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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ARUÃ SILVA DE LIMA

Comunismo contra o racismo: autodeterminação e vieses de integração de classe no


Brasil e nos Estados Unidos (1919-1939)

SÃO PAULO
2015
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Comunismo contra o racismo: autodeterminação e vieses de integração de classe no


Brasil e nos Estados Unidos (1919-1939)

ARUÃ SILVA DE LIMA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História Social do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para a obtenção do
título de doutor em História.

Orientadora: Profa. Dra. Elizabeth Cancelli

SÃO PAULO
2015
Aos meus pais,
Agradecimentos

Esta tese, embora carregue a autoria, é resultado do apoio, ajuda e contribuição de


muitas pessoas em diferentes partes do mundo. Muitos lugares me foram cedidos nos
“bondes” que peguei por causa deste trabalho. Ouvi muitos ternos adeuses nas paragens onde
atraquei por breve tempo e logo parti. Desse modo, estas palavras servem à justiça da
lembrança, à eternidade da gratidão.
A professora Elizabeth Cancelli me recebeu num final de manhã escuro em São Paulo.
Tive com ela uma conversa nervosa, para mim. Eu me encontrava numa encruzilhada na
minha vida, havia depositado todas as esperanças naquele projeto que ela havia acabado de
julgar e sobre o qual me inquiria. Sem nunca ter lhe visto, sem intermediários, nasceu a
relação entre orientando e orientador que certamente durará para sempre. Com ela tenho
aprendido cotidianamente sobre os rigores do ofício. Eu lhe sou profundamente grato pela
confiança e pelas lições.
Neste mesmo dia, quando saí, feliz, da entrevista, telefonei para aquela que seria a
responsável por tornar minha vida em São Paulo tão tranquila e segura como se estivesse em
Feira de Santana. Margarida, minha tia, recebeu a ligação e combinamos de almoçar para
celebrar. Àquela altura, o sol já tinha saído e caminhar em São Paulo para encontrá-la teve
outro gosto. Nós nos encontramos e comemos um prato de vaca atolada. O gosto permaneceu
e não tenho hesitações em dizer que escrever esta tese, viver em São Paulo e, agora, terminá-
la, tem gosto de vaca atolada.
Minha tia Margarida e meu tio Ivan foram meus pais em São Paulo. Eles se
preocuparam, me guiaram, me fizeram companhia e posso dizer que poucas vezes fui tão feliz
como quando estive na presença deles. Minha eterna gratidão aos dois. Mas também sou grato
aos meus primos Vitor Hugo e Júlio César. O primeiro, além da companhia, me concedeu o
privilégio de ver seu pequeno filho, Emílio, engatinhar e andar; o outro me permitiu risos e
gargalhadas que só um curto cotidiano debaixo do mesmo teto permitem. Marília e Priscilla,
respectivas companheiras dos meus primos, sempre estiveram presentes e, certamente, o
brilho dos almoços e jantares não teria sido o mesmo sem elas.
Agradeço à Janete por preparar meu almoço e de meu tio Ivan. Ela me fez ouvir
músicas que sem ela jamais ouviria.
Tia Marinete, tia Zuila e Camila foram uma segunda casa que, infelizmente, pouco
utilizei. Agradeço pela hospitalidade e pelo carinho que sempre me concedem a cada visita, a
cada telefonema.
Na Universidade de São Paulo, fui bem recebido por todos que encontrei. As leituras
nas duas disciplinas que cursei até hoje ressoam em mim. Por isso, agradeço às professoras
Mary Ann Junqueira e Maria Helena Machado por proporcionarem um ambiente desafiador e
fecundo. Certamente eu não nunca mais fui o mesmo desde então.
Aos professores Sean Purdy e Michael Hall, que participaram da banca de qualificação
e fizeram observações lúcidas e gentis que só tornaram o trabalho mais desafiador e
empolgante. Espero ter respondido à altura àqueles questionamentos.
Dentre os colegas das disciplinas, uma boa parte, infelizmente, eu perdi o contato.
Vinícius, Marina, Carla e Marília foram os mais próximos com quem, hoje, não tenho
contato. Àquela época foram grandes companheiros de discussões. Maíra Chinelatto tornou-se
uma grande amiga ao longo dos anos, o que muito me orgulha. Agradeço a Pedro Bortolo por
um grupo de discussão que não conseguiu se reunir muitas vezes e que terminou sendo o mote
para que continuássemos a nos comunicar. À Maria Clara Carneiro, por ter me ajudado na ida
a Moscou.
Dentre meus colegas de orientação, tampouco posso me queixar. Fui recebido por
Wanderson Chaves. Um intelectual e amigo de raríssimas qualidades. A primeira delas é a
solidariedade. Se fosse pensar em algo concreto para definir o que entendo por solidariedade,
diria que é Wanderson. Júlio Cattai foi outro de quem logo me afeiçoei. Tanto Júlio como
Ângela e Wanderson foram fundamentais para minha aclimatação em São Paulo. Logo
depois, outros colegas se chegaram, como Renata Meirelles, com quem tive importantes
conversas, Gustavo Mesquita e Pâmela Almeida. Agradeço também aos colegas Fábio Cruz,
Alex Gomes, Diego da Silva e Luciana Marta.
Pelas instituições por onde passei, agradeço enormemente aos corpos de funcionários.
No Arquivo Edgar Leurenroth, agradeço aos funcionários, tão prestativos. No Centro de
Documentação da Universidade Estadual Paulista, agradeço profundamente a Sandra, a Pedro
Bortolo e a Renain. No Arquivo Nacional também fui muito bem-tratado e agradeço à
totalidade do seu corpo de funcionários. Na Biblioteca Pública dos Barris, em Salvador, aos
servidores do setor de Jornais Raros, agradeço profundamente pela paciência.
No National Archives em College Park, nos Estados Unidos, também fui muito bem-
recebido. Na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, posso afirmar que não teria sido
possível fazer coisa alguma não fosse pela abnegação da bibliotecária e arquivista Erika
Spencer. Em Washington, eu não poderia deixar de agradecer a Sara e Gena Zak pela
hospitalidade. Em Nova York, tanto no Schomburg Center como no Tamiment Library &
Robert F. Wagner Labor Archives, a pesquisa de arquivo foi acompanhada por uma qualidade
irrepreensível com a ajuda dos funcionários, arquivistas e bibliotecários. Em Nova York,
agradeço também a Laura Lomas e Rubem pela hospitalidade e pela amizade.
Em 2012 fui contemplado com uma ajuda do Grupo Coimbra para realizar um período
de pesquisa na Abo University, em Turku, Finlândia. Lá, sob supervisão do professor Holger
Weiss, realizei pesquisa no acervo pessoal dele a respeito das atividades comunistas entre
organizações negras. Também participei de discussões com seu grupo de orientandos. Dentre
eles, destaco Fredrik Petersen, Kasper Brasken, Stefan Norrgard e Mats Wickstrom. Todos
eles contribuíram enormemente para este trabalho. Agradeço a todos pela hospitalidade, pelo
calor das relações, pela amizade e, principalmente, pelo aprendizado.
De lá fui a Moscou para um período de pesquisa no RGASPI. Tatiana Androsova foi
uma espécie de escudeira e me ajudou a desbravar a documentação. Os funcionários foram
todos muito prestativos e sorridentes comigo, ao que agradeço.
Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida.
Na Universidade Estadual de Feira de Santana, devo aos companheiros do Laboratório
de História e Memória da Esquerda e das Lutas Sociais (LABELU) um ambiente de debate
fraterno e franco sobre nossas pesquisas. A todos eles, meus agradecimentos.
Na Universidade Federal de Alagoas, Campus do Sertão, onde sou professor, agradeço
aos estudantes pela paciência e condescendência comigo. Sempre fiz o que pude, mas os
limites do corpo vez ou outra se impuseram. De todo modo, agradeço pelas lições diárias de
humanidade. Aos meus colegas, todo o meu agradecimento. Os professores Carla Taciane e
Ricardo Silva foram muito importantes em diferentes momentos do trabalho. Um
agradecimento especial dirijo aos professores Sheyla Farias, Flávio Moraes, Gabriel Badue,
Marcos Ricardo Lima e José Vieira da Cruz, sem os quais esta tese realmente não teria sido
possível. Se foi possível concebê-la e terminá-la, devo isto a esses companheiros.
Uma infinidade de pessoas me ajudou a tornar minha vida mais amena para que eu
pudesse me concentrar neste trabalho. A lista de colegas, amigos e familiares que estão nessa
jornada desde as primeiras dez linhas que escrevi sobre este tema, no final da graduação em
2006, é muito grande para caber neste espaço. Por isso, deixo aqui um amplo, geral e irrestrito
obrigado aos meus amigos, colegas, professores e familiares que me ajudaram nessa jornada,
em todas as partes do mundo.
Não é demais lembrar que, a despeito de toda a ajuda, ninguém é responsável, salvo eu
próprio, pelos prováveis equívocos aqui existentes.
Mas eu não poderia terminar sem agradecer à Thaísa Mercês, que tem me ajudado, se
preocupado, vivido comigo todas as angústias e alegrias que esta tese me impôs nos últimos
anos. Além disso, tem arrumado tempo para me ensinar, desde muito tempo, tudo que sei
sobre o amor.
E aos meus pais. Por tudo.
“I stand in astonishment at the
revelation of Russia that has come
to me. I may be partially deceived
and half-informed. But if what I
have seen with my eyes and heard
with my ears in Russia is
Bolshevism, I am a Bolshevik.”

W. E. B. Du Bois, verão de 1926


Resumo

O presente trabalho é resultado de uma investigação a respeito da relação estabelecida entre


comunistas e organizações negras nos Estados Unidos e Brasil entre as décadas de 20 e 30 do
século XX. Foi estudado o percurso duplo por onde trafegaram ideias comunistas no sentido
das organizações negras e como estas mesmas organizações influenciaram a agenda política
dos comunistas no que tange às questões raciais. Foi possível concluir que as mudanças nas
políticas da Internacional Comunista em relação à questão negra obedeceram tanto a critérios
internos dos Partidos Comunistas nacionais como às flutuações políticas da União Soviética.

Palavras-chave: Internacional Comunista. Questão Negra. Estados Unidos. Brasil.


Abstract

This work is result of an investigation about the relationship established between communists
and black organizations in the United States and Brazil between 20s and 30s of the 20th
century. It was studied the double path on which communists ideas transited towards black
organizations and how these very organizations influenced the communist political agenda
regarding racial issues. It was possible to conclude that the political shifts in the Communist
International with regard to the black question obeyed to internal criterias within national
Communist Parties as well as to the political fluctuations in the Soviet Union.

Keywords: Communist International. Black Question. United States. Brazil.


Sumário

1! Introdução ...................................................................................................................... 11!


2! “Uma parte da luta”: a América Latina e a Comintern, da fundação ao segundo
período ............................................................................................................................ 20!
2.1 ! Autodeterminação entre ortodoxia e heterodoxia ............................................................ 21!
2.2 ! O México, estratégia e anti-imperialismo: a Comintern na América Latina ................... 29!
2.3 ! De Moscou para uma outra América, a do Sul ................................................................ 38!
2.4 ! Os soviéticos e o debate sobre raça: a Comintern entre negros e índios ......................... 46!
3! A questão negra entre o império e a nação: perspectivas em movimento ............... 58!
3.1! Os socialistas e a questão racial ....................................................................................... 58!
3.2! Os socialistas e os negros nos Estados Unidos ................................................................ 66!
3.3! O Harlem e as formulações antirracistas ......................................................................... 73!
3.4! A “missão Martens”, a Internacional Comunista e o “cordão de isolamento” ................ 75!
3.5! Integração e o mundo do trabalho ................................................................................... 87!
3.6! A construção do separatismo estadunidense ................................................................... 97!
3.7! Fracionamento da luta negra e a pulverização organizativa .......................................... 102!
4! Tensões e aproximações às avessas: o PCB, a questão negra e a Internacional
Comunista .................................................................................................................... 106!
4.1! A questão negra e a stalinização do PCB ...................................................................... 116!
4.2! As inserções internacionais dos comunistas brasileiros ................................................ 134!
5! Rearranjos atlânticos: organizações negras no tempo das Frentes Populares ...... 155!
5.1! A resposta antirracista global ........................................................................................ 156!
5.2! Expressões do antirracismo nos Estados Unidos: por uma política de integração ........ 173!
6! Os comunistas, o antirracismo e a revolução no Brasil ........................................... 193!
6.1! Os Congressos Afro-Brasileiros e os comunistas .......................................................... 197!
6.2! O Congresso Afro-Brasileiro do Recife ........................................................................ 199!
6.3! O II Congresso Afro-Brasileiro, Édison Carneiro e o antirracismo: uma agenda
comunista entre a integração e a secessão..................................................................... 205!
6.4! Octávio Brandão e o PCB: da classe à raça ................................................................... 217!
Referências ................................................................................................................... 228!
11

1 Introdução

Quando este trabalho foi iniciado, seu objetivo central era identificar os mecanismos
de atuação dos comunistas face à questão racial no Brasil e Estados Unidos nas décadas de 20
e 30 do século XX. Havia a esperança de achar linhas diretas de comunicação entre
comunistas brasileiros e norte-americanos a respeito da questão negra. Aos poucos, o curso
foi ajustado e o tema acabou se alargando. O movimento empreendido pelos comunistas tinha
pretensões globais e se articulou em âmbito mundial. Quando da elaboração do projeto de
pesquisa, o desprezo deste aspecto possibilitou o subdimensionamento do tema e, portanto, de
seu objetivo, que foi corrigido apenas a partir das primeiras incursões em arquivos. Caso não
tivesse havido uma correção de curso, não teria sido possível entender a atuação dos
comunistas no Brasil e nos Estados Unidos e a dinâmica de suas relações com os comunistas
soviéticos e entre estes consigo mesmos. Por conseguinte, foi inevitável investigar o círculo
soviético ele mesmo. Ao fim do trabalho, é possível reposicionar, portanto, seu objetivo:
trata-se de um exame das transformações das posições dos comunistas e das organizações e
seus intelectuais negros vinculados ao comunismo face à questão racial.
O caminho que levou a esta formulação teve que percorrer a lógica interna de
funcionamento dos aparatos políticos do movimento comunista internacional. Por isso, alguns
debates antigos reaparecem neste texto, ora subliminar ora explicitamente. A maioria da
historiografia brasileira sobre o Partido Comunista do Brasil (PCB) evitou questões
organizativas, entendidas ipsis litteris tais como o funcionamento prático das comunicações;
pouco se perguntou como a organização atual do acervo da Internacional Comunista (IC)
pode explicar, mesmo que parcialmente, seu próprio funcionamento. Ainda que não conste
por extenso neste trabalho, foram esses os exercícios realizados cujos intuitos foram não
sobredeterminar os aspectos organizativos das divisões e subdivisões da Internacional
Comunista na definição programática da organização.
A questão racial foi apenas um pequeno aspecto da militância comunista internacional,
o que, paradoxalmente, não deve ser entendido como sinônimo de desimportância. É possível,
sim, elencar outras ênfases ao longo dos quase 25 anos de existência da Internacional
Comunista. No entanto, dada a grandiosidade da IC e da agenda política dos comunistas, isto
não significa que pouca coisa tenha sido feita a respeito da questão negra e racial, tampouco
que relegar a um plano secundário tenha sido obra de racismo ou, ainda, que não fosse
possível combater o racismo a partir do manancial teórico e ideológico comunista.
12

Para compreender como os negros e a questão racial, entendida mais amplamente, se


tornaram pauta dos comunistas, foi necessário recorrer a diferentes pistas. A mais importante
delas, sem dúvida, foi “Framing a Radical African Atlantic”, de Holger Weiss. 1 Nesse
trabalho monumental, Weiss reconstruiu a trajetória de comunistas negros europeus, norte-
americanos, caribenhos e africanos. Weiss percorre a diversidade de linhagens do pan-
africanismo e desmonta teses homogeneizadoras desse movimento. A mescla de radicalismo
negro com comunismo proporcionaria uma certa versão de pan-africanismo distinta de suas
correntes hegemônicas. O foco de Weiss esteve nas articulações entre União Soviética,
Europa, Estados Unidos e a África subsaariana. O autor deixou tanto uma trilha quanto um
vazio, o que permitiu análises da América Latina e do Brasil a respeito dessa questão,
presentes nos capítulos 2, 4 e 6.
Considerando o que já foi dito sobre a importância da questão negra entre os
soviéticos e entre comunistas de todo o mundo, mesmo que esta importância tenha variado em
termos de espaço e tempo, é preciso mencionar que foi necessário descobrir os aspectos
organizativos do movimento comunista internacional e, por vezes, até mesmo da União
Soviética. O financiamento dos movimentos, os vetores de poder (de Moscou para as seções
partidárias e vice-versa) e, principalmente, a forma como as fraturas internas na própria União
Soviética delinearam parte das agendas políticas para a questão racial constituíram aspectos
que precisaram ser enfrentados. Eles se encontram diluídos em todo o texto, ainda que
apareçam com maior ênfase nos capítulos 2 e 3.
A análise das linhas programáticas definidas em Moscou nos congressos da
Internacional Comunista, também conhecida pelo acrônimo Comintern, as inúmeras
organizações criadas pelos comunistas para atacar a questão negra, a relação dos secretariados
regionais e das seções partidárias com as ênfases políticas definidas pelos congressos não
seriam suficientes para explicar a expressão do enfrentamento à questão racial nos Estados
Unidos e no Brasil. Por isso, foi preciso estudar os comunistas em seus respectivos lugares de
atuação.
No Brasil, foi identificada desde a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB)
uma severa resistência em fazer cumprir determinações da IC a respeito da questão negra e
em reconhecer a existência de uma questão racial no Brasil. As organizações negras foram
relativamente livres de qualquer influência de esquerda, não havendo aproximações orgânicas

1
WEISS, Holger. Framing a Radical African Atlantic: : ming a Radical African Atlanticialto não significa que
pouca coisa tenha sido feita signittee of Negro Workers ming a Radical African Atlanticialto não significa que
pouca coisa tenh
13

na década de 1920 entre grupos organizados negros e comunistas, como ocorreu nos Estados
Unidos. Está claro que a opinião dos comunistas em sua totalidade não deve ser confundida
com a política definida pelo PCB, fruto de uma decisão majoritária. Foi especialmente difícil
identificar a minoria derrotada que pode ter expressado outra visão a respeito das questões
negra e indígena no Brasil. A identificação de alguma tendência que aproximou algum
fragmento da esquerda, neste caso os comunistas, e grupos definidos em termos raciais, a
saber, indígenas e negros, data da primeira metade da década de 1930. Na Bahia, alguns
comunistas passaram a articular-se em consonância com agenda racial de Moscou.
Precisamente neste ponto reside o argumento principal a respeito da relação entre agenda
política e seu cumprimento: os comunistas brasileiros, na quase totalidade do tempo de
existência da IC, não cumpririam as diretrizes cominternianas sobre a questão racial. A
respeito dessa questão, os capítulos 4 e 6 são essenciais.
O caso dos Estados Unidos requer a mesma atenção. Conforme apontado, houve
imbricações entre movimentos negros radicais e o movimento comunista nos Estados Unidos.
Essa história, mais bem documentada e conhecida, leva, necessariamente aos ramos
internacionalistas do movimento negro. No campo da esquerda, esse movimento se confundiu
com a ampla atividade anti-imperialista sem a qual é impossível compreender a atividade
desse espectro do radicalismo negro. Esse conjunto de questões está nos capítulos 3 e 5.
Em todo caso, faz-se necessário um rápido balanço sobre o estado da arte nos Estados
Unidos. O ponto de partida da primeira crítica historiográfica estadunidense sobre as
esquerdas e, mais especificamente, sobre a história do comunismo nos Estados Unidos foi a
prevalência das análises das diretrizes partidárias em detrimento das práticas cotidianas da
militância. Por motivações distintas, intelectuais entenderam os resultados das reuniões de
direção e de congressos como sinônimos da atuação partidária.2 Theodore Draper fez um dos
primeiros estudos documentais sobre a atividade comunista nos Estados Unidos. Seus livros
“The Roots of American Communism”, publicado em 1957, e “American Communism and

2
Cf. FOSTER, William Z. History of the Communist Party of the United States. Nova York: International
Publishers, 1952; DRAPER, Theodore. The Roots of American Communism. Nova York: The Viking Press,
1957; KLEHR, Harvey. Communist Cadre: The Social Background of the American Communist Party.
Stanford: Hoover Institution Press, 1960. A primeira obra foi escrita por um comunista que passou a maior parte
de sua trajetória política ocupando cargos de direção na estrutura do movimento comunista internacional. Assim,
a narrativa obedece à ideia central de que o movimento encontrou seu auge nos Estados Unidos, quando se
colocou sob os auspícios da liderança soviética. Os dois últimos, obedecendo também a critérios argumentativos
distintos entre si, defendem a tese de que a experiência comunista era exógena aos Estados Unidos e, por isso,
deveria ser enfrentada como questão de segurança nacional. No fundo, o elemento interpretativo que organiza as
explicações sobre “os comunistas nos Estados Unidos” deriva da assunção que Moscou deteve a liderança do
processo.
14

Soviet Union”, 3 em 1960, constituem bases daquela perspectiva metodológica que


superestima o papel das direções. A despeito disso, a obra de Draper é um legado intelectual
ainda em processo de superação. Em ambos os escritos, ele escreve sobre a história do
comunismo nos Estados Unidos a partir de suas próprias experiências de ex-comunista e de
um privilegiado corpus documental. Sua interpretação da história do comunismo nos EUA
associa o Partido a um elemento externo em solo americano. Concluiu em ambas as
publicações que os comunistas se estabeleceram como um apêndice soviético em terras norte-
americanas. A associação entre ser comunista e ser espião ou, no mínimo, impatriota, tornou-
se quase automática e coerente com os anos de bipolaridade geopolítica. A explicação da
dinâmica partidária a partir de uma mimese que flui de um centro às periferias obliterou a
capacidade criativa do movimento enquanto narrado por parcela da historiografia
estadunidense, inclusive em seu momento menos submetido às diretrizes cominternianas, que
foi o da Frente Popular, ao menos no caso dos Estados Unidos. Tal qual existente na narrativa
de Draper, credita-se aos militantes comunistas norte-americanos a quase absoluta submissão
aos ditames de Moscou. Após anos de reinterpretações e releituras, em 2003, Draper, em
notável autocrítica, escreveu uma nova introdução para sua obra de 1957, na qual afirma que
ao “tornar o termo comunista equivalente a espionagem, uma grande injustiça pode ser feita
àqueles que não foram espiões”.4
Como um sintoma dos novos tempos, as palavras de Draper indicam que no século
XXI o estado da arte na historiografia estadunidense já é diverso daquele da década de 1960.
A produção é vasta e existem gerações se sobrepondo e disputando posições de prevalência
no campo historiográfico, mesmo que as questões surgidas, também a partir da obra de
Draper, continuem implícitas. Ou seja, o exercício historiográfico pautado na tensão
autonomia–heteronomia dos comunistas estadunidenses em relação a Moscou continua no
centro das pesquisas. Mudaram, no entanto, os percursos narrativos, os temas e, mais
recentemente, as fontes.
Ainda na década de 1970 foram iniciados trabalhos que reposicionaram o binômio
citado até aqui. Mark Solomon e Kenneth Waltzer criticaram a ênfase analítica nos
direcionamentos de Moscou. Ambos pesquisaram a Frente Popular, que vigeu oficialmente
entre 1934 e 1939, e demonstraram que comunistas provenientes das comunidades negra, no
caso de Solomon, e judia, no caso de Waltzer, perfizeram caminhos nem sempre coincidentes

3
Cf. DRAPER, Theodore. American Communism and Soviet Russia: The Formative Period. Nova York:
Viking, 1960.
4
DRAPER, Theodore. The Roots of American Communism. Nova Jersey: Transaction Publishers, 2003. p.
XIX.
15

com as diretrizes cominternianas. Desse modo, Solomon e Waltzer terminaram chamando


atenção tanto para novos temas como, sobretudo, para uma necessidade de nova abordagem
para entendê-los e, consequentemente, compreender melhor o fenômeno comunista nos
Estados Unidos.5
Maurice Isserman aprofundou a crítica às apropriações da história do comunismo
americano, como chamou Draper. Isserman reperiodizou a história do Partido Comunista dos
Estados Unidos em função do que chamou “a geração de comunistas que entrou no PC no
início dos anos da Depressão e continuou nele até 1956”.6 Além de retirar uma ênfase
excessivamente local da interpretação sobre o movimento comunista nos Estados Unidos,
Isserman reinterpretou o período de Frente Popular nos Estados Unidos à luz da própria
dinâmica interna dos comunistas norte-americanos. Sugeriu que parte da crise do comunismo
estadunidense de finais da década de 1950 guardou mais vínculo com a agenda política da
Frente Popular de 20 anos antes, como parte do argumento em prol da tese de que o
comunismo no país não seria mero satélite soviético. A polêmica sintetizou o cerne do
conflito historiográfico que garantiu sobrevida à “new history of american communism”.
Em meados da década de 1990, as perguntas impostas por Cary Nelson e Mary Helen
Washington acabaram induzindo uma congruência até então pouco evidenciada. 7 Novos
trabalhos tornaram complexa aquela que era vista como uma mera relação de hierarquia da
Comintern sobre o Communist Party of the United States (CPUSA) e dos comunistas com as
comunidades étnicas. Por conseguinte, incorporaram-se aos poucos novos termos ao debate
acerca do binômio autonomia–heteronomia da atividade comunista, e detecta-se, nas
pesquisas mais recentes, a existência de autores que coadunam os dois mundos nos quais os
comunistas se viam imersos: um primeiro, das redes de comunicação globais onde não raro se
viam absolutamente submetidos, e um segundo, ligado aos problemas internos, locais e
cotidianos que eles enfrentavam nos Estados Unidos. Há, nesses autores, um equilíbrio na
equação autonomia–heteronomia, já que somam a filiação político-partidária àquelas ligadas
aos mundos do trabalho, às questões de gênero e etnia. Esses autores submetem-se ao desafio

5
Cf. WALTZER, Kenneth. The Party and the Polling Place: American Communism and an American Labor
Party in the 1930s. Radical History Review, Nova York, n. 23, p. 104-129, 1980; WALTZER, Kenneth. The
American Labor Party: Third Party Politics in New Deal-Cold War New York, 1936-1954. 1977. Tese
(Doutorado em História)–Harvard University, Cambridge, 1977; SOLOMON, Mark. The Cry Was Unity:
Communists and African Americans, 1917-36. Jackson: The University of Mississippi Press, 1998.
6
ISSERMAN, Maurice. Which side were you on: the American Communist Party during the Second World
War. Middletown: Wesleyan University Press, 1982. p. xii. “The generation of communists who joined the CP in
the early years of the Depression and remained in it until 1956”.
7
WASHINGTON, Mary Helen. Disturbing the Peace: What Happens to American Studies If You Put African
American Studies at the Center? American Quarterly, Baltimore, v. 50, n. 1, p. 1-23, mar. 1998; NELSON,
Cary. What happens when we put the left at the Center? American Literature, Durham, v. 66, n. 4, dez. 1994.
16

de contar a história do comunismo nos Estados Unidos compreendendo-o como parte de um


fenômeno global, mas entendendo sua existência prática num espaço social específico e
único.8
A apreciação que segue sobre os comunistas e negros estadunidenses pretende também
equalizar o quanto ordenava a Comintern e o quanto obedeciam os comunistas
estadunidenses. O capítulo 5 tem como objetivo refazer alguns percursos da história dos
comunistas em relação ao racismo e à questão negra nos Estados Unidos. Dado que o tema
transcende a história estadunidense, e os próprios comunistas tinham esse entendimento,
realizou-se incursões em outros lugares a fim de refazer as linhas de conexão entre processos
perdidos ora por excessos analíticos do papel explicativo das diretrizes ora por abordagens
que exageraram o fator local em fenômenos eminentemente globais.9
A condução da pesquisa partiu de uma noção tripartite, por assim dizer, da atuação dos
comunistas. A articulação entre Europa (incluindo aqui a União Soviética), Brasil e Estados
Unidos guiou a parte majoritária da pesquisa em arquivo. Por isso a varredura documental foi
empreendida no Brasil, nos Estados Unidos, na Inglaterra, Holanda, Finlândia e Rússia. O
manancial documental abriu os termos de uma “história sem fim”. A história da participação
de negros enquanto negros no movimento comunista internacional parece, hoje, mais
profunda do que parecia à primeira vista. O ataque à quantidade de documentos arrolados
obedeceu à tentativa de reconstruir um fenômeno global, em curso em diferentes lugares de
diferentes maneiras. Foi especialmente difícil mapear os pólos irradiadores de poder do
movimento comunista em relação à questão racial. A dualidade “centro–periferia” mudou
constantemente no que diz respeito às formulações sobre a questão negra, em específico. Se
Moscou foi o centro irradiador das políticas para o movimento comunista internacional, por
outro lado, os Estados Unidos e a África do Sul foram centros propugnadores e articuladores
de políticas raciais. Os brasileiros, por seu turno, rejeitaram a agenda racial proveniente de
Moscou no final da década de 1920 demonstrando resistência política. Portanto, a análise dos
documentos não pôde levar em consideração tão somente as relações de poder evidentes à luz

8
Cf. MAXWELL, William J. New Negro, old left: African-American writing and Communism between the
Wars. Nova York: Columbia University Press, 1999; MULLEN, Bill V. Popular Fronts: Chicago and African-
American Cultural Politics, 1935-46. Urbana; Chicago: University of Illinois Press, 1999; MULLEN, Bill;
SMETHURST, James Edward. Left of the Color Line: Race, Radicalism, and Twentieth-Century Literature of
the United States. Chapel Hill: The North Carolina Press, 2003; NAISON, Mark. Communists in Harlem
during the Depression. Champaign: The University Illinois Press, 2005; SOLOMON, 1998; KELLEY, Robin
D. G. Hammer and Hoe: Alabama Communists during the Great Depression. Chapel Hill: The North Carolina
Press, 1990.
9
Cf. STORCH, Randi. Red Chicago: American Communism at its Grassroots, 1928-35. Champaign: University
of Illinois Press, 2007.
17

do dia. Foi preciso cotejar a documentação e destrinchar sua lógica, que, na maior parte dos
casos, transbordava de sua própria internalidade.
A circunscrição espacial da pesquisa flutuou em diferentes dimensões. Na análise das
ideias e da agenda política, o espaço dilatou-se, especialmente quando o tema foi o
imperialismo e racismo. Por outro lado, quando se buscou amealhar as organizações
antirracistas e suas expressões no movimento comunista, os locais protagonizaram a narrativa:
Salvador, Nova York, Moscou, Paris, Chicago, Birmingham e outros.
A ideia de uma história global e transnacional permeia este trabalho muito mais como
um procedimento de trabalho que propriamente uma noção de história à parte.10 Se está clara
a função de uma história transnacional para combater versões provincianas da história dos
Estados Unidos, exageradamente autocentradas em variantes do “excepcionalismo”, em
estudos de caso essencialmente transnacionais, como este, não está claro outro benefício para
seu uso senão possibilitar a própria execução do trabalho. Não foi possível encontrar outro
caminho senão deixar-se seguir pelo próprio movimento desenhado pela documentação, uma
vez que foram reconstruídos os meandros, as idas e vindas do processo de construção de
agendas para a questão negra no decorrer da existência da Comintern.
Uma protagonista desta história é a Internacional Comunista. Sua genealogia, do
ponto de vista factual, relativa à sua fundação e inspirações políticas já foi objeto de amplo
debate historiográfico sobre o qual pouco será acrescentado. No entanto, é preciso realçar o
lugar de escrita deste texto em relação ao tema.
Em março de 1919, quando a IC foi fundada, completava-se um ano da assinatura do
Tratado de Brest-Litovski com as potências ocidentais envolvidas na Grande Guerra.
Alemanha, Bulgária (então chamada a Prússia dos Bálcãs), Turquia e o Império Austro-
Húngaro, por um lado, e a Rússia, por outro, acordaram na cessão de territórios do antigo
Império Russo e na renúncia de dívidas de guerra, de acordo com o artigo IX. Dessa maneira,
o esfacelamento do Império Russo se deu, sobretudo, na sua borda Oeste, onde Ucrânia,
Estônia, a região da Livônia e a Finlândia deixariam de estar sob soberania russa. O objetivo
dos bolcheviques era evitar a sangria dos já escassos recursos caso fosse preciso pagar dívidas
de guerra. Além disso – e não menos importante – vigeu na política externa bolchevique, por

10
Ver debate: MCGERR, Michael. The Price of the “New Transnational History”. The American Historical
Review, Durham, v. 96, n. 4, p. 1056-1067, out. 1991; VEYSEY, Laurence. The Autonomy of American History
Reconsidered. American Quarterly, Baltimore, n. 31, p. 455-77, outono 1979; IRIYE, Akira. The
Internationalization of History. The American Historical Review, Durham, v. 94, n. 1, p. 1-10, fev. 1989;
TYRRELL, Ian. American Exceptionalism in an Age of International History. The American Historical
Review, Durham, v. 96, n. 4, p. 1031-1055, out. 1991.
18

algum tempo, uma sincera política pela autodeterminação dos povos, exercida sem
relativizações.
Para este trabalho, um aspecto fundamental da relação que a Comintern manteve com
seus militantes em todo o mundo foi o papel de arregimentadora de vontades coletivas. A
fundação da Internacional Comunista, ou a Terceira Internacional, aconteceu num momento
raro de confluência de fenômenos e processos que desafiariam qualquer teleologia ou
previsibilidade histórica. Por esse mesmo motivo, não parece frutífero pensar as elaborações
de bolcheviques e socialistas destes curtos anos pós-1917 em termos de ilusões psicanalíticas.
A IC disputou corações e mentes e venceu muitos deles. A utopia alastrada pela Comintern
sob a aura da Revolução de 1917 e o sonho moderno de liberdade e igualdade plenas não
podem ser diminuídos em nenhuma análise a respeito do movimento comunista internacional.
Aldo Agosti afirma que os aspectos ilusórios que existiram nas primeiras análises não
ignoraram a base que fundamentava a estratégia global da Revolução Bolchevique: a dupla
necessidade, ao mesmo tempo, de expandir o processo revolucionário e defender a “fortaleza
bolchevique”. 11 A dimensão necessariamente global de toda a estratégia bolchevique
culminou no conceito de partido mundial da revolução (sobre isso já há bibliografia).
Curiosamente,
Se analisarmos os documentos e os debates do primeiro ano de vida do Comintern,
com efeito recolhemos a impressão de que – precisamente quando era mais viva a
confiança na iminência da revolução mundial e maior era o peso que ela tinha no
horizonte estratégico do movimento comunista – o conceito de partido mundial da
revolução era mais impreciso e mais indeterminado. Decerto, há diversas razões que
explicam essa anomalia. As condições objetivas (isolamento da Rússia através do
cordão sanitário, inconsistência e debilidade das frações ou dos partidos comunistas
na maior parte dos países, impossibilidade para o Comintern de influir diretamente
no curso dos eventos em situações que se apresentavam como revolucionárias)
fizeram com que, durante todo o ano de 1919, o Comintern não fosse absolutamente
aquele “estado-maior da revolução mundial” em que aspirava a se converter, mas
sim o restrito núcleo de uma organização que devia ainda, em grande parte, ser
criada: bem mais uma idéia-força do que um organismo em funcionamento.12

À medida que o “partido mundial da revolução” foi transformando seu propósito em


algo menos impreciso, as ideias sobre nações vinculadas a determinações étnicas e raciais
foram se consolidando como agenda política dos comunistas. Uma política em termos raciais,
como o “cinturão negro” nos Estados Unidos ou a autodeterminação dos povos negro e
indígena no Brasil, só foi possível à proporção que a ideia de um “partido mundial da
revolução” transformou-se em “partido mundial da revolução em defesa da União Soviética”.

11
AGOSTI, Aldo. As Correntes Constitutivas do Movimento Comunista Internacional. In: HOBSBAWM, Eric
et al. O marxismo na época da Terceira Internacional: da Internacional Comunista de 1919 às Frentes
Populares. São Paulo: Paz e Terra, 1988. p. 104.
12
Ibidem, p. 105-6.
19

Por fim, a tentativa de medir adequadamente a importância da utopia na prática


formuladora dos comunistas foi um desafio. E, em mais de um sentido, esta foi a maior
dificuldade enfrentada neste trabalho: discernir, dentre as inúmeras possibilidades postas por
uma documentação ainda pouco explorada, o que era importante.
20

2 “Uma parte da luta”: a América Latina e a Comintern, da fundação ao segundo


período

O movimento comunista enfrentou a questão racial de maneiras distintas durante os


quase 25 anos de duração da III Internacional. Nas Américas, a Internacional Comunista
(Comintern) estabeleceu uma clivagem analítica que diferiu as manifestações de “raça” entre
negros e índios. Por isso, os organismos que coordenaram e catalizaram discussões sobre o
tema, respectivas a cada um dos grupos, provieram de espaços nem sempre coincidentes. Em
linhas gerais, o ataque à “questão negra” obedeceu às formulações as quais mantiveram
vínculo com a estratégia de combate ao imperialismo, por meio ora da própria Comintern ora
de organismos auxiliares tais como a Profintern, a Sindical Vermelha. Já a questão camponesa
terminou se mesclando às questões indígenas via Internacional Camponesa, a Krestintern.
Essa divisão se deu em função das capacidades organizativas, que não possibilitavam que um
mesmo suborganismo se engajasse em espaços numerosos, e também em função de
formulações que associaram quase que automaticamente certas populações trabalhadoras do
mundo rural à Krestintern e urbanas à Profintern.
A autodeterminação na América Latina era “apenas parte da luta universal dos povos
oprimidos contra seus opressores imperialistas que na China, Índia, América Central ocupam
posições centrais”.13 O conflito permanente entre comunistas latino-americanos e as diretivas
de Moscou relacionava-se às generalizações dessa natureza impostas pela Comintern. A
capacidade de cada unidade partidária dialogar com as diretivas numa estrutura altamente
centralizada foi sempre um indicador da intensidade do conflito entre locais e Moscou.
No presente capítulo, serão apreciados aspectos ligados à estruturação interna da
Comintern e as relações que os organogramas então vigentes mantiveram com as formulações
do movimento comunista internacional, dessa maneira, subsidiando uma compreensão de
como operava a Internacional Comunista (IC). O objetivo principal é analisar a chegada do
comunismo na América Latina não enquanto ideário e, sim, da IC enquanto organização. Para
isso, serão necessárias algumas digressões no sentido de perfazer o itinerário de conceitos
relevantes para a definição da política dos comunistas de todo o mundo identificando seus
portadores. Além desta ênfase na América Latina, será feita uma incursão nos debates
realizados entre russos durante o século XIX e início de XX. Isso tornará possível

13
DEGRAS, Jane. The Communist International, 1919-1943. Londres/Nova York: Oxford University Press,
1959. v. 2. p. 355.
21

dimensionar os termos em que as questões raciais foram discutidas por comunistas latino-
americanos anos depois, sob a rígida influência dos soviéticos. Pelo mesmo motivo, neste
capítulo será apresentada a moldura em que Josef Stalin operou sua ideia de
autodeterminação, que o alçou ao posto de formulador de política para “os povos coloniais”
mesmo antes de se tornar a figura central do regime soviético.

2.1 Autodeterminação entre ortodoxia e heterodoxia

A ideia de autodeterminação entre socialistas e comunistas, desde o tempo da I


Internacional, tinha contornos nacionalistas. Esse foi um constructo que permitiu aos
comunistas pós-1917 atuar por uma pauta nacionalista sob um argumento internacionalista,
constituindo-se justamente o liame entre os comunistas nas Américas. Mais precisamente,
entre membros da esquerda e setores tidos como progressistas vigeu uma interpretação, ainda
que difusa, de que partilhavam uma condição comum de explorados e em favor destes
últimos. Dessa maneira, o enfrentamento nacional por parte de cada uma das populações
exploradas redundaria numa frente internacional.14 Calcados nesse argumento que enfatizava
o local/nacional, ao final da década de 1930, comunistas de uma maioria significativa dos
países do continente tinham ao menos discutido a possibilidade de secessão política em seus
respectivos países. Basearam-se no argumento da autodeterminação dos povos mobilizando
aspectos que correlacionavam exploração econômica e ligações identitárias com bases em
marcadores étnico-nacionais.15 Os comunistas das três Américas terminariam por ajudar a
difundir o raciocínio sobre as questões nacionais à feição dos bolcheviques, sob o manto
stalinista, ao associar a luta pela revolução proletária à resolução dos problemas nacionais.
Afinal, após o processo de bolchevização, eles se tornariam não apenas comunistas mas
também bolcheviques, cuja principal missão, portanto, seria a defesa da União Soviética.16

14
Cf. BENNER, Erica. Really existing nationalisms: a post-communist view from Marx and Engels. Oxford:
Oxford University Press, 1995. p. 171-208.
15
Os antecedentes desse debate se encontram introduzidos em: LÖWY, Michael. O Sonho Naufragado: a
Revolução de Outubro e a questão nacional. Revista Lutas Sociais, São Paulo, v. 7, mar. 2011.
16
O processo de bolchevização teve início a partir do II Congresso da IC, quando as 21 condições foram
impostas para que os partidos de todo o mundo pleiteassem participar da Comintern. Em outubro de 1924, o
comunista estadunidense James Cannon escrevia: “O Congresso achou que todos os partidos da Internacional,
com exceção do Partido Russo, estão distantes dos requerimentos para serem considerados como um Partido
Bolchevique” (CANNON, James Patrick. James P. Cannon and the Early Years of American Communism:
Selected Writings and Speeches, 1920-1928. Nova York: Spartacist Publishing Co., 1992. p. 233). Sobre as
polêmicas em torno do processo de bolchevização: DEUTSCHER, Isaac. Trotski: o profeta armado (1879-
22

Conquanto a expressão máxima do pensamento internacionalista postulasse a diluição das


fronteiras nacionais em prol da nação global do proletariado, passada a verve de outubro de
1917, o internacionalismo seria alocado a um horizonte utópico; tanto após as derrotas alemãs
como, nas Américas, em razão do vigor das políticas repressivas, a revolução mundial
chegava ao seu anoitecer.17 E, dessa maneira, descortinava-se a necessidade histórica, na
visão dos bolcheviques, de defesa dos sovietes na Rússia. Para isso, e antes de mais nada, era
necessário frear o imperialismo.
Na divisão das atribuições e áreas de atuação de cada bolchevique, Josef Stalin era o
sujeito responsável pela definição da política ligada aos povos satélites do antigo Império
Russo Czarista e, por tabela, aqueles entendidos pelos comunistas enquanto submetidos pelo
imperialismo. Desde quando publicou “O marxismo e o problema nacional e colonial”,
redigido em diversas partes entre 1913 e 1920, Stalin havia se notabilizado como um
formulador político para adequar os povos do antigo império aos novos tempos, levando em
conta a tese da autodeterminação. De aplicador ortodoxo a relativizador, Stalin viu suas teses
sofrerem flutuações a partir de sua própria caneta. Em poucos meses as formulações
stalinianas inflexionavam ao sabor dos acontecimentos.18 Isaac Deutscher, biógrafo de Stalin,

1921). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a; DEUTSCHER, Isaac. Trotski: o profeta desarmado (1921-
1929). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005b; PIATNITSKY, Ossip. The Bolshevization of the
Communist Parties by eradicating the social-democratic traditions. Manchester: Co-operative Printing
Society, [s.d.]; FREYMOND, Jacques (Org.). Contribuitions a l’Histoire du Comintern. Genebra: Droz, 1965.
(Publications de l’Institut Universitaire de Haute Études Internationales, 45); WOHL, Robert. French
Communism in the Making, 1914-1924. Stanford: Stanford University Press, 1966; LINDEMANN, Albert S.
The Red Years: European Socialism Versus Bolshevism, 1919-1921. Los Angeles: University of California
Press, 1974; LAPORTE, Norman; MORGAN, Kevin; WORLEY, Matthew. Bolshevism, Stalinism and the
Comintern: Perspectives on Stalinisation, 1917-1953. Nova York: Palgrave MacMillan, 2008. Para uma versão
online das 21 condições (em inglês): MINUTES of the Second Congress of the Communist International:
Seventh Session – July 30. Marxists Internet Archive. [s.d.]. Disponível em:
<http://www.marxists.org/history/international/comintern/2nd-congress/ch07.htm>. Acesso em: 20 set. 2012.
17
O fracasso das “revoluções” europeias foi creditado a uma “bolchevização inadequada” (ELEY, Geoff.
Forging Democracy: The history of the Left in Europe, 1850-2000. Oxford: Oxford University Press, 2002. p.
254). Como consequência das derrotas da esquerda europeia, o modelo bolchevique ascendeu como principal
referência no campo da esquerda e, em função disso, materializou-se durante o V Congresso da IC, em 1924,
uma certa acepção de “bolchevização”, a qual postulava que o termo “significava estrito centralismo da
organização; respeito disciplinado às diretivas da Comintern; e teoria ‘Leninista’” (Ibid., p. 251).
18
Stalin era o único não russo entre os principais componentes do Partido Comunista da União Soviética. Havia
nascido na Geórgia submetida ao antigo Império Russo Czarista. Ainda em 1913 escrevera uma crítica ao
Partido Social Democrata Trabalhista Russo em razão de uma relativização do conceito de autodeterminação,
que obliterara o sentido internacionalista das formulações da Liga Caucasiana que, por sua vez, era integrante do
Partido. Cf. STALIN, Josef V. On the road to nationalism. Marxists Internet Archive. 2008. Disponível em:
<http://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1913/01/12_2.htm>. Acesso em: 14 out. 2012.
Defenderia a autonomia regional das nações pertencentes ao Império ao mesmo tempo em que adotava o
internacionalismo como saída para o problema da divisão dos trabalhadores em torno do nacionalismo: “O único
meio de evitar isso [a fragmentação do Partido] é a organização segundo os princípios do intemacionalismo”. E
insiste no exemplo dos caucasianos como organização internacionalista (STALIN, Josef V. O marxismo e o
problema nacional e colonial. São Paulo: Ciências Humanas, 1979. p. 60.) Josef Stalin não apresentaria
23

informa, a esse propósito, que a independência da Finlândia, antiga possessão do Império


Russo Czarista, fora concebida a partir de elaborações stalinianas sobre a autodeterminação
dos diferentes povos. De acordo com Deutscher, Stalin conceberia a eles o direito de escolher
sua maneira de determinar-se, fosse ela sob a forma de um Estado-Nação fosse sob a forma de
unidade centralizada conforme pactuação entre povos. Anos depois, em 1921, quando houve
necessidade de lidar com a mesma questão na Geórgia, seu país de nascimento, Stalin se viu
forçado a mudar sua orientação sob o argumento de que a concessão do direito de
autodeterminação aos povos anteriormente pertencentes ao Império Russo Czarista culminou
no exercício pleno do poder da burguesia a partir da direção de um recém-criado estado
capitalista.19 Na verdade, ainda em 1918, quando tinha sido necessário lidar com a Ucrânia,
Stalin já havia revisitado e relativizado sua tese sobre a autodeterminação. Essa relativização
inexistia em 1917 quando a independência da Finlândia seria o exemplo clássico da aplicação
da tese da autodeterminação como sinônimo de autonomia, como resumido na seguinte
fórmula: todo povo pode e deve se determinar sob a estrutura de um Estado-Nação
independente e regido pelos seus próprios desejos.20 Ainda que os bolcheviques não fossem
partidários da onda de separatismos que dessa tese poderia nascer, avaliava-se, de acordo com
Deutscher, que “a sociedade socialista internacional só podia estar baseada – assim
argumentava Stalin – no acordo voluntário entre os povos que a constituiriam; e o acordo
voluntário pressupunha que cada nação deveria, primeiro, reconquistar a completa
liberdade”. 21 Dizia o próprio Stalin, quatro dias depois de ser um dos signatários da
independência da Finlândia:

discordâncias profundas com outros bolcheviques a respeito do internacionalismo até o início do chamado
“segundo período”, que durou de 1924 a 1928.
19
Sob o argumento de que havia uma sublevação comunista em curso e que o Exército Vermelho apenas
aumentaria as chances contra os mencheviques, Stalin enviou, com o apoio de Lênin e do politburo, em fevereiro
de 1921, destacamento do II Exército Vermelho para invadir a Geórgia e expulsar o governo. Cf. CARR,
Edward Hallett. “Self-determination in practice” e “The balance-sheet of self-determination”. In: ______. The
Bolshevik Revolution (1917-1923). Nova York: MacMillan Company, 1985. v. 1. p. 286-379.
20
Este é obviamente um tema polêmico sobretudo porque se trata de um país cuja independência não completou
sequer 100 anos e sua historiografia ainda é parte de um esforço que ajuda a moldar uma dada identidade
nacional. Os eventos da Segunda Guerra Mundial, a chamada “Guerra do Inverno”, promoveram uma imagem
da independência finlandesa que não corresponde necessariamente à realidade. A participação decisiva de Stalin
na concessão soviética é obliterada, por exemplo, da grande narrativa de fundação da Finlândia. Lênin, ao
contrário, é visto como decisivo. Diferentemente de Deutscher, parte significativa da historiografia finlandesa
entende a iniciativa de Lênin como um ato deliberado de concessão do poder aos que seriam sovietes
finlandeses. Tendo em vista o fracasso da iniciativa, os soviéticos teriam insuflado uma guerra civil que, embora
curta, deixaria cicatrizes na memória histórica daquele país e ajudaria a forjar uma ponte com o dorso da Europa:
a Alemanha (MEINANDER, Henrik. A History of Finland. Londres: C. Hurst & Co., 2011. p. 124-135).
Mesmo nesse ato de concessão e aplicação de suas formulações longamente trabalhadas desde 1912 sobre
autodeterminação, Stalin já se mostra hesitante.
21
DEUTSCHER, Isaac. Stalin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 206.
24

Se observarmos com atenção [...], veremos que o Conselho de Comissários do Povo,


a despeito da sua intenção, deu a liberdade não para o povo, não para os
representantes da classe operária da Finlândia, mas para a burguesia finlandesa, a
qual [...] tomou o poder e recebeu a independência das mãos dos socialistas da
Rússia.22

Já em janeiro de 1918, ao perceber o fracasso da política que contribuíra para formação de


governos antibolcheviques em países das fronteiras russas, o futuro secretário-geral do Partido
Comunista da União Soviética (PCUS) proporia uma revisão na política ao defender que:
[...] devia ser entendido como direito de autodeterminação não da burguesia, mas
das massas espoliadas de uma dada nação. O princípio de autodeterminação devia
ser usado como instrumento da luta pelo socialismo e estar subordinado aos
princípios do socialismo.23

Ao defender uma iniciativa intervencionista por parte do estado bolchevique,


condicionando a autodeterminação, Stalin passaria a dirigir suas atenções ao mecanismo
capaz de tornar real a nova estratégia soviética: a diplomacia. Situa-se precisamente aqui o
ceticismo staliniano que marcaria suas relações com a Comintern.
A partir da fundação da IC, em março de 1919, os argumentos stalinianos sobre os
povos “oprimidos” seriam, sob a defesa de Lênin, apropriados pelo movimento comunista
internacional. Ao invocar, com Lênin, argumentos contra o federalismo como solução para o
“problema interno das nacionalidades” que advinha do Império Russo Czarista herdado à
União Soviética, Stalin propugnaria definitivamente uma versão de tese:24 os povos não eram
obrigados a permanecer na União, mas se o fizessem aceitariam a centralização em
detrimento de uma federação e toda autonomia relativa que estados federados gozam. Essa
formulação baseou a organização hierárquica da IC, que centralizou nos russos o poder
decisivo do aparato internacionalista sobre as seções partidárias dos outros países.
Para Stalin, embora sua tese do “socialismo num país só” ainda não estivesse tão clara
em 1920 como estaria em anos mais tarde, o trabalho da IC constrangia sobremaneira aquele
do Comissariado dos Assuntos Internacionais. 25 Esta defesa do Narkomindel, isto é, o

22
Ibid., p. 206-7.
23
DEUTSCHER, 2006, p. 208.
24
A partir de 1928, Stalin defenderia uma tese variante do federalismo para a Rússia.
25
Essa tese está em Isaac Deutscher: “Nos anos imediatamente seguintes [ao colapso do comunismo alemão em
1923], o destino do Komintern permaneceria em aberto. Embora Stalin julgasse a organização mais ou menos
inútil como instrumento da revolução, não podia dissociá-la do partido dominante russo – os laços entre
bolchevismo e Komintern eram muito fortes para permitir tal dissociação. O Komintern, por outro lado, estava
inspirado pelo sentimento de missão. Representava apenas a minoria da classe operária européia, mas tratava-se
de minoria ampla e importante que incluía os elementos mais ativos, ardorosos e idealistas do proletariado
ocidental. Sua atividade não podia deixar de perturbar a diplomacia soviética. Eis um dos motivos que levaram a
tentar domesticar a indisciplinada organização. Naqueles anos, os dirigentes comunistas europeus, embora
aceitassem a orientação dos bem-sucedidos especialistas bolcheviques em revolução, ainda falavam com eles de
igual para igual e davam como óbvio o próprio direito de opinar sobre as questões russas. A maioria deles,
inicialmente, tomou partido de Trotski contra Stalin, dos bolcheviques de orientação européia contra a
25

Comissariado de Assuntos Internacionais, viria a ter ligação com o papel do PCUS como
articulador da revolução mundial; esta, por sua vez, submetida à proteção do novo estado
soviético. A chamada “russificação” da Comintern, cujo ápice foi a centralização da IC pelo
PCUS, é um indício da imbricação da política externa soviética com o alastramento da
revolução pelo globo onde a agenda desta se encontra submetida à daquela.
Até meados da década de 1920, em que pese o paulatino aparelhamento da Comintern
em relação aos organismos russos da administração estatal, a IC conseguiria pautar questões
próprias, mas, a partir do VI Congresso, em 1928, quando se concretizou o pleno domínio
staliniano, já havia uma preponderância da política externa soviética sobre as formulações da
IC. As teses que incentivariam a secessão política em países com minorias “raciais” oprimidas
seriam aplicadas, como no Peru, Cuba e Estados Unidos. Assim, apesar do pretenso
radicalismo do chamado “terceiro período”, iniciado no VI Congresso, da “classe contra
classe”, a aplicação da tese aprofundou a noção da autodeterminação como sinônimo virtual
de nacionalismo distanciando-se do internacionalismo propugnado na década de 1910 na
medida em que recrudesceram os espaços locais de identificação e de pontes de solidariedade.
Quando as diretivas que ordenavam secessão política baseada em aspectos raciais
chegaram às seções partidárias da IC, instalaram-se nelas crises intestinas e, na maior parte
das vezes, as diretrizes separatistas não foram seriamente consideradas pelos comunistas.26
Não foram raros os confrontos entre uma militância comunista intelectualizada e autóctone
contra um setor centralizado às determinações de Moscou. Parte desses dissensos tinham
como epicentro a interpretação da questão racial como fragmento explicativo das realidades
nacionais. O peso dado à questão faria variar as elaborações sobre o imperialismo e,
consequentemente, as ações anti-imperialistas. Como já foi dito, um choque se estabeleceu
pós-1928 entre os comunistas alinhados a Moscou e aqueles guiados majoritariamente pela
realidade nacional. Trata-se precisamente do problema fulcral entre os comunistas
estadunidenses quando confrontados com a tese do Cinturão Negro (Black belt thesis) e,
surpreendentemente embora em menor grau, é também o problema de comunistas brasileiros
e no restante da América Latina, que terminaram por recusar, uns com mais vigor, outros com

estabilizada hierarquia russa de secretários. Desse modo, tanto por motivos domésticos quanto diplomáticos,
Stalin não podia deixar de estender ao Komintern, ainda acostumado à interação de variadas correntes, tradições
e pontos de vista, os métodos com os quais reformulava o partido russo como partido ‘monolítico’”
(DEUTSCHER, op cit., p. 419-420).
26
Cf. WEISS, Holger. The Road to Hamburg and Beyond: African American Agency and the Making of a
Radical African Atlantic, 1922-1930. Part One. Turku: Abo Akademi, 2009. p. 10. Disponível em:
<http://www.abo.fi/institution/en/media/7957/cowopa16weiss.pdf>. Acesso em: 2 set. 2012; JOHNS, Sheridan.
The Comintern, South Africa and the Black Diaspora. The Review of Politics, Notre Dame, v. 37, n. 2, abr.
1975; KELLEY, 1990; NAISON, 2005; MULLEN; SMETHURST, 2003; SOLOMON, 1998.
26

menos, as diretrizes vindas de Moscou. É possível atribuir essa resistência também ao modus
operandi da comunicação entre os comunistas de todo o mundo e a III Internacional.

***

Em reunião do Comitê Executivo da Internacional, decidiu-se pela criação de bureaux


estrangeiros em 1919. A tarefa dos bureaux era de “funcionar como um meio de entrar em
contato com o mundo externo sob as difíceis circunstâncias das intervenções militares e da
ausência de Partidos Comunistas fora da União Soviética”.27 O organograma dos bureaux na
estrutura da Internacional fora desenhado por Zinoviev no outono de 1919 e apresentava um
complexo emaranhado o qual elegia como centro os países da Europa Ocidental. Dada a
volatilidade dos bureaux instalados pela IC durante seus primeiros anos de existência, é difícil
traçar as incumbências e áreas de atuação. A IC adotou a descentralização como política
organizativa em seus primeiros anos. Essa forma de operar tornou as atividades um tanto
caóticas. Alguns elementos contribuíram para essa anomalia nas atividades cominternianas: 1)
as localizações dos bureaux não necessariamente coincidiam com suas áreas de atuação; 2) as
datas de fundação variavam porque nem sempre ocorreu um efetivo deslocamento de
comunistas para realizar os trabalhos requeridos pelo Comitê Executivo da Internacional
(CEIC) quando da fundação dos bureaux, como os bureaux holandês e de Viena; e 3) em
alguns casos, os bureaux ultrapassaram suas atribuições na avaliação da IC e terminaram
tendo poderes limitados pelo CEIC. Em outros casos houve mudança de nomes, de
localização e de abrangência geográfica de suas ações. Em tantos outros, a documentação
simplesmente não confirma nem nega o desaparecimento de alguns bureaux, o que pode
indicar a simples inoperância da organização. Por último, a paulatina melhoria das condições
internas da URSS ocorreu paralelamente às liquidações e limitações de poderes dos bureaux.
É possível concluir que a transitoriedade desses suborganismos se deveu, portanto, à
expiração de suas funções enquanto postos avançados de comunicação e logística, algo que se
tornaria obsoleto com o fim da Guerra Civil e a estabilização do regime.
Para traçar a chegada da Comintern às Américas – principalmente, na América
Latina –, uma vez que o percurso até os Estados Unidos teve um caminho próprio, é
necessário uma apreciação sobre o bureaux holandês (daqui em diante “Amsterdã”).

27
YAMANOUCHI, Akito. The Early Comintern in Amsterdam, New York and Mexico City. Journal of
History, Fukuoka, v. 147, p. 102, 2010. Disponível em: <https://qir.kyushu-
u.ac.jp/dspace/bitstream/2324/16911/1/pa099.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2012. Atualização em jan. 2015:
<http://catalog.lib.kyushu-u.ac.jp/handle/2324/16911/pa099.pdf>.
27

A Internacional, em setembro de 1919, numa reunião do politburo, definiu, dentre


outras, as seguintes atribuições ao Bureau de Amsterdã: “6) a autorizar [a Seção] a estabelecer
conexões com todos os países; 7) a dar poder a Seção na Holanda para em casos especiais,
sem o devido tempo, aparecer de maneira independente com o nome da Terceira
Internacional”.28
Na data de fundação da Internacional Comunista, 2 de março de 1919, duas
deliberações centrais para o futuro da Comintern no Novo Mundo tinham sido definidas:
Rutgers, o delegado holandês do primeiro congresso, foi instruído a organizar o
bureau da Europa Ocidental na Holanda, em razão do isolamento de Moscou.
O bureau foi estabelecido no final de 1919 em Amsterdã. O secretariado da Europa
ocidental, também organizado no outono de 1919, estava situado em Berlin e incluiu
Paul Levi entre seus membros. Foi iniciado por Thomas, um bávaro, e Bronsky, um
polonês que serviu na missão comercial soviética em Berlim.29

Ainda que cético do real papel cumprido pelo Bureau de Amsterdã, Pierre Broué
reconhece o fato de que se tratava de um posto avançado e que “visava ao Novo Mundo, à
Grã-Bretanha, à França e de maneira geral ao Extremo Ocidente”.30 A ligação com Louis
Fraina, importante líder do movimento socialista americano, por parte do encarregado Sebald
Justinus Rütgers, é identificada pelo próprio Broué. Em dezembro de 1919, um relatório da
inteligência britânica também aponta para essa ligação entre holandeses e a propaganda
comunista internacional:
As autoridades holandesas estão cientes que agentes bolcheviques estão entrando na
Holanda com propósitos de propaganda externa. Eles chegam via Winschoten e
Nieuweschans e então procedem a Roterdã, onde eles embarcam em navios que
saem do porto como membros das tripulações ou como intrusos. É prevista para
logo a chegada de emissários bolcheviques americanos carregando altas somas. Eles
podem viajar via Inglaterra.
[...] É confiável o relato de que agentes alemães estão fazendo esforços ainda
maiores para espalhar a propaganda bolchevique no Reino Unido e também na Índia
e no Japão. Uma organização para esse propósito foi estabelecida na Holanda e os
capitães e tripulações de embarcações holandesas são subornados para transportar
agentes bolcheviques a Suez, onde eles devem desembarcar.
[...] É também relatado que Sneevliet, que foi recentemente expulso das Índias
Holandesas Orientais e que está no presente momento trabalhando no “Tribune”, um

28
“6) To commission [the Section] to establish connections with all the countries. 7) To empower the Section in
Holland in exceptional cases, without giving time, to come out independently by the name of the Third
International.” YAMANOUCHI, 2010, p. 106.
29
“Rutgers, the Dutch delegate to the first congress, was instructed to set up a west European bureau of the
Comintern in Holland, because of Moscow's isolation. The bureau was established at the end of 1919 in
Amsterdam. The west European secretariat, also set up in the autumn of 1919, had its seat in Berlin and included
Paul Levi among its members. It had been started by Thomas, a Bavarian, and Bronsky, a Pole who had served
with the Soviet trade mission in Berlin.” DEGRAS, Jane (Ed.). The Communist International, 1919-1943,
Documents. Londres: Frank Cass and Company; Oxford University Press, 1955. v. 1. p. 6-7. Tradução livre.
30
BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista: a ascensão e a queda (1919-1943). São Paulo:
Sundermann, 2007. v. 1. p. 115.
28

jornal comunista editado por Wynkoop, irá brevemente aos Estados Unidos da
América e ao Japão.31

Desde o início das atividades da Internacional Comunista, o plano era fazer de


Amsterdã a ponte entre a Rússia e as Américas. Com a consolidação do bureaux, referendada
pela Comintern, estaria estabelecida a conexão entre a isolada Rússia bolchevique e o restante
do mundo. Serviços de inteligência ocidentais não conseguiam manter-se no encalço dos
comunistas e, no caso dos britânicos, embora tivessem uma noção relativamente apurada dos
eventos em Moscou, terminavam cometendo equívocos que arruinavam o entendimento da
situação. O Bureau de Amsterdã ou Bureau Ocidental é um caso desse tipo de desencontro.
Em setembro de 1920, o Directorate of Intelligence era categórico ao confirmar “que o sub-
Bureau da Terceira Internacional em Amsterdã não foi fechado” 32 quando, na verdade, já
havia sido liquidado desde abril daquele ano e passava por uma reestruturação operacional.33
Durante o curto período de existência dos bureaux, foi decisiva a participação dos
comunistas holandeses e, do ponto de vista logístico, Amsterdã viria a ser, entre 1919 e 1921,
um dos principais hubs de dispersão dos comunistas e dos recursos para patrocinar suas
atividades pelo mundo. Um dos destinos prováveis de quem saía de Amsterdã, vindo de
Moscou, era a América.

31
CAB/94/95. A Monthly Review of Revolutionary Movements in Foreign Countries, Directorate of
Intelligence (Home Office), p. 17-18, dez. 1919. “The Dutch authorities are aware that Bolshevik agents are
entering Holland for foreign propaganda purposes. They arrive by way of Winschoten and Nieuweschans and
then proceed to Rotterdam, where they board outward-bound ships either as members of the crews or as
stowaways. American Bolshevik emissaries with large funds at their disposal are said to be due to arrive in
Holland shortly. They may travel via England.
[…] It is reliably reported that German agents are making further efforts to spread Bolshevik propaganda in the
United Kingdom and also in India and Japan. An organisation for this purpose has been established in Holland
and the captains and crews of Dutch vessels are bribed to convey the Bolshevik agents to Suez, where they are to
disembark.
It is also reported that Sneevliet, who was recently expelled from the Dutch East Indies and who is at present
working on the ‘Tribune’, a Communist newspaper edited by Wynkoop, is shortly going to the United States of
America and Japan.” Não foi possível cotejar os pseudônimos.
32
Órgão ligado ao “Home Office”, criado em 1919 para efetuar atividades “contrassubversivas”. ANDREW,
Christopher. The Inter-War Years. [s.d.]. Disponível em: <https://www.mi5.gov.uk/home/mi5-history/mi5-
between-the-wars/the-inter-war-years.html>. Acesso em: 14 out. 2012. “It is confirmed that the Amsterdam sub-
Bureau of the Third Internatioual has not been closed down.” CAB/24/112. A Monthly Review of
Revolutionary Movements in Foreign Countries, Directorate of Intelligence (Home Office), p. 12, set. 1920.
33
YAMANOUCHI, 2010, p. 107.
29

2.2 O México, estratégia e anti-imperialismo: a Comintern na América Latina

Na hierarquia de importâncias da Internacional, a América Latina situava-se na parte


inferior. Geopoliticamente, a Europa, a Ásia e a América do Norte orbitavam mais próximo
do núcleo estratégico dos bolcheviques. Contraditoriamente, a influência mais duradoura da
Revolução de Outubro talvez se tenha dado justamente na América Latina porque a natureza
de sua inserção, conquanto episódica e fragmentária, situou-se sobretudo no âmbito da teoria.
A história dessa relação, apesar de ter começado antes de 1919, teria nesse ano um divisor de
águas, já que começaria a partir de então a erigir pontes de contato entre o país soviético e os
países americanos. As páginas seguintes apontam alguns elementos da inserção prática da
Terceira Internacional na América Latina nos anos de 1920.
A perspectiva de alastramento da Revolução de Outubro face ao isolamento
enfrentado pela Rússia pós-1917 impunha um paradoxo aos formuladores da política externa
bolchevique. Se por um lado havia um “cordão sanitário” que sufocava a produção econômica
russa, por outro o proletariado do mundo do capitalismo avançado, na avaliação dos
comunistas, preparava-se para sublevar-se, aos moldes da Rússia bolchevique. Mais uma vez,
na avaliação de parte majoritária dos comunistas, esse dado consubstanciaria os elementos
necessários para a vitória final dos comunistas a despeito do isolamento.34
A chegada da Revolução bolchevique na América Latina coube ao Narkomindel e à
Comintern. Mikhail Gruzenberg, conhecido pela alcunha de “Borodin”, ao que tudo indica,
foi o primeiro contato soviético na América Latina. Seu percurso é tortuoso, e os aparatos de
inteligência dos Estados Unidos e Inglaterra encontraram dificuldades para seguir seus traços.
Historiadores também têm tido problemas para definir o real valor de Borodin. Manuel
Caballero, por exemplo, assenta seu argumento sob o depoimento de Boris Souvarine. Este,
que foi um dos mais proeminentes dissidentes trotskistas da década de 1920, afirmou, mais
tarde, que Borodin era apenas um militante ordinário, não sendo nem um líder bolchevique
nem muito menos um amigo de Lênin. Havia sido indicado, ainda segundo Souvarine, por
Angela Babalanova e Leon Karakhan pelo simples “fato de já ter passado alguns anos nos
Estados Unidos e saber falar inglês”. Daniela Spenser, por seu turno, sugere que Borodin fora

34
“Quando ouvimos como se difundiu rapidamente a ideia dos Sovietes na Alemanha e mesmo na Inglaterra,
para nós isto é uma importantíssima prova de que a revolução proletária vencerá. Só por breve tempo será
possível deter a sua marcha.” LENINE, Vladimir. I Congresso da Internacional Comunista: Teses e Relatório
sobre a Democracia Burguesa e a Ditadura do Proletariado. In: ______. Obras Escolhidas. 2. ed. São Paulo:
Alfa-Omega, 2004. v. 3. p. 87.
30

enviado à América Latina por Lênin. Ela reconstrói a biografia comumente aceita de Mikhail
Markovic Gruzenberg, o Borodin: nascera em 1884, se tornaria um revolucionário desde os
16 anos e iniciara sua participação na Revolução de 1905 apenas para ser preso e exilado.35
Em 1906, já nos Estados Unidos, ele estudaria direito na Universidade de Valparaiso, no
estado de Indiana, e tomaria parte no Socialist Party of America. De acordo com Spenser,
apenas em julho de 1918 ele retornaria a Moscou:
E foi recrutado para trabalhar no Comissariado para Assuntos Externos e ao mesmo
tempo na Comintern. Nessa empreitada dupla, Lênin enviou Borodin ao Novo
Mundo para apoiar economicamente a missão comercial Soviética estabelecida em
Nova York em 1918 e, usando o México como uma base de operações, organizar e
financiar os partidos comunistas na América Latina.36

Victor Jeifets corrobora com a hipótese de Spenser acrescentando informações.


Borodin teria sido não só um amigo próximo de Lênin como também teria sido um de seus
confidentes. Eles se conheciam desde o tempo de exílio na Suíça, em algum momento entre
1900 e 1905. De acordo com Jeifets, Borodin recebera missões em 1918, tais como obter o
reconhecimento de facto das missões diplomáticas soviéticas por parte dos países
escandinavos e participar da comissão organizadora da III Internacional na Noruega.37
Há problemas concernentes à história das atividades de Mikhail Borodin. O primeiro é
a afirmação de Spenser que sugere ter Borodin participado do Narkomindel e do Comintern
ao mesmo tempo. A rigor, Borodin não poderia ter recebido ordens para agir em nome da
Comintern em 1918 porque esta não existia ainda. Nesse ponto, tanto Spenser quanto Jeifets
parecem se apressar aos fatos. A confusão dos dois pesquisadores, no entanto, é em si mesmo
um indicador que, talvez, a cronologia de Terry J. Uldricks para o imbricamento da política
externa soviética com uma versão de internacionalismo, para esse período, esteja correta.
Segundo Uldricks, do início do processo revolucionário até o início de 1921 a diplomacia era
uma escrava da revolução mundial, ou seja, o Narkomindel estaria submetido ao ideário
fundador da Comintern. 38 Em que pese o vínculo, havia uma incapacidade organizativa

35
CABALLERO, Manuel. Latin America and the Comintern 1919–1943. Cambridge: Cambridge University
Press, 1986; SPENSER, Daniela. The Impossible Triangle: Mexico, Soviet Russia and the United States in the
1920s. Duke; Londres: Duke University Press, 1999; SPENSER, Daniela. Stumbling its way through Mexico:
the early years of the Communist International. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2011; FREYMOND,
1965.
36
SPENSER, 1999, p. 39-40.
37
Cf. JEIFETS, Victor; JEIFETS, Lazar. Michael Borodin: The First Comintern-emissary to Latin America (Part
1). The International Newsletter of Historical Studies on Komintern, Communism, and Stalinism, v. 2, n.
5-6, p. 145-149, 1994-1995; JEIFETS, Victor; JEIFETS, Lazar. Michael Borodin: The First Comintern-emissary
to Latin America (Part 2). The International Newsletter of Historical Studies on Komintern, Communism,
and Stalinism, v. 3, n. 7-8, p. 84-88, 1996.
38
ULDRICKS, Teddy J. Diplomacy and Ideology: The origins of Soviet Foreign Relations, 1917-1930.
Londres; Bervely Hills: Sage Publications, 1979. p. 167.
31

limitando os poderes da Internacional nesses primeiros anos. Para além deste problema, a
biografia de Borodin indica uma quantidade de feitos que nem historiadores nem serviços de
inteligência conseguiram traçar, seja porque ele, de fato, não deixou rastros seja porque talvez
ele não tenha sequer saído dos Estados Unidos antes de fins de 1918.39
Mikhail Borodin, amigo ou não de Lênin, teve a tarefa de apoiar tanto a missão
Martens, em Nova York,40 como a efetivação de um braço bolchevique no México. Sua
chegada a este país, em meados de 1919, é um dos elementos mais controversos na
historiografia do Partido Comunista Mexicano (PCM).41 Primeiro, porque se envolveu na
história de perda de joias dos Romanov.42 Segundo, porque no México seria acompanhado
pelo militante anticolonial Manabrenda Nath Roy, com quem, junto com americano José
Allen, fundaria o Partido Comunista do México. Terceiro, porque José Allen era, na verdade,
informante da inteligência militar estadunidense. 43 Por fim, porque Borodin ganharia
rapidamente capacidade de inserção em setores governamentais assim como no núcleo da
classe trabalhadora urbana mexicana.
As missões de Borodin dividiam-se entre a IC e o Narkomindel. Ao mesmo tempo que
recebera ordens para organizar sindicatos do mundo do trabalho urbano no país, tinha como
missão garantir o reconhecimento da URSS por parte do México. Este país aparecia como
estratégico entre os comunistas. Em que pesem a organização dos trabalhadores argentinos
ligados à fundação do Partido Internacional Socialista que já havia pedido filiação à
Comintern em abril 1919 e a influência que esse partido passaria a ter entre trabalhadores
chilenos e uruguaios, segundo Jeifets e Jeifets, os soviéticos avaliavam que:
O México pareceu ser o único país latino-americano que não cortou relações
diplomáticas com Moscou depois que os bolcheviques chegaram ao poder. (O
México apenas retardou por um tempo.) Mas a principal razão, talvez, era que o
México sofria com eventos similares com aqueles que a Rússia sofria: a revolução, o
conflito com “o vizinho imperialista” (os EUA), e certo isolamento do mundo.
Moscou considerou o México como “o nó latino-americano das contradições” e
como o centro natural do movimento revolucionário continental. O movimento dos
trabalhadores mexicanos estava conectado de maneira próxima ao americano e isto

39
A história dos primeiros emissários soviéticos ainda é objeto de informações desencontradas. As especulações
são comuns haja vista as dificuldades de se realizarem pesquisas em Moscou. Nos últimos 20 anos tem havido
um esforço no sentido de produzir relatos mais confiáveis. Cf. JEIFETS; JEIFETS, 1994-1995, p. 145-149.
40
No próximo capítulo.
41
ROY, Manabrenda Nath. M. N. Roy’s Memoirs. Bombay: Allied Publishers, 1964. p. 177.
42
A história remete à perda de diamantes por parte de Gruzenberg, o Borodin. Enquanto ele tentava
contrabandear as pedras para financiar o movimento comunista nos Estados Unidos e América Latina, terminou
pedindo ajuda a um viajante a quem confiou uma pasta de fundo falso contendo as pedras. As joias só
retornariam à Rússia em 1948 após terem ficado sob posse irlandesa, já que à época os diamantes serviram de
garantia para um empréstimo concedido pelo primeiro-ministro daquele país. Cf. DRAPER, 1957, p. 235-243;
JEIFETS; JEIFETS, 1994-1995, p. 147.
43
CARR, Barry. Marxism and Anarchism in the Formation of the Mexican Communist Party. The Hispanic
American Historical Review, Durham, v. 63, n. 2, p. 294, mai. 1983.
32

foi reforçado pela presença de um grande grupo de socialistas, anarquistas e


membros da IWW [Industrial Workers of the World], todos eles americanos no
México; muitos latino-americanos viviam ou trabalhavam nos Estados Unidos.44

Por outro lado, há quem aponte motivos mais pragmáticos para ida de Borodin ao
México. Barry Carr sugere que suas primeiras ações no México seguiram mais as diretrizes
diplomáticas que cominternianas. Baseado nos relatos do indiano Manabrenda Nath Roy, Carr
sugere que trocas comerciais estavam na agenda tanto quanto uma ajuda para recuperar as tais
joias, mas:
Borodin estava também interessado em assegurar apoio mexicano e possivelmente
até mesmo um reconhecimento diplomático para o novo governo Soviético.
Carranza estava deveras impressionado com a declaração russa acerca do apoio de
seu governo à luta dos povos latino-americanos contra o colonialismo e
imperialismo e, se deveríamos acreditar no relato de Roy, autorizou Borodin a usar
os canais diplomáticos mexicanos para estabelecer comunicação com a Comintern
na Europa.45

O cenário descrito por Carr está situado numa obra autobiográfica do indiano
Manabrenda Nath Roy. Tal qual tantos outros militantes comunistas, a biografia de Roy é
recheada de lacunas. Ele era um ajudante dos alemães durante a Primeira Guerra Mundial que
trabalhava para desestabilizar o império britânico na Índia e se descreve como o responsável
pela aquisição de dinheiro e armas para a luta pela independência indiana. Isso foi feito via
Comitê Revolucionário Indiano em Berlim nos idos de 1914. Saíra da Índia e circularia a Ásia
em busca de armas para ajudar o movimento de libertação nacional em seu país de origem.
Após o fracasso da independência e uma longa viagem pelo Pacífico, desembarcou em San
Francisco no verão de 1916 “com uma bíblia na mão”. Depois de dois meses na costa oeste,
Nath Roy iria a Nova York: “Eu tinha vindo à América na verdade como um emissário do
‘nacionalismo revolucionário’ em aliança com a Alemanha na luta contra o Imperialismo
britânico”.46 Seu plano inicial era ir à Alemanha, via Estados Unidos. Logo percebera que
seria difícil chegar ao destino, já que não recebia contato de alemães e não imaginava como
fazer a travessia do Atlântico sem apoio, seja de alemães seja de indianos do Comitê
Revolucionário. Permaneceu nos Estados Unidos, mais precisamente na costa leste. A
Primeira Guerra chegara aos Estados Unidos e Roy teria que fugir rapidamente para o

44
JEIFETS; JEIFETS, 1994-1995, p. 146. “Mexico appeared to be the only Latin American country which didn't
break diplomatic relation with Moscow after the Bolsheviks had come in power. (Mexico just held it up for a
time). But the principal reason, perhaps, was that Mexico endured the events similar to Russia's ones: the
revolution, the conflict with ‘the imperialist neighbour’ (the USA), and certain isolation in the world. Moscow
considered Mexico as ‘the Latin American knot of contradictions’ and as the natural centre of the continental
revolutionary movement. Mexican workers’ movement was closely connected to American one, and that was
reinforced by the presence in Mexico of the large group of American socialists, anarchists and IWW members; a
lot of Latin Americans lived or worked in the USA.”
45
CARR, 1983, p. 302.
46
ROY, 1964, p. 22.
33

México, posto que procurado pela polícia. O México já era um destino vislumbrado como
plano de fuga em razão de contato com socialistas nova-iorquinos. Em seu próprio relato,
após chegar ao México, conseguiu uma audiência com o Ministro da Guerra e ouviu deste
homem de Estado que sua liberdade naquele país estava garantida, não obstante a intimação
que havia recebido pelo Ministro das Relações Exteriores.47 Começava então a relação do
indiano com setores dirigentes do Estado mexicano, e a partir disso ele colocaria Borodin em
contato com altos funcionários do governo mexicano.48
A ida de Borodin ao México se desenhou por meio do Bureau de Amsterdã e foi
orientada com o fito de patrocinar o movimento comunista nos Estados Unidos.49 Foi uma das
poucas ações de sucesso do breve bureau. De acordo com Broué:
[Os membros do Bureau de Amsterdã] Conseguiram fazer partir, de seu país para o
continente americano o russo-americano Gruzenberg, dito Borodin, com cerca de
500 mil dólares para o movimento comunista americano.50

A sequência de eventos que envolvem o primeiro contato da Comintern com a


América Latina e os descaminhos que se seguiram têm ligação com a transformação nas
condições internas da União Soviética. No decorrer da segunda metade do ano de 1920, os
bureaux seriam rapidamente dissolvidos até agosto, quando o politburo decidiu abolir todos
os bureaux no dia 6, permitindo apenas a atuação individual de agentes, supostamente, para
fins eminentemente técnicos. Dias depois, diante das interpelações de H. Marin e Fraina,
Zinoviev sugeriu uma moção que, ao mesmo tempo em que abolia todos os bureaux na
Europa Ocidental e todos os similares, criaria “pequenos bureaux” que, de fato, seriam apenas
pessoas individualmente responsabilizadas por missões pontuais, ora representando
oficiosamente a diplomacia soviética ora operando como articulador da revolução mundial.
No que tange à comunicação com Moscou, esses “pequenos bureaux” deveriam organizar os
serviços de correio, divididos em três categorias: “1) aquele que entrega literatura, etc.; 2)
aquele que envia e recebe variados tipos de informação também; 3) aquele que executa tarefas
políticas”.51

47
ROY, 1964, p. 177.
48
ROY, op. cit., p. 3-60.
49
Cf. Nota 22 e Jeifets e Jeifets (1994-1995, p. 146).
50
BROUÉ, 2007, p. 115.
51
YAMANOUCHI, 2010, p. 109-110. Os investigadores britânicos conseguiram rastrear indícios de mudanças
no sistema de comunicação dos comunistas, a partir de uma maior descentralização dos subcomandos, já que as
responsabilidades, dali em diante, seriam individualizadas. “Enquanto isso os arquivos do sub-Bureau da
Terceira Internacional em Amsterdã e outras cidades holandesas serão aumentados, e um novo sistema de
correio entre Viena e a Inglaterra, via Holanda, será inaugurado a fim de que Bronsky, o chefe da missão
Soviética não oficial na Áustria, possa estar mais perto com a Missão russa na Inglaterra.” “Meanwhile the
archives of the sub-Bureau of the Third International in Amsterdam and other Dutch towns are to be enlarged,
and a new courier system between Vienna and England, via Holland, is to be inaugurated, so that Bronsky, the
34

Essa reestruturação organizativa e de comunicação trouxe uma dificuldade em se


definir o que seriam as “tarefas políticas”, uma vez que presumia que existiam tarefas não
políticas. Houve igualmente uma confusão no que tange aos serviços de correio porque, em
alguma medida, as categorias em que se encontravam divididos se sobrepunham. Dadas essas
dificuldades operacionais, o Comitê Executivo da Internacional (CEIC) apostou na criação da
“Agência Pan-Americana”, sob presidência de Sen Katayama, para organizar um bureau cujo
objetivo era efetivar a união dos revolucionários em todas as Américas.52
Esse movimento de reorganização acompanhou o movimento geral da Comintern no
que diz respeito à sua relação com a política externa soviética, entre 1919 e 1921. Quando o
cerco do Exército Branco – ajudado pelas potências ocidentais – à União Soviética se
desmanchou durante o outono de 1919, as funções diplomáticas oficiosas aos poucos
perderam função. Ao mesmo tempo, a liquidação dos bureaux na Europa Ocidental parece
seguir um movimento de contenção da influência europeia no movimento comunista
internacional. A intensidade do interesse soviético no México também aos poucos se esvaiu.
O país antes visto como estrategicamente localizado seria um canal diplomático de
comunicação entre os dois novos mundos, o soviético e o americano.53 Até 1924 todas as
potências já haviam restaurado relações diplomáticas com os soviéticos, exceção feita aos
Estados Unidos da América, redirecionando os esforços da política externa soviética alhures.
O militante japonês Sen Katayama chegaria às Américas como agente da Comintern já
em finais de 1920. Teria algumas missões a cumprir. A primeira e, possivelmente, mais
importante era fazer a unificação do movimento comunista nos Estados Unidos. A segunda
era articular o movimento comunista no México, integrando a luta anti-imperialista entre
comunistas estadunidenses, canadenses e mexicanos. Havia também indicativo para que, a
partir do México, fosse organizar a Comintern no restante da América Latina e no Caribe.

head of the unofficial Soviet Mission in Austria, may be in closer touch, with the Russian Mission in England.”
CAB/24/112, 1920.
52
Tim Davenport sugere que a Agência Pan-Americana era, na verdade, a Agência Americana (AA) que teve
“originalmente o papel de unificar o fraturado movimento comunista americano e estabelecer partidos
comunistas no Canadá e México. Com a emergência da Internacional Sindical Vermelha (ISV), a AA foi
rapidamente transformada em ‘Agência Pan-Americana’ da ISV”. “[...] originally had the task of uniting the
fractured American communist movement and establishing Communist Parties in Canada and Mexico. With the
emergence of the Red International of Labor Unions, the AA was briefly transformed into the ‘Pan-American
Agency’ of RILU.” (DAVENPORT, Tim (Ed.). Roger Baldwin Raps Haywood’s “Desertion”. Corvalis: 1000
Flowers Publishing, 2007. Disponível em: <http://www.marxisthistory.org/history/usa/unions/iww/1921/0429-
leader-baldwin.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2012.) Cf. AKERS, David. Rebel or Revolutionary? Jack Kavanagh and
the Early Years of the Communist Movement in Vancouver, 1920-1925. Labour/Le Travail, Toronto, v. 30, p.
36, outono 1992; YAMANOUCHI, 2010, passim.
53
SPENSER, 1999, p. 58-62, p. 88-89. Há também indícios de que o México era utilizado como caminho para
correspondências diplomáticas entre a União Soviética e outros Estados, sobretudo os escandinavos.
35

No caso da tentativa de organização no México, a Internacional e seus braços atuaram,


como era frequente, em superposições, muitas vezes desencontradas e, não raro, desviando-se
das chamadas diretrizes de Moscou. Essa chegada de emissários ao México é um dos
inúmeros desencontros entre a Comintern e a América Latina.
A missão de Borodin se encerraria com a criação do Partido Comunista Mexicano
(PCM). Ele havia sido o principal responsável por estabelecer um link entre os mexicanos e os
comunistas holandeses do Bureau de Amsterdã, por onde passariam recursos, informações e
pessoas nos canais Moscou-Amsterdã-Novo Mundo. Borodin deixaria o México em
dezembro de 1919 em definitivo, não sem antes ter acertado questões práticas com os
holandeses em outubro do mesmo ano. Os arranjos terminaram comprometidos porque, em
reunião realizada em fevereiro de 1920, cuja pauta era a questão mexicana, foram descobertos
aparelhos de escuta instalados pela polícia holandesa. Isso levou à suspensão do encontro no
seu segundo dia.54
Quase um ano se passaria até que a Comintern voltasse a enviar quadros ao México.
Até então, os partidos da América Latina, mesmo o PCM, não guardariam nenhuma ligação
orgânica com a Comintern. Em que pese a existência de prova documental de um bureau
latino-americano já em 1919, não se deve depreender que ele tenha realizado atividades ou
mesmo que se tenha realmente constituído do ponto de vista organizativo. Nesse caso, não há
como não acompanhar as teses gerais dos historiadores sobre o movimento comunista desses
anos: houve um redirecionamento do interesse bolchevique para o Oriente.55
A partir do II Congresso da Internacional Comunista, em julho de 1920, em
Petrogrado, continuado dois meses depois em Baku, a tendência rumo ao Oriente se
fortaleceria no círculo decisório dos bolcheviques. Desse modo, os protagonistas dos
primeiros contatos entre a Comintern e a América Latina seriam enviados para a China e Ásia
Central com o propósito de preparar a revolução, como se atesta pelos itinerários de viagem
de Borodin e Roy.56 Para o combate ao imperialismo, alguns princípios, orientações e práticas

54
DEGRAS, 1959, p. 94.
55
Cf. MAZZEO, Antônio Carlos. Sinfonia inacabada: a política dos comunistas no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 1999; BROUÉ, 2007; CLAUDÍN, Fernando. The Communist Movement: from Comintern to
Cominform (part two). Nova York; Londres: Monthly Review Press, 1975. Os autores são unânimes em
posicionar o Congresso de Baku, em setembro de 1920, como ponto transformador dos interesses
cominternianos na Ásia.
56
Roy fundou uma escola de formação para Comunistas da Ásia Central na atual Tashkent, Uzbequistão, no
decorrer de 1920. Sete anos depois tomaria parte na missão soviética na China, reencontrando Borodin. No
interregno entre 1920 e 1922, Borodin trabalharia no Partido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB). Em agosto de
1922, Borodin seria preso em Glasgow. Interrogado e provavelmente em posse de documentos da Comintern, a
inteligência britânica dissecaria o movimento comunista daquele país. CAB/24/138. Report on Revolutionary
Organisations in the United Kingdom. The National Archives, 24 ago. 1922. Depois de quase um ano preso,
36

aplicadas na Ásia serviriam à orientação das atividades comunistas no continente latino-


americano.57
No final de 1920, entretanto, o México tornar-se-ia novamente alvo das atenções
bolcheviques. Claro já está que o interesse, leniniano sobretudo, se dava em função da
“localização estratégica” do país no continente. Embora houvesse interesse na situação
camponesa e na tensão indígena, o sentido tátil de fazer do México um porto para atividades
comunistas associava-se à nova estratégia global de minar os imperialismos a partir de suas
periferias. Em relatório da inteligência britânica sobre as discussões do II Congresso, é
possível detectar essa reviravolta:
O debate sobre as questões colonial e nacional, que parece ter causado interesse
considerável, foi marcado por uma longa fala de Lênin. Ele defendeu que o domínio
capitalista em todas as colônias seria superado apenas se o todo-poderoso
proletariado se engajasse na sua propaganda entre os nativos oprimidos; mas ele foi
incapaz de dizer exatamente quais medidas os comunistas se proporiam a adotar
para induzir o proletariado a tomar ação necessária. Entretanto, ele assegurou a sua
audiência que tempo e experiência iriam lhes mostrar claramente o tipo de política
mais propensa ao sucesso, e que enquanto isso a ideia soviética precisaria ser
utilizada em todos os lugares e adaptada às condições locais. Existia campo
ilimitado para propaganda. Uma resolução foi desenvolvida para que o regime
capitalista na Europa e nos Estados Unidos da América fosse esmagado de uma só
vez se vários países perdessem suas possessões coloniais, em vista do fato que as
colônias proveem os governos metropolitanos com muita receita.58

Este segundo momento da chegada da Internacional ao México deu-se por meio da


Krasnyi internatsional profsoyuzov, a Internacional Sindical Vermelha ou a Profintern. Tal
qual outras “subsidiárias” da IC, como o Socorro Vermelho Internacional (SVI), a Juventude
Comunista e a Internacional Camponesa (Krestintern), a Profintern continha em si aspectos da
ambivalência organizacional da própria IC. Foram comuns práticas competitivas entre agentes

voltaria a Moscou em junho de 1923 e relataria a situação britânica. Foi para a China em setembro de 1923
começar os trabalhos que resultariam no fracasso do Kuomitang em 1927. LAZIC, Branko M.;
DRACHKOVITCH, Milorad M. Biographical dictionary of the Comintern. ed. rev. Stanford: Hoover
Institution Press, 1986. p. 39. Para um balanço das atividades cominternianas no CPGB na década de 1920, cf.
MCILROY, John; CAMPBELL, Alan. ‘Nina Ponomareva's hats’: the new revisionism, the Communist
International, and the Communist party of Great Britain, 1920-1930. Labour/Le Travail, Toronto, n. 49, p.
147-187, primavera 2002.
57
Entre 1921, saída da última missão cominterniana no México, e 1924, fundação do Secretariado Sul-
Americano, a única rotina de comunicação entre a América Latina e Moscou foi estabelecida pelos comunistas
argentinos.
58
CAB/24/116. The Second Congress of the Third International-July-August 1920: Special Report.
Directorate of Intelligence (Home Office), n. 19, p. 10, nov. 1920. “The debate on colonial and national
questions, which seems to have aroused considerable interest, was marked by a long speech by Lenin. He stated
that capitalist rule in all colonies would be overcome if only the all-powerful proletariat would carry on its
propaganda among the oppressed natives; but he was unable to state exactly what measures the communists
proposed to adopt in order to induce the proletariat to take the necessary action. However, he assured his
audience that time and experience would show them clearly the kind of policy most likely to gain their ends, and
that meanwhile the soviet idea must be utilized everywhere and adapted to local conditions. There was an
unlimited field for propaganda. A resolution was carried to the effect that the capitalist regime in Europe and in
the United States of America would be crushed at once if the various countries were to lose their colonial
possessions, in view of the fact that the colonies supplied the home governments with large revenues.”
37

da Comintern e da Profintern. As atividades desses organismos, conquanto orbitassem em


torno do mesmo centro de gravidade, tinham suas linhas mestras definidas por grupos
hegemônicos distintos, com mecanismos igualmente diferentes de controle.59
A Profintern foi, em 1921, uma resposta soviética à reorganização da chamada
Internacional Sindical de Amsterdã. Em sua fundação, a Sindical Vermelha já tinha como
propósito organizar os trabalhadores em países “coloniais” e “semicoloniais” além da Europa
e dos Estados Unidos. Sua criação já estava em pauta desde o II Congresso da IC, em meados
de 1920, quando houve conversações sobre a criação de uma nova internacional:
O Congresso se absteve de qualquer pronunciamento sobre a criação de uma
Internacional Sindical – talvez porque não havia sido fácil obter uma maioria. Mas
enquanto o Congresso estava em sessão, um grupo representava as delegações russa,
italiana e búlgara, alguns membros da delegação britânica e somente um delegado
francês da extrema esquerda, pretendendo duvidosamente falar em nome de oito
milhões de trabalhadores organizados, decidiram criar um Conselho Sindical
Internacional (Mezhsovprof), cuja função principal seria a de organizar um
“conselho internacional de sindicatos vermelhos”. Lozovski se converteu em
presidente do novo conselho, com Tom Mann e Rosmer como vice-presidentes. A
dependência do Mezhsovprof em relação ao CEIC [Comitê Executivo da
Internacional Comunista] se manifestou quando se propôs que o CEIC fizesse um
chamado a “todos os sindicatos do mundo” denunciando “a Internacional amarela de
Amsterdã” e convidando-os a unirem-se à nova Internacional sindical.60

Seria sob essa conjuntura que em finais de 1920 e início de 1921 três comunistas
desembarcariam no México para criar uma organização comunista na América Latina, a partir
daquele país. Sen Katayama, Louis Fraina e Charles Phillips. Esses três homens, sob a
liderança do japonês septuagenário, defrontaram-se com um partido comunista que existia
apenas virtualmente sob o comando de José Allen, que, como já informado, era agente
infiltrado do Inteligência Militar dos Estados Unidos. Tornando públicos os 21 pontos
necessários para filiar-se à Internacional Comunista e angariando organizações sindicais
interessadas em fazer parte da nova Internacional Sindical, os três tiveram seus trabalhos
facilitados pela transferência de fundos da Comintern. De qualquer sorte, pouco puderam
fazer para estabelecer um legado organizativo permanente: o governo Obregón recrudesceu a

59
Cf. AGOSTI, Aldo. Il partito mondiale della rivoluzione: Saggi sul comunismo e l'Internazionale. Milão:
Unicopli, 2009; TOSSTORF, Reiner. Profintern: Die Rote Gewerkschaftsinternationale, 1921-1937. Paderborn:
Schoeningh Ferdinand, 2004.
60
“El Congreso se abstuvo de cualquier pronunciamiento sobre la creación de una Internacional sindical – quizá
porque no hubiese sido fácil el obtener una mayoria. Pero mientras el Congreso estaba en sesión, un grupo que
representaba a las delegaciones rusa, italiana y búlgara, algunos miembros de la delegación británica y un solo
delegado francés de la extrema izquierda, pretendiendo dudosamente hablar en nombre de ocho millones de
trabajadores organizados, decidieron crear un Consejo Sindical Internacional (Mezhsovprof) cuya principal
función sería la de organizar un ‘congresso internacional de sindicatos rojos’. Lozovski se convertió en
presidente del nuevo consejo, con Tom Mann y Rosmer como vicepresidentes. La dependencia del Mezhsovprof
con respecto al IKKI se puso de manifiesto cuando se propuso que el IKKI hiciese un llamamiento a ‘todos los
sindicatos del mundo’ denunciando ‘la Internacional amarilla de Amsterdam’ e invitándolos a unirse a la nueva
Internacional sindical.” CARR, 1985, p. 220.
38

repressão a partir de meados de 1921, deportou Phillips para Guatemala, e, como este era o
único dos três que sabia falar espanhol, a militância se tornou mais difícil. Ainda que antes
tenham criado mecanismos de propagação de informação como a editora Biblioteca
Internacional e efetivado contatos com unidades sindicais antes mesmo da fundação da
Profintern, o resultado da atuação de Katayama e Fraina não respondeu às expectativas da
Comintern. Ao fim de outubro de 1921, Katayama já havia embarcado de volta a Moscou, e
Fraina, além de sugerir a vinda de comunistas soviéticos experientes, teria também sido
incumbido de realizar uma prospecção na América do Sul para avaliar as possibilidades de
organização do movimento.61

2.3 De Moscou para uma outra América, a do Sul

No final do outono de 1922, duas direções orientavam as formulações dos comunistas:


1) a reafirmação da defesa da URSS; e 2) o enfrentamento do imperialismo nos países
coloniais e “semicoloniais”. A tese de combate ao imperialismo não redundava numa política
de incentivo à tomada de poder pelos sovietes dos variados países potencialmente em estágio
revolucionário, ela servia à estratégia de Frente Única e tinha como pressuposto o combate
aos impérios por meio do ataque direto às colônias e aos países subordinados aos
imperialismos europeus.62 Didaticamente, a América Latina se incluiria no segundo rol, de
países semicoloniais; a maior parte da África e porção significativa da Ásia no primeiro
grupo, de países coloniais. Portanto, garantir atividades comunistas na América Latina
significava, na avaliação dos comunistas, irromper contra o imperialismo estadunidense e
europeu.

61
SPENSER, 1999, p. 49.
62
A política de Frente Única estabelecida desde 1921 encontraria seu fracasso na Europa em novembro de 1923
quando os comunistas do KPD (Kommunistische Partei Deutschlands) foram derrotados e o partido proibido de
funcionar por seis meses. A Frente Única consistia numa aliança com a “pequena-burguesia” e suas organizações
que, no caso alemão, era o Partido Socialdemocrata Alemão (SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias. Frente Única,
Frente Popular e Frente Nacional: anotações históricas sobre um debate presente. In: COLÓQUIO
INTERNACIONAL MARX-ENGELS, 5., 2007. Anais eletrônicos... Campinas: Unicamp, 2007. Disponível
em: <http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt7/sessao3/Carlos_
Zacarias.pdf>. Acesso em: 14 out. 2012.) Com este último fracasso, alguns comunistas tiveram o argumento
necessário para, em finais de 1924, defender a retração revolucionária e instalar o “segundo período”, tempo em
que fora defendido o socialismo num só país. Cf. CARR, Edward Hallett. Socialism in One Country. Nova
York: MacMillan, 1958. (History of Soviet Russia, n. 5).
39

Nos planos dos secretariados que articulavam as iniciativas anti-imperialistas,


constava a necessidade de comunicação sistemática entre partidos da mesma região, e era
precisamente esse o motivo de se estabelecer subcentros articuladores nas periferias. Nem na
pesquisa documental nem nos escritos sobre a história dos comunistas nas Américas, foi
possível encontrar qualquer indício de comunicação sistemática entre comunistas mexicanos e
sul-americanos anterior à entrada dos partidos comunistas do Cone Sul na IC. Ou seja, ao
menos até meados de 1922 não é possível afirmar que havia qualquer rotina de comunicação
entre os PCs da América Latina nem entre estes e seu congênere estadunidense. Há, no
entanto, um certo exagero em avaliar esse isolamento dos PCs latino-americanos. Pierre
Broué chega a sugerir que:
Até 1928, os partidos comunistas na América Latina surgem e se desenvolvem
independentemente não só uns dos outros, mas sobretudo da órbita da Comintern
que, em atraso com sua informação sobre o mundo, ignora toda a realidade
econômica, social e política que os cerca e da qual eles se alimentam.63

O Partido Socialista Internacional, fundado após a ruptura com o PSA (Partido


Socialista Argentino) no início de 1917, daria origens, em dezembro de 1919, ao Partido
Comunista de la Argentina.64 Dois dos fundadores, José Fernando Penelón e Juan Greco,
iriam a Moscou apenas em novembro de 1922 para o IV Congresso da IC. O último chegaria
a Moscou alguns meses antes, em julho, para o II Congresso da Profintern. Sabe-se, por meio
das publicações oficiais da Comintern, que o III Congresso da IC, em julho de 1921, já havia
designado o PCA para organizar um bureau de propaganda, como segue:
EXTRATOS DE UM MANIFESTO DA CEIC SOBRE A CONCLUSÃO DO
TERCEIRO CONGRESSO DA COMINTERN
17 de julho de 1921

63
BROUÉ, 2007, p. 365.
64
Há, aqui, uma controvérsia cronológica uma vez que Daniel Campione afirma, em seu livro, que “los primeros
pasos del Partido Socialista Internacional, agrupación politica fundada en enero de 1918 como desgajamiento del
Partido Socialista de la Argentina, que se convirtió, en diciembre de 1920, en Partido Comunista, como Séccion
Argentina de la Internacional Comunista” (CAMPIONE, Daniel. El comunismo en Argentina: sus primeros
pasos. Buenos Aires: Ediciones del Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini – CCC, 2005. p. 3.). A
base para a citação no corpo do texto provém do seguinte trecho: “En el II Congreso del PSI reunido los días 19
y 20 de abril de 1919 es reelegido miembro del CE con el cargo de legado a los congresos internacionales. En
ese mismo año preside el I Congreso Extraordinario del partido, reunido los días 25 y 26 de diciembre, en el que
se adopta el nombre de Partido Comunista de la Argentina y se aceptan las 21 condiciones para adherer a la III
Internacional contenidas en la Circular Zinoviev” (verbete “Penelón, José Fernando”, em TARCUS, Horacio
(Ed.). Diccionario Biográfico de la Izquierda Argentina: de los anarquistas a la “nueva izquierda” (1870-
1976). Buenos Aires: Emecé, 2007. p. 499). Há, no entanto, um entendimento de continuidade entre o PSI e o
PCA em que pese a mudança de nome, já que não se alterou a composição partidária. (CAMPIONE, Daniel;
MAIER, Bárbara; CANTERA, Mercedes Fernanda López. Buenos Aires-Moscú-Buenos Aires: los comunistas
argentinas y la Tercera Internacional, primera parte (1921-1924). Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2007. p.
23.)
40

A primeira reunião do Comitê Executivo depois do terceiro congresso admitiu o


Partido Comunista da Argentina, a quem foi pedido que organizasse um bureau de
propaganda para a América Latina.65

As diretrizes da IC e os bolcheviques se valeram da presença de Ghioldi no III


Congresso para tornar a Argentina um porto seguro da imersão comunista na América Latina.
Sua presença solidificou o alinhamento do então recém-formado PCA às 21 condições para a
entrada na IC, consolidando o início do processo de bolchevização daquele que viria a ser o
principal partido da América Latina para os núcleos dirigentes da IC.66
Do mesmo modo que no caso do México, o interesse soviético na Argentina obedeceu
a motivos estratégicos.67 O país já havia chamado anteriormente a atenção de Lênin, já que
ele mencionou o país num de seus textos mais famosos, “Imperialismo, etapa superior do
Capitalismo”. Em 1916, data aceita como de elaboração do texto, Lênin caracterizara a
Argentina como um país semicolonial e dependente dos países de capitalismo avançado,
comparando-a à Turquia, China e à então Pérsia. O leitmotiv leniniano era, àquela época, a
intensidade com a qual o capital financeiro inglês invadira a Argentina.68 Ao sugerir uma
análise que serviria a tantos países tão bem como à Argentina, Lênin estava explicitando uma
generalização baseada na dependência econômica desses países em relação à Europa e
Estados Unidos. Tal formulação dominaria as interpretações comunistas de maneira
indiscriminada. Alguns anos depois, já a partir de sua fundação, a Comintern determinaria que
todos os países fora do julgo colonial formal, mas que apresentassem severa dependência
econômica, seriam classificados como “semicoloniais”.
Além da divisão entre países coloniais e semicoloniais, portanto, submetidos de
maneiras e intensidades distintas ao fenômeno imperialista, havia também uma interpretação
acerca dos conflitos de direção do próprio imperialismo. Assim Eugen Varga delineou a nova

65
DEGRAS, 1955b, p. 282. “EXTRACTS FROM A MANIFESTO OF THE ECCI ON THE CONCLUSION
OF THE THIRD COMINTERN CONGRESS. 17 July 1921. The first meeting of the Executive after the third
congress admitted the Communist Party of Argentina, which was asked to set up a propaganda bureau for Latin
America.” Os vínculos inicias dos comunistas no México e na Argentina se davam diretamente com Moscou. A
IC não prescindia da centralização do processo de formação das redes de comunicação entre a Rússia e América
Latina.
66
Cf. verbete “Ghioldi, Rodolfo José” em Tarcus (2007, p. 252).
67
A Argentina teria sido mais fácil de compreender em função de suas semelhanças com a Europa e, talvez por
isso, passou a ocupar, rapidamente, uma posição de liderança na América do Sul. Durante a vigência da III
Internacional, Rodolfo Ghioldi e Victorio Codovilla foram as lideranças mais estáveis e duradouras. Cf.
CABALLERO, 1986, p. 45. Caballero ainda levanta outros dois motivos que teriam atraído o interesse dos
estrategistas soviéticos para a Argentina. Não há acordo com as proposições do autor, posto que: 1) os conflitos
de classe e suas condições só se assemelhariam às europeias em Buenos Aires, os conflitos no campo tinham
características “latino-americanas”; e 2) havia imigrantes em outros países da América Latina que poderiam
exercer a tarefa de tradução (do alemão, russo, francês e inglês) para fomentar as atividades de propaganda.
68
LENINE, Vladimir. O Imperialismo, fase superior do capitalismo. In: ______. Obras Escolhidas. 3. ed. São
Paulo: Alfa-Omega, 1986. v. 1. p. 575-671.
41

estrutura sobre a qual se assentava o conflito capitalista mais relevante para aquele momento:
o anglo-americano em “Economic Basis of Imperialism in the U.S. of North America”,
publicado em 1921. Sua tese central era a existência de um conflito interimperialista entre
Estados Unidos e Inglaterra, tese posteriormente partilhada na segunda metade da década de
1920 por Astrojildo Pereira para uma interpretação do imperialismo na América Latina e
defendida desde 1924 por Otávio Brandão em “Agrarismo e Industrialismo”.69
Há poucos trabalhos produzidos no Brasil acerca dos vínculos latino-americanos do
movimento comunista internacional. Os escritos repetem-se, tanto nas fontes como nos
argumentos. A aparição do PCA serve habitualmente para justificar o enredo sobre o
Secretariado Sul-Americano e a influência da Comintern sobre o PCB. A direção do PCA tem
sido analisada sob a égide do alinhamento a Moscou.70

69
KAREPOVS, Dainis. A esquerda e o parlamento no Brasil: o Bloco Operário e Camponês (1924-1930).
2001. Tese (Doutorado em História Social)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2001. p. 611. Eugen Varga escreveu em 1921 “Economic Basis of Imperialism in the U.S.
of North America”. Varga concluía: “Nós presumimos que o ponto alto da crise já foi alcançado, sintomas de
melhora das condições econômicas estão para ser observados. Alguém pode dizer com certeza que, dada a
colossal riqueza do país, o capitalismo imperialista será capaz de lidar efetivamente com a crise. Mas, apesar de
toda essa riqueza, não obstante a eficácia da política que procura compensação na América do Sul e na China
pelas perdas dos mercados europeus – a restauração da economia pública americana é impossível se a quebra do
capitalismo europeu continuar no ritmo anterior. O futuro precisa levar inevitavelmente a uma colisão entre as
três potências – os Estados Unidos, Inglaterra e Japão – uma colisão que é provocada em razão dos esforços de
cada um desses países em adquirir posse dos, até agora saudáveis, elementos da economia pública mundial. Essa
segunda guerra mundial provocará então uma crise dos países capitalistas similar a esta que no presente começa
a ter efeitos na Europa continental”. Texto original: “We presume that the highest point of the crisis has been
attained already, symptoms of improvement of the economic conditions are to be observed. One may say with
assurance that, owing to the colossal wealth of the country, imperialist capitalism will be able to cope with the
crisis. But, notwithstanding all this wealth, in spite of the efficacy of the policy which is seeking in South
America and China compensation for the loss of the European markets—the restoration of American public
economy is impossible if the breakdown of European capitalism should continue at the former rate. The future
must lead inevitably to a collision between three world Powers—the United States, England and Japan—a
collision which is called forth by the efforts of each of these countries to acquire possession of the, as yet
healthy, elements of the world public economy. This second world war will call forth then a crisis of the
capitalist countries similar to the one which has at present taken hold of continental Europe.” (VARGA, Eugen.
Economic Basis of Imperialism in the U.S. of North America. Marxists Internet Archive. 2010. Disponível em:
<http://www.marxists.org/archive/varga/1921/x01/x01.htm>. Acesso em: 18 set. 2012). Trotski, em 1921,
participou da escrita junto com Varga do seguinte texto: “The International Situation: a Study of Capitalism in
Collapse” (In: Marxists Internet Archive. 2010. Disponível em:
<http://www.marxists.org/archive/varga/1921/x01/x02.htm>. Acesso em: 18 set. 2012). Em 1925, o mesmo
Trotski defenderia a tese do choque imperialista entre Inglaterra e Estados Unidos: PINHEIRO, Paulo Sergio.
Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935). São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.
154.
70
Autores argentinos afirmam que os comunistas argentinos não se alinharam à IC de maneira inquestionável.
“Uma análise mais pormenorizada revela que ao PC argentino não faltavam totalmente iniciativa e opiniões
próprias. Nesses primeiros anos se costumava discutir duramente com os próprios representantes da
Internacional no país, e inclusive com pedido à IC de seu deslocamento [...]. Não existia, porém, a atitude de
reverência invariável pelo que vinha do ‘centro’, que se materializou anos depois.” “Un análisis más
promenorizado revela que el PC argentino no carecía totalmente de iniciativas y opiniones propias. En estos años
primeros se solía discutir duramente con los propios representantes de la Internacional en el país, e incluso pedir
a la IC su desplazamiento [...]. No existía todavía la actitud de reverencia invariable hacia lo que venía del
‘centro’, que se materializaría años después.” (CAMPIONE; MAIER; CANTERA, 2007, p. 24). Seguem
42

O movimento de alinhamento às 21 condições, na Argentina, se deu distintamente


daquele ocorrido no México. Enquanto a criação e gestão do PCM esteve vinculada à
Comintern e aos comunistas estadunidenses, no PCA o partido era autóctone.71
A formação do PCA se deu a partir da fusão de diferentes agremiações socialistas. A
capilaridade social desses partidos era sensivelmente distinta daquela apresentada entre
partidos da mesma natureza no México.72 Destarte, as características dos respectivos PCs, na
Argentina e no México, carregam as marcas dessa peculiaridade de origem. Em que pese essa
diferença, os primeiros contatos de argentinos com a IC, no entanto, foram semelhantes
àqueles do PCM. Embora não pareçam ter desempenhado funções de emissário, ao menos três
sujeitos não argentinos realizaram a tarefa de estreitar laços com Moscou: Mikhail Komin-
Alexandrovsky, Mikhail Mashevich e Felix Weil. São poucas as referências sobre eles.
Paulo Sérgio Pinheiro cita um relatório acerca de uma viagem de prospecção feita por
um comunista de nome Abramson. O relatório feito pelo próprio comunista teria chegado às
mãos do “Bureau of Investigation” estadunidense e de um coronel da Marinha em Istambul
evidenciando a ocorrência de três processos paralelos entre os anos de 1919 e 1922: a ida de
Borodin e Katayama ao México, as investigações de Abramson pela América do Sul e as
tentativas de latino-americanos em contatar Moscou. Sobre o autor do relatório, Pinheiro não
se debruça utilizando-se do argumento de que no relatório “podem ser isolados alguns
elementos que servirão de balizas para os debates e a política da IC em relação à América
Latina”,73 independentemente de sua autenticidade. A viagem relatada por Abramson teria se
iniciado em finais de 1920, já que a 10 de janeiro de 1921 desembarcara em Lima após ter
percorrido o Chile. Do Peru teria ido a Buenos Aires e Montevidéu. De acordo com Pinheiro,
no relatório consta a avaliação sobre a Argentina ser o melhor lugar para o estabelecimento da

exemplos de trabalhos de gerações distintas que fazem uso de arsenal documental parecido: SEGATTO, José
Antonio. Breve História do PCB. São Paulo: Ciências Humanas, 1981; PANDOLFI, Dulce. Camaradas e
Companheiros: Memória e História do PCB. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995; SENA JÚNIOR, Carlos
Zacarias. Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil, 1936-
1948. São Paulo: Annablume, 2009. O último exemplo se aproxima dos outros pela eleição dos documentos
partidários como fonte primordial para a história dos comunistas e do PCB.
71
ROJAS, Gonzalo Adrián. Os socialistas na Argentina (1880-1980): um século atuação política. Tese
(Doutorado em Ciência Política)–Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. p. 130. Rojas sugere que desde
1912 os socialistas argentinos já se digladiavam em torno de uma formação partidária, o Partido Socialista, e ao
observar a composição do PSI e do PCA é possível depreender que na Argentina não havia dependência de
militantes estrangeiros.
72
Sobre a Argentina: Cf. CAMARERO, Hernán. A la conquista de la clase obrera: Los comunistas y el mundo
del trabajo, 1920-1936. Buenos Aires: Siglo XXI, 2007; LOBATO, Mirta. Rojos: Algunas reflexiones sobre las
relaciones entre los comunistas y el mundo del trabajo en la década de 1930. Prismas, Revista de história
intelectual, Bernal, n. 6, 2002. Sobre o México: Cf. CARR, Barry. La izquierda mexicana a través del siglo
XX. México DF: Ediciones Era, 1996; e VERDUGO, Arnoldo Martínez. Historia del Comunismo en México.
México: Grijalbo, 1985rijalbo, 1985ão Enlace)o
73
PINHEIRO, 1991, p. 31.
43

Comintern, pois lá a centelha insurrecional, conquanto sob formas desorganizadas, se


encontrava viva. Era necessário apenas elevar o nível de consciência de classe. Por fim,
Abramson recomendava o envio de líderes sul-americanos à Europa para a formação de
quadros.
Há aparições desse nome, Abramson, nas memórias de Nikita Khrushchev como
zinovievista no embate do XV Congresso do PCUS contra Stalin.74 Também surge como
intérprete de Borodin quando este, em 1927, esteve em missão na China.75 Khrushchev não se
lembraria do primeiro nome de Abramson, apenas se recordaria do fato de que era de
Leningrado e que, como quase todos os leningradenses, era um fiel apoiador de Zinoviev.
Emmanuel Moyseevich Abramson76 acompanhou Mikhail Borodin e Vasily Blyukher
como intérprete de ambos na China entre 1925 e 1927. A principal fonte dessa história é o
livro de memória de Vera Vladimirovna Vishnyokova, que, com pouco mais de 20 anos,
estudante universitária em Vladivostok, acompanhou parte da missão soviética na China.
Sobre Emmanuel Abramson, ela conta que ele dominava muito bem o chinês dado o fato de
haver nascido em Harbin, cidade do norte chinês próxima da fronteira com a Rússia. Em data
incerta, Abramson viria a ser o secretário científico do Instituto de Pesquisa Científica na
Universidade Sun Yat-Sen em Moscou, segundo Vishnyokova.77
A hipótese de que emissários soviéticos tenham realizado prospecções na América do
Sul é verossímil. Os problemas começam a aparecer quando do timing e dos motivos das
visitas. Em janeiro de 1922, como já foi dito, após o fracasso da segunda empreitada
cominterniana no México, Louis Fraina teria ficado responsável por “ir à América do Sul para
investigar as condições para organização de pessoas com o intuito de disseminar propaganda
na região”. 78 A essa altura, o argentino Rodolpho Ghioldi já havia estado em Moscou,
chegando em maio de 1921 e saindo em data incerta, e o próprio Abramson já tinha feito sua
viagem pela América Latina.
Mikhail Komin-Alexandrovsky, Mikhail Mashevich e Felix Weil foram entre 1920 e
1922 interlocutores da IC com a direção do PCA. As tensões advindas desse processo de

74
KHRUSHCHEV, Nikita; KHRUSHCHEV, Sergei (Ed.). Memoirs of Nikita Khrushchev: Commissar (1918-
1945). University Park: The Pennsylvania State University Press, 2005. v. 1. p. 20-23.
75
HOLTHOON, Frits van; LINDEN, Marcel van der. Internationalism in the Labour Movement, 1830-1940.
Leiden: E. J. Brill, 1988. v. 2. p. 125.
76
“F.495,op.65a,d.863” é o número de chamada do arquivo pessoal de Abramson e nele nada consta. Sabe-se a
partir da organização do RGASPI que seu arquivo pertence ao setor da “Administração” da IC.
77
VISHNYAKOVA-AKIMOVA, Vera Vladimirovna. Two Years in Revolutionary China, 1925-1927.
Cambridge: Harvard University Press (Harvard East Asian Monographs), 1971. p. 250.
78
FRAINA apud SPENSER, 1999, p. 49.
44

diálogo já foram esmiuçadas por Victor e Lazar Jeifets. 79 A dinâmica de resolução de


conflitos entre dirigentes da IC em Moscou, seus representantes na América Latina e os
comunistas latino-americanos em seus respectivos países foi bastante variada, e os métodos
empregados para solucionar os conflitos também variaram de acordo com cada um dos três
interlocutores. Alexandrovsky dirigia comunicados ao CEIC tanto detalhando as falhas na
execução de diretrizes da IC quanto acusando a direção do PCA de sabotar a organização de
uma seção da Sindical Vermelha em Buenos Aires. A razão para as estratégias da direção do
PCA, segundo as análises de Victor e Lazar Jeifets, é que os argentinos temiam conceder a
Alexandrovsky um canal de diálogo direto com a IC. Ou seja, o controle do aparelho político
não podia prescindir do poder de produzir decisões políticas e do monopólio do contato com
Moscou.
Dados o pioneirismo dos contatos com Moscou e uma avaliação positiva dos
emissários da IC – como o relatório Abramson já sugeria – do trabalho político realizado
entre operários, o PCA terminou guiando os rumos das discussões sobre a América Latina.
Isso implicava que temas e análises da realidade deveriam ter as posições do PCA como
parâmetro e que, por algum tempo, o restante dos PCs do Cone Sul viriam a reboque. Uma
dinâmica diferente de comunicação entre a IC e seus apêndices só se estabeleceria após a
criação do Secretariado Sul-Americano, em 1924, e sua implementação no ano seguinte.
Mesmo a consolidação de Partidos Comunistas no Cone Sul se realizou sob a tutela
dos argentinos. No caso brasileiro, a ida de Antonio Canellas ao IV Congresso da IC em 1922
foi intermediada pelo PCA. 80 Após o episódio que culminou no primeiro esforço de
bolchevização do PCB, o partido sofreria uma intervenção dos comunistas argentinos em
nome do Bureau Sul-Americano já em 1923.81 Em correspondência ao “Grupo Comunista do
Brasil”, argentinos demandavam informações sobre a realidade brasileira. 82 Mesmo
timidamente, e estando a América Latina fora do centro de preocupações de Moscou, a partir
de 1922 a IC, por meio da representação dos argentinos, procurava construir informações
acerca da América Latina e do Brasil.83 O repertório de dados que a IC construiu sobre a
região seria útil em 1928, quando ocorreu uma inflexão no interesse soviético na região.

79
JEIFETS, Victor. Die Komintern und Argentinien in den Jahren 1919-1922. Die Kommunistische Partei
Argentiniens gegen die “argentinischen Lenins”. The International Newsletter of Communist Studies,
Mannheim, v. 15, n. 22, p. 137-147, 2009. passim.
80
Centro de Memória (UNESP) – 495.029.005, bobina 3, identificação 107. Arquivo digital: ic-0107.pdf.
81
Centro de Memória (UNESP) – 495.029.009, bobina 3, identificação 111. Arquivo digital: ic-0112.pdf.
82
Centro de Memória (UNESP) – 495.029.005, bobina 3, identificação 105. Arquivo digital: ic-0105.pdf.
83
Não há indicações precisas sobre as construções dessas informações antes de 1928. A questão que se impõe é:
se os dados compilados são apresentados em reuniões periódicas em 1928, trata-se de um indicativo de que
haviam sido construídos antes. Infelizmente o autor desconhece trabalhos realizados no Brasil ou em qualquer
45

O Partido Comunista da Argentina foi, durante todo o período de bolchevização das


seções da IC na América Latina, uma organização com canais privilegiados de comunicação
com Moscou. Sairia do PCA o quadro de dirigentes dos organismos da IC no continente,
como, por exemplo, o condutor do Secretariado Sul-Americano, Vitorio Codovilla, do Bureau
Sul-Americano, que continuou tendo como protagonistas os argentinos Codovilla e Ghioldi.84
A ascendência argentina seria de tal modo sentida que imporia uma distinção clara entre os
comunistas do Cone Sul, liderados pelos argentinos, e os outros latino-americanos.85

outro lugar sobre os estudos realizados na Escola Leninista Internacional e na Universidade Comunista dos
Trabalhadores do Oriente, fundadas em 1926 e 1921, respectivamente.
84
CABALLERO, 1986, p. 27-33. A forma por meio da qual a Comintern se relacionou com os comunistas
latino-americanos modificou-se ao longo da década de 1920, e as transformações de bureau para secretariado
são indicadores dessas alterações. Em que pese o argumento factível de que houve desinteresse da Comintern em
relação à região durante a primeira metade da década de 20, a ascensão do stalinismo modificou tal posição. A
estruturação do Secretariado, conduzida pelo suíço Jules Humbert-Droz – bukharinista de primeira ordem – é um
indicador do argumento. A queda de Humbert-Droz e ascensão de Guralsky, um zinovievista, para refundar o
Secretariado sob a forma de um bureau também pode ser lida como indicativo de que o movimento comunista na
América Latina passou a responder em sincronia às vibrações políticas provindas de Moscou. Caballero, no
entanto, entende o contrário. Para ele houve falta de interesse da burocracia stalinista na região, por isso
designou Guralsky, de modo que o bureau foi liquidado silenciosamente e pouco se ouviria falar dele até o fim
da IC, em 1943. Ele relaciona uma possível queda do bureau também à perda do quartel-general da IC na
Alemanha a partir de 1932. Já Eudocio Ravines, antigo comunista que escreveu e teve livro publicado com
financiamento da CIA (ver WORLDWIDE propaganda network built by the CIA. The New York Times, Nova
York, 26 dez. 1977. Disponível em:
<http://jfk.hood.edu/Collection/Weisberg%20Subject%20Index%20Files/C%20Disk/CIA%20Reporters%20Ne
w%20York%20Times%20Series%2012-25-77/Item%2007.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2014), sugere o oposto.
Para ele, em finais da década de 1920, “En la America del Sur había comenzado a actuar un selecto grupo de
comunistas de diversas nacionalidades, constituyendo el Bureau Sud-americano de la Internacional Comunista y
laborando, por primera vez, bajo la dirección inmediata y el comando personal de guías soviéticos, de
bolsheviquis expertos en las tareas revolucionarias.” RAVINES, Eudocio. La Gran Estafa: la penetración del
Kremlin en Iberoamérica. México: Libros y Revistas, 1952. p. 163. Cf. MUÑOZ CARRILLO, Gabriel. Disputa
por el comunismo en Chile: estalinistas y oposicionistas en el partido de Recabarren (1924-1934). Informe de
Seminario (Licenciatura em História)–Facultad de Filosofía y Humanidades, Universidad de Chile, Santiago,
2014.
85
Em documento de data incerta (possivelmente 1928-1929), em uma reunião do grupo executivo do Bureau
Sul-Americano (não aparece o nome “Secretariado”) surge a seguinte posição: “É preciso recordar que no último
congresso da ISV [Internacional Sindical Vermelha], os delegados sul-americanos, de Argentina, Chile, Uruguay
e Brasil, têm sempre estado em acordo; estas delegações de países onde existe um verdadeiro movimento
operário estavam formadas por operários. Os delegados dos partidos do Norte formavam coalizão contra os sul-
americanos. Os companheiros do México, lamento dizê-lo, estão completamente desviados e têm iniciado uma
verdadeira luta contra os companheiros e Partidos dos Sul. É preciso evitar essas lutas esclarecendo bem as
coisas.” “Hay que recordar que en el ultimo Congreso de la I.S.R., los delegados sudamericanos, de Argentina,
Chile, Uruguay y Brasil, han estado siempre de acuerdo; estas delegaciones provenientes de países donde existe
un verdadero movimiento obrero, estaban formadas por obreros. Los delegados de los países del Norte,
formaban coalisión contra los sudamericanos. Los compañeros de México, lamenta decirlo, están completamente
desviados, y han iniciado una verdadera lucha contra los compañeros y los Partidos del Sur. Hay que evitar esas
luchas aclarando bien las cosas.” RGASPI (Arquivo Estatal Russo de História Sócio-Política), F. 503, op. 1 , d.
62.
46

2.4 Os soviéticos e o debate sobre raça: a Comintern entre negros e índios

A Internacional foi, inicialmente, um veículo de propaganda e de interação entre os


comunistas de todo o mundo uma vez que ainda vigia no início da década de 1920 a tese de
que, para ser vitoriosa, a revolução deveria ser mundial. A IC tinha, na verdade, dois papéis
simultâneos: propugnar a revolução mundial e defender a União Soviética. Ao ancorar um no
outro, estavam lançadas as bases da aplicação da tese do socialismo num só país. Era mais ou
menos evidente que a execução rigorosa da revolução mundial colocaria em risco a URSS.
Sendo assim, o combate ao imperialismo a partir das colônias serviria também para tentar
dirigir o conflito de classes para longe do centro do capitalismo. Portanto, em certo sentido, a
tese leniniana do combate ao imperialismo satisfez os desígnios dos soviéticos que
pleiteavam, sobretudo, a proteção do novo estado proletário em detrimento da revolução
mundial.
Foi durante o II Congresso da Comintern, em Petrogrado e Moscou, no mês de julho
de 1920, que as formulações teóricas para as áreas coloniais seriam definidas. O argumento
leniniano se sobrepôs: todos os partidos comunistas estavam incumbidos da tarefa de apoiar
os movimentos de libertação nacional liderados pelas burguesias nacionalistas das colônias.
Lênin ainda aprofundaria o argumento ao sugerir que a vitória do comunismo na Europa
dependia da vitória anterior da revolução nas colônias.86 Essa conclusão, de profundo impacto
nas decisões ulteriores da Comintern, possui uma história que tem ligação com a formação de
liberais russos do século XIX. Filhos dessa tradição, Lênin, Bukharin, Trotski, Zinoviev, o
próprio Stalin e, possivelmente, toda a geração de bolcheviques de 1917 impuseram os
marcos a partir dos quais se travaria o debate acerca das questões coloniais e, como
consequência, da autodeterminação.
A questão racial surgiria como parte dos espíritos nacionais que desde o tempo
czarista compunham o Estado russo. A questão nacional, imiscuída por uma racialização,
tangenciou o centro das formulações dos bolcheviques acerca das nações circunvizinhas.
Desse modo, não era possível aos comunistas soviéticos escapar dos limites colocados pelas
caracterizações autoimpostas pela origem geográfica: caucasianos, uralianos, siberianos e
moscovitas eram definidos por pares do PCUS em termos de suas naturalidades, e isso
também estabeleceu o limite da duração que o internacionalismo teve na URSS.

86
MATUSEVICH, Maxim. An exotic subversive: Africa, Africans and the Soviet everyday. Race and Class,
Londres, vol. 49, n. 4, p. 60, abr. 2008.
47

Ao analisar a tríade raça–colonialismo–autodeterminação, é possível conceber


distinções significativas entre a Rússia e países ocidentais como Inglaterra, França e Estados
Unidos. A primeira e mais relevante delas é a posição do negro, que tem um papel irrelevante
no processo de racialização russo-soviética. As influências de certa intelectualidade liberal
russa da segunda metade do século XIX podem ajudar a explicar o itinerário.
Possivelmente influenciado pelo poeta Alexandre Pushkin, mas também pelo vigor
das instituições ligadas à servidão, Alexander Herzen87 foi um dos liberais que inspirou uma
insurreição de servos em 1861. Junto a outros liberais russos da segunda metade do século
XIX, demonstrara especial asco pela instituição da escravidão nos Estados Unidos. Ainda que
“ocidentalizados” para os padrões russos, Herzen, Vissarion Belinsky e Nikolay
Chernyshevsky88 constituíram-se como expressões do liberalismo que inspiraria as gerações
seguintes de anticzaristas. Este último traduziu “A cabana do pai Tomás” em 1858 e,
utilizando-se de sua gráfica e de seu jornal, distribuiu-o gratuitamente forjando uma dada
impressão literária sobre a vida do negro nos Estados Unidos dentre os círculos letrados e
progressistas da Rússia czarista.
Esse mesmo grupo de liberais viria a sustentar intenso, embora casual, intercâmbio
com afro-americanos. Houve turnês do ator afro-americano Ira Albridge, que estrelou no
Leste Europeu e na Rússia no final da década de 60 do século XIX. Em pleno vigor de ideias
racialistas e no auge das tensões nos Estados Unidos e no Ocidente, esses são indícios de que
parte da intelectualidade russa não tinha no negro o centro de seu pensamento racialista.
Albridge gozaria de amplo reconhecimento até sua morte, 1867, quando em turnê na Polônia.
Deixou uma grande amizade com o poeta e pintor ucraniano Taras Shevchenko. Não por
acaso, este último era ligado ao movimento Pan-Eslavista e mantinha estreito vínculo com os
círculos liberais anticzaristas da Rússia.89
Chernyshevsky, o tradutor de “A cabana do pai Tomás”, viria a influenciar Lênin
provavelmente em mais de um sentido. Além de jornalista e crítico literário, Chernyshevsky
se aventuraria, quando preso em São Petersburgo em 1862, pelos meandros da literatura; ele
próprio escreveria seu romance. Intitulado “Que fazer?”, é tido como uma espécie de manual
da revolução, uma vez que inspirou uma legião de revolucionários das décadas seguintes.

87
Seria um dos inspiradores do “People’s Party”, partido que vigeu nos Estados Unidos entre 1892 e 1896, cuja
plataforma se caracterizava por um certo populismo agrário, já que suas hostes eram constituídas por pequenos
proprietários de terra e, mais que isso, se opunham à abertura de estradas de ferro e à organização econômica em
torno de bancos e indústrias.
88
Para mais sobre a formação dessa intelectualidade russa, ver: BERLIN, Isaiah. Russian Thinkers. Londres:
Penguin Books, 1994.
89
MATUSEVICH, 2008, passim.
48

“Que fazer?” é um tipo de publicação de modelo moral para a atividade revolucionária, em


que o ascetismo e a abnegação, aliados ao senso de justiça e perspicácia intelectual,90
coadunam-se para a formação de um novo sujeito, pronto para as transformações sociais. Esse
sujeito era tido como “o rigorista”.91 Outra característica desse sujeito era o medo que causava
nos outros à sua volta.92 Esse foi o modelo psicológico que chegou aos bolcheviques. A
personagem que materializou essas características foi o moralista e asceta Rakhmetoff, a
figura que beiraria a obscuridade na trama, marcaria o modelo comportamental e, mais que
isso, ético-moral dos radicais russos que viriam a seguir. Não fosse bastante a inspiração,
Lênin e Tolstoi escreveriam textos com o mesmo título.
Ainda durante a vigência da Segunda Internacional (1889-1916), Lênin teria acesso a
estudos de sul-africanos sobre a questão racial naquele país, sendo esse o primeiro momento
em que passou a refletir sobre o racismo que dividia negros e brancos. É possível inferir que a
influência global exercida por Chernyshevsky em termos ético-morais incluísse também uma
dada perspectiva acerca do negro, já que Chernyshevsky acompanhava uma certa tradição
liberal anticzarista, antiescravista e, em algum termo, antirracista, ao menos em relação ao
negro.
A elaboração de um pensamento específico, por parte de Lênin, acerca da questão
racial e, quiçá, sobre a segregação racial nos Estados Unidos, na África do Sul e onde quer
que ela existisse, não passou de uma possibilidade. Em 1917, a International Socialist League
(ISL) da África do Sul publicaria, em um jornal ligado à Comintern, texto que concluía pela
complexidade das relações no âmbito da classe trabalhadora por ser ela dividida em negros e
brancos. 93 A tese da classe trabalhadora única e unida contra o capital decididamente

90
CHERNYSHEVSKY, Nikolay. What’s to be done? Boston: Benj. R. Tucker Publisher, 1886. p. 208.
91
Ibid., p. 180.
92
Ibid., p. 207.
93
“Em 1915, um grupo de socialistas e sindicalistas revolucionários romperam com o Partido Trabalhista da
Africa do Sul em razão de seu apoio à Primeira Guerra Mundial e formou a Liga Internacional Socialista (LIS).
[...] A LIS criticou intermitentemente os apelos racistas do Partido Trabalhista da África do Sul assim como seu
jingoísmo e, em seus primeiros manifestos de propaganda e eleitorais, a LIS transferiu uma ênfase sem
precedentes na necessidade de solidariedade inter-racial face aos conflitos com empregadores. A liga era
fortemente influenciada pelos primeiros grupos de imigrantes britânicos, um número os quais tinha absorvido
ideias sobre a necessidade de um sindicalista de massa livre das divisões de cor do filósofo marxista americano,
Daniel DeLeon, e a radical Industrial Workers of the World (IWW)”. “In 1915, a group of revolutionary
socialists and trade unionists split from South Africa's Labour Party over its support for the First World War and
formed the International Socialist League (ISL). […] The ISL intermittently criticised the South African Labour
Party's racist appeals as well as its jingoism and, in its early propaganda and electoral manifestos, the ISL carried
an unprecedented emphasis on the need for interracial solidarity in the face of conflicts with employers. The
League was strongly influenced by the early cohort of British immigrant syndicalists, a number of whom had in
turn absorbed ideas about the necessity of colour-blind mass unionism from the American Marxist philosopher,
Daniel DeLeon, and the radical Industrial Workers of the World (IWW).” JOHANNINGSMEIER, Edward.
Communists and Black Freedom Movements in South Africa and the US: 1919-1950. Journal of Southern
49

encontrara um problema concreto. Nem Lênin nem outros bolcheviques tinham acesso a
informações.94 Mesmo que ele não tenha se aventurado em nenhuma análise sistemática sobre
a questão racial, ele se colocaria como entusiasta do estudo da questão.
Uma elaboração mais específica sobre a questão negra no movimento comunista
internacional só se tornaria pública a partir da pressão realizada por organizações como a ISL
(ou LIS, em português) e por outras, vindas dos Estados Unidos. Se houve simpatia em
relação à Revolução Bolchevique dentre os diversos grupos oprimidos no mundo, por outro
lado houve um duplo movimento de “oportunismo”, por parte tanto da Internacional
Comunista quanto dos diversos grupos subalternizados organizados. De todo modo,
O novo regime viu claramente seu triunfo como uma precondição necessária para
uma eventual emancipação das massas exploradas não europeias. O sucesso da
vitória bolchevique presumidamente criou um tipo de ponte histórica ligando os
destinos do proletariado nas colônias com aqueles do novo proletariado na Rússia.
Esse sentimento se encontrou numa das primeiras canções populares soviéticas
Moia Afrika (“Minha África”). O poeta Boris Kornilov descreveu uma curiosa
história na qual um oficial da cavalaria africana (provavelmente um tirailleur
Sénégalais), que lutou contra os inimigos da revolução durante a guerra civil russa e
foi tido como morto em 1918, liderou o ataque dos Vermelhos contra os Brancos
perto de Voronezh “para golpear os capitalistas africanos e a burguesia”.95

A Comintern debateu a questão racial desde seu início. Com relação aos negros, John
Reed provavelmente foi o primeiro a fazê-lo no II Congresso, em julho de 1920. No III
Congresso a delegação sul-africana propôs que o CEIC considerasse a questão negra, e a
proposta foi aceita. 96 Em julho de 1924 foi constituída uma Comissão Negra com a
participação “dos partidos da França, Bélgica e Inglaterra para realizar propaganda entre

African Studies, v. 30, n. 1, p. 157, mar. 2004. Special Issue: Race and Class in South Africa and the United
States.
94
Em novembro de 1920, Lênin faria um pedido via Londres do livro de Davidson Don Tengo Jabavu: “The
Black problem. Papers and Addresses on various native problems”. Tratava-se, possivelmente, do primeiro livro
publicado por um negro sul-africano. Cf. DAVIDSON, Apollon; FILATOVA, Irina; GORODNOV, Valetin;
SHERIDAN, Johns (Orgs). South African and the Communist International: A documentary history.
Londres, Portland: Frank Cass Publishers, 2003. v. 1 (Socialist pilgrims to Bolshevik footsoldiers). p. 3.
95
MATUSEVICH, 2008, p. 59. “The new regime clearly saw its triumph in Russia as a necessary precondition
for the eventual emancipation of the exploited non-European masses. The success of the Bolshevik takeover
presumably created a kind of historical bridge linking together the destinies of the proletariat in the colonies with
those of the new proletariat state in Russia. This sentiment found its way into a popular early Soviet ballad ‘Moia
Afrika’ (‘My Africa’). The poet Boris Kornilov described an odd story in which an African cavalry officer
(probably a tirailleur Sénégalais) who fought the enemies of the revolution during the Russian civil war and
reportedly died in 1918, led the Reds’ attack against the Whites near Voronezh ‘in order to deal a blow to the
African capitalists and the bourgeoisie’.” Paralelamente a isso, é preciso destacar que “O entusiasmo e
admiração de comunistas sul-africanos pela Rússia Soviética e pela Comintern não significou, no entanto, que o
CPSA [Partido Comunista da África do Sul] aceitasse todas as decisões da Comintern como sendo
imediatamente aplicáveis na África do Sul.” “The enthusiasm and admiration of the South African communists
for Soviet Russia and the Comintern did not mean, however, that the CPSA accepted all the decisions of the
Comintern as immediately applicable in South Africa.” (JOHNS, 1975, p. 206).
96
Cf. DEGRAS, 1955b, p. 398-401.
50

negros”.97 Mas o VI Congresso da IC, em 1928, marcou uma posição das mais importantes no
que diz respeito ao debate sobre os negros.
Nesse caso, e da hoje chamada diáspora africana, a África do Sul e os Estados Unidos
tiveram uma proeminência nas preocupações cominternianas. Os primeiros interesses
soviéticos na questão negra e no racismo são resultado de reflexões acerca da África do Sul.
No que tange as organizações da Comintern e os protagonistas do movimento comunista
internacional que refletiram sobre a questão, Apollon Davidson afirma:
O fundador da Comintern, Vladimir Ilich Lenin, mostrou interesse nos eventos da
África do Sul. Em diferentes tempos e diferentes circunstâncias, conhecidos líderes
da Comintern estiveram de uma maneira ou de outra conectados com a África do
Sul ou tiveram que lidar com os problemas do movimento comunista da África do
Sul. Entre eles estiveram Nikolai Ivanovich Bukharin, Grigori Yevseievich
Zinoviev, Dmitri Zakharovich Manuilsky, André Marty, Georgi Dimitrov, Willi
Münzenberg e Solomon Abramovich Lozovsky.
[...] Está claro, porém, que os departamentos que mais proximamente se envolveram
na África do Sul em diferentes momentos foram o Secretariado do Oriente e o
Secretariado Anglo-Americano. Ambos respondiam ao Secretariado Político e ao
Presidium – os corpos mais altos do Comitê Executivo da Internacional Comunista
(CEIC).
[...] Além desses corpos permanentes, existiram inúmeras comissões temporárias e
ad hoc que lidaram com a África do Sul. As mais importantes entre elas foram a
Comissão Sul-Africana (a então chamada “Comissão Marty”, nomeada em razão do
seu chefe, o comunista francês André Marty) e a Comissão Negra. As afiliadas da
Comintern, como a Internacional Sindical Vermelha (ISV), a Internacional
Camponesa (Krestintern) e o Socorro Vermelho, também estiveram envolvidas com
assuntos sul-africanos.98

O interesse de Lênin na África do Sul, citado por Davidson, guardava relação com o
recrudescimento das relações raciais naquele país e sua aparente semelhança com o caso
estadunidense. Em 25 de janeiro de 1921 houve um encontro do CEIC para discutir um
relatório encaminhado pela ISL à Comintern. O teor do relatório, escrito por J. Bakker e S.
Barlin, era basicamente um detalhamento das condições dos trabalhadores sul-africanos e de
sua disposição de luta junto à IC. Findada a leitura do relatório, houve uma breve discussão,
segundo a ata:
97
DEGRAS, 1959, p. 164.
98
DAVIDSON; FILATOVA; GORODNOV; SHERIDAN, 2003, p. 3-4. “The founder of Comintern, Vladimir
Ilich Lenin, showed much interest in events in South Africa. At different times and in different circumstances,
many well-known Comintern leaders were in one way or another connected with South Africa or had to deal
with problems of South Africa’s communist movement. Among them were Nikolai Ivanovich Bukharin, Grigori
Yevseievich Zinoviev, Dmitri Zakharovich Manuilsky, André Marty, Georgi Dimitrov, Willi Münzenberg and
Solomon Abramovich Lozovsky.
[...] It is clear, however, that the departments of the Comintern most closely involved in South Africa at different
times were the Eastern Secretariat and the Anglo-American Secretariat. Both reported to the Political Secretariat
and to the Presidium – the highest bodies of the Executive Committee of the Communist International (ECCI).
[...] Besides these permanent bodies there were several temporary and ad hoc commissions that dealt with South
Africa. The most important among theses were the South African Commission (the so called ‘Marty
Commission’, named after its head, the French communist André Marty) and the Negro Commission. The
Comintern’s affiliates, such as the Red International of Labour Unions (RILU), the Peasant International
(Krestintern) and the International Red Aid (IRA), were also involved in South African affairs.”
51

Zinoviev: Eu acho que é conveniente organizar uma comissão para estudar a questão
sobre os negros. Essa questão foi discutida superficialmente duas vezes, mas por
causa da ausência dos camaradas da África não se chegou a nenhuma conclusão. Eu
peço que se planeje um documento sobre esse assunto e que se discuta a questão da
África do Sul juntamente com os camaradas.
Um camarada finlandês de Estocolmo: Eu gostaria de propor unidade de todos os
partidos da África, Austrália que estão subordinados a Inglaterra em um Comitê
Central e colocá-lo sob o Comitê Executivo. Este deveria, no entanto, ser transferido
para outra cidade europeia já que Moscou é muito longe desses camaradas.
Zinoviev: Eu proponho Quelch, Jansen, Varga para essa comissão.
Quelch: Eu proponho o quarto, camarada Roy.
Zinoviev: A proposta foi aceita. Ambos os camaradas africanos estão convidados a
trabalhar nessa comissão. Então a questão foi resolvida para o momento.99

Algum tempo antes, em 1920, a questão negra foi parte de um debate sobre a “questão
nacional e colonial” no II Congresso da IC. As reflexões sobre os Estados Unidos
preponderaram durante as discussões. Um ano depois, no III Congresso, David Ivon Jones,
militante do PC da África do Sul, levantou a questão negra mais uma vez.100 No decorrer da
década de 1920, as interpretações redundariam em organizações como a League Against
Imperialism fundada em 1927.101 Na IC, portanto, havia um debate sobre a questão racial
relativa aos negros nas colônias, nas Américas e na Europa. Ainda que difusamente
apresentadas, as formulações de comunistas se articulavam com ditames leninianos de
combate ao imperialismo.
Como em outras áreas de atuação da Internacional, a efetividade da ação no que tange
às questões negra e africana foi relativa. Um exemplo é o chamado Bureau Negro da
Profintern, a Internacional Sindical Vermelha. O bureau foi organizado em novembro de
1928, após decisão do Secretariado Político do CEIC e também depois do VI Congresso da
IC. Esse bureau teria sido fundado por uma iniciativa dos “camaradas negros” e o
Secretariado Político aproveitaria a chance para reiterar uma crítica feita anos antes aos
partidos comunistas da França, Inglaterra, Bélgica e de outros países colonialistas em razão da

99
DAVIDSON; FILATOVA; GORODNOV; SHERIDAN, 2003, p. 62-63. “Zinoviev: I think that it is expedient
to organise a commission to study the question about the Blacks. This question has been superficially discussed
twice but because of the absence of comrades from Africa this has not led to any conclusions. I ask to devise a
document on this issue and to discuss the South Africa question together with comrades.
A Finnish comrade from Stockholm: I would like to propose to unite all Parties in Africa, Australia which are
subordinate to Britain in one Central Committee and to place it under the Executive Committee. It should,
however, be transferred to another European city for Moscow is too far removed from these comrades.
Zinoviev: I propose Quelch, Jansen, Varga for this commission.
Quelch: I propose the fourth, Comrade Roy.
Zinoviev: The proposal is accepted. Both African comrades are invited to participate in the work of this
commission. So the question is settled for the moment.”
100
DREW, Allison. Bolshevizing Communist Parties: The Algerian and South African Experiences.
International Review of Social History, Amsterdam, v. 48, p. 167-202, 2003.
101
PETERSSON, Fredrik. In Control of Solidarity? Willi Münzenberg, the Workers’ International Relief and
League against Imperialism, 1921-1935. CoWoPa 8/2007. Disponível em:
<http://www.abo.fi/institution/media/7957/cowopa12petersson.pdf>.Acesso em: 9 out. 2012.
52

inabilidade desses partidos em conduzir um engajamento efetivo da luta anticolonialista.


Assim como o Bureau Negro, existiram em tempos distintos, uma Subcomissão Negra, uma
Comissão Negra (1922 e 1924) e o Bureau ou Setor Negro. Ou seja, de algum modo houve,
com frequência, grupos discutindo a questão, associando-a ao combate ao imperialismo tanto
assim que coube ao Secretariado do Oriente a responsabilidade de construir comissões e
bureaux negros.102
O produto das inflexões teóricas e práticas da Comintern resultou em diferentes
formas organizativas de lidar com a questão negra. Em linhas gerais, as flutuações das teses
sobre a questão negra variaram, na década de 1920, entre versões mais e menos radicais
daquela que resolvia o problema da raça por meio da resolução da luta de classe.103
De alguma forma, o mesmo se pode dizer sobre a questão indígena na América Latina.
Partidos comunistas de países como Peru, Equador, Colômbia e Bolívia estiveram, ao menos
até 1928, ligados organicamente às elaborações do Partido Comunista do México. Alguns
casos de heterodoxia marxista são mais conhecidos em razão das discordâncias com as
formulações gerais da Comintern. O caso de José Carlos Mariátegui é apenas o mais famoso.
Outros menos famosos, embora igualmente significativos, são os casos de Ricardo Paredes,104
no Equador, e Julio Antonio Mella,105 em Cuba, que apresentaram expressivas discordâncias
com as linhas gerais de seus partidos, no caso deste último, e, no caso daquele, com a própria
Internacional Comunista.
Como já foi exposto no início do capítulo, a questão negra entraria na agenda
cominterniana por meio da estratégia anti-imperialista e da tentativa de fazer ruir os impérios
partindo das colônias. Por seu turno, o debate sobre a questão indígena chegaria ao
movimento comunista internacional via questão camponesa. São as distinções entre o
campesinato latino-americano e o asiático que fundamentaram a heterodoxia desse marxismo
latino-americano de finais da década de 1920. Sua sedimentação é resultado sobretudo das
reflexões sobre a concentração fundiária e participação do imperialismo nessa estruturação do
campo comum aos países latino-americanos, com ênfase naqueles da região andina.

102
“Reference to Negro (sub-) Commission is to a special ad hoc group which was formed to investigate a
certain topic or aspect which was discussed at the World Congresses.” WEISS, 2009, p. 10.
103
Nessa breve apreciação da abordagem da questão negra pelos comunistas, deixei de lado propositadamente os
Estados Unidos e o Caribe, já que eles constituirão um próximo capítulo.
104
Cf. ZAIDAN FILHO, Michel. O PCB e a Internacional Comunista: 1922-1929. São Paulo: Vertice, 1988.
p. 36.
105
Cf. SENA, Caridad Massón. Comintern y comunismo en Cuba: Una reflexión crítica. Revista Izquierdas,
Santiago, ano 3, n. 7, 2010. Disponível em: <http://www.izquierdas.cl/revista/wp-
content/uploads/2011/07/Masson.pdf>. Acesso em: 14 set. 2012. Atualização em dez. 2014:
<http://www.izquierdas.cl /images/pdf/2011/07/masson.pdf>.
53

Uma outra chave teórica para a Comintern foi o conceito de raça, que, conquanto não
tenha sido explorado, aparece nas diretivas da IC. “Raça” aparece relacionada a aspectos
como idioma, fenótipo e posição no mundo do trabalho. No caso dos Estados Unidos, os
comunistas da IC também avaliavam, a partir de 1928, que a condição específica do negro
naquela sociedade de classes, especialmente no Sul dos Estados Unidos, não se apresentava
propensa à formação de uma classe trabalhadora unificada, sem barreiras raciais. Assim,
tendo em vista a segregação racial existente em sua própria classe, a existência de vasta
população distribuída geograficamente numa região específica e a afinidade idiomática, os
comunistas perceberam aspectos formativos de uma nação. No caso dos indígenas e da África
– exceção feita à África do Sul – a avaliação fazia preponderar ora o aspecto linguístico ora o
critério “geográfico”. Em alguns casos ambos os critérios coincidiam, como no caso do
Secretariado Anglo-Americano, cuja jurisdição abrangia, além do óbvio, as colônias
britânicas, inclusive o Caribe anglófono, Canadá,106 África do Sul107 e Austrália.108 Algumas
versões das muitas comissões negras eram subordinadas ao Secretariado do Oriente, este
como um sinônimo de “Secretariado dos povos coloniais”. No caso dos indígenas na América
do Sul e Central, as análises identificavam, por vezes, grupos raciais tipificados
linguisticamente a partir da raça maior, a “indígena”. O caso da Bolívia em abril de 1929 é
analisado da seguinte maneira:
Os indígenas compõem na Bolívia o que em outros lugares se denomina
campesinato porque trabalham fundamentalmente com os labores do campo.
Existem dois grupos raciais principais: o aimará e o quechua, diferenciados seu
caráter, sistema de vida e costumes.109

No caso do Equador, Ricardo Paredes, importante comunista equatoriano, avaliava


que:
A maior parte dos trabalhadores são os representantes de uma raça mitigada; os
índios puros não são os mais numerosos salvo em regiões de algumas províncias. A
classe trabalhadora está, pois, submetida a duplo jugo: opressão de raça (prejuízo da
“raça inferior”) e opressão econômica.110

106
“Minutes of the Anglo-American Colonial Group of the Communist International. 1922.” RGASPI, F. 495,
op. 72, d. 2.
107
DAVIDSON, 2003, p. 166.
108
LOVELL, David; WINDLE, Kevin. Our Unswerving Loyalty: A documentary survey of relations between
the Communist Party of Australia and Moscow, 1920-1940. Canberra: The Australian National University Press,
2008. p. 281.
109
LA CORRESPONDENCIA Sudamericana, Buenos Aires, n. 10, p. 6, 30 abr. 1929. “Los indígenas componen
Bolivia lo que en otras partes se denomina el campesinato porque trabajan fundamentalmente en las labores del
campo.
Existen dos grupos raciales principales: el aimará y el quíchua, diferenciados en su carácter, sistema de vida y
costumes.”
110
PAREDES, Ricardo. El movimiento obrero en el Equador. La Internacional Sindical Roja, n. 1, p. 77, ago.
1928. Disponível em: <http://www.yachana.org/earchivo/comunismo/paredes-isr-agosto28.pdf>. Acesso em: 27
set. 2012. “La mayor parte de los trabajadores son los representantes de una raza mitigada; los indios puros no
54

Pelo menos desde abril de 1929, quando o periódico do Secretariado Latino-


Americano, “La Correspondencia Sudamericana”, passou a fazer chamadas para a I
Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, já constava na ordem do dia o ponto
IV: “El problema de razas en América Latina”. Na chamada para a conferência constava que
seria um brasileiro um dos responsáveis a discorrer sobre as raças. Ocorre que,
aparentemente, não houve nenhum brasileiro a debater a questão.111
Habitualmente as avaliações dos comunistas em torno da questão racial nas variadas
partes da América Latina não guardavam em si quaisquer preocupações conceituais sobre a
questão da raça. Como pode-se antever, o termo era utilizado aleatoriamente para definir
grupos sociais, ora definidos por traços fenotípicos, fundamentalmente amparados pela cor da
pele, ora por definições linguísticas. A mobilização do termo “raça” para referir-se às
comunidades indígenas, prescindindo de maior reflexão acerca do assunto, redundou numa
posição a respeito da questão ainda mais ortodoxa do que se poderia supor vinda de um
comunista da década de 1920. Ao final dessa década, os latino-americanos, em geral, eram
mais rigorosos na aplicação da tese do “problema de classe” que a Comintern. A discordância
e heterodoxia de José Carlos Mariátegui ao divergir da orientação da Comintern não se
constituiu como uma inovação em princípio; traduziu-se, de fato, na utilização do argumento
utilizado por comunistas e socialistas desde a II Internacional a respeito das desigualdades
sociais, inclusive aquelas de cunho racial. Ou seja, todas elas seriam solucionadas com uma
revolução proletária. Mariátegui não corroborou com a possibilidade de criar uma República
Indígena na América do Sul sob o argumento de que a ausência de um Estado-Nação não era
o principal problema da população quechua e aimará. Essa mostra de discordância se deu na
Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina em 1929 organizada como
consequência do VI Congresso da IC no ano anterior. Nesse encontro mundial, os comunistas
decidiram por reconhecer “o direito de todas as nações, independentemente de raça, a
completar autodeterminação, isto é, indo até à secessão política”.112 Conquanto a aplicação
inicial dessa tese tivesse como objeto a África do Sul, o sul dos Estados Unidos da América e
territórios coloniais, sua incorporação por outros povos foi automática por parte da Comintern
e seus organismos mais centralizados, tal como o Secretariado Sul-Americano. Essa mudança
de opinião da Comintern no VI Congresso em relação a congressos anteriores foi uma

son los más numerosos más que en las regiones de algunas provincias. La clase obrera está, pues, sometida a un
doble yugo: opresión de raza (prejuicio de la ‘raza inferior’) y opresión económica.”
111
LA CORRESPONDENCIA Sudamericana, Buenos Aires, n. 9, p. 15, 1º abr. 1929.
112
DEGRAS, 1959, p. 497. “Recognition of the right of all nations, regardless of race, to complete self-
determination, i.e. going as far as political secession.”
55

heterodoxia cominterniana e, portanto, uma flexibilização da tese a qual postulava a resolução


do problema da raça via revolução proletária.
Desta maneira, o combate ao imperialismo adquiria uma proeminência ainda maior na
estratégia global da Comintern em detrimento da própria revolução e tornava-se quase que um
sintoma de que deter o imperialismo nos confins do mundo significava afastá-lo das fronteiras
soviéticas, salvaguardando o país dos bolcheviques.
Durante a realização da Conferência em 1929, os comunistas latino-americanos sob a
direção de Jules Humbert-Droz113 não conseguiram encaixar a resolução do VI Congresso à
realidade sul-americana e indígena. A cristalização do modelo explicativo das desigualdades
que afetavam as populações indígenas não seria dissolvida puramente em função do poder
centralizador da Comintern, representado pelo franco-suíço, resultando num dos raros
momentos de hesitação externados em escritos de dirigentes da IC:
Cremos que, neste momento, não se pode e não se deve explicar o problema da
autodeterminação nacional das raças indígena e negra na parte continental da
América Latina, mas podemos opinar que o direito de determinar seu próprio
destino como nação só se conseguirá tão somente mediante aliança revolucionária
com o proletariado branco e mestiço latino-americano e da metrópole.114

O chamado projeto de tese sobre a questão racial na América Latina, reproduzido em


La Correspondencia Sudamerica, órgão do Secretariado Sul-Americano, possui inúmeros
traços do pensamento de Mariátegui a respeito da questão racial, ao enfatizar sobremaneira a
resolução dos conflitos econômicos. Desse modo, é preciso relativizar o tamanho do dissenso
teórico-prático que teria dividido Mariátegui e a Comintern em 1929.115 A conclusão parcial
apontada pelo dirigente da IC Humbert-Droz revela a ambiguidade e a natureza da hesitação
cominterniana, ainda que o contorcionismo retórico evidente revele o esforço dos dirigentes
para adequar-se à reviravolta do VI Congresso e às interpretações dos comunistas dos países
andinos, para definir a prioridade entre o Estado-Nação indígena ou a luta por terra.
Pelo exposto se depreende que existe um problema racial intimamente ligado ao
processo econômico da produção e de onde há uma potencialidade revolucionária
extraordinária. O processo de luta contra o imperialismo, contra a burguesia nativa,

113
CERDAS CRUZ, Rodolfo. La Hoz y el Machete: La Internacional Comunista, América Latina y la
Revolución en Centro América. Málaga: Eumed, 1986. p. 167.
114
PROBLEMA de las razas. La Correspondencia Sudamericana, Buenos Aires, n. 15, p. 28, ago. 1929.
“Creemos que, en este momento, no se puede y no se debe plantear el problema de la auto-determinación
nacional de las razas india y negra en la parte continental de la América Latina pero podemos opinar que su
derecho de determinar su propio destino como nación lo conseguirán tan sólo mediante la alianza revolucionaria
con el proletariado blanco y mestizo latino-americano y de la metrópolis.”
115
Caballero considera que o resultado do congresso foi uma espécie de derrota para Mariátegui. A discordância
de Mariátegui com a criação de um Partido Comunista no Peru é contrastada com proposituras como o fomento à
criação de federações étnicas, como feito por Ghioldi (CABALLERO, 1986, p. 58). A essa altura Stalin já se
tinha convencido da estruturação do estado soviético em uma federação de estados “autodeterminados”, ainda
que praticamente centralizados.
56

pelas reivindicações da revolução democrático-burguesa FORMA PARTE DA


LUTA DOS ÍNDIOS PELA REIVINDICAÇÃO DE SUA NACIONALIDADE
OPRIMIDA. Isso não significa que pretendemos obrigar os índios a buscar sua
própria nacionalidade; senão por intermédio de todas nossas palavras de ordem
devemos fazer-lhes chegar a absoluta convicção de seu direito a determinar seu
próprio destino como nação e que isso eles conseguirão tão somente mediante à
aliança revolucionária com o proletariado branco e mestiço latino-americano e da
metrópole.116

Havia duas questões complexas que se encontravam e se separavam a partir do


conceito de raça. Para além da resolução da “questão indígena” havia também a “questão
negra” no “Brasil, Cuba, Santo Domingo, Venezuela, Panamá, etc.”,117 definidas a priori
como problemas de raça, mas definidas em torno de contornos distintos. Reconhecia-se a
diferente natureza dos povos negro e indígena, nos dizeres dos comunistas, principalmente
suas características específicas nas Américas. O trecho esclarece a anexação do problema
nacional ao racial, em que o primeiro é a resolução do segundo, no caso indígena, e esclarece
também de que maneira vincular um ao outro poria no horizonte uma solução à questão negra.
No entanto, a IC, a partir das palavras de Humbert-Droz, entendia que, sobre os indígenas, o
problema resultaria em algo distinto, dada uma diversidade entre eles. Essa variedade não
seria identificada entre negros. As questões foram levantadas não sem antes ter-se colocado
ressalvas às resoluções da Conferência que pendularam entre uma admissão pública da
incapacidade dos comunistas em propor uma solução definitiva e um convite aberto aos
comunistas para pensar o problema. Dessa forma, Humbert-Droz afirmava que:
O projeto de tese não diferencia o problema racial do problema nacional. Ele pode
ser exato para os negros que perderam seu idioma, seus costumes e suas
nacionalidades primitivas, porque adquiriram uma nova nacionalidade que provoca
no seio da raça negra rivalidades e lutas artificialmente criadas pelo imperialismo.
Mas os índios vêm de tribos muito diferentes, cuja língua, costumes e tradições são
diversas; constituem uma raça, mas muitas nacionalidades, ao mesmo tempo que o
problema social é fundamental, porque a posse da terra une todos os índios contra os
que a ocupam e a exploram.118

116
Ibid., p. 28. “Por lo expuesto se desprende que existe un problema racial íntimamente ligado al proceso
económico de la producción y por onde de (sic) una potencialidad revolucionaria extraordinaria. El proceso de la
lucha contra el imperialismo, contra la burguesia nativa, por las reivindicaciones de la revolución democrática
burguesa FORMA PARTE LA LUCHA DE LOS INDIOS POR LA REIVINDICACION DE SU
NACIONALIDAD OPRIMIDA. Esto no significa que pretendemos obligar a los indios a buscar su propia
nacionalidad, sino por intermedio de todas nuestras palabras de orden debemos hacerles llegar la absoluta
convicción de su derecho a determinar su propio destino como nación y que esto lo conseguirán tan sólo
mediante la alianza revolucionaria con el proletariado blanco y mestizo latino americano y de la propia
metrópoli.”
117
PROBLEMA..., 1929, p. 26. A questão negra será debatida posteriormente.
118
Ibid., p. 29. “El proyeto de tesis no diferencia el problema racial del nacional. Ello puede ser exacto para los
negros que han perdido su idioma, sus costumbres, y sus nacionalidades primitivas, porque han adquirido una
nueva nacionalidad que provoca en el seno de la raza negra rivalidades y luchas artificialmente creadas por el
imperialismo. Pero los indios vienen de tribus muy diferentes, cuya lengua, costumbres y tradiciones son
diversas; constituyen una raza pero muchas nacionalidades, al mismo tiempo que del problema social que es
fundamental, porque la posesión de la tierra une a todos los indios contra los que la ocupan y exploran.”
57

Da criação da Internacional Comunista, em março de 1919, até 1928, a organização


dos comunistas na América Latina se transformou profundamente. Os vínculos com Moscou e
os inter-regionais foram estabelecidos. As hierarquias também se dimensionaram de modo
que os temas e os métodos de abordagem continham receituários esquemáticos obedecendo às
estratégias gerais dos bolcheviques. Os debates sobre autodeterminação, raça e imperialismo
satisfizeram à lógica prevalente na IC. Espaços de autonomia relativa existiam
fundamentalmente nos espaços de execução das teses. No tempo do cotidiano, como pode-se
observar na maior parte dos países latino-americanos, as definições sobre raça e
autodeterminação sucumbiram ao rigor das relações diárias; o embate anti-imperialista
adquiriu tonalidades locais. Muitas vezes essas tonalidades foram generalizadas. É
precisamente o caso de Estados Unidos e Caribe.
58

3 A questão negra entre o império e a nação: perspectivas em movimento

Este capítulo tem como objetivo apresentar o percurso da agenda negra e antirracista
nas organizações de esquerda nos Estados Unidos de maneira a subsidiar uma compreensão
dos conflitos políticos que tiveram lugar nos anos de 1920 e 1930. Na esquerda, negros e
brancos simpáticos à causa do antirracismo debateram e forjaram agendas, criando defecções
e cindindo grupos políticos. O roteiro traçado prevê uma apreciação da relação que o Partido
Socialista, embrião dos comunistas, manteve com a agenda negra e racial, um exame das
relações que os comunistas estadunidenses mantiveram com os bolcheviques e, por fim, uma
análise das teses do Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA) e de suas organizações
afiliadas a respeito da temática.

3.1 Os socialistas e a questão racial

Quando, em junho de 1920, o CEIC enviou uma carta ao Partido Comunista da


América e ao Partido Comunista Trabalhista da América demandando a unificação do
movimento comunista nos Estados Unidos, o caminho para a bolchevização já estava
construído. Em que pese a demora no cumprimento da ordem, que só seria executada em
maio de 1921, para realizá-la os comunistas estadunidenses operaram uma significativa
reviravolta nas tradições socialista-patrióticas do antigo Partido Socialista, ligado à Segunda
Internacional. Elas chegariam ao fim da trilha apenas em meados de 1925.
Antes disso, porém, havia contas a acertar sob os escombros do Partido Socialista (PS)
dos Estados Unidos, fundado em 1900-1, de modo a permitir que movimento comunista
estadunidense desse seus primeiros passos. 119 O PS foi composto por um amplo arco
ideológico de militantes, não obstante a maior parte deles tenha, de fato, saído do meio
sindical. Um dos mais significativos representantes do PS foi Eugene Debs, trabalhador de
estradas de ferro. Ele liderou uma das facções do partido, constituindo seu setor à esquerda.

119
FOSTER, 1952, p. 91. “At its foundation in 1900-01 the Socialist Party, which was eventually to give birth to
the Communist Party [...].” “Quando de sua fundação em 1900-01, o Partido Socialista, o qual na verdade viria a
fazer nascer o Partido Comunista [...].”
59

Por sua vez, Morris Hillquit, antigo dirigente do Socialist Labor Party, assumiu a tarefa de
conduzir a direita do partido.120
Até 1915 a divisão entre esquerda e direita do partido foi testada em função de três
questões, a saber, a escolha do modelo sindical a ser seguido pelos socialistas, a II
Internacional e a posição do partido em relação à Primeira Guerra Mundial. A primeira se
materializou em função do conflito entre a American Federation of Labor (AFL) e a Industrial
Workers of the World (IWW). Em 1905, quando Bill Haywood e o próprio Eugene Debs
fundaram a IWW, sob forte inspiração anarco-sindicalista, estava construída uma alternativa
por fora do status quo, já que os “wooblies”, como eram chamados os membros da IWW,
praticavam ações diretas e eram favoráveis às sabotagens e ao uso da violência para fins
políticos, ao contrário da AFL. Esse foi um dos pontos de dissenso entre a esquerda e a direita
socialistas no PS.121 A segunda questão está, obviamente, atada à última, qual seja, a posição
do PS em relação à Primeira Guerra Mundial. As hesitações da II Internacional terminaram
por levar o movimento socialista internacional à fratura. A predominância dos alemães do
Partido Social Democrata levou parcela significativa da II Internacional ao esforço de guerra.
Essa tensão a respeito da posição dos socialistas sobre a Primeira Guerra Mundial chegou ao
PS nos Estados Unidos, ainda que a manifestação desse conflito tenha sido assentada por
sobre questões endógenas do Partido.
Assim o padrão americano na guerra não foi o mesmo que o europeu. A fração em
favor da guerra veio do movimento socialista americano, aquela contrária à guerra
do europeu. O movimento americano inteiro era oficialmente contra a guerra,
superficialmente se aproximando da Esquerda europeia. Mas, num exame mais
cuidadoso, existiu a mesma clivagem fundamental no partido americano apesar da
fratura no grupo pró-guerra. Ainda se manteve um grupo militante contra a guerra e
um outro pró-guerra encoberto. Havia o mesmo processo de diferenciação na
Europa, mas não era tão agudo e claro.
A posição extremista contra a guerra constituiu o primeiro capital político possuído
pela Esquerda.122

Um importante momento dessa tensão foi o “Manifesto de St. Louis”, um libelo contra
a Primeira Guerra Mundial e crítico quanto à participação estadunidense no conflito. Foi
defendido pela esquerda socialista e ratificado pela maioria do Partido em convenção nacional

120
Cf. GIRARD, Frank; PERRY, Ben. Socialist Labor Party, 1876-1991: A Short History. Filadélfia: Livra
Books, 1991.
121
Cf. FOSTER, 1952, p. 100-1; DRAPER, 1957, p. 41-8.
122
DRAPER, ibid., p. 96. “Thus the American pattern in the war was not the same as the European. The prowar
wing fled from the American Socialist movement, the antiwar wing from the European. The entire American
movement was officially antiwar, superficially lining it up with the European Left Wing. But, on closer
examination, there was the same fundamental cleavage in the American party despite the break away of the open
prowar group. There still remained a militant antiwar and a covert prowar group. There was the same process of
differentiation as in Europe, but it was not so sharp or clear.
The extremist antiwar position constituted the first political capital possessed by the Left Wing.”
60

em abril de 1917. Nesse mesmo período, um golpe desferido pela polícia e serviço de
inteligência retirou da esquerda socialista a possibilidade de hegemonizar o Partido Socialista,
uma vez que praticamente todos os militantes foram presos.
A resolução de St. Louis contra a guerra também deu ao governo sua principal arma
legal para processar líderes socialistas e suprimir a imprensa socialista. Depois que a
Lei de Espionagem foi aprovada em junho de 1917, autoridades locais e nacionais
demonstraram pouca discriminação. [...] Este amplo leque de vítimas, do pró-guerra
Berger ao anti-guerra Engdhal, teve um efeito que o governo não pretendia. Retirou
da esquerda [do Partido] o monopólio dos mártires antiguerra. Entre as quase duas
mil pessoas julgadas sob a Lei de Espionagem havia mártires suficientes para
todos.123

A partir desse momento, quando foram presas lideranças da IWW e, com isso,
redefinidos os contornos da política sindical da organização, houve um distanciamento
sensível entre o PS e as organizações do mundo do trabalho. O contato seria retomado a partir
de 1919. Foi entre o final de 1918 e 1919 que a pedra angular de uma das teses centrais sobre
o desenvolvimento do movimento comunista nos Estados Unidos encontraria guarida.124 A
questão internacional ascenderia em importância paulatinamente em função do avançar da
Primeira Guerra Mundial.
No inverno de 1917, uma reunião da esquerda socialista acontecia no Brooklyn.
Trotski, Bukharin e outros três russos em exílio tomaram parte, juntando-se a Rutgers, o
holandês, Louis Fraina e Sen Katayama. Durante o encontro Bukharin defendera a tese de que
a esquerda socialista do PS deveria romper e fundar uma organização em separado. Trotski
sugerira que, conquanto a esquerda do PS permanecesse no partido, fosse criado um órgão
específico para que a opinião da corrente fosse exprimida. A proposta de Trotski foi
vencedora, e a fração de esquerda continuou no PS.125 A influência da Revolução Russa
começaria, a partir desses anos, a se fazer valer de maneira efetiva.
O caminho mais evidente e direto para subscrever à Revolução Russa nos Estados
Unidos era, primeiro, aderir ao Partido Socialista, e, segundo, aderir à Esquerda do
Partido Socialista. De 80.739 em 1917, os membros do partido passaram para
104.822 em 1919, o segundo ponto mais alto da sua história. Mas esse aumento
acentuado foi acompanhado por uma curiosa e reveladora desproporção, a qual
denuncia o fato de que alguma coisa fora do Partido Socialista e dos Estados Unidos
era imensamente responsável pelo influxo.

123
DRAPER, 1957, p. 94. “The St. Louis antiwar resolution also gave the government its chief legal weapon to
prosecute Socialist leaders and suppress the Socialist press. After the Espionage Act was passed in June 1917,
national and local authorities demonstrated little discrimination. [...] This assortment of victims, from the prowar
Berger to the antiwar Engdahl, had one effect the government did not intend. It deprived the Left Wing of a
monopoly of antiwar martyrs. Among the approximately two thousand persons tried under the Espionage Act
were martyrs enough for all.”
124
A referência feita é à tese da heteronomia da militância estadunidense.
125
Ibid., p. 81.
61

O problema era mais claramente visível na proporção de crescimento das federações


de línguas estrangeiras no total de membros socialistas. De 35% em 1917, as
federações aumentaram para 53% em meados de 1919.126

Alteraram-se, portanto, as características do partido. Sobre elas cabem alguns


comentários. Uma taxonomia possível relativa à composição social do partido indica que
havia dois grupos: socialistas nativos e socialistas estrangeiros. Uma outra taxonomia indica a
capilaridade social do partido. Suas influências eram marcadamente anarco-sindicalistas e
sindicalistas, uma vez que provieram também do Socialist Labor Party. A estreita relação com
a IWW sugere que foi reiterado o esforço em construir uma ligação entre a esquerda política e
os mundos do trabalho. De seus traços formativos, o mais significativo para o futuro
movimento comunista nos Estados Unidos é a classificação quanto à naturalidade.
No Partido Socialista havia federações de línguas estrangeiras compostas
essencialmente por imigrantes que pouco dominavam o inglês e/ou que esperavam manter seu
idioma de origem enquanto veículo de socialização. A importância quantitativa desses grupos
na composição do Partido Socialista é expressiva. As mais significativas foram as federações
da Lituânia e Finlândia.
Em 1908, 71% do PS [Partido Socialista] era de membros estadunidenses nativos e
um adicional 17,5% era da Europa Ocidental e Setentrional; em abril de 1919, 53%
de 108.000 membros que pagavam filiação pertenciam a uma ou outra federação de
língua.127

A organização dessas federações culminou numa estrutura partidária que publicava


suas opiniões em diferentes idiomas. Mais fragmentador era o fato de as posições das
federações terem tido autonomia face ao partido em razão de seu caráter federal.
Há duas posições a respeito das lutas internas do Partido Socialista estadunidense.
Uma primeira, mais antiga, de Theodore Draper, supõe que as federações tiveram pouco
impacto na cisão do movimento em si. Elas teriam impactado na forma organizativa a
posteriori. Em trabalho mais recente, Zumoff afirma que após a revolução bolchevique as

126
Ibid., p. 137. “The clearest and most direct way to subscribe to the Russian Revolution in the United States,
was, first, to join the Socialist Party, and, second, to join the Left Wing within the Socialist Party. From 80,739
in 1917, the membership of the party increased to 104,822 in 1919, the second highest point in its history. But
this marked increase was accompanied by a curious and most revealing disproportion, which betrayed the fact
that something outside the Socialist Part and the United States was largely responsible for the influx.
The trouble was most clearly visible in the growing ratio of the foreign-language federations to the total Socialist
membership. From about 35 per cent in 1917, the federations rose to 53 per cent in the middle of 1919.”
127
ZUMOFF, Jacob Andrew. The Communist Party of the United States and the Communist International,
1919-1929. 2003. Tese (Doutorado em História)–University College, Londres, 2003. p. 168. “In 1908, 71 per
cent of SP members were native-born Americans and an additional 17.5 per cent were from Northern or Western
Europe; by April 1919, 53 per cent of the SP’s 108,000 dues-paying membership belonged to one or another
language federation.”
62

federações passaram a apoiar entusiasticamente o modelo soviético, não obstante as


federações nem sempre terem constituído os setores mais à esquerda do espectro partidário.128
A influência russa entre trabalhadores e esquerda estadunidense não era significativa
antes de 1917.129 Até então, a maior relevância europeia nas formas de organização política da
esquerda nos Estados Unidos tinha vínculo com as tradições sindicalistas e anarquistas.
Os americanos ainda acolhiam bem a Revolução Russa porque eles imaginavam que
ela reivindicava as ideias mais naturais a eles. A influência russa ainda estava longe.
Exceto por um punhado de viajantes que voltavam e uns poucos artigos e panfletos,
principalmente de Lênin e Trotski, a comunicação entre Rússia e Estados Unidos
permaneceu extremamente difícil e espasmódica. Os americanos ainda tinham que
pensar quase que inteiramente por eles mesmos.130

Na primeira metade de 1919, a direita do Partido Socialista manejou a expulsão ou


suspensão de quase 70 mil militantes. Essa operação se deu de maneira preventiva tendo em
vista o aumento de poder da esquerda e suas novas pretensões em “esmagar os centristas” e
expurgar a direita por “traição” ao socialismo em razão de ter apoiado o esforço de guerra.131
O expurgo preventivo operado pela direita socialista acelerou a ida dos militantes da
esquerda socialista ao comunismo. O crescimento da esquerda marcaria a necessidade de um
encontro nacional para ratificar o controle sobre a provável e futura máquina partidária. Havia
três grupos na esquerda socialista. Um primeiro, de origem anglo-americana, que terminaria
por ser majoritário, pretendia focar os esforços na tomada do controle partidário. O segundo
era denominado Michigan por ter lugar no estado homônimo, e o terceiro grupo ligado às
federações de línguas. Os dois últimos grupos construíram uma aliança para assumir o
controle e imediatamente transformar o partido em gestação em um Partido Comunista filiado
à recém-criada Internacional Comunista.
Em junho de 1919, no primeiro encontro nacional da esquerda socialista, a aliança
entre o grupo de Michigan e o das federações foi derrotada. Fracionada a esquerda socialista,
na Convenção Nacional do Partido Socialista no final de agosto de 1919, a direita partidária,
após uma série de medidas que incluiu ajuda policial para fazer valer as expulsões, conseguiu
o afastamento de uma significativa ala da esquerda do Partido Socialista que insistiu em
participar da convenção a despeito das suspensões e expulsões. Estes, sob liderança de John

128
ZUMOFF, 2003, p. 168. “The federations had not always been on the left-wing of the SP, although they were
often closer to orthodox Marxism due to their European origins.”
129
DRAPER, 1957, p. 65.
130
Ibid., p. 147. “The Americans still welcomed the Russian Revolution because they imagined that it vindicated
the ideas most native to them. The Russian influence was still far away. Except for a hadful of returning
travelers, and a few articles and pamphlets, mainly by Lenin and Trotsky, communications between Russia and
the United States remained extremely difficult and spasmodic. The Americans still had to think almost entirely
for themselves.”
131
Ibid., p. 154.
63

Reed e Ben Gitlow, tendo sido rechaçados da Convenção partidária, se uniram aos outros
delegados da esquerda socialista também expulsos dela e fundaram no dia 30 de agosto de
1919 o Communist Labor Party. A outra ala de esquerda, mais significativa
quantitativamente, havia convocado uma reunião para 1º de setembro, sob a liderança da
federação de línguas, de acordo com Draper, mais especificamente dos russos, a fim de
organizar uma convenção de fundação do Communist Party of America.132 Assim, no final de
agosto e início de setembro de 1919, dois partidos foram fundados: o Communist Labor Party
of America (CLPA) e Communist Party of America (CPA). Draper sugere que os dois
partidos foram fundados por uma discordância simples: “quem deveria controlar o novo
partido, os ‘americanos’ ou os ‘estrangeiros’?”133 Para Glenda Gilmore, o fato central residia
no atrelamento do CLPA à organização sindical IWW e até mesmo à AFL.134 Os comunistas
do CPA argumentavam que era necessário fundar sindicatos comunistas.
Esquerdistas americanos como Ruthenberg, Reed e Cannon apenas participaram da
mesma causa que as federações na ruptura de 1919 porque as federações estavam
entre os mais ardentes apoiadores dos bolcheviques. Assim as sementes do
bolchevismo americano foram plantadas por organizações que não eram nem
americanas na composição de seus membros nem bolcheviques em seus métodos
organizativos.135

O movimento comunista estadunidense se iniciaria com a marca da fragmentação.


Depois de alguns meses de fundação dos dois partidos, e tendo sido o ano de 1919 um dos
mais intensos em termos de greves e organização sindical, a polícia entrou em cena. A
primeira incursão em larga escala teve início no começo de novembro de 1919 em Nova
York, quando investigavam “atividades sediciosas”.
Mais de 700 policiais e agentes especiais realizaram varredura nos quartéis-generais
e reuniões, levaram toneladas de textos e literatura, e levaram conhecidos
comunistas tais como Benjamin Gitlow e James J. Larkin (do Communist Labor
Party) e Charles E. Ruthenberg, I. E. Ferguson e Harry M. Winitsky (do Communist
Party). [...] O ponto alto da incursão antiestrangeiros foi a deportação de 249 russos
a bordo do Buford, também conhecido como a “Arca Soviética”.136

132
DRAPER, 1957, p. 159-176.
133
DRAPER, ibid., p. 179. “who was to control the new party, the ‘Americans’ or the ‘foreigners’?”
134
GILMORE, Glenda. Defying Dixie: The radical roots of Civil Rights, 1919 – 1950. Nova York; Londres: W.
W. Norton & Company, 2008. p. 36.
135
ZUMOFF, 2003, p. 169. “American leftists such as Ruthenberg, Reed and Cannon only made common cause
with the federations in the 1919 split because the federations were amongst the most ardent supporters of the
Bolsheviks. Thus the seeds of American Bolshevism were sown by organisations that were neither American in
their membership composition nor Bolshevik in their organisational methods.”
136
DRAPER, ibid., p. 203. “Over 700 policemen and special agents swooped down on headquarters and
meetings, carried away tons of papers and literature, and hauled off such well-known Communists as Benjamin
Gitlow and James J. Larkin (of the Communist Labor Party) and Charles E. Ruthenberg, I. E. Ferguson, and
Harry M. Winitsky (of the Communist Party).
[...] The High point of the anti-alien drive was the deportation of 249 Russians aboard the Buford, otherwise
known as the ‘Soviet Ark’.”
64

Um sinal de alerta que o movimento comunista ao redor de todo o país enfrentou o


mesmo destino das organizações de Nova York veio de Chicago a 1º de janeiro de
1920. Das 4 da tarde a horas adiantadas da noite, esquadrões levaram prisioneiros, a
maior parte comunistas e membros do IWW – reais ou suspeitos. [...] Na noite de 2
de janeiro, os esquadrões de [Mitchell, advogado geral, democrata] Palmer
terminaram o trabalho de acordo com agenda em 33 cidades de costa a costa. Uma
segunda leva foi iniciada a 5 de janeiro. Mais 5.000 prisões foram feitas. Nos dois
anos seguintes, muitos comunistas foram indiciados como potenciais presos
políticos ou fugitivos da Justiça.137

A partir de meados de 1920, resultado das incursões policiais e do desmantelamento


das estruturas já precárias do CPA e do CLPA e da pressão da IC, teriam início discussões
acerca da unificação do movimento comunista estadunidense. Desde janeiro de 1920, quando
Zinoviev, presidente do CEIC, já havia ordenado a unificação das tendências comunistas
estadunidenses, a Comintern antecipava a tática daqueles anos: o trabalho deveria ocorrer na
clandestinidade.138 Operava-se então a formação de um aparato partidário que teria vida curta:
o United Communist Party (UCP). Resultado de uma tentativa de unificar as duas unidades a
partir da direção do Labor Party, o UCP terminou não sendo reconhecido pelo CPA.
A necessidade imediata de unificação é posteriormente ditada pelo fato de que em
um certo sentido os dois partidos representam diferentes aspectos do movimento
comunista da América e podem, portanto, complementar um ao outro. No
Communist Party of America existem principalmente os elementos estrangeiros
organizados nas assim chamadas federações nacionais. O Communist Labour Party
representa principalmente os elementos americanos ou que falam inglês. Se o
primeiro partido tem um treinamento teórico melhor e tem conexões mais próximas
com as lutas revolucionárias da classe trabalhadora na Rússia, é ao mesmo tempo
menos conectada com os movimentos e organizações de massa dos trabalhadores
americanos, que estão gradualmente achando seu caminho na luta de classe. Se o
segundo partido ainda não tem tal treinamento teórico, ele tem, por outro lado, essa
vantagem colossal, por meio da qual o partido comunista pode mais facilmente
exercer influência nas vastas massas de trabalhadores americanos nativos, que na
vindoura e decisiva luta de classe terá o papel mais importante. Um partido é melhor
em propaganda, o outro em agitação...
(4) Enquanto se promove por todos os meios a ruptura da American Federation of
Labour (AFL) e outros sindicatos de ofício similares, o partido precisa trabalhar para
estabelecer a mais próxima possível das relações com aquelas organizações
industriais da classe trabalhadora que representa a tendência para o sindicalismo
industrial (IWW, OBU 139 [One Big Union, federação canadense], IUW
[International Union of Woodworkers140] e sindicatos que se separaram da AFL)...

137
DRAPER, 1957, p. 204. “A warning signal that the entire Communist movement throughout the country
faced the same fate as the New York organizations came from Chicago on January 1, 1920. From four p.m. until
far into the night, raiding parties brought in prisioners, mostly Communists and I.W.W.’s – real or suspected.
[...] On the night of January 2, the [Mitchell, attorney General, Democrat] Palmer raids went off as scheduled in
thirty-three cities from coast to coast. A second round-up was staged on January 5. Over 5000 arrests were made.
For the next two years, so many Communists were indicted as a potential political prisioner or fugitive from the
law.”
138
RGASPI, F. 515, op. 1, d. 17, ll. list. 1-3.
139
Cf. BERCUSON, David Jay. Syndicalism Sidetracked: Canada's One Big Union. In: VAN DER LINDEN,
Marcel; THORPE, Wayne. Revolutionary Syndicalism: an International Perspective. Aldershot: Scolar Press,
1990. p. 221-236.
140
Cf. INTERNATIONAL UNION OF WOODWORKERS. In commemoration of the twenty-fifth
anniversary of the founding of the International Union of Woodworkers, 1904-1929. Amsterdam:
International Union of Woodworkers, 1929.
65

(7) O aumento da perseguição aos comunistas na América levanta a questão do


trabalho ilegal. O congresso da Internacional Comunista em março de 1919 se
expressou claramente sobre esse ponto. Trabalho ilegal é essencial porque em todo o
mundo as democracias burguesas estão de fato colocando trabalhadores comunistas
em estado de cerco. Dois ou três anos atrás a idéia de trabalhar ilegalmente num país
livre como a Inglaterra parecia ridícula aos nossos camaradas ingleses. Agora os
trabalhadores revolucionários ingleses aprenderam a fazer trabalho ilegal também...
Toda menor possibilidade de ação legal deve ser explorada. Ao mesmo tempo nós
precisamos aprender a soltar folhetos ilegais, a organizar grupos ilegais, se
necessário criar comitês de fábrica ilegais, ter uma direção central ilegal, etc.141

A negociação para unificação sucumbiu aos conflitos internos. Em agosto de 1920, a


IC estabeleceu o prazo de 10 de outubro para unificação de acordo com diretrizes do II
Congresso da IC. Em setembro de 1920, o prazo foi estendido a 1º de janeiro de 1921. Em
março de 1921, a IC ameaçou desligar da Comintern todos os comunistas, de ambos os
partidos, caso a unificação não ocorresse até a realização do III Congresso da IC, em maio de
1921. Esse problema da relação da IC com os comunistas estadunidenses resultou num
recrudescimento do controle da IC sobre as organizações comunistas nos Estados Unidos e
antecipou aspectos da bolchevização que só teriam lugar, em outros países, em meados da
década de 20.
Para o PC americano, a bolchevização teve três propósitos oficiais: educar os
membros ao marxismo-leninismo básico; reorganizar o partido tendo como base
núcleos de lojas; e encerrar a dependência do partido em relação às federações de
línguas estrangeiras. Dado o atraso político da classe trabalhadora americana, a

141
“The necessity of immediate unification is further dictated by the fact that to a certain extent the two parties
represent different aspects of the communist movement in America, and can, therefore, complement each other.
In the Communist Party of America there are to be found chiefly the foreign elements organized in the so-called
national federations. The Communist Labour Party of America represents primarily American or English-
speaking elements. If the first party has a better theoretic training and closer connexions with the traditions of the
revolutionary struggle of the Russian working class, it is at the same time less closely connected with the mass
movement and the mass organizations of the American workers, who are gradually finding their way to the class
struggle. If the second party has not yet had such a theoretic training it has, on the other hand, this colossal
advantage, that through it the communist party can more easily exert an influence on the broad masses of the
native American workers, who in the forthcoming decisive class struggle will have the most important part to
play. One party is better at propaganda, the other at agitation... (4) While promoting in every way the splitting of
the American Federation of Labour and other similar craft unions, the party must work to establish the closest
possible relations with those industrial organizations of the working class which represent the tendency towards
industrial unionism (IWW, OBU, IUW, and unions which split off from the AFL)... (7) The increasing
persecution of communists in America raises the question of illegal work. The congress of the Communist
International in March 1919 expressed itself quite clearly on this point. Illegal work is essential because
throughout the world the bourgeois democracies are in fact placing communist workers in a state of siege. Two
or three years ago the idea of working illegally in a free country like England seemed ridiculous to our English
comrades. Now the revolutionary English workers have learnt to do illegal work also... Every smallest
possibility of legal action must be exploited. At the same time we must learn to issue illegal leaflets, to organize
illegal groups, if necessary create illegal factory committees, have an illegal central direction, etc.”
“Extracts from a letter from the ECCI to the Central Committee of the Communist Party of America and the
Central Committee of the Communist Labour Party of America” In: DEGRAS, Jane (Ed.). The Communist
International, 1919-1922, Documents. Londres: Royal Institute of International Affairs, 1955a. v. 1. p. 102-3.
O termo “illegal” foi traduzido como “ilegal” apenas para apresentar uma uniformidade na tradução dos
documentos. No entanto, considerado o contexto, o termo em português que melhor se aproxima da ideia
externada nos documentos de comunistas é “clandestino”.
66

natureza federal do partido e o faccionalismo fratricida, a bolchevização pareceu


atraente a muitos comunistas.142

A inteligência estadunidense, a partir do então Bureau of Investigation, mantinha os


comunistas sob estreita vigilância. O relato de um dos agentes infiltrados no Communist
Labor Party (CLP) entre 30 de dezembro de 1919 e 3 de janeiro de 1921 é indicador da
intensidade do estrago perpetrado pelas ações policiais no decorrer de 1919. Ademais, o
documento também evidencia a existência de certo diálogo, àquela altura, entre comunistas do
CLP e negros.143
No final de 1921, entre 23 e 26 de dezembro, foi realizada uma convenção de criação
de um novo partido em Nova York, o Workers Party. Desde a ruptura dos socialistas, pela
primeira vez na esquerda havia uma organização centralizando as atividades de todos
comunistas nos Estados Unidos. Braço legal das organizações que atuavam na
clandestinidade, o Workers Party atendeu aos reclames da Comintern e às diretivas que
estabeleciam a construção de Frente Única como fórmula tática para os comunistas de todo o
mundo.

3.2 Os socialistas e os negros nos Estados Unidos

O período de existência do Partido Socialista foi marcado por elaborações que


submeteram a reflexão sobre o racismo e segregação racial às estruturas de classe. Trata-se do
domínio de uma posição que se transformou em ortodoxa nos vários espectros da esquerda
marxista, principalmente em suas vertentes hegemônicas, como foi o caso da direita do PS.
No caso do Partido Socialista estadunidense, a primeira
[...] revisão pública da abordagem do Partido ao racismo e organização entre afro-
americanos veio de socialistas judeus. Escrevendo como I. M. Robbins, “Os
aspectos econômicos do problema do negro”, uma série de artigos de I. M. Rubinow
da International Socialist Review, compreendidos entre fevereiro de 1908 e junho de
1910. Vendo o racismo enraizado no capitalismo, ele ainda sentia que era mais que
um problema meramente econômico. A relação entre racismo e opressão de classe
“não era um simples problema mecânico, mas orgânico e extremamente complexo”.
Portanto, ele advogava abordar o racismo nos seus próprios termos, os quais

142
“For the American CP, Bolshevisation had three official purposes: educate the membership in basic Marxism-
Leninism; reorganise the Party on the basis of shop nuclei; and end the Party’s reliance on foreign-language
federations. Given the political backwardness of the American working class, the federal nature of the Party, and
internecine factionalism, Bolshevisation seemed attractive to many Communists.” ZUMOFF, 2003, p. 159.
143
“Military Intelligence Department Undercover Surveillance Report of the Communist Labor Party [events of
Dec. 30, 1919 to Jan. 3, 1920]”. Document in DoJ/BoI Investigative Files, NARA M-1085, reel 931, file
313846.
67

empurrariam os socialistas a ultrapassar sua abordagem reducionista da raça e sua


atenção insuficiente aos aspectos social, político e educacional da opressão racial.144

Rubinow entendia que era necessário lidar especificamente com os trabalhadores


negros uma vez que o socialismo não seria possível sob vigência das leis Jim Crow. Embora
Rubinow não tenha tido influências nas grandes decisões partidárias, a partir de suas
elaborações o PS passou a empreender atividades na comunidade negra visando ao Harlem.145
Um outro exemplo de reflexão acerca da questão negra associado ao PS é Hubert
Henry Harrison, que escreveu, em 1912, uma série de artigos no New York Call e
International Socialist Review, ambos veículos de comunicação do Partido Socialista.
Harrison tinha sido apontado pela direção do partido para organizar uma seção partidária no
Harlem.146 Suas predileções o levaram à esquerda do partido, a apoiar a IWW e se posicionar
contra a Grande Guerra, tornando-o um alvo da direita do PS.
Infelizmente, a impressão de Harrison no Partido Socialista foi menos que favorável,
já que seus escritos não produziram nenhuma mudança notável no programa do
partido. Mais importante, seu apoio contínuo e sua relação com a IWW criaram
problemas para a liderança da direita do PS que estava ainda alinhada com a AFL.
Depois essa liderança expulsou a IWW do Partido em 1913; eles puniram, sem
consideração, Harrison por protestar contra expulsões e suspenderam-no por três
meses em 1914. Harrison respondeu deixando o Partido, convencido, como outros
tantos socialistas negros antes dele, que o Partido não faria acontecer nem o
socialismo nem contribuiria pela liberação negra. Ainda, seus escritos e atividades
organizacionais tiveram um efeito indelével em jovens radicais negros.147

Esses jovens radicais negros acrescentariam versões internacionalistas na abordagem,


cada um dirigindo variantes nem sempre coincidentes de pan-africanismo. Ligados à esquerda
socialista, alguns exemplos desses são sujeitos como A. Philip Randolph, Richard Moore e

144
MAKALANI, Minkah. For the liberation of Black people everywhere: the African Blood Brotherhood,
black radicalism and pan-African liberation in the New Negro movement, 1917-1936. 2004. Tese (Doutorado
em História)–Universidade Illinnois, Urbana-Champaign, 2004. p. 32-3. “[...] public review of the Party’s
approach to racism and organizing among African Americans came form (sic) a Jewish Socialists (sic). Writing
as I. M. Robbins, I. M. Rubinow’s ‘The economic aspects of the Negro problem’, a series of International
Socialist Review articles that spanned from February 1908 to June 1910. Seeing racism as rooted in captalism, he
still felt it was more than merely an economic problem. The relationship between racism and class oppression
was ‘not a simple mechanical one, but organic and extremely complex’. Accordingly, he advocated approaching
racism on its own terms, which would push Socialists past their reductionist approach to race and their
insufficient attention to the social, political, and educational aspects of racial oppression.”
145
MAKALANI, 2004, p. 33.
146
Ibid., p. 33.
147
Ibid., p. 38. “Unfortunately, Harrison’s impression on the Socialist Party was less than favorable, as his
writings produced no noticeable changes in its program. More important, his continued support for and
relationship with the IWW created problems with the SP’s right wing leadership that was still aligned with the
AFL. After this leadership expelled the IWW from the Party in 1913, they charged Harrison with contempt for
protesting the expulsions and suspended him for three months in 1914. Harrison responded by leaving the Party,
convinced, like several black Socialists before him, that it would neither bring about socialism nor contribute to
black liberation. Still, his writings and organizational activities had an indelible affect on young black radicals.”
68

Cyril Briggs;148 os dois últimos posteriormente tomariam parte numa organização chamada
Africa Blood Brotherhood.
As organizações negras que enfrentaram a segregação não se resumiram às de
esquerda. Aquelas mais influentes e mais representativas quantitativamente não estavam
dispostas, necessariamente, no campo político da esquerda. A National Association for
Advancement of Coloured People (NAACP) e a Universal Negro Improvement Association
(Unia) se caracterizaram por assumir posições no campo do debate étnico-racial oscilando
entre esquerda e direita.149
Ambas, por meios distintos, tinham inserção entre os grupos mais organizados dos
negros norte-americanos. Em maio de 1921, Du Bois escreveu um editorial no jornal The
Crisis, órgão do NAACP conduzido por ele mesmo. Ele demonstrava desconfiança com as
organizações da classe operária branca norte-americana e, de algum modo, mostrava-se
relutante quanto às possibilidades de uma união entre negros e brancos.150 Claude McKay, por
seu turno, então militante da African Blood Brotherhood (ABB)151 e em pleno vigor de sua
atividade comunista, responderia a Du Bois nos termos que marcariam o debate entre
movimentos antirracistas nos EUA. Se, de um lado, McKay defendia a necessidade de os
negros se espelharem nas conquistas da Revolução Russa ao retratar a inserção social judaica
na Rússia soviética, algo que não acontecia no período czarista; do outro, a resposta de Du
Bois foi peremptória: “o trabalho imediato do negro americano se encontra na América e não
na Rússia”. 152 O debate orbitava em torno da Revolução Russa e como os negros,
organizados, se colocariam face à classe operária. Ou seja, em que medida seria a pauta negra
do antirracismo uma pauta dos trabalhadores em sua luta contra a exploração econômica?
Consolidando a centralidade da vinculação entre as lutas raciais e de classe, McKay
reafirmaria as diversas maneiras a partir das quais o racismo se manifestava em mecanismos

148
Todos eles conviveram com Harrison.
149
A NAACP teve como um de seus fundadores William Edward Burghardt Du Bois em 1909. Ele foi um dos
mais importantes intelectuais norte-americanos do século XX, com uma obra marcante e uma trajetória longa de
luta antirracista. Descendente de africanos e holandeses, nasceu na Nova Inglaterra e estudou na Universidade de
Fisk, no Tennessee, em Harvard e na Universidade de Berlim. Marcus Mosiah Garvey fundou a Unia na Jamaica
em 1914. As duas organizações citadas aparecerão no presente texto apenas como peças narrativas coadjuvantes,
embora o leitor não deva depreender disso qualquer intenção de negligenciá-las.
150
DU BOIS, W. E. B. Opinion. The Crisis, Nova York, p. 5-9, maio 1921.
151
O único estudo específico sobre a African Blood Brotherhood (ABB) é de Minkah Makalani. O radicalismo
negro teve na ABB sua primeira expressão antissistêmica. Os limites da ABB não se restringiram ao Harlem;
seus ideólogos foram, sobretudo, afro-caribenhos. Assim, além de uma parcela significativa do comunismo
norte-americano ter nascido em permanente diálogo com o radicalismo negro, este, por sua vez, é tributário de
uma série de experiências diaspóricas entre o Caribe, antigo Sul escravista e os ghettos do Norte.
152
FONER, Philip S.; ALLEN, James S. (Org.). American Communism and Black Americans: a documentary
history (1919-1929). Philadelphia: Temple University Press, 1987. p. 14.
69

institucionais. O poeta da ABB desafiaria Du Bois a partir do tensionamento do seguinte


aspecto do racismo institucionalizado norte-americano:
E todas as instituições enraizadas da América Branca – cortes, igrejas, escolas, as
forças de repressão e a imprensa – coadunam com essas iniquidades perpetradas
contra os homens negros; iniquidades que foram ignoradas indiferentemente como
um resultado inevitável do sistema social. Ainda, quando quer que interesse aos
negócios controlar essas instituições para parar a perseguição contras os negros, eles
fazem isso com impunidade. Quando brancos organizados pararam seus trabalhos,
negros, que foram desencorajados por brancos a se organizar foram procurados para
tomar seus lugares. E esses negros fura-greves trabalharam sob a proteção de
militares e da polícia. Mas como cidadãos e trabalhadores comuns, os negros não
são protegidos pelos militares e pela polícia da multidão.153

Para essa questão específica, Du Bois destacou os processos discriminatórios no


movimento sindical norte-americano, aspecto debatido inclusive contemporaneamente na
ABB e no PC dos Estados Unidos. Assim, Du Bois reafirmaria que essas mesmas instituições
estavam presentes naquela esquerda defendida por McKay.
Du Bois, ao contrário de uma parcela da NAACP, travaria constantes debates com os
comunistas. A intelectualidade negra norte-americana havia construído, pelas mãos de Du
Bois e dos radicais negros, longo e franco antagonismo exemplificado aqui pelas posições de
McKay. Ao menos dois elementos gerais fizeram parte do repertório argumentativo: 1)
ruptura inspirada nos moldes soviéticos, e 2) reforma profunda e cotidiana rumo à liberação
do povo negro. Em ambos os casos o internacionalismo esteve presente. Ainda que se
considere os diferentes pesos dados às clivagens de classe e à centralidade da questão negra, é
o internacionalismo que se constitui como liame. Tanto num quanto noutro, os negros são
protagonistas, aparecendo, em ambos, mesmo que de maneira distinta, como um elemento
central da luta antirracista. Tanto Du Bois quanto a III Internacional colocavam-se como
tarefa libertar negros, amarelos e brancos. Acontecia, porém, que, na opinião de Du Bois,
“nós temos que [...] tornar nossa a causa dos trabalhadores brancos, apenas tendo o cuidado
de que ao fazer isso não permitamos que comprometam nossa causa”.154
A ABB teve no jornal The Crusader seu principal veículo de comunicação, editado
por Cyril Briggs. Em setembro de 1918 foi fundado por Briggs, Richard Moore e Wilfred A.
Domingo antes mesmo da criação da ABB, no inverno de 1918-1919. A história do periódico
é um sintoma da aproximação de certa militância negra à III Internacional. A partir dele é
possível discernir caminhos de aproximação entre a ABB e a Comintern. Ao estudar
organizações transnacionais e laços de solidariedade entre elas, Margaret Stevens sugere que
esforços de contrainteligência por parte dos Estados Unidos foram empreendidos para evitar

153
FONER; ALLEN, 1987, p. 13.
154
Ibid., p. 14.
70

aproximação entre a ABB e afro-caribenhos no Caribe.155 Ela utiliza as matérias veiculadas e,


mais especificamente, as cartas recebidas por The Crusader provenientes de afro-caribenhos
residentes do próprio Caribe. Stevens posiciona dezembro de 1921 como o momento em que
finalmente a ABB sinalizou explicitamente, por meio do Crusader, sua disposição em aderir
ao bolchevismo justamente em razão da política anticolonial do governo soviético.156
Vencida a hesitação cultivada ao longo da década de 1910 em relação ao Partido
Socialista por causa do silêncio dominante das esquerdas a respeito da questão negra, os
militantes da ABB entraram na Comintern a partir da orientação leniniana de apoiar todo e
qualquer movimento revolucionário e nacional, como era o caso da Irlanda e dos negros
americanos. Makalani argumenta que o fato de Lênin ter indicado esse rumo durante o II
Congresso da Internacional Comunista, em 1920, foi decisivo.157 The Crusader se afirmaria
publicamente como órgão da ABB apenas em junho de 1921, quando já contava com suporte
financeiro da Comintern.158
Richard Benjamin Moore, Claude McKay e Cyril Briggs estavam entre os afro-
-caribenhos que no início dos anos de 1920 encontravam-se envolvidos em atividades
comunistas. Anos antes estavam ajudando na construção da ABB. Moore, McKay e Briggs
constituem evidência que o comunismo afro-americano foi construído sob as bases de um
permanente diálogo das experiências afro-caribenhas e afro-americanas. A maior parte da
historiografia estadunidense sustenta que o primeiro negro a fazer parte de qualquer partido
comunista daquele país foi o caribenho Otto Huiswoud. Tanto este quanto Harry Haywood e
Lovett Fort-Whiteman, os dois últimos estadunidenses e partícipes da ABB, rapidamente
seriam importantes vozes na Internacional Comunista. Assim, uma certa experiência se
forjava entre o Caribe e a costa leste dos Estados Unidos, do sul ao norte.
Claude McKay era jamaicano, filho de agricultores, prováveis descendentes de
escravos, e chegou aos Estados Unidos em 1912, aos 23 anos. Poeta, trabalhou como garçom
nos bares de Nova York em 1914. Possivelmente, teve contato com a literatura marxista
apenas quando foi para Inglaterra, entre 1919 e 1921, então militante da ABB desde 1918.
Antes de viajar, porém, havia marcado a comunidade negra com o famoso poema “If we must
die”, publicado no jornal Liberator, em 1919, quando ocorreram diversos conflitos raciais em

155
STEVENS, Margaret. The Red International and the Black Caribbean: Transnational Radical
Organizations in New York City, Mexico and the West Indies, 1919-1939. 2004. Tese (Doutorado)–
Departamento de American Civilization, Universidade Brown, Providence, 2004. p. 59.
156
STEVENS, 2004, p. 64.
157
MAKALANI, 2004, p. 132-3.
158
Ibid., p. 145-6.
71

cidades importantes dos Estados Unidos, como Memphis, Chicago, Detroit, Nova York e
Nashville.
Além de McKay, Cyril Briggs, o mais importante dirigente da ABB, era caribenho.
Nascera na Ilha Nevis, parte das Antilhas Britânicas, em 1888. Acompanhando o fluxo
migratório de caribenhos que rumavam a Nova York logo no início do século XX, chegaria à
cidade em 1905. Em 1912 escreveria no New York Amsterdam News e “já naqueles anos
assinalava o núcleo de suas emergentes ideias radicais: uma ligação inseparável entre
‘orgulho de raça’, ‘direitos de masculinidade’, solidariedade racial e partidarismo
proletário”.159
Desde os primeiros momentos em que a discussão sobre o negro teve lugar, ainda no
antigo Partido Socialista, foi no bairro do Harlem, em Nova York, que as ações da esquerda
mais se imbricaram com o radicalismo negro. Os habitantes do Harlem se viram, desde o
início da década de 1920, diante dos comunistas, imersos em outro conjunto de questões:
revolução/reforma, integração/nacionalismo e ações legais/protestos/clandestinidade. Por
outro lado, os partidos comunistas também se viam forçados a uma nova noção de alteridade,
já que se tornaram palco de uma abrangente formação multiétnica. A partir de então e ao
longo dessa década, o Partido tornaria, vagarosamente, a agenda negra sua própria. Tinha
como desafio inserir essa nova pauta numa perspectiva abrangente de luta contra o capital
com base em amplas frentes, como a organização da cultura, ocupação de espaços em
sindicatos e em disputas por ganhos setoriais diante do Estado e do capital. A própria
transformação para o comunismo por parte de socialistas estadunidenses é tributária da
atividade de afro-caribenhos e seu radicalismo político.
De todos os cinco primeiros comunistas do Harlem, todos com exceção de
Huiswoud foram recrutados da African Blood Brotherhood, uma “ordem secreta
revolucionária” fundada em 1919 que enfatizava a autodefesa, orgulho de raça e a
autodeterminação dos negros em nações onde eles fossem maioria. Foi o anti-
colonialismo da Revolução Bolchevique que atraiu sua atenção, e não os sucessos
organizativos dos comunistas americanos. 160

Paralelamente ao radicalismo, cuja expressão principal foi a ABB, outras formas de


filiação ao comunismo entre negros tinham lugar, principalmente no Sul. Por exemplo, a
trajetória de Benjamin Jefferson Davis – o “Ben Davis” – teve outros impulsos. Nascido na
Geórgia no início do século XX e migrado para o norte, mais especificamente Nova York,
Davis, na opinião de Gerald Horne, não se tratava de uma exceção. Para este,
o contexto sugeria por que a evolução de Davis não era uma aberração. Paul
Robeson, William Patterson, W. E. B. Du Bois, Shirley Graham – os mais

159
SOLOMON, 1998, p. 5.
160
NAISON, 2005, p. 5.
72

proeminentes intelectuais negros – estavam orientados para esquerda. Fazer


revolucionários afro-americanos não era tão difícil nos Estados Unidos da era Jim
Crow.161

Ben Davis graduou-se em Harvard em 1930. Partiu para as hostes comunistas depois
de defender Angelo Herndon, 162 que havia sido acusado de conspirar no sindicato dos
trabalhadores rurais. O caso de Ben Davis, embora extemporâneo, ajuda a compor as
possibilidades que a militância negra tinha face às leis de segregação. O caso de Davis é
especialmente relevante porque denota a capilaridade social que o movimento comunista
adquiriu entre negros estadunidenses ao fim da década de 1920 e inícios de 1930 uma vez que
se tornara capaz de agregar até mesmo substratos de certa elite negra.
Se Horne está certo quanto à existência de um ambiente propício para a forja de
militantes negros orientados para a esquerda, têm-se um quadro dos mais complexos no que
diz respeito à formação de tradições políticas desse campo. Nesse caso, o já citado debate
entre Claude McKay e W. E. B. Du Bois sobre os rumos da luta antirracista nos EUA é
indicativo dos termos e dos contornos objetivos da orientação de esquerda desses intelectuais.
O próprio Du Bois, em 1926, após dois meses em Moscou e ponderando sobre se o que vira
era de fato realidade, escrevera: “se o que vi com meus olhos e ouvi com meus ouvidos na
Rússia é bolchevismo, eu sou um bolchevique”.163
Gerald Horne analisou as idas e vindas do processo de radicalização na trajetória de
Du Bois. Primeiro, fez parte do Partido Socialista na década de 1910 saindo em pouco tempo
para apoiar Woodrow Wilson. A NAACP, fundada em 1910, terminou por, ao combater a
“infiltração” comunista nas comunidades negras, se alinhar às políticas do pós-1947, do
período de Guerra Fria. A avaliação de Du Bois era que a NAACP havia quebrado as alianças
entre brancos e negros no plano interno:
A pressão para apoiar o Plano Marshall, iniciada em 1947, foi importante para
explicar a adesão da liderança da NAACP aos ditames da Guerra Fria. [...] Estava
fortemente expresso que aqueles euro-americanos que mais se opunham ao regime
Jim Crow e ao racismo eram comunistas e deveriam ser cuidadosamente vigiados no
grupo. 164

O ambiente intelectual construído a partir dessas variadas experiências possibilitou o


surgimento de uma nova frente de batalha antirracista pertencente à esfera da cultura. Assim,

161
HORNE, Gerald. Black liberation/red scare: Ben Davis and the Communist Party. Londres; Mississauga:
Associated University Press, 1994. p. 27.
162
Herndon tinha 19 anos e era filiado ao CPUSA quando foi preso, em 1932, na cidade de Atlanta, sob a
acusação de “tentar incitar uma insurreição”.
163
DU BOIS apud GILMORE, 2008, p. 49.
164
HORNE, Gerald. Black and red: W.E.B. Du Bois and the Afro-American response to the Cold War 1944-
1963. Albany: State University of New York Press, 1986. p. 64.
73

os formadores de opinião, filósofos, artistas e literatos perseguiram novas formas, estéticas e


temáticas de abordar a questão dando origem à Renascença do Harlem. Os signos próprios
forjados pela experiência negra, no Harlem sobretudo, tornaram-se espaço propício à
atividade comunista.

3.3 O Harlem e as formulações antirracistas

De 1919, quando uma onda de linchamentos acirrou a luta antirracista nos EUA, aos
anos de 1930, muito havia mudado nas estratégias políticas dos negros norte-americanos. Em
janeiro de 1934, seis mil pessoas se reuniram em torno do Coliseum Hall, em Chicago, para
homenagear Lênin. Divididos em duas partes, eram imigrantes europeus de primeira e
segunda geração e negros diaspóricos. Em Nova York, Howard “Stretch” Johnson, líder
comunista no Harlem, disse sobre a participação negra no PC: “Minha memória e
conhecimento dá conta de que 75% das figuras da cultura negra tinham filiação ou
mantiveram contato significativo com o Partido”.165
Os dados, ajustados para mais ou para menos – este último parece ser o caso –
sugerem uma relação que transcende objetivos geopolíticos que a Internacional Comunista
terminou por consolidar em sua cruzada pelo socialismo num só país. As agendas mais
agressivas contra o racismo surgiram mais do pensamento radical de esquerda do que
geralmente tem-se lhe atribuído.
Uma das principais consequências desse pensamento radical negro foi a Renascença
do Harlem. O termo não é exatamente contemporâneo ao movimento. Alain Locke chegou
próximo ao sentido do termo, em 1925, quando organizou a coletânea “The New Negro: an
interpretation” onde constava um balanço crítico da produção cultural afro-americana desde o
fim da Primeira Guerra Mundial. Essa obra situa-se como basilar para qualquer tentativa de
fundamentação da cronologia do movimento. Em 1925, Locke dizia que o movimento era a
“nossa Declaração de Independência espiritual”.
O idealismo filosófico embutido na assertiva denuncia parte de sua formação como
filósofo, cujo aprendizado em Oxford, no College de France, e na Universidade de Berlim lhe
permitiu contato com a filosofia idealista alemã e europeia. Decorre desse envolvimento com

165
NAISON, 2005, p. 193.
74

a filosofia a escolha de Locke e W. E. B. Du Bois, dois dos mais proeminentes intelectuais


negros do Estados Unidos, em pautar as artes como esfera fundamental da luta contra o
racismo. O procedimento de Locke baseava-se em dois momentos. Para ele, a “arte precisa
descobrir e revelar a Beleza que o preconceito e a caricatura espalharam. E toda arte vital
descobre beleza e abre nossos olhos para aquilo que antes não conseguíamos ver”.166 “Depois
da Beleza, deixe a verdade adentrar o cenário da Renascença.”167
A retórica de Locke teria vasto solo fértil, haja vista uma segunda “Grande Migração”
realizada pelos afro-americanos após o fim da Primeira Guerra Mundial. Cidades como
Chicago e Detroit, em rápido processo de industrialização, se proletarizariam ao longo da
década de 1920, o que implicou num reordenamento urbano sem precedentes. Os números da
Grande Migração, que redefiniu o padrão demográfico e os parâmetros para as reformas
urbanas nos Estados Unidos, são imprecisos. As estimativas dão conta de algo em torno de 2
milhões de migrantes fazendo a travessia rumo ao norte.168 Essa mudança abrupta associada à
vigência das leis Jim Crow é tida como parte explicativa dos diversos atos de protestos que,
ao longo do ano de 1919, culminaram em batalhas campais, precedidas por linchamentos, em
Chicago, Detroit, Memphis e Nova York. Mesmo que outra etapa da exploração do trabalho
tenha se efetivado no período, com o crescimento do parque industrial norte-americano, a
questão racial fazia florescer ambivalências na organização da classe operária.169 O tema da
Grande Migração e suas consequências inspiraram Locke, já que ele
[...] adicionou sua assinatura distintiva ao retrato do [Movimento] New Negro ao
relacionar a geração mais jovem de escritores negros à Grande Migração de centenas
de milhares de negros saindo do Sul e chegando ao Norte durante a Primeira Guerra
Mundial. Para Locke, existiam dois Novos Negros – as massas negras pobres
mudando a geografia da cidadania americana, e os jovens escritores negros
refletindo aquela energia na literatura. O que forjou uma união entre os escritores
letrados e os migrantes iletrados foi seu aprisionamento num caldeirão de
segregação como o Harlem, onde a ideia de que todos eles estavam ali por um
mesmo motivo – raça – diminuiu o inerente conflito de classe dentro da comunidade
negra [...] Ao estabelecer relação entre os escritores negros de classe média e a
classe trabalhadora negra, Locke definiu o New Negro como uma metáfora que
estruturou uma série de oposições e permitiu uma mistura, senão uma síntese, de
perspectivas divergentes assim como de personalidades. “Num sentido real são as
pessoas comuns que estão liderando, e os líderes que estão seguindo. Uma
psicologia transformada e transformadora permeia as massas.” O artista negro era

166
LOCKE apud STEWART, Jeffrey. The Critical Temper of Alain Locke. Nova York: Garland Publishing,
1984. p. 258.
167
LOCKE apud STEWART, 1954, p. 28.
168
Apenas entre 1916 e 1919, 500 mil negros fizeram o percurso rumo ao Norte, e um milhão seguiu o mesmo
rumo na década seguinte. TROTTER, Joe William (Org.) The Great migration in historical perspective: new
dimensions of race, class & gender. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1991. p. 85;
HARRISON, Alferdteen (Org.) Black Exodus: The Great Migration from the American South. Jackson:
University Press of Mississippi, 1991; HIRSCH, Arnold R. Making the Second Ghetto: Race and Housing in
Chicago, 1940-1960. Nova York: Cambridge University Press, 1983.
169
HIRSCH, op. cit., 1983.
75

importante, portanto, não como um membro isolado da “Geração Perdida” de


Gertrude Stein e F. Scott Fitzgerald, mas como um tradutor cultural, que absorveu a
realidade social da vida negra na América segregada e transformou-a numa arte
americana excepcional. Nos anos de inflexão da elite cultural-ideológica americana
e da sociologia assimilacionista como locomotiva, Locke anunciava que a raça era o
espaço criativo na cultura americana.170

A perspectiva “psicológica” apontada por Magee viria a ser palpável no tempo das
frentes populares nos anos de 1930. Até lá não se deve exagerar seu papel. A novidade estava
na abertura de uma nova trincheira na luta contra o racismo e segregação racial. Locke e Du
Bois aceitavam, tal qual Booker T. Washington, o mundo das ideias, a partir de parâmetros
brancos, como espaço de disputa ideológica.
O exercício de uma arte reformada sob medida para os embates sociais não prescindia,
para os comunistas, de uma organização efetiva. Por isso, é preciso compreender a
organização que permitiu aos comunistas participar e influenciar esse conjunto de fenômenos
antirrascistas.

3.4 A “missão Martens”, a Internacional Comunista e o “cordão de isolamento”

O espírito anticolonialista externado pelos bolcheviques, associado às tentativas de


aplacar todo o mundo com a influência do espírito revolucionário, chegaria a Nova York
antes mesmo de a Internacional Comunista ser fundada. Afinal, era a União Soviética que se
encontrava isolada do mundo. A chamada “missão Martens” teve como propósito abrir um
canal comercial com os Estados Unidos. Ludwig Martens171 estabeleceu uma missão em
Nova York no início de 1919. O propósito aparente era, de fato, abrir uma possibilidade de
comércio com esse país da América. A “missão” era o ponto de chegada de um processo que
começara com a criação da The Russia and Siberia Trade and Finance Corporation, em 1918,
cujo papel central era revitalizar a agricultura e prover os próprios russos e outros membros
da URSS com víveres básicos. A empresa também tinha como propósitos um complexo
conglomerado de objetivos:
[...] “adquirir e trabalhar fontes de produtos brutos e transportar e entregar os ditos
materiais onde eles podem ser empregados de maneira útil”, “desenvolver indústrias
de carvão, ferro, aço, petróleo, química, algodão e outras indústrias”, “inagurar

170
MAGEE, Jeffrey. Cambridge History of American Music. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
p. 15-16.
171
Ludwig Christian Alexander Karl Martens. Também aparece como Ludwig Karlovich Martens.
76

serviços avançados de comunicação e transporte incluindo linhas férreas, rios,


portos, estradas, correios e telégrafos” e, por fim, “prover assistência técnica,
financeira e material a vitais e urgentes empreendimentos municipal, comercial e
industrial”. Os autores do rascunho da concessão e estabelecimento da empresa
afirmavam que esta seria “incorporada sob leis russas”, e que tão logo o governo
russo estivesse formado ele seria completamente reconhecido pelos vários governos,
e a empresa se encaminharia para se tornar formalmente incorporada na Rússia e na
Sibéria sob as provisões e requerimentos das leis do dito governo russo.172

De acordo com o planejamento soviético, a empresa viria a funcionar basicamente


como uma indutora de investimentos estrangeiros no país. Em função dela, os bolcheviques se
comprometeriam a regulamentar o mercado de maneira a proteger os investimentos
estrangeiros das flutuações que o processo revolucionário criara. No plano prático, a empresa
parece ter fracassado em seus propósitos, e a miséria que assolara a Rússia durante a guerra
civil continuou, sendo minorada pelas ajudas do Auxílio Internacional dos Trabalhadores173 a
partir de 1921.
Os planos iniciais da missão empreendida por Ludwig Martens faziam parte da
estratégia soviética de romper o “cordão de isolamento” que sufocava o abastecimento de
comida e dificultava o aumento da capacidade produtiva do país. Nesse sentido, até mesmo a
própria investigação estadunidense corrobora com a tese:
Em anúncios públicos o Sr. Martens afirmou que o objetivo em abrir seu bureau era
para restabelecer relações comerciais entre os Estados Unidos e União Soviética.
Isso foi sem dúvida uma parte muito importante do programa que ele deveria
empreender, sendo obviamente necessário para o regime da Rússia Soviética para
obter muitas matérias-primas e produtos manufaturados disponíveis apenas neste
país, com o objetivo de suprir as necessidades do povo russo, para restabelecer
instalações de transporte naquele país e para reconstruir a indústria.
Essas coisas, sendo essenciais para a consolidação do regime soviético e para a
perpetuação daquela forma de governo, era óbvio que a primeira obrigação do Sr.
Martens era tentar restabelecer tais relações comerciais.174

172
“to acquire and work sources of raw materials and to transport and deliver said materials where they can be
most usefully employed,” to “develop the coal, iron, steel, oil, chemical, cotton, and other industries,” to
“inaugurate improved services of communication and transport including railway, rivers, harbors, roads, posts
and telegraphs,” and ultimately to “provide technical, financial and material assistance to vital and urgent
municipal, commercial and industrial undertaking.” The authors of the draft of deed and settlement of the
corporation stated that it was going to be “incorporated under Russian law,” and that as soon as a Russian
government is formed it was going to be fully recognized by the several governments, and the corporation will
take steps to become formally incorporated in Russia and Siberia under the provisions and requirements of the
law of said Russian government. GINZBURG, Lyubov. Confronting the Cold War legacy: the forgotten
history of the American colony in St. Petersburg. 2010. Tese (Doutorado em American Studies)–University of
Kansas, Lawrence, 2010. p. 194.
173
BRASKÉN, Kasper. The revival of international solidarity: the Internationale Arbeiterhilfe, Willi
Münzenberg and the Comintern in Weimar Germany, 1921-1933. 2014. Tese (Doutorado em História)–Abo
Akademi, Turku, 2014.
174
“In public announcements Mr. Martens stated that the object of opening his Bureau was to re-establish trade
relations between the United States and Soviet Russia. This was undoubtedly a very important part of the
program he was to carry out, it being obviously necessary for the Russian Soviet regime to obtain many raw
materials and manufactured products available only in this country, in order to supply the wants of the Russian
people, to reestablish transportation facilities in that country, and to reconstruct industry. These things being
essential to the consolidation of the Soviet regime and the perpetuation of that form of government, it was
77

Martens era alemão e representava o governo soviético nos Estados Unidos. O


problema diplomático no qual ele e sua missão se colocaram era óbvio: não havia relações
diplomáticas entre Estados Unidos e União Soviética. Havia um boicote comercial das
potências ocidentais que vigeu formalmente até 1921, quando o Acordo Comercial Anglo-
Soviético abriu possibilidades para o reconhecimento futuro da União Soviética pela principal
potência europeia, a Inglaterra, e em 1922, quando o Tratado de Rapallo regulou as relações
entre União Soviética e Alemanha.175
Não se sabe exatamente os vínculos organizativos e práticos da “missão Martens” com
as organizações sindicais e político-partidárias de esquerda. É possível cotejar
cronologicamente e sugerir alguns roteiros verossímeis.
Os indicadores ligados às fontes diplomática e de inteligência sugerem que havia uma
série de possibilidades entre o boicote econômico imposto pelo presidente Woodrow Wilson e
a postura comercialmente agressiva de alguns grupos estadunidenses que viam na situação
soviética uma oportunidade para bons negócios.176 A mais significativa foi a iniciativa de
Raymond Robins.177 Ele foi à União Soviética devido a uma negociação iniciada ainda em
novembro de 1917, que envolveu primeiramente possível cooperação militar entre Estados
Unidos e União Soviética e, já em 1918, questões econômicas e humanitárias com a ida da
Cruz Vermelha ao país.
Eles chegaram a um acordo em um número de assuntos, os quais foram aceitos por
ambos os governos, americano e soviético. Robins concluiu os acordos de compra
por parte do Departamento de Guerra dos Estados Unidos para os estratégicos
suprimentos remanescentes de platina, assim negando os suprimentos para o esforço
de guerra alemão. Lênin concordou, depois de numerosas importunações de Robins,
com uma isenção dos decretos de nacionalização dos bolcheviques para um número
de empresas dos Estados Unidos, incluindo Singer, International Harvester e
Westinghouse. As operações críticas da Cruz Vermelha americana na Rússia foram
estendidas e expandidas pelo acordo Robins-Lênin, incluindo a distribuição de leite
e excedente de comida, a provisão de escassos utensílios e equipamentos agrícolas, e
a contínua importação de suprimentos e dispositivos médicos.178

obvious that Mr. Martens' first duty was to attempt to re-establish such trade relations.” ACTIVITIES of Russian
Soviet Regime. In: STEVENSON, Archibald E. et al (Ed.). Revolutionary Radicalism: Its history, purpose and
tactics with an exposion and discussion of the steps being taken and required to curb it being Report of the Joint
Legislative Committee Investigating Seditious Activities, filed april 24, 1920, in the Senate of the State of New
York – Part I. Albany: J. B. Lyon Company Printers, 1920. v. 1. p. 643. Disponível em:
<https://archive.org/details/cu31924052844218>. Acesso em: 5 nov. 2012.
175
Cf. FINK, Carole. The Genoa Conference: European Diplomacy, 1921-1922. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 1984.
176
MCFADDEN, David W. Alternative Paths: Soviets and Americans, 1917-1920. Nova York; Oxford:
Oxford University Press, 1993. p. 5.
177
Robins era da Cruz Vermelha e, conquanto tenha se resguardado das influências bolcheviques, parece ter
tentado, desde o início de sua missão na Rússia, restabelecer as relações diplomáticas. Cf. MCFADDEN, 1993,
p. 79-124.
178
“They reached agreements on a number of issues, which were accepted by both the American and Soviet
governments. Robins concluded purchase agreements on behalf of the U.S. War Department for Russia's
remaining supplies of strategic platinum, thus denying them to the German war effort. Lenin agreed, after
78

Foram as reuniões de Robins com lideranças bolcheviques que inspiraram a criação do


Bureau Soviético nos Estados Unidos, culminando num sucesso instantâneo já que
“substanciais contatos econômicos e técnicos foram estabelecidos com empresas americanas
que depois resultaram, nos anos de 1920, no primeiro florescer das trocas científicas, técnicas
e econômicas entre os Estados Unidos e a Rússia bolchevique”.179
A missão Martens foi uma entre tantas empreendidas pelos bolcheviques ao redor do
globo, embora os soviéticos tenham enfatizado certos lugares, como os Estados Unidos e os
países escandinavos.180 A centralidade estadunidense na estratégia bolchevique para romper o
isolamento comercial era tal que Martens escrevera a Chicherin181 com a seguinte avaliação:
“Nós entendemos as táticas as quais nós estivemos perseguindo a todo momento com relação
aos Estados Unidos – ou seja, em todos os assuntos que os Estados Unidos continuam sendo o
país capitalista onde há esperança para romper o bloqueio.”182
Em 1920, a experiência da missão Martens com os homens de negócio americanos
havia substituído o bloqueio como um ponto de conversa econômico para os pedidos
bolcheviques. Em uma das maiores iniciativas de paz do período por parte dos
bolcheviques, recebida e repassada pelo Ministro do Exterior do governo sueco em
fevereiro de 1920, Chicherin enfatizou em detalhe os bem-sucedidos contatos com o
“comércio e indústria americano” e falou do “gigantesco papel” que os Estados
Unidos teriam na reconstrução. Ele então concluiu com um apelo por negociações.183

A atividade de Martens nos Estados Unidos e, mais que isso, sua sincronização com
outras missões ao redor do globo fizeram com que as atividades contrarrevolucionárias

numerous importunities by Robins, to an exemption from Bolshevik nationalization decrees for a number of
United States corporations, including Singer, International Harvester, and Westinghouse. The critical operations
of the American Red Cross in Russia were extended and expanded by the Robins-Lenin agreement, including the
distribution of milk and surplus food, the provision of scarce farm implements and equipment, and the continued
importation of medical supplies and devices.” Ibid., 1993, p. 4.
179
“Substantial economic and technical contacts were established with American businesses that later resulted,
in the 1920s, in the first blossoming of American scientific, technical, and economic interchange with Bolshevik
Russia.” MCFADDEN, 1993, p. 5.
180
Leonid Krasin, entre 1918 e 1920, foi a Estocolmo e Londres. Tentou vistos para entrar nos Estados Unidos,
sem sucesso. Argumentou com o politburo que era fundamental abrir negociações comerciais com Berlim (Ibid.,
p. 270). A inteligência britânica, em julho de 1920, descreve parte do conteúdo de uma das negociações de
Krasin: “Before Krassin originally left Copenhagen for England he was concerned in some discussion of a loan
to be raised by the Frankfurt bankers in conjunction with Siemens-Schuckert. No positive agreement had been
arrived at, but the proposal was to be deferred until after the more important business of getting a connection
with England had been achieved.” CAB/24/111. Revolutionary Movements in British Dominions Overseas
and Foreign Countries, Directorate of Intelligence (Home Office), n. 21, p. 32, jul. 1920.
181
Gyorgy Chicherin foi Comissário do Povo para Assuntos Externos da União Soviética entre 1918 e 1930.
182
“We well understand the tactics which we all the time have been pursuing with respect to the U.S.—namely,
in all matters that the U.S. remains the capitalist country in which there is hope for breaking through the
blockade.” MARTENS, 1919 apud MCFADDEN, 1993, p. 267.
183
“By 1920, the Martens mission's experience with American businessmen had replaced the blockade as the
economic talking point for Bolshevik appeals. In one of the major Bolshevik peace initiatives of this period,
relayed through the Foreign Minister of the Swedish government in February 1920, Chicherin stressed in detail
Martens' successful contacts with "American commerce and industry" and talked of the ‘gigantic role’ the
United States could play in reconstruction. He then concluded with an appeal for negotiations.” Ibid., 1993, p.
268.
79

tivessem lugar rapidamente. As missões descritas no capítulo anterior desempenhadas por


Borodin, Abramson e Katayama tiveram os objetivos de apoiar as missões comerciais e
realizar avaliações políticas das áreas visitadas. Nas Américas, a missão Martens, tendo em
vista seu mais alto grau de prioridade, deveria receber suporte das outras missões espalhadas
pelo continente.
A natural centralidade da missão soviética em Nova York atraiu a atenção dos
serviços de inteligência. Theodore Kornweibel adiciona um outro aspecto a este tempo: a
construção de uma infraestrutura de inteligência para vigiar e interferir na militância negra
tanto quanto na comunista.184
O Lusk Committee foi uma resposta dura, tanto à missão quanto a toda esquerda nova-
-iorquina. Clayton Lusk, político e advogado de Nova York, foi o coordenador do Comitê
Legislativo Misto de Investigação a Atividades Sediciosas que terminou suas atividades em
abril de 1920. Tratou-se de uma investigação que, a partir de mandados de busca e apreensão,
fechou o Russian Soviet Bureau, 185 a Rand School of Social Science, 186 a esquerda do
Socialist Party, a Industrial Workers of the World e 73 seções do Partido Comunista.
Rapidamente seriam desbaratadas organizações que durante anos haviam tentado se estruturar
minimamente. O relatório do Lusk Committee culminou na elaboração de quatro volumes. Os
dois primeiros constituem-se como uma exposição da engenharia ideológica dos grupos
“sediciosos”. Os dois últimos se caracterizam como receituário de prognóstico às atividades
sediciosas tendo como consequência a propositura de leis e medidas restritivas a
estrangeiros.187
No relatório, não é possível identificar comprovações da ingerência dos membros da
missão Martens nos negócios internos dos comunistas e de organizações radicais negras. Há,
contudo, um capítulo, o quinto do segundo volume, sobre a questão negra: “Propaganda
184
“The conclusion is inescapable: The federal intelligence partners, led by the Justice Department’s Bureau of
Investigation, knew that even strident racial advocacy and self-defense were lawful. But their distaste for black
militancy was so profound that they persisted in harassing individuals engaged in legal, if unpopular, activities.
The even-handed administration of justice was sacrificed. Federal injustice prevailed. And it established a
pattern of hostility to racial and civil rights progress that persisted for the next fifty years, until after the death of
J. Edgar Hoover in 1972.” KORNWEIBEL JR., Theodore. “Seeing Red”: Federal campaigns against black
militancy, 1919-1925. Bloomington: Indiana University Press, 1998. p. 182.
185
O nome oficial do organismo dirigido por Ludwig Martens.
186
Criada em Nova York no ano de 1906 pelo Partido Socialista.
187
STEVENSON, Archibald E. et al (Ed.). Revolutionary Radicalism: Its history, purpose and tactics with an
exposion and discussion of the steps being taken and required to curb it being Report of the Joint Legislative
Committee Investigating Seditious Activities, filed april 24, 1920, in the Senate of the State of New York – Part
I Revolutionary and subversive movements abroad and at home. Albany: J. B. Lyon Company Printers, 1920. 2
v.; STEVENSON, Archibald E. et al (Ed.). Revolutionary Radicalism: Its history, purpose and tactics with an
exposion and discussion of the steps being taken and required to curb it being Report of the Joint Legislative
Committee Investigating Seditious Activities, filed april 24, 1920, in the Senate of the State of New York – Part
II Constructive movements and measures in America. Albany: J. B. Lyon Company Printers, 1920. 2 v.
80

Among Negroes”. “Socialism Imperilled, or the Negro – A Potential Menace to American


Radicalism”, documento achado numa busca e apreensão em 21 de junho de 1919 na Rand
School of Social Sciences, escrito, de acordo com o relatório, por W. A. Domingo, um
jamaicano de nascimento, socialista e morador do Harlem.188 Domingo defendia uma aliança
entre socialistas e negros. Argumentava que alguns membros da esquerda já percebiam a
importância dessa necessidade apesar de a parcela dominante do PS não corroborar. Domingo
sugeria a possibilidade de que:
[...] essa atitude da parte dos radicais americanos seja por causa do fato que eles são
americanos e compartilham a típica psicologia dos brancos americanos em relação
aos negros. Se isso é assim, então seu radicalismo não é genuíno e é merecidamente
destinado ao fracasso. Para alguém pensar que o negro é indigno de consideração
significa ir contra a história. [...] Talvez alguns fatos ameaçadores e surpreendentes
da história possam desiludir as mentes daqueles em dúvida e tornar sóbrios os cegos
entusiasmos dos teóricos fanáticos. Esses fatos contêm lições que até brancos
radicais, que ainda estão sob a influência da psicologia americana que pensa em
termos de raças e não de classe, podem muito bem atentar.189

Quando se referia a “fatos ameaçadores e surpreendentes”, Domingo tinha em mente,


sobretudo, a incorporação de negros nos exércitos, inclusive de países colonialistas. Na lógica
do argumento de Domingo, era fundamental convencer os negros dos objetivos reais do
socialismo e instruí-los, posto que apenas desse modo seria possível conquistar verdadeira
autonomia.
Existem apenas poucos exemplos mostrando que os capitalistas, ou mais
precisamente os governos, não discriminam as armas que eles empregam para
conquistar seus fins; eles também mostram que se não forem instruídos, os negros,
no presente estado de ignorância dos verdadeiros objetivos do Socialismo, estão
sujeitos a ser ferramentas voluntárias da plutocracia.190

A maneira como foi montado o relatório do Lusk Committee não deixa margem para
interpretações quanto aos seus propósitos. Logo depois do documento de Domingo, uma carta
de David P. Berenberg191 a Francis Pelegrino, de 16 maio de 1919,192 é exposta na íntegra.
Parte do conteúdo segue:

188
STEVENSON, 1920, v. 2, p. 1489.
189
“[...] this attitude on the part of American radicals is because of the fact that they are Americans and share the
typical white American psychology towards negroes. If this is so, then their radicalism is not genuine and is
deservedly doomed to failure. For anyone to think the negro (sic) unworthy of consideration is for that one to fly
in the face of history. [...] Perhaps a few ominous and startling facts from history may disabuse the minds of
those in doubt and sober the blind enthusiasm of the fanatical theorists. These facts contain lessons that even
white radicals who are still under the influence of the American psychology which thinks in terms of races, not
class, may well heed.” Ibid., v. 2, p. 1509.
190
“These are but a few examples showing that capitalists, or rather governments, do not discriminate as to the
weapons they employ to achieve their ends; they also show that unless instructed, negroes, in their present state
of ignorance of the real aims of Socialism, are liable to be willing tools of the plutocracy.” Ibid., v.2, p. 1510.
191
Membro do Partido Socialista e responsável por cursos a distância de Ciências Sociais da Rand School of
Social Science.
81

Eu estou enviando os informes sobre os cursos. Claro, eu sei que eles não são tudo
aquilo que você gostaria de ter, mas eu acho que seria mais inteligente se você me
fizesse perguntas que eu possa então responder.
Há uma grande necessidade de trabalho missionário entre todas as pessoas e
especialmente entre as pessoas de cor. Nós temos aqui um grupo muito ativo de
camaradas – entre eles os camaradas Chandler Owen e Domingo – que têm nos
advertido que a menos que aceleremos nosso caminho junto aos negros, os
capitalistas podem usá-los no tempo da revolução social como os tchecoslovacos
estão sendo usados na Rússia.193

O relatório indica que a intenção de realizar trabalho especial na comunidade negra


teria surgido a partir do documento de Domingo. Os cursos seriam oferecidos pela Rand
School. Moldados a partir da ideia de “formação política”, objetivavam apresentar uma visão
do socialismo e ensinar estratégias organizativas. Portanto, as escolhas pedagógicas e
curriculares que eram pensadas para os cursos estavam obedecendo a fatores políticos que, na
interpretação do Lusk Committee, ameaçavam o país.
O capítulo V, relativo à propaganda entre os negros, conclui da seguinte maneira:
Nós temos citado por um tempo considerável as várias publicações de negros
radicais e revolucionários acima referidos, em função de claramente trazer à tona o
tipo de propaganda que está sendo disseminada entre as pessoas dessa raça tanto
como mostrar o calibre mental dos líderes do movimento radical entre negros. Esse
movimento está sendo inteligentemente incentivado pelo Partido Socialista e pela
Rand School of Social Science.
Nós acreditamos que muita dessa propaganda cai em solo fértil, por razão dos
linchamentos, da legislação Jim Crow e da restrição do direito de voto dos negros
em muitos estados. Ao invés de procurar remediar essas condições sob o prisma
legal, como nós firmemente acreditamos que deveriam ser remediadas, elas são
feitas de base para um apelo por consciência de classe. Essa propaganda procura
fazer o negro acreditar que o único caminho para que seu grupo possa melhorar é
pela abolição de nossa forma de governo e pela substituição, portanto, de um
sistema de governo similar àquele da Rússia Soviética e pela instituição da
cooperativa Comunidade Socialista.194

192
Nascido em Birmingham, Reino Unido, em 1876, foi para a África do Sul em data desconhecida. Segundo
relatos também incertos, proferiu em 1900 uma palestra intitulada “The Manners and Customs of the Natives of
South Africa: their religion and superstitious beliefs” na Cidade do Cabo. Em 1920 já estaria nos Estados
Unidos. SHERWOOD, Marika. Origins of Pan-Africanism: Henry Sylvester Williams, Africa, and the African
Diaspora. Nova York: Routledge, 2012. p. 258.
193
“I am sending you the bulletins covering the courses. Of course, I realize that they are not all that you would
like to have, but I think it would be wiser for you to ask me questions which I could then answer.
There is great need for missionary work among all people and especially among colored people. We have here a
very active group of comrades— among them Comrades Chandler Owen and Domingo— who warn us that
unless we make headway with the negroes, the capitalists may use them in time of a social revolution much as
the Czechoslovaks are being used in Russia.” STEVENSON, 1920, v. 2, p. 1511.
194
“We have quoted at considerable length from the various radical revolutionary negro publications above
referred to, in order to clearly bring out the type of propaganda that is being disseminated among the people of
this race as well as to show the mental calibre of the leaders of the radical movement among negroes. This
movement is being cleverly fostered by the Socialist Party and by the Rand School of Social Science.
We believe that much of this propaganda falls on fertile soil, by reason of lynchings, Jim Crow legislation and
the abridgment of the right of franchise to negroes in many states. Instead of seeking to remedy these conditions
in lawful manner, as we firmly believe they should be remedied, they are made the basis for an appeal to class
consciousness. This propaganda seeks to make the negro believe that the only way in which his lot can be
bettered is by the abolition of our form of government and the substitution therefor of a system of government
similar to that of Soviet Russia and by the institution of the co-operative Socialist Commonwealth.” Ibid., v. 2, p.
1519-20.
82

O(s) autor(es) do relatório aponta(m) para o solo fértil encontrado pela propaganda
radical em função da segregação racial, dos linchamentos e do conjunto de leis
discriminatórias. A posição explícita no escrito é que se deveria apelar à justiça comum, aos
direitos constitucionais e não à “consciência de classe” para solucionar possíveis problemas
sociais.
A exposição feita da propaganda entre afro-americanos levou em consideração todas
as organizações negras achadas pela investigação nos Estados Unidos e em Nova York. A
African Blood Brotherhood (ABB) não foi citada em nenhum dos quatro volumes. A aparição
de Cyril Briggs, Richard Moore e Claude McKay, quando ocorre, é puramente episódica. Por
outro lado, a investigação periódica que os britânicos faziam constatava a existência da ABB,
mas eles não pareceram dar maiores atenções à organização. Ao relatar o crescimento da
campanha de propaganda entre afro-americanos, o relatório informa:
“Nem todo o poder da Europa nem a Liga das Damnations será capaz de frear a
investida por liberdade”, para citar as palavras do “The Crusader”, um jornal que
também anuncia a formação de uma outra organização de cor, “a Irmandade do
Sangue Africano para Liberação e Redenção Africana”, a filiação para a qual é
limitada aqueles “que estão dispostos a ir ao limite”.195

Lovett Fort-Whiteman, afro-americano, depois de participar da Revolução Mexicana


de 1910 e conviver com os anarco-sindicalistas da Casa del Obrero Mundial, se filiaria ao
Partido Socialista em 1917. Mais precisamente, faria parte da seção do Harlem do mesmo
Partido, onde conheceria Philip Randolph e Chandler Owen, então socialistas e membros da
revista Messenger, alternativa radical à Crisis, da NAACP.196 Ainda em 1917, publicaria
textos referindo-se a temas raciais e mencionaria o termo “New Negro” oito anos antes de ser
cunhado definitivamente por Alain Locke. Fort-Whiteman fez cursos na Rand School nos
anos 1917-8. Além dele, Otto Huiswoud também fez parte da escola dos socialistas e, tal qual
Whiteman, viria a ser estudante de Domingo, Randolph e Owen. Joyce Moore Turner aponta
para uma constelação de origens negras que compunham o bairro Harlem e, mais
precisamente, o 21º distrito, a seção do PS.
Enquanto muitos homens e mulheres aderiram ao Partido Socialista ou
frequentavam a Rand School, apenas quando o Harlem passou a ser sua comunidade
e o ramo do 21º distrito formado que eles puderam participar coletivamente numa
unidade de bairro. Assim o desenvolvimento do Harlem criou a oportunidade para
afro-caribenhos juntarem-se a afro-americanos para ajudar a forjar um braço da

195
“‘Not all the might of Europe or the League of Damnations will be able to stop the onslaught for freedom’ to
quote the words of ‘The Crusader’ a newspaper which also announces the formation of yet another coloured
organisation, ‘The African Blood Brotherhood for African Liberation and Redemption’, the membership of
which is limited to those ‘who are willing to go the limit’”. CAB/24/95. Revolutionary Movements in British
Dominions Overseas and Foreign Countries, Directorate of Intelligence (Home Office), p. 28, dez. 1919.
196
GILMORE, 2008, p. 34.
83

organização coesa que estenderia em um modo mais estruturado o vetor da periferia


ao centro.197

O ano de 1919 marca uma clivagem narrativa. O quadro geral inclui os conflitos
raciais sangrentos nesse ano, a fragmentação do Partido Socialista, os dois Partidos
Comunistas – o Communist Party of America e o Communist Labor Party –, o radicalismo
negro e suas organizações e, por fim, a vigilância repressiva do Estado. Por outro lado, inclui
a internacionalização da chamada questão negra e a criação da Comintern.
O segundo e o terceiro congressos da IC, em 1920 e 1921 respectivamente, já
constavam de apoios específicos pela emancipação de colônias. No II Congresso, John Reed
realizou duas falas sobre a situação dos negros nos Estados Unidos.
Se nós consideramos os negros como povos escravizados e oprimidos, então eles
nos põem duas tarefas: por um lado um forte movimento racial e por outro um forte
movimento dos trabalhadores proletários, cuja consciência de classe está
rapidamente crescendo. Os negros não demandam independência nacional. Um
movimento que procura por uma existência nacional separada, como por exemplo o
movimento “de volta a África” que poderia ser observado alguns anos atrás, nunca é
bem-sucedido entre negros. Eles se consideram antes de tudo americanos, eles se
sentem em casa nos Estados Unidos. Isso simplifica as tarefas dos comunistas
consideravelmente.
A única política correta para os Comunistas americanos em relação aos negros é
tratá-los acima de tudo como trabalhadores. Os trabalhadores agrícolas e pequenos
proprietários do Sul impõem, a despeito do atraso dos negros, as mesmas tarefas que
aquelas que temos em relação ao trabalhador branco do campo. A propaganda
comunista pode ser conduzida entre negros que estavam empregados como
trabalhadores industriais no Norte. Em ambas as partes do país nós precisamos nos
esforçar para organizar os negros nos mesmos sindicatos que os brancos. Essa é a
melhor e mais rápida maneira de acabar com o preconceito racial e acordar a
solidariedade de classe.
Os comunistas não podem situar-se distantes do movimento negro que demanda sua
igualdade política e social e no momento, num tempo de rápido crescimento da
consciência racial, está se espalhando rapidamente entre negros. Os comunistas
precisam usar esse movimento para expor a mentira da igualdade burguesa e
enfatizar a necessidade da revolução social a qual irá não apenas liberar todos os
trabalhadores da servidão mas é também a única maneira de libertar o povo negro.198

197
“While several men and women joined the Socialist Party or attended the Rand School, it was not until
Harlem became their community and the Twenty-first district branch formed that they could participate
collectively in a neighborhood unit. Thus the development of Harlem provided opportunity for African
Caribbeans to join with African Americans to help forge a cohesive organizing arm that would extend in a more
structured way from uptown to downtown.” TURNER, Joyce Moore. Caribbean Crusaders and the Harlem
Renaissance. Champaign: University of Illinois Press, 2005. p. 53.
198
“If we consider the Negroes as an enslaved and oppressed people, then they pose us with two tasks: on the
one hand a strong racial movement and on the other a strong proletarian workers’ movement, whose class
consciousness is quickly growing. The Negroes do not pose the demand of national independence. A movement
that aims for a separate national existence, like for instance the ‘back to Africa’ movement that could be
observed a few years ago, is never successful among the Negroes. They hold themselves above all to be
Americans, they feel at home in the United States. That simplifies the tasks of the communists considerably.
The only correct policy for the American Communists towards the Negroes is to regard them above all as
workers. The agricultural workers and the small farmers of the South pose, despite the backwardness of the
Negroes, the same tasks as those we have in respect to the white rural proletariat. Communist propaganda can be
carried out among the Negroes who are employed as industrial workers in the North. In both parts of the country
we must strive to organise Negroes in the same unions as the whites. This is the best and quickest way to root
out racial prejudice and awaken class solidarity.
84

Até uma resolução específica sobre a questão negra, no entanto, seriam necessários
mais dois anos. No IV Congresso da IC, Otto Huiswoud e Claude McKay participariam da
elaboração de uma versão preliminar das “Teses sobre a Questão Negra”. Foi o primeiro
trabalho da primeira Negro Commission, criada especificamente para elaborar políticas para a
população negra. Pouco seria tratado acerca da África Colonial. A inspiração para elaboração
das teses provinha da realidade estadunidense, em que pese a tentativa de formular uma
política “atlântica” de combate ao racismo. Lidas por Huiswoud, as formulações parciais das
Teses eram:
O IV Congresso considera essencial apoiar todas as formas de movimento negro as
quais objetivem minar ou enfraquecer o capitalismo e imperialismo ou prevenir suas
expansões. [A Comintern lutará pela igualdade racial entre brancos e negros, nos
planos econômico, social e político.] A Comintern fará todo o possível para forçar
sindicatos a aceitarem negros onde quer que a admissão seja legal. Em casos onde
não for admitido por lei, iniciará uma campanha para tal fim. Caso a iniciativa se
prove sem sucesso, a Comintern organizará os negros em seus próprios sindicatos
com este fim. Feito isto, organizará “Frentes Únicas” para obter a aceitação dos
sindicatos de trabalhadores. A Comintern se comprometerá a organizar um
congresso negro internacional em Moscou.199

Para chegar até essa conclusão, foram apresentadas as similitudes entre a situação dos
negros nos Estados Unidos com as populações submetidas pelo colonialismo e imperialismo
na América Central, Ásia e África. Foi definida após o congresso a criação de um Bureau
Negro para organização de uma Conferência Mundial Negra (World Negro Conference).
Huiswoud então permaneceria em Moscou para organizar a Conferência até dezembro de
1922, quando receberia uma carta do CEIC transferindo-o para o Secretariado do Oriente com

The Communists must not stand aloof from the Negro movement which demands their social and political
equality and at the moment, at a time of the rapid growth of racial consciousness, is spreading rapidly among
Negroes. The Communists must use this movement to expose the lie of bourgeois equality and emphasise the
necessity of the social revolution which will not only liberate all workers from servitude but is also the only way
to free the enslaved Negro people.” REED, John. Minutes of the Second Congress of the Communist
International: Fourth Session, July 25 – Discussion, America and the Negro question. Marxists Internet
Archive. [s.d]. Disponível em: <http://www.marxists.org/history/international/comintern/2nd-
congress/ch04.htm#v1-p121>. Acesso em: 19 out. 2012.
199
“The Fourth Congress considers it essential to support all forms of the black movement which aim either to
undermine or weaken capitalism and imperialism or to prevent their further expansion. The Communist
International will fight for the racial equality of blacks and whites, for equal wages and equal social and political
rights. The Communist International will do all it can to force the trade unions to admit black workers wherever
admittance is legal, and will insist on a special campaign to achieve this end. If this proves unsuccessful, it will
organise blacks into their own unions and then make special use of the united front tactic to force the general
unions to admit them. The Communist International will immediately take steps to convene an international
black conference or congress in Moscow.” FOURTH Congress of the Communist International: The Black
Question, 30 nov. 1922. Marxists Internet Archive. [s.d]. Disponível em:
<http://www.marxists.org/history/international/comintern/4th-congress/blacks.htm>. Acesso em: 19 out. 2012.
85

ordens para trabalhar com Sen Katayama e utilizar-se do aparato daquele Secretariado para
resolver todos os assuntos pertinentes à questão negra.200
A criação do Bureau Negro ficaria, portanto, em suspenso. A organização da
Conferência, pensada inicialmente para ser sediada em Moscou, fracassaria no curto prazo.
No decorrer do IV Congresso, o segundo ponto, entre colchetes, não constava na versão lida
por Huiswoud, que terminou sendo reprovada pela plenária. O segundo ponto era, na versão
original: “o trabalho entre negros deve ser feito principalmente por negros”.201 Terminou
sendo retirada da versão final depois de uma intervenção. O tema da integração estaria em
definitivo na pauta da Comintern e obedeceria à mecânica revolucionária cominterniana que
advogava a luta de trabalhadores negros e brancos contra o capitalismo e imperialismo.

***

9 de agosto de 1921. Comunistas estadunidenses reunidos em Nova York fundam uma


importante e discreta organização: Friends of Soviet Russia (FSR). Sua criação sucedeu à
tentativa de restabelecer laços diplomáticos com os Estados Unidos por meio de uma
representação comercial sob a direção de Ludwig Martens chamada de Russian Soviet
Government Bureau, sediada em Nova York. O aparato logístico e ideológico terminou
automaticamente transferido para a FSR. A deportação de Martens coincidiu com uma série
de transformações na União Soviética e evidenciou tensões na política externa estadunidense
e dificuldades organizativas dos comunistas na Rússia para fortalecer a Comintern em todo o
mundo.
Embora a FSR tenha sido criada sob escombros de uma organização diplomática, a
partir de seu rebatismo, adquiriria funções humanitárias. Em 1927 o nome seria substituído
por Friends of Soviet Union já enquanto parte da International Association of Friends of
Soviet Union (IAFSU). Os propósitos da organização se alterariam silenciosamente com a
modificação dos nomes. Como organização transnacional, a IAFSU não durou até a Segunda
Guerra Mundial. Foi dissolvida também em silêncio em 1941 como tantas outras
organizações de frente.202

200
VAN ENCKEVORT, Maria Gertrudis. The Life and Word of Otto Huiswoud: professional revolutionary
and internationalist (1893-1961). 2000. Tese (Doutorado em História)–The University of West Indies, Kingston,
2000. p. 76.
201
Protokoll des IV Kongresses, p. 697 apud VAN ENCKEVORT, 2000, p. 71.
202
NEMZER, Louis. The Soviet Friendship Societies. The Public Opinion Quarterly, v. 13, v. 2, p. 271,
primavera 1949.
86

A história dessa organização em cada país que presenciou sua existência é específica e
difícil de ser generalizada, uma vez que ela não obedeceu às diretrizes cominternianas. Na
maior parte dos casos, os “Amigos” dos soviéticos criaram diferentes nomes, mas estiveram
atrelados inicialmente à Ajuda Internacional dos Trabalhadores e depois ao Socorro
Internacional, este sim, vinculado à IC. A fórmula de ajuda internacional baseada na
solidariedade dos trabalhadores de todo o mundo, capitaneada pelas células comunistas nos
respectivos países, é tida como obra do alemão Willi Münzenberg. Essas organizações eram
necessariamente de Frente e continham, como condição sine qua non para o seu
funcionamento, tendências não faccionais. Foi este o caso da FSR nos Estados Unidos. A
melhor explicação para o surgimento dessas organizações ainda se encontra em Edward Carr,
quando sugere que, em sendo a Sindical Vermelha e Internacional Comunista da Juventude
organizações comunistas, elas fracassaram no propósito de
[...] criar um canal de aproximação de simpatizantes não comunistas. Tal abordagem
foi, no entanto, necessária; e depois do fim do terceiro Congresso uma tentativa foi
levada a cabo por meio de uma série de organizações livremente conectadas com o
partido por objetivos comuns, mas livres dos mesmos compromissos com a ação
revolucionária e livres dos mesmos requerimentos rigorosos da doutrina e disciplina.
[...] O primeiro impulso parece ter vindo, quase acidentalmente, da emergência da
fome russa. Sob a liderança do engenhoso e ambicioso Münzenberg, uma Sociedade
Internacional de Socorro aos Trabalhadores (MPR) foi fundada em Berlim em 12 de
setembro de 1921. Seu propósito inicial era prover a esquerda com um contrapeso
para o generoso suprimento de ajuda enviado para a Rússia Soviética pela ARA
(Administração da Ajuda Americana) e outras agências burguesas para mitigar os
horrores da fome.203

A criação de fundos por meio da contribuição solidária de trabalhadores de todo o


mundo obedeceu a critérios que podem ser generalizados da seguinte maneira: 1) intentava
sobrepor diferenças ideológicas sob o argumento humanitarista das ajudas; 2) desconsiderava
as fronteiras nacionais em razão também do argumento humanitário; 3) mantinha as sedes
operacionais fora de Moscou.
Berlim era o principal centro operacional de Münzenberg, onde diversas atividades
instigadas e administradas por suas mãos funcionaram como um hub geográfico para
uma variedade de movimentos tanto oficial como extraoficialmente conectado à

203
CARR, Edward H. A History of Soviet Russia: The Bolshevik revolution, 1917-1923. New York: The
MacMillan Company, 1953. v. 3. p. 404. “of providing a channel of approach to non-communist sympathisers.
Some such approach was, however, necessary; and after the end of the third congress an attempt was made to
effect it through a series of organizations loosely connected with the party by common aims, but free from the
same commitments to revolutionary action and from the same stringent requirements of doctrine and discipline.
[...] The first impulse seems to have come, almost accidentally, from the emergency of the Russian famine.
Under the leadership of the ingenious and ambitious Münzeberg, an International Workers’ Aid Society (MPR)
was founded in Berlin on September 12, 1921. Its initial function was to provide a Left-wing counter-weight to
the generous relief supplies sent to Soviet Russia by ARA (American Relief Administration) and other bourgeois
agencies to mitigate the horrors of the famine.”
87

Ajuda Internacional dos Trabalhadores (Liga contra o Imperialismo, os Amigos da


União Soviética, publicações, distribuição de filmes etc.).204

O espírito de Frente era, portanto, a tônica de organizações como a Liga Anti-


imperialista, Amigos da União Soviética/Rússia Soviética, Socorro Vermelho e as
organizações baseadas em critérios raciais.205 Essa característica persistiria ao longo de toda a
década de 1920, a despeito da política de classe contra classe do Terceiro Período, e a FSR
continuaria a existir e a financiar importantes veículos de comunicação. Por ora, basta
antecipar que uma das principais agências de informação da comunidade afro-americana, a
Crusader News, era financiada pela FSU e tinha Cyril Briggs como seu editor e militante da
FSU.

3.5 Integração e o mundo do trabalho

As questões relativas à integração de grupos de lugares distintos e de fenótipos


sensivelmente diferentes foram enfrentadas de duas maneiras. Entre comunistas havia grupos
que promulgavam uma racialização em que negros travariam discussões com negros e
brancos com brancos. Esses eram os comunistas das Federações de línguas. Entre afro-
americanos e afro-caribenhos, Cyril Briggs defendeu essa mesma posição até meados da
década de 1920. A maioria de afro-caribenhos e afro-americanos defendia a integração.
Entretanto, antes mesmo de integrar-se aos brancos havia uma diferenciação que deveria ser
vencida. Afro-americanos e afro-caribenhos nem sempre travaram uma relação amistosa. A
ABB, constituída por uma maioria afro-caribenha, e a United Negro Improvement

204
Berlin was Münzenberg’s main operative centre, where several of the activities instigated and managed
through his hands functioned as a geographical hub for a variety of movements either officially or unofficially
connected to the WIR (League against Imperialism, the Friends of Soviet Union, publishing, movie distribution
etc.). Fredrik Petersson “In Control of Solidarity? Willi Münzenberg, the Workers’ International Relief and
League against Imperialism, 1921-1935” PETERSSON, 2007, p. 9.
205
Kathleen Brown e Van Gosse defendem que a militância em organizações de Frente obedeceu a cotidianos
diferentes daqueles praticados por militantes unicamente dedicados à organização do Partido. Chegam a afirmar
que as mulheres comunistas militaram, sobretudo, nessas frentes partidárias e organizações auxiliares. A história
de Ella Reeve Bloor é estudada por Brown numa biografia histórica que revela uma militante obediente às
ordens do partido, que viajou de costa a costa tentando organizar mineiros e angariar membros para as
organizações de frente (FSU, International Labor Defense, National Council for Protection of Foreign Born, etc.)
e fundos para os jornais do partido, tais como o Daily Worker. O trabalho de Brown demonstra quão difícil era,
para o militante, separar o trabalho de frente do trabalho partidário e como essa tensão era responsável tanto por
aproximar quanto por distanciar simpatizantes. BROWN, Kathleen A. Ella Reeve Bloor: The Politics of the
Personal in the American Communist Party. 1996. Tese (Doutorado)–Universidade de Washington, Seatle, 1996.
p. 4, 69-70, 178, 227, 228.
88

Association (Unia), de Marcus Garvey, fundada por um caribenho, enfrentaram dificuldades


para lidar com o programa da National Association for the Advancement of Colored People
(NAACP), de origem estadunidense.
Tornando evidente o chamado por unificação, o Messenger dizia:
Devemos nos manter escravos, ou nos transformar em homens livres?
Negros das Índias Ocidentais e da América, uni-vos!
Negros das Índias Ocidentais, vocês são oprimidos. Negros americanos, vocês são
igualmente oprimidos. Índios Ocidentais, vocês são negros. Americanos, vocês são
igualmente negros. É sua cor sobre a qual o homem branco passa julgamento, não
seus méritos, nem linha geográfica entre vocês.206

Tendo em vista essa dispersão que poderia resultar num conglomerado de questões
nacionais a serem resolvidas, John Reed disse, a respeito dos afro-americanos, que eles se
sentiam, antes de tudo, americanos.207 Dessa maneira, em início dos anos de 1920 toda
tentativa visava dirimir os pontos de divergência para unificação das ações antirracistas sob a
direção dos comunistas, preferencialmente.
Ao propor com tamanha ênfase uma unificação, o Messenger tornava pública a
fragmentação organizativa dos “partidos” negros. Havia um conflito em um nível tal que
impossibilitava uma integração. Alianças estáveis entre as três organizações que foram citadas
até aqui, a saber, a Unia, a NAACP e a ABB, não eram possíveis. Um dos aspectos
componentes dessa dificuldade em trabalhar a unificação de pautas talvez tenha obedecido à
questão da nacionalidade – “eles se vêem antes de tudo como americanos”, segundo John
Reed – que pareceu dotar a tradição socialista estadunidense com traços nacionalistas que
nem sempre se encontrou entre congêneres europeus e latino-americanos.
Sabe-se que o movimento demográfico que afetou Nova York e a Renascença do
Harlem, para Glenda Gilmore, poderia ter se chamado de Raleigh Renaissance, haja vista que
“tantos negros da Carolina do Norte se mudaram para Nova York com apenas poucas quadras
entre eles”.208 Os imigrantes do Caribe, ao chegar no Harlem e, genericamente, em Nova
York, tenderam a enfrentar resistências à migração negra por parte de alguns grupos
nativistas, tais como os representados por Marcus Garvey e Fred R. Moore, que advogavam a

206
“Shall We Remain Slaves, or Become free Men?
Negroes of the West Indies and America, Unite!
West Indian negroes, you are oppressed. American negroes, you are equally oppressed. West Indians, you are
black. Americans, you are equally as black. It is your color upon which white men pass judgment, not your
merits, nor the geographical line between you.” STEVENSON, Archibald E. et al, 1920, v. 2, p. 1.484.
207
“The Negroes do not pose the demand of national independence. A movement that aims for a separate
national existence, like for instance the ‘back to Africa’ movement that could be observed a few years ago, is
never successful among the Negroes. They hold themselves above all to be Americans, they feel at home in the
United States. That simplifies the tasks of the communists considerably.” REED, [s.d]. Acesso em: 31 out. 2014.
208
GILMORE, 2008, p. 5. “so many black North Carolinians settled within a few blocks of one another in New
York”.
89

volta dos negros à África e não a permanência e integração nos Estados Unidos.209 Por parte
dos afro-americanos, havia desencontro de hábitos, costumes e, fundamentalmente, uma
sensação de permanente desalojamento em razão da chegada de novos imigrantes. Certa
ambivalência relativa aos processos migratórios que faziam chegar levas de afro-caribenhos
ao Harlem, por exemplo, tinha raízes nos medos da competição e na possibilidade de
deslocamento.210 Em finais da década de 1910, a fraqueza política do Harlem, comparada ao
south side de Chicago, foi explicada também em razão de dissenso entre afro-americanos e
afro-caribenhos.211
Um dos mais claros exemplos da complexidade da questão é a greve de metalúrgicos
de 1919. Em resumo, os trabalhadores tentavam tornar permanentes os ganhos do período de
guerra. Durante esse movimento paredista, afro-americanos furaram a greve e substituíram
trabalhadores nas fábricas. Tratou-se de uma série de boicotes que metalúrgicos negros
impuseram às greves da classe organizadas em 1919 e 1921.212 As motivações são complexas,
mas o CPUSA, na figura de William Z. Foster,213 assistiu ao fato de que “a maior parte deles
parecia ter entusiasmada satisfação em roubar os trabalhos dos homens brancos e destruir sua
greve”.214 Para Mark Solomon, “Foster via o problema da união entre negros e o movimento
de trabalhadores como uma batalha contra as políticas racistas dos trabalhadores organizados
e contra o sentimento antissindical da comunidade negra.”215
As definições provenientes da IC a partir do IV Congresso constituíram uma
sinalização de que a questão negra, em países onde ela era parte não integrada de uma classe
trabalhadora sedimentada, casos de Estados Unidos e África do Sul, impactaram a postura
tradicionalmente comunista que definia a luta de classes a partir da posição dos sujeitos em
relação aos meios de produção – Foster já dizia que “a expressão racial do negro é
simplesmente a expressão de sua exploração econômica e opressão, uma intensificando a

209
WATKINS-OWENS, Irma. Blood relations: Caribbean immigrants and the Harlem community, 1900-1930.
Bloomington: Indiana University Press, 1996. p. 28.
210
WATKINS-OWENS, 1996, p. 172.
211
Ibid., p. 87.
212
MORENO, Paul D. Black Americans and organized labor: a new history. Baton Rouge: Lousiana State
University Press, 2006. p. 132-3.
213
Foster ainda não era o maior líder do movimento comunista estadunidense. Em 1924 ele seria o candidato a
presidente do Workers Party, braço legal do CPUSA e expressão da política de Frente Única da Comintern. A
“History of the Communist Party of the United States”, escrita por William Z. Foster e publicada em 1952,
tratou a questão enquanto movimento da burguesia e de grupos pequeno-burgueses da comunidade negra que se
opunham à unificação da classe. Em que pese essa tentativa, Foster reitera o sucesso da empreitada comunista na
unificação da classe.
214
“most of them seemed to take a keen delight in stealing the white men’s jobs and crushing their strike”
FOSTER apud MORENO, 2006, p. 132.
215
“Foster viewed the problem of unity between blacks and the labor movement as a battle against both
organized labor’s racist policies and anti-union sentiment in the black community.” SOLOMON, 1998, p. 45.
90

outra. Isso complica o problema negro, mas não altera seu caráter proletário”.216 Passava-se a
admitir a desigualdade de condições mesmo dentro de um grupo social definido em termos de
classe. O próprio Foster afirma que:
Nas eleições nacionais de 1924, William Z. Foster, candidato a presidente do Partido
dos Trabalhadores, apresentou o programa comunista sobre a questão negra em
muitas cidades do Sul Profundo. E daqueles anos até o presente tempo não houve
convenção ou campanha de massa do Partido Comunista na qual a questão negra
não estivesse na linha de frente das considerações.217

O caso sul-africano, no longo prazo, não se distanciou das soluções encontradas, no


mesmo período, pelos estadunidenses. O Partido Comunista da África do Sul foi fundado em
1921, quando lançou o “Manifesto of the Communist Party of South Africa”. Entretanto, já
em 1917 um documento intitulado “International Socialism and the Native – No Labour
Movement without the Black Proletariat” defendia a integração. Dirigindo-se aos
trabalhadores brancos, o documento da International Socialist League218 dizia:
O que torna o trabalho tão barato e explorável na África do Sul? Leis e regulações as
quais, sob o pretexto de proteger a sociedade do barbarismo, degrada os
trabalhadores nativos ao nível de servos e rebanhos para os usos urgentes do capital.
Eles são:
O sistema de passaporte;
O sistema composto;
Servidão temporária do nativo;
Leis com penas especiais que tornam crime um nativo faltar ao trabalho;
A recusa das liberdades civis e políticas.
Todos esses mecanismos que põem os trabalhadores nativos um grau abaixo no
plano social em relação aos trabalhadores brancos são armas dos empregadores
utilizadas contra todos os trabalhadores, brancos e negros.
A causa do Trabalho demanda a abolição do passaporte, do composto, da servidão: e
assim que os trabalhadores nativos ganhem em solidariedade industrial, reivindicam
para eles igualdade política completa com seus companheiros trabalhadores brancos.
Apenas assim pode toda a classe trabalhadora, branca e negra, marchar unificada à
frente rumo à sua emancipação contra a escravidão do salário.219

O lema da integração foi um mote hegemônico, mesmo que tangencialmente viesse a


competir com a tese da autodeterminação nacional dos negros no sul dos Estados Unidos,
propugnada a partir de 1928. Na África do Sul o movimento foi parecido, já que sobre 1920
Mantzaris informa:

216
FOSTER, 1952, p. 173.
217
“In the national elections of 1924, William Z. Foster, presidential candidate of the Workers Party, presented
the Communist program on the Negro question in many cities of the Deep South. And from those years right
down to the present time there has been no convention or mass campaign of the Communist Party in which the
Negro question has not been in the front line of consideration.” FOSTER, 1952, p. 233.
218
Organização sindical revolucionária influenciada pela Industrial Workers of the World (IWW) e formada em
1915 em oposição à Primeira Guerra Mundial e às políticas conservadoras e racistas do apenas branco Partido
Trabalhista Sul-Africano e dos sindicatos que o apoiavam.
219
SOUTH African Communist Party Documents, 1917: International Socialism and the Native – No Labour
Movement without the Black Proletariat. Marxists Internet Archive. [s.d]a. Disponível em:
<http://www.marxists.org/history/international/comintern/sections/sacp/1917/native.htm>. Acesso em: 13 dez.
2010.
91

Desde seu primeiro momento de existência a ISL-CT (International Socialist League


– Cape Town) tentou incorporar militantes de todos os grupos populacionais, com
particular ênfase nos setores artesanais dos grupos “brancos” e “negros” e os
altamente explorados trabalhadores africanos da estiva e das indústrias. Foi na
verdade a persistência da organização na agitação entre trabalhadores negros que
forçou o Superintendente de Polícia a comentar que “A igualdade dos trabalhadores
‘de cor’ e nativos é em todo lugar reivindicada, mas não é tão defendida em
Transvaal como no Cabo”.
No mesmo tom, o referido Superintendente já havia avisado ao Departamento de
Justiça que a agitação exitosa da organização bolchevique no país, especialmente
entre os trabalhadores negros, sugeria que passos largos deveriam ser dados para
lidar com o mal do bolchevismo “crescendo seriamente na União”.220

Para os comunistas sul-africanos, os passos dados rumo à integração do negro na


sociedade de classes passavam pela sua aceitação de uma agenda compatível com sua posição
de classe. Em 1928, “The South African Question” foi debatida no VI Congresso da
Comintern, de modo que os propósitos do partido continuaram praticamente inalterados e
orbitando em torno da superação do racismo nas fileiras sindicais e do imperialismo
britânico.221
Até 1924 “o Partido não tinha de modo algum adotado uma postura antirracista
inegociável e consistente. Seus esforços para construir uma base na corrente negra dominante
produziram pouco”.222 A partir de então,
Ao afirmar que negros estavam lutando por sua “liberação”, o novo Partido rompeu
uma análise de classe simplista; ao enfatizar a questão da discriminação, o WP
(Partido dos Trabalhadores, braço legal dos comunistas) estava na direção da
aceitação das dimensões especiais do assalto contra os negros; ao culpar o
movimento sindical pela hostilidade dos negros, o Partido estava tentando distinguir
vítimas e algozes numa maneira que nunca tinha sido feita antes por um grupo
radical em relação aos sindicatos. Finalmente, ao estabelecer uma Comissão Negra
dirigida por Huiswoud, o partido tornou visível uma substância organizacional
associada às suas reivindicações ideológicas.223

Daí em diante, no movimento comunista internacional se travaria uma batalha interna


sobre a questão racial relativa ao negro em várias frentes. A primeira delas era a centralidade

220
MANTZARIS, Evangelos. The promise of the impossible revolution: the Cape Town industrial socialist
league, 1918-1921. In: ______. Labor Struggle in South Africa: the forgotten pages 1903-1921. Disponível
em: <http://www.sahistory.org.za/pages/library-resources/online%20books/labour-struggles/chapter-1.htm#14>.
Acesso em: 22 abr. 2011. Atualização em jan. 2015: <http://www.sahistory.org.za/archive/chapter-1-promise-
impossible-revolution-cape-town-industrial-socialist-league-1918-1921>.
221
SOUTH African Communist Party Documents, 1928: The South African Question. Marxists Internet
Archive. [s.d]b. Disponível em:
<http://www.marxists.org/history/international/comintern/sections/sacp/1928/comintern.htm>. Acesso em: 20
set. 2011.
222
“[...] the Party had by no means adopted an uncompromising, consistent antiracist posture. Its efforts to build
a base in the black mainstream had yielded little.” SOLOMON, 1998, p. 36-7.
223
“By stating that blacks were fighting for their “liberation”, the new Party breached a simplistic class analysis;
in stressing the issue of discrimination, the WP (Workers Party, a legal arm of Communists) was edging toward
accepting the special dimensions of the assault on blacks; by blaming the labor movement for black hostility, the
Party was attempting to distinguish victims and victimizers in a way that had never before been done by a radical
group in relation to unions. Finally, by establishing a Negro Commission under Huiswoud, Party appeared to be
giving organizational substance to its ideological claims.” Ibid., p. 21.
92

da questão negra na luta contra o imperialismo, impactando necessariamente na abrangência


geográfica da questão. Até então basicamente dois países lideravam a discussão: Estados
Unidos e África do Sul.224 Entre 1924 e 1928, a “questão negra” como política comunista se
alastraria e no seu rastro as questões ligadas às minorias “nacionais”, tais quais os indígenas
nas Américas. Uma segunda frente deveria se ater à questão negra e suas especificidades em
países atrasados, semicoloniais, especialmente aquelas ligadas aos mundos do trabalho.225
Além dessas duas frentes, havia os setores autóctones de cada seção da Comintern que
discordariam e/ou acrescentariam adendos às diretrizes cominternianas. A ortodoxia do
combate à exploração de classe já estava por muito tempo entranhada na esquerda. Somente a
partir de 1924, com uma organização da Comintern e seus organismos anexos, tais quais a
Profintern e Krestintern, a retração do movimento na Europa e o “combate ao imperialismo”
como pedra angular da geopolítica da Comintern, seria possível então construir espaços de
reflexão e formulação de estratégias que pudessem golpear os impérios por dentro. Assim, a
mais concreta iniciativa da Comintern de discussão sobre a questão negra se daria somente a
partir de 1928, com a criação de uma Comissão Negra sob os auspícios da Profintern. A
Internacional Sindical construiria a ponte para a integração do negro. Ou para a
autodeterminação. Para entender as disputas entre militantes negros em torno da agenda
comunista, é preciso compreender parcialmente alguns indivíduos e recuperar algumas
trajetórias.
Lovett Fort-Whiteman, o primeiro comunista negro estadunidense, foi descrito por
seus companheiros contemporâneos das mais variadas formas. Para alguns, era um “boêmio...
aparentando estar afastado dos trabalhadores que tinha expectativa em organizar”. Harry
Haywood se sentia ambiguamente “repelido e fascinado pela excessiva exuberância do
homem”. 226 Responsável por recrutar parte significativa da militância negra do Partido
Comunista dos Estados Unidos e, mais especificamente, da Comintern, Whiteman veria, em
1928, sua reputação e sua histórica militância reduzida ao rótulo de trotskista enquanto
acusações ainda mais sérias lhes seriam imputadas. 227 Parece claro que as imputações,
verdadeiras ou não, devem ser analisadas enquanto sintoma e não como causa ou efeito.
Às vésperas do VI Congresso da Internacional Comunista, em meados de 1928,
mudanças dramáticas se operariam no cerne da organização do movimento comunista

224
Comunistas da Inglaterra e da França participaram timidamente das discussões preliminares.
225
A África do Sul, conquanto sob domínio colonial, possuía, na interpretação cominterniana, uma burguesia
consolidada.
226
GILMORE, 2008, p. 58.
227
Ibid., p. 58.
93

internacional, e forças políticas distintas alterariam suas posições nos postos de tomadas de
decisão da IC. O processo de descenso político de Whiteman, acompanhado pela ascensão
daqueles que ele próprio trouxe ao partido no decorrer da primeira metade dos anos de 1920,
é indicativo de inflexões programáticas da IC com alcance global. Na prática, é sobre essas
transformações e suas implicações práticas na militância comunista negra que tratará esta
tese.
Whiteman tinha se atribuído, entre os anos de 1924 e 1926, a tarefa de cooptar negros
para cerrarem fileiras comunistas e, ao mesmo tempo, selecioná-los para a Universidade para
os Povos Orientais.228 Assim, ele se comunica com o então diretor e descreve o procedimento
que tem utilizado para escolher os estudantes que iriam para União Soviética estudar na
KUTV.
Os estudantes negros estão sendo selecionados com o maior dos cuidados (sic) eles
são sete homens e três mulheres todos ainda em seus vinte no que diz respeito à
idade. Eu estou dando preferência aos membros do partido e àqueles que têm estado
em contato comigo em meu trabalho. Eles são pessoas sinceras, enérgicas e
inquestionavelmente devotadas à causa. Eu espero que eles estejam na Rússia até a
última parte de agosto ou a primeira de setembro.229

Heywood Hall estaria dentre os escolhidos para ir à KUTV receber instruções e


formação bolchevique um ano depois da primeira leva, quando seu irmão mais velho, Otto
Hall, partira. Heywood, depois de frequentar e participar brevemente da African Blood
Brotherhood, entraria, ainda em 1925, na Liga Comunista Jovem que, a essa altura, já era
dirigida por Nasanov. A partir dessa aproximação dupla, com Whiteman e com o próprio
Nasanov, ele esteve nesse grupo de estudantes, chegando a Moscou apenas no início de
1926.230
Em junho de 1925, tempo em que Whiteman enviou a referida carta a Moscou, no
campo político da esquerda negra estadunidense, os recém-ingressos provenientes da African
Blood Brotherhood e Whiteman detinham o privilégio do comando, nem tanto em função de
suas posições internas no CPUSA mas, sobretudo, em razão de suas relações com dirigentes
da Internacional Comunista e seus organismos mais importantes, tais como a Internacional

228
Curiosamente é assim que Fort-Whiteman se refere à KUTV, abreviatura da Universidade Comunista dos
Trabalhadores do Leste.
229
“The Negro students are being selected with the uttermost care (sic) they will be of seven men and three
women all yet in their twenties in respect to age. I am giving preference to party members and those who have
been associated with me for some time in my work. They are persons, who are sincere, energetic and
unquestionably devoted to the Cause. I hope to have them in Russia by the latter part of August or the first of
September.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 33, list. 8.
230
Cf. HAYWOOD, Harry. Black Bolshevik: Autobiography of an Afro-American Communist. Chicago:
Liberator Press, 1978. p. 5-148; DRAPER, 1960, p. 332-5.
94

Sindical Vermelha e a Internacional Camponesa.231 Ainda era preciso convencer uma parcela
hegemônica dos militantes do CPUSA acerca da importância da questão negra para a
totalidade do partido. Não por acaso, o “chauvinismo branco” seria uma expressão
onipresente na documentação referente aos negros do partido entre 1924 e 1928. Whiteman
foi um dos principais articuladores desse mote e, desde o início de sua militância no Partido,
assim como os mais proeminentes militantes do CPUSA, articulou-se de fora para dentro.
Mais precisamente, tentou envolver o partido com sua causa a partir de apoio externo
utilizando-se do centralismo democrático que se impunha de Moscou. Sempre que necessário,
os militantes negros recorreriam às resoluções vindas da URSS para se impor às direções
partidárias do CPUSA. Portanto, essa era a natureza da disputa em que se encontrava
Whiteman.
Whiteman avaliava que os espaços de tomadas de decisão do partido não eram
compostos por negros, tampouco as estratégias delineadas pelo partido sofriam o impacto das
formulações de intelectuais negros esperado pela militância negra. Whiteman procurou
recrutar negros ao Partido e, finalmente, formar uma intelectualidade negra capaz de disputar
os rumos partidários a partir de Moscou.
Essa atitude de Whiteman encontrava respaldo, em mais de uma maneira, do Comitê
Executivo da Internacional Comunista. O Secretário Político do CEIC enviou, em 1925, uma
circular aos Partidos Comunistas da Grã-Bretanha, França, Alemanha, Estados Unidos, Itália,
Bélgica e Holanda advertindo que:
Nas universidades das capitais e cidades da Europa e América existem dezenas de
milhares de estudantes de países coloniais e semicoloniais do Oriente. Eles estão lá
primeiramente para se preparar para as variadas profissões intelectuais (medicina,
engenharia, direito etc.), mas parcialmente é o desejo de adquirir o conhecimento da
ciência europeia e o movimento de libertação que os levam até lá. Aqueles
estudantes dos países orientais (chineses, indianos, japoneses, coreanos, árabes,
afegãos, turcos, persas, negros, marroquinos etc.) diferem imensamente dos
estudantes ocidentais que agora são uma expressão da deterioração ideológica e
política da burguesia ocidental. Os jovens intelectuais orientais estão experienciando
a luta pela libertação de seus respectivos países contra o imperialismo. As
inclinações de muitos desses estudantes orientais estão inteiramente com os grupos
de revolucionários nacionais de seus países e por meio de um trabalho sistemático
muitos deles podem ser trazidos para a influência do comunismo.232

231
GILMORE, 2008, p. 45.
232
“In the universities of the capitals and towns in Europe and America there are tens of thousands of students
from the colonial and semi-colonial countries of the East. They are there primarily to prepare themselves for the
various intellectual professions, (medicine, engineering, legal etc.) but partly it is the desire to acquire a
knowledge of European science and the liberation movement which brings them there. Those students from the
Eastern countries (Chinese, Indians, Japanese, Koreans, Arabians, Afghanistans, Turks, Persians, Negroes,
Moroccans etc.) differ greatly from the West European students who are now an expression of the ideological
and political deterioration of the Western bourgeoisie. The young Eastern intellectuals are experiencing the
liberation struggle of their respective countries against imperialism. The inclinations of many of these Eastern
95

Em consonância com uma avaliação da IC de que era necessário atacar o calcanhar de


aquiles das forças imperialistas, e com claras menções orientalistas, o CEIC via uma
predisposição natural desses estudantes “orientais”. Essa condição só podia ser alterada em
razão da posição de classe de seus professores e das elites de seus países de origem:
Por outro lado, é preciso levar em consideração que há notícias de uma
desorganização social e política tardia perceptível nos movimentos de libertação
nacional de muitos dos países orientais (China, Índia, Egito etc.). A direita desses
movimentos, seções da burguesia nacional, está agora entrando em acordo com os
opressores imperialistas. A presença na Europa de dezenas de milhares de
estudantes, que estão sendo moldados por professores burgueses pode, sob as
circunstâncias do presente, trazer desmoralização de suas consciências
revolucionárias e fortalecer as posições dos elementos traidores dos movimentos de
libertação no Oriente. 233

Como solução, curiosamente, os comunistas deveriam


AJUDAR A MOLDAR A IDEOLOGIA REVOLUCIONÁRIA DELES [DOS
ESTUDANTES], DAR-LHES INFORMAÇÃO SISTEMÁTICA SOBRE AS
LUTAS DO PROLETARIADO EUROPEU E DA COMINTERN E A RELAÇÃO
DESSAS LUTAS COM O MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO DOS POVOS
ORIENTAIS.234

Dentre as sugestões mais relevantes que o Secretariado Político da CEIC fez aos
Comitês Centrais dos partidos dos países citados anteriormente, estão: 1) formação de um
comitê dirigido pelo Agitprop com participação do Departamento de Organização a fim de
elaborar um plano de trabalho para as organizações dos estudantes orientais; 2) organização
de palestras e aulas para os estudantes, de acordo com seus grupos nacionais; e 3) organização
da distribuição de livros para os estudantes, com especial ênfase para aqueles que lidam com
movimentos de libertação colonial.
Se por um lado a direção política da IC não propunha transferir esses estudantes para
as universidades soviéticas, por outro entendia que eles fariam o papel de realizar a disputa
ideológica por dentro dos países imperialistas. Militantes comunistas de “países coloniais e
semicoloniais” com amplo conhecimento da ciência europeia e imersos nos modos de vida

students are entirely with the national-revolutionary groupings of their countries and by systematic work many
of them could be brought under the influence of Communism.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 32, list. 41 a 43.
233
“On the other hand, it must be taken into consideration that of late a social and political disorganisation is
noticeable in the national liberation movements of many of the Eastern countries (China, India, Egypt etc.). The
right wing of these movements, sections of the national bourgeoisie, are now definitely entering into agreements
with the imperialist oppressors. The presence in Europe of tens of thousands of students, who are being moulded
by bourgeois professors may, under the existing circumstances, bring about partial demoralisation of their
revolutionary consciousness and strengthen the positions of the treacherous elements in the liberation
movements in the East.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 32, list. 41 a 43.
234
“ASSIST IN MOULDING THEIR[STUDENTS] REVOLUTIONARY IDEOLOGY, GIVE THEM
SYSTEMATIC INFORMATION ABOUT THE STRUGGLES OF THE EUROPEAN PROLETARIAT AND
COMINTERN AND THE RELATION OF THESE STRUGGLES TO THE LIBERATION MOVEMENT OF
THE EASTERN PEOPLES.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 32, list. 41 a 43.
96

ocidental imporiam, no médio prazo, um golpe aos países imperialistas na chamada “luta
ideológica”.
Na comemoração do quarto aniversário da KUTV, Stalin, em discurso, disse:
Ao analisar a composição do corpo estudantil da Universidade dos Trabalhadores do
Oriente, não se pode deixar de notar uma dualidade. Essa Universidade une
representantes de não menos que cinquenta nações e grupos nacionais do Oriente.
Todos os estudantes dessa Universidade são filhos do Oriente. Mas essa definição
não dá uma clara ou completa noção. O fato é que existem dois grupos principais
entre os estudantes da Universidade, representando dois tipos de condições
totalmente diferentes de desenvolvimento. O primeiro grupo consiste de pessoas que
chegaram aqui do Oriente soviético, de países onde o domínio burguês não mais
existe, onde a opressão imperialista foi derrubada, e onde os trabalhadores estão no
poder. O segundo grupo de estudantes consiste de pessoas que vieram para cá de
países coloniais e dependentes, de países onde o capitalismo ainda reina, onde a
opressão imperialista ainda está em pleno vigor, e onde a independência ainda
precisa ser conquistada a partir da expulsão dos imperialistas.
Assim, nós temos dois Orientes, vivendo vidas diferentes, e se desenvolvendo sob
diferentes condições.
Não é preciso dizer, essa dualidade na composição do corpo de estudantes não pode,
senão, marcar o trabalho da Universidade dos Trabalhadores do Oriente. Isso explica
o fato de que essa Universidade localiza-se com um pé em solo soviético e outro no
solo das colônias e países dependentes.
Por essa razão as duas linhas de atividade da Universidade: uma linha tem como
objetivo criar quadros capazes de servir às necessidades das repúblicas Soviéticas do
Oriente, e a outra linha tem como objetivo criar quadros capazes de servir aos
requerimentos revolucionários das massas trabalhadoras nos países coloniais e
dependentes do Oriente. 235

Esse cenário analítico deu a Whiteman a chance de construir uma prerrogativa anterior
aos outros militantes para escolher quais estudantes enviar à União Soviética. Dentre eles
estariam Harry Haywood (antigo Heywood Hall), James Ford, William Patterson, Otto
Huiswoud e Cyril Briggs, para ficar apenas entre aqueles que ocuparam cargos de direção. Ao
contrário de Whiteman, a formação política dos homens citados obedeceria aos cânones
comunistas, com a notável exceção de Cyril Briggs.
235
“Analysing the composition of the student body of the University of the Toilers of the East, one cannot help
noting a certain duality in it. This University unites representatives of not less than fifty nations and national
groups of the East. All the students at this University are sons of the East. But that definition does not give any
clear or complete picture. The fact is that there are two main groups among the students at the University,
representing two sets of totally different conditions of development. The first group consists of people who have
come here from the Soviet East, from countries where the rule of the bourgeoisie no longer exists, where
imperialist oppression has been overthrown, and where the workers are in power. The second group of students
consists of people who have come here from colonial and dependent countries, from countries where capitalism
still reigns, where imperialist oppression is still in full force, and where independence has still to be won by
driving out the imperialists. Thus, we have two Easts, living different lives, and developing under different
conditions.
Needless to say, this duality in the composition of the student body cannot but leave its impress upon the work of
the University of the Toilers of the East. That explains the fact that this University stands with one foot on Soviet
soil and the other on the soil of the colonies and dependent countries.
Hence the two lines of the University's activity: one line having the aim of creating cadres capable of serving the
needs of the Soviet republics of the East, and the other line having the aim of creating cadres capable of serving
the revolutionary requirements of the toiling masses in the colonial and dependent countries of the East.”
STALIN, Josef V. The Political Tasks of the University of the Peoples of the East. Marxists Internet Archive.
2005. http://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1925/05/18.htm Acesso em: 13/08/2013.
97

3.6 A construção do separatismo estadunidense

A tese da autodeterminação do chamado Cinturão Negro do Sul dos Estados Unidos


teve seu ápice, paradoxalmente, em meados de 1928. Sua ascensão coincide tanto com uma
alteração no front negro das fileiras comunistas quanto com a reorganização dos conflitos
neste setor específico do movimento comunista internacional. Ao mesmo tempo em que
ascendeu sob violenta crítica, assim mesmo, a tese da autodeterminação terminou garantida
pelos altos dirigentes da IC.
As maneiras de explicar a ascensão da tese da autodeterminação e a preponderância de
sua acepção associada à secessão são variadas. Tanto Mark Solomon quanto Glenda Gilmore
e Cedric Robinson apostam no imaginário nacionalista que pairou entre os militantes negros
desde Marcus Garvey.236 Dessa maneira, os comunistas negros teriam sido compelidos a
elaborar uma tese nacionalista como forma de anteposição política.
Uma outra possibilidade explicativa, não necessariamente conflitante, seria imergir na
divisão das disciplinas de ciências humanas na União Soviética associada à presença de
militantes e estudiosos negros na Rússia, principalmente, a partir de 1926. A questão das
nacionalidades acompanhou os momentos mais marcantes da história da União Soviética e,
nesse sentido, as elaborações “científicas” ajudaram, sobremaneira, a definir as estratégias do
Comissariado do Povo para os Assuntos das Nacionalidades e da própria Internacional
Comunista no que diz respeito a sua própria expansão. Uma primeira distinção em relação aos
países ocidentais é a divisão estanque, a partir da consolidação do regime, entre antropologia
e etnografia na União Soviética, uma alteração em relação ao Império Russo Czarista.
Etnografia e antropologia eram disciplinas distintas na Rússia. Enquanto etnógrafos
soviéticos estudaram nacionalidades e culturas nacionais, antropólogos soviéticos e
alemães filiados a um novo Instituto Racial Germano-Russo iniciaram estudos
médico-antropológicos de “raças” e “tipos raciais” por toda a União Soviética.237

Os interesses políticos de tal divisão eram evidentes. A recém-criada União das


Repúblicas Socialistas Soviéticas precisava fracionar os métodos científicos utilizados para
entender hábitos e costumes daqueles usados para estudar feições físicas. O objetivo principal

236
SOLOMON, 1998.
237
“Ethnography and anthropology were distinct disciplines in Russia. While Soviet ethnographers studied
nationalities and national cultures, Soviet and German anthropologists affiliated with a new German-Russian
Racial Institute began to conduct medical-anthropological studies of ‘races’ and ‘racial types’ throughout Soviet
Union. HIRSCH, Francine. Race without the Practice of Racial Politics. Slavic Review, Urbana, v. 61, n. 1, p.
31, primavera, 2002.
98

era compreender melhor a ampla plêiade de povos que responderiam, obedecendo aos
critérios do direito de autodeterminar-se, dali por diante, pela alcunha de soviético.
Nacionalidades foram construídas entre 1917 e 1939, e não simplesmente de
maneira metafórica. Instituições e indivíduos de diferentes regiões trabalharam
conjuntamente (e às vezes uns contra os outros) para pesquisar os entendimentos
locais de identidade; esboçar listas de tribos, nacionalidades e idiomas de
localidades específicas; e concluir com um abrangente quadro conceitual.238

Esses debates a respeito da elaboração do censo de 1926 possivelmente foram


observados com atenção por estudantes dos países semicoloniais e coloniais que estudavam
na Escola Leninista Internacional e na Universidade para os Trabalhadores Orientais. Ainda
que uma parte dessa discussão tenha se operado em Leningrado (atual São Petersburgo) e não
em Moscou, é possível inferir algum nível de compartilhamento de informações entre
militantes da IC, do Partido Comunista da União Soviética e do círculo de intelectuais que
ocupavam cargos na Academia de Ciências e na Universidade de Moscou. Não se pode
informar o nível de envolvimento dos militantes da IC na elaboração de formulários para o
censo, e mesmo na sua interpretação. Sabe-se apenas que as escolhas realizadas pelos
etnógrafos soviéticos passavam pelo crivo de analistas políticos.
Em 1926, os etnógrafos começaram a discutir autodeterminação nacional e o direito
de cidadãos de escolher suas próprias identidades nacionais como ideias
relacionadas. Numa sessão conjunta de etnógrafos, estatísticos e representantes do
Soviete das Nacionalidades na Quarta Conferência de Estatística de Toda União em
fevereiro de 1926, etnógrafos defenderam fortemente que a nacionalidade não era
“biologicamente” determinada e não poderia ser definida por “traços objetivos”.239

A partir dessa efervescência dos estudos das questões nacionais, têm-se uma outra
chave para o entendimento da propositura da autodeterminação do cinturão negro no sul dos
Estados Unidos: Nikolai “Charlie” Nasanov, um siberiano que passara dois anos (1925-1927)
naquele país organizando a Juventude Comunista Internacional. O documento que segue trata
de uma tentativa datada de 1929, por parte de Nasanov, de abordar a questão a partir de uma
crítica interna à atividade comunista entre os negros nos Estados Unidos. As questões colonial
e nacional se confundiam com a questão racial. Aparentemente a IC consentia essa imprecisão
a fim de permitir uma maior maleabilidade na aplicação das táticas definidas nos plenos. O

238
“Nationalities were constructed between 1917 and 1939, and not simply in the metaphorical sense.
Institutions and individuals from different regions worked together (and sometimes against each other) to
research local understandings of identity; draft lists of tribes, nationalities and languages for specified localities;
and come up with a comprehensive conceptual framework”. HIRSCH, Francine. The Soviet Union as a Work-in-
Progress: Ethnographers and the Category Nationality in the 1926, 1937, and 1939 Censuses. Slavic Review,
Urbana, v. 56, n. 2, p. 275, verão 1997.
239
“By 1926, the ethnographers began to discuss national self-determination and the right of individual citizens
to choose their own national identities as related ideas. At a joint session of ethnographers, statisticians and
representatives of the Soviet of Nationalities at the Fourth All-Union Statistical Conference in February 1926,
ethnographers made a strong case that nationality was not ‘biologically’ determined and could not be defined by
‘objective traits’.” Ibid., p. 260.
99

referido documento tem as características de um artigo. Não se sabe quando foi publicado ou
se, de fato, o foi. Trata-se, visivelmente, de um rascunho. Levando em consideração essas
observações, Nasanov realiza duras críticas ao PC estadunidense por suas deliberações de
abril de 1928 e sua inabilidade em desenvolver trabalho entre os negros. Um ano antes, em
relação à questão negra, o partido havia decidido que:
No espírito de todas as decisões da Comintern, A PRINCIPAL POLÍTICA DO
PARTIDO É:
a) A questão negra é UMA QUESTÃO RACIAL e é incumbência do Partido
Comunista lutar pelos negros como uma raça oprimida;
b) O principal dever do partido é defender a causa e organizar ALGUNS
ELEMENTOS ENTRE TRABALHADORES NEGROS como líderes do
movimento racial negro e como parte do proletariado americano na luta contra o
capitalismo.240

Na medida em que havia reduzido o problema negro à raça, como nunca tinha sido
feito por socialistas e/ou comunistas, o partido, para Nasanov, se eximia de abordar o
movimento revolucionário negro, por exemplo. Nasanov avaliava que o Comitê Central do
CPUSA reafirmava posições chauvinistas de brancos ao não ampliar o trabalho dos
comunistas entre negros, já que restringia o partido àqueles.
O significado d[a] questão racial é difícil de entender, já que reduz a questão Negra
a um problema etnográfico[lógico] (e a ideia de raça é principalmente uma ideia
etnográfica[lógica]). Reduzir essa questão a uma definição etnográficalógica
significa subestimar a questão negra como uma questão nacional e nossa relação
com os negros enquanto povo oprimido. Em toda a resolução, nenhuma palavra é
dita sobre a atitude do partido em relação ao movimento revolucionário negro, ao
passo que essa é a chave para a questão negra.241

Ao garantir esse tipo de posição, para Nasanov, o CPUSA não conquistava a confiança
da comunidade negra uma vez que não havia um enfrentamento do chauvinismo.
E ainda essa questão é primeira premissa para o trabalho entre Negros, para ganhar
sua confiança e treinar novos quadros de trabalhadores negros. A esse respeito as
coisas não estão como deveriam no Partido Americano. [...] Muitos dos camaradas
negros nas fileiras do Partido estão insatisfeitos com a atual atitude do Partido em
relação a eles como negros.242

240
“In the spirit of all Comintern decisions THE MAIN POLICY OF THE PARTY IS:
a) The Negro question is A RACIAL QUESTION and it is incumbent on the Communist Party to struggle for
the Negroes as an oppressed race.
b) The foremost duty of the Party is to champion and organise SOME ELEMENTS AMONG NEGRO
WORKERS as leaders of the radical Negro movement and as part of the American proletariat in the struggle
against capitalism.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 59, list. 86.
241
“The meaning of [the] racial question is difficult to understand, for it reduces the Negro question to an
ethnographical[logical] problem, (and the idea of race is mainly an ethnographical[logical] idea). To reduce this
question to an ethnographicallogical definition means under-estimating the Negro question as a national question
and our relation to Negroes as an oppressed people. Throughout the whole resolution not a word is said about the
attitude of the Party to the revolutionary Negro movement, whereas this is the key to the Negro question.” Ibid.
242
“And yet this question is the main premise for work among Negroes, for gaining their confidence and training
new cadres of Negro workers. In this respect things are not as they should in the American Party. [...] Most of
the Negro comrades in the ranks of the Party are dissatisfied with Party’s present attitude to them as Negroes.”
Ibid.
100

Trechos das reflexões de Nasanov seriam reproduzidos ipis litteris na resolução de


1930 do Secretariado Político da Comintern sobre a “Questão negra nos Estados Unidos”. Sua
proposta, em conjunto com Harry Haywood, a respeito do caráter nacional dos negros no Sul
dos Estados Unidos, centralizava a ação dos comunistas no Sul do país no combate ao
chauvinismo. Eis como fora composta a Comissão Negra responsável pela preparação das
teses sobre o assunto no VI Congresso, dois anos antes.
Como eu lembro, o subcomitê foi formado por Nasanov e cinco estudantes: quatro
negros (incluindo meu irmão Otto e eu) e um estudante branco, Clarence Hathaway,
da Escola Leninista. Além disso, havia outros membros ex-officio: representante da
Profintern Bill Dunne e representante da Comintern Bob Minor. Eles raramente
frequentaram nossas sessões. James Ford, que foi então convocado para a
Profintern, também frequentou algumas sessões.243

Nasanov teria sido o responsável por introduzir a Haywood estudiosos sobre as


questões das nacionalidades na URSS, na Escola Leninista Internacional e na Universidade
dos Trabalhadores do Oriente.244 Os últimos anos da década de 1920 constituem-se como
ponto de chegada dessa relação iniciada em meados do mesmo decênio. Eles haviam se
conhecido, de acordo com Haywood, pouco antes da ida deste a Moscou.
A tese da autodeterminação do Sul e da centralidade dos negros sulistas no processo
revolucionário estadunidense era, em parte, uma resposta à “Thesis for a New Negro Policy”,
documento que deveria ter chegado ao VI Congresso da IC, o qual tinha como fundamentos
as seguintes diretivas: 1) liquidar organizações específicas de raça e viabilizar a forja de
solidariedade de classe; 2) desenvolver um programa orientado pelas questões [econômicas]
do Norte de modo a desviar a consciência racial dos negros sulistas para uma consciência de
classe; e, por fim, 3) recrutar negros diretamente ao Partido, sem mediação de organizações
paralelas.245 Em que pesem os novos argumentos para a defesa dos itens, as questões postas
remontavam à tradição do antigo Partido Socialista, para o qual a divisão entre raça e classe,
aos olhos dos comunistas, se tratava de um constructo liberal. Ainda que Whiteman, Jay
Lovestone e William Patterson tivessem em mente que a construção de organizações paralelas
para os negros continuaria privando-os de participar dos processos decisórios do partido,

243
Refere-se à Negro Commission que se preparou para o VI Congresso. HAYWOOD, Harry. “Self-
determination: the fight for a correct line”. In: HALL, Gwendolyn M. (Ed.). A black communist in the
freedom struggle: the life of Harry Haywood. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2012. (Versão
Kindle, posição 2293). “As I recall, the subcommittee consisted of Nasanov and five students: four Blacks
(including my brother Otto and myself) and one white student, Clarence Hathaway, from the Lenin School. In
addition, there were some ex-officio members: Profintern rep Bill Dunne and Comintern rep Bob Minor. They
seldom attended our sessions. James Ford, who was then assigned to the Profintern, also attended some
sessions.”
244
TURNER, 2005. p. 156.
245
SOLOMON, 1998, p. 64-5.
101

Haywood e Nasanov os escolheram como alvo preferencial para a aplicação da tese da


autodeterminação.246
Pouco depois, a 30 de abril de 1928, o Comitê Político do braço legal dos comunistas,
o Workers’ Party, elaborou a já citada Resolução de 1928. “O Comitê Executivo Central
(CEC) afirma seu desacordo com todos aqueles camaradas negros ou brancos que propõem a
diminuir ênfase na fase da raça ou da classe trabalho de nosso trabalho com os negros.”247
As resistências à proposta de Haywood foram inúmeras. A começar por seu próprio
irmão, Otto Hall, que chamou a tese de “criminalmente estúpida” ao argumentar que seu
único resultado seria o “de afastar as massas negras [do partido]”.248 Outros camaradas
impuseram críticas com diferentes focos. James W. Ford apontou que as elaborações de
Haywood direcionavam para um certo nível de intelectualismo e não atingiria resultados
práticos. Ainda foi além e disse que “nós não temos praticamente nenhum membro negro no
Partido (no Sul).”249
Entre críticas e acusações, a tese da autodeterminação prevaleceu e condicionou todas
as elaborações futuras da Comintern e do CPUSA até o início da década de 1940. Foi
responsável por derrotar o “Pan-Africanismo” comunista de James Ford, William Patterson,
George Padmore e Otto Huiswoud. Dessa maneira, a partir do VI Congresso, os organismos
auxiliares da IC teriam cada vez menos contato para debater e promover ações ligadas à
questão negra. Os esforços intelectuais dos operadores afro-americanos da Comintern
estavam paulatinamente mais envoltos em torno das lutas faccionais e em levar o debate da
questão negra para os Estados Unidos. Confiná-los a uma determinada região ou país
significaria isolar a possibilidade de influências políticas de outros organismos
cominternianos no domínio partidário estadunidense.
A maior parte das ações e avaliações acerca da situação de negros nos países coloniais
deu-se a partir da Comissão Negra da Profintern (Internacional Sindical Vermelha). O
crescimento da atividade da Comissão Negra da Profintern coincidiu com a aplicação da tese
da autodeterminação e com o alijamento de intelectuais dos partidos comunistas a partir da
execução da tática de “classe contra classe” determinada a partir do VI Congresso. No
linguajar de época, intelectuais pequeno-burgueses foram retirados das direções partidárias e
246
Têm sido ignoradas, intencionalmente, nesse texto as lutas faccionais do CPUSA. Neste caso, trata-se
também de uma disputa pelo controle partidário. Jay Lovestone e William Z. Foster protagonizaram uma longa
batalha pelo domínio do partido. O primeiro, apoiado por Nikolai Bukharin, e o segundo, por Stalin, levaram o
confronto ao VI Congresso, em 1928.
247
“The CEC states its disagreement with all those Negro and white comrade who propose to under-emphasis
wither (sic) the race or the working class phase of our Negro work.” RGASPI, F. 455, op. 155, d. 64, list. 8.
248
HALL apud GILMORE, 2008, p. 63.
249
“We have practically no Negro Party members (in the South)”. FORD apud GILMORE, 2008, p. 64.
102

terminaram substituídos por trabalhadores. Uma parte significativa deles terminou ocupando
cargos de direção e/ou de produção de inteligência em Moscou. Foi o caso dos quatro homens
citados anteriormente.

3.7 Fracionamento da luta negra e a pulverização organizativa

A Internacional Comunista criou organismos auxiliares cujas atuações eram


minimamente circunscritas aos diferentes aspectos da luta de classes. Subordinados à
Comintern, esses suborganismos foram definidos em termos espaciais (Internacional
Camponesa, Sindical Vermelha), em função de gênero e de circunstância etária (Internacional
da Mulher, Juventude Comunista Internacional) e em relação ao lazer e cuidado com o corpo
(Internacional do Esporte) por parte da classe trabalhadora. Houve também uma internacional
de amplo espectro que se ocupava de questões extremas, o Socorro Internacional (atuava em
questões jurídicas e de socorro humanitário). Além desses, outros suborganismos tiveram
lugar na Internacional Comunista de maneira a disputar a atenção dos comunistas. De todos
aqueles, porém, a Internacional Sindical Vermelha, a Internacional Camponesa e o Socorro
Vermelho ocuparam os espaços de maior importância nas linhas estratégicas da Comintern.
Ao longo da década de 1920, o crescimento dessas três organizações auxiliares permitiu que
elas passassem a ter algum nível de autonomia em relação à IC.
Em muitos casos, diferentes dirigentes de uma das “internacionais” poderiam também
compor o corpo decisório da IC e de outras organizações. Para o caso em questão, um dos
complicadores é seguir a lógica organizativa das Comissões, Subcomissões e Bureaux Negros
que tiveram lugar ao longo da década de 1920 até meados de 1930. Portanto, antes de adentrar
propriamente no tema do deslocamento de parte da militância negra estadunidense, é
necessário apresentar um mapa organizativo da IC.
Concomitantemente ao debate acerca da autodeterminação, ocorria a implantação do
“Bureau Internacional dos Trabalhadores Negros” pelo Comitê Executivo da Sindical
Vermelha, capitaneada por James Ford. O bureau deveria ser composto por trabalhadores
negros dos Estados Unidos, África do Sul, Guadelupe e Cuba. Em segundo lugar, além de
criar sindicatos novos e independentes, o bureau seria responsabilizado por construir
conexões com os trabalhadores negros de todo o mundo e unificar as pautas de lutas dos
103

negros em torno da luta de classe. Por fim, o bureau deveria, no final de 1929, publicar um
boletim especial e preparar um congresso internacional dos trabalhadores negros.250
Em 1929 havia duas comissões negras: uma ligada ao Secretariado Anglo-Americano
e outra ao Secretariado Oriental da CEIC. Numa clara disputa de espaços, uma carta-proposta
enviada por um militante do Secretariado Anglo-Americano diz:
As deficiências, como eu as vejo, são – a Comissão Negra do Departamento Oriental
tem despendido muito de seu tempo na América, fazendo o trabalho no Congo,
África e América Latina sofrer. Também isso não tem deixado nada para a nossa
subcomissão [Negra] Anglo-Americana fazer e ela não tem de fato funcionado.
Eu faço as seguintes propostas para remediar isso:
1. Todas as questões e materiais americanos devem primeiro ser considerados pela
Subcomissão Anglo-Americana antes de serem abordadas pelas comissões em
conjunto. [...]
3. Eu proponho que as forças do trabalho [do Secretariado] Oriental sejam
fortalecidas, trazendo representantes de países que estamos negligenciando –
representantes do Partido Francês e da América Latina, também da Bélgica.
4. As duas comissões devem trabalhar juntas e ser vistas como uma grande
comissão para ação final em todas as questões americanas.251

Como dito no documento, as atividades do Bureau Negro ligado ao Secretariado


Oriental e à Comissão Negra do Secretariado Anglo-Americano deveriam estar integradas e
estimular atividades de um e do outro. No entanto, muito rapidamente se detectou que
nenhum dos dois estava realizando trabalhos efetivos. De acordo com a proposta, a comissão
negra do Secretariado Anglo-Americano deveria ser fortalecida com mais membros, tais
como Robing Page Arnot, Wolfe Phillips e Elsa Bloch. A princípio, não se sabe se as
propostas foram aprovadas. De acordo com Holger Weiss, o ano de 1929 foi repleto de
reorganizações por parte das diversas comissões negras. Os motivos foram variados, como a
superposição de atividades aos parâmetros geográficos para definição do Secretariado
responsável. Por exemplo, havia possibilidade de a questão negra ter sido enquadrada pelo
Secretariado Romano, englobando assim as colônias francesa e belga. Não vingando, o
Bureau Negro terminou alocado no Secretariado Oriental cujo papel seria coordenar e vigiar o
trabalho das subcomissões, inclusive das seções nacionais. O bureau, porém, não tinha

250
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 53, list.1.
251
“The shortcomings as I see them are – the Eastern Department Negro Commission has spent too much of its
time on America, making the work in the Congo, Africa and Latin America suffer. Also this has left nothing for
our Anglo-American subcommission to do and it has hardly funcioned at all.
I make the following proposals to remedy this:
1. All American questions and materials shall first be considered by the Anglo-American Subcommission
before being taken up by the combined commissions. [...]
3. I propose that the forces for Eastern work be strengthened by bringing in representatives of the countries
we are neglecting – representatives of the French Party and Latin America, also Belgium.
4. The two commissions should join together and be regarded as one big commission for final action on all
American questions.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 70, list. 101.
104

autonomia para desenhar sua política em consonância com as diretrizes cominternianas. Era
necessário o crivo do Secretariado Anglo-Americano e do Secretariado Político.
De acordo com Weiss, o resultado de todas as idas e vindas foi:
A divisão do trabalho foi feita efetivamente em função dessa reorganização: a seção
negra do Secretariado Oriental deveria focar na África Sub-Saariana (excluindo a
África do Sul) e o Caribe, a Sub-Comissão Negra do Secretariado Anglo-Americano
nos Estados Unidos e África do Sul. A separação das duas unidades sublinhou a
divisão geográfica do foco da questão negra e colonial.252

A despeito de todas as reorganizações, a composição das comissões, subcomissões e


bureaux negros era preenchida por uma diversidade de militantes provenientes de variadas
organizações, tais como a Escola Leninista Internacional, a Profintern, a Krestintern, a
Juventude Comunista e outras.
Por fim, Weiss destaca um outro papel do Bureau Negro: produzir informações com o
fito de potencializar a radicalização do proletariado no Atlântico.
Não obstante os membros afro-americanos terem sido capazes de prover Moscou
com reflexões valorosas a respeito das difíceis condições da classe trabalhadora
afro-americana, muito menos era conhecido sobre a situação no Caribe ou na África.
Portanto, uma das primeiras decisões de janeiro de 1929 foi a compra de uma
significativa quantidade de jornais, revistas de grande circulação e revistas
especializadas. A lista incluiu periódicos estadunidenses, europeus e africanos tais
como African World, West Africa, L’Afrique Française, The South African Worker,
The Workers’ Herald (África do Sul), Uganda News, Gold Coast Nation, Lagos
Records, A.P.O. (Órgão Oficial da Organização dos Povos Africanos, África do
Sul), Negro Champion, Opportunity C., Journal of Negro Life, Journal of Negro
History, Crisis, Chicago Defender, Pittsburgh Courier, Afro-American, Associated
Negro Press Agency e o Negro Year Book. Um mês depois, Harry Haywood enviou
uma carta a Cyril Briggs em Nova York, pedindo-lhe para enviar ao Bureau Negro
recortes do The New York Times, The New York World and The New York American
a respeito da questão negra nos Estados Unidos. Os recortes deveriam ser enviados
regularmente para Moscou; os gastos seriam pagos pelo Bureau Negro.253

252
“As a consequence, the division of labour was made effective by this reorganization: the Negro Section of the
Eastern Secretariat was to focus on Sub-Saharan Africa (excluding South Africa) and the Caribbean, the Negro
Sub-Commission of the Anglo-American Secretariat on the USA and South Africa. Put in other words: the
separation of the two units underlined the geographical division of the focus of the Negro and the colonial
question.” WEISS, 2013, p. 127.
253
“Although the African American members were able to provide valuable insights in the plight of the
oppressed African American working class, much less, if anything, was known about the situation in the
Caribbean or in Africa. Therefore, one of the first decisions in January 1929 was to order an impressive amount
of newspapers, magazines and journals. The list included US American, African and European periodicals,
among others the African World, West Africa, L’Afrique Française, The South African Worker, The Workers’
Herald (SA), Uganda News, Gold Coast Nation, Lagos Records, A.P.O. (Official Organ of African People’s
Organisation, SA).215 In addition, the Bureau ordered an impressive amount of African American journals,
including the Negro Champion, Opportunity C., Journal of Negro Life, Journal of Negro History, Crisis,
Chicago Defender, Pittsburgh Courier, Afro-American, Associated Negro Press Agency, and the Negro Year
Book. One month later, Harry Haywood sent a letter to Cyril Briggs in New York, asking him to supply the
Negro Bureau with news clippings from The New York Times, The New York World and The New York American
appertaining to the Negro Question in the USA. The clippings were to be sent regularly to Moscow; his expenses
were to be paid by the Negro Bureau, Haywood promised Briggs.” WEISS, 2013, p. 128-9.
105

Em resumo, as dificuldades organizativas eram sintomas de que se iniciava uma nova


disputa: em Moscou os intelectuais, alijados de participar da vida cotidiana de seus partidos
nacionais, se digladiariam em torno das políticas a serem delineadas de Moscou para as
seções nacionais.
106

4 Tensões e aproximações às avessas: o PCB, a questão negra e a Internacional


Comunista

Era setembro de 1920. Octávio Brandão, pela primeira vez, ía a São Paulo. Foi avaliar
o movimento operário paulista. Não menos importante, queria também conhecer Monteiro
Lobato. Fora a Santos, ao interior paulista e esteve em assembleias com trabalhadores.
Identificou os problemas com “camponeses espanhóis e italianos [...] enganados pela
propaganda do serviço de imigração do Brasil”. Àquela altura, “cheio de lirismo dionisíaco”,
ainda via-se filiado ao anarquismo e, talvez por isso, sua avaliação quando da escrita de
“Combates e Batalhas”, era que sua estada em São Paulo “saiu às avessas”: “São Paulo vivia
preocupado com o preço e a Bolsa do café” e “Lobato e Octávio Brandão não
aproximaram”.254
Durante a visita, cuja duração é desconhecida, escapou-lhe o processo de periferização
da cidade de São Paulo, que já se encontrava em momento derradeiro de seu primeiro ciclo, o
qual enviou contingentes populacionais negros aos bairros da Zona Norte. 255 Deixou-se
esquivar da existência de reações negras às diferentes formas que a segregação e a
discriminação racial assumiram naquela cidade e localidades vizinhas. Ignorou, portanto, os
expressivos setores das comunidades negras que organizaram empreendimentos jornalísticos
diversos. Desconheceu que de modo não necessariamente coordenado diferentes periódicos
pautaram a questão racial e ficaram conhecidos como “a imprensa negra paulista”.
No mês seguinte à visita de Brandão a São Paulo, mais precisamente a 2 de outubro de
1920, em Salvador, o semanário de inspiração anarquista A Voz do Trabalhador,256 vinculado
ao Sindicato dos Pedreiros, Carpinteiros e Demais Classes, dedicou, ao seu modo, parte de
seu espaço à questão racial. Numa charge que enfatizava os lábios grossos, o desenho do nariz
e os cabelos crespos, o semanário identificou as características fenotípicas da classe
trabalhadora baiana. O curto trecho escrito abaixo da charge descreve os esforços materiais e
físicos empreendidos pelos trabalhadores – negros – para aparecerem bem-vestidos e
elegantes tal qual os burgueses.

254
BRANDÃO, Octávio. Combates e Batalhas: memórias. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. v. 1. p. 186.
255
ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São
Paulo: Studio Nobel; Fapesp, 1997. p. 90.
256
O semanário pode ter circulado pelo menos até 1922. CASTELLUCI, Aldrin. Agripino Nazareth e o
movimento operário da Primeira República. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 32, n. 64, p. 84, 2012.
107

No anarquismo havia, portanto, distintas possibilidades de atacar a questão negra.


Inclusive a opção de não enfrentá-la. O mesmo aconteceria com outros setores da esquerda.
Especialmente com o Partido Comunista do Brasil.
Três anos depois e devidamente convertido ao comunismo, no Rio de Janeiro, Octávio
Brandão, ainda fiel à sua maneira de pensar a questão negra desde os tempos de anarquismo,
foi interpelado pela Internacional Comunista acerca da questão. Respondeu à carta com o
seguinte teor:
Camarada Secretário,

Nós recebemos sua circular sobre a Conferência dos Negros, mas nós não
recebemos a primeira circular sobre a qual se referiram:
108

Nós lhes enviaremos um relatório sobre os negros no Brasil e a Comissão Central


Executiva do nosso partido irá pensar sobre a possibilidade de enviar um delegado à
Conferência. Existem negros no Brasil. Mas não há no Brasil uma questão negra.

Fraternalmente,
Octávio Brandão,
Secretário do Exterior.257

Enquanto Brandão negava a existência de uma questão negra no Brasil, em São Paulo,
três meses depois, Jaime de Aguiar e José Correia Leite fundariam O Clarim da Alvorada.
Continuador da tradição iniciada por O Menelique,258 de 1915, o então recém-fundado jornal
aprofundaria os pleitos de setores negros paulistanos.
A afirmação sublinhada por Brandão é sintoma de certa posição interpretativa e
prescritiva acerca da sociedade brasileira. Sua posição foi uma das quais se deixaram ofuscar
pelo surgimento das “primeiras publicações da imprensa negra com uma abordagem
predominantemente combativa”259 a partir da década de 1920. Brandão plasmou uma posição
específica de certos círculos economicistas do socialismo assim como de algumas influências
intelectuais caras aos primeiros comunistas brasileiros.260
Os eventos anteriormente descritos exemplificam algumas das possibilidades mais
comuns de atuação política acerca da questão do negro no Brasil em diferentes espectros
políticos associados à esquerda e às comunidades negras. Tendo em vista essas possibilidades
de enfrentamento (ou não) da questão negra no Brasil, o propósito deste capítulo é analisar a
relação entre os comunistas brasileiros e a questão negra vis-à-vis o movimento comunista
internacional, neste caso circunscrito à Comintern. Será foco também uma análise do modus

257
“Nous avons reçu votre circulaire sur la Conférence des Nègres, mais nous n'avons pas reçu la première
circulaire dont vous parlez dans celle-ci:
Nous vous enversons (sic) un rapport sur les nègres aux Brésil et la Commission Central Exécutive de notre Parti
va penser sur la possibilité d'envoyer un delegué à la Conférence. Il y a au Brésil des nègres. Mais il n'y a pas au
Brésil une question nègre.
Frenternellement,
Octavio Brandão
Secretaire pour l'extérieur”
RGASPI, F. 495, op. 029, d. 011 [ic-0124.pdf]. Os grifos são do próprio documento. A Conferência em questão
refere-se à resolução do IV Congresso da Comintern a qual determinou, dentre outras coisas, a realização de um
Congresso Mundial do Negro organizado pela própria IC. Tal Congresso viria a ser realizado apenas no início da
década de 1930, resultado de outro encadeamento de fatos. DEGRAS, 1955b, p. 401.
258
Cf. FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). 1982. Dissertação. (Mestrado em
Ciências Sociais)–Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986;
FRANCISCO, Flávio Thales Ribeiro. Fronteiras em definição: identidades negras e imagens dos Estados
Unidos e da África no jornal O Clarim da Alvorada (1924-1932). 2010. Dissertação (Mestrado em História
Social)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
259
FRANCISCO, Ibid., p. 23.
260
Dentre eles é possível incluir Euclides da Cunha, Raimundo Nina Rodrigues e Tavares Bastos.
109

operandi das relações empreendidas entre os membros do Partido Comunista do Brasil e


organizações negras.
A omissão de Brandão ocorreu em paralelo ao desgarramento dos jornais negros da
vida social da comunidade a partir de quando bailes, festas e o football dividiriam espaço com
questões acerca do papel do negro na sociedade brasileira e no mundo. Reflexões sistemáticas
sobre a temática racial passaram a ser publicadas em O Clarim da Alvorada em sua seção
“Mundo Negro”, já que notícias do Chicago Defender eram ali replicadas.261 Entre 1923 e
1926, Robert Abbot, editor do Chicago Defender, dedicou-se a aprofundar seu entendimento
sobre a questão negra no Brasil. Difundiram os principais temas da questão negra sob a ótica
em diálogo com o movimento garveyista.
Alguns componentes do Clarim tais como José Correia Leite e Jayme de Aguiar
propuseram, em 1925, “a realização do Congresso da Mocidade dos Homens de Cor, com o
objetivo de criar ‘um grande partido composto exclusivamente por homens de cor’”.262 A
ideia não vingou. No entanto, colocou em pauta a possibilidade de ocupar, enquanto negro,
espaço de representação política no Estado.
Ainda em São Paulo, adveio o Centro Cívico Palmares, dedicado, primordialmente, ao
processo educativo dos negros. Daí sucedeu a criação de uma biblioteca comunitária e de uma
escola. Segundo Florestan Fernandes, o Centro Cívico viria a adquirir uma função política a
partir de 1928 enquanto reação à decisão do Governo do Estado de São Paulo de proibir
negros de fazerem parte da Guarda Civil do estado. Teria sido, então, como resposta à
iniciativa do governo que o Centro Cívico encampou, em março de 1929, a realização do
Congresso da Mocidade Negra, o qual culminou na fundação da Frente Negra Brasileira, em
1931.263 A transformação da Frente Negra Brasileira em partido político foi noticiada pelo
The New York Times de 12 de setembro de 1935 numa pequena nota.264

261
FRANCISCO, 2010, p. 79-81.
262
GOMES, Flávio. Negro e política (1888-1937). São Paulo: Jorge Zahar, 2005. p. 46.
263
A Frente Negra Brasileira foi heterogênea politicamente, demonstrou certa capilaridade entre meios negros
em cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (notadamente na cidade de Pelotas) no início da
década de 1930, tendo sido fechada em 1937 quando da implantação do Estado Novo. ALBUQUERQUE,
Wlamyra R.; FRAGA FILHO, Walter. Uma História do Negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-
Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 265-271.
264
A transformação da Frente Negra em partido político foi noticiada pelo “The New York Times”.
“Brazilian Negroes Form Party
Special Cable to The New York Times.
Rio de Janerio, Sept. 11. - A civic society formed by Negroes was transformed today into a militant political
party when the Superior Electoral Tribunal accepted its charter under the name, Brazilian Black Front. There is
no color line in Brazil, but Negro leaders contend there has been discrimination against them.” 12 set. 1935.
122.jpg. MURPHY Collection Records on International Communism, compiled 1958-1958, documenting the
period 1917-1958 – Brazil. National Archives at College Park. Record Group 263: Records of the Central
Intelligence Agency, 1894-2002. Entry number: A1 18, caixa 201, ARC Identifier: 7403114.
110

A entrada em cena dos comunistas no campo de reflexão sobre questões relativas ao


negro e seu papel na formação social brasileira não se deu de maneira sistemática e efetiva até
meados de 1930. Provavelmente já sob influência pan-africanista, José Correia Leite265 diria o
seguinte acerca das relações entre os espectros de esquerda e a questão negra:
A partir da Guerra de 14-18, começou a efervescência dos ismos (socialismo,
comunismo). Frequentei reuniões da U.T.G.,266 onde se embaralhava a revolta do
negro com reivindicações do proletariado. Nas nossas rodas de conversa apareciam
negros e brancos envolvidos nas teorias marxistas. Estes diziam que a posição
verdadeira do homem negro era lutar contra a ordem social, pois a culpada da
situação era a exploração do regime capitalista. Falavam de um famoso pintor
mexicano que tinha feito um mural onde aparecia Lenine no meio de dois
trabalhadores: um branco e um negro, com as mãos entrelaçadas, tendo Lenine as
mãos sobre eles.
No mesmo trecho, identifica e rememora a campanha internacional dos comunistas no caso
Scottsboro.
Teve também intensa repercussão no meio negro o caso de Scotbar (sic), pois nessa
ocasião os comunistas trabalharam intensamente entre os negros no sentido de
demonstrar que haviam tomado a defesa, através de seu Socorro Vermelho, daqueles
sete negros acusados, por mulheres brancas, de as haverem violentado.267

Ao remontar o embaralhamento da “revolta do negro com reivindicações do


proletariado”, Leite posiciona a esquerda marxista no debate acerca da questão racial. Em sua
memória, o marcador fundamental dos comunistas, no entanto, só aparece quando lembra da
campanha internacional dirigida pelo Socorro Vermelho Internacional em relação ao caso
Scottsboro. O depoimento de Leite, possivelmente de modo involuntário, estabelece uma
certa cronologia da relação entre os comunistas brasileiros e a questão negra no país. Num
primeiro momento, os comunistas engajaram a questão negra por meio da resolução da luta
de classes, num outro identificaram um aspecto estritamente racial e o teriam atacado como
tal. Esta narrativa corrobora com o encadeamento das políticas “raciais” da Comintern.

265
José Correia Leite foi um importante militante do movimento negro brasileiro. Fundou e foi redator de “O
Clarim da Alvorada”. ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 261. “José Correia Leite foi um dos
fundadores da FNB, mas devido a divergências ideológicas entre ele e Arlindo Veiga dos Santos, deixou a
entidade para fundar a Frente Negra Socialista, com estatutos publicados no Diário Oficial do Estado de São
Paulo no dia 21/06/1933.” GOMES, Arilson. A formação de oásis: dos movimentos frentenegrinos ao Primeiro
Congresso Nacional do negro em Porto Alegre - RS (1931-1958)”. 2008. Dissertação (Mestrado em História)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 48.
Cf. RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo:
Quilombhoje, 1999. BASTIDE, Roger. A Imprensa Negra no Estado de São Paulo. In: ______. Estudos Afro-
Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1983. (Coleção Estudos, 18). FERNANDES, Florestan. A Integração do
Negro na Sociedade de Classes. São Paulo: Ática, 1978. FERRARA, 1986. GUIMARÃES, Sérgio Antônio.
Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra em São Paulo e no Rio de Janeiro, 1925 e 1950.
Revista Afro-Ásia, n. 29/30, p. 247-269, 2003.
266
União dos Trabalhadores Gráficos. Não é possível precisar a data da reunião. É possível apenas especular que
ela provavelmente aconteceu entre 1934 e 1935, já que foi um período em que a questão negra se manteve em
debate no movimento comunista internacional e coincide com o período de feitura do quadro em questão, o qual,
por sua vez, foi pintado por Diego Rivera, em 1934, e se chama “O homem controlador do universo”.
267
MOREIRA, Renato Jardim; LEITE, José Correia apud FERNANDES, Florestan. A integração do negro na
sociedade de classes. São Paulo: Globo, 2008. v. 2. p. 23-4.
111

A avaliação da Internacional Comunista sobre a atuação do PCB durante a década de


1920 colocava os comunistas brasileiros numa situação de pleno desconforto. Utilizando
críticas relacionadas tanto à herança anarquista de parte significativa dos fundadores do PC
quanto aos erros teóricos na aplicação das ferramentas analíticas para interpretação da
realidade, a IC desferiu reiteradamente golpes no PCB até a depuração dos dirigentes
fundadores de 1928. A partir de então, a “herança anarquista” deixaria, paulatinamente, o
repertório crítico da Comintern em relação ao PCB. O aspecto racial, repetidamente omitido
pelos dirigentes pecebistas, viria a constituir um dos elementos de dissonância entre a IC e sua
seção brasileira.
Para isso contribuiu o fato de que o PCB desde 1923 recebia pedidos de informações e
convites para participar de debates sobre a questão negra, como exemplifica a já citada
correspondência recebida por Octávio Brandão. Em 1925, a Krestintern, Internacional
Camponesa, por meio de seu dirigente máximo, o polonês Dombal, se ocupou da tentativa de
formar uma Seção Camponesa “para levantar a questão de conectá-la com as colônias
africanas, e particularmente com a África do Sul, Libéria, Angola, Quênia, Índias Ocidentais,
Filipinas e Brasil”.268
Diante da aceitação do PCB na Internacional Comunista, no V Mundial Congresso da
Comintern, em julho de 1924, um programa de ação foi elaborado e enviado ao Comitê
Executivo da IC (CEIC) pelos delegados brasileiros. A versão do texto que foi analisada neste
trabalho é uma espécie de errata, na qual os brasileiros retificam o documento com a
supressão e inclusão de pontos. De acordo com os questionamentos elencados a seguir, pode-
se inferir que se tratava, de fato, de um plano de estudo cujas perguntas direcionavam,
precisamente, para as resoluções elaboradas no IV Congresso. O ano de 1924 foi decisivo
para a entrada da questão negra como pauta dos comunistas, e as reverberações desse
processo podem ter influenciado os brasileiros.
3. A escravidão da raça negra. Causa da importação dos africanos. Seu nível
intelectual e moral. Regime político-social em que viveu na África. Em quais
trabalhos eles estiveram empregados, em qual carreira, em campos de criação de
gado ou de exploração agrícola? Em qual escala se fizeram as importações? A
proporção entre a população negra e as populações indígena e europeia. Regime de
trabalho ao qual estiveram sujeitos os escravos. Meios disciplinares empregados.
Transformação experimentada com a mudança do meio. Intervenção dos padres
como fator de repressão dos escravos. O trabalho escravo na agricultura e nas
indústrias. Em qual medida colaboraram o elemento escravo e o elemento técnico.
5. A abolição da escravidão. Quais são as causas que atribuímos à libertação dos
escravos. Se consideramos as [sublevações] das massas reduzidas à escravidão.
Como se efetua a transformação do trabalho escravo para o trabalho assalariado? As

268
“to raise the question of connecting it with the African colonies, and particularly with South Africa, Liberia,
Angola, Kennia, West Indies, Phillipines and Brazil.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 32, list. 30.
112

consequências na vida das indústrias e da agricultura. Se existiu deslocamento na


composição demográfica. Sobrevivência da ordem econômica, moral e política do
período da escravidão. Como se coloca a questão das raças no Brasil e de que
maneira é possível fazer coincidir as reivindicações de classe com as de raça?269

Após a morte de Lênin e o inesperado lapso temporal entre o IV e o V Congresso da


IC, os comunistas brasileiros estiveram relativamente livres das pressões externas a respeito
da questão racial, porque os planos provindos de Moscou e dos comunistas dos países
imperialistas estacionaram e também pela já sabida posição dos brasileiros sobre a matéria.
Assim, somente em 1928 uma iniciativa da IC e de suas organizações auxiliares tentaria fazer
chegar ao Brasil uma discussão sobre a questão racial.270
Em 1928, houve decisão da Comissão Negra da Krestintern que “camaradas do Brasil,
América do Sul, Inglaterra, França e Estados Unidos deveriam fazer relatórios para essa
comissão”.271 Em agosto de 1928, o delegado latino-americano enviou, possivelmente para
essa comissão, um relatório de pouco mais de uma página. Nele, o delegado Cardenas
afirmava, entre outras, que, exceção feita ao México, Argentina, Uruguai, Chile e Bolívia, os
negros constituíam parte fundamental da população da América Latina. No Caribe e em
países como Venezuela e Colômbia apresentavam uma participação demográfica substantiva.
Segundo ele, no Brasil, havia seis milhões de negros e mulatos. De acordo com Cardenas, não
havia ódio racial na América Latina e a legislação garantia direitos iguais para negros e
brancos. Dentre os problemas detectados no relatório, dois se destacavam: 1) apesar de
sindicatos e partidos comunistas aceitarem livremente negros, eles eram poucos, o que
poderia ser colocado na conta de uma propaganda política inadequada; e 2) os trabalhadores

269
RGASPI, F. 495, op. 029, d. 014, fol 4. Cedem/Unesp, ic-0136.pdf. “AU COMITE EXECUTIF DE L'IC -
NOTE SUR LA ELABORACION DUN PROGRAMME D'ACTION DU P.C. BRESILIEN - PAR LES
DELEGUÉS DU PARTI BRESILIEN A MOSCOU 1924”. “3. L’esclavage de la race noire. Cause de
l’importation des africains. Leur niveau intellectuel et moral. Régime politico-social (sic) sous lequel ils vivaient
en Afrique. Dans quels travaux ils étaient employés, dans le carrière, dans les champs d’élevage du bétail ou
dans les exploitations agricoles? Dans quelle échelle se faisaient les importations? La proportion entre la
population noire e les populations indigéne et européene. Régime de travail au quel étaient soumis les esclaves.
Moyens disciplinaire employés. Transformation éprouvée avec le changement du milieu. Intervention des
prêt[r]es comme facteur de répression des esclaves. Le travail esclave dans l’agriculture et dans les industries.
Dans quelle mesure collaboraient l’élément esclave et l’élément technique. 5. L’abolition de l’esclavage. Quelles
sont les causes qui on porté à la libération des esclaves. Si on compte des subluations [sublevation] des masses
réduites à l’esclavage. Comment s’effectua [sic] la transformation du travail esclave en travail salarié? Les
conséquences dans la vie des industries et de l’agriculture. S’il y a eu des dislocations dans la composition
démographique. Sobrevivence d’ordre economique, moral et politique de la période l’esclavage [sic]. Comment
se pose la question des races au Brésil et de quelle manière est-il possible faire coincider les revendications de
classe avec celles de race?”
270
A bibliografia a respeito das relações entre o PCB e a IC nos estudos mais amplos sobre o vínculo entre a
América Latina e a Comintern não hesitam em pontuar que até 1928 os interesses da Internacional Comunista no
continente eram rarefeitos e descontínuos. Até o presente momento não há evidência para afirmar o contrário.
Isso explicaria parte do pouco interesse dos comunistas brasileiros em adentrar no programa.
271
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 56, list. 45 (August 2nd, 1928) “comrades from Brazil, South America, England,
France and the U.S. should make reports to this commission”.
113

negros eram mais explorados que a maior parte dos trabalhadores brancos. Por esse segundo
motivo, os negros constituíam uma força revolucionária de primeira classe e deveriam ser
alvo de propaganda intensiva.272
O PCB apresentou um relatório ao VI Congresso da IC praticamente em
concomitância à diretiva da Comissão Negra da Internacional Camponesa, já que ambos os
documentos foram escritos, despachados e analisados nos meses de julho e agosto de 1928.
No relatório, o PCB não faz menção a qualquer questão racial no país salvo por dois
momentos em que tangencia a questão ao se debruçar sobre a constituição populacional
brasileira e ao discorrer sobre a história do Brasil. O relatório responde a inúmeras das
perguntas levantadas em 1924.
RELATÓRIO SOBRE A SITUAÇÃO NO BRASIL NO VI CONGRESSO DA IC
População
A população do Brasil se elevou em 1926 a 36.870.900 habitantes. As raças que
habitam o país são: a raça branca na proporção de cerca de 35% da população total,
a negra na proporção de 7% a 8%, a raça indígena, na proporção de 3% a 4%. O
restante da população é formado por uma mistura de raças branca, negra e indígena.
Na parte norte, a população se acha formada em grande parte por uma mistura de
brancos, de negros e de indígenas; nas partes leste e central, de Pernambuco ao Rio
de Janeiro se acha uma grande quantidade de negros. Do Rio ao sul, a população é
quase toda branca.
[...]
Economicamente e politicamente, a raça branca é predominante. A burguesia se
compõe de brancos e de mestiços. Os negros e os índios são muito raros entre a
burguesia.
[...]
História do Brasil
[...]
Em 1888, um decreto aboliu a escravidão. Esse decreto governamental foi feito
diante da ameaça de uma revolta. Depois da abolição da escravidão, os grandes
proprietários de terra perderam sua hegemonia política. Os negros abandonaram as
fazendas e partiram para as villas, mas pouco depois foram obrigados a retornar aos
campos e ganhar baixos salários.273

272
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 56, list. 108.
273
RGASPI, F. 495, op. 029, d. 027, fols. 57-59. Cedem/Unesp, Ic-0015.pdf. “RAPPORT SUR LA
SITUATION EU (SIC) BRESIL AU VI CONGRES DE L’I.C.”
“Population
La population du Brésil se élevait en 1926 à 36.870.900 habitant. Les races qui habitent le pays sont: la race
blanche dans la proportion d’environ 35% de la population totale, la noire dans la proportion de 7 à 8%, la race
indienne, dans la proportion de 3 à 4%. Le restant de la population est formée d’un mélange de races blanche,
noire et indienne. Dans la partie nord, la population se trouve formée en grande partie par un mélange de blancs,
de noirs et d’Indiens; dans les parties est et centre, depuis Pernambuco jusqu’à Rio de Janeiro se trouvent une
plus grande quantité de noirs. De Rio vers le sud, la population est presque toute branche.
[...]
Economiquement et politiquement la race blanche a la prédominance. La bourgeoisie se compose de blancs ou
de métis. Les noirs et les Indiens sont très rares parmi la bourgeoisie.
[...]
Histoire du Brésil
[...]
En 1888, un décret abolit l’esclavage. Ce décret gouvernemental fut rendu devant la menace d’une révolte.
Après l’abolition de l’esclavage les grand propriétaires fonciers perdirent leur hégémonie politique. Les noirs
114

Quatro anos depois, o PCB passaria a estabelecer vínculo direto entre a exploração
econômica e o predomínio branco na composição racial dos extratos dominantes da sociedade
brasileira. Até lá os brasileiros demonstraram pouca profundidade no ataque às questões
indígenas e repetiram os chavões da época ao definir “tribos selvagens” como “pouco
importantes” porque raras.
Ao remontar à história do Brasil e do processo da abolição, os comunistas indicaram
alguns movimentos sobre os quais não conseguiram avançar. O primeiro deles diz respeito à
questão da mudança do trabalho escravo ao assalariado. Uma das problemáticas levantadas
foi a do trabalhador negro, agente do êxodo das fazendas quando liberto, que voltou ao
mundo rural como assalariado: um questionamento de 1924 que não apresenta avanços. Em
segundo lugar, a indagação do plano de estudos de 1924, o qual permitiria aos comunistas
entenderem as imbricações entre os conflitos raciais e de classe, que não foi tratada no
relatório apresentado ao VI Congresso quatro anos depois. Dessa forma, o PCB perdia, aos
olhos dos cada vez mais influentes membros negros da IC e de seus dirigentes, oportunidade
de avançar e apegar-se ao ascendente leitmotif cominterniano. A opção de aderir a ele,
conforme os dados e história sobre o Brasil iam se desnudando aos dirigentes da IC, viraria
até 1930 obrigação moral para os comunistas brasileiros.
O Bureau Negro, ligado ao Comitê Central da Internacional Comunista (CEIC) e ao
Departamento Oriental, fizera menções ao Brasil em meados de 1928, fosse indiretamente274
fosse incluindo o país no grande conglomerado diaspórico. Em julho de 1928 uma resolução
baixada pela Profintern, assinada por James Ford, indicava a necessidade de criação de
espaços específicos para vincular o trabalho sindical à questão negra numa clara alusão ao
enfrentamento das questões do mundo do trabalho (da classe) com a raça:

abandonnèrent les fermes et partirent vers les villes, mais peu après ils furent obligés de retourner aux champs et
de gagner de bas salaires.”
274
Em transcrição de notícia veiculada no jornal “Manchester Guardian” sobre o III Congresso Pan-Africano
realizado em Lisboa, em 1923, aparece, dentre outras, a seguinte chamada: “Nós insistimos no Brasil e na
América Central que povos de descendência africana não estejam mais satisfeitos com uma solução do problema
negro o qual involve sua absorção em outra raça, sem permitir aos negros, enquanto tais, pleno reconhecimento
de sua humanidade e de seu direito de ser”. Tradução livre de: “We urge in Brazil and Central America that
peoples of African descent be no longer satisfied with a solution of the negro problem which involves their
absorption into another race, without allowing negroes as such, full recognition of their manhood and right to
be” (RGAPSI apud Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, F. 496, op. 155, d. 18, list 2). Os informes
sobre o III Congresso foram retomados cinco anos depois, em agosto de 1928, em documento entitulado “Negro
organisations in the United States”. O texto situou o Congresso Pan-Africano como uma organização oposta à
Universal Negro Improvement Association, liderada por Marcus Garvey. Para os comunistas da Comintern, o
Congresso era uma organização composta por negros burgueses e intelectuais e não tinha características de
massa. Na avaliação da agenda política do Congresso, os comunistas entendiam que havia continuidade entre o
III Congresso e o então mais recente encontro, a V Seção Bianual de 1927. RGAPSI/Biblioteca do Congresso
dos Estados Unidos, F. 495, op. 155, d. 59, list. 153.
115

A resolução do 4º Congresso da Sindical Vermelha, seguindo as decisões do 9º


Pleno da CEIC, deve transformar em trabalho e tarefa especiais em referência ao
trabalho sindical entre trabalhadores industriais negros e trabalhadores do campo do
mundo (incluindo negros no Brasil, Colômbia, Venezuela e West Indies) de todos os
partidos concernentes.275

Portanto, não é possível considerar que havia desconhecimento da temática racial no


Brasil por parte da Comintern. É adequado aferir como pouco intrusivas as iniciativas
cominternianas no país. Essas diretivas não foram suficientes para fazer o PCB agir no
sentido de analisar os fenômenos raciais no Brasil, na América Latina, e associá-los aos
conflitos nos quais o partido estava imerso, posto que era parte da sociedade brasileira.
Menos por convicção das direções da IC que por aspectos logísticos e, mais
importante, ideológicos da seção brasileira, Moscou não conseguira se impor, neste ponto
especificamente, ao PCB. Uma última evidência dessa resistência dos comunistas brasileiros
em reconhecer a existência de uma questão negra situa-se em 1929, num escrito de Astrojildo
Pereira.
Naquele ano, Pereira escreveu uma resenha do livro “Populações meridionais do
Brasil”, de Oliveira Vianna. Sob o sugestivo título, “Sociologia ou apologética?”,276 ele
argumentou que o intuito de Vianna era provar, a partir da ciência burguesa, que o Brasil não
era palco das lutas de classes. Para o comunista, Vianna defendera que, salvo por “conflitos
raríssimos”, não houve lutas de classes no Brasil. Ainda a partir da lente de Pereira, Vianna
entenderia que, ao contrário da Europa, onde tal processo teria resultado em algo fecundo, no
maior país tropical os conflitos desse tipo adquiriram outra natureza. Não resultaram e não
resultariam em algo produtivo.
Inescapáveis, o negro e o indígena terminaram cotejados, tanto por Vianna quanto
pelo comunista, este em resposta àquele. Nos pontos em que Vianna sustentou obstáculos ao
avanço da civilização, seja sob a forma de “flechas ervadas dos índios”, “os mosquetes dos
mamelucos” seja ao modo dos quilombolas, Astrojildo Pereira afirmou a existência das lutas
de classes. Por vezes utilizando indistintamente “escravo” como sinônimo de negro, como em
“Índios e escravos contra os Prados e Buenos...”, Pereira não se estendeu na temática racial.
Terminou cravando Zumbi como “o nosso Spartacus”. Viu uma questão de classe em que
negros e índios localizavam-se, juntos, em plano oposto aos proprietários, fossem estes a

275
“The resolution of the 4th Congress of the RILU following the decisions of the 9th Plenum of the ECCI must
become the special work and task in reference to trade union work among Negro industrial and agricultural
workers of the world (including Negroes in Brazil, Columbia (sic), Venezuela and the West Indies) of all the
parties concerned.” RGASPI, F. 495, op. 155, d. 53, list. 2, 21 ago. 1928.
276
PEREIRA, Astrojildo. Sociologia ou apologética? In: ______. Ensaios históricos e políticos. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1979. p. 163-174.
116

aristocracia rural fosse Sua Majestade Cristianíssima. Astrojildo Pereira evitara clivagens
raciais para definir o que chamou de aristocracia rural e burguesia nascente. Estava forjado
um retrato sociológico do país no qual as classes definiam-se em função de sua posição diante
dos meios produção – proprietários vs. despossuídos.
Embora mais sofisticada que a simples negativa de Octávio Brandão à Comintern a
respeito da existência de uma questão negra no Brasil, a crítica de Astrojildo Pereira ao livro
de Oliveira Vianna demonstra as flutuações dos pecebistas em relação ao tema. O caráter
errante exercido pelo PCB em relação à questão das raças foi objeto de investida da
Comintern. Esta se deu, ainda no clima das resoluções do VI Congresso da IC, sob a tutela do
Secretariado Latino-Americano. Realizou-se a I Conferência dos Partidos Comunistas da
América Latina em junho de 1929, em Buenos Aires, e lá foram pontilhados os contornos da
política racial e nacional dos comunistas.277
A partir de 1928 uma carga de pressão efetiva começou a ser praticada pela IC e suas
organizações auxiliares junto ao PCB para que este realizasse uma imersão na questão negra,
e isso não cessou até meados da década de 1930. O VI Congresso da Internacional
Comunista, em 1928 (concomitantemente aos esforços de 1928 da IC em debater a questão
negra), definiu os contornos da nova política da Comintern para praticamente todos os
assuntos que lhe eram concernentes, inclusive o enfrentamento das questões racial e nacional.
O PCB e a IC não poderiam, àquela altura, se comunicar em idiomas mais distintos.
O ponto alto, porém, da dissensão entre o PCB e a IC se deu quando do debate acerca
da “questão brasileira”, em Moscou, em 1929, entre 22 de outubro e 5 de novembro.278 O
debate sobre a questão racial e, especificamente, o tema do negro serão sintetizados a seguir.

4.1 A questão negra e a stalinização do PCB

A situação dos comunistas brasileiros em Moscou em 1929 já era tensa desde o início
da discussão da chamada “Questão Brasileira” durante os intervalos do VI Congresso da IC.

277
Pelo menos desde abril de 1929, quando o periódico do Secretariado Latino-Americano, “La Correspondencia
Sudamericana”, passou a fazer chamadas para a I Conferência, já constava na ordem do dia o ponto IV: “El
problema de razas en América Latina”. O PCB realizou seu III Congresso no início de 1929. No item relativo à
questão camponesa, o PCB decidiu combater os restos da escravidão, defender a devolução de terras confiscadas
aos indígenas e interromper as concessões feitas à Ford. Entretanto, não houve qualquer referência às questões
raciais de qualquer ordem. F. 495, op. 029, d. 035, fols. 1 e 2, ic-0206.pdf.
278
Sobre esta reunião, ver KAREPOVS, 2001, p. 609-25.
117

Havia muito o que debater: o III Congresso do PCB vis-à-vis o VI Congresso da Comintern, a
I Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina e suas resoluções, a organização
sindical, o Bloco Operário Camponês e o encerramento da tática de frente única cedendo
lugar à “classe contra classe”. Havia um leque interminável de temas na pauta. A temática
racial se imiscuiu entre uma ou outra questão com um relevo, até então, inédito. Um dos
protagonistas da pressão exercida pela IC em relação ao PCB foi Stoïan Minev,279 sob o
pseudônimo de Stepanov. Ele foi responsável por algumas das críticas mais agudas à atuação
do PCB. As interpelações de Minev durante a discussão sobre a “questão negra” colocaram
toda a direção do PCB em xeque, não só porque o argumento explicitado pelo búlgaro era
logicamente quase irrefutável mas também porque o PCB acariciava uma tese defendida que
era então refutada pela IC.
A discussão sobre a questão negra (incluída num debate mais amplo sobre a racial, na
qual estavam também inseridos os indígenas) se deu num momento em que se examinava a
questão brasileira a partir de uma análise das características essenciais que a revolução
brasileira deveria assumir naquelas circunstâncias. As críticas gerais mais contundentes dos
representantes da direção da IC ao PCB acusavam o partido de se abster, por desorganização e
falta de trabalho, de dirigir o proletariado e o campesinato. Uma das consequências dessa
avaliação geral era, precisamente, o abandono das populações negras do país à sua própria
sorte. Nesse sentido, as objeções da IC em relação à omissão dos pecebistas concernentes à
questão negra obedeceram ao padrão sob o qual Stepanov centrou sua argumentação.280
Minev exigia flexibilidade e sensibilidade por parte dos comunistas brasileiros em
perceber a diferença de tratamento destinado às populações negras tanto por parte do Estado
quanto por parte do partido, mesmo quando, sob o aspecto material, brancos fossem tão
miseráveis quanto negros. Minev também sugeria que os comunistas brasileiros estudavam
pouco sua própria realidade ao recomendar que a leitura de viajantes burgueses evidenciava
uma questão específica dos negros que deveria ser abordada pelos comunistas.

279
“Quando em 1926 o sexto pleno ampliado do CEIC criou seções geográficas no Secretariado, ele se tornou
chefe-assistente e depois chefe da seção latina, que incluía França, Itália, Bélgica, Espanha, Portugal e
Luxemburgo. Entre 1926 e 1933 (sob o nome de Chavaroche) ele publicou artigo na imprensa da Comintern
sobre o movimento comunista nos países. Ele depois dirigiu missões sigilosas para a Comintern na América
Latina e provavelmente na China.” “When in 1926 the sixth enlarged plenum of the ECCI created geographical
sections within the Secretariat, he became assistant chief and then chief of the Latin section, which included
France, Italy, Belgium, Spain, Portugal, and Luxemburg. Between 1926 and 1933 (under the name Chavaroche)
he published article in the Comintern press on the communist movement in the countries. He later handled
underground missions for the Comintern in Latin America and probably in China.” LAZIĆ; DRACHKOVITCH,
1986, p. 317.
280
Não se está afirmando que Stepanov foi o responsável pela elaboração da tese. As críticas da Comintern
foram feitas no mesmo sentido que Stepanov as formulou.
118

De acordo com as atas disponíveis, quem iniciou a crítica ao PCB sobre a temática
negra foi o próprio Minev, a julgar pela ordem em que estão dispostas as falas.
Aparentemente, também foi ele quem pôs a questão negra na pauta da revolução brasileira.
No terceiro dia da reunião, ele perguntou e respondeu: “Quais são as perspectivas dessa
revolução democrática pequeno-burguesa que deve se produzir? Em primeiro lugar, é uma
revolução camponesa agrária [...]; revolução na qual se colocará a questão dos negros e das
raças”.281 Àquela mesma altura, Minev apontou a situação em que se encontrava o debate
sobre raças no Brasil. De maneira irônica, reproduziu a forma por meio da qual a burguesia
analisava os conflitos no Brasil e associou as resoluções do III Congresso do PCB à forma
burguesa de refletir sobre a realidade brasileira:
É preciso dizer que a questão das raças e dos negros não existe. Os literatos e
viajantes burgueses, os adversários mais ferozes do movimento revolucionário,
insistem ainda sobre esse fato que no Norte, por exemplo, “a questão da luta de
classe é mascarada pela luta de raças”; em uma parte do centro e do sul, a luta de
classe é mascarada de novo pelas lutas nacionais, porque a classe trabalhadora,
aquela que trabalha sobretudo nas plantações é a classe da imigração.282

Feito o lançamento da questão e considerando prováveis lacunas na documentação


cominterniana, a questão negra só viria a ser objeto de registro novamente após três dias, a 27
de outubro de 1929. Depois de tecer comparações entre os brasileiros Astrojildo Pereira
(Ledo) e Heitor Ferreira Lima (Sylva), já que ambos lhe negaram a existência de uma questão
negra no Brasil, Minev criticou a ambos e os questionou:
Eu creio que entre os camaradas brasileiros existe uma falsa apreciação da realidade
e que eles se satisfazem sobre o terreno da democracia formal. O camarada Ledo nos
disse que os negros podem vir a ser presidentes da república, que eles podem ocupar
não importa qual posto e ao mesmo tempo nós vemos que 7/8 da população do
Brasil são de iletrados e que a maior partes desses iletrados, senão todos, é de negros
e formalmente os iletrados não têm direitos políticos. Isso é justo?283

O estopim primordial da dissonância entre dirigentes pecebistas e cominternianos


acerca da questão negra nascera de um evento até hoje obscuro: o conflito entre trabalhadores

281
“Quelles sont les perspectives de cette révolution démocratique petite-bourgeoisie qui doit se produire?
D'abord, c'est une révolution paysanne agraire [...]; révolution dans laquelle se posera la question des nègres et
des races.”
282
F. 495, op. 079, d. 056, fols. 50 – ic-0053.pdf, 24 out. 1929. “Il est faut de dire que la question des races et
des nègres n'existe pas. Les littérateurs et les voyageurs bourgeois, les adversaires les plus acharnés du
mouvement révolutionnaire, insistent pourtant sur ce fait que dans le Nord, par exemple, 'la question de la lutte
de classe est masquée par la lutte des races'; dans une partie du centre et du sud, la lutte de classe est masquée de
nouveau par les luttes nationales, parce que la classe ouvrière, celle qui travaille surtout dans les plantations est
la classe d'immigration.”
283
F. 495, op. 079, d. 057 – ic-0055.pdf, 27 out. 1929, p. 10. “Je crois que ces les camarades brésiliens il existe
cette fausse appréciation de la réalité et qu'ils restent sur le terrain de la démocratie formelle. Le camarade Ledo
nous a dit que les nègres peuvent même devenir présidents de la république, qu'ils peuvent occuper n'importe
quel poste et cependant nous voyons que les 7/8 de la population au Brésil sont des illettrés et que la plupart des
ces illettrés, si non tous, sont des nègres et formellement les illettrés n'ont pas droit politiques. Est-ce que ce fait
est juste?”
119

brasileiros e jamaicanos na chamada “Fordlândia”,284 no Pará. Os comunistas brasileiros


defendiam não se tratar de uma questão racial entre negros e brancos e sim de um desencontro
em razão das diferentes nacionalidades. Os membros dirigentes da Comintern, conquanto não
se permitissem a uma avaliação rigorosa sobre a matéria, avalizavam a tese de que havia
algum componente racial que o PCB negligenciara, como fazia com relação a todo o país.
Minev continuaria esmiuçando sua crítica para evidenciar as lacunas analíticas do
PCB quanto aos componentes étnicos e raciais que atuavam na composição da classe
trabalhadora, os quais passavam ao largo de qualquer avaliação da Seção Brasileira da IC.
Eu não quero lutar contra a ideia de que nos quarteirões de Berlim existe uma
população trabalhadora que tem uma vida material muito miserável, que remonta
àquela dos negros, mas isto não significa que a questão negra não existe. Não
existem negros que são insultados constantemente, que são, sem descanso, mal-
-tratados, desmoralizados? É um fato, e se eu soubesse que em nossas reuniões nós
levantaríamos esta questão, eu poderia fornecer descrições de viajantes, escravos e
não negros. Eu creio que essa questão dos negros não pode ser liquidada ao declarar
que os negros têm os mesmos direitos que o restante da população; direitos formais?
Todo o mundo tem direitos formais. [...]
A essa questão dos negros está relacionada uma outra que não se acha exatamente
sob o mesmo plano, mas que tem importância para que o PCB examine a fundo e
concretamente, porque ele determinará igualmente as palavras de ordem do trabalho
do partido nas diferentes camadas da população trabalhadora: a heterogeneidade
étnica da população. No Brasil, isso difere de outros países, foi depois de 1860,
creio eu, existiu uma política de imigração e que na base dessa “política” de
imigração localizaram-se crises ministeriais que ocorreram e continuam até hoje.
Por várias vezes, casos de guerra civil ocorreram na questão da política de
imigração, na questão do transporte de imigrantes de Santos e outros portos, em
diferentes tipos de contrato de parceria, de diferentes origens étnicas, diferentes
maneiras de afixar os cidadãos de Odessa, das colônias alemãs, polonesas, etc.
Assim, se se põe essa questão como um todo, e se se examina na prática concreta,
toda uma série de tarefas se coloca para o trabalho prático do partido e se se está
contente com esta aparente liberdade, negros e imigrantes em igualdade com o resto
da população, ele [o partido] não fará nada.285

284
Sobre a Fordlândia, os próprios comunistas diziam: “Henry Ford occupies a special position in Brazil. He is
the only American automobile manufacturer who kept an assembly plant operating in Brazil throughout the
years of crisis and depression. But furthermore, he is the largest concessionaire in the State of Pará, [p. 11]
where he went in search of rubber.
[...] At first, comparatively high wages were offered, as wages go in Pará; but after some 3,000 workers had been
attracted, the local managers apparently got word to cut down expenses. Wages began to drop, and are still
dropping.
As early as December, 1930, rumblings of discontent came out of the closely guarded private empire of Mr.
Ford. Troops were rushed in to put down an incipient strike. What happened then never been fully investigated,
but an official document of the British government has stated that the 3,000 workers were reduced, after a series
of disturbances, to 1,500. This same document attributes the 'difficulties' squarely to the Ford management - a
highly significant admission, coming from such a source. In spite of Ford, whose spy system in his Detroit
factories is world-famous, the workers have established on the Boa Vista plantation the Fordlandia Toilers
Union, and its demands are vigorously supported by the council of trade unions of Pará. So strong has the union
grown that it was able to force a visit by the government inspector, and on June 18, 1936, [and other victories]”
[p. 12]. GREEN, Bryan. Brazil. Nova York: International Publishers [Prepared by Labor Research Association],
1937.
285
“Je ne veux pas lutter contre l'idée que dans les quartiers de Berlin il existe une population ouvrière qui a une
vie matérielle très misérable, qui ressemble à celles des nègres, mais cela ne signifie pas que la question nègre
n'existe pas.
120

Minev reconstruiu parte da discussão já feita na União Soviética e, naquele período,


em curso nos Estados Unidos, a saber, a questão das nacionalidades e das etnias, advindas dos
processos migratórios. Para ele, o PCB subestimava os aspectos ligados à construção de
comunidades, federações de idiomas, baseadas em traços comuns de origem nacional e étnica.
Refletir sobre essa sociedade plural, com múltiplas nacionalidades, era uma necessidade,
principalmente em cidades portuárias como Santos, que requeria sensibilidade por parte do
partido. Minev se mostrou especialmente contrariado com relação ao rigor pecebista na defesa
dos direitos formais como suposta prova de que não havia uma questão negra no país.
Um outro importante protagonista crítico das formulações (ou da ausência delas) do
PCB foi Guralsky. Ao contrário das reflexões na Conferência dos Partidos Latino-Americanos
quando se definiu que havia uma questão étnica que separava índios e negros (os índios
faziam parte de múltiplas nacionalidades ao passo que o mesmo não acontecia com os
negros), Guralsky defendeu uma separação entre problemas nacionais e raciais. Questões
diferentes mas, para ele, a raça era tão importante na América Latina quanto a questão
nacional fora na União Soviética. O ponto de intersecção entre os dois aspectos era,
precisamente, o campesinato, o qual se achava, a seu ver, fora do debate em razão das
debilidades organizativas e, principalmente, teóricas do PCB.
GURALSKY [...] Eu não digo nada sobre a questão sindical. Eu quero falar sobre a
questão das raças. A questão das raças tem um papel tão grande na América Latina
quanto a questão nacional teve conosco sob o czarismo. É uma falha também
formidável tão grande de não existir ligação com o campesinato. Eu estou surpreso
que Ledo e Sylva falem assim da questão das raças. Eu devo dizer francamente que
conforme as estatísticas da grande Enciclopédia soviética, que é um trabalho sério,
está dito que há 9% de negros. Você não escreveu esse artigo, mas se você tivesse
escrito seria um erro três vezes maior, porque está escrito que há 9% de negros.286

Est-ce qu'il n'existe pas des nègres qu'on insulte constamment, qui sont sans arrêt maltraités, qu'on démoralise?
C'est un fait, et si j'avais su dans nos réunions on soulèverait cette question, j'aurais pu apporter des descriptions
de voyageurs qui sont aussi des négriers e pas de nègres. Je crois que cette question des nègres ne peut être
liquidée en déclarant que les nègres on les mêmes droits que le reste de la population; droit formels? Tout le
monde a de droits formels. [...] A cette question des nègres est rattachée une autre question qui ne se trouve pas
exactement sur le même plan mais qui mérite que le parti communiste brésilien l'examine à fond et concrètement
parce qu'elle déterminera également les mots d'ordre du travail du parti dans les différente couches de la
population travailleuse: c'est l'hétérogénéité ethnique de la population. Au Brésil, ce qui diffère des autres pays,
c'est que depuis 1860 je crois, il y a eu toute une politique d'immigration et que sur la base de cette "politique"
d'immigration, des crises ministérielles se sont produites et que cela continue encore aujourd'hui. A plusieurs
reprises des cas de guerre civile se sont produits sur la question de la politique d'immigration, sur la question du
transport des immigrés de Santos et des autres ports, au sujet de différentes sorte de métayage, de contrat, des
différentes origines ethniques, des différentes façons de placer les ressortissants d'Odessa, des colonies
allemandes, polonaises, etc... Alors, si vous pose cette question dans son ensemble, et si vous l'examinez en suite
concrètement, toute une série de tâches se posent pour le travail pratique du parti et si l'on se contente de cette
apparent liberté, égalité des nègres des immigrés avec le reste de la population, on ne fera rien.” RGASPI, F.
495, op. 079, d. 057 – ic-0055.pdf, 27 out. 1929, p. 11-12.
286
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 057, fols. 34-35. – ic-0055.pdf. “GURALSKY (...) [34] Je ne dis rien sur la
question syndicale. Je veux parler sur la questions des races. La question des races joue un rôle aussi grand en
Amérique Latine que la question nationale a joué chez nous sous le tsarisme. C'est une faute formidable [35]
aussi grand que de ne pas être lié avec la paysannerie. Je suis étonné que Lédo et Sylva parlent ainsi de la
121

A discussão levaria, novamente, à questão das concessões a Henry Ford, no Pará, e


Guralsky permaneceria na mesma posição de Minev a respeito da questão negra. Diferenciou-
se, neste momento, pelo linguajar, ancorando-se ao termo “tribo”, algo incomum na
documentação da IC. Em resumo, para Guralsky o PCB negligenciou o trabalho entre os
negros no país, o que foi objetado por Astrojildo Pereira, já que para este não havia uma
questão racial no país. A dissonância deslizava por sobre dois níveis superpostos: 1) as
características raciais da sociedade brasileira; 2) a natureza do conflito na Fordlândia.
Então não esqueça que a política de Ford é de aumentar a quantidade de negros, que
ele transporta todo o tempo por suas concessões.
Evidentemente que vocês têm um problema formidável e eu não quero dizer aqui
que é apenas ao Partido Comunista Brasileiro a quem cabe a responsabilidade. Nós
discutimos contra vocês, porque são vocês que têm mostrado essa tendência.
LEDO: Ford importou negros nessas concessões para se livrar dos trabalhadores que
trabalhavam diante dele. Mas eu estou certo que entre esses trabalhadores brasileiros
a maioria era de negros e desse modo houve luta de negros brasileiros contra os
negros da Jamaica e isso não é uma questão de negros contra brancos.
GURALSKY: Eu penso que o partido comunista é de fato responsável. Eu não
entendo o seguinte: mesmo a questão que você coloca da luta entre diferentes tribos
negras é o problema de raças que deve ser examinado pelo partido.
LEDO: É por isso que eu digo que precisamos falar sobre uma questão de raça.287

Guralsky terminou sua crítica prescrevendo uma política efetiva para os comunistas:
era fundamental a eles forjar palavras de ordem que visassem unificar as questões do
cotidiano do trabalho entre os diferentes grupos linguísticos (brasileiros e jamaicanos no Pará,
por exemplo). Curiosamente, Guralsky utilizava-se de um dos elementos constitutivos da
nação – de acordo com o manual produzido por Stalin a respeito da temática – visivelmente
acoplando a discussão racial à questão nacional que ele próprio separara anteriormente. No
plano prático, era imprescindível, por parte do partido, elevar a importância do tratamento da

question des races. Je dois dire franchement que selon les statistique de la grande Encyclopédie soviétique, qui
est un ouvrage sérieux, il est dit qu'il y a 9% de nègres. Tu n'as pas écrit cet article, mais si tu l'avais écrit ce
serait une faute encore trois fois plus grande, parce qu'il est écrit qu'il y a 9% de nègres.” LAZIĆ;
DRACHKOVITCH, 1986, p. 159-160. Guralsky substituiu o bukharinista Humbert-Droz na direção do
Secretariado Latino-Americano e depois dirigiu o Bureau Sul-Americano.
287
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 057, fol. 35. – ic-0055.pdf. “Ensuite n'oublie pas encore que la politique de Ford,
c'est d'augmenter la quantité des nègres, qu'il transporte tout le temps pour ses concessions.
Evidemment que vous avez un problème formidable et je ne veux pas dire ici que c'est seulement le parti
communiste brésilien qui emporte la responsabilité. Nous discutons contre vous, parce que c'est vous qui avez
montré cette tendance.
LEDO: Ford a importé des nègres dans ses concessions pour se débarrasser des ouvriers brésiliens qui y
travaillaient au paravant(sic). Mais, je suis certain qui parmi ces ouvriers brésiliens la majorité était des nègres et
alors il y a eu la lutte des nègres brésiliens contre les nègres de la Jamaique et ce n'est pas une question de noirs
contre blancs.
GOURALSKY: Je pense que le parti communiste brésilien est bien responsable. Je ne comprends pas cela:
même la question que tu poses de la lutte entre les différentes tribus des nègres est le problème des races qui doit
être examiné par le parti.
LEDO: C'est pour cela que je dis qu'il faut parler d'une question de race.”
122

questão por parte dos negros componentes do comitê central e de todo o partido em geral.
Para Guralsky, essa era uma das questões mais relevantes da luta revolucionária.
GURALSKY: Quando Ledo diz que os negros lutam entre si, está evidente que o
partido deve fazer seu possível por um trabalho por palavras de ordem, pelos grupos
de idiomas, pelos camaradas negros nos comitês centrais, nas regiões do partido,
pelo envio de camaradas para ajudar nessas lutas. Está claro que a questão não está
resolvida, que nós devemos examinar a questão das raças em geral e é preciso
examinar a questão das raças em geral e é preciso trazer as palavras de ordem da
Comintern no sentido das massas oprimidas, está claro que seremos forçados a lutar
numa certa medida contra nossos camaradas brancos que não compreenderão
durante um certo tempo nossas palavras de ordem, que não terão compreendido
imediatamente os problemas nacionais e de raça. Eu acho que esses problemas
devem ser sublinhados quando se fala do partido brasileiro e de todos os partidos
comunistas da América Latina, como uma questão das mais importantes na luta
revolucionária.288

Ainda no dia 27 de outubro (e, mais uma vez, não está clara a ordem das falas), Heitor
Ferreira Lima (Sylva) responderia às interpelações dos dirigentes da IC laconicamente. No
plano argumentativo, agarrara-se ao exemplo dado pelo conflito na Fordlândia para reafirmar
que aquela circunstância não explicaria o Brasil, por ser extemporânea. Tratava-se, no seu
dizer, de uma circunstância específica e não constituía exemplo do que ocorria no cotidiano
do mundo do trabalho no restante do país. Ao mesmo tempo que concedeu uma autocrítica ao
confirmar a debilidade teórica do partido, ele responsabilizou a Comintern por não apoiar
efetivamente a criação de uma revista teórica do partido.
SYLVA (HEITOR FERREIRA LIMA): Eu tocarei agora numa questão que alguns
camaradas colocaram, mas que eu ainda não toquei. Eu tenho uma opinião que
muitos dos camaradas julgam falsa. Eu, evidentemente eu não a julgo falsa. Esta é a
questão do negro. Certos camaradas, entre os quais Humbert-Droz, veem no Brasil
uma questão de raça entre os brancos e os negros e o argumento que eles apresentam
é a luta armada que é produzida entre os trabalhadores brancos e negros nas
empresas de Ford no Pará. Eu não acho que esse argumento é o bastante e é por isso
que terei dúvidas sobre a questão negra até que me deem argumentos mais
convincentes. Até o presente os argumentos apresentados são muito falhos e não é
por acaso que os camaradas brasileiros têm dúvidas sobre a questão. Eu gostaria que
os camaradas aqui conhecessem os exemplos mais marcantes aqui apresentados a
fim de se fazer uma ideia mais clara e mais precisa dessa questão.
Para concluir, eu direi algumas palavras sobre a necessidade de elevação do nível
ideológico do partido. Na última vez eu falei sobre a criação de uma revista teórica
do partido. Yacobson disse que isso não é suficiente. Que isso não nos ajudará
muito, porque não é suficiente traduzir Marx e Lênin. Eu acredito que o principal é
discutir os problemas, isso será o meio de fazer a autocrítica e é por isso que eu

288
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 057. Cedem/Unesp, ic-0055.pdf, 27 out. 1929, p. 35-36. GOURALSKY: “Quand
Ledo dit que les nègres se combattent, il est évident que le parti doit faire son possible par un travail par des
mots d'ordre, par des groupements de langues, par les camarades nègres dans le comités central, dans les régions
du parti, par l'envoi de camarades pour aider ces luttes. Il est très clair que la question n'est pas résolue, que nous
devons examiner la question des races en général et il faut apporter [36] examiner la question des races en
général et il faut apporter les mots d'ordre du Comintern envers les masses opprimées est clair qu'on sera forcé
de lutter dans une certaine mesure contre nos camarades blancs qui ne comprendront pas pendant un certain
temps nos mots d'ordre, qui n'auront pas compris immédiatement les problèmes nationaux et de race. Je pense
que ces problèmes devraient être soulignés en parlant du parti brésilien et de tous les partis communiste de
l'Amérique Latine, comme une des question les plus importantes dans la lutte révolutionnaire.”
123

gostaria que fosse criada uma revista não somente para traduzir Lênin e Marx mas
para discutir os problemas brasileiros, não somente entre os camaradas brasileiros,
mas com os outros países.
STEPANOV: E na revista sul-americana?
SYLVA: É impossível. Eu creio que a Comintern deve ajudar o partido brasileiro na
criação dessa revista que servirá para elevação do nosso nível ideológico.289

Acompanhando a argumentação do companheiro de partido, Astrojildo Pereira


reiterou, tal qual já havia feito em réplicas a Guralsky, que o exemplo da Fordlândia não
podia ser utilizado para provar a existência de uma questão racial no Brasil. Para Pereira, o
conflito se deu em função de acordos salariais não cumpridos pelo patronato. O resultado foi
um enfrentamento entre trabalhadores já instalados e outros que acabavam de chegar no lugar.
Pereira chegaria a ponto de reiterar a tese de Octávio Brandão de 1923 ao afirmar que não
conhecia antagonismos entre trabalhadores brancos e negros no Brasil.
LEDO: Negros e brancos e a greve de Ford? Essa greve não prova que existe até o
presente uma questão específica de raça entre os trabalhadores. Qual foi essa greve
de trabalhadores brancos contra os trabalhadores negros como foi o caso na
concessão Ford? Já no ano passado houve uma revolta de trabalhadores e por causa
dessa revolta Ford trouxe da Jamaica trabalhadores negros para trabalhar na
concessão e então houve uma luta entre os trabalhadores vindos da Jamaica e os
trabalhadores que já trabalhavam na concessão. Mas em geral, eu não conheço no
Brasil que existem antagonismos entre trabalhadores brancos e negros.
STEPANOV: Você acha que isso é uma bobagem?
LEDO: Não, mas eu digo que até o presente não houve essa questão. Ela esteve
colocada na concessão Ford e lá naturalmente pode ter havido consequências sérias.
Eu contei as coisas tais quais elas se passaram. [...] Mas as promessas eram uma
coisa, e os salários outra. Então houve uma luta, mesmo uma luta armada entre a
empresa e os trabalhadores. Foi em consequência disso que Ford em vez de
continuar a trazer trabalhadores nacionais buscou trabalhadores negros da Jamaica.
Além disso, esses trabalhadores nacionais não eram todos brancos, havia muitos
negros. Aqui não existiu portanto mais uma luta entre “branco” e “negro”.290

289
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 057. Cedem/Unesp, ic-0057.pdf, 27 out. 1929, p. 64-65. SYLVA (HEITOR
FERREIRA LIMA): [64] “Je toucherais maintenant à une question que certains camarades ont posé, mais qui
n'pas encore été touchée. J'ai une opinion que beaucoup de camarades jugent fausse. Moi, évidemment je ne la
juge pas fausse. Il s'agit de la question nègre. Certains camarades, parmi lesquels Humbert-Droz voient au Brésil
une question de race entre les blancs e les nègres et l'argument qu'ils présentent c'est la lutte armée qu'est
produite entre les ouvriers blancs et nègres dans les entreprises Ford à Pará. Je ne pense pas que cet argument
soit suffisant et c'est pour cela que j'aurais des doutes sur la question nègre tant qu'on ne m'aura pas donné
d'argument plus convaincants. Jusqu'à présent les arguments présentés sont trop faibles et ce n'est pas par hasard
que les camarades brésiliens ont des doutes sur cette question. Je voudrais que les camarades ici présent
connaissent des exemples plus frappants que ceux présentés afin de se faire une idée plus claire et plus précise de
cette question.
Por conclure, je dirais quelques mots sur la nécessité de l'élévation du niveau idéologique du parti. La dernière
fois j'ai parlé de la création d'une revue théorique pour le parti. Yacobson a dit que cela ne suffit pas. Que cela ne
[65] nous aidera pas beaucoup, parce qu'il ne suffit pas de traduire Marx et Lénine. Je crois que le principal est
de discuter les problèmes, ce sera le moyen de réalise l'autocritique et c'est pour cela que je voudrais que soit
créée une revue non seulement pour traduire Lénine et Marx mais pour y discuter les problèmes brésiliens, non
seulement entre les camarades brésiliens, mais avec les autres pays.
STEPANOV: Et dans la revue sud-américaine?
SYLVA: C'im (sic) impossible. Je crois que Comintern doit aider le parti brésilien à la création de cette revue
qui servira à l'élévation de notre niveau idéologique.”
290
Pereira também reiterou a dificuldade de os militantes irem até a Amazônia, uma região distante de onde o
partido possuía seus melhores quadros. RGASPI, F. 495, op. 079, d. 55. Cedem/Unesp, ic-0052.pdf, p. 36-37, 31
out. 1929. “LEDO: Nègres et blancs et la grève de Ford? Cette grève ne prouve pas qu'il exist jusqu'à présent
124

Um outro protagonista da maior relevância para o debate foi Jules Humbert-Droz,291


dirigente do Secretariado Latino-Americano. Ele estivera na Conferência dos Partidos
Comunistas da América Latina e dirigiu o debate sobre raças. No dia 5 de novembro de 1929,
argumentou que o grande avanço do PCB era compreender que a questão negra não se
passava no Brasil como nos Estados Unidos. Humbert-Droz lembrou aos companheiros
brasileiros que havia uma separação entre a discussão sobre raça e a questão da cor. Para ele
existia um problema social no que tange ao índio na América Latina e não uma questão de
cor. No Brasil, até 1888 os negros eram “os escravos e os brancos eram os proprietários de
escravos. Isso prova que havia uma luta entre negros e brancos, luta social certa, mas
complicada por uma questão de raça”.292 Tomando como base os dados do próprio Astrojildo
Pereira, Humbert-Droz salientou as diferentes proporções de negros e brancos que formavam
o oficialato das Forças Armadas Brasileiras: enquanto os negros compunham a maioria
esmagadora das baixas patentes, os brancos eram maioria dentre oficiais.
Um outro camarada brasileiro nos disse ter trabalhado nas fábricas com mais
contramestres negros em geral, os patrões eram brancos, que isso significa? Isso
significa que o problema das raças não coloca como problema de cor, mas que existe
como uma questão de classe.293

Humbert-Droz também apresentou a razão pela qual o Secretariado se apresentara cético


quanto à tese de que não havia uma questão negra no Brasil, salientando que negativas a
respeito de questões raciais já haviam sido objeto de crítica pela Comintern, a exemplo de
Cuba.

une question spécifique de race parmi les ouvriers. Quelle a été cette grève des ouvriers blancs contre les
ouvriers nègres comme ce fut le cas dans la concession Ford? Déjà l'an dernier il y avait eu un soulèvement des
ouvriers et c'est à cause de ce soulèvement que Ford a fait venir de la Jamaique des ouvriers nègres pour
travailler dans la concession et alors il y a eu une lutte entre les ouvriers venus de la Jamaique et les ouvriers qui
travaillaient déjà dans la concession. Mais en général, je ne connais pas au Brésil qu'il existe des antagonismes
entre ouvriers blancs et nègres.
STEPANOV: Tu penses que cela c'est une bagatelle?
LEDO: Non, mais je dis que jusqu'à présent il n'y avait pas cette question. Elle a été posée dans la concession
Ford et cela naturellement peut avoir des conséquences sérieuses. J'ai raconté les choses telles qu'elles se sont
passées. [...] Mais les promesses étaient une chose et les salaires donnés autre chose. Alors il y a une lutte, même
lutte armée entre l'entreprise et les ouvriers. C'est en conséquence de cela que Ford au lieu de continuer à faire
venir des ouvrière nationaux chez lui a fait venir des ouvriers nègres de la Jamaique. D'ailleurs, ces ouvriers
nationaux ne sont pas tous des blancs, il y en a même beaucoup de nègres. Cá n'a été donc plus une lutte entre
'blanc' et 'nègre'.”
291
Em seus diários, ele não rememora a discussão a respeito da “questão brasileira”. A essa altura sua única
preocupação era o futuro de Bukharin. HUMBERT-DROZ, Jules. De Lenine a Staline: dix ans au service
d’Internationale Communiste (1921-1931). Neuchatel: Baconniere, 1971. p. 391.
292
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 58. Cedem/Unesp, ic-0059.pdf, p. 12. “les esclaves et les blanc ont été, les
propriétaires d'esclaves. Ceci prouve qu'il y a une lutte entre nègres e blancs, lutte sociale certes, mais
compliquée d'une question de race.”
293
Ibidem, p. 13. 5 nov. 1929. “Un autre camarade brésilien nous a dit avoir travaillé dans des usines avec des
contremaitres noirs mais en général, les patrons étaient des blancs, qu'est-ce cela signifie? Cela signifie que le
problème des races ne se pose pas comme problème de couleur, mais qu'il existe comme une question de classe.”
125

Por que ficamos desconfiados quando os camaradas do Brasil nos dizem que em
geral não há um problema de raça? Porque nós temos o exemplo de Cuba. Os
camaradas de Cuba nos disseram que não havia problema de raça e então soubemos
que os negros não podiam entrar em certos parques nem em certos restaurantes da
cidade, nem ter certas funções, por exemplo, controlador dos bondes; em seguida o
camarada de Cuba nos coloca o grave problema da Juventude Comunista, os brancos
não queriam dançar com as negras e eles nos demandavam sobre o que fazer; é já
uma questão de cor que se coloca e isso mostra que os camaradas de Cuba que não
tinham visto a Constituição cubana que coloca os negros e brancos no mesmo pé
possui a questão de raça.294

Quanto à Fordlândia, Humbert-Droz assumiu a falta de informações que a Comintern


tinha sobre o assunto. Remontou que sua única fonte dizia que “nos disseram num telegrama
que os brancos fizeram greve contra os negros”.295 Concordou com Guralsky ao dizer que,
tendo acontecido conflito entre negros e brancos ou entre negros e negros, o problema racial
estava posto. Segundo ele, havia ocorrido o mesmo em Cuba e nas Antilhas quando índios
foram desalojados de seus postos cedendo lugar a trabalhadores negros. O comunista suíço
pintou um quadro em que a questão racial se descortinava “sob uma forma nova, ligada à
política das grandes companhias yankees para dividir o proletariado”.296 E acrescentou que
“não é porque os trabalhadores são uma raça diferente, mas porque os imperialistas
[contramestre] empregam os trabalhadores de uma raça para remover o trabalho ou diminuir o
salário daqueles de uma outra raça”.297 Por fim, sugeriu os caminhos que os comunistas
brasileiros deveriam adotar para enfrentar a questão:
Tudo isso representa para o partido uma série de questões que devem ser
consideradas. Nós não demandamos que o partido comunista do Brasil considere a
questão dos negros como o partido dos Estados Unidos; isso seria estúpido, este não
é um problema como em Cuba; devemos tomar esta questão como um problema
brasileiro, ver qual é sua profundidade, suas características e procurar a política que
o Partido deve aplicar a esse respeito.298

294
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 58. Cedem/Unesp, ic-0059.pdf, fols. 13. 5 nov. 1929. “Pourquoi sommes-nous
méfiant quand les camarades du Brésil nous disent qu’en général il n’y a pas de problème de race? Parce que
nous avons l’exemple de Cuba. Les camarades de Cuba nous on dit qu’il n’y a pas de problème de race et ensuite
nous avons su que les nègres ne peuvent pas entrer dans certains parcs ni dans certains restaurants de la ville, ni
avoir certaines fonctions, par exemple, contrôleurs dans les tramways; ensuite de camarade de Cuba nous pose
un grave problème des Jeunesses communistes, les blancs ne veulent pas danser avec les noires et ils nous
demandent ce qu’il faut faire; c’est déjà une question de couleur qui se pose et cela montre que les camarades de
Cuba qui n’avaient vu que la Constitution cubaine qui met les noirs et les blancs sur le même pied aient la
question des races.”
295
Ibidem, fols. 13. “on nous dit dans un télégramme que les blancs ont fait grève contre les nègres.”
296
Ibidem, fols. 13. “sous une forme nouvelle, liée à la politique des grandes compagnies yankees pour diviser le
prolétariat.”
297
Ibidem, fols. 13. “ce n'est pas parce que les travailleurs sont d'une race différente, mais parce que les
impérialistes [contre maître] emploient les travailleurs d'une race pour enlever le travail ou diminuer le salaire de
ceux d'une autre race.”
298
Ibidem, fols. 14. “Tout cela pose devant le parti une série de questions qu'il doit envisager. Nous ne
demandons pas que le parti communiste du Brésil envisage la question de nègres comme le parti des Etats Unis;
ce serait studipe, ce n'est pas non plus une question comme à Cuba; il faut prendre cette question comme une
question brésilienne, voir quelle est sa profondeur, ses caractères et chercher la politique que doit appliquer le
Parti à ce sujet.”
126

No mesmo dia 5, e não se sabe se antes ou depois da exposição de Jules Humbert-


Droz, Guralsky voltou à carga com a discussão sobre raças. Para ele, estava claro que a
importância da questão das raças na América Latina era de tamanha monta que se tornava
incontornável para “fazer uma revolução e guiar essa revolução”.299 Guralsky via a questão
das raças análoga à das nacionalidades na União Soviética. Como consequência da
importância da temática, ele entendia que os comunistas deveriam construir pontes de
confiança entre trabalhadores urbanos e camponeses das diferentes raças, tal qual se fizera
entre as diferentes nacionalidades na URSS. Para Guralsky, a fragmentação racial obedecia
aos desígnios do imperialismo e da burguesia. Tal pulverização consolidaria uma imagem em
que todos os brancos partilhavam da verve exploradora, desse modo, obscurecendo o papel do
proletariado branco na luta contra os opressores. Para ele, era também necessário
compreender as diferenças entre o Brasil e os demais países da América, fosse quanto à
questão indígena nos casos de Peru e Bolívia, fosse no que dissesse respeito à questão negra,
em relação aos Estados Unidos e Cuba.
A questão das raças. Os camaradas do Brasil não compreendem a questão das raças,
e a questão ainda é séria; 1) na América Latina a questão das raças tem um papel tal
que nós não podemos fazer uma revolução e guiar a revolução sem dar uma resposta
clara e evidente a essa questão. Há uma série de países onde os índios por exemplo
são a maioria da população. Qual é a questão das raças na América Latina? A
questão das raças como a questão das nacionalidades é entre nós a princípio a
questão da confiança revolucionária para com o proletariado branco, o proletariado
da raça dirigente e das largas massas de trabalhadores agrícolas e o campesinato de
uma outra raça oprimida; a questão da confiança entre o proletariado branco que
deve guiar a luta e as largas massas camponesas negras, amarelas, etc... É o
problema de uma aliança revolucionária entre o proletariado e o campesinato na
luta. Nós devemos demonstrar que todos os brancos não opressores, que o
proletariado na luta contra a burguesia e os opressores de todas as raças pretendem
resolver ao fim o problema das raças. Até agora nós ainda não demos uma resposta
nítida e clara. Eu já disse que é preciso dar na América Latina nossa palavra de
ordem de livre disposição dos índios.
Sob a base do problema agrário, seria talvez necessário tornar palavra de ordem uma
nova distribuição de terra aos trabalhadores pelos soviéticos; mas, em todo caso, é
necessário dar as palavras de ordem. É uma questão para o Brasil, como para toda
América Latina. É necessária uma resposta sobre essas questões. Evidentemente que
no Brasil a questão não é tão aguda como no Peru ou na Bolívia, mas a mesma
questão tem e terá ainda um papel muito grande. A burguesia começou e vai
conduzir a organização de batalhas entre os diferentes grupos, raças, nacionalidades,
entre as tribos de diferentes raças e entre os brancos e diferentes raças, é inevitável;
é o seu meio político de decompor o proletariado, de ter o campesinato sob
influência do imperialismo, de pôr o campesinato contra o proletariado é seu meio
de combater a revolução, de apoiar o fascismo, porque a luta do fascismo será
sustentada especialmente por essas lutas de raças, e é muito estranho que os
camaradas busquem subestimar essa questão. Se essas lutas existem, é preciso dizer

299
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 58, fols. 27. Cedem/Unesp, ic-0062.pdf, 5 nov. 1929. “faire une révolution et
guider la révolution”
127

que houve divergências, utilizadas pelo imperialismo e não contra ele um trabalho
suficiente da parte de nosso partido para resolver a questão.300

Por fim, sobre a questão da Fordlândia Guralsky reiterou como a omissão do PCB em
relação ao caso gerara mais desconfiança entre os diferentes grupos raciais do proletariado.
Mais especificamente, defendeu que essa omissão fez com que o PCB tivesse perdido uma
oportunidade de exibir, aos trabalhadores negros, companheiros brancos lutando em prol de
causas negras.
Para a questão da concessão Ford, fomos informados que o partido não tinha
dinheiro, esta não é uma resposta que possa satisfazer os negros. Os negros de lá
jamais viram em suas vidas que “os brancos” tinham vindo defender seus interesses.
É uma revolução verdadeira quando os negros veem os proletários brancos serem
seus amigos. Vocês não podem subestimar um problema tão sério e vocês não
compreendem o papel que o partido deve ter de vanguarda, que deve mostrar que ele
sabe resolver esses problemas. Essas são coisas elementares.301

Sob a alcunha de Martinez,302 um militante da IC também interpelou a direção do


PCB. A linha argumentativa enveredou para o mesmo sentido. A novidade agora restava na
origem latino-americana da crítica. Partindo das respostas dos dirigentes brasileiros, as quais
tentavam demonstrar que o Brasil não se parecia com outras formações sociais como, por

300
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 58, fols. 27. Cedem/Unesp, ic-0062.pdf, 5 nov. 1929. “La question des races.
Les camarades du Brésil ne comprenent pas la question des races, et pourtant la question est sérieuse; 1) en
Amérique Latine la question des races joue un tel rôle que nous ne pouvons pas faire une révolution et guider la
révolution sans donner une réponse claire et nette à cette question. Il y a une série de pays où les Indiens par
exemple sont la majorité de la population. Qu est-ce que la question des races en Amérique latine? La question
des races comme la question des nationalités est pour nous d'abord la question de la confiance révolutionnaire
envers le prolétariat blanc, le prolétariat de la race dirigeante et les larges masses des travailleurs agricoles et de
la paysannerie d'une autre race opprimée; la question de la confiance entre le prolétariat blanc qui doit guider la
lutte et les large masses paysannes noire, jaunes, etc… C'est le problème d'une alliance révolutionnaire entre le
prolétariat et la paysannerie dans la lutte. Nous devons démontrer que tous le blancs ne sont pas des oppresseurs,
que le prolétariat dans la lutte contre la bourgeoisie et les oppresseurs de toutes la races veut résoudre jusqu'au
bout le problème des races. Jusqu'ici nous n'avons pas encore donné une réponse nette et clair. J'ai déjà dit qu'il
faut en Amérique latine donner notre mot d'ordre de Libre disposition des Indiens. Sur la base du problème
agraire, il fallait peut-être donner le mot d'ordre de Nouvelle distribution des terres aux travailleurs par les
soviets; mais en tout cas, il faut donner des mots d'ordre. C'est une question pour le Brésil, comme pour toute
l'Amérique Latine. Il faut avoir une réponse à ces questions. Evidemment qu'au Brésil la question [28] n'est pas
si aigue qu'au Pérou ou en Bolivie, mais quand même la question joue et jouera encore un très grand rôle. La
bourgeoisie a commencé et va mener l'organisation de batailles entre les différentes groupes, races, nationalités,
entre les tribus des différentes races et entre les blancs et les différentes races, c'est inévitable; c'est leur moyen
politique de décomposer le prolétariat, de tenir la paysannerie sous l'influence de l'impérialisme, de pousser la
paysannerie contre le prolétariat c'est leur moyen de combattre de révolution, de soutenir le fascisme, car la lutte
du fascisme sera soutenur (sic) spécialement par ces luttes de races, et il est tout à fait étrange que les camarades
cherchent à sous-estimer la question. S'il y a eu des luttes, cela veut dire qu'il y a eu des divergences, utilisées
par l'impérialisme et il n'y avait pas eu contre cela un travail suffisant de la part de notre parti pour régler la
question.”
301
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 58, fols. 28. Cedem/Unesp, ic-0062.pdf, 5 nov. 1929. “Pour la question de la
concession Ford, on a dit que le parti n'avait pas d'argent, ce n'est pas une réponse que peut satisfaire les nègres.
Les nègres lá bas, n'ont jamais vu de leur vie que 'les blancs' soient venus défendre leurs intérêts. C'est une vraie
révolution quand les nègres voient les prolétaires blancs être leurs amis. Vous ne pouvez pas sous-estimer un
problème aussi sérieux et vous ne comprenez pas que le rôle du parti doit être le rôle de l'avant-garde qui doit
montrer qu'il sait résoudre ces problèmes. Ce sont des chose élémentaires.”
302
De acordo com Manuel Caballero, Ricardo Martinez era venezuelano. CABALLERO, 1986, p. 30, 132.
128

exemplo, os Estados Unidos, Martinez sugeriu que, não obstante as diferenças prováveis, isto
não seria o bastante para negar à sociedade brasileira a existência de uma questão negra.
Uma outra questão sobre a qual irei comentar é a questão DOS NEGROS. Algo que
não compreendo é a resistência dos camaradas Silva e Ledo sobre esta questão, em
cada uma das intervenções dos camaradas. Quando Humbert-Droz e Stépanov
citaram fatos concretos como os conflitos surgidos na concessão Ford, disseram que
“isto não prova que existe no Brasil um problema negro”. Eu creio que já
assinalamos muitos equívocos do partido brasileiro, por exemplo com relação à
questão agrária e que a atitude dos camaradas no Brasil deve ser totalmente
diferente, ou seja pelo menos reconhecer a necessidade dessa questão. Está claro que
as características da questão negra no Brasil ou em qualquer outro país da América
Latina não são as mesmas dos Estados Unidos, mas como já vimos em Cuba muitas
características são transplantadas em razão da influência preponderante que os
Estados Unidos adquirem cada dia; assim, em Cuba, o fato é que eles estão
vergonhosamente à margem da sociedade.303

Os dirigentes brasileiros tiveram o reforço do militante Hermann Berezin (codinome


Grichin), que também se pronunciou acerca da questão racial no Brasil posicionando-se de
acordo com o partido. Para ele, ao contrário de Guralsky e dos outros membros da IC, o
patronato das fábricas não tinha interesse em criar antagonismos de raça no ambiente de
trabalho. Alegando ter sido chefiado por negros nos lugares onde trabalhou, Grichin informou
que os sindicatos eram compostos por brancos e negros indistintamente. As organizações de
trabalhadores racialmente divididas, de acordo com ele, eram mal-vistas pelos próprios
negros. Em suas palavras:
Discutimos bastante a questão das raças; recentemente no Congresso da América
Latina e aqui na Comintern, mas eu considero que é equivocado colocar a mesma
questão aos países onde a situação não é a mesma, ou o desenvolvimento histórico
não se acha na mesma época. Eu creio que devemos assegurar ver a questão das
raças através das fábricas e a política do país em geral. Nós veremos que nas usinas
e nas fábricas não há qualquer diferença entre os trabalhadores brancos e os
trabalhadores negros. Assim, eu trabalhei durante muitos anos numa usina
metalúrgica onde havia não somente trabalhadores negros, mas chefes de seções
negros e isto não existe somente nas usinas que podemos qualificar de “liberais”
mas mesmo onde os proprietários são reacionários.
Nós vemos muito bem que o patronato não se ocupa da questão das raças, mas que
buscam os melhores trabalhadores que podem melhor lhes servir. Eu ainda trabalho
numa usina metalúrgica onde o patrão era um holandês, nessa usina havia também
chefes de seções negros. O patrão não tinha interesse de desenvolver o antagonismo
de raça. Nesses sindicatos nós tivemos negros e brancos e não somente nas seções,
mas em toda vida cotidiana do sindicato nós não vimos qualquer diferença qualquer

303
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 058 – ic-0063.pdf, p. 34, 5 nov. 1929. “Une autre question au sujet de laquelle je
ferai quelques commentaires est la question DES NEGRES. Quelque chose que je ne comprends pas c'est la
résistance des camarades Silva e Ledo sur cette question, dans chacune des interventions de ces camarades.
Quand Humbert-Droz et Stépanov ont cité des fait concret comme celui des conflits surgis dans les concession
Ford, ont dit que "celle na prouve pas qu'il existe au Brésil un problème nègre". Je crois que l'on a signalé
beaucoup de défauts du parti brésilien, par exemple dans la question agraire et que l'attitude des camarades au
Brésil devrait être toute différente, c'est à dire pour le moins reconnaitre la necessité de cette question. Il est clair
que les caractéristiques de la question nègre au Brésil ou dans quelque autre pays de l'Amérique Latine ne sont
pas les mêmes qu'aux Etats-Unis, mais comme nous l'avons déjà vu à Cuba beaucoup de ces caractéristiques sont
transplantées en raison de l'influence prépondérante que les Etats-Unis acquièrent chaque jour; ainsi, à Cuba, le
fait qu'ils sont mis honteusement en marge de la société.”
129

antagonismo entre brancos e negros. Mesmo na política burguesa, não constatamos


isto. Foram criadas associações que se chamam “Associação I de Maio” mas é para
explorar os trabalhadores negros durante as eleições. Mas os trabalhadores
rejeitaram essa associação, que agora é morta. Os próprios negros rejeitaram essa
associação pela única razão que era uma associação unicamente composta de
negros.304

Sobre a questão da Fordlândia, defendera a mesma tese de Astrojildo Pereira, o qual


sugeriu um problema salarial e não propriamente racial.
Certos camaradas queriam provar que existe a questão negra no Brasil e trouxeram
como argumento a questão Ford. Eu quero lhes citar um caso que se deu no Brasil
em 1923 entre os estivadores que são negros em sua maioria e a companhia que
procurou trabalhadores portugueses que não se organizaram para trabalhar por um
salário mais baixo nas docas. Houve um conflito muito agudo, ocorreram mortes e
nós vimos que não se trata de uma questão de raça, mas de uma questão entre
trabalhadores organizados e trabalhadores não organizados, esses últimos aceitam
trabalhar por um salário inferior e eu estou convencido que a mesma coisa se passou
em Ford e que não é uma questão de raça mas uma questão de salários.305

Para Grichin, a julgar pelos dados estenográficos, Astrojildo Pereira teria defendido
que a questão negra não passava por uma questão nacional. O militante russo do PCB sugeriu
ter havido um antagonismo entre Guralsky e Pereira, onde este teria visto um problema
nacional enquanto aquele reiterara a existência de questões raciais. Grichin, todavia, não
pensava haver uma questão negra no Brasil, tampouco lhe fazia sentido pensar numa questão
nacional para o país. Grichin sugeriu o lançamento de palavras de ordem para a questão da

304
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 058, fols. 42-43. Cedem/Unesp, ic-0064.pdf, 5 nov. 1929. “On discute beaucoup
la question des races; dernièrement au Congrés de l'Amérique latine et ici à Comintern, mais je considére qu'il
est faux de poser la même question pour les pays oú la situation n'est pas la même, où le développement
historique ne se trouve pas dans la même époque. Je crois qu'on doit tacher de voir la question des races à travers
les usines et la politique du pays en général. Nous voyons que dans les usines et les fabriques, il n'y a aucune
différence entre les ouvriers blancs et les ouvriers noirs. Ainsi, j'ai travaillé pendant plusieurs années dans une
usine métallurgique où il y avait non seulement des ouvriers nègres, mais des chefs de sections nègres et cela
existe non seulement dans des usines qu'on peut qualifier de 'libérales' mais même où les propriétaire sont
réactionnaires.
On voit très bien que le patronat ne s'occupe pas de la question des races, mais qu'il recherche les ouvriers qui
peuvent le mieux servir. J'ai encore travaillé dans une usine métallurgique où le patron était un Hollandais, dans
cette usine il y avait aussi des chefs de sections nègres. Le patron n'a pas d'intérêt à développer l'antagonisme des
races. Dans les syndicats nous avons des nègres et des blancs et non seulement dans les sections, mais dans toute
la vie quotidienne du syndicat on ne voit aucune différence aucun antagonisme entre blancs et noirs. Même dans
la politique bourgeoise, on ne la constate pas. On a crée des associations qui s'appellent "Associação I de Maio
2(sic) mais c'est pour exploiter les ouvriers nègres pendant les élections. Mais les ouvriers ont repoussé cette
association qui est morte maintenant. Les nègres eux-mêmes ont repoussé cette association pour l'unique raison
que c'était uns assiciation(sic) uniquement composée de nègres.”
305
Ibidem, fols. 43. “Certain camarades veulent prouver qu'il existe la question nègre au Brésil et ils ont pris
comme argument la question Ford. Je peux vous citer un cas qui s'est produit au Brésil en 1923 entre les dockers
qui sont des nègres dans la majorité et la compagnie qui a recherché des ouvriers portugais qui ne sont pas
organisés pour travailler à un salaire plus bas dans les docks. Il y a eu un conflit très aigu, il y a eu des tués et
nous voyons que ce n'est pas une question de race, mais une question entre ouvriers organisés et ouvriers
inorganisés, ces derniers acceptan(sic) de travailler pour un salaire inférieur et je suis convaincu que la même
chose s'est passé chez Ford et que ce n'est pas une question de race mais une question de salaires.”
130

independência nacional na África em solidariedade aos trabalhadores negros de lá. Ao seus


olhos, porém, isto não seria aplicável ao Brasil.
Gouralsky não achou um argumento suficiente sobre a questão dos negros no Brasil.
Ele propôs dar palavras de ordem de solidariedade dos negros do Brasil aos negros
de outros países em lutas. O camarada Ledo viu nesta uma questão nacional; eu acho
que nós podemos aplicar no Brasil, nós podemos lançar palavras de ordem para
apoiar a luta dos trabalhadores negros na África como uma questão da
independência nacional mas nós não podemos aplicá-la ao Brasil.
Vejamos o que se pode dizer sobre a questão dos negros no Brasil. Agora, sobre o
projeto de resolução apresentado por Gouralsky, ele falou em lançar a palavra de
ordem da Federação das Repúblicas Soviéticas anti-imperialistas. Eu não
compreendo, porque já é uma república soviética, já é por si mesma um estado anti-
imperialista; eu creio que devemos dizer que é uma república dos operários e
camponeses.306

Grichin parecia estreitamente vinculado às diretrizes fundadoras da Liga Anti-


Imperialista, cuja organização no Brasil se encontrava dentre as resoluções do III Congresso
do PCB.
Por fim, Astrojildo Pereira, nos estertores do debate, se defendeu argumentando ter
havido uma apreciação equivocada da questão negra no Brasil. Para ele, a discussão se deu a
partir dos parâmetros provenientes dos Estados Unidos.307 Esse olhar enviesado não teria
privilegiado o fato de que no Brasil havia negros no partido e que, quando o PCB decidia por
este ou aquele dirigente, a cor da pele não influenciava na avaliação.
Sobre a questão dos negros, me foi perguntado primeiro se há negros no partido.
Dessa maneira de formular, eu acho que nós já achamos o sentido de toda essa
questão tal foi posta aqui sobre os negros no Brasil. A questão dos negros no Brasil
foi vista através dos Estados Unidos. Como nos Estados Unidos houve e há lutas
ferozes entre os negros e os brancos enquanto tais; como essas lutas se refletem mais
ou menos nos sindicatos e mesmo no Partido, se crê que no Brasil a mesma coisa se
produz, se crê que no movimento trabalhista do Brasil existe também uma luta entre
os trabalhadores negros e os trabalhadores brancos. Tudo isto é falso. Eu já respondi
que no partido não somente há muitos negros mas há no C.C., e se no C.C. do
partido há negros, não é porque nós procuramos colocar negros como negros, mas
enquanto militantes comunistas ativos. A cor da pele dos comunistas é uma questão
que o Congresso do Partido não examinou quando escolheu nosso C.C. Se nos
dizem que os negros no Brasil formam como nos Estados Unidos uma categoria
social à parte, porque negros, eu reafirmo é falso.
Nas Usinas, nas fábricas, por todo lugar há indiferentemente trabalhadores negros e
trabalhadores brancos que fazem o mesmo trabalho, recebem os mesmos salários,

306
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 058 – ic-0064.pdf, p. 43-44, 5 nov. 1929. “Gouralsky n'a pas trouvé un argument
suffisant sur la question des nègres au Brésil. Il a proposé de donner des mots d'ordre de solidarité des nègres au
Brésil aux nègres des autres pays en luttes. Le camarade Ledo vu dans cela une question nationale; je pense que
nous pouvons l'appliquer au Brésil, nous pouvons lancer de mots d'ordre pour soutenir la lutte des ouvriers
nègres en Afrique comme une question d'indépendance nationale mais qu'on ne peut pas l'appliquer pour le
Brésil.
Voilà ce qu'on pouvait dire sur la question des nègres au Brésil. Maintenant, sur le projet de résolution présenté
par Gouralsky il est dit de lancer le mot d'ordre de la Fédération des Républiques Soviétiques anti-impérialistes.
Je ne comprends pas parce que si c'est déjà une république soviétique, c'est déjà par soi même un état anti-
impérialiste; je crois qu'on doit dire que c'est une république des ouvriers et des paysans.”
307
Mesmo argumento utilizado por Heitor Ferreira Lima em suas memórias. LIMA, Heitor Ferreira. Caminhos
Percorridos. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 106.
131

têm as mesmas condições de trabalho. Também nas plantações, brancos e negros se


acham sob as mesmas condições econômicas e sociais. É certo, sem dúvida, que no
exército e na marinha, por exemplo, há muitos negros e mestiços, os negros são
muito raros entre os oficiais, que são quase todos brancos ou mestiços
suficientemente... claros.
Que há tradições de luta de escravos negros no Brasil, é também certo. Essa tradição
histórica depois de muitos séculos após o início da importação de negros de
Aspiaue[da África?] para o Brasil. Existe uma república de Palmares, no Norte do
país [...] Evidentemente, se há essa tradição de luta, é porque há antagonismo entre
negros e brancos. Mas ao mesmo tempo, eu digo que hoje, no Brasil, não existe uma
questão específica dos negros, que ela não existe como luta de classe dos
trabalhadores brancos e negros irmanados contra as condições de exploração e
opressão que pesam igualmente [sob ambos]. Uma prova disso é que não há tal luta
entre brancos e negros no movimento trabalhista. Quando eu peço provas do
contrário, me falam da concessão Ford, e esta é a única prova concreta que me
deram da suposta luta “entre negros e brancos” no Brasil. Eu já disse que essas
provas não provam nada: primeiramente, porque esta foi uma coisa nova, desse ano;
em segundo lugar, esta é mais importante, é que os trabalhadores que estiveram
antes em Ford e contra aqueles que Ford importou, os negros da Jamaica, não eram
brancos. Entre eles, havia uma maioria de negros. Foi portanto uma luta entre negros
e negros e não uma luta entre negros e brancos.308

As longas citações tiveram como propósito apresentar os elementos que


fundamentaram as posições tomadas no debate, já que tais fontes jamais tinham sido
apresentadas ao público brasileiro tendo como foco o debate racial. Este evento, a discussão
sobre a questão brasileira, não teve um fim em si próprio. Conquanto a resolução dessa

308
RGASPI, F. 495, op. 079, d. 058. Cedem/Unesp, ic-0064b.pdf, p. 44-46, 5 nov. 1929. “Sur la question des
nègres on m'a d'abord demandé s'il y avait des nègres dans le parti. Dans cette façon de la formuler, je pense
qu'on trouve déjà le sens de toute la question telle qu'elle a été posée ici sur les nègres au Brésil. On voit ici la
question des nègres au Brésil au travers des Etats-Unis. Comme aux Etata-Unis (sic) il y a eu et il y a encore des
luttes féroces entre les nègres et les blancs comme tels; comme ces luttes se reflètent plus ou moins dans les
syndicats et même dans le Parti, on croit qu'au Brésil la même chose se produit, on croit que dans le mouvement
ouvrier du Brésil il existe aussi une lutte entre les ouvriers nègres et les ouvriers blancs. C'est tout à fait faux. J'ai
déjà répondu que dans le parti, non seulement il y a beaucoup de nègres, mais qu'il y en a dans le C.C. et si dans
le C.C. du parti, il y a des nègres, ce n'est pas parce qu'on cherche à y mettre les nègres en tant que nègres, mais
en tant [a]que militants communistes actifs. La couleur de la peau des communistes est une question que le
Congrès du Parti n'a pas examiné quand il a choisi notre C.C. Si l'on veut dire que les nègres au Brésil comme
aux Etats Unis forment une catégorie sociale à part, parce que nègres, je réaffirme que c'est faux.
Dans les Usines, dans les fabriques, partout il y a indiffémment (sic) des ouvriers nègres et des ouvriers blancs
qui font le même travail, reçoivent les mêmes salaires, ont les mêmes conditions de travail. Aussi dans les
plantations, blancs et nègre se trouvent sous les même conditions économiques et sociales. Il est exact, sans
doute, que dans l'armée et dans la marine, par exemple, il y a beaucoup de nègres et de métis et aue(sic) nègres
sont très rares parmi les officiers qui sont presque tous des blancs ou des métis assez…clarifiés.
[47]Qu'il y ait des traditions de lutte d'esclaves nègres au Brésil, c'est aussi exact. C'est la tradition historique
depuis plusieurs siècle depuis de début de l'importation de nègres d'Aspiaue pour le Brésil. Il y a même eu une
république de Palmares, dans le Nord du pays [...] Evidemment, s'il y a cette tradition de lutte, c'est qu'il y a
antagonisme entre nègres et blancs. Mais tout de même, je dis qu'aujourd'hui, au Brésil, il n'existe pas une
question spécifique des nègres, qu'elle n'existe comme lutte de classe des ouvriers blancs et nègres fraternises
contre les conditions d'exploration et d'oppression qui pèsent sur également. Une preuve de cela, c'est que dans
le mouvement ouvrier une telle lutte entre blancs et nègres n'existe pas. Quand je demande des preuves au
contraire on me parle de la concession Ford, et c'est la seule preuve concrète qu'on m'a donnée des soi-disant
luttes 'entre nègres et blancs' au Brèsil. J'ai déjà dit que ces prévues ne prouvent rien: premièrement, parce que
cela était une chose nouvelle, de cette année; deuxièmement, ce qui est plus important, c'est que les travailleurs
qui étaient auparavant chez Ford et contre lesquels Ford a importé des nègres de, la Jamaique, n'étaient pa(sic)
non plus des blancs. Parmi eux, il y avait une majorité des nègres. Cela fut donc une lutte entre nègres et nègres
et pas une lutte entre nègres et blancs.”
132

discussão tenha atingido o PCB e seus militantes, seus antecedentes e desdobramentos


caminharam pari passu aos eventos que remodelaram a estrutura da Comintern, de suas
seções e organizações auxiliares e da União Soviética.
Na prática, o debate sobre raças entre os comunistas em todo o mundo foi influenciado
também por disputas internas em torno do controle da máquina política daquele que era o
único estado socialista do planeta. Em razão disso, a análise da questão racial não pode
obscurecer um aspecto essencial que esteve onipresente na contenda apresentada: o
recrudescimento da burocracia stalinista e a supressão de seus opositores, neste caso, a
paulatina liquidação da influência bukharinista nas formulações e direção da IC.
Entre 1928-9,
Stalin, então, estava subjugando os bolcheviques de direita. Nenhum conceito
político ou slogan cunhado por Bukharin, Tomski ou Rikov ficaram livres de
condenação. Todas as questões em jogo eram russas: a NEP, a industrialização, a
coletivização etc. Mas a enérgica “virada para a esquerda” no partido russo se
transmitiu automaticamente para a Komintern, até então dirigido por Bukharin.
Alguns comunistas estrangeiros tenderam a tomar o partido de Bukharin e, assim,
Stalin não pôde deixar de levar a luta contra ele até a Internacional.309

O Brasil e a América Latina, partes periféricas da Comintern e do arranjo do


movimento comunista internacional, não apresentavam, em suas hostes, a definição que as
lutas fratricidas adquiriram em países centrais para os comunistas, tais como os Estados
Unidos, a Alemanha e a própria União Soviética. Não havia, no PCB, frações zinovievistas e
bukharinistas contrapostas ao poder ascendente do grupo stalinista. Direita e esquerda
comunistas, tal qual aplicadas ao cenário soviético e europeu, não ajudam a explicar a
natureza dos conflitos internos do PCB. Essas disputas russo-europeias não foram
transplantadas automaticamente para o Brasil e para a América Latina. Estava em jogo a
capacidade de interferência que esses diferentes círculos tinham nos partidos ao redor do
globo.
Em princípio, as investidas de Guralsky também obedeciam ao objetivo da
desestabilização da direção de Jules Humbert-Droz do Secretariado Latino-Americano, o que
significava, na prática, a diluição das influências do grupo remanescente ligado a Nikolai
Bukharin, então recém-expulso do PCUS. Uma das formas de minar a influência foi,
inicialmente, prefigurar uma ascendência de poder, por parte de Guralsky face a Jules

309
DEUTSCHER, 2006, p. 426.
133

Humbert-Droz, e, em seguida, liquidar o Secretariado, transformando-o no Bureau Sul-


Americano.310
Heitor Ferreira Lima lembrou, em suas memórias, da intervenção de Guralsky como
virulenta e áspera. Ferreira Lima cita a filiação de zinovievista de Guralsky,311 o que lhe
rendera um ostracismo por ter se contraposto a Stalin na disputa interna do PC Soviético.
Jules Humbert-Droz, por seu turno, era bukharinista.312
Em abril de 1929, a queda de Bukharin precipitou o domínio da burocracia stalinista.
Sob o comando efetivo do grupo apoiador de Stalin, a intervenção da IC no debate sobre a
questão racial no Brasil suprimiu parte substantiva do trabalho realizado durante a
Conferência três meses antes do encontro sobre a questão brasileira em Moscou. Na I
Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, os comunistas latino-americanos
haviam, na prática, objetado a discussão em termos raciais e nacionais. Humbert-Droz havia
levado o debate a uma resolução anódina. Os contornos do debate três meses depois se
alteraram, e a discussão da questão brasileira foi um aperitivo do nível de centralização
almejada pela nova estrutura dirigente da Comintern.
Um complicador, que aumenta a possibilidade de explicações com vieses
conspiratórios, é o fato de que Guralsky era um eminente aliado de Grigori Zinoviev. Sua
atuação e lealdade ao antigo dirigente máximo da Comintern seria provada posteriormente em
1934, quando ele viria a liderar uma manifestação pró-Zinoviev em Moscou. O vigor de
Guralsky no exercício de desalojar Humbert-Droz e os bukharinistas de posições de influência
obedecia a um duplo propósito: salvaguardar sua própria integridade física e, ao fazê-lo,
corroborar com a submissão de Zinoviev a Stalin, a partir 1928.

310
A vigência do Secretariado Latino-Americano passou a estar em xeque. Tradicionalmente os “Secretariados”
gozavam de relativa autonomia interpretativa e de elaboração ao contrário dos bureaux, que eram formalmente
vinculados a um organismo superior hierarquicamente.
311
Como tantos outros militantes da Comintern, Auguste Kleine (também conhecido por Samuel Haifiz e
Guralsky) manteve famas divergentes entre si. Houve quem o caracterizasse como “lúcido, amável, sempre
animado e alegre” (HORNSTEIN, David P. Arthur Ewert: A life for the Comintern. Lanham: University Press
of America, 1993. p. 28). De acordo com Wolfgang Brezinka e David P. Hornstein, “admiradores e detratores de
Guralsky concordam em dois pontos: sua coragem pessoal e sua devotada lealdade a Zinoviev. Começando em
1926, quando Zinoviev foi removido do cargo de secretário-geral da Comintern como resultado de sua oposição
a Stalin e começou a descida que levaria a sua execução dez anos depois, Guralsky nunca hesitou em seus
esforços para defender seu amigo e desenvolver apoio para ele na Rússia e entre comunistas estrangeiros, até
mesmo uma vez tentando organizar uma demonstração de rua em favor de Zinoviev em Moscou.
Inevitavelmente preso em 1934, a resistência extraordinária de Guralksy o levou a sobreviver no gulag até
1960”. (p. 28) Inúmeros pesquisadores ressaltam a filiação zinovievista de Guralsky. FOWKES, Ben. (Trad.).
The German Left and the Weimar Republic: A Selection of Documents. Leiden: Brill Academic Publishers,
2014. p. 74. BROUÉ, Pierre. The German Revolution, 1917-1923. Leiden: Brill Academic Publishers, 2004. p.
972, HALLAS, Duncan. The Comintern: 3. The Ebb. Marxists Internet Archive. 4 nov. 2004. Disponível em:
<https://www.marxists.org/archive/hallas/works/1985/comintern/ch3.htm>. Acesso em: 23 set. 2014.
312
LIMA, 1982, p. 104.
134

***

Resolvidas as disputas internas na URSS, a direção da Comintern continuou a gerir a


questão colonial, racial e anti-imperialista de maneira imbricada com a paulatina
transformação da autodeterminação/secessão de povos oprimidos em cláusula pétrea.
Entendida como virtual sinônimo de secessão territorial, a propugnação defendida pelos
partidos comunistas, a despeito (ou talvez por causa) do radicalismo da tese, logrou mínimo
apoio entre simpatizantes e pouco empenho entre militantes. A letra morta da resolução no
campo prático, porém, foi precedida pela sua imposição nos documentos oficiais do PCB e na
construção de suas linhas. Os mecanismos de centralização vieram, sobretudo, das
organizações auxiliares da IC com seus tentáculos no Brasil.

4.2 As inserções internacionais dos comunistas brasileiros

A Profintern foi uma das máquinas auxiliares mais proeminentes da Internacional


Comunista. Com hastes em todos os cantos do mundo por meio de sindicatos a ela ligados e
impulsionadora das diretrizes soviéticas, a Internacional Sindical Vermelha foi também palco
de um número relativo de contradições.
Foi, possivelmente no âmbito da Profintern que, ainda em 1930, um raro documento,
intitulado “Rapport sur la situation des travailleurs négres au Brésil”,313 fez um balanço da
condição dos trabalhadores negros no Brasil. O relatório é breve e conciso. Ainda assim
constitui-se como um dos mais complexos já feitos sobre a questão negra por comunistas a
respeito do país. Sobre sua feitura, o que se sabe é que foi redigido entre junho e dezembro de
1930. Compõe parte da documentação da questão negra relativa ao CEIC. Portanto, não seria
impreciso arriscar que esse documento fez parte da pauta de apreciação do Comitê Executivo
da Internacional Comunista à altura de sua escrita ainda que não esteja claro qual setor da
Comintern elaborou a minuta. Também sabe-se que circulou uma versão em inglês, traduzida
do francês, datada de 4 de setembro de 1930, sob o título “Report on the situation of the

313
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 87, fols. 322-324.
135

Negro workers in Brazil”314 que foi dirigido ao “Bureau Negro”, possivelmente ligado ao
Secretariado Oriental. A autoria do documento é, portanto, imprecisa – nesta tese,
chamaremos de “os autores”. O exame do documento pode dirigir a algumas hipóteses acerca
de quem o escreveu.
O relatório conduz à seguinte avaliação acerca da condição do negro na sociedade
brasileira: desde a libertação dos escravos “nós não tivemos sucesso em aumentar o nível
cultural da raça negra ou suprimir todos os traços do chauvinismo”.315 Esse é o diagnóstico do
qual parte o escrito. A despeito do histórico de luta dos negros, seja durante a colônia com o
exemplo de Palmares, no império com a revolta dos malês na Bahia e em Cubatão na década
da abolição, os brancos haviam vencido a batalha ideológica por meio de uma educação
apologética da democracia burguesa que
instila o sentimento de superioridade dos brancos sobre os negros. A maioria dos
negros, na verdade, são imbuídos do sentimento de que eles são inferiores aos
brancos. Eles não se juntam à luta, e em geral suas atitudes são raivosas: os negros
não são admitidos em muitas profissões. Nem eles são admitidos em certas
celebrações. Quando trabalham ganham menos, mesmo quando terminam suas
tarefas com a mesma destreza [que os brancos].316

Para tanto, os grandes proprietários


Utilizam a literatura nas escolas e questões históricas constantemente como
justificativa para a “democracia”. Essa atividade dos proprietários é levada a cabo de
uma maneira tal que até mesmo certos revolucionários se permitem ser tragados pela
ilusão burguesa em relação a igualdade entre negros e brancos, o que em realidade
não é nada senão demagogia burguesa.317

No que parece ser uma alusão aos comunistas brasileiros que negavam a existência de
uma questão negra no país, os referidos “certain revolutionaries” acreditavam na igualdade
formal entre negros e brancos amparada pela legislação brasileira.
O relatório estabeleceu uma tipologia dos extratos negros mais suscetíveis à militância
comunista. A conclusão: são especialmente vulneráveis aqueles trabalhadores benquistos
pelos patrões por sua alta qualidade e, ao mesmo tempo, desprestigiados por ganharem menos

314
Esta será a versão utilizada aqui. As versões em francês e em inglês foram cotejadas e apresentam
fidedignidade entre si.
315
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 87, fols. 322. “[...] we have not succeeded in raising the cultural level of the
black race or wiping out all traces of chauvinism.” Ainda que não seja possível ter certeza, presume-se que o
“nós” refere-se a “nós comunistas” e não necessariamente aos comunistas brasileiros.
316
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 87., fols. 322-324. “instill the sentiment of superiority of the whites over the
Negroes. The majority of the Negroes, in fact, are imbued with the feeling that they are inferior to the whites.
They do not join in the struggle, and in general their attitude is bitter: the Negroes are not admitted to many
occupations. Nor they are admitted to certain celebrations. When they work they earn less, even when they
accomplish their task with the same skill.”
317
Ibidem, fols. 323. “utilise literature in the schools and historical questions constantly for justification of the
‘democracy’. This activity of the owners is carried on in such a way that even certain revolutionaries allow
themselves to be drawn in by this bourgeois illusion regarding equality between the blacks and whites, which in
reality is nothing but bourgeois demagogy.”
136

que seus colegas brancos. De acordo com o documento, “nessa situação existem certos negros
que nada demandam, e eles são considerados brancos-negros”. Ainda conforme relato,
eles não estão satisfeitos. Eles estão prontos para enfrentar a desigualdade, mas na
maior parte dos casos não encontram apoio; eles não estão ainda bem treinados por
meio da luta, faltando a liderança revolucionária que poderia desenvolver neles o
sentimento de igualdade com os brancos.318

Enquanto avaliação estrutural do problema e autocrítica com relação à atividade do


partido, a conclusão é a de que
Em geral nós até agora lidamos apenas com a luta de classe, mas os negros sentem
acima de tudo o desdém que existe com relação a sua raça, um desdém que mantém
sua sujeição moral e lhe coloca em todas as más condições que tiveram que
enfrentar até agora. Eles veem nos brancos um amigo infiel e incômodo.319

A descrição do mundo do trabalho no Brasil obedeceu, no relatório, a um recorte


racial inédito, até então, entre formulações comunistas acerca do país. Ainda abraçada à tese
do feudalismo, inaugurada decerto por Octávio Brandão, os autores do relatório cindiram a
questão racial à superexploração econômica.
No Brasil existem de 8 a 10 milhões de negros e essa grande massa compreende
95% dos trabalhadores e os mais explorados dentre a população trabalhadora. Essa
grande maioria vive nos campos, sob um regime de feudalismo; quase nenhum deles
sabe ler e trabalham como escravos sem pagamento; eles apenas recebem coupons
dos donos de terra com os quais eles são forçados a comprar sua comida ruim
mesmo quando elas ficam podres, de maneira a não morrer de fome; eles estão em
débito sem nenhuma possibilidade de deixar as plantações, o que constitui uma nova
320
forma de escravidão.

As resoluções do relatório seguiram a tônica de todo o texto no sentido de enfatizar a


luta ideológica e promover um melhor posicionamento dos negros na disputa por “corações e
mentes”:
1) Organizar um comitê de negros para dirigir o trabalho de educação, agitação
e organização nacional dos negros;

318
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 87, fols. 323. “they are ready to struggle against inequality, but in most cases
they find no support; they are not yet well enough trained through the struggle, lacking the revolutionary
leadership which could develop in them in the sentiment of equality with the whites.”
319
Ibidem, fols. 322-324. “In general we have so far dealt only with the class struggle, but the blacks feel above
all the scorn which exists with regard to their race, a scorn which keeps them in moral subjection and in all the
bad conditions which they have had to endure up till now. They see in the whites an unfaithful and obtrusive
friend.”
320
Importante destacar que os dados não são precisos e que a cisão entre questão racial e econômica foi posta
durante a Conferência dos Partidos da América Latina e quando da discussão brasileira. No caso do relatório,
houve maior esmero no tratamento das questões raciais, observando aspectos superficiais da psicologia do
racismo e estabelecendo uma clivagem na própria classe trabalhadora em termos de raça. “In Brazil there are
from 8 – 10 million Negroes and this great mass makes up 95% of the workers and the most exploited of the
working population. This great majority lives in the fields, under a regime of feudalism; almost none of them
know how to read and they work like slaves without pay; they only get coupons from the landowners with which
they are forced to purchase their bad food even when it has become rotten, in order not to die of hunger; they are
heavily in debt without any possibility of leaving the plantations, which constitutes a new form of slavery.”
Ibidem, fols, 322-324.
137

2) Organizar congressos e conferências para os negros de modo que seja


possível construir pautas e agendas reivindicatórias;
3) Construir vigorosa campanha contra o chauvinismo branco e pela frente
única das massas trabalhadoras contra o imperialismo e a burguesia nacional;
4) Estabelecer Comitês negros em todos os estados onde os negros encontram-
se concentrados, como Bahia, Pernambuco, estado do Rio, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul;
5) Estreitar contato com o movimento negro internacional;
6) Distribuir literatura especial sobre a situação nacional e internacional dos
negros e criar um jornal específico devotado à educação e agitação dos negros;
7) Estabelecer contato com a Confederação Geral do Trabalho do Brasil
(General Federation of Labour of Brazil).321

Mais que isso, todavia, as resoluções tornavam evidente a posição dos autores a
respeito da constituição da classe trabalhadora no Brasil. Admitia-se uma cisão racial e
reconhecia-se a necessidade de enfrentar o racismo nas relações entre trabalhadores brancos e
negros. As resoluções destacaram o distanciamento dos comunistas brasileiros com o
movimento negro internacional e seus respectivos debates, além de desnudar a incapacidade
organizativa dos comunistas brasileiros em construir pontes, vinculadas ao partido, com as
camadas negras da população.
Essa leitura sobre a realidade racial no Brasil contrapôs a defesa da tese clássica do
PCB segundo a qual a resolução da questão de classe redundaria na solvência do problema do
negro, para ficar apenas no exemplo afro. Os contornos da nova política desenhada com
ênfase no ataque à questão negra se desdobrava numa necessidade de enfrentar a matéria num
campo até então inexplorado: o plano das ideias. A produção de visões de mundo acerca do
negro vis-à-vis a incapacidade de reação do PCB foi identificada como a equação a ser
solucionada pelos comunistas, o que reverberou nas resoluções do relatório. Assim, abriu-se,
em finais da década de 1920, mais de um flanco para que a IC atacasse o PCB, e este relatório
contribuiria para os rumos que tomaria o PCB sob os auspícios do Bureau Sul-Americano
(BSA) no que tange à questão negra e racial.
Não se pode descartar a possibilidade de um comunista brasileiro ter escrito o referido
relatório. Ainda que não haja evidência, talvez um exame futuro do estilo utilizado na escrita
possa ser comparado ao de comunistas brasileiros a fim de recuperar padrões, algo que não foi
realizado e escapa às capacidades desta tese.
No entanto, mesmo sem desconsiderar a possibilidade de um brasileiro ser o autor,
parece mais provável que o contexto do documento tenha sido outro. Em maio de 1930, em
plena atividade, o International Trade Union of Communist Negro Workers (ITUCNW),
ligado à Profintern (Internacional Sindical Vermelha), realizara um esforço para consolidação

321
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 87, fols. 324.
138

de quadros negros no movimento comunista sucedendo outros esforços ao longo da década de


1920 por parte da militância comunista negra. Essa foi uma diligência e, ao mesmo tempo,
ponto fulcral de unidade entre os comunistas negros ao longo dessa década: a formação de
quadros negros. Seguindo esse rastro, em documento do Departmento Negro do Secretariado
Oriental enviado à comissão política do CEIC, foi indicado o envio de instrutores para
colônias europeias na África e o estabelecimento de curso para formação desses instrutores
em Moscou.322 Como se poderá notar a seguir, esse procedimento duplo não se limitaria à
África e ocuparia as duas instituições soviéticas de educação dedicadas à formação da
militância: a Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente e a Escola Internacional
Leninista.
Uma das organizações que assumiria a responsabilidade por dirigir o debate e atuação
sobre a questão negra (entendida como parte fundamental da luta anticolonial, anti-
imperialista e antirracista) foi o ITUCNW, vinculado à Profintern. Holger Weiss aponta que
dentre as intenções do ITUCNW estava o Brasil. Um dos organizadores do Congresso do
ITUCNW que deveria ocorrer em julho de 1930, em Londres, foi George Padmore. O
objetivo do Congresso era construir pontes entre entidades negras em todo Atlântico. Em
carta dirigida à House of Commons (Inglaterra), a fim de obter autorização para realização do
evento, afirmou que a conferência reuniria delegados dos “EUA, Brasil, Jamaica, Haiti, Cuba,
Colômbia e das colônias africanas britânicas, francesas e belgas. Eles ficariam uma semana
em Londres; a conferência de fato estava prevista para começar no dia 1o de julho e durar dois
dias”. 323 Não há nenhuma indicação na documentação pesquisada sobre qual seria a
identidade do delegado brasileiro no Congresso. A documentação indica que não houve um
delegado brasileiro, mas havia o interesse na participação brasileira.
O Consulado Americano em Pernambuco, por sua vez, interceptou documentos de
comunistas enviados de Paris, um dos hubs do ITUCNW. O material constituía-se de boletins

322
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 86, list. 4 e 5, 20-5-30. Foi requerido que os seguintes números de estudantes
comunistas negros fossem recebidos pela Universidade Comunista dos Trabalhadores do Oriente: 10 da Grã-
Bretanha, 15 da França, 5 da Bélgica, 30 dos Estados Unidos, 5 do Brasil, 2 do Panamá e 3 de Cuba, num total
de 70 estudantes. O documento também requeria que sempre que os partidos enviassem militantes para a Escola
Internacional Leninista, estudantes negros também fossem enviados dentre os contigentes e cotas de cada
partido.
323
“USA, Brazil, Jamaica, Haiti, Cuba, Columbia, and from the British, French and Belgian African colonies.
They were to stay for one week in London; the actual conference was to start on the 1st of July and last for two
days.” WEISS, 2013, p. 234.
WEISS, Holger. The Road to Hamburg and Beyond: African American Agency and the Making of a Radical
African Atlantic, 1922-1930. Part Three. Turku: Abo Akademi, 2011. p. 39. Disponível em:
<https://www.abo.fi/student/en/media/7957/cowopa18weissupdated2011.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2015.
O Congresso terminou sendo realizado em Hamburgo no mesmo mês previsto. Os comunistas tentaram, mas não
conseguiram esconder das autoridades britânicas que dirigiam o Congresso.
139

enviados aos comunistas brasileiros com resumos dos discursos e temas debatidos no V
Congresso da Internacional Sindical Vermelha, em Moscou, em agosto de 1930. Sobre a
leitura do material, o Cônsul destacou os informes que variavam desde a guerra civil na China
à realização da “first international conference of negro laborers”. Em tom de advertência,
relatou que
Eles não fizeram qualquer referência ao Brasil, exceto indiretamente onde menção
casual é feita ao trabalho entre negros sul-americanos “que constituem a maioria do
proletariado daquele continente”. Os documentos contêm algumas exposições
interessantes, senão supreendentemente novas, dos objetivos e métodos gerais da
Internacional. Até onde este distrito consular está informado, eles são interessantes
principalmente como evidência de que comunistas locais estão em contato com a
organização central.324

Os eventos elencados concorreram para que a pauta racial do PCB fosse alterada de
fora. Talvez a escrita do relatório em questão tenha se dado no ambiente ligado ao ITUCNW
e/ou ao Departamento Negro do Secretariado Oriental.
As definições anódinas da Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina
alteradas pela discussão da questão brasileira em Moscou foram mais uma vez transmutadas
pelas novas diretrizes. A coalescência da questão racial à definição das linhas táticas do
partido passou a ser dirigida pelo então recém-criado Bureau Sul-Americano.325
De acordo com avaliação do Bureau Sul-americano da Comintern, em data incerta de
1931, os comunistas brasileiros não entendiam que
As organizações chauvinistas dos negros se estendem cada vez mais por todo o país,
e o partido assinala seu perigo às massas de trabalhadores negros. Em toda sua
existência o PCB não tem tomado nenhuma medida para penetrar nos clubes e
organizações culturais negras a fim de consquitar a massa trabalhadora que aflui a
elas. O partido não compreende que o enfoque de nossas tarefas entre as massas
negras e índias é um dos aspectos do problema da conquista da maioria da
população trabalhadora do Brasil. Sem que se arrastem as massas negras e índias à
luta, nenhuma revolução de massas é possível no Brasil.326

324
American Consulate, Pernambuco, Brazil – Political Report, Murphy Collection, caixa 201. National
Archives, Estados Unidos, 230.jpg, p. 1-2. “They made no reference to Brazil, except indirectly (no. 160, page 8)
where casual mention is made of work among South American negroes ‘who constitute the majority of the
proletariat of that continent’. The documents contain some interesting, if not startlingly new, expositions of the
International’s general aims and methods. So far as this consular district is concerned, they are interesting
principally as evidence that local communists are in touch with the central organization.”
325
DEL ROIO, Marcos. A classe operária na revolução burguesa: a política de alianças do PCB, 1928-1935.
Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990. p. 121-123. O Secretariado Sul-Americano da IC (SSAIC) surgiu de
um desmembramento, em 1925, do Secretariado Latino-Americano. Em 1929, o SSAIC foi transformado em
Bureau Sul-Americano da Internacional Comunista (BSAIC). Cf. Ibidem, p. 99.
326
RGASPI, F. 503, op. 001, d. 052, p. xx. Cedem/Unesp, ic-0096.pdf. “Las organizaciones chauvinistas de los
negros se extienden cada vez más por todo el país y el partido no señala su peligro a las masas de obreros negros.
En toda su existencia el PCB no ha tomado ninguna medida para penetrar en los clubs y organizaciones
culturales de los negros a fin de conquistar la masa obrera que afluye a ellas. El partido no comprende que el
planteamiento de nuestras tareas entre las masas negras e indias, es uno de los aspectos del problema de la
conquista de la mayoría de la población trabajadora del Brasil. Sin el arraste de las masas negras e indias a la
lucha, ninguna revolución de masas es posible en Brasil.”
140

O partido não entendia, de acordo com os especialistas de Moscou, que


No Brasil, onde em sua maioria a população está constituída por mestiços e negros,
o trabalho entre esses grupos explorados mais perversamente que as massas
trabalhadoras “brancas” – é uma tarefa indiscutível de cada comunista. No entanto,
o partido ainda desconhece este trabalho, ainda que a sorte da revolução no Brasil
dependa em grande parte da atividade dessas massas oprimidas. As lutas
revolucionárias da massa negra e indígena (Amazonas) tem se desenvolvido sem a
participação e à margem do Partido.327

Os dirigentes da IC que passaram a intervir diretamente na organização dos partidos


latino-americanos depois da dissolução do Secretariado Sul-Americano e subsequente
transformação em Bureau Sul-Americano avaliavam que, “nas regiões onde a maioria da
população é negra, esta quase não participa da vida do Partido. Não há, por outro lado,
nenhum índio no partido”.328 Especialmente importante para eles era o fato de que “na direção
os negros estão muito insuficientemente representados”.329 Isso traduzia vividamente o fato de
que “o partido todo menospreza o recrutamento de trabalhadores negros e índios para o
partido. Não se elaboram métodos especiais de trabalho entre esses grupos oprimidos, nem
tampouco as reivindicações específicas dos trabalhadores negros e índios”.330 Tais equívocos
organizativos e táticos seriam o resultado de uma incompreensão por parte dos comunistas
brasileiros a respeito do papel de índios e negros para o movimento revolucionário. Em
resumo, sobre os comunistas brasileiros, o bureau destacava que “eles não compreendem nem
reconhecem a existência do problema racial no Brasil. Eles interpretam a igualdade formal
das raças como se fosse efetiva, real”.331 Os experts de Moscou traçaram o caminho no
sentido das resoluções e orientações dispostas no VI Congresso da IC, em 1928, acerca de
enclaves cujas populações fossem identificadas como raças e/ou nações oprimidas. Para eles,
O Partido deve tratar de conquistar a confiança da massa de negros e índios por
meio da demonstração, nos atos, de que o Partido Comunista é o único partido capaz
de organizar as lutas pela autodeterminação, pela liquidação dos privilégios dos
“brancos” e pela devolução das terras roubadas pelos colonizadores.332

327
RGASPI, F. 503, op. 001, d. 052, p. xx. Cedem/Unesp, ic-0096.pdf. “En Brasil donde en su mayoría la
población está constituida por mestizos y negros, el trabajo entre estas capas explotadas más inicuamente que las
masas trabajadoras ‘blancas’- es una tarea indiscutible de cada comunista. Sin embargo, el Partido desconoce
todavía esta labor, apesar de que la suerte de revolución en Brasil, depende en gran parte de la actividade de
estas masas oprimidas. Las luchas revolucionanarias de la masa negra e indígena (Amazonas) se han
desarrollado sin la participación y al margen del Partido.”
328
“En las regiones, donde la mayoría de la población es negra, estas no participan casi de la vida del Partido.
No hay, por otra parte, ningún indio en el partido.” Ibidem, p. xx.
329
“En la dirección los negros están muy insuficientemente representados.” Ibidem, p. xx.
330
“El partido todo, menosprecia el reclutamiento de obreros negros e indios para el partido. No se elaboran
métodos especiales de trabajo entre esas capas oprimidas, ni tampoco las reivindicaciones específicas de los
obreros negros e indios”. Ibidem, p. xx.
331
“Ellos no comprenden ni reconocen la existencia del problema racial en Brasil. La igualdad formal de las
razas la interpretan como si fuera efectiva, real”. Ibidem, p. xx.
332
“El Partido debe tratar de conquistar la confianza de la masa de negros e indios a través de la demostración,
en los hechos, de que el Partido Comunista es el único partido capaz de organizar las luchas por la
141

Como resolução prática, o bureau propunha a formação de comissões especiais para o


trabalho com negros e índios. Seus objetivos incluíam tanto “elaborar um plano especial de
recrutamento de trabalhadores negros e índios para o Partido”333 como escolher “os melhores
lutadores negros, que são membros do Partido”, 334 para compor a direção. Por fim, e
aparentemente mais importante, “deve-se fazer um plano concreto de formação de quadros de
trabalhadores negros e índios capazes de realizar esse trabalho entre as mais amplas massas
dessas raças oprimidas”.335
Os ataques sofridos pela direção do PCB e o relatório sobre a situação dos
trabalhadores negros de 1930 surtiriam efeito, ao menos em partes. Em 1931, oito anos depois
de afirmar categoricamente que não havia uma questão racial no Brasil e no Partido, Octávio
Brandão enviou uma circular, de Moscou, aos companheiros no Brasil pedindo 20 informes e
terminando com a seguinte exortação: “Precisamos dedicar a maior attenção aos trabalhadores
negros”.
1º O número de negros existentes no Brazil.
2º Em que regiões estão concentrados.
3º Em que proporção, relativamente à população.
4º Os operários agrícolas negros: o número deles, os pontos de concentração, a
situação econômica, política e social, as condições de trabalho (salário, horários,
etc.), a alimentação, suas relações econômicas, política e sociais com os grandes
proprietários de terras, suas relações com os índios ou com os descendentes destes,
suas relações com os outros trabalhadores nas plantações.
5º Os camponeses negros: idem, idem.
6º Os operários industriaes negros: o numero deles, as cidades e as industrias em que
estão concentrados, a situação econômica, política e social, as condições de trabalho,
a alimentação, suas relações econômicas, políticas e sociaes com os grandes
industriaes, suas relações com os outros operários.
7º As massas laboriosas negras em geral (como os pequenos funcionários e os
empregados domésticos): idem, idem.
8º O trabalho dos menores negros, nos campos e nas cidades.
9º O trabalho das mulheres negras, nos campos e nas cidades.
10º Os negros da Jamaica na Fordlândia.
11º No exército: o número de negros e sua situação econômica e política.
12º Na politica: idem.
13º Na marinha: idem.
14º As manifestações escravistas das classes dominantes contra os negros. O
patrioteirismo branco.
15º As formas de exploração dos trabalhadores negros pelos trabalhadores brancos.
16º As organizações dos negros, o número de aderentes e as tendências políticas.
17º As lutas dos negros – no passado e no presente.
18º O papel dos negros no movimento proletário e no PC.
19º O papel dos negros no desenvolvimento cultural brasileiro.

autodeterminación, por la liquidación de los privilegios de los “blancos” y la devolución de las tierras robadas
por los colonizadores.” Ibidem, p. xx.
333
“elaborar un plan especial de reclutamiento de obreros negros e indios para el Partido” RGASPI, F. 503, op.
001, d. 052 – ic-0096.pdf, p. xx, 1931.
334
“los mejores lutadores negros, que son miembros del Partido” Ibidem, p. xx.
335
“[...] debe hacerse un plan concreto de formación de cuadros de obreros negros e indios capaces de realizar
este trabajo entra las más amplias masas de esas razas oprimidas.” Ibidem, p. xx.
142

20º A burguesia negra.336

Não foi possível encontrar a resposta do PCB ao pedido de Brandão. Parte dela,
entretanto, talvez se encontre na I Conferência do Partido Comunista do Brasil, em 1934. Ali,
os comunistas dirigiram-se aos “negros e índios escravizados”:
O proletariado, os camponeses de todas as nacionalidades e o Partido Comunista vos
ajudarão nas lutas por vossa libertação, desde as lutas pela devolução das terras
roubadas e pela igualdade de direitos econômicos, políticos e sociais, até à luta pelo
direito de constituirdes vossos próprios governos separados do governo federal e
estaduais, caminho pelo qual vós podereis desenvolver como nacionalidades com
território, governo, costumes, religião, língua e cultura próprios.337

Ainda que na forma de diretiva e resolução partidária – o que não significa efetivação
prática da política definida – os comunistas brasileiros foram convencidos a tratar da questão
racial no Brasil. Parte disso se deveu às reuniões e discussões estabelecidas nos encontros
elencados anteriormente. Outra parte pode ser creditada à atuação dos organismos
internacionais auxiliares da IC.
A incorporação do PCB no cenário do movimento comunista internacional se deu
tardiamente, como aconteceu com a maior parte dos países latino-americanos. De fato, ainda
que a IC, a União Soviética e os próprios bolcheviques tivessem declarado afinidades com os
povos ditos semicoloniais, a Comintern não tornou efetivamente presentes na América Latina
seus tentáculos até finais da década de 1920, seja por dificuldades logísticas seja por interesse
geopolítico.338
As tentativas anteriores ao VI Congresso da Comintern em 1928 se deram a partir de
iniciativas rarefeitas e com pouca instrumentação prática. Ainda que crescente, desde 1919, o
interesse pela América Latina sofreu solavancos e obedeceu às constantes descontinuidades
do período de estabilização da revolução bolchevique.
Um dos meios utilizados pela Comintern no intuito de ampliar seus espaços de
atuação e fomentar a atividade revolucionária foi a fragmentação de seus esforços. Desse
modo a IC manteve diversos organismos auxiliares. Dentre eles, serão destacados aqui a
Juventude Comunista Internacional (JCI) ou KIM, a Internacional Sindical (Profintern) e o
Socorro Vermelho (SVI), precisamente porque participaram da discussão e profusão das teses
dos comunistas sobre as questões raciais.

336
RGASPI, F. 495, op. 029, d. 055 [ic-0266.pdf], 23 out. 1931.
337
MANIFESTO da 1ª Conferência do PCB. In: Fundação Dinarco Reis. [s.d.]. Disponível em:
<http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=130:manifesto-da-1o-conferencia-do-
pcb&catid=1:historia-do-pcb>. Acesso em: 31 out. 2014.
338
Ambos os homens inicialmente destacados pela Comintern para realizar prospecções na América Latina,
Abramson e Borodin, depois serviriam no Kuomitang.
143

O PCB não construiu linhas nítidas de distinção entre as diferentes organizações


auxiliares.339 A falta desses contornos prejudicou a atuação do partido e embaçou as ênfases
para as quais cada uma das organizações havia sido criada. Dessa maneira, as atividades do
Socorro Vermelho, da Profintern e da JCI encontram-se dispersas em documentos do PCB.
As diretrizes produzidas em Moscou, por conseguinte, não eram necessariamente seguidas. A
organicidade desses agrupamentos auxiliares eram minados pela centralização do aparato
partidário e pela superposição de funções, em que o sujeito era dirigente da JCI e parte do
Comitê Executivo do PCB e essas funções não eram executadas de maneira a otimizar os
objetivos da JCI.340
Felix Cole, em Riga, capital da Letônia, escreveu um relatório ao Secretário de Estado
dos Estados Unidos no qual apresentou a tradução de um artigo no jornal da Juventude
Comunista Internacional cujo título era “The Young Communists’ Union in Brazil”. O texto
escrito por “Rosha”, foi publicado em maio de 1932 pelo referido jornal, em Moscou, e
traduzido em 1º/07/1932 pela “Legation of the United States em Riga, Latvia”.
O artigo fazia um balanço da situação política e econômica brasileira além de
caracterizar o perfil e a natureza da exploração aos quais estavam submetidos os trabalhadores
no Brasil. Dentre as questões levantadas estava a racial, posta nos seguintes termos:
O recentemente criado Ministério do Trabalho tenta por meio de medidas restritivas
para incitar seus trabalhadores contra imigrantes enquanto a burguesia se esforça
para aumentar a chama da inimizade nacional entre brancos e negros. Existem
7.000.000 de negros no Brasil. Negros não são admitidos nos teatros de São Paulo.
A burguesia, com cooperação de demagogos fascistas Miguel Costa, Tabora,
Alberto e outros, com quem também tiveram contato Trotskistas Brasileiros (Melo),
tentam separar as massas mais uma vez e para dificultá-los de seguir o caminho
correto sob a liderança do Partido Comunista.341

O autor do texto finaliza afirmando ser


absolutamente imperativo tomar medidas com o objetivo de organizar o trabalho no
campo, entre jovens trabalhadores agrícolas nas grandes plantações, e primeiramente
entre o campesinato jovem. É necessário organizar o trabalho entre negros e
índios.342

339
Guralksy: “Qu'est ce que toutes les organisations auxiliaires si nos camarade n'y sont pas organisés en
fraction communistes, ou chacun des camarades est responsable pour chaque discoure et action faite dans le Bloc
ouvrier et paysan ou dans les organisations auxiliaires?” [ 29 ic-055.pdf]
340
O PCB e a KIM. (KAREPOVS, Dainis. A Nação e a Juventude Comunista do Brasil. Cad. AEL, Campinas,
v. 17, n. 29, 2010.)
341
“Legation of the United States em Riga, Latvia”, Murphy Collection, caixa 201, p. 6. National Archives,
Estados Unidos. “The recently created Ministry for Labor attempts by means of restrictive measures to incite its
workmen against the immigrants while bourgeoisie strives to fan the flame of national enmity between the
whites and Negroes. There are 7,000,000 Negroes in Brazil. Negroes are not admitted to the theaters of São
Paulo. The bourgeoisie, with the cooperation of the fascist demagogues Miguel Costa, Tabora, Alberto, and
others, with whom also keep pace Brazilian Trotskists (Melo), attempts to disrupt the masses once again and to
hinder them from following the correct path under the leadership of the Communist Party.”
342
“Legation of the United States em Riga, Latvia”, Murphy Collection, caixa 201, p. 13. National Archives,
Estados Unidos. “absolutely imperative to take measures in order to organize the work in the countryside, among
144

É razoável que o texto tenha sido escrito por um brasileiro em Moscou.343 Em todo
caso, uma parte significativa da militância comunista brasileira dedicada ao debate sobre
questões raciais restava na Juventude Comunista. No Brasil é, por exemplo, possível
identificar atuação por parte da juventude no tocante ao enfrentamento da questão racial a
partir da entrada no partido da chamada “Academia dos Rebeldes” em Salvador, Bahia. A
partir de 1931, esse grupo passaria a pautar a questão negra e a Bahia se tornaria um palco
importante nas formulações e experimentos dos comunistas em relação às questões raciais,
fosse ela sobre os índios,344 fosse sobre os negros.
Antes, porém, de adentrar nos pormenores de como a Juventude Comunista engajou a
questão negra, é preciso um desvio momentâneo para que o leitor se aproprie das condições
sob as quais esta organização auxiliar atuou no Brasil.345
A história da organização ligada ao trabalho com a juventude tem como marco inicial
o ano de 1919. Precisamente quando foi criada a Comintern, a União Internacional da
Juventude Socialista, remanescente do movimento zimmerwaldiano, redundaria na Juventude
Comunista Internacional, sob a liderança daquele que seria um importante intelectual da
Comintern, Willi Münzenberg. A chegada ao Brasil da Juventude Comunista não obedeceu ao
processo de entrada em órbita da IC, por parte do PCB. Esse processo demonstra que alguns
organismos internos e anexos da própria Comintern não foram mimeses da Internacional
Comunista.
Do ponto de vista documental, é possível identificar alguma participação dos
comunistas entre jovens e estudantes a partir de 1929 e, com maior vigor, nos anos de 1930. A
capilaridade do partido e a política de Frente Popular, paradoxalmente já desenhada em início
dos anos 30, justificam a massiva publicidade que o PCB desenvolveu entre os jovens durante
o período pós-1929.346 Esse balanço é corroborado pelas memórias de Astrojildo Pereira, que
identifica 120 inscritos na Juventude Comunista afirmando haver, à altura do III Congresso do
PCB, intensa ligação entre os comunistas de diferentes Estados.347 Ao aceitar que até 1928 a
organização da Juventude Comunista sofria com as debilidades de uma empresa incipiente e

farmhand youth at large plantations, and first of all among the toiling peasant youth. It is necessary to organize
the work among the Negroes and Indians.”
343
O pseudônimo “Rosha” pode ser uma outra escrita para “Rocha”, comum sobrenome brasileiro.
344
LINS, Marcelo. Os vermelhos nas terras do cacau: a presença comunista no Sul da Bahia (1935-1936).
2007. Dissertação (Mestrado em História)–Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.
345
A apreciação do papel desempenhado pela juventude comunista no enfrentamento da questão negra se
encontra no capítulo 6.
346
Uma das melhores alegorias da questão é a personagem Mariana da trilogia de Jorge Amado, “Subterrâneos
da Liberdade”. Uma jovem em sua jornada rumo à consciência de classe e da importância do partido enquanto
condottieri da emancipação humana.
347
PEREIRA, 1979, p. 150.
145

que a partir de 1929 a organização e a integração das ações já haviam atingido um nível
satisfatório, é forçoso concluir que o leque de questões atingíveis pela organização também
aumentara.
Em 1929, durante a realização do III Congresso do PCB, a avaliação feita sobre a
atividade entre jovens era a seguinte:
Os primeiros membros da Juventude Communista do Brasil entraram em 1925, 14;
1926, 13. Destes 27, em 1927 só restavam 8. Em Maio de 1927, foi obrigado a
ausentar-se o encarregado da Juventude do C. Central, passando seu cargo às mãos
de membros da Juventude. Aproveitando o período de legalidade, fez-se ampla
agitação pelo jornal "A Nação", sendo comemorada em Junho a "Semana da
Juventude Operaria". Por esse tempo, a ligação com os Estados era quasi nenhuma.
Apenas correspondência com camaradas isolados de algumas regiões. 348
Havia ao todo uns 30 membros, mais ou menos cativos, distribuídos por 5 cellular.
As ligações com o Partido e com o S.S.A, quasi nenhuma.
[...] Admittido um representante na C.C.E., recomeçaram o trabalho com a
publicação de um jornalzinho mimeographado, "O Joven Proletario", que sahiu
regularmente até abril de 1928, quando fechou para auxiliar com esse dinheiro "A
Classe Operaria".349

Sobre o periódico “O Joven Proletario”, a tiragem era de 1.000 exemplares e não está
claro se o financiamento provinha somente do PCB ou se havia outros recursos envolvidos. O
mesmo informe aponta para aquele que era, então, o presente da organização:
No começo da organização, o trabalho era dificultado, por ser na sua maioria
dirigido por estudantes. Hoje, a maioria absoluta é de operários, havendo cerca de
25 cellular sendo 15 no Rio, das quaes 5 de empresa [sic]. Um total de 120
membros, mais ou menos cativos em 120 inscritos.
A ligação com os Estados é bem intensa, e existem organizações alem de Rio de
Janeiro, em Porto Alegre, Santos, São Paulo, Sertáosinho, Ribeirão Preto, Victoria,
Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Em Maio houve uma troca de representações, com voz deliberativa, entre o C.C. da
J. e o P. Em Junho, um delegado foi enviado ao 5o Congresso da I.J.C., fazendo da
nossa organização uma seção Brasileira da I.C.J.350

Um outro documento, desta vez dirigido à IC, o “Rapport sur la situation du Bresil au
VI Congres de l'I.C.” aborda o tema da juventude no Brasil e a atuação do PCB relativa a ela.
A situação dos jovens trabalhadores das cidades está também mal. A maior parte
desses jovens é de analfabetos. Aqueles que frequentam escolas são intoxicados pelo
ensino patriótico dado nas organizações de escoteiros. Por outro lado, o clero criou
também muitas escolas dominicais a fim de penetrar entre os jovens. Os padres
também organizaram com as crianças das escolas uma Liga de “escoteiros” que
trabalha em colaboração com a Liga governamental, e suas organizações têm uma
característica nitidamente fascista.
O imperialismo americano também tem no Brasil seus meios de penetração entre os
jovens: Associação cristã de jovens: esta ainda não possui raízes na classe
trabalhadora, mas somente entre os empregados do comércio, os filhos da pequena
burguesia. Nosso partido trabalha no sentido de desviar jovens trabalhadores de
todas essas organizações reacionárias. Para essa finalidade, ele organizou a
Juventude Comunista; esta tem atualmente 70 membros em todo o país. Apesar da

348
ic-0211.pdf. p. 72.
349
ic-0211.pdf.
350
ic-0211.pdf – O delegado em questão foi Leôncio Basbaum.
146

fraqueza numérica da nossa juventude comunista, ela trabalha com muita atividade;
ela já possui algumas células organizadas. Durante o tempo que o jornal do Partido
foi suprimido, a juventude editou um Boletim de propaganda. Na cidade de Niterói
(região do Rio de Janeiro) a juventude possui uma escola de jovens trabalhadores
que funciona no local dos sindicatos, e no Recife há igualmente uma. Atualmente, a
juventude está em processo de organização dos esportes dos trabalhadores, porque
isto exerce muita atração entre trabalhadores; a Juventude comunista está então
engajada num caminho e ela é a esperança do desenvolvimento futuro do Partido.351

Além de objetivar a agregação de mais militantes às hostes comunistas, dentre eles


jovens militares, a Juventude deveria “ampliar as organizações de massas, principalmente
sportivas e culturaes, como por exemplo o Centro de Jovens Proletarios”.352 A Juventude
deveria criar seções específicas nos sindicatos, nas ligas de combate ao imperialismo (mais
especificamente na Liga Anti-Imperialista dirigida pelos comunistas) e participar da direção
do Bloco Operário Camponês.
Dadas as fragilidades organizativas, o PCB operou uma vinculação entre a
Internacional da Juventude e a Internacional do Esporte, a Sportintern 353 : organização
subsidiária da Comintern, a Internacional do Esporte não teria grande impulso no Brasil e, de
acordo com a documentação, atuaria como parte da Juventude Comunista. No item do mesmo
documento, chamado “Sobre a questão sportiva”, havia duas preocupações: 1) a juventude
proletária; 2) a supressão do elemento “luta de classes” que o esporte supostamente propicia.
A discussão foi levada a cabo no sentido de desmistificar a prática esportiva como o momento
em que as desigualdades de classes seriam suprimidas.
No decorrer da década de 1930 a Juventude Comunista passaria a ter maior peso no
processo político do Partido mesmo que, na prática, os militantes da Juventude terminassem

351
RGASPI, F. 495, op. 029, d. 027, 1928. Cedem/Unesp. “La situation des jeunes travailleurs des villes est
aussi mauvaise. La plupart de ces jeunes [gens] sont des analphabètes. Ceux qui fréquentent l'école sont
intoxiqués par l'enseignement patriotique donné dans les organisations de boy-scouts. D'autre part, le clergé a
créé (sic) aussi beaucoup d'écoles dominicales afin de pénétrer parmi les jeunes. Les prêtres ont organisé aussi
avec les enfants de ces écoles une Ligue de ‘boy-cout’ qui travaille en collaboration avec la Ligue
gouvernementale et ces organisations ont un caractère nettement fasciste. L'impérialisme américain a aussi au
Brésil ses moyens de pénétration parmi les jeunes: Association chrétienne des jeunes: celle-ci n'a pas encore de
racines dans la classe ouvrière, mais seulement parmi les employés de commerce, les fils de la petite
bourgeoisie. Notre parti travaille dans le sens de détourner les jeunes ouvriers de toutes ces organisations
réactionnaires. A cet effet, il a organisé la Jeunesse communiste; celle-ci a actuellement 70 membres dans tout le
pays. Malgré la faiblesse numérique de notre Jeunesse communiste, elle travaille avec beaucoup d'activité; elle a
déjà quelques cellules organisées. Pendant le temps que le journal du Parti avait été supprimé, la jeunesse a édité
un Bulletin de propagande. Dans la ville de Nitheroy (région de Rio de Janeiro) la jeunesse a une école de jeunes
ouvriers qui fonctionne dans un local des syndicats et à Récife, il y en a une également. Actuellement, la
jeunesse est en train d'organiser les sports ouvriers, parce que celui-ci a beaucoup d'attrait parmi les ouvriers; la
Jeunesse communiste est donc engagée dans une bonne voie et elle est l'espoir du développement futur du Parti.”
352
ic-0211.pdf.
353
Cf. KEYS, Barbara. Globalizing sport: national rivalry and international community in the 1930s.
Cambridge: Harvard University Press, 2013; GOUNOT, André. Sport or Political Organization? Structures and
Characteristics of the Red Sport International, 1921-1937. Journal of Sport History, Fullerton, v. 28, n. 1, p.
23-39, spring 2001.
147

participando da “seção adulta” do PCB e vice-versa. Portanto, os militantes acabavam


ocupando mais de um espaço, o que foi o caso de Lêoncio Basbaum. Segundo ele, sua
aproximação com a Juventudade Comunista Internacional se deu em meados de 1928, quando
o PCB recebeu um convite para participar do VI Congresso da IC e do V Congresso da JCI ao
ser convidado a representar o partido. Ele conseguiria que a Juventude Comunista do Brasil
fosse aceita na JCI e relatou o estado dos jovens no Brasil, conforme já mencionado
anteriormente.
Ainda que tenha realizado seu primeiro trabalho de estabelecimento de uma célula da
Juventude Comunista justamente na cidade do Recife, no início de 1927 e, segundo suas
memórias, ter trabalhado no bairro dos Afogados, com alta densidade de população negra,354
em nenhum momento de suas memórias ou mesmo em seus escritos contemporâneos
Basbaum menciona qualquer aspecto relevante sobre a questão racial no Brasil e no
movimento comunista internacional.355
A despeito do grande poderio experienciado pela KIM na Europa, sobretudo
Alemanha, no Brasil a Juventude esteve pouco atrelada aos ditames de Moscou e geralmente
seus esforços eram envidados no sentido a causar uma boa impressão aos bolcheviques ao
passo que instrumentalizavam a organização no Brasil.356
Outra organização de frente que pautou a questão negra foi o Socorro Vermelho
Internacional (SVI). As citações episódicas que aparecem na bibliografia sobre a história da
Internacional Comunista no Brasil e sua organização auxiliar, o Socorro Vermelho, escondem
uma parte substancial da história da IC na América Latina. Talvez o SVI tenha sido o
principal mecanismo de integração entre os comunistas de todo o mundo. O silêncio da
historiografia sobre o PCB no Brasil acerca do Socorro Vermelho deve-se em parte a uma
organização que pouco definia os seus limites, ou seja, o PCB; dados os parcos recursos
humanos, guardava possibilidades pequenas de delimitar seus trabalhos de acordo com os
ditames da IC.

354
Em geral, segundo os padrões estéticos da modernidade, os integrantes das agremiações carnavalescas
classificam-se como pessoas pobres residentes em locais considerados insalubres, geralmente em mocambos ou
cortiços (como alguns moradores do centro da cidade, Coelhos e Casa Amarela) ou em áreas conhecidas como
zonas operárias, a exemplo de Afogados e Campo Grande. SANTOS, Mário R. Trombones, tambores,
repiques e ganzás: a festa das agremiações carnavalescas nas ruas do Recife (1930-1945). 2010. Dissertação
(Mestrado em História)–Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2010. p. 83.
355
Menciona a existência de Brasilino, negro e membro Juventude Comunista. BASBAUM, Leôncio. Uma vida
em seis tempos (memórias): uma visão da história política brasileira dos últimos quarenta anos. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1976. p. 80.
356
“RELATORIO GERAL DA FEDERAÇÃO DA JUVENTUDE COMMUNISTA DO BRASIL”, RGASPI, F.
533, op. 10, d. 602, fols. 38, list. 4. Cedem/Unesp, ic-1016.pdf.
148

Em setembro de 1921357 existia atividade de comunistas, anarquistas e sindicalistas no


sentido de organizar a ajuda aos russos sob a alcunha de “Comitê de Socorro aos Flagelados
Russos”. O embrião de toda a organização calcada na solidariedade proletária foi lançada
durante essas campanhas. A partir delas criou-se o Auxílio Internacional dos Trabalhadores
(AIT). Willi Münzenberg foi o fundador dessa organização e responsável pela mobilização
internacional de ajuda aos proletários de todo o mundo. Ao mesmo tempo, é costumeiramente
apontado como idealizador desse método de angariar fundos como meio de financiamento das
atividades comunistas tendo como motivo a solidariedade358 entre os trabalhadores.359
O Socorro Vermelho, fundado em 1922, usaria como vantagem para sua própria
história essa estrutura de solidariedade já montada ao longo de finais do século XIX e início
do XX.360 Tanto quanto o AIT, era um organismo auxiliar de frente e, enquanto o Socorro
Vermelho deveria ocupar-se de assistir presos políticos ao redor do globo, ele cuidaria de
angariar fundos e criar campanhas baseadas na solidariedade operária.
Em janeiro de 1924, segundo Octávio Brandão, “o PCB tentou organizar o Comitê
Nacional do Socorro Operário Internacional.”361 Conforme suas informações, foram lançados
30 mil exemplares de um manifesto de apoio ao proletariado alemão e “sua luta
revolucionária”.362
No decorrer do entreguerras, com as mudanças estruturais na URSS e na própria IC, o
Socorro Vermelho mudaria sobremaneira suas características ao longo de suas quase duas
décadas de existência. Entre 1922 e 1925 funcionaria como centralizador de recursos
advindos de campanhas de solidariedade internacional e a partir de 1926-7 teria a função de
facilitar o acesso de comunistas a Moscou uma vez que sua sede era na Alemanha, em
Hamburgo. É recorrente a citação em memórias dos comunistas brasileiros a intermediação
do Socorro Vermelho para a chegada a Moscou. Além dessas funções, o SVI viraria um
observador do cumprimento de certos requisitos mínimos para execução de prisões e
observador do tratamento conferido aos comunistas em determinadas cadeias a partir seções
nacionais como a ILD, International Labor Defense, sediada nos Estados Unidos.

357
PEREIRA, 1979, p. 73.
358
BRASKÉN, 2014.
359
VAN HOLTHOON, Frits; VAN DER LINDEN, Marcel. Introduction. In: ______. (Ed.). Internationalism
in the labour movement 1830–1940. Leiden: Brill, 1988. (Contributions to the History of Labour and Society,
1.)
360
Na documentação da IC já presente no Brasil, no Arquivo Edgar Leurenroth e no Cedem/Unesp, é provável
que a catalogação tenha sido feita de maneira equivocada, confundindo o Socorro Internacional com o Auxílio
Internacional dos Trabalhadores.
361
BRANDÃO, 1978, p. 246.
362
BRANDÃO, 1978, p. 246. A direção do AIT no Brasil era de Paulo de Lacerda. PETERSSON, 2007, p. 86.
149

A partir de 1929-30, a atuação nesta função seria recrudescida à já intensa agenda do


Socorro Vermelho: a participação em organizações internacionais de frente ampla contra
prisões políticas, pelo tratamento adequado de presos e, por fim, pela anistia, tendo sido o
caso mais notável o de Luís Carlos Prestes.
A pesquisa realizada na documentação referente à IC no Brasil não identificou
indícios de que o Socorro Vermelho tenha se envolvido sistematicamente na definição de
política sobre a questão negra; diferentemente dos Estados Unidos, onde uma campanha foi
dirigida com relação ao caso de Scottsboro. 363 O SVI no Brasil denunciou o racismo
institucionalizado no caso do julgamento do caso Scottsboro nos Estados Unidos e a respeito
da invasão italiana na Etiópia, e este seria o principal papel do Socorro Vermelho: utilizar
suas amplas redes de comunicação para veicular mensagens anti-imperialistas.
Um rastro que poderia esclarecer as formas de contato entre comunistas brasileiros e
estadunidenses é o exame da atividade das forças policiais brasileiras alimentando a
inteligência dos Estados Unidos. Nesse material há evidências de um modus operandi
constituído. O chefe da Divisão para Assuntos da Europa Oriental, Robert F. Kelley, enviou a
seguinte comunicação para o então Diretor do Bureau de Investigação do Departamento de
Justiça, John Edgard Hoover:
Pode ser do seu interesse saber que a Embaixada americana no Rio de Janeiro,
Brasil, tem informado recentemente o Departamento que, de acordo com o Quarto
Delegado Assistente do Rio de Janeiro, RJAR LAISVE, 46 Teneyck Street,
Brooklyn, Nova York, é o endereço de muita correspondência de natureza
comunista passando através do Correio do Rio de Janeiro. Eu também fui informado
por uma fonte confidencial que RJAR LAISVE parece estar em contato com várias
organizações radicais nos Estados Unidos e no Canadá.
Como você sem dúvida deve saber, RJAR LAISVE, no endereço citado, é o órgão
lituano do Partido Comunista dos Estados Unidos.
[...] O prédio onde o jornal é publicado é também quartel-general da associação, e
seu auditório é frequentemente usado para comícios de radicais. O endereço é
frequentemente dado no DAILY WORKER de Nova York como quartel-general
para vários grupos de comunistas lituanos quando ele solicita e publica saudações
relativas a celebrações de aniversários e manifestações de comunistas.364

363
MILLER, James A.; PENNYBACKER, Susan D.; ROSENHAFT, Eve. Mother Ada Wright and the
International Campaign to Free the Scottsboro Boys, 1931-1934. The American Historical Review, v. 106, n.
2, p. 387-430, abr. 2001.
364
Murphy Collection, caixa 201, 14 nov. 1931. National Archives, Estados Unidos, 199-200.jpg. “It may
interest you to know that the American Embassy at Rio de Janeiro, Brazil, has recently informed the Department
that, according to the Fourth Assistant Delegate of Police of Rio de Janeiro, RJAR LAISVE, 46 Teneyck Street,
Brooklyn, New York, is the addressee of much mail of a communist nature passing through the Rio de Janeiro
Post Office. I have also been informed by a confidential source that RJAR LAISVE appears to be in touch with
various radical organizations in the United States and Canada.
As you doubtless know, RJAR LAISVE, at the address given, is the Lithuanian organ of the Communist party of
the United States.
[...] The building where the newspaper is published is also the headquaters of the association, and its hall is
frequently used for radical meetings. That address is often given in the New York DAILY WORKER as the
head-quaters for various Lithuanian communist groups when it solicits and publishes greetings in connection
with communist anniversary celebrations or demonstrations.”
150

Se a informação da inteligência está correta, o Rio de Janeiro era um hub diversionista


para que correspondências chegassem do Velho Mundo e fossem disseminadas nas Américas.
A construção dessa logística tornava possível campanhas de solidariedade internacionais
como aquelas que reivindicavam soltura de presos políticos ou cessação de conflitos
imperialistas.
Gestos de solidariedade patrocinados pelo Socorro Vermelho podem ser encontrados
nas páginas do jornal do Partido Comunista dos Estados Unidos, o “Daily Worker”, entre
1934 e 1935, e o SVI provou-se um dos principais vetores de integração entre os Partidos
Comunistas do mundo. Um manifesto de 1934 dos presos políticos da Casa de Detenção do
Rio de Janeiro a favor dos “Scottsboro Boys” foi estampado em página do periódico nova-
iorquino sob o seguinte título: “Brazilian toilers express solidarity with American Workers”.
A nota atribuída aos presos políticos brasileiros rememorou o julgamento dos anarquistas
Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em 1921, acusados de assassinato. 365 A tentativa
discursiva era apresentar um fato em comum entre os dois eventos: a perseguição da justiça
burguesa aos trabalhadores. Por isso, a carta dirigida à Suprema Corte do estado do Alabama
inquiria: “Vocês já não têm o bastante de sangue inocente de proletários pingando de suas
mãos?”.366
No mesmo jornal, também em novembro de 1935, pautou-se a relação entre a ANL e a
defesa dos direitos dos negros. O jornal publicou uma longa fala de Fernando Lacerda no VII
Congresso da Comintern a respeito do Brasil, pela primeira vez em inglês, segundo o
periódico. Dentre as observações elogiosas feitas sobre o trabalho da ANL, Fernando de
Lacerda descreveu as atividades da Aliança e, dentre elas, disse que
No Rio e no Recife [a ANL] conduz manifestações por direitos iguais para negros.
Ela luta pela defesa dos interesses do povo contra impostos e preços altos e
finalmente, quando um rumor foi espalhado sobre a preparação de um golpe de
estado ditatorial por parte do governo, a Aliança Nacional Libertadora chamou as
massas por uma greve geral.367

365
AVRICH, Paul. Sacco and Vanzetti: The Anarchist Background. Princeton: Princeton University Press,
1996. Em agosto de 1933, Hugh Gibson, embaixador dos Estados Unidos no Brasil, relatou que “Unidentified
persons last night flung tar on the faccade of the Embassy and left leaflets signed ‘International Red Relief’
protesting against Sacco-Vanzetti and Scottsboro cases and imperialism”. Murphy Collection, caixa 201.
National Archives, Estados Unidos, 095.jpg.
366
Murphy Collection, caixa 201. National Archives, Estados Unidos, 095.jpg, 2 dez. 1935. A nota referia-se ao
fato de que a International Labor Defense não era legal no Brasil e que a ANL estava sendo perseguida pelo
governo “fantoche” dos Estados Unidos. Referiu-se também a um apelo feito pelo PCB em sua primeira
conferência para que continuassem a luta contra a pequena-burguesia, o trotskismo e as agressões contra a
URSS. “Haven’t you enough innocent proletarian blood already on your dripping hands?”
367
Murphy Collection, caixa 201. Daily Worker, 30 nov. 1935. National Archives, Estados Unidos, 106-108.jpg.
“In Rio and in Recife it[National Liberation Alliance] carries on demonstrations for equal rights for Negroes. It
fights for the defense of the interests of the people against taxes and higher prices and finally when a rumor was
spread about the preparation of a dictatorial coup d'etat on the part of the government the National Liberation
Alliance called the masses out to a general strike.”
151

Como esta, outras referências cruzadas foram realizadas. O caso mais curioso e
controvertido, sem dúvida, diz respeito a Isaltino Veiga dos Santos.368 Irmão de Arlindo
Veiga dos Santos, fundador da Frente Negra Brasileira (FNB), Isaltino experimentou a
militância de maneira distinta de seus companheiros e, mais precisamente, de seu irmão. Há
relativa incerteza quanto à filiação política de Isaltino. Segundo Correia Leite,
o Isaltino, depois de um tempo fora da Frente Negra, entrou num movimento
político de esquerda muito sério. Foi quando começou a Aliança Libertadora. E,
como o Isaltino na Frente Negra teve uma atuação meio revolucionária (ele
publicava circulares agressivas contra o regime capitalista), pensaram mesmo que
ele fosse de esquerda.369
Expulso da FNB, participou da ANL e terminou preso na final de 1935, vítima das prisões
indiscriminadas levadas a cabo depois da sublevação comunista de 1935. Sua prisão foi
tornada pública pelas campanhas por anistia dirigidas pelo Socorro Vermelho Internacional.
Ford clama pela soltura de Santos
Líder brasileiro negro preso pelos assassinos de Victor Barron

A prisão, talvez tortura e assassinato de líderes negros no Brasil, de notadamente


Isaltino Viega [sic] dos Santos, clama por um vigoroso protesto pelos negros do
Harlem”, disse James W. Ford, Organizador de Divisão do Partido Comunista no
Harlem, ontem.
[...]
Nós negros americanos precisamos ir à ajuda deles. Nós precisamos demandar a
soltura de Prestes e anistia geral para todos os presos políticos, incluindo Dos Santos
e outros líderes negros.
Ford conclamou todos os negros do Harlem a comparecer ao comício que está sendo
organizado pelo Comitê Conjunto para Assistência do Brasil e demandas verbais
diante do governo brasileiro para a soltura de Prestes, Dos Santos e todos os 17.000
presos políticos no Brasil.370

Tanto Olga Benário como o próprio Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes,
foram objetos de vigorosa campanha internacional para que fossem soltos.
Ford falará em comício para protestar contra o terror no Brasil

368
Cf. DOMINGUES, Petrônio. “Constantemente derrubo lágrimas”: o drama de uma liderança negra no cárcere
do governo Vargas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n. 14, p. 146-171, jan.-jun. 2007.
369
LEITE, José Correia; CUTI [Luiz Silva]. ... E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo:
Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 117.
370
“Ford calls for release of Santos
Brazilian Negro Leader Imprisoned by Killers of Victor Barron
‘The imprisonment, perharps the torture and murder of the Negro leaders of Brazil, most notably of Isaltino
Viega dos Santos, calls for a strong protest by the Negroes Harlem’, said James W. Ford, Divistion Organizer of
the Communist Party in Harlem, yesterday.
[...]
‘We American Negroes must come to their assistance. We must demand the release of Prestes and general
amnesty for all political prisoners, including Dos Santos and other Negro leaders’.” Um comício aconteceria a 5
de abril de 1936.”
“Ford appealed to all Negroes of Harlem to attend the meeting which is being arranged by the Joint Committee
for the Aid of the Brazil and voice demands upon Brazilian government for the release of Prestes, Dos Santos
and all the 17,000 political prisoners in Brazil.” Harrison George, pai de Victor Barron também estaria presente
no encontro. Murphy Collection, caixa 201. Daily Worker, 31 mar. 1936. National Archives, Estados Unidos,
301.jpg.
152

O comício para o povo do Harlem, particularmente enfatizado por James W. Ford,


organizador do Harlem do Partido Comunista, como um para protestar contra a
prisão do líder negro, Isaltino Viega (sic) dos Santos, e exigir sua liberdade e a de
Luis Carlos Prestes, chefe da Aliança Nacional Libertadora brasileira, terá lugar no
Park Palace, na rua 110 com a quinta avenida, domingo à noite, às 8 horas. Muitos
líderes negros no Brasil, que compreendem até quarenta por cento da população de
43.000.000, foram jogados na prisão pela ditadura fascista de Getúlio Vargas.371

As notícias citadas do “Daily Worker” até aqui não tiveram somente o propósito de
demonstrar a tangencial aproximação entre os comunistas brasileiros e estadunidenses.372 O
periódico foi consultado por amostragem e os dados foram cruzados com a documentação do
acervo da Coleção Murphy no National Archives, em Washington, D.C. O nome é uma
referência a Raymond E. Murphy, estudioso do comunismo vinculado ao Departamento de
Estado dos Estados Unidos, quem compilou recortes de jornal e uma série de documentos
relacionados às atividades comunistas. Assim, foi montado um banco de referências cruzadas
dos arquivos de atividades comunistas e anticomunistas.373 A ênfase verificada nos recortes
de jornal atinentes simultaneamente à temática negra e aos comunistas indica uma linha de
atenção por parte da inteligência estadunidense, sobretudo se considerados os antecedentes
históricos da participação da comunidade afro-caribenha nas organizações negras em Nova
York. Os rastros da atividade de Murphy e seu setor permitem que seja possível traçar (ou
pelo menos supor) os caminhos que a atividade comunista nas Américas trilhou para o ataque

371
“Ford will address meeting to protest terror in Brazil
The meeting for Harlem people, particularly emphasized by James W. Ford, Harlem Organizer of the
Communist Party, as one to protest the arrest of the Brazilian Negro leader, Isaltino Viega dos Santos, and to
demand his freedom and the of Luis Carlos Prestes, head of the Brazilian National Liberation Alliance, will be
held at Park Palace, 110th Street and Fifth Avenue, Sunday evening at 8 o’clock.
Many Negro leaders of Brazil, who make up forty per cent of the 43,000,000 population, have been thrown into
jail by the fascist dictatorship of Getulio Vargas.” Murphy Collection, caixa 201. Daily Worker, 1º abr. 1936.
National Archives, Estados Unidos, 299.jpg.
372
Em 1937, Bryan Green, provavelmente um pseudônimo, publicou um livreto chamado “Brazil”. Foi editado
pela Labor Research Association e pela International Publishers, ambas ligadas ao Partido Comunista dos
Estados Unidos. Green reproduziu, no livro, o lançamento do programa da ANL, o qual segue sintetizado:
“Its [ANL] program was announced by Prestes, in an appeal "To the whole Brazilian people" on July 5, 1935, as
follows:
[...]
7. Return of the land taken from the Indians by force.
8. Complete freedom of the people, liquidation of all legal differences between races and nationalities, complete
religious liberty, separation of church from state. [p. 21]
9. Against all imperialist war. Promotion of close collaboration with such organizations as the National
Liberation Alliance in other Latin American countries and with all oppressed classes and peoples. [p. 22]”
GREEN, Bryan. Brazil. Nova York: International Publishers [Prepared by Labor Research Association], 1937.
p. 21-22.
373
SELVERSTONE, Marc J. Constructing the Monolith: The United States, Great Britain, and International
Communism, 1945–1950. Cambridge: Harvard University Press, 2009. p. 26. Murphy foi assistente especial do
Director of European Affairs H. Freeman Matthews. Era visto como “a hardline anti-communist, Murphy was a
specialist on communist affairs and an expert in wedding out internal ‘subversion’, in which capacity he had
already worked with the FBI”. WALL, Irwin M. The United States and the Making of Postwar France, 1945-
1954. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. p. 96.
153

das questões raciais. Um desses caminhos foi o das organizações auxiliares e de frente da
Comintern, que tiveram como papel primordial, no limite, estabelecer contato entre as
diferentes seções da IC cotejando diferentes aspectos da luta pela revolução, já que os
Partidos encontravam-se sitiados e essas organizações auxiliares nem sempre deixavam
rastros explícitos de ligação direta com os comunistas.
Desde outubro de 1934, as inteligências estadunidense e brasileira tinham
conhecimento dos agrupamentos de frente responsáveis pela disseminação das “palavras de
ordem” dos comunistas. Carol Foster, cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo, enviara
um relatório político para o embaixador, Hugh Gibson. Nele, realizou uma longa descrição
sobre as atividades subversivas na capital paulista. Relatou os conflitos ocorridos com forças
policiais, com integralistas e com grupos de esquerda. Conquanto não tenha dado ênfase, em
nenhum momento, às discussões raciais em curso no partido, Foster listou uma série de
organizações signatárias de uma demonstração pública, de cunho antifascista, em resposta aos
integralistas:
Student Committee for fighting Imperialist Wars, Reaction, and Fascism (Comité
Estudantil de Lucta Contra as Guerras Imperialistas, a Reacção e o Fascismo)
League against Race and Religious Prejudice (Liga contra os Preconceitos de Raças
e Religiões)
International Red Aid
(Socorro Vermelho Internacional)
Federation of Communist Youth
(Federação da Juventude Communista).374

Foster caracterizou uma das organizações comunistas como obra, sobretudo, dos
judeus, já que teriam sido responsáveis por “muitas contribuições para propaganda
subversiva, clandestina, sendo um elemento de liderança na organização comunista chamada
‘Red Aid’ (Socorro Vermelho)”. 375 Por fim, Foster dividiu dois grupos de comunistas:
stalinistas e trotskistas. No relatório, consta pouca definição das atividades e do modus
operandi dos trotskistas ao passo que os stalinistas, identificados como membros do PCB,
mantinham uma estrutura organizativa mais bem-desenhada. No entanto, Foster contava
1.500 membros da fração stalinista e 2.000 da congênere trotskista. Relatou que, apesar do
menor número e do paulatino enfraquecimento resultado da pressão policial, os comunistas
brasileiros mantinham contato internacional com Bureau Político do Partido Comunista do
Uruguai, em Montevidéu, por meio do Comitê Central do PCB. Enquanto entre anarquistas e

374
Murphy Collection, caixa 201. National Archives, Estados Unidos, 155.jpg.
375
Murphy Collection, caixa 201. National Archives, Estados Unidos, 158.jpg. “Many contributions for
subversive, clandestine, propaganda, being a leading element in a communist organization named 'Red Aid' (O
Soccorro Vermelho).”
154

trotskistas não havia menção quanto à organização interna, Foster listou as diversas
comissões, organismos internos e a forma de organização do PCB:
A assim chamada propaganda comunista de Stalin está sob a direção da
Confederação Geral do Trabalho do Brasil que adere à III Internacional e tem a
seguinte organização: um comitê central – comitês regionais – comitês de zona e
“células”. Lá correspondem com o Secretariado Geral do Comitê Central, as
seguintes comissões: “Sindical”, “Técnica”, “Juvenil”, “Negros e Índios”, “Agitação
e Propaganda”, “Imprensa”, “Mulher”, “Finanças”, “Organização”, “Socorro
Vermelho”, “Idiomas” (pegar frases e slogans).376

Em data incerta, provavelmente em 1935, o Comitê Regional do Rio de Janeiro do


Socorro Vermelho publicou a seguinte nota pública, em virtude do 13 de Maio, data de
aniversário da promulgação da Lei Áurea. No documento, além da denúncia da comemoração
da data como mais um falseamento da realidade histórica por parte da burguesia, os
comunistas convidam os trabalhadores negros “às fileiras do Socorro Vermelho e, sob nossa
bandeira fraterbal (sic), lutae pela liberdade de vossos irmãos de classe, os presos-politicos
proletários!”.377
O ponto de chegada da pressão cominterniana e do resignado convencimento pecebista
foi a I Conferência do PCB. A manchete do principal veículo do partido estampava no
primeiro dia de agosto de 1934: “Manifesto da Primeira Conferencia Nacional do Partido
Comunista do Brasil ao proletariado, à massa camponesa, aos soldados e marinheiros, as
nacionalidades e minorias nacionaes escravizadas, a todo o povo oprimido e explorado do
Brasil!”. 378 A referência a negros, índios e nordestinos como nacionalidades e minorias
nacionais impalpáveis tinha sido apenas a porta de entrada da questão negra entre os
comunistas. Rapidamente o debate ganharia novos contornos.

376
Murphy Collection, caixa 201. National Archives, Estados Unidos, 159.jpg. “The so-called Stalin communist
propaganda is under the direction of the General Confederation of Labor of Brazil (Confedereção Geral do
Trabalho do Brasil) which adheres to the III International and has the following organization: a central
committee – regional committees – zone committees and ‘cells’. There correspond with the General Secretariat
of the Central Committee, the following commissions: ‘Syndicate’, ‘Technical’, ‘Juvenile’, ‘Negroes & Indians’,
‘Agitation and Propaganda’, ‘Press’, ‘Women’, ‘Finance’, ‘Organization’, ‘Red Aid’(Socorro Vermelho),
‘Idioms’ (catch phrases or slogans).”
377
RGASPI, F. 539, op. 003, d. 390 – ic-1263.pdf.
378
1934-08-01 N-164.pdf – Classe Operária.
155

5 Rearranjos atlânticos: organizações negras no tempo das Frentes Populares

O enfrentamento da questão racial por meio da redefinição dos contornos da


autodeterminação não foi aceito sem oposições entre os membros do Partido Comunista dos
Estados Unidos e da Comintern. O desenho da linha central da Internacional Comunista
articulou o combate ao racismo ao anti-imperialismo, vislumbrando o fracionamento das
unidades territoriais das nações imperialistas. Assim, os separatismos irlandês,379 basco380 e
na região da Alsácia e Lorena381 viraram agenda. As colônias perfaziam, na prática, um outro
aspecto do mesmo problema já que não se constituíam como território contingente das nações
imperialistas.
O lado prático do enfrentamento da questão racial se materializava no cotidiano da
militância e nos espaços de autonomia das seções nacionais da Comintern. A crise econômica
de 1929 e a sucessão de eventos ligados ao recrudescimento da questão racial nos Estados
Unidos impediram a resistência por parte da direção do CPUSA em relação às deliberações da
IC. A centralidade da questão racial como agenda do Partido Comunista dos Estados Unidos
da América, demarcada a partir de 1928 e consolidada pós-1930, enfrentou resistências
internas. Tais oposições adquiriram, sobretudo, a forma da ortodoxia materialista que
persistia, majoritariamente, na tese da resolução final dos conflitos de classe como solução
adequada para o racismo.382
Este capítulo é, portanto, um exame da aplicação efetiva da política definida pela
Comintern em relação à questão racial nos Estados Unidos durante a década de 1930. Tanto
quanto no PCB, nos Estados Unidos o peso das diretrizes de Moscou pressionou os
comunistas locais, tornando tensa a aplicação das novas diretrizes.
Dentre os militantes comunistas que encamparam a questão negra e influenciaram o
CPUSA, é possível discernir duas posições em função de suas respectivas abrangências
geográficas: 1) internacionalista, 2) regional. Um dos representantes dessa primeira corrente
foi James Ford. Em correspondência de setembro de 1929, Ford comunicava ao então
secretário-geral do CPUSA, William Z. Foster, que estava empenhado na construção do
movimento internacional de negros. Enfatizava o caráter amplo do trabalho que

379
DEGRAS, Jane. The Communist International, 1919-1943. Londres/Nova York: Oxford University Press,
1964. v. 3. p. 228.
380
Ibidem, p. 387.
381
Ibidem, p. 218.
382
O caso do finlandês August Yokinen foi um dos mais relevantes casos de racismo entre membros do CPUSA.
156

desempenhava, àquela altura, frente ao Comitê Sindical Internacional de Trabalhadores


Negros (International Trade Union Committee of Negro Workers – ITUCNW), vinculado à
Internacional Sindical Vermelha. Seu plano era realizar uma Conferência Internacional de
Trabalhadores Negros, que acabou ocorrendo em julho de 1930, em Hamburgo.383 O segundo
grupo é mais bem-exemplificado pela atuação de Harry Haywood.384 Para este, a ênfase
primordial no ataque ao racismo deveria se dar no Sul dos Estados Unidos, que se constituía
como principal bastião do racismo e “chauvinismo branco”.385 Este grupo foi amparado pela
burocracia cominterniana até meados da década de 1930. A despeito de todos os esforços
empreendidos pelos dirigentes, a tese da autodeterminação defendida por Haywood não
conseguiu seduzir a militância. 386 Ao longo dessa década, a diretriz teria ainda mais
dificuldades em razão da proposta integracionista da League of Struggle for Negro Rights
(LSNR).387

5.1 A resposta antirracista global

O ITUCNW já tinha sido objeto de planejamento do próprio James Ford e surgiria dos
amplos reordenamentos orquestrados pela Comintern em torno das organizações negras. O
pan-africanismo evidente na proposta não deixa dúvidas quanto às influências externas da
iniciativa. Os sujeitos identificados com o ITUCNW foram, precisamente, aqueles vinculados
ao internacionalismo negro que abarcava afro-caribenhos, afro-americanos e africanos. O
termo “cosmopolita” era enfrentado pelos comunistas de maneira vigorosa já que a
autoimagem que faziam era de “internacionalistas”.388 Aos rigorosos olhos dos comunistas, a
distinção era necessária para se distanciar da noção pequeno-burguesa que via a diluição

383
Carta de James Ford a Foster, “Profintern, sept. 24, 1929”. Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor
Archives, James W. Ford Papers and Photographs, TAM. 588, caixa 1, pasta Biographical Clippings. Tamiment
Library 2 557.jpg.
384
WEISS, 2013, p. 41.
385
Cf. HAYWOOD, 2012 (Kindle Edition), p. 2.233-2.542.
386
FONER; ALLEN, 1987, p. 203.
387
GILMORE, 2008, p. 101.
388
The First International Conference of Negro Workers, George Padmore, 23 set. 1930. Tamiment Library and
Robert F. Wagner Labor Archives, James W. Ford Papers and Photographs, TAM. 588, caixa 1, pasta
Biographical Clippings. IMG_0103.jpg.
Dentre os objetivos do ITUCNW, George Padmore dizia ser “to develop the spirit of internationalism amongst
the Negro toilers”.
157

relativa de fronteiras nacionais entre povos como condição suficiente para superação do
imperialismo e das diversas formas de racismo vigentes no mundo capitalista.
A criação de organismos de frente baseados em temas que estraçalhavam fronteiras
nacionais tornou os comunistas guardiões do “internacionalismo”, mesmo no período de
vigência da tese do “socialismo num só país”. A fundação do ITUCNW se deu na esteira da
Liga Anti-Imperialista, 389 por isso obedeceu ao parâmetro fundamental das organizações
fundadas sob a batuta de Willi Münzenberg: a política de frente. Mesmo a partir de 1928,
quando se definiu a diretriz de classe contra classe, relegando a social-democracia à esfera de
inimigo de classe, a Comintern definiu também a política de “frente única por baixo” quando,
na prática, vetava alianças parlamentares com a social-democracia mas não prescindia de
disputar sindicatos socialistas e participar de centrais sindicais mistas.
As diretrizes cominternianas do chamado período obreirista encontraram resistência
numa cultura organizativa pautada no cotidiano dos militantes. Tamanho foi o efeito da
resistência, que é possível identificar em seções da IC importantes espaços compartilhados
entre socialistas e comunistas muito antes do VII Congresso da Comintern que estabeleceu
uma estratégia de combate ao nazifascismo baseada num amplo arco de alianças.390
O exemplo estadunidense de enfrentamento ao racismo por parte dos comunistas é
parte fundamental do argumento desenhado neste trabalho. O combate ao racismo, em suas
variadas expressões, ocorreu ancorado numa política de frente, a despeito das diretivas gerais
de Moscou para o Movimento Comunista. Emergiu do centro irradiador da “revolução
mundial” uma contradição que permeou o combate ao racismo em todo o globo, em especial
nos Estados Unidos e África do Sul. Se a revolução mundial, a partir de 1928, deveria ser
levada a cabo sem aliança com socialistas/social-democratas e submetendo comunistas
pequeno-burgueses a posições subalternizadas na hierarquia dos partidos, o combate ao
racismo, por sua vez, já não se deu de maneira análoga. Para tornar a contradição ainda mais
eloquente: para os comunistas de Moscou, o combate ao racismo era uma condição
fundamental para consecução de qualquer empreendimento revolucionário nos Estados
Unidos. Portanto, na teoria ambos os objetivos andavam de mãos dadas.

389
A Liga Anti-Imperialista (LAI) foi capaz de construir canais de comunicação com militantes comunistas na
África, Europa e Américas. A LAI terminou se estruturando como uma alternativa pan-africanista à esquerda
daquelas estruturas já baseadas nas fórmulas de W. E. B. Du Bois e Marcus Garvey.
390
MANLEY, John. Moscow Rules? ‘Red’ Unionism and ‘Class Against Class’ in Britain, Canada, and the
United States, 1928-1935. Labour/Le Travail, Toronto, v. 56, p. 41, outono 2005; JOHNS, Sheridan. Raising
the Red Flag: The International Socialist League and the Communist Party of South Africa, 1914-1932.
Bellville: University of the Western Cape, 1995. (History and Literature Series). p. 137-143; DEGRAS, 1959, p.
461.
158

A explicação para a característica frentista do ataque à questão do racismo se encontra


no mesmo traço que notabilizou o enfrentamento ao imperialismo, cujo principal artífice foi
Willi Münzenberg. A estratégia geral de enfrentamento ao imperialismo jamais poderia
prescindir da participação de setores progressistas, e isso se evidenciou na prática de
organizações que funcionaram a despeito do CPUSA, como, por exemplo, a League of
Struggle for Negro Rights (LSNR).
O VI Congresso da IC, tido como o mais sectário, avalizou, dentre todas as diretrizes
sectárias que impôs às seções da Comintern, a composição de “Frentes Únicas por baixo”,391
como já explicitado. Em oposição às frentes de cunho eleitoral forjadas com setores
progressistas, firmadas a partir direções partidárias de 1928 em diante, as composições
frentistas obedeceriam o critério de composição nas bases. Em razão disso, a Profintern
ganharia um destaque ainda maior já que passaria a mobilizar seus recursos para disputar
trabalhadores de outras internacionais sindicais. Ao mesmo tempo, cerrariam fileiras em torno
de pautas unificadas, como, por exemplo, a integração racial como tática para a forja de uma
classe trabalhadora unificada. Por isso, uma dessas pautas era a consolidação de sindicatos
integracionistas, de negros e brancos.
A ideia de integração e de vitória do anti-imperialismo está exposta em sua máxima
expressão numa fórmula de Lamine Senghor. Durante o Congresso da Liga Anti-Imperialista
de 1927, em Bruxelas, ele propunha “uma aliança fraterna de países livres”, que corroborava
com a planejamento leniniano de formação de uma nova comunidade internacional baseada
em governos da classe trabalhadora.392
A Liga Contra o Imperialismo (doravante Liga Anti-Imperialista – LAI) foi
responsável por centralizar parte significativa do debate acerca do enfrentamento do
imperialismo entre comunistas. A LAI foi um dos braços do Auxílio Internacional dos
Trabalhadores (AIT), este idealizado para a ajuda aos soviéticos decorrente da grande fome
no entorno do rio Volga em 1921. Desde então,
Belim foi o centro operacional de Münzenberg, onde muitas das atividades
instigadas e dirigidas por ele funcionaram como um hub para uma variedade de
movimentos oficial ou não oficialmente conectados ao Auxílio Internacional dos

391
D’AMATO, Paul. Understanding the united front. 13 ago. 2013. Disponível em:
<http://socialistworker.org/2013/08/13/understanding-the-united-front>. Acesso em: 29 out. 2014; KUHN, Rick.
Revolutionary strategy and the united front. Marxist Left Review, n. 3, primavera 2011. Disponível em:
<http://marxistleftreview.org/index.php/autumn-2011/67-revolutionary-strategy-and-the-united-front>. Acesso
em: 29 out. 2014.
392
SENGHOR apud GENOVA, James Eskridge. Colonial Ambivalence, Cultural Authenticity, and the
Limitations of Mimicry in French-ruled west Africa. Nova York: Peter Lang, 2004. p. 75. “a fraternal
alliance of free countries”.
159

Trabalhadores (Liga Anti-Imperialista, os Amigos da União Soviética, publicações,


distribuição de filme etc).393

A despeito da centralização inicial, a LAI adquiriria alguma independência a partir do


Congresso de Bruxelas. Münzenberg foi, ele próprio, um dos entusiastas do desacoplamento
da LAI do Auxílio Internacional dos Trabalhadores. O que teria obrigado a LAI a reordenar
seu financiamento por fora da AIT não se consumou em razão de interferência do Comitê
Executivo da Internacional Comunista, que passou a apoiar a abertura de seções nacionais nos
países além de vincular a rede de “Amigos da Nova Rússia” (na prática a Amigos da União
Soviética).394
Foi nesse âmbito que comunistas negros se engajaram na organização de ferramentas
transnacionais de enfrentamento ao racismo. Um exemplo da maneira como funcionava a
inter-relação entre as diversas organizações ligadas aos comunistas está na atuação de James
Ford. Um dos protagonistas do ITUCNW,
Ford recebeu um novo chamado do Secretariado Internacional no final de julho de
1931. Dessa vez a LAI queria que ele se preparasse para ir a Viena como
representante da Liga para falar sobre a questão colonial na conferência organizada
pelo braço austríaco dos Amigos da União Soviética (AUS). Ford não quis ir – ele
tinha sido criticado por Padmore que sua viagem anterior a Genebra o havia levado
longe demais de Hamburgo e de seu trabalho entre marinheiros africanos – mas a
LAI anulou seu pedido. A viagem de Ford para a Áustria terminou num fiasco total.
Em sua primeira parada em Leoben, ele participou de um encontro da AUS em julho
de 1931, entregando um relatório da parte do Secretariado Internacional dos Amigos
da União Soviética e da Liga Anti-Imperialista a respeito do tópico dos preparativos
para guerra contra a URSS, as condições das colônias e o papel da Social
Democracia. No dia seguinte ele foi a uma manifestação contra a guerra em Graz.
Ele mal tinha começado sua fala quando a polícia o prendeu. Depois de ter sido
posto sob custódia por dois dias, as autoridades austríacas o soltaram. Ford retornou
via Berlim para Hamburgo.395

393
PETERSSON, 2007, p. 9. “Berlin was Münzenberg’s main operative centre, where several of the activities
instigated and managed through his hands functioned as a geographical hub for a variety of movements either
officially or unofficially connected to the WIR (League against Imperialism, the Friends of Soviet Union,
publishing, movie distribution etc.).”
394
PETERSSON, Fredrik. “We Are Neither Visionaries Nor Utopian Dreamers”: Willi Münzenberg, the
League against Imperialism, and the Comintern, 1925 – 1933. 2013. Tese (Doutorado em História Geral)–Abo
Akademi, Turku, 2013. p. 215-216.
395
“Ford received a new call by the International Secretariat at the end of July 1931. This time the LAI
headquarters wanted him to prepare to go to Vienna as its representative to speak on the Colonial Question at a
conference arranged by the Austrian branch of the Friends of the Soviet Union (FSU). Ford did not want to go –
he had been criticized by Padmore that already his previous trip to Geneva had taken him too long away from
Hamburg and his work among the African seamen – but the LAI overruled his request. Ford’s trip to Austria
ended in a total fiasco. At his first stop at Leoben he participated at a meeting of the FSU on July 31, delivering a
report in the name of the International Secretariat of the Friends of the Soviet Union and the League Against
Imperialism on the topic of the war preparations against the USSR, the conditions in the colonies and the role of
the Social Democracy. On the next day he attended an anti-war demonstration at Graz. He had barely started his
speech when the police arrested him. After being held in custody for two days, the Austrian authorities expelled
him. Ford returned via Berlin to Hamburg.” WEISS, Holger. The Hamburg Committee, Moscow and the
Making of a Radical African Atlantic, 1930-1933, Part Three: The LAI and the ITUCNW. Comintern
Working Papers – CoWoPa 21, 2010. p. 9-10.
160

A LAI acabou assumindo responsabilidades nem sempre concernentes diretamente ao


enfrentamento do imperialismo. Aproveitando-se da imagem de independência, no início da
década de 1930, a LAI começava a facilitar a entrada do Socorro Vermelho em lugares como
Indonésia, África do Sul, Índia e América Latina. Em outubro de 1931, em Berlim, Luís
Carlos Prestes participaria de um encontro da LAI, juntamente com George Padmore para
discutir a montagem de uma “conferência internacional das nações oprimidas e minorias
nacionais”.396 A conferência, no entanto, jamais aconteceu.
Na esteira das organizações de frente, o ITUCNW foi criado a partir do modelo do
Pan-Pacific Trade Union Secretariat (PPTUS). Fundado em 1927 por militantes de Estados
Unidos, China, Japão, França e Inglaterra, dentre os objetivos do PPTUS estavam: 1)
construir pontes entre os trabalhadores do Oriente e do Ocidente; 2) defender a União
Soviética; 3) apoiar a revolução chinesa e outros movimentos de libertação nacional na
região; e 4) superar preconceitos raciais e de caráter nacionais.397
A formação de quadros negros, atrelada às diretrizes da autodeterminação, foi central
para o prolongamento da inserção dos comunistas nas pautas negras e anticoloniais. Em finais
abril de 1928, o CPUSA, em documento intitulado “Policies on work among the [Negros]”,
avaliava que:
1. [...] não tinha compreendido o significado do trabalho entre negros. O Comitê
Executivo Central (CEC) o considera necessário para educar toda a militância do
Partido sobre assuntos do trabalho negro. O trabalho entre negros deveria ser
considerado não como um trabalho especial dos camarada negros, mas como uma
das ATIVIDADES REVOLUCIONÁRIAS BÁSICAS DE TODO COMUNISTA,
DE TODO O PARTIDO.
2. No espírito de todas as decisões da Comintern, a PRINCIPAL LINHA DO
PARTIDO é:
a. A questão é uma QUESTÃO RACIAL e é uma atividade do Partido Comunista
lutar pelos negros como uma raça oprimida.
b. É um dever especial do Partido Comunista ser o defensor e organizador dos
ELEMENTOS DA CLASSE OPERÁRIA NEGRA como líder do movimento da
raça negra como parte do proletariado americano na luta de classe contra o
capitalismo.
O CEC expressa seu desacordo com todos aqueles camaradas negros e brancos que
propõem minimizar seja a etapa racial seja a etapa classista do nosso trabalho com
os negros.
[...]
5. [...] ao mesmo tempo o CEC coloca a principal ênfase no trabalho de formação de
QUADROS PARTIDÁRIOS.
Texto majoritário: A principal necessidade do nosso trabalho atual entre negros é
desenvolver quadros suficientes do Partido Comunista e a utilização total dos
camaradas negros.398

396
PETERSSON, 2013, p. 447. A presença de Prestes em tal evento foi confirmada pela inteligência americana.
Murphy Collection, caixa 201. National Archives, Estados Unidos, 148.jpg.
397
BOZINOVSKI, 2008, p. 50-56.
398
“1. The CEC [Central Executive Committee] states that the Party as whole has not sufficiently realised the
significance of work among the Negroes. The CEC considers it necessary to educate the whole Party
membership on the issues of the Negro work. The work among the Negroes should be considered not as a special
161

A avaliação da direção partidária reproduzia as leituras cominternianas acerca da


participação de negros nas esferas decisórias do partido. Em 1930, mais uma vez, o tema
retornaria à pauta quando se discutiu o treinamento de instrutores cujos trabalhos estariam
circunscritos às chamadas colônias negras, o que os incumbiria de realizar cursos na África e
nas Américas, sobretudo Central, do Sul e no Caribe. O Bureau Negro da CEIC, cujos
participantes estavam também associados aos diversos organismos negros, encaminhou um
documento com propostas para seu comitê político no qual acusava a necessidade imediata de
“enviar instrutores para as colônias negras, concentrando inicialmente naquelas colônias onde
exista movimentos independentes de trabalhadores, organizações revolucionárias
nacionalistas, ou naquelas onde ocorreram grandes revoltas recentemente”. Propunham,
igualmente, um curso permanente para o treinamento desses instrutores.
1. Um curso permanente deveria ser organizado em Moscou na Escola Leninista
para o treinamento de instrutores para as colônias negras.
2. Os estudantes para esse curso deveriam incluir ambos os camaradas brancos e
negros a serem selecionados entre os contingentes para a KUTV e a Escola
Leninista.
Nessa conexão nós propomos que os Partidos Comunistas de países metropolitanos
tendo populações negras, Grã-Bretanha, França, Bélgica e países americanos com
grandes populações negras, Estados Unidos, Brasil, Panamá, Cuba, etc., deveriam

task of the Negro comrades, but as one of the BASIC REVOLUTIONARY TASKS OF EVERY COMMUNIST,
OF THE WHOLE PARTY.
Negro comrade should participate not in Negro work but much more than before in general party work, and the
most advanced and capable of these should be drawn into leading and responsible Party work.
2. In the spirit of all Comintern decisions the MAIN LINE OF THE PARTY is:
a. The Negro question is a RACE QUESTION and it is the task of the Communist Party to fight for the Negroes
as an oppressed race.
b. It is a special duty of the Communist Party to be the champion and organiser of the NEGRO WORKING
CLASS ELEMENTS both as leader of the Negro race movement and as part of the American proletarian in the
class struggle againts capitalism.
The CEC states its disagreement with all those Negro and white comrades who propose to under emphasise
wither [sic] the race or the working class phase of our Negro work.
5. [...] at the same time the CEC lays the main emphasis upon the formation of PARTY CADRES.
Majority text: The greatest need of our present work among the Negroes is the development of sufficient
Communist Party cadres and full utilisation of the Negro comrades.” [Formação de quadros, organização de
trabalhadores negros nos sindicatos, organização de Congresso Negro na forma de “United Front”,
estabelecimento de uma série de organizações, American Negro Labour Congress, The Negro Miners’ Relief
Committee, Harlem Tenants League, Negro Youth etc., mais espaço para negros na Workers’ School e National
Party School, bem como na Far Eastern University]. Grifos nossos. “Policies on wor among the [ilegível]”,
documento da direção do Communist Party of the United States com diretrizes para o trabalho entre negros, 26
maio 1928. Tamiment Library 3 117-120.jpg. Communist Party of the United States of America Records,
Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor Archives, TAM. 132, caixa 259, pasta 27, Negro Issues:
Reports, Statement.
Nota sobre a tradução: A palavra “wither” – localizada uma linha antes do item 5 – foi sublinhada na citação,
porque se supõe fruto de um erro de digitação, comuns aos documentos da Comintern e dos Partidos Comunistas
em geral. Entende-se que a ideia subjacente ao texto e ao fragmento em questão estaria contemplada pela palavra
“whether” e, por isso, a tradução no corpo do texto acompanha esta perspectiva. O trecho problematiza críticas
provenientes tanto de comunistas que viam na ênfase analítica da questão racial um abandono de premissas
essenciais do marxismo-leninismo, como de comunistas que ancoravam suas respectivas análises da realidade às
ênfases sobre raça. Numa tentativa de neutralizar supostos exageros críticos de ambos os lados, o CEC formulou
essa passagem.
162

ser instruídos de uma vez a mandar estudantes negros tanto para a KUTV quanto
para a Escola Leninista. a) A Escola Leninista: que os camaradas negros sejam
incluídos em todos os contingentes desses respectivos países. b) KUTV, que os
números seguintes sejam enviados pelos respectivos partidos: Grã-Bretanha – 10;
França – 15; Bélgica – 5; Estados Unidos – 30; Brasil – 5; Panamá – 2; Cuba – 3;
total – 70.399
Tendo caráter provisório e um apoio relativamente tímido dos dirigentes do
movimento comunista internacional, os militantes do ITUCNW planejaram uma Conferência
Mundial de trabalhadores negros no rastro do que já se havia pensado em meados da década
de 1920 por outros organismos vinculados à Comintern. A I Conferência Internacional dos
Trabalhadores Negros ocorreu em Hamburgo em julho de 1930, sobretudo por causa das
redes de contato com os trabalhadores de portos e marinheiros provenientes das Américas e
da África. 400 Hamburgo terminou sediando o evento tanto porque não foi possível ser
realizado na Inglaterra quanto porque era intensa, no porto da cidade alemã, a atividade da
International Union of Seamen and Harbor (ISH), ligada à Profintern. Capitaneado pelo
ITUCNW, a avaliação dos organizadores era de que o evento teria sido um sucesso, ainda que
o ITUCNW, àquela altura, ainda não tivesse status de organização permanente.
George Padmore foi um dos líderes da organização. Entre outubro e novembro de
1931, ele publicou um panfleto chamado “What is the International Trade Union of Negro
Workers?”. Nesse texto Padmore descreveu como a Conferência de fundação do ITUCNW
teve que ser removida de Londres e encampada em Hamburgo. Padmore contou a história da
organização do evento, lembrando a importância dos comunistas alemães e dos trabalhadores
das docas para seu sucesso, atribuindo-lhes a responsabilidade e o êxito na proteção dos
delegados que foram a Hamburgo. O evento estava na esteira de resoluções da Profintern
desde 1928 em consonância com a Comintern, que tornava obrigação das seções partidárias

399
RGASPI, f. 495, op. 155, d. 86, list. 4-5, 20 mai 1930. “Sending instructors to the Negro colonies,
concentrating first of all upon those colonies where there exist independent labour movements, revolutionary
nationalist organisations, or in which big revolts have taken place recently
[...]
A PERMANENT COURSE FOR THE TRAINING OF INSTRUCTORS
1. A permanent course should be organised in Moscow under the Lenin School for the training of instructors for
the Negro colonies.
2. The students for this course should include both white and Negro comrades to be selected from among the
contingents for both KUTV and the Lenin School.
In this connection we propose that Communist Parties of the metropolitan countries having Negro populations,
Great Britain, France, Belgium and American countries with large Negro population, United States, Brazil,
Panama, Cuba, etc., should be instructed at once to send Negro students both to KUTV and the Lenin School. a)
The Lenin School: the Negro comrades be included in all contingents from these respective countries. b) KUTV,
that the following numbers be sent by the respective Parties; Great Britain – 10; France – 15; Belgium – 5;
United States – 30, Brazil – 5, Panama – 2, Cuba – 3, total – 70.”
400
CAMPBELL, Susan. An Introduction. In: The Negro Worker: A Comintern Publication of 1928-37.
Marxists Internet Archive. [s.d.]. Disponível em:
<http://www.marxists.org/history/international/comintern/negro-worker/>. Acesso em: 1º nov. 2014.
163

nacionais o esforço sindical entre trabalhadores negros do campo e da cidade em todos os


países com populações negras tais como Brasil, Colômbia, Venezuela e Índias Ocidentais.401
Ainda de acordo com Padmore, dentre esses delegados, incluíam-se camponeses e
trabalhadores urbanos representantes dos “Estados Unidos, das Índias Ocidentais [britânicas],
Serra Leoa, Gâmbia, Costa do Ouro [atual Gana], Nigéria, Congo Francês, Quênia, Haiti,
África do Sul, Brasil, Cuba, Panamá e outros países”.402 A informação acerca dos delegados
conflita com a ata do próprio evento já que nela não consta a presença de delegado brasileiro,
tampouco de delegados panamenhos, cubanos ou, ainda, do Congo Francês.403 A ausência
indica a preponderância anglófona na organização e, principalmente, a prevalência
estadunidense na direção do ITUCNW.
Esse balanço nas relações de poder da organização, estudadas sob o aspecto
linguístico, pode ser cotejado com análises das reuniões do tempo em que o ITUCNW era
uma organização provisória (antes de julho de 1930). Em reunião datada de 19 de setembro de
1929, os presentes eram: “Ford, Rubistein, Wilson, Eidus, Mais, Slavin, Bennet, Levin,
Haywood, Idelson, Ballam, Achkanov, Minkina”. Àquela época a organização se chamava
Negro Workers’ Trade Union Committee. O camarada Slavin, a certa altura, reportou um
encontro com marinheiros em Vladivostok.
A Conferência que nós organizamos com os quinze marinheiros negros que achamos
em Vladivostok foi de caráter puramente informativo. Originários principalmente
das colônias britânicas, esses marinheiros negros compunham um grupo muito
retrógrado. Muitos deles olhavam Harvey [Garvey] como um Lênin negro.
Eles estavam interessados na vida na URSS. O camarada Browder explicou o
significado do Harveísmo [Garveísmo] e lhes falou sobre o Negro Workers’ Trade
Union Committee, seus alvos e objetivos. Durante a discussão os camaradas
enfatizaram que as atividades até agora têm sido desorganizadas, que os marinheiros

401
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 53, list. 2. Ford 21 ago. 1928, “The resolution of the 4th Congress of the RILU
following the decisions of the 9th Plenum of the ECCI must become the special work and task in reference to
trade union work among Negro industrial and agricultural workers of the world (including Negroes in Brazil,
Columbia, Venezuela and West Indies) of all the parties concerned.” A razão do comunicado é a organização do
Congresso Negro, previsto para 1929 e que só viria a acontecer em Hamburgo em julho de 1930 (CAMPBELL,
[s.d.], acesso em 3 set. 2014). O Bureau Negro ligado à Profintern estava à frente da organização e insistia que
“finalmente deverá ocorrer a maior cooperação de todos os partidos com o Comitê Sindical Internacional de
Trabalhadores Negros recentemente organizado pelo Bureau Executivo da SVI” (“finally there must be the
greatest cooperation of all the Parties with the International Trade Union Committeee of Negro Workers recently
organized by the Executive Bureau of the RILU”).
402
Biblioteca de Nova York 2 011-012.jpg. Schomburg Center, Nova York, Research Call Number: Sc Micro F-
946. PADMORE, George. What Is the International Trade Union Committee of Negro Workers?
Hamburgo: International Trade Union Committee of Negro Workers, [193-?]. p. 4-5. “Because of the terror of
the Labour Government, the conference had to be transferred to Hamburg. Thanks to the active assistance and
protection which the delegates representing millions of Negro workers and peasants in the United States, the
West Indies, Sierra Leone, Gambia Gold Coast, Nigeria, French Congo, Kenya, Haiti, South Africa, Brazil,
Cuba, Panama, and other countries received from the German communists and revolutionary seamen and
dockers who defended the Negroes from the police, the conference was a great success.”
403
A REPORT of Proceedings and Decisions of the First International Conference of Negro Workers. In:
PADMORE, George. What Is the International Trade Union Committee of Negro Workers? Hamburgo:
International Trade Union Committee of Negro Workers, [193-?].
164

negros precisam se organizar e que um contato mais próximo deve ser estabelecido
entre o Negro Workers’ Trade Union Committee e o Comitê de Propaganda
Internacional (IPC) dos Trabalhadores de Transporte.404
O informe foi seguido das deliberações:
a) Organizar atividades entre marinheiros negros em portos europeus, mantendo
contato com o Comitê de Propaganda Internacional (IPC) dos Trabalhadores de
Transporte.
b) Organizar atividades especiais entre marinheiros negros e clubes internacionais.
c) Levantar a questão no Bureau Executivo de ter a Unity League (TUEL)
aumentando suas atividades entre os marinheiros negros nas Américas do Norte e do
Sul.405

Ainda que visasse a um arco global, o ITUCNW acabava voltando aos Estados Unidos
expandindo-se, quando muito, ao mundo anglófono.
Seu programa continha 18 pontos e foi publicado em janeiro de 1930 no periódico
“The Communist”, do CPUSA. Os nove primeiros pontos guardavam estreita relação com o
trabalhador urbano. Requeria salário igual para trabalho igual, em referência aos
trabalhadores brancos. Para tanto, esboçava uma comparação entre os trabalhadores negros de
diferentes países (Cuba, Antilhas, África do Sul e Estados Unidos) e seus respectivos
compatriotas brancos para demonstrar a disparidade na remuneração. O segundo ponto era
pela regulamentação de oito horas por dia de jornada de trabalho, reduzindo das 12 e 16 horas
empenhadas em média pelos trabalhadores negros, de acordo com os estudos do próprio
ITUCNW. Este segundo ponto dialogava com três outros que atacavam o trabalho forçado, a
legislação do trabalho (seguro em relação a acidentes de trabalho) e a proteção a mulheres
(licença-maternidade com salários e direitos garantidos) e jovens. Um outro conjunto de
pontos se destacou no âmbito da organização sindical: liberdade sindical, contra colaboração
de classe, quebra de barreiras raciais nos sindicatos e, por fim, organização de sindicatos
negros quando não fosse possível a integração com brancos. Outros pontos centrais flutuavam
no leque programático pendendo para a inclusão de direitos civis para os negros requerendo o
fim do terrorismo branco, moradia e condições sociais adequadas de vida, educação universal
404
“MINUTES No. 3 of the meeting of the INTUC (sic) of the RILU”, 22 dez. 1928. Tamiment Library 3 149-
150.jpg. Communist Party of the United States of America Records[nome do acervo], Tamiment Library and
Robert F. Wagner Labor Archives, TAM. 132, caixa 259, pasta 27, Negro Issues: Reports, Statement.
“The Conference we arranged with the fifteen Negro seamen we found in Vladivostok was of a purely
informational character. Coming mostly from the British colonies these Negro Seamen comprised a very
backward group. Many of them look on Harvey [provavelmente Garvey] as a Negro Lenin. They were interested
in life in the USSR. Comrade Browder explained the meaning of Harvey-ism and told them also about the Negro
workers’ Trade Union Committee and its aims and objects. During the discussion the comrades stressed that
activities so far had been unsystematic, that Negro seamen must be organised and that close contact be set up
between the Negro Workers TU Committee and the Transport Workers’ IPC.”
405
“a) To organise activities among Negro Seamen in European ports, having got in touch with the transport
workers’ IPC.
b) To organise special activities among Negro Seamen in the International clubs.
c) To bring up the question in the Executive bureau of having the Unity League (TUEL) increase its activities
among the Negro Seamen in North and South America.”
165

e, finalmente, o fim de barreiras raciais e sistemas de castas baseados em parâmetros raciais


onde quer que existissem. Os pontos 12 e 13 enfatizavam o campesinato negro e eram os
únicos a fazê-lo explicitamente. Por fim, o tema da autodeterminação, a luta contra influência
burguesa e pequeno-burguesa nas organizações negras e o perigo da guerra também se
constituíam como centrais no programa do ITUCNW.406
Como praxe entre os comunistas, a consolidação do ITUCNW se materializou com um
veículo de comunicação. Primeiro chamado de “The Negro Worker”, circulou entre 1928 e
1931. De janeiro a fevereiro de 1931, foi publicado sob o nome de “The International Negro
Workers’ Review”, para depois, em março do mesmo ano, ser rebatizado de “The Negro
Worker”. O periódico durou até 1937;407 na prática, durou mais que a própria organização que
o fundou. Minado pelas disputas internas do próprio movimento negro e anti-imperialista, o
ITUCNW sucumbiu às defecções que seguiram o rumo do pan-africanismo, como foi o caso
de George Padmore. A mudança de nome do período obedeceu ao critério da facilidade de
penetração entre os trabalhadores já que, quanto mais curto o nome, melhor. Ou ao menos
assim pensavam os editores. Notadamente, os alvos principais do ITUCNW eram os
marinheiros e trabalhadores portuários.
Até 1930, o material produzido pelo periódico provinha de Moscou. Na prática, isso
significava que os textos eram editados em Moscou e as temáticas escolhidas vinham de lá
também. Por algum tempo, os membros do Bureau Negro da Profintern avalizavam e
materializavam as diretivas cominternianas.408 A ascensão de George Padmore, entre 1929 e
1933, na hierarquia da Internacional Comunista, e seu cargo de editor do “The Negro
Worker”409 espelhavam isso, contribuindo para que aspectos comuns do racismo, enfrentados
por negros em todo o globo, fossem abordados no periódico. Ao menos, a este propósito se
propunha Padmore e seus companheiros. O objetivo subjacente e onipresente da publicação
era exportar uma visão da União Soviética como uma sociedade não racial.410 Enquanto
Padmore foi editor do jornal, seu objetivo foi muito claro no editorial.
É nosso objetivo discutir e analisar os problemas cotidianos dos trabalhadores
negros e conectá-los às lutas internacionais e aos problemas dos trabalhadores. É
portanto necessário que recebamos a total cooperação dos trabalhadores negros. Isso
significa que artigos, cartas, pontos de vista e fotos de suas vidas cotidianas devem

406
A TRADE Union Program Of Action For Negro Workers. The Communist, [Nova York], p. 42-7, jan. 1930.
Tamiment Library 5 256-261.jpg. Mark Solomon and Robert Kaufman Research Files on African Americans and
Communism, Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor Archives, TAM. 218, caixa 2.
407
CAMPBELL, [s.d.], acesso em: 2 nov. 2014.
408
WEISS, 2013, p. 556.
409
Editor de 1931 a 1933. VAN ENCKEVORT, 2000, p. 105.
410
ROMAN, Meredith L. Opposing Jim Crow: African Americans and the Soviet indictment of U.S. racism,
1928-1937. Lincoln: University of Nebraska, 2012. p. 130.
166

ser enviados para nós. É apenas dessa maneira que poderemos construir um jornal
popular tão necessário, abordando os amplos problemas internacionais dos
trabalhadores negros. É necessário que recebamos notícias prontamente – ao
momento que qualquer coisa aconteça a notícia nos deve ser enviada – porque os
opressores e exploradores fazem qualquer coisa em suas forças para suprimir cada
pouca notícia que tenda a aumentar a consciência de classe e a iniciativa de classe
dos trabalhadores negros.411
Do ponto de vista programático, o “The Negro Worker”, ainda sob o nome de “The
International Negro Workers’ Review”, pretendia:
a) ajudar a construir contatos sólidos com sindicatos e organizações da classe
operária entre trabalhadores negros, a fortalecer esses contatos e a apoiar o
estabelecimento de organizações sindicais revolucionárias de trabalhadores
industriais e da agricultura;
b) ajudar a estimular a consciência de classe dos trabalhadores negros auxiliando na
educação internacional sobre questões sindicais e de trabalho;
c) aumentar a perspectiva internacional dos trabalhadores negros ao, por um lado,
trazer-lhes informação sobre as lutas e problemas do movimento revolucionário
internacional dos trabalhadores – do movimento colonial, do movimento em países
capitalistas e da exitosa construção do socialismo na União Soviética; e por outro
lado, ao iluminá-los contra os princípios reacionários da burguesia negra
nacionalista tal qual o garveísmo e o sindicalismo reformista, a exemplo de Kadalie
da África do Sul e Randolph dos Estados Unidos, assim como a Internacional de
Amsterdã e o Escritório Internacional do Trabalho;
d) expor os preparativos para uma nova guerra imperialista especialmente desenhada
contra a União Soviética.412

Em 1931, o ITUCNW alegava ter crescido num ritmo notável e obtido simpatizantes e
apoiadores na “África inglesa, francesa, belga, portuguesa, Libéria, Haiti, as Índias Ocidentais
britânicas, Guiana Britânica, América do Sul e Central e os Estados Unidos”.413

411
“It is our aim to discuss and analyze the day to day problems of the Negro toilers and connect these up with
the international struggles and problems of the workers. It is therefore necessary that we receive the fullest
cooperation of Negro workers. This means that articles, letters, points of view and pictures of your daily life
must be sent in to us. It is only in this way that we can build a much needed popular journal, taking up the broad
international problems of Negro workers. It is necessary that we receive news promptly – the moment anything
happens it must be sent in to us – because the oppressors and exploiters do everything in their power to suppress
every bit of news that tends to raise the class consciousness and the class initiative of Negro workers.” THE
INTERNATIONAL Negro Workers’ Review, v. 1, n. 1, jan. 1931.
412
“a) to help build’up strong contacts with the trade union and working class organizations of Negro workers,
to strengthen these contacts and to support the establishment of revolutionary trade union organizations of
industrial and agricultural workers;
b) to help stimulate the class consciousness of Negro workers by helping in International education on trade
union and labour questions;
c) to raise the international outlook of the Negro workers by on the one hand bringing to them information of the
struggles and problems of the international revolutionary labour movement – of the colonial movement, of the
movement in the capitalist countries and of the successful building of socialism in the Soviet Union; and on the
other hand by enlightening them against the reactionary principles of Negro bourgeois nationalism such as
Garveyism, and trade union reformism like that of Kadalie of South Africa and Randolph of the USA, as well as
that of the Amsterdam International and the International Labour Office;
d) to expose the preparations for a new imperialist war especially designed against the Soviet Union.” THE
INTERNATIONAL..., 1931.
413
WHAT is the International Trade Union Committee of Negro Workers. The International Negro Workers’
Review, Hamburgo, v. 1, n. 1, p. 45, jan. 1931. Tamiment Library 5 247.jpg. Mark Solomon and Robert
Kaufman Research Files on African Americans and Communism, Tamiment Library and Robert F. Wagner
Labor Archives, TAM. 218, caixa 2.
167

A correspondência de Padmore indica que o “Negro Worker” também teve ampla


circulação em todos os Estados Unidos. Nos primeiros seis meses de 1932, Padmore
esteve em contato com distribuidores em Nova York, Chicago, São Francisco,
Seattle, Buffalo, Pittsburgh, Cleveland, Chattanooga, New Orleans, Kansas City,
Milwaukee, e Michigan. Padmore se surpreendera pela demanda americana pelo
“Negro Worker”, escrevendo ao escritório dos Amigos da União Soviética em Nova
York: “É surpreendente saber o número de trabalhadores que já nos escreveu dos
Estados Unidos. O que os atrai são as notícias que trazemos sobre a África e outras
colônias. Eles têm um tremendo interesse na África. Talvez porque Garvey
prometeu levá-los até lá.”414

George Padmore continuaria na edição do órgão oficial do ITUCNW até 1933, quando
pediu demissão da editoria do “The Negro Worker”.415 Em junho de 1934, sua expulsão da IC
seria comunicada nesse mesmo periódico. Inicialmente, sua saída da edição se dera em razão
de problemas financeiros para manutenção do periódico, associados ao elevado custo que lhe
foi imposto desde a ascensão de Adolf Hitler na Alemanha daquele mesmo ano.416 A base do
ITUCNW teve que ser, supostamente, redirecionada para Copenhagen, 417 na Dinamarca.
Ademais, em 1934, quando se desenhava de maneira nítida a experiência das frentes
populares, aproximando geopoliticamente Inglaterra e França da União Soviética, George
Padmore passou a acusar a Comintern de traição contra os povos coloniais.418
Sabe-se que George Padmore foi uma das vozes mais ressonantes na construção do
pan-africanismo a partir de meados da década de 1930. De um atento militante da esquerda
comunista soviética, Padmore rompeu em 1934 e partiu para a organização do movimento
pan-africanista. Sua perspectiva motriz estava no solapamento do imperialismo e da
hegemonia europeia na África. Em sua opinião, ali restava o pecado original que teria
submetido os negros à condição subalternizada. Solucionar o problema estava no centro da
sua militância e foi tangencialmente acompanhado, de mais de uma maneira, pelos soviéticos.

414
“Padmore’s correspondence indicates that Negro Worker also had a wide circulation throughout the United
States. In the first six months of 1932, Padmore was in touch with distributors in New York, Chicago, San
Francisco, Seattle, Buffalo, Pittsburgh, Cleveland, Chattanooga, New Orleans, Kansas City, Milwaukee, and
Michigan. Padmore himself was startled by the American demand for Negro Worker, writing to the Friends of
the Soviet Union (FSU) office in New York: “It is surprising to know the number of workers who have already
written us from America. What attracts them is the news we carry about Africa and the other colonies. They
have a tremendous interest in Africa. Perhaps because Garvey had promised to take them there.” Padmore to
FSU, 26 February 1932, RGASPI 534/3/754. MUKHERJI, Ani. The Anticolonial Imagination: The Exilic
Productions of American Radicalism in Interwar Moscow. 2011. Tese. (PhD)–Brown University, Providence,
2011. p. 133.
415
VAN ENCKEVORT, 2000, p. 111-113; CAMPBELL, [s.d.].
416
Cf. CAMPBELL, Susan. “Black Bolsheviks” and recognition of African-America's right to self-
determination by the Communist Party USA Science & Society. Science and Society, New York, v. 58, n. 4, p.
7, inverno 1994.
417
Van Enckevort sugere que, na verdade, o periódico fora editado em Paris e que Copenhagen teria surgido
apenas como forma de despistar a polícia. VAN ENCKEVORT, 2000, p. 111.
418
CAMPBELL, [s.d.].
168

Suas divergências com os comunistas não o impediram de eleger a sociedade soviética como
modelo racial em seus empreendimentos pan-africanistas.
A preponderância historiográfica nos exemplos organizativos de origem afro-anglo-
saxã não podem permitir uma compreensão isolada do enfrentamento ao racismo. O melhor
exemplo de um organismo análogo ao ITUCNW foi organizado por Tiemoko Garan Kouyaté.
A Ligue pour la Défense de la Race Nègre (LDRN), sucedânea do Comité de Défense de la
Race Nègre, foi fundada por Lamine Senghor e Garan Kouyaté em março de 1927.419 Para os
membros da LDRN, além da objeção natural ao imperialismo, havia diferenças culturais
substanciais entre a França e as colônias africanas, o que justificava, de imediato, a
independência. Desde sua fundação, a LDRN procuraria constituir “estados negros na África
negra” 420 com o apoio do Partido Comunista Francês, o qual, por sua vez, entendia a
sublevação colonial como condição fundamental para realização da revolução socialista.
Seções da LDRN se espalharam rapidamente na colônia e na metrópole. Lamine e Kouyaté,
auxiliados pelos sindicatos comunistas, viajaram frequentemente entre a França e a África
Ocidental; a informação era disseminada e ações planejadas de maneira a expandir a rede de
apoiadores.421
A partir da Conferência em Hamburgo em julho de 1931, a LDRN, o ITUCNW e o
Bureau Negro, sob liderança de George Padmore, passaram a atuar em conjunto. Conquanto
seguissem as orientações cominternianas, há evidências de que nem sempre os Partidos das
metrópoles auxiliaram o quanto deviam no esforço anti-imperialista.422 Por outro lado, há a
sugestão de Brent H. Edwards de que concorreram, paralelamente, pelo menos dois tipos de
internacionalismo negro. Um primeiro operava em função da Comintern com ênfase na
questão sindical do trabalho negro e um segundo que, em virtude dos caminhos erráticos e
desordenados do PCF, empurraram esses militantes para um internacionalismo “que enfatiza
uma organização baseada na raça e alianças anti-coloniais entre revolucionários

419
MILLER, Christopher. Nationalists and Nomads: Essays on Francophone African Literature and Culture.
Chicago: University of Chicago Press, 1999. p. 43. Cf. CONKLIN, Alice L. A Mission to Civilize MThe
Republican Idea of Empire in France and West Africa, 1895-1930. Stanford: Stanford University Press, 1997. p.
302. A Ligue pour la Défense de la Race Nègre durou entre 1925 e 1936.
420
GENOVA, 2004, p. 75.
421
GENOVA, 2004, p. 75.
422
FEATHERSTONE, David. Black internationalism, international communism and anti-fascist political
trajectories: African American volunteers in the Spanish Civil War. Twentieth Century Communism, n. 7, p.
15, set. 2014.
169

diferentemente posicionados de descendência africana”.423 O centro do argumento está na


ruptura operada pelas duas acepções de internacionalismo no decorrer dos anos de 1930.
Tanto um quanto outro seguiriam os rumos das independências nacionais como forma
principal de combate ao imperialismo europeu na África: Padmore se associaria ao pan-
africanismo enquanto Kouyaté seria executado pelos nazistas em 1942 como militante da
organização Étoile Nord-Africaine, de origem argelina.
A saída de Padmore da Comintern foi recheada de polêmicas com o também militante
Otto Huiswoud. A relação que Padmore manteve com Kouyaté, militante do Partido
Comunista Francês e reconhecidamente indisciplinado quando o assunto era seguir as linhas
partidárias, tornou complicada a situação de Padmore na IC. A contenda entre Huiswoud e
Padmore se iniciou a partir de uma ordem da Comintern para que aquele fizesse uma
investigação sobre as atividades realizadas por Padmore enquanto esteve à frente do periódico
“The Negro Worker” e do próprio ITUCNW. Padmore recusou-se a cooperar e a suspeição
era de que ele estava usando o dinheiro que recebia da IC para patrocinar o periódico recém-
fundado em 1931 por Kouyaté, “Le Cri des Nègres”, órgão do Unión des Travailleurs Nègres.
Rapidamente, porém, Kouyaté perdera, em 1933, a direção do periódico e foi expulso da IC,
assim como George Padmore em 1934.424
Otto Huiswoud foi editor do “The Negro Worker” entre 1934 e 1936.425 Membro
articulador da Internacional dos Marinheiros, Huiswoud não demonstrou pautar-se
indiscriminadamente pela onda da autodeterminação para enfrentar a questão do racismo, o
que lhe rendeu longos períodos de militância na Europa e na União Soviética. Seu trabalho
esteve, na maior parte das vezes, circunscrito às formulações do ITUCNW e à organização da
Internacional dos Marinheiros. Em fevereiro de 1930, quando a tese da autodeterminação para
o Sul dos Estados Unidos não só fora ratificada mas também redefinida em seus contornos

423
EDWARDS, Brent Hayes. The Practice of Diaspora: Literature, Translation, and the Rise of Black
Internationalism. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 264. “that emphasizes race-based organizing
and anticolonial alliances among differently positioned revolutionaries of African descent”
424
FEATHERSTONE, op. cit., p. 15. A crítica de Padmore esteve também associada ao movimento do governo
da URSS no sentido de dissuadir as potências europeias de qualquer intento revolucionário por parte dos
comunistas. Assim, justificou-se a falta de vigor da diplomacia soviética a respeito do conflito ítalo-etíope, que
passou a ser alvo de Padmore quando este acusava os comunistas de terem abandonado os negros nas colônias.
Ver também ROMAN, 2012, p. 132. Há estudos que apontam um aumento do intercâmbio econômico entre a
Itália fascista e a União Soviética no período da Guerra Ítalo-Etíope. MATUSEVIC, Maxim. No Easy Row for
a Russian Hoe: Ideology and Pragmatism in Nigerian-Soviet Relations. Trenton: Africa World Press, 2003. p.
36.
425
SANTIAGO-VALLES, William Fred. Memories of the Future: Maroon Intellectuals from the Caribbean
and the Sources of their Communication Strategies, 1925-1940. 1997. Tese (Doutorado)–School of
Communication, Simon Fraser University, Burnaby, 1997. p. 556.
170

com relação ao Norte,426 Huiswoud escreveu um artigo cujo título o posicionou no lado
internacionalista do combate ao racismo: “World aspects of the Negro question”. Em sua
elaboração esteve presente a caracterização de três circunstâncias específicas vivenciadas
pelas populações negras no globo: 1) os casos de alguns países latino-americanos e dos
Estados Unidos onde os negros constituíam minoria demográfica; 2) África e Índias
Ocidentais, colônias onde os negros constituíam maioria demográfica em relação aos brancos;
3) Haiti e Libéria, nações negras independentes que se constituíam como semicolônias dos
Estados Unidos. Para cada um desses casos, Huiswoud desenhou uma análise e estratégia
específicas. Para o caso da África colonial, em geral, indicou a sublevação já que, aos seus
olhos, estava posta uma problemática nacional-colonial. No caso das Índias Ocidentais, ele
afirmava não haver uma questão racial tal qual formulada nos Estados Unidos. Em seu lugar
haveria um sistema de castas ancorado em parâmetros raciais os quais, por meio da disputa
ideológica, consolidavam uma posição de superioridade do branco em relação ao negro. O
fato de existirem negros ocupando altas posições sociais confundia a população, sobretudo
porque os grupos dirigentes brancos teriam dividido os negros dos mulatos, impondo-lhes o
sistema de casta onde um seria superior ao outro. Nas Índias Ocidentais, o elemento racial
aparecia como secundário quando confrontado com a exploração de classe. O caso do Haiti,
segundo Huiswoud, não poderia ser tratado separadamente. Permanentemente acossado pelo
imperialismo estadunidense, o Haiti deveria ser objeto de intensa atuação dos comunistas em
prol da autodeterminação e da criação de uma “Federação das Índias Ocidentais” sob
liderança do proletariado. Naturalmente, antes da consecução do plano era fundamental a
criação e/ou tomada de sindicatos e partidos ligados ao mundo do trabalho com o fito de
dirigir o proletariado caribenho contra o imperialismo. O caso dos negros estadunidenses, por
sua vez, foi caracterizado como uma “minoria racial oprimida” submetida à exploração racial
e de classe. A chave da exploração de classe foi responsável pela maior parte das formulações
de Huiswoud quando refletiu sobre os efeitos da “grande migração” e seus impactos na cadeia
produtiva por ter induzido novos padrões de exploração do trabalho nos Estados Unidos. Ao
esquecer a América Latina, que havia citado no início do texto, Huiswoud apresentou uma
longa análise da realidade dos Estados Unidos apontando o caminho da integração como
agenda fundamental dos comunistas para aquele país. Aos membros do CPUSA caberia lutar

426
Os negros do Norte passariam a compor uma parte da população negra que não teria como pauta fundamental
a autodeterminação, e sim a integração de classe.
171

para efetivar uma aliança entre negros e brancos em sindicatos e consolidar a luta contra o
imperialismo entre os trabalhadores.427
O pensamento de Huiswoud a respeito da autodeterminação forçou-o a autocríticas
diante dos comissários da Comintern. Após isso, porém, sua posição terminou fortalecida
diante da paulatina defecção de George Padmore, cuja circunstância foi obscurecida pelos
428
métodos stalinistas de destruição de reputações. De um importante combatente
revolucionário pelas causas negras, em 1934 Padmore foi considerado traidor dos
trabalhadores negros, posto que, segundo a narrativa cominterniana, acariciava dois mestres: o
anti-imperialismo e o nacionalismo negro. Foi acusado de querer promover o ressurgimento
da África por meio de uma aliança negra em que banqueiros, latifundiários e os grupos
dominantes teriam parte, para expulsar os brancos.429
A interrupção das atividades do ITUCNW a partir de 1933 ocasionou críticas por parte
de Padmore à atuação da Comintern em relação aos trabalhadores negros no tempo em que
Huiswoud passou a ser o editor do “Negro Worker” e, dessa maneira, responsável por ecoar
as vozes do ITUCNW. O militante trinidadiano interpôs severas críticas à IC por descontinuar
as atividades com os trabalhadores negros. Aquele que seria grande parceiro intelectual a
partir de 1935, C. R. L. James afirmaria, em 1959, que o motivo para a interrupção teria sido
uma proposta do governo britânico em reatar relações com a União Soviética desde que o
trabalho anticolonial e anti-imperialista fosse cessado.430 James reafirmava a versão dada por
George Padmore em outubro de 1935, numa carta aberta a Earl Browder, dirigente do
CPUSA, publicada no jornal da NAACP, “The Crisis”. Padmore sugeriu que a liquidação do
ITUCNW se dera
simplesmente para não ofender o Foreign Office britânico, que estava exercendo
pressão para se tornar relevante para a diplomacia soviética por causa da tremenda
indignação que o nosso trabalho havia levantado entre as massas negras na África,
Índias Ocidentais e outras colônias contra o imperialismo britânico.431

427
HUISWOUD, Otto. World aspects of the Negro question. The Communist, v. 9, n. 2, p. 132-147, fev. 1930.
428
A prisão de George Padmore, realizada pela polícia de Hamburgo em fevereiro de 1933, é alvo de suspeição e
polêmica. Padmore estava circunscrito numa rede conspiratória, já que ele era alvo das inteligências alemã e
britânica e começava a levantar suspeitas entre seus pares. Cf. WEISS, 2013, p. 579-580.
429
Hermina Huiswoud apud Van Enckevort, 2000, p. 115-116.
430
JAMES, C. L. R. Notes on the Life of George Padmore. [1959]. Chicago: University of Chicago Library,
1972. 1 bobina de microfilme; 35 mm. p. 11.
431
PADMORE apud VAN ENCKEVORT, 2000, p. 117. “Simply in order not to offend the British Foreign
Office which had been bringing pressure to bear on Soviet diplomacy because of the tremendous indignation
which our work has aroused among the Negro masses in Africa, West Indies and other colonies against British
imperialism.”
172

A resposta de Browder reencaminhou a disputa para o cerne da militância negra ao


retratar o afastamento de Padmore não como uma decisão cominterniana, e sim dos
camaradas negros com os quais Padmore cerrava fileira.
Van Enckevort sugere que a demora de quase um ano que George Padmore impôs
para responder às acusações que sofrera lhe garantiu credenciais de autenticidade. Em outubro
de 1935, a União Soviética e a IC já haviam decidido pelas Frentes Populares como diretiva
para as seções nacionais da Comintern, a URSS já havia entrado para a Liga das Nações e, em
maio de 1935, havia concluído um acordo diplomático com a França. Desse modo, o desenho
geopolítico teria imposto à URSS concessões no campo do alastramento da revolução
mundial e da luta anti-imperialista.
A dissolução melancólica do ITUCNW em 1937, sob a direção de Otto Huiswoud,
encerrava, formalmente, uma trajetória de militância internacionalista por parte de comunistas
negros sob a tutela da Internacional Comunista. No período entre 1934 e 1937 houve um
duplo movimento repressivo junto às atividades e organização anticoloniais. Se, por um lado,
a ascensão do Partido Nacional-Socialista na Alemanha soltou as amarras da repressão e
obrigou uma mudança do quartel-general do ITUCNW de Hamburgo para a Antuérpia, por
outro, os acordos sucessivos da URSS fizeram com que a organização se tornasse
praticamente itinerante, até seu fim. Entre a Holanda e a Bélgica, o ITUCNW se tornou
nômade ao passo que tentava centralizar as ações anti-imperialistas nas colônias africanas e
nas Índias Ocidentais, o que conseguiu apenas de maneira débil. O afastamento de um centro
portuário, como Hamburgo, próximo a um importante hub do movimento comunista
internacional, Berlim, tornou as atividades comandadas por Huiswoud virtualmente
ineficazes. A existência clandestina isolou o organismo de suas bases portuárias e da marinha
mercante assim como seccionou os laços com a própria IC, que, em virtude de seu
aparelhamento, já havia perdido sua relativa autonomia dos desígnios da política externa
soviética. As forças ainda restantes da organização se encontravam, precisamente, na ampla
rede proporcionada pelas ligações com a International of Seaman and Harbour Workers (ISH)
e no amparo logístico restante, proporcionado pela Sindical Vermelha e pela Comintern.
Somente a transferência para Paris em 1936 devolveria alguma organicidade ao
ITUCNW, visto que havia uma comunidade negra pulsante na capital francesa e o governo de
frente popular fazia vistas grossas às atividades do ITUCNW. Se bem que, depois da inflexão
da política externa operada na URSS, o governo francês não tinha o que temer. Ocorrera uma
transformação: de uma linha política que visava angariar esforços para superar o jugo
colonial, a partir de 1935 os comunistas deveriam se esforçar em ajudar a URSS a se preparar
173

para a guerra que se aproximava. Todos os organismos do movimento comunista


internacional ligados à Comintern tiveram que se adaptar à nova realidade. Rompidos esses
anteparos de força, o ITUCNW se tornaria responsável pela agitação e propaganda
unicamente por meio do “The Negro Worker”, que continuou a ser produzido.
Em meados da década de 1930, o movimento anti-imperialista se tornaria o
movimento contra esta ou aquela potência. Assim, os comunistas se insurgiram contra a
agressão italiana na Etiópia, a despeito da URSS, e o Pan-Africanismo contra as opressões
britânica e francesa. A principal expressão da luta anti-imperialista passou a obedecer aos
espíritos nacionais.

5.2 Expressões do antirracismo nos Estados Unidos: por uma política de integração

Quando se coloca a temática racial no centro da análise do movimento comunista nos


Estados Unidos, o período pós-1928 é excepcionalmente confuso. A política de “frente única
por baixo” foi aplicada, estendendo-se ao limite da desobediência à própria filosofia da tática,
já que muitas vezes foram construídas pontes com setores originalmente repelidos pelos
comunistas. Um exemplo foi o Trade Union Educational League (TUEL), que se constituiu
como uma organização de frente que buscava angariar diferentes militantes sindicais de
amplas plêiades políticas. A tática a qual obedecia o TUEL era de infiltração e radicalização,
por dentro, de sindicatos conciliatórios; seu alvo preferencial foi a American Federation of
Labor (AFL).
A partir de 1928, o TUEL foi transformado em Trade Union Unity League (TUUL), a
qual manteve como objetivo primordial a implosão do dualismo sindical e consequente
confronto com a AFL. O TUUL durou até 1934, sua criação obedeceu aos impulsos
esquerdistas do Terceiro Período. A caracterização da American Federation of Labor como
“social-fascista” foi o ponto definidor da identidade sindical da organização.432 O TUUL, ao
encampar a bandeira de sindicatos autônomos e independentes, acabou angariando amplos
apoios dentre diversas corporações de trabalhadores.
A greve de Passaic433 foi um importante ponto de inflexão na estratégia sindical
comunista. Encorajou os críticos de Foster 434 no partido a amplificar suas

432
ZUMOFF, 2003, p. 260.
433
Ocorreu entre 1926 e 1927 em indústrias têxteis em Nova Jersey.
434
William Z. Foster, dirigente do CPUSA.
174

preocupações sobre organizar os desorganizados e antecipou um período de


transição no foco, estilo e eleitorado dos sindicatos comunistas. A partir de então,
uma mistura complicada de absorção e crítica, ambas de origem estrangeira e
doméstica, resultou na criação do TUUL em 1929 com uma perspectiva
radicalmente diferente daquela do TUEL.
O TUUL deve ser entendido não simplesmente como uma organização no “papel”, a
soma de várias resoluções partidárias e ordens da Comintern. Ao contrário, deve ser
vista como um experimento de radicalismo sindical que teve uma base firme em
experiência organizativa e história sindical. No âmbito da implementação, a
formação do TUUL ajudou a criar um certo tipo de cultura oposicionista na
organização do trabalho por parte do PC que endereçou não apenas preocupações
dos chefes do PC em Moscou, mas também relacionou questões persistentes sobre o
potencial do movimento sindical nos Estados Unidos e do significado da IWW,
sobre controle dos trabalhadores e da tecnologia no chão da fábrica, e sobre os
lugares das mulheres e afro-americanos no novo tipo de organização sindical.435

De leste a oeste no país, o TUUL foi responsável por tentar unificar a pauta de
trabalhadores brancos e negros materializando a principal transformação em relação ao
TUEL. Na Califórnia, por meio de sua seção local, a Agricultural Workers Industrial League,
o TUUL reuniu agricultores mexicanos, filipinos, japoneses e de outras origens em abril de
1930.436
Aparentemente, o TUEL tinha dificuldades de enfrentar o racismo pela via da questão
sindical.437 O TUUL, enquanto expressão do encontro de aspirações sindicais radicais e das
políticas perpetradas pelo Terceiro Período, foi responsável por introduzir o debate sobre a
questão negra, enfrentando a possibilidade, sempre presente, de rachaduras nos sindicatos que

435
JOHANNINGSMEIER, Edward P. The Trade Union Unity League: American Communists and the
Transition to Industrial Unionism: 1928-1934, Labor History, v. 42, n. 2, p. 168, 2001. “The Passaic strike was
an important turning point in Communist trade union strategy. It encouraged Foster’s critics within the Party to
further amplify their concerns about ‘organizing the unorganized,’ and foreshadowed a period of transition in
focus, style, and constituency for Communist trade unionists. Henceforth, a complicated mixture of inputs and
criticisms, both foreign and domestic in origin, resulted in the creation of the TUUL in 1929 with a radically
different perspective from that of the TUEL. The TUUL should be understood not simply as a ‘paper’
organization, the sum of various party resolutions and Comintern orders. Rather, it should be regarded as an
experiment in radical trade unionism that had a firm grounding in organizers’ experience and in union history. At
the level of implementation, the formation of the TUUL helped create a certain kind of oppositional culture in
CP labor organizing that addressed not only the concerns of the CP’s Moscow patrons, but also related persistent
questions about the potential of the trade union movement in the U.S. and the meaning of the IWW, about
workers’ control and technology on the shop floor, and about the places of women and African-Americans in
any new type of union organization.”
436
UHLMANN, Jennifer Ruthanne. The Communist Civil Rights Movement: Legal Activism in the United
States, 1919-1946. 2007. Tese (Doutorado em História), University of California, Los Angeles, 2007. p. 170.
Esse evento se deu em organização conjunta com outra unidade de frente ligada ao CPUSA, a International
Labor Defense (ILD).
437
Johanningsmeier (2001, p. 172) afirma: “O Sul profundo esteve amplamente fora do alcance dos
organizadores comunistas na década de 1920, e foi uma política não escrita do partido que se opusesse à
migração de afro-americanos para o norte porque isto enfraqueceria a posição de trabalhadores brancos
sindicalizados e exacerbaria o antagonismo racial.” (“The deep South was largely out-of-bounds for Communist
organizers in the 1920s, and it was an unwritten policy that the party opposed African-American migration to the
North because it would undermine the position of unionized white workers and exacerbate racial antagonism”.)
Embora a afirmação seja verossímil em relação às direções do movimento comunista americano durante a
primeira metade da década de 1920, nos limites desta pesquisa, não foi possível atestar a afirmação com
evidência empírica.
175

até 1928 eram eminentemente brancos. Dessa maneira, o TUUL terminou assumindo
vigorosamente a pauta da integração.
Além de manifestações contra o imperialismo,438 e em coerência com a tática da
integração, o TUUL foi o principal articulador da entrada dos comunistas no Sul dos Estados
Unidos. Enquanto as correntes migratórias apontavam para uma quantidade expressiva de
negros que se mudavam do Sul para o Norte, os comunistas estadunidenses avaliavam que,
para enfrentar a questão do racismo nos Estados Unidos, era fundamental enfrentar as leis de
segregação racial e o regime racista no Sul. Por isso, foi realizado um esforço a partir do
mundo do trabalho, em que comunistas e simpatizantes passaram a ocupar espaços, por meio
do TUUL, em sindicatos. Isso se deu no rastro do sucesso que os comunistas obtiveram
conquistando “lideranças de grandes greves na indústria têxtil de Passaic, Gastonia e New
Bedford, e na indústria de roupas na cidade de Nova York”. 439 Aqui, duas políticas
excludentes, a respeito do Sul, estavam à mesa dos comunistas: organizar sindicatos
integrados, entre negros e brancos, e, ao mesmo tempo, levar a bandeira da autodeterminação
aos estados do cinturão negro.
Apesar do vigor descrito anteriormente, os resultados efetivos demonstram efeitos
muito mais modestos. Os relatórios internos tanto do TUUL quanto da Comintern e da
Sindical Vermelha são inconclusos quanto ao problema da organização dos trabalhadores
negros. A despeito da combatividade de trabalhadores industriais negros sulistas e da
respectiva adesão de núcleos organizados à agenda do CPUSA e de seus organismos
auxiliares, a militância comunista enfrentaria uma situação nova no Sul dos Estados Unidos.
Lá o ambiente era mais hostil e as políticas de segregação racial eram executadas com mais
firmeza.
As teses debatidas no CPUSA acerca do desenvolvimento capitalista dos Estados
Unidos também caíram por terra a partir de 1929, quando a presença dos comunistas no Sul
passou a ser mais efetiva. Primeiro porque a tese, até então defendida pelos comunistas, da
população negra do Sul como exército de reserva para os industriais do Norte não se efetivou.
Os comunistas identificaram uma certa robustez industrial em curso também nos estados do
Sul. Segundo porque a atitude combativa e organizada dos trabalhadores negros encontrados
pelos militantes comunistas não coadunava com o perfil de lumpemproletariado desenhado
pelos marxistas do Terceiro Período em relação aos “soldados” do exército de reserva. Por

438
Contra a presença de tropas americanas no Haiti e na Nicarágua em 1929.
439
JOHANNINGSMEIER, 2001, p. 160. “[...] were able to achieve leadership of large strikes in the textile
industry at Passaic, Gastonia, and New Bedford, and in the clothing industry in New York City”.
176

fim, o encabeçamento da tese da autodeterminação não seria abraçada pelos negros do Sul; a
agenda era a integração. A afinidade eletiva entre negros e comunistas se estabeleceria não
pela obediência à linha e sim pelo que o clamor da autodeterminação significava: uma força
política que colocara o negro no centro do debate social.
Em relação às tensões internas no Partido, os comunistas negros e brancos simpáticos
à causa do antirracismo se camuflariam entre duas posições igualmente extremas: a
resistência interna dos comunistas brancos nativos em estabelecer a centralidade da questão
racial para a revolução americana e a diretriz cominterniana que comparava o Sul dos Estados
Unidos às centenas de nacionalidades que a URSS englobava. À parte disso, o TUUL foi o
elemento que tornou concreta a presença dos comunistas nos pleitos reais das comunidades
negras, em especial, no Sul dos Estados Unidos. E este já tinha sido objeto da preocupação
dos comunistas anos antes.
Em 1925, Thomas Dombal, dirigente da Internacional Camponesa (Krestintern), já
chamava a atenção dos comunistas estadunidenses acerca da organização dos camponeses no
Sul dos Estados Unidos. Numa crítica especialmente dirigida ao American Negro Labor
Congress (ANLC), Dombal acrescentaria o desejo de fundar uma Seção Camponesa “para
levantar a questão de conectar com as colônias africanas, e particularmente com a África do
Sul, Libéria, Angola, Quênia, Índias Ocidentais, Filipinas e Brasil”.440
O American Negro Labor Congress (ANLC) nasceu para cumprir um papel específico:
implodir o chamado Sinédrio Negro de 1924.441 O ANLC foi fundado precisamente um ano
depois do Sinédrio e organizado pela African Blood Brotherhood e pelo Workers Party. O
plano do ANLC era construir um encontro mundial de negros em que as temáticas seriam os
movimentos libertação e a emancipação colonial de populações negras.442
Em maio de 1929, já era tido como supérfluo. A conferência planejada não tinha
ocorrido e o ANLC havia se tornado uma organização endógena, de negros para negros, que
não conseguia amplificar o antirracismo para além daqueles já convencidos da agenda. Otto
Huiswoud justificava a liquidação ao dizer que o objetivo dos comunistas era

440
RGASPI, F. 495, op. 155, d. 32, list. 28-30. “It would be extremely desirable, in case you decide to form a
Peasant Section, to raise the question of connecting it with the African colonies, and particularly with South
Africa, Liberia, Angola, Kennia, West Indies, Phillipines and Brazil.”
441
Ver FONER; ALLEN, 1987, p. 112-113. Cf. DAWAHARE, Anthony. Nationalism, Marxism, and African
American Literature Between the Wars: A New Pandora’s Box. Jackson: University Press of Mississippi,
2003. p. 28-29. Para informações sobre o Sinédrio Negro: HUGHES, Alvin. The Negro Sanhedrin Movement.
The Journal of Negro History, v. 69, n. 1, p. 1-13, inverno 1984. Em resumo, o Sinédrio Negro foi uma
organização de curta duração que nasceu em 1924 com o objetivo de centralizar as ações das várias organizações
negras existentes nos Estados Unidos.
442
JOHNS, 1975, p. 215.
177

construir um movimento de massa baseado em trabalhadores industriais,


particularmente trabalhadores organizados. Nós precisamos nos virar na direção do
comércio e fábricas e nessa conexão nós precisamos estabelecer relações próximas e
de cooperação com o TUEL. Nosso programa, tal qual se encontra hoje dificilmente
está compatível com o propósito de alcançar as massas, e o novo programa que está
sendo preparado irá corrigir largamente esses equívocos.443

Para ele e setores da militância negra que haviam tomado parte na African Blood
Brotherhood, o ANLC não cumpria um papel efetivo na mobilização dos trabalhadores
negros. A criação do TUUL foi um primeiro golpe no ANLC, porque propunha uma ruptura
na arrumação sindical estadunidense ancorada na integração. Esse tema passou a ser
contemplado de maneira massiva e sem relutância, além de manter em sua pauta programática
uma contínua interação com a luta negra no mundo.444 Apesar disso, dadas as avaliações e
resoluções do VI Congresso da Comintern, a atenção virtualmente nula que o ANLC prestou
aos pequenos agricultores do Sul deixou pouca margem para manutenção do organismo.
Diante de tal cenário, a organização de um congresso antilinchamentos em novembro
de 1930, fruto da Semana Nacional Antilinchamento e de um comitê organizador no Sul dos
Estados Unidos, não garantiu mais que uma sobrevida ao moribundo ANLC.
A criação da League of Struggle for Negro Rights (LSNR) se deu em finais de 1930,
sepultando de vez o ANLC. Esta nova organização já tinha sido objeto de debate tanto na
convenção do partido realizada em julho de 1930, como também em reunião da comissão
negra da Comintern. De acordo com Harry Haywood, “a LSNR foi concebida como o núcleo
de um movimento de frente única em torno do programa do partido para a libertação negra. O
Liberator deveria ser transferido do ANLC como a publicação oficial da nova
organização.”445 O objetivo era “liderar as massas negras na luta contra a opressão e em prol
de suas demandas por igualdade política e social e pelo direito de autodeterminação para
maiorias negras no Sul”.446 A direção da LSNR e a do “Liberator” couberam a Benjamin D.
Amis, provavelmente até meados de 1932, quando Harry Haywood assumiu o controle da
LSNR. De 1934 em diante, o dirigente máximo do organismo foi Langston Hughes, até sua
dissolução e transformação em “National Negro Congress”, em 1935.

443
FONER; ALLEN, 1987, p. 205. “[...] must be to build a mass movement based on the industrial workers,
particularly organized workers. We must turn more to the shops and factories and in this connection we must
establish close relationship and cooperation with TUEL. Our program as it is today is hardly suited to reach the
masses and the new program which is being prepared will largely correct these shortcomings.”
444
FONER; ALLEN, 1987, p. 223.
445
HALL, 2012, posição 2554-2557. “The LSNR was conceived as the nucleus of a united front movement
around the party's program for Black liberation. The Liberator was to be carried over from ANLC as the official
publication of the new organization.”
446
Ibidem, posição 2592. “[...] to lead the Negro masses in struggle against oppression and for their demands for
full political and social equality and the right of self-determination for Negro majorities in the South.”
178

A grande dificuldade enfrentada pela LSNR em seu próprio campo político estava,
segundo Mark Solomon, em como se mostrar útil à comunidade haja vista o papel destacado
da International Labor Defense desempenhado desde finais da década 1920. Para Glenda
Gilmore, a dificuldade maior se expressava no mundo rural.
A LSNR operou uma mudança estrutural no enfrentamento ao racismo: diferenciou-se
do ANLC por ser inter-racial e não uma organização negra. A proposta da LSNR era engajar
brancos comprometidos com o programa da libertação negra. Essa posição colocava os
comunistas da liga atuantes no Sul dos Estados Unidos em perigo dobrado, pois a integração
era considerada ato criminoso, o que pode explicar a ausência virtual da LSNR naquela região
dos Estados Unidos. Dentre as dificuldades enfrentadas pelos comunistas em meados da
década de 1930, Campbell sintetiza bem:
Nos EUA, “a defesa sem reservas da política externa soviética por parte do PC criou
obstáculos [...] no Harlem antes de qualquer outro lugar”. O comunista afro-
americano Ben D. Amis reclamou que, no âmbito da base, apenas um pequeno
início foi feito na direção de explicar e popularizar o conceito de direito a
autodeterminação. Herman Mackawain, Secretário em Exercício da LSNR, deixou o
partido, acusando a União Soviética de equipar o exército de Mussolini para sua
conquista da Etiópia. O “jornal Negro” do PC, em existência desde meados de 1920,
deixou de ser publicado. A LSNR foi substituída pelo National Negro Congress,
orientado para Frente Popular. Então, apesar de grandes sacrifícios e considerável
sucesso, a Alabama Sharecroppers' Union (que desde 1931 tinha afiliado em torno
de 12.000 membros) foi dissolvida.447

A despeito do redirecionamento da política externa soviética, havia alguns


complicadores que mantinham a militância comunista afro-americana em consonância com
certas pautas negras. A ênfase se deslocaria vagarosa e discretamente da organização do
mundo do trabalho para o campo das ideias, lugar em que propaganda e agitação
desempenhariam um papel fundamental na estratégia dos comunistas. Ainda que não se
localizem como eventos sucedâneos, os casos Yokinen e Scottsboro explicam a medida e
forma por meio das quais os comunistas operaram essa virada na atuação e combate ao
racismo.

447
CAMPBELL, 1994b, parágrafo 100. “in the USA, ‘the CP's unqualified defense of Soviet foreign policy
created obstacles...in Harlem earlier than it did in most places’ (Goldfield, 1985, 355). African-American
Communist Ben D. Amis complained that, at the grassroots level, only a small beginning had been made toward
explaining and popularizing the concept of the right to self-determination (Amis, 1935). Herman Mackawain,
Acting Secretary of the LSNR, quit the Party, charging the Soviet Union with helping equip Mussolini's army for
its conquest of Ethiopia (Kanet, 1973, 115). The CP's ‘Black newspaper,’ in existence since the mid-1920s,(20)
ceased publication. The LSNR was replaced by the Popular Front-oriented National Negro Congress. Then,
despite great sacrifices and considerable success, the Alabama Sharecroppers' Union (which since 1931 had
enrolled some 12,000 members) was disbanded (Haywood, 1978, 440, 403).”
179

O caso dos jovens de Scottsboro constituiu um dos grandes marcos da campanha


antirracista dos comunistas.448 Aconteceu pouco depois de o partido expulsar o membro
finlandês, August Yokinen, que teria impedido comunistas negros de dançarem no Clube dos
Trabalhadores Finlandeses. 449 Este último episódio foi feito de exemplo e consolidou a
intolerância do CPUSA com o racismo. William Patterson assim noticiou o assunto em “The
Negro Worker”, já com a resolução do partido:
O julgamento público do camarada Yokinen, um membro do Clube dos
Trabalhadores Finlandeses da cidade de Nova York e também do Partido Comunista
dos EUA estabeleceu um precedente. O camarada Yokinen foi acusado de veicular
opiniões “contrárias ao programa do Partido Comunista e prejudicial aos interesses
da classe trabalhadora”. Ele foi acusado de “dar expressão às mentiras da
superioridade branca que têm se desenvolvido conscientemente por meio de
capitalistas e donos de escravos do sulistas”.450

A punição para Yokinen foi o desligamento do partido. O finlandês teve que se


submeter a um período probatório de engajamento na luta pelo fim do racismo e no cotidiano
da luta de classe para ser readmitido no partido. Ele terminou sendo deportado para seu país
de origem. Seu papel havia sido cumprido, já que
o julgamento de Yokinen, então, como a tese da nação do Cinturão Negro, foi
momentaneamente útil para o domínio das relações públicas, onde um Partido
Comunista stalinizado empurrou uma designação de menor denominador comum da
questão racial como central na luta de classes nos Estados Unidos.451

O caso Yokinen seria, portanto, uma prova do comprometimento dos comunistas em


relação aos negros. Mostravam-se dispostos a depurar seus próprios quadros em nome da
causa negra.

448
No final de março de 1931, um grupo de nove jovens negros foi acusado de estupro num trem de carga e de
passageiros que fazia o percurso Chattanooga–Memphis. Os jovens tiveram julgamentos velozes e tiveram suas
defesas prejudicadas pelo descaso da defensoria. Os três julgamentos inicias sentenciaram todos a pena de morte,
exceto o mais jovem, de 13 anos. Em 2013, o estado do Alabama concedeu indultos póstumos às vítimas. O caso
virou um símbolo da luta contra a segregação racial e foi utilizado larga e fartamente pelos comunistas e
militantes das causas negras.
449
GILMORE, 2008, p. 119.
450
PATTERSON, William. Race Hatred on trial. The Negro Worker, v. 1, n. 6, p. 21, jun. 1931. “The public
trial of Comrade Yokinen, a member of the Finnish Workers' Club of New York City and also of the Communist
Party of the U. S. A. has established a precedent. Comrade Yokinen was charged with entertaining views
‘contrary to the program of the Communist Party and detrimental to the interests of the working class’. He was
charged with ‘giving expression to the white superiority lies that have been developed consciously by the
capitalists and the southern slave owners’.”
451
PALMER, Bryan D. Race and Revolution: review article. Labour/Le Travail, Guelph, n. 54, p. 201, outono
2004. Resenha “Race and Revolution” dos livros “Spectres of 1919: Class & Nation in the Making of the New
Negro”, de Barbara Foley (Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 2003) e “Race & Revolution: A Lost
Chapter inAmerican Radicalism”, de Max Shachtman (Londres e New York: Verso, 2003). “The Yokinen trial,
then, like the Black Belt nation thesis, was momentarily useful in the realm of public relations, where a
Stalinized Communist Party pushed a lowest common denominator designation of the race question as pivotal in
the United States class struggle.”
180

Mais importante que o julgamento de Yokinen, porém, foi o caso Scottsboro.452 Este
virou o grande slogan dos comunistas por anos vindouros. A mobilização em torno da defesa
dos jovens de Scottsboro colocou a máquina do movimento comunista internacional para
funcionar com um propósito até então inédito. Nesse episódio, os diferentes organismos
auxiliares vinculados ao Partido e, dessa maneira, à Comintern, atuariam de maneira tão
harmoniosa como poucas vezes observada.
O caso, além de chamar a atenção da opinião pública internacionalmente, permitiu aos
comunistas construir um liame com intelectuais e forças antirrascistas. A seguinte passagem
trata da participação da escritora e ativista Louise Thompson Patterson453 na estruturação de
uma campanha pela soltura dos jovens.
Ela liderou o grupo [seção do Harlem da FSU] composto principalmente por
escritores do Harlem e intelectuais, incluindo Theodore Bassett, que aderiu ao
CPUSA em 1932 e se tornou um dos principais organizadores afro-americanos no
Harlem, e os escritores do Amsterdam News Henry Lee Moon e Theodore Poston. O
FSU do Harlem foi um desenvolvimento significativo porque proveu um espaço
para intelectuais negros curiosos em discutir a União Soviética, Marxismo e
Scottsboro. O grupo também permitiu uma ponte entre os intelectuais do Harlem e
radicais brancos do centro da cidade.454

A campanha pela soltura dos jovens de Scottsboro e de denúncia ao racismo e


segregação racial englobou diferentes organismos vinculados aos comunistas nos Estados
Unidos. Um deles foi a International Labor Defense (ILD).
A International Labor Defense455 foi uma organização de frente criada pelo comunista
James P. Cannon em 1925. Um dos braços do Socorro Vermelho Internacional,456 a ILD se
consolidou a partir do mapeamento de presos políticos (sindicalistas, anarquistas e socialistas)
espalhados pelos Estados Unidos e posterior oferecimento de serviços de advocacia e outros
auxílios de proteção aos militantes do mundo do trabalho por dentro do sistema legal. De
acordo com Susan Campbell,
O propósito da ILD era defender todas as “vítimas da classe dominante
independentemente de sua cor, credo, nacionalidade ou crença política”. Embora

452
Para mais detalhes sobre a curiosa história de como os comunistas chegaram ao caso Scottsboro, ver Gilmore,
2008, p. 118-119.
453
Cf. “Louis Thompson Patterson”. WINTZ, Cary D.; FINKELMAN, Paul. Encyclopedia of Harlem
Renaissance. Nova York: Routledge, 2012. v. 2.
454
MCDUFFIE, Erik S. Long Journeys: Four Black Women and the Communist Party, USA, 1930-1956. Tese
(Doutorado)–New York University, New York, 2003. p. 92-3. “She headed the group comprised mainly of
Harlem writers and intellectuals, including Theodore Bassett, who joined the CPUSA in 1932 and became one of
its most effective African American organizers in Harlem; and Amsterdam News writers, Henry Lee Moon and
Theodore Poston. The Harlem FSU was a significant development because it provided a space for curious black
intellectuals to discuss the Soviet Union, Marxism, and Scottsboro. The group also provided a bridge between
Harlem intellectuals and downtown white radicals.”
455
Ver “The International Labor Defense & Mass Defence” (UHLMANN, 2007, p. 95-176).
456
PALMER, Bryan D. James P. Cannon and the origins of the American Revolutionary Left, 1890-1928.
Urbana-Champaign: University of Illinois Press, 2007. p. 263. (Kindle Edition, position 6171).
181

alguns possam culpá-la pela inconsistência em buscar justiça ante as mesmas cortes
que ela denunciava como ferramentas de opressão de classe, o secretário nacional da
ILD, advogado afro-americano comunista William L. Patterson, explicou que o
trabalho da ILD ajudava a “destruir as ilusões da democracia e da justiça acima das
classes... expunha seu caráter de classe” enquanto fornecia ao acusado a melhor
defesa legal possível. Apesar de em 1929 pouquíssimas pessoas das 300 que foram
defendidas pela ILD serem negras, isso estava prestes a mudar. A organização
conduziu campanhas informativas e comícios contra linchamentos, trabalhou pelos
manifestantes desempregados que foram presos e defendeu o “Atlanta Six”, um
grupo de organizadores sindicais composto por dois afro e quatro euro-americanos
(dentre eles, duas mulheres) acusados de incitar insurreição.457

A escolha do nome foi uma tentativa deliberada de seu idealizador, James P. Cannon,
de retirar o marcador comunista de maneira a atingir um maior número de seguidores. O
Socorro Vermelho, organização que centralizou as atividades da ILD, explicitava a filiação
comunista ao contrário da International Labor Defense.
O envolvimento orgânico da ILD com as pautas negras ocorreu a partir de 1929.
Ainda que a ILD tenha atuado em defesa de trabalhadores e sindicalistas negros, a pauta racial
adentraria a organização a partir do VI Congresso da IC.
Como braço do Socorro Vermelho, a ILD foi responsável por disseminar as atividades
relativas ao caso Scottsboro. Em 1932, William L. Patterson se tornaria o primeiro (e único)
afro-americano a dirigir a seção do Socorro Vermelho nos Estados Unidos. Em casos
específicos, como na cidade de Memphis, a capacidade aglutinadora adquirira tamanha
expressão que alguns militantes da NAACP atenderam ao chamado por “uma frente única da
NAACP, ILD e LSNR contra a brutalidade policial”.458
A prevalência da ILD na indicação dos nomes dos defensores dos jovens de
Scottsboro e a consequente amplificação do protagonismo da organização na formulação da
estratégia de defesa deu aos comunistas e frentistas de esquerda uma dianteira moral nas
comunidades negras em comparação a outras organizações negras, como a NAACP.
Exatamente por esse motivo a direção jurídica e política do caso Scottsboro foi um dos
pontos de dissenso entre essas organizações. Consolidado o campo político ancorado em
457
“The purpose of the ILD was to defend all ‘victims of ruling class terror regardless of their color, creed,
nationality, or political belief.’ Although some might fault it for inconsistency in seeking justice before the same
courts that it denounced as tools of class oppression, the ILD's National Secretary, African-American
Communist lawyer William L. Patterson (1891-1980), explained that the ILD's work helped ‘destroy the
illusions of a democracy and justice above classes...expose their class character’ while providing the accused
with the best possible legal defense. Although in 1929 only a very few of the 300 people whose cases were taken
up by the ILD were Black, this was about to change. It conducted information campaigns and rallies against
lynching, worked on behalf of arrested unemployed demonstrators, and defended the ‘Atlanta Six’, a group of
two Afro-and four Euro-American union organizers (two of them women) charged with inciting insurrection.”
CAMPBELL, 1994b, parágrafo 86.
458
BROWN-MELON, Gloria apud BASS, John Lawrence. Bolsheviks on the bluff: a history of Memphis
Communists and their Labor and Civil Rights contributions 1930-1957. 2009. Tese (Doutorado História)–
Universidade de Memphis, Memphis, 2009. p. 102. “a united front of the NAACP, ILD and LSNR against police
brutality”.
182

marcadores raciais, as direções da NAACP e LSNR/ILD digladiaram-se em torno do caso. A


NAACP, inicialmente defensora legal dos jovens, terminou, por hesitação, cedendo controle
do caso ainda em 1931.459
No entanto, o ponto central na atuação da ILD, e em específico quando estivera sob a
direção de William Patterson, foi a tentativa de expandir a problemática racial para além dos
limites do chamado “cinturão negro” no Sul e dos limites raciais da descendência afro.460
A ILD foi responsável pelo contato e coordenação entre diferentes organizações
auxiliares do movimento comunista internacional. A International Worker’s Relief,461 por
exemplo, foi responsável por construir um amplo arco de apoio aos jovens de Scottsboro e a
toda campanha desenhada pelos comunistas alemães a partir do Comitê de Resgaste das
Vítimas de Scottsboro, em aliança, inclusive, com grupos do Partido Social-Democrata
Alemão (SPD). Esse esforço de divulgação da campanha teve como alvo os inúmeros
viajantes que passavam por Berlim àquela altura, além de servidores públicos, advogados,
intelectuais da academia que envolveram parte progressista da sociedade alemã.462
Para além das disputas geopolíticas que fizeram do caso Scottsboro um caso
específico de guerra ideológica, a solidariedade negra internacional, enquanto temática e
ressignificada em moldes alternativos ao garveísmo, galvanizou as palavras de ordem dos
comunistas a respeito do colonialismo e do imperialismo.
O prosseguimento da campanha, capitaneada pela ILD, redundou num fracasso
relativo já que a mudança na correlação de forças políticas – a ascensão do nazismo na
Alemanha – alterara as capacidades organizativas dos comunistas e frentistas. Isso não só
abateu as organizações como também os sujeitos por ela influenciados. Até 1937, alguns dos
acusados no caso Scottsboro já haviam sido soltos, mas o caso explicitaria a questão racial
como calcanhar de aquiles da democracia ocidental para anos de Guerra Fria, inclusive.
A participação da ILD na construção de pontes com diferentes grupos sociais não
poderia prescindir de estratégias de transferência de divisas e de vínculos com contornos
políticos relativamente maleáveis, como exigiria uma política de frente. A organização que

459
VERNEY, Kevern; SARTAIN, Lee (Ed.). Long is the way and hard: one hundred years of the NAACP.
Fayetteville: University of Arkansas Press, 2009. p. 238. Para outra versão, ver: MILLER; PENNYBACKER;
ROSENHAFT, 2001, p. 390-391.
460
Jennifer Uhlmann sustenta que, em pelo menos duas ocasiões, Patterson se sensibilizaria com a situação de
trabalhadores mexicanos em Detroit e em Brighton, Colorado. UHLMANN, 2007, p. 204. William Patterson
fazia parte do mesmo grupo de militantes adeptos do internacionalismo negro como agenda para o movimento.
WEISS, 2013, p. 278.
461
Internationale Arbeiter-Hilfe (IAH).
462
MILLER, 1999, p. 417.
183

proveu isso à ILD e às outras iniciativas dos comunistas estadunidenses foi a Friends of
Soviet Union (FSU).
A Friends of Soviet Union463 aparece como uma organização onipresente e invisível.
Suas atividades estiveram circunscritas a diferentes esferas ao longo de sua existência. Não há
estudos específicos sobre ela, mas está evidente que essa organização foi responsável pela
tramitação de recursos e patrocínio de atividades de propaganda e agitação entre meados da
década de 1920 e meados da década de 1930 nos Estados Unidos. Seu modelo organizativo
teria longa vida, baseado na ideia de amizade entre os povos e, precisamente por isso, a
organização não era sediada em Moscou e oficialmente não possuía uma única sede. No
entanto, na prática a Friends of the Soviet Union dividia o mesmo escritório que a Liga Anti-
Imperialista na Alemanha.464
A atuação da FSU se desdobrava em duas atividades. Um primeiro exemplo de como a
FSU agia a respeito das atividades é o seguinte:
Kon serviu como chefe da Friends of Soviet Union (FSU) em Montreal até que a
Segunda Guerra Mundial começou, escrevendo incontáveis cartas para os editores
dos jornais locais e organizando eventos. [...] Em 1935, ele organizou uma exibição
de arte soviética patrocinada pelo Friends of Soviet Union em Montreal, reclamou
que era “objetivo das autoridades da cidade [de Montreal] prevenir que os
trabalhadores franco-canadenses aprendessem a verdade sobre a Rússia
Soviética”.465

Havia ênfase no patrocínio de atividades culturais por parte da FSU. A formação de


opinião, a veiculação de notícias sobre a URSS e o intercâmbio no campo das artes
constituíam objetos de especial interesse por parte da FSU. Isso obedecia aos princípios gerais
do idealizador das organizações de frente, Willi Münzenberg, quem, a certa altura, reclamou
insistentemente que os partidos comunistas não compreendiam a importância de organizações
não partidárias na conquista daqueles que ainda não haviam despertado para a luta de classes.

463
suriname and friends of soviet russia 025.jpg. Murphy Collection Records on International Communism,
compiled 1958-1958, documenting the period 1917-1958. HMS Entry Number(s): A1 18. Record Group 263:
Records of the Central Intelligence Agency, 1894-2002. National Archives at College Park. ARC Identifier:
7402621.
464
PETERSSON, 2013, p. 216.
465
ANDERSON, Jennifer. Propaganda and Persuasion in the Cold War: The Canadian Soviet Friendship
Society, 1949-1960. 2008. Tese (Doutorado em História). Carleton University, Ottawa, 2008. p. 17-18. “Kon
served as head of the Montreal-based Friends of the Soviet Union (FSU) until the Second World War broke out,
writing countless letters to the editors of local newspapers and organizing events. [...] In 1935, he organized a
Soviet art exhibition sponsored by the FSU in Montreal, complained that it was ‘the object of the [Montreal] city
authorities to prevent the French Canadian workers from learning the truth about Soviet Russia’.” Louis Kon
trabalhou em 1910 na construção da Grand Trunk Pacific (ferrovia transcontinental que ligava a cidade de
Winnipeg, no meio do país, ao Oeste, até a Colúmbia Britânica), agindo como interlocutor com o governo russo
no sentido de angariar trabalhadores para a construção da linha. Ao que parece, Kon estendeu as ligações que
mantinha com a Rússia Czarista para o regime bolchevique. BLACK, Joseph Laurence. Canada in the Soviet
Mirror: Ideology and Perception in Soviet Foreign Affairs, 1917-1991. Montreal: McGill University-Queens
Press, 1998. p. 18-19.
184

Queixou-se também que os dirigentes comunistas, em geral, não entendiam as capacidades


que só organizações não partidárias possuíam para construir pontes com sujeitos não
partidários mas simpáticos à causa comunista. Para Münzenberg, já ciente da política de
classe contra classe do novo período, as organizações chamadas por ele de não partidárias
contrabalançavam a influência social-democrata ao mesmo tempo que permitiam o
recrutamento de novos militantes. Entretanto, ele também reconhecia que organizações como
a Friends of Soviet Union se tornariam fontes de oportunismo político caso não houvesse um
entendimento claro dos seus significados para os partidos comunistas.466 Por isso, dedicou-se
intensamente às organizações de frente. A despeito de ter sido o principal artífice da LAI,
abdicou de participar intensamente da reorganização da entidade. Münzenberg preferiu focar
na FSU e na Mezhrabpomfilm, a indústria cinematográfica dos comunistas.467
A ocorrência de um grande número de organizações de frente (ou não partidárias)
criou situações em que elas disputavam prevalência diante das seções nacionais dos Partidos
Comunistas. O exemplo destacado por Fredrik Petersson, a Liga Anti-Imperialista, demonstra
a dificuldade que os comunistas tiveram em conciliar as diferentes agendas das organizações.
A LAI, tanto na França como na Inglaterra, importante antagonista do colonialismo, teve
acrescidas ao rol de obstáculos alheios aos comunistas, dificuldades organizativas em razão
da atuação de outros grupos não partidários tais como a Friends of Soviet Union na Inglaterra
e a Ligue pour la Défense de la Race Nègre (LDRN) na França. O cul-de-sac significou, para
os comunistas da Comintern, que era imperativo resolver o problema o qual colocava em
dificuldade a organização de frente responsável pelo combate ao imperialismo. A saída foi
tornar mandatória a participação coletiva em todas as organizações de frente, no caso do PCF,
e aplicar tática de “frente por baixo”, no caso do Partido Comunista da Grã-Bretanha (CPGB),
focando nas associações de universitários, como foi o caso dos indianos e dos caribenhos nas
universidades em Oxford, Cambridge e Edimburgo, entre outras. Além disso, no caso da
Inglaterra, os comunistas do partido assumiriam a responsabilidade de ajudar a organizar
cursos a respeito de temas como imperialismo e marxismo.468
Pouco mais de um ano depois, num novo esforço de bolchevização dos partidos dos
países da Europa Ocidental, o bureau da região recrudesceria a supervisão sob as

466
PETERSSON, 2013, p. 236-7. O debate ocorreu no VI Congresso da Comintern, em 1928, a propósito da
discussão do relatório congressual apresentado por Nikolai Bukharin, então dirigente máximo da IC, quando
Münzenberg ponderou a falta de comprometimento com as organizações não partidárias. O contra-argumento
majoritário a Münzenberg, segundo Jane Degras, era o de que o excesso de organizações de frente
sobrecarregava partidos pequenos. DEGRAS, 1959, p. 465.
467
RGASPI, F. 495, op. 4, d. 15, fols. 1-5, 1 mar. 1930.
468
PETERSSON, 2013, p. 372.
185

organizações auxiliares e não partidárias ao passo em que recolocaria na pauta a defesa da


União Soviética contra o perigo de guerra.469 Entre o fim de 1932 e início de 1933, as
organizações auxiliares estavam no centro de uma nova depuração da Comintern: as diretrizes
partidárias, aparentemente, não estavam sendo seguidas e a IC enviaria especialistas para
averiguar e inspecionar as atividades dos organismos frentistas.470
A conclusão de Fredrik Petersson é que a LAI e as outras organizações tiveram uma
dinâmica de atividade interacionista entre si. Dentre os resultados dessa relação, estão:
a participação obrigatória de delegados de outras organizações simpatizantes nos
congressos e conferências organizados pelos comunistas, a publicação e distribuição
do material político, o intercâmbio de pessoal, a assistência financeira e o trabalho
de preparação conjunta para organizar manifestações públicas. Além disso, a
organização simpatizante era uma instituição de dentro do movimento comunista
onde indivíduos dividiriam inspirações e experiências, mas também foi uma arena
representativa de uma instituição tanto includente quanto excludente para seus
membros.471

Os propósitos da Friends of Soviet Union eram “estar pronto[s] para tomar defesa
incondicional do primeiro estado dos operários e camponeses contra todo ataque
imperialista”472 e “decidir sobre medidas práticas para defender a Revolução contra os ataques
inevitáveis do mundo do capitalismo”.473 Uma das medidas da Friends of Soviet Union da
Austrália, por exemplo, foi organizar viagens de delegados australianos para a União
Soviética para que eles pudessem:
Se familiarizar com “a verdade”, sem dúvida dirigida aos delegados para que
retornem como propagadores do socialismo e da propaganda soviética. Direito do
trabalhador, condições e progresso na Rússia foram contrastados com a ofensiva
capitalista e a Depressão que afligia a Austrália. Por meio de tais comparações, foi
planejado gerar indignação proletária relativa aos planos imperialistas de invadir a
Rússia Soviética, dessa maneira aumentando uma barreira insuperável baseada na
opinião pública pela intervenção militar real.474

469
Ibidem, p. 403.
470
Ibidem, p. 481.
471
Ibidem, p. 513. “the mandatory attendance of delegates from other sympathising organisations at congresses
and conferences organised by a communist organisation, the publication and distribution of political material, the
interchange of personnel, financial assistance and joint preparatory work to organise public demonstrations.
Furthermore, the sympathising organisation was an institution within the communist movement where
individuals could share inspiration and experiences, but it was also an arena representing either an inclusive or
exclusive institution for its members.”
472
Anexo n. 15 do memorando intitulado “Agencies for Soviet Propaganda in Countries Outside of Russia”.
Murphy Collection. National Archives, Estados Unidos, 021.jpg, 12 abr. 1933, p. 1. “are ready to take up the
unconditional defense of the first workers' and peasants' state against all imperialist attack”.
473
BOZINOVSKI, Robert. The Communist Party of Australia and Proletarian Internationalism, 1928-
1945. 2008. Tese (Doutorado)–School of Social Sciences, Faculty of Arts, Education and Human Development,
Victoria University, Melbourne, 2008. p. 49. “Decide upon practical measures to defend the Revolution against
the inevitable attacks of world capitalism.”
474
BOZINOVSKI, 2008, p. 118. “Acquaint themselves with ‘the truth,’ doubtlessly intended for delegates to
return as purveyors of socialism and Soviet propaganda. Worker’s rights, conditions and progress in Russia were
contrasted with the capitalist offensive and Depression afflicting Australia. Through such comparisons, it was
intended to generate proletarian indignation at imperialist plans to invade Soviet Russia thereby raising an
insuperable barrier founded on public opinion to actual military intervention.”
186

A FSU desempenhou o mesmo papel no caso da Dinamarca onde, no seu auge,


manteve entre 3 mil e 4 mil membros em suas hostes.475
Um relatório da inteligência estadunidense em Riga, datado de 12 de abril de 1933,
estabelece um panorama relativamente completo da organização. O objetivo expresso da FSU
é exposto como sendo uma “aproximação das massas proletárias e da inteligência
trabalhadora dos países capitalistas para com a União Soviética e a luta ativa pela defesa da
URSS contra a intervenção”.476 Além disso, o relatório descreve as atividades da FSU nos
Estados Unidos. Primeiramente é enfatizado o grande trabalho feito pelos membros da
organização em angariar fundos, para em seguida criticar o reduzido tamanho da FSU nos
Estados Unidos inviabilizando a formação de uma grande frente única.477
A aproximação entre intelectuais em relação à agenda soviética estava no centro das
preocupações da FSU. Tome-se como exemplo as organizações da Friends of Soviet Union
em países diversos. Na Dinamarca, a despeito do fracasso em construir pontes institucionais
com a Social Democracia em meados de 1930, foi possível estabelecer contato com
intelectuais afinados à esquerda. Via Sovjetunionens Venner (Amigos da União Soviética),
estabeleceu-se:
uma ampla organização de intelectuais, Luta Cultural Liberal (Frisindet
Kulturkamp), que foi muito ativa entre 1934 e 39. Entre seus líderes estavam
proeminentes intelectuais social-democratas, embora eles tenham participado sem
permissão e sob protesto da liderança do Partido Social Democrata. A organização
publicou um jornal excelentemente editado, “Kulturkampen” (“A Luta Cultural”)
que teve uma tiragem de aproximadamente 2.000 exemplares.478

No Canadá, em diferentes espaços sociais o espírito frentista retornaria com força


significativa em meados de 1930. Com relação ao mundo do trabalho, o perfil do PC
canadense se alteraria na medida em que a atuação virava na direção dos desempregados e na
construção da FSU e da League Against War and Fascism. Em todo o país, os “comunistas
utilizaram ‘métodos sociais’ de trabalho como uma ponte para aprofundar seu envolvimento

475
THING, Morten. The Communist Party of Denmark and Comintern 1919-1943. 1990. p. 7. Disponível
em: <http://rudar.ruc.dk/bitstream/1800/1073/1/The_communist_party.pdf>. Acesso em: 31 out. 2014.
476
Anexo n. 15 do memorando intitulado “Agencies for Soviet Propaganda in Countries Outside of Russia”.
Murphy Collection. National Archives, Estados Unidos, 021.jpg, 12 abr. 1933, p. 3. “Rapprochement of the
proletarian masses and the toiling intelligentsia of the capitalist countries to the Soviet Union and the active
struggle for the defense of the USSR from intervention.”
477
Ibidem, p. 8.
478
“a broad organisation of intellectuals, Liberal Cultural Struggle (Frisindet Kulturkamp), which was very
active between 1934 and 39. Among the leaders were prominent Social Democratic intellectuals, although they
participated without permission and under protest from the Social Democratic Party's leadership. The
organisation published an excellently edited paper, Kulturkampen (The Cultural Struggle), which had a
circulation figure of approx. 2,000.” THING, 1990, p. 7.
187

político e sindical. Iniciativas no âmbito da educação, conversas, bazares literários, danças e


sociais contribuíram para uma modesta reconstrução do partido”.479
Já no início da década de 1930, o espírito era “de admiração tanto dos avanços sociais
como culturais ocorridos na URSS, e a situação política que permitiu tais avanços.”
Inicialmente fruto de curiosidade sobre o salto social soviético, a FSU organizou ao longo
dessa década atividades com os viajantes que voltavam da URSS ou mesmo aqueles que eram
capazes de discorrer acerca de Maksim Gorky e da “nova democracia” soviética.480
Em junho de 1935, os reclames de Münzenberg acerca da necessidade de converter
não conversos chegava ao Canadá quando se passou a admitir, e mesmo a se declarar
necessário, adequar o tom no diálogo com intelectuais e liberais.481
Ao lidar com delegados e observadores de organizações de fora [do movimento
comunista], é necessário usar uma técnica um pouco diferente de quando lida-se
com organizações regulares de dentro. No limite, precisamos ter em mente que
quando fazemos contato com um grande número de pessoas que estão fora da
esquerda ou do movimento socialista revolucionário ou até mesmo suavemente
socialista, essas pessoas saberão bem menos sobre a URSS e serão mais ou menos
uma classe de jardim de infância. Quando nós conversamos com delegados
regulares que têm ido a esses encontros por anos a fio, nós podemos usar uma
técnica revolucionária, e termos um encontro normal do tipo fogo do inferno, mas
esse tipo de coisa não é própria para delegados de outras organizações, que estão
gradualmente se tornando interessados e simpáticos na direção dos
desenvolvimentos da URSS.482
Já na década de 1940, na Índia, Jyoti Basu foi secretário da FSU e da Anti-Fascist
Writers and Artists Association.483 Ambas as organizações estabeleceram-se no mesmo lugar,
em Calcutá. Frutos do espírito frentista, intelectuais de variadas plêiades aderiram à
organização para combater o nazifascismo.
Nos Estados Unidos as atividades da FSU não fugiam da perspectiva dupla de: 1)
financiar atividades culturais; e 2) estabelecer vínculos entre a classe trabalhadora e a
intelectualidade, ambas com o fito de defender ideologicamente a URSS. O vínculo entre

479
“As was happening across the country, communists used ‘social methods’ of work as a bridge to deeper
political and trade union involvement. Educationals (the WEC [Worker’s Educational Club] was resurrected),
talks, literature sales, dances, and socials all contributed to a modest re-building of the party.” MANLEY, John.
Preaching the Red Stuff: J.B. McLachlan, Communism, and the Cape Breton Miners, 1922-1935. Labour/Le
Travail, Toronto, v. 30, p. 101-2, outono 1992.
480
ANDERSON, 2008, p. 20.
481
Ibidem, p. 20.
482
WHITE, J. F. apud ANDERSON, 2008, p. 21. “[I]n dealing with delegates and observers from these outside
organizations, it is necessary to use a slightly different technique than in dealing with the regular inside ones.
After all, we have to realize that as we make contact with larger numbers of people who have been outside the
left-wing or revolutionary or even mildly socialist movement, that these people will know very much less about
the U.S.S.R., and will be more or less in the kindergarten class. When we are talking to regular delegates who
have been going to these meetings for years, we can use revolutionary technique, and have a regular sort of hell-
fire meeting, but that sort of thing is not proper for delegates from the other organizations, who are gradually
becoming interested and sympathetic towards the developments in the U.S.S.R.”
483
BASU, Jyoti. Memoirs, a political autobiography. Bengala: National Book Agency, 1999. p. 17.
188

FSU e os organismos de propaganda do CPUSA eram nítidos. Há casos de militantes que se


envolveram na organização das atividades culturais da FSU, partiam rapidamente para o
“Daily Worker”, jornal oficial do partido, e terminavam indo para Escola Leninista
Internacional.484
As Frentes Populares surgiram, como agenda programática da Comintern, em 1935,
no VII Congresso da IC. O argumento até aqui defendido é que, sob alguns aspectos, as
Frentes Populares já estavam sendo formadas, sobretudo em iniciativas de combate ao
racismo e ao imperialismo.
Nos Estados Unidos, o caso da League of Struggle for Negro Rights (LSNR) foi
especialmente marcante já que passaria a compor uma agenda que incluía brancos contrários
ao regime de segregação racial, marcando decisivamente a posição dos comunistas em favor
da integração racial. A LSNR se posicionaria em favor de pequenos agricultores e
arrendatários, negros e brancos, em sua agenda para o campo. No auge de sua atuação no
início da Frente Popular, a LSNR teria um papel relevante na luta por empregos e assistência
em que pese o fato de nunca ter se descolado do partido.485
Em relação à política de Frente Popular, o primeiro problema enfrentado pelo partido
foi a posição diante do New Deal. A vigência do Terceiro Período demarcou a posição
política dos comunistas diante do plano de recuperação Roosevelt. Ao que parece, porém, o
governo Roosevelt “habilmente manteve os sulistas segregacionistas sob vigilância enquanto
abordava os negros”. 486 Com apoio de organizações como National Association for
Advancement of Colored People (NAACP) e Federal Council of Churches, de George E.
Haynes, foi criado o Joint Committee on National Recovery sob a tutela de John P. Davis.
Este, por sua vez, dirigiu-se no rumo da política de Frente Popular desenhada pelo CPUSA,
cuja pauta fundamental para a questão negra era a unificação racial entre negros e brancos.

484
BROWN, 1996, p. 101. Pode-se ainda perceber a imbricação dessas organizações a partir da trajetória de Ella
Reeve Bloor: “Bloor, a short time after her return from the RILU in 1921, moved to California as the CP's
District Organizer for the California, Arizona, Nevada, Oregon, and Washington district. As District Organizer
she worked to build the RILU-supported TUEL, to ensure the growth and development of established unions,
and to recruit Party members through front organizations such as the Friends of Soviet Russia, the TUEL, and
the ILD. She also organized for the Friends of Soviet Russia, the American Labor Alliance (ALA) which was the
newly created legal Party apparatus, and the Workers (Communist) Party (CP) which in December of 1921
replaced the ALA.7" Interspersed with her work on the West coast were trips east for National Conventions of
the CP, including the Bridgman Conference, for TUEL organizing work among miners and textile workers, and
for ILD organizing. Whether organizing for the TUEL or the ILD, or recruiting for the Party itself, Bloor's focus
and tactics were almost exclusively on building front organizations through which American workers could be
educated, recruited and trained for the Party.” (p. 287-8).
485
SOLOMON, 1998, p. 190-1.
486
“deftly kept the southern segregationists under his tent while making overtures to blacks”. SOLOMON, 1998,
p. 235.
189

Solomon defende que ainda havia uma ênfase na organização da classe trabalhadora e uma
tentativa de coalescer as organizações negras em torno de questões trabalhistas e sindicais.487
No final de 1933, fruto dos arranjos que permitiriam certa hesitação dos comunistas
em combater o New Deal, um outro evento da maior grandeza teria lugar. O crescimento da
violência de brancos dirigida aos negros sob a forma de linchamentos fez com que a pressão
exercida pelas frentes negras obtivessem suas primeiras vitórias nos marcos legais pela
conquista dos direitos civis. Nos últimos dias de 1933 foi encaminhada uma proposta, por
dois senadores, para que o linchamento fosse enquadrado como crime federal. Quando
finalmente a lei seria aprovada, em 1935, os comunistas se posicionaram contrariamente,
acusando o governo de implantar uma justiça burguesa.488
O desencontro dos comunistas com as comunidades negras que em parte explicaria a
ausência e o silêncio da esquerda durante as mobilizações pró-Direitos Civis após a Segunda
Guerra Mundial começava ali. A capacidade de mobilização e propaganda ainda se
constituíam como habilidades importantes para os comunistas. O caso Scottsboro transbordou
para a militância comunista em todo o globo em razão dessa capacidade, materializada pela
International Labour Defense.489
Em fevereiro de 1936, quando o National Negro Congress (NNC) foi fundado em
Chicago, os comunistas foram advertidos a não tentar tomar a organização. A tática da Frente
Popular, conquanto tenha inspirado as outras organizações negras de viés comunista, tinha no
NNC sua expressão ideal. Para Glenda Gilmore, “o sucesso do NNC veio da mistura de
táticas de protestos diretos, alianças de Frente Popular, representação da classe operária e
urgência”.490 O episódio da Guerra Ítalo-Etíope, com o qual a URSS teve um envolvimento
obscuro, e os acordos diplomáticos com França e Inglaterra não tiveram um impacto tão forte
na militância frentista quanto o Pacto de Não Agressão Názi-Soviético, firmado em agosto de
1939. A confusão política tornou as diretrizes do NNC igualmente obscuras: negavam Hitler,
afirmavam não poder lutar com a Inglaterra por causa das possessões coloniais e viam o Sul
dos Estados Unidos como uma Alemanha nazista.491

487
Ibidem, p. 236.
488
Ibidem, p. 239. Os comunistas acusaram a legislação aprovada de omitir a pena de morte para linchadores, a
manutenção de certos tipos de linchamento legais e ainda “expressing the feat that its definition of a mob (‘three
or more persons acting in concert... to kill or injure’) could be used against the left”.
489
Houve disputas em torno do capital político resultante das ações do caso Scottsboro. Um dos cenários de
disputa se deu, precisamente, entre a International Labor Defense e Samuel Leibowitz, o advogado de defesa dos
acusados. SOLOMON, 1998, p. 240-249.
490
GILMORE, 2008, p. 309.
491
GILMORE, 2008, p. 311.
190

O destino de alguns dos mais proeminentes dirigentes negros do movimento


comunista internacional foi a expulsão de seus respectivos partidos ou desalojamento de
espaços de protagonismo. Esse processo se deu até o final da década de 1940.
Otto Huiswoud, por exemplo, não obtivera permissão para voltar aos Estados Unidos
depois da guerra. A partir de então, ele se tornaria um radicado em Amsterdã e, conquanto
não se distanciasse do comunismo como horizonte,492 estava alijado de participação efetiva da
agenda comunista para as questões raciais. Richard Moore e Cyril Briggs foram expulsos do
CPUSA em 1942 por “desvios de nacionalismo negro”. Harry Haywood lutou na Guerra Civil
Espanhola em 1936. Depois de 1937, quando voltou da Espanha, foi acusado de ter
abandonado seu batalhão e voltado antes da hora. Em razão da desmoralização que tal
acusação impunha a Haywood, qualquer cargo de liderança estava fora de questão. De acordo
com ele, “apenas anos depois fui capaz de ver como esse ataque a um quadro negro foi parte
de um impulso geral na liderança do partido para liquidar a questão nacional e o nosso papel
de liderança na luta”. 493 Juntou-se, em 1943, à National Maritime Union, sindicato dos
marinheiros da Marinha Mercante. 494 Padmore, aparentemente, manteve ligações com a
oposição comunista ligada a Jay Lovestone, histórico combatente contra a tese do cinturão
negro. Em 1938, publicou artigos na revista do grupo e publicaria mais tarde, em 1956, o
influente texto “Pan-Africanism or Communism: The Coming Struggle for Africa”.495
James Ford permaneceria como uma das importantes referências partidárias sobre a
questão negra. Em 1941, escrevendo para o “Communist” em texto entitulado “The Negro
People and the new world situation following june 22”, Ford reafirmaria a afinidade natural
da URSS com os povos oprimidos pelo imperialismo. Ford sustentava que
Toda forma de discriminação foi abolida. A punição foi dispensada para qualquer
um que praticasse desprezo ou maldade na direção de nacionalidades ou raças. Uma
luta implacável foi travada contra ‘teorias de inferioridade ou superioridade das
raças. A ‘Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia’, assinada por Lênin e Stalin,
foi promulgada como uma lei básica em 1917. Ela aboliu todos os privilégios ou
restrições baseadas na posição das nacionalidades e proclamou o direito de todas as
nacionalidades que habitavam no território da Rússia ao desenvolvimento
desimpedido. O caminho estava completamente aberto para o desenvolvimento
cultural de muitas nacionalidades na União Soviética.496

492
Ao menos esta é a hipótese de Susan Campbell. Para ela, aparecer no Segundo Congresso Internacional de
Trabalhadores Negros, em 1959, quase 30 anos depois do primeiro, é uma prova de que “Huiswoud nunca
rompeu com o movimento comunista internacional” (“Huiswoud never fell out with the international Communist
movement”. CAMPBELL, 1994b, parágrafo 184).
493
“Only years later was I able to see how this attack on a leading Black cadre was part of the overall thrust in
the leadership of the party to liquidate the national question and our leading role in the struggle.” (HALL, 2012,
posição 3839)
494
Ibidem, posição 3876.
495
CAMPBELL, 1994.
496
Tamiment Library 2 597.jpg. Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor Archives, James W. Ford
Papers and Photographs, TAM. 588, caixa 1, pasta Biographical Clippings. Rascunho (com notas a lápis do
191

Ford antecipava o teor que assumiriam as divergências entre União Soviética e


Estados Unidos a respeito da política racial deste último país.
Todos os cultos reacionários e “teorias” que presumivelmente justificavam a
superioridade de uma raça sobre a outra têm sido completamente refutados e
arrancados da União Soviética, onde uma nova confiança mútua e relações fraternas
entre pessoas são a regra. As políticas da União Soviética se destacam em agudo
contraste com relação às políticas raciais brutais da Alemanha fascista.497

Num ajuste de contas tardio com a tese da autodeterminação, Ford retornou ao


argumento que postulava a parte negra na tessitura nacional estadunidense, lembrando
silenciosamente John Reed. Debatia também com setores das comunidades negras e
organizações que viam a II Guerra Mundial como um assunto de brancos. Para ele, a
“independência e existência nacional dos Estados Unidos estavam em risco”. Ford acreditava
haver um esforço deliberado em excluir o povo negro do “próprio conceito de nação”.
Considerava que, apesar disso, os negros “se vêem como uma parte da nação americana e não
se renderão a ninguém em sua determinação em defendê-la”.498
A pergunta que, nesse artigo, Ford se impunha era a contradição evidente: por que um
povo oprimido lutaria pela mesma nação que o oprime? Para responder à questão, Ford
descartava todo o esforço feito pelos comunistas no sentido de justificar a autodeterminação.
Para ele,
a luta por direitos para os negros deve ser conduzida por dentro da moldura da
Unidade Nacional. Separar esses processos mutuamente conectados ou conduzir a
luta por direitos para os negros em uma maneira que dificulte a Unidade nacional
colocaria em perigo a tarefa central de defesa da nação e dos interesses especiais do
povo negro. (destaques do original)499

autor) do artigo “The Negro People and the New World Situation Following June 22”, de James Ford, publicado
em “Communist”, em agosto de 1941. “Every form of discrimination against races was abolished. Punishment
was meted out to anyone practicing contempt and meanness toward nations or races. A merciless struggle was
waged against 'theories of inferiority or superiority of races. The 'Declaration of the Rights of Peoples of Russia',
signed by Lenin and Stalin, was promulgated as a basic law in 1917. It abolished all privileges or restrictions
based on the position of nationalities, and proclaimed the right of all nationalities inhabiting the territory of
Russia to unhampered development. Full play was opened up for the cultural development of the many
nationalities in the Soviet Union.” (p. 3).
497
Tamiment Library 2 597.jpg. Ibidem, p. 3. “All reactionary cults and ‘theories’ presuming to justify
superiority of one race over another have been utterly disproved and uprooted in the Soviet Union, where new
mutual trust and fraternal relations between people are the rule. The policies of the Soviet Union stand out in
sharp contrast to the brutal racial policies of fascist Germany.”
498
Tamiment Library 2 608.jpg. Tamiment Library and Robert F. Wagner Labor Archives, James W. Ford
Papers and Photographs, TAM. 588, caixa 1, pasta Biographical Clippings. Rascunho (com notas a lápis do
autor) do artigo “Some problems of the Negro people in the national front to destroy Hitler and fascism”, de
James Ford, publicado em “Communist”, em outubro de 1941. “Some problems of the Negro people in the
national front to destroy Hitler and Hitlerism”. “Independence and national existence of the United States are
endangered.” “Despite all efforts of enemies of the American people to exclude the Negro people from the very
concept of the nation, the Negro people rightfully regard themselves as a part of the American nation and will
yield to no one in their determination to defend it” (p. 1).
499
Tamiment Library 2 608.jpg. Ibidem. “The fight for Negro rights must be conducted within the framework of
the National Unity. To separate these two mutually connected processes or to conduct the fight for Negro rights
192

Mirando no “nacionalismo negro”, Ford os acusava de divisionistas a partir do epíteto


de “trotskista”. Desse modo, aqueles que propagandeavam ideias que fragmentavam o espírito
de Unidade Nacional e aliança entre trabalhadores negros e brancos eram trotskistas. Ford
igualou, sem maiores cerimônias, aqueles que reafirmavam a ausência de motivo para que os
negros entrassem na guerra aos que participavam e organizavam comícios pró-Hitler no
Harlem. Tanto um quanto outro, segundo ele, eram instigados pelos trotskistas. Concluiu
dizendo que “a ideologia dos assim chamados ‘nacionalistas negros’ é o reverso da moeda das
teorias da raça ariana de Hitler e representa para o povo negro o mesmo veneno que o racismo
de Hitler representa para o povo alemão”.500

in such a way as to hamper National Unity would endanger the central task of defense of the nation and the
special interests of the Negro people.”
500
Tamiment Library 2 608.jpg. Ibidem. “The ideology of these so-called ‘Negro nationalists’ is the reverse of
the coin of Hitler’s Aryan theories of race, and represents for the Negro people the same poison as Hitler’s
racism does for the German people.”
193

6 Os comunistas, o antirracismo e a revolução no Brasil

Georgi Dimitrov, preso pela Gestapo em 1933, acusado de incendiar o Reichstag, se


naturalizou soviético no ano seguinte. Herói, chegou à URSS com um status tal que terminou,
ainda em 1934, nomeado Secretário-Geral da Internacional Comunista, por Josef Stalin. Uma
de suas primeiras ações foi realizar um Congresso Mundial da Comintern, depois de cinco
anos do último que havia sido organizado. O VII Congresso foi o derradeiro e aquele que
livrou os comunistas da política de classe contra classe. Em resumo, o Congresso realizado
entre julho e agosto de 1935 reconheceu a falha das decisões do evento anterior e redefiniu a
constelação de alianças dos comunistas para os anos vindouros.
Num discurso comedido do ponto de vista do conteúdo, Dimitrov foi responsável por
apresentar o principal relatório do Congresso. Esforçou-se em demonstrar, aos camaradas
presentes, a necessidade de aliança com setores progressistas da burguesia – leia-se
antifascistas – para garantir que não houvesse “escravização das nações fracas, intensificação
da opressão colonial e nova repartição do mundo por meio da guerra”.501
Se a política de Frentes Populares, por um lado, resultou numa novidade derivada de
Moscou, por outro já era em alguma medida praticada por comunistas de variadas partes do
mundo. O reconhecimento da superação da linha ultraesquerdista de 1928 já havia resultado
em política efetiva por parte dos comunistas nos cotidianos locais.
Àquela altura, a Internacional Comunista se localizava na esfera de influência direta
da burocracia stalinista. Assim, a ausência de Congressos, desde 1928, e o enrijecimento
centralizador na estrutura cominterniana coadunavam-se com a nova fase da história da
URSS: o período dos expurgos. Ironicamente, portanto, a fase em que os comunistas de todo
o mundo receberam o aval para serem criativos na montagem de suas táticas se deu à custa do
revigoramento das restrições na URSS. Marshall Berman, ao analisar a Frente Popular nos
Estados Unidos, afirmou, sem esconder uma ponta de romantismo, que:
A idéia era que todas as “forças democráticas” se reunissem para impedir que o
fascismo e o nazismo tomassem conta do mundo, e que era um dever urgente dos
comunistas apoiar essas forças democráticas, fossem elas comunistas ou não. Essa
idéia definiu a política cultural comunista até o início da Guerra Fria. Nos Estados
Unidos, liberou os comunistas para serem inclusivos e criativos, muito mais do que
jamais tinham sido ou seriam de novo. Podemos agradecer à Frente Popular pelo

501
“enslaving the weak nations, by intensifying colonial oppression and repartitioning the world anew by means
of war.” DIMITROV, Georgi. The Fascist Offensive and the Tasks of the Communist International in the
Struggle of the Working Class against Fascism: Main Report delivered at the Seventh World Congress of the
Communist International. 2 ago. 1935. Marxists Internet Archive: Georgi Dimitrov. 2014. Disponível em:
<http://www.marxists.org/reference/archive/dimitrov/works/1935/08_02.htm#s9>. Acesso em: 31 out. 2014.
194

CIO [Congress Industrial Organizations], pelo TVA [Tennessee Valley Authority],


pelo controle municipal dos aluguéis, por As Vinhas da Ira, Let us now praise
famous men, Um fio de esperança, “Strange fruit”, “Appalachian spring, Cidade
nua. A Frente animou a cultura americana durante toda a Segunda Guerra Mundial.
Embora concebida por subalternos de Stalin, fez provavelmente muito mais pelos
Estados Unidos do que jamais fez pela União Soviética.502

Coube a Dimitrov o papel de liderar a inflexão decisiva para os comunistas em todo o


mundo. Ele abriu o Congresso falando sobre os partidos da burguesia. Induziu a recuperação
da criatividade de formulação dos comunistas; com a chave da porta que levava à liberdade de
avaliar, recuperou o elitismo comunista o qual imaginava a vanguarda como fator decisivo
para a defesa da União Soviética. Caberia aos líderes comunistas desfazer o domínio burguês.
Nos países capitalistas, a maior parte dos partidos e organizações, tanto políticas
quanto econômicas, estão sob a influência da burguesia e seguem-na. A composição
social desses partidos e organizações é heterogênea. Eles incluem camponeses ricos
lado a lado com camponeses sem terra, grandes comerciantes com pequenos
arrendatários; mas o controle está nas mãos dos primeiros, dos agentes do grande
capital. Isso nos obriga a abordar as diferentes organizações de diferentes maneiras,
lembrando que frequentemente a massa dos membros ignora o real caráter político
da liderança. Sob certas circunstâncias nós podemos e devemos tentar dirigir estes
partidos e organizações ou certas seções deles para o lado da Frente antifascista
popular, apesar de sua liderança burguesa.503

A respeito dos chamados países semicoloniais, a lógica seria a mesma:


A mudança na situação internacional e nacional empresta importância excepcional à
questão da frente única anti-imperialista em todos os países coloniais e
semicoloniais.
Ao formar uma ampla frente única anti-imperialista, é necessário antes de tudo
reconhecer a variedade de condições sob as quais a luta anti-imperialista das massas
está se dando, os variados graus de maturação do movimento de libertação nacional,
o papel do proletariado nele e a influência do Partido Comunista sobre as massas.504

Ao contrário do então passado recente, quando as linhas gerais provenientes deveriam


ser obedecidas pelos partidos, agora a Comintern deixava, explicitamente, certa margem de
manobra para as seções nacionais avaliarem, dentro de alguns limites, as possibilidades. Para
cada caso, a ação corresponderia às avaliações, interpretações específicas e à capacidade

502
BERMAN, Marshall. Um século em Nova York: espetáculos em Times Squase. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. p. 107.
503
“In the capitalist countries the majority of these parties and organizations, political as well as economic, are
still under the influence of the bourgeoisie and follow it. The social composition of these parties and
organizations is heterogeneous. They include rich peasants side by side with landless peasants, big businessmen
alongside petty shopkeepers; but control is in the hands of the former, the agents of big capital. This obliges us
to approach the different organizations in different ways, remembering that often the bulk of the membership
ignores the real political character of its leadership. Under certain conditions we can and must try to draw these
parties and organizations or certain sections of them to the side of the anti-fascist People's Front, despite their
bourgeois leadership.” DIMITROV, 2014.
504
“The changed international and internal situation lends exceptional importance to the question of the anti-
imperialist united front in all colonial and semi-colonial countries.
In forming a broad anti-imperialist united front of struggle in the colonies and semi-colonies it is necessary
above all to recognize the variety of conditions in which the anti-imperialist struggle of the masses is proceeding,
the varying degree of maturity of the national liberation movement, the role of the proletariat within it and the
influence of the Communist party over the masses.” Ibidem.
195

prática que a Comintern mantinha no sentido de impor suas diretivas às seções nacionais. O
caso do Brasil era visto da seguinte maneira:
No Brasil o problema difere daquilo que ocorre na Índia, China e outros países.
No Brasil o Partido Comunista, tendo consolidado uma base correta para o
desenvolvimento da frente única anti-imperialista ao estabelecer a Aliança Nacional
Libertadora, deve empreender todo o esforço para estender essa frente atraindo para
ele primeiro e mais importante os muito milhões do campesinato, culminando na
formação de unidades de um exército popular revolucionário, completamente
devotado para a revolução e para o estabelecimento de um governo da Aliança
Nacional Libertadora.505

Na avaliação de Dimitrov, perante o Congresso Mundial da Comintern, o Partido


Comunista no Brasil já se encontrava num estágio avançado de exercício de hegemonia da
Frente, materializada na ANL. O passo seguinte seria o de arregimentação do exército
popular.506
Diante da ascensão do Nacional-Socialismo e o consequente desbaratamento da
estrutura organizativa do PC da Alemanha, também ruíram as redes de comunicação,
transporte e logística da IC. Não havia muitas alternativas para os formuladores da política
externa soviética, a não ser reatar antigos laços. A Alemanha, um dos principais centros do
movimento comunista internacional, se encontrava comprometida. A circulação de
comunistas e de informação, indo e vindo da União Soviética, estava prejudicada. A Itália sob
Mussolini, a despeito da perseguição aos comunistas italianos, mantinha relações normais
com a URSS.507 Restava o porto de Amsterdã-Rotterdã, que também se encontrava sob
vigilância da inteligência europeia (sobretudo britânica) desde meados de 1920. Desse modo,
a capacidade de influência e pressão exercida pela Comintern vis-à-vis as seções nacionais
estava diminuída salvo pela ascendência moral e pelo centralismo democrático de quem ainda
obedecia.508 De modo mais claro, é preciso relativizar a capacidade prática de ordenar que a

505
“In Brazil the problem differs from that in India, China and other countries.
In Brazil the Communist Party, having laid a correct foundation for the development of the united anti-
imperialist front by the establishment of the National Liberation Alliance, must make every effort to extend this
front by drawing into it first and foremost the many millions of the peasantry, leading up to the formation of
units of a people's revolutionary army, completely devoted to the revolution and to the establishment of a
government of the National Liberation Alliance.” DIMITROV, 2014.
506
Sobre o tema há uma bibliografia relativamente farta: Cf. PINHEIRO, 1991; VIANNA, Marly de Almeida
Gomes. Revolucionários de 1935: sonho e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2007; PRESTES, Anita
Leocádia. A Conferência dos Partidos Comunistas da América do Sul e do Caribe e os levantes de 1935 no
Brasil. Crítica Marxista, São Paulo, v. 1, n. 22, p. 132-153, 2006; GOMES, Ângela de Castro et al. Velhos
Militantes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991; BRANDÃO, Gildo Marçal. Esquerda positiva: as duas almas do
Partido Comunista, 1922-1964. São Paulo: Hucitec, 1997; HILTON, Stanley. A Rebelião Vermelha. Rio de
Janeiro: Record, 1986.
507
URBAN, Joan Barth. Moscow and the Italian Communist Party: From Togliatti to Berlinguer. Ithaca:
Cornell University Press, 1986. p. 83.
508
Vale lembrar que se trata justamente do período em que começam a haver dissensões nas seções nacionais
não só no Brasil como também em outros países, o que não se explica tão somente pela dificuldade nas
196

IC passou a ter em relação a certas seções nacionais, haja vista as novas condições
internacionais pós-1935.
O impacto dessas mudanças na estrutura da Comintern nas organizações negras
comunistas foi relativo. Por um lado, as organizações auxiliares da III Internacional que
tratavam das questões negras já vislumbravam pontos de contato entre si e estavam espraiadas
nos variados setores progressistas da sociedade nos Estados Unidos, e no Brasil não sucederia
de modo diverso. Por outro lado, o futuro das teses que vinculavam autodeterminação à
possibilidade de secessão territorial tiveram destinos distintos em função do lugar onde foram
aplicadas e discutidas, ainda que todas tenham fracassado. Embora a autodeterminação
articulada à secessão fosse o principal viés interpretativo dos aparelhos da IC que elaboravam
sobre a questão negra, o caso brasileiro assumiu contornos diferentes daqueles
estadunidenses.
No Brasil, os anos que acompanharam o combate à ascensão nazifascista,
materializada com a criação da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, evidenciaram uma
contradição entre militantes do PCB: a abertura política do arco antifascista contraposta ao
sectarismo tenentista exemplificado pelas sublevações de novembro de 1935.509
O foco deste capítulo está no primeiro aspecto da contradição: as amplas pautas do
arco antifascista e suas implicações para a questão negra. Em relação ao enfrentamento da
questão racial no Brasil entre os comunistas, talvez o período de vigência da Frente Popular
tenha sido o de maior fertilidade mesmo que envolto de paroxismos. Foi entre a ascensão de
Adolf Hitler na Alemanha e o fim da Segunda Guerra Mundial que se realizaram os
Congressos Afro-Brasileiros, que Graciliano Ramos traduziu “Up from Slavery: An
Autobiography”, de Booker T. Washington, e que a Frente Negra Brasileira e a Frente Negra
Socialista alcançaram visibilidade pública. Foi também o ponto alto da rarefeita e curta
aproximação entre comunistas norte-americanos (dentre eles alguns negros) e brasileiros. Em
resumo, este capítulo tem como objetivo apresentar como os comunistas de Brasil e Estados
Unidos lidaram com a questão racial desde as Frentes Populares ao ocaso da Internacional
Comunista em 1943.
Entretanto, não estavam em curso apenas os destinos dos comunistas. Estava sendo
operada uma rearticulação no formato das organizações negras no Brasil. A experiência de

comunicações, mas, sobretudo, pelo recrudescimento do stalinismo, dentro e fora da União Soviética, a saber,
também na Internacional Comunista.
509
VIANNA, 2007, p. 409.
197

clubes e associações negras, paulatinamente, redundavam em expressões políticas cada vez


mais claras. Entre 1931, quando a Frente Negra Brasileira foi criada, e 1937,
[...] outras entidades floresceram com o propósito de promover a integração do
negro à sociedade mais abrangente, dentre as quais destacam-se o Clube Negro de
Cultura Social (1932) e a Frente Negra Socialista (1932), em São Paulo; a Sociedade
Flor do Abacate, no Rio de Janeiro, a Legião Negra (1934), em Uberlândia/MG, e a
Sociedade Henrique Dias (1937), em Salvador.510

Tratava-se de um movimento mais amplo de reconhecimento da esfera política como


palco fundamental de atuação dos negros para que fossem estabelecidos os parâmetros de sua
integração. A equação em torno dessa pauta foi complexa e se materializou na
heterogeneidade que compôs as formações políticas as quais tiveram como motivação
fundamental a questão racial. Uma parte da complexidade dessa equação esteve exposta nos
dois Congressos Afro-Brasileiros realizados em meados da década de 1930.

6.1 Os Congressos Afro-Brasileiros e os comunistas

Entre os anos de 1934 e 1937 foram realizados dois Congressos Afro-Brasileiros, no


Recife e em Salvador, respectivamente. De acordo com a imagem elaborada pelos próprios
organizadores, os dois Congressos diferiram sobremaneira um do outro. A coordenação do
primeiro coube aos pernambucanos, liderados por Gilberto Freyre e Ulysses Pernambucano.
O segundo foi dirigido pelos baianos Édison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz. Em meados
de 1930 havia tonalidades distintas nas cores ideológicas prediletas dos dois grupos. 511
Ademais, a natureza da vinculação com a questão negra que os dois grupos experimentaram,
de um modo ou de outro, contribuiu para as diferentes expressões que os Congressos
adquiriram.
Luiz Gustavo Freitas Rossi, em trabalho sobre Édison Carneiro, considerou a
possibilidade de que a organização do I Congresso Afro-Brasileiro no Recife fosse feita por
Freyre de modo a constituir uma comunidade científica. O mote em torno do qual teria se
centrado a disputa pela prevalência no campo científico seria o espólio da herança deixada

510
DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói, v.
12, n. 23, p. 107, 2007.
511
A divisão dos grupos não é em função de naturalidade. Havia pernambucanos que discordavam da
apropriação freyriana da questão negra assim como havia baianos que não subscreviam os argumentos de Édison
Carneiro e Aydano do Couto Ferraz, como será mostrado.
198

pelo médico baiano Raimundo Nina Rodrigues.512 A superação de modelos interpretativos


excessivamente vinculados aos termos biologizantes e deterministas da medicina seria o
objetivo científico primordial. Ainda segundo Rossi, Arthur Ramos e Gilberto Freyre estariam
pleiteando a preponderância no campo científico culturalista, por assim dizer, ocupando
diferentes posições no campo em construção ao passo que, para isso, operacionalizavam
diferentes estratagemas.513
A entrada de intelectuais comunistas nessa seara obedeceu a variantes não
determinada por eles. Houve aspectos ligados às possibilidades de ascensão de classe por
parte de intelectuais que não tinham espaços em outras miríades ideológicas. Ainda,
ocorreram certas afinidades eletivas já que a própria militância comunista na Bahia se rendeu
à pauta negra, em mais de uma medida. Desse modo, tanto elementos relativos às biografias
como suas predileções ideológicas condicionavam os comunistas baianos a determinada
interpretação da temática negra. Tanto assim que será possível identificar argumentos e
estruturas de pensamento desses intelectuais partilhadas noutras partes do globo onde a
questão negra fora pautada institucionalmente pelos PCs, a saber, Estados Unidos e a
Comintern.
De antemão, é preciso reiterar, de modo a advertir o leitor, que na documentação dos
comunistas brasileiros não foi possível encontrar muitas referências aos Congressos. Em
princípio, isso demonstra um certo distanciamento da direção partidária do debate sobre a
questão negra no Brasil, o que tampouco distoa da história “oficial” do PCB.514 No entanto,
foi possível identificar ao menos três nomes que estiveram nos Congressos e mantiveram
estreitos vínculos com a atividade comunista na década de 1930 e após o fim da Segunda
Guerra Mundial. Foram eles: Aydano do Couto Ferraz, Édison Carneiro e Jorge Amado. Para
consolidar o argumento de que eles operavam em consonância com os ditames
cominternianos, em ambos os Congressos, é possível ver replicadas algumas das teses da
Internacional Comunista acerca da questão negra, com maior ou menor ortodoxia.
Talvez valha problematizar a natureza do comunismo ao qual se viam imersos os
intelectuais supracitados. Ainda que organicamente envolvidos no Partido, mesmo após a
Segunda Guerra Mundial eles teriam uma participação de destaque depois de certa abertura
decorrente da política de Frente Popular. Essa tendência à abertura, salvo surtos sectários e
insurreicionais, passaria a ser uma constante na história do PCB. Os militantes mencionados

512
ROSSI, 2011, p. 147-152.
513
ROSSI, 2011, p. 146-154.
514
Como será evidenciado adiante, Octávio Brandão, na União Soviética em 1936, menciona uma ampla
participação dos comunistas no I Congresso Afro-Brasileiro.
199

nunca foram formuladores altamente influentes na hierarquia partidária. Mesmo assim, em


meados da década de 1930 já se viam imersos no cotidiano do partido. Já participariam, por
exemplo, do I Congresso Afro-Brasileiro no Recife como militantes partidários.

6.2 O Congresso Afro-Brasileiro do Recife

Para Gilberto Freyre, em novembro de 1934,


O 1o Congresso Afro-Brasileiro do Recife foi o menos solemne dos congressos.
Nelle não brilhou um colarinho duro. Não apareceu um fraque. Não trovejou um
tribuno. Não houve um só discurso em voz tremida. Foi tudo simples e em voz de
conversa.515

Afirmou que, entre estudiosos, sentaram-se “ialorixás gordas, cozinheiras velhas,


pretas de fogareiro, [...] negros de engenho como o Jovino” com “trabalho cheio de erros de
portuguez [...]” e “outros analphabetos e semi-analphabetos intelligentes, com um
conhecimento directo de assumptos afro-brasileiros, de que muito se aproveitou o
Congresso”.516
Do Congresso participaram “gente mais simples” e “da mais douta”. O evento foi
recebido com simpatia, segundo Gilberto Freyre, por
[...] especialistas em assumptos negros, ou de anthropologia em geral, e afro-
brasileiros, em particular, está na atenção que lhe dedicaram Franz Boas, Nancy
Cunard, Roquette Pinto, Odum, Froes da Fonseca, Nuno Simões, Osorio de Oliveira,
Rüdiger Bilden, Azevedo Amaral e, fora da especialidade, o professor Cannon, o
grande mestre de physiologia da Universidade de Harvard; na importancia que lhe
deram jornaes europeus e americanos, entre outros The New York Times; na
collaboração que lhe enviaram mestres como Rodolfo Garcia, Mario de Andrade,
Arthur Ramos, Antonio Austregesilo, Bastos de Avila, Cunha Lopes, para não falar
no sábio africanista, professor Melville J. Herskovits e no grande anthropologista
brasileiro Roquette Pinto.517

Para Freyre, portanto, o Congresso havia sido um sucesso e uma unanimidade dentre
variados segmentos sociais. No entanto, as palavras do sociológo pernambucano, em sua
avaliação final do I Congresso, deixaram entrelinhas cintilantes: “O Congresso do Recife foi,
ainda, o mais independente dos congressos. Não recebeu nenhum favor do governo. Não se
associou a nenhum movimento político, a nenhuma doutrina religiosa, a nenhum partido.”518
Acrescentou que

515
FREYRE, Gilberto et al. Novos Estudos Afro-Brasileiros. Recife: Fundaj; Massangana, 1988. p. 348.
516
Ibidem, p. 348.
517
Ibidem, p. 351-352.
518
Ibidem, p. 349, grifo nosso.
200

O Congresso do Recife, com toda a sua simplicidade, deu novo feitio e novo saber
aos estudos afro-brasileiros, libertando-os do exclusivismo academico ou
scientificista das “escolas” rígidas, por um lado, e por outro, da leviandade da
ligeireza dos que cultivam o assumpto por simples gosto do pittoresco, por
litteratice, por politiquice, por esthetismo, sem nenhuma disciplina intellectual ou
scientifica, sem um sentido social mais profundo dos fatos.519

Um dos participantes do I Congresso deu o seguinte depoimento acerca das prováveis


“politiquices” a que Freyre se referia: “Não posso negar que não tivesse havido tentativas de
infiltração por parte dos comunistas – todas repelidas por Gilberto Freyre”.520 Alguns anos
depois, Freyre afirmaria, em jornal, a respeito do II Congresso Afro-Brasileiro: “não me
parece que os congressos afro-brasileiros devam resvalar para a apologia política ou
demagógica da gente de cor. Seria sacrificar todo o seu interesse científico de esforço de
pesquisa e de colheita e interpretação honesta de material”.521
Possivelmente os destinatários das palavras de Freyre atendiam pela alcunha de Jorge
Amado, Aydano do Couto Ferraz e, sobretudo, Édison Carneiro. Havia uma discordância
central, principalmente entre Carneiro e os outros estudiosos não comunistas, tais como
Arthur Ramos e Gilberto Freyre. Enquanto os dois últimos viviam empenhados na
consolidação de um campo científico, a agenda política de Carneiro superpunha-se aos
desígnios acadêmicos daqueles. Havia uma pauta local assumida por Carneiro diante do Povo
de Santo – relativo a candomblecistas e umbadistas – que encontrava os ecos das linhas
globais de enfrentamento da questão negra por parte dos comunistas.522
As contribuições de Édison Carneiro e Jorge Amado ao I Congresso Afro-Brasileiro
indicam um certo tipo de filiação partidária. O autor de “Suor” restringiu sua apresentação à

519
FREYRE, 1988, p. 351, grifo nosso.
520
ROSSI, Luiz Gustavo Freitas. O intelectual “feiticeiro”: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações
raciais no Brasil. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2011. p. 169-170, nota de rodapé.
521
FREYRE, Gilberto apud ROSSI, 2011, p. 169. Octávio Brandão, em um rascunho de texto a respeito da
questão negra e indígena no Brasil, afirmou: “nosotros participamos activamente en el 1o congreso afro-
brasileño realisado en Recife, que defendió esos [liberdade de costumes e de religião para os negros] de los
negros” (RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 39).
522
Ruth Landes caracterizou essa afinidade da seguinte maneira: “Como muitos intelectuais jovens do Brasil, ele
tinha uma simpatia apaixonada por povos do mundo que eram oprimidos econômica e politicamente, e ele se
tornou conhecido como um cruzado político. Entre outras coisas, ele trabalhou para ajudar o povo do candomblé
a viver tão livremente quanto quisesse”. Tradução livre de: “Like so many young intellectuals of Brazil, he had a
passionate sympathy for peoples all over the world who were oppressed economically and politically, and he had
become known as a political crusader. Among other things, he worked to help the people of candomblé live as
widely as they desired.” LANDES, Ruth. The City of Women. Albuquerque: University of New Mexico Press,
1994. p. 61. Há o caso de Solano Trindade, que teria participado de ambos os Congressos Afro-Brasileiros. Teria
também fundado, em 1936, a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira no Recife. As
ligações de Solano Trindade com o PCB ainda não foram devidamente explicadas, embora haja indícios de que
fora simpatizante. SANTOS, Oluemi Aparecido dos. Nas sendas da revolução: a poesia de Agostinho Neto e
Solano Trindade. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa)–
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 21-23.
201

propaganda de duas coletâneas, nas quais “mesmo aquillo que não é negro nestas collecções,
é escolhido para o gosto negro do publico que compra e lê ou ouve ler esses folhetos”. Para
Jorge Amado, definitivamente, “na Bahia o elemento popular é negro ou mulato, as religiões
africanas continuam a ter uma decisiva influencia na massa, e assim a sua literatura popular
não pode deixar de ser directamente influenciada pelo negro”. Ao descrever a coleção
“Moderna”, afirmou que “nella são interpretados por um poeta popular os factos mais
importantes que se passam em todo o universo. Factos que são traduzidos, vamos dizer assim,
para o gosto negro”.523 Portanto, a indicação de Jorge Amado é, em síntese, que ambas as
coleções apanhavam o que havia de essencial na Bahia, que é a cor negra da classe
trabalhadora, “do elemento popular”.
Édison Carneiro, por sua vez, escreveu textos chamados “Xangô” e “Situação do
Negro no Brasil”. No primeiro, refere-se à cosmogonia dos deuses africanos. O aspecto
central de sua contribuição foi demonstrar a filiação do Povo de Santo de Salvador ao orixá
Xangô e despi-lo da roupa de São Jerônimo vestida nele pelo Catolicismo. No percurso de seu
argumento, fez uma curiosa alusão a Trotski, comparando-o a Ogun, num tempo em que o
trotskismo era pecado capital entre comunistas:524 “chefe da corrente internacionalista do
movimento communista”. “Deus das luctas e das guerras”, “o título de Ogun, que lhe dão, em
família, os camaradas do Rio de Janeiro”.525
Uma segunda contribuição de Édison Carneiro foi intitulada “A situação do negro no
Brasil”. 526 Um texto comprometido politicamente e um demarcador público de suas
predileções ideológicas. Dizia ele: “sabe-se que o negro tem fornecido um grande contingente
para as fileiras do Partido Comunista do Brasil”.527 Num apanhado crítico da então história
recente do Brasil, Carneiro parte do pressuposto de que “Nada fizemos, de verdadeiramente
util, pela incorporação do negro à communidade brasileira”.528 Relaciona a vulnerabilidade
dos negros a doenças, precariedade de moradias, dependência alcoólica e criminalidade às
condições históricas legadas aos negros libertos da escravidão. Sem constrangimento e com

523
FREYRE, 1988, p. 262-3.
524
León Trotsky foi deportado da União Soviética no início de 1929. É recorrente na documentação da
dirigência comunista a importância do combate ao trotskismo. Cf. DEWEY, John. Not Guilty Report of the
Commission of Inquiry into the Charges Made Against Leon Trotsky in the Moscow Trials. Nova York;
Tóquio: Ishi Press, 2008. DEUTSCHER, 2005b.
525
FREYRE, 1988, p. 139.
526
Cf. PAZ, Clinton Silva. Um monumento ao negro: memórias apresentadas ao Primeiro Congresso Afro-
Brasileiro do Recife, 1934. 2007. Dissertação (Mestrado)–Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 52 [p. 172]. ROSSI, 2011, p. 171.
527
CARNEIRO, Édison. A situação do negro no Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Estudos Afro-Brasileiros:
trabalhos apresentados ao 1° Congresso Afro-Brasileiro do Recife, em 1934. Recife: Fundaj; Massangana, 1988.
p. 238.
528
Ibidem, p. 240.
202

alguma hesitação, Carneiro explicou como entende o papel dos brancos na exclusão dos
negros da “comunidade brasileira”.
[...] a culpa não cabe somente ao branco ou somente ao negro, mas a toda a
sociedade burgueza, que, em beneficio de um punhado de pulhas que não trabalham,
que não têm a existencia justificada por nenhum trabalho honesto e productivo,
consagra o tabú da propriedade privada para que esse mesmo punhado de pulhas
possa dormir sobre a miseria das classes inferiores da sociedade. O peior, porém, é
que essa sociedade burgueza, donde resultam todos esses males para população
negra, está representada, quasi que exclusivamente, pelos brancos. O que sempre é
um incentivo à luta de raças...529

Argumentou que houve uma “liberdade fictícia” fruto da experiência, para ele
ineficaz, da democracia burguesa a qual “provou sua inutilidade na resolução dos problemas
humanos do paiz”.530
Édison Carneiro se esforçou para garantir que a luta negra contra o racismo fizesse
parte da luta global do proletariado contra o capitalismo. Por isso ele acrescentou que o caso
brasileiro (e global) foi afetado pelo que chamou de “crescente desorganização do
capitalismo” e pelos imperialismos que se digladiavam pelo mercado local. Concluiu que:
Os negros conscientes, que se adaptaram, bem ou mal, à super-estructura politica da
sociedade brasileira, sabem perfeitamente que os seus interesses immediatos e
futuros não são em nada diversos dos do proletariado em geral e desejam, além da
instrução, da alimentação sufficiente e do melhoramento das condições de trabalho,
reconhecimento dos seus direitos – como de todas as raças opprimidas do paiz, – a
collaboração, no mesmo pé de igualdade, com o branco na obra de reconstrucção
economico-politica do Brasil.531

Carneiro tentou demonstrar que havia um liame possível entre as forças mais
moderadas da luta antirracista e ele. A Frente Negra Brasileira, então mais representativa das
organizações negras no país, apresentava características nitidamente conservadoras, quando
não reacionárias, haja vista o monarquismo de seu dirigente-mor Arlindo da Veiga dos
Santos, além das vinculações com o integralismo assumidas pela Frente. 532 O texto de
Carneiro arriscou-se equilibrar entre duas questões nitidamente opostas, mas que poderiam,
em tese, coadunar com a tática da Frente Popular: 1) a assunção de que a questão negra é uma
questão do proletariado e, portanto, deveria revestir-se de crítica estrutural ao capitalismo,
reverberando teses comunistas; 2) o esforço de construir adesão em torno da questão negra
por parte de diferentes plêiades do movimento negro dirimindo outros dissensos ideológicos.
No plano subjetivo e individual, Rossi afirma que,

529
CARNEIRO, 1988, p. 240.
530
Ibidem, p. 238.
531
Ibidem, p. 240.
532
Cf. ROSSI, 2011; FRANCISCO, 2010; DOMINGUES, 2007b, p. 107. Para a relação entre a Frente Negra
Brasileira e o ideário monarquista, ver: DOMINGUES, Petrônio. O “messias” negro? Arlindo Veiga dos Santos
(1902-1978): “Viva a nova monarquia brasileira; Viva Dom Pedro III!”. Varia Historia. Belo Horizonte, v. 22,
n. 36, p. 517-536, jul.-dez. 2006.
203

[...] em enorme medida, foi em meio a estas clivagens entre ciência, política e
disputas ideologias que Édison Carneiro não apenas deu molde aos termos de sua
inserção na seara dos estudos afro-brasileiros, atento aos arroubos conservadores
dos movimentos negros, como também formatou as posições contrárias aos modelos
de intervenção médicas que, mesmo no I Congresso Afro-Brasileiro de Recife, ainda
ofereciam uma das abordagens privilegiadas para os problemas raciais brasileiros.533

Outro destaque no I Congresso Afro-Brasileiro foi Alfredo Brandão. Tio do


importante militante comunista Octávio Brandão, Alfredo que o criara. Em suas memórias, o
sobrinho conta que foram juntos, Octávio e Alfredo, perscrutar a região do Quilombo de
Palmares para composição do livro do tio, de 1914, “Viçosa de Alagoas”.534 Intelectuais como
Aderbal Jurema 535 (1912-1986) e Jovelino M. de Camargo, dedicados a demonstrar,
respectivamente, o instinto de liberdade que alimentava a resistência escrava, onde residiria o
potencial revolucionário secular das massas negras, e o malogro da liberdade jurídica
concedida aos escravos em sua incapacidade de inseri-los na sociedade de classes, também
fizeram parte do Congresso. 536 Mutatis mutandis, foi esse o procedimento interpretativo
padrão dos comunistas acerca da questão negra na década de 1930: ocupar os espaços
públicos de discussão da temática e estabelecer a crítica à capacidade de integração do negro
pela sociedade burguesa.
Em que pese a afinidade intelectual desses sujeitos inclinados à esquerda, os baianos,
especificamente, tinham uma trajetória de compasso com o cotidiano popular. Aydano do
Couto Ferraz e Édison Carneiro, provenientes da cidade de Salvador, compartilharam, ainda
em finais da década de 1920, o mesmo espaço de formação intelectual na chamada Academia
dos Rebeldes, da qual o membro mais famoso viria a ser Jorge Amado. Esse grupo pôs-se em
desacordo com o padrão estético e a filiação ideológica de outro grupo intelectual
soteropolitano de finais dessa década, este materializado nas publicações do periódico “Arco
e Flecha”. A Academia dos Rebeldes caracterizou-se por uma crítica à ordem moral burguesa,
em grande medida, anticonvencionalista.537 Eram críticos da modernização e experimentavam
a ambiguidade da decadência baiana. Viam no Rio de Janeiro o símbolo do cosmopolitismo e
apostavam em saídas universais para os problemas locais baianos onde provavelmente o
comunismo tenha se apresentado como saída viável.

533
ROSSI, 2011, p. 157.
534
BRANDÃO, 1978, p. 73.
535
Aderbal Jurema: “O negro vai compreendendo que o seu problema não é simplesmente um problema de raça.
É antes um problema de classe [...] Em determinado momento histórico, o sentimento revolucionário em
potencial que o negro possui e nos transmitiu há de se transformar em consciência revolucionária de classe. Com
o desenvolvimento dos acontecimentos econômicos, políticos e sociais no Brasil e nas Américas, este potencial
será a força viva de um novo mundo” (apud ROSSI, 2011, p. 181-2).
536
ROSSI, 2011, p. 166.
537
Ibidem, p. 110.
204

A aproximação entre pernambucanos e aqueles baianos da Academia dos Rebeldes em


torno da construção do I Congresso Afro-Brasileiro é um tanto obscura. As narrativas que
tratam do assunto não problematizam os antecedentes do Congresso nem historicizam o
processo de aproximação desses diferentes grupos em torno do evento. Há uma ênfase na
figura de Gilberto Freyre como catalisador e Ulysses Pernambucano como um apoiador
próximo, algo que já consta nos anais.
Sabe-se que, posterior ao I Congresso Afro-Brasileiro, houve o I Congresso da
Juventude Proletária, Estudantil e Popular da Bahia, de onde surgiu um clube de cultura
popular organizado por Dias da Costa 538 e Édison Carneiro. Dentre os membros
correspondentes estavam Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Jorge Amado. 539 Estes últimos
estiveram no Congresso Afro-Brasileiro no Recife, seja organizando seja participando de
algum modo.540 De qualquer sorte, as divergências eram nítidas entres os grupos baiano e
pernambucano;541 as ênfases e interesses díspares tornaram o cenário propenso a um debate
público.
Nos meses posteriores ao I Congresso, depois de realizar dura crítica à obra freyriana,
Édison Carneiro defendeu sua predileção teórico-metodológica da seguinte forma, frente aos
principais intelectuais sobre as questões de raça no Brasil naquele período:
A interpretação dos fatos sociais exige outros métodos. Não servia para o caso dos
negros brasileiros, a escola antropológica de Nina Rodrigues, como também não
serve a psicanálise do mestre Freud, mesmo através de um discípulo como o Sr.
Arthur Ramos. Somente a concepção materialista da história pode resolver de uma
vez por todas, a questão [...] A consequência (a psique individual) não pode explicar
a consequência (a religião, a superestrutura ideológica). Somente o estudo das
transformações econômicas a que a raça negra se submeteu e se submete ainda, no
habitat originário e no Brasil, junto aos estudos das relações entre o homem negro e
o meio natural e social [...] pode levar à interpretação exata das concepções
religiosas dos negros.542

No âmbito dessa tensão intelectual e discussão aberta, o II Congresso Afro-Brasileiro


foi pensado e organizado. Realizado em Salvador, em janeiro de 1937, foi encabeçado por
Édison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz.543 Se Gilberto Freyre, por um lado, se vergara

538
Escritor baiano nascido em Salvador, em 1907, e membro da Academia dos Rebeldes.
539
Cf. PRIMO, Jacira Cristina Santos. Tempos vermelhos: a Aliança Nacional Libertadora e a política brasileira
(1934-1937). 2006. Dissertação (Mestrado)–Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006. p.70-71.
540
PRIMO, 2006, p. 71.
541
A identificação do grupo baiano como de esquerda, ligado aos comunistas, e dos pernambucanos como
seguidores de Gilberto Freyre não é rígida e deve ser relativizada. Utiliza-se essa caracterização para fins
didáticos de maneira a discernir o núcleo dirigente de cada um dos dois grupos.
542
CARNEIRO, Édison apud ROSSI, 2011, p. 170. CARNEIRO, Édison. Nota sobre o Negro Brasileiro.
Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, n. 7, p. 185, abr. 1935a.
543
Aydano do Couto Ferraz possui ficha na IC. A referência é f. 495, op. 197, d. 228, assim como Jorge Amado,
cuja referência é f. 495, op. 197, d. 323, dok. 4. Não foi possível encontrar a pasta pessoal de Édison Carneiro,
205

aos discípulos de Nina Rodrigues com as homenagens que prestou a este quando da realização
do I Congresso Afro-Brasileiro, por outro lado, não despendeu esforços para a consecução do
II Congresso, realizado em Salvador, como já observado. O perfil do II Congresso inauguraria
a supressão das abordagens médicas no âmbito dos estudos raciais, ao menos naquele berçário
de ideias. Nenhum trabalho que consta nos anais preocupou-se em articular aspectos
fenotípicos e genotípicos a padrões sociais de comportamento. Em seu lugar, foram
enfatizados aspectos ligados a religião, literatura, cultura e história dos negros no Brasil, nas
Américas; e, em mais de uma maneira, estudos contemporâneos sobre o Atlântico emergiram.
Aqui se soma um elemento que já acompanhava a trajetória de inserção desses comunistas de
primeira viagem no amplo arco antifascista.
O movimento antifascista que tomou conta das hostes comunistas chegou ao Brasil,
em sua forma institucional e obediente à IC com a fundação da Aliança Nacional Libertadora,
oficialmente, em 30 de março de 1935.544 Os trabalhos desempenhados pelos comunistas
ligados à Comintern teriam, a partir de então, maior amplitude temática; além disso, o leque
de correligionários seria também ampliado nas ações da frente. Precisamente nesse ambiente,
sujeitos como aqueles provenientes da Academia dos Rebeldes participariam de atividades
ligadas ao PC e partilhariam de sua pauta de maneira a paulatinamente imiscuir-se à bandeira
da revolução mundial o que nesse caso significava, primordial e contraditoriamente, defender
a URSS. Manteve-se a bandeira anti-imperialista. Foi adicionada a ela uma pauta antifascista
que terminou sendo o leitmotiv das frentes populares. O II Congresso Afro-Brasileiro foi
gestado nesse ambiente.

6.3 O II Congresso Afro-Brasileiro, Édison Carneiro e o antirracismo: uma agenda


comunista entre a integração e a secessão

O próprio Édison Carneiro, central na concepção do II Congresso, experimentaria no


ano de 1935 a confluência de seus mais vigorosos interesses. Tanto seu desejo pessoal de
ascensão como sua predileção pelos “irmãos negros” e “oprimidos” colocariam-no num

embora haja suspeitas de que ela exista. Tampouco foi possível consultar as pastas pessoais de Aydano do Couto
Ferraz e de Jorge Amado, já que os trâmites do RGASPI não permitiam o acesso quando foi feita a visita in loco.
544
PRIMO, 2006, p. 1. A Frente Única Antifascista já havia sido fundada dois anos antes, em 1933. Cf.
CASTRO, Ricardo Figueiredo de. A Frente Única Antifascista (FUA) e o antifascismo no Brasil (1933-1934).
Topoi. Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, jul.-dez. 2002.
206

campo intelectual em que suas ideias objetavam a conciliação de classe e a pacificação racial.
Jorge Amado já afirmara que “todos nós fomos levados às casas de santo por sua mão de
iniciado [de Édison] [...] por ter sido o primeiro, marcou com as cores políticas de esquerda o
mistério dos axés”.545 Em 1932 já havia escrito um conto,546 intitulado “História de gente
pobre”, cuja história é uma “espécie de drama doméstico em torno de uma família negra e
pobre baiana, marcada pela violência do marido que, depois de perder o emprego, se vicia em
álcool, passando a bater na esposa e levando ao vício o filho de sete anos ‘que também se
alcoolizava’”.547
As ligações de Édison Carneiro com os “poetas da baixinha” e o submundo
soteropolitano, “frequentadores de uma boemia declassé, menos seletiva e mais misturada –
mas também mais ‘farrista’, ‘popular’ e próxima da ‘chamada baixa prostituição’” davam
conta de certa afinidade eletiva não só com a classe trabalhadora desses comunistas mas,
sobretudo, com o lumpemproletariado. 548 Portanto, o comunismo desses membros da
Juventude Comunista na Bahia não espelhava o modelo tido como clássico, exemplificado
pelo personagem do romance “Que fazer?”, de Nikolai Chernyshevsky, o asceta Rakhmetoff.
Essa ligação, sui generis à primeira vista, entre intelectuais e o lumpemproletariado
aparece politizada no sentido da luta de classes e da revolução social em meados da década de
1930. A inclinação política genérica e sem forma definida provém de um diferente tipo de
politização a qual já acontecia em finais de 1920 na Academia dos Rebeldes, quando seus
membros apontavam para um inconformismo com a modernidade burguesa que se apossava
da Bahia e do país sem, no entanto, apresentar qualquer proposta de transformação radical da
sociedade.

545
AMADO, Jorge apud ROSSI, 2011, p. 143.
546
Não se sabe exatamente quando, mas Armênio Guedes afirma que Carlos “Stanislaw” Marighela organizou
uma célula comunista na casa de Édison Carneiro. A célula só pode ter sido fundada até 1934, ano da partida de
Marighela ao Rio de Janeiro. RISÉRIO, Antônio. Adorável Comunista: história política, charme e confidências
de Fernando Sant’Anna. Rio de Janeiro: Versal, 2002. p. 152.
De acordo com Rossi, “pelo menos desde 1933, portanto, começa a ser quase impossível dissociar as atividades
intelectuais de Édison Carneiro dos encargos políticos e simbólicos que ele começou a assumir como quadro de
célula comunista e, mais tarde, membro do núcleo da Aliança Nacional Libertadora (ANL).” ROSSI, 2011, p.
142. Na mesma página, em nota de nota de rodapé, acrescenta que “a partir de 1933, talvez com auxílio de Jorge
Amado e mesmo do pai ou do irmão Nelson, que se encontravam no Rio de Janeiro, além das redes de relações
propiciadas pelo Partido Comunista, Édison Carneiro ampliou significativamente o escopo de sua atuação,
passando a colaborar em importantes periódicos culturais e literários da capital federal e de outros estados; a
exemplo de Boletim de Ariel, Literatura, Revista Acadêmica, Rumos etc. Em sua maioria, notas ou resenhas
críticas de acentuado caráter ideológico voltadas à produção ensaística e literária que estava surgindo naquele
momento.”
547
A temática da violência doméstica e pública, da dependência química associada à pobreza, foi uma marca em
toda a literatura afro. De Marcus Garvey até a Frente Negra Brasileira, o intuito de civilizar objetivava suprimir
essas práticas do cotidiano das comunidades negras. Édison Carneiro sugeriu que não se tratava de algo mutável
por meio do costume e sim pela estrutura social na qual o negro estava imerso. ROSSI, 2011, p. 131.
548
ROSSI, 2011, p. 97-98.
207

Esses comunistas “sem carteirinha” impuseram uma circunstância nova à militância


moralista do PC e à direção da IC. “Tanto na Faculdade de Direito, instituição em que boa
parte deles estudava, quanto nos redutos boêmios nas intermediações da Sé, onde
frequentavam o Bahia-Bar”, 549 os comunistas passaram a atuar, principalmente aqueles
egressos da Academia dos Rebeldes (em sua maioria na Juventude Comunista). Foi esse
mesmo grupo dos rebeldes que organizou o II Congresso Afro-Brasileiro em 1937. Este
“marxismo difuso”, 550 também chamado de “mistura de Quincas Berro d’Água com
Stalin”,551 precisa ser relativizado no sentido de que as pautas locais desse movimento “negro-
mestiço” liderado por Édison Carneiro na defesa do direito de manifestação das religiões de
matrizes africanas navegava no rastro da IC e de questões globais.
A Guerra Ítalo-Etíope terminou permitindo que o discurso antifascista se acoplasse a
um debate sobre o negro e o racismo, apesar da dubiedade do estado soviético a respeito do
evento. A ampla condenação da invasão italiana por parte do movimento comunista
internacional, no Brasil, teve a dianteira da Juventude Comunista na Bahia, não por acaso,
perfazendo o discurso reiterado pelos negros comunistas ao redor do globo.552 Uma nota
divulgada pela Juventude Comunista em dia e mês incertos de 1935, além de criticar o furor
colonialista italiano sob o mando de Mussolini, exortava que
[...] a juventude de todos os países se una, num grande protesto de massa, ao lado
dos trabalhadores de todas as nações, aos negros, aos intelectuais honestos, aos
amigos da paz e da liberdade, contra as manobras infames do tirano fascista.
Liberdade a uma raça oprimida e explorada [...]
Lançamos um apêlo aos nossos colegas, sem distinção de credos políticos e
religiosos, aos estudantes de todas as escolas [...] e ao povo em geral, no sentido de
que a gente do continente negro não veja no século XX repetidas as cenas de
vandalismo e da mais repelente selvageria de que foi vítima nos séculos
anteriores.553

Em data incerta, a própria ANL chamaria a atenção para o conflito.


A ANL precisa utilizar o mais possível, no momento atual, a grande vontade de luta
dos negros, despertada pela guerra imperialista contra a Abissínia. Para isso devem
ser enviados os maiores esforços e empregados todos os métodos e recursos [...] Nos
lugares onde houver organizações negras, chamá-las à frente com a ANL contra a
guerra, o imperialismo e contra o fascismo pela defesa dos interesses específicos dos

549
Ibidem, p. 138.
550
Ibidem, p. 169.
551
RISÉRIO, Antônio. Uma história da cidade da Bahia. 2. ed. Rio de Janeiro: Versal, 2004. p. 503.
552
Ainda que no plano da geopolítica soviética a URSS tenha se relacionado de forma dupla com o conflito, os
comunistas, na maior parte do mundo, se sentiram livres para condenar o ataque imperialista italiano. Mesmo
que tenha provocado fraturas nas relações internacionais entre alguns comunistas negros e organizações negras,
a maior parte da militância comunista continuou apoiando os esforços de resistência etíopes. Cf.
MATUSEVICH, Maxim. No Easy Row for a Russian Hoe: Ideology and Pragmatism in Nigerian-Soviet
Relations. Asmara: Africa World Press, 2003. p. 36; e CLARKE, Joseph Calvitt. Alliance of the Colored
Peoples: Ethiopia and Japan Before World War II. Woodbridge: James Currey, 2011. p. 72.
553
RGASPI, F. 533, op. 010, d. 609. Cedem/Unesp. A nota é assumida como sendo dos estudantes de Direito da
Bahia. Ela chegou à KIM (Juventude Comunista Internacional).
208

negros em cada localidade [...] Nas localidades e principalmente nas capitais nas
quais não existem organizações negras como a Frente Negra, os aliancistas devem
imediatamente tomar iniciativa de sua organização, sem fazer questão de programas
radicais, nem de imediata adesão formal a ANL.554

Era, portanto, parte da estratégia frentista associar diferentes esferas da experiência


subalterna dos negros aos diversos lugares onde viveram tal condição. Um documento do
Socorro Vermelho, provavelmente datado entre 1934 e 1935, fez uma crítica às organizações
negras no Brasil a partir da ideia de conluio entre essas entidades e “os feudal-burguezes e
imperialistas”. Comparava os batalhões negros do conflito de 1932 no estado de São Paulo às
tropas negras coloniais de 1914-1918, durante a I Guerra Mundial. O ensejo das lutas anti-
imperialistas e a afinidade do tema com a situação dos negros no Brasil levaram os autores de
pequenos libelos a associar as ideias eugenistas ao exercício de imperialismo com fins
econômicos.
As massas negras do Brasil e de todo o mundo são a mais exploradas e oprimidas.
Seus salários são os mais miseráveis, as condições de trabalho as mais penosas! E,
além disso, os negros são tratados como raça inferior e desprezíveis devido ao
preconceito de cor criado e alimentado pelo imperialismo para, desse modo, tirar
maior proveito econômico. Isso indica claramente as massas negras que o caminho
de sua libertação e o caminho da luta de classes, ao lado de seus irmãos, os
trabalhadores brancos, índios e de todas as cores e nacionalidades!
[...] Os feudal-burguezes e os imperialistas tem em vista ahi dois 'benefícios': a
liquidação do desemprego e a 'purificação da raça' pelo extermínio da população
negra, como já se diz cinicamente na Assembléia Constituinte.555

A solução apontada pelo Socorro Vermelho estava na formação de organizações


autônomas e perpassava a necessidade de autoimposição enquanto sujeito e constituição de
uma agenda política coletiva, ciente do incontornável dever de ocupar o espaço público com
bandeiras anti-imperialistas, antirracistas e pela autodeterminação.
Formae vossas organizações independentes para lutar pelo direito de ser negro e
pelo vosso próprio direito à vida! Não vos deixeis sacrificar nas guerras
imperialistas de rapina! Conquistae a direção das Frentes Negras paro (sic) lutar
concretamente pela vossa autodeterminação, isto é, pelo direito de for- (sic) o vosso
próprio governo, vosso Estado, onde posasse ter a religião que desejaes! Uni-vos
aos trabalhadores brancos na luta de classe por vossas reivindicações econômicas,
políticas e cultuares! [...] Lutae em defesa da União Soviética que é a única pátria de
todos os trabalhadores, negros, brancos, índios e de todas as cores! Vinde às fileiras

554
ANL apud PRIMO, 2006, p. 64-5. “A autora ainda recupera uma circular do PCB, de 1935, na qual era
mencionada a importância da ANL se transformar ‘no paladino’ das lutas pela ‘igualdade de direito das massas
negras’, visando não apenas atrair as ‘organizações revolucionárias locais negras’, mas também firmar uma ‘luta
conjunta com a chamada frente negra’.” As lideranças da ANL reconheciam a importância e capilaridade das
organizações negras. “A Aliança popular deve transformar-se ao mesmo tempo no paladino de lutas pelas
reivindicações elementares e pela completa igualdade de direito das massas negras, racial e nacionalmente
oprimidas, atraindo à Aliança não somente as organizações revolucionárias locais dos negros, senão também
firmando um ato sobre a luta conjunta com a chamada ‘frente negra’, organização esta que romperá abertamente
com o governo reacionário de Vargas e orientará suas atividades com os objetivos revolucionários da Aliança.”
Ibidem, p. 65.
555
RGASPI, F. 539, op. 003, d. 390. Cedem/Unesp, ic-1263.pdf.
209

do SOCORRO VERMELHO e, sob nossa bandeira fraterbal (sic), lutae pela


liberdade de vossos irmãos de classe, os presos-politicos proletários!556

Dessa maneira, os vínculos entre os conflitos internacionais, entre colônias e


metrópoles, alcançavam alguma notoriedade: circulando em panfletos de comunistas.
O primeiro aspecto ligado à aproximação desse grupo de comunistas na Bahia e das
ideias divulgadas pela IC em relação ao negro divide-se em duas partes. Uma primeira guarda
relação com o diagnóstico da situação negra e uma segunda com o prognóstico que, se não
assume, por parte dos baianos, para si as pautas cominternianas, remonta e dialoga com elas.
A característica classista da exploração e opressão racial fez parte do argumento de Carneiro,
de Jorge Amado e de outros comunistas. Mas isso não é o marcador fundamental. O
acoplamento do imperialismo enquanto processo complicador da questão racial terminou
assumindo uma posição de prevalência na hierarquia de causas do fenômeno racista. Em
meados de 1930, na elaboração dos baianos comunistas, o nazifascismo se apresentava como
um recrudescimento do imperialismo o qual teria sido gestado pela evolução do capitalismo.
Nessa narrativa, a inferioridade negra, reproduzida e divulgada pelo racismo, serviria como
elemento justificador da entrada europeia na África e na Ásia; seria essa suposta inferioridade
original que promoveria os motivos para a supressão dos direitos de autodeterminação dos
povos sob o jugo do imperialismo.557
O segundo aspecto diz respeito à vitória da tese da secessão territorial de
nacionalidades oprimidas como parte da agenda da IC. Exemplarmente aplicada no plano
teórico nos Estados Unidos e na África do Sul, essa tese dominaria parte majoritária do
repertório anti-imperialista da Comintern na década de 1930, mesmo que não lograsse amplos
apoios de massa. A expressão máxima dessa formulação no pensamento de Édison Carneiro
se deu em artigo de novembro de 1934 sugestivamente intitulado “As raças oprimidas no
Brasil”, quando ele acompanhou a tese propagandeada pelo PCB em julho de 1934, resultado
da 1ª Conferência do partido.
A democracia operária, que vem de baixo para cima [...] das massas para o Partido e
para os órgãos dirigentes da sociedade, não pode opor às aspirações populares o tabu
da unidade da pátria ou qualquer coisa igualmente estúpida. A democracia operária
tem que cumprir seu dever, dando às raças e às nacionalidades oprimidas a
oportunidade de se governarem por si mesmas, reconhecendo-lhes [...] até mesmo o
direito de se separarem e formarem Estados independentes – mesmo burgueses [...]
Talvez o negro, sob o regime comunista, não deseje se separar do proletariado
branco. Ele, forçado à vida civilizada, conhece, bem ou mal, os benefícios que
poderão resultar de uma aplicação mais humana das conquistas materiais e
intelectuais da humanidade. Por outro lado, não se deve esquecer que o proletariado
negro concorrerá brilhantemente para o próprio sucesso político do proletariado

556
Ibidem.
557
CARNEIRO, Édison apud ROSSI, 2011, p. 175.
210

brasileiro em geral. Prevendo, porém, o caso, não de todo improvável, de que o


negro não se sinta totalmente satisfeito com a colaboração do branco na sociedade
comunista, o proletariado terá de reconhecer-lhe, desde já, o direito de governar por
si mesmo e de formar, caso queira, o seu Estado independente.558

Carneiro teria justificado a secessão no Brasil, de acordo com Rossi, porque


[...] a sociedade brasileira, ao dispensar às “raças oprimidas”, o negro e o indígena, a
mesma violência empregada pelas potências europeias imperialistas na atividade
colonizadora da África ou da Ásia, somente teria gerado efeitos nefastos do ponto de
vista de seu desenvolvimento e progresso autônomos enquanto grupos.559

Portanto, ao livrar-se do “tabu da unidade da pátria”, as “raças oprimidas” no Brasil, a


saber índios e negros, teriam a chance de construir um rumo próprio, livre da violência do
imperialismo, fosse ela praticada por europeus, fosse pelo Estado nacional brasileiro. Carneiro
mobilizou um argumento que já era, ao menos desde 1928, utilizado para os países (e regiões
específicas de Estados-Nação, tais como o Sul dos Estados Unidos) com enclaves étnicos e
raciais, por assim dizer. Por fim, Carneiro flertava com o nacionalismo negro ao sugerir que
mesmo estados burgueses teriam o direito de autodeterminar-se. Nessa passagem, levou seu
anti-imperialismo a um extremo tal que já não partilhava do viés cominterniano para o
engajamento da questão negra.
Uma última questão apontada por Carneiro antes da realização II Congresso Afro-
-Brasileiro estava ligada ao fenômeno da exploração do negro como objeto de estudo. Mesmo
aqueles que se colocavam em favor da luta dos “irmão negros” construíam argumentos que
não ajudavam na luta antirracista e viviam, na prática, de modo não comprometido com as
necessidades cotidianas dos negros, acusava ele. Para Carneiro, o “interesse pelo irmão negro
degenera em falsidade patente à sua psyché e em exhibicionismo literário ao gosto dos blasés
das ruas elegantes”.560 Carneiro fez, no texto em questão, um comentário crítico ao estado da
arte dos estudos raciais no Brasil. Ele avaliou a relação entre os estudiosos sobre o negro na
formação social brasileira e seus respectivos objetos, a saber, o negro enquanto sujeito. Para
ele, havia por parte de todos os estudiosos mais proeminentes uma espécie de usufruto do
negro a despeito das aspirações deste último por liberdade e autodeterminação, segundo
palavras do próprio Carneiro. Mesmo considerando que Nina Rodrigues e Arthur Ramos
estavam situados em outro patamar, tanto eles quanto Gilberto Freyre, Roquette Pinto,
Manuel Querino e Aderbal Jurema 561 (este que operou sua análise inspirado pelas

558
CARNEIRO, Édison apud ROSSI, 2011, p. 187.
559
ROSSI, 2011, p. 176.
560
CARNEIRO, Édison. A exploração do negro. A Manhã. Rio de Janeiro, 14 nov. 1935b.
561
Eis a crítica desferida por Carneiro a Adherbal Jurema: “No mais novo de todos, - Adherbal Jurema - ha
muito pouca profundidade (Insurreições negras no Brasil), muita vontade de pregar a revolução proletária
usando como bandeira o exemplo do negro... O negro, em Adherbal Jurema, não é um fim, é um meio. Nestas
211

formulações do PC) incluíam-se no mesmo rol. Concluía, finalmente, que todos esses
intelectuais,
Não podendo sentir como negros, elles o utilizam – animados das melhores
intenções do mundo, reconheço, – apenas como matéria-prima. Ora essa mesma
qualidade que os escravagistas iam caçar nas florestas da África...
[...] Fica apenas a esperança de que, futuramente, a própria raça negra forneça o
grande intelectual que lhe interprete as aspirações de autodeterminação e liberdade.
Esperemos por ele.562

Em mais de uma maneira este alegado descaso com os “irmãos negros” era
contraposto, por Édison Carneiro, com uma efetiva experiência nos espaços culturais e sociais
onde ele se punha como negro. Esse tema, da maneira como foi levantado por Carneiro,
terminaria por replicar as teses do PCB acerca da divisão interna do país, não propriamente
em termos de nações, mas, no seu caso, em termos de opressão de raça. A distinção situou-se
no desenrolar da tese de Carneiro, a qual desaguou na evidência de uma batalha no campo das
ideias.
Um dos palcos desse conflito foi o II Congresso Afro-Brasileiro, que ocorreu de modo
a responder a esses incômodos externados por Édison Carneiro. No centro da questão esteve,
sobretudo, a liberdade religiosa, o que indica a maneira concreta por meio da qual Carneiro
fez valer as teses diretivas da IC. A articulação dele e do PC no plano prático elegeu esta
como a principal bandeira; tanto assim, que o Congresso culminou na criação da União das
Seitas.
O II Congresso, em si, não contou com a participação da comitiva pernambucana que
organizara o I Congresso. Arthur Ramos foi o principal chamariz do evento ocorrido no mês
de janeiro de 1937. Nina Rodrigues fora lembrado, tal qual Gilberto Freyre, ainda que por
motivos diferentes. Enquanto o primeiro foi homenageado, o segundo teve o nome citado
apenas para que se recordasse que ele próprio não contribuíra por não acreditar no sucesso do
II Congresso.
O teor dos textos foi crítico ao status quo racial do país. Mesmo quando,
aparentemente, tratava de assunto científico ao discorrer sobre o orixá Omolu, Carneiro fazia
crítica: “Ôrixá dos pobres, disse eu. Elle torna inutil a medicina official, livrando os negros do
perigo de apodrecerem nos hospitaes”.563

condições, o estudo do Negro vira demagogia, não arma de combate sério e honesto. E assim por diante, em
todos os demais pesquisadores das influências da raça no meio social do Brasil.” Ibidem.
562
Ibidem.
563
CARNEIRO, Édison. O médico dos pobres. In: RAMOS, Arthur (Org.). O Negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1940. p. 207.
212

Aydano do Couto Ferraz se utilizaria do mesmo expediente ao mobilizar Castro Alves


como ponte, sugerindo que o poeta baiano já antecipava que “negro da nossa população
ligado por interesses economicos ao proletariado nascente, mais cêdo ou mais tarde adquiriria
a consciencia ideologica da sua classe”. Couto Ferraz terminaria sua intervenção comparando
Castro Alves a poetas contemporâneos, alguns deles pertencentes a partidos comunistas:
Ele não traiu a missão determinista de, não sendo negro, ser a propria poesia negra.
E quem, dentre seus irmãos mais moços no continente americano, pôde colocar a
fronte até onde foi a sua? Langston Hughes, Corrothers, Claude Mc Kay (sic),
Jacques Romain, Jean Toomer, Countee Cullen, Raul Bopp, René Maran, poeta em
prosa?
[Castro Alves] foi o precursor da poesia quente da Norte America (sic) e da America
Central, sendo libertario dos preconceitos sociaes-nacionaes, antes de Langston
Hughes, e artifice de versos criôulos, antes de Raul Bopp e de Nicolás Guillén.564

Outros trabalhos relevantes foram apresentados por Alfredo Brandão, que se dedicou a
uma apresentação técnica do que ele chamava de documentos antigos sobre Palmares. Jorge
Amado, por sua vez, fez uma homenagem ao professor Martiniano do Bomfim. Dessa
maneira, o II Congresso Afro-Brasileiro apresentou características muito diferentes da
polarização do anterior, permitindo uma participação mais livre de simpatizantes e militantes
do PCB. Ademais, possivelmente porque a estrutura partidária do PC encontrava-se
debilitada, o modo comunista ortodoxo, por assim dizer, de interpretar a questão negra passou
ao largo do evento, e isso resultou em pautas mais pragmáticas tais como garantir que o
estado laico não oprimisse as manifestações religiosas negras. Começava aí a história da
União das Seitas, já que,
[...] a partir do congresso, Carneiro iria conseguir articular e lograr melhores
chances de dar cabo ao que, no final das contas, era o que mais lhe interessava:
organizar uma entidade civil entre os pais e mães de santo da Bahia, a fim de
conseguir a liberdade religiosa dos candomblés.565

É difícil provar o que mais interessava a Édison Carneiro. É possível, porém, sustentar
que seus esforços voltaram-se mais para uma pauta concreta, menos afeita a arroubos
teóricos. Em meados de 1938, uma observadora recém-chegada à Bahia, e que se tornaria
próxima de Édison Carneiro, descreveu uma cena sintomática a respeito da relação entre
comunistas e os negros organizados em torno da questão religiosa e de liberdade de culto.
A essa altura, os grupos de cultos eram acusados de serem ninhos da propaganda
comunista. Eu frequentemente pensei sobre a acusação, a qual me foi feita
gravemente pelo belo coronel comandante das tropas federais na área. Na maior
parte, os negros não sabiam ler ou escrever e nunca foram ao cinema, mas passavam
suas vidas entre seus locais de trabalho e templos. O medo da propaganda comunista
estava espalhado, e meu próprio cônsul, cuja despreocupação americana era um

564
FERRAZ, Aydano do Couto. Castro Alves e a poesia negra da América. In: RAMOS, Arthur (Org.). O
Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940. p. 228-9.
565
ROSSI, 2011, p. 196.
213

tanto intimidada pelos fatos da vida na Bahia, me aconselhou ao dizer que ele não
estava preparado para me proteger no caso de dificuldade. Eu vi como uma pequena
ameaça à vida política da República assim como eu vi em casa, nos Estados Unidos.
Certo era, no entanto, que os negros e intelectuais estavam sendo feitos de bode
expiatórios das ansiedades da administração. E quer queira quer não queira eu fui
tragada para dentro. Alguns seis meses depois, enquanto esperava pelo bonde numa
noite sufocante em fevereiro, Édison falou com seu inglês cuidadoso: “Eu acho que
um espião está te espionando. Ele está vestido como um trabalhador negro”. Eu me
voltei para Édison surpresa porque eu não acreditei nele.
“É verdade”, ele sorriu. “Eu tenho longa experiência reconhecendo a polícia secreta.
Eles são muito desajeitados nisso. Agora, quando você entrar no carro, vamos sentar
no banco traseiro, para que possamos vê-lo de frente.” E assim foi.
Quando nós chegamos na casa da mãe de santo que estávamos visitando, e eu disse
a ela em assombro, ela me respondeu silenciosamente: “Nós sabemos disso há muito
tempo. Nós não te dissemos nada porque não queríamos assustá-la”.
Édison se divertiu: “Bem, agora você sabe que é perigosa. Você é amigável com as
pessoas erradas; você não deve ser vista com negros ou com homens da
universidade. Ou você terminará na prisão conosco ano que vem! Estimada colega,
você agora está na República do Brasil”. 566

Para Ruth Landes,567 o ambiente político baiano diferia de outras áreas do país.
Comparando-o com o Rio de Janeiro, ela caracterizou como única a relação entre certos
setores negros com os comunistas na Bahia.
Eu estou à frente da minha história, mas essa é a atmosfera na qual eu me achava
brevemente após chegar na Bahia. Alguém pode não sentir tais coisas tão
agudamente no Rio porque era lá o assento do governo central, e a polícia federal
era forte. Até a tentativa abortada de assassinar Vargas, que ocorreu logo depois da
minha chegada no Rio e a apenas uma quadra do meu hotel, não teve nenhuma
repercussão na cidade. Nem eram os negros notáveis no Rio comunistas; eram na
verdade temidos como mágicos, e elogiados como vagabundos de rua, já que eram
muito pobres. Mas na Bahia eles eram seriamente considerados de todas as maneiras

566
LANDES, 1994, p. 61-62. “At this time, the cult groups were accused of being nests of communist
propaganda. I often wondered at the charge, which was made to me gravely by the handsome colonel
commanding the federal troops in the area. For the most part, the blacks could not read or write and never went
to the moving pictures, but passed their lives between their places of work and the temples. Fear of communist
propaganda was wide-spread, and my own consul, whose American insouciance was quite intimidated by the
facts of life in Bahia, advised me that he was not prepared to protect me in case of difficulty.
I saw as little threat to the political life of the Republic as I did at home in the United States. Certain it was,
however, that the blacks and the intellectuals were being made scapegoats of the administration's anxieties. And
willy-nilly I was dragged into it. Some six months later, while waiting one sweltering night in February for the
streetcar into the jungle, Edison said in his careful English: ‘I think a spy is watching you. He is dressed like a
black worker.’ I turned to Edison in amazement because I did not believe him.
‘It's true,’ he smiled. ‘I have long experience in recognizing the secret police. They are very clumsy at it. Now,
when we get on to the car, let us take the rear seat, so we can watch him in front.’ And so it was.
When we reached the home of the priestess we were visiting, and I told her in astonishment, she answered
quietly: ‘We've known it for a long time. We didn't say anything because we didn't want to frighten you.’
Edison was amused. ‘Well, now you know you are dangerous. You are friendly with the wrong people; you must
not be seen with blacks or with university men. Or you'll end up in jail with us next year! Esteemed colleague,
you are now in the Republic of Brazil’.”
567
“Communist activity in Bahia (Political Report)”, 9 fev. 1939. Murphy Collection, caixas 202-3, 149-163.
“Incidentally, an American, Mrs. Ruth Landes who recently departed from Bahia after studying here for some
eight months on a scholarship from the Rockefeller Foundation was on the police suspect list and was kept under
surveillance for about two weeks prior to her departure. Two members of the police department said privately
that her difficulties were due to her constant association with Edson Carneiro, another suspect” (p. 14).
214

e, se os intelectuais eram comunistas, por que não os negros com quem eles se
associavam?568

O depoimento de Landes corrobora a observação feita pelo Cônsul dos Estados


Unidos em Salvador. Primeiro, Robert Janz descrevera os tipos de comício que ocorriam na
capital baiana e, ao fazê-lo, enfatizou que
O segundo tipo de comício era aberto ao público e consista quase que inteiramente
de falas e discursos baseados na doutrina comunista. Os princípios enfatizados eram:
extrema liberdade pessoal, abolição do dinheiro e completa falta de distinção entre
pessoas de diferentes cores. O último era um ponto importante de conversa na Bahia
onde as raças eram tão intrinsecamente misturadas e onde as pessoas são muito
sensíveis a respeito da questão de cor. Os comícios públicos eram dirigidos
prioritariamente para as classes mais baixas, especialmente trabalhadores fabris,
estivadores e motoristas.569

Paradoxalmente, Janz não via presença comunista na Bahia. Exceção feita à Livraria
Editora Bahiana, que, justamente, agregava os membros da Academia dos Rebeldes.
Essa loja está sob vigilância de autoridades federais, mas a polícia local não parece
ter qualquer conhecimento sobre o que está acontecendo. A suspeita é baseada no
fato de que a loja faz muito pouco negócio e parece não ter interesse em fazer mais,
e é dirigida por suspeitos comunistas. A informação seguinte é evidência privada
que eu tenho sobre a loja: entre as pessoas procuradas pela polícia depois do golpe
de 10 de novembro de 1937, estava um escritor radical, Jorge Amado, que é tido
como comunista. A venda de seus livros fora proibida, e embora eu tenha tentado
várias livrarias eu não consegui obter nenhuma cópia até que um amigo me falou
para tentar a Livraria Editora Bahiana novamente, explicando quem eu era. Eu fiz
isso, e uma série completa dos livros de Amado foi enviada para mim.
Os livros de Amado são romances das classes trabalhadoras. Na maior parte das
suas histórias há numerosos comunistas que falam da doutrina comunista, e o
cenário dado sobre as classes dominantes nunca é elogioso.570

568
LANDES, 1994, p. 62. “I am ahead of my story, but this is the atmosphere in which I found myself shortly
after reaching Bahia. One did not sense these things so sharply in Rio because that was the seat of the central
government, and the federal police was strong. Even the abortive attempt to assassinate Vargas, which occurred
soon after my arrival in Rio and only a block away from my hotel, had no repercussions in the city. Nor were the
Rio blacks notorious as "communists"; rather they were feared as magicians, and glamorized as street vagrants,
since they were very poor. But in Bahia they were taken seriously in all waysand (sic), if the intellectuals were
communists, why not the blacks with whom they associated?”
569
“Communist activity in Bahia (Political Report)”, 9 fev. 1939. Murphy Collection, caixas 202-3, 149-163, p.
5. “The second type of meeting was open to the public, and it consisted almost entirely of speeches and
discussions based upon the communist doctrine. The principles stressed in Bahia were extreme personal liberty,
the abolition of money, and a complete lack of distinction between persons of different color. The latter was a
strong talking point in Bahia where races are so inextricably mixed and where the people are very sensitive about
the color question. The public meetings were directed chiefly at the lower classes, principally the factory
workers, stevedores and chauffeurs.”
570
Ibidem, p. 13. “This store is under the surveillance of the federal authorities but the local police do not appear
to have any knowledge of what is taking place. The suspicion is based upon the fact that the store does very little
business and shows no interest in doing more, and that is patronized by suspected communists. The following is
some private evidence that I have about the store: Among the persons wanted by the police after the coup of
November 10, 1937, was a radical author, Jorge Amado, who was said to be a communist. The sale of his books
was prohibited, and although I tried several book stores I was unable to obtain any copies until a friend told me
to try the Livraria Editora Bahiana again, explaining who I was. I did so, and a full set of Amado's books were
delivered to me.
Amado's books are novels of the laboring classes. In most of his stories there are numerous communists who
speak the communist doctrine, and the picture given of the ruling classes is never flattering.”
215

Com a perseguição da polícia e dificuldades de se expressar politicamente no partido,


parte da militância comunista, sobretudo aquela não centralizada pelas direções locais,
dedicou-se ao ataque de questões locais, ainda que articuladas de modo transnacional. De
qualquer modo, as redes que a IC havia construído permaneciam vigentes porque eram
reproduzidas por sujeitos políticos.

***

A avaliação vinda dos círculos internacionais – e, mais precisamente, soviético –


acerca das questões raciais proveio também da Juventude Comunista Internacional. Essa
característica indica que a prevalência desse tema na Juventude Comunista brasileira,
sobretudo na Bahia, não ocorreu a despeito de correntes internacionais do movimento. Ao
contrário, pode ter sido fruto de incentivo da JCI, de uma agenda sua. Em documento que
consta no acervo do Secretariado Latino-Americano, datado de 29 de setembro de 1935, sobre
o que aparentemente foi um encontro de jovens comunistas, a questão negra e indígena foi
cotejada pelo orador, que aparece sob o nome de Torres.571 O documento confirma a presença
das organizações comunistas de jovens da França e dos Estados Unidos, um indicativo ainda
mais forte de que o tema racial pode ter centralizado parte das discussões desse encontro.
Inicialmente, o tema foi a organização da juventude indígena no Chile e na Argentina,
na chamada região da Araucânia. Defendia-se que as realidades eram diferentes e, para cada
caso, haveria uma forma de dirigir a questão. No Chile, buscou-se organizar um Congresso de
Jovens:
Aqui está um exemplo para os camaradas do México, Peru, Colômbia e os demais
países onde há população indígena. Não creiam, vocês, que esse exemplo possa ser
seguido em seus países. Sim, camaradas. Devem se colocar esta tarefa e obterão
êxitos com certeza.572
Queriam organizar um Congresso da Federação Juvenil Araucana.
Com relação à questão negra, Torres discorreu mais detidamente. No discurso, pode-
se identificar dois caminhos igualmente defendidos pelo movimento comunista internacional.
Um primeiro diz respeito à identificação de maiorias étnicas submetidas em regiões
específicas, como seria o caso da Bahia e da província Oriente em Cuba. A despeito disso,
sobre o segundo, a diretriz indicada pelo dirigente é que se deveria objetivar a integração
racial das juventudes, brancas e negras, onde quer que elas se encontrassem separadas apesar
da maioria demográfica de uma em relação a outra.

571
De acordo com Manuel Caballero, um militante argentino. CABALLERO, 1986, p. 40.
572
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6.
216

Em alguns países da América Latina, como Brasil e Cuba existe uma numerosa
população negra. Eles são descendentes dos antigos escravos africanos importados
em massa no tempo da colônia, por negreiros ingleses, holandeses, portugueses e
outros. E apesar de hoje a escravidão ter sido abolida, os travos escravistas ainda
tendem a subsistir. A juventude negra, da mesma maneira que a indígena, além de
sofrer a opressão nacional que aguenta toda a juventude dos países da América
Latina, padece e é vítima da discriminação imposta por diversas formas pelos
elementos reacionários do próprio país. Devemos encarar o problema do trabalho
entre a juventude negra de forma audaciosa. Se queremos agrupar e educar as
massas da juventude negra, devemos trabalhar em suas organizações, naquelas que
existem e criar outras organizações onde sejam necessárias. A juventude negra tem a
particularidade que geralmente vive nas mesmas cidades com a juventude branca.
No entanto, por diversas razões elas tendem a organizar-se separadamente e se
organizam, em suas associações recreativas, desportivas, culturais e de ajuda mútua,
e outras tendo em conta esta particularidade é que devemos buscar a organização em
países como Brasil, particularmente no estado da Bahia, como também em Cuba,
particularmente no Estado Oriente, a unificação de todas as organizações existentes
da juventude negra sobre a base de uma plataforma por direitos da juventude negra e
pelo aperfeiçoamento cultural, recreativo da juventude.
Essas organizações da juventude negra devem trabalhar intimamente com as
organizações da juventude branca, e em conjunto com as juventudes brancas devem
criar em cada país uma união nacional das juventudes populares.
Eu tenho a segurança de que a juventude democrático-anti-imperialista da América
Latina, recebe com entusiasmo nossa mensagem de unidade e que do rio Brava à
Terra do Fogo, e do Atlântico ao Pacífico, nas cidades das montanhas e nas
planícies, o grito da unificação de todas as juventudes democráticas e anti-
imperialistas será transformado numa realidade.573

Édison Carneiro flertou com a integração como forma de solução do problema racial,
embora sempre tenha demarcado uma posição hesitante em relação ao branco. E no mesmo
texto em que essa hesitação aparece, evidencia-se também uma articulação no mesmo
diapasão do debate supramencionado. Logo depois de identificar a sociedade burguesa como
responsável pelos males contra a população negra e cujos dirigentes eram brancos, Carneiro
afirmava que os negros, tal qual o proletariado em geral,

573
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 1, fols. 25. “En algunos países de la América Latina, como Brasil y Cuba existe
una numerosa población negra. Ellas son descendientes de los antiguos esclavos africanos importados en masas
en el tiempo de la colonia, por los negreros ingleses, holandeses y portugueses y otros. Y a pesar que hoy la
esclavitud ha hido abolida, los resabios esclavistas aun suelen subsistir. La juventud negra lo miso que la
indígena, además de sufrir la oppression nacional que sufre toda la juventud de los países de América Latina,
sufre y es victim de la descriminación impuesta en diversas formas per los elementos reaccionarios del propio
país. El problema del trabajo entre la juventud negra debemos encararlo audazmente. Si queremos agrupar y
educar a las masas de la juventud negra, debemos trabajar en sus organisaciones, en aquellas que existen y crear
allí donde sea necesario diversas otras organisaciones. La juventud negra tiene la particularidad que suele vivier
en las mismas ciudades con la juventud blanca. Sin embargo, por diversas razones ellas tienden a organisarse
separadamente y as organisan, en sus asociaciones recreativas, desportivas, culturales y su ayuda mutua, y otras
teniendo en cuenta esta particularidad es que debemos plantear la organisación en países como Brasil,
particularmente en el Estado de Bahía, como así en Cuba, particularmente en el Estado Oriente, la unificación de
todas las organisaciones existentes de la juventud negra, sobre la base de una plataforma por los derechos de la
juventud negra y del mejoramiento cultural, recreativo de la juventud. Estas organisaciones de la juventud negra,
deben trabajar intimamente con las organisaciones de la juventud blanca, y en conjunto con las juventudes
blancas, deben crear en cada país la union nacional de las juventudes populares.
Yo tengo la seguridad que la juventud democrática-antiimperialista de América Latina, recibi con entusiasmo,
nuestro mensage de unidad y que desde el río Brava a la Tierra del Fuego, y desde el Atlântico al Pacífico, en las
ciudades en las montanas, y en las llanuras, el grito de la unificación de todas las juventudes democráticas y
antiimperialistas sera transformado en una realidad.”
217

[...] desejam, além de instrução, da alimentação suficiente e do melhoramento das


condições de trabalho, o reconhecimento dos seus direitos – como de todas as raças
oprimidas do paiz, – a colaboração, no mesmo pé de igualdade, com o branco na
obra de reconstrução economico-politica do Brasil. [...] Somente a sociedade
comunista, que reconhece às raças oprimidas até mesmo o direito de se organizarem
em Estado independente, conseguirá realizal-a, abolindo a propriedade privada e
acabando, de uma vez por todas, com a exploração do homem pelo homem.574

Tanto o documento da JCI quanto o escrito de Édison Carneiro durante o I Congresso


Afro-Brasileiro demonstram as ambiguidades das diretrizes cominternianas quando
confrontadas com o exercício prático de construir organizações. A tímida menção da
autodeterminação por parte de Carneiro e a omissão por parte de Torres são os sintomas de
que a corrente integracionista foi mais efetiva no plano da execução da agenda do movimento
comunista internacional. A despeito de uma retórica que, por vezes, flertou com o
segregacionismo, Carneiro vislumbrava a integração de negros e brancos, ainda que matizasse
sua integração de maneira nem sempre coincidente com as propostas cominternianas.
Um outro comunista, de características distintas de Carneiro, tanto nos moldes
interpretativos quanto, e sobretudo, na forma de militar no PCB, também refletiu sobre a
questão negra e o racismo.

6.4 Octávio Brandão e o PCB: da classe à raça

Em Moscou, provavelmente entre finais de 1934 e 1936, Octávio Brandão dedicou-se


ao estudo da questão das “nacionalidades” no Brasil, na América Latina e no Caribe. Tal
estudo foi registrado em dois manuscritos, rascunhos que não se sabe em que resultaram.
Esses dois escritos permaneceram inéditos ao grande público e tampouco parecem ter
influenciado as tomadas de decisão do PCB naqueles anos. Ambos explicitavam o fato de não
serem acabados, tratavam-se de trabalhos em progresso. Considerando que o estado de
conservação de um deles é ruim, nem sempre foi possível identificar o ordenamento
pretendido pelo autor e, muitas vezes, não foi possível fazer a leitura de maneira adequada.
Tampouco foi possível precisar a circunstância e o momento de escrita de um deles.
O primeiro parece ter sido “Las nacionalidades negra e india na América del Caribe y
del Sur”. Justamente este conjunto documental, que se encontra em seu acervo pessoal sob a

574
CARNEIRO, Édison. A situação do negro no Brasil. In: FREYRE, Gilberto et al. Estudos afro-brasileiros.
Rio de Janeiro: Ariel, 1935c. p. 240-1.
218

guarda do Arquivo Edgard Leuenroth, está em estado de difícil leitura. A “Pasta 60”,575 onde
se encontra o documento, tem 47 folhas de anotações esparsas, entre estatísticas demográficas
e frases soltas misturadas a parágrafos aparentemente concluídos. Uma constante no
pensamento de Octávio Brandão foram as chaves interpretativas do feudalismo e do pré-
capitalismo para explicar o arcaísmo da sociedade latino-americana e, mais precisamente, do
Brasil. Também fazia parte de seu repertório o elemento imperialista que teria tornado mais
lenta e vagarosa a modernização da sociedade brasileira. Para ele, o campesinato negro e
índio encontrava-se em estado pré-capitalista e, desse modo, enfrentava o domínio feudal e o
imperialismo como fatores de arrasto.576 Numa de suas observações desconexas, Brandão
afirma que “no PC se dizia que não há discriminação em Cuba. Se dizia que os negros da
Jamaica e Haiti são negros de segunda categoria e que não vale a pena trabalhar entre os
negros de Barbados já que são negros muito atrasados”.577
O traço definidor do argumento de Brandão estava na consideração de que negros e
índios constituiriam, no Brasil, nações oprimidas.
Entre os negros e índios se encontram as nacionalidades mais oprimidas em toda a
América do Caribe e do Sul. Por isso, nesses países, no centro da questão nacional
está a questão dos negros e índios. Os trabalhadores negros e índios são uma parte
importante do proletariado em toda uma série de países (Brasil, México, Peru e
outros).578

No entanto, ele se mostrava hesitante em afirmar que, por consequência, a questão da


secessão estaria aplicada. De fato, Brandão não parece subscrever a tese da 1ª Conferência do
PCB tampouco o artigo de Édison Carneiro que, mesmo timidamente, advogara a secessão de
negros. Para Brandão, como disse em uma das notas que desenvolveria mais tarde, “Na
América do Caribe e do Sul é preciso ver nacionalidades e não tribos nem raças”.579
No documento seguinte, intitulado “Los problemas negro y indio en Brasil”,580 escrito
provavelmente depois de outubro de 1936, Octávio Brandão escreveu sobre a história do

575
Arquivo Edgar Leurenroth – AEL (Unicamp), OB Pm.93, p. 60 – MR/0004. De acordo com ficha
catalográfica do AEL, o documento data de 29 set. 1934. É importante destacar que essa data ainda se encontra
em aberto, a julgar pelas informações dispostas no próprio documento.
576
AEL, OB Pm.93, p. 60 – MR/0004, p. 7-8.
577
“En el P.C. se decia que no hay discriminación en Cuba. Se decia que los negros de Jamaica y Haiti son
negros de segunda categoria y que no vala la pena trabajar entre los negros de Barbados debendo[se] a que son
negros muy atrazados”. AEL, OB Pm.93, p. 60 – MR/0004, p. 4. E este argumento remete à discussão da
“questão brasileira” quando os membros da IC tentavam convencer os brasileiros a rumar na direção dos
conflitos raciais.
578
“Entre los negros e indios se encuentran las nacionalidades más oprimidas en toda America del Caribe y del
Sur. Por esto, en estos paises, en el centro de la cuestion nacional está la cuestion de los negros e indios. Los
obreros negros e indios son una parte importante del proletariado en toda una serie de paises (Brazil, Mejico,
Perú y otros).” AEL, OB Pm.93, p. 60 – MR/0004, p. 4.
579
“En la ACS [América del Caribe y del Sur] es preciso ver nacionalidades y no tribos ni razas”. Ibidem, p. 17.
580
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6.
219

Brasil partindo de índios, negros e mestiços. Além de encadear um fluxo histórico ligado ao
avanço da formação do proletariado e campesinato na história do Brasil, Brandão não teve
maiores preocupações em associar a classe trabalhadora brasileira às definições raciais.
O mais importante aspecto para o raciocínio desenvolvido neste momento é o
conhecimento de Brandão sobre o andamento da atividade do partido no Brasil, mesmo
estando em Moscou, e sua preocupação em retroceder às atividades do partido que
envolveram negros e/ou índios. Para isso, citou o evento do Posto Paraguassú,581 na Bahia,
que “com nossa participação, os índios do posto de Serviço se revoltaram com armas em mão,
lutando heroicamente pela defesa de suas terras”.582 Analisou a questão negra brasileira de
modo a relativizar a opressão racial já que, para ele, a realização dos congressos afro-
brasileiros demonstravam a importância ascendente do negro e sua inserção na sociedade.583
Salientava, porém, que a vida do negro no sul do país era problemática por causa dos espaços
vívidos de segregação. Havia condições precárias frutos de tensão com colônias italianas.
Do ponto de vista sociológico, acrescentou uma série de elementos provindos do negro
africano e do índio para a formação brasileira, referindo-se ao estudioso Manoel Bonfim.
Brandão identificava os movimentos do período imperial como
[...] não lutas dos povos negros e índios por sua autodeterminação, senão que
representam as lutas dos descendentes mestiços de negros e índios que formam o
povo brasileiro, ajudados por negros e índios, pela libertação nacional e pelos
direitos democráticos de todo o povo.584

Justamente porque negros, índios e mestiços seriam mais numerosos na região


Nordeste, teria saído de lá o principal ponto irradiador de contestação. Concluiu que
Finalmente foi no nordeste onde a ---- de combate dada por Prestes e pela Aliança
de Libertação Nacional encontrou mais eco, fazendo a união, sob a bandeira da
libertação nacional de índios, negros e mestiços, e onde primeiro se fez a insurreição
de 1935 contra o jugo imperialista, chefiadas por “caboclos” e “pardos”, mestiços de
índios e negros.585

Brandão também cita eventos de luta na história do sul-sudeste do país e conclui que,
em todos esses movimentos, houve participação de negros, também eram seus
chefes os brasileiros mais populares, quase todos descendentes de negros ou de

581
Édison Carneiro fez a cobertura jornalística desse conflito em 1936. Cf. LINS, Marcelo. Uma voz dissidente:
A cobertura jornalística de Edson Carneiro à invasão do Posto Paraguaçu de 1936. In: ENCONTRO
ESTADUAL DE HISTÓRIA, 7., 2014. Anais... Cachoeira: Anpuh/BA, 2014.
582
“con nuestra participacion, los indios puesto de eso Servicio se han revoltado de armas en las manos,
luchando heroicamente por la defensa de sus tierras”. RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6, p. 8.
583
Ibidem, p. 10.
584
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6, p. 24.
585
“Finalmente fue en el nordeste donde la ---- de combate dada por Prestes y la Alianza de Liberación Nacional
encuentró más éco, haciendo la union, bajo la bandera de la liberacion nacional de indios, negros y mestizos, y
donde primero se hizo la insurrecion en 1935 contra el jugo imperialista, jefiadas por ‘caboclos’ y ‘pardos’,
mestizos de indios y negros.” Ibidem, p. 25.
220

índios. A “frente negra”, da qual falaremos adiante, aderiu à ANL, assim como a
apoiavam os índios de alguns postos de Serviço de Proteção já referido.586

Sobre as organizações negras:


É certo também que de 1930 até hoje se formaram e se desenvolveram organizações
especiais de negros (A Frente Negra), com o objetivo único de lutar “pela liberdade
da raça”. Mas, [ilegível], seus lemas são somente a igualdade de direitos,
econômicos, políticos e sociais, e também na maioria dos casos essas organizações
se unem a partidos políticos brasileiros de diferentes classes, inclusive de
latifundiários.587

A fim de concluir uma crítica à política do PCB sobre a questão negra e indígena,
Brandão remontou à definição de nação numa mimese da elaboração staliniana.
De fato, o que é uma nação? O camarada Stalin definiu com clareza depois de
mostrar categoricamente como ela “não é uma comunidade de raça nem de tribo”.
[...] “Nação”, define Stalin, “é uma comunidade estável historicamente formada de
idioma, de território, de vida econômica e de hábitos psicológicos refletidos em uma
comunidade de cultura”.
Dando essa definição clara, o camarada Stalin prova como a existência de uma
nação exige a presença de todos os símbolos distintivos que ele cita.
É necessário enfatizar que nenhum dos símbolos distintivos indicados, tomados
isoladamente, é suficiente para definir a nação. Mais ainda: basta que falte ainda que
seja um destes símbolos distintivos para que a nação deixe de ser uma nação.588

Para Brandão, as características necessárias e mínimas para que os negros pudessem


ser caracterizados como uma nação eram aquelas apontadas por Stalin. 589 A pergunta
fundamental para ele era precisamente se os negros, no Brasil, reuniam essas características.
Dentre elas estava, necessariamente, uma burguesia capaz de tocar a luta pela libertação

586
“En todos esos movimientos, hubo participacion de negros, además de que eran sus jefes los brasileños más
populares, casi todos descendientes de negros ó de índios. El ‘frente negra’, del qual hablaremos adelante
adheriu a la ANL, asi como la apoyaban los indios de algunos puestos del Servicio de Protecion ya referido.”
Ibidem, p. 26.
587
“Es cierto también que de 1930 hasta hoy se han formado y se desarrollaran organizaciones especiales de
negros (El Frente Negro), con el objetivo único de luchar "por la libertad de la raza". Pero, [ilegivel] solamente
sus consignas son las de igualdad de derechos, económicos, políticos y sociales, como también en la mayoría de
los casos, esas organizaciones se unen a partidos políticos brasileños de diferentes clases, incluso de
latifundiarios.” Ibidem, p. 28o6.
588
“De hecho, que es una nación? El camarada Staline ha definido con claridad después de muestrar
categóricamente como ella ‘no es una comunidad de raza ni de tribo’. (Stalin, El marxismo y el problema
nacional, Ediciones Europar America, Barcelona, p. 8)
[...] ‘Nacion’, define Stalin, ‘es una comunidad estable historicamente formada de idioma, de territorio, de vida
economica y de habitos psicologicos reflejados en una comunidad de cultura’. (p. 10 de Stalin)
Dando esa definición clara, el camarada Staline prueba como la ejistencia de una nación exige la presencia de
todos los signos distintivos que el cita.
‘Es necesario subrayar que ninguno de los signos distintivos indicados, tomado aisladamente, es suficiente para
definir la nación. Más aún: basta con que falte aunque solo sea uno de estos signos distintivos para que la nación
deje de ser una nación’. (p. 10 de Stalin)” RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6, p. 29. grifos do
original.
589
“Portanto, para que los negros del Brasil puedan ser llamados una nación, hace falta que ellos presenten todos
los signos indicados por Staline. Quiere decir, es preciso que los negros del Brasil sean una comunidad de
hombres que tengan una historia común, un idioma común y único, un territorio común, una vida económica
común, y hábitos psicológicos, cultura, comunes.” Ibidem, p. 29.
221

nacional, tarefa precipuamente burguesa, segundo Stalin, a quem Brandão seguia. A


conclusão do brasileiro foi peremptória.
Os negros do Brasil têm esses símbolos distintivos? É certo que, sobretudo na Bahia,
e mesmo no Maranhão ou Sergipe, existem pequenos “núcleos” territoriais onde os
negros estão mais ou menos restritos; é certo que, segundo uma entrevista publicada
em um diário do Rio de Janeiro, em 15 de julho de 1936, encontram-se na Bahia
filhos de africanos, populares entre a população negra do estado, que defende o
idioma, os costumes, a religião de seus pais e tem expressões como essa: “Os negros
da Bahia sentem, faz muito tempo, a necessidade se reunirem assim em família,
como nos bons tempos de África”; também é certo que o idioma nagô e os costumes
da magia negra, da religião negra (macumba, culto gege-nagô, etc.) até hoje são
seguidos por negros, apesar da bárbara perseguição policial, sobretudo no Rio e São
Paulo, Recife se faz sentir essa selvageria policial.
Mas pode-se dizer que com isso os negros são uma nação? Não. Eles não têm todos
os símbolos indicados por Stalin.590

Ora, ao não constituir uma nação, não poderia ser caracterizada como nação oprimida
nem, muito menos, reivindicar o lema da autodeterminação.
Nós já demos nossa opinião sobre os negros e os índios como nações oprimidas. À
luz do que nos ensina o camarada Stalin, não se pode ter os negros e índios como
nações. Serão raças, tribos oprimidas, que poderão talvez mais tarde formar nações;
mas hoje não são nações.
Então, está por isso mesmo resolvido o caso do lema da autodeterminação para os
negros e índios. Ele não é indicado para esse momento. E ele não é indicado não
somente porque não se trata de nações mas porque não convém à etapa atual da
revolução no Brasil este lema. O lema da autodeterminação, diz Stalin, não é sempre
defendido por nós. Os comunistas colocarão este lema, quando “a autonomia ou a
separação seja sempre e em todas as partes vantajosa para a nação, ou melhor, para a
maioria dela, ou seja para as classes trabalhadoras”.591

Para Brandão, o debate fundamental era com o PCB e não propriamente com a
Comintern ou outras instâncias do movimento comunista. Assim, arvorou-se, baseado em

590
“Los negros del Brasil tienen esos signos distintivos? Es cierto que, sobretodo en Bahia, y aún en Maranhão ó
Sergipe, hay pequeños "núcleos" territorio donde los negros están acumulados más ó menos; es cierto que, según
una entrevista publicada en un diario de Rio de Janeiro, en 15 de julio de 1936, se encuentra en Bahia todavía
hijos de africanos, populares entre la población negra del Estado, que defiende el idioma, los costumbres, la
religión de sus padres y que tienen expresiones como esa: "Los negros de Bahia sienten, hace mucho, la
necesidad de se reuniren así en familia, como en los buenos tiempos de Africa"; también es cierto que el idioma
nagô y los costumbres de la magia negra, de la religión negra (macumba, culto gege-nagô, etc) hasta hoy es
seguido por negros, a pesar de la perseguicion policial barbara, sobretodo en Rio y San Pablo, Recife se hace
sentir esa salvajería policial.
Pero, se puede decir que con eso son los negros una nación? No. Ellos no tienen todos los signos indicados por
Staline.” Ibidem, p. 30.
591
“Nosotros ya demos nuestra opinión sobre los negros y los indios como naciones oprimidas. A la luce del que
[p. 36] nos ensina el camarada Stalin, no se puede tener los negros y indios como naciones. Seran razas, tribos
oprimidas, que podrán talvez más tarde formar naciones; pero hoy no son naciones. Entonces, esta por eso
mismo resuelvido el caso de la consigna de autodeterminación para los negros y los indios. Ella no es indicada
en eso momento.
Y ella no es indicada no solamente porque no se trata de naciones como porque no conviene a la etapa actual de
la revolución en Brasil esa consigna. La consigna de autodeterminación, dice Staline, no es siempre defendida
por nosotros. Los comunistas plantearán esa consigna, cuando ‘la autonomía o la separación sean siempre y en
todas partes vantajosas para la nación, es decir, para la mayoría de ella, o sea para las capas trabajadoras’.”
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 118, fols. 001-039o6, p. 36-38.
222

alguns argumentos de autoridade,592 criticar as elaborações do partido a respeito da questão


negra e indígena. Concomitantemente às críticas, Brandão fez um mea culpa indicando as
limitações interpretativas e de acesso à leitura como causas dos equívocos das formulações do
PC.
Nós no Brasil, e eu principalmente, influenciados pelas teorias de Guralsky, e sem
conhecer o que haviam escrito Lênin e Stalin, não somente sustentamos por muito
tempo o lema da autodeterminação para os negros e índios, mecanicamente, como o
alargamos para os estados do Nordeste. Em nosso programa do Partido, em 1934,
aprovado com a presença de um enviado de [ilegível] e Guralsky, saiu essa
barbaridade, que somente poderia servir para criar no Brasil um caso semelhante ao
do Panamá na Colômbia, com grande satisfação dos opressores imperialistas.593

Em seguida, aponta a evolução do partido em relação à questão, o que ocasionou uma


nova postura sobre o tema.
No entanto, eu penso que, em 1935, nosso Partido corrigiu em parte seus erros de
1934, encarando com justiça o problema dos negros e índios, face a primeira etapa
de nossa revolução.
Assim, não somente os manifestos de Prestes, do Partido e da ANL lançaram os
lemas justos de “igualdade de direitos entre negros e índios” e “restituição das terras
roubadas aos índios”, como também nossa “Classe Operária” e nosso órgão de
massa, em primeiro lugar “A Manhã”, do Rio de Janeiro, defendiam com energia a
liberdade mais ampla para os costumes e a religião dos negros, combatendo com
força as perseguições policiais contra esses costumes. Além disso, nós participamos
ativamente do I Congresso Afro-Brasileiro realizado em Recife, que defendeu esses
direitos dos negros. Também por isso, as organizações negras do país aderiram com
entusiasmo à ANL e os sinceros defensores dos índios aplaudiram o programa de
Prestes, assim como tivemos posições em aldeias indígenas da Bahia e Maranhão.594

Octávio Brandão, nos idos de 1938, face aos expurgos dirigidos pela burocracia de
Stalin contra opositores políticos, foi obrigado a escrever longa e humilhante autocrítica. O
trecho que interessa a este trabalho é o seguinte:

592
“Nuestro Partido, aunque desde 1931-32 buscó estudiar esos problemas, no lo hice jamás con profundidad,
sobretodo porque solamente aquí yo fue uno de los únicos cuadros del partido que tuvo la felicidad de en 1935
conocer la literatura de Staline sobre la cuestión nacional.” Ibidem, p. 38.
593
“Nosotros en Brasil, y yo principalmente, influenciados por las teorías de Guralsky, y sin conocer lo que
habían escrito Lenin y Stalin, no solamente por mucho tiempo sustentamos la consigna de autodeterminación
para los negros y indios, mecánicamente, como la alargamos has los Estados del Nordeste. En nuestro programa
del Partido, en 1934, apruebado con la presencia de un enviado de [Cinani?] y Guralsky, salió esa barbaridad,
que solamente podría servir para crear en Brasil un caso semejante al del Panamá en Colombia, con grande
placer de los opressores imperialistas.” Ibidem, p. 38.
594
“Sin embargo, yo pienso que en 1935, nuestro Partido corrigió en parte sus erores de 1934, encarando con
justeza el problema de los negros y indios, face a la primera etapa de nuestra revolucion. RGASPI, F. 495, op.
17, d. 118, fols. 001-039o6, p. 38.
Asi, no solamente los manifiestos de Prestes, del Partido y de la ANL lanzaran las consignas justas de ‘igualdad
de derechos hacia negros y indios’ y ‘restituicion de las terras robadas a los indios’, como tambien nuestra ‘Clase
Operaria’ y nuestro organos de masa, em primero logar ‘A Manhã’, de Rio de Janeiro, defendian con energia la
libertad más amplia para los costumbres e y la religion de los negros, combatendo con fuerza las persecuciones
policiales contra esos costumbres. Además de eso, nosotros participamos activamiente en el 1o congreso afro-
brasileño realisado en Recife, que defendió esos derechos de los negros. También por eso, las organizaciones
negras del país adherirán con entusiasmo a la ANL y los sinceros defensores de los indios aplaudirán el
programa de Prestes, asi como tuvimos posiciones en aldeas indias de Bahia y Maranhão.” Ibidem, p. 39.
223

Eu não compreendi a característica da revolução no Brasil como uma revolução de


libertação nacional contra o imperialismo. Eu proclamei a luta imediata e simultânea
contra o imperialismo e o feudalismo, sem separar as etapas. Eu coloquei como
perspectiva um 1789 e um março de 1917.
Eu não compreendi a questão camponesa nem a questão agrária. Eu subestimei o
papel do campesinato; eu dei pouca atenção aos milhões de negros, de mulatos, de
mestiços e de índios. Em minha opinião, aqui está a razão desse erro: eu fui
anarquista por dois anos e meio (1919-1921). Diz-se que o anarquismo, tendência
oportunista, não compreendeu jamais a questão do Estado, nem o papel do partido
proletário, nem o papel do campesinato, etc. Está claro que uma luta real pela
hegemonia do proletariado é impossível se se subestimar o papel do campesinato, se
não levar à luta milhões de camponeses.
Eu exagerei as contradições entre a burguesia e os feudais. Eu estudei a história da
revolução francesa e apliquei mecanicamente suas lições políticas às novas
condições históricas do Brasil e do mundo.595

A autocrítica em relação à questão negra se materializou em função da pouca


intensidade a qual ele teria se dedicado ao tema. Brandão se acusava de não ter
problematizado, de modo algum, suas próprias elaborações sobre a questão, tendo-as mantido
tal qual elaboradas em “Los problemas negro y indio en Brasil”. De todo modo, sua tarefa a
partir de então viria a ser demonstrar as relações entre a exploração racial e a econômica
permeadas pelo imperialismo. Assim, ao caracterizar o proletariado latino-americano,
escreveu:
As minas de estanho na Bolívia pertencem principalmente aos imperialistas
americanos: Guggenheim. O minerador é, na maior parte, um índio. Ele é
terrivelmente explorado e oprimido – vítima de permanências pré-capitalistas, tais
como castigos corporais, mesmo na mina.596

A respeito do Brasil, Brandão, depois da autocrítica, aprofundou seu entendimento da


vinculação entre a exploração imperialista e racial, sem tampouco influir de maneira evidente
no debate partidário.
Setenta e um por cento da população do estado da Bahia, no Brasil, é formada por
negros e mulatos. Os trabalhadores e as trabalhadoras das fábricas de tabaco no
interior da Bahia, nas cidades de Cachoeira, São Félix e Maragogipe, são formados
por negros e mulatos. Eles são muito oprimidos pelos patrões: Dannemann, Stender
e Suerdich, isto é, imperialistas alemães. Esses imperialistas pagam um salário

595
“Je n'ai pas compris le caractère de la révolution au Brésil en tant que révolution nationale-libératrice contre
l'imperialisme. Je proclamais la lutte immediate et simultanée contra l'imperialism et le féodalisme, sans separer
les etapes. Je posais comme perspective un 1789 et un mars 1917.
Je n’ai pas compris la question paysanne ni la question agraire. J’ai sousestimé le rôle de la paysannerie; j’ai
donné peu d’attention aux millions de négres, de mulatres, de metis et d’indiens. A' mon opinion, voici la racine
de cette erreur: j'ai été anarchiste 2 1/2 ans (1919-1921). On sait que l'anarchisme, courant opportuniste, n'as pas
compris jamais ni la question de l'Etat, ni le rôle du pati proletarien, ni le rôle de la paysannerie, etc. Il est clair
qu'une lutte reelle pour l'hegemonie du prolétariat est impossible si on sousestime le rôle de la paysannerie, si on
n'entraine à la lutte les millions de paysans.
J'ai éxageré les contradictions entre la bourgeoisie et les féodaux. J'ai étudié l'histoire de la révolution françaisa
et j'ai appliqué mechaniquement ses leçons politique aux nouvelles conditions historiques du Brésil et du
monde.” RGASPI, F. 495, op. 197, d. 2, 13 abr. 1938.
596
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 153, fol. 47. “Les mines d'etain en Bolivie appartiennent surtout aux impérialistes
americains: Guggenheim. Le mineur est, pour la plupart, un indien. Il est terriblement exploité et opprimé --
victime de survivances precapitalistes, tels que les châtiments corporels, même dans la mine.”
224

muito baixo e fazem esses operários trabalharem 10, 12 horas por dia. Esses
imperialistas exploram também os pequenos camponeses, plantadores de tabaco:
eles compram o tabaco muito barato.597

Para Brandão, América Latina e Brasil eram palcos de “opressão nacional”, já que
segmentos raciais eram objetos prioritários da agenda imperialista. Assim, combater os efeitos
da “opressão nacional” levada a cabo pelos imperialistas constituía uma atividade que se
coadunava com o esforço de guerra em vigor.598
Nessa série de escritos, Octávio Brandão parecia debater, sobretudo, contra Bangu,
apelido de Lauro Reginaldo da Rocha, membro do Secretariado Nacional do PCB desde 1933,
alçado aos círculos dirigentes do partido durante a implantação do obreirismo. Foi ele quem
lançou a discussão sobre a questão nacional no partido durante a 1ª Conferência Nacional do
PCB, em julho de 1934. Para Bangu, o Brasil não constituía uma nação mas, sim, um
conjunto de nacionalidades. Ele identificou as causas disso associando as “areas tropical,
subtropical e temperada que influenciaram nas diversas nacionalidades aqui existentes”.599
Propôs “o lançamento da palavra de ordem de ‘autodeterminação para o Nordeste’, dizendo
que o proletariado das nacionalidades opressoras deve unir-se ao proletariado das
nacionalidades oprimidas”. 600 Bangu encaixou o Nordeste entre as nações oprimidas
observando: 1) “a grande tradição de luta das nacionalidades oprimidas do Brasil”; 2) que “o
Nordeste fornece 70% para as forças armadas do Brasil”; 3) a inconsistência, para ele, de
setores do PCB que entendiam nacionalidade apenas como referência aos imigrantes no
Brasil; 4) as relações longínquas dos trabalhadores brasileiros em relação aos estrangeiros.601
Para ele, a experiência de nacionalidades oprimidas no Nordeste deveria ser cotejada com
outras nacionalidades existentes no país.

597
RGASPI, F. 495, op. 17, d. 153, fol. 47, 4 nov. 1939. “71% de la population de l'Etat de Bahia, au Brésil, sont
formés par des nègres et mulâtres. Les ouvriers et les ouvriéres des fabriques de tabac à l'interieur de Bahia, dans
les villes de Cachoeira, Sao Felix et Maragogipe, sont nègres. Ils sont très opprimés par les patrons: Dannemann,
Stender et Suerdich, c'est-à dire, impérialistes allemands. Ces imperialistes payent un salaire trés bas et font les
ouvriers travailler 10, 12 heures chaque jour. Ces impérialistes exploitent aussi les petits paysans, planteurs de
tabac: ils achétent le tabac à trés bon marché.”
O mesmo documento foi replicado em 23 jun. 1940. Ambos fazem parte da documentação do Secretariado
Ibarruri, como ficou conhecido o Secretariado Latino-Americano depois que Dolores Ibarruri passou a dirigi-lo,
conforme aparece nos descritores dos arquivos da Comintern.
598
“Entre los habitantes se calcula que 36% son negros y mulatos, 35% son blancos y 28% son indios y mestizos
de indios. Los indios son en numero de 1 a 1 1/2 millón.
Los negros y los indios son oprimidos por los imperialistas y por los semifeudales. Los imperialistas ejercen
sobre todo el país la opresión nacional. De ahí ha importancia enorme, decisiva de la cuestion nacional en Brasil
como tambien en toda la America Latina. 20 de febrero de 1940.” RGASPI, F. 495, op. 17, d. 163, fol. 11.
599
“Ata da CONFERENCIA NACIONAL DO P.C.B.” RGASPI, F. 495, op. 029, d. 074, fol. 53. Cedem/Unesp,
ic-0391b.pdf.
600
Ibidem, p. 54
601
Ibidem, p. 54.
225

Embora a ampla maioria dos presentes na Conferência tenha apoiado Bangu, sua
proposta sofreria resistência por parte de alguns membros do PCB. Na ata da conferência,
Martinez expôs seu desacordo “com o ponto de vista de Bangu sobre a autodeterminação para
o Nordeste”.602 Outro militante, de codinome Mario, explicita contraditoriedade ao “tom
peremptorio de certas de suas affirmações como, por exemplo: uma nacionalidade nunca é
composta de um só typo racial”.603 Mauro, por sua vez, “não crê que o Nordeste, em seu
conjuncto, constitua uma nacionalidade. A palavra de ordem justa deve ser:
604
‘Autodeterminação para os negros e indios’”. Para Macário, a complexidade estava no fato
de o “Nordeste em seu conjuncto ser uma nacionalidade oprimida não exclui[r] a existencia,
alli, de minorias nacionais com direito a sua base territorial”.605 Bangu respondeu que “a
autodeterminação [...] não significa a separação forçada, mas o direito duma nacionalidade
dispor livremente de seus destinos. O governo operario e camponez é a unica garantia da
autodeterminação”.606
O avançar da década de 1930 e as fraturas internas do Partido e no movimento
comunista internacional fizeram com que a discussão racial entre comunistas navegasse com a
preponderância das questões internas, como atestam os resultados práticos do II Congresso
Afro-Brasileiro. A partir do paulatino desmembramento do Partido Comunista, durante o
Estado Novo, e dos braços da IC em finais da década de 1930, os comunistas brasileiros
rearticularam-se recrudescendo a tática da Frente Popular. Em resumo, as alianças com
setores liberais pela derrota do nazifascismo foram efetivadas, principalmente, no campo da
produção cultural. Obras de autores norte-americanos foram traduzidas por comunistas e
membros da Frente. Ao mesmo tempo, foram estabelecidas tentativas de construir veículos de
comunicação que expressassem a posição política aliancista, mesmo que dirigida pelo PCB.
Uma das expressões dessa política foi a revista “Seiva”.607

602
Ibidem, p. 54. Provavelmente, trata-se do mesmo Ricardo Martinez já citado.
603
Ibidem, p. 54. “Mario” refere-se provavelmente a Esteban Peano. Cf. KAREPOVS, Dainis. Luta
subterrânea: O PCB em 1937-1938. São Paulo: Editora da Unesp; Hucitec, 2003. p. 278.
604
Ibidem, p. 54. “Mauro” era codinome de Domingos Brás. Cf. KAREPOVS, 2003, p. 254.
605
Ibidem, p. 54. Trata-se, provavelmente, de Guilherme Yolles Macário. Cf. SILVA, Carine Neves Alves da.
Secretariado Sul Americano e Partido Comunista do Brasil (1926-1930). Dissertação (Mestrado em História
Social)–Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. p. 200.
606
Ibidem, p. 57.
607
A “Seiva” foi um entre tantos empreendimentos editoriais dos comunistas e antifascistas. Cf. ARBEX,
Luciana Bueno Marta. Intelectualidade brasileira em tempos de Guerra Fria: agenda cultural, revistas e
engajamento comunista. 2012. Dissertação (Mestrado em História Social)–Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2012.
Em 1940, foi publicada a obra “Memórias de um negro”, tradução de Graciliano Ramos de “Up from Slavery”,
de Booker T. Washington. Em 1941, “Filho nativo”, de Richard Wright, foi publicado em tradução de Monteiro
Lobato. Cf. FONSECA, Sílvia Asam da. A coleção Bibliotheca do Espírito Moderno: um projeto para alimentar
226

A publicação circulou entre dezembro de 1938 e julho de 1943. 608 Em sua história,
empenhou-se, dentre outras coisas, em propagandear a edição dos anais do II Congresso Afro-
Brasileiro, organizada por Arthur Ramos. A temática negra perpassou a história da revista em
artigos esparsos que apareceram em suas edições, até o número 4, de maio de 1939, que foi
dedicado ao debate da questão. Talvez, a periodicidade com que a “Seiva” debatia a questão
negra e o esforço desses intelectuais em traduzir poetas da renascença do Harlem tenham
levado o cônsul dos Estados Unidos a reportar a seu chefe imediato que “oficiais e indivíduos
na Bahia têm proliferado a doutrina segundo a qual os Estados Unidos são o foco de onde se
espalham ideias comunistas”.609
O grupo da Academia dos Rebeldes apareceu, sobretudo, em artigo de Aydano do
Couto Ferraz, que discorreu elogiosamente acerca de como a permanência das religiões afro
permitiu que a volta à África se concretizasse em território brasileiro. Ao contrário de
posições que vislumbravam a transformação do negro em algo mais próximo dos valores
ocidentais, Couto Ferraz escrevera sobre o legado cultural do elemento negro.
A empreitada materializada nesse periódico antifascista deu vazão a diferentes vozes.
Houve quem defendesse a necessidade de desalienar os negros do mundo do “candomblé e da
feitiçaria”. Houve quem advogasse a necessidade de livrar o negro da vadiagem, e quem
entendesse que o negro era capaz de maior reconhecimento que aquele de “candomblezeiro e
feiticeiro”. Embora não dissonantes, os argumentos diferiam em suas ênfases.
Em suma, para os comunistas a revista “Seiva” – e sua edição sobre o negro –
interrompeu uma linha de reflexão sobre a questão racial brasileira. Deixou em evidência que
entre os antifascistas não havia convergência em relação ao tema e, ainda, legou aos
comunistas baianos, sobretudo, uma agenda que já se delineava timidamente em 1935 com
Édison Carneiro e sua defesa dos terreiros de candomblé.
A escolha dos espaços culturais e de práticas negras como locais invioláveis
norteariam a pauta antirracista dos comunistas, como um todo. Embora a revista se insurgisse
contra práticas de segregação racial, o vigor fundamental estava na forja de espaços culturais

espíritos da Companhia Editora Nacional (1938-1977). 2010. Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 122, 123, 139, 301 e 349.
608
Circulou novamente entre novembro de 1950 e junho de 1952 (FALCÃO, João. A história da Revista Seiva.
Salvador: Ponto e Vírgual, 2008. p. 10). FERREIRA, Daniela de Jesus. Tempos de lutas e esperanças: a
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609
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p. 10, “officials and individuals in Bahia have long preached the doctrine that the United States is the focal point
for the spread of communistic ideas.”
227

e de sociabilidade para o negro, protegidos de uma sociedade eminentemente racista. A partir


de então, a política dos comunistas em relação à questão negra continuaria no mesmo ritmo.
Por inércia.
228

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