século XIX, intelectuais tomavam para si a


responsabilidade de organizar conhecimentos e proferir a verdade acerca do Brasil. Dessa
maneira, nas décadas de 20 e 30 do século XX, o ambiente letrado brasileiro se conformava
como espaço frutífero. Naquele período, as linhas mestras da cultura repousavam na revisão
histórica, compelida em romper com o nacionalismo romântico, ao tempo em que estabeleciam
um “projeto de refundação republicana do Brasil”, atrelado aos “potenciais do conhecimento,
das tecnologias contemporâneas e do rearranjo das forças políticas no plano internacional”. 452
O ambiente intelectual de discussão de temas de relevo nacional e internacional foi
marcado também pela proposição de respostas amplas que, muitas vezes, negligenciavam as
assimétricas realidades nacionais. Assim, a intelectualidade de áreas periféricas como Norte e
Nordeste, buscava imprimir suas contribuições nos debates acerca da modernização e progresso
da nação. Dessa maneira, Thomaz Pompeu Sobrinho se colocou na linha de frente, publicando
escritos científicos e literários alimentando com suas contribuições o debate sobre as questões
nacionais e sociais do Brasil, com a inclusão de subsídios sobre o tema da racionalização do
uso dos recursos naturais.
No Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas de abril de 1935, pouco
tempo depois da sanção do Código florestal, Sobrinho se posicionou sobre a aplicação dessa
legislação baixada com o decreto n. 23.793 de 23 de janeiro de 1934. Para ele, o texto
continuava “letra morta no Nordeste”.453

É verdade que, embora encerre disposições especiais para esta região de secas (art.
29, letra de a a e) o documento parece não se adaptar convenientemente às nossas
necessidades. Contudo, tem disposições salutares que deviam entrar imediatamente
em execução, tal seria a instituição de polícia florestal e a criação do conselho floresta,
este principalmente que, depois de melhor estudo da situação das nossas matas e das
necessidades de ordem florestal reclamadas nos diversos setores do país, poderia
redigir outro código mais ajustável às condições de casa zona. 454

Sobrinho informa ainda que os Estados nordestinos, vez por outra, promulgavam leis de
proteção aos restos de suas matas, mas eram, porém, “[...] leis que jazem esquecidas nos anais
das assembleias, tal como a de n. 1292, de 31 de agosto de 1915 (Ceará) que proíbe a derrubada

452
SEVCENKO, N. (2002). O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, (54), 30-37. p. 33.
453
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril 1935 Vol. 3 N.º 4 p. 186.
454
Boletim IFOCS ABRIL, 1935, vol. 3, nº 4, p. 186.
188

das matas às margens das estradas e dos rios”. 455


A partir daí, formula um diagnóstico
importante a respeito da aplicação da regulação ambiental na Região Nordeste. Além da
ineficácia da fiscalização da aplicação dos códigos, as normas não estavam adaptadas às
necessidades locais, historicamente permeadas pelo problema das secas. 456
Em meados da década de 1930, ao longo das várias intervenções nos Boletins da
Inspetoria de Obras Contra as Secas, o letrado Thomaz Pompeu Sobrinho se colocou como
mensageiro do saber necessário para a conformação de uma região moderna, debatendo o uso
dos recursos naturais locais, apontando a valorização desses elementos e refletindo sobre o
reflorestamento para o combate à seca.
Nascida dos debates em torno do projeto nacional de desenvolvimento econômico, e dos
desdobramentos sociais que consideravam uma nova maneira de ver o mundo marcada pelo
cientificismo, a legislação sobre o uso das florestas e das águas redigida na década de 1930
esteve ligada a outro ponto fundante desse novo pensamento ambiental daquele momento: a
disseminação do poderio técnico-institucional. Para isso, governantes e pensadores propuseram
modelos diferentes para o desenvolvimento do país e a resolução de problemas históricos,
refletindo maneiras de se relacionar com a natureza e, sobretudo, como fazer dessa uma relação
economicamente produtiva e culturalmente civilizatória.
Segundo Franco, naquele momento “[...] depositava-se uma forte confiança nas
possibilidades de um manejo florestal por meio do plantio de florestas homogêneas, fossem
elas de essências nacionais ou exóticas”, bem como ganhava espaço a ideia da criação de
reservas para a pesquisa científica e até mesmo para o culto estético incluindo ou não a
intervenção humana. Fundamentado nessas premissas, “[...] o reflorestamento de morros na
capital e da margem das estradas, o problema das secas no Nordeste e o da reposição de
madeiras (para dormentes, móveis, construção civil, carvão) seriam questões a serem resolvidas
através do plantio de árvores”.457 De forma geral, havia “[...] um projeto mais amplo, que via

455
Ibid., p. 187.
456
Na escrita de Sobrinho os termos “mata” e “floresta” parecem ser, na maioria das vezes, usadas como
sinônimos. Acreditamos que apesar de reconhecer a diferença entre o tipo de vegetação originária da região
Nordeste e do restante do país, o engenheiro parece estar pautado na pouca delimitação do termo. Na letra do
código florestal o termo aparece com ampla extensão, o que garantiria que o uso da vegetação nordestina,
reconhecidamente menos exuberante, estaria contemplado pelos ditames do código. Nota-se a pouca
delimitação do termo “floresta” no código florestal de 1934 na redação dos artigos 1º e 2º: “Art. 1º - As
florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bem de interesse comum a
todos os habitantes, do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis em geral, e
especialmente este código, estabelecem. Art. 2º - Aplicam-se os dispositivos deste código assim às florestas
como às demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem.”
457
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 86.
189

no mundo natural a principal “fonte da nacionalidade”, englobava todos estes aspectos,


conferindo-lhes coerência”. 458 No Nordeste brasileiro de meados de 1930, o debate ambiental
e sua institucionalização incluíram preocupações acerca do combate à seca.
Segundo Gilmar Arruda, ao longo do século XIX, apesar do persistente projeto de
apaziguamento do social, o Brasil passou por um momento “[...] em que se funda as modernas
concepções da natureza e de suas relações com a identidade brasileira”. Para o autor, um duplo
movimento tornaria inteligível o sentido das representações da natureza no momento da criação
do Estado Nacional. O primeiro movimento aponta para a articulação entre a ideia de natureza
e a percepção de exuberância consolidada pelos românticos no transcorrer do século XIX. No
final deste, a ideia se associa ao segundo ponto, abarcando o entendimento amplo do mundo
natural entendido como recurso natural.459
Se no primeiro caso temos viajantes e os literatos como responsáveis pelo conjunto de
representações sobre a natureza, no segundo, engenheiros e outros segmentos sociais têm a
responsabilidade de executar as mudanças de enfoque sobre a natureza do Brasil, a partir do
olhar científico e técnico. Os esforços para o combate à seca se inserem nesse processo. A
açudagem foi a medida mais amplamente implementada, mas, outras opções foram aventadas,
entre elas, estudos sobre a agricultura nacional e discussões sobre o desflorestamento da região
ganharam espaço institucional.
Desde meados do século XIX, o problema do incremento rural do Nordeste brasileiro e,
em particular, possíveis soluções para minimizar os problemas causados pelas estiagens foram
componentes de um amplo debate. Nele, pensadores, cientistas políticos e trabalhadores do
campo pensaram várias hipóteses e aplicaram medidas práticas, sobretudo, no âmbito das
políticas públicas.
Em 1909, no artigo “Dos meios mais eficazes para prevenir e atenuar os efeitos das
secas periódicas”, o engenheiro civil J.S. de Castro Barbosa já realizava a conexão entre o
combate à seca e a necessidade de preservação dos recursos naturais.
A agricultura pautada por essa premissa seria capaz de transformar gradualmente o
clima através do “[...] plantio de árvores na parte semiárida circunvizinha, as quais moderando
a descida rápida das águas” contribuiriam para debelar o mal. A princípio, seriam plantadas as
espécies já conhecidas como resistentes à seca, seriam as pioneiras “dessa campanha benéfica”.

458
Ibid., p. 77-96; p. 87.
459
ARRUDA, G. Representações da Natureza: História, Identidade e Memória. In. ROLIM, R. C., PELEGRINI,
S. S. e DIAS, R. História, espaço e Meio Ambiente (Anais do VI encontro de História) Maringá/PR: ANPUH/PR.
200, p. 52
190

À medida que produzissem os primeiros efeitos, outras espécies seriam admissíveis e, assim,
gradativamente até o completo domínio da região. 460
No limiar da década de 1930, em meio aos diversos conjuntos naturais do país, o
Nordeste seco se revelava como um dos territórios mais complexos para a formulação de
medidas e planos de melhoria. Para amparar a situação, duas respostas foram sendo
disseminadas naquele momento: o domínio sobre o curso das águas através da açudagem e da
irrigação e a valorização das espécies xerófilas, opções não excludentes. Nesse bojo, as
representações em torno das potencialidades naturais da região eram importantes para definir o
planejamento regional. É possível incluir a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas como
parte desses esforços.
Nesse contexto, associado ainda às devastações decorrentes da seca de 1932, o governo
do Ceará criou a Comissão Técnica de Reflorestamento e Postos Agrícolas, posteriormente
transformada em Comissão de Serviços Complementares da Inspetoria e Secas. As comissões
eram destinadas, entre outras coisas, ao desenvolvimento de florestas protetoras e florestas de
rendimento de madeira e de ramas nas bacias hidrográficas dos açudes, bem como à formação
de “quebra-vento” nas bacias de irrigação. As comissões atuavam também para a arborização
marginal dos canais de irrigação e a proteção do revestimento florístico das bacias hidrográficas
dos centros de população da região seca. Mas, assim como fora difícil fazer cumprir os Códigos
Florestais e das Águas, estas funções múltiplas pareceram por si só, difíceis e complicadas. 461
Sobrinho revela: “[...] Não conhecemos os trabalhos a que se tem empenhado a referida
comissão, mas acreditamos alguns frutos já lícitos contar da sua atividade, visto conter no seu
seio homens de justificada reputação”. 462
O escopo de ação das comissões aponta para a interligação do pensamento acerca da
proteção dos recursos naturais no período e a tentativa de institucionalização dessas ideias, que
seriam transformadas em ações práticas a serem executas por órgãos públicos.
No Ceará, associado a esse movimento mais amplo de discussão acerca do uso dos
recursos naturais nacionais, intelectuais fomentaram o debate preservacionista recorrendo às
contribuições anteriores acerca dos usos dos recursos naturais. Tais interesses foram
publicizados também através de Boletins periódicos editados pela Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas. A publicação dos informativos se inseriu nesse contexto como uma das mais

460
J.S., de Castro Barbosa. Dos meios mais eficazes para prevenir e atenuar os efeitos das secas periódicas. Rio
de Janeiro, 3 de julho de 1909.
461
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril 1935 Vol. 3 N.º 4 p. 187.
462
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91
191

úteis e festejadas iniciativas da Inspetoria de Seca para dar publicidade aos seus feitos técnicos.
Neles, o estudo sobre os aspectos naturais do Nordeste e o detalhamento das transformações
operadas na paisagem nordestina ganhou prioridade, sempre associadas ao ímpeto
modernizante do Estado brasileiro.
No exemplar do Boletim da Inspetoria de Secas de fevereiro de 1934, a publicização da
inauguração do açude Choró permite entrever algumas das intenções do órgão naquele
momento. Os estudos feitos para a realização da obra foram publicados no número anterior do
boletim, sendo aquele artigo dedicado somente ao evento público. O texto evidencia, sobretudo,
que o açude “Choró”, concluído em 28 de janeiro de 1934 foi entregue à sociedade com a
presença de políticos de renome, entre eles, o Interventor do Ceará, Capitão Roberto Carneiro
de Mendonça, autoridades federais e estaduais, engenheiros da Inspetoria de Secas e outras
personalidades graúdas.
Segundo detalhes contidos no texto do Boletim, a comitiva havia partido na madrugada
do dia 4 de fevereiro, de Fortaleza, em um trem especial. Depois de visitar as obras do açude
“Cedro”, em Quixadá, o grupo dirigiu-se em seguida, em automóveis, para o local da barragem
Choró “[...] utilizando excelente estrada de rodagem recentemente construída” pela Inspetoria.
463
No ato da entrega, do alto da barragem recém-construída pronunciou-se o engenheiro Pereira
de Miranda, chefe do 1º distrito. O discurso foi transcrito na íntegra no Boletim. Com a palavra,
o engenheiro:
[...] eu tenho, sr. Inspetor, neste momento, a alegria sã, a satisfação incontida e grande
de vos entregar, inteiramente concluída, a represa Choró. Deu-se-lhe o mesmo nome
do rio que acaba de ser interceptado, que encontra dominado, que está disciplinado;
do rio que se tornou, agora, útil pela regularização do seu regime, pela possibilidade
de irrigação dos terrenos férteis de seu vale amplo onde vicejará, amanhã, fatalmente,
uma cultura racional uma intensiva e eficiente cultura que será a razão determinante
e justificativa desta obra que ora vos entrego – carecendo ainda do completo
imprescindível e inadiável – a construção de sua rede de irrigação já estudada.
Construiu-se o Choró, sr. Inspetor, obedecendo-se rigorosamente ao projeto elaborado
as Seção Técnica da Inspetoria e aprovado por vós. 464

Como se percebe na narrativa, os membros da IFOCS viam rios e vales, ou seja, os


aspectos naturais do sertão como potencialidades a ser dominadas em prol de seu usufruto
racional. Desde o final do século XIX e início do século XX, a utopia progressista de caráter
civilizatório atribuiu à técnica o papel fundamental para a transformação da realidade moral e
material das sociedades. São significativas as palavras do proeminente engenheiro militar,
Cândido Mariano da Silva Rondon: “[...] a ciência, a arte e a indústria hão de transformar a

463
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 108.
464
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 109.
192

Terra em paraíso para todos os humanos, sem distinção de raças, crenças, nações - banidos os
espectros da guerra, da miséria, da moléstia”. 465
Conforme Dora Corrêa, se ao longo do século XIX o Estado brasileiro, por meio de seus
profissionais técnicos expressou uma crítica acerca da destruição das matas comparando-a com
o que ocorria nos Estados Unidos e na Europa de maneira não sistemática, na República a
reorganização do Estado “[...] permitiu que se elaborasse uma visão crítica do desmatamento,
visando à preservação ambiental, o que viabilizou uma atuação efetiva”. 466Assim, a visão de
um mundo idealizado com base em premissas românticas abre espaço para a ação cirúrgica das
artes mecânicas mobilizadas por processos técnicos.
Nos Boletins publicados pela própria Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas a
paisagem do Sertão e seus problemas surgem através de imagens fotográficas, relatos técnicos
e, por vezes, sociológicos. Em suas páginas, pesquisa e ações operacionalizadas por topógrafos,
botânicos, geólogos, hidrógrafos e engenheiros ganharam relevo. Sempre associadas ao
impulso modernizante do Estado, os saberes técnicos eram exaltados como os mais perfeitos
instrumentos para a observação, descrição, registro e modificação da vida econômica e cultural
na Região Nordeste do Brasil. Nesse ensejo, textos redigidos pelo engenheiro Thomaz Pompeu
Sobrinho ficaram em evidência.467
Os escritos de Pompeu Sobrinho, entre relatórios, artigos, monografias e livros, se
ocuparam sobre diversos elementos do Nordeste. No Boletim da IFOCS, sua produção dialoga
diretamente com sua trajetória junto à Inspetoria, onde ingressou em julho de 1903 como
Engenheiro Ajudante da Comissão do Açude de Quixadá, depois, assumiu o cargo de
Engenheiro de Primeira Classe, chegando a Engenheiro-chefe da Primeira Secção e
Engenheiro-chefe do Primeiro Distrito da Inspetoria de Secas em além disso, seus textos na
publicação oficial da IFOCS refletem seu interesse em Agronomia.

465
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta a Sua Vida. RJ: Livraria São José, 1958, p. 611-612 Apud. MARTINS
JÚNIOR, Carlos. O espetáculo da técnica “desencantando" os “sertões”: engenheiros e engenharias de
racionalização e controle territorial das fronteiras ocidentais do Brasil (1870-1915) Revista Territórios &
Fronteiras, Cuiabá, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014, p. 236.
466
CORRÊA, Dora Shellard. Paisagens sobrepostas. Índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itaeva. (1723-
1930). Londrina: Eduel, 2013, p. 210.
467
Thomaz Pompeu de Souza Brasil Sobrinho nasceu em Fortaleza no dia 16 de novembro de 1880, falecendo no
Rio de Janeiro em 09 de novembro de 1967. Além da reconhecida atuação como engenheiro, obteve destaque
como escritor e pesquisador, tendo ocupado cadeiras no Instituto do Ceará e na Academia Cearense de Letras. Seu
pai, Dr. Antônio Pompeu de Sousa Brasil era filho do Senador Pompeu, como era chamado o relevante político
cearense Thomaz Pompeu de Sousa Brasil. Sua mãe, Ambrosina Pompeu de Souza Brasil, era herdeira do Coronel
Antônio Luiz Alves Pequeno, da cidade do Crato, no Sul do Ceará. Pompeu Sobrinho desempenhou importante
papel nas áreas de Agronomia e Antropologia, sendo fundador e professor da Escola de Agronomia do Ceará e do
Instituto de Antropologia da Universidade Federal do Ceará, na década de 1950.
193

Descrevendo a paisagem sertaneja, Pompeu Sobrinho afirma que “[...] mesmo nos
períodos de extraordinárias estiagens”, alguns dos elementos naturais regionais se impõem,
independem da irrigação por suas características excelentes. As ramas forrageira, nativas e até
exóticas, “[...] tais as de certas plantas têxteis de grande valor comercial, ao par disto, vegetam
naturalmente no interior”, mesmo nas zonas que mais padecem os males das secas. Havia “[...]
plantas de enorme importância industrial que melhormente aproveitadas concorreriam para o
equilíbrio financeiro do estado nas grandes crises climáticas”. 468
Exaltando a potencialidade natural do semiárido através do Boletim da Inspetoria,
Pompeu Sobrinho evidenciou a necessidade de defender essa natureza, através, sobretudo, do
estudo de sua geografia e do reflorestamento do território. A ideia tácita em toda a sua reflexão
incide na ampliação da riqueza nacional por meio do conhecimento cientifico. Sua percepção
da natureza não se encerrava à contemplação e preservação, mas a de um recurso ao
desenvolvimento material da região e do país. Segundo Sobrinho, os recursos naturais de áreas
historicamente conhecidas pela pobreza e pela estiagem precisaram ser analisados de maneira
ampla, como potencialidades que, a partir da técnica, seriam habilitadas como riquezas naturais
a serem colocadas ao alcance do restante do país. Dessa maneira, a paisagem, largamente
representada como fustigada pela secura, ressurge como patrimônio.
Contando com o aval da Inspetoria de Secas, Pompeu Sobrinho publica considerações
a partir da sistematização de elementos históricos, biológicos, geográficos e sociológicos da
região Nordeste. Até aquele momento, segundo o autor, nenhum trabalho técnico havia sido
organizado para apurar a existência e a locação das matas atuais da região. Para ele, somente
através desse primeiro esforço seria possível constituir a necessária carta florestal daquele
pedaço do país, tomando para si a missão e mostrando-se engajado quanto à questão. 469
Em meados da década de 1930, com base em estudos técnicos e objetivos, Pompeu
Sobrinho partiu em defesa da possibilidade de conservação das florestas já existentes no
Nordeste, sobretudo, no Ceará, e da criação audaciosa de maciços florestais novos.
Relacionando o uso do meio ambiente às estratégias de desenvolvimento econômico abraçadas
pelo Estado, a longa argumentação de Pompeu Sobrinho se encaixa no debate regulatório do
uso dos recursos ambientais, evidenciado nos anos de 1930. No entanto, à medida que tomou
sua iniciativa como parte de uma histórica preocupação no sentido de disciplinar o uso de

468
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 81.
469
Como afirmou Helenice R. Silva, a “[...] atividade do intelectual engajado, para não dizer a sua própria
existência, é conflitual e ambivalente. Por um lado, ele tem por função a produção do conhecimento, a
elaboração das ideias, por outro, investido por essas mesmas ideias, ele 'enuncia a verdade'” (SILVA, Helenice
Rodrigues. Fragmentos da História Intelectual. São Paulo: Papirus, 2002. p.17)
194

recursos naturais do Nordeste, Sobrinho sofisticou os termos da discussão focando na análise


regional.
Pompeu Sobrinho buscou o impulso de renovação ambiental na produção intelectual
cearense e na própria linhagem. Assim, apesar da profusão de referências nacionais e
estrangeiras sobre o tema, em sua argumentação Sobrinho recorreu sobremaneira aos escritos
de Thomaz Pompeu de Sousa Brasil470 que, ainda no século XIX, elegeu a arboricultura e a
construção de açudes como soluções para o alinhamento social com a natureza.
Segundo Rodrigues (2013),
Pompeu defendia que boa parte dos problemas ocasionados pelo clima era resultado
da despreparada e prejudicial investida humana. Era preciso, cuidar em divulgar de
que forma o homem deixaria de ser o grande responsável pelas modificações negativas
que se observavam cada vez mais constantes. Mudar os hábitos era, assim, a primeira
tarefa a ser ensinada pelos sujeitos guiados pela “experiência e ciência”. 471

O Senador Thomaz Pompeu de Sousa Brasil defendeu a ideia de que uma das causas
das secas nordestinas era o desmatamento da região e que, por meio do reflorestamento racional
se poderia neutralizar, senão mesmo extinguir completamente, o mal da seca. Em memória
publicada em janeiro de 1877, ano em que os efeitos de uma grande seca devastaram o Ceará,
Senador Pompeu transcreveu uma coleção de artigos seus intitulada “Necessidade da
conservação das Matas, e da arboricultura”, publicados anteriormente. Para ele, as medidas de
reflorestamento implicariam na alteração do clima, podendo influir na modificação dos efeitos
maléficos das secas, paralisando-os ou retardando-os, ao menos. Suas colocações foram a base
para a posterior campanha pelo florestamento e reflorestamento do Nordeste, publicizada na
década de 1930 pela pena de Pompeu Sobrinho, engenheiro reconhecido no meio intelectual
por seu interesse em envolver o espaço e a história nordestina no contexto brasileiro, bem como
por investigar o Ceará, do presente às origens.472
Segundo Pompeu Sobrinho, algumas das opiniões passadas sobre o tema “[...] eram
verdadeiros disparates, outras disfarçavam mal o conhecimento do problema, tal como aquela

470
Thomaz Pompeu de Sousa Brasil nasceu em 1818, no Ceará. Na juventude, foi estudar na cidade de Sobral,
depois, partiu para Recife onde se formou padre e bacharel em Direito, entrando em contato com as teorias
liberais no Brasil tal qual boa parte das elites brasileiras do período. Segundo Rodrigues (2013), estudou
história natural e, a partir dela, conheceu os debates sobre as riquezas naturais. Ao retornar ao Ceará, Pompeu
de Sousa Brasil se inseriu nos círculos intelectual, político e administrativo. Cf:. BASTOS, José Romário
Rodrigues. Natureza, tempo e técnica: Thomaz Pompeu de Sousa Brasil e o século XIX. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em História Social, 2013,
p. 12.
471
Ibid., p. 122.
472
Entre livros, folhetos, artigos e relatórios, Pompeu Sobrinho se dedicou aos mais variados aspectos da sociedade
nordestina. A lista completa de obras pode ser consultada em: SOUZA, Maria Conceição. Bibliografia de
Thomaz Pompeu Sobrinho. In: Revista do Instituto doo Ceará. Fortaleza, 100: 249-264. Jan-Dez, 1980.
195

que aconselhava a formação de florestas semelhantes à da Tijuca”, ou, ainda, a de que “[...]
construir florestas artificiais, mesmo em terrenos péssimos, a inteligência humana consegue
facilmente, com tempo e perseverança”!473 Portanto, cabia imprimir cientificidade à
abordagem, considerando registros históricos, observações geográficas, biológicas e
sociológicas específicas da região. Nada mais adequado ao perfil editorial dos Boletins da
Inspetoria.
No Boletim da Inspetoria de fevereiro de 1934, Thomaz Pompeu Sobrinho escreveu um
longo artigo no qual indica como fator de grande relevância para o desenvolvimento da riqueza
pública, a açudagem e respectivas redes de irrigação e, como artifício secundário no combate
aos efeitos das secas, a cultura de plantas forrageiras e outras de múltiplos desígnios industriais,
474
cientificamente selecionadas ou adaptadas. Nesse e em outros artigos disponíveis nos
Boletins, são esmiuçados o cultivo e os usos da carnaubeira, da oiticica, do feijão bravo, todos
nativos, sem menosprezar as possibilidades para o investimento de espécies exóticas no mesmo
ensejo.
Incitado à produção de textos técnicos, Sobrinho incentivou e produziu uma crítica ao
desmatamento local considerando as tentativas de investigação da flora original. Sua
contribuição se enquadra, portanto, num contexto de ampliação da atuação do Estado que, desde
a Proclamação da República, promoveu através da atuação do Serviço Florestal a distribuição
de sementeiras, incitou o reflorestamento, criou hortos, engendrou a análise técnica e a crítica
à agricultura de subsistência.
Como explica Thomaz Pompeu Sobrinho, no Boletim da Inspetoria de 1934:

De ordinário, acredita-se no Nordeste que o único meio eficiente de luta contra as


secas consiste na construção de açudes de todos os tipos e de estradas de ferro ou
rodagem. A atividade da administração, concentrada em tais-obras, parece confirmar
este conceito que, por prejudicial, deve ser devidamente analisado. Já, em publicações
outras, temos de passagem aludido a tão importante questão. Recentemente, porém,
tivemos oportunidade de colher dados curiosos e interessantíssimos que devem ser
divulgados, porquanto mostram claramente que a luta contra o flagelo climico das
secas pode dispor de mais uma arma poderosíssima. 475

No artigo, o respeitado estudioso busca abalizar a ampliação do entendimento sobre a


batalha contra a seca, pois, considera que a ideia deve ser superar a recorrente resposta baseada
na açudagem, na qual se inspirou toda a história de intervenção promovida pela Inspetoria,

473
Mencionado em IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1935 Vol. 3 N.º 2 p. 54.
474
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 81.
475
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 80.
196

ampliando-a. 476 Para isso, ao invés de buscar o que faltava na terra ressequida, a água, restava
olhar para o meio natural já existente no Nordeste. Ainda em 1916, no livro “O problema das
secas no Ceará”, Pompeu Sobrinho já havia afirmado que lutar contra as secas não se restringia
a construir grandes açudes e grandes canais de irrigação. Cabia “[...] empenhar-nos vivamente
por obter essas construções; mas, antes de o conseguirmos, temos muito que fazer, dentro de
uma esfera menor de ação”, pois, em última análise, seria preciso afiançar as indústrias
agropecuárias da região semiárida de medidas rápidas e práticas para seu desenvolvimento. 477
Apesar de não citar o debate nacional realizado sobre o uso dos recursos naturais, a
iniciativa de Pompeu Sobrinho pode ser relacionada ao ideal de integração do território
nacional, levado a cabo ao longo do Governo Vargas, conduzidas em boa parte a partir das
ideias de Alberto Torres. Tais ideias estiveram presentes diretamente nas ações do Ministério
da Agricultura e foram disseminadas pela Sociedade Amigos de Alberto Torres, inclusive com
ações por todo o Nordeste.478
Segundo informa o jornal carioca Correio da Manhã de 4 de janeiro de 1933, em reunião
na sede da Sociedade, no Rio de Janeiro, as demandas de reflorestamento e replantio de árvores
foram apresentadas pela SADAT a fim de impactar a elaboração de políticas públicas nacionais.

A primeira, do dr. Sr. Alcides Bezerra para que fosse nomeada uma comissão de
pessoas competentes para elaborar os dispositivos necessários ao reflorestamento do
país afim de que os mesmos sejam oferecidos como sugestão à comissão que está
elaborando o projeto de constituição. Foram nomeados para esta comissão os srs
Alberto J. de Sampaio, Magalhães Corrêa, Humberto de Almeida, Alcides Gentil e
Virgílio Campelo. O sr. Lucio de Souza propôs que a sociedade oficie ao chefe do
Governo Provisório para que seja exigido nas concorrências públicas a partir de 1934,
de parte das firmas exploradoras de madeira a prova de replantio das árvores bem
como de ser o corte destas realizado após atingirem as mesmas o desenvolvimento
normal. 479

476
Além desses estudiosos ligados diretamente à IFOCS, destacam-se as contribuições do viajante inglês G.
Gardner (1836-41), os trabalhos dos botânicos Von Martius, que viajou pelos Estados de Pernambuco, Piauhy
e Bahia (1808), Francico Freire Alemão que visitou o Ceará em 1863 e Barão de Capanema, que também viajou
pelo interior do mesmo Estado por duas vezes, em 1860 e 1884. Recentemente, importa referir os estudos de
Leo Zentner, J. Huber e Adolpho Ducke e, no período da dominação holandesa, as publicações do botânico G.
Maregrafe de W. Piso (1637-1642). Cf.: Boletim IFOCS FEVEREIRO 1935, vol. 3, nº 2, p. 54-55.
477
Para iniciar sua investigação científica sobre o tema, Pompeu Sobrinho tratou com registros de caracteres
oficiais produzidos no âmbito da Inspetoria, como os dados parciais resultantes das investigações de botânicos
como dr. Alberto Loefgren e o Dr. Philipp von Luetzelburg. No período inicial da Inspetoria de secas, Loefgren
condensou importantes observações relativas à questão florestal quando percorreu trechos da região nordeste
do país e instalou os hortos florestais de Juazeiro, na Bahia e de Quixadá, no Ceará. Von Luetzelburg, também
por conta da Inspetoria de Secas, viajou pelo Nordeste no período de 1918 a 1922 executando análises de
fitogeografia. Cf.: IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1935 Vol. 3, N.º 2 p. 80 - 81.
478
A Sociedade Amigos de Alberto Torres chegou a promover debates sobre a educação rural, entre outros temas,
por meio de simpósios e seminários por todo o país, inclusive no Ceará.
479
Jornal Correio da Manhã, de 4 de janeiro de 1933.
197

Esse conjunto de percepções foi também divulgado pelos Boletins da Inspetoria que
visavam à exploração das partes pouco conhecidas ou desenvolvidas do país, refletindo ideias
territorialistas e expansionistas amplamente disseminadas pelo Estado ao longo das décadas de
1930 e 1940.480 Durante a década de 1930, a criação de hortos florestais e jardins botânicos país
afora é vista como iniciativa para o desenvolvimento da silvicultura enquanto saber científico
e prática econômica. 481 Conforme destaca Franco, naquele momento “[...] depositava-se uma
forte confiança nas possibilidades de um manejo florestal por meio do plantio de florestas
homogêneas, fossem elas de essências nacionais ou exóticas”, assim como ganhava espaço o
intuito de criação de reservas para pesquisa científica e até mesmo para o culto estético,
incluindo ou não a intervenção humana.
Desde a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas em 1909, o problema das matas
foi, por algum tempo, focalizado e estudado. Criaram-se hortos florestais e outras providências
práticas foram tomadas. Essas medidas tornaram-se a base material para que a questão fosse
encarada, nos anos 1930, de forma mais ampla, com atenção às condições locais. De forma
geral, havia “[...] um projeto mais amplo, que via no mundo natural a principal “fonte da
nacionalidade”, englobava todos estes aspectos, conferindo-lhes coerência”. 482 Acrescentamos
a existência de um debate nesses moldes a nível regional. No Nordeste, a discussão foi
associada ao combate à seca.
O plano de ação para o reflorestamento e florestamento de áreas do Nordeste, defendido
por Pompeu Sobrinho no Boletim da IFOCS ao longo de 1935, era bastante audacioso. Em seus
cálculos, era preciso dispor de uma “[...] área florestável (existente e a criar) sensivelmente
igual a 33% da área total dos Estados aqui considerados. Teríamos, nestas condições, de
conservar, reflorestar e florestar aproximadamente 130.000 quilômetros quadrados”. O plano
de reflorestamento dessa área exigiria bem mais do que em outras regiões brasileiras, um

480
Na segunda metade do século XIX, a reação ao Romantismo no cenário internacional desembocou na
valorização do cientificismo. Esse movimento, expresso também através da disseminação de correntes de
pensamento como o positivismo de augusto Comte e no “darwinismo social” de Herbert Spencer, ressoou no
Brasil e na América Latina impactando na produção de importantes intelectuais e políticos, deixando fortes
marcas no pensamento social das primeiras décadas do século XX. Esses marcos intelectuais influenciaram na
construção do pensamento ambiental brasileiro que, por sua vez, influiu no estabelecendo da problemática
ambiental no país e no desenvolvimento de políticas públicas diversas.
481
A questão do uso social da natureza incluindo as preocupações em torno do reflorestamento são bastante antigas
no Brasil. Alberto Torres chegou a resgatar postulados em José Bonifácio de Andrade e Silva referências mais
antigas sobre a destruição de territórios transformados em desertos. Segundo Pádua, José Bonifácio, no início
do século XIX, desenvolveu uma reflexão ampla e profunda sobre a questão das florestas. Segundo ele, o
problema da preservação florestal atende a duas ordens de questões: as naturais ou cósmicas (e seus efeitos na
sociedade) e as políticas. Cf.: PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo – IUPERJ, 1987, p. 31.
482
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 87.
198

planejamento de objetivos múltiplos antecedido por extenso estudo da natureza daquele espaço,
bem como da realidade econômico-social local.

Importa começar, todavia, sem prejuízo de tempo e com uma atividade tal que
compense o já irremediavelmente perdido. Entretanto, convém começar pelo mais
fácil, pelo cadastro, conservação e melhoramento das matas existentes atualmente,
sem, contudo, deixar de ao mesmo tempo, ensaiar o reflorestamento das superfícies
que já foram revestidas. Enquanto isto, cumpre iniciar-se estudos sérios, sistemáticos,
com espirito rigorosamente cientifico, no sentido de escolher, examinar e determinar
as novas áreas florestáveis e as condições do respectivo florestamento. Desse modo,
teremos certamente labor suficiente, por custo compensador. 483

Ciente da envergadura do objetivo, Pompeu Sobrinho racionaliza a empreitada


enfatizando que mesmo não sendo “[...] possível meter-se mãos a tão grande tarefa de uma
vez”, 484
ainda lhe parecia viável um plano geral a ser imediatamente elaborado após estudos
adequados. Diante dos desafios de implementar sua tese, afirma que o florestamento das zonas
secas do Nordeste, por mais completo que fosse, não teria efeito de suprimir inteiramente o
flagelo da seca. Assim, a questão do reflorestamento do Sertão implicou a consideração da
dimensão ecológica do território, incluindo, evidentemente, a inconstância das quadras
chuvosas e as crises sociais relacionadas a elas. Assim, em meados da década de 1930 a
reparação dos ambientes naturais e agrários difundidos através de debates para a política de
florestamento/reflorestamento, pode ser lida como estratégia para o combate aos efeitos da seca,
identificada como principal fator de involução do Nordeste.
Na opinião de Pompeu Sobrinho, reflorestar os campos que um dia já foram cobertos de
matas seria uma “empresa relativamente fácil”. A partir de suas observações, o engenheiro
acreditava com veemência que o florestamento extensivo das terras assoladas pelas secas e pelo
mau uso contribuiria para regularizar o regime das águas, elemento fundamental para modificar
as condições sob as quais a população nordestina lidava com as estiagens. Para ele, a ação
tecnicamente direcionada para a preservação e conservação do ambiente natural atuaria para
modificar o trato local com o fenômeno das secas, tornando-o mais fácil de ser combatido por
outros meios. 485
Parte desse esclarecimento se devia à circulação de estudos e iniciativas estrangeiras.
Citando a Europa, Pompeu Sobrinho ressalta que homens distintos propuseram a criação de

483
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 5, N.º 5, p. 186.
484
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 5, N.º 5, p. 186.
485
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 155.
199

florestas visando à valorização de terras infecundas em consequência da reprodução exaustiva


de culturas.

E isso tanto mais quanto o bem que as florestas proporcionam em geral, quer as
regiões secas, quer nas regiões húmidas é de uma importância tão grande, tão vulgar,
tão reconhecida nos meios sociais de civilização elevada, que todos os países cultos
lhe dão atenção especial e investem nos trabalhos de conservação, melhoramento e
aumento das florestas quantias avultadíssimas. 486

Para Pompeu Sobrinho, como certificavam as experiências estrangeiras, o revestimento


florestal poderia enriquecer progressivamente o solo nordestino de elementos nutritivos,
tornando-o mais apto ao desenvolvimento da floresta. O Nordeste se beneficiaria com a “ação
refrescante das florestas”. No que diz respeito à arboricultura ou silvicultura, as ações já eram,
na década de 1930, tratadas com atenção e cuidados que teriam colocado “[...] a arte de florestar
e reflorestar num estado já muito avançado, permitindo uma prática relativamente simples e
geralmente coroada do mais completo êxito”. 487
A seu ver, o maior empenho em reflorestar o Nordeste repousaria na “[...] enorme
indescritível capacidade de melhorar o regime das águas precipitadas. E sob esse aspecto é que
principalmente cumpre encarar as matas na luta contra as secas”.488 Assim sendo, seria chegada
a hora do brasileiro cuidar do assunto com energia. Para o Nordeste, além do exemplo
internacional, havia um pensamento já estabelecido sobre a mudança no trato local com a
natureza.
Há décadas, o Senador Pompeu já exortava os poderes públicos a tomar uma postura no
sentido de serem poupadas as florestas ainda existentes, refazer as extintas e criar novas.
Pompeu Sobrinho, por sua vez, indica que, no Nordeste, o homem tem destruído as florestas
inicialmente com o estabelecimento de culturas rudimentares, depois, com o cultivo maciço da
cana, do algodão e dos cereais. Estes teriam sido os primeiros e mais importantes fatores de
destruição das matas. Os esforços públicos, porém, são apontados como de baixo impacto na
natureza. Cabia, assim, continuar com o ímpeto civilizador da abertura de caminhos, estradas,
limpezas de bacias hidráulicas e açudes.
No Boletim da Inspetoria de abril de 1935, Pompeu argumentou sobre a “obrigação de
recompor as florestas que arrasou através de três séculos de trabalhos agrícolas
rudimentaríssimos, algumas vezes mais depredadores do que realmente uteis à comunidade”. 489

486
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 3, N.º 5, p. 186.
487
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 155.
488
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 3, N.º 5, p. 184-185.
489
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 152-153.
200

A postura defendida se inseria num contexto capitalista de transformação das atividades


industriais em mecanizadas e no fomento da produção racional pautada no desenvolvimento
científico. Partindo da experiência de outros países, mas, também e principalmente, da realidade
nordestina, Pompeu Sobrinho indicou que o homem seria capaz de influir decisivamente sobre
“a vegetação e particularmente sobre as florestas, destruindo-as, reconstruindo-as, melhorando-
as sob vários aspectos ou criando novas unidades onde quer que os seus interesses os
reclamem”.490 Para ele, conhecer a realidade local por meio de análises sistemáticas e promover
uma nova maneira de se relacionar com o meio ambiente significaria agir para superar parte
dos flagelos da seca e, ao mesmo tempo, edificar uma nova consciência que implicaria na
responsabilidade do homem nordestino com o mundo.
Segundo Pompeu Sobrinho, para encerrar o problema florestal nacional cabia
demonstrar, impressionar e convencer a população da importância do assunto, não à toa, suas
pesquisas foram publicizadas em jornais e nas páginas do Boletim da Inspetoria Federal de
Obras Contra as Secas. Embasado nos seus estudos, o engenheiro afirmou que as florestas
nativas foram devastadas pelo “machado dos agricultores e pelo fogo”, intensificado pela
erosão do terreno, pelas chuvas e a modificação do regime das águas, transformando as
condições primitivas e imprimindo novo aspecto à vegetação. Desde então, a paisagem
sertaneja passa a se diferenciar em nível ambiental e sociológico, uma vez que se transformou
“no porte da vegetação e na natureza do povoamento”. Como resultado do processo predatório
da atividade agrícola rudimentar, a mata não se refez espontaneamente, conferindo ao solo um
novo aspecto, dando origem a “capoeira”, uma nova formação que ocupou o espaço
destruído.491 Essa devastação, segundo Pompeu Sobrinho, não era algo desconhecido, pois, “
De há muito, compreendeu-se o interesse de poupar as matas, protegê-las melhora-las e até de
reconstruí-las,” assim sendo, “nem sempre a ação do homem tem sido exercida no sentido da
destruição da floresta”. 492
Para ele, apesar de ter sido objeto da atenção de “homens eminentes, desde o patriarca
da Independência”, no Ceará, em todo o Brasil, “o problema florestal pairou até pouco tempo
numa situação verdadeiramente deplorável”. 493 Escrevendo depois da promulgação de códigos
e leis redigidos para organizar o uso da natureza no país, as colocações de Pompeu Sobrinho
expostas nos Boletins da Inspetoria de Secas tentam negociar com a persistência de uma

490
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 153.
491
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
492
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
493
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
201

realidade observável: a região possuía riquezas naturais a serem desenvolvidas e preservadas,


no entanto, apesar dos cuidados que as administrações públicas tiveram com os problemas das
secas e da preservação das matas, as adversidades persistiam.
Desse modo, o diagnóstico final foi que, apesar do seu potencial transformador o Estado
brasileiro não fez tudo que poderia para conservar as matas nativas. Nas páginas do Boletim da
Inspetoria, uma autarquia federal com a missão histórica de combater as secas, Pompeu
Sobrinho informa que as “providências reclamadas foram proteladas com lastimável descaso
do bem-estar na coletividade”. Mesmo a IFOCS, “que iniciou os seus trabalhos com tanto
dinamismo, cedo viu a sua atividade, nesse sentido esmorecer, abafada pela falta de verbas e de
técnicos”, pondo a ação da Inspetoria em xeque. Sobrinho diz não saber se a orientação da
instituição era a do preservacionismo, sendo oportuno, pois, “intensificar os estudos e as
operações preliminares com o desenvolvimento que as condições sociais do Nordeste reclamam
instantemente”. 494 Dessa maneira, apresentou mais que um estudo técnico sobre a geografia do
Nordeste, oferecendo um plano de combate à seca construído a partir da premissa da
preservação ambiental.
Para Pompeu Sobrinho, as barreiras que obstruíam a expansão e o melhoramento da
agricultura em geral, e especialmente do algodão no Ceará, eram, em sua análise, a falta de
instrução profissional e a falta de crédito agrícola. 495 Apesar dos esforços mobilizados durante
a seca de 1931-1932, o Governo do Estado é apontado como desorientado a respeito das
melhores formas de tratar seus “problemas viscerais” que requeriam, pela sua excepcional
significação econômica, medidas eficientes para a neutralização dos efeitos perniciosos das
secas flagelantes.

Estas fibras, nativas e exuberes entre nós, quando alhures nos pequenos tratos onde
ainda é possível obtê-las, somente se conseguem mediante esforço descomunais da
técnica, cuidados e vigilâncias fatigantes, serão, mais cedo do que geralmente se
pensa, a salvação da terra das secas, como subsidiarias da grande açudagem. 496

A argumentação de Pompeu finda por unir a valorização da natureza local a outro


histórico elemento do combate à seca além da açudagem e da irrigação: a caridade. Rendendo

494
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
495
Nesse contexto, a atenção às plantas adaptadas ao semiárido, como o algodão - histórica riqueza na região é
defendida nos textos dos boletins. O chamado “ouro branco” concorreria para o desfecho vitorioso contra
qualquer seca, pois, mesmo nos anos de miséria e de desorganização econômica, o algodoeiro foi um “um
excelente e eficaz baluarte da resistência ao flagelo”, portanto, símbolo da capacidade natural daquele território.
(SOUZA, Eloy. Um Problema Nacional. Projeto e Justificativa apresentado na Câmara dos Deputados n Sessão
de 30 de agosto de 1911. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commércio, Rodrigues & C., 1911, p. 36-38)
496
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934, Vol. 1, N.º 2, p. 86.
202

préstimos ao caráter humanitário dos trabalhos de socorros, Pompeu arremata que se tratava
ainda de “promover forças ao mesmo tempo de caráter econômico e humanitário, adequadas às
condições especiais da nossa mesologia, para as quais todos os cearenses esclarecidos devem
olhar atentamente e a administração pública estudá-las” e “enquanto se não constroem as
colossais obras de irrigação”, em níveis aceitáveis. Uma vez construídas as grandes obras,
restaria educar o homem do campo, ensinando-lhe a manejar a natureza de maneira nova,
moderna. 497

497
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934, Vol. 1, N.º 2, p. 86.
203

4.3 A Constituição de 1934, a questão ambiental e a inclusão da seca no texto


constitucional

Desde a vitória da Revolução de Outubro, o Governo Provisório precisou negociar com


uma ampla demanda constitucionalista, mas também com desejos contrários a ela. Com o fim
da Revolução de 1932 em São Paulo, o Governo Provisório, mesmo saindo militarmente
vitorioso, viu-se compelido a enfrentar de vez a questão constitucional, atendendo a principal
reivindicação dos combatentes revoltosos: a imediata convocação da Constituinte. Entre tais
disputas, os debates acerca da reconstitucionalização foram permeados por intensa discussão
quanto aos projetos e demandas nacionais a partir de considerações jurídicas, políticas e sociais.

As primeiras movimentações para convocação de uma Assembleia Constituinte


passaram pela aplicação do decreto governamental que estabeleceu a nova legislação eleitoral.
As discussões sobre a ampliação da participação eleitoral vinham sendo construídas desde
1931, mas só foram concluídas em 1932. As novas regras atenderam muitos dos anseios
moralizantes da Aliança Liberal, base do movimento revolucionário de 1930. Entre os mais
importantes avanços da nova legislação eleitoral estavam o voto universal secreto e direto,
incluindo o sufrágio feminino e o inovador estabelecimento de uma Justiça eleitoral. 498 Após a
implementação da reformulação eleitoral expressa no Código Eleitoral, o pleito para a
Assembleia Nacional Constituinte foi delimitado a partir do Decreto nº 21.402, de 14 de maio
de 1932, que estabeleceu as eleições para 3 de maio de 1933 e pôs termo a formação de uma
comissão para redação de um anteprojeto constitucional que municiaria o governo com
elementos que embasariam a condução dos trabalhos da Constituinte. A redação desse texto
previamente avaliado por Vargas foi elemento fundamental para que o Governo direcionasse
os trabalhos da Assembleia.

Por meio do Decreto nº 22.040, de 1º de novembro de 1932, estabeleceu-se, então, o


regulamento de trabalho da Comissão Constitucional, responsável pela elaboração do
anteprojeto de Constituição. As reuniões do grupo, conhecido como Subcomissão do Itamaraty,
ocorreram entre novembro de 1932 e maio de 1933. Assim, a pauta constitucionalista,
dramaticamente impulsionada durante o conflito entre o Governo Provisório e o Estado de São
Paulo, espraiou-se como mobilização social por todo o país.499

498
Decreto nº 20.076, de 24 de fevereiro de 1932, instituiu o novo código eleitoral.
499
A subcomissão foi composta pelo presidente, Afrânio de Melo Franco; secretário-geral, Temístocles Cavalcanti;
Assis Brasil, rio-grandense-do-sul, havia feito parte da comissão que elaborou o Código; Osvaldo Aranha,
então ministro da Fazenda; José Américo de Almeida, à frente da pasta da Viação e Obras Públicas; o relator-
geral da subcomissão, Carlos Maximiliano, gaúcho; Antônio Carlos de Andrada, ex-presidente de Minas
204

O texto final do anteprojeto contava com 129 artigos que versavam sobre uma gama
bastante ampla de temas. Entre os mais relevantes pontos, mais tarde incluídos no texto final
da Constituição de 1934, estava a delimitação de uma legislação trabalhista, a defesa da
economia brasileira com premissas nacionalistas e delimitações acerca da segurança nacional.
Questões como a instituição da representação de classes, a organização do poder judiciário e
executivo e o pacto federativo foram alguns dos temas que alcançaram maior visibilidade
durante a redação do anteprojeto.
A existência de uma comissão nomeada pelo governo para escrever um texto base para
a Constituição suscitou muitos julgamentos. A principal crítica direcionada a Vargas indicava
que a intensão por trás da comissão era centralizar o debate e direcioná-lo para pautas
governistas. Outras, relacionadas a esta, atentavam para a pouca pluralidade do grupo, o que
impactaria na baixa adesão de demandas regionais. Entre poucos consensos e muitas
divergências, a comissão englobou diversas pautas nacionais, sempre acompanhada de perto
por associações de intelectuais e de classe, grupos políticos e imprensa.
Os debates realizados ao longo da composição do anteprojeto e durante a redação final
da Constituição evidenciaram a constitucionalização de um projeto nacional permeado pela
confrontação entre pautas localizadas, de fundo regionalistas, e o ímpeto governista de
centralização política. Ao tempo em que Norte defendiam o centralismo político, estados do
Sul buscavam maior autonomia em relação a União. Tais disputas se expressaram em diversos
pontos debatidos pela Constituinte, e um desses envolveu a inclusão do combate à seca no texto
constitucional.
A empreitada constitucional e a consequente abertura política animaram antigas
contendas oligárquicas interessadas em conquistar espaços a nível regional e nacional. No
Ceará, que se colocara ao lado do Governo Provisório durante a “Guerra Paulista”, a questão
em torno da necessidade de constitucionalizar o regime discricionário implantando por Vargas,
rapidamente deu início a uma disputa acirrada. Enquanto o Comitê cearense da AL, em nome
dos liberais cearenses, defendia a conciliação política através do retorno ao regime
constitucional, o grupo político ligado ao Clube 3 de Outubro e setores da impressa entendiam
a constitucionalização como a abertura para o retorno do poder oligárquico. Em artigo publicado

Gerais; Artur Ribeiro, mineiro; Prudente de Morais Filho, de São Paulo; Agenor de Roure; João Mangabeira,
da Bahia; Oliveira Viana e o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Cf. GOMES, Ângela de Castro. Verbete
Constituinte. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-
nacional-constituinte-de-1934. Acesso em: 19 nov. 2019. Ainda segundo Gomes, Artur Ribeiro e Oliveira
Viana se retiraram da subcomissão antes da conclusão do texto do anteprojeto. Foram substituídos por Castro
Nunes e Solano da Cunha.
205

no Jornal O Povo, de 9 de dezembro de 1931, o escritor Leonardo Mota bradou contra a


Constitucionalização: “[...] querem novamente oligarquizar o Brasil. Outra coisa não significa
esse açodamento interesseiro dos correligionários do sr. Washington Luís em prestigiarem o
movimento em prol da prematura volta do país ao regime constitucional”. 500
O Interventor Capitão Carneiro de Mendonça, a exemplo dos irmãos Fernandes e Juarez
Távora, inicialmente atribuiu elementos da velha política ao movimento de
constitucionalização. Mas, diante da irremediável saída constitucional, os revolucionários
nortistas, não só no Ceará, repensaram seus posicionamentos. Os interventores de Pernambuco
e Bahia, Lima Cavalcanti e Juraci Magalhães, respectivamente, eram expoentes do grupo mais
numeroso que “encampam o processo de constitucionalização e, embora considerando-se um
mal necessário, assumem, na prática, as medidas impostas pelo momento”. O Interventor
cearense, Carneiro de Mendonça, manteve-se junto a parcela minoritária de “posição de
neutralidade e distância, coerentes com a prática política desenvolvida anteriormente”, atitude
que exprimia seu posicionamento diante da política local, o que lhe rendeu severas críticas. 501
Diante dessa postura, inclusive, Carneiro de Mendonça foi acusado de estar relacionado em
demasia com a Liga Eleitoral Católica, o que fez com que o Interventor perdesse boa parte do
apoio ligado ao setor revolucionário, acirrando animosidades com o grupo político capitaneado
pelos Távora, elementos esses que compuseram o contexto para sua saída da Interventoria
cearense.
Em meados de 1932, o Clube 3 de Outubro que reunia estes e outros sujeitos saídos das
fileiras tenentistas, conclamou seus congêneres Brasil afora a se mobilizarem em torno de
programa único: o ajuntamento pelo Brasil. No entanto, o plano não vingou. Com a
aproximação do período das eleições, o Clube se desdobrou em dois grupos: o Partido Social
Nacionalista (PSN), que professava a defesa da produção e da taxação de grandes latifúndios,
e no Partido Social Democrático (PSD), que, apoiado por Fernandes Távora e Juarez Távora,
tinha o objetivo de criar conselhos técnicos para orientar o governo, bem como sindicalizar
classes e ampliar direitos trabalhistas.502 Nesse contexto, interventores e revolucionários dos

500
Jornal O Povo, de 9 de dezembro de 1931. Apud. MONTENEGRO, F. Aberlado. Os Partidos Políticos do
Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará. 1980. P. 119 – 123.
501
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. P. 358-359.
502
No Ceará, estado que contava com cerca de 1.600.00 habitantes, em meio a essas disputas, agitações burguesas
e proletárias, se deu uma profusão de partidos e chapas interessadas em concorrer para a Constituinte: PSD,
LEC, Partido Republicano Democrata, Partido Integral Nacionalista, Partido Agrário, Ceará “Irredento”,
Partido Economista e o Coligação dos Funcionários Públicos. O Partido Republicano Nacionalista (PRN),
herdeiro do antigo Partido Republicano Conservador, defendeu o incremento da produção nacional. O grupo
em torno do antigo Partido Democrata se reuniu com a denominação de Partido Republicano Democrata
206

estados alinhados no bloco do Norte fundam agremiações mais ou menos independentes entre
si, como por exemplo, o Partido Nacional Socialista do Piauí, o Partido Republicano do
Maranhão, o Partido Liberal do Pará, o Partido Progressista da Paraíba e o Partido Social
Democrático (PSD) do Espírito Santo, da Bahia, de Pernambuco e do Ceará. Houve, “assim,
uma inversão na ‘ordem dos fatores’ para a montagem do tão sonhado partido nacional
revolucionário”.503
Quando em maio de 1933 o pleito para a Constituinte Federal foi disputado no Ceará
por oito partidos políticos e três candidatos avulsos, que somaram um total de 41 candidaturas,
as dez vagas propostas ao estado foram ocupadas por candidatos de apenas dois partidos: 6
candidatos eleitos pertenciam a Liga Eleitoral Católica 504 e 4 eram do PSD, delimitando os
termos principais da disputa política do período no Ceará.505
A bancada do Norte tinha expressividade, pois representava quase a metade da bancada
nacional. Como indica Hélio Lopes, o bloco regional saiu do processo com força política
suficiente para imprimir sua marca na Assembleia Nacional Constituinte. Outro ponto
relevante, como afirma Lopes, é que o resultado final do pleito anunciou a perca de expressão
política de parte dos Interventores, “o que mostra o enfraquecimento dos revolucionários
nortistas, construído a partir da liderança de Juarez Távora”. Esses elementos indicam ainda
uma tendência eleitoral favorável ao Governo Provisório, mas deixava margem para negociação
entre Norte e Vargas: “A Constituinte seria uma arena de disputas tão ou mais imprevisível, do
que a das eleições, estando sujeita a negociações e a reconfigurações de forças diversas”.506

(PRD); Grupos Comerciais fundaram o Partido Economista, de cárter conservador, filiado ao Partido
Economista do Brasil; Um grupo independente lançou chapa própria denominada “Ceará Irredento”; Em
Aracati, em abril de 1933, fundaram o Partido Libertador Aracatiense; além desses, destaca-se a movimentação
de grupos católicos em defesa de medidas favoráveis a religião. Nesse ensejo, fundou-se a Liga Eleitoral
Católica (LEC) no Rio de Janeiro. A sucursal cearense da LEC foi inaugurada em dezembro de 1932, mais
tarde transmutada em partido político, que polarizou o debate principalmente contra o PSD, acusados pelos
setores religiosos de comunistas e divorcistas. MONTENEGRO, F. Aberlado. Os Partidos Políticos do Ceará.
Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará. 1980. P. 122.
503
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 267.
504
No Ceará, a Liga Eleitoral Católica, “não representava propriamente uma oposição ao interventor ou ao governo
central, mas uma oposição ao grupo Távora, articulador do PSD”. PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte:
uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política:
partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. P. 369.
505
Em 1934, a LEC elegeu 7 candidatos nas eleições para a Câmara Federal e para a Constituinte Estadual, 17.
Em maio de 1935, Menezes Pimentel é eleito Governador do Ceará, graças ao apoio da LEC, que elegeu ainda
Edgar Arruda e Waldemar Falcão para o senado federal.
506
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 285.
207

A vivacidade da bancada do Nordeste e as disputas presentes na Assembleia


Constituinte, quanto a eleição de Vargas, ficaram demonstradas na viagem feita por Vargas ao
Norte do país, única incursão do tipo naquele período. Vargas esteve na região entre os dias 22
de agosto e 5 de outubro de 1933, passou pelos Estados do Espírito Santo chegando até o Pará,
excluindo-se do roteiro programado apenas o Amazonas. Vargas visitou pequenas e grandes
cidades, participando de inauguração de obras contra as secas e muitas outras cerimônias e
homenagens, mas, o cerne da exposição política era conquistar a simpatia do povo e da bancada
nordestina para a eleição do novo Presidente da República, assim, “enquanto a candidatura de
Vargas ganhava força no Norte, o Ministro da Agricultura via sua liderança esvair-se na
região”.507
Foi Juarez Távora que se encarregou da articulação política do Norte, imediatamente
após a guerra civil. Juarez comunicou-se com interventores e revolucionários nortistas através
de “boletins informativos”, pelos quais apresentava propostas para o Norte baseadas na
retomada da coesão política dos nortistas, visando a Constituinte, e também, de maneira a
garantir o futuro político da Região. Para ele, a continuidade do ideário revolucionário dependia
diretamente das decisões tomadas pela Constituinte. Dessa maneira, urgia superar a inicial
sanha contrária à reconstitucionalização do país, e aviar os arranjos necessários para dela tirar
o melhor proveito. Assim, Távora passou a incentivar a participação eleitoral e o engajamento
direto dos Interventores, garantindo a permanência da obra revolucionária e a retomada do
espaço político do Norte.508 Nesse contexto, os ventos da mudança sopraram sobre o projeto
político nortista, “ao contrário do que foi constantemente pregado e praticado antes da Guerra
de 1932, participar ferrenhamente do jogo eleitoral, arregimentando eleitores através de acordos
políticos diversos, inclusive com lideranças locais antes rechaçadas”. 509
Juarez Távora foi um Ministro bastante atuante na Constituinte. Enquanto Ministro de
Estado, Juarez tinha o direito de participar mas não podia votar no pleito, restando a ele, inteirar-
se nos trabalhos da Assembleia, engajando-se em articulações internas e externas aos trabalhos
da Constituinte. Além da ascendência sobre a parte pessedista da bancada cearense, Távora
aproximou-se da bancada pernambucana através da ajuda de Lima Cavalcanti, Interventor de

507
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. P. 280.
508
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. P. 361.
509
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 263.
208

Pernambuco, outro articulador das pautas dos estados do Nordeste.510 Naquele momento, já se
observava a diminuição da ascendência de Távora no jogo político. Desde sua chegada ao
Ministério da Agricultura, Juarez começou a renegociar os termos de sua relação com o grupo
do Norte, eventualmente frustrando muitas expectativas de maiores investimentos na Região
por intermédio da pasta. Em torno das questões da seca, a figura do cearense Távora é
amplamente eclipsada pela projeção do paraibano José Américo de Almeida, que esteve à frente
do Ministério da Viação no período de maior combate à calamidade pelo Governo Provisório,
entre 1932 e 1933.
Antes e durante a Assembleia Constituinte, Juarez Távora participou de eventos
políticos e sociais para organização de pautas e esforços políticos. Comandou o Congresso
Revolucionário do Norte que “tinha por objetivo principal não só articular as forças outubristas,
mas tentar traçar uma orientação uniforme para as bancadas federais na futura Assembleia
Nacional Constituinte”, chegando a acertarem, ao final do evento, a sugestão para que o “chefe
do governo que modifique a comissão constitucional, nela incluindo representantes dos partidos
do Norte”.511 O intento, assim como a reunião sob a bandeira do PSD, não colheu os frutos
desejados. Até mesmo o Interventor do Ceará, Carneiro de Mendonça, declinou ao convite de
participar do evento.
Apesar da aparente desconexão entre os agentes políticos do Bloco do Norte, a bancada
possuía expressividade e promoveu uma intensa participação política na Assembleia, o que se
expressa, ainda, no sucesso da inclusão da pauta da seca no texto constitucional. A união em
volta da defesa desse tema mobilizou argumentos de cunho econômico que abarcavam olhares
para o passado e o futuro da região. Além disso, a pauta representava parte da construção de
uma identidade regional que se expressou ao longo da constituição do grupo político do
“Norte”, influenciados vastamente por Juarez Távora ao longo do Governo Provisório. A vitória
da constitucionalização da “questão do Nordeste” representou assim, uma derradeira vitória,
mesmo que fugaz dessa aliança.

510
“Para assegurar conquistas revolucionárias, bem como defender pontos [de] vista prometidos [pelo] movimento
1930 (...), promovi aproximação bancada pernambucana com Juarez afim [de] obter maior harmonia [de] ação.
Como, entretanto, julgo indispensável concurso de todos (...) que se interessam sincera [e] verdadeiramente
pelos destinos país, quero sugerir-lhe igual aproximação da bancada desse estado (...). Saliento não se trata de
interesses regionais, mas nacionais, em benefício [da] obra revolucionária. Arquivo Juarez Távora – Cpdoc-
FGV dpf 1932.01.00/1 (43/147). Datado de 23 de novembro de 1933. Enviado para Magalhães Barata, Landri
Sales, Martins Almeida, Mario Câmara, deputado Francisco Veras, Afonso de Carvalho, Augusto Maynard,
Juraci Magalhães e Punaro Bley. Apud HELIO Lopes. P 293.
511
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 367.
209

No Ceará, os Távora se mobilizaram para a construção do PSD, e também agitaram


pautas de constitucionalização dos socorros aos Estados atingidos pelas secas através do Clube
3 de Outubro. Em nível nacional, articularam-se também em volta de agremiações civis de
relevo, como a Sociedade Amigos de Alberto Torres. Nas páginas de jornais cearenses e
cariocas, surgem indícios da participação dos cearenses nos debates constitucionais. O folhetim
Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, por exemplo, noticiou como Fernandes Távora estivera
discutindo a necessidade de tornar o “problema das secas” uma obrigação nacional. Na ocasião,
uma reunião da Sociedade Amigos de Alberto Torres, Fernandes Távora foi acompanhado por
outros membros da agremiação, como Alcides Bezerra, que também se colocou favorável a
inclusão do histórico problema nordestino no texto constitucional.512 Movimentações como
essa fizeram da SADAT um importante elemento para a constitucionalização do histórico
problema das secas na Carta Magna de 1934.
Até a adição desse artigo na Constituição, muitos debates sobre a questão foram
suscitados dentro e fora da Assembleia Constituinte. No artigo “A marcha para a Constituinte”,
a inclusão das obras contra as secas no texto constitucional é debatida. Nele, falando ao Diário
de Pernambuco, o Interventor Lima Cavalcanti expendeu considerações a respeito do
importante assunto.

Conquanto não constitua o assunto, em rigor, matéria constitucional, nada impede que
a nossa futura carta política torne obrigatória, em dispositivo expresso, a aplicação de
um plano contínuo e progressivo de obras contra as secas, para benefício da região
nordestina e consequentemente de todo o nosso país. Julgo um dever imperioso de
todos os delegados nortistas à Constituinte unirem-se em torno de tão importante
problema afim de, ainda mais forte, assegurarem o pleno êxito da iniciativa de se
consagrar ao combate às secas um caráter de obrigação nacional. 513

Não havia dúvidas quanto à atuação do Norte nesse sentido, que na opinião de
Cavalcanti, “há de ser das mais brilhantes e eficazes, tendo mais a animá-la”. O Interventor
demonstra que a legitimidade da campanha perpassava o sentimento patriótico, e a preocupação
dos constituintes em reconhecer que o progresso da região esteve entravado pela falta de uma
assistência regular. A constitucionalização da questão da seca era “incontestável direito”. 514
Falando à Assembleia Constitucional, Irineu Joffily515 esclareceu alguns pontos sobre a
recepção do anteprojeto no que se referia ao combate à seca no Nordeste. Para ele, a parte do

512
Jornal Correio da Manhã de 4 de janeiro de 1933.
513
Jornal Correio da Manhã, 18 de janeiro de 1933.
514
Ibidem.
515
Irineu Joffily nasceu em Campina Grande (PB) no dia 14 de setembro de 1886, filho de Irineu Ciciliano Pereira
Joffily e de Raquel Olegário de Torres Joffily. Seu pai criou e adotou o último sobrenome em 1864, quando
210

anteprojeto relativo às secas não satisfazia as aspirações dos estados flagelados, e, assim, não
atendia aos anseios do Brasil inteiro “desejoso de pagar uma dívida há tanto tempo reclamada”.
Como nordestino, Joffily se disse conhecedor da terra e sua gente, bem como da iniquidade de
governos que relegavam o devido apoio à região onde a resistência do homem é provada pelo
seu sofrimento e o seu valor medido pela coragem com que entra em duelo com a natureza, na
defesa do torrão amado: “O anteprojeto, art. 128, § 1º diz: a defesa contra a seca será permanente
e os respectivos serviços custeados pela união. Serão custeados como? E a permanência como
será?”516
A crítica concentrava-se sobretudo, na pouca assertividade do texto. Descrito como
“vago”, o dispositivo não obrigava futuros governos a manterem um serviço ajustado com os
imperativos da vida em áreas de secas periódicas. Discorrendo diretamente à bancada do Norte,
Joffily, diz:
De promessas estão cheios os sertanejos e de realizações desconfiados ante a falta de
continuidade dos serviços reclamados. Agora todos esperam que a constituinte em vez
de um dispositivo vago, assuma compromisso formal e solene, tornando líquida e
tangível a dívida de tantos anos. 517

Para a bancada, formada sobretudo por representantes da Paraíba, de Pernambuco e do


Ceará, notadamente engajada na pauta da inclusão da seca no texto constitucional, o artigo
incluído no anteprojeto equivalia a mais uma promessa, afinal, não fixava na Constituição o
ponto mais decisivo para o futuro dos Estados reconhecidamente mais pobres da Federação: a
assistência da União como obrigação incontornável. Como indica Lopes, “Portanto, é razoável
afirmar que as bancadas nortistas chegaram ao final da Constituinte do mesmo modo que a
pernambucana, um estado no qual o partido situacionista conseguiu 15 das 17 cadeiras em
disputa, ou seja, uma situação confortável para uma ação conjunta bem-sucedida”.518

era acadêmico de direito. Posteriormente, foi promotor público, juiz municipal, deputado provincial e geral
durante a última legislatura do Império, fundador e diretor da Gazeta do Sertão, jornal que funcionou em
Campina Grande entre 1889 e 1891, sendo fechado por ação policial. No ano seguinte, escreveu Notas sobre a
Paraíba, editado no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, com prefácio de Capistrano de Abreu. Seu irmão,
João Irineu Joffily foi bispo de Manaus e arcebispo de Belém. Em 23 de novembro, o Governo Provisório
chefiado por Getúlio Vargas confirmou a indicação de Joffily para o governo potiguar em maio de 1933,
elegeu-se pela Paraíba deputado à Assembleia Nacional Constituinte na legenda do Partido Progressista,
fundado pouco antes sob orientação de José Américo de Almeida e amplamente vitorioso nesse pleito. Membro
da comissão executiva desse partido, Joffily foi o líder da bancada paraibana que integrou o bloco da maioria
parlamentar na Constituinte e, nessa condição, participou da escolha do nome do deputado baiano Antônio
Garcia Medeiros Neto para o exercício das funções do líder da maioria. In. FGV. Verbete Irineu Joffily.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joffily-irineu
516
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 566.
517
Ibidem.
518
LOPES, p. 284.
211

Até aquele momento, o país inteiro já tivera notícias pelas fartas publicações e não
pequeno número de livros, da calamidade de 1932 e de anos anteriores. Mesmo assim,
continuava válido perguntar o que de fato se tem feito para que não se repetissem
indefinidamente os quadros dantescos que tanto envergonhavam a nação.
Cientistas e estudiosos conjecturaram quais as causas do fenômeno da seca: direção dos
ventos, impermeabilidade do solo, ausência de matos, declividade forte do terreno... No século
XX, a açudagem se estabilizara como eixo principal do planejamento para superação dos efeitos
das estiagens. Antes disso, os socorros haviam sido pautados nas distribuições de escassos
víveres, depois, iniciativas de migração e formação das frentes de trabalho pautaram os termos
do combate à seca. No entanto, esses estudos e políticas mostraram-se insuficientes diante,
sobretudo, de sua aplicação inconstante, justificando o intento da bancada nordestina em
garantir a perenidade das ações da União. Dessa maneira, garantiriam nada menos que atenção
e verbas independentemente da existência de catástrofes e mortes.
A partir da fala de Joffily, Xavier de Oliveira,519 deputado cearense na Constituinte pela
Liga Eleitoral Católica, também se pronunciou constatando que até mesmo o promissor governo
de Epitácio Pessoa não obteve êxito definitivo no combate aos efeitos da seca por não garantir
a continuidade de suas obras: “entendo o erro foi não se ter continuado sua execução e nem
ampliado o plano que ele começou”. 520 De fato, após o governo de Epitácio Pessoa e até 1930
passaram-se décadas de pouco investimento no Nordeste, mesmo em períodos de seca. Nessa
ocasião, obras suspensas, maquinário e materiais foram perdidos e a expectativa de manutenção
contínua de um plano definitivo desapareceram.
A respeito do desempenho do Governo Provisório durante a seca iniciada em 1930, e
ampliada em 1931 e 1932, os parlamentares empenharam gratidão aos esforços de Vargas,
destacando sempre a atuação do Ministro José Américo, titular da pasta da Viação. Porém,
apesar de confirmarem a promoção de obras, socorros e largos repasses para o Nordeste,
persistiam no argumento de que, sendo a seca um problema recorrente, o que seria da sorte do

519
Antônio Xavier de Oliveira nasceu em Juazeiro do Norte (CE) no dia 9 de outubro de 1892, faleceu no Rio de
Janeiro, dia 6 de fevereiro de 1953. Formou-se psiquiatra pela Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro, tendo
sido ainda estudioso dos problemas do Nordeste, e escritor, com destaque para a obra Beatos e cangaceiros
(1920). Elegeu-se deputado pelo Ceará à Assembleia Nacional Constituinte de 1933, pela LEC. “Na
Constituinte, defendeu vigorosamente, ao lado de Miguel Couto, a proibição da entrada de imigrantes japoneses
e de todos os grupos de cor, especialmente negros, no Brasil. Promulgada a nova Carta (16/7/1934), teve o
mandato prorrogado até abril de 1935. Foi eleito deputado federal pelo Ceará na mesma legenda, em outubro
de 1934 exercendo a função até 1937. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/antonio-xavier-de-oliveira.
520
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 568.
212

nordestino se esse impulso fosse interrompido por políticos menos sensíveis às agruras do
povo?
Boa parte da mobilização para que o problema das secas fosse incluído na Constituição
foi executado pela Sociedade Amigos de Alberto Torres. Para isso, a associação se dispunha a
costurar uma rede pela causa, envolvendo estudiosos, políticos e jornais. O Jornal Correio da
Manhã já indicava essa movimentação desde 1932. Segundo nota publicada no jornal, o Dr.
Alcides Bezerra, membro da SADAT, recebeu e publicizou o seguinte telegrama:

Recife – 26 – Atendendo ao apelo dessa benemérita agremiação em favor da inclusão


do problema das secas na futura constituição o “Diário de Pernambuco” iniciou ontem
intensa campanha em todo o Nordeste nesse sentido. Esperamos que v. ex. remeta
com urgência, conferencias e estudos da sociedade Alberto Torres sobre o assunto,
afim de ampliarmos nosso documentário de publicidade. Atenciosas saudações. Nigro
José dos Anjos. 521

Os intelectuais reunidos na SADAT apoiavam uma reformulação constitucional


compatível com os escritos de Torres, autor que pressupunha a superação da Constituição de
1891, que, segundo sua leitura, permitiu a proliferação dentro da institucionalidade de
oligarquia política.522 Além disso, outro elemento que compôs a defesa da responsabilização da
União para com a seca no Nordeste pelos membros da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres,
assentavam-se na premissa torreana quanto ao pacto federativo. Partindo desse ponto, apesar
de implicar a responsabilidade da União no problema nordestino, a campanha da SADAT não
eximiu as esferas estaduais de suas responsabilidades para com o problema. Para os torreanos,
a ideia era criar uma nova mentalidade no Nordeste, fosse a partir do ordenamento de seu
planejamento financeiro, fosse na formatação de conteúdo específico a serem ensinados na
escola. Urgia que naquela região tudo girasse em torno do problema da seca, entendido como
o seu problema central.
No Jornal Correio da Manhã de 6 de janeiro de 1933, o debate sobre a inclusão do
problema das secas na futura Constituição é mais uma vez relacionado à ação da Sociedade dos
Amigos de Alberto Torres. Dirigindo-se ao Ministro da Justiça, o Dr. Belisário Penna, o
Presidente da associação, enviou ofício pedindo que a comissão responsável pela redação do

521
O Jornal Correio da Manhã, de 28 de dezembro de 1932.
522
Cf. Hansen, Thiago Freitas Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas,
Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018. P. 75 Hansen indica que “Torres, que na verdade se
constitui como um Projeto de Revisão Constitucional publicado como apêndice de "A Organização Nacional"
em que se apresentam uma série de propostas e instrumentos institucionais e jurídicos capazes, de acordo com
ele, de subsumir os diagnosticados problemas brasileiros à institucionalidade jurídica, dando-lhes orientação e
resposta. (HANSEN, 2018, p. 69).
213

texto do anteprojeto constitucional considerasse a urgência da questão para o país. O documento


foi assinado por nomes como Juarez Távora, Epitácio Pessoa, Cavalcanti de Albuquerque,
Fernandes Távora, Oswaldo Paranhos e Oliveira Vianna,523 um grupo ciente de sua relevância
na cena intelectual e política do período que optou por lavrar mais que uma demanda pela causa
da seca, mas sim, propor um artigo constitucional a ser apreciado pelos responsáveis pelo
anteprojeto. A indicação estava assim redigida:

Art. – A Constituição, tomada em consideração a necessidade de conservar as


reservas econômicas do país, bem como os princípios de humanidade, considera que
o problema das secas do nordeste obriga a criação de um serviço nacional permanente.
Parágrafo – Os Estados compreendidos na zona semiárida do Nordeste são obrigados
a reservar no mínimo 10% dos seus orçamentos para, nos anos de seca, fazerem face
às despesas ordinárias da administração e à assistência dos flagelados.524

Como é possível observar, o texto sugere que os próprios estados fossem responsáveis
pelos socorros aos flagelados. Os torreanos propuseram, portanto, uma mudança bastante
relevante da lógica de socorros até então realizada: ao invés do oscilante ônus nacional que
consumia parte das reservas do país em benefício dos auxílios aos flagelados, devia a União,
garantir por meio da constitucionalização da questão, o planejamento contínuo de combate à
seca, sobretudo, no âmbito estadual. No entanto, a proposição torreana diferiu da proposta
incluída no projeto de constituição, enviado à Assembleia Constituinte.
Desta feita, problemas históricos foram reavivados a fim de oferecer a construção de
respostas. Nesse sentido, a questão da seca, reconhecida como “O Problema do Nordeste”,
entrou em pauta, afinal, a enorme e populosa porção territorial brasileira assolada pela seca
embarcara na Revolução de Outubro e, ainda em meados da década de 1930, ofereceu seu apoio
ao governo de Getúlio Vargas. Assim, a questão foi incorporada ao texto redigido à Comissão
do Itamaraty, sendo alocada no título IX – da ordem econômica e social, no dispositivo número
129, indicava:

a lei orientara a política rural no sentido da fixação do homem nos campos, a bem do
desenvolvimento das forças econômicas do país. para isto, a lei federal estabelecerá
[...] um plano geral de colonização e aproveitamento das terras públicas, sem prejuízo
das iniciativas locais, coordenadas com as diretrizes da união. Na colonização dessas
terras serão preferidos os trabalhadores nacionais.
§ 1º a defesa contra a seca será permanente e os respectivos serviços custeados pela
união.

523
Também subscreveram o documento Ary Parreiras, Belisário Penna, Fidelis Reis, Porfírio Soares Neto, A.
Sabóia Lima, Edgar Teixeira Leite, Alcides Gentil, Mendonça Pinto, Hélio Gomes, Benjamim Monteiro da
Costa, Armando Magalhaes Correa, Virgílio Campello, Whady Nassif, José Maria Villela, Victorino Freire,
Honório Monteiro Filho, Idelfonso Simões Lopes, Alpheu Domingues, Alberto J. de Sampaio, Benedicto
Raymundo, Lucio de Souza, Cunha Baima, Carlos Pontes, Antônio de Arruda Câmara e Raul de Paula.
524
Jornal Correio da Manhã de 6 de janeiro de 1933.
214

§ 2º compete à lei federal regular a emigração e a imigração, favorecendo ou limitando


as correntes imigratórias uteis ou nocivas aos interesses da nação.
§ 3º os serviços de vigilância sanitária e vegetal e animal serão federais, podendo a
união proibir, condicionar aos estados a legislação complementar.525

Não por acaso, a emenda sobre as secas foi incorporada ao título que tratava da vida
econômica e social, balizando ações imperativas para a condução da vida rural. A emenda que
versava sobre migração, vigilância sanitária e iniciativas de colonização normatizava pontos
historicamente associados à seca. Mas, o que mais se destaca na formulação é a indicação do
caráter permanente dos socorros, ponto compatível com a demanda da região por mais espaço
e oportunidades de inserção da economia nacional. Dessa maneira, buscava-se mais que o
socorro emergencial alcançado somente em períodos de fome e calamidade. Intentou-se
assegurar aos brasileiros nordestinos a inserção na economia-mundo, a garantia de meios para
o direito ao trabalho, discussão bastante disseminada no período e adensado ao longo dos anos
seguintes através de medidas em torno do trabalhismo varguista.
Seja nos jornais ou nas tribunas de debate da Assembleia Constituinte, a campanha pela
constitucionalização do problema das secas seguiu sendo pautada, sobretudo, nos termos
colocados pela Sociedade Amigos de Alberto Torres. Deter-nos-emos ao postulado oferecido
pela associação para dimensionar os caminhos que levaram a efetiva inclusão da seca na
Constituição de 1934.
A SADAT organizou a defesa da proposta para que constasse da futura Constituição,
dispositivos relativos ao problema das secas que afligia o Nordeste brasileiro em dois pontos
principais. Em síntese, defendia a continuidade das obras contra as secas por parte da União e
a obrigação dos Estados da zona flagelada de reservarem, pelo menos, dez por cento das suas
rendas nos anos sem crise, para as despesas ordinárias e essenciais aos flagelados nos anos de
seca.
Os termos da posição da SADAT foram utilizados pelos Deputados do Partido Social
Democrático à Assembleia Nacional Constituinte pelo Ceará. Um deles, o jurista Pontes Vieira
que, ao lado dos irmãos Távora, foi um dos fundadores do PSD, pelo qual foi candidato. Assim
como o clã Távora, Pontes Vieira defendeu a inclusão da pauta da seca na Constituição,
evocando argumentos do grupo torreano. Na ocasião de sua fala na tribuna da Constituinte,
Vieira recorreu a leitura da tese apresentada pelo Dr. Alcides Bezerra ao primeiro Congresso

525
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Publicador Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1935, p. 390.
215

Brasileiro dos Problemas do Nordeste, promovido pela Sociedade Amigos de Alberto Torres,
no Rio de Janeiro. 526
O estudo de Alcides Bezerra ganhou ampla repercussão em meio aos trabalhos da
Constituinte, chegando a extrapolar o circuito intelectual e político, sendo publicado no Jornal
do Comércio, alcançando assim um público mais amplo. Falando em nome da SADAT, Bezerra
argumentou que, superar o problema das secas significava resolver a organização econômica
do Nordeste. A questão da seca, segundo Bezerra, estaria ainda intimamente ligada à resolução
da organização dos trabalhadores brasileiros, pois as queixas de sua numerosa população
poderiam resultar em “um foco de reivindicações proletárias, cuja atuação será enorme, cuja
influência nos destinos do Brasil será imensa”. 527 Naquele momento, a demanda institucional
pela organização do trabalho concorreria para afastar as possibilidades de eclosão de
movimentos socias de contestação.
A influência dos escritos de Alberto Torres conferiu à proposta de constitucionalização
da “questão do Nordeste”, elementos quanto a distribuição humana no território brasileiro, bem
como da relação desses com o meio ambiente. O texto aprovado pela SADAT, utilizado pela
bancada nordestina, indicava que o problema da seca descrito como “problema da geografia
das calamidades” deveria ser incluído na Constituição, sob a justificativa de ser essa uma
“medida de política antropogeográfica”.528 Essa premissa partia do entendimento da seca como
uma realidade constante em grande trecho do território nacional: “pensar que a última seca foi
o último elo de uma cadeia não se coaduna com a mentalidade científica dos nossos dias. Assim,
cabia prever outras muitas, cada vez mais terríveis se não forem tomadas medidas para minorar
os seus efeitos”. 529

526
O cearense João Jorge de Pontes Vieira nasceu na cidade de Maranguape, em 14 de junho de 1894. Formou-se
como bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Ceará. Exerceu o cargo de promotor
público, professor do Liceu do Ceará e deputado constitucionalista. Pontes Vieira esteve engajado no processo
revolucionário de outubro de 1930. Sua ação na constituinte foi marcada pela defesa da provisoriedade da
Constituição e de um modelo eclético de governo, com características do parlamentarismo e do
presidencialismo. Durante o governo Provisório, Pontes foi nomeado delegado de polícia da revolução em
Fortaleza e membro da Comissão de Sindicâncias (Tribunal Revolucionário) no estado do Ceará entre os anos
de 1931 a 1933. Em 1934 foi eleito deputado federal pelo Ceará, logo depois, em 1937, teve seu mandato
retirado. Exerceu ainda os cargos de desembargador e procurador da Fazenda e ocupou uma das cadeiras do
Instituto dos Advogados do Ceará e da Academia Cearense de Letras. Cf. FGV. Verbete. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/vieira-joao-jorge-de-pontes. Acesso em: 20
nov. 2019.
527
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 396.
528
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 396.
529
Ibidem.
216

Dentro dessa argumentação, o crescimento populacional tornaria cada vez mais difícil
socorrer os necessitados no momento do flagelo, se não fossem realizadas obras de transportes
e os auxílios para alimentação e abastecimento d’água. Assim, o êxito no combate à seca não
resultaria na suspensão das ações naquele território, pelo contrário. A partir dele verificar-se-ia
o crescimento exponencial da população, o que exigiria a permanência dos cuidados com o
consumo e produção, assistindo, assim, “uma população laboriosa, genuinamente brasileira, em
que Euclides da Cunha era a rocha viva da nacionalidade.” Dessa forma, respondiam
afirmativamente a primeira tese proposta pelo Congresso do Nordeste: “deverão ter as obras
contra as secas caráter nacional e permanente?” – sim. 530
Mais tarde, esse argumento foi retomado por Xavier de Oliveira, Deputado cearense na
Constituinte eleito pelo Ceará pela Liga Eleitoral Católica. Oliveira se pronunciou sobre a
questão das secas, argumentando na direção das proposições da SADAT. Para ele, cabia a
União impedir que vasta zona do seu território, “habitada por gente laboriosa e digna”, se
despovoasse com a periodicidade de estações irregulares. 531
A observação científica e proteção da natureza foi também importante para a
composição da defesa da constitucionalização da questão. Até aquele momento, as medidas
realizadas pela União nos estados assolados pela seca mesclavam socorros emergenciais como
a distribuição de alimentos, ações de médio e longo prazo como a construção de rodovias,
ferrovias e açudes, esses voltados à racionalização da produção nordestina. No entanto, naquele
contexto de ampliação da pauta ambiental, ações de proteção dos recursos naturais compuseram
o conjunto de argumentos em prol da inclusão do combate à seca na Carta Magna.
No texto de Alcides Bezerra, o reflorestamento aparece como medida válida junto a
outras tantas já experimentadas ao longo dos anos. Como destaca a passagem lida pelo
deputado constituinte Pontes Vieira,

[...] a racionalização da produção numa vasta região como no nordeste não poderá ser
levada a cabo sem a interferência da união, porque depende de trabalhos de
proteção à natureza, como o reflorestamento, de grande irrigação, de
excepcionais medidas de crédito, de economia e de direitos públicos e privado,
para estabelecer nas partes flageladas um regime sui generis. 532

530
Ibidem.
531
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 568.
532
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 388.
217

Para a SADAT e para aqueles que se utilizaram de seus argumentos em plenário, o


conjunto de novas e antigas ações era o ideal para produzir os efeitos esperados: “a constituição
reservar os meios financeiros para a execução desse plano. Criar-se-á um regime de exceção
por se tratar de fatos de grandes magnitudes, de um problema de vida e de morte para
numerosíssimos cidadãos”.533A argumentação proposta pela SADAT era bastante extensa e
inovadora. Chama atenção também a amplitude de suas ações pelo tema, que envolveram a
realização de reuniões, congressos, publicação de artigos, organização de redes de defesa da
questão que envolveram políticos e intelectuais de vários estados.
Os defensores da constitucionalização do problema das secas precisaram ainda rebater
críticas diversas, uma delas, esteve assentada no entendimento de que tal medida proporcionaria
favorecimento à região que sofria com o flagelo da seca. Esse ponto foi mencionado por Alcides
Bezerra que, representando a SADAT, foi objetivo:

Não se trata de canalizar para o Nordeste todas as reservas da nação, nem de onerar
os cofres públicos nacionais de vultuosos empréstimos, para levar a efeito tais obras,
mas de, com recursos ordinários cuidadosamente aplicados, conservar as obras feitas,
planejar outras, e realizar as mais imprescindíveis, segundo um plano de conjunto. E
para tanto, a união, gastando anualmente cerca de cem mil contos, dentro de vinte
anos teria redimido o Nordeste, valorizado suas terras, afastado do perigo da morte
pela fome e seus laboriosos habitantes, e essas despesas não seriam improdutivas
conforme a experiência de outros povos, e trariam benefícios à coletividade nacional.
534

Apesar da campanha abrangente e fundamentada, críticas como essa foram elaboradas


e difundidas, incidindo sobre elementos diversos do combate à seca. Algumas delas foram
relevantes o suficiente para serem rebatidas no documento avalizado pela SADAT no
Congresso Brasileiro de Problemas do Nordeste, reverberado mais tarde no púlpito da
Constituinte. Segundo o posicionamento da SADAT utilizado na Assembleia, “Não se trata de
acudi-lo com os recursos extraordinários com que se acodem outras calamidades que aparecem
raramente, inesperadamente, como as grandes pestes, os terremotos e outras”. 535 A ritmicidade
da calamidade impactava na capacidade produtiva do povo, repercutindo, assim, na sua
envergadura econômica e, desta forma, interessando a todo o mercado nacional. Portanto, não
se tratava de amparar somente os estados que sofriam com a seca dando-lhes recursos
extraordinários, mas de atuar permanentemente pelo Brasil.

533
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 389.
534
Ibidem.
535
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 383.
218

Tomando a inconstância das ações contra as secas como realidade, a argumentação


insistiu que as obras necessárias para “transformar o aspecto físico e a vida econômica do
Nordeste” deveriam ser de tal vulto que só poderiam ser levadas a efeito dentro de muitos anos,
não devendo ser interrompidas, “como aconteceu em 1923, com graves prejuízos para o país e
para os nordestinos em particular”. 536 Iniciadas sistematicamente, em 1909, com a criação da
Inspetoria de Obras Contra as Secas, as intervenções naquele momento ainda se encontravam
incompletas e atrasadas e, mesmo tendo mudado efetivamente a paisagem nordestina e salvado
milhares da fome, o excesso de interrupções administrativas convergiam para que essas obras
não se realizassem com a eficácia desejada.
Após meses de mobilizações, debates e críticas, a nova Constituição foi promulgada no
dia 16 de julho de 1934. Nela, em seu TÍTULO VIII - Disposições Gerais, o combate à seca foi
finalmente contemplado no artigo n.º 177:

Art. 177 - A defesa contra os efeitos das secas nos Estados do Norte obedecerá a um
plano sistemático e será permanente, ficando a cargo da União, que dependerá, com
as obras e os serviços de assistência, quantia nunca inferior a quatro por cento da sua
receita tributária sem aplicação especial.

§ 1º - Dessa percentagem, três quartas partes serão gastas em obras normais do


plano estabelecido, e o restante será depositado em caixa especial, a fim de serem
socorridos, nos termos do art. 7º, nº II, as populações atingidas pela calamidade.

§ 2º - O Poder Executivo mandará ao Poder Legislativo, no primeiro semestre de


cada ano, a relação pormenorizada dos trabalhos terminados, e em andamento, das
quantias despendidas com material e pessoal no exercício anterior, e das necessárias
para a continuação das obras.

§ 3º - Os Estados e Municípios compreendidos na área assolada pelas secas


empregarão quatro por cento da sua receita tributária, sem aplicação especial, na
assistência econômica à população respectiva.

§ 4º - Decorridos dez anos, será por lei ordinária revista a percentagem acima
estipulada.537

O texto considerou de maneira bastante objetiva a principal demanda exteriorizada pelos


agentes defensores da constitucionalização da questão, destacando expressamente o caráter
sistemático e permanente do combate à seca, que ficaria sob responsabilidade da União,
estipulando inclusive, uma quantia específica da sua receita para os socorros. O artigo

536
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 383-384.
537
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Constituição (1934). Brasília: Planalto do Governo.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 25 out.
2019.
219

estimulava o planejamento prévio das ações, preocupação frequente no Ministério da Viação


desde o primeiro momento pós-revolucionário, sob a chefia de José Américo de Almeida.
Naquela ocasião, no entanto, segundo o Ministro, a implementação desse planejamento prévio
foi frustrada pela falta de verbas e pelo acirramento da seca em 1932, que exigiu medidas
urgentes.
Além desses elementos, outros tópicos defendidos pela Sociedade Amigos de Alberto
Torres e por seus filiados foram incluídos no texto constitucional. Tratava-se da previsão de
uma caixa especial para depósito dos valores remanescentes e da responsabilidade tributária de
Estados e Municípios da área de secas para com a assistência econômica à população. O artigo
n.º 177 considerou ainda a histórica reclamação de políticos e intelectuais preocupados com os
socorros públicos diante dos efeitos das secas, indicando a necessidade de apreciação regular
com o andamento das obras, contemplando aí as críticas ao abandono de obras e desperdício de
dinheiro e esforços públicos.
A constitucionalização do problema das secas nesses termos indicou que a mobilização
da classe política, sobretudo nordestina, e de agremiações sociais, inclusive da união entre esses
setores para com a questão da seca, surtiram impacto direto. A consciência da força de
mobilização desses sujeitos figurou inclusive ao longo dos trâmites constitucionais. Como
indica Sousa, ao afirmar expressamente que “Sem a sociedade dos amigos de Alberto Torres a
constitucionalização das obras contra as secas não seria levada a efeito com tanta facilidade”.538
O seu endosso, desde o primeiro momento, garantiu o êxito da ideia.
Percebe-se que o que se iniciou como uma discussão jurídica revelou-se como
proposição econômica e científica a respeito das secas. Naquele momento, havia a profusão de
demandas organizadas a partir das repercussões econômicas, morais e políticas da calamidade.
E esses elementos foram devidamente mobilizados para despertar a consciência jurídica da
nacionalidade quanto às secas. Tal entendimento figurou expressamente no texto da Sociedade
Amigos de Alberto Torres, que embasou parte das falas em defesa da constitucionalização da
questão das secas. Assim, diversas arestas decorrentes dos percalços revolucionários e das
transformações político-administrativas implementadas pelo Governo Provisório convergiram,
compondo a miríade de questões abordadas no debate para a constitucionalização do combate
à seca.
As esperanças de manter acesa a chama pelo investimento da União no território
atingido pela seca, expresso na constitucionalização do combate à seca ruiu logo depois da

538
Annaes da Assembléia Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 397.
220

marcante conquista, assim como esmaeceu a coesão do grupo do Norte após a assinatura da
Carta Magna de 1934. O texto Constitucional de 1934 durou pouco, sendo substituído, em 1937,
por uma nova Constituição outorgada por Vargas, dando início ao Estado Novo. Com isso,
impõe-se nova quebra no conjunto de esforços que buscaram sistematizar e institucionalizar o
combate à seca, coroado na Constituição de 1934.
221

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa investiga a forma como se deu o combate à seca de 1932 no Ceará,
situando historicamente seus termos no processo de conformação do Governo Provisório
varguista (1930-1934). O combate à seca executado ao longo desse período foi marcado pela
movimentação política e social em torno do ajustamento do Estado pós-revolução, pela
participação da região Nordeste no debate político em âmbito nacional e, de uma forma mais
ampla, pelas mobilizações em torno dos usos dos recursos naturais brasileiros e dos rumos
nacionais.
Inicialmente o trabalho de pesquisa abordou os primeiros relatos sobre a crise
climatérica, ainda na vigência do regime político anterior a Revolução. No decorrer do ano de
1930, acompanhamos relatos acerca da escassez de chuvas no interior do Estado, o que motivou
apreensão e disputas políticas.
Após a Revolução de outubro de 1930, o cenário de crescente centralização política
marcou a construção das saídas para a seca em meio as tentativas de manutenção dos poderes
locais, interessados em pautar os termos dos socorros. Nesse sentido, percebe-se que além do
amparo imediato aos flagelados, havia outros interesses, como as solicitações para suspensão
da arrecadação de impostos que beneficiaria principalmente os grandes proprietários.
Demandas como essa, justificada como parte dos esforços de superação dos efeitos da seca,
exemplificam como no Ceará, a institucionalização do poder no período pós-revolucionário
ocorreu em diálogo com uma estrutura política permeada de resquícios clientelistas que
influíram no modo como a crise climatérica foi tratada.
Ainda no primeiro capítulo da tese, investigamos a participação política dos irmãos
cearenses Manuel e Juarez Távora, que alcançaram postos e visibilidade importantes no regime
pós-revolucionário. O primeiro tornou-se o Interventor cearense e o segundo, Delegado do
Norte, chefiando o grupo político nortista mediando os conflitos internos e defendendo as
demandas da região. Fernandes foi incapaz de mobilizar a sociedade local ou os agentes da
política nacional em favor dos problemas históricos do Estado, fossem eles relacionados à seca
ou não. O imbróglio político levou a melhor diante das demandas sociais. No espaço do seu
breve governo, Fernandes Távora tentou demonstrar que não compactuava com a evidente
permanência das contexturas que sustentavam as antigas oligarquias. Porém, ao nomear
adesistas e figuras ainda relacionadas à chamada antiga política, Fernandes foi acusado de trair
as ideias revolucionárias, prato cheio para os descontentes com sua forma de conduzir o Ceará.
Substituído poucos meses depois, o primeiro Interventor do Ceará não tornou crível a
222

capacidade do novo governo em responder a crise climatérica de maneira efetiva. Além disso,
Fernandes desagradou a muitos por radicalizar a política centralizante do governo federal.
Com o fracasso da primeira experiência administrativa revolucionária no Ceará e com
o processo de centralização do poder nas mãos do executivo federal em curso, a
responsabilidade sobre a questão da seca dependeu ainda mais de uma boa relação entre
Interventoria estadual, Ministérios e Presidência. Ao novo administrador local, substituto de
Fernandes Távora, coube sensibilizar a sociedade para juntos mobilizar Ministérios, e,
principalmente o Presidente Getúlio Vargas, que naquele momento, detinha a palavra final
sobre todas as questões nacionais.
Nesse cenário, o novo Interventor empossado, Capitão Carneiro de Mendonça surgiu
como via para agilizar soluções sobre o tema da seca e arrematar a definitiva integração do
Ceará ao projeto revolucionário. Quando assumiu o governo em agosto de 1931, Carneiro de
Mendonça mostrou-se ciente da situação econômica e climatérica do Ceará. Naquele ano, diante
da persistência da estiagem, reivindicações e denúncias passaram a ser matéria cotidiana nos
jornais cearenses. Neles, os desdobramentos da seca aparecem como catalizadores das mais
diversas demandas aos poderes públicos. Nesse primeiro momento, créditos federais foram
abertos em favor do Estado do Ceará, sendo empregados em medidas paliativas.
No período em que ficou à frente da Interventoria do Ceará, Carneiro de Mendonça
recorreu ao governo federal, em especial ao Ministro José Américo de Almeida, para custear as
despesas a serem efetuadas em prol do flagelo, uma vez que a situação financeira do Estado
não permitia. As solicitações junto ao governo central, no entanto, não foram realizadas de
maneira amigável, motivando rusgas entre Carneiro de Mendonça e Vargas. No decorrer dos
últimos meses de 1931, a situação dos Estados atingidos pela seca se agravou. Quando grupos
de retirantes já se colocavam em marcha para a capital do Ceará, Mendonça subiu o tom
apontando a responsabilidade do Presidente da República diante da situação.
Para responder a esse descompasso, Mendonça estabeleceu canais de interlocução mais
profícuos com o Ministro da Viação e Obras Públicas, o paraibano José Américo e com a
Interventoria Federal de Obras contra as Secas na pessoa de seu Inspetor-Chefe, o engenheiro
Luiz Vieira. A primeira - e já conhecida - resposta aplicada por esses vários níveis do Governo
Provisório para o problema foi utilizar a força de trabalho dos flagelados nas obras dos
chamados “socorros”. Mobilizadas ao longo das crises de estiagem, as temidas multidões de
trabalhadores transmutaram-se mais uma vez em conveniência. Para dar conta das
aglomerações, o governo recriou as frentes de trabalho nas obras públicas e também campos de
concentração, soluções utilizadas em secas passadas com complexos desdobramentos.
223

Somente quando a crise social se torna dramática, as atitudes de combate às secas são
efetivamente tomadas pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, sob o comando de José
Américo de Almeida, em coordenação com o Interventor do Estado do Ceará, Capitão Carneiro
de Mendonça e o Inspetor de Secas, engenheiro Luiz Vieira. Naquele momento, o Estado
brasileiro, em seus diversos níveis, almejou a estabilização da economia dos territórios afetados
pela seca. Para isso, efetivou robusto investimento em novos e antigos projetos de
reservatórios, implementou postos agrícolas e garantiu a construção sistemática de obras que
continham elementos que propiciavam o investimento futuro em interligação de reservatórios
e irrigação. Tais escolhas apontam para o comprometimento daquele governo com o
desenvolvimento de planos de médio e longo prazos para o combate aos efeitos das secas.
A indicação do nome de José Américo para o cargo se deu em meio a boas expectativas
a respeito das possíveis ações do Ministério da Viação e Obras Públicas para o Ceará. Américo,
conhecido por sua experiência anterior no trato com os efeitos da seca em seu Estado, recebeu
destaque por sua atuação como Ministro do Governo Provisório no período da seca de 1932.
Nessa posição, Américo promoveu, inicialmente, o planejamento para um desempenho robusto
da pasta, modificando a estrutura do Ministério e dos órgãos sob sua tutela, como a Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas. Os esforços encabeçados pelo Ministério da Viação se
destacaram diante das parcas realizações do regime deposto. E, em meio as narrativas sobre os
socorros e o flagelo das estiagens, os agentes políticos ligados ao Governo Provisório ganharam
evidência, inclusive à revelia do antigo panteão do combate às estiagens onde se destacavam
engenheiros ligados a Inspetoria de Secas. Posto isso, as mudanças de cunho modernizantes
realizadas em várias esferas da União, impactaram diretamente no modo como foram sendo
arquitetados os socorros para os flagelados da seca de 1932, e também na memória histórica
criada sobre o tema.
Em meio a pressões políticas, o andamento das ações da Inspetoria de Obras Contra as
Secas, principal agente operacionalizador dos socorros aos estados atingidos pela estiagem, foi
renegociado. Tratando com a implementação de um novo código de atuação para a Inspetoria,
o encarregado dos trabalhos, o Inspetor de Secas Luiz Vieira, coordenou a construção de
grandes obras, sobretudo, reservatórios d’água e longas rodovias. Como no antigo combate às
secas, a construção de obras monumentais produzia maior impacto na opinião pública. Apesar
da grandiosidade das edificações executadas, Inspetoria e governo sofreram críticas severas,
principalmente no que se referia à lógica emergencial de alguns dos socorros implementados,
bem como a transparência dos gastos públicos e a efetividade das obras conduzidas pela IFOCS.
224

Desde sua fundação em 1909, o objetivo da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
era o enfrentamento dos efeitos das estiagens, porém, diante da histórica inconstância dos
repasses de verbas, as condições de trabalho da Inspetoria oscilavam, expandindo-se
principalmente quando as crises hídricas se asseveravam, o que motivava julgamentos
negativos à sua atuação. Quando em 1932 os efeitos danosos da estiagem se ampliaram, o
Governo Provisório investiu boa quantia nos estados afetados, e o Ceará foi um dos mais
beneficiados. Dentre as obras coordenados pela Inspetoria no território cearense, optamos por
tratar com maior detalhe os esforços para a construção do Açude do Estreito, mais tarde
denominado Lima Campos, em Icó. Projetado em 1912, o reservatório foi concluído somente
em meio aos desdobramentos da grande seca de 1932. Situado na principal bacia hídrica da
região jaguaribana, bastante afetada pela seca, o açude foi construído a partir da mão de obra
de retirantes já aglomerada na área.
O reservatório de Icó foi pensado como parte integrante do sistema de irrigação de Orós
ou do Jaguaribe, compondo, desse modo, aspirações de projetos futuros. Verificando
principalmente as informações contidas nos Boletins da Inspetoria de Secas, percebe-se,
portanto, que a construção desse açude adaptar-se-ia para a realização de um projeto maior, de
longo prazo. Assim, o Lima Campos compôs parte de uma nova etapa dos socorros almejada
como monumental, moderna e economicamente promissora.
Partindo dessa perspectiva, optamos ainda por focalizar melhor os meandros da
realização desse açude específico. E, jogando com a pretensa modernidade contida nesse
projeto, tratamos das dificuldades enfrentadas ao longo de sua construção. Nesse ensejo, não
nos furtamos a oportunidade de perceber a experiência dos “de baixo”, ante os ditames “dos de
cima”. Assim, buscamos um vislumbre do modo como homens, mulheres e crianças envolvidas
nessa obra trataram com epidemias, carestia e com uma nova disciplina de trabalho.
Nessa oportunidade, analisamos como entre estratégias de dominação e negociações,
retirantes e responsáveis pela obra se relacionaram. Constata-se que os esforços para disciplinar
a população que ocupava a área de obras esbarrou nas resistências cotidianas dos trabalhadores,
que ajustavam suas demandas e visões de mundo ante as imposições do corpo técnico da
Inspetoria. Por conseguinte, estes sujeitos históricos reformularam práticas, saberes e demandas
às margens do açude. Dessa maneira, esperamos ter ido além do compromisso original do
trabalho com um quadro de análise mais amplo, que buscou conectar a História Regional da
seca de 1932 no Ceará com a História Nacional dos desdobramentos do regime político
estabelecido no Brasil após a revolução de outubro de 1930.
225

Por fim, indicamos que durante o Governo Provisório (1930-1934), a questão da seca
passou a compor os debates sobre os rumos da região Nordeste e de seu povo, mas também
esteve relacionada ao futuro da nação, aos usos dos recursos naturais nacionais e até mesmo,
ao ordenamento constitucional do Brasil. Posto isso, as discussões em torno da seca foram
gradualmente alargadas à medida em que o próprio Estado pós-revolucionário se fortalecia.
Nesse período, políticos e intelectuais de dentro e de fora dos estados atingidos pelas
secas buscaram garantir formas cada vez mais abrangentes e contínuas de ação federal no
Nordeste, incrementando, assim, a produção econômica nas áreas afetadas pela seca, para
consolidar a participação dos estados nordestinos nos círculos de decisão da política brasileira.
O entendimento geral era de que havia necessidade de investir em ações institucionais e
dispositivos constitucionais para garantir o sucesso e a perenidade dos socorros.
Esse argumento materializou-se na campanha pela inclusão do combate à seca na
Constituição de 1934. O envolvimento de políticos nordestinos e grupos civis organizados na
constitucionalização do problema revelou a forma como a seca adentrou o circuito de debates
nacionais do período. O amplo engajamento para a garantia do combate às secas para além dos
tempos de crise deu resultado positivo, e a medida foi promulgada em 1934.
Para os entusiastas da empreitada, a formalização da obrigação da União para com os
estados atingidos periodicamente pelas estiagens tornaria perene os serviços para superação dos
efeitos da falta d’água, mas também poderia abrir caminho para tornar mais efetiva a parceria
entre União e estados nordestinos em outras áreas. Afinal, os momentos de crise climatérica
sempre propiciaram maior disponibilidade de verbas para a região atingida pela seca, o que
impactou na modernização econômica, ampliação da infraestrutura e até mesmo
embelezamento urbano desses estados.
O êxito em tornar constitucional o contínuo investimento da União na região assolada
pela seca, no entanto, se esvaziou pouco tempo depois, assim como sucumbiu o esforço pela
regulação dos recursos naturais expressos na promulgação dos Códigos florestais e das águas,
também datados de 1934. Como indicou Tomaz Pompeu Sobrinho, em escritos vinculados nos
Boletins da IFOCS no ano de 1935, a aplicação da legislação florestal não estava sendo
efetivada, e a materialização dos desdobramentos da constitucionalização do combate às secas
ainda inspirava desconfiança. Para Sobrinho, engenheiro ligado aos quadros da Inspetoria de
Secas no Ceará, medidas de preservação das matas locais, sobretudo em áreas regionais,
poderiam amainar os efeitos da seca.
Assim como nas proposições pró-reflorestamento de Sobrinho, os meandros da
constitucionalização da questão da seca já revelavam pontos de contato entre o combate à seca
226

e o pensamento ambiental engendrado no início da década de 1930. Observou-se ao longo do


período, a disseminação da discussão sobre o tema da seca e também a ampliação da pauta
ambiental e de ações de proteção aos recursos naturais. Ambos os movimentos se entrelaçaram,
quando da campanha em prol da inclusão do combate à seca na Carta Magna.
Nesse contexto, instituições civis e governistas promoveram o debate sobre o uso dos
recursos naturais nacionais. Parte desses esforços foram mediados pelos escritos de Alberto
Torres e suas ideias foram operacionalizadas pela Sociedade Amigos de Alberto Torres, da qual
faziam parte ilustres cearenses como o governista Juarez Távora. Essa associação municiou de
argumentos os deputados constituintes envolvidos na constitucionalização dos socorros
públicos aos estados atingidos pelas secas. Dessa maneira, o processo de institucionalização do
debate ambiental pelo Governo Provisório, ocorrido através da construção de códigos e
legislação ambiental, se entrecruzou com o movimento de constitucionalização do combate à
seca.
O atendimento perene aos estados atingidos periodicamente pelas estiagens afiançado
em 1934, já negligenciada em 1935, teve o insucesso decretado oficialmente em 1937, quando
a Carta Magna que garantia esforços conjuntos entre União e Estados do semiárido foi
substituída por um novo texto que afirmava uma nova fase nacional, o Estado Novo. Antes
mesmo desse duro golpe, agentes diretamente envolvidos na execução e no planejamento do
futuro dos socorros já informavam a dificuldade em transformar a realidade, tal como previsto
da constituição de 1934. No registro de sua passagem pelo Ministério da Viação e Obras
Públicas, escrito em 1933, José Américo indicou com clareza que mesmo quando os problemas
decorrentes da seca atingiram um grau severo em 1932, e grande volume de verbas foi liberada
para a construção de muitas obras, o caráter emergencial dos socorros superou as aspirações de
renovação alardeadas pelo Governo Provisório.
227

REFERÊNCIAS

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Fundo 35 Gabinete Civil da Presidência da República. Lata 16. Estado do Ceará. Pesquisa dia
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Fundo 35 Gabinete Civil da Presidência da República. Lata 16. Estado do Ceará. Pesquisa dia
02.05.2018. Carta endereçada ao Interventor Carneiro de Mendonça, datada de 30 de outubro
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Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Pesquisa dia
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Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Pesquisa dia
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Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16- Estado do Ceará. Pesquisa dia
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Fundo 35 - gabinete civil da presidência da república. Lata 28 – ministério da agricultura.


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