Construções de Gênero em Chilling Adventures of Sabrina
Construções de Gênero em Chilling Adventures of Sabrina
Construções de Gênero em Chilling Adventures of Sabrina
DISSERTAÇÃO
SARA SCHNEIDER-BITTENCOURT
Pelotas, 2021
SARA SCHNEIDER-BITTENCOURT
Pelotas, 2021
Universidade Federal de Pelotas / Sistema de
BibliotecasCatalogação na Publicação
Banca examinadora:
Prof. Dra. Carolina Kesser Barcellos Dias, doutora em Arqueologia pela USP
Prof. Dr. Vinicius Cesar Dreger Araújo, doutor em História Socia pela USP
Dedicatória
Prelúdio
O mundo sempre parece mais bonito quando você cria algo que não
existia antes.
(Neil Gaiman)
Quem nunca se deparou com uma cena de filme em uma sala de cinema
ou até série televisiva no conforto do sofá de casa, que aflorou sentimentos, que
fez refletir sobre diferentes pensamentos, confrontar, criticar, concordar ou até
mesmo considerar pela primeira vez determinado assunto? Quem nunca sentiu
raiva ou tristeza quando seu personagem favorito morreu ou tomou um caminho
diferente do que torcia para ele tomar? Quem nunca sentiu alegria e euforia
vendo a realização do sonho do protagonista daquele filme que adora? Ser
absorvido pelo ambiente, pela narrativa, pela melodia dos produtos audiovisuais
consumidos é não só natural como também esperado.
São as sensações reais que sentimos ao assistir a filmes, ao ver uma
peça, ao ouvir uma música ou contemplar uma pintura que faz com que esses
processos artísticos atinjam seu potencial em envolvimento com o público. Não
é essa uma das possibilidades que a arte traz? Fazer sentir, fazer vibrar, instigar
reflexões e ao longo desse processo, entreter – não podemos, apesar disso,
ignorar pontualmente a visão mercadológica com a qual são selecionados os
temas dessas produções – possibilitando o posicionamento, por vezes, do
espectador no lugar desses personagens, potencializando desejos, paixões,
receios, medos. Essas são construções que se mostram de grande importância
na sociedade pela representatividade que carregam, seja essa
representatividade relacionada a grupos pequenos, grandes ou a indivíduos
particulares.
Visando que as produções audiovisuais tomam cada dia mais espaço no
cotidiano cultural das sociedades e compreendendo que esses materiais podem
ser ricamente utilizados para análise da própria sociedade, desenvolvemos a
presente dissertação enquanto parte de um caminho profícuo na relação da
academia com os diferentes campos midiáticos, e em especial com a cultura pop,
sendo essa capaz de alcançar variados níveis dos estudos históricos. Um dos
historiadores a carregar consigo essa visão é Alexandre Valim em História e
12
1 Segundo Adriana Stürmer e Giana Petry Dutra da Silva em seu artigo Do DVD ao online
streaming: a origem e o momento atual do Netflix, o streaming é uma forma de transmissão
instantânea de dados de áudio e vídeo que se dão através da rede, sem que para isso haja a
necessidade de se operar o download. Esse é um sistema que se encaixa também no que
chamamos de on demand, pelo qual o assinante pode escolher o produto audiovisual entre uma
lista de uma diversidade de filmes, séries, documentários. A Netflix é, por exemplo, uma
plataforma streaming on demand (2015)
2 Entendemos que a obra Chilling adventures of Sabrina pode ser considerada como reboot por
compreender que toda a estrutura que dá início a obra e que retoma a vida dos personagens
principais ser baseada em Sabrina, aprendiz de feiticeira, mas que, entretanto, opta por levar a
história para um rumo diferente da original, entendimentos reforçados por Filipe Falcão no artigo
Apontamentos Sobre o Conceito de Remake Cinematográfico (2015, p. 12)
13
contém cenas humorísticas com ambientes e personagens comuns, como grupos de amigos,
familiares, locais de trabalho.
16
ou como bruxa, mas durante esse espaço de tempo, o que chama a atenção da
narrativa são as formas com que temas de extrema atualidade são trabalhados
na obra, como, por exemplo, a sexualidade, a misoginia, o machismo, as
questões de gênero, o bulling, o feminismo, a afeminofobia, a transexualidade,
a transfobia, o empoderamento feminino, além de tentativas de evitar a
perpetuação de um sistema patriarcal que oprime mulheres e meninas em
diferentes locais e momentos da série, essas questões mostram o quão
politizador é o espaço que o discurso da obra ocupa e é um dos focos que esse
trabalho procura abordar.
Outrossim, o poster (figura 3) de divulgação de CAOS8 nos mostra as
marcas visuais da diferenciação para com a primeira série
9Também chamado de livro das sombras, uma espécie de diário usado para anotação de poções
e rituais mágicos.
22
pessoa é vista” (2016, p. 191). Dessa forma, para Stuart Hall em Cultura e
representação, “a representação significa utilizar a linguagem para expressar
algo sobre o mundo, ou representar ele e outras pessoas [...] é parte essencial
do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os
meios de uma cultura” (2016, p. 31).
Já ao que tange especificamente as escolhas sobre nosso objeto de
pesquisa, como qualquer predileção acadêmica, o fator pessoal e a curiosidade
científica se mesclam na intenção e na busca pela compreensão de
determinados acontecimentos. O campo das artes visuais e mais diretamente os
filmes e as séries televisivas, contidos no que chamamos de cultura pop, nos
acompanham enquanto hobbie a bastante tempo. As mídias, para nós, se
mostram (entre outras questões) como uma maneira de entendermos o mundo,
explorá-lo, deliciar-nos com os mais variados lugares, gostos e cores,
conhecermos as mais diversas pessoas, culturas e sensações, sem ao menos
sair de casa. Sentar à frente da televisão (ou com o suporte tecnológico, do
computador ou do celular) para nós, sempre foi muito mais do que um
passatempo, mas também um meio de aprendizagem. Foi através da emoção
passada pelas mais distintas cenas fílmicas que, pela primeira vez, passamos a
refletir a respeito da própria condição humana, e talvez por ter passado a infância
em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, a maneira que
encontramos de nos apaixonarmos pelo mundo.
Felizmente, tivemos a oportunidade de unir paixão e trabalho.
Considerando que filmes, animações, séries televisivas, música e história em
quadrinhos são narrativas bem trabalhadas em campos como o das artes visuais
e comunicações, o campo historiográfico, mesmo que a passos mais lentos, tem
acompanhado esse processo e utilizado tais materiais também como fontes de
pesquisa. Esses espaços mostram que modificações do pensar acadêmico
também estão ocorrendo, logo, “se se está discutindo cultura pop na academia,
ou no campo científico, isso significa que essa mesma cultura pop, nas suas
mais variadas formas de expressão, está tendo um impacto significativo na vida
social de modo que instigue a preocupação da academia” (REBLIN, 2016, p. 17).
Esse impacto relaciona-se com o entendimento do mundo na sua
atualidade, na forma de agir e viver em sociedade, suas crenças, visões de
mundo, culturas artísticas que se expressam através de diferentes meios, como
26
Primeiro Ato
Uma hora você tem que tomar uma decisão. As fronteiras não mantêm
as pessoas para fora; elas te prendem dentro de si. A vida é confusa
mesmo, é assim que fomos feitos. Então você pode desperdiçar sua
vida desenhando linhas ou então você pode viver cruzando-as. Mas há
algumas que são perigosas demais para serem cruzadas. E aí vai o
que eu sei: se você estiver disposto a jogar a preocupação pela janela
e se arriscar, a vista do outro lado é ESPETACULAR.
(Shonda Rhimes)
Eu acho que nós dois imaginamos isso como um tiro único e ficamos
surpresos quando os fãs pediram por mais. Continuamos contando
histórias de Sabrina de vez em quando em Mad House até 1969,
quando ficamos espantados ao saber que se tornaria uma [série de TV]
animada. Quando se tratou de dar o nome de Sabrina, decidi batizá-la
em homenagem a uma mulher que me lembrava dos meus tempos de
colégio ... que era muito ativa nos assuntos escolares e que designou
vários de nós para entrevistar pessoas importantes na mídia.16
15 A Archie Comics Publications, Inc. é uma editora de quadrinhos norte-americana que foi
fundada no fim da década de 1930 e ficou conhecida pelo protagonismo de uma turma de amigos
que tem como principais personagens Archie Andrews, Jughead Jones, Betty Cooper, Veronica
Logde, Reggie Mantle e Josie e as Pussycats, todos os moradores da cidade fictícia de Riverdale
– tendo em 2017 ido para a mídia televisiva através do canal The CW com o nome da cidade –.
16 Disponível em: https://riverdalereviewed.wordpress.com/2016/09/07/sabrina-the-teenage-
witch-1969-episode-01-segment-b-hiccups/; https://www.cbr.com/george-gladir-co-creator-of-
archies-sabrina-passes-away/ Acessado em: 29/08/2020
37
sua identidade. De forma direta, o casal procura construir a vida em torno uma
“típica” família de classe média no estilo American Dream (sonho americano). É,
portanto, retratada da mesma forma que Jeannie, como o ideal, como a mulher
perfeita, obediente e dedicada à casa e à família, a “dona de casa glamurosa”
que remete às décadas de 1950 e 1960. Mas também apresentou a sociedade
do período o protagonismo feminino, além de ter sido, como lembra Bruno César
Ferreira Vieira em Bruxaria e feminismo: uma análise da independência da
mulher através dos seriados da tv, o primeiro seriado televisivo que mostrou um
casal divorciado, os pais de Samantha, Endora e Maurice (2007, p. 3).
Ao que tange o protagonismo de Sabrina no campo dos quadrinhos, o
então editor chefe da Archie Comic, Victor Gorelick, a considerou como uma
garota que “estava muito à frente de seu tempo”17, discurso que procura
conquistar mais leitores do que propriamente afirmá-la enquanto um símbolo de
inovação. Igualmente protagonista18, apesar de ser apenas uma adolescente, é
retratada como um personagem independente19, mesmo que (vivendo) sob a
supervisão de suas duas tias que são bruxas assim como ela. É interessante
que, ao representar a bruxa adolescente, o padrão físico escolhido se assemelha
ao mesmo padrão atribuído tanto a Jeannie quanto a Samantha, todas com pele
branca, loiras, com o corpo magro, torneado e constantemente expressando
sensualidade.
No caso de Sabrina, mesmo sendo uma garota de apenas 16 anos, as
formas com que seu corpo é desenhado passam a sensação da sensualidade,
fazendo com que a HQ apresente duas principais distinções nas figuras da
mulher-bruxa, as belas, sensuais que atraem o olhar de “todos os garotos” e as
que são representadas pela figura da “típica bruxa”, mulheres velhas, com nariz
pontudo”20.
17 “Sabrina was way ahead of her time” em Sabrina, the Teenage Witch. Introdução. V1. 1962 –
1972, s/p.
18 Sobre seriado televisivo com protagonismo feminino anterior a Bewitched e I Dream of Jeannie,
tem-se a obra de 1951 I love Lucy, que se dedicava a narrar a rotina de um casal de classe
média, retratando a “típica esposa suburbana da década”.
19 Pode-se interpretar também que essa característica particular de independência feminina se
dá, não porque Sabrina é uma garota autônoma em um mundo conservador, mas talvez
exatamente por não ser uma garota “comum”, mas sim “apenas” a criação de um feitiço que não
deu certo, portanto, não tendo a necessidade de se encaixar nos padrões sociais.
20 Figura que se modifica quando Sabrina vai para a televisão como mídia seriada.
39
Sabrina (quadro 1): Olá! Meu nome é Sabrina! Eu espero não ter te
desapontado!
Sabrina (quadro 2): Digo...Espero que você não tenha esperado me
encontrar morando em algum topo sombrio de montanha...
Sabrina (quadro 3): ...vestindo alguns trapos velhos sujos e fazendo
uma bebida velha e nojenta (tradução nossa)
Figura 5: Tia Hilda mostra que Sabrina não se parece nada com uma bruxa21
Fonte: Coleção Completa V.1. Sabrina, the Teenage Witch, 2017, p. 60
21Hilda: Sabrina, você tem a classificação de eficiência mais baixa de qualquer bruxa no distrito
(ao que confere o lançamento de feitiços e encantamentos nos humanos); no mês passado, você
administrou apenas 3 poções, 2 infusões e 1 1/2 feitiços! Sabrina: Não é minha culpa; posso
evitar se as pessoas não confiarem em mim como uma bruxa?; Hilda: eles teriam confiança em
você se não fosse pela sua aparência!; Sabrina: aparência? O que há de errado com minha
aparência?; Hilda: Muito! Para uma bruxa você é completamente feia!; Sabrina: Eu sou? Hilda:
Sim! Você não tem nenhuma das características atraentes pelas quais as bruxas são famosas!
Como cabelo desgrenhado, verrugas no queixo, olhos vermelhos!; E eu pretendo fazer algo
sobre isso; Sabrina: (engole em seco) Para onde você está me levando? (tradução nossa)
43
aparece como uma “verdadeira garota”, nasceu e cresceu como qualquer outra,
e para completar essa estrutura lhe era necessário que tivesse pais, e esse foi
um dos primeiros impasses entre Scovell e a conservadora rede de televisão
ABC, que colocaria ao ar a série.
A ABC havia partido do pressuposto de que a mãe de Sabrina (Diana
Spellman) estava morta, mas Scovell insistiu que Diana deveria estar apenas em
constantes viagens de trabalho, sendo que ela seria uma arqueóloga. O
argumento da ABC tentando contrariar a decisão foi o de que nenhuma mãe se
afastaria assim do filho, Scovell logo contestou que Diana não teria problema em
deixar sua filha com as tias, em quem ela confiava e que, além disso, o pai de
Sabrina (Edward Spellman) também estaria ausente trabalhando no “outro reino”
(um mundo apenas dos bruxos e criaturas mágicas, separado do mundo dos
humanos) e que ninguém da ABC teve problemas com isso. A produtora acabou
“vencendo” esse embate, mas perdendo outros tantos29.
Essa alteração acabou, também, possibilitando ao público uma conexão
mais concreta com a personagem, como “aquela que se assemelha a mim”, em
uma relação entre o “eu” e o “outro” Sabrina procura representar uma mescla de
pertencimento e identidade, além de trazer a discussão sobre como o sexismo
era uma constância nos discursos sociais do período (e ainda hoje o é),
diferenciando ações a partir de estereótipos de gênero. Além disso, a
permanência da magia nesse âmbito acaba sendo uma ferramenta de
apreensão do controle dos sentimentos humanos. Assim como afirma a própria
criadora da série “Sabrina nunca ia ao shopping ou fazia compras. Ela se
importava em ser uma boa amiga, fazer boas escolhas e ir bem na escola. A
mágica era uma metáfora para uma jovem aprendendo a controlar seus desejos
e emoções”30.
A Sabrina do seriado dos anos 1990 tinha mesmo como prioridade
ajudar os amigos e todos os que amava e não ia realmente ao shopping, mas
isso não a impedia de usar sua magia para escolher roupas31, manter-se na
em seu espelho, mostrando com esse ato a busca por se sentir encaixada na sociedade através
da estética e da maneira com que se porta no mundo.
48
32https://vermelho.org.br/2011/08/07/mia-couto-a-fronteira-da-cultura/ Acessado em
29/08/2020
49
33 A história do filme pode ser considerada uma livre adaptação, já que suas similaridades com
o livro são contidas ao início da obra.
52
No campo cultural, assim como pondera Celso Luiz Terzetti Filho na tese
de doutorado A Deusa não conhece fronteiras e fala todas as línguas: um estudo
sobre a religião wicca nos Estados Unidos e no Brasil (2016, p. 59), a televisão,
a literatura e o cinema que chegavam ao grande público destacando as
narrativas que se concentravam em representar as “famílias perfeitas” que
consistiam no conjunto do pai provedor que passa grande parte do tempo no
trabalho, a mãe dona de casa que se dedica integralmente ao marido e aos
filhos, vivendo no subúrbio em casas com quintais e cercas brancas que povoam
o imaginário social e cenas televisivas como em Bewitched foram se
transformando – em conjunto com as mudanças socioculturais – em lares
distintos como o caso da família Spellman de 1996 que se apresenta enquanto
um lar matriarcal e independente.
Na sitcom Zelda é cientista, pesquisadora e posteriormente, professora
universitária e Hilda é uma renomada musicista, ambas apresentam importantes
conquistas feministas. A casa Spellman, por exemplo, é totalmente matriarcal e
a única figura masculina que faz parte da casa é o gato Salem34, que mesmo
sendo um homem condenado pelo conselho bruxo a permanecer por um século
preso no corpo de um felino, ainda assim não seria considerado como uma
presença “real” masculina.
A partir dessas compreensões a imagem da deusa e da bruxaria
contemporânea vão se destacando em conjunto à sua relação com o poder
feminino, a resistência a opressões e as questões de feminilidade. A reação
mágica com os elementos sociais, dessa forma vão igualmente ressignificando
as características da feminilidade hegemônica e, logo, podemos questionar o
nível de profundidade dessas imagens de poder mágico quando representadas
pela bruxa adolescente nas mídias audiovisuais (MOSELEY, 2002, p. 409-410).
34 Salem Saberhagen, na sitcom pode falar com as pessoas, sendo que ele mesmo já o fora
anteriormente, tendo sido condenado a viver no corpo de um gato por tentar dominar o mundo
(literalmente). O personagem tem distintas narrativas de acordo com cada mídia, na HQ da
década de 1960 Salem é mesmo um gato, um familiar – um familiar seria considerado como um
companheiro mágico da bruxa – e apenas se comunicava com Sabrina através de telepatia, da
mesma forma que é representado na série de 2018, um “familiar telepata”, logo a característica
envolvendo a personalidade falante e divertidamente ácida com que o gato da bruxa adolescente
se caracteriza acaba fazendo parte da obra de 1996. Na HQ de 2014, Salem também é um
humano condenado pelas bruxas a ficar preso no corpo de um gato, podendo falar, mas ao
contrário do sarcástico gato da década de 90 esse Salem costuma ser a ”voz da razão” para
Sabrina. Na série de 2018 Salem volta a ser um familiar e consegue se comunicar apenas com
Sabrina, novamente por meios telepáticos.
57
[...] Assim que a suspeita de bruxaria surgia, o juiz deveria intervir sem
demora, e proceder a uma investigação e perseguição. Ora, essa
suspeita não precisava de muito para ser provocada. Qualquer morte,
doença, acidente, qualquer acontecimento desagradável tendo, ou
parecendo ter, um caráter imprevisto, podiam ser atribuídos ao
sortilégio: uma mulher que paria natimortos, uma queda de costas, do
alto de uma escada, o emprego, durante uma discussão, de
expressões como “vá para o inferno”; manter hábitos sexuais
61
Tudo o que não poderia ser explicado, o que causava medo, o que era
substancialmente indefinido pela razão da época, poderia ser artifício de Satã e
suas servas, logo, “seu desenvolvimento e sua conceituação como prática
mágica estão intimamente ligados ao triunfo do cristianismo, e os próprios
inquisidores a colocavam como uma “nova seita”.” (NOGUEIRA, 2004, p. 57)
esse processo culminou na conhecida “caça às bruxas”, tão retratada até hoje
em obras literárias, históricas e fílmicas.
Assim, mesmo esses conceitos não sendo o principal interesse dos
criadores das obras que retratam essa temática, esses mesmos textos acabam
disseminando diversos imaginários na sociedade, tornam-se uma fonte
importante de análise, sendo que, normalmente, carregam um discurso de poder
e dominação (SOUZA, 2016, p. 11).
Uma amostra da forma com que essas influências em torno do
imaginário da bruxa passaram a afetar a sociedade ao serem relacionadas nas
mídias é o exemplo do que ocorreu quando a série Sabrina, the Teenage Witch
(1996) foi exibida no Brasil em 2001 pelo canal de comunicação Rede Record,
uma emissora evangélica – sendo de propriedade do bispo Edir Macedo desde
1989 –. Após alguns episódios terem ido ao ar, o canal retirou o seriado de
circulação devido às reclamações da comunidade evangélica que acompanhava
os programas da emissora, afirmando que essa não deveria propagar nenhum
conhecimento referente a bruxaria em sua programação (BOSTULIM, 2007, p.
62).
Ao acompanhar a narrativa do mundo bruxo de Harry Potter de J.K.
Rowling (livros – 1997-2007/filmes – 2001-2011) podemos lembrar que a mesma
polêmica ocorreu com ele36, não apenas no Brasil como também em outras
regiões do mundo. O medo cristão em relação às influências mágicas sobre seus
jovens foram se voltando, dessa forma, às “novas” instrumentalizações de
“divulgação” do imaginário em torno da figura da mulher-bruxa.
Essa repercussão pode ser vista como uma demonstração de que obras
desenvolvidas para o entretenimento oportunizam reflexão daquilo que pode ou
não ser aceito nos distintos nichos sociais, sendo esses elementos de cunho
positivo – como obras que narram bruxas “benignas” – sejam de cunho negativo
– como obras que trabalham com bruxas “malignas” como personagens –.
Ao que tange as especificidades das produções trabalhadas aqui, a série
da década de 1990, por exemplo, não faz referência alguma, a pactos, menos
ainda, a pactos demoníacos. Já na série de 2018 esse elemento é
insistentemente presente – mesmo que os pactos não sejam estritamente
necessários para que uma bruxa adquira seus poderes – é por meio dele que as
bruxas “oficializam” sua “servidão” a Satã, o que possibilita-lhes uma vida
extensamente longa simultaneamente ao aumento dos seus poderes.
Tendo em mente essas distinções conceituais, passamos a apresentar
a seguir a Sabrina que acaba se aproximando mais daquilo que, segundo os
aspectos conceituais, seria uma “verdadeira” bruxa.
37 A produção teve a consultoria de Anton LaVey, o fundador da Church of Satan (Igreja de Satã),
o que pode ter influenciado também as escolhas de Roberto Aguirre-Sacasa na construção de
sua narrativa em CAOS.
38 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/10/o-mundo-sombrio-de-
Acessado em 09/09/2020
40 Nas histórias em quadrinhos as histórias entre a turma do Archie e de Sabrina estão
41 Como um fã do gênero de terror e influenciado pela obra de H.P. Lovecraft, Roberto referencia
seu trabalho Necronomicon. O livro ficcional contem fórmulas mágicas ligadas a magia maléfica
e a necromancia com seus rituais de ressuscitação
42 (Tias Spellman): Não há necessidade. Existem regras, sobrinha; você nos desobedeceu e
quebrou o pacto; A lei bruxa exige rápida punição. A renúncia de todo seu poder, seguido de seu
imediato banimento; um ano de reflexão silenciosa e penitência no reino subterrâneo, distante
do mundo mortal, sob constância vigilância devem servir...; (Sabrina): Por favor! Tias! Vocês
viram Jughead”! Eu precisava...; (Tia): Não, sem mais conversa. Você deve lidar com as
consequências, Sabrina; (Sabrina): ...hmmmmmm...; (Tia): Eu sei que um ano parece um tempo
horrivelmente longo, senhorita ressuscita mortos, mas na verdade...; ...você não vai perder nada.
(tradução nossa)
65
47 Nessa versão Madame Satã é apresentada como Lola, a bruxa apaixonada por Edward
Spellman, a qual ele deixou para ficar com a humana Diana com quem teve Sabrina. Desolada
por Edward ter escolhido uma mortal sobre ela, Lola se mata e acaba nas covas da Gehenna,
um lugar reservado no círculo do Inferno para suicidas, onde permaneceu sem rosto até que foi
acidentalmente libertada/invocada por duas bruxas amadoras.
68
48 Sabrina: ...Ha...Harvey...; Meu amor?; (Bruxa) Ele estava delicioso; (tradução nossa)
69
do Sabá e da bruxa que consome carne humana que podem ser encontrados
em diferentes referências ao longo da história49.
Salem é outro personagem que é apresentado como um bruxo que em
sua forma humana era chamado de Samuel e foi preso no corpo de um gato
como punição por engravidar uma das bruxas de Salem (por isso acabaria sendo
chamando por esse “novo” nome) e negando casar-se com ela. Logo, Salem é
apresentado pela narrativa a partir de uma soma de referenciações, seja a
temática do sexo, seja a alusão a caça às bruxas da Nova Inglaterra, seja ainda
ao imaginário em relação à conexão dos gatos e das bruxas, análises que serão
feitas no decorrer dos capítulos.
Ainda considerando as insinuações que tratam da temática vemos no
terceiro volume da HQ que Hilda está explicando para Sabrina como a pureza
da mente e do corpo são de extrema importância para seu batismo das trevas.
(Hilda) Sim, eu estou bem ciente que é 1960, Sabrina, e que existe o
Movimento de Libertação das Mulheres, mas nós pertencemos a um
movimento feminino muito mais antigo, muito obrigada.
(Hilda) E isso, minha querida, é um privilégio que vem com certas
regras, das quais eu vou relembrá-la de novo.
(Salem) Lá vamos nós! Não haverá…
(Hilda) Não haverá nenhum tipo de profanação, antes da confirmação
da jovem bruxa na idade de 16 anos; E você é muito nova até para
pensar sobre essas coisas; Se é aquele garoto mortal pressionando
você, eu ficaria feliz em preparar uma poção de Salitro que vai inibir os
seus apetites digamos assim.
(Sabrina) Não é o Harley, tia Hilda, sou eu perguntando. Eu tenho 15
anos; É sobre o que todos falam na escola, todas as meninas.
(Hilda)...; Eu entendo, entendo mesmo, são muitos desafios que as
jovens mulheres têm que enfrentar durante esses tempos tumultuados,
mas nesse ponto extremamente específico, não existe meio termo.
(Hilda) Se você planeja escrever seu nome no livro do Dark Lord, você
deve ser pura de mente e corpo.
(Sabrina) Você tem certeza que nós somos bruxas e não puritanas, tia
Hilda? (...) (CHILLING ADVENTURES OF SABRINA, V.3, 2015, p. 11.
Tradução nossa)
49A análise sobre as questões referentes ao “canibalismo bruxo” e ao sabá serão mais
exploradas no decorrer dos capítulos.
70
Giles Corey, John, Benjamin, William e Elizabeth Proctor, Abigail Williams, Reverendo Parris,
Mercy Lewis, Sorcar e Alphonse Louis Constant.
73
Roberto diz ter feito várias pesquisas e leituras sobre a temática56, em especial
sobre a Salem do século XVII. Também uma das escritoras da série, a
historiadora de formação Donna Thorolund, trabalhava para o Museu de História
de Salem e passou boa parte de sua vida estudando bruxaria (roteirista da série
Salem), além de ser ela mesma, segundo Roberto, uma “bruxa praticante”.
Ainda, a designer de produção que foi responsável pelo designer da casa
Spellman e dos outros sets, Lisa Soper, foi igualmente referenciada como uma
“pagã praticante” da equipe de CAOS57.
A intencionalidade da série se faz por arcos que irão se dividir em
temáticas que constantemente se entrelaçam. A narrativa da produção tem como
prioridade contemplar esferas sociais que se encontram em ebulição graças as
discussões que estão sendo feitas nos mais diversos campos que vão da
academia e seus processos rigorosamente metodológicos às conversas
corriqueiras entre vizinhos. Quando falamos, por exemplo, da necessidade de se
debater a igualdade entre gêneros, a transfobia, o racismo estamos
ambicionando a instigação de uma ruptura com a estrutura patriarcal, sexista e
racista que tem dominado os discursos e os locais de poder da sociedade.
Esses questionamentos, ao menos a tentativa de incluí-los aos
dispositivos discursivos da série, são parte ativa da narrativa de CAOS. A partir
desse entendimento é importante compreendermos que algumas mudanças
foram feitas pela série com base na HQ de 2014, essas modificações podem se
dar por inúmeros motivos, seja de cunho mercadológico – aquilo que vende mais
ao público –, seja de cunho ideológico ou temporal – aquilo que está sendo
potencializado enquanto debate no momento –. Ainda, considerando o hiato de
quatro anos entre a publicação da HQ e da série em streaming, com os temas
que mais chamam a atenção do público dos diferentes nichos que HQ e série
atingem, algumas especificidades podem ser apontadas inclusive nos
personagens.
O primo Ambrose – presente na HQ da década de 1960 e inexistente na
série dos anos 1990 – que na HQ (2014) é um homem branco, pode ser visto na
série de 2018 como um homem negro, igualmente Rosalind – assim como
Ambrose aparece na HQ dos anos 60 e não faz parte da série dos anos 90 – é
representada no streaming como uma mulher negra e ao contrário da HQ da
década de 1960 e de 2014, onde ela era representada como uma das “rivais” de
Sabrina, agora é interpretada como uma das suas melhores amigas. Também
as weard sisters (irmãs estranhas) são acrescentadas a obra, sendo uma delas,
Prudence, interpretada também por uma mulher negra.
Na HQ de Aguire-Sacasa existe uma referência as weard sisters – que
são as três bruxas de Macbeth – quando Beth (mulher branca), Verônica (mulher
branca) e Nancy (mulher negra) estão ensaiando para a peça de Shakespeare,
a professora do teatro, Lovett, comenta não estar convencida da atuação de
Nancy como bruxa. Nancy, imediatamente considera o comentário da professora
como ofensivamente racista. Mais personagens negros farão, da mesma forma,
parte da construção da história de Sabrina e, igualmente, levantarão algumas
considerações quanto a profundidade da sua representação, como será visto
mais à frente.
Outro personagem que “reconstrói” sua própria narrativa é Madame
Satã. Na HQ de 2014 foi retratada (referenciando as antigas HQs da
personagem) como um “ex-amor” de Edward Spellman que comete suicídio ao
ser trocada por uma humana, e acaba retornando ao mundo dos vivos depois de
um feitiço de invocação. Na série de 2018 a personagem é também conhecida
como Lilith, a poderosa mãe de todos os demônios e consorte de Lúcifer. Essa
mudança na personagem carrega uma especificidade que procura percorrer todo
o desenrolar da obra, assim como Michelle Gomez que interpreta Lilith na série
afirma “Madame Satã está realmente ali para derrubar o patriarcado”58.
Susie, mais tarde chamado de Theo é mais um dos personagens que
enaltecem a discussão sobre as questões de gênero e diversidade da série e foi
desenvolvido especificamente para a obra em streaming e essa representação
de um garoto transsexual na obra aponta uma alteração significativa (não
exclusiva) das estruturas sociais dos últimos anos. Entendendo que o mercado
midiático ainda caminha em passos curtos (e por vezes tortos) quando o
conteúdo a ser apresentado diz respeito ao universo queer, ainda assim é
igualmente importante afirmarmos a possibilidade de se desenvolver esses
SEGUNDO ATO
(Deborah Harkness)
amigos, e faz um encantamento para parecer com outra pessoa e, enganando a todos, se passa
por uma taróloga, explorando a mente dos “clientes”, seus medos, suas ambições e dúvidas e
instigar suas intenções escondidas.
78
prisão de Carswell, cujo centro médico teve sua reputação marcada por ser mal-
assombrado.
Outras referências intermidiáticas igualmente impulsionaram as tramas
de CAOS, algumas delas são o quadro El Aquelarre (1798) de Francisco de
Goya que pode ser encontrado na casa Spellman, e o teto de vidro da sala das
bruxas que é uma cópia do teto colorido do filme Suspiria (1977). Diversas
referências de HQs, filmes, literatura estão espalhados entre os posters dos
quartos de Sabrina, Harvey, Ambrose e da cafeteria/livraria Dr. Cerbberus, assim
como em tomadas de câmeras, figurino, músicas que vão relembrar produções
como Rosemary’s Baby (1968), The exorcista (1973), The Munsters (1964) estão
entre as diversas mídias que vão fazendo parte dessa homenagem de Sacasa-
Aguirre.
Essas referências contidas na obra se mostram enquanto parte
essencial do constructo da sua narrativa, processo que se dá em diferentes
níveis. Por exemplo, não é por acaso que o encontro dos amigos no Dr.
Cerbberus, no início do primeiro episódio, após terem visto Night of the Living
Dead (1968), acontece, a ideia de conjecturarem possíveis simbolismos da obra
de George A. Romero, como quando Susie fala “é tudo uma metáfora (...) é sobre
zumbies, mas também é sobre a Guerra Fria” (KRIEGER, 2018, ep. 1, 04min
54s) ou quando passam pelo mesmo “ritual” após assistirem The Fly (1986), de
David Cronenberg e consideram-no como uma metáfora para as DSTs
(SEIDENGLANZ, 2018, ep. 4, 01min 50s), acabam trazendo luz às
possibilidades de análise das obras audiovisuais e, consequentemente, à própria
produção como produtos sociopolíticos.
Logo, as cenas recordam o espectador duas de suas principais
premissas 1) as escolhas dos elementos apresentados na produção são
cuidadosamente escolhidas para passar mensagens específicas e 2) podemos
identificar diferentes interpretações em uma obra e/ou cena tanto quanto
literalidades e metáforas contidas em seu processo.
Porém, o tom sombrio escolhido para compor a atmosfera da série vai
além das referências de mídias do gênero de terror. O clima outonal, a paleta de
cores que “fala” através das roupas, das paredes das casas, os objetos que
complementam os cenários, tudo é pensado para dar um ar de mistério à obra,
principalmente ao que concerne a casa Spellman e a Academia de Artes Ocultas.
79
Para o colorista responsável pela “dança das tonalidades”, Shane Harris, a ideia
da criação e escolha das cores foi a de desenvolver uma atmosfera obscura,
assim como a narrativa, segundo ele “há uma espécie de qualidade vintage em
Sabrina que você não vê tanto na TV agora. Do uso das lentes mais antigas à
paleta de cores e clima geral, acho que o show se destaca por si só”62. Ainda
sobre as cores predominantemente mais escuras usadas ao longo da série,
Shane afirma que um ambiente escuro, mas colorido, com sombras frias e, às
vezes, um foco muito suave nas bordas, podem insinuar um momento, uma
época e/ou um lugar diferente, mas bastante relevante.
As bordas suavizadas, citadas por Harris, foram bastante utilizadas em
CAOS. Identificamos esse procedimento, em particular, nas cenas em que a
“energia mágica” está mais palpável, mais forte, por exemplo, no fim do primeiro
episódio (KRIEGER, 2018, ep.01, 53min 57s), quando Sabrina é atacada por um
espantalho que está sendo manipulado – através de magia – por sua professora
Sra. Wardwell – que, na verdade, é Lilith usando o corpo da professora –, ou
quando, no segundo episódio (KRIEGER, 2018, ep.02, 28min 13s), Hilda volta a
vida após ter sido morta por Zelda, sua irmã, e ainda, todas às vezes que Satã
aparece no mundo humano, logo em todos os momentos em que poderosas
magias são projetadas no ar, lá estão as bordas “embaralhadas”. Essa estratégia
de filmagem é apresentada como um lembrete de que poderosas forças estão
agindo por ali, além de darem um ar ainda mais sobrenatural as cenas.
Na continuação da construção das camadas misteriosas dos elementos
contidos na obra, são contados cerca de 40 sets que acabam se mostrando um
emaranhado de mistérios, religiosidade, assimétrica sintonia e uma espessa
reunião de simbolismos e metáforas que vão buscando se encaixar como um
jogo de lego na narrativa e essência da série. Lisa Soper, a designer de produção
e principal responsável pela criação dos cenários, cuidadosamente, procurou
introduzir, segundo suas próprias palavras, um quadro mágico baseado em
tradições do mundo todo63.
62 Disponível em:
https://www.facebook.com/pictureshoppost/photos/pcb.2643247542358801/264324463902575
8/?type=3&theater Acessado em: 06/12/2020
63 Disponível em: https://www.vanityfair.com/hollywood/2018/10/sabrina-real-life-pagan-lisa-
67 https://www.jornadageek.com.br/novidades/o-mundo-sombrio-de-sabrina-igreja-satanista-
ameaca-processar-a-netflix/ Acessado em 10/12/2020
68 Disponível em: https://observatoriodocinema.uol.com.br/series-e-tv/2018/11/o-mundo-
sombrio-de-sabrina-processo-movido-por-templo-satanico-e-resolvido-fora-dos-tribunais;
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-
arte/2018/11/22/interna_diversao_arte,720989/acordo-entre-netflix-e-seita-satanica.shtml
Acessado em 10/12/2020
69 Disponível em: https://medium.com/@animismovisual/quem-tem-medo-do-lobo-mal-
cr%C3%ADtica-de-the-chilling-adventures-of-sabrina-1%C2%AA-temporada-271641f1d2af
Acessado em 10/12/2020
70 Disponível em: https://www.syfy.com/syfywire/church-of-satan-totally-cool-with-sabrinas-
statue-just-not-the-satanic-temple Acessado em 10/12/2020
83
A então “Ave Maria, cheia de graça, bendita sois vós entre as mulheres.
E bendito é o fruto do vosso ventre” foi invertida e transformada em uma oração
para Lilith, então Rainha do Inferno. Tal alteração não é interpretada apenas de
uma forma, mas ao que cabe esta pesquisa ela corrobora para fortalecer o
conceito já abordado que coloca as bruxas, logo, suas crenças, como avessas
85
71Chillingadventures of Sabrina procura abordar temáticas que são “pilares” das desigualdades
e problemáticas sociais e políticas através de uma narrativa adolescente que intercala humor
com horror e sarcasmo, principalmente quando o assunto é gênero e misoginia, entretanto não
aborda questões raciais, nem de classe. Roberto Aguirre-Sacasa ao ser questionado se escolheu
de forma proposital que determinados personagens fossem negros ele responde que sua
intenção é a de criar uma série (tanto CAOS quanto Riverdale) que “se estabelece no mundo
real, e o mundo real não é 100% branco” (https://www.youtube.com/watch?v=BQAkj3FPLpE).
Essa parece ser uma resposta um tanto leviana, afirmar que o engajamento de seu trabalho
concorda com a “realidade social” e não abordar o racismo que faz parte das mais distintas
estruturas da sociedade parece-nos ao menos contraditório, lembrando ainda que na criação de
sua HQ (2014), personagens como Ambrose e Rosalind são brancos, nos levando a levantar a
possibilidade de uma pressão por parte da produção da mídia no contexto audiovisual para haver
maior representatividade negra na série. Também destacamos que a obra levanta uma ideia de
feminismo interseccional, mas trata de problemas essenciais do feminismo branco.
92
Sabrina: E ainda assim, meu pai, bruxo, casou com minha mãe, e ela
era humana.
Zelda: E Edward quase foi excomungado por isso.
Sabrina: O que leva à pergunta...por que entrar para uma organização
que faria isso com quem amo?
Zelda: Porque seus pais queriam (...) você é uma Filha da Igreja da
Noite, seu pai era Sumo Sacerdote. Você será batizada sob uma lua
de sangue. Como nós todos os Spellman antes de você. Como seus
filhos serão. (KRIEGER, 2018, ep.01,40min 24s)
72 Para além de percebermos o corpo como um elemento passivo de interpretações culturais, ele
próprio é tido como uma construção, “assim como o é a miríade de “corpos” que constitui o
domínio dos sujeitos com marcas de gênero” (BUTLER, 2018, p.30), tendo nessas marcas os
fundamentos de sua significância. Logo, a representação dos corpos se mostra importante para
o entendimento da performatividade de gênero, da compreensão sobre os papéis que são
construídos (e desconstruídos) socialmente nos corpos, moldando-os em diferentes níveis.
Assim, para Butler parte do processo que pode caracterizar os sujeitos femininos enquanto
politicamente emancipados é o entendimento sobre as amarras mantidas pelo sistema que
“representa o todo”, pois considera que as construções são feitas inclusive pelos discursos e
“mesmo tomados em sua variedade, os discursos constituem modalidades da linguagem
falocêntrica” (BUTLER, 2018, p.33) e essas “interferências” nas características das
representações femininas acabam auxiliando o molde não só das identidades como também dos
corpos.
95
Edward. O então líder do coven procura retomar a Igreja da noite à sua “antiga
glória”, retrocedendo a discursos misóginos e rituais de brutalidade, entendendo
essa intencionalidade, Sabrina procura desmantelar seus objetivos abrindo os
olhos de sua família, em determinado ponto, quando o sorteio está para
acontecer e Zelda – representando a família Spellman – é uma das possíveis
escolhidas, Sabrina se interpõe e toma o lugar da tia, tanto para protege-la
quanto para ganhar tempo e tentar impedir que o ritual seja completo. A
escolhida para rainha acaba sendo Prudence – que é salva por Sabrina – e no
final do episódio, quando as Spellmans voltam para casa, Zelda fala para Sabrina
que se ela fosse a sorteada, a teria protegido, impedindo que fosse morta, que
teria se posto contra a Igreja da Noite, até mesmo contra o próprio Satã para
proteger a sobrinha (NGUYEN, 2018, ep.07, 51min 55s).
Esse é um significativo momento na mudança de paradigma, em um
momento a matriarca Spellman é uma devota e obediente crente do Senhor das
Trevas e de sua Igreja, entretanto, quando alguém do seu mais íntimo círculo de
convivência corre real perigo, fica claro de qual lado está sua lealdade. Zelda
não se transforma em uma pessoa totalmente diferente de um dia para o outro,
todavia, a partir desse acontecimento passa a se permitir questionar não apenas
a suas próprias escolhas como também os propósitos da Igreja, de Blackwood
e, em um nível mais profundo, de Satã, ela se propicia “reconfigurar” suas
crenças e posições em relação ao mundo ao seu redor, mas não o faz sem dor,
sem perceber seu afastamento da Igreja e se sentir incomodada com isso antes
de realmente “abraçar” sua “nova versão”.
A personagem é, assim, retratada de maneira complexa e ambivalente,
ao mesmo tempo que é vista como independente, poderosa e dona de si também
se submete aos dogmas de sua Igreja, de um poder patriarcal, violentamente
masculino. Quando toma a decisão de honrar sua família acima do Senhor das
Trevas, também seus objetivos vão sendo “recalculados”, ao decorrer dos
episódios, Zelda vai engrandecendo sua postura dominante, afirma que vai se
unir a Blackwood, por exemplo, não por amor, mas por poder (RICHARDSON-
WHITFIELD, 2019, ep. 3, 47m50s), quando se casa, ele lança um feitiço que a
99
faz obedecer calada e com um sorriso no rosto a tudo que lhe é ordenado73,
mantendo-a totalmente submissa. Quando libertada do feitiço – por Hilda e
Sabrina – Zelda, terminantemente, se dedica a combater Blackwood e sua
misoginia, tomando para si, após uma série de acontecimentos, a Igreja da Noite,
se constituindo enquanto Sumo Sacerdotisa.
Assim vamos percebendo o desenvolvimento da identidade e da
personalidade dos personagens da obra, da mesma forma que uma narrativa
que procura estabelecer nexo entre os eventos socioculturais e os eventos
contidos na produção vai se construindo. Destarte, um dos componentes
nucleares na “criação” dos sujeitos é a constituição do gênero como uma de suas
bases fundadoras, considerando que o enlaçamento entre gênero e identidade
podem e são exteriorizados de diferentes formas através do corpo, a partir disso,
com o próximo item procura estabelecer os entendimentos sobre tal temática,
correntemente presente em CAOS.
anos-em-queda-diferenca-salarial-de-homens-e-
mulheres#:~:text=Historicamente%2C%20no%20Brasil%2C%20homens%20ganham%20mais
%20que%20mulheres.&text=Em%202018%2C%20chegou%20a%20ser,%2C%20mulheres%2
C%20R%24%202.680. Acessado em 18/01/2021
101
homem é identificado como agressor. Isso acontece nas mais diversas esferas,
um exemplo é lembrado por CONNELL e PEARSE (2015, p. 160) sobre os
procedimentos de tribunais em casos de estupros analisados por Catharine
Mackinnon nos quais identificou que, independentemente de acontecimentos
particulares dos juízes, as autoras das queixas são colocadas em regime de
julgamento, local que deveria pertencer aos réus78. Assim ocorre também –
apesar de não ser um caso de estupro, não diminui sua gravidade – quando o
diretor Hawthorne (em CAOS) não deu o devido peso à denúncia feita a respeito
do ocorrido com Susie, possibilitando, por meio da “não punição” que a situação
pudesse se agravar.
Em meio as provocações de valentões, chamando-a de “sapatão” de
maneira pejorativa e maliciosa, apoio e proteção incondicional dos amigos, Susie
segue um caminho de autoconhecimento e através dele vai se reconstruindo ao
longo da obra. No decorrer desse processo, a narrativa da produção levanta as
discussões de como a falta de informação pode instigar visões prejudiciais e
preconceituosas naqueles que fazem parte do círculo de contato dos indivíduos
que passam pela experiência de não se encaixar nos papéis de gênero que são
impostos socialmente.
Em determinado momento, o tio de Susie é possuído por um demônio,
fazendo com que o pai dela chame o médico de uma instituição psiquiátrica para
avalia-lo e, se necessário, interná-lo. Enquanto os dois estão na sala da casa
Putnam conversando, Susie está nas escadas, escondida, ouvindo tudo
79 Essa é a primeira vez que Susie é relacionada diretamente a identidade masculina. Até esse
momento, o personagem poderia ser visto como uma garota lésbica – considerando os
estereótipos masculinizados apregoados as mulheres homossexuais – assim, essa fala, passa
a exteriorizar as transformações ocorridas com o personagem
80 O termo gênero só foi cunhado no século XX, sendo utilizado nesse momento apenas como
forma explicativa.
107
2.amazonaws.com/files/assets/resources/Dismantling-a-Culture-of-Violence-010721.pdf
Acessado em 10/02/2021.
108
nesse momento dois dos jogadores entram no lugar e vão até ela, assustando-
a, então Susie esconde o livro que escolheu embaixo da blusa, o que faz um dos
rapazes investir com as mãos sobre ela, perguntando o que estaria escondendo,
porque certamente não seriam seios (insinuando que parecia um garoto), nesse
momento, Hilda aparece e afasta os “valentões” e usando seus poderes
empáticos fala
Sei tudo sobre você Billy. E sei porque é tão valentão. E foi terrível o
que ocorreu no acampamento quando tinha 11 anos. Horrível o que
aqueles meninos te fizeram. Os monitores não acreditaram, seus pais
também não, e sua mãe lavou sua boca com sabão até você se calar.
Mas isso não te autoriza a perseguir ninguém, ainda mais alguém bem
menor que você. Então, por que você e seu colega, que aliás morre de
tesão por você, não vão embora antes que eu espalhe o que
aconteceu? (MACNEILL, 2018, ep.09, 19min)
2015, p. 35). Todas essas circunstâncias, esses modelos sociais, vão sendo
desenhados como parte integrante de um sistema complexo de pensar, de sentir,
de agir que vão constituindo cada indivíduo.
É importante também destacarmos que os sujeitos devem ser
entendidos enquanto componentes ativos das suas experiências com o exterior,
não como sujeitos passivos que aceitam sem questionar, desenvolvem seu
próprio consenso e escolhas comportamentais. Logo, contrapondo as agressões
sofridas, o personagem de CAOS também recebe grande apoio dos amigos e
do pai quando se sente preparado para se identificar publicamente enquanto um
garoto trans. Seu processo de identificação ocorreu de forma gradual, em um
primeiro momento questionou sobre si, procurou se entender, construir-se e
reconstruir-se individualmente e depois disso, no momento que se sentiu
confortável e confiante passou a exteriorizar sua identidade.
Um dos pontos de destaque da narrativa nesse contexto acontece
durante o primeiro episódio da segunda parte da obra, quando o garoto decide
entrar para o time de basquete do colégio Baxter e ao comentar seu interesse,
Roz responde que ele é apenas masculino, Susie responde com um “sim, e daí?”
se encostando sentado em uma poltrona, com seus braços abertos descansando
nos braços da poltrona, passando uma linguagem corporal de domínio sobre si,
confiança, conforto e firmeza (SULLIVAN, 2019, ep.01, 6min 12s), criando uma
ruptura com a postura “encolhida”, tímida e contida que apresentava durante a
primeira temporada. Assim, acaba entrando para o time, mesmo com a
resistência não apenas dos outros jogadores – sendo alguns deles os mesmos
que fizeram bulling e foram homotransfóbicos – como também do treinador. Logo
que acaba seu primeiro jogo contra outra escola (SULLIVAN, 2019, ep.01, 37min
20s), o garoto e Harvey (que faz parte do time) vão até Roz para comemorar a
vitória e então ele fala que a partir desse momento quer que o chamem de Theo.
Os amigos então repetem o nome, como se testando como a palavra sai da boca,
sorriem e se abraçam, em apoio e alegria.
Depois disso, Roz e Harvey estão no Dr. Cerberus tomando milkshake e
conversando
84Dorothea foi sua ancestral. Em algumas cenas da segunda temporada ela aparece para Theo,
como um fantasma, guiando-o, e ajudando-o com seu autoconhecimento, sendo ela quem falou
para o garoto ler Orlando, pois o ajudaria a se entender melhor.
111
Assim, quando o Sr. Putnam chega até o casarão encontra com os dois já fora
de casa, Theo lhe mostra o braço, tendo, nesse momento, já se transformado –
até o cotovelo – em um grosso galho de árvore. Seu pai então lhe pergunta se
ele tem certeza que prefere ficar sem o braço, recebendo a confirmação do
garoto, o manda apoiar seu braço em cima de um tronco de árvore e Theo segue
suas instruções, assim, Sr. Putnam brande o machado no ar impulsionando-o
em direção a Theo e de forma precisa golpeia o membro em uma única vez,
entre gritos de dor e sangue sendo jorrado, a “infecção”, aparentemente, é
contida. A cena é feita, intencionalmente, para chocar, assim como chocam as
taxas de suicídios85 e tentativas de suicídio da população trans86. Forçar uma
cena chocante para chamar a atenção para uma realidade ainda mais chocante,
em uma mídia que é vista por adolescentes, mas também por adultos, se mostra
necessária na tentativa de apontar a luta dos sujeitos na construção de sua
identidade e de sua sobrevivência em uma sociedade extremamente julgadora
e imersa em preconceitos e perigos constantes.
Logo, a obra se utiliza de uma narrativa que transforma o corpo do
personagem em algo grotesco, não natural, como uma “infecção” que acaba lhe
petrificando, quase como uma espécie de maldição, que serviria como uma
metáfora quando se considera o corpo biologicamente diferente da identidade
do sujeito. Essa narrativa se mostra como uma tentativa de explicar como um
indivíduo transgênero vê o próprio corpo, entretanto, também nos parece uma
compreensão limitada dos significados de ser uma pessoa trans. Pois, se utiliza
de uma conceituação, novamente, binária, em que apenas o masculino e o
feminino são “naturais”, apontando, com isso, quais seriam os “corpos certos” e
quais seriam os “corpos errados”, sem respeitar ou considerando a fluidez do
gênero e do corpo, onde uma fixação de “certo” e “errado”, “bom” e “ruim” não
se aplicariam (CONNELL; PEARSE, 2015).
As comunidades marginalizadas fazem parte das estatísticas de maior
violência, e essa violência abarca todas as esferas da sociedade, família,
“Transexualidades e saúde pública no Brasil” 85,7% dos homens trans já pensaram ou tentaram
cometer suicídio (Disponível em: https://antrabrasil.org/2018/06/29/precisamos-falar-sobre-o-
suicidio-das-pessoas-trans/ Acessado em 24/01/2021).
113
pelas autoras Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy FRASER em sua obra
Feminismo para os 99%: Um manifesto, em outubro de 2016, na Polônia,
mulheres grevistas levantaram marchas em oposição à proibição do aborto,
tomando as ruas e inspirando manifestações na Itália, Brasil, Argentina, Turquia,
Chile, Espanha, Estados Unidos, México entre inúmeros outros países, esses
movimentos se expandiram nas escolas, nos locais de trabalho, na política e nas
mídias, “um novo movimento feminista global que pode adquirir força suficiente
para romper alianças vigentes e alterar o mapa político” (ARRUZZA;
BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 32), se tornando um movimento
transnacional organizado no dia internacional das mulheres – 8 de março de
2017 – que precede uma luta de classes feminista, internacionalista,
ambientalista e antirracista (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p.
34).
Uma vitória dessas lutas aconteceu em 30 de dezembro de 2020,
quando, em um momento histórico, o senado argentino aprova a legalização do
aborto87, conquista comemorada em toda a América Latina. Outros movimentos
que também fizeram e estão fazendo com que a voz de centenas de mulheres
seja ouvida, e abalaram as estruturas, inclusive, de hollywood, são o ‘Time’s Up’
(o tempo acabou) e ‘MeToo’ (eu também). O movimento Me Too fundado pela
ativista estadunidense Tanara Burke, em 2006, ganhou maior destaque depois
que a atriz Alyssa Milano (atriz que interpretou a personagem Phoebe Halliwell,
uma das três irmãs bruxas de Charmed de 1998) publicou em seu twitter (figura
9):
88 Publicação de Alyssa: “Se você foi assediada ou abusada sexualmente, escreve ‘me too’ em
resposta a esse tweet”; Retweet: “Me too. Sugerido por uma amiga: “Se todas as mulheres que
tem sido assediadas sexualmente ou agredidas escreverem ‘Me too.’ Como um status, nós
podemos dar às pessoas uma noção da magnitude do problema.”.” (Tradução nossa)
89Alguns dos sites que lançaram reportagens a respeito do caso Weinstein: Disponível em:
Chastain, Nicole Kidman entre várias outras mulheres que se levantam para lutar
contra a violência sexual, cultura do silêncio e a discriminação de gênero no
ambiente de trabalho.
Esses movimentos, além de incentivar a procura de ajuda pelas vítimas
de violência ao redor de todo o mundo, instigaram a produção de obras com tal
temática, como foi o caso da série The Morning Show (2020) exibida pela
plataforma streaming Apple TV+, que expõe o silêncio e o encobrimento de
casos de assédio e abuso sexual na televisão norte-americana, inclusive
ganhando a premiação de Melhor série dramática de TV, pelo Globo de Ouro no
mesmo ano. Outra inspiração da “vida real” lançada recentemente é Bombshell
(O Escândalo), do diretor Jay Roach, que explora o caso de pagamentos
milionários na tentativa de calar as vítimas de assédio sexual do ex. presidente
do conglomerado televisivo Fox News, Roger Ailes90. Essas produções
novamente mostram o quão conectada está a sociedade e os processos de
criação cultural e como a ficção é passível de influência nas práticas sociais, da
mesma forma como as práticas sociais acabam por influenciar o campo ficcional.
Assim, a luta contra a desigualdade de gênero, a violência sexual, o
assédio, o silêncio, o preconceito, contra os indivíduos marginalizados, contra o
sistema patriarcal que oprime e domina, são todas lutas que ganham maior
visibilidade quando vozes conhecidas, como no caso das atrizes e o movimento
‘Time’s Up’, por exemplo, ou também com o caso de retratos feitos por meio da
ficção, de filmes, de séries, de documentários, até mesmo de animações e de
histórias em quadrinho que abordam temas como esses em suas narrativas, são
um campo vasto de possibilidade em conectar o espectador a formas de ver e
pensar o mundo, da mesma maneira que essas obras ficcionais são conectadas
pelas atividades culturais.
Em CAOS essas temáticas são levantadas a partir de uma perspectiva
que procura atingir, em especial, espectadores adolescentes e jovens adultos, o
que incorpora na obra uma abordagem menos pesada do que em produções
como Bombshell. Na Academia de Artes Ocultas identificamos uma das
principais narrativas que se relaciona a discursos de misoginia, e ela é
90 Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/04/internacional/1491334017_841048.html Acessado
em: 09/02/2020.
117
91 A “vaga” de líder da Academia é como uma espécie de líder de turma, consiste no aluno
escolhido ser o porta-voz entre os estudantes e os professores, além de ser um dos exemplos
entre os seus. O escolhido coloca-se também a um passo de se tornar o sucessor do Sumo
Sacerdote da Igreja da Noite.
92 Tanto o nome Nick, quanto Scratch são alguns dos “apelidos” do Diabo, reforçando uma
93 Diferentes episódios são dirigidos e escritos por mulheres, entretanto a criação de toda a série
foi desenvolvida por Roberto Aguirre-Sacasa.
119
Entre Sabrina, the Teenage Witch que explora o universo pop dos anos
1990 e CAOS que incorpora, em meio a 2018, uma versão mais dark e feminista
da “mesma” adolescente, uma mudança em especial é evidente, as fronteiras
que delimitam as temáticas sobre sexualidade nas produções adolescentes –
especificamente nessas duas obras – se expandiram, evoluíram conforme as
próprias mudanças culturais. As interações da década de 90 são contidas,
alguns beijos rápidos e conversas indiretas, enquanto a produção da Netflix opta
por uma abordagem aberta em relação à sexualidade, e explora, na narrativa de
cada personagem, a fluidez que essa sexualidade possui.
A narrativa geral da produção também destaca as múltiplas
transitoriedades identitárias, sendo a identidade sexual uma delas. O
desenvolvimento da persona de Zelda Spellman, por exemplo, pode ser um
desses pontos. Zelda inicia a série como uma mulher solteira e experiente
sexualmente, o oposto de sua irmã que era virgem até conhecer o Dr. Cerberus,
ela mantém, com padre Blackwood, relações que experienciam práticas BDSM94
(MACNEILL, 2018, ep.09, 4min 17s) e acaba se casando com ele. Ao decorrer
da terceira temporada/parte, ela se descobre flertando com Mambo Marie Le
Fleur – uma voduísta que foi chamada para ajudar o coven – e, no último dos
96 A semelhança com a personagem não acontece de modo aleatório, lembrando que a estrutura
da narrativa, mesmo se concentrando na atemporalidade, se utiliza de espaços, discursos e
figurinos inspirados na década de 1960 e 1970, possibilitando assim a interpretação da postura
da personagem aos estudos que abarcam tais décadas.
97 Adam, o namorado de Wardwell, aparece apenas no ep. 03/temp. 02, pois estava viajando
com o “médicos sem fronteiras” e ninguém sabia de sua existência, para todos, Wardwell era
uma “solteirona”.
122
99 Relembrando que o Templo Satânico processou a plataforma Netflix tendo como objeto de
argumento o uso não aprovado por eles de uma imagem de Baphomet que, segundo o Templo,
seria de sua propriedade, no entanto, estava sendo utilizada pela produção de Chilling
adventures of Sabrina. Já a Igreja de Satã, como abordamos anteriormente, achou a obra
divertida e bastante ficcional, wiccanas também foram entrevistadas, e tiveram diferentes
opiniões sobre a série cf. https://www.nerdsite.com.br/2018/11/descubra-o-que-bruxas-da-vida-
real-pensam-sobre-o-mundo-sombrio-de-sabrina/ Acessado em 13/02/2021)
124
100 De acordo com Roberto Sicureti em Lilith, a Lua Negra de 1985, as versões sobre o pó que
criou Lilith e Adão podem diferir, em alguns escritos a poeira que os fez é a mesma, em outros
relatos, Lilith se diferencia, sendo inferior a Adão, por ser criada de imundice e areia.
125
101 Não são comuns as teorias que identificam Lilith como a noiva de Samael (BASTOS, 2017,
p. 9), mas elas existem, considerando a proximidade da figura com o Mal, através de um contexto
dicotômico cristão.
102 Satã aparece no mundo humano como metade humana, metade bode. Assim como as
Dessa forma, grande parte das práticas religiosas podem e são postas
ao feminino, entretanto as colocações de poder, de posições institucionais que
tem nelas os componentes de escolhas políticas no âmbito religioso, estão
reservadas aos homens, assim como pontuado por Blackwood onde as mulheres
podem participar de irmandades na religião, mas não dos cargos de poder. Logo,
os homens se colocam enquanto construtores de uma narrativa das relações
entre humano e sagrado tanto quanto dos padrões reguladores do masculino e
do feminino. Ao apontar uma tradição mítico-religiosa em que a mulher é
submetida ao homem, como Eva a Adão, e o Deus Pai é tido como maior
entidade, concretiza-se um discurso em que o homem é colocado em uma
posição acima da mulher.
Quando analisamos esse discurso em CAOS, Satã é a divindade mais
aclamada, enquanto Lilith é apontada apenas como serva, como sua concubina
submissa, ainda os maiores “cargos” da instituição, igualmente, são atrelados
aos homens. Essas escolhas representacionais então podem trazer-nos alguns
pontos, 1) atrelam-se a um discurso já fortalecido pelas mais tradicionais
instituições religiosas 2) possibilitando a chance de um rompimento e ascensão
feminina (o que acaba ocorrendo) e 3) buscam expressar a compreensão de que
sem organização e resistência não há possibilidade de mudanças estruturantes.
Assim, como mencionamos, as próprias divindades cultuadas na série
são, em um primeiro momento, apresentadas como masculinas. O falso deus (o
deus cristão) e, principalmente Satã, estão ali enquanto reforço do masculino
enquanto domínio do poder, é somente durante o final da terceira parte da obra
que a figura feminina de divindade se consolida e sua potência reacende a magia
das bruxas, assim como seu entendimento a respeito do lugar de onde vem seus
próprios poderes. Durante a primeira, a segunda e até parte da terceira
temporada, as bruxas de CAOS tem seu poder amplificado através de sua
obediência e devoção a Satã, logo, quando o coven se volta contra ele, seus
poderes começam a diminuir drasticamente. Em meio a isso, Hilda morre e
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Zelda: Dizem que, quando você invoca a Deusa Trípla, ela vem até
você. Por mais que eu a ignorasse, acreditasse em deuses inferiores,
assinasse meu nome em outro livro, Ela ainda veio até mim quando eu
mais precisava Dela. Quando eu vaguei perdida no Reino Obscuro, foi
Ela que me levou de volta ao mundo material. Nós a chamamos de
Hécate. Nós a chamamos agora, donzela, em seu potencial ilimitado.
Nós a chamamos, mãe, com todo seu poder divino. Nós a convocamos,
anciã, em sua sabedoria misteriosa. Somos descendentes de todas as
donzelas, mães e anciãs. E assim, quando chamamos a Triplice,
chamamos todas as bruxas, que vão desde o início dos tempos até o
fim dos dias. Chamamos para nós mesmas os poderes que nos foram
negados. Incuba-nos com eles, Hécate, e rezaremos para você de
manhã, tarde e noite. E viveremos para honrar suas três faces, suas
três formas. Mãe das trevas, guardiã da chave do portal que separa os
mundos, nós convocamos o retorno da irmã Hilda para o reino dos
vivos. E nunca mais a esqueceremos! (SEIDENGLANZ, 2020, ep.08,
26min 20s - grifo nosso).
104Relembrando que à terra usada no cemitério da mansão Spellman vem do jardim de Caim,
banhada pelo sangue de Abel e capaz de trazer a pessoa ali enterrada de volta à vida, referência
a Sandman, de Neil Gaiman.
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ATO FINAL
Fontes
Referências Bibliográficas
FILHO, Celso Luiz Terzetti. A Deusa não conhece fronteiras e fala todas as
línguas: Um estudo sobre a religião wicca nos Estados Unidos e no Brasil.
Tese de Doutorado em Ciências da Religião. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo. 2016.
141
MOSELEY, Rachel. Glamorous witchcraft: gender and magic in teen film and
television. Screen, v. 43, n. 4, p. 403-422, 2002.
REBLIN, Iuri Andréas. A Cultura pop chegou à academia, e agora? In: REBLIN,
Iuri Andréas; MACHADO, Renato Ferreira; WESCHENFELDER, Gelson (org).
Vamos falar sobre quadrinhos? Retratos teóricos a partir do Sul.
Leopoldina: Aspas, 2016.
SICURETI, Roberto. Lilith, a Lua Negra. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
SOUZA, Felipe Antônio de. Don’t mess with a witch: Power relations, gender
and subcultural issues on witches’ representation in the media. 2016.
Dissertação de Mestrado em Inglês, Centro De Comunicação E Expressão,
Universidade Federal De Santa Catarina, Florianópolis.
STÜRMER, Adriana; SILVA, Giana Petry Dutra da. Do DVD ao online streaming:
a origem e o momento atual do Netflix. GT de História da Mídia Audiovisual e
Visual, integrante do 10º Encontro Nacional de História da Mídia, 2015.
Referências Filmográficas
Referências Seriadas
Eu, Sara Schneider de Bittencourt, matricula nº 19104366 declaro para todos os fins que o texto
inteira e total responsabilidade, sujeitando-me às penas do Código Penal (“Art. 184. Violar direitos
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ASSINATURA