A Seca de 1932 e o Governo Provisório No Ceará
A Seca de 1932 e o Governo Provisório No Ceará
A Seca de 1932 e o Governo Provisório No Ceará
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
NITERÓI – RJ
2020
PRISCILLA RÉGIS CUNHA DE QUEIROZ
Orientadora:
Profa. Dra. María Verónica Secreto de Ferreras
NITERÓI, RJ
2020
ESPAÇO PARA FICHA CATALOGRÁFICA
PRISCILLA RÉGIS CUNHA DE QUEIROZ
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. María Verónica Secreto de Ferreras – Universidade Federal Fluminense – UFF
Orientadora
__________________________________________________
Prof. Dr. Mario Grynszpan – Universidade Federal Fluminense – UFF
Arguidor interno
__________________________________________________
Prof. Dr. José Augusto Pádua – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Arguidor externo
__________________________________________________
Prof. Dr. Frederico de Castro Neves – Universidade Federal do Ceará – UFC
Arguidor externo
__________________________________________________
Prof. Dr. Vanderlei Vazelesk Ribeiro – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO
Arguidor externo
NITERÓI- RJ
2020
À minha família e a Ricardo Oliveira
AGRADECIMENTOS
Esta tese investiga a forma como se deu o combate à seca de 1932 no Ceará, situando
historicamente seus termos no processo de conformação do governo provisório varguista (1930-
1934). Ao tempo em que os primeiros sinais da severidade da estiagem foram reconhecidos em
1930, a disputa pelo controle da Presidência do Estado se acirrou, impactando na atenção dada
à crise climatérica. O mesmo ocorreu em outros momentos de instabilidade política no novo
regime. Com o agravamento da seca, o Governo Provisório renovou o compromisso com os
estados atingidos, mas apesar do ímpeto de mudança estrutural, recorreu à velhas respostas para
dar conta do histórico problema. Por meio de fontes diversas, sobretudo, jornais, documentação
oficial produzida em nível local e nacional e relatos memorialísticos, analisamos como as
principais instâncias encarregadas dos socorros públicos, a saber, Interventoria Federal de
Obras Contra as Secas e Ministério da Viação e Obras Públicas, passaram a se ocupar da crise
social. Percebeu-se que ao longo do Governo Provisório (1930-1934) o debate em torno da seca
foi gradativamente ampliado à medida em que o próprio estado pós-revolucionário se adensava.
Nesse contexto, a questão climatérica foi redimensionada, passando a fazer parte de debates
acerca dos usos dos recursos naturais nacionais e do ordenamento constitucional da nação.
This research investigates how the 1932 drought was fought in Ceará, historically located its
terms in the process of forming the Vargas interim government (1930-1934). At the time when
the first signs of the severity of the drought were recognized in 1930, the dispute for the control
of the State Presidency intensified, impacting the attention given to the climate crisis. The same
occurred at other times of political instability in the new regime. With the worsening drought,
the interim government renewed its commitment to the affected states, but although the impetus
for structural change, it resorted to old responses to manage the historical problem. Through
various sources, mainly newspapers, official documentation produced at the local and national
level and memorial reports, we analyze how the main applied instances in charge of public
action, namely, Federal Intervention of Works Against Droughts and Ministry of Traffic and
Public Works, started to deal with the social crisis. It was noticed that throughout the interim
government (1930-1934) the debate about drought was gradually widened as the post-
revolutionary state itself became more and more dense. In this context, the climate issue was
re-dimensioned, becoming part of debates about the uses of national natural resources and the
constitutional order of the nation.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1 - REVOLUÇÃO, POLÍTICA E SECA .......................................................... 29
1.1 Antecedentes da Revolução no Ceará .................................................................29
1.2 Política Velha .....................................................................................................42
1.3 Nova Política? A Interventoria de Fernandes Távora .........................................54
CAPÍTULO 2 - ENTRE NOVOS ARRANJOS E VELHAS RESPOSTAS ......................... 74
2.1 “Temos novo Interventor!”: A Interventoria de Carneiro de Mendonça .............74
2.2 “Nos braços da horrível situação”.......................................................................86
2.3 José Américo, o Ministro das Secas .................................................................106
CAPÍTULO 3 – A AÇÃO DA INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS NO CEARÁ
................................................................................................................................................. 123
3.1 A operacionalização do combate à seca no Governo Provisório .......................123
3.2 “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”: críticas à ação da IFOCS .......134
3.3 Seca e açude: a experiência de combate à seca em Icó, Ceará. .........................144
CAPÍTULO 4 - A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DEBATE AMBIENTAL NO GOVERNO
PROVISÓRIO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA QUESTÃO DA SECA............... 168
4.1 Governo e sociedade: interseções no debate ambiental ....................................168
4.2 Regionalização do debate ambiental e as possibilidades para o combate à seca no
Boletim da IFOCS..........................................................................................................187
4.3 A Constituição de 1934, a questão ambiental e a inclusão da seca no texto
constitucional .................................................................................................................203
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 221
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 227
a) Documentos........................................................................................................227
b) Bibliografia ........................................................................................................233
13
INTRODUÇÃO
Desde o esgotamento decorrente da estiagem à violência das cheias, água e natureza são
protagonistas na História do Nordeste. Sobre isso, em meio a sua exposição sobre as ações do
Governo Provisório nos Boletins, em 1935, o Engenheiro Henrique Novaes rememorou suas
incursões sertão adentro, afirmando que era preciso amainar o contraste violento que abatiam a
região colocada sempre “quase que entre a vida e a morte”.
Desde 1904 – quando o percorri em parte, pela primeira vez, no curso de uma das suas
maiores estiagens – sofro uma verdadeira fascinação pelo Nordeste brasileiro! -
Originalíssimos – como tais não tendo paralelos noutras regiões do Brasil e alhures.
[...] o que mais me feriu em 1904, foi presenciar morrer gente de fome dentro do
Brasil; extasiei-me, depois, vendo o sertão nordestino ressuscitar no verde de suas
caatingas exuberantes, na pujança de seus cercados fenomenalmente produtivos, nas
alcatifas douradas de seu penhasco, nas formas carnudas e arredondadas de seus
rebanhos numerosos e na alegria comunicativa de sua gente, logo esquecida.1
Entre a morte causada pela seca e o renascimento ocasionado a cada chuva, segundo
Novaes, enganavam-se “os que o imaginam um Saara, sem o benefício das precipitações
hídricas. Aí chove, como noutras regiões do Brasil”; a grande questão evidenciada era que a
chuva ocorria “irregularmente no correr dos anos, irregularmente no correr de uma estação,
ainda irregularmente sobre a própria superfície” (Arrojado Lisboa). 2 Assim, após muitas outras
secas e os socorros empregados pela República brasileira em cada um desses momentos, ainda
era preciso ajustar a contradição entre a hostilidade das águas e a sua ausência, situação
entendida como a responsável por tornar os estados brasileiros ressequidos retardatários da
economia nacional.
Os predicados geográficos da Região Nordeste3 são favoráveis à construção de represas.
Seu solo, de formação cristalina, abona por todos os recintos à construção de açudes; a presença
de vales, baixios e várzeas favorecem o estabelecimento de caminho para as águas represadas.
1
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91.
2
Ibid., 1935.
3
Segundo Cotel, a primeira divisão regional oficial do Brasil foi institucionalizada a partir da Circular No. 1 de
31 de janeiro de 1942 da Secretaria da Presidência da República. O principal articulador e teórico da feitura da
divisão foi Fabio Macedo Soares Guimarães, então Chefe da Divisão de Geografia do Conselho Nacional de
Geografia do IBGE. O estudo para a divisão regional de Guimarães foi publicado em 1941 na Revista Brasileira
de Geografia, “sua proposta original dividiria o país em cinco principais regiões: Norte, Nordeste, Leste, Sul e
Centro Oeste”. COTEL, Fabio Betioli. As divisões regionais do IBGE no século XX (1942, 1970 e 1990).
Disponível em: https://journals.openedition.org/terrabrasilis/990. Acesso: 8 de julho de 2020. O termo Nordeste
foi incorporado ao texto da tese diante de sua presença em fontes do período. Como explica Albuquerque Jr.,
com a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas, no mandato do Presidente Delfim Moreira, em 1909,
políticos e intelectuais ligados a IOCS tentam suprimir eventuais sentidos dúbios sobre àquele espaço. “Eles
tentam construir uma imagem e um texto único, homogêneo para a região (...). O Nordeste deveria ser visto e
14
lido numa só direção para que seu efeito de verdade fosse eficiente politicamente”. ALBUQUERQUE Jr., Durval
Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. p.84. Em outras passagens, sobretudo
aquelas que se remetem a debates políticos, permanece o uso do termo Norte. Seguimos o raciocínio adotando
por Raimundo Lopes que, refletindo sobre a noção de Norte construída durante o Governo Provisório, indica a
dimensão processual da construção da região geopolítica de Norte, “sugerindo que essa palavra/categoria tem
significados e abrangência na conjuntura especifica do Governo Provisório”. In. LOPES, Raimundo Hélio. Um
Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 32. Tese
(doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-
Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p.41.
4 MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE,
DPG. PRN, HME, 1994. p. 9.
5 CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio Rodrigues
& c. 1935. P. 7.
15
assistência”. No entanto, sobre a liberação das primeiras verbas, a narrativa de Américo indica
que o processo não foi facilitado de pronto.
Nos embates pela memória e pela história do combate aos efeitos das secas no Brasil,
Américo descreve a recusa da liberação de verbas por parte de Osvaldo Aranha como resultado
de má vontade para com a questão, afinal, diante da existência, mesmo que exígua de créditos,
a resolução do problema surgiu da força de vontade e do trânsito de Américo junto a setores
importantes do governo. O desfecho da questão, conseguido somente com a ausência de Aranha
no Ministério, aponta o início dos socorros quase que como obra do acaso, apontando para a
persistência da dificuldade de verbas para os socorros.
Certificando a relevância das contribuições de Américo, e também indicando novos
contornos do combate à seca durante o Governo Provisório, Molle indica que a seca de
1931/1932 “marcou o início de um quinquênio áureo sob a impulsão do Ministro José Américo
de Almeida e do Inspetor da IFOCS, Luiz Augusto da Silva Vieira”. Naquele momento,
segundo Molle, houve a disponibilização de grandes quantias, despendidas de acordo com as
indicações de técnicos competentes que viabilizaram a “importação de uma moderna
maquinaria [...] e a abertura do leque de atividades que passou a abranger com mais ênfase a
agricultura, a irrigação o reflorestamento, a psicultura, foram os elementos que concorreram
para este renascimento”, conferindo novo perfil aos trabalhos em prol da superação das
recorrentes crises no Nordeste no período pós Revolução de 1930.
Entre as medidas para prevenir e atenuar os efeitos das secas periódicas, o governo
estabelecido após a vitória dos revolucionários de outubro de 1930, priorizou a regularização
do regime das águas nas zonas assoladas por meio de barragens. A utilização das águas far-se-
ia por meio da ação pública e de prêmios e subvenções às empresas particulares, bem como a
observação meteorológica, para conhecimento do clima e dos recursos naturais. As ações
visavam permitir a ampliação do trabalho agrícola e industrial, desenvolvendo a riqueza local
6
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo; FLAKMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. P. 213.
16
Não nos esqueçamos, porém, do que foi dito logo no início destas apreciações; os
problemas do Nordeste são complexos e não dependem somente da Engenharia! É na
verdade uma nova civilização que ali se está criando sob o amparo da água, os grandes
vales reanimados pelos rios ressuscitados, os quais, antes, só se apresentavam como
fantasmas de destruição nas inundações pavorosas. 7
Assim, pois, enquanto não temos os grandes açudes e as grandes redes de irrigação
que tanto aspiramos com o seu completivo indispensável da drenagem, cumpre-nos
lançar mãos de outros meios, muito valiosos, embora menos custosos, de combate aos
flagelos multiformes da seca. 8
Nesse texto vinculado no Boletim publicado pela Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas (IFOCS) em 1934, percebe-se que a própria Inspetoria de Secas, instituição
historicamente responsável por operacionalizar o combate ao flagelo das secas no Brasil, faz
ecoar seu descontentamento quanto à superação dos efeitos das estiagens no Nordeste.
Em 1935, quando uma nova Constituição havia sido promulgada e os horrores da seca
deram lugar a um inverno satisfatório, na tentativa de imprimir melhor entendimento acerca da
ação do governo provisório, iniciativas de recapitulação das ações governistas foram acionadas.
De acordo com o editorial no Boletim da Inspetoria, o engenheiro Henrique Novaes foi
escolhido para tratar das várias facetas do Governo Provisório em torno da questão da seca.
Segundo o artigo da IFOCS, Novais conseguiu demonstrar que os esforços do Governo
Provisório não possuíam somente preocupações de caráter econômico, mas de “civilização e
expansão política, ao mesmo tempo”.9
O editorial do Boletim indicou que o trabalho compilado por Novaes foi além do
frequente argumento que encerrava os trabalhos de combate às secas como obras de caridade,
7
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1934. Vol. 3. N.º 3. p. 100.
8
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 81.
9
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91.
10
Ibid., 1935.
17
pois certificava a importância dada a região das secas pelo Governo Provisório que, ciente dos
desafios daquele momento, pavimentava o futuro da nação, considerando as contribuições do
Nordeste. Evidenciada a consonância com as opiniões de Novaes, o editorial garantiu a
republicação do material escrito por Henrique Novaes ao longo dos volumes do Boletim
referente ao ano de 1935.
Em seu balanço, Henrique Novaes informou visitas à açudes, campos agrícolas, canais
de irrigação e estradas recém-construídas, elaborando um relatório que abordava, a partir de
suas impressões, as bases sob as quais a ação do Governo Provisório assentou a política de
socorros aos estados atingidos pela seca. Quando iniciou a viagem no dia 14 de fevereiro,
partindo do Rio de Janeiro, Henrique Novaes esteve acompanhado pelo Dr. Luís Vieira,
Inspetor de Secas, com quem dividiu todo o trajeto. Após longa viagem aérea, desembarcaram
inicialmente na cidade de João Pessoa, na Paraíba, terra do relevante Ministro de Viação e
Obras Públicas, José Américo de Almeida. Seguidos por fortes chuvas, no dia seguinte entraram
no sertão pela Paraíba e pelo Rio Grande do Norte. Na ocasião, o engenheiro certificou que os
11
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91-92.
12
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1935. Vol. 3. N.º 6. p. 226.
18
responsáveis pelas obras não regatearam “recursos diretos para amenizar a situação penosa de
meio milhão de flagelados”.13
Novaes cruzou suas impressões sobre o combate à seca promovidos pelo Governo
Provisório com suas memórias de outras experiências de campo no Nordeste. Estabelecendo
alguma distância entre o combate à seca promovido no passado e no Governo Provisório, o
engenheiro evidenciou a melhoria na região relacionando-a à ação revolucionária.
Explico assim a satisfação com que recebi a perspectiva de uma excursão pelas obras
que a Inspetoria de Secas está fazendo nessa região. Depois de 1904, percorri o Ceará
e trabalhei no Rio Grande do Norte em 1912; de 1921 a 1923, colaborei, na medida
de minhas forças, com o Dr. Arrojado Lisboa, no período áureo da Inspetoria; voltei
ao Rio Grande do Norte, em 1924 e, em 1928, novamente. [...] Posso apreciar,
portanto, em longos intervalos e com a visita de agora, o grande progresso do Ceará,
do Rio Grande do Norte e da Paraíba, para o qual tem contribuído decisivamente a
sábia política em relação a ele adotada pelos governos citados. 14
13
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 94.
14
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91-92.
15
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 91.
19
16
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 95.
17
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 95.
18
GOMES, Ângela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. P. 25.
19
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 237.
20
inclusive, com a formação do Bloco do Norte chefiado por Juarez Távora.20 No Ceará, percebe-
se que as pressões internas e os desdobramentos da crise climatérica foram relevantes para a
viabilização das Interventorias e mesmo para a execução de medidas em prol do Governo
Provisório. Nesse sentido, afim de captar essas especificidades, foi necessário dar atenção às
críticas e demandas estrategicamente publicadas pela imprensa local.
Grande parte dessas críticas pautava-se na nova racionalidade modernizante ensejada
pelo advento da Revolução. Os idealizadores do processo revolucionário e os envolvidos na
construção do novo governo propugnavam a necessidade de descontinuação do tempo por meio
de uma ruptura com o passado. O discurso e as práticas mobilizadas para tal conferiam ao
Governo Provisório um clima de inflexão histórica. A defesa da ruptura com o passado arcaico
é mobilizada em momentos muito díspares, às vezes para solicitar condutas políticas e
administrativas específicas, outras para demandar novos e velhos arranjos para os socorros das
vítimas da seca.
Maria do Carmo Campello de Souza, em Estado e Partidos Políticos do Brasil (1930 a
1964), indica a importância da constituição das Interventorias para o período, considerando que
essas novas instâncias públicas podem ser entendidas como instrumentos fundamentais para o
projeto de centralização política, empreendido no pós-1930 e consolidado a partir de 1937. A
pesquisadora lembra que para realizar uma análise preocupada com os significados de suas
Interventorias no período “é necessário distinguir entre os estados mais fortes e os mais fracos”.
Segundo Souza, enquanto havia crises para manutenção das Interventorias de São Paulo e
Minas Gerais, por exemplo, nos estados nortistas, considerados mais fracos, o processo de
subordinação das Interventorias era mais simples.
A análise de Maria do Carmo Campello de Souza aplica-se ainda ao caso cearense
quando a autora indica que os primeiros interventores desses estados foram alçados aos postos
com base numa regra elementar que presumia que, “quem quer que estivesse na oposição contra
Washington Luís passaria a situação”.21 No Ceará, Fernandes Távora, opositor ao antigo
regime, que inclusive se achava preso pelo então presidente do estado José Carlos de Matos
Peixoto no momento em que a revolução eclode, assume como primeiro Interventor do estado.
Porém, a manutenção do civil Fernandes Távora no cargo dependeu da sua capacidade de lidar
com a situação política interna e externa, intento no qual ele foi malsucedido. Após a crise
20
LOPES, Raimundo Hélio. Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte
e a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p.22.
21
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
omega, 1976. P. 92-94.
21
22
REMOND. René. O retorno do político. In: CHAUVEAU, Agnes; TÉTARD, Philippe (orgs.). Questões para
a história do presente. Bauru: Edusc, 1999. P. 58-59.
23
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 3ª ed., Recife: FJN, Ed.
Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. P. 70.
22
24
Fonte: REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.
Ministério da Aviação e Obras Públicas. Publicação Mensal. Tipografia Minerva – Assis Bezerra. Intervalo de
análise para este exercício: 1934 a 1945.
26
da repressão constante, e mesmo por conta dela, havia uma importante miscelânea de atores
políticos construindo ações e identidades. Em meio a essas lutas cotidianas ocorrem
transformações e embates, tornando turbulentos os anos em que o Governo Provisório tenta
implementar sua agenda revolucionária. Nesse sentido, importa recuperar a ação desses atores
a fim de legitimar suas experiências políticas e culturais, olvidadas por narrativas e projetos de
Brasil que condenam a sociedade brasileira como apolítica e não solidária. É nessa dinâmica
que emerge a implementação das lógicas revolucionárias no Ceará. Iniciamos nossa análise
nesse contexto, para então, compreender como se deram as ações em torno daquele que sempre
foi considerado como o grande problema do Ceará: a seca.
No segundo capítulo da tese, Entre novos arranjos e velhas respostas, trataremos do
momento em que a crise climatérica se acirra, abordando as ações do Interventor militar,
Capitão Carneiro de Mendonça, relacionando-as com as atitudes tomadas pelo então Ministro
da Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida.
As mudanças ocorridas nos primeiros anos da revolução no Ceará demonstraram que o
rumo para a acomodação do projeto revolucionário não era estável, pelo contrário. Como
veremos, a substituição de Fernandes Távora, primeiro Interventor do Ceará, pelo militar
Carneiro de Mendonça, fez ferver o caldeirão de tentativas de reorganização do cenário político
do estado do Ceará em meio a piora das condições de vida dos mais pobres atingidos pelos
desdobramentos da seca.
No terceiro capítulo intitulado A ação da Inspetoria de Obras Contra as Secas no Ceará,
abordaremos a execução do combate à seca em um ângulo mais específico, observando de perto
a atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Nele, trataremos das modificações
que a Inspetoria passou em decorrência do novo regime e analisaremos a execução da obra do
Açude Lima Campos, construção apontada como marco para o combate perene aos efeitos da
seca. Além disso, trataremos do cotidiano na obra, enfocando as dificuldades enfrentadas pelos
sertanejos e funcionários da IFOCS envolvidos nas frentes de serviço.
Ao longo de mais de cem anos de construção de pontes, estradas, açudes e tantas outras
obras, a Inspetoria de Obras Contra as Secas realizou uma sistemática intervenção no semiárido
brasileiro, sendo um dos primeiros órgãos criados para essa finalidade. Considerando as
análises presentes nos trabalhos Um Monumento ao Sertão: ciência, política e trabalho na
construção do Açude Cedro (1884-1906), da historiadora Renata Felipe Monteiro, e Um projeto
de “combate às secas” os Engenheiros Civis e as Obras Públicas: Inspetoria de Obras Contra as
Secas (IOCS) e a Construção do Açude Tucunduba 1909-1919, de Aline Silva Lima,
27
25
CERUTTI, Simona. Processo e Experiência: indivíduos, grupos e identidades em Turim no século XVII. In:
REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
28
forma ampla ao longo do século XX, está relacionado à ação do poderio técnico institucional
mobilizado para a consolidação de dispositivos jurídicos para a preservação do meio ambiente
brasileiro. Nesse contexto, instituições civis e governistas promoveram o debate sobre o uso
dos recursos naturais nacionais, oportunizando a construção de uma legislação florestal federal.
Parte desses esforços foram mediados pelos escritos de Alberto Torres, postulados que
influenciaram na posição assumida por intelectuais e políticos da época.
No decorrer do capítulo, apontou-se ainda como nesse contexto o debate sobre o
reflorestamento do território cearense esteve presente nas páginas do Boletim da Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas, medida essa percebida como possibilidade para o combate
aos efeitos da seca. Por fim, observaremos como a análise científica e proteção da natureza
foram também importantes para a composição da defesa da constitucionalização da questão da
seca. Naquele contexto de ampliação da pauta ambiental, ações de proteção dos recursos
naturais compuseram o conjunto de argumentos em prol da inclusão do combate à seca na carta
magna.
29
26
Gasparetto lista a seguinte sucessão de implementação do Estado de Sítio na primeira República: o estado de
sítio foi declarado na Primeira República duas vezes por Floriano Peixoto, “para combater a Revolução controlar
a Revolta da Vacina; por Hermes da Fonseca, contra as revoltas da Chibata e do Juazeiro; por Wenceslau Braz,
no contexto da Primeira Guerra Mundial; por Epitácio Pessoa, contra a crise que resultou na Revolta do Forte de
Copacabana; por Artur Bernardes, com o pretexto de combater revoltas políticas no sul do país; e por Washington
Luís, que tentaria se proteger via estado de sítio do avanço da Aliança Liberal liderada por Getúlio Vargas”.
(GASPARETTO, 2015, p. 286).
30
abriu caminho para nova onda de repressão contra sindicatos e centros operários. Logo após,
Washington Luís aplica o recorrente “antídoto” constitucional, a fim de sufocar a Aliança
Liberal liderada por Getúlio Vargas. Mais uma vez o estado de sítio é decretado no Brasil. O
grupo alçado ao poder com a vitória da chamada Revolução de 1930, por sua vez, fendeu os já
frágeis pilares democráticos dissolvendo o poder legislativo, esvaziando o poder judiciário e
destituindo o poder executivo.
No Brasil da Primeira República, no que diz respeito à ação dos trabalhadores, havia
múltiplas tendências nos movimentos organizados, bem como disputas de projetos no interior
das entidades operárias e peculiaridades em suas expressões regionais. Em consonância com o
quadro nacional, no Ceará as organizações fundadas ao longo das décadas de 1910, 1920 e
início de 1930, tinham em geral o objetivo de promover a luta por educação, proteção social e
melhores condições de trabalho, mas também diferentes aportes ideológicos e práticas
contestatórias.
No final do século XIX e início do XX, pulularam movimentos associativistas,
organização de partidos, ações populares de rua e fundação de jornais. Em comum: a exposição
das carestias que marcavam a vida dos trabalhadores e as críticas e desilusões com o regime
republicano. Desse posicionamento crítico no Ceará, organizou-se “a construção de um novo
léxico político (pugna, luta, união, solidariedade, combate), criando e recriando (e atualizando)
alegorias e símbolos caros à tradição do movimento operário [...]”. A imprensa operária é
documento/memória, nada neutro, para o estudo das lutas, diferenças e identidades da
experiência dos trabalhadores do período. 27
Na capital do estado, Fortaleza, e no interior a carestia de vida motivava a contestação.
As notícias sobre a movimentação dos trabalhadores corriam todo o estado. Um jornal do
interior do estado, A Imprensa, de 1925, fez chegar à cidade de Sobral a adesão da Phenix
Caixeiral a “greve pacífica” deflagrada contra a companhia de transporte Light, na Capital.28
Ocorre que a empresa havia diminuído os horários dos bondes de segunda classe, mais baratos,
27
GONÇALVES, Adelaide. Imprensa dos trabalhadores no Ceará: histórias e memórias. In. Uma nova História
do Ceará. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2004, pp. 259-286. p. 260.
28
A empresa deu início aos serviços em Fortaleza em 1913, produzindo energia elétrica e com a detenção do
transporte público, por bondes, até 1947. Tais serviços modificaram a vida cotidiana na capital. Eduardo Oliveira
Parente, na dissertação Operários em movimento: a trajetória de luta dos trabalhadores da Ceara Light (Fortaleza,
1917 – 1932), argumenta que existiu uma interessante trajetória de luta dos trabalhadores da Light, atraindo
atenção e a repressão do governo. Greves foram organizadas por esses trabalhadores em 1917, 1919, 1925, 1929
e 1932. “cada uma delas com reinvindicações específicas, projetando as pautas do grupo e amealhando apoios
diversos”. Em 1929, estreitaram as relações com o comunismo imprimindo aspectos diferenciados às antigas
paralizações. Em 1930, dialogaram com a Legião Cearense do Trabalho. Em 1932, a intervenção do Ministério
do Trabalho denota a implementação do sindicalismo oficial no Ceará, bem como a aplicação da legislação
trabalhista e ampliação do papel do Estado como mediador das relações trabalhistas.
31
29
Jornal A Imprensa, 9 e 14 de outubro de 1925.
30
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das secas: arranjos e desarranjos nas fronteiras do trabalho (1877-
1919). Tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social. Universidade Federal
do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de História, Fortaleza, 2014.
31
NEVES, Frederico de Castro. Caridade e controle social na Primeira República (Fortaleza, 1915). Estud. hist.
(Rio J.) vol.27 no.53 Rio de Janeiro Jan./June 2014. p.118
32
32
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1928, p. 42.
33
Id., 1928, p. 42.
34
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1928, p. 42.
35
Id., 1928, p. 42.
33
36
SANTOS, Jovelina. Círculos Operários no Ceará: “instruindo, educando, orientando, moralizando” (1915 –
1963). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004. p. 12.
37
SANTOS, Jovelina. Círculos Operários no Ceará: “instruindo, educando, orientando, moralizando” (1915 –
1963). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004. p. 35.
38
Cf. PINTO, José Aloísio Martins. Brasil soviético?! Nunca: anticomunismo e Estado autoritário no jornal
católico “O Nordeste” (Fortaleza/CE, 1930 – 1945). 2012. 335 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2012.
34
Fortaleza, na eleição para uma cadeira na câmara dos deputados, em 30 de setembro de 1928,
Maurício de Lacerda, candidato abertamente apoiado pelos jornalistas Júlio Ibiapina e
Demócrito Rocha, obteve expressiva votação – 680 votos, enquanto o desembargador José
Moreira, candidato do governo, obteve apenas 448 votos. 39
No que diz respeito à miscelânea de narrativas jornalísticas do período, destacam-se
alguns dos mais importantes periódicos da época: O jornal O Ceará surgido a seis de junho de
1925, sob a direção de Júlio Matos Ibiapina; o longevo O Povo de Demócrito Rocha, jornalista
totalmente engajado nos movimentos políticos da época, um dos fundadores do Partido da
Mocidade40; o periódico A Reação que surgiu no mesmo período organizado por Américo
Palha, um dos dirigentes do centro cívico Carlos Prestes; o Jornal A Razão de Raimundo do
Monte Arrais também compôs a efervescência política do período.
O engajamento de jornais e agremiações cearenses às propostas de mudança da
República ficou ainda mais evidente com a acolhida dada à caravana democrática, chegada em
Fortaleza no dia 5 de agosto de 1928, da qual faziam parte Assis Brasil, Maurício de Lacerda,
Nereu Ramos, David Doff Lessa, Dante Delmonte, Roberto Macedo e Idelfonso Simões Lopes
Filho.41
Além da capital, a campanha da Aliança Liberal atingiu o interior do Ceará, chegando
ao Cariri. Conforme testemunho de Fernandes Távora:
39
Anselmo comenta ainda que Maurício de Lacerda era um dos mais festejados oradores em comícios populares
ocorridos em Fortaleza em idos do ano de 1928. Segundo Anselmo, Maurício de Lacerda se destacava por, ao
contrário dos demais, pregar a revolução e fazer aberta apologia ao tenente Carlos Prestes. In. SILVA, Otacílio
Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970, p. 26-28.
40
O Partido da mocidade constituía-se de jovens intelectuais, jornalistas e estudantes, tendo como objetivos
“arregimentação dos operários em forte núcleo eleitoral das classes; pelo combate ao latifúndio; pela luta contra
a arma política do reconhecimento no congresso; pela fiscalização das eleições e moralização do voto”. In.
MONTEIRO, Aberlado F. História dos partidos políticos no Ceará. Fortaleza: Tipografia minerva, 1965, p. 51.
41
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
26.
42
TÁVORA, Fernandes. Algo em minha vida. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961. pp.107-108.
35
43
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
29.
44
Ver: TÁVORA, Fernandes. Algo em minha vida. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1961.
45
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
29.
36
republicano mineiro, a frente única dos políticos gaúchos, a repulsão formal do presidente João
Pessoa” o grupo que ostentava “o lábaro dos anseios de liberdade política do norte do Brasil”.
Mais tarde, esse grupo encabeçou manifestações pró-Vargas na capital.
Em julho de 1929, o tópico fixo “Momento político nacional” passa a estampar todas as
capas do jornal A Razão. Entre os dias 26 e 27 de julho, as chamadas revelam que o Presidente
Washington Luiz, diante das investidas de Vargas, pediu o apoio dos presidentes dos estados à
candidatura de Júlio Prestes. Segundo o jornal, o cearense José Carlos de Matos Peixoto,
governador do Ceará desde julho de 1928, atendeu ao chamado.
No editorial de 1º de agosto de 1929, o grupo do mesmo periódico adverte que
“numerosas são as forças que se apresenta, para sufragar a chapa da aliança”. O novo Presidente
do Estado, José Carlos de Matos Peixoto, que assume mandato em 12 de julho de 1928, é
apontado como um dos principais articuladores dessa posição. Ao longo de várias inserções
dessa mesma edição do jornal, a bancada cearense é também descrita como apoiadora da
candidatura paulista.
Argumentando que nada sobra para o Norte diante da união “antipatriótica” entre o
Estado de São Paulo e o Palácio do Catete, diz: “chamamos à Razão os Josés Peixotos, os
Euricos Valles, os Juvenais Lamartines, etc. [...] para que não se tornem partícipes de uma
política de compressão sobre os seus próprios conterrâneos”.46 Tais cidadãos deveriam, pois,
abandonar os interesses de São Paulo, e dar preferência aos do Brasil e aos dos próprios estados
que presidiam. Ao presidente Washington Luiz, críticas ainda maiores. Na qualidade de
comandantes dos governadores, deveria pensar na gravidade excepcional em que coloca o país,
pois: “Transacionando com os presidentes estaduais” estaria oficializando a tirania paulista,
usando dos excepcionais poderes que exercia para enfraquecer “o vínculo federalista”. 47
A atitude do Washington Luiz, coligando-se aos chefes das oligarquias estaduais,
descritos como “impatrióticos e antirrepublicanos, empolgados exclusivamente pelas vantagens
dos cargos que já ocupam ou do que pensam em ocupar”, estaria evidenciando a extorsão aos
estados, pois o presidente teria feito uma condenável “adesão inconstitucional ao princípio da
dominação paulista” pelos diversos recursos e expedientes que a “pose do poder confere”.48
A crítica de parte da imprensa cearense à ingerência política de oligarquias regionais e
do governo central advém do desejo de evidenciar as pautas locais. No entanto, a adesão ao
novo projeto de país esbarra ora na permanência do domínio hegemônico paulista, ora na
46
Jornal A Razão, 1 de agosto de 1929.
47
Ibid., 1929.
48
Ibid., 1929.
37
49
SILVA, Otacílio Anselmo e. A revolução de 30 no Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1970. p.
25.
50
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 342.
38
51
Editorial “Iniquidades que revoltam”. Jornal O Ceará, 7 de março de 1928. “o periódico circulou entre os anos
de 1925 e 1930, combatendo o abuso das oligarquias, o coronelismo com seu voto de cabresto e as contradições
da Igreja Católica. Percebia origens sociais e econômicas em movimentos como o Cangaço.” Lucíola Limaverde;
Gilmar de Carvalho. Jornal O Ceará: Exemplo de Mídia Combativa na Década de 1920. Anais do Intercom –
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXI Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação – Natal, RN. Setembro de 2008. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-1785-1.pdf>
39
das disseções locais, se imponha nas deliberações da política nacional”. No entanto, “não haverá
remédio dentro da lei, para evitar a imposição do sr. Washington Luiz”. A saída pelas armas
naquele momento não parece boa aposta: “a opinião do povo sensato é que é mil vezes
preferível suportar os maus governos a confiar em patriotas fracos que pregam a revolução para
vender seu apoio por maior preço”. O descrédito na política profissional parecia maior, mesmo
estando em jogo a nova disposição de forças no cenário nacional.
Coroando os meses de exposição política, em 20 de outubro de 1929, no Rio de Janeiro,
foram lançadas as candidaturas de Getúlio Dorneles Vargas e João Pessoa Cavalcante de
Albuquerque ao Catete. Em torno deles surgiu a Aliança Liberal, formada pelos estados de
Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, iniciativa criada pelo Dr. Antônio Carlos Ribeiro
de Andrade, governador do estado de Minas. A Aliança constituiu-se como coligação de forças
políticas contra o poder oligárquico que dominava o cenário nacional. Além do partido
democrático, a Aliança obteve apoio dos tenentes. E, contanto com apoio da maioria dos
governos estaduais, os candidatos da situação eram Júlio Prestes de Albuquerque e Vital Batista
Soares, respectivamente governadores de São Paulo e da Bahia.
A matéria “O Ceará, honrando as suas tradições, manifesta-se solidário com a Aliança
Minas-Rio Grande do Sul”, de dois de agosto de 1929, informa sobre o comício realizado em
Fortaleza. Anunciado para as 6 horas da tarde, na Praça do Ferreira, o ato teve que ser
remanejado para área menos reconhecida como ponto de debate político, a Praça Pelotas.
Poucos minutos antes do horário marcado, quando o aglomerado começava a se reunir, o
governo do Estado com objetivo de impedir a reunião, sob a justificativa de ordens da
municipalidade, mandou comunicado de não permissão ao evento. Os organizadores então
transferiram a ação para distante do centro da cidade.
Segundo o periódico, a multidão seguiu firme até a nova área de manifestação entoando
aclamações aos estados e líderes que compunham a Aliança Liberal. O teor animado dos
discursos deu o tom à adesão a Aliança Liberal no Ceará. Na rua, juntando-se a outras
experiências políticas de contestação à República, foram sendo construídos os apoios à AL.
Nesse clima de contestação e descontentamento com os moldes republicanos que favoreciam o
Sul em detrimento do Norte do país, vários grupos ofereceram rápido apoio à Aliança.
Finalmente na Praça Pelotas, Quintino Cunha falou à multidão sobre liberdade e patriotismo,
seguido do acadêmico Hermes Barroso que falou em nome do “Comitê acadêmico pró-Getúlio
Vargas”, fundado pelos estudantes de direito da Capital.
Em 14 de fevereiro de 1930, o Jornal A Razão indica a recente coligação entre os jornais
O Povo, O Ceará e A Reacção, informando que todos os folhetins solicitaram que os
40
comerciantes da cidade fechassem “as suas portas ao primeiro sinal da aproximação da caravana
Liberal”. Segundo o anúncio, Fortaleza estaria preparada para receber e hospedar a comitiva
liberal: lenços encarnados, “símbolos da valentia gaúcha” seriam a saudação. Dando
continuidade a expectativa com a chegada da comitiva, mas também acerca da pretensa
mudança que aquilataria o país, concluem poeticamente a representação da Aliança Liberal
como um “rio caudaloso em investidas doidas rasgando os grotões infectos que constituem a
politicalha infame e torpe que está comprometendo os créditos do Brasil”.
Em matéria do dia 16 de fevereiro de 1930, Batptisa Luzardo rechaça a postura da
polícia diante da caravana que, felizmente não se caracterizou por “nenhum atentado
criminoso”, mas foi “ridícula” por acossar a multidão reunida na Praça Fernandes Vieira, onde
“até um quartel provisório foi instalado”. Não menos vexatória e autoritária teria sido a medida
policial que encheu a Praça do Ferreira de soldados, “alinhados ao longo dos passeios, num vis-
à-vis irritante aos que ali se apinhavam para saudar os propagadores dos grandes ideais
democráticos”. A demonstração de força dos grupos políticos no poder acabou por fomentar o
orgulho dos organizadores da atividade que, ciente do potencial da sua ação se congratularam
de seu ânimo: “ao belicoso aparato policial, o nosso povo respondeu com o mais solene desdém
[...] o mais eloquente atestado do quanto confia na vitória final”.
Não havendo maiores repreendas ou episódios de violência, a Caravana Liberal
percorreu ainda o interior do Ceará visitando Quixadá, Senador Pompeu, Aurora, Missão Velha
e Juazeiro do Norte. Nesta última, a caravana foi recebida pelo prefeito Alpheu Ribeiro Aboim,
reconhecido entusiasta da Aliança; a recepção é descrita no jornal como “a verdadeira
apoteose”. O mesmo desfecho pacífico não se observou em outras partes do Norte. Sobre isso,
a edição de 12 de fevereiro de 1930 do A Razão vinculou telegrama de Getúlio Vargas
lamentando a repressão ocorrida em Mossoró, onde a polícia usou armas letais para reprimir o
movimento. Na cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, faleceu Francisco
Ribeiro, atingido gravemente no conflito ocorrido durante comício promovido pela Caravana
Liberal. Em São Paulo também ocorreu repressão à campanha aliancista, a polícia prendeu
vários menores por distribuírem material de propaganda dos candidatos liberais.
As críticas ao modo como os governos estaduais partidários à candidatura situacionista
e as artimanhas do próprio governo federal contra o avanço da Aliança estamparam muitas
outras páginas do jornal. O artigo “Os últimos dias da ditadura brasileira”, por exemplo,
41
alarmou que as ações do presidente contra magistrados país afora terminariam por “arrastar o
país ao choque das armas”.52
Alguns apoiadores cearenses dedicaram-se a tornar mais intensa a movimentação
Aliancista no Ceará. Ainda ao longo do mês de fevereiro de 1930, outra caravana percorreu a
zona jaguaribana do estado, dessa vez conduzida por Demócrito Rocha. A área em questão que
vinha sofrendo os efeitos da crise social decorrente da estiagem recebeu a comitiva de maneira
efusiva, com destaque para a recepção na cidade de Russas que recebeu o “grande curso de
automóveis” com rojões e banda de música. Enquanto isso, na capital, os comícios populares
ocorriam sob a responsabilidade do Comité Acadêmico Pró-Aliança Liberal.53
Entre greves e paralisações dos trabalhadores, organização de partidos e associações
classistas de origens diversas, mas também dentre as páginas dos jornais, comportamentos
políticos de diversas matrizes e influências acabaram por formar uma paisagem política propícia
ao apoia à AL.
Mais tarde, a Revolução de 1930 como grande acontecimento político-social eclodiu.
Esse evento, no entanto, não deve ser encarado como se estivesse encerrado em si mesmo,
inclusive, e principalmente, para o intento do presente trabalho, deve ser entendido e percebido
em articulação com os outros níveis do real. O teor regional recorrente nas críticas ao governo
federal apontava para o enfraquecimento de elites políticas locais – incapazes de modificar a
situação - e, ao mesmo tempo recomendavam as vias para a devida inclusão do Norte à União,
como região capaz de produzir. Com indica Pandolfi, a fragilidade da posição desse território
no cenário nacional criava “terreno fértil para o fortalecimento das oposições e explica o
impacto da Revolução de 1930 na Região".54
52
Jornal A Razão, 12 de fevereiro de 1930.
53
Jornal A Razão, 28 de fevereiro de 1930.
54
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 242.
42
A estrutura política da Primeira República foi assinalada pelo domínio das oligarquias
nos mais diversos âmbitos da vida pública do estado. O pacto entre governadores e União, e
destes com os poderes municipais, viabilizava o andamento da República. Problemas de
governabilidade e de inclusão dos diversos atores sociais, no entanto, continuavam embalando
contendas políticas nas mais diversas esferas. No Ceará a situação não era diferente.
A oligarquia Nogueira Accioly, que ocupou o governo do Ceará entre 1896-1912, deu
lugar para a participação política de outras facções oligárquicas, quebrando o monopólio do
Partido Republicano Cearense. Antigos representantes do poder Aciolino ramificaram-se em
grupos que fundaram os partidos Conservador e Democrata. Segundo Simone de Souza, entre
estes partidos não havia “clivagem ideológica, nem diferenças de programas partidários”.
Catalisando outra vertente de poder no Ceará, em 1920, Manuel do Nascimento Fernandes
Távora funda o Partido Republicano com um grupo de dissidentes do partido democrata.55 Este
era o quadro geral dos partidos políticos cearenses quando José Carlos de Matos Peixoto
assumiu a cadeira do governo do Estado. 56
Eleito por força do acordo entre conservadores e democratas, e enfrentando críticas ao
conteúdo clientelista da República, Peixoto tentou animar a classe política local com o objetivo
de demonstrar conformidade nas relações entre União, Estados e Municípios. Em mensagem
enviada à Assembleia Legislativa, em 1929, diz:
55
SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP, 1982. P. 2.
56
José Carlos de Matos Peixoto, cearense, natural da cidade de Iguatu (CE), em 1884, entre 1924-1928 foi
secretário do Interior e Justiça no governo do desembargador Moreira da Rocha, colaborando na reformulação
da Constituição cearense. “Por consenso de todos os partidos políticos do estado, foi escolhido para governar o
Ceará no período 1928-1932. Renunciando à cadeira na Câmara dos Deputados, tomou posse no governo do
estado em 12 de julho de 1928, mas foi deposto pela Revolução de 1930, capitaneada por Getúlio Vargas. Em
seu lugar, no dia 8 de outubro, assumiu o governo provisório do estado Manuel Fernandes Távora. Mudou-se
então para o Rio de Janeiro, montou banca de advogado e conquistou a cátedra de direito romano nas Faculdades
de Direito de Niterói e do Rio de Janeiro”. In. MORAES, Kleiton. Verbete “Matos Peixoto”. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/PEIXOTO,%20Matos.pdf>.
57
Mensagem enviada à Assembleia legislativa pelo Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, 1929, p. 2.
43
negócios públicos e no controle dos gastos, sobretudo com o funcionalismo municipal. Nessa
intenção, o Presidente do Estado promoveu um congresso reunindo todos os prefeitos do Ceará
para viabilizar a organização das contas dos municípios e, assim, a viabilidade do governo em
vigência.
Parece-me que da troca das ideias que foram aventadas da permuta das sugestões e
dos alvitres que se levantaram, da discussão dos problemas que condicionam o
progresso de nossa terra, em suma, da aproximação entre governo do estado e os
governos locais, resultou uma nobre exaltação do sentimento de solidariedade entre
as células vivas questão os municípios e o organismo por elas constituído, que é o
estão.58
O saldo do encontro, segundo Peixoto, foi uma discussão inteligente seguida da redação
de teses que, nas mãos da Assembleia estadual, promoveriam o progresso do Estado. Estava
em jogo a “objetivação do fim patriótico” e, também, a defesa da classe política. Afinal, uma
condução política elevada daria a todos a impressão de que as facções partidárias não eram
“elementos perturbadores da ação”.59
Na mesma mensagem, que possuía uma estrutura de relatório, o Presidente do Estado
argumentava que os dez últimos anos propiciaram um “surto de vida nova” no Ceará, mas que
o verdadeiro crescimento econômico seria alcançado num futuro próximo. No texto, seu
governo é projetado como aquele que irá promover a mudança no estado, uma expansão “que
será verdadeiramente auspiciosa”. Bastaria superar o “problema primordial”: a seca.60
As estiagens que periodicamente assolavam diversas regiões do Brasil passaram a ser
alvo de preocupações sistematizadas por parte do poder central diante do cenário de ebulição
social que emergiu com a grande seca de 1877-79. Quando as dificuldades em manter os antigos
e consolidados sistemas de apoio, baseados nas relações paternalistas ruíram diante da
magnitude do problema, fazendo ver para além da questão climática, a estiagem configurou-se
enquanto questão social nacional. Encarada como questão social, a seca gerou novos e
impactantes desdobramentos. Como aponta Frederico de Castro Neves, a estiagem de 1877-79
tornou-se um marco na compreensão da questão das secas no Brasil. As respostas, a partir de
então, deveriam ser cada vez mais abrangentes, de forma a amparar a continuidade da produção
nas áreas afetadas, bem como garantir a sobrevivência de milhares de pessoas. 61
58
Ibid., 1929, p. 8.
59
Ibid., 1929, p. 9.
60
Ibid., 1929, p. 2.
61
Cf. NEVES, Frederico Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), p.
75. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico Castro (org.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
44
Até a imprensa da capital do país já se vem ocupando da crise climatérica que ameaça
roubar-nos vidas preciosas e esgotar parte das energias dos nossos laboriosos povos.
Avizinha-se, portanto, a seca com todo o cortejo de misérias e o governo do estado
permanece indiferente a sorte dos habitantes de uma das mais futurosas zonas do
Ceará [...].62
62
Jornal A Razão, 2 de junho de 1930.
63
Ibid., 1930.
45
colheita do ano, e ainda se acham sujeitos à pesada tributação oriunda do imposto estadual rural.
Em face desta situação, os atingidos começaram a protestar contra a arrecadação. O jornal não
indica a envergadura das colheitas destruídas, nem nomeia os pleiteadores da causa, mas
continua fazendo eco dos clamores solicitando aos poderes competentes a remissão do tributo.
A medida seria um “indispensável auxílio aos nossos irmãos ameaçados do flagelo da seca”.
Esperavam que o Presidente do Estado “saberia compreender a situação angustiosa que reina
na região em apreço”. Os pedidos foram evanescidos por Matos Peixoto que, “cerrou os ouvidos
e nem sequer mandou sustar a cobrança do extorsivo tributo, que tanto vexame está cansando
no interior do Estado”.64
Diante da recusa dos poderes locais, a demanda passou a se concentrar nas solicitações
ao governo federal: era preciso que os políticos cearenses se empenhassem em exigir verbas
para a construção de obras públicas. Segundo o texto, o governo devia voltar as suas vistas para
“outros trabalhos em que todos os jaguaribanos pudessem empregar a sua atividade, tais como:
as estradas de rodagem daquela região, e acima de tudo isto, a construção do porto de
Fortaleza”. As medidas são apresentadas como inadiáveis. A negativa ao pedido ocasionaria
cenas terríveis, já conhecidas pela população de dentro e fora do estado. O triste passado era
acessado para elaboração de uma quase ameaça. Se o governo não desejasse “receber a notícia
do êxodo da população daquela faixa do nosso território” deveria beneficiar os irmãos cearenses
no presente. Afinal, essa multidão poderia bater à porta de qualquer um, ela iria “para qualquer
parte onde possa ter assegurada a sua subsistência”.65 Um futuro promissor estava em jogo, mas
o caminho até ele não era simples.
No que diz respeito a concretização de grandes obras, a costura política não era fácil.
Sobre isso, observa-se como as relações entre as esferas da administração republicana eram
delicadas e emergiam sempre como foco de crítica. Segundo matéria vinculada no jornal,
reconhecidamente de oposição ao governo Peixoto e declarado apoiador da AL, a política do
governo cearense vivia diariamente a tentar proclamar sua influência junto ao poder central,
tanto que “os demais caciques dos estados brasileiros só faltam morrer de inveja”. O governo
do estado estaria tentando demonstrar sua inserção política através de corriqueiras notícias nos
Jornal do Ceará e Correio do Ceará. Nelas, alardeavam telegramas provenientes do Rio de
Janeiro informando que ministros de todas as pastas atendiam às solicitações feitas pelo Sr. José
64
Jornal A Razão, 20 de junho de 1930.
65
Ibid., 1930.
46
Como acreditar que pese sobre o Ceará tão graves calamidades, dirá sr. Ministro da
viação, quando todos os jornais registraram que o atual presidente aumenta o seu
fausto, comprando à praça os melhores e, mas suntuosos automóveis, projetando a
reforma da residência presidencial e até encenando, com luzido séquito, uma viagem
principesca aso grandes centros do velho mundo? 69
66
Jornal A Razão, 16 de maio de 1930.
67
Ibid., 1930.
68
A Razão, 4 de junho de 1930.
69
Ibid., 1930.
47
Sendo, das unidades federais, o Ceará a mais necessitada de auxílio do governo central
na realização de medidas tendentes a neutralizar, ou minorar sequer, os efeitos das
secas nordestinos; ocupando o nosso estado, no país, um lugar de certo destaque,
queiram ou não os derrotistas do nosso valor, nada mais justo, nada mais razoável,
pleitearem os nossos homens públicos um ministério. 71
70
Ibid., 1930.
71
Jornal A Razão de 25 de setembro de 1930.
72
Jornal A Razão, 25 de setembro de 1930.
48
73
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1930.
74
Jornal A Razão, 25 de setembro de 1930.
49
ao chefe do estado cearense tomar as rédeas da situação, uma vez que a representação do Ceará
nada tinha feito. Ele deveria recorrer ao governo federal em busca de ajuda no combate à seca.75
A imprensa da capital do país insiste no descompasso entre as narrativas sobre a
propagação dos efeitos da seca no estado e os desdobramentos políticos do posicionamento dos
deputados e membros do executivo acerca da crise climática e das verbas para socorro da
população. Ocupando-se disso, o jornal cearense A Razão reverberou a posição do periódico
carioca Jornal do Brazil sobre a seca no Ceará. Apesar de afirmar a necessidade de serem
prestados urgentes socorros às populações flageladas, o periódico acentuou que o deputado
cearense Eduardo Girão teria dito que “as chuvas caíram com relativa normalidade.” E que,
portanto, “Houve inverno regional”. A observação coloca em perspectiva a abrangência da crise
climática e, sobretudo, a pertinência de seus usos pelos políticos cearenses.76
Na sequência do imbróglio, mais uma vez os apelos provenientes de Dom Manuel
causam maior impacto na capital brasileira que as manifestações não tão bem coordenadas dos
políticos cearenses. No Rio de Janeiro, o Arcebispo entra de vez na dinâmica política que
envolve a questão da seca, dirigindo à bancada cearense pedido de ajuda aos flagelados,
causando, segundo os relatos que chegaram de lá, “viva impressão”. A questão da seca,
sobretudo a capacidade de mobilizá-la como parte de um arsenal político, naquele momento
dependia da forma e da força com as quais os grupos e indivíduos a manejavam para se
inserirem no jogo político.
Ante o cenário de ebulição nacional, Peixoto busca transparecer tranquilidade e
consciência dos problemas do Ceará. Os caminhos apresentados por ele continuam em
consonância com o contexto de expansão da economia capitalista, indicando inclusive a
importância do desenvolvimento de planos de modernização, tal qual se verificava mundo
afora. Na tentativa de projetar caminhos futuros, tratou da seca na mensagem oficial endereçada
à Assembleia Legislativa do Ceará. Nela, Peixoto indica que a resposta para o problema
histórico do estado estaria na ampliação da açudagem e dos canais de transporte e de
comunicação, bem como na modernização de técnicas agronômicas. O algodão, gênero agrícola
que mais concorria para a riqueza do Estado, poderia ser ainda melhor aproveitado desde que
avançasse o desenvolvimento da agricultura mecânica e científica. Em sua visão, naquele
momento a atividade agrícola estaria marcada pelo signo do rotineiro e antiquada. Peixoto de
Matos acreditava ser possível contornar a crise superando os empecilhos que “travavam o
progresso econômico” do Ceará. A despeito das críticas construídas pela oposição e do cenário
75
Ibid., 1930.
76
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1930.
50
de crise decorrente da seca, que o próprio Peixoto assegurava interna e externamente, ele
afiança: “não se pode negar que as nossas condições econômicas sejam boas”.77
As crises econômicas ocorridas em 1920 no Brasil, acrescidas dos severos
desdobramentos da quebra do mercado internacional, em 1929, concorreram para o difícil
cenário produtivo do período.
No curso da década de 1920, após o recesso dos dois primeiros anos, decorrência da
crise internacional, a indústria parece ter retomado o desenvolvimento em 1922, e
sobretudo em 1923, para sofrer um séria queda em 1924, da qual só se recuperaria,
parcialmente, nos últimos anos do período, sem atingir o nível de 1923. (FAUSTO,
1997, p. 38).78
77
Mensagem enviada à assembleia legislativa pelo presidente do estado José Carlos de Matos Peixoto, de 1929,
p. 31.
78
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
79
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
51
O apurado nos locais das eleições aponta que em quase todos os municípios foi
conspurcado o direito de voto do povo. Para os aliancistas, “diante de semelhantes misérias, a
revolução está plenamente justificada”:
80
Jornal A Razão, 4 de março de 1930.
81
Jornal A Razão, 4 de março de 1930.
82
Ibid., 1930.
52
aliancista, somente a nona seção funcionou e as demais ficaram fechadas sob protesto de fiscais
da AL. Em Barbalha, o eleitorado cruzou as ruas declarando seu voto, visto que as seções foram
fechadas. O juiz barbalhense seguiu para o Crato e na ausência da autoridade maior, o escrivão
teria se apoderado dos títulos que se achavam no cartório, “declarando que não os entrega
porque não o quer”. Os eleitores alijados de seus direitos protestaram realizando comícios para
denunciar a fraude.83
Em Crato, lugar preferido dos juízes fujões, a eleição ocorreu normalmente até às 14h,
quando, segundo telegrama vinculado no jornal, percebendo a possível vitória aliancista,
“começou a fraude eleitoral”. Eleitores que já haviam votado em outras seções foram recebidos
para novo voto às 20h da noite, os trabalhos de apuração foram interrompidos e os livros
levados. Fiscais constataram seções fechadas em Várzea Alegre. Em Campos Sales deram conta
de que a eleição fraudulenta teria sido feita na casa do prefeito. Em Milagres, foi aberto o
edifício da primeira seção, comparecendo apenas o juiz de direito. Porém, “Soldados e capangas
armados percorreram as ruas, provocando desordens”. O sargento Francisco Ferreira prendeu,
“sem motivo”, fiscais aliancistas.
O afinco do jornal em reportar tantos casos aponta para a tentativa de desacreditar de
vez os termos pretensamente democráticos do regime vigente. A demonstração da disseminação
do caos eleitoral por todo o estado motivou resposta oficial na documentação da Presidência do
Estado do Ceará. Em mensagem apresentada à Assembleia Legislativa, lida na abertura da 2ª
Sessão Ordinária da Décima Legislatura, no dia 1º de julho de 1930, o Presidente do Estado do
Ceará, José Carlos de Matos Peixoto, com a distância temporal a seu favor, mas não menos
imerso num contexto conturbado, tenta acalmar os ânimos em poucas linhas:
As relações do Estado do Ceará com a União e com os Estados têm sido de máxima
cordialidade. A agitação política, que perturbou recentemente a vida da nação no
decurso da campanha presidencial não logrou alterara harmonia e a união de vistas
reinantes entre este Estado e as demais unidades da Federação. Sumamente cordiais
têm sido também as relações entre o governo do Estado e os municípios. No dia 1 de
março próximo findo, realizou-se a eleição para presidente e vice-presidente da
República, saindo triunfante do pleito os nomes dos eminentes e preclaros estadistas
drs. Júlio prestes de Albuquerque e Vital Henrique Baptista Soares. O veredicto das
urnas, no Ceará, pôs em relevo a disciplina e patriotismo dos partidos que apoiam o
governo do Estado.84
83
Ibid., 1930.
84
Mensagem do presidente do estado do Ceará, José Carlos de Matos Peixoto, apresentada à Assembleia
Legislativa e lida na abertura da 2ª sessão ordinária da décima legislatura. 1º de julho de 1930. Typografia
Gadelha. Ceará. pp. 2-3.
53
Para o grupo que emerge vitorioso em 1930, saneamento moral e das contas públicas
eram pontos importantes para consolidar um novo momento do Brasil e para o estado do Ceará.
A fim de soterrar o passado para a consolidação do presente revolucionário, condutas muito
específicas foram cobradas dos vencedores.
Em seu discurso de posse como chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas indicou
que o movimento revolucionário, vitorioso em outubro de 1930, contou com o povo das
diversas regiões do país para subjugar um “governo já em agonia”. Aos camaradas da Junta
Governativa, indicou a convicção de substituir “o regime de ficção democrática” por outro “de
realidade e confiança”. A mensagem recomendou que era preciso refletir sobre a “obra de
reconstrução” que lhes cumpria realizar. A empresa aludida exigiria “reajustamento social e
econômico de todos os rumos”.86
Para o real exercício das funções públicas cabia desmontar a “máquina do filhotismo
parasitário”. Isso significava combater o “caciquismo eleitoral” através da ação de homens
“capazes e de reconhecida idoneidade moral”.87 No que diz respeito às mudanças financeiras e
econômicas da nação, Vargas sentenciou que havia uma série de providências a serem
executadas, entre elas, “a restauração do crédito público e o fortalecimento das fontes
produtoras”.88 No Ceará, até aquele memento, esteve enredado em eleições fraudulentas e
85
“Távora acabou, entretanto, por entrar em choque com a guarnição do Exército sediada em Fortaleza, sendo por
isso exonerado do governo em setembro de 1931, quando foi substituído pelo Capitão Roberto Carneiro de
Mendonça. Segundo Juarez Távora em seu livro Uma vida e muitas lutas, a divergência entre a corrente tenentista
e Fernandes Távora remontava à data da posse deste, pois, desde a preparação da revolução no Ceará, ficara
acertada a designação do major João Silva Leal, do Colégio Militar de Fortaleza, para assumir o governo do
estado após a vitória do movimento. Para resolver a questão, em setembro de 1931 foi constituída uma comissão
especial integrada por Osvaldo Aranha, ministro da Justiça, o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro e Pedro
Ernesto Batista, interventor no Distrito Federal, a qual, embora isentando de culpa Fernandes Távora, julgou
mais acertado que o Governo Provisório aceitasse sua exoneração”. In. PECHMAN, Robert. Verbete
“Fernandes Távora”. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/manuel-do-nascimento-fernandes-tavora> Acesso dia 12 de setembro de 2018.
86
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em 28 de julho de 2018.
87
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível:
<http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em 28 de julho de 2018.
88
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível
em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em: 28 jul. 2018.
55
convivia com crises sociais periódicas exacerbadas a cada estiagem prolongada. Já ao longo da
década de 1930, como visto anteriormente, parte do estado, sobretudo a região jaguaribana, já
exigia atenção da sociedade devido à seca.
Com a vitória das fileiras revolucionárias, as promessas de mudança e melhoria de vida
deveriam ser executadas pelos novos chefes da nação. No Ceará, segundo Simone de Souza,
havia um candidato dos tenentes para assumir a governança do estado, o major João da Silva
Leal. Porém, as operações militares decorrentes da tomada de poder exigiram a ação do militar
na cidade de Sousa, na Paraíba. Sua ausência do Estado no momento em que eclode a revolução
possibilitou a indicação do líder civil Fernandes Távora para a chefia do governo estadual.89
Depois que Matos Peixoto abandonou seu posto no governo do Ceará, ante a
aproximação do 23º Batalhão de Caçadores, os partidários da Aliança Liberal e de Getúlio
Vargas presos por ordem de Peixoto são libertados. Entre eles está Fernandes Távora que, em
praça pública, assume o papel central nas comemorações e ascende como novo chefe do
executivo, representante do Governo Revolucionário no Ceará.90 O momento é de comoção,
mas também, a aberta participação na campanha aliancista, a experiência política e,
principalmente, suas conexões com figuras importantes do processo revolucionário foram
decisivas para sua proclamação como Interventor Federal. À revelia das projeções anteriores, a
soma desses elementos garantiu a confirmação do médico Manuel do Nascimento Fernandes
Távora, irmão do herói revolucionário Juarez Távora, no dia 14 de novembro de 1930, dada
pelo chefe do Governo Provisório Getúlio Vargas.91
O novo chefe do Executivo Estadual buscou ater-se a política tenentista, que precisou
ser constantemente reforçada e justificada. Para tal, tinha a seu dispor um poder bastante amplo.
O decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930, em seu artigo 11º, ato inaugural do pós-
revolução, definiu a silhueta do Governo Provisório, instituindo a figura do Interventor Federal.
Haja vista a dissolução dos congressos federais, estaduais e municipais, além da dissolução de
89
Cf. SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP.
90
SOUZA. Ibid., p. 5-6.
91
O capital político de Fernandes Távora foi amealhado ao longo dos anos através de engajamento político dentro
e fora das estruturas oficiais. Ele foi eleito deputado estadual no Ceará entre 1913 e 1914, depois de 1918 até
julho de 1920. Logo depois, liderou a Reação Republicana, que promoveu a candidatura de Nilo Peçanha à
Presidência da República em oposição a de Artur Bernardes. Foi também redator-chefe do jornal A Tribuna,
entre 1920 a 1925. No final daquele anos, quando a Coluna Prestes invadiu o Piauí, ameaçando o Ceará, o jornal
fechou e Fernandes Távora exilou-se na Europa. Fernandes Távora foi também o fundador do Partido
Democrático do Ceará e da Aliança Liberal no Ceará. Cf. PECHMAN, Robert. Verbete “Fernandes Távora”.
Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/manuel-do-nascimento-
fernandes-tavora> Acesso dia 12 de setembro de 2018.
56
§5º Nenhum interventor ou prefeito nomeará parente seu, consanguíneo ou afim, até
o sexto grau, para cargo público no Estado ou §6º O interventor e o prefeito, depois
de regularmente, empossados, ratificarão expressamente ou revogarão os atos ou
deliberações, que eles mesmos, antes de sua investidura, de acordo com a presente lei,
ou quaisquer outras autoridades; que anteriormente tenham administrado de fato o
Estado ou o município, hajam praticado. §7º Os interventores e prefeitos manterão,
com a amplitude que as condições locais permitirem, regime de publicidade dos seus
atos e dos motivos que os determinarem, especialmente no que se refira à arrecadação
e aplicação dos dinheiros públicos, sendo obrigatória a publicação mensal do
balancete da Receita e da Despesa. §8º Dos atos dos interventores haverá recurso para
o Chefe do Governo Provisório. 92
Ao tempo que a existência da interventoria significava novos termos para jogos de poder
locais e para o início do processo de apagamento da agora Velha República, a instituição
demarcava a centralização do poder no governo federal.93 Indicado como aquele que, ao lado
do povo, fiscalizaria todo e qualquer servidor público da nação, o Chefe do Governo Provisório
era o limite da ação dos poderosos interventores. A ele caberia, inclusive, as nomeações e
demissões de quaisquer funcionários públicos, inclusive do interventor. 94 Nesse sentido, os
enunciados proferidos pelo Chefe do Governo deveriam servir de bússola para a implementação
das interventorias. Naquele momento de transição, no entanto, a pacificação dos ânimos não
seria tarefa fácil.
Além de garantir a implementação do novo governo, caberia ao interventor o
saneamento moral, político e fiscal das unidades federativas. Competiria a eles, incluindo aí
Fernandes Távora, ações que iam desde a implementação de um bom ensino público até a
apuração de eventuais crimes de responsabilidade por parte dos governos anteriores.95
92
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
93
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
94
Decreto n.º 19.398, de 11 de novembro de 1930. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-19398-11-novembro-1930-517605-
publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 11 ago. 2018.
95
Discurso de Posse de Getúlio Vargas como Chefe do Governo Provisório, 3 de novembro de 1930. Disponível
em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/Getúlio-
Vargas/discursos/1930/03.pdf/view> Acesso em: 28 jul. 2018.
57
96
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
omega, 1976. P. 85.
58
97
ANRJ - Fundo 35 - Gabinete Civil da Presidência da República. Lata 16. Telegrama enviado ao Presidente do
Governo Provisório, enviado pelo Interventor do Ceará Fernandes Távora. Cidade de Iracema – CE, datado de
15.01.1931.
98
Para Lopes, a trajetória pessoal Juarez Távora, marcada pelo ímpeto revolucionário, simbolizava o combate aos
podres arranjos da velha República. Através disso, Juarez figurou entre os líderes do pós-revolução. O epiteto
“vice-rei” foi construído logo depois do desfecho vitorioso de 1930, apontada por Lopes como sendo o “outro lado
da moeda daquela que nomeia o puro e grande revolucionário nortista um autêntico herói da revolução...” E “os
“súditos” do Vice-reinado são a identidade negativa dos revolucionários nortistas. Lopes, Raimundo Hélio Um
Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e a Guerra de 32. Tese (doutorado)
– Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em
História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. pp. 29-31.
99
Lopes, Raimundo Hélio. Um Vice-Reinado Na República do Pós-30: Juarez Távora, As Interventorias do Norte
e a Guerra de 1932. Tese de Doutorado apresentada ao Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil – CPDOC. Rio de Janeiro, 2014. p.18.
100
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. pp. 247-348.
59
proeminência do papel dos militares e das pautas tenentistas na região, a situação política do
civil Fernandes Távora na Interventoria do Ceará se complicava.
Uma vez no cargo de maior poder do Ceará, Manuel Fernandes Távora emitiu diversos
decretos que versavam sobre novas atribuições do judiciário e a modernização e reconfiguração
da burocracia do Estado, bem como regiam a nomeação dos interventores municipais. Com tom
assertivo, indicando a força de seu julgamento, o recém Chefe do Executivo emitiu nota oficial
com recomendações aos novos Interventores Municipais:
101
Nota oficial do Interventor Fernandes Távora. Fortaleza, 28 de novembro de 1930. Cf. MOTA. 2000. p. 33-34.
60
interventor tenta esclarecer a nova realidade brasileira e cearense por meio de notas e decretos
vinculados nos jornais. Portanto “assegura a todos os habitantes do estado os direitos e
liberdades individuais” diante da dissolução do poder legislativo e da ampla atribuição do poder
executivo, informa sobre a manutenção das atribuições do poder judiciário:
Interessante notar que Fernandes Távora incluiu a expressão “por aclamação popular”
em seus decretos. A distinção é peculiar para o membro de um grupo de novos chefes do
executivo empossados sob a influência de Juarez Távora e diretamente pelas mãos de Vargas.
Nesse caso, a autoafirmação aparece como tentativa de justificar seus atos, respaldando-os
dentro do círculo revolucionário nortista para além do fato de ter desbancado um rival militar e
do parentesco com o herói revolucionário e, de maneira mais ampla, perante a sociedade num
contexto de insegurança generalizada. Ao que parece, para imprimir tranquilidade ao clima pós-
revolução, era decisivo a definição da forma como as demais mudanças seriam recebidas.
Apesar dos esforços de esclarecimento, a situação foi evoluindo para uma atmosfera de
descontentamentos que originou até mesmo uma rede de fofocas e acusações.
O disse me disse se aprofundou, chegando às páginas dos jornais. No A Razão, 26 de
novembro de 1930, acompanha-se o ambiente de denuncismo que obrigou Fernandes Távora a
se pronunciar publicamente. Acusações escritas, umas anônimas, outras assinadas, chegavam
constantemente aos membros do governo implicando “não só em perda de tempo consumindo
na sua leitura, mas também, não raro, vexame as pessoas atingidas por tais informações muitas
vezes malévolas e tendenciosas”. Diante disso, o Interventor informou que só leria as
“representações que lhe forem dirigidas por meio de petições, com as formalidades legais; e,
sempre que for verificada a falsidade de qualquer denúncia ou representação, [...] o governo
ordenará a punição do culpado”, mediante a instauração de processo criminal. 103 Medidas como
essa promoveria a outrora inimaginável separação entre o povo e o governo revolucionário,
102
Jornal A Razão, 9 de outubro de 1930.
103
Jornal A Razão, 26 de novembro de 1930.
61
104
Jornal A Razão, 27 de novembro de 1930.
62
e punidas e aos culpados caberia “indenizar o erário municipal de todos os gastos que não forem
plenamente comprovados com documentos legais” e somente o representante da Revolução no
Ceará teria prerrogativas para julgar os indícios encontrados. E ainda, “a escusa de ter agido de
acordo com a extinta câmara municipal cuja aprovação não sanará atos ilegais”. 105 O clima de
caça às maledicências da antiga República deveria desembocar na dura penalização das antigas
oligarquias, tal como sugerido pelo cronograma revolucionário.
Seguindo com suas lições, ainda na nota oficial dirigida aos prefeitos recém-nomeados,
Fernandes Távora contempla outra crítica alardeada contra a Velha República, o nepotismo. Os
prefeitos não poderiam nomear parentes seus, “consanguíneos ou afins, até o sexto grau”. Mas,
talvez, recordando que ele próprio estava ligado por laços de parentesco a um importante líder
nacional e figura central na estratégia política do novo regime e do Norte em especial, emenda
a ordem indicando ressalva: “a não ser um de confiança pessoal”.106
No que diz respeito a família Távora, até aquele momento sua trajetória foi construída
de maneira peculiar. Em conjunto, os Távora promoveram ações de caráter contestatório
partindo de suas posições no seio militar ao longo de toda a década de 1920, bem como
construíram bases políticas partidárias que, mesmo não sendo muito sólidas na capital e interior,
renderam-lhes mandatos políticos em mais de uma ocasião. Esses caminhos forjaram uma
distinção política no cenário regional e nacional ao longo do Governo Provisório, e mesmo
depois dele. Tais conquistas, percebidas de modo a focalizar as trajetórias individuais,
promovem outros entendimentos, afinal, enquanto o irmão Juarez foi, devido a suas ações
intrépidas e revolucionárias erigido personalidade nacional, o irmão Manuel teve muita
dificuldade para se manter no mais alto cargo que ocupou. Em um momento nacional delicado,
ele precisou dosar as tintas de suas decisões e manejar o peso da figura emblemática do irmão
herói.
Para seguir manobrando seu governo diante de contradições e projetos de poder,
Fernandes Távora avança dando visibilidade a seus posicionamentos. Um episódio envolvendo
o Interventor Municipal de Crateús nomeado por ele faz com que encarnasse a altivez do cargo
que ocupava. Dirigindo-se mais uma vez ao grande público, noticia o seguinte telegrama na
imprensa:
105
Jornal O Povo, 21 de outubro de 1931.
106
Jornal O Povo, 21 de outubro de 1931.
63
Para substituir os antigos prefeitos e outros funcionários, lancei mão dos homens mais
idôneos, nos respectivos municípios, dando naturalmente, preferência aos que comigo
haviam curtido longo ostracismo, comungando as ideias que nos levaram a revolução.
Houvesse eu agido de modo contrário, e os meus incontáveis detratores alegariam mui
coerentemente, aliás, que tudo ficara na mesma; que eu, de mãos dadas com os
decaídos, era um autêntico reacionário, digno, portanto, de desprezo e de anátemas.108
Para Távora, à revelia do apregoado pela revolução, não seria possível lançar mão de
indivíduos que fossem completamente desassociados da política. No entanto, importava elevar
os que, como ele, sempre promoveram ações de oposição àqueles que ocuparam os espaços de
poder no antigo regime. Em suas palavras, a primazia para ocupar os cargos pós-devassa
revolucionária deveria ser, portanto, de quem viveu o tempo das antigas oligarquias no
ostracismo.
Seja pela falta de quadros revolucionários, adesão à revolução por parte de oligarcas ou
por cooptação de sujeitos que de alguma forma circulavam no mundo político do regime
passado, agentes políticos conhecidos foram sendo nomeados para funções administrativas
importantes. Isso provocou hostilidade entre o Interventor e diversos setores da sociedade,
107
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
108
TÁVORA. Manuel do Nascimento Fernandes. Administração Manuel do Nascimento Fernandes Távora. Rio
de janeiro 1931. P. 29. In. SOUSA. 1980. p. 11.
64
inclusive com grupos que apoiavam o governo cotidianamente. Como disse Fernandes Távora,
a quantidade de seus detratores era incontável.
Nesse contexto, e diante da modernização conservadora que marcou o Governo
Provisório, setores populares buscaram manter içada a bandeira da moralização expressa nos
ideais revolucionários. O recado era dado cotidianamente, sem ressalvas. O texto que se seguia
a manchete “Cuidado, sr. Interventor de Iguatu!”, por exemplo, era claro: o momento até podia
não ser para ódios e vinganças, mas também não comportava facilidades e contemporizações.
109
Jornal A Razão, 8 de dezembro de 1930.
65
nortear-se pela voz da imprensa desinteressada, que auxiliou a derroca das oligarquias”.110
Indicando a fragilidade da gestão Fernandes Távora, o periódico puxa para si – e para a
imprensa de modo geral - a função de fiscalização dos rumos da Revolução. Esse
posicionamento demonstra que os rumos nacionais não seriam resultado somente da ação da
classe política.
A possibilidade de agregação das chamadas elites decaídas e de toda sorte de adesistas
mencionada pelo jornal decorria do fato de haver identificação ideológica entre estes setores.
Isso soava como indício precoce das contradições presentes no projeto pretendido pela agenda
revolucionária. Oligarquias decaídas e oligarquias dissidentes não haviam sido totalmente
desalojadas dos espaços de poder do estado. Elites e suas demandas continuaram em primeiro
plano, inclusive em um momento em que a crise climatérica se desdobrava em crise social.
Estas estratégias são fundamentais para o entendimento acerca da forma como o Governo
Provisório conduziu as políticas de socorros e combate à seca no Ceará.
Na matéria “Tudo por Deus e pela Pátria”, assinada pelos editores Aragão e
Albuquerque, do jornal O Debate, de Sobral, no norte do Ceará, o bem-estar do povo deveria
ser o protagonista da História nacional. Afinal, o povo era sempre o grande mártir, pois, no
Brasil, infelizmente, “o estado de desassossego e desarmonia é o mais acentuado possível [...]
as verdes esperanças que nos alimentavam já vão, uma a uma, se dissolvendo ao sopro quente
da realidade dos fatos e das coisas”. Em meio a intrigas políticas locais, nas quais o próprio
jornal estava inserido, o programa da revolução, “traçado pelo punho impoluto do glorioso
Joaquim Távora” estaria sendo miseravelmente “degenerado pelos atuais pseudo chefes da
nação”, as “politicalhas, que sempre foram as maiores desgraças dos povos” estavam se
infiltrando no “mecanismo orgânico do Brasil novo, corrompendo-o, deturpando-o,
avassalando-o. Os apóstolos de ontem se vão pouco a pouco metamorfoseando em opressores
de hoje”.111
Ainda nessa edição do periódico sobralense, outra matéria conta sobre como antigos
opositores a Fernandes Távora passaram a lhe dedicar préstimos. Vilebaldo Aguiar é o exemplo
apontado. Histórico apoiador do Presidente do Ceará deposto, Matos Peixoto, e inimigo
declarado do jornal O Debate, Aguiar estaria novamente inserido nas redes de poder locais.
Segundo o noticioso, “depois de vencida a revolução, ‘hostes peixotistas’ teriam passado por
uma rápida metamorfose”. Prosseguindo com o tom irônico, os editores se remetem aos
110
Jornal A Razão, 17 de novembro de 1930.
111
Jornal O Debate, 5 de março de 1931.
66
momentos que antecederam a implementação da Interventoria no Ceará: logo que teve a notícia
“da fuga do seu papai, Peixoto” subiu à cabeça de Aguiar – e por extensão, das oligarquias até
então no poder – “uma onda de desespero [...] Mas havia uma tábua de salvação, uma única:
aderir ao movimento regenerador”. Entre ameaças de publicar terríveis histórias sobre o Aguiar,
os jornalistas insistem que os “elementos decaídos” estariam de volta ao poder, é que essa triste
realidade “exige às vistas das autoridades do Estado”. Passados poucos meses da Revolução, a
capacidade do Interventor de desarraigar a politicagem fazendo valer os interesses do povo é
novamente questionada.112
Ainda ao norte do Estado, observa-se que a gestão revolucionária não estaria
funcionando a contento em muitos níveis. Como no episódio em que funcionários da Estrada
de Ferro de Sobral se dirigiram até o prédio do jornal O Debate para denunciar que a confiança
pública estava sendo quebrada. Dando conta de perseguição sofrida, os ferroviários expuseram
a conduta de Luciano Veras, novo chefe da Rede de Viação Cearense. Diante disso, o jornal
discute a implementação do novo governo: “no regime revolucionário, da lei, do direito [...]
não há lugar para os perversos e os perseguidores”. O novo governo deveria se ocupar das
“mazelas do povo”. 113
A seca será o elemento crucial para que críticas ainda mais ácidas ao governo do
Interventor Fernandes Távora começassem a pulular, até mesmo nos periódicos que há tempos
se dedicavam a apoiar o projeto revolucionário. No jornal A Razão, de 12 de novembro de
1930, o papel da imprensa enquanto fiscalizador das ações do governo é novamente esclarecido.
Com a matéria “Piedade para os famintos” o jornal expõe uma carta anônima descrita como de
“colaboração ao jornal”.
Na missiva, o redator do jornal é convidado pelo interlocutor inominado a refletir sobre
as dificuldades decorrentes da seca, mas também a se posicionar de maneira incisiva, pelo bem
dos mais atingidos pela crise.
Sr. Redator, A Razão, como está traçado no seu programa, é um órgão, um paladino
defensor da causa do povo. Eis o motivo, Sr. Redator, de mim, pobre diabo que sofre,
amargamente, nas aduncas e poderosas garras da miséria, - vir, humildemente, pedir-
lhe um favor, além do mais que já me tem prestado, por meio do seu jornal. Sr.
Redator, dê guarita a estas linhas traçadas por uma pessoa velha e enferrujada. 114
A dureza das linhas era direcionada à pessoa do Interventor Fernandes Távora. Este,
mesmo sendo parte da “gloriosa e bendita estirpe dos Távora” não tem seu nome laureado como
112
Jornal O Debate, 5 de março de 1931.
113
Ibid., 1931.
114
Jornal A Razão, 12 de novembro de 1930.
67
o do irmão. Juarez sim é delineado como aquele que terá o nome escrito, “com letras d’ouro,
nas páginas da nossa história”, que figuraria ao lado do mártir João Pessoa Cavalcanti de
Albuquerque, “o grande e renomado estadista que se sacrificou”. As lendas Juarez Távora e
João Pessoa teriam forjado um caminho esplêndido para o país, longe daquele “Brasil dos
Washingtons [...] Lamartines, Zé Peixotos”. Quase que em contraposição ao governo de
Fernandes Távora e do não citado Getúlio Vargas, a pátria de Juarez Távora e de João Pessoa
era descrita como o lugar onde seriam exaltados os “pobres e dos oprimidos que viviam sob o
jugo esmagador de um regime de politicalha sórdida!”.115
No texto, Manuel Fernandes Távora deveria fazer o melhor dos governos, pois Juarez
Távora, “o terror dos ladrões, tratou da semente e a semente germinou, nasceu e cresceu, e
faltando-nos, tão somente, colhermos os saborosos frutos de um regime de liberdade e justiça,
direito e fraternidade". Cabia ao Interventor, finalmente, abandonar a retórica de combatente da
revolução e tratar da crise social que se aprofundava. Diz a carta:
115
Jornal A Razão, 12 de novembro de 1930.
116
Ibid., 1930.
68
Restou aos mais carentes arcar com os desdobramentos mais nefastos da realidade.
Desconsiderando possíveis mudanças no aparato estatal decorrentes da Revolução de 1930, o
argumento da nota reivindica medidas de maneira genéricas, e desconfiando da inexistência de
um plano de combate à seca, diz: “Se, da parte dos poderes públicos, não houver qualquer
medida tendente a minorar tão aflitiva atuação, o colono jaguaribano irá pouco a pouco
morrendo de inanição”. Conhecedores do histórico de incipiente retorno ao teor urgente da
demanda, finalizam anunciando a certeza do desfecho trágico, o sertanejo morreria “talvez nas
proximidades do inverno”.
A maneira como os pedidos são elaborados indica que, diante da recorrência da
calamidade, sociedade e representantes políticos já dispõem de um vasto arsenal de exemplos
nefastos, bem como de uma lista de demandas não atendidas. Assim, os relatos das tragédias e
as exigências para contê-las estavam presentes na memória nacional, prontamente organizadas
para a mobilização em mais um momento crítico. Restava saber se o novo governo estaria apto
a responder a crise de uma maneira nova e mais efetiva. Até aquele momento, no entanto, as
habilidades do Interventor e da Interventoria haviam sido questionadas várias vezes. A fé nas
respostas à seca era pouca. Afinal, como em 1877, horrores já aconteceram sem jamais encerrar
a questão. Os socorros sempre chegavam tarde demais.
Seguindo com a estratégia de publicar as correspondências que davam conta de temas
importantes, o Interventor do Ceará anuncia no jornal A Razão, de 1º de dezembro de 1930, sua
ação diante da calamidade. Dirigindo-se ao Ministro da Viação e Obras Públicas, diz: “peço
permissão relembrar vossa excelência extrema urgência a socorro flagelados então morrendo
117
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
69
118
Jornal A Razão, 1º de dezembro de 1930.
119
Jornal A Razão, 6 de dezembro de 1930.
70
para a capital do Ceará. Mas, o momento já era nacionalmente reconhecido como temerário e,
mais uma vez, a pressão da calamidade dita o ritmo e o teor dos arranjos.
Diante da persistência da estiagem, uma gama de reivindicações e denúncias passa a ser
evidenciada. Jornal O Debate, edição de 26 de fevereiro de 1931, traz a matéria “O fantasma
negro da fome invade, sinistramente, os lares dos sentenciados. Socorro “Seu” Távora!”. O
longo título parecia se remeter aos episódios mais alarmantes das secas anteriores, quando
cortejos de famintos adentraram cidade, estabelecendo-se nas praças, próximos aos lares das
famílias mais proeminentes do estado. O teor principal da matéria, no entanto, era a paralização
dos serviços agrícolas da Colônia Correcional, na Fazenda Três Lagos. Segundo o texto, o
fechamento do equipamento era culpa da condução pouco efetiva que o Interventor estava
executando. O fechamento do equipamento era resultado da conjuntura de descontrole sobre a
calamidade, prestes a se tornar generalizada.
O povo tem fome de pão e de justiça. Quando a justiça falta, o povo chora angustiado
e espera. Mas quando a fome bate à choupana do pobre e a mesa pequena do
remediado, o estomago da criatura não pode esperar! [...] guarde estas palavras na
memória, Dr. Távora: seja humanitário, ou humano, socorra a estes desgraçados. Eles
não exigem a sua esmola. A esmola é humilhante. Eles querem trabalho. Tenha
compaixão, pelo amor de Deus!120
O impacto da falta de chuvas sob a já fragilizada rede de segurança que envolvia os mais
pobres era mote para as mais diversas demandas aos poderes públicos. Durante esses períodos,
as muitas fragilidades ficavam à mostra, trazendo à tona os cortes de verba, os duros impostos,
a delicada economia, as técnicas incipientes, os equipamentos públicos defasados, os projetos
de modernização engavetados (estradas, porto, obras públicas em geral); enfim, aqueles
momentos de estiagem faziam com que a sociedade cearense olhasse para si e deixasse ver nas
páginas dos jornais nacionais suas dificuldades. A seca, entendida aqui como crise social,
provocava debates de toda ordem.
Falando “em nome dos flagelados cearenses”, em telegrama enviado ao Gabinete da
Presidência do Governo Provisório, em 1931, Fernandes Távora agradece o crédito
extraordinário aberto em benefício dos atingidos pela seca.121 O Interventor descreve a resposta
governamental como um “gesto de altruísmo”. 122 A solução, no entanto, é de contingência, ou
seja, bem distante de ser o pontapé inicial para uma política pública que permitisse encerrar
definitivamente as amarguras do estado do Ceará.
120
Jornal O Debate, 26 de fevereiro de 1931.
121
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Telegrama Interventor do Ceará Manuel Fernandes
Távora. Protocolo de recebimento de 2 de agosto de 1931.
122
Ibid., 1931.
71
123
TÁVORA, Juarez. Uma vida e muitas lutas; memórias. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1973-76. 3 v.
124
PECHMAN, Robert. Da Revolução de 1930 ao Estado Novo. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/manuel-do-nascimento-fernandes-tavora.
Acesso em: 17 mar. 2018.
125
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Carta escrita por Fernandes Távora. Rio de Janeiro,
19.8.1931.
72
[...] sou obrigado, em virtude dos motivos superiores que a ditaram, a aceitar a vossa
renúncia do cargo de Interventor Federal do Ceará. Lamentando o vosso afastamento
do governo daquele estado, no exercício do qual demonstrantes tanto interesse e
dedicação para cabalmente desempenha-lo, cumpro o grato dever de agradecer-vos os
inestimáveis serviços prestados, com inexcedível zelo e patriotismo, durante a vossa
permanência naquela alta função. Aproveito o ensejo para reiterar-vos os meus
préstimos de sincera estima e constante apreço.128
126
Ibid., 1931.
127
Ibid., 1931.
128
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Carta escrita por Fernandes Távora. Rio de Janeiro,
19.8.1931.
73
responsabilidade de superar os interesses mais pessoais. Assim, diante da pressão exercida pelos
membros do exército cearense, o já bastante criticado governo de Fernandes Távora não pôde
contar com a influência de seu mais valoroso defensor e findou oito meses depois de seu início.
Sai o civil Fernandes Távora, entra o militar Carneiro de Mendonça que irá encarar a difícil
missão de acalmar os ânimos e atravessar o agravamento da seca no Estado.
74
129
Roberto Carlos Vasco Carneiro de Mendonça nasceu no Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1894. Concluiu
o curso primário no Rio de Janeiro, cursou depois a Escola Militar do Realengo. Tornou-se aspirante em abril e
segundo-tenente em dezembro de 1918, passando então a integrar a Comissão de Limites Brasil-Peru até 1920.
Após deixar a interventoria do Ceará, em 28 de agosto de 1934, foi promovido a major e serviu como oficial de
gabinete do ministro da Guerra. Foi enviado por Vargas para resolver crises políticas no Pará e no Maranhão,
nos dois momentos, assumiu brevemente a interventoria dos dois estados. Reformado no posto de major em
março de 1937, assumiu a direção da Carteira de Redescontos do Banco do Brasil, da qual se exonerou em 1944.
Com a deposição de Vargas (29/10/1945) e a posse em seu lugar do presidente do Supremo Tribunal Federal,
José Linhares, Carneiro de Mendonça foi nomeado ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Durante sua
gestão, tomou várias iniciativas no sentido de transformar as leis trabalhistas. No mesmo ano, Carneiro de
Mendonça apoiou o candidato da União Democrática Nacional (UDN) à presidência da República, brigadeiro
Eduardo Gomes, associando-se assim a antigetulistas de todos os matizes. Entretanto, o brigadeiro Eduardo
Gomes foi derrotado pelo marechal Eurico Dutra e, com a posse deste (31/1/1946), Carneiro de Mendonça deixou
o ministério. Faleceu no Rio de Janeiro em 12 de abril de 1946. Adaptado de LEMOS, Renato. Carneiro de
Mendonça. Disponível em: <https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
75
aproximação com a Liga Eleitoral Católica do Ceará (LEC). Havia um bloco concentrando
oligarquias tradicionais em torno da LEC, segmento que logo se converteu em partido político,
outro grupo formado pelos antigos oligarcas ligados a família Acióli, cabeças do antigo Partido
Republicano Conservador, naquele momento organizado sob a nomenclatura Partido
Republicano Nacionalista do Ceará. E, por fim, existia ainda os representantes locais do Clube
3 de Outubro, organização tenentista, reunidos no recém-fundado Partido Social Democrático
(PSD) no Ceará, grupo encabeçado pelo ex-Interventor Fernandes Távora, o major João Silva
Leal e o influente jornalista Demócrito Rocha entre outros.130
Depois que o tribunal especial presidido pelo Ministro da Justiça Osvaldo Aranha
inocentou Fernandes Távora, mas indicou sua substituição, Mendonça foi designado para chefia
do Estado do Ceará. Os jornais do período que há tempos davam conta do descrédito de
Fernandes Távora mostraram-se receptivos aos novos caminhos da Revolução no Ceará.
“Temos novo Interventor!”, bradava o jornal A Razão, antigo apoiador de Fernandes
Távora. O complemento da manchete era ainda mais ardiloso: “Que não incida nos erros do sr.
Fernandes Távora!”.
Estamos com um novo interventor. Foi nomeado para substituir o sr. Fernandes
Távora, conforme fora previsto pelas “démarches” que acompanhamos, tão de perto,
destas colunas, o capitão do exército Roberto Carneiro de Mendonça, oficial dos mais
brilhantes, ligado ao Ceará por grandes laços afetivos. 131
Mendonça havia passado pelo Ceará anos antes, onde conheceu sua esposa. Nas terras
alencarinas deixou alguns amigos como o monsenhor Salazar da Cunha que, em entrevista ao
jornal A Razão, elogiou a escolha do novo Interventor, descrito como possuidor das mais nobres
qualidades cívicas e morais. E mais, na tentativa de dirimir as desconfianças quanto a origem
do militar, o religioso recomendou que, mesmo não sendo “filho do Ceará, foi casado aqui com
uma cearense a quem amou mais do que a si próprio, já estando assim ligado à nossa terra pelos
laços do coração”. Assim, aconselhou: “o povo cearense deve recebê-lo de braços abertos”. 132
Desse modo, repleto de boas referências e, sobretudo por ser identificado como um novo ponto
130
Ao longo de sua gestão, diferente de Fernandes Távora, Carneiro de Mendonça conciliou-se com as oligarquias
mais tradicionais, aliou-se a Igreja, segmento atuante no processo político-partidário no período pós-
revolucionário através das ações da Liga Eleitoral Católica (LEC). Mais tarde, a LEC vai compor o grupo bem-
sucedido nas eleições realizadas no Ceará, corroborando a reanimação do organismo oligárquico tradicional.
Abordaremos esse ponto com mais profundidade no quarto capítulo da tese que tratará das movimentações em
torno da Constituinte, em 1934. Ver: LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
131
Jornal A Razão, 24 de agosto de 1931.
132
Jornal A Razão, 16 de setembro de 1931.
76
Daí a razão pela qual o sr. Fernandes Távora viu-se desajudado da solidariedade geral.
E o movimento contra as forças tentaculares da politiquice, que se infiltrava
sorrateiramente nas artérias do estado, de tal sorte tomou corpo que a permanência do
ex-interventor constituiria verdadeira imposição contra as aspirações renovadoras que
a mocidade, civil e militar, pleiteavam com nobre espírito cívico. A revolução não se
fez com o fito de substituir apenas os homens que detinham ao poder. Para isso, o
esforço dispendido, com sacrifício de vidas preciosas, redundaria inútil [...] esperava-
se que [Fernandes Távora], com o penhor de um passado de lutas republicanas,
enveredasse à trilha larga das reformas, não olhando gregos nem troiano,
compenetrado unicamente das altas responsabilidades que o movimento triunfante
depusera às suas mãos. Infelizmente, porém, não correspondeu o mesmo à justa
expectativa. E, por isso, aí já tem substituto. É de esperar que o capitão Roberto
Carneiro de Mendonça se distancie do rumo ingrato que perdeu o sr. Fernandes Távora
[...].134
133
Jornal A Razão, 24 de agosto 1931.
134
Ibid., 1931.
77
135
Jornal A Razão, 30 de agosto de 1931.
136
Jornal A Razão, 2 de setembro de 1931.
78
e lamentáveis os erros”. O Código dos Interventores estava sendo amplamente discutido pela
imprensa nacional. No jornal carioca O Globo, a impressão era de que os líderes revolucionários
apoiaram o novo texto e realçaram o primor da obra escrita pelo ministro Oswaldo Aranha. 137
As mudanças demonstraram que a marcha para a adequação do projeto revolucionário
não era inabalável, pelo contrário. Algumas notícias indicaram, inclusive, que a situação
política da Delegacia do Norte, comandada por Juarez Távora, preocupava Vargas, que estaria
pessoalmente envolvido na substituição dos interventores da Paraíba e Alagoas. Vargas também
se mantinha vigilante à turbulência política em Minas Gerais e São Paulo.138
Com a chegada de Mendonça, pulularam tentativas de reorganização do cenário político
do estado do Ceará. Associado à manutenção da campanha desabonadora contra Fernandes
Távora, setores da imprensa e da classe política tentaram promover o desmonte da rede criada
pelo primeiro Interventor cearense. Em Aracati, por exemplo, no litoral do Ceará, a Associação
dos Empregados do Comércio, aproveitando os novos ventos trazidos com a nomeação de
Mendonça, solicitaram mais atenção. Apoiados pelo jornal da cidade, os associados informaram
que, apesar das boas condições econômicas, a cidade padecia de pouca infraestrutura. Segundo
a nota, ao tempo em que Aracati permanece no injustificável apagamento político, outras
cidades com rendimentos inferiores realizam benefícios urbanos. A cidade de Cascavel,
localizada nas proximidades, “está reformando a estrada de rodagem, reconstruindo o mercado
e construindo um jardim moderno”.139 O problema estaria relacionado à gestão municipal
nomeada por Fernandes Távora.
137
Ibid., 1931.
138
Jornal A Razão, 3 de setembro de 1931.
139
Jornal A Razão, 11 de setembro de 1931.
140
Ibid., 1931.
141
Jornal A Razão, 11 de setembro de 1931.
79
comerciais que alardeavam a acusação, fossem merecedores dos cargos, afinal, diante de tantas
denúncias poucos sobraram para a função.
Outros pedidos da mesma natureza passaram ao público, como o de um grupo
proveniente da comunidade de Massapê, que também solicitou a troca de prefeito. Alegando
fazer parte de um grupo específico, o de aliancistas históricos, foram à impressa protestar contra
a permanência na prefeitura do cidadão Francisco Cavalcante Rocha. Segundo os subscritos no
abaixo-assinado, Rocha jamais teve apoio local, pois havia sido nomeado “sem consultar
interesses do município”, constituindo-se assim, “de um parasita” que não produziu
melhoramentos, “ocupando-se de baixa politicagem com elementos decaídos, adotando em sua
gestão hábitos do processo velho regime [...] mantendo-se no cargo amparado apoio oficial”.142
Em comum aos argumentos apresentados estava a constatação de que o período de más
desígnios executados ao longo do governo Fernandes Távora poderia significar apenas uma
crise momentânea, desde que as respostas aos problemas fossem oferecidas rapidamente pelo
novo Interventor. Era preciso um ritmo novo, acelerado e mais digno, “o sr. Capitão Carneiro
de Mendonça - síntese da aspiração do povo cearense – deve ir ao sertão ver de perto, auscultar
o organismo sertanejo” e prescrever “a receita salvadora”.143
142
Jornal A Razão, 27 de agosto de 1931.
143
Jornal A Razão, 27 de setembro de 1931.
144
Ibid., 1931.
80
145
Em posição política desfavorável, o ex-interventor decidiu dedicar-se a amparar seu partido nos diversos
municípios do estado. Movimento muito criticado pela imprensa. Para seus opositores, continuasse Fernandes
Távora no governo, “a anarquia seria inevitável”, seu modo de governar subverteria a ordem das coisas,
“convulsionando o estado com a irrupção de lutas partidárias neste e naquele município, onde o tavorismo
81
Ultimados os trabalhos, a nova divisão foi oficializada pelo decreto n.º 1.156, de 4 de
dezembro de 1933, entrando em vigor no mês seguinte. Na nova divisão administrativa do
Estado o número de municípios foi aumentado de cinquenta e um para um total de sessenta e
seis municípios. Em seu relatório de Gestão, Mendonça resume a questão dizendo ter julgado
que a nova divisão correspondeu às necessidades de todas as regiões, “elaborada que foi com
meditação e estudo imparcial dos fatores naturais e políticos de cada localidade, pois não se
compreendia que a revolução de 3 Outubro deixasse de encarar uma face tão importante da
administração pública”. 147
Durante sua administração, Carneiro de Mendonça buscou ampliar este primeiro aceno
ao proceder técnico que conduziu a resolução da questão política-administrativa. Em meio a
crises que sacudiriam seu governo, o novo Interventor seguiu projetando o uso dos parâmetros
técnicos, sobretudo na reformulação do aparato de execução de projetos e obras de combate à
seca, sempre em conjunto com a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas e o Ministério de
Viação e Obras Públicas. No entanto, as pressões da realidade nem sempre permitiram que
novas e melhores respostas fossem implementadas. Além disso, o argumento que defendia a
técnica, muitas vezes, era usado para mascarar objetivos outros. Em meio a criação de órgãos
procurasse desfraldar pendão rubro da discórdia”. Felizmente outro é o cenário para a revolução no Ceará”.
Jornal A Razão, 24 de set 31.
146
MENDONÇA, Carneiro. Relatório da Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.47.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul.
2018.
147
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
148
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. de 2018.
82
149
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. de 2018.
150
Ibid., 1934.
151
As sentenças proferidas pela junta de sanções eram executadas na capital pelo procurador fiscal da prefeitura;
nos municípios do interior pelo procurador fiscal e, a falta deste, pelos promotores de justiça. A comissão de
sindicância reunia-se duas vezes por semana no edifício da extinta Assembleia Legislativa e era composta de
três membros. Ver: Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 61.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul.
2018.
83
152
Jornal A Razão, 3 de setembro de 1931.
153
Jornal A Razão, 24 de setembro de 1931.
154
ANRJ - Fundo 35. Gabinete da Presidência da República. Telegrama Interventor do Ceará Carneiro de
Mendonça sobre a composição conselho consultivo do estado. Data de recebimento dia 10 novembro 1931.
84
sobre as esferas estratégicas da economia”. 155 Estes mecanismos foram sendo construídos sobre
estruturas políticas regionais, “subordinando-as ao mesmo tempo que as absorvia ou
circunscrevia seu âmbito de atuação; tudo isso através de ensaios e erros, numa série que vinha
já de antes de 1930”. 156 Nesse ínterim, as ações do Governo Provisório no Ceará precisaram
ser direcionadas para dar conta das medidas de combate à seca necessárias no período,
engendrando assim, práticas políticas, sociais e culturais novas e ligeiramente anteriores a
chamada “Revolução de 1930”.
Quando tomou posse em agosto de 1931, Carneiro de Mendonça mostrou-se ciente da
situação e das demandas do Ceará. Em seu discurso, ainda no Rio de Janeiro, procurou dar
relevo ao seu programa de política e administração. Declarou que os cearenses podiam contar
com sua grande vontade, esperando que, também ele, obtivesse a colaboração de seus futuros
governados. Prosseguiu revelando o intuito de praticar uma “elevada política de moralidade” e
resumiu seu plano numa simples sentença: “cogitarei, sobretudo, de dar ao povo boa justiça,
larga instrução e assistência, a mais eficiente possível, à pobreza do estado, às vítimas do flagelo
das secas”. 157
A opinião que se segue às palavras de Mendonça, apesar de exporem admiração pela
disponibilidade do Capitão à elevada causa mencionada por ele, revelam o pensamento acerca
da questão da seca e do papel que o Estado vinha desempenhando para a resolução do problema.
Estaria Carneiro de Mendonça pronto para “atirar-se às incertezas de uma precária interventoria
de um pequeno estado do Norte”?
Mas o sr. Carneiro de Mendonça ainda não conhece as condições financeiras do estado
que vem governar. Por isso, naturalmente, é que promete da nos “larga instrução”.
Ignora, de certo, as desesperadoras aperturas do nosso erário público, que lhe não
permitem, por mais que sinceramente o deseje, por mais que corajosamente se esforce,
a fazer grande coisa em matéria de instrução ou em qualquer outra que demande de
despesas extraordinárias. Pela mesma gravíssima razão, limitadas, muito limitadas,
terão de ser, necessariamente, as suas realizações quanto à assistência à pobreza, às
vítimas do flagelo das secas. 158
155
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e Partidos Políticos no Brasil. (1930-1964). São Paulo: alfa-
ômega, 1976. P. 84-85.
156
Ibid., 1976, p.84-85.
157
Jornal A Razão, 27 de agosto de 1931.
158
Jornal A Razão. 27 de agosto de 1931.
85
de mensagens. Mendonça chega a pedir sua exoneração a Vargas, alegando que atendendo
razões já apresentadas ao Sr. Delegado Federal do Norte, solicitava que “vossa exa. se digne
dispensar-me do cargo para qual fui honrado confiança do vosso governo”. As causas são
entendidas como fúteis por Vargas, que indica seu descontentamento com o gesto do Capitão
em anotações feitas a mão no documento.
No telegrama seguinte, Vargas anota que em sua administração, “não pretende o chefe
do governo com a soma de serviços que tem a atender, estar acompanhando o expediente das
repartições públicas nem de seus ministérios”, sugerindo o conteúdo da resposta a ser redigida
pelo gabinete, indica ter “grande apreço seus serviços e qualidades morais”.160
A resposta a Mendonça enviada pela Secretaria da Presidência assume o tom
conciliador:
O modo como Mendonça se posicionou neste primeiro momento, diante de, como indica
a carta da secretaria da presidência, “ocorrências comuns de administração”, chama atenção. O
fato de ter recorrido ao Delegado do Norte e, ainda assim, propor sua demissão ao Chefe de
Governo diante da demora, aparentemente normal, das demandas feitas, indica o descompasso
159 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
160 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
161 ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
86
entre as instâncias estaduais e federais, bem como entre o Interventor do Ceará e o centro do
Governo Provisório.
É certo que o sucesso para viabilizar os socorros aos flagelados, prover o estado das
mudanças e modernizações pleiteadas internamente e manter-se no cargo, dependia diretamente
da capacidade do Interventor para mobilizar o governo federal. Ainda assim, Carneiro de
Mendonça não se exime de demonstrar contrariedade. Para lidar com a grande questão histórica
que lhe caiu ao colo, a Seca, e contornar os atritos com a Presidência, Mendonça estabelece
uma parceria mais sintonizada com a Inspetoria de Obras Contra as Secas e o Ministério da
Viação e Obras Públicas.
Escolhido para debelar a crise política no estado, Carneiro de Mendonça chega com
muitas responsabilidades, mas também com certo respaldo. Como militar, possuía as credencias
de entrada. Mas, para fazer jus a sua escolha, deveria suprir os desejos locais por mudanças e,
assim, poderia refundar as amarras do Governo Provisório num dos mais visados estados do
Norte e, de fato, tornar o Ceará partícipe de um novo país.
162
Jornal A Razão, 26 de setembro de 1931.
87
seu governo “nos braços da horrível situação”. A população assolada pela fome já se colocava
em marcha para a capital. Além disso, a região jaguaribana, diretamente atingida, já registrava
mortes diante da falta absoluta recursos. A argumentação dizia que não era tempo de cruzar os
braços abandonando o povo por cujo bem-estar o Presidente era responsável direto, assim como
o Interventor. Diz Mendonça:
[...] tomo liberdade sugerir v. ex. determinar seja entregue aqui, inspetor federal dr.
Luiz vieira, intermédio banco brasil, adiantamento trezentos contos, por conta crédito
referido mil contos. Tendo entrado entendimento inspetor dr. Vieira, estou informado
situação zona assolada seria fortemente atenuada e beneficiada trabalho definitivo
construção canais irrigação Santo Antônio Russas e construção Icó, Jaguaribe Mirim.
Para isso seria necessário apenas v; ex. determinar remessa mais duzentos contos além
trezentos tocou Ceará, concorrendo assim vosso patriótico governo ato benemerência
e humanidade, salvando more gloriosos filhos do brasil, dignos melhor sorte. É o apelo
dirijo v. ex., certo será tomado devida consideração diante rigorosa realidade situação.
Grato seria meu governo v. ex. se dignasse algo dizer respeito. 163
163
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama de Carneiro
de Mendonça para Getúlio Vargas, em 30 de setembro 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
164
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama de Carneiro
de Mendonça para Getúlio Vargas, em 30 de setembro 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
88
aludidos, parte crédito orçamentário destinado primeiro distrito, corrente exercício perfazendo
total 458:333$500”. 165
Diante do quadro de agravamento da calamidade no Ceará, Carneiro de Mendonça
enviou novo e alarmante telegrama à Presidência da República.
Chama atenção o relato sobre saques ao comércio local e à Inspetoria de Secas. Como
indica Frederico de Castro Neves (2002), houve, desde a seca de 1887, um processo de
formação e organização periódica da multidão como sujeito político coletivo. Esses eventos
“demonstram uma determinada forma de “negociação” política que possui características
específicas e que não pode ser avaliada a partir dos padrões e códigos da política dita
“moderna”.” Nessas ações surgidas em períodos de seca, ocorridas no entorno dos locais das
obras públicas ou nas áreas urbanas e comerciais, “a multidão escolhe as suas estratégias em
função das opções disponíveis”.167 Segundo Neves, ao longo do tempo, consolidou-se uma
tradição dos movimentos de multidão em períodos de seca que se estendeu, segundo o
historiador, até os anos 1950. Assim como se observa na fonte citada, a existência de alvos
específicos, a indicação do sujeito “povo” – conotando o caráter coletivo da ação, deixam ver
a existência de padrões e objetivos na ação dessa multidão. Não se tratava de uma ação
irracional: diante da situação de calamidade na qual estavam inseridos, estavam buscando
alimentos e “reclamando trabalho”.168
Desde agosto de 1931 o foco dos relatos era a penúria da região jaguaribana. Em geral,
a saída para o problema era oferecer trabalho para os flagelados que se avolumavam.
165
Ibid., 1931.
166
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Telegrama Carneiro
Mendonça, dia 5 de novembro 1931. Calamidade seca 1931. Acesso em: 02 de maio de 2018.
167
NEVES, Frederico Castro. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900), p. 75.
In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico Castro (org.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002 p. 14-
15.
168
Importa considerar os saques de maneira diferente daquela que os descreve como simplesmente espasmódico,
como tradicionalmente eram consideradas pelos estudos dos movimentos no campo. A fome é elemento a ser
considerado, no entanto, existe um caráter estratégico, e não simplesmente biológico. A fome, ela “não prescreve
que eles devam se rebelar nem determina as formas de revolta”. E.P. Thompson. Economia moral revisitada. In.
Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 150.
89
Trabalho para os flagelados, apenasmente! Povo sofredor nordestino! Vez por outra
entra-lhe, portas a dentro, a visita periódica das secas. E o flagelo bate-lhe de rijo no
dorso, açoitando lhe até a alma, amargurando-lhe as horas sombrias de desesperança
dantesca. Há dois anos que as populações do Jaguaribe curtem as agonias desse lento
calvário. Marcham, abatidas pela sorte implacável, sob o olho coruscante e ameaçador
do sol que é todo um braseiro consumidor. E os gritos dos pais aflitos, o pranto das
mães que veem a prole agonizar lentamente, apegados, todos, ao lar que as gerações
passadas construíram, como que mal repercute dentro da pátria, que já se acostumou
a fatalidade que nos depaupera e mata. Por que o poder público não corre pressuroso
em socorro dos nossos irmãos? É tempo de socorrer os famintos; é tempo de um gesto
que minore todo esse horror que devora os trabalhadores de grande parte do hinterland
nordestino. Para obviar os males em que nos debatemos, e que pesam sobre todos nós
esmagadoramente, por ora, seria possível atacar, a preços reduzidos, algumas das
grandes obras de que tanto carece o interior, com proveito certo para o dia de amanhã
e mais a vantagem da fixação do homem ao solo, enquanto a voragem passa. Bem
poderá o novo interventor, o capitão Carneiro de Mendonça, fazer ecoar nosso brado
aos ouvidos do Sr. Getúlio Vargas. 169
169
Jornal A Razão de 28 agosto 1931
170
O período mais asseverado de seca, em 1933, deu lugar ao prosseguimento de obras de melhoria da
infraestrutura do estado. Para dar conta desse volume de afazeres, e demonstrando a tentativa de dar
prosseguimento a postura de maior sistematização e organização desse tipo de trabalhos a nível estadual, o
Interventor do Estado do Ceará reorganizou a antiga Diretoria de Viação e Obras Públicas do Estado que ficou,
por meio do decreto n.º 1.019, de 15 de maio de 1933, constituída por três divisões e uma administração central.
As obras executadas e/ou fiscalizadas pela Diretoria chamam atenção, entre eles estão: a construção de uma
galeria de águas pluviais na capital, com extensão de 418 metros, composta de três trechos de capacidades
diferentes; 140 metros de canais de ligação de bocas de lobo; A pavimentação da cidade, feita pelo estado sob a
supervisão da Diretoria alcançando as Ruas Senador Almino, Rua Dr. João Tomé, Rua Tristão Gonçalves e Rua
90
Destacadas juntamente com os dados de prestação de contas, as obras não são descritas
como benesses dos tempos sombrios. No entanto, outros setores da sociedade não se eximiram
em reconhecer a obviedade.
De fato, ninguém deseja seca para o Ceará, mas incontestavelmente a seca nos traz
algum bem. Todo mundo sabe que aqui no Ceará, só se trabalha nestes tempos de
grandes calamidades. O governo federal, só nestes tempos bicudos, se lembra do
pobre do nordeste.
Empolgado com uma política nojenta não se preocupa, absolutamente, com os
problemas inaudíveis do Brasil cuja solução está a seu cargo porque se comprometeu
solenemente a trabalhar pelo progresso de nossa grande pátria.
A prefeitura de sobral nunca se achou em tamanha atividade.
Mais de 1300 operários trabalhando diariamente, empedram, abaúlam, a jardinagem,
arborizam e concertam as ruas principais praças da cidade.
E devemos tudo isto à seca e à ação construtora e progressista do Te. Floriano
Machado digno e atual prefeito de Sobral. E diga-se que a seca não nos traz o bem.171
Como evidenciado no texto publicado no jornal, era perceptível que a seca trazia em seu
bojo, vantagens: a atenção política e as verbas públicas eram ampliadas e a disponibilidade de
mão de obra garantia perspectivas de um futuro diferente, talvez melhor e mais moderno. À
25 de Março, abarcando com isso, vias importantes do centro da capital, indo em direção à praia e ao antigo
porto da cidade. Esses melhoramentos foram executados a partir da mão de obra dos flagelados. Estradas ligando
municípios do estado também foram executadas pela Diretoria, algumas delas em parceria com a Inspetoria de
Obras Contra as Secas como, por exemplo, a Estrada Santos Dumont a marés iniciada pelo estado, foi concluída
pela inspetoria. Além do calçamento das ruas, a Diretoria de obras Públicas construiu e melhorou açudes de
médio e pequeno porte, tal como previa a organização dos esforços de socorros prevista pelo Governo Provisório,
ao qual cabia a construção de obras de maior porte. O Açude de Santo Antônio do Pitaguary, por exemplo, teve
sua estrutura renovada pela Diretoria “merecendo francos elogios do público e até da impressa” pela velocidade
com que executou o serviço.
171
Jornal O Debate, 21 de maio de 1932.
91
medida que respondia às demandas por socorros aos flagelados, o Governo Provisório também
atendia antigos anseios por novidades. Assim, as frentes de trabalho tinham a função de agrupar
os flagelados que, mediante o trabalho nas obras, garantiam o acesso aos socorros
providenciados pelo governo, mas também proporcionavam a edificação do futuro, revelando
outras possibilidades e sensibilidades aos períodos de seca, sobretudo nas áreas mais urbanas.
No texto publicado no Jornal O Debate, observa-se ainda que os flagelados relacionados
ao progresso recém-experimentado são chamados de “operários”, evocando uma lógica do
trabalho que diferia do cotidiano de trabalho no campo. Nesse espaço novo, os sertanejos
precisavam tratar com uma pluralidade de situações que forjaram experiências de vida e
trabalho específicas. Essa vivência marca os canteiros das obras realizadas durante a seca de
1932. No terceiro capítulo da tese abordaremos o cotidiano de um desses canteiros de obras, o
açude Lima Campos, e a mobilização de camponeses como operários da seca lá ocorrida.
Em 1932, além dos trabalhos nas obras do governo, flagelados foram incorporados aos
batalhões provisórios surgidos no Ceará durante a Revolução Constitucionalista de 1932, em
São Paulo.172 A formação dos batalhões de voluntários foi parte do conjunto de ações que visava
combater a chegada da multidão de retirantes aos centros urbanos cearenses.
Essa incorporação, de certo modo compulsória, por mais que não aparecesse na
imprensa, certamente era de conhecimento da população, que acompanhava todo o
processo cotidianamente, a partir dos jornais, dos comícios, dos desfiles, dos panfletos
presentes no Ceará durante a guerra. Não houve a divulgação de nenhuma
manifestação formal contra a medida, já que os aliados de Getúlio Vargas não
mostravam constrangimento com ela. 173
Segundo Raimundo Hélio Lopes, a também chamada Guerra de 1932 tornou o cenário
político e social nacional ainda mais instável, fazendo com que os governos federais e estaduais
exigissem da sociedade em geral envolvimento em todos os momentos do conflito. Como
demonstra o autor, o embate fratricida ocorrido em São Paulo desenvolveu-se na verdade, em
muitas outras frentes. No Ceará, o conflito está conectado a eventos numa perspectiva mais
ampla com “a chamada ‘Revolução de 30’, sua política administrativa, as diversas
Interventorias estaduais, os projetos de República e Constituições que se confrontavam, as
172
Como explica Lopes, no Ceará o nome da guerra ocorrida em terras paulistas em 1932, se convencionou como
“Revolução Constitucionalista de 32”, inclusive nos compêndios cearenses. As nomenclaturas que o conflito
recebeu ao longo do tempo são impregnadas de sentidos políticos que abarcam as várias memórias e
interpretações do conflito, inclusive dentro da numerosa historiografia que analisa o tema. (2009, p. 13).
173
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 140.
92
reformulações do Exército Brasileiro, a seca nordestina, dentre outros”.174 Lopes afirma que em
meio as querelas em torno do alistamento e das gratificações, diferentes perfis de sujeitos
compuseram os Batalhões de Voluntários. Entre eles estavam alguns retirantes da seca que,
negociando saídas para a situação de calamidade em que viviam, tornaram-se parte do esforço
de guerra.
Em seu relatório, o Interventor Carneiro de Mendonça argumenta que o Estado dispunha
apenas de um corpo de segurança pública com um batalhão de infantaria, cuja responsabilidade
era a de assegurar a ordem cotidiana. Não podendo prescindir dele, foi preciso criar corpos
provisórios, cujas despesas correriam por conta da verba consignada no decreto federal n.º
21.607 de 11 de junho de 1932. Foram organizados três batalhões provisórios e um contingente
que, em tempo oportuno, seguiria com destino ao sul do país.175
Em 4 de agosto de 1932, a Interventoria baixou decreto dando providências para
legitimação das famílias das praças que seguiram para aquela operação. 176 A inclusão de
benefícios às famílias, decerto contava como ponto positivo àqueles chefes de família alistados
nos batalhões. No entanto, muitos retornavam do conflito e não recebiam a remuneração devida,
retomando assim o cotidiano de miséria que impregnava os lares dos pobres cearenses.
Abandonados pelo Governo Provisório, muitos recorriam a violência, assaltando, inclusive a
mão armada, os comércios locais.177
A todo o momento, a argumentação dos governos local e central era de que a formação
dos contingentes e dos esforços para combater os revoltosos em São Paulo cumpria a função
patriótica de defender a unidade nacional. Nas palavras do Interventor, o Ceará estaria
“corroborando as tradições heroicas dos seus filhos, se assegurou uma parcela de dedicação, na
grande obra de integridade nacional, representada pela vitória da causa legal, ou seja, a
confraternização de todos os brasileiros”.178 Evidentemente, desta feita estaria também o
governo do Ceará depositando seus filhos já sofridos pelos horrores da seca para a causa
revolucionária outubrina e do Norte. Sem a estiagem dificilmente a Interventoria teria
conseguido formar seus batalhões provisórios. Provavelmente, muito menos cearenses tivessem
seguido para a guerra patriótica em outro contexto que não o de crise climatérica. Além disso,
174
LOPES, ibid. p. 17.
175
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 34. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
176
Ibid., 1934, p. 34.
177
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 147.
178
Ibid., 1934, p. 34.
93
O governo com as cautelas que o momento exigia e com a cooperação quase unanime
da população, evitou que o estado tivesse ensanguentado o seu solo com lutas inglórias
e injustificáveis. Nenhum plano de revolta teve começo de execução no estado, mas
o Ceará não devia se limitar a essa situação de defesa interna, cabia-lhe o dever moral
e material de concorrer para o reestabelecimento da ordem nacional profundamente
abalada por aquele movimento sedicioso.181
Dulce Pandolfi indica que o papel desempenhado pelo Norte no conflito contra a revolta
sulista foi muito importante para a relação entre o grupo nortista e o Governo Provisório e que
mesmo depois de dois anos do movimento revolucionário de 30, os estados dessa Região
empenharam um dos mais efetivos apoios políticos recebidos por Vargas. Apenas no Norte se
realizaram mobilizações populares em apoio a Vargas e, consequentemente, em protesto ao
movimento constitucionalista.182
No Ceará, como em todo o país, a mobilização para a guerra se efetivou com apoio da
imprensa, chegando ao ponto de as preocupações com o envio dos batalhões a São Paulo
eclipsarem os horrores da seca. Nas palavras de Lopes, “a imprensa cearense durante a Guerra
179
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 142.
180
LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
181
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p.48-49. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
182
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 347.
94
de 1932 passou por uma reconfiguração, na qual os assuntos bélicos foram hegemônicos em
suas páginas, sendo mais numerosos que os relacionados à seca”.183 Apesar da aparente
desconexão entre o conflito e a seca, governo e imprensa percebiam o alistamento dos
sertanejos como fundamental para contingenciar a crise social. Carneiro de Mendonça, em
documentação oficial, lembra que parte da oferta voluntária saía dos Campos de Concentração
de flagelados, indicando inclusive que o 2° e o 3° batalhões eram formados por civis com
aparência não apropriada: “seria conveniente evitar embarque batalha traje civil devido
desagradável impressão chegada aí com roupas vivem sertão, aspecto flagelados”. 184
Em meio às demandas por serviços de socorro aos flagelados, e de ações para evitar a
aglomeração de desvalidos, a Interventoria tomou severas providências para tratar outra
importante questão: a falta de gêneros alimentícios de primeira necessidade.
183
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 19.
184
ANRJ - Gabinete Civil da Presidência República. Série 14.5. Telegrama de 14 de julho de 1932. Cf. LOPES p.
138.
185
Jornal A Ordem, 13 de março de 1932.
95
Logo depois, em 17 de outubro de 1932, por meio do decreto n.º 796, foi criada em
substituição ao Comissariado da Alimentação, a Comissão de Abastecimento Público, que ficou
incumbida da fiscalização em todo Estado. Suas principais funções eram organizar na capital o
cadastro de todos os armazéns, mercearias e quaisquer estabelecimentos em que sejam expostos
à venda gêneros de primeira necessidade; proceder ao levantamento do estoque de artigos
alimentícios existentes naqueles estabelecimentos comerciais; manter perfeito serviço de
estatística dos gêneros alimentícios entrados na capital do estado, por qualquer via; organizar
semanalmente e fazer publicar todos os sábados tabelas de preços máximos para a venda de
gêneros alimentícios; obter cotação de diferentes artigos no interior, na capital e as demais
praças do país; solicitar das repartições públicas informações sobre os preços de transportes de
mercadorias; finalmente, exercer rigorosa fiscalização relativa à execução das tabelas de preços
em vigor. 187
O objetivo das ações era, portanto, adquirir gêneros alimentícios quando necessário e
assim, estabelecer o equilíbrio do consumo e venda de alimentos, coibindo a ação maliciosa de
açambarcadores e especuladores em geral. A possibilidade de requisitar ou desapropriar por
necessidade pública toda espécie de gêneros demonstra a abrangência da crise alimentar
naquele momento, bem como a capacidade de intervenção exercida pelo Governo Provisório
na sociedade.
Com a criação da Comissão de Abastecimento Público, todo comerciante ficou
impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o
intuito de provocar elevação de preços. Aquele que tentasse burlar as normas e fiscalizações e,
não foram poucos os infratores, seria condenado a multa de 500$00 a 1:000$000, e ao dobro,
nas reincidências. A ação incidiu sobre toda a variedade de comércio do Ceará, alcançando
comerciantes grossistas e retalhistas, bem como e fundamentalmente, àqueles negociantes
responsáveis pelo fornecimento de alimentos aos serviços da Inspetoria Federal de Obras
186
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 62. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso dia: 07 de julho de 2018.
187
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 65. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso dia: 07 de julho de 2018.
96
Contra as Secas. Isso, decerto impediu somente algumas das tentativas de exploração da crise
alimentar que afligia a população em geral.
Também por decreto, n.º 566, de 14 de abril de 1932, a Interventoria Federal criou no
Estado, em caráter provisório, o Departamento das Secas para centralizar e uniformizar os
serviços de socorros, demonstrando mais uma vez que ao longo da seca de 1932, o Governo
Provisório, e no Ceará, a Interventoria de Carneiro de Mendonça, buscaram construir um
aparelho administrativo organizado para executar e dirigir os serviços de socorros aos
flagelados.
O Departamento das Secas, por intermédio de representantes nos Estados, tinha também
o encargo de fiscalizar a execução dos compromissos assumidos em defesa dos pobres. A
emigração dos flagelados ficou subordinada a ajuste prévio entre o Departamento das Secas e
o governo, bem como os arranjos que pudessem interessar a emigração por parte de autoridades
estaduais, empresas, firmas industriais e particulares para onde se destinassem os sertanejos que
buscavam socorros. Ao Departamento das Secas cabia assegurar a manutenção dos flagelados,
fixação de salários normais e demais garantias dos interesses dos emigrantes. 188Assim estava
organizada a defesa pública contra a crise social ao longo da seca de 1932 pela Interventoria.
O deslocamento “deveras temível para a saúde e a tranquilidade públicas das populações
sertanejas que emigravam para diversos pontos, principalmente para a capital”189 foi um dos
principais focos da ação da Interventoria de Carneiro de Mendonça durante a seca. A fim de
diminuir o fluxo de flagelados pelas ruas das cidades e prevenir as ações coletivas de
contestação, dentre outras medidas, o poder público organizou Campos de Concentração190,
“por onde transitou mais de um milhão de pessoas, atendidas com serviços profícuos de higiene
e assistência, sendo grande número delas localizado em diversos Estados do Norte, que para
este fim receberam auxílio da União na importância de 4.812 contos”. 191
188
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 63. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
189
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 62. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html Acesso em: 07 jul. 2018.
190
Hoje, a ideia de campos de concentração está associada às medidas implementadas na Alemanha, entre os anos
de 1933 e 1945. Os campos de concentração nazistas foram implementados com a finalidade de aprisionar e
executar prisioneiros de guerra e prisioneiros políticos, particularmente, judeus foram sistematicamente
assassinados, durante o Holocausto, na Segunda Guerra Mundial. Assim, importa ressaltar que os Campos de
Concentração que haviam no Ceará eram diferentes. No Ceará, os Campos de concentração foram utilizados
para confinar famílias inteiras, controlando e vigiando uma multidão antes aglomerada de maneira
desordenada. Segundo os idealizadores dessa medida, a concentração dos flagelados da seca tinha o objetivo
de diminuir os desdobramentos nefastos causados por surtos de doenças, desabastecimentos, etc. Como indica
a historiografia sobre a criação dos campos, a medida contou com apoio da sociedade.
191
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso: 21 de dezembro de 2019. p.379.
97
192
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 255. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
193
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 630. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
98
outro partia de Sobral, região Norte do Estado. Uma multidão se dirigiu à Fortaleza. A presença
“indesejável” de centenas de sujeitos pobres e maltrapilhos desagradava e, apesar de não ser
uma “invasão” inédita, assustava.194
194
Ver RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza,
Museu do Ceará/SECULT, 2004.
195
Jornal O Povo. 16 de abril de 1932. Disponível em:
https://www20.opovo.com.br/app/acervo/noticiashistoricas/2014/04/16/noticiasnoticiashistoricas,3032795/o-
povo-no-campo-de-concentracao.shtml.Acesso em: 08 jan. 2019.
99
Por fim, destaque para a vigilância e desconfiança direcionada à multidão, incentivo perfeito às
práticas de controle e isolamento. 196
Entre antigas e novas respostas, durante a seca de 1932, o Estado interveio de maneira
sistemática. A tentativa de controlar e isolar a multidão por meio da criação de Campos de
Concentração promovia o confinamento das famílias que antes perambulavam em busca de
socorros. Pensados para agrupar esses indivíduos, os Campos contavam com o funcionamento
de serviços de assistência, mas também com barreiras que impediam que os indesejados
visitantes chegassem aos centros urbanos, sobretudo à capital.
No momento em que a seca de 1932 é declarada, a capital começa a tecer uma rede
de relações com as quais se cria um cenário de terror. A imagem da preocupação com
a seca e mais ainda com o flagelo dava respaldo e legitimidade aos projetos das elites
para o controle da situação. Os poderes públicos bem como a burguesia de Fortaleza
entendiam que era urgente conter a força demolidora da multidão que chegava de
todas as partes do Estado.198
196
Cf. NEVES, Frederico de Castro. A multidão e a história: saques e outras ações de massas no Ceará. Rio de
Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 2000. p. 92-99.
197
Ibid., p. 98-99
198
Ver: RIOS, Kênia Sousa. Campos de Concentração no Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza,
Museu do Ceará/SECULT, 2004. p. 40
199
A título de auxílio, em 1932, o estado recebeu do Ministério da Viação: Dia 20 de abril....260:000$000; Dia 2
de maio....200:000$000; Dia 11 de maio ....200:000$000; Dia 24 de maio....200:000$000; Dia 8 de
junho....200:000$000; Dia 18 de agosto....650:000$000; Dia 13 de setembro....700:000$000; Dia 1 de
novembro....800:000$000; Dia 7 de dezembro ....300:000$000; 14 de dezembro....500:000$000; 1933: Dia 25
de janeiro: ....1.000::000$000; Dia 1 março ....1.500:000$000; Total: ....6.510:000$000. Relatório de
administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 64. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
100
200
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
2018.
201
“Contribuiu o estado, assim, com a importância de 505:000$000, quinhentos contos de reis, para os serviços de
socorro e assistência aos flagelados, sem contar com alguns serviços efetuados com as próprias verbas
orçamentárias”. Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 64.
Disponível em: http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul.
2018.
202
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 270. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
101
Constituinte de 1934, se esmeraram para que houvesse a inclusão da questão da seca no texto
constitucional aprovado.
Em 1933, Carneiro de Mendonça pede, mais uma vez, sua exoneração do cargo de
Interventor Federal. Ele já havia solicitado seu desligamento das funções em outros momentos,
pouco antes da revolução constitucionalista de 1932. Quando a situação do conflito em São
Paulo arrefeceu e as dificuldades decorrentes da seca diminuíram, Mendonça proferiu
novamente sua contrariedade a Vargas, pessoalmente e por meio de correspondências. Segundo
Renato Lemos, em carta enviada em 2 de fevereiro de 1933, Carneiro de Mendonça expôs sua
opinião “em relação à organização de um partido político revolucionário, por intermédio do
qual a revolução defenderá nas urnas a ideologia implantada pelo movimento vitorioso em
outubro de 1930”.203
O saldo do governo de Carneiro de Mendonça, nas palavras do presidente Getúlio
Vargas, quando em visita ao Norte, incluía a boa relação entre ele e seus governados:
O apoio amealhado ao longo dos anos por Carneiro de Mendonça foi confirmado
durante os rumores de sua saída do governo do Ceará. Telegramas enviados por apoiadores de
diversas matrizes, provenientes de todas as partes do Estado, solicitaram que Vargas não
aceitasse a demissão de Mendonça.
203
LEMOS, Renato. Carneiro de Mendonça. Disponível em:
<https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MENDON%C3%87A,%20Carneiro%20de.pdf. > Acesso em: 04 ago. 2018.
204
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933, p. 381. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso em: 21 dez. 2019.
102
205
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
206
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
207
SOUZA, Simone de. Interventorias no Ceará: Política e Sociedade (1930 – 1935). Dissertação de Mestrado.
PUC-SP, 1982. P. 22-23.
208
SOUZA, ibid.
103
Conforme tive oportunidade de declarar a v.exa., não tenho – e nem poderia tê-lo –
candidatos ao cargo que devo deixar dentro em breve. Isso, porém, não impede que,
melhor conhecendo o meio, eu cumpra, quando mais não fosse, por elementar
lealdade, o dever de esclarecê-lo sobre os pontos que, ao meu ver, devem ser tomados
em consideração Para que a substituição se processe num ambiente de paz e
tranquilidade que todos sinceramente devem desejar.211
Para ele, qualquer que seja o pretendente escolhido, “por mais respeitável que seja o seu
nome, ainda que amparado num passado de honradez e dignidade, encontrará imediata oposição
e fará de pronto ressurgir a velha política de campanário, se saído de quaisquer das correntes
políticas aqui existentes”. Para justificar a opinião, Mendonça evoca a “maior crise climática”
da História do Ceará e seus desdobramentos danosos para a economia local, realidade que fazia,
em sua opinião, do Ceará um Estado frágil que não suportaria naquele momento, uma luta
política. Assim, Carneiro fazia jus ao apoio recebido, buscando emplacar um substituto que se
encaixasse nos arranjos costurados por ele ao longo de sua gestão e, ao mesmo tempo,
fortalecendo sua boa fama de defensor dos ideais revolucionários.
Se, porém, v.exa. atentando para essas observações que faço movido tão somente pelo
desejo de bem servi-lhe, servindo a revolução, escolher para seu delegado neste
estado, um elemento completamente estranho á política, absolutamente desligado de
compromissos partidários, se possível, estranho ao meio, cujo passado seja penhor de
honradez e trabalho, a substituição se processará sem quebra do ambiente de paz e
tranquilidade em que aqui vivemos. O povo cearense, como em geral, todo o povo
brasileiro, está farto de política nas administrações. 212
209
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
210
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
211
Ibid., 1933.
212
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Carta endereçada ao
Presidente Vargas, datada de 23 de outubro de 1933. Acesso em: 02 de maio de 2018.
104
Se por qualquer motivo que deixo juízo amigos minha exoneração for considerada
agravante para a situação geral, peço então ao chefe de governo que me conceda
licença ou chame ao Rio determinando passagem do governo ao secretário do interior,
213
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Carta endereçada ao
Interventor Carneiro de Mendonça, datada de 30 de outubro de 1933. Acesso em: 02 de maio de 2018.
214
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16- Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
105
Mais uma vez, surge a figura do grande ministro – JOSÉ AMERICO DE ALMEIDA,
(destaque do autor), justamente chamado – salvador do nordeste – a quem o Ceará
deve a continuidade de sua vida econômica e financeira e apropria conservação dos
núcleos de população sertaneja. Se, na fase aguda da seca, o eminente brasileiro se
dignara observar, in loco, a situação do Nordeste, para reclamar providências sobre a
execução das obras de emergência, arriscando a sua própria vida, retornou a esta gleba
adusta para estudar, em benefício direto do povo, a melhor maneira de operar a
desconcentração que se impunha. Num gesto altamente dignificante e nobre, que
caracteriza os atos de sua vida pública – o ministro José Américo de Almeida
autorizou a Rede de Viação Cearense a fornecer, por intermédio da administração do
Estado, as passagens precisas ao transporte dos flagelados aos seus municípios e como
medida complementar, mandou fornecer, com requisição desta interventoria,
passagens para cerca de 15.000 flagelados que tomaram rumos diversos, uns para o
norte, outros para o sul. 218
215
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
216
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
217
ANRJ - Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Acesso em: 02 de maio
de 2018.
218
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 66. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
106
abril de 1932 foram remetidos os primeiros numerários a este estado”.219 Tendo em vista tais
argumentos, o tópico que se segue versará sobre essa relação entre Interventoria e Ministério
em prol dos socorros aos flagelados e para a consolidação de um projeto amplo e duradouro de
combate à seca, que nem sempre pode ser viabilizado.
Em novembro de 1930, o General Juarez Távora, admirado em todo o Brasil, veio a sua
terra natal, o Ceará, junto a outro importante personagem do processo revolucionário, o
paraibano José Américo de Almeida. A passagem de José Américo e do General Juarez Távora
pela cidade de Cedro, Centro-Sul do Ceará, foi descrita como sendo uma “festa republicana”.
Um “bloco de famílias e pessoas de distinção local, notando-se ainda muitos populares” correu
à estação para receber a comitiva.220
A oportunidade de estar na presença de personagens tão conhecidos animava a grande
recepção aos heróis de outubro de 1930 que representavam o triunfo da empreitada
revolucionária. Quando os cidadãos locais souberam que dali o préstito seguiria viagem, via
Paraíba, resolveram então aguardar a comitiva no entorno da estação. Quando o troly motor
apontou na curva da linha, fogos de artifício foram disparados e a banda de música iniciou uma
marcha triunfal. Os jornais cearenses deram publicidade à festa em Cedro, indicando que
Américo e Juarez foram recebidos com flores, ovacionados pela plateia formada pelo povo dos
arredores que demonstrava o “contentamento de se verem, livres da tirania e de vislumbrarem
dias de paz e de progresso para o Nordeste”. 221 Havia, lá, clérigos, funcionários públicos,
artistas e operários numa recepção tão magnânima que a comitiva revolucionária pernoitou na
cidade. No dia seguinte, “por iniciativa de gentis senhoritas”, organizou-se uma caminhada
pelas ruas centrais da cidade, frente à bandeira nacional e a de João Pessoa. Tudo num tom de
lição cívica.
Os dois ilustres nordestinos estavam na região a pretexto de realizarem uma visita ao
local do futuro açude Orós222, exprimindo assim que o grupo vitorioso em outubro já aprontava
219
Relatório de administração. Administração Carneiro de Mendonça. 5 de abril de 1934, p. 63. Disponível em:
http://www.ceara.pro.br/Raridades/Relatorio_Carneiro_Mendonca.html. Acesso em: 07 jul. 2018.
220
Jornal A Razão, 19 de novembro de 1930.
221
Jornal A Razão 19 de novembro de 1930.
222
“Segundo a conceituação nordestina, chama-se Açude qualquer reservatório de água nascido da interceptação
de uma corrente, e compreende ao mesmo tempo a barragem, isto é, um dique de terra ou concreto que detém
o curso d’água e o lago por ele formado. Em rios não perenes, como são os nordestinos – exceções importantes
o São Francisco e Paraíba-, os açudes recebem água apenas na estação chuvosa, podendo ou não o nível da
água atingir a cota de repleção e extravasar pelo vazadouro, ou seja, “sangrar”.” In. GUERRA, Paulo, de Brito,
107
a materialização dos compromissos feitos pela Aliança Libertadora quando em suas incursões
pelo Ceará prometeram erigir um país renovado. Para as bandas do Ceará, essas obrigações se
desdobrariam, no nível local, com a construção de açudes, de estradas e do porto de Fortaleza.
Era isso que se esperava do novo governo.
José Américo de Almeida foi nomeado Ministro da Viação e Obras Públicas no mês de
novembro de 1930, início do Governo Provisório. Nos jornais a escolha foi recebida de forma
positiva, sobretudo diante da projeção nacional que a figura do paraibano ganhou no desenrolar
da campanha revolucionária. Outro ponto sempre lembrado pelos jornalistas era a relação de
proximidade entre Américo e João Pessoa, vice da chapa de Vargas assassinado antes das
eleições de 1930.
José Américo vinculou-se à ideologia renovadora com raízes tão profundas e com
tamanha sinceridade, acompanhado a obra e as atitudes do grande e inesquecível João
pessoa. [...] a região flagelada e heroica não poderia enviar melhor representação para
o governo federal. Ele resume as qualidades admiráveis de tenacidade e de bravura
cívica dos homens que aqui lutaram pela queda das oligarquias infamantes que nos
degradavam. [...] José Américo de Almeida será também um porta-voz de
Pernambuco junto ao governo da república. Já não há fronteiras entre a terra onde
brilhou a estrela fulgurante de João Pessoa.223
A civilização da seca. O Nordeste é uma História mal contada. Fortaleza: Ministério do Interior. Departamento
Nacional de Obras Contra as Secas, 1981. p. 143. A barragem do Açude Orós, localizada no município de
Orós, no Ceará, represa as águas do rio Jaguaribe, relevante bacia hidrográfica do estado, drenando cerca de
25.000 km2. Suas funções incluem a perenização do rio Jaguaribe; irrigação do Médio e Baixo Jaguaribe;
piscicultura; culturas agrícolas de áreas de montante; turismo e aproveitamento hidrelétrico. A obra foi
viabilizada pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, inaugurada em 11 de janeiro de
1961, por Juscelino Kubitschek de Oliveira. As expectativas em torno das possibilidades de represar as águas
do Boqueirão de Orós se iniciaram ainda durante o Império, mas só durante o regime republicano, com a
criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), estudos técnicos foram iniciados. Durante a seca de
1919, o governo federal contratou a firma norte-americana Dwight P. Robinson & Co. afim para novos estudos.
As novas instalações foram destruídas durante uma enchente em 1924. A diminuição das verbas
disponibilizadas para a Inspetoria de Obras Contra as Secas fez paralisar as obras. Durante a Seca de 1932, o
combate à seca ganhou novo impulso, e mais uma vez, discutiu-se a construção do Orós, resultando na
atualização do projeto técnico para a barragem. Na década de 1957, novas definições técnicas foram inseridas
no planejamento. Em outubro de 1958 foram escavadas as fundações do Açude. Em 1960 os ritmos de
construção foram acelerados e, em 1961, a obra foi concluída. Disponível em:
https://www.dnocs.gov.br/barragens/oros/oros.htm. Acesso em: 12 jan. 2019.
223
Jornal A Razão 11 de novembro de 1930 do jornal carioca Diário da manhã, de 9 de novembro de 1930.
224
O Ministério de Indústria, Viação, Obras Públicas, em 1892. O decreto n.º 8.205, de 8 de setembro de 1910,
desanexou os negócios da Agricultura, Industria e Comercio da Pasta, ficando o escopo reduzido e
nomenclatura Ministério da Viação e Obras Públicas. Ver: JESUS, Jupira S. Palhano de. Viação e Obras
públicas (Elementos para a História do Ministério). Coleção Mauá. Rio de Janeiro: Ministério da Viação e
Obras Públicas. Serviço de documentação, 1955.
108
já confiantes na atuação do militar frente à pasta responsável por questões como o combate à
seca e infraestrutura, lamentaram quando o General Távora declinou ao convite.
Em carta escrita a Vargas, Juarez lembra que recusou imediatamente a solicitação feita
pelo Presidente para que assumisse o Ministério da Viação, mas, por insistência de Oswaldo
Aranha, e “pelo desejo de servir ao seu governo e, indiretamente ao Nordeste”, acabou
aceitando o cargo momentaneamente. A decisão não durou muito. Segundo Juarez, desde o
momento em que aceitou a pasta “uma luta penosíssima” se travou em sua consciência.225 O
desfecho da luta foi recusar mais uma vez o cargo ofertado: “Deponho em suas mãos a pasta de
ministro com que v. exa. me honrou, para volver ao seio dos meus camaradas de exército”,
reafirmando seu lugar de atuação primordial, o de integrante das forças armadas. 226 A vontade
de simplesmente retornar às funções militares sustenta-se por pouco tempo. Depois de
negociações importantes, Juarez torna-se Delegado do Norte, cargo mais condizente com seus
anseios de consolidar o regime revolucionário na região por meio da ação coordenada em bloco,
agrupando estados e demandas daquele território.227
Durante a viagem ao Norte, Juarez reafirmou a recusa ao cargo de Ministro da Viação
e indicou José Américo para a colocação:
225
FGV – Carta de Juarez Távora a Getúlio Vagas agradecendo e recusando sua nomeação para Ministro da Viação
e Obras Públicas, Rio de Janeiro. Classificação: GV c 1930.11.04. Série Correspondência. Data de Produção:
04/11/1930; Microfilmagem: rolo 2 fot. 0192 a 0192/3
226
FGV – Carta de Juarez Távora a Getúlio Vagas agradecendo e recusando sua nomeação para Ministro da Viação
e Obras Públicas, Rio de Janeiro. Classificação: GV c 1930.11.04. Série Correspondência. Data de Produção:
04/11/1930; Microfilmagem: rolo 2 fot. 0192 a 0192/3
227
Sobre o papel desempenhado por Juarez Távora junto ao Bloco do Norte, Lopes afirma que: “Juarez Távora
como um dos grandes heróis do movimento de 30, várias articulações políticas eram feitas com o objetivo de
colocá-lo no centro do novo governo. Essas articulações tiveram como protagonistas principais muitos
revolucionários nortistas, bem como outras figuras importantes do Governo Provisório. Elas tiveram como
ponto de partida a instabilidade dos primeiros meses do pós-revolução, marcado por grandes incertezas. Nesse
momento, no qual diversas possibilidades de configuração política se abriram, o nome de Juarez foi cogitado
para assumir cargos de alto destaque nacional”. ver: LOPES, Raimundo Hélio. Um Vice-Reinado Na República
do Pós-30: Juarez Távora, As Interventorias do Norte e a Guerra de 1932. Tese de Doutorado apresentada ao
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC. Rio de Janeiro, 2014.
P.60.
109
Dr. José Américo de Almeida, não só como um pócito de justiça ao seu mérito pessoal
mas também como uma merecida homenagem a Paraíba gloriosa de João Pessoa.228
Como argumenta Hélio Lopes, ao passo em que entra em contato com os revolucionários
nortistas, Juarez consolida a recusa ao cargo de Ministro, reafirmando sua vontade de ajudar os
novos governantes do Norte na estabilização da região e materialização do projeto
revolucionário. Assim, manteve-se no seio militar e em seu lugar de herói da Revolução, mas
sempre muito próximo às instâncias de poder recém-estabelecidas. Américo foi alçado ao
Ministério da Viação, seguindo a vontade de Vargas e de Juarez, mantendo o cargo nas mãos
de algum representante da região historicamente assistida pela pasta.229 Américo, inegável líder
revolucionário nortista, teve seu nome acolhido sem altercações. Vargas, registrou em seu
diário, em 10 de novembro de 1930: “Távora telegrafou de Natal, declinando do cargo de
ministro da Viação e lembrando o nome de José Américo, conforme ficara combinado. Aceito
a sugestão e telegrafo a ambos”.230
Quando Juarez ofereceu a indicação do nome de Américo para o cargo, e foi atendido
por Getúlio Vargas, irrompeu nova onda de esperança acerca das possíveis ações do Ministério
de Viação e Obras Públicas para o Ceará e para a região atingida pela seca.
Está confirmada a notícia de que, afinal, por insistência do general Juarez Távora e
com o assentimento do presidente Getúlio Vargas, o dr. José Américo de Almeida,
ocupará o Ministério da Viação. Conforme prevíamos, o dr. José Américo não quis
aceitar a elevada investidura pelo fato do general Juarez Távora representação perfeita
e condignamente o pensamento da Paraíba e do seu povo, ou melhor, de todo o Norte,
do qual é o chefe supremo; mas, tais foram os argumentos expandidos, tão poderosas
foram as razões e as conveniências de ordem geral e particular, expostas e focalizadas
pelo bravo soldado da República que o dr. Jose Américo não pode deixar de atendê-
lo.231
228
FGV - Arquivo Juarez Távora. R. 2285-2287/3695. Apud LOPES, 2014. p. 90.
229
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 90.
230
VARGAS, Getúlio. Diário. Volume 1. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995,
p. 24. Apud LOPES, ibid., 2014. p. 90.
231
Jornal A Razão 11, de novembro de 1930.
110
Depois da visita ao local onde seria construído o reservatório de Orós, a comitiva seguiu
para Belém. O novo Ministro da Viação, tendo visto com seus próprios olhos a situação do
povo, estaria capacitado para tratar de necessidades reais. Para os observadores locais, a
edificação de reservatórios e a construção de estradas a ser chefiadas por Américo faria com
que Ceará, Paraíba e toda a região fossem amparados, finalmente.232
Getúlio Vargas disse, em discurso proferido em Fortaleza, que desde o início de seu
governo interessou-se pelo problema das secas, e que a nomeação de Américo, realizada “muito
deliberadamente”, contava a favor dessa preocupação com o Norte. Para ele, José Américo
como Ministro da Viação, significava o sucesso na viabilização de parte das promessas feitas
quando ainda era candidato à Presidência. Na opinião dele, e de muitos, Américo de Almeida
era um “profundo conhecedor das necessidades e do ambiente nordestino”, os “vaticínios” do
presidente não haveriam de estar errados. 233
José Américo de Almeida, quinto filho de família numerosa, nasceu no município de
Areias, Paraíba. Abandonou o Seminário em 1904 e ingressou no Liceu Paraibano, depois,
cursou a Faculdade de Direito de Recife, formando-se em 1908. Ao lado do tio e padrinho,
Valfredo Leão, então presidente do Estado, ingressou na vida política. Mais tarde, foi nomeado
promotor em Sousa, sertão paraibano, onde acompanhou a calamidade da seca. Américo
enfrentaria outros cenários de crise climatérica em 1932 e 1952, nessas ocasiões, como Ministro
de Estado.234
No cenário político da nova República, Almeida abriu caminho como uma das figuras
mais admiradas e elogiadas, inclusive destacando-se entre os Ministros nomeados por Vargas.
Mesmo diante das frequentes contestações que o novo governo recebia, Américo destacava-se
positivamente: “em que pese aos extremados esmiuçadores de falhas nos atos dos homens de
governo, destacava-se, resistindo a todas as críticas, a figura moça do sr. José Américo de
Almeida, cuja atuação [...] vem despertando as melhores simpatias”.235
Desde os primeiros momentos da Revolução de 1930, Américo, juntamente com alguns
outros nortistas de seis estados, com destaque para a atuação do cearense Juarez Távora,
iniciaram movimentações para construção do bloco político e militar do Norte. Segundo Lopes,
no dia 9 de outubro, imediatamente após o golpe, mesmo sem a oficialização da queda da
232
Ibid., 1930.
233
VARGAS, Getúlio. Discurso “Os problemas do Nordeste e a ação do governo provisório”, 8 de setembro de
1933. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/getulio-
vargas/discursos/1933/05.pdf/view. Acesso em: 21 dez. 2019. (p. 375).
234
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo FLAKSMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 19-25.
235
Jornal A Razão, 21 de agosto de 1931.
111
República, Juarez nomeou José Américo de Almeida, à época presidente provisório da Paraíba,
para o cargo de governador-geral do Norte, afim de que Américo concentrasse as funções do
governo federal naquele lugar. A decisão foi o “primeiro passo para o surgimento do Norte do
pós-30, pois com um governo autônomo em relação ao processo revolucionário nacional, mas
dependente do seu desenrolar, foi iniciada a (re)organização político administrativa da
região”.236
A propósito da anunciada fundação do Bloco do Norte, Américo de Almeida encarou
algumas críticas quanto a um possível favorecimento dos estados da região. O Bloco
Geopolítico encabeçado por Juarez Távora foi visto como um grupo responsável pela sua
nomeação e interessado em adicionar suas demandas aos interesses da nação. Américo
comentou que os esforços regionais não deveriam ser percebidos como divisionistas, mas como
parte dos esforços para implementação dos objetivos da revolução. Essa, sim, “um bloco só e
representado por todo o povo brasileiro solidário com os ideais que a inspiram e que a
animam”.237 Américo frisou que a ideia do Bloco do Norte até podia fazer crer que “no
setentrião se cogita de qualquer coisa diferente do que se está fazendo no Sul”, mas que, na
verdade, o Norte não poderia realizar sozinho os postulados revolucionários, nem tão pouco o
Sul. Antes de se identificar como nortista apresentou-se como revolucionário, guardião da
unidade nacional defendida pela Revolução de 1930, que era, sobretudo, “um movimento de
brasilidade”. Por fim, reconheceu que “o Norte, como o Sul, tem problema à parte, requerendo
também soluções particulares”.238 Trabalhar pela resolução dos problemas nacionais passou a
ser sua bandeira pessoal, mas a crise climatérica recrudesceu em 1932, exigindo dele atenção
especial aos desvalidos. Nesse momento delicado para o Brasil e para a organização do Norte,
Almeida reconhecidamente ligado ao grupo que compunha o novo Bloco, passa a ser
responsável pela pasta incumbida dos esforços de infraestrutura e dos socorros aos flagelados
da seca. Assume, portanto, essa função a partir desse lugar, a partir dessa trajetória.
Segundo Jivago Correia Barbosa, José Américo de Almeida, em 1950, durante sua
campanha para o Governo da Paraíba, ostentou o título de “salvador dos sertões” como uma
espécie de slogan. Essa boa fama se originou com sua atuação no Ministério da Viação e Obras
Públicas durante o Governo Provisório. Ao longo da crise, Américo foi muitas vezes apontado
como “salvador” das vítimas das secas. Com isso, seu capital político foi ampliando e sua
236
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. p. 74.
237
Jornal A Razão, 29 de agosto de 1931.
238
Ibid., 1931.
112
popularidade estendeu-se por todo o país. Suas ações, amplamente divulgadas pela imprensa
brasileira, fizeram dele o “Ministro da Secas”.239
Em uma das primeiras entrevistas concedidas por Américo como ministro, o tom
empregado por ele a respeito do ritmo de construção de grandes obras não foi animador. José
Américo afirmou que o governo não cogitava realizar onerosos empreendimentos que pesassem
nos combalidos cofres da União. Falando a um jornal carioca, num texto vinculado
posteriormente no periódico cearense A Razão, o titular da Viação afirmou que a “situação de
apertura” em que se encontrava o país, tornava bastante delicado o período pós-revolução.
Naquele momento, todos os envolvidos na nova administração do país primavam pela cautela,
sobretudo diante do desconhecimento das reais condições financeiras do Estado. Assim,
segundo Américo, realizações maiores só poderiam ser feitas mais adiante. Américo encerrou
sua fala de maneira firme: “Posso afirmar que o Governo Provisório não cogita presentemente
de novas iniciativas que não desaconselhadas pelo estado crítico que atravessam as finanças
brasileiras”.240
No entanto, aos poucos a cautela deu lugar à elaboração de planejamentos mais
audaciosos, que reverberavam na modificação da estrutura do Ministério e dos órgãos sob sua
tutela, o que, naturalmente, influiu na maneira como o novo Ministro passou a ser percebido
pela sociedade brasileira. A nova racionalidade pública e reformismo implementada por
Américo eram parte do programa revolucionário tenentista, inspirado nas instruções de cunho
nacionalista do Clube 3 de Outubro. Ao tempo em que criticava o tenentismo “em seus
desgovernos e excessos”, falava em nome do movimento “ao lançar o libelo exemplar contra a
República Velha [...]”.241 Os vínculos com o tenentismo foram fundamentais para o modo como
conduziu o Ministério e, posteriormente, para a concretização de sua candidatura à Presidência
da República, em 1937.
Na entrevista que concedeu ao Diário da Manhã, de Recife, Américo externou a ideia
de deslocar do Rio de Janeiro para o Ceará a sede da Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas, numa demonstração clara da sua intenção de rever a lógica administrativa do Ministério
e assim imprimir sua marca ao combate à seca. A permanência da Inspetoria no Rio de Janeiro
era vista como empecilho aos trabalhos nos estados, razão de ser da Instituição. O aceno foi
239
. BARBOSA, Jivago Correia. Política e assistencialismo na Paraíba: o governo de José Américo de Almeida
(1951-1956). Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de
Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2011. p. 229-230.
240
Jornal A Razão, 2 de setembro de 1931.
241
CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, p. 32.
113
encarado como “uma prova evidente de que apreendeu magnificamente os pontos essenciais”
das demandas cearenses.242 Esse gesto, que seria tão simbólico, no entanto, não foi viabilizado.
A realidade precisava ser mudada, mas as estruturas eram mais arraigadas que supunha
Américo.
Era meu pensamento transferir para o Ceará a sede da inspetoria, por ser o Nordeste
o campo de sua atividade. Parecia-me que, por maior que fosse a necessidade da
estreita ligação entre qualquer serviço Federal e o Centro de administração pública de
que ele dependa, não poderia essa condição dominar, a ponto de afastar o seu elemento
principal de direção dos elementos técnicos, administrativos e operário em ação. [...]
Impunha-se, portanto, a integração definitiva da inspetoria no coração da zona
flagelada, no anfiteatro das secas, cujos efeitos teria que combater.243
242
Jornal A Razão, 11 de novembro de 1930.
243
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 192.
244
Jornal A Razão 21 de agosto de 1931.
245
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 193.
114
Segundo o registro de gestão, foi adotado o “critério invariável” de que todas as obras
deveriam passar por uma “apreciação superior” das questões econômica e social, e serem
resultado de “rigorosos estudos técnicos” que as justificassem. Nenhuma seria executada sem
passar pelo crivo central, sem constar como parte da “orientação geral do problema da seca” e
sem projetos definitivos. Dessa maneira, percebe-se que a estrutura administrativa foi
reconfigurada na superfície através de demissões e novos regulamentos, mas a centralização
das decisões acerca dos socorros foi mantida. Porém, sob nova tutela: o poder não mais estaria
com a cúpula da Inspetoria, mas, sim, com o Ministro.
A fim de agir em prol do estudo in loco e para compensar a não transferência da sede
da IFOCS, o Inspetor de Secas passou a ser obrigado a vistoriar os locais de trabalho, no
mínimo, três vezes por ano. Para dar conta da supervisão de todo o território, o Ministério
regulamentou novas áreas de atuação para a Inspetoria. Ao invés dos três distritos, manteve
apenas dois; o primeiro em Fortaleza, a cujo encargo ficam as obras e serviços no Estado do
Ceará e Piauí; o segundo em João Pessoa, compreendendo os trabalhos nos Estados de
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. “Por serem menos assolados, os Estados da Bahia,
Sergipe e Alagoas ficarão a cargo de um subdistrito, com sede em São Salvador”.247
O plano de combate às secas sugerido pelo Ministro da Viação e Obras Públicas
consistia, sobremaneira, em ampliar o serviço de construção de obras, adotando um ritmo
acelerado e uma organização sistemática. A viabilização dessas obras foi incluída no programa
de realizações da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Cabia a IFOCS fornecer auxílio
direto aos Interventores dos Estados, para que as obras pudessem ser executadas em parceria
com chefes estaduais. As obras de emergência seriam fiscalizadas pela Inspetoria. A ela caberia
organizar, em cooperação com os Ministérios do Trabalho e Agricultura, colônias agrícolas, em
zonas como o Piauí e Maranhão, para nelas localizar os emigrantes que não pudessem ser
aproveitados nos serviços das zonas diretamente atingidas pela seca. Segundo opinião de Juarez
246
ALMEIDA, ibid., 1933. p. 193.
247
Ibid., 1933. p. 193.
115
Távora, essas medidas eram, sem dúvida, “um programa de ação equilibrado e eficiente”, digno,
por isso mesmo, de ser adotado, daí em diante, dentro das possibilidades financeiras de cada
período governamental, até a solução definitiva do problema fosse viabilizada. 248
O auge das ações era a construção de pequenos, médio e grandes açudes, distribuídos
pela zona atingidas pelas secas. A ideia, nada nova, era promover o armazenamento de água
nos anos de inverno. Água suficiente para atender, nos anos de escassez, os imperativos da vida
sertaneja, matar a sede dos rebanhos e fertilizar a terra. A inovação seria a sistematização da
irrigação das terras adjacentes. Nesse momento, a irrigação passou a ser uma ação chave,
elemento a ser privilegiado para resolução do problema da seca, mais importante do que já
havia sido em esquemas de combate as secas anteriores. Segundo avaliação realizada por Juarez
Távora, quando ocupante do cargo de Ministro da Agricultura, naquele momento o serviço de
açudagem deveria “estar intimamente ligado ao de irrigação, dele decorrente”.249
As obras contra as secas pensadas ao longo da gestão de Américo constavam como parte
de um plano de conjunto. A reorganização dos órgãos responsáveis pelos socorros foi o
primeiro passo em direção a concretização de um novo modo de tratar o problema. Segundo
Américo, foi preciso redefinir o modo como a Inspetoria utilizava seu orçamento, deixando de
concentrá-la na “burocracia absorvente” e, principalmente, recusar totalmente o uso das verbas
da Inspetoria “ao sabor de influências estranhas à sua finalidade”. Esse desvio das funções da
Instituição era, na opinião do Ministro, o que esterilizava as atividades da IFOCS, sempre
parciais, “por falta, sobretudo, de um plano de conjunto, numa eterna sangria do erário público,
sem nenhuma perspectivada solução definitiva do problema”.250 A função da Inspetoria foi
transformada de maneira a priorizar o foco da atuação do plano ministerial de combate às secas:
importava suprir o Nordeste de água. Nesse sentido, “Está a sua função limitada, propriamente,
ao problema da água, que é o problema do Nordeste. O desenvolvimento da região sob os
demais aspectos será encargo de outros serviços públicos”. 251 No entanto, o ponto fundamental
se manteve; a Inspetoria das secas continuava tendo sua ação limitada pela escassez das verbas
orçamentárias que lhe eram concedidas.
248
ANRJ - Fundo 35 - gabinete civil da presidência da república. Lata 28 – ministério da agricultura. Ano 1932,
p. 39. Relatório Do Ministro Juarez Távora Sobre A Situação financeira, Econômica E Administrativa Do
Norte Ao Presidente Getúlio Vargas. Acesso em: 03 de maio de 2018.
249
Ibid., 1932, p. 39.
250
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 189-194.
251
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 190.
116
Por meio das ações previstas no novo regulamento da Inspetoria, aprovado pelo decreto
n.º 19.726, de 20 de fevereiro de 1931, a complexidade dos serviços do órgão foi eliminada,
fazendo a Inspetoria concentrar suas atividades na disseminação de obras de açudagem e
irrigação, deixando assim, de construir portos e ferrovias. Rodovias somente seriam construídas
pela IFOCS se consideradas indispensáveis à execução de planos principais.252 A solução
apontada, no entanto, não foi unânime e se modificou ao sabor de novas descobertas e,
principalmente, de novos governos.
Em 1932, a açudagem apontava para o papel decisivo do governo em prol do bem-estar
das populações atingidas pelas estiagens, mas, sobretudo, a possibilidade de transformação da
economia dos estados atingidos através da implementação sistemática do aproveitamento
racional das águas por meio da irrigação.
252
Em “O sertão descoberto aos olhos do progresso: a inspetoria de obras contra as secas (1909-1918)”, o
historiador Kleiton de Sousa Moraes (2010) proporciona um bom entendimento sobre a história da Inspetoria
de Obras Contra as Secas (IOCS) quando trata das relações de poder que permeavam a execução das
intervenções da instituição no semiárido brasileiro. Kleiton Moraes percebe que o órgão federal, desde o seu
estabelecimento, passou por tensões que marcaram seu desenvolvimento, mas esteve sempre permeado pela
proeminência de seus responsáveis, bem posicionados na configuração científica brasileira. Como será
demonstrado no próximo capítulo da tese, com as mudanças implementadas em 1932, nota-se que a Inspetoria
tem suas funções práticas e também sociais, reavaliadas, passando a ter sua autonomia comprometida pelas
determinações do Ministério da Viação. Assim, no período em questão, o capital político de seus responsáveis
esteve ainda mais a reboque de definições externas, relacionadas a dependência das verbas públicas já
observadas em períodos anteriores, mas também da profunda interferência promovida pelo Ministro da Viação
José Américo.
252
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
253
Ibid., 1933. p. 194.
117
dos reservatórios e áreas próprias à irrigação”. Sendo assim, o planejamento ministerial incluía
também a construção de açudes menores, pois haveria “exemplos, em todo o Nordeste, de
pequenos reservatórios que têm resistido mais de um ano de estiagem. E secas de mais de dois
anos são acidentes de raríssima exceção”.254 No plano proposto, consequentemente, importava
“a disseminação das obras de açudagem e irrigação [...] Fica, assim, eliminada a complexidade
dos serviços da inspetoria que a tornavam uma obra dispersiva e de difícil e onerosa
execução”.255
Ao direcionar a ação da IFOCS na construção de grandes barragens, o governo
determinou áreas específicas para receber esses empreendimentos de acordo com as quatro
bacias principais do semiárido nordestino, que passaram a constituir os sistema gerais de obras:
Sistema de Acaraú, no Ceará; Sistema do Jaguaribe, no Ceará; Sistema do Alto-Piranhas, na
Paraíba; e Sistema do Baixo-Assú, no Rio Grande do Norte. Os grandes diques a serem
edificados nessas áreas seriam complementares à pequena e média açudagem e, segundo o
projeto ministerial, comporiam a “solução integral” ao problema das secas. 256 Além disso, o
foco com a parceria privada mostrava-se promissora.
Um dos serviços verdadeiramente útil ao Ceará seco é esse que a IFOCS está
prestando aos proprietários de terras: mandando proceder os estudos auxiliares a
construção dos açudes particulares. Inúmeros reservatórios têm sido construídos
nessas condições e outros estão sendo estudados e em via de construção. Se bem que
o açude particular beneficie, em regra geral, unicamente os proprietários dos mesmos,
todavia não deixa de concorrer diretamente para a riqueza dos municípios onde os
mesmos são construídos, aumentando-lhes as possibilidades agrícolas e assegurando
o desenvolvimento da indústria e pecuária. 257
A água, ou melhor, a falta d’água, era o problema primordial para o sucesso das culturas
e da criação. A construção de reservatórios e a sua equilibrada distribuição através dos vastos
sertões do Ceará poderia mudar, num futuro próximo, os rumos da resolução do grande
problema da seca. O assunto devia interessar sobremaneira os proprietários de terras, mas não
resolvia a situação do sertanejo mais pobre.
Em 1932, o Ministério incluiu facilitar, por todos os meios possíveis, a açudagem média
e pequena em sistema de cooperação com todos os estados, municípios e particulares. O auxílio
pecuniário era pago em prestações no decurso da construção. Além dele, o estudo, projeto e
254
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
255
Ibid., 1933. p. 190.
256
Ibid., 1933. p. 190.
257
Jornal A Ordem, 30 de maio de 1930.
118
orçamento feitos pelos técnicos da Inspetoria eram oferecidos gratuitamente, facilitando assim
o início e andamento dos trabalhos. A principal regra era construir açudes associados à
irrigação: “Só será permitida a açudagem em terras que se prestem a irrigação e cultura agrícola
afim de que essa obra não venha a ser simples aguada”. Para o abastecimento regular da
população o Ministro indicava que a necessidade de estabelecer um sistema especial de poços,
passíveis de perfuração pelo regime de cooperação. 258
A açudagem em cooperação não era uma medida inédita. No início do século XX, o
governo era instado a construir açudes públicos, mas também auxiliar na edificação de tantos
outros em regime de cooperação, oferecendo estudos, empréstimos e prêmios. A ideia foi
acatada e a IFOCS criou um programa de açudagem em regime de cooperação. Nele, a
Inspetoria realizava os estudos necessários para o começo dos trabalhos e concedia prêmios de
até 50% do total do orçamento de obras particulares, chegando a 70% para obras promovidas
por iniciativa pública, estadual ou municipal. Como lembra Paulo de Brito Guerra, “comuns
foram os casos de açude construído apenas com o dinheiro do prêmio, quando o proprietário
utilizava toda a força de trabalho da fazenda, incluindo os filhos, os animais, as carroças e
viaturas”.259 O regime de cooperação foi bastante empregado no Ceará, Paraíba e Rio Grande
do Norte. Guerra indica que, conforme sua análise, no Ceará foram construídos cerca de 100
açudes, entre 1915 e 1965, em regime de cooperação.260
Diante de tantos planos e mudanças administrativas, persistiam os apelos que
descreviam os horrores cotidianos da seca e sua generalização. Os tristes efeitos econômicos e
sociais da crise chegavam todos os dias ao Ministro e ao Chefe do Governo Provisório, um
cenário comparado a um cataclisma “que se abateu sobre todo o Norte, na sua força destruidora
ou nos seus reflexos”.261 O Ministro então decidiu ver a calamidade com seus próprios olhos.
Quis ir, em pessoa, verificar os novos aspectos dessa calamidade, para poder imprimir,
as medidas de salvação pública uma norma prática, sugerida pela experiência direta
258
A perfuração de poços de maneira institucionalizada já fazia parte das primeiras ações de combate às secas. Em
relato endereçado ao Presidente da Província Henrique D’Ávila, Ernesto Lassence narra esforços de combate
à seca de 1887. O engenheiro se refere ao péssimo estado das estradas de rodagem, a falta de material
apropriado e muitas outras dificuldades enfrentadas para barrar o Rio Acarape. Na ocasião, diante da situação
de calamidade em que viviam os sertanejos residentes próximos ao local da obra, decidiu mandar perfurar uma
cacimba de alvenaria na praça da matriz da localidade, chamada Montenor e viabilizar uma estrada ligando o
povoado à Vila de Pacatuba. Essas medidas, muito mais que o represamento do rio, pareciam surtir efeito na
vida da população. IHGB – Apontamentos sobre as secas do Ceará por Ernesto Antonio Lassence Cunha. [S.L.,
1889]. Lata 330. Pasta 8.
259
GUERRA, Paulo, de Brito, A civilização da seca. O Nordeste é uma História mal contada. Fortaleza: Ministério
do Interior. Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, 1981. p. 85.
260
GUERRA, ibid., 1981. p. 85.
261
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 191.
119
de suas necessidades. E partiu para o Norte, em abril de 1931, dominado dos aflitivos
cuidados de que a ação do governo fosse sensível e eficiente, com a presteza que a
situação exigia.262
Não foi possível utilizar, para logo, toda essa legião de necessitados em obras
públicas, por falta de projetos definitivos e de material de construção suficientes. Para
atalhar o êxodo iminente, foi preciso organizar, no Ceará, onde a crise apresentava
mais graves proporções, sete Campos de concentração: em Fortaleza (Urubu e Otávio
Bonfim), Patú, Quixeramobim, Crato (Buriti), Carius e Ipú. Os Campos de Otávio
Bonfim e Quixeramobim tiveram pouca duração.264
262
Ibid., 1933. p. 195.
263
Ibid., 1933. p. 195.
264
Ibid., 1933. p. 190.
120
Mas a cada dia as concentrações de retirantes tornavam-se ainda mais numerosas, numa
agitação que o ritmo lento de liberação de verbas e de arranjos técnicos não acompanhava.
Nesse movimento, as perspectivas de transformação e modernização do combate às secas se
esvaziavam. Os socorros imediatos aos flagelados, evidentemente, pouparam muitos sertanejos
da morte, mas não sem cobrarem o preço do confinamento inumano nos campos, ou da rotina
extenuante nas obras públicas.
A persistência das velhas soluções historicamente ineficazes, diminuiu as possibilidades
de implementação de respostas que de fato atingissem as maiores causas da aflição em tempos
de recrudescimento das secas, e deixa ver a incapacidade do Governo Provisório em
implementar, de maneira realmente abrangente, as iniciativas sistemáticas, modernizantes e
moralizantes prometidas pelo movimento revolucionário.
O projeto de combate às secas planejado pelo Ministro Américo de Almeida, iniciado
com a reformulação administrativa, não foi plenamente executado. Segundo Américo, “a
calamidade pública transformou, porém, um plano de realizações concretas em obra de
assistência”.265 Essa justificativa, no entanto, exime da narrativa oficial outras questões
relevantes. Além das restrições orçamentárias decorrentes da política de arrocho fiscal
implementada durante o Governo Provisório, a amplitude das reformas modernizadoras e
moralizadoras propostas por Américo devem ser consideradas. Frente ao recrudescimento da
estiagem durante sua gestão, Américo e o Governo Provisório representado por ele, com efeito,
tornou mais dinâmica a lógica de combate à seca, sobretudo com a reorganização da IFOCS.
Contudo, as dificuldades em implementar mudanças diante de críticas severas, bem como a
manutenção da lógica centralizadora das decisões, agora, na pessoa do Ministro e do Presidente,
fizeram emperrar o impulso de renovação presente nos projetos alardeados pelo Governo
Provisório.
Ao solicitar sua exoneração do cargo, Américo recebe longa carta de Getúlio Vargas,
convidando-o para assumir a função de embaixador junto ao Vaticano, em julho de 1934.
265
ALMEIDA, José Américo de. O ministério da viação no governo provisório. Rio de Janeiro: oficina dos
correios e telégrafo, 1933. p. 194.
121
guardarão, para sempre, o nome de Vossa Excelência. Filho daquelas regiões, antes
desamparadas, Vossa Excelências teve a fortuna de contribuir, decisivamente, para
minorar os sofrimentos dos sertanejos nordestinos, pondo em prática, sábia e
seguramente, o programa de utilização econômica das terras devastadas pelas secas.
Administrador escrupuloso, com larga visão política, espírito dedicado ao estudo e
análise minuciosa das questões nacionais, Vossa Excelência tornou-se merecedor da
simpatia dos seus concidadãos. Seguro de que Vossa Excelência, na chefia da
embaixada brasileira junto à Santa Sé, continuará a elevar o renome do Brasil, formulo
os mais sinceros votos para que tanto nesse como em outros cargos, sejam os seus
talentos aproveitados em benefício do progresso da nossa pátria. 266
266
O documento original encontra-se sob os cuidados da Fundação Casa José Américo de Almeida e também está
disponível, na íntegra, em CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de
Almeida. Apêndices. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 492.
267
Naquele momento, logo após deixar o Ministério da Viação, o jogo político paraibano torna-se um campo
minado, ocasionando alijamento dos correligionários de Américo, e, por consequência, dele próprio. A seu
pedido, Vargas o nomeia para uma vaga no Tribunal de Contas da União. Algum tempo depois, em 1937,
Américo causa nova perplexidade, inclusive a Vargas, quando é cogitado à Presidência da República. “Américo
apresenta-se à convenção nacional de 25 de maio de 1937 e recebe o apoio da maioria esmagadora dos governos
estaduais situacionistas. Apenas os estados sulinos do Rio Grande e São Paulo apoiam Armando de Sales
Oliveira. Tão nítidos alinhamentos políticos parecem indicar o candidato nordestino como o representante
oficial do governo. No entanto, a aliança é mais aparente do que real: os preparativos do golpe de 10 de
novembro há muito já estão a caminho, como José Américo narra em sua entrevista, confirmada por
depoimentos e documentos da época”. CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José
Américo de Almeida. Apêndices. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 37.
268
Jivago Correia Barbosa, tratando do governo de José Américo de Almeida (1951-1956), eleito após disputada
campanha política na Paraíba, comenta que “desde a morte de João Pessoa, fato esse que serviu de pretexto
para a “Revolução” de 1930, três grandes nomes se destacaram na política paraibana, quebrando com a
hegemonia do antigo bloco oriundo da escola política da primeira República liderada por Epitácio Pessoa. José
Américo de Almeida, Argemiro de Figueiredo e Ruy Carneiro dominaram o cenário político durante os trinta
anos subsequentes a “Revolução” de 1930 e juntos, os três governaram a Paraíba por mais de quinze anos
(Argemiro de Figueiredo: 1936-1939; Ruy Carneiro: 1940-1945 e José Américo: 1951-1956)”. In. BARBOSA,
Jivago Correia. Política e assistencialismo na Paraíba: o governo de José Américo de Almeida (1951-1956).
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, do Centro de Ciências
Humanas Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2011. p. 29.
122
governo do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922).269 Esse primeiro esforço para com os
desvalidos do Nordeste permearam toda a sua trajetória dali em diante. A maneira como tratou
a questão da seca marcou sua vida literária e política, sendo tema mais que recorrente na série
de entrevistas concedidas por ele e nas obras de caráter autobiográficas que escreveu. Dessa
maneira, os problemas em torno da seca, do Nordeste e do Estado brasileiro foram incorporados
à memória histórica e afetiva em volta de José Américo.270
269
CARNEIRO, Joaquim Ostente. José Américo no contexto da problemática da região semiárida do Nordeste
brasileiro. Fundação Casa de José Américo. 2004. Biblioteca Nacional. N. V 212, 2, 53 n. 7.
270
Ver: CAMARGO, Aspásia. O Nordeste e a política: diálogo com José Américo de Almeida. Aspásia Camargo
e Eduardo Raposo. CPDOC/FGV - Fundação Casa José Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984; ALMEIDA, José Américo de. Eu e Eles. 3 Ed. João Pessoa: A União, 1994. ______. Memória: antes
que me esqueça. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1976.
123
271
Uma dessas grandes intervenções na paisagem dos sertões foi a construção da rodovia Transnordestina que
mais tarde seria incorporada à BR 116. O objetivo principal era assegurar a ligação entre a capital do estado
do Ceará, Fortaleza, ao Sudeste.
124
um momento de tensão social em meio a grande estiagem, mas também de rearranjo público
para o combate à seca.
A opção pela açudagem empregada nos primeiros anos da década de 1930 não era
novidade. Até o início do século XIX, a construção de barragens ainda era incipiente, refletindo,
segundo Molle, a fraca densidade de povoamento. No entanto, ao final do século XIX, uma
nova onda de produção de estudos para a construção de açudes foi efetivada e, associada a ela,
houve a propagação de iniciativas particulares para a construção de pequenos açudes que, mais
tarde seriam inventariados pela União.272
Os terríveis eventos de morte e carestia que marcaram a grande seca de 1877, motivaram
o debate sobre essa questão em sessões do Instituto Politécnico, sob a presidência do Conde
D’eu. Desses debates surgiram as primeiras propostas de construção sistemática de açudes para
suprir de água o interior da Província do Ceará e demais assolados pela seca. Até então, o foco
estava nos açudes menores executados pelos governos das Províncias. Também como
desdobramento daqueles eventos traumáticos, fora nomeada uma comissão com a incumbência
de percorrer a província do Ceará estudando os meios práticos de abastecimento d’água para
assegurar a produção e a vida nos rincões menos favorecidos do Brasil. A comissão, no entanto,
pouco se deslocou pelo sertão, e, mantendo-se nas imediações de Fortaleza, propôs, entre outras
coisas, a construção de 30 açudes, com capacidade para evitar parte os efeitos terríveis de uma
seca como também das inundações.
No final do século XIX e início do XX destaca-se a projeção da construção de obras
monumentais, contando com o apoio direto do Governo Imperial, iniciativa marcada pela
construção do açude Cedro, em Quixadá (CE), concluída somente em 1906. As grandes somas
de dinheiro público empregadas na construção dos grandes açudes ocasionaram o retorno do
debate sobre a eficácia desses empreendimentos. No entanto, essa solução, chamada de
“solução hídrica”, permaneceu vigente por muito mais tempo. Durante a seca de 1900, por
exemplo, mesmo diante de um cenário de crise econômica, iniciou-se obras de quatro grandes
açudes de terra, empregando pelo menos 80.000 pessoas.
Ao longo do tempo, houve grande variação do orçamento da União disponibilizado para
o combate à seca. Os valores destinados à Inspetoria de Secas refletem esse fato.
272
Cf. MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife:
SUDENE, DPG. PRN, HME, 1994.
125
273
MOLLE, François. Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE,
DPG. PRN, HME, 1994. p.39
126
1924, “todas as obras (açudes, ferrovias, estradas, entre outros) foram paralisadas por falta de
verbas, as quais passaram de 146.000 contos de reis em 1922 para 11.700 em 1924 e 3.827”.
No governo Washington Luiz também reinou a indiferença ao tema da seca; segundo relatos,
ele “apressou-se em vender, como ferro velho, todo o material que se encontrava no
Nordeste”.274
A descontinuidade dos trabalhos acarretou a perda de quase todos os esforços
empregados anteriormente e enxurradas destruíram fundações de muitos dos açudes iniciados.
Segundo José Américo, durante a seca de 1932, quando o Governo Provisório se deu conta da
nova leva de problemas decorrentes da estiagem, percebeu também a incipiência do
planejamento prévio executado por eles, assim, trabalharam a partir de projetos e estudos
antigos. O Ministro José Américo chegou a confirmar o aproveitamento de fundações de obras
inacabadas: “Quando cheguei ao Ministério, retomei tudo. [...] criou-se o departamento, os
planos de obras – que nós chamávamos de “sistema” – os açudes que deviam ser feitos [...] o
que eu fiz depois foram os açudes do Plano Epitácio”.275
Ao mesmo tempo em que promovia transformações no Estado depois da Revolução de
Outubro de 1930, o governo precisou atender as muitas demandas do período, entre elas, a crise
social decorrente da seca de 1932. Assim como em outros momentos, durante o Governo
Provisório a dinâmica política e a irrupção de tensões decorrentes da estiagem foram os
principais gatilhos para a execução prática da missão de combate à seca. Nesse difícil contexto,
foi preciso negociar com a desejo de pautar os socorros públicos de uma nova forma e, diante
do colapso social, Ministério e Inspetoria de Secas recorreram, então, a velhas respostas, sendo
a principal delas, a utilização da mão de obra dos retirantes que, mesmo sendo considerada ao
longo das décadas como de “fraco valor e rendimento”, seguiu sendo o principal motor das
transformações implementadas nos tempos de seca, sobretudo na construção de açudes.
Nos primeiros momentos de vigência do governo revolucionário, o Ministro da pasta da
Viação e Obras Públicas José Américo promoveu imperiosas mudanças na Inspetoria Federal
de Obras Contra as Secas, principal órgão responsável por operacionalizar os socorros públicos
desde a proclamação da República. A reforma da Inspetoria de Secas previa dar-lhe “um caráter
mais de acordo com os fins precípuos a que sempre fora destinada”, preconizando ideias
dominantes de combate a hipertrofia dos serviços nos Estados. Assim, as modificações na
Inspetoria buscavam restringir o raio de ação da Instituição ao “ambiente realmente flagelado”,
274
In. O. JUREMA. A seca no Nordeste, Apud. MOLLE, 1994. p. 34.
275
CAMARGO, Aspásia; RAPOSO, Eduardo; FLAKMAN, Sérgio. O Nordeste e a Política. Diálogo com José
Américo de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 220.
127
276
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97
277
Até então a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, atualmente denominada DNOCS, passara por uma
série de leis e decretos que regularam suas ações e definiram a abrangência de seus objetivos, bem como
apontaram as linhas fundamentais da sua organização. A primeira delas, de 1909, Decreto 7619, de
21/10/1909, criou a instituição, à época Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS. Logo em seguida, pelo
Decreto 9256, de 28/12/1911, reorganizou serviços a cargo da IOCS. Outras mudanças de regulamento
ocorreram em 1915, 1916, e 1919, esse último para a já denominada Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas.
128
“Quem conhece o tema das secas reconhecerá, certamente, quão acertada foi a fixação deste
amplo programa de açudagem, visando correlatamente a irrigação”.278
Seriam esses grandes sistemas:
I. Sistema do Acaraú, compreendendo obras de açudagem e irrigação necessária
à regularização do regime e aproveitamento das terras irrigáveis da bacia do rio
Acaraú, no norte do Ceará.
II. Sistema do Jaguaribe – idem, idem, idem, na bacia do rio Jaguaribe, no Ceará.
III. Sistema do alto piranhas – idem, idem, idem da bacia superior do rio Piranhas,
na Paraíba.
IV. Sistema do Baixo Assú – idem, idem, idem, na bacia do rio Assú, no rio grande
do Norte. 279
278
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91.
279
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
280
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935. Vol. 3. N.º 5. p. 180.
129
281
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
282
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1935. Vol. 3. N.º 3. p. 97.
283
Jornal A Ordem 2 a 7 de agosto 1932.
130
284
Ibid., 1932.
285
In. O Pontes. DNOCS – Pensamento e diretrizes. Apud MOLLE, 1994. P. 147.
286
ALMEIDA, José Américo de. As secas do Nordeste. Exposição feita na Câmara dos Deputados em 10-11-
1953. Debates e Repercussões. Serviço de Documentação do Ministério da Viação e Obras Públicas.
287
Bernardo Piquet Carneiro, (1860 – ‘936), carioca, formou-se na Escola Central da Corte, atual Escola
Politécnica do Rio de Janeiro. Veio para o estado do Ceará em 1887 como titular do cargo de engenheiro-chefe
da Estrada de Ferro de Baturité (Rede de Viação Cearense). Em 1900 passou a chefiar a Comissão do Açude
131
ações voltadas para a população atingida pelos desdobramentos das estiagens. Piquet escreveu
um memorial de proposições complementares passíveis de serem tomadas diante do estado das
obras em execução pela Inspetoria de Secas. Nele, o engenheiro apontou considerações
relevantes sobre como se achavam os socorros implementados pela IFOCS, sob os auspícios do
governo Vargas, em 1935.288
Escrito em 1935, as indicações de Piquet destacam-se pela quase singeleza das
propostas. Tendo sido elaboradas quando já assentava a memória acerca dos horrores da
estiagem, as formulações do experiente engenheiro parecem repousar na descrença da mudança
drástica no combate à seca prometida pelo novo governo. Justificando suas proposições a partir
de sua experiência como engenheiro que esteve engajado nas obras no sertão, Piquet formula
indicações para melhorar as condições de vida na zona árida, “capazes de evitar as aflitivas
retiradas e a dizimação do gado”.
Não pretendo aqui descrever o que os outros fizeram, mas apenas relatar o que tive
ocasião de observar quando me coube dirigir serviços de socorros durante a seca de
1900; e, depois, por espaço de 8 anos, em trabalhos de açudagem e irrigação. Foi
nesses períodos que tive oportunidade de verificar que soluções, então julgadas
econômicas e de efeito imediato para minorar os males causados. 289
Explicando que tudo deveria passar pelo bom uso dos recursos que a natureza oferece,
Piquet da atenção às seguintes soluções: cacimbas, poços profundos, bombas de elevação e
bebedouros. A partir delas seria possível preparar os terrenos, obter água do subsolo para
consumo doméstico e de animais, realizar reservas de cereais na proporção das necessidades de
cada fazenda, ou da casa de moradia, para o período de 3 anos. Além disso, o engenheiro indica
a necessária disponibilização de pequenas máquinas agrícolas e ferramentas e a organização de
3 a 5 turmas volantes para cada Estado, afim de dar execução aos serviços indicados. Segundo
Piquet, todos esses pontos deveriam estar sob direção de auxiliares agrônomos.
Após acompanhar a larga execução de obras pelo Ministério da Viação no socorro aos
flagelados, Piquet propõe a retomada das mais antigas e simples medidas de combate às secas.
As opções apontadas por ele se contrapõem ao vulto das ações efetivadas pelo Governo
de Quixadá, deixando o cargo quando a comissão deu lugar a recém-criada Inspetoria de Obras Contra as
Secas, primeira nomenclatura do atual Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Depois,
se ocupou na Fiscalização de Estradas de Ferro, voltando ao Rio de Janeiro em 1914.
288
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. Localização acervo biblioteca Nacional. I. 111,7,18
289
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 3.
132
Provisório. Indo na direção oposta às grandes obras, Piquet parece indicar pouca fé na lógica
dos arranjos executados nos primeiros anos da década de 1930 para a solução das crises
climatéricas.
Após a inclusão do combate às secas na Constituição de 1934, Piquet reafirma a
necessidade de se manter vigilante pela concretização dos recentes pactos pelo combate às secas
como medida sistemática e contínua. O temor no descumprimento das promessas do Estado
para com os flagelados mostra-se acertado. Piquet lembra, por exemplo, a necessidade de
providenciar, junto ao Ministério da Fazenda, para que a contadoria Central da República
escriturasse créditos e que o Ministério da Viação determinasse a criação de caixa de depósito,
tal como ficou estabelecido na Constituição de 1934, no artigo 177.290 Em meio as sutilezas da
ordem do discurso, o engenheiro convida às certezas da prática.
Na visão de Piquet, as obras executadas eram importantes, mas decorriam de um
direcionamento político passível de crítica, sobretudo quando se observava que grandes obras
nem sempre garantiriam a sobrevivência das famílias mais atingidas.
290
Além do caráter perene dos socorros, que foi a principal reinvindicação dos defensores da proposta, o texto
constitucional indicava a realização de serviços de assistência, a União, os Estados os municípios assolados
pelas secas, que deveriam concorreram com 4% da receita tributária sem aplicação, isto é, da receita tributária
que não tivesse agravante, sendo três quartas partes destinadas a – obras normais do plano de estabelecido e o
restante depositado em caixa especial. CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de
providências complementares que se acham em execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio
de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio Rodrigues & c. 1935. P. 7.
291
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 3.
292
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 7.
133
Realmente a eficácia dos açudes não está em seu número, como, em publicações se
tem dado a entender, mas na duração das águas que são represadas, podendo-se de um
modo geral afirmar que os açudes com profundidade inferior a 8 metros não resistem
a mais de 2 Anos de secas consecutivas. 293
293
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 7.
294
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d]. A brochura contendo anotações datilografadas de Júlio Cosmo Rodrigues foram cuidadosamente
preservadas pela família Rodrigues, tendo sido disponibilizadas para pesquisa acadêmica em 2015 no âmbito
dos trabalhos do projeto de cultura “Nas águas da Memória: história local, trabalho e cultura na ocupação da
localidade de Lima Campos, Icó-CE”, inscrito junto à Pró-Reitoria de Cultura da Universidade Federal do
Cariri. Coordenado por mim, o projeto visava produzir uma história local mais democrática, a cargo da própria
comunidade, produzindo material para pesquisas sobre a história de ocupação da comunidade de Lima Campos
134
contra às secas em Icó, assume que, diante das “reduções forçadas e as paralisações
desmoralizadoras” restou à Inspetoria promover “um programa conservador de obras” dentro
do qual a manteve, “tanto quanto possível, a continuidade indispensável ao aproveitamento
inteligente dos trabalhos executados”, com a “intensidade que lhe permitiram os recursos”. 295
3.2 “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”: críticas à ação da IFOCS
a partir da memória dos moradores da localidade. Ressalta-se que após análise da forma e do conteúdo da fonte,
sobretudo confrontando dados com artigos publicados nos Boletins da IFOCS, observou-se que alguns trechos
presentes nos escritos de Júlio Cosme constam no Boletim de abril de 1934 VOL 1 – N. 4. Assim, cabe
esclarecer que não havendo condições de datar com precisão os escritos de Júlio Cosmo, as citações Ipsis
litteris das suas memórias aqui utilizadas foram creditadas a ele quando não foi possível identificar
duplicidades com os textos dos boletins analisados, salvo engano.
295
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d]. p. 14.
135
Continua a desolação pelas terras que Tristão Gonçalves e tantos outros vultos de
nossa história ergam com o seu sangue de heróis. O Ceará, mais uma vez, padece de
fome e sede em um século a que se convencionou chamar de eletricidade num país
que pelos seus dirigentes, ensaia uma regeneração e uma organização em todos os
seus aspectos, políticos e morais. Não podemos compreender nunca que se alegue
razoes econômicas quando se faz mister evitar a morte – pela fome e pela sede de
tantos brasileiros. As populações do baixo Jaguaribe sucumbem por mais dizer sem
assistência dos homens que são responsáveis pelo destino de seu povo.296
Inegavelmente, a penúria da seca era o principal ponto evocado, mas, também era
evidente a demanda por investimentos na região. Os horrores da seca poderiam ser o mote para
tempos realmente melhores, e aí morava parte da indignação com o novo regime que sempre
propalou intenções de modificar o país por meio da modernização. No entanto, naquele
momento, a ação empregada pelo Governo Provisório foi pouco concreta em relação aos
milhares de brasileiros do setentrião. Tão velho como o Brasil, o problema social das secas
poderia ser redimensionado no novo contexto político, acreditavam.
296
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
297
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
136
Gastaram-se nessa construção, Sr. Inspetor, 7.800 contos de reis, incluindo o acervo
de materiais existente no acampamento, e a despesa do material empregado na estrada
de acesso Choró – Quixadá. Em muito menor tempo poderia ter sido ela concluída;
bem inferior seria o seu custo se não houvesse iniciado numa fase de calamidade das
maiores, senão a maior, talvez, até hoje, registrada na história triste e sombria das
secas do nordeste, este pedaço do Brasil, sofredor e sem altivo, martirizado e sempre
forte. 299
Para o engenheiro, a calamidade aparece como embargo para um uso racional das
verbas. Fossem feitas em melhor momento as obras seriam mais eficientes, porém, como é
possível observar, a seca era, pois, a premissa para o início de esforços mais vultuosos por parte
da Federação. Pereira de Miranda prossegue:
O dinheiro que o Governo Provisório do Brasil mandou para o Nordeste, pela mão do
ilustre ministro José Américo, não só matou a fome desse povo necessitado; não lhe
garantiu, tão somente, a vida; esse povo soube ser grato; manifestando, firmando,
pujantemente a rija fibra do nordestino cheio de estoicismo sublime de resignação, ele
regou, com o seu suor, as inúmeras obras que, hoje, vemos por toda parte, iniciadas
umas, em franco prosseguimento outras; e se terminarem várias; concluídas diversas,
como sejam os açudes Choro, Lima Campos, Joaquim Távora, Pilões, Soledade,
Riacho dos cavalos, Totoró, Itaberaba, aforra as centenas de quilômetros de estradas
de rodagem comas respectivas obras parte que se estiram e serpenteiam do Piauí à
Bahia. 300
298
Jornal O Debate, de 2 de janeiro de 1932
299
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 109.
300
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 110.
137
para com o flagelado transmutado, pela pedagogia do trabalho, em operários. Como indicou o
Thomaz Pompeu o êxito das iniciativas para construção de grandes obras era duvidoso porque,
de fato, “sobrepunham-se a vistosa realização de obras, agora monumental, aos morosos
estudos básicos, essenciais para projetá-las e executá-las”, estes levavam tempo e rendiam
poucas homenagens. Por outro lado, “os dados (técnicos) registrados, conquanto importantes,
ainda não bastava; eram incompletos e alguns evidentemente viciados ou carentes de correção”,
esse fato implicava no desempenho duvidoso das obras realizadas pela Inspetoria.301
Com o dinheiro enviado pelo Governo Provisório, a técnica dos engenheiros e os braços
sertanejos, a execução de grandes obras de captação de água, associadas a intensificação da
construção de estradas e de canais de irrigação, seriam capazes de produzir um uso mais
racional do solo, das plantas e das águas. Os fins justificariam os custosos meios. As escusas
do engenheiro podem ser lidas a partir de um quadro mais amplo de críticas à atuação da
Inspetoria de Obras Contra as Secas.
Como parte das mudanças políticas e de escopo na década de 1930, mas também por
não conseguir romper com a lógica patrimonialista e titubeante do planejamento e execução
dos planos de combate à seca construída ao longo dos anos pelo Estado brasileiro, a Inspetoria
esteve envolta em diversos escândalos que impactaram na recepção da sua propalada missão
histórica de combate à seca. O montante de trabalho ocasionava problemas diversos dentro e
fora dos canteiros de obras; além disso, o gasto excessivo do dinheiro público e problemas de
execução das obras colocava a Inspetoria e figurões da política nacional em maus lençóis junto
à boa-fé pública.
No jornal A Razão de 17 novembro de 1930, irregularidades e inquéritos administrativos
na Inspetoria de secas e na Rede de Viação Cearense são sondados. No jornal o texto iniciava-
se indicando “Sugestões que o governo poderia aproveitar”, pois, corria na IFOCS, desde o
início da administração Urbano de Almeida,302 um inquérito para apurar a responsabilidade nas
inúmeras irregularidades verificadas naquela repartição. A tese era de que o departamento
federal, com as suas inúmeras ramificações nos estados de atuação, transformara-se a “mercê
301
POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Orientação científica na luta contra as secas. Apud. MOLLE, François.
Marcos Históricos e Reflexões sobre a Açudagem e seu aproveitamento. Recife: SUDENE, DPG. PRN, HME,
1994. p. 35.
302
Antônio Urbano de Almeida, nasceu no município de Quixadá, Ceará em 1900. Formou-se em engenharia civil
pela Escola de Minas de Ouro Preto, em 1924. Iniciou sua carreira trabalhando na Rede de Viação Cearense,
especificamente na ligação férrea entre Ceará e Paraíba. Logo depois da Revolução de 1930, assumiu a chefia
do 1º Distrito da então Inspetoria Federal de Obras contra as Secas (atual DNOCS), sediado em Fortaleza,
iniciado inquéritos para apurar malfeitos na Instituição, postura persecutória antenada a atuação do primeiro
Interventor federal do Ceará, Fernandes Távora. Em 1931, ocupou o cargo de Prefeito de Fortaleza.
138
303
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
304
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
305
Jornal A Razão de 17 novembro de 1930.
139
informa que a roubalheira era promovida há muito tempo, executada por outros funcionários da
instituição:
Fortaleza, 14, 12, 1930. Presidente República. Ministro Viação. Rio de Janeiro
[...] Desde ano passado venho publicando imprensa local graves ocorrências
inspetoria denominada quadrilha chefiada Aberlado santos. Transmiti vários
telegramas Washington Luiz, pedindo comissão inquérito não sendo atendido. Atual
administração ouviu-me inquérito Sobral foram apresentadas centenas documentos
comprovantes roubalheira família Inspetor José Ayres, pagamento indecisões
forquilha ocorrido setembro 1928 causou revolta geral, Joaquim Demétrio roubou
cerca de cinquenta contos seu irmão José Ayres.
Continuarei enfrentando campanha arriscando perder própria vida patrioticamente
desejando moralidade república. Rogo vossa excelência pelo sangue sagrado João
Pessoa salvar obras Nordeste das garras quadrilhas ladrões. Respeitosas saudações.
Mario Rozal. 306
306
Transcrito em O Jornal de 13 de abril de 1931.
307
O Jornal de 13 de abril de 1931.
140
A inconstância nos repasses financeiros era antiga e patente. Como afirmou José
Américo, a dificuldade em conseguir a liberação de verbas junto ao governo federal sempre
foram responsáveis por tradição de impontualidades nos pagamentos da Inspetoria, motivando
uma anedota há muito conhecida entre os envolvidos no combate à seca: Conta-se mesmo no
Ceará que diante dessas questões, “encontrando-se Arrojado Lisboa em inspeção ao Orós,
308
O Jornal de 3 e 17 de abril de 1931.
309
O Jornal de 18 de novembro de 1932.
310
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
141
perguntou-lhe um caipira: “Doutor, e esse açudão também vai ser fiado?”. Um dos elementos
mais dramáticos da matéria acerca da dívida pós seca de 1932 era a denúncia sobre a
seletividade com que o órgão quitava as dívidas, priorizando os fornecedores com trânsito
político, levando fornecedores de menor trato à bancarrota. Segundo a denúncia, os
prejudicados deviam erguer seu protesto, recorrendo ao Ministro José Américo para enquadrar
os funcionários relapsos e “todos os cabotinos e sabujos que só diante dos potentados se
manifestam atenciosos e solícitos”.311
A situação dos que tinham negócios com a Inspetoria era difícil naquele momento. As
denúncias chamavam de asfixiante e opressiva a posição dos que exploravam o comércio de
fornecimento da IFOCS, sobretudo porque tinham que concorrer com empresas relacionadas a
funcionários do órgão. Com a dificuldade de crédito e cercado de inadiáveis compromissos em
consequência da falta de prestação de contas por parte da Inspetoria, os fornecedores instalados
nas proximidades das obras esperavam pelo pagamento por meses, tendo, inclusive, que
recorrer a “agiotas gananciosos e desalmados” para tocar seus negócios.312
O Ministro José Américo era frequentemente citado nas matérias sobre as dívidas da
IFOCS pois, “entendido como é em assuntos econômicos, a sua palavra merecido acatamento”.
O patriotismo do “incansável e sempre leal e sincero” emérito Ministro seria fundamental para
que mais crédito fosse disponibilizado o quanto antes. As atitudes do “ilustrem filho do
Nordeste”, permaneceria na admiração e conceito de seus conterrâneos, desde que a causa da
região recebesse atenção. As palavras, em geral, respeitosas, tornavam o Ministro o responsável
pelas ações da Inspetoria. No exemplar de 17 dezembro de 1933, os atrasos de pagamento da
Inspetoria vêm à tona.
Manchetes como “O Money vem aí”, do O Jornal, de agosto de 1933, expõem a
expectativa para a disponibilização das verbas pelo Governo Provisório. Segundo notícias do
próprio Ministro José Américo para o chefe da Inspetoria, em Fortaleza, a verba de trinta mil
contos, criada para socorrer o pagamento das dívidas da Inspetoria estava garantida. O Estado,
em sérios apuros econômicos decorrentes da incipiente economia duramente afetada pela
estiagem, poderia respirar melhor.313 A bancada cearense esteve também mobilizada, junto ao
Governo Provisório, para afrouxar “um pouco os cordéis da bolsa econômica e enviarem para
o Ceará, a importância mais ou menos suficiente para solver os compromissos da Inspetoria”.
311
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
312
O Jornal 3 de setembro de 1933.
313
O Jornal de 6 de agosto de 1933.
142
Esse antigo departamento, que esteve sempre a cargo de engenheiros de prestígio pelo
seu passado, e que eram a tradição viva de nossos serviços públicos, mantinham pela
autoridade do próprio cargo, o respeito devido aos contratos e impediam mesmo a
invasão da política na administração. Suprimida àquela diretoria e criadas, em
substituição, inspetorias com sede nesta capital e em detrimento, portanto, dos
serviços em estados que lhes estavam confiados, em breve reconheceu-se seus
inconvenientes ante as irregularidades no andamento dos processos e na observância
dos contratos como a fé sentir a comissão revisora de contratos, em 1921. Dessa
desorganização foi que resultaram graves abusos, que são de domínio público, mas
que não me cabe aqui citá-los. 315
Para ele, havia valor no engajamento dos engenheiros que, “por seu preparo e
idoneidade”, estudavam os socorros em tempo de calamidade “de acordo com a situação
econômica, em que se encontra o país”. Ao pontuar cirurgicamente a falha, Piquet critica o
caráter generalista do planejamento feito no Governo Provisório, ao tempo em que se ressente
da diminuição da figura do engenheiro como real responsável pelo combate aos efeitos das
secas. A acusação se faz de maneira expressa: “Dessa desorganização foi que resultaram graves
abusos, que são de domínio público, mas que não me cabe aqui cita-los”. 316
Além de perder espaço de destaque na opinião pública, o funcionamento e credibilidade
da Inspetoria foram alvos de outras tantas críticas. O nepotismo nas obras, por exemplo, marcou
o saldo que se fez sobre a ação da Inspetoria durante o auge da seca de 1932. Nas obras do
açude Tucunduba, por exemplo, o Governo Federal criou uma verba de 400 contos para a
consolidação da barragem pública, “que realmente estava merecendo as vistas dos poderes
competentes”. A direção desse serviço coube ao Dr. José Olímpio, Chefe da 3ª residência da
estrada de rodagem Ceará-Teresina e da construção do açude Jaibara, portanto, um técnico com
experiência no ramo do combate à seca.
O ilustre profissional Doutor Olímpio, no entanto, destacou para Tucunduba um
funcionário seu afeiçoado, que, segundo matéria de setembro de 1933, recebeu “poderes para
dar as cartas de jogo e mão”. A atividade da Inspetoria passou, então, a ser medida pela forma
314
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
315
CARNEIRO, Piquet. O Nordeste. Memorial justificativo de providências complementares que se acham em
execução pela inspetoria Federal de obras contra as secas. Rio de Janeiro. Typ. Do jornal do comércio
Rodrigues & c. 1935. P. 9
316
Ibid., 935. P. 9
143
inconveniente com que uma série de outras alocações de caráter nepotista se deram na obra. As
implicações da prática antiética se expressavam no andamento técnico dos trabalhos, elemento
profundamente disseminado pela Inspetoria como sendo a marca da atuação do órgão.
A matéria leva a crer que a razão de ser da obra de Tacunduba seria mais um favor de
ordem pessoal do que de benefício público, pondo em xeque a lógica de socorro aos flagelados
que permeava a missão da Inspetoria. O atraso de cerca de 10 meses verificável naquela obra,
por exemplo, tornava altamente repreensível o funcionamento dos trabalhos da IFOCS,
sobretudo porque a demora na entrega poderia significar a perda do contexto em que a
disponibilidade de mão-de-obra e verbas públicas era facilitada. Na marcha lenta, o açude não
seria concluído em dois anos, tempo suficiente para que a chuva e a produção se adensassem.
Na tentativa de contornar parte de escândalos como esses, o Ministro José Américo
nomeou uma Comissão de técnicos para inspecionar as obras a cargo da Inspetoria, a qual
deveria percorrer os mais diversos pontos de obras espalhados pelo Estado do Ceará. 318 Os
problemas nas obras e nas prestações de contas ganharam espaço na mídia, mas foram, ao longo
do tempo, obscurecidos ou diminuídos na memória institucional da Inspetoria e do combate à
seca de 1932.
Em meio aos socorros, uns se despojavam de possíveis lucros e haveres, enquanto outros
viam seus capitais redobrados da noite para o dia: “Tira-se o couro de uns e dá-se a camisa de
luxo a outros”.319 Em meio a críticas como essa, mas, sobretudo, diante das dificuldades que
fizeram demorar a execução de obras de acumulação de água, os projetos de modernização da
agricultura e a promoção da irrigação fizeram-se precários por ainda muito tempo.
Ainda assim, o argumento prosseguia, sendo que era urgente que o governo mantivesse
os repasses de verbas, pois o salvamento dos flagelados era muito mais importante. Bastava
olhar quantas vidas eram salvas e bem empregadas nas construções que transformariam o
Sertão. O açude Lima Campos, construído no município de Icó durante o auge da seca, era
exemplo disso. Trataremos dos detalhes dessa empreitada a seguir.
317
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
318
O Jornal de 8 de dezembro 1932.
319
O Jornal de 3 de setembro de 1933.
144
Em 1912, foi feito o primeiro orçamento para a construção do açude Estreito, idealizado
para ser, na época, um grande reservatório para a região com capacidade de acumular
119.741.150m³ de água. Ao mesmo tempo, foram estudados e orçados outros dois: o Poço dos
Paus, na localidade de São Mateus, atualmente município de Jucás, com capacidade de
619.563.125m³ e o Riacho do Sangue, em Cachoeira, hoje Solonópoles, com capacidade de
61.424.100m³.320
Sob o comando do engenheiro Jules Jean Revy, foram realizados estudos preliminares
sobre as possibilidades de construção de açudes e reservatórios. Os resultados das pesquisas
multidisciplinares da Comissão de Açudes produziram uma seleta lista de lugares aptos a
receber as obras públicas: Boqueirão de Lavras (localizada na vila de Lavras, comarca de Icó),
Boqueirão de Arneirós (vila de Arneirós), Boqueirão de Quixeramobim (vila de
Quixeramobim) e, finalmente, “[...] o açude conhecido pelo nome de Sitiá” (Quixadá). As
instruções da comissão apontam que entre os reconhecimentos e explorações, julgaram aqueles
lugares propícios à edificação de reservatórios. O proeminente farmacêutico Rodolfo Teófilo
foi contrário às iniciativas do grupo, pois, segundo ele, já se reconhecia que nessas terras havia
bons trabalhos de construção para o convívio com a seca.
[...] a vinda d’essa comissão seria recebida com verdadeiro jubilo pela opinião
pública, se diversos factos não tivessem anteriormente provado a nulidade de tarefas
d’essa ordem. Para a construção de açudes, melhoramento de incontestável utilidade,
não era preciso vir uma comissão de engenheiros. Os habitantes do interior, e muitos
d’eles analfabetos, perfeitamente conhecedores do terreno, constroem açudes, que
servem perfeitamente às suas necessidades, com muita economia e sem os preceitos
de engenharia. 321
Com seu judicioso comentário, Teófilo põe em xeque o saber científico e desmerece a
base para a consolidação das ações de açudagem ocorridas em muitos lugares. Apesar de ter se
aventurado no campo científico ao longo da vida, o farmacêutico revela, sem pudor, que “[...]
sem os preceitos de engenharia” os interioranos cearenses desprovidos do acesso a saberes
formais, já construíam açudes perfeitamente compatíveis com a realidade do lugar. À revelia
das vozes dissonantes como a de Teófilo, o trabalho da Comissão de Açudes seguiu rumo ao
semiárido.
O intuito era eleger os locais indicados para a açudagem dando prioridade aos custos
mais baixos. Estudou-se a topografia, a flora, a produtividade do solo, os recursos hídricos e os
320
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I. Icó, 1995. p. 149.
321
THEOPHILO, Rodolfo. História da Secca do Ceará. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. p. 275.
145
322
MAPURUNGA, José. Bem-vindo ao reino do louro e da peixada: Icó Patrimônio Nacional. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2009, p. 14.
323
As desapropriações ocorridas no momento da construção da barragem de Lima Campos, já em 1932, podem
estar associadas à manutenção de uma grande propriedade particular, mas, também a existência de pretensões
públicas para a região. Nas décadas seguintes, o DNOCS ampliou sua participação junto à localidade investindo
largamente no sistema de colonato a partir dos canais de irrigação aprimorados ao longo dos anos, assim,
atualmente, se observa que a especulação imobiliária e mesmo a construção de obras de caráter público,
esbarram na existência de um verdadeiro cinturão de terras cuja posse é deste órgão no município de Icó.
324
MAPURUNGA, José. Bem-vindo ao reino do louro e da peixada: Icó Patrimônio Nacional. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2009, p. 14.
146
Campos era, até o ano de 1932, “[...] apenas uma fazenda de criação de gado e outros animais,
a qual pertencia ao Sr. Ananias Evangelista, proprietário da fazenda Estreito. Com a
exacerbação dos efeitos da falta d’água, a construção do reservatório foi agilizada”.
[...] O Nordeste lutava com escassez de chuvas desde 1.930. Em 1931, motivos
prementes de economia influíram para que a realização sistemática do programa de
inspetoria não fosse iniciado com intensidade, vendo-se entretanto o governo federal,
obrigado a conceder pequenos créditos especiais, principalmente pelo fim do ano, com
o objetivo de socorrer certas regiões mais atingidas pela seca que então se
pronunciava. 325
Sobre o resgate do projeto do açude durante os tempos de seca, observa-se que o objetivo
da Inspetoria era o de enfrentamento sistemático dos efeitos danosos das estiagens, no entanto,
é historicamente possível perceber que o poder público manteve suas ações de forma irregular
ampliando-as, sobretudo, quando as crises climáticas batiam à porta, momento em que havia
disponibilidade de mão de obra barata e maior pressão social. O considerável contingente de
retirantes que circulou durante a seca de 1932 foi o responsável pela execução do projeto.
Os trabalhos de exploração, investigação e desenhos de projetos são anunciados pelos
diferentes grupos de estudiosos interessados em definir caminhos para sanar um dos maiores
problemas da nação: as crises de abastecimento d’água. Apesar das contendas existentes entre
os diferentes projetos de intervenção técnica, a construção de barragens de grande porte para
represamento de água e irrigação de lavouras foi levada adiante.
A açudagem apontava para o papel decisivo do governo em prol do bem-estar das
populações atingidas pelas estiagens. A construção de açudes seria, agora, de iniciativa pública.
A empreitada se somava aos esforços de auxiliar fazendeiros e pequenos proprietários de terra,
provendo-lhes de instruções acerca da construção de açudes, detalhes sobre as formas e
dimensões adequadas para sangradouros, muralhas e comportas. Entre os lugares propícios para
a edificação desses tipos de reservatório estava o município de Icó, na região centro-sul do
Ceará.
Os termos das pretensões da Inspetoria com relação às terras do Vale do Salgado, em
Icó, visavam à conformação da área por meio de uma ação técnica. De acordo com os estudos
realizados em 1931, pouco antes da confluência dos rios Salgado e Jaguaribe, o vale se alargava
em várzeas extensas, largas, planas, compreendendo todo o curso inferior dos riachos Mucururé
e São João, à margem esquerda e Bezerros, Capim Pubo e Bebedouro à margem direita, os
quais são os seus afluentes mais importantes. Naquele lugar, segundo o encarregado pelas ações
325
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d].
147
da Inspetoria Federal de Combate às Secas, engenheiro Luiz Vieira, as várzeas “[...] satisfazem
a todas as condições para a implantação da irrigação: terras excelentes e topografia propícia
tanto à distribuição quanto à drenagem”. 326
O reservatório do “Estreito”, mais tarde batizado de Açude “Lima Campos” em
homenagem ao antecessor de Luiz Vieira, falecido num acidente de avião, teve sua construção
iniciada em 13 de abril de 1932 em plena fase aguda da seca, sendo concluída em 31 de
dezembro do mesmo ano e inaugurada em 06 de janeiro de 1933.
Getúlio Vargas recebeu o seguinte telegrama sobre a entrega da obra:
Foi inaugurado o açude Lima Campos. (Ceará), 6 – centro dos exportadores, centro
dos importadores, jornais do nordeste e correio do Ceará, congratula-se com v. ex.
pela inauguração do açude Lima campos realização que vem comprovar a boa vontade
patriótica do governo de v. ex., no sentido da solução do problema das secas. – Pedro
Riquet, Freitas Rala, Moacyr Bezerra Nathaniel Cortez.327
A construção do Lima Campos inspirou uma nova política de combate à seca naquela
região, ensejando medidas práticas para a inclusão daquele território na economia nacional.
Segundo dados do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, de 1934, no texto
“Memória Descritiva”, assinado pelo chefe da Inspetoria de Secas, engenheiro Luiz Viera, a
capacidade de armazenamento de água do reservatório chegava a 58.269.000m³ e a irrigatória,
de 1.000 hectares. Na apresentação desse artigo, Vieira indica que, naquele momento, a
Inspetoria já projetava “[...] derivar, futuramente, para a bacia do “Lima Campos” águas do
açude “Orós”, por meio de um túnel de três quilômetros de extensão, ficando assim o
reservatório apto a irrigar 9.5000 hectares [...],” fazendo da construção do Lima Campos uma
das primeiras peças do importante projeto de intervenção no semiárido gestado nos primeiros
anos da década de 1930. 328
As obras no Lima Campos incluíam a edificação do “[...] açude, canais de irrigações e
rodovias, compreendendo como tais, Lima Campos Icó, Lima Campos - Iguatú, e Lima Campos
– Orós”. 329
A realização de obras de açudagem e irrigação previa estabilizar colheitas
transferindo, aos poucos, a agricultura para as zonas banhadas pelas águas dos reservatórios, o
que propiciaria a gradativa transição da dependência dos anos chuvosos para o regime de
rotação das culturas e aproveitamento “[...] dos tratos de terrenos bons, mas inacessíveis aos
326
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 5.
327
Jornal carioca Correio da Manhã, 10 de janeiro de 1933.
328
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
329
Ofício do engenheiro hidráulico Jules Jean Revy para o 1º engenheiro Costa Couto, em 12 de dezembro de
1884. Ministério da Agricultura, 1885, A-U, p. 50. Disponível em:
http://www.crl.edu/brazil/ministerial/agricultura. Acesso em: 02 de janeiro de 2020.
148
O interesse era o início imediato da irrigação de uma parte das várzeas. O projeto do
sistema aceita, portanto, a solução progressiva para sua construção com o
estabelecimento imediato dessa irrigação parcial, mediante a construção do açude
Lima Campos, convindo, entretanto, que os canais tenham as dimensões definitivas,
apesar de extensão limitada à zona a irrigar. 331
A ação da Inspetoria seria de alterar as terras que “[...] se prestam de maneira notável
ao estabelecimento de um sistema de irrigação, pela sua qualidade, conformação e situação”. A
barragem de Lima Campos tinha a vantagem de reunir esses atributos, além de ser uma “[...]
das mais baratas do Nordeste”. A projeção era de que o Lima Campos pudesse arcar com a
330
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1935. Vol. 3. N.º 6. p. 226.
331
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 7.
149
responsabilidade de irrigar uma área de 2.000 hectares com recursos próprios. Nas contas da
Inspetoria, as várzeas de Icó atingiam cerca de 10.000 hectares, havendo a necessidade de
complementar as águas do reservatório Lima Campos com uso do açude Orós para a realização
completa do programa de irrigação das terras aráveis daquela localidade. 332
Valer-se das várzeas de Icó significava percebê-las através do olhar técnico. No entanto,
vez ou outra, o Inspetor de Secas, Luiz Vieira, permite entrever suas impressões sobre o povo
do local, mencionado em meio às descrições sobre a irregularidade das chuvas. Para ele, as
condições “[...] não consentem nunca o aproveitamento econômico, sistemático e completo
dessas grandes e feracíssimas tratos de terra”, fazendo com que o povo do campo, diante das
parcas condições de plantio, se apegasse à “[...] produção excessiva nos bons invernos” que
davam “[...] a ilusão de uma riqueza permanentemente mas se anula por completo nos invernos
maus ou na seca”. Aos seus olhos, o sertanejo surge como “iludido” pelos “[...] anos de
bonança”, facilmente esquecendo-se da “[...] fatalidade da seca” que, assim, “[...] o encontra
desprevenido”. Dessa forma, cabia ao trabalho técnico e à ação governamental a construção de
açudes e o investimento na irrigação que, “[...] bem escolhida e bem dirigida”, mudaria a região
que se beneficiasse com a água armazenada nas épocas de excesso. Finalmente, o sertão estaria
“[...] independente da variação de precipitações de chuva”. 333
Apenas na década de 1930 a Inspetoria “[...] se aproximou da irrigação do ponto de vista
agronômico e das pesquisas agrológicas”. Essa tendência se evidenciava ainda no artigo 10, do
novo regulamento da IFOCS: “[...] a Inspetoria só construirá açudes ou auxiliará a sua
construção em terras que se prestem à irrigação e à cultura agrícola”. 334 Depois dessa diligência
do Governo Provisório, somente em dezembro de 1945 o Presidente José Linhares e o Ministro
Maurício Joppert da Silva, agenciando uma nova reformulação da Inspetoria, transformando-a
em DNOCS, criam o Serviço Agroindustrial e o Serviço de Piscicultura, voltado para
implementação das proposições das comissões técnicas empregadas em 1932.
O foco na irrigação, no entanto, só viria a tomar corpo a partir dos planos realizados ao
longo dos anos 1932-33. Por mais que se esperasse para breve o início de vários desses
empreendimentos, “[...] rigorosamente feitos no campo”, problemas com a liberação de
orçamento e de caráter técnico impediram sua plena execução. A esse respeito, ainda em 1934,
um dos boletins da Inspetoria identifica que, por mais que fossem dignos os esforços nessa
332
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
333
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Janeiro de 1934. Vol. 1. N.º 1. p. 6-7.
334
DNOCS. Registro histórico. Disponível em:
https://www.dnocs.gov.br/php/comunicacao/registros.php?f_registro=2& Acesso em: 27 de abril de 2019.
150
seara, sabia-se que os projetos “[...] eram em geral incompletos, sentindo-se os engenheiros não
raro em dificuldades, quando projetavam obras de irrigação, devido à insuficiência desses
elementos indispensáveis aos cálculos”. Segundo o texto, “[...] a deficiência daqueles dados,
procurados pelos cientistas que às vezes nos visitavam, criava-nos uma situação embaraçosa”,
contudo, assumir essa dificuldade visando dar prosseguimento à ampliação das áreas irrigadas,
demonstra a importância dada ao assunto. 335
Dessa maneira, o processo de construção do açude Lima Campos trouxe transformações
que passaram pela consolidação da açudagem, enquanto solução reconhecida para os problemas
inerentes às estiagens. Tal processo engendrou uma experiência específica de trabalho nas obras
do açude.
No começo do Governo Provisório, a tentativa de remodelar a organização do Ministério
da Viação e Obras Públicas marcou o início da gestão de José Américo. Assim como propunha
o ideário revolucionário de 1930, suas atenções se voltaram para a modificação dos parâmetros
da ação. Quando, porém, a crise climática se ampliou, a Inspetoria, igualmente modificada a
partir do crivo do novo governo, carecia de um planejamento real e de projetos aprovados nos
termos propostos por aquele Ministro. Uma vez definido o novo fluxo de socorros e verbas, a
Inspetoria e o Ministério recorreram a antigos projetos de intervenção no semiárido. Nesse
sentido, um dos estudos em melhor condição de ser posto em prática era o do açude Estreito.
Como indica Cosmo,
[...] O único na ocasião em condição de ser aprovado era o do açude Lima Campos
(Ex-Estreito I) ora em conclusão no escritório do I Distrito em Fortaleza. Essa obra
foi atacada imediatamente. Assim foi incumbido da construção do açude, o grande
prático em construção de açude, já falecido, Sr. Sebastião de Abreu, o qual chegava
ali na casa grande da fazenda Estreito no dia 13 de abril de 1932 [...].336
335
BOLETIM ABRIL, 1934, vol. 1, n. 4, p. 180.
336
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 3.
337
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 3.
151
Ainda segundo Cosmo, o ano de 1932 apresentou-se incerto “[...] com pequenas chuvas
em janeiro e essas cessaram por completo em março sem com tudo garantir o desenvolvimento
das plantações”. A gravidade da situação foi utilizada para pressionar um maior repasse de
verbas e socorros, que foram então “[...] encaminhadas para a população mobilizada para os
trabalhos em regime de emergência”, como já observado em secas anteriores. 338
Em Icó, diante da profusão de flagelados, a primeira medida tomada foi o alistamento
dos muitos retirantes que ocupavam os arrabaldes das obras da IFOCS. No Jornal O Povo do
dia 17 de maio de 1932, as diversas secas são representadas como a principal razão para a
migração dos cearenses.339 Contudo, conclui:
A zona do Nordeste representa o papel de mãe ingrata, paupérrima, cujas tetas não
alimentam os próprios filhos. O homem aqui sempre lutou muito mais que seu irmão
do restante do Brasil. Como não há mal que não traga um bem, no expressivo dizer
popular, por ser assim caldeado no sofrimento, o nordestino se afigura o tipo mais
forte da raça brasileira e por isso é que ele lá fora, sabe triunfar com relativa facilidade,
sendo considerado, nisso se lhe fazendo justiça, o trabalhador infatigável, o operário
por excelência, com a vantagem de adaptar-se às asperezas de qualquer indústria ou
meio de vida [...].340
338
Ibid., p. 2.
339
Sobre o importante fluxo de migração de cearenses para a Amazônia, segundo Barboza, “[...] apesar da
decadência da exploração da borracha no Norte e o surgimento de outros destinos, a Amazônia continuou sendo
um dos polos de atração de retirantes nas secas de 1915 e 1932”. Sob o governo Varguista, o fluxo foi ampliado
com a campanha “Marcha para o Oeste”, em 1938. Cf. BARBOZA, Edson Holanda Lima. Entre narrativas,
usos e abusos: migrações de cearenses para a Amazônia (1877-1945). In: CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes;
NEVES, Frederico de Castro. Capítulos de História Social dos Sertões. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura
Editorial, 2017, p.143- 158.
340
Jornal O Povo, dia 17 de maio de 1932.
341
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
152
partes do sertão, buscaram condições diferentes de vida no espaço pouco promissor das áreas
de construção. Quando mais uma vez os desdobramentos da seca se intensificaram, os
planejamentos prévios para o combate à estiagem, iniciados com as mudanças executadas pelo
Ministro da Viação na organização da Inspetoria, cederam lugar aos socorros intensivos
pautados em premissas anteriores.
As velhas respostas foram empregadas, suscitando, rapidamente, conhecidos problemas
e reclamações, sobretudo, acerca da permanente fragilidade dos acampamentos e sobre a
atuação dos responsáveis pelas obras. A magnitude da miséria e a necessidade de socorros na
mesma proporção tornava dúbia a opinião geral a respeito das ações da Inspetoria, ora descritas
como “improvisações”, ora definidas como “esforços notáveis”. 342 A justificativa para adotar
as mesmas medidas tomadas em outros momentos de calamidade, se assentava na “[...]
afluência de famintos desnorteados”.343
Em Icó, o número de flagelados aumentou bruscamente, atingindo em outubro de 1931
“[...] a soma vertiginosa de 75.000 almas”. O número de pessoas abarracadas, naquele
momento, era “[...] maior que a de muitas capitais de estado”, sendo praticamente impossível
dar conta, com os recursos materiais de que então dispunha a Inspetoria, dar assistência à
multidão.344 O enorme contingente e suas demandas exigiram que os responsáveis pela obra
criassem postos de trabalho, condições de higiene e arranjos de controle dentro do canteiros de
obras.
No começo da construção do açude Lima Campos, foi deslocado uma grande massa que
antes se concentrava em Buriti e Cariús, onde havia também o projeto de um reservatório.
Aquelas pessoas eram transportadas via estrada de ferro em condições sub-humanas, em vagões
fechados e despejadas na estação da Água Fria, de onde seguiam a pé para o Estreito. Chegando
ali, parte do contingente era alojado em barracas de zinco ou cobertas com folhas. Sem
instalações adequadas, as necessidades fisiológicas se viam atendidas em fossas a céu aberto.
345
Cosmo informa que em Icó, havia aproximadamente 300 mulheres alistadas na obra do
açude. Segundo o relato, muitas eram de famílias numerosas, compostas por “[...] 8, 10 e mais
pessoas” tendo como amparo único o chefe, “[...] cuja diária de 2.500 era evidentemente
insuficiente às exigências de alimentação”. Em diversos casos, se tratavam de viúvas ou “[...]
342
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
343
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
344
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
345
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I, Icó, 1995, p. 147.
153
mulheres abandonadas” as responsáveis por suas famílias compostas, às vezes, por “[...]
crianças de 10, 12 e 15 anos”, que, em muitas situações, logo se viam órfãs de pai e mãe. Nesses
casos, dada à situação periclitante de crianças e jovens desamparados, os encarregados da obra
admitiam os menores nas residências de concentração e frentes de trabalho, onde buscavam
“[...] com o suor do rosto o sustento de seus irmãos”. 346
A construção definitiva do reservatório do Estreito teve início no dia 11 de abril de 1932,
tendo sido concluída antes da chegada das chuvas de inverno em 1933. Logo após o alistamento
dos operários, começaram os serviços de “[...] desmatamento, destocamentos, escavação de
fundação da barragem” num ritmo de trabalho acelerado que “[...] funcionava dia e noite”,
indicando os tempos de atividade contínua aplicados aos sertanejos que se ocuparam da obra,
que, aliás, foi a mais acelerada realizada pela IFOCS dentro do conjunto edificado nos esforços
da seca de 1932.
346
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1.932 e 1.933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 4.
154
347
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 92.
348
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
349
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
350
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262-263.
155
351
Em 1935, o desempenho do Governo Provisório em diversas áreas foi analisado por encomenda dos “Diários
Associados”. Nessa ocasião, os trabalhos em torno dos socorros para com os flagelados da seca foram
observados pelo engenheiro Henrique Novais que visitou açudes, campos agrícolas, canais de irrigação e
estradas recém-construídas, elaborando um relatório que abordava, a partir de suas impressões, as bases sob as
quais a ação do governo se assentou no combate à seca.
352
Para Henrique Novais, as construções urbanas na capital se expandiam em um “[...] ritmo constante, em média,
ligeiramente superior a uma habitação por dia, sejam 367 em 1931, 461 em 1932, 379 em 1933 e 384 em 1934”.
In: Boletim Junho. 1935, vol. 3, n. 6, p. 226.
156
elevados até a altura dos joelhos, para provocar maior peso e firme compactação. Para
aquele serviço, eram escolhidos os fortes e sadios, recebendo os mesmos uma pequena
diferença de salários com relação aos demais que executavam outros trabalhos. 353
Nas palavras do memorialista Miguel Porfírio, percebe-se que no andamento das obras,
em Icó, até mesmo a compactação do material empregado na construção da barragem foi
realizada a partir da força individual. O relato indica que, apesar do alarde acerca do uso da
técnica e do ímpeto modernizador propagado a cada nova obra de combate à seca, o dia a dia
das obras era pautado pela precariedade e improvisação. Expediente comum ao longo dos anos
de atuação da Inspetoria.
[...] aceitava-se como ferramenta tudo que lembrasse mesmo de longe um instrumento
de trabalho. Picaretas, enxadas, carrinhos de mão surgiram de todos os feitios e de
353
LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e Memórias. Vol. I. Icó, 1995. p. 152.
157
todos os materiais, ora reduzidos a uma sombra do que haviam sido, ora caricatura
grotesca do instrumento que procuravam imitar. 354
354
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
355
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 46-47.
356
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
158
tarde pelo encarecimento das obras”.357 À vista disso, tendo posto de trabalho definido, ou não,
os retirantes que atravessavam o curral imposto para ordenamento da turba aparentemente
irracional “[...] recebia a diária de mil réis para a sua manutenção”.358
Segundo relatos do corpo técnico envolvido nas obras, a cada imposição os
trabalhadores exigiam explicações que, de acordo com suas palavras, eram concedidas de
maneira “leal e sincera”. Porém, nesse contexto de dominação e controle, os esclarecimentos
não eram aceitos de maneira passiva, não sem “[...] resmungar sempre e não acreditar nunca”. 359
A desconfiança quanto à eficácia dos tratamentos médicos impostos aos trabalhadores é um
bom exemplo disso. Diante da propagação de doenças nos abarracamentos, rumores e agitação
se multiplicavam.
Acerca das tentativas de ordenamento dos canteiros, vale informar que os operários
assumiam verdadeiras práticas cotidianas de resistência.360 Conforme relato presente nos
Boletins da IFOCS, as vacinas “[...] não lhe merecem franca simpatia”, um recenseamento “[...]
parece-lhe um chamado para a guerra”. Diante da obrigatoriedade da vacina, os sertanejos
diziam: “[...] a minha natureza não pode, não desejo botar peste em meu corpo”. 361 Nesses
casos, restava às partes envolvidas flexibilizar os termos que marcavam o exíguo espaço de
proximidade entre os indivíduos com premissas técnicas e a miríade de famílias de origens e
composições diversas que buscavam sobreviver e trabalhar. Ambos os lados negociaram sua
posição elaborando estratégias de dissimulação e vigilância. Por parte dos responsáveis pela
obra e pelo atendimento médico, surgiu uma postura mais flexível pautada na persuasão,
buscando agir “[...] pela simpatia que se lhe infunde”. 362 Desse modo, o contexto de dominação
tornava-se permeado por relações pessoais estabelecidas em prol da superação da disparidade
entre as visões de mundo.
Nesses locais, marcados profundamente pelo impacto da aglomeração de famílias
inteiras em situação de calamidade, a ausência de água, entre outros fatores, ocasionou sérios
problemas no estado sanitário da população, concentrada nas áreas de escavação e construção
dos reservatórios.363
357
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
358
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1934. Vol. 1. N.º 4. p. 177.
359
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
360
Sobre a noção de “práticas cotidianas de resistência”, ver: SCOTT, James C. A Dominação e a arte da
resistência. Discursos ocultos. Lisboa: Letra Livre, 2013.
361
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
362
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
363
Durante o século XIX, a cólera-morbus devastou os sertões, resultando em morte e despovoação de áreas.
Depois, a peste bubônica e a varíola compuseram o fúnebre quadro das agruras do sertão ressequido. Em 1878,
quando dados apontam que a população de Fortaleza era de cerca de 170.000 habitantes, estima-se que
morreram de varíola cerca de 35.000 pessoas. Sobre os impactos epidêmicos no Ceará, ver: ALEXANDRE,
159
A situação foi agravada quando a falta d’água, considerada a razão do êxodo das
famílias em busca de socorros públicos, atingiu também as áreas atendidas pelo governo. O
volume de água necessário para o abastecimento das obras era grande, pois, além de ser usada
para alimentar o imenso contingente de pessoas agrupadas nos canteiros, era igualmente
destinada às várias etapas das construções:
Ela [água] escasseava assustadoramente nos locais das obras; houve onde para as
necessidades de construção esse líquido era transportando de 10 e mais km de
distância e nesse mister foram gastas somas consideráveis. Água de beber era ainda
mais difícil em quantidade e quase sempre de péssima qualidade. 364
Jucieldo Ferreira. Quando o anjo do extermínio se aproxima de nós: representações sobre o cólera no semanário
cratense O Araripe (1855-1864). (Dissertação) Mestrado em História - Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2010.
364
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
365
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
366
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 94.
367
Segundo relatos do médico Absalão de Almeida, durante a crise de 1932 centenas de milhares de retirantes
“[...] depauperados e desalimentados, exaustos das longas caminhadas, quase nus e sem higiene [...]” que
ocuparam as proximidades das obras da Inspetoria, sofreram com doenças como as febres do grupo tifo, as
disenterias, as febres eruptivas, notadamente sarampo e varicela. Ao lado dessas epidemias, surgiram ainda
várias outras “[...] síndromes de avitaminoses como perda da visão noturna, pruído eczematiforme, nos lábios,
em todo o contorno da boca, indo até as bochechas, escarras linguais superficiais, queda dos dentes com
comprometimento dos maxilares”. In: BOLETIM JUNHO, 1934, vol. 1, n. 6, p. 264.
368
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 3. p. 129.
160
no entanto, tornava, muitas vezes, a situação das frentes de trabalho mais delicadas, ampliando
os embates entre trabalhadores e funcionários da IFOCS.
Em Icó, quando os abarracamentos insalubres que abrigavam os retirantes vivenciaram
o surgimento de epidemias, foi instalado um pequeno hospital para atendimento dos casos mais
graves com apenas um médico, um farmacêutico e alguns enfermeiros improvisados.
Naquele período, a Inspetoria mensurou a virulência da epidemia de paratifo atribuindo
a ela grande parte do terrível total de cerca de 16.000 óbitos verificados nos “[...] acampamentos
das obras federais de socorro, a despeito da assistência médica efetiva e de todos os cuidados
de profilaxia, de higiene, de alimentação e terapêutica empregados pelo governo na defesa da
vida daquela triste gente”. 369
No relatório apresentado ao Ministro da Viação acerca dos serviços desse período
fatídico, o Inspetor Federal de Obras contra as Secas prestou homenagem aos funcionários que
sobreviveram ao cataclismo, bem como aos que sucumbiram durante as atividades da
Inspetoria, ações essas descritas como uma grande obra nacional.
369
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 239.
370
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 239.
161
fora das frentes de trabalho, trataram também das fragilidades físicas e promoveram ações de
cunho educativo. Segundo o Boletim, as ações de prevenção que consistiam, principalmente,
em ministrar os medicamentos, tratamentos necessários e cuidados com o vigor físico,
protegiam não só das doenças, mas, garantiam a “[...] sadia obra de patriotismo, uma vez que
do braço forte do campônio depende o equilíbrio das rendas públicas”. 371 Tratamentos
necessários, contudo, nem sempre bem-sucedidos diante da péssima nutrição dos sertanejos
abrigados nas obras.
De modo geral, as condições de vida das famílias obrigadas a migrar por víveres e
trabalho, eram de penúria. Mesmo aquelas vinculadas a alguma frente de trabalho dispunham
de uma péssima alimentação:
Feijão, milho, arroz e farinha, para só falar nessas substancias alimentícias mais
comuns, eram importadas, datando de vários anos em depósitos, e, sem embargo das
exigências e fiscalização da administração da obra, deterioradas em sua maioria e
incapazes de produzirem as calorias indispensáveis aos organismos humanos. 372
O desabastecimento nas regiões assoladas pelas secas, especialmente nos canteiros das
obras públicas, decorria não somente da escassez de gêneros alimentícios, mas também dos
problemas envolvendo irregularidades no fornecimento e a suspenção de verbas para a compra
necessária. O Jornal carioca Correio da Manhã, de 10 de janeiro de 1933, trouxe a seguinte
notícia sobre o tema:
371
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março de 1934. Vol. 1. N.º 3. p. 129.
372
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Junho de 1934. Vol. 1. N.º 6. p. 262.
373
Jornal Correio da Manhã, de 10 de janeiro de 1933.
162
374
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
375
Cf. LIMA, Miguel Porfírio de. Icó em fatos e memórias. Vol. I. Icó, 1995. Como não havia estatísticas naquele
tempo, não temos registros sobre o número de óbitos ali ocorridos. Hoje, na fala do povo da cidade de Icó, se
escuta sobre a existência de um antigo cemitério e dos horrores dos tempos da seca de 1932, mas, a investigação
a respeito dos significados que a memória local tece diante da existência de tamanha tragédia está por ser
efetivada. Evocado como protetor contra as epidemias, a comunidade tem hoje São Sebastião como Santo
Padroeiro. A escolha do santo está envolta em disputas. Algumas narrativas sobre o tema apontam que a
iniciativa foi da esposa do responsável pela obra, o Sr. Sebastião de Abreu, com o objetivo de inscrever o nome
do marido na história da comunidade.
163
Em dezembro de 1932, uma comissão de engenheiros chefiada pelo dr. Sampaio Corrêa
foi enviada ao sertão, visitando obras orientadas pela Inspetoria de Secas. A equipe constatou
a seriedade dos problemas que acompanhavam a propalada transformação do Nordeste. A partir
dessa observação, uma missão médica iniciou uma campanha de combate às doenças
infectocontagiosas, orientando o modo como os encarregados pelas obras tratavam as
epidemias.
A missão mandada pela saúde pública do Rio, chefiada pelo Dr. Bonifácio Costa,
auxiliados pelos drs. Amadeu Fialho, Garcia Rosa e Otavio de Oliveira e com o
concurso de 16 enfermeiros, soube se impor por sua dedicação, seu saber e sua
atividade que se refletiam no magnifico sucesso da debelação completa da epidemia
de tifo-desinteria, graças à vacinação intensa que efetuaram e à campanha de
vacinação sistemática e educação sanitária que a Inspetoria prossegue. 376
Para prosseguir com a abordagem preventiva indicada pela missão médica, a Inspetoria
solicitou, em regime de urgência, vacinas anti-tificas que foram manipuladas em laboratórios
do Rio de Janeiro. Graças ao programa de vacinação implementado, a seca de 1932 não teve
grandes surtos de varíola, como os verificados em outras estiagens severas. A comissão foi
dissolvida em maio de 1933, tendo introduzido normas incorporadas ao trato com as multidões
mantidas nas frentes de trabalho da Inspetoria de Secas. A colaboração com os estados
permaneceu somente até 04 de outubro de 1933, quando, por motivos de economia, tornou
autônomo o serviço de assistência médica da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.
Consolidada a chegada das chuvas, a rede de assistência médica organizada durante a
seca de 1932 foi minguando. Em abril do mesmo ano, o Ministro da Viação tentou, sem sucesso,
estabelecer a assistência por intermédio da Cruz Vermelha brasileira. Ao receber a recusa, José
Américo instituiu, em junho, o serviço por meio de caixas médicas operárias, superintendidas
pelas diretorias de saúde dos estados interessados. O novo sistema exigiu decreto especial sobre
descontos em folha, sendo transformado, no mês de setembro, em assistência gratuita. As
despesas com pessoal e material eram custeadas pelas verbas de emergência da Inspetoria,
continuando, porém, a gestão dos serviços, os governos estaduais, com a implementação do
modelo em 1º de outubro de 1932.
Passados os principais eventos da seca daquele fatídico ano, a Inspetoria contabilizou,
em janeiro de 1933, 46 postos médicos de socorro ou assistência, a saber: 24 no Ceará, 9 no
Rio Grande do Norte e 13 na Paraíba. Dos 24 do Ceará, 5 correspondem aos campos de
concentração. Em dezembro de 1933 o número de postos médicos estava reduzido a 20: Ceará
8, Paraíba 5, R. G. do Norte 3, Piauí 2, Bahia 1 e Pernambuco 1. A ação de assistência médica
376
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
164
levada a cabo pela Inspetoria de Secas entre 1932 e 1933 custou 2.219:015$530, dos quais
25:031$400 foram investidos na fabricação de vacinas nos laboratórios do Rio de Janeiro.377
Além das mudanças nos protocolos e instalações médicas efetivadas no período de
maior incidência das doenças, buscou-se remediar os problemas de abastecimento de água nas
frentes de trabalho, sobretudo, por meio da perfuração de poços profundos; da construção de
cacimbas conjugadas e protegidas; do transporte longo realizado em caminhões tanques e do
transporte a partir da força animal para médias e curtas distâncias. Além disso, depois da seca
de 1932 a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas caminhou em direção à modernização
de seus serviços. No açude General Sampaio, por exemplo, na construção iniciada em 1932 e
concluída em 1935, foi implementada pela primeira vez a técnica de compactação mecanizada,
medida que proporcionava enormes contrastes com as condições de trabalho manual impostas
aos trabalhadores do Lima Campos.
O ano de 1933 apresentou-se próspero. Informações chegavam de todo o Nordeste
trazendo “[...] notícias animadoras, anunciando chuvas abundantes em toda parte”. Estava,
assim, “em festa o sertão”.378 As chuvas, porém, não caíram de maneira homogênea. Em Icó,
relatos indicaram que naquele ano “[...] o açude tomou uma pequena quantidade d´água, porém
as chuvas cessaram para reapareceram em março, quando o açude aumentou de volume
d´água”.379 Importa salientar, também, que a incidência das águas demarcou mudanças na
relação entre a União e os estados assolados pela seca.
Com a chegada do inverno de 1933, rumores sobre o fim da seca ganharam os jornais.
Nesse momento, iniciaram-se as dificuldades orçamentárias. Naquele ano os efetivos de
operários ainda estavam a postos. Quando as verbas para os pagamentos diminuíram, se fez
necessário impor revezamento de trabalhadores.
377
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934. Vol. 1. N.º 2. p. 93.
378
Jornal Correio da Manhã, 13 de janeiro de 1933.
379
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 13.
380
Ibid., p. 7.
165
381
Ibid., p. 6-7.
382
Já no primeiro trimestre de 1935, no posto da Inspetoria em Icó, havia 60 espécies de plantas em estudo nas
sementeiras, além de viveiros e plantações, lavouras de rendimento, espécies frutíferas e florestais, forrageiras
e hortícolas. As pesquisas lá desenvolvidas objetivavam produzir espécies adaptáveis ao solo e ao clima da
região, para consolidar uma “[...] produção acima da média e resistência a doenças, sua área aumentada com o
plantio da semente já colhida no posto”. In: Boletim Junho, 1935, vol. 3, n. 6, p. 230.
383
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 7.
166
Muitos dos operários que deixaram a obra, não dispunham de recursos e condições de
retornarem as suas terras abandonadas a quase dois anos, outros ainda não
conformados com o inverno, os quais atribuíam que em futuro próximo poderia se
repetir outro fenômeno igual ao ano que passou, logo que cessaram-se as chuvas,
procuraram de imediato as localizarem na bacia do açude, visando ali obterem
vazantes ou terrenos úmidos com a finalidade de trabalharem e dali conseguirem o
sustento para suas famílias e terem melhores condições de vida. 384
384
Ibid., p. 13.
385
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p. 13.
386
A estrutura contava com “[...] dois grandes ripados para produção de mudas, um barracão para embalagem de
mudas, um dito para máquinas de lavoura e almoxarifado, uma casa depósito e beneficiamento das colheitas,
um estábulo para animais de trabalho e reprodutores, um silo aéreo, um galpão para feno e uma casa de
residência para o agrônomo encarregado”. O engenheiro indica, ainda, que os terrenos foram comprados dos
herdeiros de Melcchiades Pinto Nogueira, à margem direita do riacho são João, medindo “[...] 6”22 hectares,
sendo 300 irrigáveis para lavoura, 322 de terrenos altos próprios para florestas e pastagens”. Os primeiros
responsáveis pelo posto foram os agrônomos Ignácio Ellery Barreira e Klaus Fest. Em 1935, o serviço ficou
ao encargo do agrônomo Raul Miranda Pereira de Mello. Cf. Boletim Junho, 1935, vol. 3, n. 6, p. 230.
167
Icó, propiciara verdadeira mudança na localidade, promovendo uma produção excepcional, das
melhores e mais do que se esperava”. 387
387
RODRIGUES, Júlio Cosmo. Dados do Açude Público de Lima Campos e Secas nos anos de 1932 e 1933. Icó
- Ceará. [s/d], p.14.
168
Pensando as origens da ecologia política no Brasil a fim de refletir sobre seu sentido
fundador, o historiador José Augusto Pádua indica a existência de um entrelaçamento do
desenrolar do debate ecológico-político no Brasil e o desenvolvimento do pensamento
brasileiro acerca do projeto nacional. A relação entre esses segmentos, perceptível desde as
primeiras reflexões acerca do sentido histórico nacional, suscita questões entorno da relação
entre natureza, o modelo de exploração econômica e a disputa entre padrões sociais pretendidos
para a nação.388
É com esse impulso que encontramos a formulação da primeira legislação realmente
abrangente e sistemática para o uso dos recursos naturais brasileiros na década de 1930. Ao
longo dos primeiros anos de seu governo, Getúlio Vargas esteve comprometido com uma
política de desenvolvimento promovida pelo Estado e, apoiado pelo tenentismo, buscou
negociar com a vertente conservadora da revolução formada principalmente por dissidências
oligárquicas e por liberais de classe média defensores de uma reforma liberal-democrática do
regime republicano, a ser precedida pelo retorno à constitucionalidade.389 Para dar conta dessas
pressões conservadoras e adotar uma política industrializante de desenvolvimento nacional,
Vargas contou com a ação de revolucionários como o cearense Juarez Távora, militar
comprometido, sobretudo, com ideais reformistas e nacionalistas.
Mesmo diante do caráter aparentemente conflitante das administrações encabeçadas por
Getúlio Vargas, é possível inferir que a condução de sua política econômico-administrativa
produziu um impacto considerável na economia brasileira e no uso de seus recursos naturais.390
388
PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo – IUPERJ, 1987,
p. 14.
389
SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no Brasil: uma análise comparada dos
projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do tenentismo e da cúpula militar do
Estado Novo. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Econômica.
São Paulo, 2011, p. 160. Sobre a heterogeneidade da coalização revolucionária de 1930, ver: SKIDMORE,
Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).
390
Sobre o impacto das políticas econômicas implementadas por Getúlio Vargas existem posturas diferentes por
parte dos pesquisadores. Para alguns, como Celso Furtado, as políticas varguistas tiveram impacto questionável
no desenvolvimento e industrialização do país. Em outras análises, a influência das políticas econômicas de
Vargas é reconhecida, porém, entendidas como inconsistentes. Uma terceira vertente de estudos sugere que os
governos Vargas foram fundamentais para o desenvolvimento industrial brasileiro. Cf. ARVIN-RAD, Hassan;
WILLUMSEN, Maria José; WITTE, Ann Dryden. Industrialização e desenvolvimento no Governo Vargas:
169
uma análise empírica de mudanças estruturais. In: Estudos econômicos, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 127-166,
jan./abr. 1997.
391
FERREIRA, Marcus Bruno Malaquias Ferreira; SALLES, Alexandre Ottoni Teatini. Política Ambiental
Brasileira: Análise histórico-institucionalista das principais abordagens estratégicas. Revista de Economia, v.
43, n. 2 (ano 40), mai./ago., 2016.
392
FRANCO, José Luiz de Andrade. A primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96. p. 78.
393
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96. p. 78.
170
Folgo em registrar que, no exercício daquele alto cargo, vossa excelência teve ensejo
de prestar a sua passagem, em tão importante departamento da administração superior
do país, com iniciativas de resultados fecundos para o desenvolvimento da economia
nacional.
Pioneiro da revolução, vossa excelência se revelou, do mesmo passo, conhecedor das
leis necessárias ao nosso progresso, e demonstrando sempre qualidades morais e
intelectuais admiráveis, traçou diretrizes novas para a solução de problemas de que
depende o aproveitamento racional das nossas fontes de riquezas e de energia. Basta
mencionar a reorganização modelar dos serviços do ministério da agricultura, a
elaboração dos códigos florestal, de caça e pesca, das águas e das minas, a criação do
banco nacional de rédito rural, da escola de agronomia, da escola nacional de
394
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 20.
395
AN – Fundo 35: Gabinete Civil da Presidência da República. Lata: 28 – Ministério da Agricultura. Consulta
em: 03 mai. 2018.
396
Jornal Correio da Manhã, 20 de novembro de 1932.
397
AN – Fundo 35 (...), loc.cit.
171
398
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Documento produzido no Rio de janeiro em 23 de julho de 1934.
399
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Exoneração para Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 15 de julho de 1934.
400
Segundo Saes, o tenentismo nacionalista foi “[...] uma das principais forças dirigentes do movimento
revolucionário de 1930” e, “[...] por ter integrado o poder na primeira fase do governo de Getúlio Vargas”,
apresentou “[...] as condições de formular mais solidamente o seu projeto de país, tendo a oportunidade de
executar alguns de seus itens devido à presença de representantes seus dentro do aparelho de Estado”. Cf.
SAES, Guillaume Azevedo Marques. SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no
Brasil: uma análise comparada dos projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do
tenentismo e da cúpula militar do Estado Novo. (Tese) Doutorado em História Econômica. Universidade de
172
Como parte do grupo do Clube 3 de Outubro, bem como associado aos Interventores do Norte,
Távora e os demais tenentistas nacionalistas julgavam necessário ao novo regime discutir os
paradigmas liberais fundadores da República. Expondo as linhas gerais do projeto político,
social e econômico do Clube 3 de Outubro, o documento “Esboço do Programa Revolucionário
de Reconstrução Política e Social do Brasil” reuniu contribuições de vários de seus membros,
entre eles Juarez Távora. O texto expressava uma profunda crítica à República Velha e tentava
imprimir um viés tecnocrata ao pensamento do período:
É preciso não repetir o erro dos idealistas de 89. Aproveitemos as conquistas de outros
povos, as lições da política mundial, o adiantamento da sociologia, mas sem
perdermos a noção da realidade brasileira e sem abjurarmos as tradições nacionais.
Realizemos a democracia, entregando o governo aos que trabalham e produzem.
Asseguremos bom rumo à administração, facultando aos especialistas interferência
eficiente na gestão dos negócios públicos. 401
São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-
Graduação em História Econômica. São Paulo, 2011, p. 151.
401
Club 3 de Outubro – Esboço do Programa Revolucionário de Reconstrução Política e Social do Brasil – 1932
– fevereiro. In: República dos Estados Unidos do Brasil. Annaes da Assembleia Nacional Constituinte. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1935, vol. III, p. 187-245.
402
Cf. SAES, Guillaume Azevedo Marques. Militares e desenvolvimento no Brasil: uma análise comparada dos
projetos econômicos da oficialidade republicana de fins do século XIX, do tenentismo e da cúpula militar do
estado Novo. Tese (Doutorado em História Econômica) - Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Econômica.
São Paulo, 2011.
173
403
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 20.
404
Cf.: PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo – IUPERJ,
1987.
405
Alberto de Seixas Martins Torres nasceu em Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro, em 1865 e faleceu em 1917.
Bacharel em Direito formado pela Faculdade de Direito de Recife, Torres elegeu-se deputado estadual e federal
na década de 1890. Foi presidente do Estado do Rio de Janeiro e Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Escreveu sobre os problemas nacionais e se destacou nas formulações sobre o pensamento ruralista brasileiro.
“Concebia o Brasil como um país de natureza essencialmente agrária, opondo-se assim a qualquer veleidade
industrialista. Nacionalista, defendia o fortalecimento do Executivo, convocando os intelectuais a participar da
organização da sociedade”. Suas ideias foram largamente utilizadas na década de 1930, sobretudo pelo
movimento Integralista. Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/alberto_torres
174
Alberto de Seixas Martins Torres, um ávido defensor da tradição agrícola brasileira, que
estendeu suas preocupações do campo do Direito aos temas como as transformações
climatéricas, a educação para o desenvolvimento do homem do campo, entre outros. O discurso
de Torres pelo saneamento dos sertões, por exemplo, fazia dele “[...] um defensor do
desenvolvimento do campo como mola propulsora da economia brasileira”. 406
Influente, sobretudo, nos seus últimos anos de vida, o republicano Alberto Torres foi,
após sua morte, alçado ao panteão dos principais intérpretes do Brasil na década de 1930 e, logo
depois, teve sua obra associada ao Integralismo e ao pensamento autoritário da década de 1960.
Suas formulações estiveram próximas das contribuições de Euclides da Cunha, Friedrich
Ratzel, Herbet Spencer e Auguste Comte, para citar alguns. Tornou-se referência para
intelectuais, militares, médicos, engenheiros, advogados, políticos e sujeitos de origens e
práticas diversas que compartilharam expectativas e decepções em relação ao regime
republicano e que, tocados por tradições e construções semânticas antecedentes a eles,
influenciaram formas de pensar e de transformar o Brasil. 408
Hansen (2018) considera Alberto Torres como o precursor “[...] do discurso
conservacionista moderno no Brasil”, vendo sua obra como fundamento jurídico das “[...]
propostas de Códigos e reformas que ocorreram anos depois através da participação de
406
GÓIS JÚNIO, Edivaldo. Alberto Torres e os higienistas: intervenção do Estado na educação do corpo (1910-
1930). In: Saúde Soc. São Paulo, v.23, n.4, p.1445-1457, 2014, p. 1452.
407
Ibid., p. 1451.
408
De acordo com a historiadora Ângela de Castro Gomes, entre a Abolição e a proclamação da República,
seguindo até a década de 1940, no Brasil se passaram “[...] 60 anos estratégicos para a formação de um
diagnóstico sobre características e problemas magnos do país, com a decorrente elaboração de propostas de
possíveis áreas de intervenção política”. Nesse ínterim, em meio à conformação do “pensamento social
brasileiro”, os intelectuais, durante a primeira metade do século XX, explanaram sobre seus ímpetos de
modernização e construção do Brasil. Segundo Gomes, esses intelectuais formavam um grupo difícil de
padronizar, composto por intermediários e intérpretes da sociedade que, em geral, desfrutavam de grande poder
de influência política.
175
O espaço em que uma população se desenvolve não é uma marca determinista em seu
caráter, mas um condicionador que exige do político – alçado a condição de prático
capaz de realizar as sínteses sociais e intuir os caminhos para o futuro – seu
conhecimento, atenção e, sobretudo, respeito. Se o lugar não determina, ele ao menos
implica limites à racionalidade política através da formação de uma base material,
relevando as riquezas e subilhando as escassezes, criando as condições em que o
espetáculo da vida se desdobra em direção a formação da nacionalidade e da
organização social. 411
409
HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018, p. 21 e p. 38.
410
Ibid., p. 32.
411
HANSEN, 2018, p. 33.
412
Ibid., p. 48
413
Cf.: HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
176
No Brasil, a produção das legislações que regeram a proteção e o uso dos recursos
ambientais mesclou as premissas conservacionistas e preservacionistas.414 No século XIX, tais
correntes constituíram majoritariamente o debate sobre as políticas de proteção à natureza.
Apesar de possuírem características aparentemente contraditórias, ambos os posicionamentos
apresentavam pontos de contato mundo afora. Surgido nos Estados Unidos, o preservacionismo
possuía uma base romântica e atuava na promoção dos processos de delimitação de territórios.
Já o conservacionismo, de origem europeia, teve a silvicultura como base. Essa segunda
vertente ideológica foi sendo permeada pela defesa do desenvolvimento e pela lógica do não
desperdício, desdobramento que ganhou adeptos nos Estados Unidos ainda no século XIX.
Atento às discussões em curso, o conservacionista Alberto Torres chamou atenção para o uso
problemático do solo e a água no Brasil apontando saídas de caráter técnico, principalmente
com base nos saberes agrônomos.
Em 1932, um grupo formado por mais de cinquenta figuras de destaque na sociedade
pós-revolução de 1930 fundou a Sociedade Amigos de Alberto Torres (SADAT), entre eles
estavam Juarez Távora, Fernandes Távora, Oliveira Viana e Roquette-Pinto. O objetivo
principal da agremiação era debater as mais relevantes questões nacionais a partir do
pensamento de Alberto Torres. O Jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, no dia 20 de
novembro de 1932 informou que o grupo de estudiosos da obra de Torres iria “[...] constituir
em sociedade para analisar e propagar as ideias e os ensinamentos do sociólogo brasileiro”. A
associação não teria fins literários, mas, sim, o interesse de “[...] desenvolver as ideias e estudos
que foram deixados em tese pelo autor”, sendo propósito do coletivo criar núcleos diversos para
averiguar “[...] as atuais condições de vida das várias regiões do país”. 415
De caráter civil, a sociedade foi fundada no Rio de Janeiro, contudo, expandiu-se por
outras localidades com a instalação de centros regionais em diversos estados brasileiros como
Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Goiás e São Paulo. Suas atividades se
encerraram, provavelmente, em 1945.416 Os estudos torreanos417 promovidos pela entidade
eram divulgados por meio de palestras e publicações que abordavam temas como imigração,
parâmetros para a educação rural e o aproveitamento dos recursos naturais nacionais. A
414
BRITO, Bárbara Lis Rabelo; BRITO, Daguinete Maria Chaves; SOUZA, Ester Almeida de. Pressupostos
teóricos de proteção da natureza. Planeta Amazônia: Revista Internacional de Direito Ambiental e Políticas
Públicas. Disponível em: https://periodicos.unifap.br/index.php/planeta ISSN 2177-1642 Macapá, n. 7, p. 141-
147, 2015.
415
Jornal Correio da Manhã, 20 de novembro de 1932.
416
O Jornal cearense A Razão, de 19 de junho de 1936, como representante da sociedade dava conta dos graves
desentendimentos entre membros da sede, no Rio de Janeiro, afirmando que a associação estava prestes a ser
encerrada.
417
Termo cunhado por Oliveira Vianna para tratar dos estudos da Obra de Alberto Torres.
177
Somos um país onde tudo está por organizar-se, e no qual nada é mais desorganizado
do que a produção. Disse o mais profundo e realista dos nossos sociólogos – Alberto
Torres – que “a nossa atividade agrícola, desde os tempos coloniais, tem sido um
processo de devastação da terra, sem protesto de ninguém”. Urge que reajamos contra
esse saque às riquezas naturais do país, que já duram séculos – encaminhando-nos
decisivamente pela senda da racionalização de nossa produção. Essa tarefa cabe,
inteira, ao Ministério da Agricultura [...]. 420
As inserções de Távora à frente da pasta da Agricultura foram, assim, eivadas das ideias
de Alberto Torres, particularmente, sobre a racionalização e organização do Estado. O
pensamento de Torres acerca da regulamentação do serviço florestal, de projetos referentes à
reforma agrária e da abertura de estradas, também foi incorporado ao projeto de intervenção do
418
SOCIEDADE (...), 1935, p.14.
419
Passagem acerca de reunião da SADAT, Jornal Correio da Manhã, 10 de janeiro de 1933.
420
AN – Fundo 35: Gabinete Civil da Presidência da República. Lata: 28 – Ministério da Agricultura. Consulta
dia 03 de maio de 2018.
178
Ministério da Agricultura conduzido por Távora. Essas pautas foram fartamente divulgadas
pela Sociedade Amigos de Alberto Torres através de reuniões, notas à imprensa e publicações
diversas.
A SADAT tinha a clara intenção de agir para a consolidação da revolução e para o
progresso nacional. Nessa direção, seus membros e a diretoria, muitos deles ocupantes de
cargos no Governo Provisório, falavam diretamente ao chefe do governo por meio, inclusive,
das páginas dos jornais, envolvendo boa parte da nação no processo de negociação. No dia 10
de janeiro de 1933, no Jornal Correio da Manhã, a diretoria recém-empossada da SADAT
informou ao Sr. Getúlio Vargas a opinião dos torreanos acerca do processo de
constitucionalização do Brasil. A agremiação deu salvas ao anteprojeto constitucional que
incorporou as preocupações do grupo ao propor a socialização da caça e a obrigação de manter
os parques florestais para resguardar a fauna e a flora por parte dos estados. De acordo com a
Sociedade, uma vez transformado em lei, o anteprojeto teria consolidado os devidos cuidados
para o combate à “[...] constante destruição das reservas naturais”, tão bem estudadas pelo
patrono da SADAT em “Fontes da Vida no Brasil”.
Como explica Silva,
As discussões ganham destaques na imprensa e em periódicos especializados,
mobilizando intelectuais de formações variadas como Monteiro Lobato, Roquette
Pinto, A. J. Sampaio (botânico e diretor do Museu Nacional, de reconhecida projeção)
José Vidal, Berta Lutz, Armando Magalhães Corrêa, dentre muitos outros, e também
associações como o Centro Excursionista do Rio de Janeiro, fundado em 1919, a
Federação Brasileira para o Progresso feminino, sob liderança de Berta Lutz, bióloga
do museu nacional, Sociedade Amigos de Alberto Torres, fundada em 1932, os Clubes
de amigos da Natureza, a sociedade geográfica do Rio de Janeiro e a sociedade amigos
das árvores, fundada em 1931, a academia brasileira de ciências e jornais como, por
exemplo, o correio da manhã.421
421
SILVA, Z. L. da. As percepções das elites brasileiras dos anos de 1930 sobre a natureza: das projeções
simbólicas às normas para o seu uso. In: ARRUDA, G. (org.). Natureza, Fronteiras e Território. Londrina:
EDUEL, 2005, p. 177-215; p. 191-192.
422
SILVA, 2005, p. 180.
179
Se era um assunto que já estava nas pautas dos jornais, em 1933 passou a ser a seção
permanente, Monumentos Naturaes e Proteção à Natureza, do suplemento Ilustrado
do prestigioso e crítico Correio da Manhã, que saía aos domingos. A iniciativa é
explicada como a decorrência da publicação no referido suplemento – de janeiro a
outubro de 1933 – do Curso de Phytogeographia e Proteção à Natureza, ministrado
pelo prof. A. J. Sampaio, do Museu Nacional. com o seu término, o jornal decidiu
ampliar o debate para todos aqueles que se interessassem pela causa ambiental,
explicando aos leitores os objetivos almejados com a criação da seção. Empenhado
nesse debate em defesa da Natureza, o Correio da Manhã divulga eventos, palestras,
“cartas”, comentários e, também, o texto na íntegra do decreto n. 23.791, de 23 de
janeiro de 1934, pelo qual o Presidente Vargas cria o Código Florestal. 424
423
Ibid., p. 177-215; p. 180.
424
Ibid., p. 193-194.
425
SILVA, 2005, p. 183.
180
Segundo Leôncio Corrêa, presidente da Sociedade dos Amigos das Árvores, no discurso
da sessão inaugural da conferência, a SADAT se colocou como a sentinela vigilante do nosso
ameaçado patrimônio florestal. Evidenciando a satisfação do segmento civil acerca do decreto
do Código Florestal, Correa diz ser essa uma das mais relevantes legislações assinadas pelo
Governo Provisório para o futuro econômico do país, pois, a medida institucionalizava e
assegurava a proteção à natureza.428 Como esclarece Franco (2002), a argumentação de Corrêa
em torno da proteção da natureza estava baseada em dois pontos principais: o primeiro era de
que a natureza devia ser valorizada enquanto recurso econômico, devendo ser utilizada de
maneira racional. O segundo, indicava os recursos naturais como “[...] objeto de culto e fruição
estética”. 429
Ao longo das primeiras décadas do século XX, o debate ambiental alternou-se entre as
concepções conservacionistas, que previam a racionalidade na utilização dos recursos naturais
e os conceitos preservacionistas, que se ocupavam com a faceta transcendental do mundo
natural:
No Brasil dos anos 1930-1940, os conceitos de proteção, conservação e preservação
eram, portanto, intercambiáveis, ambos apontando, ao mesmo tempo, para as noções
426
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. JAN. 2002. p. 77-96; p. 78-79.
427
Ibid., p. 79.
428
Cf.: Alberto José Sampaio (relator). Relatório Geral da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza,
In: Boletim do Museu Nacional, vol. XI, nº 1, março de 1935, p. 15-16 Apud FRANCO, José Luiz de Andrade.
A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da Identidade Nacional. VARIA
HISTÓRIA, nº 26, JAN. 2002. p. 77-96; p. 80.
429
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. JAN. 2002. p. 77-96; p. 79.
181
Num país, como o nosso, onde, nem o produtor, geralmente, pobre e ignorante, pode
resolver, por si só, o problema de sua organização e defesa, nem o Poder Público,
desorientado e também empobrecido, logrará, tão cedo, atender, diretamente, a cada
produtor necessitado – só há uma saída razoável pra a pronta e eficiência organização
da produção: - é o grupamento destas em federações estaduais e, finalmente, da
aglutinação dessas federações, em confederações nacionais, capital da república. 433
430
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 83.
431
Ibid., p. 77-96; p. 81.
432
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Documento produzido Rio de Janeiro, 15 de julho de 1934.
433
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Vargas aceitando saída de Távora do Ministério. Rio de janeiro, 23 de
julho de 1934.
182
produtor rural, até então negligenciado, paradoxalmente, num país qualificado como
“essencialmente agrícola”.434 O segundo elemento destacado por Távora dizia respeito ao
controle e aproveitamento das riquezas naturais, “[...] até agora entregues à cupidez ou
inconsciência dos apetites individuais”. 435 Os problemas já se achavam equacionados dentro
dos quatro códigos que tivera “[...] a fortuna de referendar como ministro da agricultura do
Governo Provisório – o de caça e pesca, o florestal, o de águas e o de minas”. 436 Da execução
dos dois primeiros estavam incumbidos, respectivamente, os conselhos de caça e pesca e
florestal, naquele ínterim, em meados de 1934, já em plena atividade. Os dois últimos, recém-
sancionados, se encontravam em vias de serem executados pelos serviços de águas e de fomento
da produção mineral do Ministério da Agricultura. Aqui, daremos atenção ao Código Florestal.
A ampliação do debate acerca da relação da sociedade brasileira com seus recursos
naturais culminou com a promulgação do Decreto Federal 24.643, de 10 de julho de 1934, que
fez vigorar o Código das Águas e o Código Florestal, datado de 23 de janeiro de 1934, Decreto
23.793/34, que previa a obrigatoriedade de autorização para a “[...] derrubada de florestas em
propriedades privadas”, o “[...] aproveitamento de lenha para abastecimento de vapores e
máquinas” e a “[...] caça e pesca nas florestas protetoras e remanescentes”. 437
O Código foi elaborado por uma subcomissão que redigiu o anteprojeto do texto com
base em debates internos, mas, igualmente, de acordo com sugestões de membros da sociedade
civil como a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres e a Sociedade dos Amigos das Árvores.
A imprensa do período tratava o tema como sendo o “Problema Florestal Brasileiro”, reunindo
questões econômicas relativas ao abastecimento de lenha, por exemplo, e tópicos como a
inconstância das chuvas e a incidência de doenças ocasionadas pela ausência da vegetação. 438
Sancionado por Getúlio Vargas, o Código estabelecia regras de exploração e
preservação das florestas brasileiras.
O “modelo” de floresta era a silvicultura ordenada e produtiva. Por ser a esmagadora
maioria das florestas no Brasil classificada como de “rendimento”, essa denominação
é reveladora da destinação prevista para essas florestas. A exploração florestal, à
434
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Carta de Vargas aceitando saída de Távora do Ministério. Rio de janeiro, 23 de
julho de 1934.
435
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
436
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
437
BRASIL, Código Florestal, 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/D23793impressao.htm Acesso: 11 de novembro de 2019.
438
Cf.: HANSEN, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
183
439
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016; p. 420.
440
BRASIL, Código Florestal, 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-
1949/D23793impressao.htm Acesso: 11 de novembro de 2019.
441
Ibid., p. 417-442; p. 422.
442
CASTELO. Thiago Bandeira. Legislação florestal brasileira e políticas do governo de combate ao
desmatamento na Amazônia legal. Ambiente & Sociedade. São Paulo, v. XVIII, n. 4, p. 221-242, out./dez.
2015, p. 222.
443
MEDEIROS, Rodrigo. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente &
Sociedade – vol. IX, nº 1, jan./jun. 2006, p. 41 – 64.
444
Cf.: Hansen, Thiago Freitas. Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado em...) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018.
184
445
BRASIL, 1949, art. 3º a 7º.
446
FGV - Arquivo Juarez Távora. Classificação JT dpf 1932.12.09. Data 09.12.1932 a 02.08.1934. Quantidade de
documentos: 223 (578 folhas). Discurso de transmissão de cargo ministro a Odilon Braga.
447
CASTELO, Thiago Bandeira. Legislação florestal brasileira e políticas do governo de combate ao
desmatamento na Amazônia Legal. Ambiente & Sociedade. São Paulo, v. XVIII, n. 4, p. 221-242, out.-dez.
2015, p. 223.
185
sobre o uso dos recursos naturais e na inclusão desse tópico para a condução dos rumos
nacionais, termos relevantes para a proteção do meio ambiente.
Apesar de não se tratar de uma legislação “ambiental”, o Código foi, segundo Carvalho
(2016),“[...] parte de uma longa tradição de legislação florestal que regula a utilização das
florestas, mas é também parte do esforço de implantação no Brasil de um projeto modernizador
que procurava industrializar o país”, portanto, estava relacionado ao ensejo “de produção de
um “homem novo” e uma “natureza nova”, adequados ao projeto industrializante.448
Nesse sentido, importa ressaltar ainda que o Código Florestal influiu na formulação de
certo entendimento sobre a propriedade privada, pois, negava seu usufruto absoluto ao proibir
cortes de árvores em certas áreas e obrigava o replantio em outras, por exemplo, assim como
previa a delimitação ainda que incipiente de parques nacionais e estaduais. O Código também
estabelecia a criação de uma fiscalização ostensiva por meio da Guarda Florestal. O Código de
Águas, por sua vez, instituía normas para o controle da água, mesmo aquela que corresse em
propriedades privadas. Para Dean (1996), tal legislação “[...] Foi uma rejeição histórica do
liberalismo e uma reversão para o controle estatal, abafado desde os primeiros dias do império,
mas agora revivido sob a bandeira de um nacionalismo modernizante e tecnocrata”. 449
Chama atenção o fato de que as leis e normativas sobre o uso dos recursos naturais
produzidas em 1934 vigoraram por longos anos. Somente com a Lei Federal nº 4.771, de 15 de
setembro de 1965, foi constituído um novo Código Florestal Brasileiro. Essa nova baliza
regulatória foi implementada em associação com um conjunto de subsídios do setor rural
estabelecida pela ditadura civil-militar instalada em 1964. A longevidade do Código Florestal
de 1934 leva em conta a profundidade do debate sobre a questão ambiental no início de 1930,
por outro lado, redimensiona as críticas de não implementação dessa legislação evidenciando
como o marco regulatório atuava, de fato, acerca da propriedade privada. Como indica
Carvalho, “[...] o Código Florestal não era tão draconiano com a propriedade privada como
aparentava à primeira vista”, no parágrafo único do art. 11, por exemplo, garantia “[...] ao
proprietário, em tais casos, a indenização de perdas e danos comprovados, decorrentes do
regime especial a que ficar subordinado” e o uso das áreas protegidas em suas propriedades. 450
448
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016, p. 418.
449
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia.
das Letras, 2004. p. 275-276.
450
CARVALHO, Ely Bergo de. O Código Florestal brasileiro de 1934: a legislação florestal nas disputas pelo
território, um estudo de caso. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, p. 417-442, jul. 2016, p. 423
186
Além disso, as falhas do Código Florestal se expressavam nas muitas aberturas para o
desmatamento de madeiras de lei mediante replantio, pois, na medida em que uma área com
redução de florestas ao mínimo previsto no Código era vendida, sua porção de floresta era
novamente calculada como um todo, desprezando o fracionamento inicial. Dessa forma, a área
era repassada a um novo proprietário. Brechas como essa eram recorrentes, sobretudo, diante
dos poucos recursos de que dispunha o Estado, responsável por fazer valer as normas e fiscalizar
sua aplicação. A relativa boa convivência dos proprietários com o Código se expressava,
portanto, nos espaços de manobra existentes na lei para a devastação com fins econômicos e na
possibilidade de escapar da fiscalização incipiente da Guarda Florestal e dos Conselhos
Federais de Florestas. Além, é claro, do alardeado uso da força econômica por parte dos
proprietários que pressionavam ou cooptavam por meio de propinas fiscais e tribunais. 451
É preciso, ainda, entender como a redação dos marcos legais foi associada às pautas
regionais. Para isso, discutiremos como o debate sobre as matas e o reflorestamento presentes
no Código foi tratado nas páginas do Boletim da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas,
visando a ampliação de medidas para o combate à estiagem.
451
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. 1. ed. São Paulo: Cia.
das Letras, 2004. p. 277-303.
187
É verdade que, embora encerre disposições especiais para esta região de secas (art.
29, letra de a a e) o documento parece não se adaptar convenientemente às nossas
necessidades. Contudo, tem disposições salutares que deviam entrar imediatamente
em execução, tal seria a instituição de polícia florestal e a criação do conselho floresta,
este principalmente que, depois de melhor estudo da situação das nossas matas e das
necessidades de ordem florestal reclamadas nos diversos setores do país, poderia
redigir outro código mais ajustável às condições de casa zona. 454
Sobrinho informa ainda que os Estados nordestinos, vez por outra, promulgavam leis de
proteção aos restos de suas matas, mas eram, porém, “[...] leis que jazem esquecidas nos anais
das assembleias, tal como a de n. 1292, de 31 de agosto de 1915 (Ceará) que proíbe a derrubada
452
SEVCENKO, N. (2002). O outono dos césares e a primavera da história. Revista USP, (54), 30-37. p. 33.
453
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril 1935 Vol. 3 N.º 4 p. 186.
454
Boletim IFOCS ABRIL, 1935, vol. 3, nº 4, p. 186.
188
455
Ibid., p. 187.
456
Na escrita de Sobrinho os termos “mata” e “floresta” parecem ser, na maioria das vezes, usadas como
sinônimos. Acreditamos que apesar de reconhecer a diferença entre o tipo de vegetação originária da região
Nordeste e do restante do país, o engenheiro parece estar pautado na pouca delimitação do termo. Na letra do
código florestal o termo aparece com ampla extensão, o que garantiria que o uso da vegetação nordestina,
reconhecidamente menos exuberante, estaria contemplado pelos ditames do código. Nota-se a pouca
delimitação do termo “floresta” no código florestal de 1934 na redação dos artigos 1º e 2º: “Art. 1º - As
florestas existentes no território nacional, consideradas em conjunto, constituem bem de interesse comum a
todos os habitantes, do país, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que as leis em geral, e
especialmente este código, estabelecem. Art. 2º - Aplicam-se os dispositivos deste código assim às florestas
como às demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem.”
457
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 86.
189
458
Ibid., p. 77-96; p. 87.
459
ARRUDA, G. Representações da Natureza: História, Identidade e Memória. In. ROLIM, R. C., PELEGRINI,
S. S. e DIAS, R. História, espaço e Meio Ambiente (Anais do VI encontro de História) Maringá/PR: ANPUH/PR.
200, p. 52
190
À medida que produzissem os primeiros efeitos, outras espécies seriam admissíveis e, assim,
gradativamente até o completo domínio da região. 460
No limiar da década de 1930, em meio aos diversos conjuntos naturais do país, o
Nordeste seco se revelava como um dos territórios mais complexos para a formulação de
medidas e planos de melhoria. Para amparar a situação, duas respostas foram sendo
disseminadas naquele momento: o domínio sobre o curso das águas através da açudagem e da
irrigação e a valorização das espécies xerófilas, opções não excludentes. Nesse bojo, as
representações em torno das potencialidades naturais da região eram importantes para definir o
planejamento regional. É possível incluir a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas como
parte desses esforços.
Nesse contexto, associado ainda às devastações decorrentes da seca de 1932, o governo
do Ceará criou a Comissão Técnica de Reflorestamento e Postos Agrícolas, posteriormente
transformada em Comissão de Serviços Complementares da Inspetoria e Secas. As comissões
eram destinadas, entre outras coisas, ao desenvolvimento de florestas protetoras e florestas de
rendimento de madeira e de ramas nas bacias hidrográficas dos açudes, bem como à formação
de “quebra-vento” nas bacias de irrigação. As comissões atuavam também para a arborização
marginal dos canais de irrigação e a proteção do revestimento florístico das bacias hidrográficas
dos centros de população da região seca. Mas, assim como fora difícil fazer cumprir os Códigos
Florestais e das Águas, estas funções múltiplas pareceram por si só, difíceis e complicadas. 461
Sobrinho revela: “[...] Não conhecemos os trabalhos a que se tem empenhado a referida
comissão, mas acreditamos alguns frutos já lícitos contar da sua atividade, visto conter no seu
seio homens de justificada reputação”. 462
O escopo de ação das comissões aponta para a interligação do pensamento acerca da
proteção dos recursos naturais no período e a tentativa de institucionalização dessas ideias, que
seriam transformadas em ações práticas a serem executas por órgãos públicos.
No Ceará, associado a esse movimento mais amplo de discussão acerca do uso dos
recursos naturais nacionais, intelectuais fomentaram o debate preservacionista recorrendo às
contribuições anteriores acerca dos usos dos recursos naturais. Tais interesses foram
publicizados também através de Boletins periódicos editados pela Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas. A publicação dos informativos se inseriu nesse contexto como uma das mais
460
J.S., de Castro Barbosa. Dos meios mais eficazes para prevenir e atenuar os efeitos das secas periódicas. Rio
de Janeiro, 3 de julho de 1909.
461
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril 1935 Vol. 3 N.º 4 p. 187.
462
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Março 1935 Vol. 3 N.º 3 p. 91
191
úteis e festejadas iniciativas da Inspetoria de Seca para dar publicidade aos seus feitos técnicos.
Neles, o estudo sobre os aspectos naturais do Nordeste e o detalhamento das transformações
operadas na paisagem nordestina ganhou prioridade, sempre associadas ao ímpeto
modernizante do Estado brasileiro.
No exemplar do Boletim da Inspetoria de Secas de fevereiro de 1934, a publicização da
inauguração do açude Choró permite entrever algumas das intenções do órgão naquele
momento. Os estudos feitos para a realização da obra foram publicados no número anterior do
boletim, sendo aquele artigo dedicado somente ao evento público. O texto evidencia, sobretudo,
que o açude “Choró”, concluído em 28 de janeiro de 1934 foi entregue à sociedade com a
presença de políticos de renome, entre eles, o Interventor do Ceará, Capitão Roberto Carneiro
de Mendonça, autoridades federais e estaduais, engenheiros da Inspetoria de Secas e outras
personalidades graúdas.
Segundo detalhes contidos no texto do Boletim, a comitiva havia partido na madrugada
do dia 4 de fevereiro, de Fortaleza, em um trem especial. Depois de visitar as obras do açude
“Cedro”, em Quixadá, o grupo dirigiu-se em seguida, em automóveis, para o local da barragem
Choró “[...] utilizando excelente estrada de rodagem recentemente construída” pela Inspetoria.
463
No ato da entrega, do alto da barragem recém-construída pronunciou-se o engenheiro Pereira
de Miranda, chefe do 1º distrito. O discurso foi transcrito na íntegra no Boletim. Com a palavra,
o engenheiro:
[...] eu tenho, sr. Inspetor, neste momento, a alegria sã, a satisfação incontida e grande
de vos entregar, inteiramente concluída, a represa Choró. Deu-se-lhe o mesmo nome
do rio que acaba de ser interceptado, que encontra dominado, que está disciplinado;
do rio que se tornou, agora, útil pela regularização do seu regime, pela possibilidade
de irrigação dos terrenos férteis de seu vale amplo onde vicejará, amanhã, fatalmente,
uma cultura racional uma intensiva e eficiente cultura que será a razão determinante
e justificativa desta obra que ora vos entrego – carecendo ainda do completo
imprescindível e inadiável – a construção de sua rede de irrigação já estudada.
Construiu-se o Choró, sr. Inspetor, obedecendo-se rigorosamente ao projeto elaborado
as Seção Técnica da Inspetoria e aprovado por vós. 464
463
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 108.
464
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 109.
192
Terra em paraíso para todos os humanos, sem distinção de raças, crenças, nações - banidos os
espectros da guerra, da miséria, da moléstia”. 465
Conforme Dora Corrêa, se ao longo do século XIX o Estado brasileiro, por meio de seus
profissionais técnicos expressou uma crítica acerca da destruição das matas comparando-a com
o que ocorria nos Estados Unidos e na Europa de maneira não sistemática, na República a
reorganização do Estado “[...] permitiu que se elaborasse uma visão crítica do desmatamento,
visando à preservação ambiental, o que viabilizou uma atuação efetiva”. 466Assim, a visão de
um mundo idealizado com base em premissas românticas abre espaço para a ação cirúrgica das
artes mecânicas mobilizadas por processos técnicos.
Nos Boletins publicados pela própria Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas a
paisagem do Sertão e seus problemas surgem através de imagens fotográficas, relatos técnicos
e, por vezes, sociológicos. Em suas páginas, pesquisa e ações operacionalizadas por topógrafos,
botânicos, geólogos, hidrógrafos e engenheiros ganharam relevo. Sempre associadas ao
impulso modernizante do Estado, os saberes técnicos eram exaltados como os mais perfeitos
instrumentos para a observação, descrição, registro e modificação da vida econômica e cultural
na Região Nordeste do Brasil. Nesse ensejo, textos redigidos pelo engenheiro Thomaz Pompeu
Sobrinho ficaram em evidência.467
Os escritos de Pompeu Sobrinho, entre relatórios, artigos, monografias e livros, se
ocuparam sobre diversos elementos do Nordeste. No Boletim da IFOCS, sua produção dialoga
diretamente com sua trajetória junto à Inspetoria, onde ingressou em julho de 1903 como
Engenheiro Ajudante da Comissão do Açude de Quixadá, depois, assumiu o cargo de
Engenheiro de Primeira Classe, chegando a Engenheiro-chefe da Primeira Secção e
Engenheiro-chefe do Primeiro Distrito da Inspetoria de Secas em além disso, seus textos na
publicação oficial da IFOCS refletem seu interesse em Agronomia.
465
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta a Sua Vida. RJ: Livraria São José, 1958, p. 611-612 Apud. MARTINS
JÚNIOR, Carlos. O espetáculo da técnica “desencantando" os “sertões”: engenheiros e engenharias de
racionalização e controle territorial das fronteiras ocidentais do Brasil (1870-1915) Revista Territórios &
Fronteiras, Cuiabá, vol. 7, n. 2, jul.-dez., 2014, p. 236.
466
CORRÊA, Dora Shellard. Paisagens sobrepostas. Índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itaeva. (1723-
1930). Londrina: Eduel, 2013, p. 210.
467
Thomaz Pompeu de Souza Brasil Sobrinho nasceu em Fortaleza no dia 16 de novembro de 1880, falecendo no
Rio de Janeiro em 09 de novembro de 1967. Além da reconhecida atuação como engenheiro, obteve destaque
como escritor e pesquisador, tendo ocupado cadeiras no Instituto do Ceará e na Academia Cearense de Letras. Seu
pai, Dr. Antônio Pompeu de Sousa Brasil era filho do Senador Pompeu, como era chamado o relevante político
cearense Thomaz Pompeu de Sousa Brasil. Sua mãe, Ambrosina Pompeu de Souza Brasil, era herdeira do Coronel
Antônio Luiz Alves Pequeno, da cidade do Crato, no Sul do Ceará. Pompeu Sobrinho desempenhou importante
papel nas áreas de Agronomia e Antropologia, sendo fundador e professor da Escola de Agronomia do Ceará e do
Instituto de Antropologia da Universidade Federal do Ceará, na década de 1950.
193
Descrevendo a paisagem sertaneja, Pompeu Sobrinho afirma que “[...] mesmo nos
períodos de extraordinárias estiagens”, alguns dos elementos naturais regionais se impõem,
independem da irrigação por suas características excelentes. As ramas forrageira, nativas e até
exóticas, “[...] tais as de certas plantas têxteis de grande valor comercial, ao par disto, vegetam
naturalmente no interior”, mesmo nas zonas que mais padecem os males das secas. Havia “[...]
plantas de enorme importância industrial que melhormente aproveitadas concorreriam para o
equilíbrio financeiro do estado nas grandes crises climáticas”. 468
Exaltando a potencialidade natural do semiárido através do Boletim da Inspetoria,
Pompeu Sobrinho evidenciou a necessidade de defender essa natureza, através, sobretudo, do
estudo de sua geografia e do reflorestamento do território. A ideia tácita em toda a sua reflexão
incide na ampliação da riqueza nacional por meio do conhecimento cientifico. Sua percepção
da natureza não se encerrava à contemplação e preservação, mas a de um recurso ao
desenvolvimento material da região e do país. Segundo Sobrinho, os recursos naturais de áreas
historicamente conhecidas pela pobreza e pela estiagem precisaram ser analisados de maneira
ampla, como potencialidades que, a partir da técnica, seriam habilitadas como riquezas naturais
a serem colocadas ao alcance do restante do país. Dessa maneira, a paisagem, largamente
representada como fustigada pela secura, ressurge como patrimônio.
Contando com o aval da Inspetoria de Secas, Pompeu Sobrinho publica considerações
a partir da sistematização de elementos históricos, biológicos, geográficos e sociológicos da
região Nordeste. Até aquele momento, segundo o autor, nenhum trabalho técnico havia sido
organizado para apurar a existência e a locação das matas atuais da região. Para ele, somente
através desse primeiro esforço seria possível constituir a necessária carta florestal daquele
pedaço do país, tomando para si a missão e mostrando-se engajado quanto à questão. 469
Em meados da década de 1930, com base em estudos técnicos e objetivos, Pompeu
Sobrinho partiu em defesa da possibilidade de conservação das florestas já existentes no
Nordeste, sobretudo, no Ceará, e da criação audaciosa de maciços florestais novos.
Relacionando o uso do meio ambiente às estratégias de desenvolvimento econômico abraçadas
pelo Estado, a longa argumentação de Pompeu Sobrinho se encaixa no debate regulatório do
uso dos recursos ambientais, evidenciado nos anos de 1930. No entanto, à medida que tomou
sua iniciativa como parte de uma histórica preocupação no sentido de disciplinar o uso de
468
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 81.
469
Como afirmou Helenice R. Silva, a “[...] atividade do intelectual engajado, para não dizer a sua própria
existência, é conflitual e ambivalente. Por um lado, ele tem por função a produção do conhecimento, a
elaboração das ideias, por outro, investido por essas mesmas ideias, ele 'enuncia a verdade'” (SILVA, Helenice
Rodrigues. Fragmentos da História Intelectual. São Paulo: Papirus, 2002. p.17)
194
O Senador Thomaz Pompeu de Sousa Brasil defendeu a ideia de que uma das causas
das secas nordestinas era o desmatamento da região e que, por meio do reflorestamento racional
se poderia neutralizar, senão mesmo extinguir completamente, o mal da seca. Em memória
publicada em janeiro de 1877, ano em que os efeitos de uma grande seca devastaram o Ceará,
Senador Pompeu transcreveu uma coleção de artigos seus intitulada “Necessidade da
conservação das Matas, e da arboricultura”, publicados anteriormente. Para ele, as medidas de
reflorestamento implicariam na alteração do clima, podendo influir na modificação dos efeitos
maléficos das secas, paralisando-os ou retardando-os, ao menos. Suas colocações foram a base
para a posterior campanha pelo florestamento e reflorestamento do Nordeste, publicizada na
década de 1930 pela pena de Pompeu Sobrinho, engenheiro reconhecido no meio intelectual
por seu interesse em envolver o espaço e a história nordestina no contexto brasileiro, bem como
por investigar o Ceará, do presente às origens.472
Segundo Pompeu Sobrinho, algumas das opiniões passadas sobre o tema “[...] eram
verdadeiros disparates, outras disfarçavam mal o conhecimento do problema, tal como aquela
470
Thomaz Pompeu de Sousa Brasil nasceu em 1818, no Ceará. Na juventude, foi estudar na cidade de Sobral,
depois, partiu para Recife onde se formou padre e bacharel em Direito, entrando em contato com as teorias
liberais no Brasil tal qual boa parte das elites brasileiras do período. Segundo Rodrigues (2013), estudou
história natural e, a partir dela, conheceu os debates sobre as riquezas naturais. Ao retornar ao Ceará, Pompeu
de Sousa Brasil se inseriu nos círculos intelectual, político e administrativo. Cf:. BASTOS, José Romário
Rodrigues. Natureza, tempo e técnica: Thomaz Pompeu de Sousa Brasil e o século XIX. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em História Social, 2013,
p. 12.
471
Ibid., p. 122.
472
Entre livros, folhetos, artigos e relatórios, Pompeu Sobrinho se dedicou aos mais variados aspectos da sociedade
nordestina. A lista completa de obras pode ser consultada em: SOUZA, Maria Conceição. Bibliografia de
Thomaz Pompeu Sobrinho. In: Revista do Instituto doo Ceará. Fortaleza, 100: 249-264. Jan-Dez, 1980.
195
que aconselhava a formação de florestas semelhantes à da Tijuca”, ou, ainda, a de que “[...]
construir florestas artificiais, mesmo em terrenos péssimos, a inteligência humana consegue
facilmente, com tempo e perseverança”!473 Portanto, cabia imprimir cientificidade à
abordagem, considerando registros históricos, observações geográficas, biológicas e
sociológicas específicas da região. Nada mais adequado ao perfil editorial dos Boletins da
Inspetoria.
No Boletim da Inspetoria de fevereiro de 1934, Thomaz Pompeu Sobrinho escreveu um
longo artigo no qual indica como fator de grande relevância para o desenvolvimento da riqueza
pública, a açudagem e respectivas redes de irrigação e, como artifício secundário no combate
aos efeitos das secas, a cultura de plantas forrageiras e outras de múltiplos desígnios industriais,
474
cientificamente selecionadas ou adaptadas. Nesse e em outros artigos disponíveis nos
Boletins, são esmiuçados o cultivo e os usos da carnaubeira, da oiticica, do feijão bravo, todos
nativos, sem menosprezar as possibilidades para o investimento de espécies exóticas no mesmo
ensejo.
Incitado à produção de textos técnicos, Sobrinho incentivou e produziu uma crítica ao
desmatamento local considerando as tentativas de investigação da flora original. Sua
contribuição se enquadra, portanto, num contexto de ampliação da atuação do Estado que, desde
a Proclamação da República, promoveu através da atuação do Serviço Florestal a distribuição
de sementeiras, incitou o reflorestamento, criou hortos, engendrou a análise técnica e a crítica
à agricultura de subsistência.
Como explica Thomaz Pompeu Sobrinho, no Boletim da Inspetoria de 1934:
473
Mencionado em IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1935 Vol. 3 N.º 2 p. 54.
474
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 81.
475
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1934 Vol. 1 N.º 2 p. 80.
196
ampliando-a. 476 Para isso, ao invés de buscar o que faltava na terra ressequida, a água, restava
olhar para o meio natural já existente no Nordeste. Ainda em 1916, no livro “O problema das
secas no Ceará”, Pompeu Sobrinho já havia afirmado que lutar contra as secas não se restringia
a construir grandes açudes e grandes canais de irrigação. Cabia “[...] empenhar-nos vivamente
por obter essas construções; mas, antes de o conseguirmos, temos muito que fazer, dentro de
uma esfera menor de ação”, pois, em última análise, seria preciso afiançar as indústrias
agropecuárias da região semiárida de medidas rápidas e práticas para seu desenvolvimento. 477
Apesar de não citar o debate nacional realizado sobre o uso dos recursos naturais, a
iniciativa de Pompeu Sobrinho pode ser relacionada ao ideal de integração do território
nacional, levado a cabo ao longo do Governo Vargas, conduzidas em boa parte a partir das
ideias de Alberto Torres. Tais ideias estiveram presentes diretamente nas ações do Ministério
da Agricultura e foram disseminadas pela Sociedade Amigos de Alberto Torres, inclusive com
ações por todo o Nordeste.478
Segundo informa o jornal carioca Correio da Manhã de 4 de janeiro de 1933, em reunião
na sede da Sociedade, no Rio de Janeiro, as demandas de reflorestamento e replantio de árvores
foram apresentadas pela SADAT a fim de impactar a elaboração de políticas públicas nacionais.
A primeira, do dr. Sr. Alcides Bezerra para que fosse nomeada uma comissão de
pessoas competentes para elaborar os dispositivos necessários ao reflorestamento do
país afim de que os mesmos sejam oferecidos como sugestão à comissão que está
elaborando o projeto de constituição. Foram nomeados para esta comissão os srs
Alberto J. de Sampaio, Magalhães Corrêa, Humberto de Almeida, Alcides Gentil e
Virgílio Campelo. O sr. Lucio de Souza propôs que a sociedade oficie ao chefe do
Governo Provisório para que seja exigido nas concorrências públicas a partir de 1934,
de parte das firmas exploradoras de madeira a prova de replantio das árvores bem
como de ser o corte destas realizado após atingirem as mesmas o desenvolvimento
normal. 479
476
Além desses estudiosos ligados diretamente à IFOCS, destacam-se as contribuições do viajante inglês G.
Gardner (1836-41), os trabalhos dos botânicos Von Martius, que viajou pelos Estados de Pernambuco, Piauhy
e Bahia (1808), Francico Freire Alemão que visitou o Ceará em 1863 e Barão de Capanema, que também viajou
pelo interior do mesmo Estado por duas vezes, em 1860 e 1884. Recentemente, importa referir os estudos de
Leo Zentner, J. Huber e Adolpho Ducke e, no período da dominação holandesa, as publicações do botânico G.
Maregrafe de W. Piso (1637-1642). Cf.: Boletim IFOCS FEVEREIRO 1935, vol. 3, nº 2, p. 54-55.
477
Para iniciar sua investigação científica sobre o tema, Pompeu Sobrinho tratou com registros de caracteres
oficiais produzidos no âmbito da Inspetoria, como os dados parciais resultantes das investigações de botânicos
como dr. Alberto Loefgren e o Dr. Philipp von Luetzelburg. No período inicial da Inspetoria de secas, Loefgren
condensou importantes observações relativas à questão florestal quando percorreu trechos da região nordeste
do país e instalou os hortos florestais de Juazeiro, na Bahia e de Quixadá, no Ceará. Von Luetzelburg, também
por conta da Inspetoria de Secas, viajou pelo Nordeste no período de 1918 a 1922 executando análises de
fitogeografia. Cf.: IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro 1935 Vol. 3, N.º 2 p. 80 - 81.
478
A Sociedade Amigos de Alberto Torres chegou a promover debates sobre a educação rural, entre outros temas,
por meio de simpósios e seminários por todo o país, inclusive no Ceará.
479
Jornal Correio da Manhã, de 4 de janeiro de 1933.
197
Esse conjunto de percepções foi também divulgado pelos Boletins da Inspetoria que
visavam à exploração das partes pouco conhecidas ou desenvolvidas do país, refletindo ideias
territorialistas e expansionistas amplamente disseminadas pelo Estado ao longo das décadas de
1930 e 1940.480 Durante a década de 1930, a criação de hortos florestais e jardins botânicos país
afora é vista como iniciativa para o desenvolvimento da silvicultura enquanto saber científico
e prática econômica. 481 Conforme destaca Franco, naquele momento “[...] depositava-se uma
forte confiança nas possibilidades de um manejo florestal por meio do plantio de florestas
homogêneas, fossem elas de essências nacionais ou exóticas”, assim como ganhava espaço o
intuito de criação de reservas para pesquisa científica e até mesmo para o culto estético,
incluindo ou não a intervenção humana.
Desde a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas em 1909, o problema das matas
foi, por algum tempo, focalizado e estudado. Criaram-se hortos florestais e outras providências
práticas foram tomadas. Essas medidas tornaram-se a base material para que a questão fosse
encarada, nos anos 1930, de forma mais ampla, com atenção às condições locais. De forma
geral, havia “[...] um projeto mais amplo, que via no mundo natural a principal “fonte da
nacionalidade”, englobava todos estes aspectos, conferindo-lhes coerência”. 482 Acrescentamos
a existência de um debate nesses moldes a nível regional. No Nordeste, a discussão foi
associada ao combate à seca.
O plano de ação para o reflorestamento e florestamento de áreas do Nordeste, defendido
por Pompeu Sobrinho no Boletim da IFOCS ao longo de 1935, era bastante audacioso. Em seus
cálculos, era preciso dispor de uma “[...] área florestável (existente e a criar) sensivelmente
igual a 33% da área total dos Estados aqui considerados. Teríamos, nestas condições, de
conservar, reflorestar e florestar aproximadamente 130.000 quilômetros quadrados”. O plano
de reflorestamento dessa área exigiria bem mais do que em outras regiões brasileiras, um
480
Na segunda metade do século XIX, a reação ao Romantismo no cenário internacional desembocou na
valorização do cientificismo. Esse movimento, expresso também através da disseminação de correntes de
pensamento como o positivismo de augusto Comte e no “darwinismo social” de Herbert Spencer, ressoou no
Brasil e na América Latina impactando na produção de importantes intelectuais e políticos, deixando fortes
marcas no pensamento social das primeiras décadas do século XX. Esses marcos intelectuais influenciaram na
construção do pensamento ambiental brasileiro que, por sua vez, influiu no estabelecendo da problemática
ambiental no país e no desenvolvimento de políticas públicas diversas.
481
A questão do uso social da natureza incluindo as preocupações em torno do reflorestamento são bastante antigas
no Brasil. Alberto Torres chegou a resgatar postulados em José Bonifácio de Andrade e Silva referências mais
antigas sobre a destruição de territórios transformados em desertos. Segundo Pádua, José Bonifácio, no início
do século XIX, desenvolveu uma reflexão ampla e profunda sobre a questão das florestas. Segundo ele, o
problema da preservação florestal atende a duas ordens de questões: as naturais ou cósmicas (e seus efeitos na
sociedade) e as políticas. Cf.: PADÚA, José Augusto. (Org.) Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo – IUPERJ, 1987, p. 31.
482
FRANCO, José Luiz de Andrade. A Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza e a questão da
Identidade Nacional. VARIA HISTÓRIA, nº 26, 2002. p. 77-96; p. 87.
198
planejamento de objetivos múltiplos antecedido por extenso estudo da natureza daquele espaço,
bem como da realidade econômico-social local.
Importa começar, todavia, sem prejuízo de tempo e com uma atividade tal que
compense o já irremediavelmente perdido. Entretanto, convém começar pelo mais
fácil, pelo cadastro, conservação e melhoramento das matas existentes atualmente,
sem, contudo, deixar de ao mesmo tempo, ensaiar o reflorestamento das superfícies
que já foram revestidas. Enquanto isto, cumpre iniciar-se estudos sérios, sistemáticos,
com espirito rigorosamente cientifico, no sentido de escolher, examinar e determinar
as novas áreas florestáveis e as condições do respectivo florestamento. Desse modo,
teremos certamente labor suficiente, por custo compensador. 483
483
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 5, N.º 5, p. 186.
484
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 5, N.º 5, p. 186.
485
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 155.
199
E isso tanto mais quanto o bem que as florestas proporcionam em geral, quer as
regiões secas, quer nas regiões húmidas é de uma importância tão grande, tão vulgar,
tão reconhecida nos meios sociais de civilização elevada, que todos os países cultos
lhe dão atenção especial e investem nos trabalhos de conservação, melhoramento e
aumento das florestas quantias avultadíssimas. 486
486
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 3, N.º 5, p. 186.
487
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 155.
488
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Maio de 1935, Vol. 3, N.º 5, p. 184-185.
489
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 152-153.
200
490
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 153.
491
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
492
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
493
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
201
Estas fibras, nativas e exuberes entre nós, quando alhures nos pequenos tratos onde
ainda é possível obtê-las, somente se conseguem mediante esforço descomunais da
técnica, cuidados e vigilâncias fatigantes, serão, mais cedo do que geralmente se
pensa, a salvação da terra das secas, como subsidiarias da grande açudagem. 496
494
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Abril de 1935, Vol. 3, N.º 4, p. 154.
495
Nesse contexto, a atenção às plantas adaptadas ao semiárido, como o algodão - histórica riqueza na região é
defendida nos textos dos boletins. O chamado “ouro branco” concorreria para o desfecho vitorioso contra
qualquer seca, pois, mesmo nos anos de miséria e de desorganização econômica, o algodoeiro foi um “um
excelente e eficaz baluarte da resistência ao flagelo”, portanto, símbolo da capacidade natural daquele território.
(SOUZA, Eloy. Um Problema Nacional. Projeto e Justificativa apresentado na Câmara dos Deputados n Sessão
de 30 de agosto de 1911. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commércio, Rodrigues & C., 1911, p. 36-38)
496
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934, Vol. 1, N.º 2, p. 86.
202
préstimos ao caráter humanitário dos trabalhos de socorros, Pompeu arremata que se tratava
ainda de “promover forças ao mesmo tempo de caráter econômico e humanitário, adequadas às
condições especiais da nossa mesologia, para as quais todos os cearenses esclarecidos devem
olhar atentamente e a administração pública estudá-las” e “enquanto se não constroem as
colossais obras de irrigação”, em níveis aceitáveis. Uma vez construídas as grandes obras,
restaria educar o homem do campo, ensinando-lhe a manejar a natureza de maneira nova,
moderna. 497
497
IFOCS - Boletim da Inspetoria de Fevereiro de 1934, Vol. 1, N.º 2, p. 86.
203
498
Decreto nº 20.076, de 24 de fevereiro de 1932, instituiu o novo código eleitoral.
499
A subcomissão foi composta pelo presidente, Afrânio de Melo Franco; secretário-geral, Temístocles Cavalcanti;
Assis Brasil, rio-grandense-do-sul, havia feito parte da comissão que elaborou o Código; Osvaldo Aranha,
então ministro da Fazenda; José Américo de Almeida, à frente da pasta da Viação e Obras Públicas; o relator-
geral da subcomissão, Carlos Maximiliano, gaúcho; Antônio Carlos de Andrada, ex-presidente de Minas
204
O texto final do anteprojeto contava com 129 artigos que versavam sobre uma gama
bastante ampla de temas. Entre os mais relevantes pontos, mais tarde incluídos no texto final
da Constituição de 1934, estava a delimitação de uma legislação trabalhista, a defesa da
economia brasileira com premissas nacionalistas e delimitações acerca da segurança nacional.
Questões como a instituição da representação de classes, a organização do poder judiciário e
executivo e o pacto federativo foram alguns dos temas que alcançaram maior visibilidade
durante a redação do anteprojeto.
A existência de uma comissão nomeada pelo governo para escrever um texto base para
a Constituição suscitou muitos julgamentos. A principal crítica direcionada a Vargas indicava
que a intensão por trás da comissão era centralizar o debate e direcioná-lo para pautas
governistas. Outras, relacionadas a esta, atentavam para a pouca pluralidade do grupo, o que
impactaria na baixa adesão de demandas regionais. Entre poucos consensos e muitas
divergências, a comissão englobou diversas pautas nacionais, sempre acompanhada de perto
por associações de intelectuais e de classe, grupos políticos e imprensa.
Os debates realizados ao longo da composição do anteprojeto e durante a redação final
da Constituição evidenciaram a constitucionalização de um projeto nacional permeado pela
confrontação entre pautas localizadas, de fundo regionalistas, e o ímpeto governista de
centralização política. Ao tempo em que Norte defendiam o centralismo político, estados do
Sul buscavam maior autonomia em relação a União. Tais disputas se expressaram em diversos
pontos debatidos pela Constituinte, e um desses envolveu a inclusão do combate à seca no texto
constitucional.
A empreitada constitucional e a consequente abertura política animaram antigas
contendas oligárquicas interessadas em conquistar espaços a nível regional e nacional. No
Ceará, que se colocara ao lado do Governo Provisório durante a “Guerra Paulista”, a questão
em torno da necessidade de constitucionalizar o regime discricionário implantando por Vargas,
rapidamente deu início a uma disputa acirrada. Enquanto o Comitê cearense da AL, em nome
dos liberais cearenses, defendia a conciliação política através do retorno ao regime
constitucional, o grupo político ligado ao Clube 3 de Outubro e setores da impressa entendiam
a constitucionalização como a abertura para o retorno do poder oligárquico. Em artigo publicado
Gerais; Artur Ribeiro, mineiro; Prudente de Morais Filho, de São Paulo; Agenor de Roure; João Mangabeira,
da Bahia; Oliveira Viana e o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro. Cf. GOMES, Ângela de Castro. Verbete
Constituinte. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/assembleia-
nacional-constituinte-de-1934. Acesso em: 19 nov. 2019. Ainda segundo Gomes, Artur Ribeiro e Oliveira
Viana se retiraram da subcomissão antes da conclusão do texto do anteprojeto. Foram substituídos por Castro
Nunes e Solano da Cunha.
205
500
Jornal O Povo, de 9 de dezembro de 1931. Apud. MONTENEGRO, F. Aberlado. Os Partidos Políticos do
Ceará. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará. 1980. P. 119 – 123.
501
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. P. 358-359.
502
No Ceará, estado que contava com cerca de 1.600.00 habitantes, em meio a essas disputas, agitações burguesas
e proletárias, se deu uma profusão de partidos e chapas interessadas em concorrer para a Constituinte: PSD,
LEC, Partido Republicano Democrata, Partido Integral Nacionalista, Partido Agrário, Ceará “Irredento”,
Partido Economista e o Coligação dos Funcionários Públicos. O Partido Republicano Nacionalista (PRN),
herdeiro do antigo Partido Republicano Conservador, defendeu o incremento da produção nacional. O grupo
em torno do antigo Partido Democrata se reuniu com a denominação de Partido Republicano Democrata
206
estados alinhados no bloco do Norte fundam agremiações mais ou menos independentes entre
si, como por exemplo, o Partido Nacional Socialista do Piauí, o Partido Republicano do
Maranhão, o Partido Liberal do Pará, o Partido Progressista da Paraíba e o Partido Social
Democrático (PSD) do Espírito Santo, da Bahia, de Pernambuco e do Ceará. Houve, “assim,
uma inversão na ‘ordem dos fatores’ para a montagem do tão sonhado partido nacional
revolucionário”.503
Quando em maio de 1933 o pleito para a Constituinte Federal foi disputado no Ceará
por oito partidos políticos e três candidatos avulsos, que somaram um total de 41 candidaturas,
as dez vagas propostas ao estado foram ocupadas por candidatos de apenas dois partidos: 6
candidatos eleitos pertenciam a Liga Eleitoral Católica 504 e 4 eram do PSD, delimitando os
termos principais da disputa política do período no Ceará.505
A bancada do Norte tinha expressividade, pois representava quase a metade da bancada
nacional. Como indica Hélio Lopes, o bloco regional saiu do processo com força política
suficiente para imprimir sua marca na Assembleia Nacional Constituinte. Outro ponto
relevante, como afirma Lopes, é que o resultado final do pleito anunciou a perca de expressão
política de parte dos Interventores, “o que mostra o enfraquecimento dos revolucionários
nortistas, construído a partir da liderança de Juarez Távora”. Esses elementos indicam ainda
uma tendência eleitoral favorável ao Governo Provisório, mas deixava margem para negociação
entre Norte e Vargas: “A Constituinte seria uma arena de disputas tão ou mais imprevisível, do
que a das eleições, estando sujeita a negociações e a reconfigurações de forças diversas”.506
(PRD); Grupos Comerciais fundaram o Partido Economista, de cárter conservador, filiado ao Partido
Economista do Brasil; Um grupo independente lançou chapa própria denominada “Ceará Irredento”; Em
Aracati, em abril de 1933, fundaram o Partido Libertador Aracatiense; além desses, destaca-se a movimentação
de grupos católicos em defesa de medidas favoráveis a religião. Nesse ensejo, fundou-se a Liga Eleitoral
Católica (LEC) no Rio de Janeiro. A sucursal cearense da LEC foi inaugurada em dezembro de 1932, mais
tarde transmutada em partido político, que polarizou o debate principalmente contra o PSD, acusados pelos
setores religiosos de comunistas e divorcistas. MONTENEGRO, F. Aberlado. Os Partidos Políticos do Ceará.
Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará. 1980. P. 122.
503
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 267.
504
No Ceará, a Liga Eleitoral Católica, “não representava propriamente uma oposição ao interventor ou ao governo
central, mas uma oposição ao grupo Távora, articulador do PSD”. PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte:
uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro (org.). Regionalismo e Centralização política:
partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. P. 369.
505
Em 1934, a LEC elegeu 7 candidatos nas eleições para a Câmara Federal e para a Constituinte Estadual, 17.
Em maio de 1935, Menezes Pimentel é eleito Governador do Ceará, graças ao apoio da LEC, que elegeu ainda
Edgar Arruda e Waldemar Falcão para o senado federal.
506
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 285.
207
507
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. P. 280.
508
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. P. 361.
509
Lopes, Raimundo Hélio Um Vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as interventorias do Norte e
a Guerra de 32. Tese (doutorado) – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil,
Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2014. P. 263.
208
Pernambuco, outro articulador das pautas dos estados do Nordeste.510 Naquele momento, já se
observava a diminuição da ascendência de Távora no jogo político. Desde sua chegada ao
Ministério da Agricultura, Juarez começou a renegociar os termos de sua relação com o grupo
do Norte, eventualmente frustrando muitas expectativas de maiores investimentos na Região
por intermédio da pasta. Em torno das questões da seca, a figura do cearense Távora é
amplamente eclipsada pela projeção do paraibano José Américo de Almeida, que esteve à frente
do Ministério da Viação no período de maior combate à calamidade pelo Governo Provisório,
entre 1932 e 1933.
Antes e durante a Assembleia Constituinte, Juarez Távora participou de eventos
políticos e sociais para organização de pautas e esforços políticos. Comandou o Congresso
Revolucionário do Norte que “tinha por objetivo principal não só articular as forças outubristas,
mas tentar traçar uma orientação uniforme para as bancadas federais na futura Assembleia
Nacional Constituinte”, chegando a acertarem, ao final do evento, a sugestão para que o “chefe
do governo que modifique a comissão constitucional, nela incluindo representantes dos partidos
do Norte”.511 O intento, assim como a reunião sob a bandeira do PSD, não colheu os frutos
desejados. Até mesmo o Interventor do Ceará, Carneiro de Mendonça, declinou ao convite de
participar do evento.
Apesar da aparente desconexão entre os agentes políticos do Bloco do Norte, a bancada
possuía expressividade e promoveu uma intensa participação política na Assembleia, o que se
expressa, ainda, no sucesso da inclusão da pauta da seca no texto constitucional. A união em
volta da defesa desse tema mobilizou argumentos de cunho econômico que abarcavam olhares
para o passado e o futuro da região. Além disso, a pauta representava parte da construção de
uma identidade regional que se expressou ao longo da constituição do grupo político do
“Norte”, influenciados vastamente por Juarez Távora ao longo do Governo Provisório. A vitória
da constitucionalização da “questão do Nordeste” representou assim, uma derradeira vitória,
mesmo que fugaz dessa aliança.
510
“Para assegurar conquistas revolucionárias, bem como defender pontos [de] vista prometidos [pelo] movimento
1930 (...), promovi aproximação bancada pernambucana com Juarez afim [de] obter maior harmonia [de] ação.
Como, entretanto, julgo indispensável concurso de todos (...) que se interessam sincera [e] verdadeiramente
pelos destinos país, quero sugerir-lhe igual aproximação da bancada desse estado (...). Saliento não se trata de
interesses regionais, mas nacionais, em benefício [da] obra revolucionária. Arquivo Juarez Távora – Cpdoc-
FGV dpf 1932.01.00/1 (43/147). Datado de 23 de novembro de 1933. Enviado para Magalhães Barata, Landri
Sales, Martins Almeida, Mario Câmara, deputado Francisco Veras, Afonso de Carvalho, Augusto Maynard,
Juraci Magalhães e Punaro Bley. Apud HELIO Lopes. P 293.
511
PANDOLFI, Dulce. A trajetória do Norte: uma tentativa de ascenso político. In. GOMES, Ângela de Castro
(org.). Regionalismo e Centralização política: partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1980. p. 367.
209
Conquanto não constitua o assunto, em rigor, matéria constitucional, nada impede que
a nossa futura carta política torne obrigatória, em dispositivo expresso, a aplicação de
um plano contínuo e progressivo de obras contra as secas, para benefício da região
nordestina e consequentemente de todo o nosso país. Julgo um dever imperioso de
todos os delegados nortistas à Constituinte unirem-se em torno de tão importante
problema afim de, ainda mais forte, assegurarem o pleno êxito da iniciativa de se
consagrar ao combate às secas um caráter de obrigação nacional. 513
Não havia dúvidas quanto à atuação do Norte nesse sentido, que na opinião de
Cavalcanti, “há de ser das mais brilhantes e eficazes, tendo mais a animá-la”. O Interventor
demonstra que a legitimidade da campanha perpassava o sentimento patriótico, e a preocupação
dos constituintes em reconhecer que o progresso da região esteve entravado pela falta de uma
assistência regular. A constitucionalização da questão da seca era “incontestável direito”. 514
Falando à Assembleia Constitucional, Irineu Joffily515 esclareceu alguns pontos sobre a
recepção do anteprojeto no que se referia ao combate à seca no Nordeste. Para ele, a parte do
512
Jornal Correio da Manhã de 4 de janeiro de 1933.
513
Jornal Correio da Manhã, 18 de janeiro de 1933.
514
Ibidem.
515
Irineu Joffily nasceu em Campina Grande (PB) no dia 14 de setembro de 1886, filho de Irineu Ciciliano Pereira
Joffily e de Raquel Olegário de Torres Joffily. Seu pai criou e adotou o último sobrenome em 1864, quando
210
anteprojeto relativo às secas não satisfazia as aspirações dos estados flagelados, e, assim, não
atendia aos anseios do Brasil inteiro “desejoso de pagar uma dívida há tanto tempo reclamada”.
Como nordestino, Joffily se disse conhecedor da terra e sua gente, bem como da iniquidade de
governos que relegavam o devido apoio à região onde a resistência do homem é provada pelo
seu sofrimento e o seu valor medido pela coragem com que entra em duelo com a natureza, na
defesa do torrão amado: “O anteprojeto, art. 128, § 1º diz: a defesa contra a seca será permanente
e os respectivos serviços custeados pela união. Serão custeados como? E a permanência como
será?”516
A crítica concentrava-se sobretudo, na pouca assertividade do texto. Descrito como
“vago”, o dispositivo não obrigava futuros governos a manterem um serviço ajustado com os
imperativos da vida em áreas de secas periódicas. Discorrendo diretamente à bancada do Norte,
Joffily, diz:
De promessas estão cheios os sertanejos e de realizações desconfiados ante a falta de
continuidade dos serviços reclamados. Agora todos esperam que a constituinte em vez
de um dispositivo vago, assuma compromisso formal e solene, tornando líquida e
tangível a dívida de tantos anos. 517
era acadêmico de direito. Posteriormente, foi promotor público, juiz municipal, deputado provincial e geral
durante a última legislatura do Império, fundador e diretor da Gazeta do Sertão, jornal que funcionou em
Campina Grande entre 1889 e 1891, sendo fechado por ação policial. No ano seguinte, escreveu Notas sobre a
Paraíba, editado no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, com prefácio de Capistrano de Abreu. Seu irmão,
João Irineu Joffily foi bispo de Manaus e arcebispo de Belém. Em 23 de novembro, o Governo Provisório
chefiado por Getúlio Vargas confirmou a indicação de Joffily para o governo potiguar em maio de 1933,
elegeu-se pela Paraíba deputado à Assembleia Nacional Constituinte na legenda do Partido Progressista,
fundado pouco antes sob orientação de José Américo de Almeida e amplamente vitorioso nesse pleito. Membro
da comissão executiva desse partido, Joffily foi o líder da bancada paraibana que integrou o bloco da maioria
parlamentar na Constituinte e, nessa condição, participou da escolha do nome do deputado baiano Antônio
Garcia Medeiros Neto para o exercício das funções do líder da maioria. In. FGV. Verbete Irineu Joffily.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joffily-irineu
516
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 566.
517
Ibidem.
518
LOPES, p. 284.
211
Até aquele momento, o país inteiro já tivera notícias pelas fartas publicações e não
pequeno número de livros, da calamidade de 1932 e de anos anteriores. Mesmo assim,
continuava válido perguntar o que de fato se tem feito para que não se repetissem
indefinidamente os quadros dantescos que tanto envergonhavam a nação.
Cientistas e estudiosos conjecturaram quais as causas do fenômeno da seca: direção dos
ventos, impermeabilidade do solo, ausência de matos, declividade forte do terreno... No século
XX, a açudagem se estabilizara como eixo principal do planejamento para superação dos efeitos
das estiagens. Antes disso, os socorros haviam sido pautados nas distribuições de escassos
víveres, depois, iniciativas de migração e formação das frentes de trabalho pautaram os termos
do combate à seca. No entanto, esses estudos e políticas mostraram-se insuficientes diante,
sobretudo, de sua aplicação inconstante, justificando o intento da bancada nordestina em
garantir a perenidade das ações da União. Dessa maneira, garantiriam nada menos que atenção
e verbas independentemente da existência de catástrofes e mortes.
A partir da fala de Joffily, Xavier de Oliveira,519 deputado cearense na Constituinte pela
Liga Eleitoral Católica, também se pronunciou constatando que até mesmo o promissor governo
de Epitácio Pessoa não obteve êxito definitivo no combate aos efeitos da seca por não garantir
a continuidade de suas obras: “entendo o erro foi não se ter continuado sua execução e nem
ampliado o plano que ele começou”. 520 De fato, após o governo de Epitácio Pessoa e até 1930
passaram-se décadas de pouco investimento no Nordeste, mesmo em períodos de seca. Nessa
ocasião, obras suspensas, maquinário e materiais foram perdidos e a expectativa de manutenção
contínua de um plano definitivo desapareceram.
A respeito do desempenho do Governo Provisório durante a seca iniciada em 1930, e
ampliada em 1931 e 1932, os parlamentares empenharam gratidão aos esforços de Vargas,
destacando sempre a atuação do Ministro José Américo, titular da pasta da Viação. Porém,
apesar de confirmarem a promoção de obras, socorros e largos repasses para o Nordeste,
persistiam no argumento de que, sendo a seca um problema recorrente, o que seria da sorte do
519
Antônio Xavier de Oliveira nasceu em Juazeiro do Norte (CE) no dia 9 de outubro de 1892, faleceu no Rio de
Janeiro, dia 6 de fevereiro de 1953. Formou-se psiquiatra pela Faculdade de Medicina, no Rio de Janeiro, tendo
sido ainda estudioso dos problemas do Nordeste, e escritor, com destaque para a obra Beatos e cangaceiros
(1920). Elegeu-se deputado pelo Ceará à Assembleia Nacional Constituinte de 1933, pela LEC. “Na
Constituinte, defendeu vigorosamente, ao lado de Miguel Couto, a proibição da entrada de imigrantes japoneses
e de todos os grupos de cor, especialmente negros, no Brasil. Promulgada a nova Carta (16/7/1934), teve o
mandato prorrogado até abril de 1935. Foi eleito deputado federal pelo Ceará na mesma legenda, em outubro
de 1934 exercendo a função até 1937. Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/antonio-xavier-de-oliveira.
520
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 568.
212
nordestino se esse impulso fosse interrompido por políticos menos sensíveis às agruras do
povo?
Boa parte da mobilização para que o problema das secas fosse incluído na Constituição
foi executado pela Sociedade Amigos de Alberto Torres. Para isso, a associação se dispunha a
costurar uma rede pela causa, envolvendo estudiosos, políticos e jornais. O Jornal Correio da
Manhã já indicava essa movimentação desde 1932. Segundo nota publicada no jornal, o Dr.
Alcides Bezerra, membro da SADAT, recebeu e publicizou o seguinte telegrama:
521
O Jornal Correio da Manhã, de 28 de dezembro de 1932.
522
Cf. Hansen, Thiago Freitas Codificar e conservar: ciência e pensamento jurídico na formação do Código
Florestal Brasileiro de 1934. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas,
Programa de Pós-graduação em Direito, Curitiba, 2018. P. 75 Hansen indica que “Torres, que na verdade se
constitui como um Projeto de Revisão Constitucional publicado como apêndice de "A Organização Nacional"
em que se apresentam uma série de propostas e instrumentos institucionais e jurídicos capazes, de acordo com
ele, de subsumir os diagnosticados problemas brasileiros à institucionalidade jurídica, dando-lhes orientação e
resposta. (HANSEN, 2018, p. 69).
213
Como é possível observar, o texto sugere que os próprios estados fossem responsáveis
pelos socorros aos flagelados. Os torreanos propuseram, portanto, uma mudança bastante
relevante da lógica de socorros até então realizada: ao invés do oscilante ônus nacional que
consumia parte das reservas do país em benefício dos auxílios aos flagelados, devia a União,
garantir por meio da constitucionalização da questão, o planejamento contínuo de combate à
seca, sobretudo, no âmbito estadual. No entanto, a proposição torreana diferiu da proposta
incluída no projeto de constituição, enviado à Assembleia Constituinte.
Desta feita, problemas históricos foram reavivados a fim de oferecer a construção de
respostas. Nesse sentido, a questão da seca, reconhecida como “O Problema do Nordeste”,
entrou em pauta, afinal, a enorme e populosa porção territorial brasileira assolada pela seca
embarcara na Revolução de Outubro e, ainda em meados da década de 1930, ofereceu seu apoio
ao governo de Getúlio Vargas. Assim, a questão foi incorporada ao texto redigido à Comissão
do Itamaraty, sendo alocada no título IX – da ordem econômica e social, no dispositivo número
129, indicava:
a lei orientara a política rural no sentido da fixação do homem nos campos, a bem do
desenvolvimento das forças econômicas do país. para isto, a lei federal estabelecerá
[...] um plano geral de colonização e aproveitamento das terras públicas, sem prejuízo
das iniciativas locais, coordenadas com as diretrizes da união. Na colonização dessas
terras serão preferidos os trabalhadores nacionais.
§ 1º a defesa contra a seca será permanente e os respectivos serviços custeados pela
união.
523
Também subscreveram o documento Ary Parreiras, Belisário Penna, Fidelis Reis, Porfírio Soares Neto, A.
Sabóia Lima, Edgar Teixeira Leite, Alcides Gentil, Mendonça Pinto, Hélio Gomes, Benjamim Monteiro da
Costa, Armando Magalhaes Correa, Virgílio Campello, Whady Nassif, José Maria Villela, Victorino Freire,
Honório Monteiro Filho, Idelfonso Simões Lopes, Alpheu Domingues, Alberto J. de Sampaio, Benedicto
Raymundo, Lucio de Souza, Cunha Baima, Carlos Pontes, Antônio de Arruda Câmara e Raul de Paula.
524
Jornal Correio da Manhã de 6 de janeiro de 1933.
214
Não por acaso, a emenda sobre as secas foi incorporada ao título que tratava da vida
econômica e social, balizando ações imperativas para a condução da vida rural. A emenda que
versava sobre migração, vigilância sanitária e iniciativas de colonização normatizava pontos
historicamente associados à seca. Mas, o que mais se destaca na formulação é a indicação do
caráter permanente dos socorros, ponto compatível com a demanda da região por mais espaço
e oportunidades de inserção da economia nacional. Dessa maneira, buscava-se mais que o
socorro emergencial alcançado somente em períodos de fome e calamidade. Intentou-se
assegurar aos brasileiros nordestinos a inserção na economia-mundo, a garantia de meios para
o direito ao trabalho, discussão bastante disseminada no período e adensado ao longo dos anos
seguintes através de medidas em torno do trabalhismo varguista.
Seja nos jornais ou nas tribunas de debate da Assembleia Constituinte, a campanha pela
constitucionalização do problema das secas seguiu sendo pautada, sobretudo, nos termos
colocados pela Sociedade Amigos de Alberto Torres. Deter-nos-emos ao postulado oferecido
pela associação para dimensionar os caminhos que levaram a efetiva inclusão da seca na
Constituição de 1934.
A SADAT organizou a defesa da proposta para que constasse da futura Constituição,
dispositivos relativos ao problema das secas que afligia o Nordeste brasileiro em dois pontos
principais. Em síntese, defendia a continuidade das obras contra as secas por parte da União e
a obrigação dos Estados da zona flagelada de reservarem, pelo menos, dez por cento das suas
rendas nos anos sem crise, para as despesas ordinárias e essenciais aos flagelados nos anos de
seca.
Os termos da posição da SADAT foram utilizados pelos Deputados do Partido Social
Democrático à Assembleia Nacional Constituinte pelo Ceará. Um deles, o jurista Pontes Vieira
que, ao lado dos irmãos Távora, foi um dos fundadores do PSD, pelo qual foi candidato. Assim
como o clã Távora, Pontes Vieira defendeu a inclusão da pauta da seca na Constituição,
evocando argumentos do grupo torreano. Na ocasião de sua fala na tribuna da Constituinte,
Vieira recorreu a leitura da tese apresentada pelo Dr. Alcides Bezerra ao primeiro Congresso
525
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Publicador Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1935, p. 390.
215
Brasileiro dos Problemas do Nordeste, promovido pela Sociedade Amigos de Alberto Torres,
no Rio de Janeiro. 526
O estudo de Alcides Bezerra ganhou ampla repercussão em meio aos trabalhos da
Constituinte, chegando a extrapolar o circuito intelectual e político, sendo publicado no Jornal
do Comércio, alcançando assim um público mais amplo. Falando em nome da SADAT, Bezerra
argumentou que, superar o problema das secas significava resolver a organização econômica
do Nordeste. A questão da seca, segundo Bezerra, estaria ainda intimamente ligada à resolução
da organização dos trabalhadores brasileiros, pois as queixas de sua numerosa população
poderiam resultar em “um foco de reivindicações proletárias, cuja atuação será enorme, cuja
influência nos destinos do Brasil será imensa”. 527 Naquele momento, a demanda institucional
pela organização do trabalho concorreria para afastar as possibilidades de eclosão de
movimentos socias de contestação.
A influência dos escritos de Alberto Torres conferiu à proposta de constitucionalização
da “questão do Nordeste”, elementos quanto a distribuição humana no território brasileiro, bem
como da relação desses com o meio ambiente. O texto aprovado pela SADAT, utilizado pela
bancada nordestina, indicava que o problema da seca descrito como “problema da geografia
das calamidades” deveria ser incluído na Constituição, sob a justificativa de ser essa uma
“medida de política antropogeográfica”.528 Essa premissa partia do entendimento da seca como
uma realidade constante em grande trecho do território nacional: “pensar que a última seca foi
o último elo de uma cadeia não se coaduna com a mentalidade científica dos nossos dias. Assim,
cabia prever outras muitas, cada vez mais terríveis se não forem tomadas medidas para minorar
os seus efeitos”. 529
526
O cearense João Jorge de Pontes Vieira nasceu na cidade de Maranguape, em 14 de junho de 1894. Formou-se
como bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito do Ceará. Exerceu o cargo de promotor
público, professor do Liceu do Ceará e deputado constitucionalista. Pontes Vieira esteve engajado no processo
revolucionário de outubro de 1930. Sua ação na constituinte foi marcada pela defesa da provisoriedade da
Constituição e de um modelo eclético de governo, com características do parlamentarismo e do
presidencialismo. Durante o governo Provisório, Pontes foi nomeado delegado de polícia da revolução em
Fortaleza e membro da Comissão de Sindicâncias (Tribunal Revolucionário) no estado do Ceará entre os anos
de 1931 a 1933. Em 1934 foi eleito deputado federal pelo Ceará, logo depois, em 1937, teve seu mandato
retirado. Exerceu ainda os cargos de desembargador e procurador da Fazenda e ocupou uma das cadeiras do
Instituto dos Advogados do Ceará e da Academia Cearense de Letras. Cf. FGV. Verbete. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/vieira-joao-jorge-de-pontes. Acesso em: 20
nov. 2019.
527
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 396.
528
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 396.
529
Ibidem.
216
Dentro dessa argumentação, o crescimento populacional tornaria cada vez mais difícil
socorrer os necessitados no momento do flagelo, se não fossem realizadas obras de transportes
e os auxílios para alimentação e abastecimento d’água. Assim, o êxito no combate à seca não
resultaria na suspensão das ações naquele território, pelo contrário. A partir dele verificar-se-ia
o crescimento exponencial da população, o que exigiria a permanência dos cuidados com o
consumo e produção, assistindo, assim, “uma população laboriosa, genuinamente brasileira, em
que Euclides da Cunha era a rocha viva da nacionalidade.” Dessa forma, respondiam
afirmativamente a primeira tese proposta pelo Congresso do Nordeste: “deverão ter as obras
contra as secas caráter nacional e permanente?” – sim. 530
Mais tarde, esse argumento foi retomado por Xavier de Oliveira, Deputado cearense na
Constituinte eleito pelo Ceará pela Liga Eleitoral Católica. Oliveira se pronunciou sobre a
questão das secas, argumentando na direção das proposições da SADAT. Para ele, cabia a
União impedir que vasta zona do seu território, “habitada por gente laboriosa e digna”, se
despovoasse com a periodicidade de estações irregulares. 531
A observação científica e proteção da natureza foi também importante para a
composição da defesa da constitucionalização da questão. Até aquele momento, as medidas
realizadas pela União nos estados assolados pela seca mesclavam socorros emergenciais como
a distribuição de alimentos, ações de médio e longo prazo como a construção de rodovias,
ferrovias e açudes, esses voltados à racionalização da produção nordestina. No entanto, naquele
contexto de ampliação da pauta ambiental, ações de proteção dos recursos naturais compuseram
o conjunto de argumentos em prol da inclusão do combate à seca na Carta Magna.
No texto de Alcides Bezerra, o reflorestamento aparece como medida válida junto a
outras tantas já experimentadas ao longo dos anos. Como destaca a passagem lida pelo
deputado constituinte Pontes Vieira,
[...] a racionalização da produção numa vasta região como no nordeste não poderá ser
levada a cabo sem a interferência da união, porque depende de trabalhos de
proteção à natureza, como o reflorestamento, de grande irrigação, de
excepcionais medidas de crédito, de economia e de direitos públicos e privado,
para estabelecer nas partes flageladas um regime sui generis. 532
530
Ibidem.
531
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 568.
532
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 388.
217
Não se trata de canalizar para o Nordeste todas as reservas da nação, nem de onerar
os cofres públicos nacionais de vultuosos empréstimos, para levar a efeito tais obras,
mas de, com recursos ordinários cuidadosamente aplicados, conservar as obras feitas,
planejar outras, e realizar as mais imprescindíveis, segundo um plano de conjunto. E
para tanto, a união, gastando anualmente cerca de cem mil contos, dentro de vinte
anos teria redimido o Nordeste, valorizado suas terras, afastado do perigo da morte
pela fome e seus laboriosos habitantes, e essas despesas não seriam improdutivas
conforme a experiência de outros povos, e trariam benefícios à coletividade nacional.
534
533
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 389.
534
Ibidem.
535
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 383.
218
Art. 177 - A defesa contra os efeitos das secas nos Estados do Norte obedecerá a um
plano sistemático e será permanente, ficando a cargo da União, que dependerá, com
as obras e os serviços de assistência, quantia nunca inferior a quatro por cento da sua
receita tributária sem aplicação especial.
§ 4º - Decorridos dez anos, será por lei ordinária revista a percentagem acima
estipulada.537
536
Annaes da Assembléa Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 383-384.
537
REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL. Constituição (1934). Brasília: Planalto do Governo.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 25 out.
2019.
219
538
Annaes da Assembléia Nacional Constituinte. Volume V [1933 - 1934]. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1935, p. 397.
220
marcante conquista, assim como esmaeceu a coesão do grupo do Norte após a assinatura da
Carta Magna de 1934. O texto Constitucional de 1934 durou pouco, sendo substituído, em 1937,
por uma nova Constituição outorgada por Vargas, dando início ao Estado Novo. Com isso,
impõe-se nova quebra no conjunto de esforços que buscaram sistematizar e institucionalizar o
combate à seca, coroado na Constituição de 1934.
221
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa investiga a forma como se deu o combate à seca de 1932 no Ceará,
situando historicamente seus termos no processo de conformação do Governo Provisório
varguista (1930-1934). O combate à seca executado ao longo desse período foi marcado pela
movimentação política e social em torno do ajustamento do Estado pós-revolução, pela
participação da região Nordeste no debate político em âmbito nacional e, de uma forma mais
ampla, pelas mobilizações em torno dos usos dos recursos naturais brasileiros e dos rumos
nacionais.
Inicialmente o trabalho de pesquisa abordou os primeiros relatos sobre a crise
climatérica, ainda na vigência do regime político anterior a Revolução. No decorrer do ano de
1930, acompanhamos relatos acerca da escassez de chuvas no interior do Estado, o que motivou
apreensão e disputas políticas.
Após a Revolução de outubro de 1930, o cenário de crescente centralização política
marcou a construção das saídas para a seca em meio as tentativas de manutenção dos poderes
locais, interessados em pautar os termos dos socorros. Nesse sentido, percebe-se que além do
amparo imediato aos flagelados, havia outros interesses, como as solicitações para suspensão
da arrecadação de impostos que beneficiaria principalmente os grandes proprietários.
Demandas como essa, justificada como parte dos esforços de superação dos efeitos da seca,
exemplificam como no Ceará, a institucionalização do poder no período pós-revolucionário
ocorreu em diálogo com uma estrutura política permeada de resquícios clientelistas que
influíram no modo como a crise climatérica foi tratada.
Ainda no primeiro capítulo da tese, investigamos a participação política dos irmãos
cearenses Manuel e Juarez Távora, que alcançaram postos e visibilidade importantes no regime
pós-revolucionário. O primeiro tornou-se o Interventor cearense e o segundo, Delegado do
Norte, chefiando o grupo político nortista mediando os conflitos internos e defendendo as
demandas da região. Fernandes foi incapaz de mobilizar a sociedade local ou os agentes da
política nacional em favor dos problemas históricos do Estado, fossem eles relacionados à seca
ou não. O imbróglio político levou a melhor diante das demandas sociais. No espaço do seu
breve governo, Fernandes Távora tentou demonstrar que não compactuava com a evidente
permanência das contexturas que sustentavam as antigas oligarquias. Porém, ao nomear
adesistas e figuras ainda relacionadas à chamada antiga política, Fernandes foi acusado de trair
as ideias revolucionárias, prato cheio para os descontentes com sua forma de conduzir o Ceará.
Substituído poucos meses depois, o primeiro Interventor do Ceará não tornou crível a
222
capacidade do novo governo em responder a crise climatérica de maneira efetiva. Além disso,
Fernandes desagradou a muitos por radicalizar a política centralizante do governo federal.
Com o fracasso da primeira experiência administrativa revolucionária no Ceará e com
o processo de centralização do poder nas mãos do executivo federal em curso, a
responsabilidade sobre a questão da seca dependeu ainda mais de uma boa relação entre
Interventoria estadual, Ministérios e Presidência. Ao novo administrador local, substituto de
Fernandes Távora, coube sensibilizar a sociedade para juntos mobilizar Ministérios, e,
principalmente o Presidente Getúlio Vargas, que naquele momento, detinha a palavra final
sobre todas as questões nacionais.
Nesse cenário, o novo Interventor empossado, Capitão Carneiro de Mendonça surgiu
como via para agilizar soluções sobre o tema da seca e arrematar a definitiva integração do
Ceará ao projeto revolucionário. Quando assumiu o governo em agosto de 1931, Carneiro de
Mendonça mostrou-se ciente da situação econômica e climatérica do Ceará. Naquele ano, diante
da persistência da estiagem, reivindicações e denúncias passaram a ser matéria cotidiana nos
jornais cearenses. Neles, os desdobramentos da seca aparecem como catalizadores das mais
diversas demandas aos poderes públicos. Nesse primeiro momento, créditos federais foram
abertos em favor do Estado do Ceará, sendo empregados em medidas paliativas.
No período em que ficou à frente da Interventoria do Ceará, Carneiro de Mendonça
recorreu ao governo federal, em especial ao Ministro José Américo de Almeida, para custear as
despesas a serem efetuadas em prol do flagelo, uma vez que a situação financeira do Estado
não permitia. As solicitações junto ao governo central, no entanto, não foram realizadas de
maneira amigável, motivando rusgas entre Carneiro de Mendonça e Vargas. No decorrer dos
últimos meses de 1931, a situação dos Estados atingidos pela seca se agravou. Quando grupos
de retirantes já se colocavam em marcha para a capital do Ceará, Mendonça subiu o tom
apontando a responsabilidade do Presidente da República diante da situação.
Para responder a esse descompasso, Mendonça estabeleceu canais de interlocução mais
profícuos com o Ministro da Viação e Obras Públicas, o paraibano José Américo e com a
Interventoria Federal de Obras contra as Secas na pessoa de seu Inspetor-Chefe, o engenheiro
Luiz Vieira. A primeira - e já conhecida - resposta aplicada por esses vários níveis do Governo
Provisório para o problema foi utilizar a força de trabalho dos flagelados nas obras dos
chamados “socorros”. Mobilizadas ao longo das crises de estiagem, as temidas multidões de
trabalhadores transmutaram-se mais uma vez em conveniência. Para dar conta das
aglomerações, o governo recriou as frentes de trabalho nas obras públicas e também campos de
concentração, soluções utilizadas em secas passadas com complexos desdobramentos.
223
Somente quando a crise social se torna dramática, as atitudes de combate às secas são
efetivamente tomadas pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, sob o comando de José
Américo de Almeida, em coordenação com o Interventor do Estado do Ceará, Capitão Carneiro
de Mendonça e o Inspetor de Secas, engenheiro Luiz Vieira. Naquele momento, o Estado
brasileiro, em seus diversos níveis, almejou a estabilização da economia dos territórios afetados
pela seca. Para isso, efetivou robusto investimento em novos e antigos projetos de
reservatórios, implementou postos agrícolas e garantiu a construção sistemática de obras que
continham elementos que propiciavam o investimento futuro em interligação de reservatórios
e irrigação. Tais escolhas apontam para o comprometimento daquele governo com o
desenvolvimento de planos de médio e longo prazos para o combate aos efeitos das secas.
A indicação do nome de José Américo para o cargo se deu em meio a boas expectativas
a respeito das possíveis ações do Ministério da Viação e Obras Públicas para o Ceará. Américo,
conhecido por sua experiência anterior no trato com os efeitos da seca em seu Estado, recebeu
destaque por sua atuação como Ministro do Governo Provisório no período da seca de 1932.
Nessa posição, Américo promoveu, inicialmente, o planejamento para um desempenho robusto
da pasta, modificando a estrutura do Ministério e dos órgãos sob sua tutela, como a Inspetoria
Federal de Obras Contra as Secas. Os esforços encabeçados pelo Ministério da Viação se
destacaram diante das parcas realizações do regime deposto. E, em meio as narrativas sobre os
socorros e o flagelo das estiagens, os agentes políticos ligados ao Governo Provisório ganharam
evidência, inclusive à revelia do antigo panteão do combate às estiagens onde se destacavam
engenheiros ligados a Inspetoria de Secas. Posto isso, as mudanças de cunho modernizantes
realizadas em várias esferas da União, impactaram diretamente no modo como foram sendo
arquitetados os socorros para os flagelados da seca de 1932, e também na memória histórica
criada sobre o tema.
Em meio a pressões políticas, o andamento das ações da Inspetoria de Obras Contra as
Secas, principal agente operacionalizador dos socorros aos estados atingidos pela estiagem, foi
renegociado. Tratando com a implementação de um novo código de atuação para a Inspetoria,
o encarregado dos trabalhos, o Inspetor de Secas Luiz Vieira, coordenou a construção de
grandes obras, sobretudo, reservatórios d’água e longas rodovias. Como no antigo combate às
secas, a construção de obras monumentais produzia maior impacto na opinião pública. Apesar
da grandiosidade das edificações executadas, Inspetoria e governo sofreram críticas severas,
principalmente no que se referia à lógica emergencial de alguns dos socorros implementados,
bem como a transparência dos gastos públicos e a efetividade das obras conduzidas pela IFOCS.
224
Desde sua fundação em 1909, o objetivo da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
era o enfrentamento dos efeitos das estiagens, porém, diante da histórica inconstância dos
repasses de verbas, as condições de trabalho da Inspetoria oscilavam, expandindo-se
principalmente quando as crises hídricas se asseveravam, o que motivava julgamentos
negativos à sua atuação. Quando em 1932 os efeitos danosos da estiagem se ampliaram, o
Governo Provisório investiu boa quantia nos estados afetados, e o Ceará foi um dos mais
beneficiados. Dentre as obras coordenados pela Inspetoria no território cearense, optamos por
tratar com maior detalhe os esforços para a construção do Açude do Estreito, mais tarde
denominado Lima Campos, em Icó. Projetado em 1912, o reservatório foi concluído somente
em meio aos desdobramentos da grande seca de 1932. Situado na principal bacia hídrica da
região jaguaribana, bastante afetada pela seca, o açude foi construído a partir da mão de obra
de retirantes já aglomerada na área.
O reservatório de Icó foi pensado como parte integrante do sistema de irrigação de Orós
ou do Jaguaribe, compondo, desse modo, aspirações de projetos futuros. Verificando
principalmente as informações contidas nos Boletins da Inspetoria de Secas, percebe-se,
portanto, que a construção desse açude adaptar-se-ia para a realização de um projeto maior, de
longo prazo. Assim, o Lima Campos compôs parte de uma nova etapa dos socorros almejada
como monumental, moderna e economicamente promissora.
Partindo dessa perspectiva, optamos ainda por focalizar melhor os meandros da
realização desse açude específico. E, jogando com a pretensa modernidade contida nesse
projeto, tratamos das dificuldades enfrentadas ao longo de sua construção. Nesse ensejo, não
nos furtamos a oportunidade de perceber a experiência dos “de baixo”, ante os ditames “dos de
cima”. Assim, buscamos um vislumbre do modo como homens, mulheres e crianças envolvidas
nessa obra trataram com epidemias, carestia e com uma nova disciplina de trabalho.
Nessa oportunidade, analisamos como entre estratégias de dominação e negociações,
retirantes e responsáveis pela obra se relacionaram. Constata-se que os esforços para disciplinar
a população que ocupava a área de obras esbarrou nas resistências cotidianas dos trabalhadores,
que ajustavam suas demandas e visões de mundo ante as imposições do corpo técnico da
Inspetoria. Por conseguinte, estes sujeitos históricos reformularam práticas, saberes e demandas
às margens do açude. Dessa maneira, esperamos ter ido além do compromisso original do
trabalho com um quadro de análise mais amplo, que buscou conectar a História Regional da
seca de 1932 no Ceará com a História Nacional dos desdobramentos do regime político
estabelecido no Brasil após a revolução de outubro de 1930.
225
Por fim, indicamos que durante o Governo Provisório (1930-1934), a questão da seca
passou a compor os debates sobre os rumos da região Nordeste e de seu povo, mas também
esteve relacionada ao futuro da nação, aos usos dos recursos naturais nacionais e até mesmo,
ao ordenamento constitucional do Brasil. Posto isso, as discussões em torno da seca foram
gradualmente alargadas à medida em que o próprio Estado pós-revolucionário se fortalecia.
Nesse período, políticos e intelectuais de dentro e de fora dos estados atingidos pelas
secas buscaram garantir formas cada vez mais abrangentes e contínuas de ação federal no
Nordeste, incrementando, assim, a produção econômica nas áreas afetadas pela seca, para
consolidar a participação dos estados nordestinos nos círculos de decisão da política brasileira.
O entendimento geral era de que havia necessidade de investir em ações institucionais e
dispositivos constitucionais para garantir o sucesso e a perenidade dos socorros.
Esse argumento materializou-se na campanha pela inclusão do combate à seca na
Constituição de 1934. O envolvimento de políticos nordestinos e grupos civis organizados na
constitucionalização do problema revelou a forma como a seca adentrou o circuito de debates
nacionais do período. O amplo engajamento para a garantia do combate às secas para além dos
tempos de crise deu resultado positivo, e a medida foi promulgada em 1934.
Para os entusiastas da empreitada, a formalização da obrigação da União para com os
estados atingidos periodicamente pelas estiagens tornaria perene os serviços para superação dos
efeitos da falta d’água, mas também poderia abrir caminho para tornar mais efetiva a parceria
entre União e estados nordestinos em outras áreas. Afinal, os momentos de crise climatérica
sempre propiciaram maior disponibilidade de verbas para a região atingida pela seca, o que
impactou na modernização econômica, ampliação da infraestrutura e até mesmo
embelezamento urbano desses estados.
O êxito em tornar constitucional o contínuo investimento da União na região assolada
pela seca, no entanto, se esvaziou pouco tempo depois, assim como sucumbiu o esforço pela
regulação dos recursos naturais expressos na promulgação dos Códigos florestais e das águas,
também datados de 1934. Como indicou Tomaz Pompeu Sobrinho, em escritos vinculados nos
Boletins da IFOCS no ano de 1935, a aplicação da legislação florestal não estava sendo
efetivada, e a materialização dos desdobramentos da constitucionalização do combate às secas
ainda inspirava desconfiança. Para Sobrinho, engenheiro ligado aos quadros da Inspetoria de
Secas no Ceará, medidas de preservação das matas locais, sobretudo em áreas regionais,
poderiam amainar os efeitos da seca.
Assim como nas proposições pró-reflorestamento de Sobrinho, os meandros da
constitucionalização da questão da seca já revelavam pontos de contato entre o combate à seca
226
REFERÊNCIAS
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Fontes hemerográficas:
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da Viação e Obras Públicas, Rio de Janeiro. Classificação: GV c 1930.11.04. Série
Correspondência. Data de Produção: 04/11/1930; Microfilmagem: rolo 2 fot. 0192 a 0192/3.
Arquivo Juarez Távora – Cpdoc – FGV 2285-2287/3695. Apud LOPES, 2014. p. 90.
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230
Fundo 35 Gabinete Civil da Presidência da República. Lata 16. Estado do Ceará. Pesquisa dia
02.05.2018. Carta endereçada ao Interventor Carneiro de Mendonça, datada de 30 de outubro
de 1933.
Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Pesquisa dia
02.05.2018. 9 de janeiro 1934, o telegrama do Centro baturiteenses
Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16 Estado do Ceará. Pesquisa dia
02.05.2018. Carta endereçada ao Presidente Vargas, datada de 23 de outubro de 1933.
Fundo 35 Gabinete civil da presidência da república. Lata 16- Estado do Ceará. Pesquisa dia
02.05.2018. [S.d.] Carneiro de Mendonça escreveu ao ministro José Américo sobre as
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