Enciclopédia Fantástica - Criação de Mundos

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O que veio primeiro, a realidade ou a fantasia?

Por um lado, acreditamos que o impossível é


possível quando somos crianças. Por outro, o mundo real tem suas regras e limitações,
independente do que acreditamos ou não. Mas antes do mundo real existir, já existia o universo
e seus fenômenos cósmicos, praticamente fantasiosos. E eu poderia citar outras infinitas
facetas desse debate.

Só sei de uma coisa: a fantasia é inerente à vida humana. Você teve medo de algum monstro
quando criança, fosse o Lobo Mau, a Bruxa Cuca, ou o Darth Vader. Você sonhou em ser mais
do que uma pessoa comum, fosse um Power Ranger, um treinador de Pokémons, ou um bruxo
de Hogwarts. Você já quis desbravar um mundo fantástico, fosse Nárnia, Terra-Média ou
Faerûn. E saber que isso tudo só existe na imaginação não torna a fantasia menos
interessante. Pelo contrário, nos permite explorar os mundos fantásticos sem medo de que a
Rainha Vermelha mande cortar nossas cabeças. E, para alguns de nós, permite criar nossos
próprios mundos fantásticos.

O que não é uma tarefa fácil. Na verdade, criar um mundo fantástico interessante e imersivo é
uma tarefa surreal em todos os sentidos. Diria até que impossível. E é por isso que escrevemos
literatura fantástica. Para criarmos impossibilidades.

A seguir, dissertarei sobre os elementos que tornam os mundos fantásticos interessantes e


imersivos. Desejo que sua mente absorva essas ideias da forma que for mais útil para você e
que posteriormente transmute tais ideias em criatividade para a sua escrita.

Boa leitura e boa escrita!


Sumário
1. O conceito do mundo
2. Gêneros e subgêneros
3. Geoficção
4. Regras
5. Mundos básicos ou exóticos
6. Povos
7. Bestiário
8. Artefatos
9. Mapas
10. O mundo e a narrativa
11. Nomes fantásticos
12. Destilando inspirações
13. Clichês X Arquétipos
14. Narrando o mundo
15. Exercícios práticos
1. O conceito do mundo

Vou falar uma verdade nua, crua e dolorosa aqui: já existem incontáveis mundos fantásticos
clichês na literatura — e em outras mídias. Elfos e anões implicando uns com os outros. Ruínas
de impérios do passado longínquo. Panteões com deuses benevolentes, malignos e neutros. E
também estamos cheios de universos de ficção científica e contos de terror clichês. Eu não
aguento mais ler sobre mundos tão repetitivos.

O elemento-chave para criar um mundo fantástico original é o seu conceito. Vários mundos
podem ter rivalidade entre elfos e anões, impérios do passado e panteões multifacetados,
desde que apresentem um conceito próprio a essa abordagem. Sagas literárias como O
Senhor dos Anéis, As Crônicas de Gelo e Fogo e Witcher — e cenários de RPG como
Forgotten Realms, Eberron, Reinos de Ferro e Tormenta, e videogames, como Warcraft, Diablo
e Dragon Age — compartilham inúmeros elementos em comum, mas encontramos conceitos
singulares em cada um deles.

Resumindo: O Senhor dos Anéis é a obra que definiu a fantasia medieval como conhecemos
hoje, As Crônicas de Gelo e Fogo é fantasia medieval com intriga palaciana, Witcher é um
mundo de fantasia sombria com um caçador de monstros — que também é meio-monstro —,
Forgotten Realms é fantasia medieval com grande foco em magia, Eberron é fantasia medieval
com com elementos de tecnologia fantástica, Reinos de Ferro é fantasia medieval com
steampunk, Tormenta é fantasia medieval com horror cósmico, Warcraft é fantasia medieval
com guerras entre grandes facções, Diablo é fantasia sombria com mitologia cristã e Dragon
Age é fantasia sombria com foco em dragões. Percebe como, apesar de todos terem
elementos em comum, cada um deles têm focos singulares?

Foi por isso que criei um mundo de fantasia medieval onde o Abismo venceu a guerra contra o
Paraíso. Mundo fantástico com entidades benevolentes enfrentando entidades malignas?
Legal, mas não tão ousado. Um mundo onde as entidades malignas exterminaram as
entidades benevolentes? Se você souber de um cenário assim mais antigo do que A Era do
Abismo, por favor me avise, porque eu desconheço!

Se você já estava criando ou já criou o seu mundo fantástico e acabou de perceber que ele se
parece demais com outra obra que já existe, não precisa jogar toda a sua escrita no lixo. Talvez
você só precise pegar tudo que criou e escolher um conceito para torná-lo singular.

Pense em um conceito que você adore e defina-o como o foco do seu mundo fantástico. Se
você gosta de histórias de cavalaria, imagine um mundo onde cada reino cavalga uma criatura
fantástica diferente. Se você adora magia, imagine toda uma cosmologia detalhada com foco
nos poderes mágicos. Se você adora mitologia, imagine um mundo onde deuses caminham
entre mortais. O conceito funciona como o pilar central que sustenta o mundo fantástico.
O que não te impede de usar outros temas. Não vou usar os mundos citados anteriormente
como exemplos para que esse capítulo não fique gigantesco. Posso dizer que A Era do Abismo
usa o próprio Abismo como conceito, mas também tem elementos de horror cósmico e de
impérios do passado como temas mais específicos, por exemplo. Você não precisa dedicar —
e limitar — todo o seu cenário a um único conceito. É interessante usar diferentes temas para
trazer variedade para a sua escrita e, consequentemente, para a leitura. É como uma banda de
um estilo musical que, de vez em quando, compõe uma ou outra canção com um estilo
diferente.

E podemos também ir ainda mais longe e apresentar subtemas. É como se o conceito fosse o
sol, os temas fossem os planetas ao redor dele e os subtemas fossem as estrelas distantes,
que tornam o céu belo sem ter tanta influência na cosmologia em si. Por exemplo, A Era do
Abismo tem um único reino com tecnologia steampunk. Eu não quis encher o mundo de
elementos tecnológicos, mas como adoro pistolas e mosquetes, inseri um reino que me permite
usar um pouco de um subgênero que adoro. Você pode usar um subtema como uma localidade
específica no mundo, uma raça fantástica rara ou apenas com evento singular em um capítulo
do seu livro.

Você pode fazer o que quiser com o seu cenário. Mas, para que os leitores se interessem e
mergulhem de cabeça no seu livro, o ideal é que eles compreendam o mundo fantástico de
forma esclarecida. Você percebe a proposta de um filme ou música logo no começo. O mesmo
precisa acontecer na leitura. E, para isso acontecer, o primeiro passo é definir o conceito.

E o segundo é definir seu gênero e subgênero.


2. Gêneros e subgêneros

O conceito funciona como uma definição sucinta e singular do seu mundo fantástico. O gênero
é onde ele se encaixa entre os outros livros — e filmes, séries e jogos — que já foram
lançados. Por exemplo: Star Wars é do gênero ficção científica e subgênero ópera espacial,
mas tem uma temática completamente fantasia medieval — afinal, tem espada mágica, resgate
à princesa, mentor sábio, cavaleiro sombrio etc. Seguindo essa mesma linha de raciocínio,
poderíamos mudar o gênero de Game of Thrones e manter seu conceito — em vez de reinos
medievais disputando o trono através de guerras e intrigas, poderíamos ter planetas de uma
galáxia ou até gangues do velho oeste disputando pela soberania, tudo embalado em duelos,
batalhas campais, espionagem, potificagem e tudo mais.

Inclusive, eu segui essa mesma linha de raciocínio quando comecei a escrever o meu terceiro
livro. Escolhi o gênero terror, o subgênero horror psicológico e abordei um conceito de
“pesadelos lúcidos”, onde o protagonista experimenta momentos onde a realidade se mistura
com pesadelos enquanto ele busca pela sua namorada pela cidade. E assim nasceu Pesadelos
Através do Espelho.

Quanto mais “nichado”, melhor. Quem já leu O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Gelo e Fogo
e/ou Witcher não vai querer só mais um livro similar a eles. Leitores querem novidades. Com
certeza Victor Milan escreveu Os Cavaleiros de Dinossauros com algum receio de que
achariam que misturar fantasia medieval com dinossauros não era uma boa ideia. Novos
mundos fantásticos precisam apresentar alguma variedade ou profundidade no seu subgênero.

Recomendo que primeiro você pense no seu gênero favorito — o meu, particularmente, é
espada e feitiçaria. Depois no subgênero — o meu é fantasia sombria. E agora pense em algo
próximo disso — variedade —, mas que ainda não foi explorado ou em algo ainda mais
específico — profundidade. No meu caso, eu me aprofundei ainda mais na fantasia sombria e
criei um mundo com um conceito que nunca vi sendo usado, mas também seria uma boa ideia
explorar um subgênero “próximo”, como foi o caso de Os Cavaleiros dos Dinossauros. No fim
das contas, depois do original — como O Senhor dos Anéis —, tudo é subgênero — como As
Crônicas de Gelo e Fogo e Witcher — ou cópia clichê, não há meio termo.

E como diabos podemos botar tudo isso em prática? Vamos lá.

Primeiro, pesquise o seu subgênero favorito. Faça uma lista com pelo menos dez das suas
histórias favoritas dentro do seu gênero favorito e identifique o que a maioria delas têm em
comum. Não foi por acaso que comecei o artigo listando vários mundos de fantasia medieval,
oras. Isso vai lhe ajudar a compreender os seus gostos pessoais e ter mais certeza do que
quer criar.

Em seguida, pesquise outros elementos de outros gêneros e subgêneros. Dentro da nossa


cabeça, as histórias e seus mundos fantásticos estão todos misturados, tão pouco deveríamos
nos exigir uma divisão rigorosa dos gêneros e subgêneros que nos inspiramos para criar
nossos próprios mundos fantásticos. Você pode gostar do elemento narrativo da busca por um
artefato típico da espada e feitiçaria, de algum assassino em série ou monstro sobrenatural do
terror e de metais alienígenas usados para criar equipamentos avançados e usar isso tudo na
sua história, independente do gênero. Inclusive, vou agora criar uma proposta de história para
cada um dos três gêneros usando todos esses elementos.

Espada e feitiçaria: os heróis precisam encontrar uma arma feita de um metal fantástico para
matar um monstro implacável. Horror: os sobreviventes precisam encontrar um artefato
ancestral para se salvar da maldição de um fantasma. Ficção científica: os astronautas
encontraram um artefato alienígena que fez um monstro despertar e ir atrás deles, agora eles
precisam desvendar como esse artefato funciona para matar o monstro. Percebe que mesmo
com descrições tão similares, é possível imaginar uma história e um cenário exclusivos para
cada premissa?

Por fim, pesquise sua própria vida. Pense nos gostos individuais dos seus amigos e parentes
para avaliar elementos de gêneros e subgêneros ainda mais distantes daqueles que você
pensou por conta própria, pense nas relações que você vive e viveu para criar no seu elenco,
pense nos seus desenhos animados favoritos da infância — seria coincidência que o meu
desenho favorito foi Caverna do Dragão? De certa forma, a escolha do gênero e do subgênero
é o que garante que a gente se apaixone pela nossa própria história, enquanto que os
elementos da nossa própria vida que inserimos nas nossas histórias é o que garante que os
leitores se apaixonem também.

Muita coisa para pesquisar e decidir, não é mesmo? E a gente ainda nem começou a elaborar
o mundo em si. O fato é o seguinte: se você estava com alguma dificuldade para criar o seu
mundo fantástico, agora vai ser impossível ficar sem ideias. Tanto quanto um pintor consegue
identificar as tintas e as cores de um quadro e um músico consegue identificar cada nota
musical de uma canção, os escritores também conseguem identificar os elementos usados
para criar outras histórias — e você está aprendendo a aguçar a sua visão agora.

Em resumo: defina o gênero e o subgênero da sua história e faça pesquisas relacionadas a


esse gênero e subgênero, a outros gêneros e subgêneros e também a sua própria vida pessoal
para criar seu mundo fantástico. O ideal é que você consiga definir o mundo em uma única
frase, como os exemplos citados anteriormente. Não precisa ter pressa para definir todos os
elementos antes mesmo de começar a escrever a história, inspiração e criatividade são
habilidades fluidas e constantes. Agora é o momento de definir o “norte” da sua criatividade,
mas com certeza haverá desvios de percursos nessa jornada.

O gênero, subgênero e conceito norteiam seu livro, enquanto que a escrita em si é toda a
jornada que você e seus leitores percorrerão.
3. Geoficção

Não dá para falar em detalhes de geoficção — worldbuilding — sem falar de um gênero em


específico. Os detalhes relevantes para a espada e feitiçaria podem ser irrelevantes para a
ficção científica e para o horror. Em vez de dizer o que você deve e não deve fazer, vou citar
alguns tópicos que podem ou não ser importantes para a sua escrita e você decide como vai
usar — e se vai usar — por conta própria.

Geografia

Noções geográficas como clima, relevo e estações do ano podem ser relevantes. Vários
mundos de espada e feitiçaria usam mapas detalhados com a localização de florestas, rios,
montanhas, pântanos, desertos etc. Galáxias de ficção científica apresentam mundos com todo
tipo de ambientação única. Algumas histórias de horror usam um tipo específico de região
como cenário, como uma floresta, pântano ou vale habitado por alguma criatura ameaçadora.

Comece criando o fundamental para a sua história, como uma cidade, ou talvez um bairro ou
apenas uma casa. Defina os elementos geográficos relevantes dentro dessa localidade e aos
arredores — e lembre-se de usá-los na sua narrativa. De acordo com o seu gênero, insira
detalhes imersivos para os leitores, como a torre de um mago misterioso, uma casa
abandonada ou uma fábrica gigantesca e imparável. Com tempo e prática, você vai começar a
aprender os detalhes que são mais ou menos relevantes para a sua escrita e vai ficar cada vez
melhor nesse exercício.

Mas tem também histórias onde esses detalhes são meramente descritivos e não afetam a
narrativa, então por que investir tempo, energia e criatividade em algo que não vai ter uso
prático na sua escrita? O importante é não ter algum tipo de erro esdrúxulo na geografia, como
um pântano do lado de um deserto, a não ser que haja uma explicação para isso — talvez a
presença de uma criatura mágica altere o clima. Não precisa criar um mundo com uma
geografia perfeita e saber de cor a localização das placas tectônicas e das correntes marítimas,
você só precisa criar um mundo interessante e dar uma explicação ao menos criativa para os
detalhes que destoarem da realidade.

Política

Existem inúmeros sistemas políticos no mundo real e ainda mais outros na ficção. Mundos
fantásticos podem ter monarquias, teocracias, democracias, magocracias ou até sistemas
políticos que você mesmo criar. A espada e feitiçaria pode ter vários reinos com sistemas
próprios, a ficção científica pode ter vários planetas com um ou vários sistemas políticos cada,
no horror, os próprios monstros podem se organizar às sombras da sociedade humana. Ou
você pode considerar que seu mundo de fantasia medieval segue um modelo clássico de
monarquia e nada de errado nisso.
Como sempre, o importante é criar o que for útil para a sua história, mas que também não seja
esdrúxulo. Não faria sentido nenhum haver uma eleição para um rei — a não ser numa sátira.
Quando usar um sistema político existente no mundo real, dê uma estudada e use-o com um
bom nível de fidelidade para não causar um estranhamento desnecessário aos seus leitores.
Você não precisa se tornar especialista em política nem nada do tipo, mas se esse tema vai ser
relevante na sua história, então vai precisar pesquisar um bocado.

Ou apenas não entre em detalhes sobre a política do cenário. O gênero onde a política é
possivelmente mais ignorável é o horror, afinal quem vai se importar com eleições quando
precisa sobreviver a um monstro espreitador? Como disse no começo, quem decide o nível de
relevância — ou de irrelevância — é você.

Nações

Obviamente, mundos têm nações, cidades, aldeias e todo o tipo de povoado. Recomendo que
você comece criando em detalhes a cidade ou bairro onde sua história vai se iniciar e
rascunhando os seus arredores. Foque no que for necessário e não vá muito além antes de
começar a escrever seu livro de fato. Dedique suas energias aonde você vai ter resultados —
por mais que seja empolgante descrever todo um mundo fantástico antes de escrever sua
história, é um desperdício criar tanto conteúdo que não será usado no fim das contas.

Cada lugar pode ter um sistema político diferente e ser habitado por todo tipo de criaturas. Um
dos fatores relevantes das localidades é a sua relação com seus vizinhos, quem são seus
aliados, rivais e inimigos. Saber como é o dia a dia nesse lugar pode ser interessante, quais
são as profissões comuns, quais são as tradições locais, o que é produzido, vendido e
importado etc. É importante ter em mente quem são os grupos privilegiados em cada localidade
— nobres, clérigos, magos, cientistas, elfos, vampiros? Talvez seja relevante saber também
como funciona o sistema monetário local — moedas, quilos de grãos, cédulas, cartões? Um
dos contos que eu mais gostei de Witcher narra em detalhes uma bolsa de valores num mundo
medieval, inclusive.

E, mais importante, torne cada localidade única. Crie ao menos um elemento autêntico, como
um estabelecimento comercial ou cultural famoso, um monumento, uma história instigante.
Faça com que os seus leitores sintam que nunca conheceram um lugar como o que você está
apresentando.

Tecnologia

O nível tecnológico também pode variar muito. No meu começo de carreira, lembro de escrever
um conto medieval onde eu falava algo sobre asfalto. Fiquei com uma pulga atrás da orelha,
pesquisei no Google só para ter certeza e vi que asfalto seria algo absurdo em todos os
sentidos naquele contexto — eu queria falar de uma rua pavimentada e me veio asfalto na
cabeça por força do hábito. Como eu sempre digo e não posso cansar de repetir: sempre
precisamos pesquisar, nos informar, tirar dúvidas.

Até onde vai o nível tecnológico do seu mundo? Os povos já aprenderam a sintetizar o aço?
Sabem usar carvão e pólvora em veículos e armas? As cidades já são iluminadas com energia
elétrica? Todo mundo tem um celular com acesso à internet? Os povos aprenderam a usar a
tecnologia através da evolução científica, a magia contribuiu, algum deus ajudou esse
processo, Prometeu roubou o fogo dos deuses? E, o mais importante, como isso afeta a sua
história?

Recomendo que você estabeleça um nível tecnológico padrão para o seu cenário com
possíveis exceções, incluindo algumas localidades mais avançadas e algumas mais atrasadas.
Dessa forma, tanto você quanto seus leitores terão uma noção geral sobre o seu cenário e vão
se empolgar nos momentos em que sua história apresentat as exceções às regras. Em A Era
do Abismo, por exemplo, a maioria dos reinos vive num período medieval, mas alguns povos
ainda habitam as cavernas, enquanto um reino já tem tecnologia a vapor. Em Filhos da Lua, os
lobisomens têm tecnologias e até medicina mais avançadas do que os humanos. Tudo é
possível, só não vale apresentar uma tecnologia útil para os personagens e depois não usá-la
em momentos importantes da narrativa. Se um personagem poderia pegar o celular e ligar para
pedir socorro, ele com certeza ao menos tentaria. Se o celular iria funcionar ou não, depende
da história.

Magia

Magia é um elemento tão importante quanto tecnologia. Em certos mundos, a magia é rara,
como na Terra-Média e em Westeros. Em outros, é tão comum que pode ser cotidiana, como
em Arton ou em Faerûn. E tem também cenários de ficção científica e de horror com magia,
como a Força de Star Wars e os poderes sobrenaturais de Carrie, a Estranha. Tais habilidades
podem surgir através de estudos arcanos, intervenção divina, poder da mente ou etc, mas o
que importa mesmo é que alguns mundos permitem que seus personagens manipulem a
realidade através da sua força de vontade.

Pode ser relevante definir a fonte — ou as fontes — de tais poderes. Os personagens já


nascem dotados de magia, precisam estudar para manipulá-la, os dois casos são possíveis ou
nascem dotados E precisam estudar para manipulá-la? É possível rezar ou fazer um pacto com
uma entidade para ganhar poderes? Na verdade, a magia é o poder da mente se
manifestando, mas as pessoas acham que é a vontade divina? A magia é um poder neutro e
depende do conjurador usá-la para o bem ou para o mal ou é inerentemente corrupta e
sombria? Pense em todas as possibilidades e divirta-se explorando as que escolher.

Em todos os casos, o X da questão aqui é o mesmo da tecnologia: tudo é permitido, desde que
seja usado de forma verossímil na narrativa. Se um personagem pode se teletransportar, por
exemplo, ele não pensaria duas vezes antes de fugir da morte certa. Crie as regras da magia
com esmero e cautela.

Povos

Geralmente, mundos fantásticos são habitados por povos diferentes. Na espada e feitiçaria,
pode existir raças como humanos, elfos, anões e orcs. Na ficção científica, pode existir
espécies alienígenas diferentes e/ou os humanos podem criar novas espécies, como robôs e
mutantes. No horror, podemos ter criaturas espreitando a nossa sociedade, como vampiros,
lobisomens e fantasmas. O conceito de povos pode existir mesmo sem o conceito de raças ou
espécies — na Trilogia Leviatã, a 1ª Guerra Mundial se divide entre o eixo com tecnologia
steampunk de um lado e os aliados com tecnologia biopunk do outro, povos diferentes, mas
todos humanos, por exemplo.

As diferenças entre os povos pode ser apenas étnica e cultural ou pode ir além, incluindo
aptidões e poderes exclusivos para cada grupo. Os povos também vão ter histórias e vão se
relacionar — quais são aliados, quais são rivais e quais são inimigos? Lembre-se que você vai
precisar apresentar tais contrastes na sua narrativa, então recomendo que comece escrevendo
sobre poucos povos para dar mais atenção a cada um.

E os seus personagens? Eles se enxergam como membros de um grupo, que por sua vez é
aliado de alguns povos e inimigo de outros? Como isso tudo os afeta? Afinal, criamos nosso
cenário para que sejam habitados pelos nossos personagens — eles sim são os astros das
nossas histórias.

Personalidades

Um cenário também precisa de personagens de destaque. Desde os líderes políticos, religiosos


e/ou militares do mundo, até aquela anciã ou comerciante que consideram autoridade máxima
numa vila perdida no mapa, várias pessoas influenciam o mundo e podem também influenciar a
sua história.

Comece criando algumas personalidades com grande relevância para o cenário — como um
rei, um cientista renomado, um vampiro ancião etc — e algumas personalidades com
relevância direta para a história que você vai contar — como um líder de guilda, um professor
que agirá como conselheiro, um vidente que considera seus poderes mais uma maldição do
que uma bênção etc — e pense em como eles irão influenciar seu enredo e seus personagens
principais e como eles vão exercer tal influência — poderia ser através de sabedoria, tirania,
intrigas, força bruta.

As personalidades podem ser personagens que aparecerão ao longo do enredo ou que serão
apenas citados de vez em quando. E podem ser personagens secundários ou principais,
dependendo de como você for usá-los na sua história. Personalidades são ótimas para
representar a ambientação e o clima do seu cenário.

Monstros

Eu considero que povos são as criaturas inteligentes, que se organizam de um modo


minimamente social e com quem poderíamos ter ao menos um pequeno diálogo. Seres que
não são inteligentes ou com quem não conseguiríamos ter diálogo nenhum, nem se
tentássemos da melhor forma possível, são monstros.

Quimeras e hidras, enxames de alienígenas insectoides e uma gosma ácida e assassina que
escorre pelos cômodos da casa seriam todos monstros. E dragões? Depende. Dragões como o
Smaug de O Hobbit seriam personagens, afinal eles são inteligentes — e muito. Dragões como
Drogon, Rhaegal e Viserion de As Crônicas de Gelo e Fogo seriam monstros, porque são
basicamente animais enormes e poderosos. Pode existir fantasia sem monstros, apesar de ser
improvável. Um mundo de steampunk com locomotivas, dirigíveis e pistolas pode não ter
nenhum monstro. Mas um exército de robôs irracionais e assassinos seriam monstros
steampunk, não é mesmo?

Criar o bestiário do seu cenário provavelmente vai ser uma tarefa hercúlea, por isso tem um
capítulo inteiro dedicado a esse assunto mais para frente. Por enquanto, compreenda essas
noções básicas e vai pensando na função que tais criaturas vão exercer no seu mundo
fantástico — são ameaças ferais, são punição divina aos povos, são parte essencial da política
e da economia das nações, ou o quê? Os monstros podem ser um detalhe interessante do
cenário ou podem ser a ideia central da sua criação, fica a seu critério.

Histórico

Tenho a impressão de que leitores e escritores de literatura fantástica adoram cenários com
históricos detalhados e linhas do tempo complexas. Dezenas de milhares de anos onde o
mundo mudou, evoluiu e quase se extinguiu várias vezes. Eventos mundanos e cósmicos que
reverberam de inúmeras formas na narrativa.

Mas até que ponto o histórico do cenário é relevante para a sua narrativa? Como todos os
outros elementos, esses detalhes podem ser complexos, simples ou irrelevantes para a sua
história. A questão é: como que você vai investir seu tempo, energia e criatividade. Imaginar
séculos e milênios de histórias passadas pode ser empolgante, mas os leitores estão mais
interessados nos seus enredos e nos seus personagens do que nos antepassados deles.

Na minha opinião de um mero mortal, nossas narrativas se moldam de acordo com o sistema
político, a tecnologia, a magia, os povos etc. Por outro lado, o histórico se molda de acordo
com a narrativa que estamos criando. Cuidado para não criar um histórico que entre em conflito
com a sua narrativa. E, se você perceber que houve uma contradição ao longo da escrita,
provavelmente é melhor ajustar o histórico do que mexer na sua narrativa. Em todos os casos
— absolutamente todos —, a prioridade é a sua história.

Panteão

E acima dos povos e monstros, das florestas e montanhas e do próprio mundo em si, podem
existir entidades. Sejam deuses, titãs, monstros ancestrais com poderes insanos, o que quer
que sejam, entidades são aqueles seres que manipularam o mundo ao longo das eras, que os
mortais jamais derrotariam em um duelo, que já existiam muito antes do primeiro capítulo do
seu livro e continuarão existindo depois do último, aconteça o que acontecer.

Em alguns cenários, as entidades são distantes e indiferentes à vida mortal. Em outros, são
participativas e proativas. E tem também cenários sem entidade nenhuma. E agora eu preciso
destruir seus sonhos de leve: todas as opções já foram feitas — à exaustão. Se você realmente
quer criar um panteão interessante — talvez original —, comece da mesma forma que começou
criando seu mundo fantástico: pelo conceito. As entidades são os criadores do universo? Ou
foram as primeiras formas de consciência a despertar? Ou são seres ancestrais que
transcenderam a condição mortal? Pense primeiro num conceito interessante e a partir dele
crie um panteão autêntico, isso aumenta as chances de você ir além do mais do mesmo.

Diga-se de passagem, acho curioso como alguns escritores se preocupam tanto com suas
entidades para depois mal usá-las na história. Falei e não canso de repetir: se for relevante,
crie com detalhes; se não for, nem gaste seu tempo, energia e criatividade.

Cosmologia

Por fim, o que existe além do seu mundo fantástico? Existem outros planetas ou até outras
dimensões? Como essa cosmologia influencia o seu cenário e a sua narrativa? Essa
informação é amplamente conhecida e divulgada para os habitantes do seu cenário? Ou só
seus personagens sabem a verdade? Eles vão explorar outro planeta ou outra dimensão?
Nunca? Uma vez só na história toda? Várias vezes? São só eles que transitam para cá e para
lá? São só eles e mais alguns outros? Ou qualquer um pode viajar para onde quiser e quando
quiser? Ou nada disso importa?

A cosmologia pode ser apenas como os personagens observam e interpretam as constelações


zodiacais ao redor do planeta, pode fazer parte da religião e do esoterismo da sociedade, pode
ser algo substancial ou até recorrente com veículos que desbravam o universo — ou o
multiverso. Como os outros elementos, pense bem nas consequências das suas escolhas. Se a
cosmologia for irrelevante no começo e depois influente, isso pode causar estranhamento ao
leitor. Da mesma forma, se a cosmologia for influente, é necessário pensar em todos os
aspectos dessa influência.
Assim como com o panteão, recomendo que você defina um conceito para sua cosmologia. É
um sistema solar? Uma galáxia? Um conjunto de 13 dimensões paralelas? Infinitas
dimensões? Defina o conceito para nortear a sua criatividade, dar harmonia à sua cosmologia e
garantir que não caia na mesmice.

Conclusão

Pode parecer muita coisa para levar em consideração, e na verdade é sim. Independente do
gênero que escreve, você tem uma longa jornada pela frente. Como diz o ditado: não é fácil,
mas vale a pena.

O fato é que você não precisa ser especialista em nenhum assunto em específico para criar
mundos fantásticos. Eu só recomendo que você seja amante de mundos fantásticos e que
analise seus cenários favoritos para compreendê-los. Não precisa ficar realista, só não pode
ficar esdrúxulo. Nas Crônicas de Gelo e Fogo, as estações duram anos, o que seria impossível
no mundo real, mas está tudo bem. O Átila Iamarino tem um vídeo na internet explicando em
detalhes quais seriam as consequências catastróficas se tivéssemos anos e anos de verão e
depois mais anos e anos de inverno. E quem se importa? Quem quer realismo, com certeza
não vai abrir um livro de fantasia para ler.

Todos esses elementos narrativos e vários outros existem como ferramentas para você usar à
vontade para criar o seu mundo fantástico do seu jeito. Não existe limite, não existe certo ou
errado, mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante... existem regras! Apesar de
alguns enxergarem regras como uma má notícia, elas são uma boa notícia. Afinal, é você quem
dita as suas regras.
4. Regras

As regras de um mundo fantástico existem tanto para manter a coerência quanto a


verossimilhança da narrativa — e para evitar o deus ex machina.

Vamos começar pela coerência. As pessoas veem as cenas de ação mais absurdas em filmes
como Velozes e Furiosos e dão risadas, mas ficaram indignadas quando uma certa
personagem da série Game of Thrones levou várias facadas na barriga e depois saiu correndo,
saltando, lutando e triunfou no final. Por quê? Porque Velozes e Furiosos já era absurdo desde
o primeiro filme, ou você não gostou e para no começo ou gostou e assistiu tudo curtindo a
jornada. Em Game of Thrones, facada na barriga foi a morte de mais de um personagem antes,
então por que essa sobreviveu? Leitores, espectadores e jogadores estão dispostos a aceitar
absurdos, só não estão dispostos a aceitar inconstância e incoerência dentro das regras que já
foram estabelecidas antes.

O que não quer dizer que vão aceitar toda e qualquer regra dentro da história. É aqui que entra
a verossimilhança. Você aceita que o Super-Homem voa, é à prova de bala, super forte e tudo
mais. Você não aceita que a Lois Lane não reconhece que ele é o Clark Kent depois de ver
ambos de perto. Uma história pode ter todo tipo de magia, tecnologia e monstros, mas isso não
abre margem para que os personagens não se comportem como qualquer pessoa real numa
situação como essa. O mundo pode ser fantástico, os personagens precisam ser de carne e
osso.

Deus ex machina, por sua vez, é uma ferramenta narrativa que existe desde o Teatro Grego. A
princípio, significava literalmente intervenção divina numa narrativa — os céus se abrem, os
deuses descem e resolvem tudo. Hoje em dia, deus ex machina é qualquer evento imprevisível
que conduz a história de forma conveniente. Luke Skywalker usando a Força de uma forma
inédita até então para se safar de uma ameaça, um tiranossauro rex chegando na hora H e
devorando o velociraptor, os alienígenas invasores morrendo de gripe, tudo deus ex machina.
Em alguns casos, deus ex machina funciona, mas é raro, como por exemplo a solução para a
cena da fornalha de Toy Story 3 e o clímax de A Deusa no Labirinto, de Karen Soarele. O
problema do deus ex machina é tanto a inconstância narrativa, quanto a falta de protagonismo
dos personagens. Tudo bem um personagem certo chegar na exata hora certa uma vez ou
outra na história. Ruim é quando as ações e o desenvolvimento do elenco parecem anulados
por um acontecimento imprevisível.

Agora que você já sabe os principais problemas que acontecem quando as regras são
inconstantes ou inexistentes, podemos falar em como delinear as regras do seu mundo
fantástico.

Primeiro eu vou resumir e depois eu vou elaborar: criar as regras do mundo fantástico é
estabelecer o que os habitantes consideram mundano, exótico, raro e impossível dentro do que
eles compreendem como a vida mortal e como os cosmos ao seu redor.
As regras mundanas são aquelas nítidas no cotidiano de todas as criaturas. Como funciona a
gravidade, a passagem dos dias, das estações e dos anos, quantas luas têm no céu, quantos
anos os humanos vivem em média, magia existe ou não etc. Muito provavelmente, a maioria
dessas regras vai ser muito parecida com o nosso mundo real, como as noções de tempo e
clima, vida e morte. As outras vão ser justamente aquilo que torna um mundo fantástico
diferente do nosso. Elfos e anões andam entre os humanos e todos sabem que eles existem?
O protagonista entra em uma loja e é atendido por um robô? As pessoas precisam doar sangue
mensalmente para abastecer seus senhores vampíricos? Quando alguém reza, seu desejo é
atendido de forma óbvia, abstrata ou só não é atendido? Afinal, como é o dia a dia de uma
pessoa comum no seu mundo fantástico?

As regras exóticas são aquelas que causariam estranhamento aos habitantes comuns.
Algumas poucas pessoas podem já conhecer e compreender tais regras, mas elas são
consideradas sábias, loucas ou hereges. Ainda assim, uma pessoa normal pode vir a lidar e até
a se acostumar com essas regras exóticas ao longo da narrativa. Elfos e anões são normais
em O Senhor dos Anéis, mas os gigantes e os filhos da floresta são exóticos n’As Crônicas de
Gelo e Fogo. Por outro lado, magia é algo comum em Azeroth, mas temos apenas cinco magos
em toda a Terra-Média. Armas de pólvora são cotidianas nos Reinos de Ferro, mas ainda
incomuns em Tormenta. Existem monstros de diversos formatos e tamanhos em Forgotten
Realms, mas criaturas como o xenomorfo felizmente são singulares em filmes como Alien. Ou
seja, o que é comum em um mundo, pode ser exótico em outro. Quando for delinear as regras
exóticas do seu mundo, pense no que pode acontecer de improvável ou inusitado dentro dele,
mas não seria considerado totalmente impossível para os seus protagonistas. Em alguns
casos, a descoberta e compreensão de regras exóticas podem causar um estranhamento
inicial — como o primeiro encontro com criaturas fantásticas em Game of Thrones e o primeiro
xenomorfo de Alien —, mas seus protagonistas vão passar a aceitar e lidar com elas ao longo
da narrativa.

As regras raras são consideradas absurdas e inacreditáveis para quase todos os habitantes de
um mundo fantástico. Até mesmo os mais sábios, loucos e hereges têm apenas algumas
hipóteses, pistas e desconfianças a respeito delas. Se uma pessoa normal se depara com uma
regra rara, ela provavelmente entraria em choque. Balrogs existem na Terra-Média, mas nem
mesmo Gandalf estava preparado para encontrar um em Moria. Para os habitantes de Porto
Real, os Caminhantes Brancos são lendas até mesmo depois do final da história. Dragões
quase com certeza estão em extinção no Continente de Witcher. Os deuses de Tormenta são
muito proativos, mas quem já viu um deles andando em Arton? Regras raras geralmente são
mais recursos narrativos do que diretrizes que você vai precisar lidar constantemente.
Enquanto as regras mundanas estão presentes em quase todos os capítulos do seu livro, as
regras exóticas podem ser relevantes apenas algumas vezes e uma regra rara vai ser usada
uma ou duas vezes só, geralmente nos momentos de clímax da história. Por mais que seus
protagonistas presenciem uma regra rara em ação, vai ser um evento singular em suas vidas.
Muito provavelmente também vão existir exceções às regras. Personagens, artefatos ou
lugares que simplesmente funcionam seguindo suas próprias regras, que não se encaixam com
nada estabelecido. O que diabos é Tom Bombadil, afinal de contas? Como os Reinos de
Moreania e o Império de Jade se relacionam com o continente de Arton? A cena em que os
heróis de Dragon Age: Origins veem um casal de fazendeiros simpáticos encontrando um bebê
ao lado de um meteoro um dia vai ter repercussão no resto da saga? Exceções às regras são
exatamente o que as palavras significam: exceções às regras. Elas podem lhe dar liberdade e
acrescentar uma variedade interessante na sua história, algo que você não vai precisar explicar
nunca e que também não atrapalhe sua história e suas regras, mas acredito que elas devem
ser tão singulares quanto as regras raras — ou até mais.

E não se esqueça de estabelecer o que é impossível dentro dessas regras. O que não pode ser
feito nem por uma entidade? Elementos como ressurreição, teletransporte e adivinhação
costumam simplesmente não existir em mundos fantásticos porque eles causam mais
problemas do que qualquer outra coisa. Se teletransporte existe, por que os heróis não
poderiam simplesmente se infiltrar na sala do trono do vilão? E se algum personagem já souber
todo o roteiro do início ao fim? Qual é o peso da morte, se ela for reversível? Esses tipos de
poderes costumam resolver um problema — em forma de deus ex machina, o que torna a
solução insatisfatória — e criar outros muitos problemas. Sugiro que você estabeleça pelo
menos três impossibilidades nas regras do seu mundo.

Quando criar as regras mundanas, exóticas, raras e as exceções do seu mundo fantástico,
tenha em mente que elas dizem tudo o que pode e o que não pode acontecer e que
possibilidades e impossibilidades novas geram comportamentos e hábitos novos. Seus
personagens vão usar todas as regras que têm ao seu dispor, então pense com cuidado. Afinal,
um pássaro não anda por um quilômetro porque ele pode voar. Afinal, se Gandalf resgatou
Frodo e Sam montado em águias gigantes, por que eles não foram para Mordor voando desde
o princípio? Para resolver essa questão, Star Trek definiu com cuidado como funciona o
teletransporte das naves. Dragon Age, por sua vez, definiu que magia existe, mas ela não
permite teletransporte — e nem ressurreição. Antes de definir as principais regras do seu
mundo, se coloque no lugar dos seus personagens e avalie se essas regras estão ajudando ou
atrapalhando a história que você quer contar.

Para ilustrar, vamos imaginar exemplos de espada e feitiçaria, horror e ficção científica.

Pense no elenco de um livro de espada e feitiçaria. Vamos supor que eles são um humano,
uma elfa, um anão e um gigante. O humano, a elfa e o anão estão dentro das regras
mundanas, pois não causam estranhamento a ninguém ao chegarem em uma cidade nova. O
gigante, por sua vez, está dentro das regras exóticas, pois a maioria das pessoas se
surpreende ao vê-lo e até os guardas seguram suas armas com mais firmeza, em dúvida se
deveriam agir ou não — sem falar que todos conseguem entrar em tavernas e lojas, exceto o
gigante. Quando o grupo enfrenta um vilão que conjura uma magia profana, os heróis têm um
vislumbre das ameaças cósmicas que existem além da realidade e da compreensão mortal.
Como consequência, o humano e o gigante ficam abalados, a elfa sente uma necessidade
instintiva de descobrir a verdade e o anão simplesmente nega e afirma que tudo foi uma ilusão
muito poderosa. Eles decidem investigar, mas as chances são de que nunca sequer cheguem
perto da verdade. E, se chegarem, eles não fazem ideia do que vai acontecer. Nem com eles e
nem com o mundo em que vivem.

E se você escrever horror? Seus protagonistas podem ser caçadores de criaturas


sobrenaturais, como os irmãos Winchester da série Supernatural ou John Constantine do
Universo DC, ou apenas bons cidadãos de Hawkins da série Stranger Things. Para o seu
elenco, caçar fantasmas e exorcizar pessoas é mais um trabalho bem-feito. Um vampiro,
rakshasa ou um ser alienígena apelidado pelas crianças como um lorde demoníaco de RPG
seriam criaturas mais raras, inteligentes e ameaçadoras. Mas seus protagonistas ainda são
mortais e nada pode prepará-los para enfrentar as entidades que dão as ordens em todos os
outros monstros e nas dimensões que habitam, como Lúcifer em pessoa, ou simplesmente algo
além da nossa compreensão mortal, portanto inominável e absolutamente mortífero.

E se você escreve ficção científica? Seus protagonistas podem ser os tripulantes de uma nave
espacial, ou cientistas fazendo pesquisas em algum canto remoto da terra ou até mesmo robôs
que vivem à margem da sociedade humana. Podemos considerar que espécies diferentes
existem e têm uma relação amigável entre si. Porém seu elenco descobre um lugar misterioso,
talvez um planeta ainda inexplorado, um laboratório abandonado que não aparece em nenhum
registro oficial ou uma fábrica de robôs clandestina. Conforme seus protagonistas exploram
esse lugar misterioso, descobrem uma série de elementos exóticos até para suas noções de
realidade. No final, eles descobrem que não estão explorando um planeta desconhecido, um
laboratório abandonado ou uma fábrica clandestina. Eles estão explorando uma arma de
destruição em massa com a capacidade de obliterar tudo o que eles conhecem e amam.

Criar as regras do mundo fantástico é a tarefa mais trabalhosa da geoficção. É como fazer
todos os preparativos da festa. E escrever é ser o anfitrião ou anfitriã da festa, enquanto os
leitores são nossos convidados que vão só curtir a parte boa sem grandes esforços. Mas pode
ter certeza que seus esforços serão recompensados quando seus leitores/convidados
contarem como que o livro/festa foi inesquecível.
5. Mundos básicos ou exóticos

Todos os escritores e escritoras encontram um dilema na hora de criar seus mundos


fantásticos: devo criar algo mais básico e assimilável ou algo mais original e até exótico? Cada
opção tem seus prós e contras, mas em ambos os casos o mundo fictício precisa ser autêntico.

Um cenário com humanos, elfos e anões, ou vampiros e lobisomens, ou marcianos e robôs tem
uma enorme vantagem: uma grande parcela dos leitores já conhece essas criaturas e vai
precisar de menos explicações para compreendê-las. Mas, como eu falei, os leitores não
podem sentir que estão lendo mais do mesmo. Os elfos de Arton têm uma história totalmente
diferente dos elfos de Azeroth, que também têm uma história totalmente diferente dos elfos da
Terra-Média. Eu adoro povos e monstros clássicos, mas fortemente recomendo que cada autor
e autora dê sua abordagem própria a simplesmente todos os elementos que usar em suas
narrativas.

Um cenário com seres tão exóticos ao ponto de não serem reconhecíveis pelos leitores
também tem uma enorme vantagem: sem um parâmetro prévio, tudo o que for apresentado vai
ocupar um espaço novo na memória dos leitores. Mas é difícil criar povos e criaturas realmente
originais. Eu já li sobre uma raça com nome estranho, de pele púrpura, orelhas pontudas e
aptidão para magia — o que me pareceu um elfo, só mudou o nome e a cor da pele. Um bom
exemplo de um mundo exótico que funciona bem é Kurgala, da série O Espadachim de Carvão.
Tudo bem os leitores não conhecerem nenhuma das criaturas do seu cenário, desde que você
apresente cada elemento de forma interessante e narre uma história envolvente.

Particularmente, gosto de usar elementos básicos e exóticos nas minhas histórias. Por
exemplo, o meu primeiro livro tem um anão e uma elfa, mas também tem uma kunoichi —
feminino de ninja — com olho cinzento sem pupila, que ninguém sabia a qual raça ela
pertencia. E sempre que crio um novo elenco, penso “o que os leitores vão reconhecer de cara
e o que vai causar um estranhamento saudável neles?”. Entre os antagonistas ao longo dos
capítulos, temos orcs, mortos-vivos, um minotauro e uma aswang — monstro do folclore filipino.
Isso ajuda os leitores a sentirem que está pisando em terreno firme, mas dá a sensação de que
ele ainda não conhece tudo e tem muito a conhecer sobre esse mundo novo que está nas
páginas nas suas mãos.

E o famigerado caso do vampiro que brilha no sol? Foi uma abordagem bem autêntica dos
vampiros, né? Bom… quando penso em uma criatura que vive no bosque, é vegetariana e
brilha no sol, não penso em um vampiro, eu penso em uma fada. Falando sério agora, o
problema que vejo nesse tipo de abordagem é que ela vai contra a imagética clássica que a
maioria dos leitores tem dessa criatura. Se a sua abordagem é tão diferente ao ponto de
incomodar uma parcela do público que já consome o gênero que você está usando, talvez seja
melhor só usar o clássico ou só criar algo novo e dar outro nome. Sério, nada de errado em
brilhar no sol, o problema é chamar isso de vampiro.
Eu acredito que você vai encontrar o seu equilíbrio entre usar os elementos clássicos ou
originais através de estudo e prática — ambos! Gosta de dragões? Leia sobre dragões, então
escreva sobre dragões, depois leia mais sobre dragões e escreva mais sobre dragões e assim
vai. Mutantes? Fantasmas? Múmias? Leia, escreva, leia mais, escreva mais. As ideias surgem
e melhoram nesse fluxo de inspiração e transpiração. Não tenha medo de começar, mas
também não se dê por satisfeito tão cedo.
6. Povos

A grande maioria das sagas fantásticas tem diferentes povos em seus cenários. Os elfos e
anões tolkianianos, os cidadãos de cada um dos Sete Reinos de Westeros, os humanos e
robôs de Asimov, as incontáveis raças alienígenas de Star Wars, todos esses são apenas
alguns exemplos de povos que habitam os mundos fantásticos.

Povos são grupos que ajudam a definir tanto o cenário quanto os personagens. Em certos
casos, povos são justamente o que conecta os personagens aos cenários. Ou seja, o fato do
Legolas ser elfo, do Ned Stark ser nortenho e do Chewbacca ser wookie ajuda a defini-los tanto
individualmente quanto ajuda a conectá-los aos seus respectivos universos.

Ao criar os povos, é importante ter em mente tanto suas características individuais quanto a
posição que eles ocupam no cenário. É prejudicial um mundo ter dois povos similares demais,
ou povos inimigos com membros desses povos que formam uma amizade incoerente ao longo
do enredo, por exemplo. Não se esqueça da verossimilhança e da importância das regras ao
criar os povos do seu cenário.

Criar um povo para seu cenário não é muito diferente de criar um personagem para o elenco.
E, se criar um povo para o cenário é similar a criar um personagem para o elenco, criar o
conjunto de povos do cenário é como planejar o elenco em si. Vamos botar a mão na massa!

Aparência

A aparência determina os aspectos físicos mais comuns de um povo. Quais variações de cores
de pele, olhos e cabelo, qual é a altura mediana e como é o modo de se vestir? Para raças
fantásticas, quais elementos fogem dos padrões humanos? Como se vestem e que tipos de
adereços usam? A aparência também pode ser apenas um elemento de destaque, como o
formato dos olhos ou da orelha, ou até mesmo algo totalmente extravagante, como um robô
cúbico e atarracado. Lembre-se que nenhum povo é feito de pessoas exatamente iguais, então
descreva algumas variedades entre as características físicas entre os membros.

Pense fora da caixa. Por exemplo, quando escrevi sobre uma personagem de um povo ligado
ao elemento da água, os cabelos dela sempre se mexiam com certa lentidão e fluidez, como se
ela estivesse se movendo dentro d’água. Recentemente, escrevi sobre um povo insectoide que
não fala como os humanoides e se comunica por hormônios e odores, então os outros
personagens precisam interpretar suas emoções e sensações a cada momento. Desafie-se a
criar povos inusitados.

Certifique-se de que os povos deem “a cara” que o seu mundo fantástico precisa,
principalmente levando em consideração o conceito do cenário. Se você quiser algo mais
tradicional, talvez seja melhor criar povos mais similares aos humanos. Se quiser algo mais
exótico, cada povo pode ser completamente diferente do outro. Mais para frente falarei sobre
criar conjuntos de povos.

Comportamento

O comportamento diz respeito às tradições e costumes de um povo. Hábitos, religião e política


também se manifestam através do comportamento. Desde como cada um lida com seus
parentes, seus vizinhos e até com as autoridades locais.

Eles valorizam mais os atributos físicos ou intelectuais de uma pessoa? Qual é a relação deles
com os bens materiais? Seguem regras rígidas ou priorizam a individualidade de cada um?
Que tipo de atitude consideram intolerável? Qual é a opinião geral sobre estrangeiros?

Pare um momento para observar os hábitos dos cidadãos do seu estado e dos estados
vizinhos. O mundo real sempre fornece excelentes inspirações para a ficção. Hayao Miyazaki,
co-fundador do Studio Ghibli, falou numa entrevista sobre a importância de observar pessoas
para criar mundos e histórias fantásticas. Se pessoas tão próximas conseguem ser tão
distintas, imagine povos diferentes de um mundo — ou universo — fantástico.

Habilidades

Além de aparência e comportamento, o terceiro traço mais evidente de um povo é suas


habilidades. Ou seja, o que os membros do povo fazem melhor do que os outros — ou
simplesmente conseguem fazer e os outros não.

Isso pode ser tanto algo pequeno, como aptidão para uma área de estudos ou ofícios, ou pode
ser algo mais extremo, como poderes mágicos inatos. Seres humanos do mundo real se
adaptam a regiões secas ou úmidas, quentes ou frias, de grandes altitudes ou no subterrâneo.
E se um povo fantástico morasse em regiões ainda mais secas ou úmidas, ainda mais quentes
ou frias, ainda mais altas ou baixas? Ou se simplesmente vivessem em cidades, como os
humanos, mas tivessem alguma habilidade que afetasse seu dia a dia?

Habilidades podem estar ligadas a algo físico — como asas que permitem voo — ou ligadas a
algo intelectual — como persuasão ou força de vontade. Sempre é interessante cada povo ter
os dois tipos de habilidades, afinal todos nós temos atributos físicos e intelectuais que
influenciam nossas vidas. Na Fantasia, podemos ir ainda mais longe e criar povos com
habilidades exageradas ou até surreais.

Histórico

As histórias e origens de um povo também dizem muito a respeito dos seus membros. Talvez o
povo tenha um vasto registro sobre seu passado, talvez esteja em busca de redescobrir suas
memórias perdidas, talvez apenas não se importe com esses detalhes, mas deveria.
As lendas dizem que eles foram criados por alguma entidade? Qual foi o primeiro grande feito
desse povo? Quais foram suas maiores conquistas? E derrotas? Quem foram as
personalidades de destaque? Como surgiram suas maiores alianças, inimizades e rivalidades?

Não se preocupe em criar todo o histórico de cada povo antes de começar a escrever seu livro,
apenas trace as informações mais relevantes. A relação entre Legolas e Gimli é fortemente
influenciada pelo histórico das duas raças, por exemplo. Imagine se Tolkien tivesse escrito a
dupla como bons amigos desde o princípio e depois tivesse decidido que seus povos são rivais
milenares. A propósito…

Relações

As relações dos povos é um dos elementos mais importantes a respeito da interação inicial
entre personagens e a posição que eles ocupam no mundo. Amizades e rivalidades podem
surgir de imediato — o que não quer dizer que vão durar muito tempo — e também noções de
respeito, autoridade e até temor podem influenciar civilizações inteiras num mundo fantástico.
Você iria preferir confiar a sua vida a um membro de um povo que já coopera com o seu há
séculos ou a um membro de um povo que já guerreou inúmeras vezes no passado?

Em momentos de crise, para quem o povo pediria ajuda? Ou para quem atenderia um pedido
de ajuda num momento de crise? Com quem comercializa — seja por amizade, interesse,
conveniência ou competitividade? Com quem guerreia? Com quem mantém relações em
segredo?

Já falei muito do Legolas e do Gimli, então vou mudar de exemplo. Em As Crônicas de Gelo e
Fogo, a Rebelião de Robert moldou a relação de todas as Grandes Casas dos Sete Reinos.
Alianças e rivalidades foram forjadas, gratidão e ressentimento foram semeados e o destino de
todo o continente foi influenciado. O bom e velho ditado “diga-me com quem andas, que lhe
direi quem és” é mais do que real nesses casos.

Subgrupos

Povos podem se dividir em subgrupos. Pense na cidade onde você mora. Quem vê de fora,
pode pensar que todo mundo é um grupo só. Mas você com certeza vê muita diferença entre
quem mora no seu bairro, quem mora no bairro vizinho e quem mora num certo bairro distante,
por exemplo. Como carioca, posso dizer que cada bairro tem uma tribo — ou tribos — à parte.
Mas vamos falar de fantasia.

Um reptiliano do deserto seria diferente de um reptiliano do pântano, tanto quanto uma raça
subaquática pode se dividir entre aqueles que vivem em água doce ou salgada, por exemplo.
Um subgrupo pode ser algo totalmente social também, como membros de diferentes castas ou
qualquer tipo de posição hierárquica em uma região.
Os subgrupos acrescentam pluralidades interessantes, garantido que dois membros de um
mesmo povo sejam personagens totalmente distintos dentro da sua narrativa.

Diferencial

Dito isso tudo, você também pode adicionar um elemento seu na criação dos seus povos. Algo
singular do seu cenário, que vá fazer diferença para a saga que está escrevendo. De
preferência, algo ligado intimamente ao conceito do seu mundo fantástico.

Talvez os signos do zodíaco exerçam influência substancial nos membros de um povo? Ou, em
vez de signos, cada pessoa nasce sob a influência de um dos quatro elementos da natureza?
Quem sabe o ditado que diz que “os olhos são o espelho da alma” não seja mera superstição?
Ou todos nascem com algum aspecto animalesco evidente nesse mundo?

O diferencial da geoficção pode ser a peça-chave para você alcançar a originalidade.

Povos padrões

Para criar o conjunto de povos do seu cenário, comece pensando em quem são os povos
padrões. Esses vão ser os povos mais comuns e/ou mais influentes, aqueles que todos — ou
quase todos — sabem que existem e não se surpreenderiam ao encontrar pela rua. Quando os
seus leitores pensarem no seu mundo fantástico, vão visualizar um panorama geral e vão
enxergar “a cara” dos povos padrões.

Em O Senhor dos Anéis, temos humanos, elfos, anões e hobbits. N’As Crônicas de Gelo e
Fogo, temos os povos dos Sete Reinos. O elenco de Dragonlance: Dragões do Crepúsculo de
Outono tem humanos de diferentes subgrupos, um anão, um kender e um meio-elfo. Em Star
Wars, temos humanos e droides — eu não diria que há alguma raça alienígena como padrão
porque Chewbacca é o único wookie recorrente na saga e Jar Jar Binks só teve participação
real em um filme, felizmente.

Imagine como seria um elenco típico e coerente dentro do cenário que você está criando. Tanto
quanto esses personagens precisam ser marcantes para os seus leitores, esses povos
precisam ser marcantes para o cenário. E, de uma forma ou de outra, seus leitores vão
reconhecer esses povos como os principais do mundo.

Povos exóticos

Depois de criar os povos padrões do seu cenário, pense em alguns povos exóticos. Figuras
estranhas até mesmo para os seus personagens. Aqueles que deixam as pessoas comuns
maravilhadas, estupefatas ou talvez enervadas.
Pode ser um povo que habita terras distantes — como os pandarens de Warcraft. Talvez seja
um povo até comum, mas que não seja humanoide — como os entes da Terra-Média. Um povo
pode apenas preferir viver isolado em seu território — como as dríades de Witcher. Ou pode
ser uma raça extremamente rara, talvez até perdida no tempo — como os golens de Dragon
Age.

Povos exóticos costumam causar um estranhamento saudável aos leitores, algo que parece
inusitado num primeiro momento, mas que logo se torna harmônico dentro da sua narrativa. O
ideal é que haja apenas um personagens exótico em toda a história, se não deixa de ser algo
especial. O que não impede que cada um dos seus livros tenha um membro de uma raça
exótica diferente ou que mais de um membro de um povo exótico apareça em um capítulo ou
outro, é claro.

Inimigos

Também é comum haver povos inimigos em mundos fantásticos. Raças e/ou nações
vilanizadas que vão atuar como antagonistas para a saga. Na menor das hipóteses, vão servir
como mal exemplo ou como adversários imediatos, que vão gerar confrontos simples e
satisfatórios — quem não gostaria de socar a cara de uns nazistas, não é mesmo?

Orcs da Terra-Média, os caminhantes brancos de Westeros, puristas de Arton, drows de


Faerûn, draconianos de Krynn, os humanos de Tevinter de Thedas — estes últimos são bem
similares aos membros do Império de Star Wars, diga-se de passagem.

Povos inimigos são interessantes tanto como meros obstáculos ao longo da narrativa ou até
mesmo como artifícios narrativos mais complexos, como um personagem que vem de um povo
inimigo, mas se alia ao elenco principal por algum motivo improvável — como Drizzt de
Forgotten Realms ou Dorian de Dragon Age. Apenas fuja do clichê de “eles nascem maus”. Se
você quer que seus leitores acreditem que o seu mundo poderia ser real, vai precisar ser mais
criativo — e verossímil — do que “esse povo já nasce mau”. O povo alemão, por exemplo, não
nasceu mau. Foi a nação alemã que viveu um período de trevas durante o Nazismo. Caso
queira criar um povo inerentemente maligno, seria melhor pensar em algo que não seja
humanoide, como os devoradores de mentes de Faerûn ou os xenomorfos da franquia Alien.

Clássicos e específicos

Quando for usar um povo clássico — como elfos, robôs ou vampiros —, recomendo que
incorpore os elementos clássicos aos elementos específicos do seu mundo fantástico. Dê a
cada povo a sua visão particular e autêntica. Conecte as ideias clássicas que você gosta ao
conceito do seu mundo fantástico.

Os elfos de Arton são um povo trágico, o que combina com o horror cósmico da Tormenta. Em
Azeroth, por outro lado, os elfos noturnos e elfos sangrentos são mais influentes do que os
alto-elfos, cada grupo com aparência, comportamento, histórico e praticamente tudo diferente
um do outro. Os droides de Star Wars assumem diversos formatos, comportamentos e funções.
No Continente de Witcher, existem várias criaturas vampíricas, cada uma condizente tanto com
o folclore que se inspiram quanto com o mundo em si.

Jamais use um povo clássico de forma genérica. Quando não conseguir pensar em algo
autêntico, pense mais ou apenas não use essa ideia por enquanto. Se o seu cenário realmente
é original, ele vai afetar seus povos de forma que os tornem autênticos dentro da sua criação.

Povo temático

Também é enriquecedor criar algo ligado à temática do seu mundo. Um povo que
simplesmente não funcionaria sem o conceito que você criou. Uma ideia que comprove que
seu mundo fantástico é original.

Em Arton, temos a raça lefou, os tocados pela Tormenta. Em Star Wars, temos a Força e os
Cavaleiros Jedi. Os Targaryen d’As Crônicas de Gelo e Fogo têm uma história tão épica e
intrigante que são muito mais do que uma das muitas etnias de Westeros. Em Witcher temos
os próprios bruxos. Uma das personagens de A Era do Abismo: Crônicas do Éden é uma
decaída, povo nascido sob alguma influência sobrenatural do próprio Abismo.

Pense no conceito, temática, gênero, subgênero etc. e crie um povo com a essência do seu
cenário. Talvez esse seja o maior desafio da geoficção. Mas você vai superar esse desafio — e
vai ser épico!

Elenco

Com tudo isso criado, pense em como seria um elenco básico no seu cenário.

Seria um elenco típico de Espada & Feitiçaria, Ficção Científica ou Horror, com um ou dois
personagens mais autênticos dentro da sua criação? Ou seria um elenco totalmente autêntico?
Eu contraindico criar apenas um elenco típico pelo simples motivo de que isso já foi feito à
exaustão e seria desinteressante. Particularmente, sempre busco incorporar personagens com
elementos clássicos da fantasia, outros autênticos dentro d’A Era do Abismo e mais alguns
mais atípicos dentro dos padrões da fantasia, porém harmônicos dentro da minha criação.

Lembre-se que seu elenco precisa representar seu cenário, então recomendo que você crie
personagens harmônicos entre si e com elementos clássicos e autênticos — talvez misturados
em cada personagem, talvez divididos entre os personagens, criando contrastes.
7. Bestiário

Quase todos os mundos fantásticos são habitados por criaturas que não existem no nosso
planeta Terra. A diferença entre uma pessoa e uma criatura é que você pode dialogar com uma
pessoa, mas não com uma criatura, seja porque ela não tem inteligência o suficiente, porque é
insana, ou simplesmente hostil. A seguir, algumas orientações para povoar seu mundo com
todo tipo de feras, bestas e monstros.

Tipos de criaturas

Antes de mais nada, lembre-se da regra número 1 da escrita criativa: mostre, não explique!
Não gaste o seu tempo e nem o dos seus leitores explicando toda a ciência de uma criatura
fantástica. Talvez algumas poucas linhas de explicações possam ser interessantes, mas não
parágrafos longos demais. Quando for apresentar uma criatura, apresente-a na prática, não na
teoria. Descreva o que os personagens veem, seu comportamento, suas ações, isso sim é
contar histórias.

Algumas criaturas reais podem ser também uma ameaça em mundos fictícios. Lobos, tubarões,
víboras e leões poderiam matar até grandes heróis. A vantagem de usar animais reais no seu
livro é que os leitores provavelmente já os conhecem, mas isso não é nada imaginativo. Se
estamos lendo fantasia, queremos mais do que o que o mundo real já oferece.

A boa notícia é que já existem inúmeras criaturas fantásticas na cultura popular. Pégasos,
hidras, fantasmas, esfinges e boitatás são seres já conhecidos pela maioria dos leitores. A
vantagem é que eles se conectam com o nosso imaginário sem esforço. A desvantagem é que
eles não são nada originais. Se estamos criando um mundo novo, é sempre útil ter ideias
novas.

Criaturas originais são excelentes para surpreender o leitor, ajudando a cativá-lo e imergi-lo na
história. Quando o escritor ou escritora apresenta um monstro inédito, ele ocupa um lugar único
na mente dos leitores. Mas precisa fazer bem-feito. Não basta inventar um nome diferente ou
ou usar só uma variação nova de uma criatura que já existe. Tanto quanto nos esforçamos para
criar personagens, cidades, entidades, itens e tudo mais, precisamos nos esforçar para criar o
nosso bestiário.

Categorizando criaturas

Tanto quanto todo mundo fantástico segue lógicas internas baseadas em suas realidades, os
povos desses cenários também vão olhar ao seu redor e analisar, teorizar e compreender as
criaturas de forma própria. Qual é a diferença entre um dragão e uma quimera? E entre um
zumbi e um fantasma? E entre uma fada e um demônio? Com certeza é útil responder a essas
perguntas antes mesmo dos seus personagens — e dos seus leitores.
Particularmente, eu considero os povos mais tradicionais como humanoides — humanos, elfos,
anões, orcs etc. Mortos-vivos são fáceis de classificar, como zumbis, vampiros e fantasmas, por
exemplo. Para simplificar a minha vida, criaturas fantásticas geralmente são apenas monstros
mesmo, como hidra, quimera, mantícora e afins. Seres mecânicos artificiais, como golens, são
construtos. Seres ligados à essência de algo são espíritos, como fadas, elementais, celestiais e
abissais. E criaturas que fogem desses padrões são aberrações, como os horrores cósmicos
lovecraftianos. Lógico que sempre vão existir subcategorias, mas essa é a minha visão geral.

O importante é estabelecer o seu próprio critério de acordo com a necessidade da história que
você quer narrar. Talvez considere que criaturas são simplesmente monstros e as únicas
diferenças são o habitat que ocupam ou o modo como caçam. Talvez todas as criaturas
fantásticas venham de outras dimensões. Talvez esses seres nasceram da magia e de
experimentos dos humanos. Crie a sua própria lógica interna e categorize os habitantes do seu
mundo.

Criando criaturas

Então vamos botar a mão na massa e começar a povoar um mundo fantástico! Já falamos dos
tipos e das categorias das criaturas. Agora vamos falar da criação de uma criatura em
particular.

Talvez seja útil determinar a origem da criatura. Ela veio de outra dimensão? Foi criada por
alquimia? Faz parte da fauna ou flora natural do mundo? É um mistério até para os
acadêmicos? Sendo sincero, esse é o tópico mais opcional de todos, mas pode ser útil para
você.

Outro tópico relevante é o propósito da criatura. Ela representa alguma força cósmica, como
bem, mal, ordem ou caos? Serve a algum ser superior? Ou apenas se alimenta e se reproduz?
Lembro como Eduardo Spohr fala sobre a diferença entre fantasmas, aparições e sombras na
saga Filhos do Éden, por exemplo. Esses três seres são similares, mas cada um tem um
propósito próprio no ecossistema cósmico daquele universo.

Um tópico indispensável é as forças e fraquezas da criatura. Ela tem armas naturais, como
garras, chifres ou presas? É tão pequena que é difícil vê-la e/ou atingi-la ou é tão grande que
poderia esmagar uma pessoa com facilidade? Tem alguma habilidade especial, como veneno,
camuflagem, carapaça, sopro de fogo? Com certeza essas são as informações mais
importantes para as pessoas do seu mundo que se depararem com as suas criaturas.

Por fim, o habitat e a posição no ecossistema da criatura também são relevantes. Ela vive em
florestas, cavernas, desertos, fundo do oceano, alto das montanhas? É presa ou predadora?
Do que se alimenta? Provavelmente, criaturas que vivem perto de cidades não são tão
ameaçadoras, enquanto as que vivem mais isoladas são o topo da cadeia alimentar.
Você pode criar uma criatura pegando apenas um desses atributos e focando nele ou pode
testar a sua criatividade em todos. Por exemplo, pode apenas pegar um animal — como um
tubarão — e imaginar uma subespécie que vive num habitat diferente — como num pântano.
Ou pode pegar um animal — como uma serpente — e dar uma habilidade nova — como
escamas blindadas. Também é muito comum alterar o tamanho dos animais, como os lobos
gigantes d’as Crônicas de Gelo e Fogo.

Outra forma comum de criar criaturas é misturar partes de diferentes animais. Se podemos
imaginar quimeras, grifos e esfinges, por que não um urso com casca de tartaruga? Ou então,
em vez de um animal com partes de outro, que tal uma mistura mais essencial, como uma
criatura escamosa, quadrúpede, ágil e esguia, que ninguém sabe se é um felino ou um réptil.
Experimente combinar seus animais favoritos, ou animais que poderiam fortalecer uns aos
outros ou até animais que não combinam, mas que podem ficar inusitadamente interessantes
juntos.

E tanto quanto os animais servem de base para criar novas criaturas, qualquer monstro da
mitologia ou da ficção também serve de ponto de partida. Por que não um demônio reptiliano,
ou uma fada de fogo, ou um pégaso com quatro asas? Essas orientações são uma caixa de
ferramenta para você usar do jeito que quiser.

Como a criatividade se manifesta mais na transpiração do que na inspiração, experimente listar


dez animais que você pode usar na história, listar dez criaturas fantásticas para pegar
emprestado e usar no seu mundo e criar mais dez criaturas novas e únicas? Afinal, estamos
aqui para criar mundos fantásticos, então bote a mão na massa!
8. Artefatos

Armas ancestrais, bugigangas misteriosas, jóias lendárias e todo tipo de item mágico são
elementos comuns na fantasia. A sagrada espada Excalibur, o profano tomo Necronomicon, o
sabre de luz dos jedi são apenas alguns dos exemplos dos artefatos fictícios que instigam a
nossa imaginação. E, como tudo na escrita criativa, é sempre útil compreender como eles são
usados numa narrativa.

Artefatos e o mundo

O primeiro passo para usar — ou não usar — artefatos na sua história é decidir a importância
deles para o enredo. Nem toda espada precisa de um nome, tanto quanto nem todo
personagem precisa de um item de assinatura. Então, se for criar qualquer tipo de artefato, é
fundamental pensar em como ele vai impactar a história.

Se esse elemento não for importante, nem precisa se preocupar com nada disso — mas
também cuidado para não dar a impressão aos leitores de que um item vai ser relevante para
depois esquecê-lo. Em Witcher, por exemplo, eu lembro o nome da Roach, a égua do Geralt,
mas nem sei se a espada dele também tem nome.

Em alguns casos, os artefatos têm importância moderada. N’As Crônicas de Gelo e Fogo, por
exemplo, temos as espadas Gelo, Agulha, Garralonga, entre outras. São itens interessantes
que contribuem para a história dos personagens — Gelo é empunhada pelo soberano da
família Stark há gerações, Garralonga pertencia aos Mormont, mas foi adaptada para o
bastardo Jon Snow e Agulha é uma espada pequena, leve e letal, como Arya. Ainda assim,
nem o mundo e nem o enredo giram em torno desses artefatos — e eles podem ser destruídos
tanto quanto os personagens do Martin podem morrer.

Há também os artefatos que definem todo o mundo, a vida dos personagens e o enredo inteiro.
N’O Senhor dos Anéis, o destino da Terra-Média depende do Um Anel. E, antes do Um Anel, as
Silmarils foram fundamentais para o mundo. Na minha perspectiva individual, toda a saga da
Terra-Média é definida por seus vários artefatos.

Pense no seu cenário e na sua história em primeiro lugar e depois pense no papel que os
artefatos terão nela. Os artefatos vão ser irrelevantes, influentes ou de vital importância? A
partir daí, comece a criá-los.

A raridade dos artefatos

Quantos artefatos existem no seu mundo fantástico e como eles afetam suas histórias?
O Um Anel e a Excalibur são exemplos de artefatos únicos. Existe apenas um exemplar e
nunca existirá outro. Quem tiver um desses itens em mãos terá um destino glorioso — ou
catastrófico. Geralmente, artefatos únicos são de vital importância para suas histórias.

O Necronomicon é um artefato extremamente raro, mas não único. Artefatos raros são
especiais para a narrativa, mas não são o elemento mais importante do mundo. É possível,
inclusive, narrar histórias num mundo fantástico e não citar nenhum artefato raro — eles
continuam existindo, só não foram relevantes para aquela história. Ainda assim, quando um
artefato raro surge, ele tem o poder de definir aquela narrativa em específico.

As armas de aço valiriano d’As Crônicas de Gelo e Fogo e os sabres de luz dos jedi são
artefatos incomuns. Existem vários espalhados pelo cenário, com certeza carregar um desses é
algo relevante, mas geralmente eles não significam muita coisa para ninguém, além do
portador. A Gelo de Ned Stark foi derretida para dar vida a outras duas espadas, enquanto os
jedi já foram numerosos e influentes na galáxia, porém depois se tornaram lendas do passado.
Nesses casos, cabe ao personagem que portar um item incomum se destacar por conta própria
para então fincar seu artefato na memória do mundo.

As varinhas de Harry Potter podem ser classificadas como artefatos comuns. Todo bruxo tem
uma varinha. Elas são especiais para o resto do mundo, mas banais para qualquer um que não
for um trouxa. Você pode nomear um personagem favorito da Távola redonda, dos Mythos de
Cthulhu ou de Star Wars que nunca tenha tido nenhum artefato digno de nota. Por outro lado,
em Harry Potter, se você não tem uma varinha, você não é ninguém. Céus, até os figurantes
têm varinhas! Um artefato comum é um item interessante para os leitores, mas simples,
numeroso e talvez até banal dentro do mundo fantástico.

Assim como é arriscado ter personagens demais e/ou personagens poderosos demais, escolha
com esmero a quantidade e o poder dos artefatos do seu mundo fantástico. E falando no poder
dos artefatos...

Os poderes dos artefatos

Um artefato é mais do que um enfeite nas mãos dos personagens. Afinal, não basta dar um
nome para uma espada para que ela de fato seja especial. Artefatos são mais do que itens
mundanos em todos os sentidos.

Alguns artefatos têm poderes tão sutis, que são imperceptíveis. O que a Excalibur faz de
especial? Provavelmente a Excalibur tem as propriedades do aço valiriano — que produz
armas mais leves, resistentes e afiadas. Nesses casos, os artefatos são apenas melhores de
uma forma abstrata.

Por outro lado, alguns artefatos têm poderes evidentes. Em Harry Potter, as varinhas permitem
os bruxos a lançarem feitiços. Os sabres de luz de Star Wars cortam carne, osso e até metal —
podendo ser usados para abrir buracos nas paredes —, além de ser carregados com facilidade
na cintura. Nesses casos, os artefatos criam novas possibilidades para a narrativa de forma
semelhante aos poderes de personagens e criaturas.

Particularmente, gosto de artefatos com poderes que vão além da utilidade óbvia. A Ferroada
de Bilbo e Frodo brilha quando um orc se aproxima, algo extremamente útil, mas que não vai
dizimar automaticamente centenas de inimigos. Esse tipo de habilidade acaba sendo mais
relevante para a história e para a ambientação do cenário do que uma arma indestrutível, algo
útil em combate, mas que acaba sendo esquecível ao longo da narrativa.

Alguns artefatos precisam ser ativados para funcionar. O jedi precisa apertar um botão para
ativar o sabre de luz e o bruxo precisa dizer “eu juro solenemente não fazer nada de bom” para
desvendar os segredos de Hogwarts com o Mapa do Maroto. Novamente, esse tipo de detalhe
serve mais para dar sabor ao mundo e aos personagens do que para mover o enredo.

Talvez o atributo mais importante para a criação de um artefato é o seu nível de poder. Um
artefato pode ser útil — como uma arma afiada —, poderoso — como um anel de invisibilidade
— ou avassalador — como um caderno que mata as pessoas que tiverem seu nome escrito
neles ou joias que concedem o poder de um deus ao portador. O mais importante é
compreender que um personagem vai usar os poderes dos artefatos de todas as formas
possíveis e sempre que possível, então cuidado para não cometer nenhuma incoerência na
narrativa.

A história dos artefatos

Um artefato não é nada sem uma história. Tanto quanto seus personagens e seus cenários
precisam de histórias memoráveis para conquistar o coração dos leitores, seus artefatos vão
ser só mais alguns apetrechos sem uma história tão ou mais poderosa do que suas
habilidades.

Qual é o passado do artefato? Como, onde e por quem foi criado? Quem foram seus
portadores antes do enredo do livro começar? Qual foi a sua relevância para o mundo até
agora? Afinal de contas, qual é o legado que seus personagens estão carregando.

Ou será que o artefato vai ganhar uma história a partir do momento em que foi encontrado pelo
seu personagem? Enquanto Excalibur já estava na pedra e Gelo já havia sido empunhada por
vários Stark do passado, a Agulha foi criada de presente para Arya e pouco importa o passado
da Ferroada até Bilbo encontrá-la. Nesses casos, estamos vendo a história sendo feita em
primeira mão — literalmente.

Dependendo, o artefato tem a importância de um personagem por si só. Como dito, pode ser
que o enredo do livro seja justamente a história do artefato. Nunca li uma série de livros sobre
um artefato ou alguns artefatos transcendendo gerações de personagens. Está aí uma ideia
que seria excelente.

Apenas lembre-se que o mais importante é os leitores gostarem dos seus personagens, do
mundo e do enredo. Artefatos são elementos que podem incrementar a sua narrativa, mas
ninguém lê ficção exclusivamente por causa de objetos, por mais incríveis que sejam. Se for
usar artefatos no seu enredo, use-os para melhorá-lo, não para sublimar os outros elementos
narrativos.
9. Mapas

Antes de mais nada, compreenda que o mapa tem que servir ao seu enredo e não o enredo ao
mapa. A Terra-Média é fascinante graças à história de Thorin e sua comitiva até a Montanha
Solitário e graças à Guerra do Anel. Westeros é fascinante por causa dos personagens que
representam cada reino com suas diferentes motivações e objetivos. O mundo de Witcher não
tem mapa nem nome, mas as histórias são tão boas que a gente adora aquele… lugar. O
cenário é o palco da sua história, seus leitores vão querer conhecer o seu mundo por
consequência de gostarem dos seus personagens e as sagas que eles protagonizam.

Visão geral

Pense na história que você quer contar e onde ela se passa. É uma guerra num mundo
medieval? Uma jornada entre diferentes planetas de um sistema solar? Uma história de terror
em uma cidade fantasma? Quais vão ser as principais localidades que seus personagens vão
desbravar?

Se você gostar de planejar toda a história antes de escrever, vai ficar tentado a criar cada
esquina do mundo antes mesmo de começar o primeiro capítulo. Se você gostar de escrever
improvisando, vai ficar tentado a não criar nada e só sair escrevendo direto. Em ambos os
casos, trace as linhas gerais das localidades da sua história.

Se é uma guerra medieval, quantos reinos vão estar envolvidos no conflito? Se é uma jornada
interplanetária, quantos mundos serão visitados? Se é uma cidade fantasma, quais vão ser os
locais explorados? Não precisa descrever cada detalhe de todo o cenário, é melhor anotar as
ideias mais amplas e ir detalhando conforme as informações se tornarem relevantes para a
escrita.

Com base na história que você quer contar, defina os ambientes que vão aparecer ao longo da
narrativa. Oceanos, mares, rios, lagos, montanhas, colinas, florestas, desertos, pântanos?
Planetas terrestres, gasosos, silicatos, de diamante, de carbono, metálicos, de lava,
oceânicos? Escolas, hospitais, shoppings, prédios residenciais, igrejas? Pense na jornada dos
seus personagens, por onde eles vão passar e rascunhe a localização de cada cenário.

Uma preocupação comum dos escritores é o tamanho do mundo. Mas de que adianta definir
quantos quilômetros o continente tem de uma ponta à outra, se isso não vai ter relevância
nenhuma para a narrativa? Em vez de pensar no tamanho do mundo, pense no escopo da sua
história. A história se passa em uma casa, cidade, país, continente, planeta, galáxia ou transita
por universos paralelos? Você vai precisar de mais detalhes nas principais localidades,
enquanto que localidades menos importantes vão ter menos detalhes. Por mais que sua
história se passe em dez mundos diferentes, acho que seus personagens não vão conhecer
cada cidade de cada um dos planetas em um único livro. Pesquise na internet o mapa do Brasil
e o mapa da sua cidade e me diga qual deles é mais relevante para o seu dia a dia. Portanto,
qual é mais detalhado?

Em resumo: saiba qual é a história que você está contando e liste as principais localidades que
aparecerão nela - o que pode incluir diferentes planetas, nações, cidades e ambientes naturais.
Registre a lista num documento de texto ou desenhe num papel, o que for melhor para você.
Lembre-se que o rascunho do seu mapa não vai ser uma obra de arte exposta num museu,
então sem perfeccionismo. O primeiro passo é você enxergar com clareza o cenário da sua
história, nada mais, nada menos.

O rascunho

Depois de decidir o que você vai precisar — seja para o livro todo, seja para o próximo capítulo
— é hora de rascunhar um mapa.

Ou roubar um mapa, talvez. Sendo brutalmente honesto, em um capítulo do meu primeiro livro,
meus protagonistas invadem a base de uma guilda de mercenários. Eu simplesmente busquei
por mapas de RPG no Google e usei um de referência. Esse mapa nunca apareceu no livro e
meus personagens nem exploraram o local inteiro, então eu não precisei me dar ao trabalho de
criar um mapa do zero. No primeiro capítulo do meu terceiro livro, o protagonista explora uma
escola. Eu simplesmente usei o colégio onde estudei como referência — e novamente, meu
personagem não explorou todo o prédio. Muitas vezes, uma consulta na internet ou nas suas
memórias para ter uma noção vaga já é o suficiente.

Mas vamos supor que um castelo, uma nave espacial ou uma casa mal assombrada seja tão
importante para sua história, que você precise de um mapa detalhado. Nesse caso, é válido
você estudar mapas com temas similares para criar o seu próprio, tanto através de imagens
quanto em vídeos. O canal Shadiversity, por exemplo, faz análises de castelos fictícios com
base na história e na engenharia do nosso mundo real, é bem interessante. Ainda assim, devo
ressaltar que, se os leitores não vão ver o mapa, ele provavelmente não precisa ser muito
detalhado. Eu assisti a mais de dez filmes de Star Wars e nunca vi o mapa da Millenium Falcon
— para ser brutalmente honesto, eu fiquei curioso, pesquisei agora e voltei para continuar
escrevendo. Enfim, desenhe o seu mapa de forma que ele lhe ajude, não que lhe complique.

Leitores de fantasia gostam de mapas de cidades. Nenhuma das cidades de A Era do Abismo
ganhou um mapa próprio ainda, mas provavelmente vou providenciar um mapa para Colina
Solitária, a cidade fictícia do meu próximo livro. Particularmente, acredito que indicações como
bairro ou distrito residencial, comercial, nobre, parque etc bastam. Não vejo sentido em
registrar o nome e o sentido dos carros de cada rua, onde ficam os sinais de trânsito, a
densidade demográfica de cada área, o que exporta e importa e afins. Às vezes um detalhe ou
outro é interessante, como “tal cidade produz muito tecido e roupas”, mas não é necessário
definir cada informação mínima de todas as cidades, basta definir seus elementos mais
importantes. A cidade é fortificada? Valoriza a cultura? Tem culinária exótica? Tem minas de
carvão? Minas de prata? Os leitores vão lembrar de cada cidade pelo o que ela tem de
destaque, não por causa de cada mínimo detalhe elaborado.

A maioria das histórias precisa apenas de mapas regionais, seja o mapa de uma única nação,
seja o mapa de uma pequena porção de nações de um continente. Acredito que seja útil definir
quais vão ser as cidades e/ou nações relevantes e o que tem de interessante entre elas e aos
seus arredores. Quando os personagens foram de um lugar para o outro, vão passar por uma
floresta ou uma caverna? Ou eles precisam passar pelo centro comercial da cidade para sair
da área residencial e ir até o bairro boêmio? A viagem entre um planeta e outro é longa e a
nave precisa escolher algum planeta intermediário para abastecer? Geralmente, livros de
fantasia pedem jornadas épicas, então precisamos ser criativos nesse momento e manter
algum controle das aldeias, vilas, cidades e metrópoles que serão exploradas e também as
estradas que as conectam — ou barreiras naturais que interceptam.

Com essas informações definidas, agora pode ser uma boa hora para ter um rascunho mais
elaborado do mapa, algo que poderia ser enviado para um designer ou ilustrador como
referência para arte que vai ser criada para o seu livro, se for o caso. Particularmente, eu fiz um
rascunho de mapa no Inkarnate depois de já ter escrito o livro todo e enviei para o ilustrador,
que fez a versão que foi impressa no livro e no cartão postal de brinde da nova tiragem.
Lembre-se de que não ter um mapa para o livro — como no caso de The Witcher — é sempre
uma opção.

O mapa

Eventualmente, vai ser interessante ter um mapa mais amplo, como um mapa continental para
um mundo de espada e feitiçaria, um mapa da cidade fantasma completa para uma história de
horror, ou todo o sistema solar de uma jornada de ficção científica. A questão é que é muito
mais eficiente detalhar tantas localidades quando você já escreveu ao menos vários capítulos
da sua história, talvez depois até de já ter publicado um livro ou dois. Não corra o risco de citar
detalhes do seu mundo que depois não vão ser úteis ou podem até lhe atrapalhar futuramente.
Existem terras exóticas do outro lado do mar? Para que você vai detalhar essas terras, se você
nem terminou de explorar o cenário atual? O mapeamento é feito um passo de cada vez, não
tentando dar passos maiores que a perna.

Todos nós sonhamos em ter um mapa completo do nosso cenário. Vários continentes de um
mundo, a cidade com todos os seus arredores e até cidades próximas, toda uma galáxia, o que
for. Tanto quanto nós escrevemos palavras, que formam frases, que formam parágrafos, que
formam textos, nós criamos locais, que viram cidades, que viram nações, que viram
continentes, que viram mundos. Primeiro, a gente faz o básico bem-feito. Depois vamos
expandindo nossas habilidades.

Devo lembrar que mundos fantásticos não se limitam apenas a cidades e nações à moda
antiga. Alguns mundos fantásticos vão além e também mapeiam o que existe no subterrâneo,
dentro dos oceanos, acima dos céus e até além do mundo material. Qualquer região inóspita
para as pessoas comuns, mas relevante para a narrativa merece ser mapeada também. Um
bom exemplo é Menzoberranzan, a nação dos elfos negros de Forgotten Realms. Para os
humanos, elfos e anões do mundo de Faerûn, Menzoberranzan é tão hostil quanto Mordor é
para os habitantes da Terra-Média. A questão é que é ainda mais difícil chegar em
Menzoberranzan, porque ela fica nas profundezas, acessível apenas por uma série de túneis
cheios de todo tipo de monstro. A princípio, não é necessário mapear a cidade de um povo
maléfico. Mas quando lemos sobre a juventude de Drizzt em Menzoberranzan, seu mapa se
torna tão relevante quanto o mapa de Mordor foi quando Frodo, Sam e Gollum se aventuraram
além dos Portões Negros. O mesmo vale para as Áreas de Tormenta de Arton, para o Turvo de
Dragon Age, Draenor de Warcraft e para as regiões exóticas do seu mundo.

Tenha em mente que você não precisa de um mapa ou, no máximo, precisa do mapa da sua
história, não de todo o cenário onde sua história se passa. Em vez de buscar expandir o
cenário, compreenda o escopo da sua narrativa e crie o melhor cenário possível com o melhor
mapa para ela. Logo você vai perceber que focar pode ser ainda mais difícil — e necessário —
do que ser abrangente.

Escritores não são cartógrafos

Por fim, vou recapitular o que já foi dito para deixar claro por onde começar, onde terminar e
depois digo como ir além — ou não.

1: Compreenda o escopo da sua história; 2: Liste as localidades que serão exploradas; 3: Faça
um rascunho ou esboço do mapa, algo simples e que sirva de referência e consulta; 4: se
necessário, faça um rascunho ou esboço que sirva de referência para o ilustrador ou designer;
5: rascunhe ou esboce algumas localidades que não serão exploradas, mas que são
relevantes.

Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante nada lhe impede de sentar e escrever
sobre o seu mundo livremente. É perda de tempo e de energia criar vários detalhes que não
vão aparecer no livro? Por um lado, provavelmente sim. Por outro, é sempre bom exercitar a
criatividade.

Eu já senti que estava ficando repetitivo na escrita, fiz uma pesquisa e anotei rascunhos para
elaborar melhor a cidade que estava criando, e então me empolguei e criei muito mais do que
apenas uma cidade. A criatividade pode se manifestar de infinitas formas e a pior coisa que
podemos fazer é limitá-la. A melhor coisa que podemos fazer é focá-la no que for mais eficiente
para a nossa carreira. Criar cenários fantásticos é divertido, afinal de contas. Então crie à
vontade. Só lembre-se que escrever sua história é mais importante do que criar a enciclopédia
sobre o mundo e que detalhar demais e sem necessidade pode ter consequências negativas.
Antes de começar a falar sobre a relação entre o mundo fantástico e a narrativa do seu livro,
quero salientar que Tolkien não foi um mestre em mapas e está tudo bem com isso. Mordor é
cercado por cordilheiras que fazem não um, mas dois ângulos retos ao seu redor. Isso não
existe no mundo real. E está tudo bem. Eu já li uma análise de um mapa que ele desenhou de
uma cidade que era dividida por um rio, que explicava que cidades não se dividem de modo
uniforme nesse tipo de localidade. Em vez disso, as cidades crescem mais para um lado do rio
e só depois se expandem para o outro. E. Está. Tudo. Bem! E daí que o mapa da Terra-Média
não é perfeito dentro das regras do nosso mundo real? Quem se importa? Não precisa ser
perfeccionista, ninguém aqui é doutor em geografia — ou quase ninguém, ao menos. Invista
seus esforços e sua criatividade no que vai melhorar a sua história, não em perfeccionismo
desnecessário.
10. O mundo e a narrativa

Uma vez, um maçom me disse algo interessante: o mundo é uma cebola, tem camadas. A
princípio eu ri, mas depois entendi. Por exemplo, eu já trabalhei numa loja em shopping. Antes,
eu conhecia apenas a camada dos consumidores, que entram para comprar e se divertir.
Depois, conheci a camada dos funcionários, que fazem tudo funcionar e têm acesso a áreas
restritas. E com certeza existem mais camadas que não cheguei a conhecer. Todos os lugares
são assim. Na escola, alunos, professores e demais funcionários enxergam camadas
diferentes. Em um templo, fiéis e sacerdotes enxergam camadas diferentes. Na praia,
banhistas, vendedores ambulantes e salva-vidas enxergam camadas diferentes. O mundo é
uma cebola. E o cenário do seu livro também.

O que fazer antes de escrever

Se a sua história se passa em uma única localidade, espera-se que os personagens conheçam
várias camadas desse lugar, seja um reino medieval, uma casa mal-assombrada ou um planeta
alienígena. Se a sua história se passa em vários lugares, seus personagens vão conhecer
apenas as camadas superficiais de cada lugar e talvez conheçam algumas camadas mais
profundas dos pontos mais importantes. Se houver um lugar comum ao longo da narrativa,
lembre-se de apresentar novas camadas e/ou mudanças no ambiente para torná-lo mais
interessantes.

Alguns escritores criam o cenário de acordo com a narrativa. Pensam nos personagens e no
enredo e só depois começam a criar o mundo ao redor deles. Não tem problema em já ter
elenco e enredo antes de ter o cenário, só é indispensável que o cenário seja criado. No
mínimo, você precisa escrever o novo capítulo do livro e depois anotar quais elementos do
cenário foram apresentados para que você não se esqueça do que já apresentou ou não e
também não se contradiga ao longo da narrativa. Improvisação é uma coisa maravilhosa.
Inconstância é outra coisa — e é péssima.

E alguns escritores criam a narrativa de acordo com o cenário. A ideia para um novo mundo
fantástico surge. Muitas vezes a partir do “e se...?”. E se Sauron vencesse a Guerra do Anel? E
se os Targaryen ainda dominassem Westeros? E se Geralt conseguisse dar origem a toda uma
nova geração de bruxos? Também não tem problema em já ter o cenário antes de ter o elenco
e o enredo, só é indispensável que você escreva a história tanto quanto a enciclopédia do
mundo. Confira tudo o que já criou, pense nos personagens que você pode criar, nas aventuras
que eles podem viver e onde essas aventuras vão se passar. E escreva! Logo você vai
descobrir que não detalhou tudo o que precisa e que também detalhou muita coisa que não vai
usar tão cedo.

Em todos os casos, a prática leva ao aperfeiçoamento. No começo, esse diálogo entre criar o
mundo e escrever a história pode ser desafiador. Foque no resultado que você busca e
perceba qual é o ritmo que funciona melhor para você. Desenvolva seu próprio método. Crie
seu mundo e conte as suas histórias do seu jeito.

O que fazer enquanto escreve

Perceba também como o cenário muda conforme você escreve a história. Você vai ter novas
ideias enquanto narra, vai perceber que nem todas as ideias eram boas e as ações dos seus
personagens vão mudar o que você havia estabelecido. Esteja preparado para essas
mudanças. E mantenha tudo registrado para poder consultar com facilidade.

Algumas mudanças podem ser menores. Você planejou um cenário para um capítulo do livro,
mas o vendedor foi assassinado. Não cometa a gafe de esquecer dessa morte e trazê-lo de
volta posteriormente. Outras mudanças vão ser mais amplas. E se o governante local morrer?
Isso pode afetar a vida de todos os cidadãos e até a política externa. Com certeza esse tipo de
mudança merece ser anotada e seus efeitos precisam ser nítidos nos capítulos subsequentes.
E podem haver também mudanças cósmicas. E se uma entidade poderosa e influente morrer?
O mundo vai mudar em um nível essencial, talvez cataclísmico. Nada vai ser como era antes.

Além das consequências das mudanças no cenário durante a narrativa, também é interessante
mostrar aos leitores que certas mudanças ocorreram longe dos olhos dos seus protagonistas.
Seus personagens podem procurar uma figura política e descobrir que ela já não ocupa mais o
cargo há meses. Ou podem chegar numa cidade e encontrá-la muito diferente da última vez em
que estiveram nela. Um personagem secundário pode trazer notícias de terras distantes. Essas
mudanças dão a impressão de que o cenário é dinâmico e vívido.

E como eu já disse e preciso repetir: mantenha as mudanças registradas. No mínimo, tenha um


arquivo de texto detalhando como o seu cenário era no começo e como ficou no final do seu
livro, traçando os detalhes mais importantes. Um registro excessivamente detalhado poderia
atrapalhar mais do que ajudar — na verdade, um registro excessivamente detalhado é um
indício de que há algo errado acontecendo. O que importa é você não se enrolar e se perder
entre o seu cenário e a sua narrativa. Falando nisso...

O que não fazer

Eu sempre digo que explicar o que não fazer é tão importante quanto explicar o que fazer.
Então aqui vamos nós.

O cenário não pode ser estático. Se nada mudar no cenário entre o começo e o final, isso
significa que seus personagens não o exploraram a fundo — e, consequentemente, seus
leitores também não — ou que seus personagens não deixaram suas marcas no mundo e
possivelmente não tiveram agência na história. Parte da Terra-Média mudou depois da Batalha
dos Cinco Exércitos em O Hobbit, tanto quanto A Cidadela depois da jornada de Max e da
Imperatriz Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria e toda a Via Láctea depois das muitas
missões do Comandante Shepard em Mass Effect. A mudança é inevitável. Abrace-a.

O cenário não pode ser inconstante. O excesso pode ser tão ruim quanto a falta. Se o cenário
mudar o tempo todo, os leitores não conseguem memorizar tantas informações e nem se
conectar às localidades. A cada livro da Saga Harry Potter, conhecemos novas facetas de
Hogwarts e alguns detalhes mudam — como o professor de Defesa Contra as Artes das Trevas
—, mas não mudam todas as regras, toda a arquitetura, ou todos os professores. O sentimento
de familiaridade e constância ainda são importantes.

O cenário não pode sobrecarregar a narrativa. Ninguém vai ao teatro para ver o palco, e sim os
atores. Da mesma forma que os leitores se interessam primeiro pelos personagens e depois
pelo enredo e pelo cenário. Se os leitores receberem muito conteúdo sobre o cenário em
detrimento ao conteúdo sobre personagens e enredo, provavelmente vão se cansar e
abandonar o livro. Portanto, apresente seu cenário na prática, através dos seus personagens e
considere cortar informações que não vão ser relevantes para a narrativa.

Contar uma história é interagir com um mundo, apresentá-lo, explorá-lo e mudá-lo. Dá trabalho,
mas vale a pena. Se você fizer direito, é claro.
11. Nomes fantásticos

Para muitos, nomes são o elemento mais desafiador da escrita. Há quem use nomes do mundo
real, há quem invente nomes seguindo alguma lógica interna, há quem feche os olhos e soque
o teclado. Como de costume, vou traçar algumas linhas gerais sobre esse tema.

Os nomes mais relevantes são os de personagens, localidades, criaturas, entidades e outros


elementos específicos da sua narrativa. Recomendo que haja alguma constância nos nomes.
Se seus personagens se chamam Regdar, Ember, Ezelore e Kremorn, um João e uma Camila
no meio deles ficaria destoante. E quando for usar nomes reais, lembre-se das nacionalidades.
Se um personagem tem um nome de origem grega, seus parentes também vão ter nomes de
origem grega — o mesmo vale para origens latinas, anglo-saxônicas, nipônicas etc. Liste os
nomes dos seus personagens e avalie se eles soam harmônicos entre si e depois faça mesmo
com os nomes das localidades, criaturas, entidades e tudo mais. Harmonia é o fator mais
importante na hora de escolher os nomes.

Além da harmonia, a sonoridade também é importante. Por exemplo, Sauron soa ameaçador,
Frodo não. Seja lá qual for o método que você usar para escolher os nomes, avalie se ele
agrega uma sonoridade condizente com o papel desse personagem, localidade, criatura etc.
Aragorn, Orion e Geralt combinam com nomes heróis, tanto quanto Sauron, Crânio Negro e
Cahir aep Ceallach combinam com nomes de vilões. O que vem em mente ao ouvir sobre Porto
Real, urso-coruja e Uraxthor? A propósito, eu fortemente recomendo que você não use nomes
em inglês porque eles são muito batidos e soam bem apenas em filmes e quadrinhos. Ler
Black Skull teria bem menos força do que Crânio Negro num livro.

Não importa se os nomes vieram do latim arcaico ou de alguma alucinação da sua cabeça, eles
precisam ter significado. Sempre que apresentar um nome exótico, cite um significa, um título
ou um apelido para aquele elemento. Nimblusgan, a Cidade da Magia. Arkardhar, a Espada
dos Mortos. Bhorcurius, o Lorde dos Suínos. Isso ajuda os leitores a sentirem que esse
elemento tem significado — e, portanto, que todo o seu mundo também tem significado.

Particularmente, prefiro nomes analógicos do que nomes inexistentes no nosso mundo. Em


Westeros, temos o Tridente, o Gargalo, Jardins de Cima, a Muralha, Garralonga, Lamento da
Viúva. Na Terra-Média, temos Rohan, Arnor, Lórien, Nauglamír, Anduril. Quantas vezes você
não esqueceu o nome do Thorin e disse apenas Escudo de Carvalho? Crie o seu mundo da
forma como você preferir, mas cuidado para não alienar seus leitores com um monte de nomes
que não vão fazer sentido para eles.

Para ajudar, busque pelo nome que você inventou no Google para saber se já existe e o que
significa. Pode ser que você pense que esteja criando um nome e, na verdade, está apenas
resgatando da memória alguma palavra em outro idioma que ouviu em alguma aula de história.
Pode ser que você de fato inventou um nome, mas por pura coincidência ele exista em outro
idioma. E se esse nome significar “eu gosto de tirar a roupa e dar cambalhotas no asfalto de
madrugada”? Não sei você, mas eu preferiria repensar esse nome.

Experimente criar nomes monossílabas ou dissílabas. Bilbo, Ned, Conan, Draco, todos são
fáceis de lembrar e se encaixam sob medida tanto nas personalidades em suas narrativas
quanto nas memórias do leitor. A simplicidade faz mágica.

Eu gosto de jogar palavras no Google Tradutor e testar vários idiomas diferentes. Miere, uma
ladina, significa formigas em africâner. Miere é uma omodé, raça pequenina, que significa
criança em iorubá — não confundir com erê. Turninn, um reino cheio de torres, significa torre
em islandês. Até Draco e Gladius, meus protagonistas, significam dragão e gládio em grego. Às
vezes, as soluções mais práticas são as mais eficientes.

Como todos os outros elementos, o que importa para nomes é que eles atendam aos seus
gostos pessoais, às necessidades do seu mundo fantástico e que sejam interessantes aos
seus leitores. Leve o tempo que for necessário para escolher cada nome para o seu livro. Crie
seu próprio método e pratique até o esforço se transmutar em intuição.
12. Destilando inspirações

Alguns autores acham que é impossível criar e que tudo é cópia, outros se acham
magicamente originais sem enxergar o quanto copiam, mas o que separa as crianças dos
adultos é a compreensão de que ambos estão equivocados. A cópia é sempre um risco e a
originalidade é sempre um desafio. Portanto, nosso dever é encarar os fatos e nos esforçar
para fazer o nosso melhor todos os dias.

A diferença entre cópia e inspiração

Eu acredito que cópia é quando o autor ou autora só pega a ideia e replica em seu próprio
trabalho — Tolkien já escreveu que os elfos são a raça mais antiga do mundo, precisamos criar
algo mais autêntico do que isso. Inspiração é quando o autor ou autora acrescenta um
diferencial interessante à ideia que está usando em seu próprio trabalho — como Anne Rice,
que acertou em cheio quando usou a abordagem dos vampiros charmosos nos tempos
modernos.

Originalidade vem através de leitura de fontes diferentes, de muita escrita e também de muita
insistência. Ao ler várias fontes diferentes, temos uma noção melhor do que gostamos, do que
não gostamos e começamos a pensar “e se fosse desse outro jeito?” — é inevitável ter ideias
enquanto lemos. A escrita é o momento de tentativa e erro dessas ideias, quando damos forma
ao nosso conteúdo e percebemos que nossas ideias podem estar incompletas, parecidas
demais com o que já lemos ou talvez boas o suficiente. E a insistência é quando não nos
conformamos por não termos tido uma ideia original o suficiente ou simplesmente tomamos
gosto pela criatividade e buscamos ainda mais. E digo por experiência, as melhores ideias não
vêm na cama olhando para o teto, elas vêm encarando a tela do computador com o texto
incompleto, elaborando uma ideia nova ou revisando uma ideia já escrita.

E como ter certeza de que não estamos copiando? O primeiro passo sempre é a aceitação.
Todos nós já copiamos e ainda vamos copiar muito. A solução não é evitar a cópia e sim
encará-la e modificá-la, amadurecê-la e aprimorá-la até ela se tornar uma ideia original.
Quando a ideia vem, a gente primeiro escreve e depois avalia se é autêntica ou cópia. Se for
autêntica, é só seguir em frente. Se for cópia, podemos elaborá-la melhor ou simplesmente
engavetá-la até mais ideias surgirem. Como eu disse, muita escrita e também muita insistência.

O fato é que a gente quer escrever o melhor livro possível, mas nosso primeiro livro não vai ser
o nosso melhor livro. Vamos aprender e melhorar muito com a prática, e isso é uma boa notícia.
O segredo do sucesso é fazer o nosso melhor hoje para que o próximo seja melhor ainda. Mas
temos que focar no verbo “fazer”. Arregaçar as mangas e botar a mão na massa. A criatividade
está diretamente relacionada à prática. Então busque suas inspirações e escreva suas ideias.

Os três passos para a originalidade


Todos os artistas traçam uma longa jornada entre a inexperiência e a originalidade, sejam
músicos, ilustradores ou escritores. Todos precisam estudar e praticar muito em busca do
aperfeiçoamento. E todos dão três passos nessa jornada.

O primeiro passo de todo artista é inevitavelmente a cópia. Músicos aprendem a tocar um


instrumento e a cantar através de covers. Desenhistas aprendem anatomia, luz, sombra e
cores através da cópia de ilustradores consagrados. As primeiras ideias de todos os escritores
sempre são similares demais ao que eles já leram. Bebês aprendem a andar e falar imitando os
pais e alunos nas escolas estudam através de exemplos e da ajuda dos professores e só
depois começam a fazer exercícios por conta própria. Esse é o processo natural de aprender
algo novo. Repense tudo o que você já escreveu e/ou o que ainda quer escrever, seja honesto
consigo mesmo e perceba que boa parte é cópia. Então, o que fazer?

O segundo passo é buscar a autenticidade. Ser autêntico é inserir o seu toque pessoal na sua
criação. Pegar a cópia e recriá-la do seu jeito, talvez o jeito que você mais goste, talvez de um
jeito que seja só seu. É como um músico que faz um cover, mas altera a música ao próprio
estilo e como um ilustrador que reproduz uma arte com seus próprios traços. Supondo que
você vá escrever sobre elfos, vampiros ou robôs, qual é o toque pessoal que você vai dar a sua
criação? Os elfos podem ser entidades que transitam entre o mundo material e o espiritual. Os
vampiros podem estar eternamente em busca de algo conectado às suas vidas passadas. Os
robôs podem enxergar as máquinas como bichos de estimação, da mesma forma que humanos
enxergam cachorros e gatos. Não tente reinventar a roda. Comece compreendendo o que já foi
feito e modifique ao seu próprio gosto.

O terceiro passo é alcançar a originalidade. É difícil, não acontece todo dia e está tudo bem
com isso. Afinal de contas, da Vinci só fez uma Monalisa e Queen só fez um Bohemian
Rhapsody. Lógico que eles têm outras obras espetaculares, mas repare como eles produziram
centenas de pinturas / músicas, mas apenas algumas são obras-primas consagradas. Sobre a
originalidade na escrita: o que será que livros como Crônicas de Gelo e Fogo e It: A Coisa têm
de original? Mundos medievais e monstros extradimensionais não foram criações do Martin e
do King. O fato é que esses autores foram autênticos em vários aspectos — e já haviam escrito
vários outros livros antes. Martin foi autêntico ao criar as casas nobres de Westeros, ao se
inspirar em guerras reais da Europa Medieval, ao criar um elenco tão vasto e ainda assim tão
distinto. King foi autêntico ao abordar sua história em dois momentos da vida dos seus
personagens, ao criar a cidade de Derry e ao misturar o conceito de horror cósmico com a
imagem de um palhaço do mal. Parando para pensar, eles não criaram quase nada de novo.
Mas eles foram autênticos em muitos aspectos ao ponto do conjunto da ópera ficar original.

Em todos os casos, quanto mais leitura e mais escrita, melhor. Não ler para “evitar a influência”
é como querer correr sem respirar ou querer que uma planta dê frutos sem regá-la. É muito
comum, inclusive, escritores não lerem na vã esperança de conseguirem ser mais originais e
depois descobrirem que outros autores já tiveram ideias muito similares antes. Quanto mais
leitura, melhor, até para você ter mais referência do que já foi feito e ter mais ideias do que e/ou
de como não foi feito ainda. Leia muito. E escreva muito também.

Cópia, autenticidade e originalidade. Esses são os três passos. Se você ainda não escreveu
nada, pense no que você quer copiar, em como você pode tornar essa ideia autêntica e
pratique até alcançar a originalidade. Se você já escreve, avalie o que já produziu e identifique
o que fez de cópia, de autêntico e/ou de original. Como disse Aristóteles: “Nós somos aquilo
que fazemos repetidamente. Excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito.”

Como filtrar e organizar ideias

Para ser sincero, eu não sou um exemplo de pessoa organizada — nem de longe. Nesse exato
momento, tenho mais de 40 abas abertas no meu navegador, livros espalhados pelo quarto e
um bom bocado de projetos em andamento. A minha tática para me manter produtivo é filtrar
minhas ideias, organizar um pouco e produzir muito. Vou falar sobre essas três etapas a seguir
e você decide o quanto de energia vai dedicar a cada uma dela, mas lembre-se que as três são
muito importantes.

Pessoas criativas costumam ter muitas ideias e precisam filtrá-las de alguma forma. O mais
importante de tudo é escolher uma ideia principal para se dedicar a ela e essa ideia deve ser a
sua favorita, aquela que você não vai enjoar nunca, aquela que faz o seu coração cantar.
Começar uma carreira literária é muito desafiador e sinceramente pouco importa qual gênero
está na moda ou não. A capacidade do escritor ou escritora de apresentar seu livro com paixão
é muito mais relevante do que qualquer modismo. Então escreva a ideia que lhe empolgar
mais. E as outras ideias? Talvez você consiga inserir algumas delas de forma menor na sua
ideia principal, como eu expliquei anteriormente quando falei sobre gênero e subgêneros. E vão
ter também aquelas ideias que vão precisar ficar de lado por tempo indeterminado, geralmente
aquelas que são legais, mas não o suficiente para fazer você parar sua vida para escrevê-las.
Afinal, cada escolha é uma renúncia.

Depois de filtrar quais ideias fazem seu coração cantar, organizá-las pode ajudar a sua
produção. Se você gostar de usar material físico, separe pastas e/ou cadernos diferentes para
guardar seus trabalhos. Se você preferir tudo digital, faça o mesmo no seu HD ou — de
preferência — num drive virtual — eu uso o Google Docs. Um bom exercício é escrever a
enciclopédia do seu livro, assim você vai começar a visualizar melhor e a tornar concreto as
ideias que flutuam na sua mente. Particularmente, eu me organizo melhor em pequenas
escalas: sempre que escrevo um conto ou capítulo, listo os tópicos e cenas que serão
abordados antes de começar a escrever de fato. Para mais conteúdo sobre como planejar sua
escrita, recomendo que leia o Compêndio de Escrita Criativa, que tem um artigo inteiro sobre
isso.

Por fim, produzir é o que realmente importa. Acredito que não exista nenhum segredo ou
metodologia para botar a mão na massa e dar vida às nossas ideias, mas sim uma questão de
comprometimento. Você quer o seu livro escrito, não quer? Então comprometa-se a cumprir
todas as etapas, uma de cada vez, até alcançar seu objetivo. Filtre suas ideias, organize-as e
escreva. Se precisar retornar a alguma das etapas, retorne, sem problemas. Mas não
negligencie nenhuma, especialmente a produção. Com certeza você tem ideias excelentes que
merecem ganhar vida.

Então mão na massa.


13. Clichês X Arquétipos

Ninguém quer ser clichê, mas todo mundo adora alguns clichês. Paradoxo ou hipocrisia?
Nenhum dos dois, se parar para analisar bem. O X da questão está na relação entre clichês e
arquétipos, na diferença entre os dois conceitos, o efeito que cada um causa nos leitores e em
como nós podemos abordar ideias e temas clássicos sem sermos apenas mais do mesmo.

A diferença entre Clichês e Arquétipos

Clichê é algo previsível e cansativo. É o personagem que trata todo mundo mal porque tem um
passado sombrio, é o mundo com humanos, elfos, anões e nada mais, é o momento em que o
livro faz suspense sobre uma possível morte do herói só para revelar que ele está vivo na
página seguinte. Clichê é não apresentar nada de novo aos leitores.

Arquétipo é basicamente como a mente humana compreende o mundo. Para conseguir


armazenar uma grande quantidade de informações, compreender o mundo ao nosso redor e
sobreviver a possíveis ameaças, nossa mente aglomera informações. Por isso sabemos que
animais de certa coloração são venenosos, que um céu escuro precede a chuva e que um
casal que se detesta tem chances altas de se apaixonar em uma história. Quantas vezes você
não conversou com seus amigos e/ou amigas sobre seus pais e encontrou inúmeras
semelhanças?

O clichê é o uso de um arquétipo de forma rasa. Uma princesa pode ser só uma donzela
idealizada, ou pode ser uma líder de rebelião, como a Leia de Star Wars, ou pode ser uma irmã
zelosa que sofre por não saber controlar os próprios poderes, como a Elsa de Frozen. É quase
impossível contar uma história sem usar alguns arquétipos, o problema é quando a história não
oferece nada de autêntico ou original.

Por que clichês são ruins

Os leitores querem, acima de tudo, uma experiência satisfatória. Ao olhar a capa e ler a
sinopse de um livro, eles já identificam alguns elementos que podem interessá-los. Mas o que
ninguém quer é um livro que só ofereça esses elementos óbvios e repetitivos.

Um dos fatores que cativam os leitores é a curiosidade. A partir do momento que o leitores
sentem que os personagens, cenário e/ou enredo só oferecem clichês, a curiosidade morre,
junto a qualquer interesse e empolgação. Quando a Leia pegou um blaster e lutou ao lado de
Luke e Han, os fãs ficaram curiosos para conhecer melhor essa princesa. Quando Elsa se
isolou e ergueu um castelo de gelo, os fãs ficaram curiosos para saber qual seria o destino de
Arendelle. Se uma princesa se limita a ser uma donzela idealizada, os leitores vão sentir
saudades da Leia e da Elsa.
Lembre-se que, se os seus leitores quiserem uma experiência óbvia e repetitiva, eles vão
apenas reler os clássicos em vez de ler um livro sem criatividade. Seu livro precisa ir além dos
arquétipos para não ser clichê.

Por que arquétipos são bons

Como seria contar uma história sem nenhum arquétipo? Até dá para não usar os principais,
como o herói, o mentor, a donzela e o trapaceiro. Mas nenhum? Você se interessaria por uma
história, se não se identificasse com nenhum elemento nela?

Além da curiosidade, os leitores precisam sentir conexão. Leitores se conectam com heróis,
mentores, donzelas e trapaceiros porque gostariam de viver suas aventuras, porque têm traços
de personalidade em comum e/ou porque conhecem alguém muito parecido ou parecida com
esses personagens. Ao identificar os arquétipos, os leitores sentem uma sensação de
familiaridade, botam um pé na zona de conforto e geram empatia pela narrativa. Você nunca
falou para um amigo ou amiga “esse personagem é a sua cara”?

O pulo do gato é não parar o arquétipo. Adicione características autênticas aos seus
personagens, cenários e enredos. O herói pode ter uma fobia específica, as árvores de uma
floresta podem ser feitas de pedra ou ferro, o anel mágico pode ser, na verdade, a auréola de
um anjo. Bote suas ideias no papel e avalie se há algo de autêntico nelas. Para as ideias que
ainda estão clichês, dê atenção e esmero a elas até conseguir lapidá-las ou recriá-las. Com
esforço e prática, um clichê pode se transmutar em originalidade.

E qual é a dose certa?

Se for clichê demais, os leitores bocejam e fecham o livro. Se for original demais, os leitores
não sentem familiaridade e não se conectam à história. Então, quase é a dose certa entre
arquétipos de originalidades?

Artes não são como ciências exatas, em que conseguimos criar fórmulas com exatidão. Se
pudéssemos, eu sugeriria algo entre 30% a 40% arquetípico e 60% a 70% original ou 60% a
70% arquetípico e 30% a 40% original. Ou seja, o problema está nos extremos. É bom criar um
ou alguns personagens desvinculados de arquétipos, só não dá para ser o elenco inteiro assim.
Da mesma maneira que pode ser bom criar um personagem completamente arquetípico, desde
que ele seja exceção à regra.

Não tente dosar com qualquer tipo de precisão, apenas siga sua própria criatividade. Ideias são
como pedras preciosas brutas, que precisam de polimento. Rubis, esmeraldas e safiras podem
ser esculpidos de infinitas formas, o que faz toda a diferença para o joalheiro e seus clientes. E
você? Como quer que a sua joia fique no final, igual a centenas de outras ou quer algo único e
exclusivo?
Conexão e curiosidade

O arquétipo oferece conexão e a originalidade oferece curiosidade. Ambos são muito


importantes para todas as histórias. Sempre escreva suas histórias do seu jeito, se possível
esquecendo essa lição na hora de botar as ideias no papel. Mas na hora de revisar, avalie
como você usou os arquétipos e se sua história está oferecendo conexão e curiosidade aos
seus leitores.
14. Narrando o mundo

Criar o seu mundo fantástico é fundamental, mas não esqueça que a história é mais
importante. Quem lê uma enciclopédia da Terra-Média antes de ler O Senhor dos Anéis, ou
Animais Fantásticos e Onde Habitam antes de Harry Potter? No fim das contas, tudo o que
você cria sobre o mundo vai servir para usar na sua narrativa, por isso é importante apresentar
o mundo da melhor forma possível ao longo do enredo.

O que não fazer

Antes de mais nada, não faça infodump! Infodump é explicar algo demais ao ponto de ficar
cansativo e chato. Seja um diálogo que mais parece uma dissertação de final de curso ou um
longo parágrafo que parece retirado de um manual de instruções, o infodump faz mais leitores
fecharem o livro do que qualquer outra coisa. Para evitá-lo, use a única regra fundamental da
escrita criativa: mostre, não explique.

Quando for apresentar o seu mundo, não escreva de forma vaga ou ambígua. Eu tenho um
amigo que escreveu uma história onde a personagem tinha um poder que às vezes funcionava,
às vezes não, o que acabou gerando um deus ex machina. Quando eu conversei sobre, ele me
lembrou que havia explicado que a personagem não tinha controle sobre seus poderes, o que
continuou insatisfatório. Por exemplo: o Homem-Aranha não tem controle sobre o
sentido-aranha e o Demolidor não tem controle sobre seus poderes de radar, mas eles não
falham e, quando falham, é porque tem algo de errado acontecendo. Não ter controle sobre o
poder é uma coisa, o poder ser volúvel e/ou errático é outra. Não deixe seus leitores com a
impressão que as regras do seu mundo funcionam pela conveniência da narrativa.

Você também não precisa explicar todas as regras do seu mundo. Como disse o Pequeno
Príncipe, "o essencial é invisível aos olhos". Lembro de abrir um livro que começava
literalmente com uma aula, uma professora ensinando aos alunos a história do mundo. Li o
prólogo, fechei e nunca mais abri o livro. Talvez um dia eu dê mais uma chance a essa leitura,
mas o fato é que essa cena introdutória me despertou zero interesse.

Experimente ler o prólogo e/ou o primeiro capítulo de 3 livros e compreenda qual lhe interessou
mais, qual lhe interessou menos e o porquê. Experimente também listar seus mundos
fantásticos favoritos e refletir como que os autores e autoras apresentaram seus cenários ao
longo dos livros. Isso vai ajudar a compreender o que funciona e o que não funciona.

O que fazer

Voltando à regra de “mostre, não explique”, eu prefiro dizer: mostre primeiro, explique depois.
Não enfie uma página inteira falando que dragões voam e podem cuspir fogo, eletricidade ou
vapor congelante, faça um dragão de fato aparecer voando e cuspindo fogo. Durante ou depois
da cena, até caberia uma citação de que existem outros tipos de dragões com poderes
diferentes, por exemplo. Ou, em vez dessa citação, um outro dragão diferente poderia aparecer
em outro momento, sem nada ser explicado, apenas mostrado. Você provavelmente vai
precisar explicar algumas coisas, mas é muito melhor que os leitores entendam através de
amostras e explicações do que apenas explicações. Em vez de apenas parágrafos
dissertativos, divida a explicação entre diálogos, descrições, narração e também um pouco de
dissertação quando necessário.

Lembra do tópico sobre regras mundanas, exóticas, raras etc? É recomendável que os leitores
compreendam as regras mundanas do seu mundo no começo da história, conheçam algumas
regras exóticas no meio e se deparem com uma ou duas regras raras no final. Esse ritmo daria
tempo para os leitores absorverem e degustarem cada nuance do seu mundo em seu devido
momento.

Quando apresentar o seu mundo aos leitores, crie um ponto de vista imersivo e cativante,
sempre priorizando a prática em vez da teoria. Pense em como os seus personagens vão
explorar o seu mundo, como vão compreendê-lo e como reagirão diante das suas descobertas
e pense também em diferentes cenas que possam evidenciar cada detalhe do seu mundo de
forma criativa. O que importa é a jornada dos leitores através das páginas do seu livro.

Exemplos práticos

Para elucidar, citarei a seguir alguns livros que oferecem cenas excelentes para nos inspirar.
Todos são brasileiros e recentes, de 2019 em diante, para termos a literatura fantástica
nacional e contemporânea como referência.

Em A Deusa no Labirinto, Karen Soarele narra uma invocação épica que eu nunca havia lido
em nenhum dos livros da saga. A autora não explica exatamente como essa invocação é feita,
quais as suas condições ou consequências, mas ela narra todo o ritual de invocação, a
chegada da entidade invocada e suas ações. Os leitores aprendem como aquela entidade em
específico é invocada e como ela se comporta sem que nada seja explicado. Ou seja, Soarele
dividiu a explicação entre diálogos, descrições, narração, sem nenhuma dissertação, tudo na
prática. Quando quiser explicar algo, foque no que for simples ou extremamente necessário,
sempre de forma espontânea e prazerosa para os leitores.

Em Santo Guerreiro: Roma Invicta, Eduardo Spohr apresenta algumas cidades do Império
Romano. Lida e Antioquia são as duas mais detalhadas, pois são onde se passa boa parte da
narrativa, então o autor aproveita para apresentar o povo, a alta classe, sacerdotes de várias
religiões, a dinâmica do comércio e diversos elementos, tudo ao longo de vários capítulos.
Outras cidades são apresentadas de forma mais resumida, então Spohr foca em uma visão
geral dos diferentes tipos de pessoas pelas ruas e em poucas cenas apresentando os
costumes locais. Quanto mais capítulos seu elenco passar numa localidade, mais seus leitores
poderão conhecê-la.
Para finalizar, em A Flecha de Fogo, Leonel Caldela apresenta todo um continente novo e
completamente exótico, diferente de tudo o que já lemos antes. Em primeiro lugar, o
protagonista é um humano, como eu e você, então tudo é novidade e tudo precisa ser
explicado e compreendido, o que nos ajuda a acompanhar a história. Segundo, o autor narra
como a visão de mundo e a lógica do protagonista não se aplicam a este novo continente,
então ele vai se acostumando aos poucos com os lugares, os povos e os costumes — e os
leitores também. E, em terceiro, Caldela faz excelente uso do vocabulário, explicando que o
conceito de “cidade” é grosseiro para definir as localidades que seu protagonista explora,
apresentando ferramentas e armas que não existem no mundo real, sempre dosando esse
estranhamento e a compreensão das novidades à jornada do protagonista. Se você quiser
apresentar algo muito diferente do nosso mundo real, se prepare para fazer bom uso do
vocabulário e para conduzir seus leitores lado a lado do seu protagonista no seu cenário e
enredo ao mesmo tempo.

E lembre-se que você vai precisar dedicar o mesmo esforço e esmero necessários para criar o
mundo fantástico na hora de botar a mão na massa e escrever o seu enredo.
15. Exercícios práticos

A teoria é importante para compreendermos a prática, mas nada existe sem a prática. E é
através da prática que melhoramos a nossa escrita de verdade. Um escritor ou escritora que só
leu um texto teórico e escreveu dez contos terá aprendido mais do que quem leu cem ou mil
teorias e só escreveu um conto. Então, para botarmos a mão na massa, proponho três
exercícios práticos.

Mas antes, vamos resumir quais são os elementos que formam um mundo fantástico para
usarmos nos exercícios.

Os elementos gerais são: conceito, geografia, política, tecnologia, magia, povos, nações,
cidades e localidades de destaque, principais criaturas, principais eventos históricos, entidades
e cosmologia.

Os elementos das nações, cidades e localidades são: clima e relevo, sistema político, recursos
e riquezas — incluindo tecnologia e magia — grupos de habitantes, história, fé local, ameaças
internas e relação com outras nações, cidades e distritos.

Os elementos dos povos são: quais são povos padrões e exóticos, quais são seus subgrupos,
quais são seus inimigos, quais atributos clássicos foram usados neles, como eles se encaixam
nesse mundo fantástico e quais os personagens de destaque desses povos.

E os elementos das criaturas são: origem, propósito, forças e fraquezas, habitat e ecossistema.

Com isso em mente, vamos aos exercícios.

Análise de mundos fantásticos

Antes de sair escrevendo sobre o seu mundo, eu recomendo que você analise os mundos
fantásticos que lhe inspiram. Analisar mundos fantásticos ajuda a compreender o que de fato
cativou o seu interesse e garantiu um espaço nas suas memórias e no seu coração, ajuda a
compreender a arte da geoficção e também a ter novas ideias para o seu próprio mundo.

Primeiro, liste ao menos 3 ou 4 livros do mesmo subgênero que você escreve, 3 ou 4 livros de
outros gêneros e subgêneros e 3 ou 4 filmes, séries, jogos etc que possam ter alguma sinergia
com a sua obra.

Para cada obra escolhida, faça um resumo com todos os elementos descritos anteriormente,
cada tópico com uma linha no mínimo e cinco linhas no máximo.
Analise no mínimo três mundos fantásticos e perceba como sua compreensão sobre geoficção
vai se expandir. Depois de analisar dez mundos, você já vai estar com os olhos e a mente
muito mais afiados.

Criação de localidades fantásticas

Criar todo um mundo fantástico é um trabalho que leva anos e nenhum livro consegue explorar
algo tão vasto — não é à toa que a maioria dos livros de fantasia tem várias sequências. Tanto
para a sua escrita, quanto para o seu livro, o melhor é você começar criando uma localidade,
algo que pode ser explorado numa única história. E depois você cria outra. E outra. E assim
vai.

Pense numa boa localidade para começar uma história. Uma metrópole medieval, uma cidade
brasileira pequena, isolada e supersticiosa, um cassino intergalático? Tolkien escolheu o
Condado e Martin escolheu Winterfell, por exemplo.

Escreva todos os elementos citados anteriormente que forem relevantes para a sua localidade.
Descarte elementos desnecessários, resuma elementos pouco relevantes e dê mais atenção e
esmero aos elementos mais relevantes para a sua localidade.

Caso a inspiração e/ou a empolgação tome conta de você, experimente também escrever um
conto ou capítulo de livro na sua mais nova localidade fantástica.

Criação de seres fantásticos

Não é impressionante como existem livros inteiros sobre criaturas e povos fantásticos? O Diário
de John Winchester descreve os monstros e assombrações da série Supernatural, Star Wars
tem o Alien Archive, a Terra-Média já teve dezenas de compêndios — e isso tudo sem falar em
livros de RPG. Povos e criaturas fantásticas de fato merecem uma abordagem à parte — e um
exercício também.

O que vai habitar o seu mundo fantástico? Elfos e orcs? Robôs e alienígenas? Vampiros e
lobisomens? E quais bestas vão ameaçar esses povos? Trolls, assombrações, insectoides
intergaláticos?

Escolha no mínimo três povos e três criaturas diferentes para começar. Se quiser desafiar sua
criatividade, escolha um povo e uma criatura de cada gênero diferente. Perceba que também é
válido criar um ou vários grupos de humanos, visto que nossa cultura também é diversificada e
com certeza vai ser relevante para a sua história. Como de praxe, escreva os elementos
desses seres fantásticos de acordo com como eles vão se manifestar no seu mundo.

Depois, que tal criar personagens para os seus povos fantásticos?


0. Conclusão

Mundos originais e imersivos são o grande diferencial da Literatura Fantástica. Eu já li ficção


histórica, romance policial, biografia e vários outros gêneros, gostei bastante de algumas
leituras, mas é a fantasia que faz o meu coração cantar. Afinal, a fantasia tem tudo de bom que
todos os outros gêneros têm, com um diferencial: os mundos fantásticos.

O fato é que nós não temos controle sobre as emoções e os gostos dos leitores, o que é uma
boa notícia na verdade, pois isso nos dá a total liberdade de fazer o que mais gostamos. Crie o
seu mundo do jeito que você achar mais interessante, um mundo que seja divertido de
escrever e de ler. Crie o mundo que você sempre quis encontrar nas páginas dos livros, mas
nunca encontrou — até agora.

Nossas ideias crescem como frutas numa árvore. Não basta pegarmos as ideias/frutas ao
nosso alcance. Nós precisamos aprender a voar para pegar as ideias/frutas mais altas e
saborosas. Acredito que a escrita criativa é justamente esse voo.

Então desejo-lhe uma boa decolagem.

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