Bruxas - Um Itinerário Pela Segunda Onda Do Feminismo
Bruxas - Um Itinerário Pela Segunda Onda Do Feminismo
Bruxas - Um Itinerário Pela Segunda Onda Do Feminismo
Rio de Janeiro
2020
CLARISSA VELOZO JACOBINA
Rio de Janeiro
2020
J16
Jacobina, Clarissa Velozo
115 p.
Orientadora: Lobelia da Silva Faceira
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em Memória Social, 2020.
Bibliografia: f. 109-115.
1. Feminismo – segunda onda – aspecto social. 2. Caça às bruxas. 3. Nova Esquerda. I.
Faceira, Lobelia da Silva. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Centro de
Ciências Humanas e Sociais. III. Título.
CLARISSA VELOZO JACOBINA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Profª Drª Lobelia da Silva Faceira – UNIRIO
Orientadora
_______________________________________
Profª Drª Maria de Fátima Scaffo - UERJ
_______________________________________
Profª Drª Vanessa Bezerra de Souza - UNIRIO
Rio de Janeiro
2020
— Para mim, o presente é para sempre, e o eterno está sempre mudando, fluindo, se
dissolvendo. Este segundo é vida. E quando passa, morre. Mas você não pode recomeçar a
cada novo segundo. Tem de julgar a partir do que já está morto. Como areia movediça…
Invencível desde o início. Uma história, uma imagem, pode reviver algo da sensação, mas
não o bastante, não o bastante. Nada é real, exceto o presente, e mesmo assim já sinto o peso
dos séculos a me esmagar. Uma moça, há cem anos, viveu como vivo. E ela está morta. Sou o
presente, mas sei que também passarei. O momento culminante, o relâmpago fulgurante,
chega e some, contínua a areia movediça. E eu não quero morrer.
Sylvia Plath
RESUMO
The witch is a historical character widely claimed and remembered by the feminist movement.
The purpose of this dissertation is to investigate in which ways this memory was erupted and
how it was elaborated theoretically, tactically and strategically by the movement. To this end,
this research leans on the period of the emergence of the new left in North-America, more
specifically in the context of the second-wave feminist movement. It is at this historical
moment that emerges, at least three feminist strands, that explicitly recall the witches: radical
feminism, which embodies the witch and intervenes in the political scene through the
collective W.I.T.C.H; spiritual feminism, which attempts to found new forms of spirituality;
and Marxist feminism, which, in its workerism branch, understands the historical event of
witch-hunt as foundational for understanding the structures of women's oppression and
exploitation in contemporaneity. The method of research is content analysis of manifestos,
pamphlets and photos, besides the theoretical formulations of the actors involved. The
conceptual category of memory and social memory permeates the whole research, with the
theoretical references mobilized according to the ways of remembering in each strand. Both
classical authors, such as Henri Bergson and Maurice Halbwachs, and not so obvious authors
in the field of social memory, such as Karl Marx and Georg Lukács are references to debate
the effects and the motivations of the evocation and remembrance of the witch and the witch-
hunt by the feminist movement.
1. INTRODUÇÃO ……...……....……………………………………………...…..................9
2. O CAÇA AS BRUXAS .......................................................................................................17
2.1 Contexto histórico do Caça às Bruxas europeu ………………….....................…...17
2.2 As bruxas de Salém ………………………………...................……………...…….23
2.3 Matilda Joslyn Gage pensa as bruxas ……………………..................………...…..25
3. W.I.T.C.H: WOMEN’S CONSPIRACY FROM HELL …….………………...……….36
3.1 Contexto histórico …………………………………………....................………….36
3.2 Contexto de formação do W.I.T.C.H ...………………………..................………...45
3.3 Women’s conspiracy from hell: manifesto, imagens, feitiços .................……….….54
4. O FEMINISMO ESPIRITUAL ...……………………………………………………….64
4.1 Base teórica e contexto de desenvolvimento do feminismo espiritual ...............…..64
4.2 Pensadoras e articuladoras do feminismo espiritual ...……………….................….71
5. O FEMINISMO MARXISTA ...…………………………………….…………………...81
5.1 Contexto de formação do coletivo Wages for Housework ...……................….……81
5.2 O Calibã e a Bruxa ...……………………………………....................…………….91
5.3 Aportes para uma teoria marxista da memória ...…………….............………….....99
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....………………………………………..........……………105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................109
9
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo o uso da memória da bruxa pelas
teorias, práticas e estratégias feministas no contexto de formação da segunda onda 1 nos
Estados Unidos. Apesar de já existir a rememoração das bruxas em pensadoras de primeira
onda, é nos anos 60 e 70 que essa memória floresce mais sistematicamente. Nesse momento
de intensos debates e atividades políticas emergem, especialmente nos Estados Unidos, novos
atores, temas e epistemes que congregam a chamada nova esquerda. As mulheres são um
desses novos atores e, de fato, elas se organizam intensamente em grupos autônomos e
coletivos de trocas de experiência e intervenção política. Um desses grupos de intervenção é o
W.I.T.C.H, acrônimo para Women's International Terrorist Conspiracy from Hell 2, pioneiro no
processo de construção e rememoração de quem foram as bruxas. Na esteia desse primeiro
aparecimento nítido e flagrante das bruxas, outras vertentes que também a utilizam surgem: a
teologia feminista espiritual, com a ambição de fundar religiosidades não patriarcais; e o
feminismo marxista autonomista, que entende o caça às bruxas como acontecimento
elementar para a introdução da lógica de produção capitalista, especialmente no que concerne
a gestão da dinâmica do trabalho realizado por mulheres.
A rememoração da bruxa é o fio condutor para análise e estudo das vertentes
feministas supracitadas, que, apesar de rememorarem a bruxa e compartilharem o mesmo
contexto espacial, cronológico e político, apresentam profundas diferenças entre si. Nesse
sentido, os objetivos específicos da pesquisa são: apresentar as três vertentes e as suas
respectivas táticas, estratégias e formulações teóricas e verificar o que significou e ainda
significa a memória das bruxas para o feminismo, ou seja, como, para que e para quem serve
e serviu a rememoração desse personagem.
A pergunta que norteia a pesquisa é porque a memória da bruxa é criada e atualizada
pelo feminismo no contexto da segunda onda nos Estados Unidos? Para responder a esta
questão epistemológica nos valemos da técnica de análise do conteúdo, feita em pesquisas
1
O feminismo tem sido divido didaticamente pelas suas teóricas em “ondas” de acordo com as principais
demandas e proposições do movimento de mulheres no contexto euro-americano. A primeira onda do feminismo
corresponde às demandas sufragistas de direito ao voto. Nos Estados Unidos a Conferência de Seneca Falls, em
1848, é o marco do início da primeira onda, sendo encerrada em 1920, com a consecução do direito ao voto. A
segunda onda do feminismo, nos Estados Unidos, é marcado pelo desenvolvimento da nova esquerda, do
feminismo radical e pelos grupos de mulheres de tomada de consciência. As principais contribuições teóricas das
americanas foram o desenvolvimento do conceito de patriarcado e de gênero. No contexto europeu,
principalmente na França, é marcado pelo desenvolvimento das filosofias da diferença e do materialismo
feminista francês.
2
“Conspiração internacional de mulheres do inferno”.
10
qualitativas. De acordo com González (2010), a epistemologia qualitativa possui três atributos
principais: o conhecimento como produção a partir da realidade complexa em que estamos
inseridos, o caráter teórico e o processo dialógico. Esses três atributos podem ser resumidos
nos três verbos que, segundo Minayo (2012), traduzem essa abordagem: compreender,
interpretar e dialetizar.
A técnica da análise de conteúdo foca na profundidade do fenômeno e qualidade da
análise, de maneira que se deve pensar os dados de acordo com suas relações e historicidade.
Os dados a serem analisados serão retirados de memórias das participantes do coletivo
W.I.T.C.H, de livros acadêmicos sobre o tema, de livros de autoria das próprias militantes e de
documentos produzidos pelas vertentes, como panfletos, manifestos e fotos. A técnica da
análise de conteúdo é feita por procedimentos sistemáticos para o levantamento de categorias
que permitam a realização de inferências, explícitas ou não, dos dados coletados, retirados das
obras escolhidas, compreendendo criticamente o conteúdo e a comunicação nas suas diversas
formas. A metodologia da análise de conteúdo possui três etapas: a pré-análise, o estudo
exploratório dos dados levantados e a interpretação dos dados relacionando-os com o quadro
teórico definido na pré-análise e apontando possíveis variações nas categorias de análise.
Na etapa metodológica da pré-análise, pesquisamos o acumulo teórico sobre o tema.
Dessa etapa, nota-se que a utilização da bruxa foi visceralmente intensa nas práticas e teorias
do feminismo nos anos 60, entendida como segunda onda, principalmente nos Estados
Unidos. Logo, o universo do estudo tem o escopo temporal nos anos 60, o espacial nos
Estados Unidos e o teórico na segunda onda do feminismo.
As principais categorias teóricas da dissertação são a bruxa, o feminismo radical, o
feminismo espiritual, o feminismo marxista e a memória social. Para aprofundarmos os
diversos usos da categoria bruxa, desdobramos a categoria do feminismo de acordo com as
diferentes abordagens dessa memória: estudamos a vertente radical, espiritual e marxista 3. A
categoria da memória social atravessa todos esses desdobramentos e para compreender as
maneiras de evocação e criação da memória da bruxa fizemos uso tanto do referencial teórico
de pensadores tradicionais do campo da memória social, como Henri Bergson (2009, 2010) e
3
É considerado vertente o acumulo teórico que apresente uma interpretação da realidade e uma prática para essa
realidade. Nesse sentido, a vertente radical apresenta o aporte teórico que conceituou a existência do patriarcado
e a partir daí pautou sua ação pela organização exclusiva de mulheres contra esse sistema que as oprime. Já o
feminismo marxista é uma vertente que entende a opressão de gênero como consubstanciada à exploração do
modo de produção capitalista, sua prática, portanto, é direcionada para o fim do capitalismo e a construção do
socialismo. O feminismo espiritual é uma teoria e prática que visa criar outras formas de religiosidade, formas
que celebrem deusas femininas, sendo uma tendência da vertente radical, pois absorve seus principais conceitos,
desdobrando-os.
11
Maurice Halbwachs (2006), quanto de outros autores da teoria social, como Karl Marx (2017,
2010) e Georg Lukács (2018).
Na segunda etapa, foi realizada a análise dos dados, pelo estudo exploratório.
Começamos, de fato, a partir do que foi colhido na pré-análise, o estudo das categorias da
bruxa, dos feminismos e da memória social. Por conseguinte, no segundo capítulo, há uma
breve apresentação dos entendimentos historiográficos sobre o período do caça às bruxas,
tanto na Europa quanto nos Estados Unidos a fim de entender o que as feministas dos anos
sessenta estão rememorando, qual a sua referência histórica basal. Além disso, foram
apresentadas proposições de feministas da primeira onda sobre o tema.
Em seguida, no terceiro capítulo, entramos propriamente no objeto da dissertação,
pela vertente das feministas radicais. Nessa seção, usamos o trabalho de Robin Morgan (2014,
1970), uma das principais articuladoras do coletivo W.I.T.C.H. A obra Going too Far (2014),
para além do caráter memorial, pois Morgan conta sua história de vida, há também o cunho
jornalístico, devido a sua formação acadêmica. Portanto, nesse livro, acessamos os
pormenores e o tipo de pensamento que guiou a formação do grupo W.I.T.C.H, grupo que
evoca nitidamente a bruxa para identificação e agrupamento de mulheres para a luta por
emancipação. Já a antologia Sisterhood is Powerful (1970), organizada por Morgan, também
foi de grande valia, pois nela há documentos históricos do W.I.T.C.H, os quais analisamos por
intermédio da técnica de análise de conteúdo.
Para melhor entender os escritos dessa autora e a própria formação do W.I.T.C.H, é
necessário captar o contexto de inserção do seu pensamento e ações. Para isso utilizamos
Echols (2009), que na obra Daring to be Bad: Radical Feminism in America conta a história
política dos movimentos feministas radicais dos anos 60 nos Estados Unidos. Echols (2009)
desvela tanto a formação e criação dos grupos de autoconsciência e estudo, quanto a formação
dos grupos de tática e ação, mais focados em organização de protestos, como é o caso do
W.I.T.C.H. Abordamos, outrossim, o próprio pensamento feminista radical, com atenção a
afirmação de que “o pessoal é político” e a formulação do conceito de patriarcado, sem o qual
não é possível entender a tática adotada pela vertente.
A memória social é latente nesse contexto de formação do feminismo radical. O
conceito de memória coletiva e de quadros de memória de Halbwachs (2006), além do
conceito de memórias subterrâneas de Pollak (1989, 1992) auxiliaram a compreensão da
dinâmica de organização das feministas radicais e o próprio uso da memória da bruxa como
concepção criativa para organização e unificação de suas ações políticas.
No quarto capítulo, apresentamos o feminismo espiritual, tendência derivada do
12
feminismo radical que se desenvolve no mesmo contexto histórico, mas que se vale da
memória da bruxa de forma diferente, pois relaciona-a com seu propósito de formação de
espiritualidades não patriarcais. Zsuzsanna Budapest 4 é um nome fundamental dessa vertente.
Mesmo vivendo no fecundo ambiente dos anos 60, em meio aos vários grupos feministas, ela
não se sentia acolhida. Fazia-lhe falta a construção da dimensão espiritual no movimento das
mulheres, segmento também subordinado ao patriarcado e, na opinião de Budapest, pouco
discutido no movimento. Ela começa, então, a criar e oferecer rituais exclusivos para
mulheres, inspirada em religiões neopagãs5 existentes na Europa, notadamente da Inglaterra.
Nesse capítulo, abordamos tanto o trabalho de Budapest, quanto as contribuições de
uma de suas pupilas, Starhawk 6 . Manifestos de grupos de bruxas que praticam o Wicca,
religião de adoração às deusas na qual as integrantes se identificam como bruxas, são
apresentados e estudados. O livro síntese A dança cósmica das feiticeiras: guia de rituais a
grande Deusa, grande bestseller americano, escrito por Starhawk para divulgação da
religiosidade feminista, tendo sido publicado no Brasil nos anos 80, também é abordado. A
partir desse material, estudamos como a memória da bruxa é mobilizada na tentativa de
construção de religiosidades feministas. Para entendimento do contexto de inserção e
desenvolvimento do feminismo espiritual, utilizamos o trabalho de autoras como Griffin
(1999, 2006, 2008), acadêmica dedicada ao tema, e Adler (2006), jornalista que pesquisou
sobre o florescimento do neopaganismo dos Estados Unidos dos anos sessenta. Também
abordamos a teórica Mary Daly (1985, 1990) e a sua obra de inserção nos debates sobre
teologia feminista7.
Em relação a memória social, conceitos desenvolvidos por Henri Bergson (2009,
2010), tais como matéria, memória, duração e criação são mobilizados, pois se relacionam
com uso especificadamente espiritual da memória social, uma vez que o filósofo teoriza sobre
a dimensão espiritual.
Por fim, a categoria do feminismo marxista é analisada no quinto capítulo. Também
inserido no contexto de segunda onda, essa vertente atuou por meio do coletivo internacional
4
Importante militante feminista da Califórnia e a primeira a fundar os “Witches Covens” ou “grupos de bruxas”,
nos quais se reuniam mulheres para participar de celebrações e rituais às deusas.
5
Neopaganismo é um termo que designa diversas modalidades de religiões modernas quando inspiradas por
crenças pré-cristãs.
6
Starhawk é uma bruxa, aluna de Budapest, disseminadora da espiritualidade feminista, conferencista em temas
como ecofeminismo e bruxaria.
7
Estudo e elaboração sobre as religiões desde marcos teóricos metodológicos feministas. Nesse campo
encontram-se tanto trabalhos teóricos de crítica às religiões quanto criação de espaços feministas de religiosidade.
Nesse sentido, o trabalho de Mary Daly é tanto crítico quanto criador.
13
Wages for Housework Campaing, formado na Itália. No entanto, sua pretensão internacional
levou Silvia Federici, uma de suas participantes, a formar um comitê do grupo nos Estados
Unidos, onde atuaria em meio ao efervescente cenário político de Nova Iorque do final dos
anos sessenta e início dos setenta.
Logo, a vertente feminista marxista é compreendida, principalmente, pelo trabalho
teórico produzido pelas militantes do Wages for Housework (WFH), com ênfase nas obras de
Silvia Federici (1975, 2017, 2018, 2019). Isso porque é essa autora que estuda, de maneira
aprofundada, o evento histórico do caça às bruxas, entendendo-o como elemento crucial para
a formação das relações de trabalho no modo de produção capitalista contemporâneo. As
mulheres engajadas no WFH salientam a diferença entre o trabalho produtivo e o reprodutivo,
sendo o primeiro remunerado e valorizado e o segundo sendo não necessariamente
remunerado e comumente desvalorizado, apesar de imprescindível para a dinâmica econômica
e para a reprodução da vida. A principal exigência das militantes era, portanto, por salários
para trabalho doméstico, como uma maneira de torná-lo visível.
Neste capítulo, analisamos os panfletos e o contexto de formação do coletivo WFH
por meio de dados presentes no livro Wages for Housework organizado por Federici (2017).
Em seguida, abordamos o livro O calibã e a bruxa (2017), obra na qual Federici desenvolve o
acúmulo teórico de mais de uma década de militância e intervenções políticas para retornar e
aprofundar a categoria da bruxa, pelo paradigma do caça às bruxas, para análise da condição
de trabalho das mulheres no capitalismo.
Para além de evocar e rememorar criativamente as bruxas, a vertente marxista teoriza
e busca compreender o evento histórico do século XV de maneira a elaborar estratégias e
táticas políticas coerentes. Desse modo, o próprio referencial marxista será utilizado para
compreender a maneira de rememoração dessa vertente. Nesse sentido, foram utilizados
autores como Karl Marx (2017, 2010) e Georg Lukács (2018).
A retomada da bruxa pelo movimento feminista dos anos 60 e 70 é fruto de um
trabalho de atenção que busca no passado uma imagem capaz de se inserir no presente
daquela sociedade, unindo experiências anteriores com as necessidades do momento.
Momento esse bastante vívido, que testemunhou a formação da nova esquerda, de
movimentos feministas autônomos, do movimento negro e do partido dos panteras negras. Em
meio a contradições e mudanças de fundo, como a ascensão do neoliberalismo, a bruxa é
evocada como memória e atualizada coletivamente. Por meio do empenho de mulheres, essa
personagem histórica ganha novos significados, para além dos esteriótipos cristalizado por
tribunais inquisitoriais que sistematicamente mandavam torturar e matar mulheres ditas
14
bruxas. Contrariamente, o feminismo festejará as bruxas, entendendo-a como aquela que não
cede a dominação masculina, uma espécie de primeira feminista. Estudar esse processo
histórico de rememoração da bruxa evidencia as potencialidades de criação e evocação, para
além da mera retenção, da memória e as potencialidades e limites de sua utilização política e
social.
A ressignificação da memória da bruxa pelas feministas envolveu atos de criação e
engajamento das mulheres em diversas frentes: ações teatrais, protestos, formulação de
panfletos com sátiras, desenhos, poemas e a criação de religiosidades. O próprio sentido
dessas vertentes feministas, a libertação das mulheres do patriarcado, a fundação de
religiosidades centradas em deusas e o fim da exploração capitalista, são tentativas de colocar
a consciência feminina e, portanto, sua memória, o mais próximo do devir criativo e da
liberdade. A memória é um fenômeno também coletivo e social, característica explicitada pelo
fenômeno de rememoração das bruxas nos anos sessenta. Sendo assim, sua evocação também
é limitada e circunscrita as necessidades e contingências do tempo histórico específico no qual
emerge.
Finalmente, nas considerações finais, avaliamos, de acordo com a terceira etapa do
método de análise de conteúdo, se as categorias mobilizadas na pré-análise e exploradas ao
longo da dissertação, na segunda etapa, tem correlação com o quadro teórico desenhado
inicialmente, ou se demandam abrangência dos quadros teóricos e interpretativos. De acordo
com o que foi pesquisado e estudado, principalmente em termos de contextualização histórica
e entendimento teórico metodológico, ao longo da escrita dessa dissertação, se estabeleceu
como necessária a abrangência dos quadros teóricos.
Ao estudar a segunda onda do feminismo dentro do contexto de emergência da nova
esquerda americana nos deparamos com as intensas contradições e limites das novas
epistemes, táticas e estratégias utilizadas e desenvolvidas por esses movimentos. Nos anos
sessenta, os americanos viviam o ocaso da sociedade baseada no consumo em massa de
produtos produzidos pelo trabalho técnico fabril nos moldes tayloristas fordistas. Somado a
isso, a existência da URSS, que apresentava altos índices de crescimento produtivo e dos
níveis de vida da população, ajudou a formação de consenso no seio da burguesia capitalista
no sentido de intervir, por meio do estado, na sociedade, planejamento a economia para
diminuir o nível de miséria dos trabalhadores e acalmar as sublevações sociais. Um famoso
jargão, atribuído a John Maynard Keynes, utilizado para sintetizar esse período é o de que a
burguesia precisava “dar os anéis para não se perder os dedos”.
Vivia-se em uma época hiperindustrializada, altamente autonomizada, consumista e
15
com um palpável salto de qualidade para as famílias, que tinham mais acesso a bens duráveis
e alguns serviços por parte do Estado. Em contrapartida, há a interiorização de uma ética de
estabilidade e de valorização do trabalho por parte da classe trabalhadora (SENNETT, 2005).
Essa cada vez mais submetida ao aparato administrativo e organizativo do fordismo e
taylorismo, aos avanços técnicos do capitalismo e à comunicação em massa. Junto com o
crescimento da economia há o crescimento da exploração ao mesmo tempo em que o
desenvolvimento da técnica torna a vida mais confortável. O resultado é o relativo conforto,
mas também a maior alienação dos trabalhadores, reduzidos a meros apêndices das máquinas
nas fábricas e submetidos as relações cada vez mais mediadas pela forma mercadoria. O
teórico crítico Hebert Marcuse (2015) caracterizou esse momento como o da abrangência da
positividade, a morte da negatividade, ou seja, da crítica, sendo a sociedade integrada ao
consumo caracterizada pela unidimensionalidade.
Nos anos sessenta, em especial, entra em pujante declínio e crise as organizações
revolucionárias clássicas, como os partidos comunistas, junto com seu ator revolucionário
clássico, o proletariado. Em paralelo, surge exatamente a nova esquerda, protagonizada por
novos atores revolucionários: mulheres, negros, estudantes, etc. Esse deslocamento objetivo é
acompanhado em nível teórico pela virada epistemológica da linguagem ou “giro linguístico”.
A filosofia, o campo da teoria social e da história, por exemplo, começam a focar nas
narrativas, na dimensão textual, na prática discursiva e em testemunhos, informados por uma
espécie de negação do positivismo e das grandes narrativas “totalizadoras”. É, também, o
momento da enorme disseminação da cultura de memória, já que “uma crescente nostalgia
pelas várias formas de vida do passado parece ser uma forte cultura subjacente dos anos 70 e
80” (HUYSSEN, 2004, p. 25) e a consequente maior teorização em torno desse campo.
Nesse sentido, foi necessário abranger o quadro teórico preliminarmente composto
pelas categorias da bruxa, dos feminismos e da memória social para entendê-las como parte
de uma totalidade, uma conjuntura histórica dinâmica e contraditória. Foi necessário
aprofundar o entendimento das condições estruturais e estruturantes nas quais a bruxa foi
rememorada. Isso implicou considerar a reestruturação do modo de produção capitalista
implantada nesse período histórico, dando início ao neoliberalismo. Tal reestruturação se
relaciona diretamente com a política e o horizonte revolucionário que as vertentes reivindicam.
Sendo assim, a categoria do pós-modernismo, desenvolvida no final dos anos sessenta aos
anos oitenta foi utilizada para compreender as transformações engendradas pelo
neoliberalismo na sociedade. A categoria do romantismo também é aproveitada, visto que
fortes tendências românticas atravessam o entendimento da bruxa, principalmente no caso da
16
8
Resgate de cuidados ginecológicos por formas mais naturais, com utilização de infusões e plantas; além da
proposta de reconexão das mulheres com seus ciclos menstruais por meio da observação da lua, e da auto
reflexão.
17
2 O CAÇA ÀS BRUXAS
9
“na realidade a mais profunda pensadora, a mais avançada cientista daquela época” (tradução nossa).
18
textos demonológicos. A demonologia é uma característica crucial do caça às bruxas por ser a
primeira vez em que a magia, já existente em sociedades mais antigas, fora associada ao diabo
cristão, de maneira sistematizada, por eclesiásticos, juristas e magistrados, com ampla
contribuição do meio monástico para o desenvolvimento do imaginário diabólico. De acordo
com Mainka (2002), o crime de magia se determinava por quatro elementos: o pacto feito
com o diabo; o casamento realizado pelo ato sexual; feitiços maléficos para prejudicar pessoas,
animais e crianças e a participação nos sabás10.
O mito do diabo sempre teve papel fundamental para a cosmologia cristã, visto que
reforça a ideia de salvação após a morte ao impor o inferno como contrapartida aos céus.
Além disso, a existência do diabo ou satã, o mal, em suma, é explicação conveniente o
aparecimento de doenças que causavam mortes inexplicáveis e todo tipo de miséria que a
sociedade enfrentava à época. De acordo com o Novo Testamento, o diabo é o anjo caído à
terra por conta da luxúria, sendo a própria incarnação do mal na terra. Por vezes, o diabo
serve a Deus, ajudando-o a eliminar os pecadores. A figura do diabo é, portanto, altamente
plástica, adaptando-se as demandas concretas da realidade de cada período.
A condensação do pensamento demonológico pode ser encontrado no famoso manual
Malleus Maleficarum, o Martelo das Bruxas, publicado em 1487 e válido até o final do século
XVII, foi livro precursor e disseminador do conceito da bruxaria demonológica. No manual,
os modos de perseguição, processo, tortura e condenações foram sistematizadas e
formalizados em regras do Direito Canônico e na metafísica da Igreja Católica. Todo esse
saber foi desenvolvido, por óbvio, pelas classes dominantes, mas não sem o mínimo de
objetividade nas crenças das classes populares. A bruxaria fazia parte da cosmologia da
população e era entendida tanto como um maléfico, quanto como magia boa, superstições e
práticas de amparo, fundadas em saberes passados de geração em geração pela oralidade.
O Martelo das Bruxas, junto com outras produções posteriores, como o tratado
Domonolatreiae, publicado em 1595 por Nicolas Remy, e Disquisitionum Magicarum Libri
Sex de Martin Del Rio, serviram e lograram em construir e alastrar o esteriótipo da bruxa, o
grande alvo, necessariamente ligado a mulher e entendendo-a como ser rebaixado, inferior,
lascivo, propensa e vulnerável ao diabo. Ou seja, são formulados uma série de discursos
oficiais para normalizar, enquadrar e, no limite, disciplinar as mulheres da época, ditas bruxas.
Esse arcabouço conceitual, que por muito tempo perdurou como memória oficial e dominante,
10
Também conhecidos como sinagoga das bruxas, os sabás eram encontros das designadas bruxas para
veneração ao diabo.
19
cristalizou o entendimento do que é ser bruxa de acordo com tal esteriótipo de rebaixamento
feminino. Isso será amplamente questionado pelas feministas americanas, já na primeira onda,
mas intensamente na segunda onda.
No clássico livro História do Medo no Ocidente 1300-1800, Jean Dulemau aponta
como o período abarcado pelo caça às bruxas intensifica a imposição do medo como forma de
dominação e controle das classes subalternas, com intenção de suprimir qualquer
possibilidade de desenvolvimentos dos saberes populares ligados à bruxaria. O medo explica
a demonização de tudo que era herético, ainda mais após o aparecimento de “novas heresias”
como a dos valdenses e dos cátaros, os turcos e os judeus. A própria ciência demonológica e a
intensa verticalização do poder de punir da inquisição são condições para contenção das
diversas crises daquele momento, como a fome, a peste negra e a rebeldia em geral, além de
ter se realizado como um violento processo de secularização.
Nos séculos XV e XVI, quando tratados demonológicos não cessavam de serem
editados e publicados, o Renascentismo infligiu certos limites ao processo, porém sem causar
ruptura. Muitos renascentistas praticavam a magia natural, ou feitiçaria, baseados em textos
clássicos e gozavam de respeitabilidade intelectual, contrapondo a concepção de magia
apregoada pelo Martelo das Bruxas e a escolástica da Igreja. Todavia, Levack (2009) aponta
dados de crescimento de processos de bruxaria em Florença naquele momento, relacionando-
os com a confusão dos conceitos de magia e bruxaria, mas também com a distinção recebida
pela magia e a intensificação do desprezo pela bruxaria.
Outra conjuntura específica e coincidente com o período mais intenso do caça às
bruxas é a Reforma e a renovação religiosa que se seguiu, datada dos anos 1520 à 1650. Essa
intensificação do caça às bruxas só foi possível devido ao acúmulo teórico da demonologia e
sua disseminação por meio dos próprios julgamentos no século anterior. Quando protestantes
rompem com a Igreja Católica Romana, intentando a restauração da cristandade medieval por
meio da autonomia individual em relação a fé, reivindicam estreitamento do contato do fiel
com Deus e abandonam vários ritos e sacramentos, em uma tentativa de atualização da
liturgia religiosa. Tal movimento, conduzido por homens como Lutero e Calvino, intensificou
o processo de reforma da própria Igreja Católica, conhecido como Contra Reforma, cujo
propósito era fazer frente a perda de fiéis e ao enfraquecimento político proporcionado pela
Reforma. No que diz respeito a extirpação da bruxaria, católicos e protestantes convergiam. A
Reforma protestante inclusive aderiu os desenvolvimentos da demonologia e o aprofundou
esses saberes, ao dar mais embasamento bíblico.
Importante notar que a Reforma Protestante atacou tanto a magia popular quanto a
20
magia eclesiástica. Ora, a Igreja Medieval alegava realizar milagres e canonizava santos que
operavam por amuletos, água benta e defumadores e assim, aliviavam, por vias sobrenaturais
e, em última instância, mágicas, o penar dos fiéis. No entanto, a igreja sempre tentou
diferenciar a magia do milagre: a primeira era uma manipulação mecânica da natureza, o
segundo acontecia por intermédio divino. É claro que na mentalidade medieval quase nunca
existia uma distinção clara entre magia e religião.
De todo modo, seguindo o preceito da autonomia individual da fé protestante, o diabo
deveria ser combatido externamente e internamente. O grande processo de reforço da
cristianização promovido pelas reformas intensificou a perseguição das crenças e superstições
populares, como o uso de amuletos e práticas terapêuticas, as bruxarias em geral. O número
de processos e delações entre as populações rurais aumentou, com frequentes episódios de
histeria e paranoia coletiva, em uma conjuntura de rupturas e mudanças. No nível econômico,
esse é o momento de intenso desmantelamento das relações feudais e início das instituições
do capitalismo mercantil e agrário, o que justifica o aumento das delações no campo; ao
mesmo tempo há reforço da individualização da fé e a moralização da sociedade, o que
contribuirá para as Revoluções Burguesas no final do século seguinte. Nesse contexto, a
bruxaria, essência da rebeldia, deveria continuar a ser atacada.
Outro fator que se apresenta na conjuntura do caça às bruxas é a Revolução Científica,
possível por meio do desenvolvimento do racionalismo moderno e das teorias mecanicistas.
Tais correntes filosóficas propunham o dualismo entre a mente e o corpo, a distinção entre o
espírito e a matéria, tendo a mente superioridade. Essa racionalidade da mente entrava em
direta oposição às práticas divinatórias e crenças das populações pobres que buscavam
respostas no oculto, longe da matéria. Marcada pela disseminação da obra de Copérnico, feita
em 1543, junto com os trabalhos de Galileu e Kepler, essa Revolução endossaria a decadência
da cosmologia, da adivinhação e superstição, entendidas como práticas de bruxaria, ao mesmo
tempo em que avança nos conhecimentos científicos em relação a química e a astronomia, por
exemplo. Foi, sem dúvida, um importante processo para o aperfeiçoamento do gênero humano.
No entanto, com grandes limitações do seu tempo histórico.
Como já foi pontuado, muitos dos saberes designados como bruxaria tinham
ancoragem em práticas, não eram puramente adivinhações e crendices. Aliás, esses saberes
desenvolveram noções de química, como as do livro La Chymie Charitable et Facile, em
Faveur des Dames, feito por uma mulher, Marie Meudrac, de 1665. De acordo com Tosí
(1998), essa obra traz proeminentes e avançadas descrições de preparação e de propriedades
de ervas, com capítulos dedicados inteiramente ao seu uso para problemas específicos de
21
mulheres.
É consenso historiográfico que a maioria das pessoas perseguidas, processadas e
executadas pelo caça às bruxas foram mulheres. A bruxaria é, sem dúvida, relacionada a
mulher, porém não é específica a elas. O esteriótipo construído e alastrado, seja pelos
demonólogos, seja na arte, por meio de quadros e literatura, como a obra A tempestade, de
1611, de Shakespeare, era feminino e estreitamente ligado a inferioridade e bestialidade da
mulher. Entretanto, e para além desse vínculo entre a bestialidade e a feminidade, eram nas
funções exercidas pelas mulheres que a população identificava a bruxaria, quais sejam, as
cozinheiras, curandeiras e parteiras, os homens eram bem menos engajados nessas atividades.
Parteiras frequentemente eram acusadas de matar crianças; as mulheres sábias e curandeiras
que utilizavam unguentos e combinações de plantas para tratar a comunidade eram associadas
a praticantes de magia boa, mas também estavam vulneráveis aos processos inquisitoriais.
Outra característica consensual é a de que as bruxas eram, na sua maioria, idosas. Isso
se explica por elas terem acumulado maior compreensão de técnicas de cura e, por isso, eram
conhecidas na comunidade. Muitas vezes, essas senhoras já haviam sido delatadas diversas
vezes ao longo dos anos. Levack (2009) aponta também para a questão do temor sexual
masculino em relação a experiência da mulher velha. No entanto, jovens e até mesmo crianças
foram acusadas de bruxaria. Por fim, a maioria das acusadas vinham das classes inferiores da
sociedade; muitas viviam da mendicância e recorriam a venda de curas mágicas e
adivinhações para sobreviver.
Os processos e julgamentos poderiam ser específicos e rápidos ou ter um ciclo
duradouro. Essas caças mais longas terminavam pelo flagrante número de inocentes sendo
julgados ou pela quantidade desmedida de mulheres mortas, na medida em que as acusações
ficavam absurdas e as provas, mesmo com as confissões nas torturas, insuficientes. O declínio
da caça às bruxas é um processo que tem início na metade do século XVII e dura até século
XVIII; apesar de cada região europeia ter seguido seu próprio processo, o fim do caça às
bruxas aconteceu como um todo. Levack (2009) aponta para fatores como a mudança de
regras processuais, nas mentalidades, na cultura religiosa, na sociedade e na economia.
Como processo de longa duração histórica, o caça às bruxas coincide com outros
vários eventos importantes que contribuíram para a secularização. Já o seu declínio, no final
século XVIII, corresponde a ascensão do otimismo e da racionalidade do Iluminismo. Com
isso, há a nova formulação do sistema de punição na Europa, atrelada a racionalidade da
classe que ascendia, a burguesia. A punição ostentosa e marcante dos suplícios, realizada no
caça às bruxas, começa a ficar insustentável. Muitos dos confrontos diretos do poder sobre os
22
11
Palanque ou estrado montado em local aberto para, sobre ele, realizar atos públicos ou cerimônias solenes.
23
12
Protestantes anglo-saxões brancos.
24
serem picadas e catatonismo. Logo são diagnosticadas como vítimas de bruxaria. Uma
corrente minoritária da historiografia sustenta que tais sintomas foram resultados da
proliferação de ancefalite, doença causadora de convulsões e alucinações (PAVLAK, 2009).
Algum tempo depois esses mesmos sintomas apareceram em outros colonos da região.
Muitas narrativas históricas apontam para a escrava da casa dos Parris, natural de
Barbados, chamada Tituba, como desencadeadora do episódio, já que ela passava bastante
tempo com as crianças, contado-lhe histórias e ensinando práticas advindas do vodu, religião
de seu país natal. Apesar de muito disseminada, essa narrativa não corresponde à
documentação primária (ROSENTHAL, 2013). Mas não é de toda falsa. Tituba teve papel de
importância no episódio, não como desencadeadora, mas como bode expiatório. São os
testemunhos de Sarah Good e Sarah Osborne, uma mendiga e uma idosa, apontadas como
culpadas pelas autoridades, que iniciam as séries de julgamentos, delações e perseguições do
caça às bruxas de Salém.
A cidade toda passou a participar de encontros de rezas e jejuns a fim de livrar as
acometidas pela bruxaria de seus sintomas. O clima de histeria e loucura coletiva era cada vez
maior, com mais e mais nomes sendo apontados e delatados. Uma dessas delações que chama
a atenção é a de Martha Corey, uma vez que ela é parte da elite puritana, o que indica grande
penetração e abrangência desse ciclo de caça às bruxas, pois raramente os processos
chegavam as elites. Essa perda de limites de classes é também o que contribui para o fim dos
processos e perseguições.
Como o aumento de delações ocorria de forma desgovernada, o julgamento saiu do
controle. O estado de burburinho e paranoia foi disseminado na cidade, o que afetou o
funcionamento econômico e os negócios, começando a causar prejuízos. O fato é que os
julgamentos e condenações se tornam cada vez mais insustentáveis. De acordo com Karnal
(2007), mais de 200 pessoas foram presas, 14 mulheres e 6 homens foram executados.
O episódio de Salém compartilha características com o caça às bruxas europeu, e esses
estão, de fato, diretamente ligados. A estruturação, organização e sistematização das bulas,
livros e processos pelos demonólogos propiciou sua execução e exportação dos esteriótipos da
bruxaria e da bruxa para as colônias. Esse esteriótipo da bruxa, mulher diabólica, lascívia, que
se reúne com outras mulheres em sabás, faz adivinhações e curas, e as próprias instituições
como a igreja e os processos políticos da época é que serão estudados, teorizados e
rememorados pelas feministas da segunda onda com grande intensidade. Porém, antes dessas
vultosas manifestações, pelo menos uma feminista abolicionista sufragista se debruçou sobre
o tema e é importante pontuar sua obra e contexto.
25
na Europa quanto nos Estados Unidos, caracterizada pela expansão territorial, pela
diversificação econômica e pelo avanço tecnológico, principalmente nos transportes, com as
ferrovias, e na comunicação, com o telégrafo. Esses avanços permitiram, inclusive, a enorme
onda de imigração da época. Em solos norte-americanos chegaram irlandeses, italianos,
alemães e chineses em busca de melhores condições de vida, contribuindo, também, para o
acelerado processo de urbanização e industrialização. A racionalização da produção com
métodos científicos e seu arranjo monopólico ou oligopólico, combinada com a disseminação
do consumo e ampliação dos serviços também são características importantes dessa era.
A primeira onda do feminismo americano, marcada pelo sufragismo, tem suas raízes
nesse quadrante histórico, sendo estreitamente atrelado ao movimento abolicionista negro e
operário manufatureiro. A década de 1830 é o marco inicial para pensar esse momento do
feminismo. Os Estados Unidos viviam a Era Jacksoniana (1829-1837), comandada pelo
presidente Andrew Jackson, que preconiza uma política de apaziguamento social ao tentar
dirimir os antagonismos e integrar o cidadão comum a sociedade. Todavia, os negros e as
mulheres não estavam contemplados no conceito de cidadãos e não tardaram e se organizar
para mudar essa condição.
No norte do país, região mais voltada para a manufatura e a indústria, aconteceram
muitos protestos e greves lideradas e organizadas por mulheres, com participação até mesmo
de crianças, que também eram trabalhadoras. A primeira dessas greves aconteceu em 1825 e
foi organizada por mulheres alfaiates de Nova York que pediam melhores salários. Dois anos
depois, operárias de New Hampshire pararam de trabalhar em protesto a instalação de
relógios para controle do tempo de manufatura em cada posto de trabalho (ZINN, 2003).
Nessa mesma década, aconteceu o movimento liderado pelas trabalhadoras têxteis da
indústria-dormitório Lawrence e Lowell em Massachusetts, que fizeram greves exigindo a
redução da jornada de trabalho para dez horas por dia. Suas lutas foram documentadas no
jornal “The Lowell Offering: a Repository of Original Articles Written by Factory Girls” e
processadas no chão da fábrica, com suas líderes clamando pelo fim da “escravidão salarial”
(ORLECK, 2017). O conjunto contínuo de greves levou a formação da associação “Female
Labor Reform Association” 13 que peticionava as autoridades do sistema de justiça pela
redução da jornada de trabalho (ZINN, 2003).
Mesmo com todos esses esforços, ainda não existiam organizações nacionais e as de
nível local ou estadual eram mais reativas que construtivas, ou seja, procuravam melhorar
13
Associação pela reforma do trabalho feminino.
27
suas condições imediatas. Alguns dos trabalhadores e trabalhadoras preferiam até mesmo
mudar de estado e começar a vida em outro lugar do que protestar por melhores condições
(FAUE, 2017).
Essas revoltas podem ser compreendidas pelo fato de que, com o início da
industrialização, as atividades domésticas que as mulheres desempenhavam no sistema de
produção junto com a família, como pequenas manufaturas, roupas, velas, etc, foram sendo
desvalorizadas e deslocadas para a indústria. As mulheres saíram de uma situação de
produtividade e participação na economia familiar para o trabalho insalubre nas manufaturas
ou em casa, reduzidas aos afazeres domésticos. Não raro, como supracitado, elas comparavam
sua nova condição de vida com a dos escravos, mas não só pelos altos níveis de exploração
nas fábricas, como também pela exploração e isolamento que o casamento impunha (DAVIS,
1981).
Outro acontecimento importante dos anos 1830 é a Revolta de Nat Turner14 pois essa
marca o início da luta organizada dos abolicionistas negros (DAVIS, 1981). Muitas mulheres
das classes médias se envolvem com o movimento abolicionista, experimentando a
participação política o que as conscientizou sobre a importância de transitar em várias esferas
da sociedade. Como supracitado, muitas delas se identificavam com a condição de escrava,
por estarem presas ao lar e ao casamento. Além disso, como muitas das atividades que
realizavam anteriormente foram passadas para a indústria, as mulheres de classe média
dispunham, doravante, de tempo livre, o que permitiu a dedicação as lutas por reformas
sociais.
A década de 30 foi de bastante engajamento, verdadeiro laboratório para o que seria o
movimento sufragista. O engajamento na luta pela abolição da escravatura fez as mulheres
entenderem a necessidade de lutarem pelos seus próprios direitos, visto que o fato de elas
mesmas não serem consideradas cidadãs limitava sua credibilidade face as instituições. Elas
precisavam deixar de ser entendidas como inferiores para serem ouvidas nas convenções
abolicionistas. As irmãs Sarah e Angelina Grimké, naturais da Carolina do Sul, entenderam
muito bem isso e viajaram para vários estados do norte a fim de disseminar a causa
abolicionista e sufragista (ORLECK , 2017; DAVIS, 1981).
Na Convenção Mundial Antiescravismo, realizada em Londres em 1840, as mulheres
envolvidas na causa abolicionista entram em confronto direto com as suas próprias limitações
14
Nat Turner foi um escravo americano que liderou uma revolta no condado de Southampton, na Virginia. Junto
com outros escravos libertaram mais de cinquenta escravos pelas fazendas do sul. A rebelião foi suprimida em 48
horas e seu líder, Nat, foi capturado um mês depois, condenado à morte e decapitado.
28
como mulheres. Importantes militantes e líderes, como Lucretia Mott e Elizabeth Candy
Staton foram impedidas de falar e excluídas das atividades da Convenção de maneira geral. A
interdição política sofrida simplesmente por serem mulheres foi o fato que fomentou a
convocação para a convenção em defesa dos direitos das mulheres, em Seneca Falls, 1848.
Nela, mais de cem mulheres, ao lado de homens, discutiram e formularam o documento
“Seneca Falls Declaration of Sentiments and Resolutions”, inspirado na declaração de
independência de Thomas Jefferson.
Reivindicações bastante vanguardistas constavam na declaração, tais como controle
dos seus próprios salários e propriedades, direito de separação, custódia dos filhos no caso de
separação, acesso à educação e à profissão. Contudo, o caráter de classe média dominou a
resolução e, apesar de o acumulo anterior de luta junto das trabalhadoras superexploradas em
fábricas e dos abolicionistas, pautas mais radicais ficaram de fora do documento (ORLECK,
2017; DAVIS, 1981).
Na década de 50, depois de Seneca Falls, o movimento sufragista ganha novas
organizações, como o National Woman Suffrage Association (NWSA) e o American Woman
Suffrage Association (AWSA), que marcariam o novo aspecto do movimento que se
caracteriza, cada vez mais, como prenunciava a experiência de Seneca Falls, como um
movimento branco e não operário. O famoso discurso “Ain’t I a Woman?”15 de Sojourner
Truth, na Convenção pelo direito das mulheres em Massachusetts, dois anos depois de Seneca
Falls, expõe essas contradições. Sua fala denuncia a disseminação da moral cristã
supremacista masculina que alguns dos homens presentes defendiam e o apagamento da
mulher negra e da causa abolicionista.
Ainda na análise de Davis (1981), o movimento sufragista não conseguia fazer a
correlação estrutural entre a falta de direito ao voto político, a exploração do proletariado
industrial no norte e a escravidão no sul, ou seja, o sistema democrata moderno capitalista não
era questionado em suas determinações mais profundas. Fica evidente, então, que a oposição
a escravidão, presente desde as raízes do movimento, estava mais atrelada a uma questão
moral que social, politica ou econômica. A pretensão da mera conquista do direito formal
denuncia o caráter liberal ingênuo com o qual se defrontava o movimento feminista sufragista.
O início da Guerra Civil entre os Estados do Norte, a União, e os Estados do Sul, os
Confederados, em 1861, fez o movimento sufragista apoiar a União. As tensões entre o norte
e o sul dos Estados Unidos datam do pós independência e com o decorrer do tempo se
15
“Não sou uma mulher?”
29
Na década de 1890, há novo ciclo de greves e protestos, dessa vez pela redução da
jornada de trabalho para oito horas por dia. Um desses protestos ficaria célebre pelo desfecho
brutal que teriam seus líderes. Trata-se do episódio da paralisação na fábrica Haymarket em
Chicago, iniciada em primeiro de março de 1886, que desemboca na prisão e pena de morte
dos oito principais dirigentes. A memória dos “oito de Chicago” será evocada tanto nos anos
sessenta, contexto de florescimento, também, da memória das bruxas, quanto como memória
da luta dos trabalhadores, sendo esse o significado tradicional do dia primeiro de março, dia
dos trabalhadores (ZINN, 2003; FUEL, 2017; LÖWY; BESANCENOT, 2015).
Outra importante personagem histórica da época, bastante reivindicada e estudada
hoje em dia, foi a anarquista Emma Goldman. Militante envolvida com o movimento
trabalhista, foi presa várias vezes enquanto estava em motins e protestos. Ela nos legou vasta
obra, na qual desenvolve suas ideias de amor livre e de organização revolucionária da
sociedade (ZINN, 2003; LÖWY; BESANCENOT, 2015). Já no início do século XX, os
romances de Jack London, membro do partido socialista, demonstrariam de forma literária a
realidade dos trabalhadores norte-americanos.
As raízes das organizações trabalhistas nos Estados Unidos podem ser encontradas na
federação Knights of Labor16, organização fraternal que apoiou e organizou os protestos pela
redução da jornada de trabalho nessa década de 90. Era fortemente vinculada a identidade
branca e masculina do trabalhador instruído, diferenciado dos imigrantes, mulheres, ex-
escravos e forasteiros, lidos como não instruídos (FUEL, 2017). Essa valorização do
trabalhador especializado foi herdada pelo primeiro sindicato federal e nacional de
trabalhadores norte-americanos, o American Federation of Labor (AFL).
Apesar do AFL muitas vezes endossar causas feministas, como o direito ao voto, e
abarcar as federações sulistas compostas por ex-escravos, a federação sustentava, em última
instância, os direitos do trabalhador médio, branco e bem instruído. Assim, assumia a ética do
trabalho como riqueza, no sentido da superioridade da “classe produtiva” em detrimento das
classes ligadas aos bancos, ao sistema financeiro e as pessoas ligadas a reprodução social, por
exemplo. Defendiam o direito a propriedade e celebravam a noção de independência baseada
no recolhimento do salário como fruto do esforço e produtividade.
Nesse sentido, a questão da dependência/independência estava no centro do discurso
político e a dependência começa a ter uma carga moralmente negativa, o que afetaria as
mulheres, povos indígenas nativos e negros, já que “as wage labor became increasingly
16
Cavalheiros do Trabalho.
33
17
“quando o trabalho assalariado se tornou cada vez mais normativo – e cada vez mais definitivo de
independência – foram precisamente aqueles excluídos do trabalho assalariado que pareciam personificar a
dependência.” (tradução nossa).
18
“Não somos escravas.”
34
institucionalização, pelo menos a fração de mulheres que depois da 19° emenda 19 formaram o
National Woman’s Party (NWP) e tinham como horizonte alcançar a igualdade por meio das
leis. Elas lutariam pelo Equal Rights Amendment Constitution (ERA) como solução dos
problemas. As discussões em torno dessa emenda racharam o feminismo, colocando mulheres
liberais de um lado, defendendo a emenda, e mulheres trabalhadoras de outro, argumentando
a necessidade de proteção e leis diferenciadas para mulheres. A discussão sobre luta por
igualdade ou diferença são um dos motes do feminismo e da teoria feminista que retornará na
segunda onda.
Outro importante fato ocorrido na estreia do New Deal, e que será fonte de debates e
protestos no contexto da segunda onda feminista, foi a aprovação do Social Security Act, em
1935. Esse ato estrutura o sistema de proteção social americano, que alcançaria sua melhor
formulação entre a décadas de 50 até o início da década de 70. O Social Security Act criou
aposentadoria, o seguro desemprego, suporte para cegos e pessoas com deficiência e, mais
importante, o programa Aid to Dependent Children.
O Aid to Dependent Children forneceria ajuda financeira para mães em situação de
vulnerabilidade social arcarem com a criação de seus filhos. Críticas e protestos em favor
desse programa serão centrais para o coletivo Wages for Housework, que será estudado no
capítulo 4. A deterioração desse sistema de proteção ocorre em concomitância com as
manifestações das vertentes e tendências do feminismo que serão estudadas nos próximos
capítulos. O feminismo americano, assim como qualquer relação social, está eivado de
contradições, como já se pode observar. Exploramos os desenvolvimentos dessas contradições
ao estudar as outras vertentes e tendências que evocam as bruxas nos próximos capítulos, a
começar pela formação do coletivo feminista radical W.I.T.C.H.
19
Emenda que garante o sufrágio feminino em todo o país.
36
Nesse capítulo abordamos uma das vertentes que retorna ao período histórico do caça
às bruxas para fundamentar suas ações militantes. A vertente abordada é a do feminismo
radical, especificadamente a tendência “política”, responsável pela criação do coletivo
W.I.T.C.H. O capítulo está dividido em três seções: a primeira seção versa sobre o contexto
histórico de fundo, explicando as bases materiais sobre as quais floresce a segunda onda do
feminismo no contexto americano, relacionando-o ao contexto mundial. Esse contexto
histórico é comum as outras vertentes feministas que serão abordadas nos próximos capítulos.
Na segunda seção, será especificado o contexto de formação do coletivo, pormenorizando os
atores políticos e as divergências internas que contribuíram para sua formação. Por fim,
abordamos os atos e protestos feitos pelo coletivo W.I.T.C.H e que usavam a imagem da bruxa
em si, trazendo dados como fotos e palavras de ordem.
20
O modo de vida americano é uma expressão de caráter nacionalista, baseada na crença e promoção de valores
liberais de direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. Esse modo de vida era disseminado como superior
ao encontrado nos regimes comunistas. Abarca, ainda, a ideia de que qualquer indivíduo, independente das
circunstâncias de sua vida no passado, poderia aumentar significativamente a qualidade de sua vida no futuro
através de determinação, do trabalho duro e da habilidade.
37
21
Moses é comumente relacionado ao Barão de Hausseman, prefeito parisiense que fez da capital da França, a
“capital da modernidade”, com seus largos bulevares, avenidas e prédios luxuosos na década de 1870.
38
qual a locomoção era feita prioritariamente em automóveis pelas highways22, ambos grandes
símbolos da época, em detrimento da circulação a pé e do convívio interpessoal na cidade. Já
os parques de lazer, como o Jones Beach, circunscrevem espacialmente o momento do
entretenimento e diversão. Essa racionalização, combinada com a construção dos complexos
habitacionais, dava a impressão de que tudo existia no seu tempo e espaço demarcados. No
pós-guerra, esse estilo arquitetônico de cidade se aprofundaria, com construções ainda mais
suntuosas que criavam um ambiente ainda mais árido para quem circula na cidade, o que
causou “a cisão entre o espírito moderno e o ambiente modernizado, fonte fundamental de
angústia e reflexão no fim dos anos cinquenta” (BERMAN, 2007, p. 363).
Nas outras modalidades artísticas, para além da arquitetura, o expressionismo abstrato
representava “a síntese da longa trajetória do moderno que, iniciada em Paris entre 1850 e
1860, havia inexoravelmente conduzido a Nova York – a vitória cultural norte-americana
sucedia a vitória nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial” (HUYSSEN, 2004, p.
32). A pintura harmoniza o expressionismo alemão com as escolas abstratas23. Artistas como
Arshille Gorky e Jackson Pollok captam tal angústia do espírito moderno da época ao utilizar
cores agressivas com uma técnica espontânea, criamdo quadros com traços geométricos e
aleatórios com desenhos não identificáveis como formas.
Esses exemplos de arte modernista dos anos cinquenta estão alicerçados na maneira
como o capitalismo produzia e se reproduzia à época, ainda no formato taylorista das grandes
fábricas, sendo a de automóveis, como a Ford, o símbolo do período. O filósofo Antônio
Gramsci dedicou uma parte de seus cadernos para a questão do “americanismo e fordismo”,
na qual destaca algumas características desse período histórico. Primeiro, indica que a
racionalização taylorista-fordista foi uma solução para driblar a lei tendencial de queda na
taxa de lucro, ao valorizar a indústria como principal meio de continuidade da acumulação.
Em consonância com esse modelo, o filósofo italiano destaca o papel do proibicionismo24, do
controle da sexualidade e da reprodução e a monopolização de parte do operário, a
“aristocracia operária”, pelos altos salários, como peculiaridades necessárias ao modelo de
produção vigente. Em suma, “na América, a racionalização determinou a necessidade de
22
Largas vias rodoviárias de alta velocidade.
23
O expressionismo alemão é caracterizado pelas pinturas que expressam um desligamento do real e um
afastamento com o mundo burguês, uma crítica à modernidade influenciada pelo niilismo de Nietz e pelo
inconsciente freudiano. Já o abstracionismo é uma corrente artística que não representa objetos concretos da
realidade exterior.
24
A Lei Seca, estipulada pela 18° emenda constitucional, vigorou de 1920 à 1930 e proibia fabricação, transporte
e venda de bebidas alcoólicas.
39
elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e processo produtivo”
(GRAMSCI apud COUTINHO, 2011, p. 334).
Ou seja, esses modos de organização e massificação da classe trabalhadora,
constituíram, também, uma nova subjetividade, calcada na estabilidade, na formação da
família, que vislumbra e planeja a ascensão dos descendentes e têm a própria narrativa de vida
atrelada ao trabalho (SENNETT, 2005). No entanto, ao mesmo tempo em que fornecia
limitadamente graus de conforto, a técnica e a burocratização por meio da intensa
mecanização, divisão e fragmentação da atividade do trabalhador por esses modelos,
transformou-o em extensão da máquina, alienando-o e explorando-o.
Nesses anos dourados, os americanos também experimentaram a “era de ouro do
casamento”: cerca de 95% da população era casada entre a metade da década de 50 e início da
década de 60 (COONTZ, 2005). A ideia do casamento baseado em rígidos papéis de gênero,
sendo o homem provedor, foi disseminada por propaganda governamental como um lugar de
estabilidade e ancoragem contra os perigos do comunismo25 (ORLEK, 2017). Aliado a isso,
foram desenvolvidas sistema de rodovias para integração e expansão dos subúrbios, além das
baixas taxas de empréstimos para financiamento de casas. Interessante notar como as
configurações familiares também estão atrelados ao modo como a produção está concertado.
Por fim, o exemplo anedótico dado pela historiadora Annelise Orleck sobre esse período
histórico é bastante elucidativa:
American democracy was represented in the battle against Communism by the
gleaming new suburban kitchen. When Vice-President Richard Nixon traveled to
Moscow to debate Soviet Premier Nikita Khruschev on the relative merits of
capitalism and Communism, the U.S government actually built a model suburban
home in the middle of a Moscow park. Under TV lights and against the backdrop of
gleaming modern appliances, Nixon set out to show the world a standard of living
possible only under American-style capitalism.
Shortly thereafter, when President Dwight Eisenhower invited Khruschev to visit the
U.S. he planned to fly the Russian premier over the Maryland suburbs ringing
Washington, so that Khrushchev could see the houses and swimming pools. He also
wanted Khrushchev to look down and see some of the 60 million automobiles that
Americans then owned. Suburban homes, along with the highways and cars that
connected them to men’s workplaces were Eisenhower’s wager for supremacy in the
post-war competition with Soviet Russia (ORLECK, 2017, p. 58).26
25
Gramsci também chama atenção para a necessidade da rigidez de gênero e controle da reprodução. “Deve-se
observar como os industriais (especialmente Ford) se interessam pelas relações sexuais de seus empregados e,
em geral, pela organização de suas famílias; a aparência de “puritanismo” assumida por esse interesse (como no
proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não se pode desenvolver o novo tipo de
homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não for adequadamente
regulado, não for também ele racionalizado.” (COUTINHO, 2011, p. 335).
26
“American democracy was represented in the battle against Communism by the gleaming new suburban
kitchen. When Vice-President Richard Nixon traveled to Moscow to debate Soviet Premier Nikita Khruschev on
the relative merits of capitalism and Communism, the U.S government actually built a model suburban home in
40
Toda a mística feminina da dona de casa e mãe moradora do subúrbio27 erigida pelo
governo e seus aparelhos de hegemonia foi denunciada e desmistificada na célebre obra A
mística feminina, publicada em 1963, por Betty Friedman, bastante lida e influente no
movimento feminista de segunda onda. O livro denuncia exatamente a rigidez do papel de
gênero e limitação da vida à casa e ao casamento, legada as mulheres de classe média dessa
época. Outro aspecto explosivo para as mulheres, especialmente as suburbanas, nesse
momento da sociedade afluente dos anos cinquenta, foi o fato de parte delas terem
conquistado espaços no mercado de trabalho durante a guerra, visto que muitos postos foram
abandonados por trabalhadores que se tornaram soldados (MARCUSE, 2015). É dessa época
a famosa imagem da Rose the Riveter, que, no disseminado cartaz que clama “you can do it!”,
convoca as mulheres a trabalhos da indústria pesada, como mecânicas de aviões, operárias de
fábrica e outros trabalhos na indústria da guerra em geral. Perder essas posições e a relativa
autonomia pelo salário foi um golpe sentido por essas mulheres.
Portanto, a década de cinquenta é marcada pela estabilidade econômica, acesso à bens,
fixidez familiar, enfraquecimento dos sindicatos e perseguições aos comunistas, cenário
construído desde o programa New Deal de combate a crise de 1929. Importante lembrar que
na fusão do American Federation of Labor com Congress of Industrial Organizations, em
1955, “over 200,000 union officers had taken a pledge that they were not, nor had they been,
members of the Communist Party”28 (FAUE, 2017, p. 127), garantindo o fim de qualquer
possibilidade radical por parte dos trabalhadores estadunidenses. No ano seguinte, o já
incipiente Partido Comunista Americano praticamente desaparece (JAMESON, 1991). A força
da categoria do proletariado como classe social e a esquerda clássica estavam em franco
retrocesso.
the middle of a Moscow park. Under TV lights and against the backdrop of gleaming modern appliances, Nixon
set out to show the world a standard of living possible only under American-style capitalism.
Shortly thereafter, when President Dwight Eisenhower invited Khruschev to visit the U.S. he planned to fly the
Russian premier over the Maryland suburbs ringing Washington, so that Khrushchev could see the houses and
swimming pools. He also wanted Khrushchev to look down and see some of the 60 million automobiles that
Americans then owned. Suburban homes, along with the highways and cars that connected them to men’s
workplaces were Eisenhower’s wager for supremacy in the post-war competition with Soviet Russia.”
27
Esse cenário é bem demonstrado no filme “Revolutionary Road”, intitulado “Foi apenas um sonho” no Brasil.
Baseado no romance de mesmo nome, escrito por Richard Yates e lançado em 1961, o filme retrata as aspirações,
trabalho, conflitos e contradições de uma família de um jovem casal que vive o “sonho americano” nos
subúrbios.
28
“mais de 200.000 oficiais sindicais tiveram que jurar não serem ou não terem sido membros do Partido
Comunista” (tradução nossa).
41
29
Nascidos entre 1940 e 1964.
30
A ideia da modernidade como uma medíocre “gaiola de ferro”, para utilizar uma expressão de Max Weber, foi
bastante disseminada por diversos autores. Herbert Marcuse faz críticas no mesmo sentido, usando o conceito de
“sociedade afirmativa” e “unidimensionalidade”, que serão exploradas ao longo dessa contextualização.
42
31
Interpretações da realidade de larga escala, aplicáveis universalmente.
43
32
Para aprofundamento do importante debate sobre pós-modernidade, consultar: “Pós modernismo e política”,
livro organizado por Heloísa Buarque de Hollanda; “Condição pós-moderna”, de David Harvey; “Pós
modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio”, de Frederic Jamenson; “Estruturalismo e miséria da
razão”, de Carlos Nelson Coutinho; “As ilusões do pós-modernismo”, de Terry Eagleton.
33
Capital pode ser definido, grosseiramente, como valorização do valor. Como só a atividade de transformação
da natureza pode gerar valor, ou seja, o trabalho, o capital pode ser entendido como trabalho morto, excedente,
ou mais-valia, apropriação de parte do trabalho vivo. Para Marx, há uma contradição intrínseca nas relações
capitalistas entre o capital e o trabalho.
44
quanto pessoas, sendo impossível uma análise da totalidade concreta. A atitude pós-moderna
levaria, portanto, a não superação desse estado de coisas, mas uma conformação com a
flexibilização e o neoliberalismo, perdendo de vista o caráter universal das relações de
exploração, alienação e opressão capitalistas.
Além da flexibilização do modo de produção, da ascensão da cultura pós moderna, a
referência concreta da esquerda em nível mundial até então, a URSS, passava por dificuldades
enormes e era contraposta a novas experiências revolucionárias como a Revolução Cultural,
Revolução Cubana e os processos de libertação nacional no terceiro mundo. Essas
experiências também em muito influenciariam os movimentos sociais e estudantis,
componentes da nova esquerda americana em geral, formadora também de novos sujeitos
revolucionários. Os grupos de tomada de consciência, modo de encontro de feministas, eram
abertamente inspirados em técnicas chinesas, como será desenvolvido adiante. Além disso, o
próprio W.I.T.C.H baseia seus atos na técnica do “teatro de guerrilha”, inspirado em Che
Guevara e o movimento negro estava largamente informado por um nacionalismo
revolucionário, como o que motivou a libertação dos países africanos. Ou seja, há a
assimilação de novas formas de organização, táticas e estratégias.
É em meio a essa mudança de paradigma cultural, respaldada pelo próprio movimento
real das forças produtivas que surgem as vertentes feministas que rememoram as bruxas. Na
próxima seção analisamos as particularidades do W.I.T.C.H.
34
Conspiração de mulheres do inferno.
46
35
Tipo de manifestação pacífica na qual os manifestantes se sentam ao sinal de alguma violência policial.
47
encontram sério limites, como opressões e interdições dentro do movimento. O que destoa
profundamente dos objetivos de libertação, ainda mais quando os homens militantes
respondem as angústias femininas, sintetizadas por Hayden e King, de forma defensiva e sem
seriedade.
Em uma entrevista feita por Jacobs (2007), Mary King diz que o memorial foi fruto de
intensas conversas dentro do SNCC, principalmente entre mulheres. Ela relembra e entende
retrospectivamente os receios dentro do movimento em relação ao panfleto, sinalizadas no
medo de desviar as atenções da organização da justiça racial. De acordo com ela, do uso do
termo casta está relacionado direta e indireta com as lutas por paz na Índia, lutas que
influenciaram os movimentos americanos, principalmente a utilização de táticas de não-
violência. Ainda, informa que o memorial foi enviado para mais de quarenta e cinco mulheres
militantes pelos Estados Unidos, pois “there needed to be a more explicit awareness of how
women can be affected by the same kinds of inequities that racial minorities were affected
by”36 (JACOBS, 2007, p. 110).
É nesse mesmo período de circulação do panfleto, entre os anos de 1965 e 1967, que o
movimento pelos direitos civis se radicalizou. As táticas não violentas e a reivindicação por
políticas de integração foram sobrepostas pelos clamores de autodeterminação e a intenção de
formular políticas, econômicas e culturais, a partir e da perspectiva negra e que rompessem
com a ordem e a cultura androcêntrica branca. A abordagem anterior passou a ser entendida
como assimilacionista, uma forma de escamotear e ao mesmo tempo manter o regime
supremacista branco (ECHOLS, 2009).
Esse movimento de radicalização ficou conhecido como Black Power e tinha
influência direta de Malcom X, mas foi Stokely Carmichael quem cunhou o termo, em
discurso proferido em 1966 quando se tornou presidente do SNCC. Nesse momento, o SNCC
rompia com a tradição não violenta, se radicalizando no sentido da autodeterminação e a
afirmação da identidade negra e do nacionalismo, pois entendia-se que a comunidade negra
era colonizada dentro do território americano e, assim, deveriam se emancipar clamando,
como os países em África, por sua autodeterminação nacional. O termo Black Power foi
disseminado em nível internacional, transformado em palavra de ordem contra o imperialismo
europeu pelo mundo. Em sua obra, Carmichael diz que o Black Power é “a call for black
people in this country to unite, to recognize their heritage, to build a sense of community. It is
36
“era necessário haver uma consciência mais explícita de como as mulheres podem ser afetadas pelas mesmas
desigualdades que as minorias raciais foram” (tradução nossa).
48
a call for black people to define their own goals, to lead their own organization” 37
(CARMICHAEL, 2015). Nesse momento também é fundado, outrossim, o Partido dos
Panteras Negras, em 1966, com influências do nacionalismo negro mas também do
marxismo-leninismo (DAVIS, 2019).
O artigo “Black Nacionalism: the sixties and the nineties” de Davis (1998) elucida
alguns aspectos importantes do teor orientador do movimento Black Power dos anos sessenta.
Inicialmente, a autora descreve como uma palestra de Malcom X38 ouvida na graduação a
comoveu, exatamente por tocar em questões de ascendência e pertencimento a um grupo.
Além de a fazer se sentir acolhida e estreitamente ligada com a comunidade negra na qual ela
cresceu. O nacionalismo negro, no seu viés estritamente contracultural, desarticulado de
determinações capitalistas mais profundas, como da classe, acaba se rebaixando para a
simples afirmação de identidade baseada numa suposta ancestralidade. Davis (1998) chama
atenção exatamente para esse viés estreito de reivindicação nacionalista e de identidade,
focado tão somente na representatividade, a partir do seu referencial marxista
internacionalista39.
De todo modo, o senso de orgulho racial e a relevância dada a autoestima da
população negra marca uma reviravolta na nova esquerda. No ano de 1967, o SNCC e o SNC
passaram a ser comandados por negros, com o apoio dos outros ativistas, estimulando muitos
participantes, inclusive as mulheres a reinterpretarem seu papel no movimento. Era cada vez
mais aceita a ideia de que os ativistas devem lutar pelas suas próprias causas de maneira
separada. Nesse sentido, a luta pelo fim da Guerra do Vietnã se tornou a luta mais legítima
dos estados unidenses de esquerda, o feminismo a causa legítima das mulheres e o Black
Power a luta legítima dos negros.
Toda essa conjuntura de radicalização do movimento por direitos civis, passando do
integracionismo para a radicalidade gerou consequências e influências para formação da
segunda onda do feminismo. Primeiramente, a ênfase dada pelo movimento Black Power e a
tomada de consciência, ou seja, a imprescindibilidade de o oprimido saber e entender sua
opressão, influenciará diretamente as feministas; e, em segundo lugar, a intensificação do
37
“um chamado para os negros do país se unirem, reconhecerem suas heranças, construir um senso de
comunidade. É um chamado para os negros definirem seus objetivos, de liderar suas próprias organizações”
(tradução nossa).
38
Um dos maiores defensores do Nacionalismo Negro nos Estados Unidos. Fundou a Organização para a
Unidade Afro-Americana, de inspiração separatista.
39
Importante pontuar que ao final de sua vida Malcom caminhava cada vez mais para o entendimento da
situação dos negros vinculado ao aspecto da classe, de modo semelhante aos Panteras Negras (SHAWKI, 2018).
49
afastamento das mulheres dos espaços políticos, seja pelos apelos a autodeterminação, seja
pelas próprias relações intra movimento, cada vez mais deterioradas, fez essas mulheres
procurarem seus próprios pares, ou seja, outras mulheres. Não se pode esquecer que esse
afastamento e a prática da tomada de consciência já vinham de antes, pelo menos desde o
supracitado memorial de Hayden e King (1965), a radicalização do movimento pelos negros
apenas aprofundou o processo.
Em 1966 formações incipientes de grupos feministas já eram perceptíveis,
principalmente com movimentações das participantes do SDS (ECHOLS, 2009). Em 1967,
mais precisamente um ano e meio depois da circulação do panfleto Sex and Caste, ativistas do
SND escrevem o ensaio To Women of the Left (1967). Neste, elas nitidamente revelam o
amadurecimento do processo de tomada de consciência da condição de mulher. No texto é
sublinhada a inadequação das respostas dada pelos movimentos aos problemas denunciados
pelas mulheres. Elas chegam a utilizar o termo “chauvinismo masculino”, com a conotação do
que entendemos hoje por machismo, para explicar as praticas e reações dos homens do
movimento (YOUNGBLOOD, 2004).
Muitas mulheres envolvidas nos protestos e movimentações da nova esquerda
começaram, então, a se organizar separadamente dos homens. É nesse momento que, segundo
Echols (2009), surge uma cisão significativa, entre as chamadas feministas radicais e as
feministas políticas. Essa cisão deriva de questões de fundo e debates de formação do
movimento feminista, tais como a exclusividade das mulheres nos grupos e a especificidade
ou não da luta. Ou seja, existia um importante debate sobre a inclusão de homens nas
organizações e coletivos feministas e se essas organizações pautariam exclusivamente o
problema da opressão das mulheres ou se abarcariam debates sobre outras formas de opressão.
Na verdade, essas são questões muito parecidas com as levantas pelo movimento negro
quando da sua radicalização.
O segmento feminista político defendia que o feminismo deveria fazer parte do
movimento da nova esquerda como um todo. Sendo assim, a bandeira da emancipação das
mulheres funcionaria como uma ferramenta a mais para a transformação radical do mundo.
Conquanto, elas sempre defenderam os encontros separados e exclusivos entre mulheres
militantes. Em contraste, as chamadas feministas radicais desconfiavam da subordinação
automática do movimento a esquerda, tendo em vista as experiências de machismo vividas
enquanto protestavam e se organizavam nesse campo. Obviamente, não existe uma fronteira
rígida. Feminismo político e radical são formas de descrever as tendências do período. Por
50
vezes os grupos se aproximavam mais da abordagem feminista sectária radical, por outras se
aproximavam mais da abordagem geral das políticas.
Na metade dos anos sessenta, portanto, já existiam algumas organizações
especificadamente feministas, formadas por mulheres antes organizadas no SDS e no SNCC e
que se dispersaram para formar seus próprios grupos, teorias e práticas, uma vez que foram
ridicularizadas ou ignoradas por seus companheiros masculinos dentro dos movimentos. A
partir de 1966, elas estavam se reunindo em pequenos grupos para compartilhar suas
inquietações e pensando sobre suas próprias estratégias de luta. A formação desses grupos
marca o afastamento das feministas não só do movimento negro como também da classe
trabalhadora e organizações estudantis.
A National Organization of Women (NOW), criada em junho de 1966, é uma
importante organização feminista desse momento e preocupa-se, primordialmente, em de
fazer valer o Título VII da Lei de Direitos Civis de 1964. O título VII é o que proíbe as
discriminações por sexo, cor, religião e nacionalidade por parte dos empregadores da
iniciativa privada, além da iniciativa pública estadual e federal, e as discriminações dentro
universidades públicas e privadas e sindicatos. A autora do best-seller The Feminine Mystique
(1963), Betty Friedan, foi fundadora e a primeira presidente da organização e as participantes
da organização, a princípio, tendiam para os mais diversos espectros políticos, como o liberal,
radical e até o conservador.
Todavia, na conferência nacional de 1967, o NOW lançou sua Carta de Direitos das
Mulheres para vias de legalização, nesta demandavam os mesmos direitos e oportunidades de
emprego para homens e mulheres, sem qualquer distinção de raça; proteção legal para voltar
ao trabalho depois da gravidez sem perder tempo de aposentadoria e com a devida licença
maternidade; adequar estabelecimentos como bibliotecas e parques para crianças; direito a
educação no seu total potencial tanto para mulheres como para homens; o direito da mulher de
controle da sua reprodução, com a disseminação de informação contraceptiva e legalização do
aborto (TONG, BOTTS, 2009).
O teor da proposta de emenda lançada pelo NOW enfureceu muitas feministas radicais
da organização, que não admitiam a falta de posicionamento sobre assuntos muito importantes
para elas, tais como violência doméstica, estupro, assédio sexual, pornografia e a visibilidade
de outras formas de sexualidade que não a heterossexual. De fato, a tônica do NOW era a
reivindicação por igualdade de direitos, de modo que após a conferência nacional de 1967,
ficou explícito seu alinhamento liberal. A própria análise feita por Friedman (1963) em seu
famoso livro já apontava para o liberalismo. As ideias centrais da autora era de que as
51
mulheres não deveriam ser mães e esposas em tempo integral e sim conciliar esse papel com a
carreira profissional, para poder se desenvolver completamente (TONG, BOTTS, 2009).
Dessa forma, Friedman afirma que a entrada no mercado de trabalho teria como consequência
a diminuição das demandas domésticas, uma vez que forçaria os homens e as crianças da casa
a preparar suas refeições e higienizar seu espaço doméstico.
Portanto, as pretensões e o modo de funcionamento do NOW, quais sejam, as
reivindicações de direitos por meio da participação em comissões e agências governamentais,
não bastavam para feministas que se viam como revolucionárias. Esse foi mais um fator
decisivo para elas começarem a se organizar autonomamente em pequenos grupos. Além
disso, passaram a se denominar libertárias, pois atuam no movimento de libertação das
mulheres se diferenciando das liberais. As libertárias se identificavam com a radicalidade da
nova esquerda, apesar de se diferenciarem quanto a abordagem política, que entendia a luta e
elaboração da questão das mulheres em conjunto com o movimento da nova esquerda como
um todo e a abordagem radical, que entendia que a questão da mulher deveria ser teorizada na
sua especificidade e de forma autônoma a esquerda.
Os principais grupos feministas libertários são o New York Radical Women (NYRW),
o W.I.T.C.H e o Redstockings. Desses, o primeiro a se formar foi o NYRW, no qual o
funcionamento do grupo se pautava pelo processo de tomada de consciência por parte das
mulheres das opressões que elas sofriam. No manifesto de formação e demarcação de posição
do NYRW, chamado Politics of the Ego: a Manifesto for N.Y. Radical Feminists, lançado em
1969, as mulheres organizadas nesse coletivo manifestam suas ideias sobre a opressão
feminina, entendido como um sistema fundamental, agenciado e institucionalizado por
homens. A principal maneira de manutenção da supremacia masculina se dá no nível
psicológico, já que o homem tem satisfação em impor seu eu ao eu feminino fazendo as
mulheres subservientes a ele. Assim, para o NYRW, mudanças no sistema econômico não
afetariam essas relações de opressão, devendo as mulheres lutarem por libertação psicológica.
Instituições como casamento, maternidade, amor e sexo seriam as principais a serem atacadas,
pois as mulheres são identificadas e ensinadas, por meio dessas instituições, a viver papéis
subalternos e subservientes aos homens desde a primeira infância, destruindo o ego da mulher
desde cedo, fazendo-a se entender como inferior. Assim, concluem que:
For the sake of our own liberation, we must learn to overcome this damage to
ourselves through internalization. We must begin to destroy the notion that we are
indeed only servants to the male ego, and we must begin to reverse the systematic
52
40
“Para nossa própria libertação, precisamos aprender a superar o dano feito a nós mesmas através da
internalização. Devemos começar a destruir a noção de que somos realmente apenas servas do ego masculino e
devemos começar areverter o esmagamento sistemático dos egos das mulheres, construindo eus alternativos que
são saudáveis, independentes e autoafirmativos” (tradução nossa).
41
“mulheres puderam descobrir que seu aparentemente problema pessoal único era, frequentemente, o problema
de todas as mulheres, na verdade um problema social e político” (tradução nossa).
53
42
“o movimento de libertação das mulheres é o primeiro movimento radical a basear sua política – na verdade
criar sua política – da concretude da experiência pessoal (...) é compartilhada por todas as mulheres e,
consequentemente, política” (tradução nossa).
54
Feita a devida contextualização, a escrita dessa seção será baseada nos dados contidos
na obra autobiográfica de Robin Morgan (2014), Going too far, especialmente os capítulos:
Three Articles on WITCH, WITCH Hexes Wall Street, WITCH at the Counter-Inaugural,
WITCH Hexes the Bridal Fair; no manifesto de formação do WITCH, nos feitiços e palavras
de ordem documentadas na antologia Sisterhood is Powerful, organizada por Morgan (1970),
e em fotos do primeiro ato do grupo, também retirada da supracitada antologia.
O W.I.T.C.H se forma a partir da cisão entre os grupos feministas políticos e
feministas radicais do NYRW. Mais especificadamente após a enorme repercussão do protesto
contra a realização do concurso de beleza Miss America, organizada pelo NYRW que fez com
que muitas mulheres procurassem a organização para se associar. Com o maior número de
participantes, as reuniões de testemunho e tomada de consciência se tornaram inviáveis, não
havia tempo e espaço para garantir as condições necessárias para aplicação daquela técnica.
Sendo assim, o NYRW se dividiu em vários pequenos grupos. Esses grupos acabaram por
congregar as mulheres que mais se reconheciam politicamente. Assim se formou, entre outros,
os grupos Redrockings e o W.I.T.C.H, inseridos dentro do Movimento de Libertação das
Mulheres, por sua vez inserido dentro da nova esquerda americana.
Todos esses grupos, apesar das suas divergências e tendências são caracterizados na
maior parte da bibliografia teórica sobre o tema como o feminismo radical. O encontro em
pequenos grupos, o afastamento da classe trabalhadora e estudantil formando um movimento
autônomo, a teorização do patriarcado e a relevância dada a máxima “o pessoal é político” são
características comuns a todos os grupos. Suas contribuições teóricas podem ser encontradas
nos livros: The Dialectic of Sex, escrito por Shulamith Firestone; Sexual Politics, de Kate
Millet, e Sisterhood is Powerful, de Robin Morgan (ARRUZZA, 2013).
De modo geral, as participantes do W.I.T.C.H prezavam pela ação direta em protestos
e entendiam o feminismo como parte integrante da esquerda como um todo no sentido de a
opressão de gênero ser uma das características do capitalismo que não necessariamente se
55
sobrepõe a outras opressões. As lutas deveriam abordar as opressões de maneira unificada, por
mais que a condição específica da mulher na sociedade fosse enfatizada. No entanto,
entendiam que o feminismo por si só não faria uma revolução completa.
Já as participantes do Redrockings, conhecidas como feministas radicais, tais como
Shulamith, estavam mais interessadas em levar adiante e aprofundar os processos de tomada
de consciência e testemunho. Elas entendiam que o fim da opressão feminina traria o fim do
capitalismo e das outras opressões, ou seja, o feminismo seria por si só intrinsecamente
revolucionário, muitas vezes foram rotuladas de men haters, inclusive pelas feministas
políticas.
Depois do vanguardista W.I.T.C.H nova-iorquino, outros grupos, chamados covens43,
se formaram. Em Boston, Chicago, São Francisco, Carolina do Norte, Texas e até em Tóquio.
Na contemporaneidade, há W.I.T.C.H em funcionamento na França e em Boston. Nessa
dissertação, damos mais ênfase ao grupo de Nova York por ser o que mais possui documentos,
fotos e informações disponíveis para estudo.
No manifesto de criação, o WITCH declara que todas as mulheres são bruxas, basta
elas ousarem se autoconhecer e existir na sua liberdade. Escrevem que “witches and gypsies
were the original guerrillas and resistence fighters against oppression – particulary the
oppression against women – throught the ages” 44 (MORGAN, 1970, p. 539). Ou seja,
associam a bruxa a ideia de feminista dos tempos mais remotos, aquelas que seriam as
primeiras revolucionárias por não se subordinarem ao poder masculino ou pelas mãos do
Estado absolutista em formação, seja pelas mãos da Igreja. Outros atributos da bruxa são: “the
first Friendly Heads and Dealers, the first birth-control and abortionists, the first alchemists”45
(MORGAN, 1970, p. 539). As mulheres pagãs da Idade Média são entendidas como as
curandeiras das vilas, as parteiras, aquelas que detinham o saber tradicional passado de
geração em geração e que garantia o bem-estar da população, possuíam controle e liderança.
Logo, ser bruxa hoje significaria lutar pelos direitos reprodutivos femininos, como o aborto.
Nessa formulação sobre quem seriam as bruxas, é evidente a utilização dos vestígios
da memória, com os restos não oficiais e cristalizados pelo esteriótipo de lascividade e
bestialização do enquadramento oficial e dominante, capitaneado pelas religiões da época
inquisicional. Isso é tensionado pelo segmento político das feministas radicais, esse novo
43
Grupos, agrupamentos geralmente são aparecem como Witch Covens, agrupamentos de bruxas.
44
“mulheres e ciganas foram as originais guerrilheiras e lutadoras da resistência contra a opressão –
particularmente a opressão contra as mulheres – através das décadas” (tradução nossa).
45
“as primeiras chefes amigáveis e mercadoras, as primeiras a controlar o nascimento de bebês e abortistas, as
primeiras alquimistas” (tradução nossa).
56
46
“homens e mulheres eram partes iguais em uma verdadeira sociedade cooperativa, antes da mortífera repressão
sexual, econômica e espiritual da Sociedade Fálica e Imperialista assumir o poder e começar a destruir a natureza
e a sociedade humana” (tradução nossa).
57
lamentando (LOVE, 2006). Já pode ser detectado aí o gosto pela ação imaginativa e teatral
que seria a marca do W.I.T.C.H.
Robin Morgan, outra fundadora do W.I.T.C.H, em seu livro Going too far (2014),
deixa muito claro, nos artigos sobre a organização, que o objetivo do grupo era colocar em
prática o que aprenderam nos grupos de tomada de consciência, fazendo ações anticapitalistas
e contra a opressão das mulheres. Isso não quer dizer que não existia vontade de pesquisar
profundamente sobre a temática das bruxas, nem de continuar as sessões de tomada de
consciência. A vontade existia, mas a nitidez e o incômodo com a condição da mulher se
sobrepôs.
O modo como se dariam as ações do W.I.T.C.H eram, de acordo com Morgan (2014),
inspiradas esteticamente nos atos dos grupos teatrais de guerrilha dos Yippies, o partido
internacional da juventude. O objetivo era realmente capturar alguns minutos da programação
da grande mídia, que tinha praticamente o monopólio de difusão de ideias. Chamar a atenção
era essencial, o método escolhido para isso foi o do Guerrilla Theatre, termo que surgiu pela
primeira vez em artigo de mesmo nome escrito por Davis (1966). O sentido de guerrilha na
expressão é inspirado em Che Guevara para quem o guerrilheiro é aquele que quer acabar
com uma ordem injusta e construir outra ordem no lugar. Assim sendo, o teatro de guerrilha
deve ser educativo, direcionado para a mudança e ser exemplo da mudança.
E assim foi o primeiro ato do W.I.T.C.H, no Halloween de 1968, feito com muita
imaginação, inquietação e desenvoltura. Morgan (2014) descreve o evento como o dia que as
bruxas enfeitiçam Wall Street. Vestidas de preto e com chapéus pontiagudos, as bruxas
jogaram sua magia ancestral no Distrito Financeiro, símbolo imperialista e tirânico do
capitalismo. No ensaio em que trata especialmente sobre esse episódio, intitulado Witch Hexes
Wall Street, a autora compara as violências enfrentados pelas mulheres naquele momento às
violências enfrentadas por mulheres na época do caça às bruxas (MORGAN, 2014). Nessa
mesma toada, ela compara as manifestantes do W.I.T.C.H e as bruxas da época, entendendo
ambas como “joyous, creative, scientifically minded (the study of early medicine via herbs
and potions) or actively rebellious (witches were the first to disseminate birth-control
information, the first abortionists, the first Heads and Friendly Dealers)47 (MORGAN, 2014,
s.p.).
47
“alegres, criativas, cientificamente atentas (o estudo da prematura medicina via eras e poções) ou ativamente
rebeldes (bruxas foram as primeiras a disseminar informação sobre controle de parto, as primeiras abortistas, as
primeiras Chefes e Comerciantes amigáveis.)” (tradução nossa).
58
Ainda no ato de Wall Street, quando elas chegaram na frente da bolsa de valores,
cantaram a seguinte canção: “Wall Street, Wall Street, Crookedest Street of All Street /
Foreign Exchange / Student Exchange / Wife Exchange / Stock Exchange / Trick or Treat/ Up
Against the Wall Street!”48 (MORGAN, 2014, s.p). Elas não conseguem entrar na bolsa, pois
sofreram resistência dos guardas. Impedidas de entrar na Bolsa de valores, elas se reuniram
em um círculo sagrado e, de olhos fechados e cabeças baixas, conjuraram um feitiço para
fazer o valor da bolsa cair, esse ato pode ser observado na Figura 1.
Em seguida, se deslocam para o One Chase Manhattan Plaza onde conjuraram uma
maldição contra os bancos, como pode ser visto na Figura 2. Além disso foram feitas diversas
pinturas em stencil no chão e nos muros. Entraram em bares exclusivos para homens para
exorcizar aqueles que ali assistiam shows eróticos de mulheres. Por fim, andaram pelas ruas
distribuindo dentes de alho e recitaram as seguintes frases: “We Are Witch, We Are Women,
We Are Liberation, We Are We”49 (MORGAN, 2014, s.p.), também escrita em cartões que
foram distribuídos e entoaram a assertiva: “ Nine Million Women burned as Witches”50 em
tom de cântico (MORGAN, 2014, s.p.). Os versos, encantamentos, frases e canções utilizadas,
as vestimentas com usos de capas, a descrição do ato em geral, baseado nos dados retirados
48
“Wall Street, Wall Street, A mais desonesta de todas as ruas / câmbios / intercâmbios de estudantes /
intercâmbios de esposas / Bolsa de valores / Doçuras e travessuras / Contra Wall Street!” (tradução nossa).
49
“Nós somos bruxas, nós somos mulheres, nós somos a liberação, nós somos nós” (tradução nossa).
50
“Nove milhões de mulheres morreram como bruxas” (tradução nossa).
59
das memórias de MORGAN (2014), evidenciam o quanto a imagem da bruxa foi pungente
para essas mulheres.
Como foi anteriormente pontuado, o interesse pelo tema da bruxa data da primeira
onda no século XIX, de maneira irrisória, e volta com toda força no contexto da segunda onda.
O W.I.T.C.H inaugura essa retomada que será mais elaborada e disseminada pelas feministas
espirituais e as marxistas.
O W.I.T.C.H realoca a narrativa de que as mulheres bruxas eram pecadoras, más e
lascívias, ventilado pela igreja católica para a narrativa feminista de que as bruxas são as
primeiras cientistas, alquimistas e feministas. Essa nova acepção da bruxa pode ser entendida
como uma tentativa de reformulação da memória social sobre essa personagem histórica. Ora,
de acordo com Halbwachs (2006), o personagem histórico pode ser considerado um dos
pontos de referência que estruturam nossa memória. A bruxa é uma personagem que a maioria
dos seres têm acesso desde a mais tenra infância, por intermédio de filmes e histórias infantis,
sendo personificada, geralmente, na vilã. Na linguagem comum, a bruxa é concebida como
xingamento que designa a mulher como feia e velha, já na concepção eclesiástica, a bruxa
deveria ser queimada por sentir prazer ou manusear ervas. E para além do discurso e da
cultura machista é fato que, pelo menos milhares de mulheres foram queimadas na Europa,
com consequências inclusive nas colônias, como nas Treze Colônias Inglesas que formariam
os Estados Unidos. A criação de outra memória social para a bruxa e o caça às bruxas foi uma
compreensão de parte do movimento feminista. Essa compreensão foi posta em ação pelo
W.I.T.C.H.
60
51
“estilo, humor, tom de militância, diversão e revolução” (tradução nossa).
61
Figura 3 - Mulher com grinalda de dólares em manifesto na feira de noivas no Madison Square Garden
We are gathered together here in the spirit of our passion to affirm love and
initiate our freedom from the unholy state of American patriarchal oppression.
We promise to love, cherish, and groove on each other and on all living things.
We promise to smash the alienated family unit. We promise not to obey. We
promise this through highs and bummers, in recognition that riches and objects
are totally available through socialism or theft (but also that possessing is
irrelevant to love). We promise these things until choice do us part. In the name
of our sisters and brothers everywhere, and in the name of the Revolution, we
pronounce ourselves Free Human Beings (MORGAN, 2014, s.p.).53
52
“Confrontando as putas de casa”.
53
“Nós estamos reunidas aqui no espírito da nossa paixão em afirmar o amor e iniciar nossa liberdade de todo o
estado Americano de opressão patriarcal. Nós prometemos amor, acalentar e dançar umas com as outras e com
todas as coisas vivas. Prometemos esmagar a unidade familiar. Prometemos não obedecer. Prometemos isso por
meios altos e péssimos, sabendo que riquezas e objetos estarão totalmente disponíveis por meio do socialismo e
do roubo (mas também a posse é irrelevante ao amor). Nós prometemos essas coisas até que a escolha nos separe.
Em nome das nossas irmãs e irmãos em todo mundo, e em nome da Revolução, nós nos autoproclamamos
62
4 O FEMINISMO ESPIRITUAL
54
De acordo com o site oficial da Igreja, “a missão da Igreja de Todos os Mundos é desenvolver uma rede de
informações, mitologias e experiências que forneçam contexto e estímulo para despertar Gaia e reunir Seus
65
denominar um movimento que ele mesmo estava inserido (ADLER, 2006). Essas expressões
dizem respeito as espiritualidades que resgatam religiões antigas, anteriores ao cristianismo,
para o mundo moderno atual. De maneira geral, o feminismo espiritual também é parte desse
movimento e se expressa como mais uma forma contracultural dos anos sessenta, que clama
pela modificação da cultura no seu aspecto religioso, entendido como patriarcal.
Apesar do fim do W.I.T.C.H, Robin Morgan continua a ser uma articuladora
importante do movimento das mulheres, atuando dentro do NYRW. É um manifesto escrito
por ela que demonstra os primeiros sinais da radicalização cultural que seria operada por parte
do movimento, constantemente questionado, no início dos anos setenta, sobre as táticas e
estratégias formuladas e suas eficiências. O manifesto em questão se chama Goodby to All
That, publicado em 1970 no jornal Rat, um dos que mais circulavam na nova esquerda. No
seu conteúdo reforçava e denunciava, de maneira irônica, os mesmos problemas detectados
por Mary e King, quatro anos antes: a relegação do movimento feminista a um estatuto
secundário e a permanência das relações problemáticas entre as mulheres e os homens dentro
da nova esquerda. Em síntese, apontava as contradições entre o feminismo e a nova esquerda.
De acordo com Echols (2009), o manifesto de Morgan já dá sinais do surgimento do
feminismo cultural, que seria resultado da reação a manutenção do comportamento machista
por parte dos homens na nova esquerda. O movimento feminista, então, opta por aprofundar o
sectarismo, antes entendido como estratégia momentânea, por vezes circunscrita a alguns
grupos do movimento feminista. No entanto, é o manifesto Mother Right, publicado em 1974
e escrito por Jane Alpert, feminista radical atuante no coletivo Weather Underground
Organization (WUO), formado a partir do SDS e atuante pelo mesmo esquema de pequenos
grupos de tomada de consciência, que dá forma mais consistente ao que seria o feminismo
cultural. De maneira geral, o feminismo cultural pode ser entendido como uma radicalização
do feminismo radical pela via cultural, feita a partir das próprias bases de funcionamento do
feminismo radical.
Ora, se é verdade que o feminismo radical prezava pela primazia do sistema patriarcal
sobre o capitalismo, o que levava as suas estratégias de tomada de consciência e táticas de
ação se concretizarem de forma sectária e exclusiva para mulheres, o feminismo cultural se
radicaliza para o entendimento ainda mais essencializador da mulher, com o fim de criar uma
cultura feminina própria. O viés político, antes uma consequência depreendida das questões
filhos por meio de uma comunidade tribal dedicada à administração responsável e à evolução da consciência”
(CHURCH OF ALL WORLDS, S.d.).
66
íntimas e pessoais das mulheres, foi cada vez mais sobreposto, na prática, pelos encontros de
mulheres em si, criando uma espécie de “santuário feminista” em meio ao patriarcado, sem
militância prática ativa.
Dentro desse contexto, a estratégia para construir a cultura feminina completa seria
necessária para forjar espiritualidades próprias às mulheres, além de novas sensibilidades,
artes, estéticas e filosofias. Muitas vezes, esse movimento desembocou, para além do
feminismo espiritual, em uma série de espaços comandados, produzidos e dirigidos por
mulheres, que empreenderam serviços e negócios como: restaurantes, centros terapêuticos,
companhia de teatro, ateliês e etc, criando uma espécie de mercado de nicho feminista
(WALTERS, 1985).
Boa parte dessa comunidade feminina foi articulada por feministas radicais lésbicas,
que desde a criação de coletivos lésbicos, como o Radicalesbians, fundado em 1970, e o
coletivo The Furies, em 1971, se desenvolvem como movimente específico dentro do
feminismo radical e, na maior parte dos casos, em consonância com o viés culturalista e o
ativismo gay.
Importante lembrar que o plano de fundo em que isso se desenvolve não é mais o do
início do ocaso da “era de ouro”, mas o completo fim dessa anômala fase do capitalismo. O
presidente era Ronald Reagan, que manejava a intensa recessão econômica pelo modo
neoliberal. Ao mesmo tempo se forma a nova direita americana, new right, com características
mais brandas que a direita conservadora sulista. A new right é a favor das cotas e simpáticas
ao ativismo negro no que diz respeito a avanços legais, porém contrária a políticas de
seguridade social, muitas vezes baseadas em critérios étnico raciais. Há, ainda, a expressão
antifeminista conservadora da nova direita, liderada por mulheres como Phyllis Schlafly e
Beverly LaHaye (FINGUERUT, 2014).
O feminismo espiritual se desenvolve, portanto, a partir da própria forma de
organização e cultura ativista dos pequenos grupos de tomada de consciência, uma vez que a
nova religiosidade, especialmente sensível às mulheres e ao feminino, ampliaria ainda mais a
consciência por meio da espiritualidade. O fato é que a asserção “o pessoal é político” começa
a abarcar, também, a questão espiritual. De acordo com Adler (2006), pesquisadora ativa do
movimento e devota da religiosidade feminista, a divisão entre a esfera espiritual e a esfera
política seria uma falsa dicotomia criada pelo patriarcado, assim como a da mente e do corpo,
da carne com a alma.
Assim, o feminismo espiritual, baseado no holismo, induziria as mulheres, com a
ajuda de rituais, a alcançar profunda autoconexão pessoal, desenvolver a intuição e,
67
consequentemente, agir como um todo uno entre mente e alma, natureza e civilização em um
processo circular e não linear, ao contrário da linearidade, do progresso técnico e da separação
entre corpo e alma incentivada pelo capitalismo erigido pelos homens. Com vistas a criação
da sociedade mais igualitária, seria necessário uma nova cultura que integrasse, ao contrário
do que acontece no patriarcado, o interior e o exterior do indivíduo concomitantemente, em
um único processo. Só destruindo dualidades criadas pelos homens, expressa nas
religiosidades patriarcais com seu Deus pai transcendente, ou seja, separado e acima dos
humanos, que a humanidade atingiria um novo patamar de conexão e harmonia.
Muitas dessas ideias não são específicas do feminismo espiritual. De fato, muitas
foram desenvolvidas durante longo período, tendo as características mais sistematicamente
aparecido na Inglaterra. No movimento renascentista europeu, por exemplo, já podem ser
detectados alguns elementos que identificariam a bruxaria moderna: o interesse pelos povos
greco-romanos e outros povos originários como os galegos, os germânicos e os eslavos e suas
formas de vida e o interesse sobre folclore e ocultismo, temas inerentes ao romantismo que
perpassam toda a história do paganismo. Na Inglaterra, especificadamente, as releituras e
romantizações de povos da Antiguidade, como os celtas e os vikings; o crescimento e
propagação de sociedades secretas, com seus rituais e cerimônia; a era vitoriana e a reação
romântica pela via da valorização da cultura greco romana privilegiando a beleza e o
hedonismo são elementos que contribuem para o protagonismo desse país na formulação da
bruxaria e do neopaganismo (DUARTE, 2008).
Se nas poesias do romantismo inglês do início do século XIX “passa a ser comum
aparecer uma deusa genérica, associada ao luar e à natureza, muitas vezes chamada
simplesmente de ‘Mãe Natureza’ ou ‘Mãe Terra’” (DUARTE, 2008, p. 38), foram os estudos
das religiosidades primitivas, a partir de meados do século XIX e início do século XX,
desenvolvidos por acadêmicos europeus, que impulsionaram ainda mais a futura formação do
neopaganismo. Desses estudos destacam-se o do arqueólogo britânico, Sir Arthur Evans, que
afirmou a existência de uma realidade pré-histórica na qual se teria adorado uma única deusa
feminina; os de Jane Ellen Harrison, na Grécia, que desenvolvem a ideia da veneração à deusa
tríplice que representava a natureza e seus filhos os frutos da natureza e da Terra desde a era
paleolítica; o livro The Golden Bought, de Sir Jamens G. Frazer, publicado de maneira
compilada em 1922, no qual escreve sobre as religiosidades antigas serem rituais em torno da
fertilidade, nos quais veneravam a Deusa da natureza e seu consorte. Esse conjunto de obras
apresentam características comuns das religiosidades da Europa ancestral: celebrações
sazonais e dos ciclos naturais, valorização da ideia de morte e renascimento e adoração de
68
Deusas (DUARTE, 2008; ELLER, 1991, 2005). Apesar das controvérsias e críticas ventiladas
desde as suas publicações, as conclusões desses estudos alcançaram popularidade e continuam
a serem aceitas em alguns meios até hoje.
Outra ideia importante desenvolvida à época é a da existência de um matriarcado pré-
histórico, proveniente, principalmente, do livro O Direito Materno: uma pesquisa sobre a
ginecocracia do mundo antigo segundo sua natureza religiosa e jurídica, de 1861, de Johann
Jakob Bachofen. Essa ideia perpassa o feminismo americano desde a primeira onda, nas obras
de Matilda Joselyn Gage e Susan B. Anthony e de maneira implícita nas manifestações do
W.I.T.C.H e será utilizada pelo feminismo espiritual. Bachofen postula a ideia da existência
de um matriarcado pré-histórico tendo como base os mitos sobreviventes da Grécia e Roma
antigas. Outros autores também desenvolvem a tese do matriarcado, como James Frazer e até
mesmo Carls Jung, ambos influenciando diretamente o feminismo espiritual (ADLER, 2006;
CUSACK, 2008; SIMONIS, 2012).
A relação, entretanto, dessas religiões primitivas com a bruxa e a bruxaria foi
popularizada com a publicação, pelo folclorista Charles G. Leland, do livro Aradia, or The
Gospel of the Italian Witches, Etruscan and Roman Remains e Legends of Florence, de 1899 e
pela publicação do livro The witch-cult in Western Europe: A Study in Anthropology, em 1921,
da autora Margaret Murray. Nesses trabalhos ambos os autores associam as pessoas
processadas e queimadas por bruxaria na época da inquisição às praticantes de religiosidades
pagãs, ou da religião ancestral da Europa, que teria sido transmitida em segredo pela via oral.
No livro Aradia, Leland não só conta a história da antiga religião, reprimida pela igreja
católica, como também descreve os rituais, reuniões e sortilégios. Lançado logo depois, o
livro da Murray também associa a bruxaria as religiosidades primitivas e ancestrais, como se
as mulheres perseguidas fossem as herdeiras dessas religiosidades. Todavia, a autora enfatiza
como característica principal das religiosidades ancestrais o culto da fecundidade,
característica anteriormente apenas sublinhada por Frazer.
No início do século XX, portanto, acontece uma virada de interpretação, na Inglaterra,
dentro dos meios intelectualizados, da interpretação das bruxas da Idade Média, que agora
seriam entendidas não como causadoras de malefícios pactuadas com o demônio, mas como a
sacerdotisa de antiquíssimo culto pagão, guardiã dos segredos do passado remoto, pactuadas,
na verdade, com o Deus Dianus, consorte e filho da Deusa Diana, que por ter na sua
representação chifres foi associada pela igreja católica, de maneira oportunista, ao Diabo
(DUARTE, 2008). Essa associação da religiosidade primitiva ao caça às bruxas só foi possível
devido aos desenvolvimentos dos estudos sobre as religiosidades primitivas por antropólogos
69
55
Inventada por Gerald Gardner.
70
próprias variações, como Wicca diânico, também conhecido como Feminist Witchcraft56. A
disseminação do Wicca nos Estados Unidos, nos anos 60, é relacionado com o próprio espírito
da época, sendo outra forma de expressão da contracultura. Os próprios fundamentos da
religião como a adoração da Deusa, uma mulher, que é a própria terra e a natureza, denotam
seu viés disruptivo: a oposição ao cristianismo e a vida urbana cindida da natureza. Uma
característica relevante, presente também no feminismo radical, é a necessidade de se definir
como bruxa.
O feminismo espiritual se apropria da formulação do Wicca feito por Gardner e das
teorizações sobre a relação das religiões ancestrais de culto à Deusas. A filosofia holística, a
essencial relação harmoniosa da mulher com a natureza e, consequentemente, seu viés
político ecológico, a ideia da existência do matriarcado pré-histórico, a devoção às deidades
femininas, muitas vezes entendidas como a Grande Mãe são características do feminismo
espiritual. Em alguns grupos, há a exaltação das capacidades biológicas da mulher, como o
poder de criação de outra vida e a regra cíclica da menstruação.
O feminismo espiritual se forma em conjunto com o movimento New Age e são, de
fato, o mesmo movimento, se distinguindo apenas pela demarcação política feminista e, não
raro, ecológica, apesar de muitas praticantes do feminismo espiritual não se reconhecerem no
movimento da nova era. Esse movimento está imerso na contracultura americana e renova
algumas de suas principais expressões como o movimento beat e o movimento hippie. A
maior novidade em relação a essas expressões contraculturais seria a exaltação do aspecto
espiritual, no sentindo fundante de religiosidades do eu, nas quais os deuses e o poder divino
habitam a própria pessoa, que pode acessá-los sem a mediação de templos e grandes rituais
mas no próprio cotidiano. Alguns amuletos como cristais, pêndulos, incensos, velas ajudam
esse acesso, outras técnicas mais mediativas como o tarô, massagens, meditação também são
utilizadas.
É muito comum nesse movimento a divisão entre a natureza e a civilização. Por um
lado, a natureza representaria o princípio feminino, o mito, a ancestralidade, a sensação, a
espontaneidade. De outro lado, a civilização representaria o masculino, a urbanização, a
tecnologia, o presente, o progresso, a racionalidade, o controle. Na Nova Era, o que é elevado
ao estatuto de sagrado é exatamente a dimensão da natureza, a ancestralidade, o feminino, etc.
O que é bastante evidente no feminismo espiritual, especificadamente. Nesse sentido, a nova
era em muito se opõe a modernidade, se aproximando das características românticas.
56
Feitiçaria feminista.
71
A primeira teórica apresentada será a teóloga ou tealoga, como prefere ser chamada,
Mary Daly, visto que é a pioneira, na circunscrição espacial e temporal da dissertação, a
apresentar uma crítica ao cristianismo como religião patriarcal pelo viés do feminismo radical
e a apresentar teorias para possíveis transvalorações dessa religião pelas feministas.
Mary Daly é doutorada em teologia sagrada e lecionava desde 1967, na Faculdade de
Boston, nos Estados Unidos, cursos sobre teologia, ética feminista e patriarcado. O
lançamento do seu primeiro livro, The Church and the Second Sex, em 1968, causou reações
na Universidade, que alterou o contrato de Daly, a única mulher trabalhando no Departamento
57
Zbudapest, Reclaiming e Susan B Anthony Coven.
72
one who is in harmony with the rhythms of the universe; Wise Woman, Healer; one
who exercises transformative powers: Shape-shifter; one who wields Labrys-like1
powers of aversion and attraction-averting disaster, warding off attacks of demons
and Magnetizing Elemental Spiritual Forces58 (DALY, 1987 apud GRIFFIN, 2008, p.
180).
Em seu segundo livro, Beyond the God-Father, lançado em 1973, Daly apresenta
crítica muito mais radicalizada da Igreja Católica do que a feita em seu primeiro livro. Nessa
obra a autora está mais centrada na linguagem e nos símbolos repressores produzidos por essa
58
“aquela que está em harmonia com os ritmos do universo; Mulher Sábia, Curandeira; aquela que exercita
poderes transformativos; Meta morfa, aquela que exerce poderes com o lábris e o poder de aversão e atração de
disastres, repelindo ataques de demônios e Forças Espirituais Magnéticas elementares” (tradução nossa).
73
Mary Daly pretende, inspirada na sua leitura de Simone de Beauvoir, criar ferramentas
e teorias que sirvam a construção de uma filosofia e religião próprias as mulheres. A
linguagem é um ponto central da obra de Daly, visto que, segundo a autora, a capacidade de
nomear foi interditada às mulheres, o que forma uma barreira ao desenvolvimento da
criatividade: ““the liberation of language is the rooted in the liberation of ourselves”60 (DALY,
1985, p. 8). O encontro das mulheres organizadas em grupos no movimento feminista,
principalmente, por meio dos grupos de tomada de consciência, já criava novas palavras a
partir da escuta uma das outras. O uso mais corriqueiro dado a palavra sisterhood (sororidade),
por exemplo, é sinal das mudanças criativas causadas pelo encontro das mulheres, essas
“alienígenas” que habitam um mundo masculino, como diz a autora. Desse modo, Daly
conclui que “women will free traditions, thought and costumes only by hearing each other and
thus making it possible to speak our word” 61 (DALY, 1985, p. 8), mais adiante afirma o
caráter contracultural do feminismo e seu potencial de criação de outra cultura que ascenderia
a outro nível espiritual, além daquele agregado pelo Deus pai. A palavra e a linguagem na
libertação das mulheres são de tal maneira valorizada que o último livro de Daly é exatamente
um dicionário, no qual ressignifica e cria palavras relacionadas ao feminino.
No seu terceiro livro Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism, de 1978,
Daly passa a desenvolver ideias muito mais essencializantes. Ela continua a apostar na
potencial radicalidade da transvaloração de valores dominantes na cultura como meio para a
libertação das mulheres. Agora, para a autora, as características boas e ruins designadas às
59
“mostrar que a revolução das mulheres, na medida em que é fiel à sua própria dinâmica essencial, é uma
revolução ontológica e espiritual, apontando além das idolatrias da sociedade sexista e provocando ações
criativas na e em direção à transcendência” (tradução nossa).
60
“the liberation of language is the rooted in the liberation of ourselves”.
61
“as mulheres libertam tradições, pensamentos e costumes apenas ouvindo umas às outras e, assim, tornando
possível espalhar nossa palavra” (tradução nossa).
74
mulheres pelo patriarcado devem ser abandonas para se buscar, na verdade, a originalidade
feminina pré patriarcal (TONGS, BOTTS, 2009), recepcionando a ideia de matriarcado.
Metáforas com o termo “estupro” são utilizadas para denotar a ação dos homens com o
sistema ecológico: “The rulers of patriarchy – males with power – wage an unceasing war
against life itself. Since female energy is essentially biophilic, the female spirit/body is the
primary target in the perpetual war agression against life”62 (DALY, 1990, p. 325).
O título do livro faz referência à ginocracia, sistema baseado no poder feminino, que
deve ser construído para sobrepor o sistema androcêntrico no qual vivemos. É referência
também ao papel da ginecologia moderna americana, que presta o papel de desvirtuar os
ciclos naturais da mulher ao prescrever pílulas que, por vezes, suprimem a menstruação ou
pílulas que recompõem os níveis hormonais na menopausa. Esse seria, segundo a autora, o
modo específico de dominação patriarcal no ocidente, que em outros lugares se expressa na
deformação dos pés (China), na mutilação genital (África) e na queima de mulheres (Europa).
Todos esses sistemas criados pelo homem e outros dispositivos dele proveniente, como a
farmácia, a ciência em geral e a tecnologia, serviram tanto para destruição do planeta, quanto
para o rebaixamento de mulheres. Somente a reconciliação com os ciclos da natureza,
capitaneado pelas mulheres, uma vez que elas estão em contato direito com o ciclo biosférico,
por meio da sua biologia específica, pode devolver o equilíbrio ao mundo.
Nesse trabalho teórico, portanto, Daly desenvolve a identidade entre a mulher e a
natureza. Importante pontuar que a autora é amplamente influenciada por Nietzsche,
especialmente pela ideia de criação de outra religião e ética com base na transvalorização dos
valores, tal como o filósofo apresenta em Assim falou Zaratustra (1885). Outrossim, o tipo de
essencialismo que a autora recaí é bastante comum para as religiosidades da Nova Era e,
também, para o feminismo espiritual. Como teóloga e participante do movimento feminista
radical, Daly faz uma série de críticas que resvalam no feminismo espiritual como o caráter
patriarcal das religiões monoteístas protestantes e católica e a distância imposta pelo mundo
técnico e moderno dos ciclos naturais. Porém, seu trabalho e ativismo está circunscrito a
academia e aos grupos de tomada de consciência. Serão Z. Budapest e sua pupila, Starhawk,
as principais disseminadoras da Bruxaria Feminista, baseada na religião Wicca criada por
Gardner, nos Estados Unidos.
62
“Os governantes do patriarcado - homens com poder - empreendem uma guerra incessante contra a própria
vida. Como a energia feminina é essencialmente biofílica, o espírito / corpo feminino é o principal alvo da
perpétua agressão de guerra contra a vida” (tradução nossa).
75
63
Agrupamento de bruxas.
64
Grupo de bruxas.
76
Deusa é entendida como imanente às mulheres, Z. Budapest fala dos “mistérios feministas”
(GRIFFIN, 2008), que são as próprias fases da vida das mulheres participantes: menarca,
gravidez, parto e menopausa e a a capacidade de renovação. No manifesto de criação,
disponível no site do grupo (THE NATIONAL SUSAN B. ANTHONY), destacamos os
seguintes pontos:
We believe that feminist witches are women who search within themselves for the
female principle of the universe and who relate as daughters to the Creatrix.
We believe that, just as it is time to fight for the right to control our bodies, it is also
time to fight for our sweet woman souls. We believe that in order to fight and win a
revolution that will stretch for generations into the future, we must find reliable
ways to replenish our energies. We believe that without a secure grounding in
women’s spiritual strength, there will be no victory for us. We believe that we are
part of a changing universal consciousness that has long been feared and prophesied
by the patriarchs.
We are committed to winning, to surviving, to struggling against patriarchal
oppression.
We are committed to defending our interests and those of our sisters through the
knowledge of witchcraft: to blessing, to cursing, to healing, and to binding with
power rooted in woman-identified wisdom 65 (THE NATIONAL SUSAN B.
ANTHONY, s.p.).
Nesses pontos fica evidente o caráter politizado e ativista dado a religião Wicca pelas
feministas: o abastecimento espiritual da consciência é um fato essencial para a mudança da
sociedade patriarcal. O entendimento da existência do matriarcado e da associação da
espiritualidade wicca com o conhecimento dos povos ancestrais, herdados pelas bruxas,
também é recepcionado. Rituais de amaldiçoamento de homens que causaram mal para
mulheres, quando provado culpados são praticados pelos covens, além do acolhimento dessas
mulheres vítimas diretas ou indiretas da violência aberta provocada pelo patriarcado. De
acordo com Griffin (2008) e Z. Budapest (S.d.), a sacerdotisa foi presa em 1975 ao fazer a
leitura de tarô para uma policial a paisana, fato que ajudou em muito a difusão da
espiritualidade feminista por ela criada.
Outros processos que disseminaram o feminismo espiritualista e as religiões da Deusa
foi a criação, a partir de 1975, de grupos organizadores e agregadores dos diversos covens,
65
“Acreditamos que as bruxas feministas são mulheres que buscam dentro de si o princípio feminino do universo
e que se relacionam como filhas com a Criadora.
Acreditamos que, assim como é hora de lutar pelo direito de controlar nossos corpos, também é hora de lutar por
nossas doces almas. Acreditamos que, para lutar e vencer uma revolução que se estenderá por gerações no futuro,
precisamos encontrar maneiras confiáveis de reabastecer nossas energias. Acreditamos que, sem uma base segura
na força espiritual das mulheres, não haverá vitória para nós.
Acreditamos que fazemos parte de uma consciência universal em mudança que há muito tempo é temida e
profetizada pelos patriarcas.
Estamos comprometidos em vencer, sobreviver, lutar contra a opressão patriarcal” (tradução nossa).
77
como Convent of Goddes 66 , para publicização, patrocínio de eventos etc. Em 1984 outra
organização com o mesmo objetivo foi criada, The Reformed Congregation of the Goddes67. A
partir dessas organizações diversas revistas sobre a espiritualidade da Deusa começaram a
circular, como a WomanSpirit e a SageWoman, algumas capas podem ser conferidas nas
Figuras 4 e 5.
66
Convento das Deusas.
67
Congregação reformada da deusa.
68
Bruxaria de fadas, acolhe mitos de fatas, elfos, espíritos, etc.
78
69
“vê a deusa como imanente aos ciclos de nascimento, crescimento, morte, decadência e regeneração da terra”
(tradução nossa).
70
“nossa prática surge do profundo compromisso espiritual com a terra, a cura e a ligação da mágica à ação
política” (tradução nossa).
71
“a bruxaria pode ser vista como uma religião da ecologia. Seu objetivo é a harmonia com a natureza, para que
a vida possa não apenas sobreviver, mas prosperar” (tradução nossa).
79
Dança espiritual e a religiosidade da Deusa. Ela afima também que apesar de a inquisição
operar a caça às bruxas, a religião da Deusa foi guardada subterraneamente, em silêncio,
codificada em contos de fadas e músicas folclóricas. Assim, as participantes devem se afirmar
bruxas pois
The word witch carries so many negative connotations that many people wonder
why we use it at all. Yet to reclaim the word Witch is to reclaim our right, as women,
to be powerful; as men, to know the feminine within as divine. To be a Witch is to
identify with nine million victims of bigotry and hatred and to take responsibility for
shaping a world in which prejudice claims no more victims. A Witch is a “shaper”, a
creator who bends the unseen into form, and so becomes one of the Wise, one whose
life is infused with magic”72 (STARHAWK, 1999, p. 31-32).
Nessa passagem fica claro o uso político da memória como forma de um grupo
oprimido historicamente, mulheres, no caso as perseguidas como bruxas, subverterem os
predicativos e motivações para sua repressão, como lascividade, pacto com diabo, feiura, e
rememorarem as bruxas como mulheres poderosas, sábias e, a partir disso, se reconhecerem e
se articularem politicamente e, porque não, espiritualmente visto que toda a perseguição
possui o componente cristão como opressor. Há uma inversão valorativa, exaltando supostas
características das mulheres perseguidas, facilitando o processo de identificação para operar a
elevação da consciência em relação a sua própria opressão.
Ainda que a memória seja utilizada para agregar um grupo, de maneira mais rígida, o
entendimento do tempo pela espiritualidade feminista como circular, ligado ao próprio
movimento da natureza se relaciona, em certa medida, com o conceito bergsoniano de
duração, que é a fluidez e o tempo impossível de ser espacializado. Ora, o feminismo
espiritual condena o tempo marcado, técnico, racionalizado e quantificável que a vida urbana
e assalariada impõe. A busca da elevação da consciência pela união do corpo e da alma e do
próprio ser com a natureza, visto que a Deusa é a natureza e o divino está em cada uma,
requer a apreensão menos intelectualizada da própria existência, valorando, assim como
Bergson, a intuição, único método capaz de coincidir com o fluxo contínuo da duração.
Nos rituais maiores e dançantes da bruxaria feminista, feitos sempre ao som de
músicas, são estimulados os movimentos enlaçados pela criação incessante do devir, o vir a
ser em processo das bruxas em ritual, se evadindo da instrumentalidade. A espiritualidade
72
“A palavra bruxa carrega tantas conotações negativas que muitas pessoas se perguntam por que a usamos.
Contudo, recuperar a palavra bruxa é recuperar nosso direito, como mulheres, de sermos poderosas; para homens,
conhecerem o feminino interior como divino. Ser uma bruxa é se identificar com nove milhões de vítimas de
fanatismo e ódio e assumir a responsabilidade de moldar um mundo no qual o preconceito não exige mais
vítimas. Uma bruxa é uma “modeladora”, um criador que dobra o invisível em forma, e assim se torna uma das
Sábias, alguém cuja vida é infundida com magia” (tradução nossa).
80
feminista tenta captar aquilo que ainda foi impossível de conceitualizar e elevar a consciência
a expansão e integração completa com o mundo. A experiência mítica seria o contato do ser
com a própria força criadora da vida, as espiritualistas estariam, ao se deixarem tomar pela
intuição, se aproximando do contato com o próprio ímpeto da criação e da evolução humana,
num nível individual.
Tanto o W.I.T.C.H quanto o feminismo espiritual atuaram politicamente
fundamentados na subversão criativa da memória da bruxa, seja pela ressignificação
simbólica, seja pela criação mística. Pelas próprias condições de formação desses grupos, o
constante atrito com outros ativistas homens e a radicalização do movimento negro, o
sectarismo e a apreensão da condição específica da mulher foram percussos orgânicos.
Entretanto, o entendimento de que as mulheres são oprimidas por serem mulheres é o alcance
de um nível de consciência que desafia o naturalizado, mas a passagem dessa percepção para
o desejo de inversão dos sinais sociais, ou seja, a exaltação da mulher como superior em vez
do homem, é claramente um limite para a emancipação humana. O pensamento
essencializador que perpassa as duas vertentes do feminismo até agora apresentados atua, em
última instância, da mesma maneira que o sistema de opressão estruturante das próprias
identidades por elas problematizadas.
O viés romântico de retorno a natureza e sua ciclicidade e a condenação da tecnologia
e da modernização, como fez o feminismo espiritual, perde de vista que é o próprio trabalho
humano o mediador primeiro entre o homem e a natureza. Toda tecnologia é feita a partir da
natureza pela mediação humana num longo processo de aprendizado e criação, e poderia
servir a suas necessidades e a sua emancipação. Todavia, a sociedade está estruturada segundo
o modo de produção capitalista, que opera conforme sua própria lógica, a geração de lucro,
concentrado nas mãos dos poucos que detém os meios de produção, também conhecidos
como burguesia, nas suas mais diversas frações, industrial, bancária, fundiária, etc.
No próximo capítulo abordamos a compreensão marxista feminista do caça às bruxas.
Diferentemente das perspectivas apresentadas, as pensadoras Silvia Federici e Leopoldina
Fortunati se apoiarão na crítica da economia política, ou seja, na crítica do modo de produção
e reprodução da vida como estabelecido, para compreender tal fenômeno histórico. Sendo
assim, a apreensão teórica do fenômeno ganhará outra dimensão, mais totalizante, assim como
a disputa da memória implicada nesse momento histórico poderá ser pensada a partir de
importantes categorias marxianas como luta de classe e alienação.
81
5 O FEMINISMO MARXISTA
73
Vertente marxista avessa a organizações partidárias, como classicamente se organizam os comunistas. É
autônoma no sentido em que valoriza a auto-gestão. A burocratização é altamente condenada.
82
a repressão por parte do Estado no ano de 1979 (MEZZADRA, 2014). Na literatura sobre o
tema, fala-se do florescimento de uma nova geração de pensadores autonomistas nos anos
noventa, cujos principais seriam Antonio Negri74 e Michel Hardt, que desenvolvem conceitos
como “trabalho imaterial” e “trabalho cognitivo”, por exemplo. Silvia Federici e outras
teóricas feministas operaístas são mais influenciadas pelos conceitos e teorias de Tronti, sendo
críticas à Hardt e Negri.
A teoria autonomista coloca a classe operária no centro da análise, no sentido de que é
a classe operária que dinamiza e impulsiona o capitalismo e não a sua suposta lógica inerente.
Silva Federici incorpora essa visão e a enfatiza nos seus diversos trabalhos dizendo que “o
capital não se desenvolve a partir de sua lógica autônoma, mas em resposta à luta da classe
operária, que é o motor primordial da mudança social” (FEDERICI, 2018). Essa vertente da
teoria e prática marxista pretende impulsionar a autonomia da classe trabalhadora,
incentivando, por exemplo, microresistências possíveis nas fábricas e locais de trabalho, tais
como sabotagens, absentismo, trabalho de forma menos produtiva ou até mesmo a negação do
trabalho. Muito do que postulavam foi inspirado numa leitura bastante particular do Capital
de Marx, principalmente do oitavo capítulo, “jornada de trabalho”, e o décimo terceiro
capítulo, “sobre a maquinaria moderna” (MEZZADRA, 2014). Como prezam pela autonomia
dos trabalhadores, o salário toma proporções consideráveis, uma vez que é entendido como
possível meio dessa autonomia se a luta clamar pelo aumento universal dos salários,
combinado com a diminuição da produtividade.
Em um primeiro momento, o operaísmo se organiza de forma conjunta a sindicatos e
partidos. No entanto, num segundo momento, essa colaboração é rompida e os autonomistas
se afastam do Partido Comunista Italiano (PCI). Ao mesmo tempo, no nível teórico, operam a
“redescoberta da fábrica”, pois acreditam que essa fora abandonada como local de disputa
política depois das derrotas dos trabalhadores italianos nas greves de 1953 (MEZZADRA,
2014; MAGRI, 2014). O entendimento da autonomia é alargado para o nível organizativo no
ano de 1962, momento em que ganha força a compreensão de que a conjuntura italiana
propiciava lutas autônomas, sem ligações com partidos ou sindicatos. No final dos anos
sessenta, com as convulsões sociais do “outono quente”, em 1969, a composição do
movimento trabalhista aconteceu de forma autônoma e heterogênea, principalmente por meio
do coletivo Potere Operario, tendo florescido e incorporado, por exemplo, o movimento
74
Negri já fazia parte do movimento operaísta e escrevia para as revistas marxistas citadas à época da primeira
geração, nos anos sessenta. No entanto, sua obra alçaria maior importância e influência a partir dos anos noventa.
83
feminista autonomista Lotta Feminista, muito influente para a formação do coletivo Wages for
Housework.
Do processo de “redescoberta da fábrica” é derivado outro conceito autonomista, o da
“fábrica social” desenvolvido por Tronti e bastante importante e influente para o coletivo
WFH. O conceito apreende o caráter cada vez mais totalizante, conforme o desenvolvimento
do modo de produção flexível, da forma fábrica na sociedade, no sentido de que todas as
relações sociais existem em complemento e em relação com a fábrica. Sendo assim, torna-se
impossível distinguir as relações propriamente capitalistas de quaisquer outros tipos de
relações. Exemplo disso é a forma como as escolas e as faculdades são construídas para
disciplinar o trabalhador para a produção fabril. Influenciadas por esse conceito, feministas
operaístas questionarão como a fábrica molda o lar e as relações familiares. Espaços
historicamente questionados pelo feminismo serão agora problematizados a partir da fábrica,
da classe e do salário, Federici chegou a afirmar que “the life of the housewife is totally
governed by the ‘factory’”75 (FEDERICI, 2017, p. 101).
Assim como o operaísmo é autonomista, pois se organiza de maneira autônoma a
partidos e sindicatos, o movimento feminista se concretizou várias vezes e em determinados
momentos históricos, também como uma luta autônoma. Muitas mulheres, como as feministas
radicais abordadas nessa dissertação, no terceiro capítulo, relatam a constante secundarização
de suas atribuições e tarefas nas organizações tradicionais de trabalhadores. Análises que
ignoram a especificidade do gênero feminino dentro do capitalismo ou simplesmente
subordinam mecanicamente o gênero a classe, relegando a luta das mulheres “para depois da
revolução” também foram diversas vezes questionadas por diversas mulheres de diversas
tradições da esquerda. Essa percepção de subalternização baseada em experiências concretas
vividas pelas mulheres militantes levou a criação de movimentos feministas autônomos.
Ligado a luta operaísta italiana, o coletivo autônomo italiano Lotta Feminista é mais um
exemplo da necessidade das mulheres pensarem especificadamente sua posição social. Dessa
vez, elas o fazem a partir do conceito de “fábrica social” e da base teórica marxista para
compreender o lar e a família em relação com funcionamento fabril e a acumulação capitalista.
Mariarosa Dalla Costa, que comporia posteriormente o WFH e Leopoldina Fortunati,
que colaboraria com Silvia Federici em um artigo sobre o evento do caça às bruxas, foram
militantes da Lotta Feminista (CUNINGHAME, 2008). O Wages for Housework pode ser
entendido como o desdobramento internacional daquele coletivo italiano, pois nasceu da
75
“a vida da dona de casa é totalmente governada pela ‘fábrica’” (tradução nossa).
84
afinidade teórica e do contato militante já existente entre Mariarosa Dalla Costa, Selma James,
Silvia Federici e outras militantes. O Wages for Housework é um coletivo feminista classista
autônomo e internacional76, alternativo as políticas clássicas tocadas por partidos e sindicatos
e também as iniciativas coletivas do feminismo contemporâneo a elas, como o feminismo
radical. Muitas das ideias do coletivo já vinham sendo maturadas por suas fundadoras de
acordo com suas práticas militantes na Itália, que já reivindicava salários para trabalho
doméstico. O ensaio “Women and the Subvertion of the Community”, publicado em 1971,
anteriormente a fundação do coletivo, escrito em conjunto por Mariarosa Dalla Costa e Selma
James, é entendido como um dos documentos fundacionais do WFH (FEDERICI, 2017).
Pequeno livro de divulgação, com oitenta páginas, contém dois ensaios: Women and
the Subversion of the Community, escrito à quatro mãos, e o ensaio A Woman’s Place, escrito
por Selma James. Na introdução, elas indicam a finalidade do livro: elaborar teoricamente as
bases materiais sobre as quais erigem os “os problemas pessoais” das mulheres, expressos no
âmbito privado, em relacionamentos, na família, etc. Tais bases materiais deveriam ser
procuradas na atividade social, ou seja, no trabalho, especificadamente no trabalho
historicamente delegado às mulheres, ou seja, o trabalho doméstico. Para as autoras, o modo
de produção capitalista é, essencialmente, uma relação social e não uma estrutura que pode
ser melhor planejada ou controlada. A principal questão colocada pelo escrito é: “What is the
relation of women to capital and what kind of struggle can we effectively wage to destroy
it?”77 (DALLA COSTA, JONES, 1975, p. 5).
Os ensaios são bastante críticos a ideia, desenvolvida por algumas feministas, como
Mary e King, citadas no terceiro capítulo, da existência de uma casta masculina que oprime
uma casta feminina. Para o WFH não existem sistemas de opressão autossuficientes entre si,
logo a ideia de que a implosão do sistema patriarcal resolveria o problema das mulheres é
descartada, pois o patriarcado é parte fundamental, consubstanciada, do modo de produção
capitalista e se expressa objetivamente, principalmente, por meio da reprodução social dos
seres humanos. Assim sendo, a implosão do patriarcado pode até acabar com a opressão das
mulheres, mas certamente não colocaria fim a sua exploração. Soluções meramente
individuais, como o desenvolvimento pessoal pela via psicológica são criticados: “Oppression
disconnected from material relations is a problem of “conciousness”- in this case, psychology
76
Classistas pois se baseiam teoricamente na centralidade da luta de classe, entendida de acordo com a teoria
marxista; autônoma em relação a sindicatos e partidos e influenciada pela vertente marxista autonomista;
internacional pois fundado por marxistas de diversos países que tocaram comitês em suas cidades específicas.
77
“Qual é a relação das mulheres com o capital e que tipo de luta podemos efetivamente travar para destruí-lo?”
(tradução nossa).
85
masquerading in political jargon”78 (DALLA COSTA, JONES, 1975, p. 7). Fica claro que o
coletivo está se opondo as estratégias adotadas e teorias desenvolvidas pelas tendências do
feminismo radical.
Os ensaios postulam a essencial superação tanto das teorias que subordinam a classe
ao feminismo, quanto as que subordinam o feminismo a classe. Na verdade, é preciso pensar
o feminismo com a classe, as relações entre as mulheres com e na classe trabalhadora, pois
“there is nothing in capital which is not capitalistic, that is, not part of the class struggle”79
(DALLA COSTA, JONES, 1975, p. 7). Desse modo, Dalla Costa e Jones partem do acúmulo
das experiências das mulheres e os problemas por elas denunciados, tais como violência e
dependência em relações afetivas, alta carga de trabalho em casa, inferiorização e sabotagem
no ambiente de trabalho e familiar, para formulá-los a partir da crítica da economia política. O
WFH entende que só pelo desenvolvimento de uma teoria materialista histórica que o
feminismo poderia ter uma base sólida para a luta revolucionária e autônoma das mulheres. A
vontade de autonomia em relação a esquerda e aos partidos deriva da vontade de se distanciar
das análises simplistas do marxismo, principalmente as que enrijecem a categoria de classe
social, entendida, por vezes, de forma estrita, reduzindo-a a operários de macacão que batem
ponto em fábricas.
Com efeito, ao olhar para a sociedade em busca dos efeitos da fábrica para a
população feminina, o lugar natural a se pensar são os lares e as famílias. A instituição da
família sempre foi assunto muito caro ao movimento feminista, tendo sido classificada tanto
como centro de consumo e disciplinamento, quanto como local de reserva da força de trabalho.
O WFH incorpora todas essas classificações, mas desenvolve o que seria a função essencial
da família: a reprodução social. A questão central é que mesmo quando as mulheres não saem
de casa para trabalhar fora, elas trabalham e geram mais valia para o modo de produção
capitalista pois regeneram, criam e mantém importante e específica mercadoria desse modo de
produção: a força de trabalho. Dentro e fora de casa, as mulheres estão trabalhando para
manter vivos e bem cuidados os trabalhadores, futuros trabalhadores – crianças – e não-
trabalhadores – idosos –, ao passar suas roupas, preparar suas refeições, prover afeto, ao
educar e manter o ambiente limpo (FEDERICI, 2018; BHATTACHARYA, 2019). Muitas
vezes, como ressalta Dalla Costa, toda a comunidade de mulheres está envolvida nesse
trabalho.
78
“Opressão desconectada das relações materiais é um problema de ‘consciência’ - nesse caso, a psicologia
disfarçada em jargão político” (tradução nossa).
79
“não há nada no capital que não seja capitalista, isto é, não faça parte da luta de classes” (tradução nossa).
86
Nesse texto fundacional, Women and the Subvertion of the Community, a questão do
salário é colocada de pronto. As autoras afirmam que o salário cria uma dicotomia que divide
a classe, pois o trabalho não assalariado ainda que explorado, é naturalizado como não
trabalho. Essa constatação é central para o coletivo e nela fica clara a forte influência do
autonomismo, que entende as pressões sobre o salário como cruciais para a luta e autonomia
dos trabalhadores.
O coletivo WFH se contrapõe ao entendimento marxista vulgar de que só o
trabalhador que recebe um salário é visto como pertencente ao ciclo de produção capitalista,
obliterando completamente a dona de casa, que não recebe salários, e então, pela análise
vulgar, não faria parte do ciclo de produção. De acordo com as militantes do coletivo, o fato
de a mulher não ser paga pela enorme quantidade de trabalho que realiza em casa faz com que
esse trabalho seja tratado como algo natural e ao mesmo tempo invisível, como se fosse um
atributo intrínseco ao feminino. Além disso, a não remuneração beneficia
incomensuravelmente o capital, pois libera o trabalhador assalariado do trabalho de
reprodução para que ele sirva inteiramente a produção. Ainda, o capital se apropria
gratuitamente da mercadoria trabalho, uma vez que o trabalhador volta ao circuito de
produção alimentado e regenerado.
O coletivo desenvolve o entendimento de que o trabalho doméstico não é
simplesmente resquício do “pré-capitalismo” ou um não trabalho, na verdade é um trabalho
perfeitamente integrado a acumulação capitalista, que produz riquezas para esse sistema, uma
vez que produz mercadoria. Sendo assim, o feminismo deve lutar para que essas riquezas
sejam reapropriadas pelas mulheres. O coletivo admite e sabe que o salário não repõe a
riqueza produzida pela reprodução social, pois sempre camufla um excedente, a mais-valia.
Por isso a luta por salário é entendida como uma tática pontual para tornar visível o trabalho
doméstico e diminuir de imediato os lucros do capitalista, se bem-sucedida. Posteriormente,
com os salários garantidos para o trabalho doméstico seria possível empreender a revolução
que poria fim ao modo de produção capitalista.
As mulheres reunidas na fundação do coletivo em 1972 redigiram o Statement of the
International Feminist Collective 80 , onde se apresentam como feministas marxistas de
diversos países, como Itália, Inglaterra, França e Estados Unidos, e delineiam as táticas,
estratégias e bases teóricas do coletivo. O principal objetivo seria redefinir o conceito de
classe para que esse possa abarcar os trabalhos não assalariados. A estratégia é a revolução, no
80
Declaração do coletivo internacional de mulheres.
87
81
ANC Mães Anônimas: ANC é o nome específico do sistema de ajuda a crianças necessitadas do estado da
Califórnia.
89
diferentes estados, exigindo aumento da ajuda mensal, reposição dos uniformes escolares para
as crianças beneficiárias e créditos para supermercado em vez de recebimento de alimentos
escolhidos pelo governo (ORLEK, 2017).
No ano seguinte, em 1967, as mães envolvidas em tais protestos fundam uma
organização nacional a favor do aperfeiçoamento do sistema de seguridade para crianças, a
National Welfare Rights Organization (NWRO), composta majoritariamente por mulheres
pobres, negras e imigrantes. O WFH apoiava integralmente a causa das mulheres beneficiárias
do Welfare, ainda mais nos anos setenta, quando o coletivo estava ativo e o sistema de
seguridade social sofria fortes ataques, seja com cortes de verbas do governo, seja com
discursos moralizadores em torno da dependência/independência.
A palavra dependência foi introduzida no vocabulário norte-americano como
sinônimo de pobreza no final do século XIX, mas foi só com o fim da Segunda Guerra que
essa se torna uma palavra usada para designar pessoas beneficiárias do sistema de proteção
social. Fraser e Gordon (2013) demonstram a diferenciação de tratamento sobre os
beneficiários do Welfare: o seguro-desemprego e a aposentadoria são vistos como direitos
honráveis, advindos de impostos sobre redução dos salários, no entanto, historicamente,
mulheres e minorias foram excluídas desse benefício; já os beneficiários do Aid to Families
with Dependent Children são vistos como aproveitadores de deduções de impostos gerais, que
recaem sobre toda a sociedade.
Em abril de 1976 o WFH financia e organiza uma conferência para tratar
especificadamente sobre o assunto, que desemboca na formação de outra organização: o Black
Woman for Wages for Housework, ligada ao WFH, mas, ao mesmo tempo, autônoma ao
coletivo matriz. Foto de protesto realizado por essa fração do coletivo pode ser vista na Figura
7. O sentido desse coletivo era o entendimento de que o “welfare is not charity bur payment
for housework82 (FEDERICI, 2017, p. 100). O benefício pago pelo estado foi entendido como
uma forma de salário para o trabalho de criar crianças e cuidar da casa. Grupos autônomos
específicos à mulheres lésbicas que lutam por salários para o trabalho doméstico também
existiram.
82
“welfare não é caridade, mas pagamento para trabalho doméstico” (tradução nossa).
90
Figura 7 - Membras do coletivo Black Women for Wages for Housework na marcha no Dia Internacional das
mulheres em 1977
são os precedentes necessários para a compreensão marxista do caça às bruxas feito por
Federici e que será estudado especificadamente na próxima seção.
No ensaio Por que falar outra vez em caça às bruxas? (2019), Silvia Federici expõe
como o trabalho de feministas como Mary Daly, cuja produção teórica foi abordada no quarto
capítulo, e outros nomes relacionados a segunda onda do feminismo, tais como Barbara
Ehrenreich, propiciaram a rememoração do caça às bruxas e fomentaram o debate, nos anos
sessenta, sobre esse evento histórico fundamental. Sem dúvida, o ambiente feminista dos
Estados Unidos e o debate que o feminismo espiritual e o feminismo radical, seja com o
coletivo W.I.T.C.H, seja com a produção teórica das autoras supracitadas, influenciaram o
interesse de Federici em aprofundar os estudos sobre o caça às bruxas.
Silvia chega nos Estados Unidos no ano de 1967, para começar seu doutorado em
filosofia na Universidade de Buffalo. Nascida na Itália em 1942, cresceu em meio ao
movimento operário antifascista (GUIMARÃES, 2018). Uma lembrança que a autora conta
em várias introduções e prefácios e que, certamente, também influenciou sua teoria, é o fato
de observar o trabalho doméstico realizado por sua mãe quando criança e já perceber a
ambiguidade ali contida: era um trabalho afetivo e ao mesmo tempo enfadonho e não
reconhecido (SANTANA, 2019). Adulta, entre os efervescentes cenários da nova esquerda
italiana e americana, Silvia ajudará a formar, como desenvolvido anteriormente, um coletivo
que luta pelo pagamento de salários ao trabalho doméstico, alinhado com a vertente marxista
autonomista.
Os debates travados especialmente nos anos sessenta sobre as raízes da opressão das
mulheres também serão de enorme influência e valia para a autora. Assim como despontava
nos Estados Unidos o movimento feminista, a luta por direitos civis, as lutas antiguerra do
Vietnã, as lutas negras nacionalistas ou marxistas-leninistas, como a dos Panteras Negras, para
citar alguns exemplos, o meio acadêmico daquela época também contesta vários postulados e
tradições do pensamento. Novos campos de pesquisa emergem, como o da “história das
mulheres”, que conta com trabalhos acadêmicos que tem as mulheres como objeto de
pesquisa (FACINA, SOIHET, 2004). As historiadoras Joan Scott, Louise Tilly, Eleni Varikas e
Michelle Perrot são exemplos de expoentes dessa vertente da nova história cultural.
Nesse contexto, Silvia começa a pensar, em conjunto com Leopoldina Fortunati, uma
“história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo” (FEDERICI, 2017, p.
92
17), para contribuir com o debate da época sobre as raízes da opressão e formação do
patriarcado. Porém, elas não escrevem exclusivamente sobre as mulheres, mas sobre a
totalidade das relações da época, levando em consideração os homens e escravos e,
evidentemente, o aspecto da reprodução social. Rejeitando concepções binárias ou a-
históricas e valorizando uma perspectiva estrutural, elas escrevem o livro Il Grande Calibano,
em 1984, que já mapeava as lacunas das teorias de pensadores extraordinariamente relevantes
à época: Michel Foucault e Karl Marx. De acordo com as autoras, o primeiro não leva em
consideração o processo de reprodução e o caráter específico da violência e disciplinamento
do corpo da mulher; já o segundo, não leva em consideração o destino dos trabalhadores que
se mantiveram não assalariados após a acumulação primitiva, as mulheres e os escravos.
Logo após a publicação desse livro, Federici foi trabalhar como professora na
Universidade de Port Harcourt, na Nigéria. Ali, ela pode acompanhar de perto o processo de
imposição da agenda econômica neoliberal naquele país por meio de organizações como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Essa agenda está baseada no corte
dos gastos públicos, desvalorizações cambiais e fixação de salários em níveis baixos, por
consequência, tais medidas, promovem processo de recolonização, empobrecimento das
mulheres e uma enorme crise da reprodução social. A autora observa como a imigração é uma
das saídas para essas populações empobrecidas, expropriadas dos seus meios de vida. No que
diz respeito as mulheres, a autora observa que elas partem em périplo para países centrais e lá
trabalham como domésticas ou babás, assegurando a reprodução social desses países, além de
manter os salários baixos, visto que formam exército de mão de obra reserva, assegurando
maior taxa de lucro. Ironicamente, o trabalho doméstico e o confinamento à casa, pautas
inerentes aos movimentos feministas nos anos sessenta e setenta é “resolvido” pelo circuito
internacional de migrações. Nesse sentido, Silvia consolida ainda mais o entendimento de que
é preciso construir um feminismo com perspectiva global e radical, anticapitalista, para ser
efetivamente emancipador.
A imposição do pacote neoliberal para a África evidencia os mecanismos de expansão
do capitalismo, que seguem as premissas básicas da sua formação histórica, tal como
postulada no capítulo da “acumulação primitiva” do Capital de Karl Marx: a separação dos
produtores dos seus meios de produção e, Silvia acrescenta, de reprodução. Assim como o
aniquilamento de qualquer atividade que não vise o lucro, como a agricultura de subsistência.
Esse processo é extremamente violento e atravessado por guerras, massacres e fome. Mas
também se depara com lutas, principalmente pelo que Silvia chama de comuns, os bens
comuns, e pela manutenção das relações de solidariedade. Observando a Nigéria dos anos
93
oitenta, Silvia percebe que os processos históricos que ela estudara com Leopoldina se
atualizam no tempo presente.
Em 1986 a autora volta para os Estados Unidos e começa a lecionar num programa
interdisciplinar, influenciando-a, definitivamente, a se apropriar de teorias pós-coloniais,
epistemologias do sul, com interesse sobre estudos do direito a terra e os comuns
(GUIMARÃES, 2018). O livro O Calibã e a Bruxa é fruto de pesquisas e experiências de
quase três décadas, a militância no WGH e a experiência na África são eventos fundamentais
para o desenvolvimento dessa obra, que aborda o processo de colonização, que ela
experimentou de perto ao observar a recolonização da Nigéria, e foca nas questões
relacionadas a reprodução social, centrais para o WFH.
O cerne do livro é o estudo da fundação do capitalismo, no período de acumulação
primitiva nos séculos XVI e XVII, levando em consideração não só o processo de caça às
bruxas, mas também os cercamentos e a colonização e analisando o sentido da concomitância
desses processos para a formação do capitalismo. Ao começar essa empreitada, o referencial
marxista é fundamental, mas é enriquecido com um debate sobre o corpo, dialogando com as
obras de Michel Foucault. Como a autora é da tradição autonomista do marxismo, o interesse
pelas lutas que impulsionam o capitalismo é indispensável. Nesse sentido, o caça às bruxas é
lido como uma reação as sublevações do período medieval, nas quais mulheres eram, muitas
vezes, líderes.
Desta forma, a primeira parte do livro é dedicada ao estudo das “lutas do proletariado
medieval”, que são travadas pelos agricultores, artesãos e servos que se levantaram contra o
poder feudal para exigir o compartilhamento das riquezas naturais. A servidão se estabelece
após a queda do regime de escravidão estabelecido na Antiguidade e sua principal
característica é o acesso que os servos tinham a meios de subsistência para sua reprodução, ao
poderem cultivar um pedaço de terra. Apesar da posse da terra ser passada adiante na
linhagem familiar pelos parentes da ordem masculina, a unidade familiar como um todo podia
usufruir desse bem. Isso somado ao fato de as mulheres cultivarem e disporem do que
plantavam, lhe conferiam certa autonomia. Muitas das atividades que as mulheres exerciam,
como cultivar, lavar, costurar, eram feitas coletivamente e as mulheres ocupavam lugares de
respeitabilidade. No século XIV, muitas eram professoras, médicas, parteiras, sage femmes83.
A Idade Média também foi marcada por diversas sublevações e contestações pela
manutenção e melhoramento das condições de vida dos servos. Geralmente, era reivindicada a
83
Mulheres sábias.
94
84
Primeiras prisões modernas: casas de correção dos séculos XVI e XVII, na Europa.
96
Silvia Federici destaca que os cercamentos não se limitam a tera, mas abrangem as
relações sociais, no sentido de que a reprodução dos trabalhadores, que antes ocorria nas
comunidades, no campo coletivo e no espaço público, passou para o lar, para a família e para
o âmbito privado. A disciplinarização da reprodução da classe trabalhadora perpassa essa
transferência da reprodução da comunidade para o lar, apoiada pela disseminação dos
pressupostos ideológicos da demonologia. Se para o mercantilismo é indispensável o aumento
da população e do trabalho para a prosperidade e riqueza da nação, os ataques às bruxas, que
praticavam infanticídios e conheciam métodos de contracepção baseados em infusões de ervas,
supositórios vaginais naturais que antecipavam a menstruação e métodos de provocação de
abortos são cruciais. O caça às bruxas e a demonologia moralizam qualquer controle da
reprodução que as mulheres poderiam ter por meio de uma campanha de degradação das
mulheres e promoção da morte das mesmas, caracterizando-as como seres demoníacos,
selvagens, mentalmente débeis e insubordinadas.
Os resultados dessas políticas, que duraram duzentos anos (as mulheres continuaram
sendo executadas na Europa por infanticídio no final do século XVIII), foi a
escravização das mulheres a procriação. Enquanto na Idade Média elas podiam usar
métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o parto, a
partir de agora seus úteros se transformaram em território político, controlados pelos
homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da
acumulação capitalista (FEDERICI, 2017, p. 178).
85
Alguns autores dessa tradição já se debruçaram, transversal ou diretamente, sobre o tema. É o caso de Eric
Hobsbawm, quando estuda a “invenção das tradições”, Walter Benjamin, que desenvolve a categoria da
reminiscência e Enzo Traverso, ao criticar o giro-linguístico no campo historiográfico. No Brasil, destacamos a
tese de doutorado “Memória compartilhada e história: entre alienação e ideologia” de Ruy Hermann Araújo
Medeiros.
100
não se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de
si mesma. É preciso, ao contrário, explicar essa consciência pelas contradições da
vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações
de produção (MARX, 2017, p. 50).
86
Homens, nessa seção, entende-se como homem genérico, seres humanos, portanto homens e mulheres.
102
espécie, pois estão alienados da sua essência que é o trabalho, atividade intrínseca e natural do
seu ser.
Porque alienada, a objetivação do trabalho se expressa na produção de valores de troca
e não na produção de valores de uso para o indivíduo. Entender o processo das trocas e a
categoria marxiana do valor de troca se faz necessária. Para isso devemos entender a dinâmica
da mercadoria, unidade do capitalismo que Marx elege para começar a entender o
funcionamento desse modo de produção no livro O Capital. De acordo com Georg Lukács,
“não há problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em última análise, não
se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser buscada na solução do enigma da
estrutura da mercadoria” (LUKÁCS, 2018, p. 193).
Partindo do dado concreto e imediato da mercadoria, da sua aparência, Marx irá, nos
primeiros capítulos do Capital, pelo método materialista histórico dialético, com sucessivas
aproximações, apreender a essência da mercadoria, isto é, suas relações sociais, estruturais e
dinâmicas. O próprio movimento da realidade. Assim, Marx inaugura a teoria do valor e
descobre o caráter fetichista da mercadoria.
A transformação da natureza pelo homem o faz produzir objetos e coisas, essas coisas,
na relação capitalista, se tornam mercadorias. As mercadorias carregam em si duas
características, são valores de uso e valores de troca. O valor de uso está relacionado com a
utilidade de uma coisa e com o trabalho humano concreto que a produziu, já o valor de troca
está relacionado com o trabalho humano abstrato socialmente necessário para produzir a
mercadoria. Uma vez que o trabalho é o elemento comum a todas mercadorias, ele se torna a
grandeza geral pela qual as mercadorias se tornam equivalentes. Dessa forma, o valor de troca
de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho humano abstrato, o tempo de
trabalho necessário para produzir aquela mercadoria. É preciso abstrair o valor de uso criado
por um trabalho concreto e útil para satisfazer as necessidades humanas pelo valor de troca,
medido em trabalho humano geral e abstrato, para que se possa equivaler as mercadorias e
trocá-las no mercado. Apesar desse mecanismo obliterar o valor de uso, a mercadoria continua
congregando, simultaneamente, o trabalho concreto e o trabalho abstrato.
As mercadorias possuem, portanto, um caráter duplo: são “objetos úteis e, ao mesmo
tempo, suportes de valor” (MARX, 2017, p. 124). Só o trabalho produz valor, pois é por meio
dessa atividade humana que a natureza é transformada, a matéria-prima é transformada em
algum objeto útil. Geralmente, tudo que é produzido pelo homem satisfaz alguma necessidade
do mesmo, seja essa “do estômago ou da imaginação” (MARX, 2017, p. 113). Só quando o
homem produz excedentes em relações as suas necessidades, o que foi produzido a mais deixa
103
de ter um valor de uso e se torna meio de troca, até que a troca mercantil se torna a forma
dominante da sociedade (LUCÁKS, 2018). O dinheiro é o equivalente geral, facilitador da
troca de mercadorias, representante da forma de valor geral comum a todas as mercadorias,
qual seja, o trabalho abstrato socialmente necessário para produzir tal mercadoria.
Ao se tornar valor de troca, o trabalho se transforma em meio para a reprodução das
relações capitalistas, se transforma em “trabalho subsumido ao capital, abstraído de sua
individualidade genérica, torna-se uma atividade prático-negativa, isto é, trabalho alienado,
forma historicamente determinada de trabalho em uma economia de produtores independentes,
que equaliza seus trabalhos através da troca” (SILVESTRE, CALAZANS, 1995, p. 175). O
trabalho alienado está, portanto, diretamente relacionado com a propriedade privada. O
processo de alienação faz com que a consciência e a existência do homem se autonomize em
relação a objetividade do seu trabalho.
A mercadoria, com seu duplo caráter de valor de uso e valor de troca, ao ser
objetivada no mundo por meio de um processo alienado, assume uma forma estranha aos
seres humanos e se volta contra eles como algo hostil que os controla. Isso só acontece porque
os produtores foram isolados uns dos outros como produtores privados de mercadorias. Essas,
por sua vez, se autonomizam e se relacionam entre si por meio das trocas. Marx denomina
esse fenômeno como fetiche da mercadoria, devido ao caráter misterioso que as mercadorias
assumem em relação aos homens.
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato
de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como
caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais
que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos
produtores com o trabalho total como uma relação social entre objetos, existente à
margem dos produtores (MARX, 2017, p. 147).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o método científico de elaboração dessa dissertação, a seção
dialetizará, ou seja, dará forma dialética, aos conteúdos expostos nos capítulos precedentes.
Dar forma dialética significa formar sínteses, isto é, formar uma conclusão a partir do
itinerário de pesquisa e desvelamento do objeto. Nesse caso, a rememoração das bruxas feita
pelo feminismo norte-americano de segunda onda. Desse modo, formulamos uma possível
resposta para a pergunta epistemológica que conduziu a pesquisa: porque a memória da bruxa
é criada e atualizada pelo feminismo no contexto da segunda onda nos Estados Unidos?
Primeiramente, o caça às bruxas do século XV foi um evento histórico inegavelmente
fundacional para nossa sociedade contemporânea pois é um evento localizado no limiar de um
novo mundo, é parte mesma do processo modernização e ocorre, por conseguinte, junto com
outros acontecimentos seminais, como as grandes navegações, o colonialismo, a escravidão e
a secularização. Apesar das bruxas terem sido consideradas como objeto de estudo histórico
no século XIX, principalmente pelo historiador romântico Jules Michellet no livro A
Feiticeira e também por Matilda Joselyn Gage no final do mesmo século, é, de fato, no final
dos anos sessenta que a bruxa toma a cena política.
Ora, o final dos anos sessenta é o período de formação da nova esquerda, que conta
com novos autores, que foram encorajados, por diversas condições históricas, a reivindicar
sua própria história, suas memórias e identidades. Nesse contexto, o período colonial e a sua
intrínseca racialização vem a tona, impulsionado pelo movimento negro. O movimento
feminista, por sua vez, ao procurar no passado explicações para sua opressão presente não
pôde deixar de lado o tema do caça às bruxas pela sua dimensão e interesse, já assinalado no
século anterior. A colonização e o caça às bruxas, como fatos fundadores da modernidade e
intimamente conectados são, com certeza, chaves para a compreender o mundo e transformá-
lo.
No entanto, a mudança das condições materiais, cada vez mais afundadas em
explorações e opressões, prescinde de espontaneidades performáticas e idealizações
românticas, atitudes detectadas na vertente radical e espiritual. A crença na bruxa como
primeira feminista e mulher insubordinada tende a subscrever as teses sobre a existência de
um matriarcado primevo, anterior a modernização. Quando acriticamente adotada, essa tese
tende a corroborar para uma atitude romântica em relação ao mundo, para a supervalorização
do passado e para o desprezo pela realidade, entendida como burocratizante e opressiva.
Simplificações como essas devem ser abandonadas por movimentos que se querem
revolucionários.
106
bruxa circulou e foi dinamizado era bastante restrito a grupos específicos de mulheres, muitas
vezes de classe média e branca87, e, ainda, influenciadas pela autodeterminação e marcação da
diferença, disseminada na época também pela fração culturalmente radicalizada do
movimento negro. Teóricas da atualidade, desde outros pontos de experiência e acumulo
teórico questionaram esses grupos e complexificam as teorias e epistemes, como, por exemplo,
Judith Butler (2004, 2015, 2017), mas não só. A própria atuação do WFH já demonstra maior
sensibilidade as causas especificadamente negra e lésbica, além de se inserirem dentro de um
campo riquíssimo de debate, o da teoria marxista da reprodução social.
O desenvolvimento da pesquisa nos faz questionar o uso da experiência, da identidade
e da memória pelos atores políticos. A supervalorização do subjetivo, o primado da
experiência, sem o devido entrelaçamento com estruturas mais profundas, herdadas
socialmente, tende a lançar-se numa crítica individualizante e culpabilizante do outro por si só
como agente de opressão, como aconteceu nos diversos momentos de rompimento do
feminismo com a nova esquerda. Para além disso, o fato do campo interdisciplinar de estudo
da memória social ter sido formulado no final dos anos sessenta, na esteia da crise de
paradigmas, do “giro linguístico” e do “pós-modernismo” de algum modo impulsiona a
valorização da experiência, visto que a memória é, primeiramente, um dado singular e
subjetivo, ainda que possa compartilhado. Como pertence à consciência, perpassa,
necessariamente os processos de alienação, além de estar situada em um contexto histórico.
Nesse sentido, os postulados modernos, notadamente a metodologia marxista, conjugando o
historicismo concreto, a dialética e o humanismo (COUTINHO, 2017) podem ser de grande
valia para esse campo. Algumas ideias nesse sentido foram propostas na última seção do
capítulo cinco.
A memória social como potencialidade política revolucionária, uso intentado pelas
vertentes estudadas, enseja a questão fundamental e clássica do conflito entre memória e
história. É evidente que a história se mescla com a memória, mas uma é bem diferente da
outra, pois “uma coisa é o processo objetivo dos homens no tempo, coisa distinta é a memória
que se faz disso, mas esse processo é apreendido pela consciência da qual a memória é
atributo essencial” (MEDEIROS, 2015, p. 130). A memória se nutri da história ao mesmo
tempo em que sem memória não há história, uma vez que a história é uma forma de
imobilização da memória.
87
Ser branca e de classe média não quer dizer, por si só, incompreensão de outras realidades. A experiência
pessoal não determina, em última instância, a abrangência do entendimento da realidade social.
108
88
“Os homens fazem sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles
que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se
encontraram” (MARX, 2011, p. 25).
109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADLER, Margot. Drawing down the moon: witches, druids, goddess-worshippers, and other
pagans in America. Londres: Penguin Books, 2006.
___________. Modernidade e revolução. Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n.14, fev.
1986, p. 2-15.
ARRUZZA, Cinzia. Dangerous liaisons: the marriages and divorces of marxism and
feminism. Monmouth: Merlin Press, 2013.
BBI MEDIA. Disponível em: < https://bbimedia.com/>. Acesso em: 20 jan. 2020.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.
__________. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. 1. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
_________. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
CARMICHAEL, Storkely. Black Power. In: COOPER. David. The dialetics of liberation.
New York: Verso, 2015.
110
COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics
of empowerment. Londres: Taylor & Francis, 2002.
COONTZ, Stephanie. Marriage, a history: how love conquered marriage. Londres: Penguin
Books, 2005.
COREY, Mary E. Matilda Joslyn Gage: a nineteenth-century women's rights historian looks at
witchcraft. OAH Magazine of History. Oxford: Oxford University Press, v.17, n.4, 2003, p.
51-59.
CUNINGHAME, Patrick. Italian feminism, workerism and autonomy in the 1970s: the
struggle against unpaid reproductive labour and violence. Amnis - Revue de Civilisation
Contemporaine de l’Université de Bretagne Occidentale. 2008. Disponível em:
<https://libcom.org/files/Cuninghame2008.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2019.
CUSACK, Carole M. The return of the goddess: mythology, witchcraft and feminist
spirituality. In: PIZZA, Murphy; LEWIS, James R. Handbook of Contemporary Paganism.
Volume 2. Boston: Brill, 2008, p. 335-362.
DALLA COSTA, Mariarosa; JONES, Selma James. The power of women and the
subversion of community. England: The Falling Wall Press, 1975.
DALY, Mary. Beyond the god father. Boston: Beacon Press, 1985.
__________. Gyn/ecology.: the metaethics of radical feminism. Boston: Beacon Press, 1990.
DAVIS, Angela Y.; JAMES, Joy (org.). The Angela Y. Davis reader. Massachusetts:
Blackwell Publishers, 1998.
_____________. Women, race and class. Nova York: Vintage Books, 1981.
DAVIS, R.G. Guerrilla Theatre. The Tulane Drama Review. Cambridge: MIT Press, v. 10, n.
4, 1966, p. 130-136.
ELLER, Cynthia. Relativizing the patriarchy: the sacred history of the feminist spirituality
movement. History of Religions. Chicago: University of Chicago, v. 30, n. 3, 1991, p. 279-
295.
FACINA, Adriana; SOIHET, Rachel. Gênero e memória: algumas reflexões. Revista Gênero.
Niterói: NUTEG/UFF, v. 5, n. 1, jul./dez. 2004, p. 9-19.
FAUE, Elizabeth. Rethinking the american labor movement. New York: Routledge, 2017.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.
__________. The new york wages for housework committee 1972-1977: history, theory
and documents. Nova York: Autonomedia. 2017.
FENTON, Zanita E. No witch is a bad witch: a commentary on the erasure of Matilda Joslyn
Gage. Southern California Interdisciplinary Law Journal. Los Angeles: USC, v. 20, 2010.
FERARO, Shai. ‘God giving birth’: connecting british wicca with radical feminism and
goddess spirituality during the 1970s-1980s: a case study of Monica Sjöö. Pomegranate: the
international journal of pagan studies. Ames, v. 15, n. 1-2, 2013.
FINGUERUT, Ariel. Entre George W. Bush (2000 – 2008) e Barack H. Obama (2009): a
efetividade da nova direita no consenso político norte-americano. 2014. Tese (doutorado)
- Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas,
SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281232>. Acesso
em: 24 ago. 2018.
FISHER, Mark. Capitalist realism: is there no alternative?. London: John Hunt Publishing,
2009.
<https://www.viewpointmag.com/2013/09/15/learning-to-struggle-my-story-between-
workerism-and-feminism/>. Acesso em 26 jan. 2020.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história das violências nas prisões. Petrópolis: Vozes,
1987.
GAGE, Matilda Joslyn. Woman, church, and state. Amherst: Humanity Books, 2002.
GRIFFIN, Wendy. Daughters of the goddess: studies of identity, healing, and empowerment.
Boston: Rowman & Littlefield Publishers, 1999.
_________. Webs of women: feminist spiritualities. In: BERGER, Helen A. Witchcraft and
magic: contemporary North America. Filadelfia: University of Pennsylvania Press, 2006.
HANISH, Carol. The personal is political. In: Notes from the second year: women's
liberation. 1969. Disponível em: <http://www.carolhanisch.org/CHwritings/PIP.html>. Acesso
em: 26 jun. 2019.
HAYDEN, Casey; KING, Mary. Sex and caste: a kind of memo. 1965. Disponível em:
<https://www.historyisaweapon.com/defcon1/sexcaste.html >. Acesso em: 26 jun. 2019.
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1941-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
IASI, Mauro. Ensaios sobre consciência e emancipação. 2. ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2011.
JAMESON, Frederic. Periodizando os anos 60. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.)
Pós modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
JACOBS, Elizabeth. Revisiting the second wave: in conversation with Mary King.
Meridians. Durham: Duke University Press, v. 7, n. 2, 2007, p. 102-116.
JACOB, Krista; LICONA, Adela. C. Writing the waves: a dialogue on the tools, tactics, and
tensions of feminisms and feminist practices over time and place. NWSA Journal. Baltimore:
Johns Hopkins University Press, v. 17, n. 1, 2005, p. 197-205.
KOEDT, Anne. Politics of the ego: a manifesto for N.Y Radical Feminists. In: KOEDT, Anne;
LEVINE, Ellen; RAPONE, Anita. In: Radical Feminism. Nova York: Times Books, 1973, p.
379-383. Disponível em: <http://feminist-
reprise.org/docs/RF/POLITICS_OF_THE_EGO.pdf>. Acesso em: 26 set. 2019.
LEVACK, Brian, P. A caça às bruxas na Europa Moderna. Rio de Janeiro: Campus, 2009.
LUKÁKS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São
Paulo: Martins Fontes, 2018.
KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo:
Contexto, 2007.
MAGRI, Lucio. O alfaiate de ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano. São
Paulo: Boitempo, 2014.
MARTIN, André. Guerra de Secessão. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das guerras.
São Paulo: Contexto, 2006.
MARX, KARL. Contribuição à crítica da economia politica. São Paulo: Expressão Popular,
2017.
114
MIES, Maria. Patriarchy and accumulation in a world scale. Londres: Zed Books, 1998.
MORGAN, Robin. Going too far: the personal chronicle of a feminist. Nova York: Open
Road Integrate Media. 2014.
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de marx. São Paulo: Expressão
Popular, 2011.
NEW YORK RADICAL WOMEN. Notes from the first year. Nova York: NYRW, 1968.
ORLECK, Annelise. Rethinking american women’s activism. Nova York: Routledge, 2017.
PATEMAN, Carole. The sexual contract. California: Stantford University Press. 1989.
PAVLAK, Brian A. Witch hunts in the western world: persecution and punishment from the
inquisition through the Salem trials. Rochester Greenwood Press, 2009.
PURKISS, Diane. The witch in history: early modern and twentieth-century representations.
Londres: Taylor & Francis, 2005.
ROUNTREE, Kathryn. The politics of the goddess: feminist spirituality and the essentialism
debate. Social Analysis: the international journal of social and cultural practice. Nova
York: Berghahn Books, v. 43, n. 2, 1999, p. 138-165.
___________. The new witch of the west: feminists reclaim the crone. The Journal of
Popular Culture. Estados Unidos: Popular Culture Association, v. 30, n. 4, 2004, p. 211-229.
SANTANA, Bianca. Prefácio. In: FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo:
Boitempo, 2019.
SARLO, Beatriz. Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo: una discusión.
Buenos Aires: Sieglo Veintiuno, 2012.
SHAWKI, Ahmed. The legacy of Malcom X. 21 fev. 2018. Jacobin. Disponível em:
<http://blogjunho.com.br/o-legado-de-malcom-
x/?fbclid=IwAR1A1xmYWasO1WZUAjchDs04qSDRW1590nxvg1kID-7Is0edPioxk-So8s4>.
Acesso em: 20 jan. 2019.
SILVA, Wagner Luís da. A aurora de um poder industrial: notas sobre a história econômica
dos EUA na passagem do século XIX ao XX. Diálogos. Maringá-PR: DHI/PPH/UEM, v. 12,
n. 2/ n.3, 2008, p. 173-188.
STANTON, Elizabeth Cady; ANTHONY, Susan B.; GAGE, Matilda Joslyn; HARPER, Ida.
History of woman suffrage. Rochester: Susan B. Anthony and Charles Mann Press, 1881–
1922.
___________. The earth path: grounding your spirit in the rhythms of nature. San Francisco:
HarperOne, 2013.
TOSÍ, Lucía. Mulher e ciência. A revolução científica, a caça às bruxas e a ciência moderna.
Cadernos Pagu. Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero, UNICAMP, n. 10, 1998, p. 369-
397.
WALTERS, Suzanna Danuta. Caught in the web: a critique of spiritual feminism. Berkeley
Journal of Sociology. Berkeley: UC Berkeley Department of Sociology, v. 30, 1985, p. 15-40.
WAGNER, Sally R. The wonderful mother of oz. Baum Bugle. Estados Unidos: The
International Wizard of Oz Club, v. 47, 2003, p.7-13.
YOUNGBLOOD, Teresa. Not our newspapers: women and the underground press, 1967-
1970. Tallahassee, 2004. Dissertação (Mestrado em Artes) - Florida State University. College
of Arts and Science, 2004.
ZINN, Howard. A people’s history of United States. Nova York: HarperCollins, 2003.