Dawsey - Victor Turner e A Antropologia Da Experiência PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 212

cadernos de campo

cadernos
de campo
REVISTA DOS ALUNOS DE PS-GRADUAO
EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP
ISSN

0104-5679

A n o 1 4 2005

13

VICE-DIRETORA

Cadernos da Campo revista dos alunos de ps-graduao em antropologia social da USP. Programa de PsGraduao em Antropologia Social, Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo.
N. 13, ano 14, 2005 So Paulo: USP, FFLCH.
Publicada desde 1991.

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Anual

Prof. Dr. John Cowart Dawsey


VICE-CHEFE Prof. Dr. Marta Rosa Amoroso

ISSN 0104-5679

UNIVERSIDADE DE SO PAULO

Prof. Dr. Adolpho Jos Melfi


VICE-REITOR Prof. Dr. Hlio Nogueira da Cruz

REITORA

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS


DIRETOR

Prof. Dr. Sedi Hirano


Prof. Dr. Sandra Margarida Nitirni

CHEFE

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

Prof. Dr. Paula Montero


VICE-COORDENADOR Prof. Dr. Jlio Assis Simes

COORDENADORA

1. Antropologia, 2. Etnografia, 3. Teoria e Mtodo, 4. Histria da Antropologia

COMISSO EDITORIAL

Andr-Kees de Moraes Shouten, Ceclia Rodriguez SantAna,


Daniela do Amaral Alfonsi, Danilo Paiva Ramos, rica
Peanha do Nascimento, Francisco Simes Paes, ris Morais
Arajo, Isabela Oliveira, Llian Sales, Mara Santi Buhler,
Rachel Rua Baptista e Rafaela de Andrade Deiab.
CONSELHO EDITORIAL

Alejandro Frigerio (FLACSO/CONICET, Buenos Aires),


Carlos Sandroni (UFPE), Carlos Steil (UFRGS), Cima
Bevilaqua (UFPR), Clifford Geertz (IEA, Princeton), Ellen F.
Woortmann (UnB), Esther Jean Langdon (UFSC), Joaquim
Pais de Brito (Museu Nacional de Etnologia, Lisboa), John
Cowart Dawsey (USP), Mrcio Ferreira da Silva (USP),
Mrcio Goldman (MN/UFRJ), Paula Montero (USP), Rose
Satiko (USP), Tnia Stolze Lima (UFF), Terence Turner
(Universidade de Cornell, Nova Iorque).

Cadernos de Campo revista dos alunos de ps-graduao em antropologia social da USP uma publicao anual
dedicada a divulgar trabalhos que versem sobre temas,
resultados de pesquisas e modelos terico-metodolgicos
de interesse para o debate antropolgico contemporneo
e que possam contribuir no desenvolvimento de pesquisas
em nvel de ps-graduao, no pas e no exterior.

ENDEREO PARA CORRESPONDNCIA


ADDRESS FOR CORRESPONDANCE

Cadernos de Campo revista dos alunos de


ps-graduao em antropologia social da USP
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315 - 05508-900
So Paulo/ SP - Brasil
e-mail: [email protected]

COLABORADORES DESTE NMERO

Alexandre Barbosa Pereira, Francirosy Campos Barbosa


Ferreira, Giovanni Cirino, Herbert Rodrigues, Janine Helfst
Leicht Collao, John Cowart Dawsey, Jos Guilherme
Cantor Magnani, Jlio Assis Simes, Lilia Moritz Schwarcz,
Lilian Krakowski Chazan, Madian de Jesus Frazo Pereira,
Marcelo Tadvald, Mrcio Ferreira da Silva, Marcio Goldman,
Maria Angela Gemaque lvaro, Marisol Rodriguez Valle,
Melissa Santana de Oliveira, Paula Siqueira, Peter Fry,
Renata Bortoletto Silva, Renato Sztutman, Rita Amaral,
Ronaldo Lobo, Tnia Stolze de Lima e Vagner Gonalves
da Silva.

Esta revista indexada pelo


ndice Brasileiro de Cincias Sociais IUPERJ/RJ
Ulrichs International Periodical Directory
Publicao Anual / Anual publication
Solicita-se permuta / Exchange desired
Tiragem: 600 exemplares
Todos os direitos reservados
Copyright 2005 by Autores

PREPARAO E REVISO DE TEXTO

Com-Arte Jr.
Comisso Editorial Cadernos de Campo
EDITORAO ELETRNICA E CAPA

Pedro Barros e Wildiney Di Masi


Ponto & Pixel (www.pontoepixel.com)
PROJETO GRFICO ORIGINAL

Ricardo Assis
FOTO DA CAPA

Peter Fry
Famlia Fashu, aldeia Mangengwa, Zimbabwe, 1964

FINANCIAMENTO: PPGAS/USP e NAU/USP


Para adquirir a Cadernos de Campo entre em contato pelo
e-mail: [email protected]

sumrio

editorial ..........................................................................................................................9
artigos e ensaios.....................................................................................................13
Vestindo o jaleco: reexes sobre a subjetividade e a posio do etngrafo em
ambiente mdico
............................................................................................15
Os caminhos da memria
....................................................................................
Ipanema e suas modas: passado x presente
............................................................................................
Filhos do Rei Sebastio, Filhos da Lua: construes simblicas sobre os nativos
da Ilha dos Lenis
.................................................................................
Nhanhembo: infncia, educao e religio entre os Guarani de MBiguau, SC
.......................................................................................
Oloniti e o castigo da festa errada: relaes entre mito e ritual entre os Paresi
.............................................................................................
Relendo Walter Benjamin: etnograa da msica, disco e inconsciente auditivo
- ..............................................
Imagens perigosas: a possesso e a gnese do cinema de Jean Rouch
......................................................................................................
artes da vida ............................................................................................................
Escrita urbana: a pixao paulistana
.......................................................................................

entrevista ..................................................................................................................
Entrevista com Peter Fry
, , , ,
.......................................................................................
tradues ..................................................................................................................
Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnograa
.......................................................................................................
Ser afetado, de Jeanne Favret-Saada
....................................................................................
Victor Turner e antropologia da experincia
. ..........................................................................................................
Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experincia (primeira parte),
de Victor Turner
............................................................................
resenhas ....................................................................................................................
FABIAN, Johannes. The Time and the Other: how anthropology makes its object.
..........................................................................................................
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira.
.......................................................................................................
informe
Os circuitos do NAU: informe das atividades desenvolvidas pelo Ncleo de
Antropologia Urbana da USP......................................................................................
instrues para colaboradores .....................................................................
nmeros anteriores..............................................................................................

contents

editorial ..........................................................................................................................
articles and essays ................................................................................................
Wearing the white coat: thoughts about the subjectivity and the ethnographers
place in a medical environment
............................................................................................
Ways of memory
....................................................................................
Ipanema and its vogues: past x present
............................................................................................
Children of King Sebastio, Children of the Moon: simbolic constructions about
Ilha dos Lenis natives
.................................................................................
Nhanhembo: childhood, education and religion among Guarani from MBiguau, SC
.......................................................................................
Oloniti and the punishment of the wrong party: relashionships between mith and
ritual among the Paresi
.............................................................................................
Rereading Walter Benjamin: ethnography of music, record and aural unconscious
- ..............................................
Dangerous images: possession and genesis of Jean Rouchs cinema
......................................................................................................
arts of life..................................................................................................................
Urban writing: the pixao in So Paulo
.......................................................................................

interview ....................................................................................................................
Interview with Peter Fry
, , , ,
.......................................................................................
translations ..............................................................................................................
Jeanne Favret-Saada, the feelings, the ethnography
.......................................................................................................
Being aected, by Jeanne Favret-Saada
................................................................................
Victor Turner and the Anthropology of Experience
. ..........................................................................................................
Dewey, Dilthey and drama: an essay in the Anthropology of Experience (st part),
by Victor Turner
........................................................................
reviews .......................................................................................................................
FABIAN, Johannes. The Time and the Other: how anthropology makes its object.
..........................................................................................................
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira.
.......................................................................................................
information
The NAUs circuits: information about the activities of Urban Anthropology
Group from USP ........................................................................................................
instructions to collaborators ..........................................................................
previous editions ...................................................................................................

editorial
Treize jeus un plaisir cruel de marreter sur ce nombre.

s vsperas de seu dbut, j que completando catorze anos de existncia, com uma espcie de prazer cruel que trazemos a pblico o
dcimo terceiro nmero de Cadernos de Campo,
revista editada pelos alunos de Ps-Graduao
em Antropologia Social da USP.
O nmero treze sempre esteve associado ao
infortnio, falta de sorte, ao risco, ao perigo.
De fato, contando com uma comisso editorial
quase que inteiramente renovada e ainda neta nas artes da editoria, os riscos e perigos que
corremos na formatao desse nmero foram
imensos. Da aquele prazer cruel, frmula paradoxal que talvez reita o nosso sentimento como
jovens editores, preocupados em realizar um trabalho condizente com a j consolidada tradio
da revista, em meio s diculdades impostas ao
longo dessa iniciao. certo que, durante o
processo, contamos com gentis ociantes, antigos editores sempre dispostos a nos ajudar na
superao dos percalos dessa jornada.
Mesmo estando sob um signo malfazejo, ou
mesmo por estar sob ele, arriscamos algumas
inovaes na revista. A comear pelo projeto
grco, procurando acertar mincias e incorporar as alteraes feitas nos ltimos cinco
anos, num trabalho de passar a limpo aquilo
que foi acumulado nesse perodo. Este esforo
est presente tambm nas esquecidas Instrues para colaboradores ao nal da revista,
onde procuramos tornar as informaes mais
objetivas, eliminando algumas ambigidades

constantes nas verses anteriores. Tais alteraes tm como norte os critrios Qualis (CAPES) de avaliao dos peridicos cientcos, na
tentativa de manter a boa avaliao que tivemos em 2004.
E j que revisvamos a revista, arriscamos
algumas ampliaes nas sees que compem
a Cadernos de Campo. Essas dizem respeito ao
nmero de tradues apresentadas nesta edio
e, especialmente, seo de artigos, que passa
a contar tambm com ensaios tericos, exerccios que jovens antroplogos tm empreendido
em conjunto com suas pesquisas empricas. J
a seo batizada com o potico nome Artes da
vida criada inicialmente para valorizar outras
linguagens que no o texto acadmico, mas que
nos ltimos nmeros restringiu-se aos ensaios
fotogrcos de pesquisadores em seus campos
de pesquisa , est agora aberta para outras
produes visuais que possam iluminar o debate antropolgico por novos e surpreendentes
ngulos, no intuito de retomar a sua proposta
de origem. Nossa nova poltica editorial tambm consagra s entrevistas uma outra dinmica, uma vez que aceitaremos, para o prximo
nmero, colaboraes de outros pesquisadores,
no apenas dos membros da prpria comisso
editorial. Uma ltima ampliao diz respeito
possibilidade da eventual publicao de trabalhos em lngua estrangeira (espanhol, francs e
ingls), com o intuito de expandir o leque de
colaboradores da revista, sobretudo nossos vizi-

10 |

nhos hispano-americanos. Para usar uma frmula consagrada neste espao: Novos tempos,
novos desaos!
Mesmo que is ao objetivo de apresentar a
variedade de temas com os quais lidam os antroplogos do Brasil e do exterior, o presente
nmero traz trabalhos de autores ligados no
s aos programas de ps-graduao nas cincias sociais, mas tambm de colegas da rea da
sade, campo de estudos que h muito tempo
erta com a antropologia. com grande prazer
que publicamos tais trabalhos, e nos colocamos
assim abertos s contribuies que, em dilogo com a nossa disciplina, propem-se a ver o
mundo a partir de outras paragens. Assim, o
artigo que abre esta edio, Vestindo o jaleco: reexes sobre a subjetividade e a posio
do etngrafo em ambiente mdico, de Lilian
Krakowski Chazan, discute os procedimentos
de pesquisa que resultaram em seu trabalho
acerca da construo do feto como Pessoa,
mediada pela tecnologia da imagem a partir
da ambigidade de suas identidades como pesquisadora, mdica e antroploga.
J o texto de Maria Angela Gemaque lvaro, Os caminhos da memria, nos leva ao
modo com que foram elaboradas as memrias
sociais de duas famlias consideradas tradicionais em Belm (PA). A autora desvenda, pela
anlise de depoimentos orais e de verses escritas dessas histrias de famlia, como se d
a construo de lembranas, de relaes entre
passado e presente.
Por sua vez, Marisol Rodriguez Valle em
Ipanema e suas modas: passado X presente
reete sobre como os livros e a imprensa criaram representaes sobre Ipanema, comparando compreenses, passadas e atuais, deste
bairro carioca sobre modos de vida, percepes
de mundo, cones e espaos de sociabilidade.
Madian de Jesus F. Pereira, em seu artigo
Filhos do Rei Sebastio, Filhos da Lua:
construes simblicas sobre os nativos da Ilha

dos Lenis, nos revela diferentes construes


sobre os albinos da Ilha dos Lenis (MA), ao
analisar as prticas discursivas acerca desses
ilhus levando em considerao um universo
de fora e um universo de dentro.
O texto de Melissa Santana de Oliveira,
Nhanhembo: infncia, educao e religio
entre os Guarani de MBiguau, SC, apresenta o modo com que trs espaos de socializao
infantil as rezas, o coral e a escola foram
pensados pelas lideranas locais, tendo em vista
a participao ativa das crianas no processo de
valorizao da tradio deste grupo Guarani.
Temos ainda o exerccio etnogrco de
Renata Bortoletto Silva, intitulado Oloniti e
o castigo da festa errada: relaes entre mito e
ritual entre os Paresi, que descreve o Oloniti,
ritual intercomunitrio, e um mito Paresi, O
castigo da festa errada. As relaes de simetria e
inverso entre mito e rito possibilitam analisar
cdigos que governam relaes sociais, cujos
valores so a reciprocidade e a predao.
Partindo das mudanas provocadas na arte
poca das alteraes dos meios de percepo
da mesma na contemporaneidade, o ensaio de
Andr-Kees de Moraes Schouten e Giovanni
Cirino, Relendo Walter Benjamin: etnograa da msica, disco e inconsciente auditivo,
retoma as reexes de Walter Benjamin, Theodor Adorno e Marcel Mauss, visando pensar
as possibilidades de uma etnograa da msica
a partir de materiais fonogrcos.
Fechando esta seo, Renato Sztutman em
Imagens perigosas: a possesso e a gnese do
cinema de Jean Rouch procura compreender
a obra de Jean Rouch a partir do lme Les
matres fous, j que nele que esse cineasta
traz, pela primeira vez, uma discusso mais
apurada sobre a linguagem do lme etnogrco. Enquanto Jean Rouch reete sobre
imaginrio e realidade, o autor costura uma
outra, acerca do cinema e suas relaes com a
antropologia.
cadernos de campo n. 13 2005

A seo Artes da vida, por sua vez, se abre


a todas as possibilidades da arte incluindo a
dvida e o dissenso em relao a ela ao apresentar folhinhas de pixadores paulistanos,
material de pesquisa recolhido por Alexandre
Barbosa Pereira. O autor chama a ateno para
a forma dada, pelos pixadores, s letras usadas
para inscrever suas marcas, bem como os suportes desse tipo de interveno os espaos
urbanos e as folhinhas trocadas entre pixadores, um modo de buscar perenidade a um tipo
de interveno efmera , visto essencialmente
como poluio visual.
J nossa entrevista foi realizada com Peter
Fry, antroplogo que desde os anos 1970 se inseriu no debate brasileiro estudando temas relacionados a questes raciais, gnero e religio.
O mote da conversa foi dado pelo lanamento
de A persistncia da raa, livro que rene textos
sobre o trabalho do autor em Moambique, no
Zimbbue e no Brasil. Na entrevista, Fry tratou de pontos polmicos que esto em pauta
na produo antropolgica contempornea,
como as polticas pblicas especcas para a
populao negra. Alm de tantas experincias
compartilhadas e problematizadas, Peter Fry
tambm nos forneceu a imagem da capa desta
edio, feita em sua pesquisa de campo entre os
Zezuru nos anos 1960.
Neste nmero 13, apresentamos, como j
mencionado, duas tradues. Seguindo um
procedimento consagrado da revista, apresentamos textos ainda inditos em portugus,
tornando-os mais acessveis principalmente
aos alunos dos cursos de graduao. Com essa
prtica, buscamos divulgar trabalhos de autores importantes para a nossa disciplina. Nesta
seo, ainda contamos com a colaborao de
professores que se propuseram a apresentar o
material traduzido e, desta maneira, apontar
para a relevncia das reexes de cada autor
para o debate antropolgico. Assim, o texto
Ser afetado, da antroploga francesa Jeanne
cadernos de campo n. 13 2005

Favret-Saada, foi traduzido por Paula Siqueira e conta com uma apresentao de Mrcio
Goldman. J Dewey, Dilthey e drama: um ensaio em antropologia da experincia, de Victor
Turner, foi traduzido por Herbert Rodrigues e
discutido por John Cowart Dawsey.
As resenhas de Marcelo Tadvald e Ronaldo
Lobo, por sua vez, visam apontar para a relevncia da leitura dos livros de Bernardo Lewgoy,
O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira, e de Johannes Fabian, The Time and the
Other: how anthropology makes its object.
Por m, nossa ltima modicao para
atender as exigncias dos critrios Qualis foi
a reformulao de nosso Conselho Editorial.
Esse espao agora agrega especialistas no apenas da nossa prpria casa, mas privilegia o dilogo com professores de diferentes instituies
acadmicas, brasileiras e internacionais. Gostaramos, portanto, de agradecer o interesse dos
novos conselheiros que ao aceitar nosso convite, passaram a partilhar conosco tentando
aprimorar, sempre a Cadernos de Campo.
Ao ver a Cadernos 13, assim, pronta, s nos
resta agradecer aos autores que, acreditando em
nosso projeto editorial, conaram seus trabalhos em nossas mos, e aos pareceristas externos
que, com rigor e generosidade intelectual, nos
auxiliaram na escolha dos textos aqui apresentados. Ademais, uma srie de pessoas nos ajudou
a materializar essa edio. Agradecemos a colaborao da Prof Bela Feldman-Bianco, que
nos forneceu a lista completa dos critrios Qualis (CAPES); ao Prof. Peter Fry, que gentilmente
nos concedeu a entrevista e cedeu a imagem da
capa; ao Prof. Julio Assis Simes, que nos ajudou a organizar a entrevista com Fry; ao Prof.
Mrcio Silva, editor chefe da Revista de Antropologia, que forneceu dicas preciosas para o trabalho editorial; Prof Lilia Moritz Schwarcz,
que nos ensinou sobre os meandros de direitos
de traduo; e aos professores Jos Guilherme
Magnani e Vagner Gonalves da Silva, que,

12 |

em nome do Ncleo de Antropologia Urbana


(NAU), colaboraram nanceiramente para a
publicao deste nmero. Por m, mas no menos importantes, deixamos os agradecimentos
s professoras Beatriz Perrone-Moiss e Paula
Montero, respectivamente ex e atual responsveis

pela coordenao Programa de Ps-Graduao


em Antropologia Social da USP. Foi graas ao
apoio dado nesses 14 anos por esse programa
que a revista existe e ser com a inteno de melhor-la ainda mais que continuaremos nesse
prazeroso, porm cruel, ofcio editorial.

cadernos de campo n. 13 2005

artigos
e ensaios

Vestindo o jaleco: reflexes sobre a subjetividade


e a posio do etngrafo em ambiente mdico*
LILIAN KRAKOWSKI CHAZAN
Doutora em Sade Coletiva pelo PPGSC/IMS/
UERJ e bolsista FAPERJ.
Artigo aceito para publicao em 18/09/05

resumo A autora discute questes surgidas no

abstract The author discusses some issues

decorrer do trabalho de campo, parte da tese de doutorado, cuja temtica consiste na construo do feto
como Pessoa, mediada pela tecnologia de imagem.
Foram observadas ultra-sonograas obsttricas em
clnicas do Rio de Janeiro, RJ, e neste texto problematizado o fato de buscar um olhar antropolgico em ambiente mdico, sendo ela prpria mdica.
O pedido de que vestisse o jaleco em duas clnicas
gerou questes acerca da identidade da observadora,
como mdica e como antroploga. Discute-se como
esta dupla insero opera no decorrer da pesquisa,
em relao aos atores deste universo e no olhar da
observadora. A presena desta pareceu ser mais perturbadora para os mdicos do que para as gestantes.
O modo como a perturbao era expressa diferiu de
acordo com o gnero do ultra-sonograsta. A formao mdica facilitou a entrada no campo e a aceitao da pesquisa por parte de seus sujeitos e por
outro lado h uma tenso quando a pesquisadora
busca estranhar uma situao duplamente familiar.
palavras-chave pesquisa qualitativa; etnograa; observao participante; identidade do pesquisador; subjetividades.

that arose in the course of eldwork, part of her


doctorate thesis about the social construction of
the foetus as a person through imaging technology.
The research involved the observation of obstetrical
ultrasound scans in private clinics in Rio de Janeiro-Brazil. The problem in point was the search for
an anthropological view in a medical environment,
the observer herself being a physician. The request
that she wear a white coat caused questions to arise
concerning the identity of the observer, as a doctor
as well as an anthropologist. It is queried how this
duality operates in the course of the research, with
regard to the actors in this universe and in the view
of the observer. Her presence appeared to be more
perturbing to the doctors than to the mothers-tobe. The way in which the perturbation was expressed diered according to the gender of the doctor.
The researchers medical background facilitated the
authors attendance at the examinations and the acceptance of the research by the subjects observed;
on the other hand, there is a tension raised by the
observers attempt at reaching an anthropological
view in a situation that is doubly familiar to her.
keywords qualitative research; ethnography;
participant observation; researchers identity; subjectivities.

Este texto uma segunda verso do trabalho apresentado na 24a Reunio Brasileira de Antropologia,
Olinda, PE, 2004, no FP 36: Antropologia, trabalho
de campo e subjetividade: desaos contemporneos.

cadernos de campo n. 13: 15-32, 2005

16 |

Introduo
Neste texto so discutidos alguns aspectos
das relaes intersubjetivas surgidas no decorrer do trabalho de campo observando ultra-sonograas (US) obsttricas em clnicas privadas
designadas por A, B e C do Rio de Janeiro,
RJ, parte da pesquisa desenvolvida para a tese
de doutorado. O foco da investigao consistia
na construo social do feto como Pessoa mediada pela tecnologia de ultra-som, produtora
de imagens fetais.1 Ao longo da realizao da
etnograa surgiram diversas questes envolvendo a identidade prossional da observadora. O principal ponto em discusso neste artigo
consiste no fato de ser graduada em medicina
e buscar um olhar antropolgico em ambiente
mdico. Esta dupla identidade, por assim dizer,
necessariamente congurou meu olhar e o relacionamento com os atores do universo observado. Por um lado, facilitou os contatos iniciais
e a aceitao da pesquisa pelos responsveis pelas clnicas, por se tratar de uma colega.2 Por
outro, a familiaridade com o ambiente mdico
vez por outra dicultava o distanciamento e o
estranhamento necessrios para uma etnograa.
O fato de ser psiquiatra e psicanalista tambm
emergiu como uma questo identitria no campo mas, pelo prisma do estranhamento antropolgico, foi secundria duplicidade principal
de ser mdica e estar realizando uma pesquisa
antropolgica naquele ambiente.3 Na clnica A,
1. A partir de ns da dcada de 1980, a US obsttrica tornou-se uma prtica mdica considerada indispensvel
no pr-natal. Na dcada de 1990, na Amrica do Norte
e Europa, produziu-se uma srie de estudos antropolgicos sobre as prticas e os signicados da expanso do
uso do US na gravidez. A reviso desta literatura parte de minha dissertao de mestrado (Chazan 2000).
2. Aspas simples so minhas; uso aspas duplas para citaes de autores ou falas dos informantes, estas em
itlico.
3. Existe uma produo brasileira recente de etnograas
em ambiente mdico (Gonalves 2001; Rojo 2001;

durante todo o tempo usei trajes comuns. O


pedido de que vestisse o jaleco nas clnicas B e
C catalisou diversas questes acerca da subjetividade presente no trabalho de campo e da minha insero identitria como mdica e como
antroploga. Utilizo essa ocorrncia como um
ponto-chave para a discusso sobre como esta
dupla insero, de carter dinmico e bastante
signicativo, operou no decorrer da pesquisa,
em relao aos atores deste universo e ao meu
olhar.4 De um modo geral, a minha presena
na sala de exames pareceu perturbar mais aos
mdicos do que as gestantes. O modo como a
perturbao era expressa diferiu de acordo com
o gnero do ultra-sonograsta. Para situar em
que contexto se desenvolveram as questes que
abordo aqui, apresento de modo breve o desenho da pesquisa e caractersticas das clnicas
etnografadas, retomando adiante a entrada no
campo e o detalhamento do contexto.
Pouco depois de iniciada a observao na
primeira clnica, percebi a necessidade de mudar o escopo do campo,5 por vericar que, se seguisse o projeto original, o nmero de variveis
em jogo tornaria a anlise invivel no tempo de
que dispunha.6 Durante o ano de 2003 observei
Monteiro 2001; Luna 2004; Menezes 2000, 2004).
Dentre elas destaco especialmente a ltima, por dialogar de perto com o presente trabalho. Decorrente
do fato de termos formao similar, essa autora enfrentou questes muito semelhantes s aqui abordadas. Rojo, em contraste, destaca o fato de na maior
parte do tempo no me [sentir] estudando meu prprio grupo (Rojo 2001: 18).
4. Por conseguinte, impossvel escapar, neste texto, de
algum grau de confessionalidade.
5. A princpio, pretendia comparar a prtica do US obsttrico em um hospital pblico, um universitrio e
uma clnica particular. Rojo (2001: 14) tambm discute a mudana de escopo ao entrar no campo e perceber a complexidade e diculdade de se estabelecer
uma abordagem comparativa em tempo exguo.
6. Outros pontos relevantes para a mudana foram
a constatao da existncia de uma interatividade
constitutiva dessa tecnologia de imagem e de um
cadernos de campo n. 13 2005

exames, buscando compreender de que maneira prossionais, gestantes e acompanhantes


lidavam com a US obsttrica, em termos de
discursos e prticas. Meu foco de observao
estava nas negociaes ocorridas em torno das
imagens fetais, motivo pelo qual optei por no
realizar entrevistas com as gestantes.7 As conversas com elas e seus acompanhantes restringiam-se em geral explicao sobre a pesquisa
e ao pedido de autorizao para observar. Entre
um e outro exame ocorreram diversas interaes com os prossionais meus principais
informantes que constituem o ncleo das
reexes e da discusso que desenvolvo neste
texto. Durante os exames tomava notas e mais
tarde construa relatos das situaes e dos dilogos ocorridos em cada dia. As clnicas A e B
eram conveniadas com planos de sade de preos variados que, em termos de renda, distribuam a clientela. A clnica B costumava atender
a um grupo claramente menos abastado do que
as outras duas. A clnica C s realizava exames
particulares, com preos a partir de R$ 110,00,
poca. A peculiaridade de sua clientela advinha de existir um vnculo com um centro de
reproduo assistida, motivo de ali encontrar
mais gestaes consideradas de risco do ponto de vista mdico e mltiplas do que nas
outras duas. Grosso modo, estimei que a clnica
processo de construo de uma cultura visual especca dos atores do universo observado, temas que
me pareceram merecedores de uma investigao mais
aprofundada (Chazan 2005: 203-234). Da decorreu
o trabalho de campo ser redirecionado para a observao de mais duas clnicas privadas que, por motivos
de ordem variada, atendiam a gestantes de diferentes
estratos das camadas mdias da populao (ver abaixo, nota 9).
7. Outro motivo da opo envolve ter considerado que,
por ser a psicanlise minha rea original de atuao, se
me aproximasse de modo mais individualizado com
os sujeitos da pesquisa seria difcil me desvencilhar de
referenciais familiares. As interaes me interessavam
mais do que apenas os discursos.
cadernos de campo n. 13 2005

A atendia mais a clientes de camadas mdia e


mdia/alta, a B, mdia e mdia/baixa, e a C,
mdia/alta e alta.8

1 O familiar e o extico: sobre o olhar


e o estranhamento
Ao longo do tempo em que permaneci
no campo, as indagaes foram mudando
medida que construa uma identidade como
pesquisadora. Comeando pelo problema que
inicialmente me ocupou, o de buscar um olhar
antropolgico em ambiente mdico sendo
graduada em medicina, existem ainda outras
particularidades que complexicam o problema do estranhamento necessrio anlise do
material. O fato de explicitar esses aspectos e
delinear a minha posio no campo permite
que implicitamente se estabelea uma discusso sobre as relaes de poder que a tm lugar, conforme aponta Cliord (1986: 15). Por
questes pessoais, as imagens radiogrcas e
uma noo, mesmo que incipiente, de transparncia do corpo humano, estiveram presentes em minha vida desde muito cedo, fazendo
parte da construo do meu olhar em termos
de cultura visual.9 Anos depois, cursei medicina, enveredando pela psiquiatria e, em seguida,
pela psicanlise. Estas peculiaridades produziram dois nveis distintos de familiaridade com
o universo etnografado: um primeiro, quase intrnseco, relacionado construo cultural do
corpo e do meu olhar, e um segundo, vinculado ao conhecimento posterior de medicina. As
8. A diviso no rigorosa, pois no investiguei o perl
scio-econmico das gestantes. Estabeleci essa classicao baseada na observao dos trajes e da linguagem das gestantes, alm da localizao das clnicas na
cidade. A clnica A se situava na Zona Oeste, moradia
de camadas mdias em ascenso, a B na Zona Norte,
rea de grupos de menor poder aquisitivo, e a C encontrava-se na Zona Sul, rea nobre.
9. Rero-me especicamente ao fato de meu pai ser mdico e radiologista.

18 |

pesquisas no decorrer da ps-graduao problematizaram aspectos relacionados visualidade,


ao uso de tecnologias visuais em medicina com
a conseqente transparncia do corpo, e
prpria medicina. A proximidade com aspectos constitutivos do campo que me propunha
a observar de um ponto de vista antropolgico
eram, conforme apontado por Latour, o grande desao, em termos de disciplinar o olhar,
manter a distncia (Latour & Woolgar 1997:
27).10 Meu primeiro aliado na possibilidade de
manter alguma distncia residia na quase total
incapacidade desde os tempos de graduanda
do curso mdico em decodicar as imagens
sobre as quais meus informantes trabalhavam
e com as quais interagiam cotidianamente. Segundo DaMatta,
(...) [S] se tem Antropologia Social quando se
tem de algum modo o extico, e o extico depende invariavelmente da distncia social (...) vestir a
capa de etnlogo aprender a realizar uma dupla
tarefa (...) transformar o extico no familiar e/ou
transformar o familiar em extico. E, em ambos
os casos, necessria a presena dos dois termos
(que representam dois universos de signicao)
e (...) uma vivncia dos dois domnios por um
mesmo sujeito disposto a situ-los e apanh-los
(DaMatta 1978: 28; grifos originais).

O primeiro passo, portanto, ao abordar


meu campo de pesquisa, consistia em transformar o que me era bastante familiar em
extico, de modo a poder torn-lo objeto de
estudo e, em seguida, fazer o caminho de volta, transformando este extico em familiar em
outro nvel, por meio de traduo para uma
linguagem antropolgica.11 Ainda conforme
DaMatta,
10. Sobre a tenso entre familiaridade e estranhamento
pelos mesmos motivos, cf. Menezes (2000: 22).
11. Sobre o extico e o familiar, ver tambm o texto clssico de Velho (1978).

As duas transformaes esto, pois, intimamente relacionadas e ambas sujeitas a uma


srie de resduos, nunca sendo realmente perfeitas. De fato, o extico nunca pode passar
a ser familiar; e o familiar nunca deixa de ser
extico (DaMatta 1978: 29).

O trnsito entre as duas esferas distintas


em termos epistemolgicos e prticos esteve
presente todo o tempo durante o trabalho de
campo e operou em diversos nveis, dos mais
concretos aos mais abstratos. Do ponto de vista
prtico, a iniciao prvia na medicina, alm
de propiciar contatos pessoais entre os especialistas em imagem, facilitou a minha aceitao
e a entrada no campo.12 Pode-se compreender
esta acolhida como os mdicos me tomando
por nativa, pois mesmo informando-os que
me propunha a uma investigao antropolgica, freqentemente os prossionais empenhavam-se em me fornecer explicaes de
cunho especializado, de colega para colega.13
Compreendi este comportamento como uma
estratgia no proposital dos meus informantes visando neutralizar o desconforto provocado pela minha presena como observadora,
em outras palavras, pela violncia irredutvel
12. Considero aqui o estudo da medicina como um processo inicitico sem me estender nele. Cf. o clssico
de Becker et al. (1997). A formao psicanaltica tambm pode ser considerada como outra iniciao, mas
focalizo apenas a primeira por ser qualitativamente
a mais signicativa. As diculdades iniciais de um
pesquisador no-mdico em ter acesso ao ambiente
mdico esto bem descritas por Rojo (2001: 21). Em
contraste, Monteiro, sociloga, assinala a facilidade
e a informalidade com que foi aceita na unidade do
hospital onde observou cateterismos cardacos, em
Albany, NY (Monteiro, 2001: 45). O que parece
ocorrer que, dependendo do campo a ser etnografado, mesmo para o observador com formao mdica
esse acesso pode ser bastante dicultado, conforme
descreve Menezes (2004: 20-21).
13. Menezes (2000: 10) relata o mesmo tipo de atitude
didtica em seus informantes do CTI observado.
cadernos de campo n. 13 2005

do trabalho etnogrco, conforme Rabinow


(1977: 129), ou pela intruso nos termos de
Cliord (1983: 140) inerente a este tipo de
abordagem e parte essencial da produo dos
fatos a serem observados. Em um plano mais
abstrato, esta atitude didtica deles, conjugada minha reao, resultou em uma espcie
de aprendizado paralelo minha revelia tendo
como fruto uma modicao efetiva na minha
[in]capacidade em decodicar as imagens ultra-sonogrcas que eram exibidas na tela do
monitor. Aos poucos, involuntariamente, as
imagens tornaram-se mais familiares para mim
e tal mudana passava a obscurecer a estranheza do fato de como diferentes manchas cinzentas eram subjetivadas pelos atores. De incio,
a situao me preocupou, pois a incapacidade
em compreender as imagens era a minha principal ferramenta para obter o distanciamento
de que necessitava. medida que prosseguiu o
trabalho, contudo, percebi que o fato de conseguir, embora precariamente, entender sozinha
o que estava sendo visibilizado14 na tela permitia-me acompanhar em tempo real o que
estava sendo decodicado pelo mdico e passar
a focar a ateno nas estratgias discursivas ou
visuais do operador para, por exemplo, dar ou
evitar fornecer ms notcias gestante.15 Em alguns momentos, contudo, notava estar demasiado interessada em questes mdicas em si, e
a percebia a necessidade de disciplinar minha
curiosidade. Ao afastar a medicina como foco
de curiosidade, aproximava-me do meu objetivo. Duas atividades correlatas eram o principal
14. Utilizo visibilizar e no visualizar porque um termo nativo e, a rigor, a tecnologia do US assim como
todas as tecnologias de imagem mdica torna visvel algo no acessvel ao olhar.
15. Monteiro refere experincia semelhante: ao se familiarizar com as imagens de cateterismo sobre as quais
seus sujeitos trabalhavam cotidianamente, tornou-se
mais rpida nas anotaes e passou a focar a ateno em outros aspectos das interaes entre os atores
(Monteiro 2001: 48).
cadernos de campo n. 13 2005

modo de retomar a distncia: o ato de tomar


notas durante as observaes e a posterior
construo dos relatos.16 Essa ltima atividade, em especial, permitia-me resgatar o foco da
observao. A oscilao entre duas identidades
prossionais foi constante e tornou-se constitutiva do trabalho, como no poderia deixar de
ser. Em vrias ocasies utilizei-me conscientemente da familiaridade com o discurso mdico e de ter genuna curiosidade sobre temas da
medicina como estratgia para estabelecer um
contato menos formal e porque no dizer
menos persecutrio para os prossionais. Com
freqncia percebia estar falando a lngua dos
nativos, utilizando um jargo que me era familiar, para perguntar e debater assuntos variados
dentro do campo mdico. Esse comportamento era bem recebido pelos meus informantes
e reduzia eventuais inquietaes sobre o que
voc tanto anota?17 no pequeno chrio utilizado para as notas de campo.18
Conforme aponta Geertz (1984: 134), um
aspecto essencial necessariamente presente em
uma etnograa repousa na interpretao do
que est sendo focalizado. Para tal, necessrio conhecer-se e entender os elementos que
se apresentam, decodicando seus signicados
16. Sobre a alternncia entre aproximao e afastamento
do objeto, cf. Menezes (2004: 23,24).
17. Nos exemplos do campo usei sublinhado sempre que
a nfase era do autor da fala. Negritos so nfases
minhas. Editei o mnimo possvel o material visando
preservar ao mximo a vivacidade e a espontaneidade das falas dos atores. Adiante, a descrio extensa
e mais detalhada das clnicas visou contextualizar a
observao e, tambm, mant-la abert[a] interpretao acadmica (e reapropriao pelos nativos)
como apontaram Codere e Hymes nesse tipo de abordagem (Cliord 1998: 239).
18. Usava um chrio de tamanho mnimo, repondo folhas aps cada dia de observao, porque a capa dura
oferecia apoio para que eu tomasse notas o que em
geral acontecia de p, durante os exames e tambm
porque isto permitiu que as folhas com os registros
dirios fossem arquivadas separadamente.

20 |

para o grupo em questo. Nesse sentido, estar


familiarizada com a cultura mdica e com o
jargo corrente entre os prossionais foi facilitador para a elaborao da etnograa e poupou um tempo precioso de aprendizagem da
lngua nativa. Foi como se eu pulasse uma
etapa de iniciao na cultura do universo etnografado.19 Esta se deu, em um segundo momento, por meio do treinamento involuntrio
do meu olhar. De acordo com Becker e Geer,
erros de interpretao sobre o teor do material
fornecido pelos informantes esto calcados no
fato de que freqentemente no entendemos
o que no estamos entendendo e assim camos propensos a cometer erros ao interpretar
o que nos dito (Becker e Geer 1978: 77).20
Ter sido iniciada na linguagem e na cultura
prprias do universo que pretendia observar,
muito antes de pensar na rea mdica em termos antropolgicos, produziu um deslocamento da experincia de iniciao no campo para
a esfera mais estrita da etnograa, da qual inclusive o presente texto pode ser considerado
um dos elementos, como assinalam Marcus &
Fischer (1986: 21). Sentia-me segura de estar
entendendo meus informantes por seu prprio
ponto de vista, sendo este o lado positivo de
ter uma formao mdica buscando uma viso
antropolgica naquele ambiente. Por outro
lado, era um fator problemtico para a segunda
iniciao, antropolgica, por dicultar o estranhamento necessrio elaborao da etnograa. A construo dos primeiros relatrios de
campo e, mais adiante, do texto etnogrco em
si, produziram de fato um efeito de distanciamento da minha primeira iniciao e o incio
da segunda.
19. Acerca da questo de aquisio de conhecimento tcnico aquisio de competncia nativa em etnograas mdicas ou em ambientes tecnolgicos, cf. a
discusso de Monteiro (2001: 47).
20. A traduo dos textos citados de minha autoria, salvo meno expressa.

2 Primeiros contatos e entrada no


campo
O primeiro contato que obtive foi com
dra. Lcia,21 da clnica B, indicada por uma
ginecologista-obstetra como uma competente
especialista em US obsttrico. Dr. Henrique,
da clnica A, foi recomendado nos mesmos termos, por um radiologista, meu conhecido de
longa data. Em diferentes ocasies, ambos me
receberam para conversar aps o expediente.
Os dois encontros antecederam em cerca de
um ano a entrada efetiva no campo. Dr. Henrique, diferentemente de sua colega, discorreu
longamente sobre a especialidade, contou casos
e teceu crticas a certos usos e, no seu entendimento, abusos da utilizao de US na
gravidez. Nas duas vezes iniciei a conversa perguntando pela rotina em US na gestao. Em
retrospecto, veriquei que j nesses primeiros
contatos surgiu uma diferena de atitude que
emergiu como padro ao longo da observao,
vinculada questo de relaes de gnero no
campo: os mdicos sempre se mostraram muito
mais prolixos do que suas colegas, tema ao qual
retornarei. Para alm desse aspecto, as longas
explicaes e palestras informais apontaram
para o fato de que meus informantes estavam
mais acostumados a serem eles os decodicadores de imagens e enunciadores de verdades do
que objeto de uma observao que permitiria
produzir um texto etnogrco sobre eles e sobre
as verdades produzidas por eles.
Cerca de um ano depois desses primeiros
contatos, iniciei a observao na clnica A, semanalmente, nela permanecendo por 3 meses. Nesse perodo acompanhei em especial
dr. Henrique, o preferido pelas gestantes e
referncia principal desta clnica para os exames obsttricos, embora outros prossionais
tambm os realizassem. Surgiu-me ento uma
21. Nome ctcio, como todos neste trabalho.
cadernos de campo n. 13 2005

dvida acerca do quanto certas prticas seriam


peculiares ao dr. Henrique, por singularidades
pessoais, da decorrendo, entre outros motivos,
ter resolvido mudar o escopo da etnograa, estendendo a observao para mais duas clnicas
particulares. O contato com dr. Slvio, dono da
clnica C, ocorreu por intermdio de dr. Henrique, algum tempo aps o incio do trabalho
de campo.22 Ao telefone, ele aceitou que eu observasse em sua clnica, pois dr. Henrique lhe
teria dito que eu s assistia e tomava notas;23
fez ainda questo de me dizer que foi o primeiro a fazer US no Rio de Janeiro e pediu que
levasse jaleco para observar os exames. Na primeira vez que fui clnica, para preencher uma
formalidade,24 ele veio ao meu encontro em
trajes de centro cirrgico25 e me reconheceu de
reunies que participara com alguns psicanalistas. Conversamos sobre a pesquisa e, sabedor
de que eu observara a clnica A, disse: Aqui
voc vai observar uma situao completamente
diferente de clnica de convnio, os exames levam
uma hora ou mais..., o tom de sua fala conotando aqui voc vai ver como que se faz de
verdade, para valer. Na despedida, indicou-me
s atendentes, dizendo-lhes que eu freqentaria
a clnica. Muito receptivo, satisfeito em mostrar sua clnica e seu renome prossional, de
modo anlogo s explicaes cientcas acima
mencionadas, este conjunto de atitudes denotou um outro modo de delimitao e rearma22. Ver nota 6, acima. Como o contato com a clnica B j
havia sido estabelecido, foi a obteno de permisso
para observar pelo dono da clnica C que emprestou
etnograa seu contorno denitivo.
23. A rigor, conhecia Dr. Slvio h muitos anos, mas ele
no se lembrava de mim, obviamente.
24. Nas 3 clnicas apresentei o projeto para ser assinado
pelo responsvel, sendo a seguir submetido ao comit de tica do IMS/UERJ, vinculado ao CONEPE.
Aps essa aprovao iniciava as observaes.
25. Nesta clnica eram realizados procedimentos tais
como bipsia de vilo corial e amniocentese, que requeriam ambiente assptico.
cadernos de campo n. 13 2005

o de posio dentro das relaes de poder no


campo. A noo veiculada por ele, de que ali eu
teria acesso coisa certa, de um ponto de vista
de protocolos cientcos, sugeria uma tentativa de direcionar meu olhar para um campo no
qual ele seria o detentor de conhecimentos e
de uma posio privilegiados como mdico,
dono da clnica e precursor da especialidade no
Rio de Janeiro.

3 As clnicas
Alguns detalhes da decorao das trs clnicas, assim como os espaos de circulao e
das salas de exames eram signicativamente diferentes e remetiam ao nvel scio-econmico
da clientela atendida.26 Os donos das clnicas
B e C so os primeiros prossionais que se estabeleceram na rea de US no Rio de Janeiro.
O dono da clnica A investe pesadamente na
aquisio de equipamentos de ltima gerao
em diversas tecnologias de imagem mdica e
representaria, por assim dizer, o futuro em
termos de diagnstico por imagem no Rio de
Janeiro. De certo modo, sua credibilidade repousa parcialmente neste aspecto, em contraste com a autoridade mais calcada no peso da
tradio, das clnicas B e C. A preocupao
em estarem atualizados, com a compra de equipamentos cada vez mais sosticados, comum
aos trs, que investem grandes somas neste sentido. A clnica B uma lial modesta de uma
grande clnica de US, em cuja matriz esto os
equipamentos mais modernos.
A clnica A, denominada A-mulher, conforme o nome explicita destina-se exclusivamente
clientela feminina: realiza US ginecolgico e
obsttrico, mamograas e densitometrias sseas, sendo uma das unidades de uma clnica de
26. Em termos do nvel de especializao e procincia
dos prossionais, as trs clnicas se equivalem e, do
ponto de vista tcnico, so igualmente bem conceituadas entre ginecologistas e obstetras.

22 |

imagem. Encontra-se em um grande shopping,


na mesma rea das lojas, e a fachada da clnica
facilmente confundida com as outras: envidraada, com portas de vidro com o logotipo
pintado. A sala de espera ampla e na entrada
h um aparelho para retirada de senhas, como
em bancos, laboratrios de anlises clnicas e
certos supermercados. esquerda de quem
entra, existe uma bancada com trs computadores e recepcionistas com crachs, uniformizadas. Atrs delas, em um grande nicho na
parede, v-se mquinas eletrnicas de cobrana de cartes de crdito. O cho de granito
polido e as cadeiras em srie, xadas ao cho,
totalizam cerca de 30 lugares. H uma TV de
20 permanentemente ligada e revistas de celebridades em mesinhas de canto.27 Duas das
paredes desta sala so envidraadas, permitindo
que se observe o movimento dos corredores do
shopping e vice-versa, como se os que aguardam
atendimento estivessem dentro de uma vitrine.
O conjunto todo evidencia os cuidados de um
decorador, criando um ambiente assptico e
impessoal que tanto poderia ser uma recepo
de banco como de companhia area: no h
nenhuma indicao evidente de que se trate de
uma clnica para exames.28 Passando-se a porta de vidro que separa a sala de espera da rea
de exames, h dois corredores paralelos. No da
esquerda esto a sala do aparelho de US 3D de
ltima gerao e as duas seguintes, com aparelhos mais antigos. Em frente s portas das salas
h dois banheiros e uma leira de 4 vestirios
pequenos; no nal deste corredor encontra-se a
sala de laudos, bastante acanhada, se comparada com os outros espaos da clnica. A assepsia
da decorao est coerente com as idias hightech e de cienticidade que so valores centrais
para os prossionais desta clnica. A distribui27. Do tipo Caras, Quem, Ricos e famosos e congneres.
28. Mesmo o logotipo da clnica no pode ser imediatamente associado a nenhum smbolo indicativo de
atividade mdica.

o dos espaos suscita algumas questes relativas privacidade oferecida para a troca de
roupa das gestantes; a exigidade e o relativo
desconforto da sala de laudos remetem a um
certo grau de desvalorizao dos prossionais,
tema que mais tarde surgiu na reclamao de
uma das mdicas, guisa de cooptao e de
cumplicidade comigo.
A clnica B situa-se em um prdio comercial modesto na Zona Norte do Rio. A sala de
espera pequena, com uma TV de 10, sempre
ligada, de cor e imagem instveis. Na parede h
quadrinhos reproduzindo aquarelas com paisagens de Paris. Na bancada da recepo h um
computador e uma atendente. Atrs dela existem mquinas manuais para emisso de boletos
de carto de crdito, diversas pastas e, na parede, um cartaz: Vendemos tas de VHS.29 Os
bancos so em alvenaria, com encosto pregado
na parede; em um canto h revistas de generalidades.30 Ao entrar na clnica, direita, est a
porta de acesso para um pequeno corredor que
leva s salas de exames e sala de laudos, que
ampla e tem diversas funes: nela, prossionais e atendentes fazem refeies, preparam os
laudos, agendam exames, discutem casos com
outros mdicos pelo telefone, trocam de roupa
e fofocam.31 A multiplicidade de funes dessa
sala, permitindo uma razovel mistura de atividades, coerente com o aspecto mais marcante desta clnica: a inexistncia de qualquer
tipo de isolamento acstico entre os diferentes
compartimentos, provocando uma confuso de
sons anloga mistura de atividades da sala de
laudos, apesar do cartaz na parede solicitando
que se fale baixo. Esta situao se deve ao modo
29. Muitas gestantes trazem suas prprias tas de vdeo
para gravar US ao longo da gravidez. O consumo da
imagem, um aspecto pregnante deste universo, um
tema complexo e foge ao escopo deste artigo.
30. Veja, Isto , Casa Cludia.
31. Por acaso, s havia mulheres nesta clnica durante o
perodo em que realizei a observao.
cadernos de campo n. 13 2005

como os espaos da rea de exames foram distribudos: parece ter sido um nico recinto que
foi subdividido n vezes, com divisrias de eucatex, s vezes de modo oblquo; excetuando
a sala de laudos, todos os outros espaos so
exguos, fechados com portas sanfonadas. Das
duas portas de madeira a da sala de laudos e
a do corredor dos exames uma est despencando. O consultrio tem relativo conforto,
mas muito mais modesto do que a clnica
A, correspondendo ao padro scio-econmico da clientela, bem abaixo do da primeira. A
aparelhagem tem mais de 5 anos de fabricao,
o que, traduzido em termos nativos, signica ultrapassados, ou quase. A inexistncia de
isolamento acstico produz uma situao de
praticamente total falta de privacidade, a no
ser que se sussurre todo o tempo. A ausncia
de um espao bem delimitado para as gestantes
trocarem de roupa aponta para a mesma questo. Estas caractersticas, associadas decorao
modesta da sala de espera e ao tempo destinado
a cada exame, produzem a impresso de que ali
h um atendimento de massa.
A clnica C localiza-se em um prdio comercial de alto luxo, e s atende a clientes
particulares; logo na entrada h uma placa indicando que a clnica de US est vinculada a
uma de reproduo assistida. Entra-se por um
longo corredor com grandes quadros com fotos
coloridas de bebs gordinhos, fofos, trajados
de or e congneres32 e desemboca-se em um
balco perpendicular ao corredor, com alguns
computadores e atendentes. Para a direita e
para a esquerda da recepo se enleiram pequenos compartimentos separados por vidros,
como mini-salas de espera, cada uma com
capacidade para 4 pessoas sentadas, com bancos de alvenaria estofados e revistas materno32. A fotgrafa (Anne Geddes) que criou este estilo de
fotos registrou a marca que hoje movimenta fortunas,
com sites na Internet e toda uma indstria de artigos
para bebs, alm de livros, posters etc.
cadernos de campo n. 13 2005

infantis.33 A parede oposta entrada de cada


casulo envidraada, com uma vista absolutamente deslumbrante da paisagem volta. O
teto rebaixado, as paredes so cor salmo at
80cm do cho e, da at o teto, amarelo-claro.
H uma certa saturao visual no ambiente;
possivelmente o intuito original era torn-lo
alegre e aconchegante.34 Para a direita, o corredor dos casulos desemboca no das salas de
US, uma de cada lado, ambas muito amplas
e confortveis e com aparelhagem de ltima
gerao. No nal desse corredor encontram-se
dois grandes toaletes e a pequena sala da administrao. O ambiente geral evidencia os dois
valores centrais que norteiam as atividades a
desenvolvidas: tratamento vip privativo, personalizado, aconchegante, e tecnologia de ponta
tanto a de imagem quanto a relativa s novas
tecnologias reprodutivas.
O aspecto principal que saltava aos olhos
na comparao da arquitetura das trs clnicas consistia na distribuio de espaos que
propiciavam o direito privacidade, que teria como que um gradiente decrescente cujo
ponto mximo seria a clnica C, com suas salas
de espera individuais e o ponto mnimo a clnica B, sem isolamento acstico algum. A clnica A, neste particular, ocuparia uma posio
mediana. Este direito privacidade tambm
era evidenciado pelo espao destinado troca
de roupa das gestantes: na clnica C, nos dois
grandes toaletes estavam disponveis chinelos e
aventais de pano para as clientes. Uma vez trocada a roupa, a gestante dirigia-se diretamente para a sala de exames, onde j estava sendo
esperada pelo prossional. Na clnica A havia
os pequenos vestirios individuais no qual as
gestantes deveriam permanecer at serem chamadas pela atendente; dirigiam-se ento para
as salas de exame, onde aguardavam a chegada
33. Como Seu lho e voc, Pais e lhos e outras que tais.
34. Tambm a percebe-se o dedo de um decorador, embora de gosto a meu ver um tanto duvidoso.

24 |

do mdico. Na clnica B existia um pequeno


nicho sem porta dentro de uma das salas, no
qual a gestante poderia se trocar, e tudo acontecia ao mesmo tempo, sendo comum a mdica e eu entrarmos e a gestante estar ainda se
despindo e colocando o avental, teoricamente
descartvel.35 O mesmo gradiente C, A e B
ocorria no tocante ao grau de sosticao da
aparelhagem e ao tempo disponibilizado para
cada exame. Nas clnicas A e C, as gestantes
costumavam dirigir-se aos prossionais e a
mim utilizando voc. Na clnica B, o termo
em geral utilizado era senhora.36

Ao chegar para o primeiro dia de observao, na clnica A, enquanto internamente me


debatia em questes de como me inserir nos
exames, Dr. Henrique me chama, dizendo:
Vamos? Sigo-o ainda desconcertada, ele entra na sala de US, cumprimenta a gestante j
deitada na maca: Ol, como vai?, em seguida
aponta para mim, dizendo, calmamente: Esta
aqui a dra. Lilian, ela est me acompanhando
hoje. A gestante me olha, sorri cumprimentando, e em seguida volta toda a sua ateno
para o exame, que iniciado imediatamente.
Preocupo-me com o fato de ser uma presena imposta pelo mdico, mas ningum parece
se incomodar com esse pormenor. Durante o
perodo em que permaneci na clnica A, este
foi o procedimento usual. Quando passei a
tomar notas no meu mini-chrio, por vezes
fui inquirida pela gestante ou acompanhante

sobre que tipo de estudo estava fazendo. De


todo modo, por estar trajando roupas comuns
e pela forma como o mdico me apresentava,
pareceu-me ser evidente para gestantes e outros
presentes que eu no pertencia ao sta da clnica. As gestantes tinham um vnculo afetivo
signicativo com dr. Henrique,37 o que possivelmente foi um dos fatores que tornaram minha presena aceitvel sem questionamentos.
Os exames duravam cerca de 20 minutos, e
com freqncia havia longos intervalos entre
um e outro, durante os quais interagia com os
prossionais. Passado o perodo que havia determinado para esta clnica e tendo modicado
o projeto original, resolvi prosseguir as observaes alternando entre as clnicas B e C, visando uma perspectiva contrastante por conta de
suas diferenas scio-econmicas.
O primeiro contato com dr. Slvio havia me
alertado para a necessidade eventual do uso de
jaleco e, por via das dvidas, resolvi levar um
guardado comigo no primeiro dia de observao da clnica B.38 Sem que eu dissesse nada,
foi-me solicitado que o vestisse para entrar
na sala de exames. Dra. Lcia convidou: Vamos?, acompanhei-a, ela entrou na sala e no
me apresentou gestante. Percebi estar pouco
vontade para tomar notas, parte por no ter
sido apresentada, o que tornava minha presena inexplicvel para as grvidas, mas sobretudo
por estar de jaleco. Em suma, senti-me uma
intrusa, desconfortvel em relao s gestantes,
como se estivesse disfarada, praticando algo
ilcito. Contudo, nada me ocorreu parecido
com uma soluo para este mal-estar. Percebi

35. Teoricamente, porque havia ali apenas um avental


pendurado, de material descartvel.
36. Este detalhe remete existncia de diferenas entre
as clnicas, no tocante s relaes hierrquicas mdico-paciente-observadora baseadas em fatores scioeconmico-culturais, que caram evidentes ao longo
da observao, um aspecto que foge ao escopo deste
trabalho. Sobre o tema cf. Menezes (2000: 66).

37. Eram mais clientes dele do que da clnica, buscando-o


tambm em outras clnicas onde trabalhava.
38. Menezes vivenciou duas situaes distintas no tocante a este quesito (2000: 10; 2004: 19). Outros
pesquisadores, oriundos da rea de Cincias Sociais
e desenvolvendo etnograas em ambiente mdico,
tambm fazem referncias e problematizam a solicitao de vestir o jaleco. Cf. Cussins (1998: 69).

4 Vestindo o jaleco

cadernos de campo n. 13 2005

que ter de vestir o jaleco havia introduzido um


elemento novo na observao, no tocante a
como me situava no campo, mas naquele momento no cou claro o porqu. O desconforto
experimentado apontou para o questionamento sobre a explicitao da minha posio em
campo, em termos ticos. Estando de jaleco,
estava disfarada de mdica, e a observao etnogrca cava impregnada por uma inverdade
principalmente considerando a presena do
etngrafo como parte integrante da etnograa
(Cliord 1983: 140). Os exames nesta clnica
duravam entre 5 e 10 minutos e sucediam-se
sem intervalo; nesta primeira tarde observei o
dobro do nmero de exames que costumava
observar em dias inteiros na clnica A. Era uma
atividade exaustiva, sem tempo para pensar, e
o mal-estar cou como uma questo inconclusa, a ser elaborada. A soluo s surgiu na semana seguinte quando, na clnica C, tambm
trajando jaleco, fui apresentada pelo dr. Slvio
gestante e acompanhante, dentro da sala de
exames, nos seguintes termos: Esta a dra. Lilian, que trabalha conosco aqui na clnica.
Obviamente no era o caso de desdizer o mdico naquele momento, mas denitivamente a
apresentao no correspondia verdade. Meu
desconforto tornou-se completo. O disfarce,
antes vago, havia sido verbalizado. Ao elaborar
o texto etnogrco, dei-me conta de que, entre outros fatores, esse foi um dos modos de o
mdico se colocar em uma posio hierrquica
superior, por ser ele o dono da clnica. Ocorreu-me ento adotar um procedimento diverso
do que at ento: apresentar-me s gestantes na
sala de espera, explicar brevemente a pesquisa e
pedir permisso para observar seu US. Soluo
simples e bvia, mas de implementao delicada: tive medo que dr. Slvio vetasse meu intento, por receio de que esta interferncia fosse
espantar a clientela que, rica, no gostaria de
ser objeto de estudo. De fato, dr. Slvio estranhou quando o consultei mas, embora relutancadernos de campo n. 13 2005

te, acedeu ao meu pedido. A partir de ento,


passei sempre a conversar brevemente com as
gestantes, tanto da clnica C quanto da B sobre
o que estava pesquisando e o que signicava
o tomar notas, penitenciando-me por no ter
tomado esta atitude na clnica A. Um aspecto
digno de nota que, em geral, as gestantes se
surpreendiam com o meu pedido de permisso
para assistir ao exame. Apenas uma vez a gestante recusou, pedindo desculpas e alegando
encontrar-se em um momento delicado. Exceto ela, nenhuma grvida pareceu considerar a
minha presena como invaso de privacidade,
provavelmente por o exame conter de modo
intrnseco uma naturalidade de expor suas
entranhas. Essa naturalizao evidenciava-se
tambm na no-percepo, pelos mdicos, da
minha presena como possivelmente invasiva
para as gestantes, fato que interpretei como reexo de sua atividade cotidiana: devassar o interior dos corpos. Com meu reposicionamento
diante das gestantes e acompanhantes, percebi
estar muito mais vontade para anotar e cou
claro o quanto o esclarecimento sobre minha
posio de observadora para todos os atores da
cena observada, e no apenas para os prossionais, tivera uma repercusso signicativa sobre
o modo como me sentia como pesquisadora.
Essa deciso marcou um momento de tomada
de posio como etngrafa no campo para
meus sujeitos e para mim mesma.

5 Vicissitudes da presena da observadora


Na clnica A, desde o incio percebi que os
prossionais se sentiam mais desconfortveis
com minha presena, na sala de US e na de
laudos entre os exames , do que as gestantes.
Durante as sesses este desconforto era expresso
de modo muito sutil, perceptvel atravs de demasiadas explicaes cientcas supostamente
fornecidas gestante, mas evidentemente diri-

26 |

gidas a mim, pois observei que medida que o


tempo passou elas diminuram, denotando que
seu exagero estava vinculado novidade da
presena de uma observadora.39 Na sala de laudos, o desconforto se manifestava sempre sob a
forma de brincadeiras, diretas ou indiretas. Pelo
fato de haver longos intervalos entre os exames,
meu convvio com os prossionais desta clnica
foi mais prolongado do que nas outras duas.
Estes mantinham entre si um relacionamento
muito bem-humorado, sendo comum haver
troas, piadas e gozaes recprocas, nas quais
fui logo includa.40 Conjugando estes trs aspectos contato mais prolongado, explicaes
e brincadeiras e, sobretudo, considerando a
forma jocosa como um modo mais fcil de expressar constrangimento, ca claro porque h
mais exemplos interpretados por mim como
desconforto advindos desse grupo.
As manifestaes diretas de mal-estar pela
minha presena consistiam em dizerem rindo,
no meio de uma conversa: Ih! Cuidado com o
que ela vai pensar da gente! Um bando de malucos!41 Nestes momentos entendia que estava
sendo vista efetivamente como algum de fora
do grupo, embora fosse um tanto vago em qual
categoria me inseriam, se psicanalista ou antroploga assim como qual das duas percepes
provocava maior desconforto neles. Esta noo
um tanto confusa sobre o que eu estava a fazer
l tambm surgia sob a forma de colaborao,
como:
Logo que chego, dr. Henrique me cumprimenta
dizendo: Puxa, voc perdeu! A descompensao
de um pai quando soube o sexo! A clnica parou!
Aquilo para analisar. Tive que parar o exame,
39. Menezes passou pelo mesmo processo em sua primeira etnograa (Menezes 2000: 11).
40. Assim como apontado por Geertz em Bali, ali ser
caoado [era] ser aceito (Geertz 1989b: 282).
41. Menezes observou o mesmo tipo de comentrios em
sua etnograa do CTI (Menezes 2000: 11).

dizer Pera a... Parecia jogo de futebol! O cara


berrava feito um louco! Dra. Ana entra na sala
e comenta: Puxa! Um exame (...), o pai deu um
berro, eu at sa para ver (...)! Voc tinha que estar a! Pro teu trabalho... (Clnica A).

Por vezes surgiram manifestaes indiretas


de inequvoco carter persecutrio:
Sentada em um canto, ocupada tomando notas,
presencio uma conversa sobre um panetone que
Henrique dera para Priscila e que cara na prateleira de uma semana para a outra porque esta
no o levara consigo. O mdico diz, brincando,
que vai pegar de volta e algum ri: Panetone?
Isso no panetone coisa nenhuma! Isso uma
cmera escondida! [Risos gerais] Ele completa no mesmo tom gaiato: Mas isso antitico!
Tinha que ter aquele cartaz Sorria, voc est
sendo filmado! Vou processar... Continuo anotando, agora o episdio. (Clnica A).

Outro comportamento que interpretei


como desconforto com toques persecutrios
foram tentativas, em tom semi-jocoso, de cooptao, sugerindo que eu estava sendo percebida como uma espcie de auditora externa:42
Dra. Priscila comenta comigo que os ultra-sonograstas so tratados como a escria da clnica,
porque Ultra-som no d lucro e alm disso h
o contato mdico-paciente, o que no ocorre em
outras tecnologias. As reclamaes so sempre do
US... o nico servio que no tem chefe, cada um
responsvel pelos exames que faz... Voc v que
todos os outros servios tm um chefe. V se voc

42. Menezes refere que um de seus informantes pensou


a princpio que ela seria scal do [Anthony] Garotinho (Menezes 2000: 10), poca governador do
Estado do Rio de Janeiro. Monteiro relata que seus
sujeitos de pesquisa acharam inicialmente que ela estaria avaliando o desempenho dos fellows em cateterismo (Monteiro 2001: 46).
cadernos de campo n. 13 2005

|
fala bem da gente, a! [Aponta para minhas
anotaes]. (Clnica A).

Na clnica A, acompanhava em especial


dr. Henrique, embora observasse por vezes
outras mdicas. Percebi que elas eram mais
silenciosas durante a realizao dos exames,
e me perguntei acerca da possibilidade de ele
estar se exibindo para mim.43 Ao longo do
tempo, comparando as atitudes de mdicos e
mdicas nas clnicas B e C, no tocante a este
aspecto, consolidou-se a impresso de que,
para alm das peculiaridades pessoais, havia
uma questo de gnero atravessando o campo:
via de regra as prossionais mantinham atitudes aparentemente mais relaxadas, menos
tensas e exibiam menos conhecimentos cientcos durante os exames do que seus colegas
homens. Curiosamente ou nem tanto em
conversas meus informantes, ao perguntarlhes diretamente se durante as sesses minha
presena os incomodava, exceo de dra.
Lcia todas as mdicas confessaram-se tensas
nos primeiros exames que observei, enquanto a resposta dos mdicos dr. Henrique e
dr. Slvio foi enftica: Em absoluto, no me
incomoda em nada!, tendo dr. Slvio acrescentado: Eu at gosto!. No entanto, minha
impresso era justo o contrrio. Pelo prisma
das relaes de gnero, os mdicos pareciam
apelar para os conhecimentos cientcos para
demarcar a posio de poder. Alm disso, na
clnica C, durante os exames ocorria um tipo
de conversa entre dr. Slvio, gestante e acompanhantes em torno de questes mdicas
que evidenciava uma preocupao marcante dele de que o exame se constitusse mais
como procedimento cientco do que como
evento social um dos fantasmas temidos
43. A questo em foco consiste na exibio de conhecimentos mdicos para a colega. Menezes comenta
aspectos similares em suas duas etnograas (Menezes
2000: 10; 2004: 95).
cadernos de campo n. 13 2005

e depreciados pelos prossionais da rea.


Na prtica, contudo, no deixava de ser um
evento social, apenas revestido do que denominei, para meu uso, de uma medicalidade
explcita.44
Na clnica A, as gestantes pareciam no
atentar para a minha presena. Apenas algumas
vezes percebi que me observavam de esguelha
enquanto tomava notas, e s eventualmente
perguntavam o que eu estava estudando. Um
aspecto a ressaltar que as imagens ultra-sonogrcas parecem exercer um poder quase
hipntico, sendo difcil para todos inclusive
eu, nos primeiros tempos de observao despregar os olhos da tela do monitor do aparelho
ou da TV a ele conectada (existente nas clnicas A e C).45 Nesse sentido que pareceu-me
que, para as gestantes, o fato de eu estar na sala
tinha um carter secundrio. Por outro lado,
contudo, na clnica A, em situaes tensas, em
especial diante de preocupao com possveis
patologias, dei-me conta um dia de que eu estar
ali poderia representar um acrscimo de preocupao para as grvidas, relacionado ao fato de
ser visivelmente mais velha que dr. Henrique e
44. Por medicalidade explcita rero-me a um tipo de
explanao fornecido s gestantes em tom solene,
professoral, durante os exames. Era um discurso rebuscado, com muitos termos cientcos. Mesmo j
familiarizada com os termos do campo, freqentemente me perdia nessas explicaes. Pergunto-me se
as gestantes e acompanhantes eram capazes de entender a fala do mdico e se esta atitude dele os tranqilizava. A rigor, pareceu-me que essa atividade tinha
um carter de exibio de conhecimentos para todos
os presentes na sala, eu includa, e era, sobretudo, um
reasseguramento para o prprio mdico.
45. As imagens polarizavam o olhar de todos os presentes
na sala de exame. No incio do trabalho de campo
por diversas vezes dei-me conta do quanto era difcil
desviar a ateno do monitor, sendo necessrio me
disciplinar para no ser cooptada pela cultura nativa, magnetizada pelas imagens, e conseguir focalizar
a observao nos discursos, interaes e negociaes
que ocorriam incessantemente.

28 |

de ter sido apresentada por ele como dra. Lilian. Percebi que, para elas, a minha presena podia signicar algo como uma 2 opinio,
mais abalizada sobre o assunto do que a dele;
neste caso eu estaria sendo percebida como
mdica e no como pesquisadora. Ao me dar
conta disso, sempre que se evidenciava alguma
ocorrncia similar eu parava de tomar notas e
dava a entender, implcita ou explicitamente,
que minha observao no se vinculava a motivos mdicos. Nas clnicas B e C, do momento
em que passei a pedir autorizao para assistir
ao exame, ou seja, ao me posicionar como etngrafa, tal no voltou a ocorrer. Ainda assim,
em momentos difceis,46 em respeito gestante, deixava para anotar depois, pois parecia-me
uma atividade inadequada para situaes de
tanta angstia e dor.47
Finalmente, o mini-chrio como um fator de interferncia. Inicialmente tomava notas ao chegar em casa, mas diante da variedade
e da quantidade de informaes, assim como
da rapidez com que as situaes se sucediam,
a partir do 3o dia de observao na clnica A
optei por mudar o mtodo. Senti que a nica
sada era tomar notas no local da ao, sob
pena de empobrecer muito a etnograa. Com
o tempo desenvolvi um tipo de registro quase
estenogrco. Nas trs clnicas, meu chrio
minsculo foi sempre uma fonte inesgotvel de
curiosidade, comentrios e gozaes por parte
46. Rero-me descoberta esperada ou inesperada de
patologias fetais durante o exame.
47. Menezes descreve o mesmo tipo de experincia (2004:
19-20). Aparentemente, nestas situaes, surge para o
pesquisador uma sensao de desconforto por estar
presente ali nesta condio, concretizada pelo ato de
anotar. Parar de tomar notas teria o signicado de,
diante de questes literalmente de vida ou morte,
colocar temporariamente em segundo plano uma
questo comparativamente menor a sua prpria
pesquisa. impossvel avaliar o quanto a formao
mdica minha e de Menezes modela essa escala
de valores.

de mdicos, mdicas e atendentes.48 As reaes


variavam desde perguntas do tipo O que voc
tanto escreve a? Vou querer ver... at a mais recorrente de todas: O que voc vai fazer com essas anotaes? D mesmo pra extrair alguma coisa
da?. Eu costumava responder que fazia relatos
reconstituindo o que tinha visto e que esperava
sinceramente poder extrair alguma coisa da.
De algum modo meus sujeitos de pesquisa
captavam um problema central de qualquer
etnograa: a transformao das notas em texto
etnogrco. A perturbao provocada pela minha atividade de anotar pode ser compreendida
como sendo resultado da explicitao do que
eu estava fazendo ali. Estar quieta observando
era uma coisa, anotar o que se passava era outra. As anotaes por assim dizer encorporavam a atividade etnogrca e a intruso. Meus
informantes mantinham uma atitude ambgua
em relao a este ltimo aspecto em particular,
pois apesar do evidente incmodo provocado
pela minha atividade de registro, diversas vezes fui inquirida por eles por que no lmava
ou usava gravador. Possivelmente o uso de um
dispositivo de registro mecnico, para eles, habituados tecnologia, seria mais familiar, mais
neutro, objetivo e menos incmodo. Para
mim, contudo, o sentido de invaso contido
no uso de um dispositivo mecnico era exatamente o oposto.
Organizei os relatrios de observao no
computador de maneira modular, divididos
entre as observaes das sesses ultra-sonogrcas, uma a uma, e uma parte relativa s
conversas, impresses e o que eu observava de
um modo geral o dirio de campo. Assim,
adotei a prtica de, na observao seguinte,
trazer para quem eu observara a cpia do relato de um dos exames. Selecionava algum
no qual houvesse mais registro de conversas e
poucos comentrios meus sobre as prticas do
48. Menezes (2000: 11) foi alvo do mesmo tipo de reaes.
cadernos de campo n. 13 2005

prossional, visando evitar aumentar o sentimento persecutrio daquele. Todos eles cavam muito satisfeitos com esse procedimento
e muitos se surpreendiam: Nossa! Como voc
v tanta coisa acontecendo!, ou ento: A gente
ca s ali procurando imagens, nem repara nisso
tudo que voc viu. A reao dos prossionais
ao meu texto de certo modo me apontou de
que ele estaria na linha da co verdadeira
(true ction), delineada por Cliord e Marcus
(1986: 6). Um dia, dr. Slvio pediu-me o relato de certo exame que fora particularmente
difcil, pois pretendia discutir a situao com a
equipe; nessa ocasio quei satisfeita em poder
retribuir a acolhida que estava recebendo. O
pedido do mdico a quem eu j havia fornecido o relato de uma sesso validou que parte
da diclima transformao (Pratt 1986: 32)
do trabalho de campo mediado pelas notas
em etnograa formal encontrava-se em curso. Percebi ento que estava sendo vista como
algum que trazia um outro olhar de alguma
utilidade para os prossionais, fornecendo
subsdios a eles para uma reexo sobre sua
prpria prtica.49

6 Subjetividade e relaes de poder


na observao etnogrfica
As relaes de poder estabelecidas no campo
tinham um carter dinmico e cambiante. Dependendo do momento e da situao, mudava
o ator detentor do poder, havendo reas, por
assim dizer, de concentrao deste. O prossional que realizava o exame era quem o concentrava na maior parte do tempo, parte por
estar investido do poder mdico, mas principalmente por ser quem tinha o olhar treinado para
49. Ter utilidade um atributo bastante valorizado no
campo mdico em geral e meus informantes no escapavam regra. Atividades apenas reexivas e analticas eram bem menos respeitadas e, eventualmente,
sutilmente depreciadas por eles.
cadernos de campo n. 13 2005

decodicar e traduzir as imagens do monitor.


Contudo, no apenas muitas vezes as gestantes
aprendiam a ver, decodicando sozinhas o que
estava sendo exibido na tela como, a partir do
momento em que certas estruturas do feto eram
identicadas e explicadas pelos mdicos, preenchendo de signicado as sensaes maternas,
as grvidas eram empoderadas e se sentiam de
alguma forma mais donas de seus fetos. Alm
desse aspecto, com freqncia as gestantes ou
acompanhantes solicitavam que fosse exibida
determinada parte do corpo fetal em especial
a genitlia em tons que variavam de pedidos
at verdadeiras ordens, que via de regra os prossionais se apressavam em atender: as razes de
mercado a se impunham.
Diferentemente do relatado na literatura
antropolgica sobre o tema, na qual comumente as gestantes declaravam sentir-se devassadas
e submetidas pelo poder mdico, no grupo etnografado estas relaes uam de modo harmnico. possvel que neste universo o poder
mdico tenha sido de tal modo naturalizado
no tocante gestao, que os prossionais de
US, permitindo s gestantes ver seus fetos
e, desse modo, se apropriarem deles, passaram a ser vistos como aliados das mulheres,
mais do que seus prprios obstetras. Conforme
uma gestante citada orgulhosamente por dr.
Henrique, meu mdico voc, que me mostra
o nenm... o obstetra s mede, me pesa e mais
nada.... O contexto mais amplo da medicalizao da gravidez e o conseqente devassamento do corpo feminino50 podem explicar,
em alguma medida, o espanto e a pronta anuncia das gestantes diante da minha solicitao
para assistir aos seus exames, indicando que o
pressuposto bsico seria de que o interior de
seus corpos estivesse, por princpio, disponvel
para ser visto por quem estivesse na clnica. O
fato de me apresentar como mdica, realizando
50. Para aprofundamento deste tema, cf. Rohden
(2001).

30 |

uma pesquisa antropolgica, e de ser mulher


com idade para ser me da maioria delas possivelmente contribua para essa aquiescncia
imediata. Porm, o aspecto que de fato me pareceu inusitado foi menos a pronta aceitao
do que o espanto manifestado por boa parte
das grvidas quando eu fazia tal pedido. Reetindo a posteriori sobre o perodo no qual no
pedi autorizao alguma s gestantes, emerge
um sentimento de desconforto vinculado ao
entendimento de que minha presena na sala
de exames representou do ponto de vista das
relaes de poder uma imposio do mdico
para as pacientes, mesmo que no tenham manifestado nenhum mal-estar.
Conforme vimos, considerado pelo prisma
da possibilidade de decodicao das imagens,
o prossional era quem concentrava o poder
durante os exames. Contudo, tal situao parecia sofrer um abalo quando eu me encontrava
na sala, pois, analogamente aos ultra-sonograstas, de modo implcito dispunha-me a tambm decodicar algo que ali se passava, ver nos
gestos, imagens, interaes e falas algo que no
era visvel de imediato. Isto pode explicar em
parte o desconforto deles com minha presena.
Como j mencionei, as mdicas confessaram
abertamente sentirem-se tensas, embora na prtica me parecessem mais vontade do que os
mdicos. Estes desdobravam-se em explicaes
s gestantes que mais sugeriam ser exibies de
conhecimentos e rearmao de posio hierrquica do que esclarecimentos de fato para
elas. O exemplo mais evidente desta atitude
foi observado na clnica C quando o mdico,
mediante a medicalidade explcita, rearmava
claramente quem detinha o conhecimento e,
portanto, o poder. O aspecto certamente incmodo e possivelmente persecutrio da minha
presena pode ser atribudo a um velado desao
posio hierrquica do especialista: em vez de
estar presente na sala apenas um prossional detentor de conhecimentos esotricos, havia uma

observadora, com conhecimentos outros, fora


da rea mdica, alm do mais anotando coisas
em um misterioso chrio, sabia-se l para qu.
As mdicas possivelmente pelo fato de serem
mulheres diante de uma observadora mulher
, mesmo se confessando incomodadas, eram
menos levadas demonstrao de competncia
cientca, de disputa hierrquica e de gnero
do que os mdicos que, de certa maneira, pareciam sutilmente instigados a mostrar whos the
boss na situao.
Na clnica A, o fato de no usar jaleco, assim como os termos utilizados pelo mdico
para me apresentar ao entrarmos na sala de
exames, de algum modo indicavam que eu no
fazia intrinsecamente parte daquele universo
embora atualmente eu no esteja muito certa
disso. Em geral no me sentia desconfortvel
ao tomar notas durante os exames, deixando
o registro para depois apenas em poucas situaes: morte ou patologias fetais. O ato de tomar notas sempre teve para mim o signicado
de uma intruso, embora muitas vezes as gestantes no parecessem sequer tomar conhecimento da minha presena, em especial a partir
do momento em que surgiam as imagens fetais
na tela do monitor. A solicitao de que vestisse o jaleco provocou-me um leve sentimento
de estranheza, sem contornos muito bem denidos, mas foi a surpresa experimentada na clnica C quando fui apresentada como mdica
do sta o elemento-chave para dar-me conta
da necessidade de rearmao, agora para gestantes e acompanhantes, de qual era a minha
insero naquele universo. Assim fazendo,
tambm constru para mim um self como pesquisadora. Fui notando que dispunha de vrias
identidades e, sobretudo, que era assim percebida pelos prossionais com quem convivi. O
fato de ser mdica, psicanalista e aprendiz de
antroploga foi sendo processado lentamente
pelos meus interlocutores e por mim mesma
medida que a pesquisa prosseguia. Aos poucadernos de campo n. 13 2005

cos fui cando vontade para transitar entre


as vrias identidades no campo, o que se dava
quando, de uma conversa sobre temas mdicos geralmente a partir de perguntas minhas
passava-se para pedidos de explicao sobre
temas de sociologia ou antropologia e mesmo
solicitao de um relatrio de um exame. Em
algumas ocasies, fui requisitada informalmente para consultas sobre questes pessoais
e dramas familiares dos prossionais. Embora
relutante de incio, medida que o trabalho
prosseguia quei gradualmente mais vontade
e foi possvel deixar os cmbios de identidade
urem. Tenho certeza que essa exibilidade
permitiu que meus informantes adquirissem
conana e me fornecessem um material precioso de pesquisa. Como ocorre nas relaes
que se aprofundam ao longo do tempo, a interao com os prossionais foi multifacetada,
e ao mesmo tempo em que percebi neles sentimentos persecutrios, em outras revelou-se
uma conana evidenciada parte pelo teor
de certas revelaes, parte pela surpresa e a
leve decepo manifestadas sempre que eu
reiterava que os todos os nomes, inclusive das
clnicas, seriam mantidos em sigilo que me
surpreendeu.
Embora qualquer anlise envolva necessariamente a busca de diversos ngulos para
abordagem do ponto em foco, considero que
as vrias identidades entre as quais transitei ao
longo do trabalho de campo contriburam de
maneira relevante para obter uma viso dinmica do universo pesquisado. Embora tenha
buscado todo o tempo manter um ponto de
vista antropolgico, seria ingnuo supor que a
formao prvia, especialmente em medicina,
no tenha interferido e desempenhado algum
papel. Meu intuito neste artigo foi delinear de
que modo esta formao esteve presente no decorrer do trabalho de campo e na elaborao
do texto etnogrco. Mesmo correndo o risco
de ter sido demasiado confessional, espero ter
cadernos de campo n. 13 2005

podido aqui avanar na discusso de alguns dos


aspectos metodolgicos que me ocuparam ao
longo da etnograa. Consolo-me de antemo
apoiando-me em Geertz (1989a), quando este
declara ironicamente que
A antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa, uma cincia cujo progresso marcado menos por uma perfeio de consenso do
que por um renamento de debate. O que leva
a melhor a preciso com que nos irritamos uns
aos outros (39).

Referncias bibliogrficas
BECKER, Howard S. & GEER, Blanche. 1978. Participant Observation and Interviewing: A comparison.
In MANIS, J.G. & MELTZER, B.N. (Eds.). Symbolic Interaction: a Reader in Social Psychology. Boston:
Allyn & Bacon, p. 76-83.
BECKER, Howard S., et al. 1997. Boys in White. Student
Culture in Medical School. New Brunswick (USA) &
London (UK): Transaction Publishers.
CHAZAN, Lilian K. 2000. Fetos, mquinas e subjetividade: um estudo sobre a construo social do feto como
Pessoa atravs da tecnologia de imagem. Dissertao de
Mestrado em Sade Coletiva. Rio de Janeiro: Instituto
de Medicina Social/UERJ, datilo.
_____. 2005. Meio quilo de gente! Produo do prazer de ver e
construo da Pessoa fetal mediada pela ultra-sonograa. Um
estudo etnogrco em clnicas de imagem na cidade do Rio de
Janeiro. Tese de Doutorado em Sade Coletiva. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/UERJ. (2 v.)
CLIFFORD, James. 1983. Power and dialogue in Ethnography. Marcel Griaules Initiation. In STOCKING
JR. (Ed.) Observers observed: essays on ethnographic eldwork. Madison: The University of Wisconsin Press,
pp. 121-156.
_____. 1986. Introduction: Partial Truths. In CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (Eds.) Writing Culture.
The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley, Los
Angeles & London: University of California Press, pp.
1-26.
_____. 1998. Trabalho de campo, reciprocidade e elaborao de textos etnogrcos: o caso de Maurice Leenhardt. In A experincia etnogrca: antropologia e
literatura no sculo XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
pp. 227-251.

32 |
CUSSINS, Charis. 1998. Producing Reproduction: Techniques of Normalization and Naturalization in Infertility Clinics. In FRANKLIN, S. & RAGON, H.
(Eds.) Reproducing Reproduction. Kinship, Power and
Technological Innovation. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press, pp. 66-101.
DAMATTA, Roberto. 1978. O Ofcio de Etnlogo, ou
como ter Anthropological Blues. In NUNES, E. O.
(Org.). A Aventura Sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar
Ed., pp. 25-35.
GEERTZ, Cliord. 1984. From the natives point of
view: on the nature of anthropological understanding. In SHWEDER, R. (Ed.) A Culture Theory. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 123-136.
_____. 1989a. Uma descrio densa: por uma teoria interpretativa da cultura.. In GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, pp. 13-41.
_____. 1989b. Um jogo absorvente: notas sobre a briga
de galos balinesa. In GEERTZ, C. A interpretao das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, pp. 278-321.
GONALVES, Isabela L. 2001. Cortes e costuras: um estudo antropolgico da cirurgia plstica no Rio de Janeiro.
Dissertao de Mestrado em Antropologia Social. Rio
de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ.
LATOUR, Bruno & WOOLGAR, Steve. 1997. Vida de
laboratrio. A produo dos fatos cientcos. Rio de Janeiro: Relume Dumar.
LUNA, Naara L. A. 2004. Provetas e clones: teorias da concepo, pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio
de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ, 2004.

MARCUS, George E. & FISCHER, Michael M.J. 1986.


Anthropology as Cultural Critique. An Experimental
Moment in the Human Sciences. Chicago & London:
The University of Chicago Press.
MENEZES, Rachel A. 2000. Difceis decises: uma abordagem antropolgica da prtica mdica em CTI. Dissertao de Mestrado em Sade Coletiva. Rio de Janeiro:
Instituto de Medicina Social/UERJ.
_____. 2004. Em busca da boa morte: uma investigao
scio-antropolgica sobre cuidados paliativos. Tese de
Doutorado em Sade Coletiva. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social/UERJ.
MONTEIRO, Rosana H. 2001. Videograas do corao.
Um estudo etnogrco do cateterismo cardaco. Tese
de Doutorado em Poltica Cientca e Tecnolgica.
Campinas, Instituto de Geocincias/Unicamp.
PRATT, Mary L. 1986. Fieldwork in Common Places.
In CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (Eds.) Writing
Culture. The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley, Los Angeles & London: University of California
Press, pp. 27-50.
RABINOW, Paul. 1977. Reections on eldwork in Morocco. Berkeley & Los Angeles: University of California Press.
ROHDEN, Fabola. 2001. Uma cincia da diferena: sexo
e gnero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ.
ROJO, Luiz Fernando. 2001. Os diversos tons do branco.
Relaes de amizade entre estudantes de medicina. Rio
de Janeiro: Litteris Ed.
VELHO, Gilberto. 1978. Observando o familiar. In NU
NES, E.O. (Org.). A Aventura Sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar Ed., pp. 36-46.

cadernos de campo n. 13 2005

Os caminhos da memria*
MARIA ANGELA GEMAQUE LVARO
Mestranda pelo PPGCS/CFCH/UFPA e tecnologista em Anlise Scio-econmica do IBGE.
Artigo aceito para publicao em 19/09/05

resumo Este trabalho analisa a maneira de

abstract This paper analyses memory cons-

construo da memria de dois grupos familiares


considerados tradicionais na cidade de Belm do
Par, em virtude de uma trajetria histrica excepcional que tornada pblica. O o condutor dessa
discusso a memria social, com ateno especial
forma como ela tratada nos estudos tericos de
Maurice Halbwachs. Utilizando depoimentos orais
e a verso escrita da memria familiar, feita uma
reexo de como as trajetrias individuais, o percurso do grupo e as articulaes entre passado e presente interferem na estruturao das lembranas.
palavras-chave memria, famlia, indivduo, sociedade, tempo social.

truction in two families considered to be traditional


in the context of their hometown, the city of Belm
do Par, these groups being so judged in virtue of
an exceptional historic trajectory. The central conducting element in such a discussion is social memory, with emphasis on the way it is considered in
the studies by Maurice Halbwachs. Based on the
study of oral and written narratives, a reection is
made on the ways individual and group trajectories
as well as the links between past and present interact to form memory structure.
keywords memory, family, individual, society, social time.

Estas reexes se integram ao projeto de pesquisa


intitulado Memria emblemtica: o que os tradicionais nos contam sobre seu passado?, que estou
desenvolvendo dentro do Programa de Ps-graduao
em Cincias Sociais, no nvel de mestrado, do Centro
de Filosoa e Cincias Humanas da Universidade Federal do Par. O material etnogrco foi coletado em
1990, consistindo em entrevistas com descendentes
dessas duas famlias, assim como em livros publicados
por cada uma delas, e pode ser encarado como um
documento revelador da memria familiar num momento especco. O termo tradicional deve ser enten-

cadernos de campo n. 13: 33-46, 2005

dido aqui como um adjetivo que aplicado a famlias


cujos nomes e trajetrias esto associados histria
da cidade, na medida em que membros situados em
geraes distintas exerceram continuamente o poder
poltico e econmico, e/ou tiveram amplo destaque
social. So famlias que tm uma visibilidade pblica
e a possibilidade de cruzarem a histria familiar com
uma dada verso da histria local voltada para o feito
(ou para a construo) de personagens. Para as famlias enfocadas neste estudo, trata-se de um adjetivo
que tanto assumido internamente, quanto reconhecido pelos de fora do grupo.

34 |

I
A partir das lies de Halbwachs (1990)
sobre a articulao entre memria individual e
os grupos nos quais o indivduo toma parte,
farei uma abordagem sobre os processos sociais
que interferiram na formulao das lembranas
de duas famlias consideradas tradicionais no
contexto da cidade de Belm do Par: os Albuquerque e os Duvignaud.1
Trabalhei com dois grupos que, embora tenham um trao em comum o adjetivo
tradicional que lhes aplicado , apresentam
diferenas no que se refere trajetria e aos
vnculos com o Par, o que me permitiu vislumbrar duas construes distintas de memria. As diferenas se expressam nas imagens
formuladas acerca do passado do grupo, assim
como nos fenmenos que interferiram na estruturao das lembranas, e podem ser compreendidas com base no referencial fornecido
por Halbwachs (1990).2
1. Os nomes de famlia, assim como os nomes pessoais,
citados ao longo do trabalho so ctcios. Procedi dessa forma em virtude de alguns aspectos da memria
familiar terem sido tratados com parcimnia e certo
incmodo por alguns, havendo casos de solicitao
de no identicao pessoal. Procurei adotar nomes
que guardassem alguma proximidade com a nfase
dada pelos entrevistados s suas origens (francesa no
caso dos Duvignaud, e portuguesa/nordestina para os
Albuquerque). Esclareo, ainda, que quando utilizo o
termo famlia para falar dos Albuquerque e dos Duvignaud, estou delimitando os grupos a partir do nome de
famlia. Assim, investigo dois grupos de parentes que
se reconhecem enquanto tal por possurem um nome
de famlia em comum, o qual remete a uma histria
cuja divulgao ultrapassa o mbito do grupo.
2. Na teoria formulada por Halbwachs (1990) destacam-se
duas relaes: entre o passado e o presente e entre o indivduo e a sociedade. Ao considerar o ato de rememorar
como uma viagem ao passado que tem sempre como
referncia o tempo e o espao vivenciado por quem relembra, o autor deixa claro que a memria estabelece
uma relao entre esses dois tempos sociais. Essa relao
torna-se dialtica na medida em que o passado visto,

A ligao histrica dos Duvignaud com o


Par remete poca colonial, com a chegada
em 1760 do primeiro membro desta famlia no
que era, ento, a Capitania do Gro-Par. Sua
condio de ocial militar lhe dava uma aproximao conveniente com o poder, que ele soube potencializar ao casar-se com a descendente
de uma famlia j consolidada como grande
proprietria de terras. Nas geraes seguintes
esse patrimnio foi ampliado num processo de
concentrao de riqueza, em que o estabelecimento de alianas matrimoniais com outros
membros da elite fundiria local desempenhou
importante papel.
Essa famlia alcanou o pice de seu destaque social, poltico e econmico durante a
poca da Borracha (1850-1910), quando a
explorao do ltex se tornou a principal atividade econmica, representando um uxo de
capitais signicativo para a regio, em virtude
dos interesses do capital internacional. Atentos
s novas oportunidades, os Duvignaud souberam diversicar seus negcios, at ento situados no ramo pecurio, e criaram aproximaes
inclusive matrimoniais com o grupo dos
comerciantes.
Embora a base de seu poder fosse local, conseguiram penetrar no cenrio mais amplo da
poltica, tornando-se guras de destaque nos
primeiros anos da Repblica, movimento frente ao qual alinhavam-se entre os precursores no
tambm, como um referencial orientador para o presente. Assim, a memria no algo dado, mas um fenmeno construdo. a partir dessa percepo que a relao
indivduo/sociedade adquire um carter onde as foras
sociais so devidamente consideradas, mas no subjugam o papel do indivduo. Nessa memria, vista como
construo, caber ao indivduo o papel de agente, pois
ele que, ao transitar entre diferentes grupos sociais no
interior de uma sociedade, estabelece a articulao de
tempos e espaos sociais distintos. Confrontando suas
lembranas com as dos outros membros do grupo, ele
forja a sua memria individual e ajuda a estruturar a do
grupo.
cadernos de campo n. 13 2005

Par. Seus cargos polticos vieram somar-se aos


ttulos de nobreza outorgados a eles durante o
Imprio, como elementos de distino social da
famlia. Distino que era marcada, tambm,
pelo estilo de vida que cultivavam, espelhados
nos padres europeus amplamente disseminados entre os grupos cada vez mais enriquecidos
com o crescimento da explorao da borracha.
A partir do m desse ciclo econmico, a
famlia comeou a se dispersar pela migrao
de alguns ramos em direo capital federal
da poca: a cidade do Rio de Janeiro. Mas s
perdeu efetivamente sua expresso a partir da
dcada de 30, tanto em funo da diluio de
seu patrimnio, como das novas articulaes
que surgiram na poltica.
J a famlia Albuquerque surge no Par no
incio do sculo XX, a partir da migrao de
Pedro Albuquerque, descendente de um grupo
oligrquico nordestino j arruinado nanceiramente. Seus ancestrais maternos, de origem
portuguesa, haviam se rmado numa regio do
Rio Grande do Norte, ainda no sculo XVIII,
consolidando-se como grandes proprietrios
rurais da lavoura canavieira e chefes polticos
locais durante o Imprio. A decadncia nanceira da famlia, ocorrida na segunda metade
do sculo XIX, conduziu o pai de Pedro Albuquerque a investir na educao do mesmo,
empenhando-se pessoalmente do assunto, ao
assumir o papel de professor do lho at o seu
ingresso na Faculdade de Direito do Recife,
procedimento que descrito nos livros e nos
depoimentos orais em termos artesanais.
J formado em Direito, e no podendo concretizar suas expectativas, que voltavam-se para
o principal centro poltico e cultural da poca,
a cidade do Rio de Janeiro, Pedro Albuquerque
consegue carta de recomendao endereada
ao governador do Par, Augusto Montenegro,
diante do qual se apresentou em 1902, obtendo uma colocao como promotor numa cidade do interior.
cadernos de campo n. 13 2005

Nessa cidade, que chamaremos aqui de Remanso, ele se entronizou rapidamente nos quadros da elite local, o que conrmado pelo seu
matrimnio poucos anos depois com a lha do
principal chefe poltico da cidade, que, como
o prprio Pedro, podia citar uma ascendncia
nobilirquica em sua biograa: era, tambm,
neta de um baro do Imprio. No momento
em que se celebrava o casamento, a famlia Soares de Cabral, da qual provinha a noiva, vivia
em uma situao bastante favorvel, tanto do
ponto de vista poltico quanto econmico, em
funo de seu posicionamento ao lado dos personagens que dominavam a poltica paraense
e de suas participaes no negcio da borracha. Poucos anos depois, a queda do preo da
borracha amaznica no mercado internacional
reverteu esse quadro, respondendo pelo declnio econmico dos Soares de Cabral, agravado
ainda mais por mudanas na poltica local, que
afastaram seus antigos pares do poder. Para Pedro Albuquerque, que vivia ento na capital do
Estado, para onde havia obtido sua transferncia como promotor, as mudanas no cenrio
poltico lhe custaram o cargo.
Embora as diculdades nanceiras tenham
marcado sua trajetria, ele conseguiu construir
um nome a partir de sua atuao como professor da Faculdade de Direito do Par, como
advogado, como poltico e como homem das
letras (publicou vrios livros e inmeros artigos em jornais). Mais que isso, conseguiu
dar uma orientao bastante uniforme a sua
numerosa prole, basicamente masculina, que,
tendo como modelo a trajetria paterna, procurou consolidar sua posio no cenrio local,
articulando o exerccio de uma prosso liberal respeitada (medicina, direito, engenharia)
com funes pblicas (s vezes polticas) e com
a participao em instituies voltadas para o
campo intelectual (Academias de Letras, Institutos Histricos, Ordens Prossionais). A
visibilidade da famlia, e seu reconhecimento

36 |

como tradicional no contexto da cidade de


Belm, resulta, portanto, da somatria destas
trajetrias e de seu passado familiar glorioso,
pontualmente divulgado.

II
Para os dois grupos familiares, entrevistei
pessoas prximas em termos de laos de parentesco e de convvio, enfocando para cada um
deles um grupo de siblings. No caso da famlia
Albuquerque, os entrevistados foram trs lhos
e dois netos de Pedro Albuquerque. Para a famlia Duvignaud, coletei depoimentos de trs
irmos, de uma prima destes, e da lha dela,
que era tambm esposa de um dos irmos entrevistados.
Pedro Albuquerque a gura central das
memrias de seus descendentes, e , tambm,
o grande articulador de prticas que ajudam
a preservar a memria familiar e torn-la conhecida entre os paraenses. Nota-se nas memrias especialmente na oral uma ligao
mais ntima com as razes nordestinas da famlia. As razes paraenses so mencionadas e
valorizadas (ttulos de nobreza, poder poltico
e econmico), mas os entrevistados no demonstram em relao a ela a mesma intimidade, a mesma riqueza de detalhes. Um dos
lhos de Pedro Albuquerque nos d indcios
que ajudam a esclarecer tal fato: a postura reservada da me, que falava muito pouco sobre
sua terra de origem, qual no mais retornou
aps o casamento, e, tambm, a disperso dos
parentes.
Halbwachs (1990) levanta a importncia
dos testemunhos para a formao e permanncia das lembranas. Na formao da memria
individual, sobressai o papel dos laos de convivncia que estabelecemos com os membros
dos diversos grupos que fazem parte do nosso
dia-a-dia e da nossa trajetria, e que permitem o
contnuo confronto entre nossas lembranas e a

dos outros. Arma, tambm, que se o grupo se


dissolve e se j no temos com quem partilhar
nossas lembranas, o quadro vivido se esmaece
e as imagens tornam-se fugidias. Afastada da
sua cidade, do seu grupo familiar que se dispersa, dos amigos e vizinhos que compunham sua
rede de relaes, parece ter faltado a Mariana
esposa de Pedro Albuquerque o apoio do
testemunho alheio.
Pedro Albuquerque tambm afastou-se de
sua terra natal, mas encontrou no Par grupos
de convvio com os quais pde partilhar suas
lembranas: famlias nordestinas de posio e
trajetria semelhantes s dos Albuquerque. Um
dos seus lhos arma:
quando o meu pai chegou aqui chegou em
Remanso3 e depois veio pra Belm , muitas famlias originrias do Nordeste j oresciam aqui
no Par. L em Remanso mesmo, ele veio encontrar uns primos dele, o Juliano Albuquerque,
que era um homem eminente l em Remanso
e Manaus. Ele foi encontrar a famlia Tavares,
que est vinculada com a nossa ancestralmente, umas trs ou quatro geraes mais pra trs.
Que eram famlias j implantadas no Par (...)
Se formos vericar, por exemplo, os professores
da Faculdade de Direito, vinte anos passados,
quase todos eles eram nordestinos e quase todos
formados pela Faculdade de Direito do Recife
(Arthur Albuquerque, 73 anos).

Pedro Albuquerque foi promotor numa cidade pequena, onde gura pblica de destaque
tinha linha de parentesco consigo. Depois, tornou-se professor de Direito, numa faculdade
onde o corpo docente era, predominantemente, oriundo da Faculdade de Direito do Recife.
Alm disso, sua atividade de escritor conduziuo a tornar-se membro fundador da Academia
3. As palavras em itlico substituem outros termos utilizados pelos informantes em seus depoimentos, ou so
esclarecimentos que julguei necessrio fazer.
cadernos de campo n. 13 2005

Paraense de Letras, onde encontrou o campo


propcio para o cultivo da memria familiar e
sua divulgao.
Representando o incio de uma nova tradio, e procurando guiar seus lhos pelos mesmos caminhos, Pedro transita entre o passado
e o presente, tecendo uma histria que , tambm, um respaldo ao seu projeto de ascenso.
Qual a tnica dos depoimentos dos seus lhos
e netos? O que sempre vai ser lembrado a
trajetria do prprio Pedro, tendo por pano
de fundo o passado mais remoto de fausto e
poder. a histria da dedicao absoluta do
pai sua formao, seu mestre desde a alfabetizao at a entrada na faculdade de Direito.
a descrio dos percalos e sacrifcios vencidos
atravs de um esforo mpar, mas que conduz
glria representada pela construo de uma
carreira pblica.
Atravs do contar e recontar dessas histrias,
vai-se criando uma semelhana de elementos
narrativos nos discursos dos diferentes membros da famlia. E nessa uniformidade e nessa
repetio que a memria dos Albuquerque se
aproxima de uma lenda. Pedro Albuquerque
narra sua trajetria, e, ao faz-lo, orienta e
aconselha os seus. De acordo com Bosi:

O meu pai foi um homem sempre voltado aos


livros, desde... Ele estudou, se alfabetizou, com
meu av, no engenho, com vela de cera de carnaba feita pela minha av. No tinha luz eltrica, no tinha querosene, no tinha nada. Era
cera de carnaba. Minha av fazia aquelas velas
e o meu av fez uma cartilha de abc, por onde
ensinou meu pai. Esta cartilha de abc, salvo engano, est em mos da minha irm Lgia, no
sei bem por onde est. Mas ela existe, ela foi
feita pelo meu av e nela, nessa cartilha de abc,
meu pai aprendeu a ler e a escrever (Arthur Albuquerque, 73 anos).

H episdios que gostamos de repetir, pois a


atuao de um parente parece denir a natureza ntima da famlia, ca sendo uma atitude
smbolo. Reconstituir o episdio transmitir a
moral do grupo e inspirar os menores. Podemos
reconstruir um perodo a partir desse episdio
(1987: 345-346).

Indo alm das narrativas, ele pe os lhos


em contato com o ambiente em que viveram
os antepassados, atravs das viagens constantes
a um dos engenhos da famlia no Nordeste,
que ele procurou recuperar e manter. As descries dessas viagens remetem importncia
das mesmas na construo e permanncia de
uma memria familiar. O mundo fsico que
circundava os antepassados passa a ser vivido e
usufrudo. Conforme Pollack: Nas lembranas mais prximas, aquelas de que guardamos
recordaes pessoais, os pontos de referncia
geralmente apresentados nas discusses so,
como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores

Em seu papel de orientador e conselheiro,


Pedro Albuquerque adota uma prtica compatvel com o discurso. Ao dedicar-se a acompanhar os estudos de seus lhos, ele reproduz
rotina artesanal de ensino, semelhante quela
levada a efeito por seu pai em sua educao.
Seus lhos armam:
cadernos de campo n. 13 2005

Papai deu um valor to grande... como j lhe


disse, colocava um lho aos cinco anos no primrio, onze no ginsio e dezessete nas faculdades. Quem nos visitava naquele tempo, que ns
morvamos na avenida das Andorinhas 21, era
uma coisa espantosa. Oito horas da noite estava
o papai na cabeceira, e todos os lhos, ele ensinando. Um ensinando Geograa, outro Histria. Todo mundo que viveu naquele tempo dizia:
quando ns amos casa do Pedro Albuquerque,
ns encontrvamos vocs todos estudando. (...)
Papai s nos liberava do estudo sbado (Paulo
Albuquerque, 76 anos).

38 |

(1989: 11). Ouvem-se narrativas diversas,


contadas pelos personagens desses engenhos,
que vo compondo um quadro vivo do que foi
a vida do bisav major ou do tatarav baro.
Papai me dizia: meu lho, nunca na mesa do
meu av Carlos Seabra, ele comeu sozinho com
a Maria Antnia, com a Dindinha. Sempre
tinha gente. Quatro, cinco, seis, oito, dez comensais. Vinham do serto, vinham do Pontal,
vinham de Natal. Entravam na casa de meu bisav como se entrassem na prpria casa. Sempre
a mesa farta (Paulo Albuquerque, 76 anos).

Pollack (1992) indica que os acontecimentos, personagens e lugares so elementos constitutivos da memria, e podem resultar de um
conhecimento direto, quando fazem parte do
espao-tempo de uma pessoa e foram vivenciados ou conhecidos pessoalmente. Mas a
memria de uma pessoa pode, tambm, incorporar lembranas que correspondem ao legado
do grupo embora no advenham diretamente
de suas biograas , atravs de um processo de
socializao que leva a uma identicao com
determinado passado. Trata-se, neste caso, de
uma memria herdada, j que diz respeito a
experincias pessoais de outros.
O engenho um lugar conhecido e usufrudo pessoalmente pelos lhos de Pedro Albuquerque, mas sempre com referncia a personagens
e relaes passadas. A perda da importncia
econmica da regio, aps a queda da economia
aucareira, parece ter criado um nicho do passado, pois as narrativas revelam muitas permanncias, muitas continuidades. Nas descries
do engenho permanece a ausncia de certas comodidades, pois, como na poca dos antepassados, no havia sanitrios. Os lhos de Pedro
Albuquerque tiveram, tambm, a oportunidade
de conviver com personagens que acompanhavam a famlia h anos, como ex-escravos e seus
lhos. E o proprietrio, embora no dispusesse

da mesma situao que seus antepassados, ainda


se apresentava aos criados da mesma forma que
aqueles, deixando de lado as roupas domsticas
e envergando cala, camisa, palet e gravata, j
que o traje distinguia o dono.
Halbwachs (1990) toca nos signicados
que o espao assume ao ser marcado pelas relaes estabelecidas entre os homens. Regido
pelos mesmos smbolos que impregnam a vida
social, o espao torna-se ponto de referncia na
estruturao da memria. O passado evocado
no apenas nas histrias de Pedro, mas o ambiente, os personagens do engenho e vrios aspectos da rotina diria parecem trazer de volta
os antepassados.
Ainda quando eu fui com doze anos onze ou
doze anos pro engenho, ainda conheci muitas
escravas. A Tamunda que era Raimunda , a
Cot, a Sinhazinha. Ainda conheci essas escravas e, inclusive, o grande amigo do papai, que
era um preto, que era to preto que o apelido
dele era Cambraia. (...) E tambm da Maria que
era empregada de casa. Quando ia lavar as panelas noite sete horas da noite o luar bonito,
ela cantava: Luar da lua/ Sereno das estrelas....
Eram os primeiros versos. A cano era longa,
mas nunca me esqueci dela lavando, esfregando.
(...) Acabava a cozinha, sete horas da noite, ela
ia... no lavava dentro de casa. A panela era lavada do lado de fora, com areia, bem esfregada
(Paulo Albuquerque, 76 anos).

Ele fala, tambm, com tal intimidade da


av que parece ter convivido com ela.
(...) minha av, me do papai, dona Albertina,
era tambm uma mulher muito altiva e muito
dura. Muito, muito segura e de muito pulso.
Diferente da minha av [na verdade, sua bisav], que era a Dindinha, chamada Dindinha,
casada com o Major Carlos Seabra, que a funo dela era colocar as mucamas quinze, vinte
cadernos de campo n. 13 2005

|
mucamas em torno dela, com bilro, ela ensinando a fazer rendas. Ela cava na cabeceira e
botava as mucamas as moreninhas todas, ela
ensinando renda pra todas elas.

Assim, atravs das lembranas dos Albuquerque possvel resvalar o cotidiano da famlia, desde a poca do seu apogeu enquanto
parte da oligarquia canavieira nordestina, passando pelo seu declnio e chegando construo mais recente de uma tradio que enfatiza
a erudio do grupo e suas carreiras pblicas.
Os membros dessa famlia especialmente os entrevistados mais velhos conseguem
reconstruir verbalmente a trajetria da famlia, e de forma muito semelhante a como ela
est escrita e publicada em livros e crnicas.
Nota-se que, aqui e acol, aparecem informaes que demonstram a existncia, entre os
membros da segunda gerao, de um trnsito
de informaes e objetos de famlia fotograas, manuscritos, quadros, objetos pessoais e
aqueles que assinalam a distino dos antepassados , revelando que o passado se constitui
em matria de interesse a que continuamente
retornam. O fato de alguns membros da famlia terem se dedicado construo de uma
verso da histria familiar, no individualmente, mas atravs de um esforo conjunto, em
que contribuies particulares foram sendo
incorporadas, aps serem reveladas ao grupo
e se tornarem recorrentes talvez por exporem alguma faceta que se pretendia destacar ,
criou uma aproximao entre o registro escrito
da histria familiar e as memrias particulares
de seus descendentes. As vinculaes de vrios
deles a instituies culturais valorizadoras de
uma dada verso histrica, centrada nos grandes personagens e em biograas, foi tambm
importante na criao de uma uniformidade
no discurso.

cadernos de campo n. 13 2005

III
Embora tanto os Albuquerque quanto os
Duvignaud sejam adjetivados de tradicionais,
percebe-se que se trata de duas construes
distintas de memria familiar. As diferenas
compreendem a extenso temporal que as lembranas recobrem, a intimidade com o passado
dos antecedentes e a imagem xada sobre as famlias a partir da. Tambm envolvem a nfase
dada ao retorno ao passado, e sua articulao
com estratgias de manuteno ou recuperao
de posio social. Considerando a memria
como um fenmeno social, compreende-se a
formulao dessas diferenas a partir da observao das trajetrias individuais e do grupo
familiar em suas relaes com o contexto
mais amplo.
A iniciativa de um dos membros da famlia
Duvignaud de pesquisar e registrar por escrito o passado de sua famlia, divulgando uma
verso, nos faz vislumbrar, na sua gura, um
guardio da memria familiar. Lins de Barros
nos fala destes sujeitos que, ciosos da importncia da famlia na construo da identidade dos indivduos, tomam para si a tarefa de
preservar os arquivos da memria familiar
(1989: 37).
Pollack (1989, 1992) destaca que toda
memria coletiva corresponde a um trabalho de enquadramento, no qual so estabelecidas as referncias sobre as quais
se constroem as fronteiras que denem a
identidade do grupo. Este trabalho apia-se
sobre a histria, material que permite diferentes interpretaes, sendo o limite dado
pelo reconhecimento, por parte do grupo, de
sua imagem na verso construda. Os guardies da memria agem como atores desse
processo, controlando a imagem do grupo
pela divulgao de uma dada verso, que s
se consolida e permanece, obviamente, enquanto o grupo se reconhece nela.

40 |

Na verso de Antnio Duvignaud, autor da


obra, o destaque dado proeminncia econmica e poltica dos Duvignaud, construda
atravs de vrias geraes, assinalando no uma
situao passageira, mas uma tradio. Partindo
dos ramos e personagens destacados do grupo,
o autor enfatiza o perodo ureo da famlia no
Par, vivido no incio do sculo, momento maior
de expresso do seu renamento e proximidade
com o poder. O livro no s diz quem eram os
Duvignaud, mas procura estabelecer linhas de
continuidade entre o passado e o presente, naturalizando o que fruto de circunstncias histricas e enxergando, na atual descendncia, traos
do que seria a marca deste grupo familiar.
Em termos de narrativa oral, no encontrei nada parecido com a sistematizao feita
no livro. Est claro que ele no foi escrito com
base apenas na memria do autor, mas em um
minucioso trabalho de investigao que incluiu
no s os depoimentos de familiares, mas uma
ampla pesquisa de fontes escritas. Para que o
contedo das entrevistas tivesse uma aproximao maior com o do livro, a busca de informaes sobre o passado familiar e o cultivo
dessa memria deveriam ser algo recorrente
entre os entrevistados. Nesse caso, o prprio
livro teria se tornado uma fonte importante na
composio de um discurso sobre o passado
familiar. No entanto, os entrevistados fazem
meno ao livro, mas no costumam repetir o
seu contedo, mostrando que ele no foi plenamente incorporado. No apresentam, como
o autor, uma verso que reconstrua a trajetria
do grupo. Cabe notar que tanto as representaes sociais, quanto o uso social da memria,
podem ser afetados por diferenciaes internas a essas famlias e pelas particularidades das
trajetrias individuais. Assim, pode haver um
grupo de parentes que se destaca por controlar, efetivamente, os recursos materiais, sociais
e simblicos herdados e que compem o atual
patrimnio familiar.

Dos cinco entrevistados, os trs irmos enfatizam apenas as marcas que caracterizariam os Duvignaud e denotariam sua distino. J nos outros
dois casos, me e lha reconstituem fragmentos
de trajetrias individuais de antepassados prximos, mas no sintetizam o percurso da famlia.
Remetendo, em especial, memria herdada
de uma antepassada comum, falam sobre comportamento, hbitos do cotidiano e interao de
um grupo de parentes que viveu o nal do sculo XIX e parte do sculo XX. possvel, assim,
enxergar aspectos da vida dos Duvignaud tanto
em seu perodo de apogeu, como num momento
j marcado pelo declnio de sua expresso mas
no qual os traos de distino social eram ainda
muito atuantes. Se no sintetizam a histria do
grupo, do vida a pedaos de uma histria familiar, ao traarem um perl dos antepassados, que
completa a descrio de Antnio Duvignaud,
voltada para a descrio de carreiras pblicas e
para a anlise do percurso da famlia.
Ressalto que as entrevistas que realizei no
negam, absolutamente, a imagem de distino
da famlia, tal como est traada no livro de
Antnio Duvignaud. Se fosse de outra forma,
a gura do autor no seria a de um guardio da
memria. Ou ento, isso indicaria modos diferenciados dos membros do grupo enxergarem
a si prprios, havendo mltiplas verses que,
provavelmente, disputariam entre si o papel de
verso vlida. Vale lembrar a aproximao feita
por Pollack entre memria e identidade, a partir da considerao da primeira como (...) um
elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva (1992:
204), chamando a ateno para o processo
contnuo de construo que as engendra. E isso
envolve uma permanente negociao entre os
agentes envolvidos nas denies construdas.
Mas, nesse caso em particular, as diferenas no
dizem respeito natureza das verses, e sim aos
graus de envolvimento do autor e dos entrevistados com o cultivo de uma memria familiar.
cadernos de campo n. 13 2005

Os trs irmos em questo tiveram o nome


Duvignaud transmitido pelo pai que foi pecuarista, poltico e empresrio , sendo lhos
do segundo casamento deste. O que nos dizem
quando solicitados a falar sobre o passado dos
Duvignaud? Em linhas gerais, enfocam as marcas da famlia: sua riqueza, a vocao poltica,
o gosto por posies de mando, o renamento
de seus hbitos, a vinculao do nome da famlia s terras da Ilha do Maraj e, at mesmo,
semelhanas fsicas (beleza e altura). Embora o
nascimento do pai deles remeta ao auge do ciclo da borracha, so lembrados apenas aspectos
mais recentes de sua trajetria. Um renamento
pessoal evocado, como que traando uma correspondncia entre o pai e o nome de famlia.
Ento, ele gostava tudo dele do bom e do melhor. Pra voc ter uma idia, na fazenda, a histria que a mame conta eu realmente no
conheci era que todos os talheres eram de prata, prata importada, etc. Todas as louas eram
de porcelana. Papai tinha um cais na fazenda
que durou at quase... um sobrinho que cou
com essa parte da fazenda me diz que esse cais,
at uns cinco anos atrs, ele existia ainda. E os
lenis de linho... papai sempre foi um homem
que gostou desse aspecto, se vestia muito bem,
talvez at melhor que a gente. Sempre uma elegncia a toda prova, no s de vestir, como da
roupa de dormir, da maneira de se alimentar,
etc. E a gente ouvia todas essas histrias (Carlos
Duvignaud, 41 anos).

Praticamente nada dito sobre os avs paternos. Como compreender que um passado to
prximo, j que vivido por pai e avs, chegue
at eles de forma to residual? A resposta parece
estar, em grande parte, nas rupturas que acompanharam a formao desse ncleo familiar. A
primeira delas o rompimento do pai, Olavo
Duvignaud, com sua primeira unio, que havia
sido realizada com pessoa de origem familiar
cadernos de campo n. 13 2005

semelhante. Em seguida, ele casa-se de novo,


agora com pessoa bem mais jovem e de origem
mais humilde, dando incio a esse novo ncleo
familiar.4 Finalmente, ele reorienta a sua vida
prossional, deixando de ser pecuarista atividade que marcou a trajetria da famlia , j
que a fazenda que possua foi legada aos lhos
do primeiro casamento. Essas rupturas parecem ter contribudo para um distanciamento
em relao ao grupo familiar mais amplo e a
uma rede de relaes que lhe servisse de apoio
ao cultivo de lembranas ligadas a um passado
comum ou entrelaado.
Armam que foi preservado pelo pai apenas o convvio prximo com uma irm, j que
dois irmos morreram muito cedo, um terceiro
morava no Rio de Janeiro e uma outra irm, no
exterior. Assim, h uma disperso na gerao
anterior aos nossos informantes que, associada
s quebras anteriores j citadas, conduz a um
distanciamento do passado pela ausncia daqueles com os quais se poderia compartilhar e
cultivar lembranas.
Voltando memria dos trs entrevistados,
podemos dizer que, embora no reconstituam a
vida dos antepassados nem o percurso familiar,
apontam com nitidez as marcas da famlia. Em
parte, porque foi possvel extrair isso da prpria
conduta do pai, e, tambm, por conta de aspectos da vida da famlia vislumbrados em jornais,
livros e conversas com pessoas prximas, que
4. Sua segunda esposa vinha de uma famlia de pequenos criadores do Maraj, lugar onde os Duvignaud
caram conhecidos como grandes pecuaristas. As
diferenas de origem cam claras nas fotograas de
famlia, sendo que uma delas particularmente esclarecedora da distncia social entre os dois grupos:
de um lado, aparece Olavo e um dos lhos do casal,
e de outro, os pais da segunda esposa. Todos esto de
p, olhando para a cmera, e a distncia que separa
os dois lados muito grande, causa estranhamento e
sugere ausncia de intimidade e um afastamento respeitoso da parte dos pais da esposa. A indumentria e
a postura reforam essa sugesto.

42 |

servem a eles como um espelho. como se eles


tivessem tido acesso a fragmentos de um cenrio e a uma conduta peculiar famlia, mas no
vida de personagens especcos, pelo menos
no de modo a incorpor-las a sua memria.
Entre as pessoas citadas como importantes
canais de acesso ao passado familiar, a que parece
ter desempenhado melhor esse papel foi uma tia
paterna, Tereza Duvignaud, a nica que permaneceu em Belm e com quem havia uma relao
de proximidade. Conquanto a vida desta tambm tenha sido marcada por vrias rupturas, ela
manteve uma ampla rede de relaes, composta
predominantemente por parentes, e retratada
pelos entrevistados como contadora recorrente
de histrias que remetiam ao passado familiar.
Essa senhora me e av das outras duas entrevistadas, que demonstraram maior desenvoltura
ao falar de parentes que as precederam.
E isso nos remete a um outro dado importante
para esclarecer a ausncia de lembranas entre os
irmos entrevistados: eles no conviveram, sequer
conheceram, seus avs paternos um importante
canal de ligao com o passado familiar, pois os
avs reconstroem suas vidas, relembrando a trajetria familiar e estabelecendo, na lembrana, o
espao familiar, a representao da famlia e suas
relaes internas (Lins de Barros 1987: 77).
A importncia dos avs para a atividade
mnemnica reforada pelo depoimento de
Vitria, neta de Tereza Duvignaud, que a criou
enquanto seus pais trabalhavam e residiam na
Ilha do Maraj. A sua entrevista apresenta uma
diferena signicativa em termos de intimidade
com o passado, reconstituindo em suas lembranas a trajetria da av e remetendo a muitas
situaes cotidianas que envolvem ela prpria,
enquanto companhia constante daquela. So
relembradas as visitas de m de tarde a parentes
denotando a fora de uma parentela ainda nas
dcadas de 1950 e 60 , os lugares freqentados
para passeio, compra, atividade religiosa , as
viagens ao Rio de Janeiro, aspectos da educao

que recebeu a maneira de se vestir, de se portar mesa, de pensar sua condio de mulher
e as reunies familiares em datas festivas.
A partir da av, surgem outras mulheres em
suas lembranas, que so pessoas prximas, tanto pelo parentesco e convivncia, como pelo estilo de vida. A entrevista de Vitria traz tona,
portanto, um mundo feminino. Nem os homens
que se pressupe mais prximos pai, av, irmo
tm espao em sua narrativa. Ela reconstitui a
histria da av desde as circunstncias privilegiadas em que passou a infncia e parte da juventude, assinalando os estudos feitos em Paris, seu
traquejo social e sua elegncia. Descreve, tambm, os percalos de sua vida, iniciados com um
matrimnio acordado pelo pai, e que se revelou
desastroso, no apenas pela ausncia de sentimentos, mas porque a trajetria do marido de Tereza
foi marcada pela runa econmica, seguida de sua
morte precoce. Desse casamento resultaram dois
lhos, uma mulher e um homem. Posteriormente, Tereza Duvignaud voltou a se casar e teve mais
uma lha, Flvia, me de Vitria.
Quando Vitria fala da av materna, a
descreve como uma mulher forte e articuladora de relaes, que mesmo j no tendo um
patrimnio que se igualasse a alguns de seus
parentes, manteve a proximidade com eles,
inclusive atravs do estilo de vida que cultivou. Esta proximidade converteu-a, primeiro,
em protegida e, posteriormente, em herdeira
do patrimnio da viva de um tio consangneo, a qual no possua herdeiros diretos.5
5. A proximidade dessa relao ca evidente no s neste
fato, mas tambm em outras informaes fornecidas por
Vitria e Flvia. O nascimento de Flvia, por exemplo,
ocorreu na casa desta senhora, tendo ela e o marido tornado-se seus padrinhos. J Vitria relata as freqentes
visitas de m de tarde a ela e a outra tia de sua av. Por
m, vale notar que esta senhora, ao repassar seus bens
para Tereza e sua lha Flvia, converteu em herdeiras
no parentes consangneas suas, mas sim de seu marido, j falecido. Por interveno de Tereza, coube a ela os
imveis e jias, sendo a fazenda repassada Flvia.
cadernos de campo n. 13 2005

Os lugares de passeio, a maneira de se vestir,


o exerccio da lantropia, a formalidade e o
respeito que exigia durante as refeies, assim
como seu comportamento rgido, so aspectos
de uma vida que, nos detalhes, elaborava um
estilo e marcava uma distino.6
A minha av, sempre era a palavra dela que predominava, ela que controlava o dinheiro, ela que
decidia as coisas, tudo ela que fazia. Ela dominava a famlia toda, mas assim de uma coisa que
ningum sentia. Todo mundo gostava muito
dela: av, me [Vitria refere-se ao seu prprio av
e me], lhos, genro meu pai tinha verdadeiro
pavor dela. E no era dominao pelo dinheiro, era dominao pela palavra, dominao pela
vontade, dominao, assim, pela maneira dela
ser. Ela transava para que tudo sasse da maneira que ela queria. Ela chantageava, ela usava de
todas as armas possveis e imaginveis (...) Na
mesa, antigamente, ningum podia falar, a no
ser quando a vov desse a palavra pra todo mundo. A primeira que falava na mesa era ela, ela
que servia todo mundo (Vitria Duvignaud, 42
anos).

A me dessa entrevistada tambm deu um


depoimento no qual revela no apenas o passado
que foi vivido, mas aquele que lhe foi contado,
demonstrando conhecimento da trajetria do
av materno e seus irmos, assim como da gerao de sua me. Essas informaes particularizam
alguns antepassados em aspectos que marcaram
a sua feio dentro do grupo familiar, lembrando a armao de Bosi de que nenhuma comunidade consegue como a famlia valorizar tanto
a diferena de pessoa a pessoa (1987: 346). a
6. Provavelmente, alguns desses aspectos s se viabilizaram quando Tereza recebeu a herana de sua tia, o
que explicaria porque Vitria remete a eles, mas sua
me no. A trajetria delas , tambm, bem diferente,
estando claro que Flvia viveu a infncia e juventude
em circunstncias mais modestas.
cadernos de campo n. 13 2005

que aparece o tio-av gourmet, um outro que era


lsofo, o tio dos carros importados, a av que
adorava enterros, a pitoresca bisav que vivia entre Belm e Paris, sem saber falar francs, e de l
trazia mas em penicos. Os parentes so, assim,
revelados atravs de (...) uma face ideal que se
perpetua (Bosi 1987: 352).
Flvia tambm fornece dados sobre o estabelecimento de relao de propriedade, por parte de
membros da famlia, com algumas fazendas do
Maraj. Um aspecto interessante a visualizao
da endogamia de classe das famlias que compunham a elite paraense, cujo domnio, em alguns
casos, se estendeu do perodo colonial at a Repblica, como , alis, o caso dos Duvignaud.
As distines entre as entrevistas de Vitria e Flvia se concentram no relato de sua
trajetria pessoal e no seu cotidiano durante
a infncia e juventude, o que interfere no discurso atravs do qual trazem tona o passado familiar. Enquanto Vitria nos mostra os
Duvignaud sob a tica com a qual enxergava
a av, evidenciando sinais de elegncia, imponncia, renamento e riqueza, sua me reporta uma infncia e juventude mais distante
do passado de fausto que assinalou a trajetria
da famlia. Embora ela enfatize a riqueza dos
Duvignaud e sua proximidade com o poder,
no os descreve em termos de seu renamento, preferindo caracteriz-los por sua afobao
e pelo senso de humor, arrolando histrias
correntes na famlia sobre gafes cometidas por
antepassados e outras histrias pitorescas, que
passaram a fazer parte do anedotrio familiar.
Mas seu relato como o de Vitria tambm remete mais a antepassados femininos.
Embora o av paterno de Tereza seja o nico
membro consangneo da famlia homenageado com um ttulo nobilirquico brasileiro,
sendo esse fato destacado no livro de famlia,
as duas entrevistadas no o enfatizam e nem
mesmo tm histrias a contar sobre esse antepassado. Mas Flvia fala da bisav, esposa

44 |

daquele, relatando diversos episdios vividos


por ela, quando j idosa e viva. Em sua residncia encontram-se dois mveis que no s
pertenceram bisav, como esto intrinsecamente ligados a sua gura:
As duas cadeirinhas, tu notas que so baixas,
que a mame diz que ela era pequenina. E a que
est dentro do closet era pra ela botar... que tinha bota, mas bota de mulher era com boto, do
lado, assim. Era baixinho pra ela abotoar as botas. Isso outra coisa que eu me lembro (Flvia
Duvignaud, 64 anos).

Como ponto comum a esses dois relatos,


pode-se dizer que ambos do vida a personagens que no livro de famlia no aparecem,
ou so tratados apenas em termos de sua vida
pblica. O que me e lha contam sobre os
Duvignaud, mergulhando nas histrias de uma
antecedente feminina, so outras faces desse
passado, nas quais assinalada a distino da
famlia, mas remetendo principalmente ao cotidiano e a elementos de uma trajetria que foi
acompanhada de perto e passou a fazer parte
das conversas domsticas.

IV
Conforme assinalei no incio deste trabalho,
ao levantar a memria oral e escrita de membros
das famlias Duvignaud e Albuquerque, encarei
a herana mnemnica de cada uma delas dentro da perspectiva de Halbwachs (1990), ou
seja, como uma construo em que indivduo
e sociedade desempenham, cada qual, seu papel
para que ela se efetive. O ritmo das lembranas,
os lapsos do discurso resultantes do ocultamento ou do esquecimento , a extenso temporal percorrida e o teor bsico das recordaes
so aspectos que podem ser entendidos quando
articulados trajetria do grupo e a traos especcos de vidas particulares.

Ao enfocar o indivduo, Halbwachs (1990)


enxerga-o como um ser social, ponto de conuncia e de articulao das perspectivas de diferentes grupos no contexto de uma sociedade
complexa. A memria individual resulta, portanto, de um trabalho elaborado pelo sujeito
de seleo, destaque, ocultamento, reelaborao , a partir da conuncia das lembranas
resultantes de sua experincia social. De acordo
com Lins de Barros:
Ao pretender expor o carter social da reconstruo das lembranas, Halbwachs acaba realando o
aspecto individual da memria, que encerra um
sentimento prprio e particular. Sua existncia
tem um carter nico, decorrente de sua posio espacial e temporal e que apenas um nico
e determinado indivduo possui em sua biograa
(1989: 31).

Para evidenciar o papel que cabe ao indivduo na arquitetura da memria, ressaltei aqui o
papel dos guardies da memria, ou as especicidades de falas individuais no interior de um
discurso que retrata o grupo. Tereza Duvignaud
foi, sem dvida, uma guardi da memria familiar, e sua retomada do passado foi enriquecida
por sua vida social intensa e, em especial, pelo
cultivo das relaes com parentes. A manuteno de uma agenda com nomes e datas de nascimento de parentes, a vasta correspondncia que
manteve ao longo de sua vida, e sua constituio como uma gura adequada para lidar com
problemas familiares, mostra uma mulher para
quem a vida familiar extrapolava os limites de
sua residncia ou de sua famlia nuclear.
Em sua dedicao ao passado, os guardies
formam colees de objetos, fotograas, histrias que permitem entrever o passado, no
como fragmentos esparsos e exteriores ao sujeito, mas como vibraes que trazem tona a
atmosfera vivida pelos antepassados. Em suma:
em suas recordaes, o passado recriado de
cadernos de campo n. 13 2005

forma vvida. Ressalto aqui que Halbwachs


(1990) encara a memria como um elemento
dinmico, a construir continuamente o passado tendo por base os fatos ocorridos. Ecla
Bosi, interpretando as palavras de Halbwachs,
arma: Na maior parte das vezes, lembrar no
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e idias de hoje, as experincias
do passado. A memria no sonho, trabalho (1987: 17).
Pedro Albuquerque tambm agiu como
um perfeito guardio, tanto pelas histrias que
colecionou e contou, como por mediar o
contato dos lhos com os locais onde havia se
desenrolado a vida dos avs. Os engenhos da
famlia, no Nordeste, assemelham-se a ilhas
de passado conservadas, onde nos sentimos
subitamente transportados a um tempo anterior (Halbwachs 1990: 68).
A existncia dessas guras chaves na preservao da memria chama a ateno para como
o indivduo pode tornar-se ponto de conuncia de propsitos de manuteno do grupo,
ou das representaes a ele vinculadas. Tereza
Duvignaud e Pedro Albuquerque so sujeitos
atuantes, interessados em preservar, resgatar ou
criar imagens para os grupos nos quais se incluem. interessante notar que desempenham
esse papel aps vivenciar rupturas, o que mostra
que a tessitura das lembranas torna-se ainda
mais urgente nos momentos em que todo um
passado e uma tradio parece se esvanecer.
O papel do indivduo na estruturao da
memria pode ser percebido, tambm, nas
diferenas que marcam as narrativas feitas por
membros de um mesmo grupo familiar. Embora exista entre os lhos de Pedro Albuquerque
um discurso bastante uniforme, o lho caula
apresentar o passado num tom diferente dos
demais, por no enfatizar a distino familiar.
No tendo se incorporado, como os irmos, a
instituies culturais e prossionais valorizadoras de um discurso enaltecedor de personagens
cadernos de campo n. 13 2005

e suas origens, apresentar o passado sob uma


tica que conjuga alguns aspectos caros famlia como, por exemplo, a trajetria de Pedro
Albuquerque com noes desenvolvidas em
outros crculos que fazem parte de sua vida.
Do lado dos Duvignaud, as diferenas entre o
depoimento de Vitria e o de sua me tambm
do conta de como dois indivduos podem
recriar um passado em comum, cada qual de
uma forma particular. De novo entra em cena
a vivncia do indivduo e seu trnsito entre os
diversos grupos, permitindo que ele elabore sua
memria individual atravs de uma tessitura,
em que a memria coletiva um referencial,
mas um referencial assumido sob uma perspectiva bastante particular.
Para ambos os grupos possvel destacar aspectos uniformes que marcam o que recordado, gerando um discurso que dene a imagem
do prprio grupo. As narrativas dos Albuquerque enfatizam a austeridade, a disciplina e a
dedicao consolidao de uma formao
exemplar que, somadas pontuao e naturalizao de seu passado oligrquico, tornam possvel associar seus membros ao perl adequado
para o trato da coisa pblica. No caso dos Duvignaud, ressaltado o renamento e poder
dos antecedentes, associando-os recriao em
Belm de uma civilizao dentro dos moldes
europeus por ocasio do ciclo da borracha.
No entanto, h diferenciais em termos da
extenso, da intimidade e da importncia que
o passado assume no contexto presente dessas
famlias. Nesse ponto, fundamental considerarmos o peso do grupo na estruturao
das lembranas. Halbwachs (1990) chama a
ateno para o fato de que construmos nossa
memria recorrendo ao testemunho daqueles
que fazem parte dos grupos nos quais tomamos parte, e que partilham conosco no apenas
fatos de uma vida em comum, mas modos de
pensar muito prximos, desenvolvidos no interior dos mesmos.

46 |

Observamos que Pedro Albuquerque e seus


lhos homens vo compor um grupo bastante
homogneo em termos de suas trajetrias, comungando objetivos prximos a partir da slida orientao do patriarca da famlia. Usando
as mesmas noes, e tendo a memria do pai
como guia, eles vo partilhar um vasto repertrio de lembranas, as quais dizem respeito no
apenas aos fatos vividos, mas queles trazidos
tona por Pedro Albuquerque e pelos cenrios a
que ele os conduz.
A situao bem distinta entre os Duvignaud. No momento em que realizei as entrevistas, era clara a disperso familiar, assim
como a ausncia de um convvio prximo com
parentes por parte dos informantes. Os ncleos de convvio remontavam ao passado, tal
como revelado pela histria de vida de Tereza
Duvignaud. O grupo subsiste enquanto uma
realidade genealgica que partilha um referencial simblico em comum: o nome de famlia.
Mas esse por si s j no permite delimitar um
grupo unicado em torno de uma vivncia em
comum, havendo um enorme fosso entre o
passado e o presente familiar.
As lembranas colhidas junto a essas famlias evidenciam, assim, uma outra importante
lio de Halbwachs (1990): se por um lado

o presente que desencadeia as lembranas, por


outro lado mergulhando no passado que os
homens buscam sentido para suas experincias
cotidianas. O distanciamento de alguns descendentes dos Duvignaud frente memria do
grupo mostra que novos caminhos esto sendo trilhados, e que eles j no remetem tanto a
esse passado: os referenciais so outros. E se as
lembranas da segunda gerao dos Albuquerque no Par inclui de forma to signicativa os
seus antepassados, no s porque suas histrias lhes foram continuamente contadas, mas
porque elas davam sentido a um projeto que s
se viabilizaria enquanto gerido pelo grupo.

Referncias bibliogrficas
BOSI, Ecla. 1987. Memria e Sociedade: Lembranas de
Velhos. So Paulo: T. A. Queiroz/ EDUSP.
HALBWACHS, Maurice. 1990. A Memria Coletiva. So
Paulo: Vrtice.
LINS DE BARROS, Myriam Moraes. 1987. Autoridade
e afeto: avs, lhos e netos na famlia brasileira. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor.
_____. 1989. Memria e Famlia. Estudos Histricos. 2
(3): 29-42.
POLLACK, Michael. 1989. Memria, esquecimento,
silncio. Estudos Histricos. 2 (3): 200-215.
_____. 1992. Memria e identidade social. Estudos
Histricos. 10 (5): 3-15.

cadernos de campo n. 13 2005

Ipanema e suas modas: passado x presente


MARISOL RODRIGUEZ VALLE
Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.
Artigo aceito para publicao em 22/09/05

resumo O objetivo deste artigo analisar a

abstract The objective of this article is to

contruo social do bairro de Ipanema nos meios


de comunicao. Realizo uma anlise aprofundada
de trs livros e trs suplementos de imprensa e estabeleo uma comparao entre as representaes
sobre o passado e o presente do bairro. Verico os
espaos, as personalidades, as vises de mundo e os
estilos de vida que caracterizam a Ipanema de hoje
e de ontem.
palavras-chave representaes, bairro, espaos urbanos e estilo de vida.

analyze the social construction of the quarter of Ipanema in the media. I carry trough a comment on
three books and three supplements of the press and
establish a comparison between the representations
of the past and the present of the quarter. I verify
the spaces, the personalities, the world visions and
the life style that characterize Ipanema of before and
today.
keywords representations, neighborhood, urban spaces, life style.

A provncia da ousadia

taxas de aluguel, condomnio e impostos. Muitas vezes me percebo como peixe fora dgua
nesse bairro, sobretudo ao constatar o elevado
padro de vida dos vizinhos ou quando passo em frente s vitrines das luxuosas grifes que
se encontram nos arredores. H, contudo, um
aspecto simblico muito forte em morar em
Ipanema, e a fora desse simbolismo se traduz nas prticas e nos projetos dos indivduos,
como foi o caso da escolha de minha me por
morar ali apesar das conseqncias que essa
deciso sempre acarretou. Em grande nmero de sociedades urbanas, e de forma muito
marcante no Rio de Janeiro, o espao constitui
elemento importante para a denio do status
dos indivduos. H, nessa cidade, uma ntida
hierarquia de bairros e, atravs desta, os indivduos percebem a sociedade e se situam dentro
dela (Velho 1978).

Responder pergunta onde voc mora?


pode ser constrangedor para muitos cariocas. A
simples meno ao nome do bairro capaz de
suscitar um conjunto de idias sobre seu morador.
Quando a resposta Ipanema, algumas reaes
como que chique! ou expresses faciais como a
de levantar a sobrancelha revelam que existe um
determinado imaginrio sobre esse bairro. Experincias como essas fazem com que, em determinadas circunstncias, eu evite dizer onde moro ou
sinta vergonha de minha resposta.
No meu caso, o constrangimento se agrava
por no me perceber como algum que corresponda aos quesitos tpicos do morador de
meu bairro. Morar em Ipanema sempre signicou, sob meu ponto de vista, ter de sacricar
certas comodidades para poder pagar elevadas
cadernos de campo n. 13: 47-60, 2005

48 |

Estranhar o bairro em que se vive pode se


converter em uma experincia bastante signicativa, principalmente para quem pretende exercitar uma viso antropolgica sobre o
prprio meio social. Proporciona, talvez, uma
maior facilidade para transformar o familiar
em extico, como sugere Da Matta (1978).
Este exerccio reexivo que pratico cotidianamente no bairro onde moro fez com que Ipanema se tornasse, para mim, alm de um local
intrigante, um objeto a ser pesquisado.
Uma vez decidida a realizar uma investigao sobre Ipanema, iniciei uma busca por referncias bibliogrcas sobre o local. Deparei-me
com livros que continham descries, fotos e
comentrios que em nada se assemelhavam ao
que costumo observar no bairro. A Rua Garcia Dvila, por exemplo, que me surpreende
s vsperas do Natal com seu tapete vermelho
estendido na calada de lojas como Louis Vuitton, Cartier, Mont Blanc e H. Stern, no ocupava uma pgina sequer de tais livros. Aquelas
evidncias que para mim atestam que Ipanema uma das localidades mais caras do Rio
de Janeiro passavam quase despercebidas nessas
obras sobre o bairro. O que encontrei foi uma
certa regularidade no modo como os autores retratam Ipanema, como por exemplo, atravs de
uma referncia constante a pocas passadas. A
Ipanema dos livros uma Ipanema de memrias, aparecendo como um local que vivenciou
grandes mudanas comportamentais, artsticas
e culturais nas dcadas de 1960 e 1970.
Enquanto era transportada para uma Ipanema por mim desconhecida um bairro
provinciano, bomio e libertrio os
jornais e revistas de grande circulao no Rio
de Janeiro celebravam os 110 anos de uma
Ipanema moderna, luxuosa e cosmopolita. Notei, portanto, o carter subjetivo
e simblico das informaes contidas nos
meios de comunicao. Mais do que apresentar fatos sobre Ipanema, os livros e a imprensa

contm verses que produzem e reproduzem


concepes especcas sobre esse bairro. Foi a
partir dessa percepo que o material no qual
esperava obter informaes documentais e
objetivas se transformou em um objeto de
reexo para minha pesquisa.
Neste trabalho realizo uma anlise sobre
os meios de comunicao para compreender o
modo como Ipanema percebida, elaborada e
divulgada.1 Busco examinar os valores, smbolos
e noes que constroem o passado e o presente do bairro comparando os diferentes espaos,
personalidades e caractersticas que representam
a Ipanema de ontem e a de hoje. Considerando
que Ipanema, mais do que um espao fsico delimitado, exprime um conjunto de crenas e de
representaes culturalmente elaboradas, busco
analisar o processo de construo social de um
bairro emblemtico da cidade do Rio de Janeiro.

Um bairro carioca
Ipanema possui 1,67 quilmetro quadrado.
Seu territrio consiste em uma estreita faixa de
terra, de formato quase retangular, banhada ao
sul pelo oceano Atlntico e ao norte pela Lagoa
Rodrigo de Freitas. Em comparao com a maioria dos bairros do Rio de Janeiro, Ipanema pode
1. Os livros que constituem o material do trabalho so:
Ela carioca (1999), de Ruy Castro; Ipanema, se no
me falha a memria (2000) de Jaguar e Os degraus de
Ipanema (1997), de Carlos Leonam. Dentre as matrias publicadas na imprensa no ano de 2004, estipulei como critrio de seleo aquelas dedicadas ao
aniversrio de 110 anos do bairro de Ipanema. Utilizei como objeto de reexo suplementos dos jornais
O Globo, Jornal do Brasil e da revista semanal Veja
Rio que apresentavam Ipanema estampada em suas
capas. Trata-se, respectivamente de Caderno Zona
Sul Ipanema, 110 anos na vanguarda (O Globo,
22.abr.2004); Caderno H O garoto de Ipanema Ipanema 110 anos, edio especial (Jornal do
Brasil, 25.abr.2004) e Ipanema 110 anos: Histrias
e personagens do bairro mais charmoso da cidade
(Veja Rio 26.abr.2004-02.maio. 2004).
cadernos de campo n. 13 2005

: X |

ser classicada como pequena, no entanto, suas


dimenses espaciais no so proporcionais s
simblicas: Ipanema entendida como um emblema de sua cidade e at mesmo de seu pas.
Essa representao aparece de diversas maneiras no material selecionado para este estudo, como
por exemplo, atravs das noes de moda, capital cultural, boemia e estilo de vida: Ipanema est para o Rio como Paris para o mundo.
sinnimo de moda. Tudo o que a menina de
Ipanema usa a caminho do mar, da universidade,
das compras, as meninas de todo o Brasil copiam
(Jornal do Brasil: 8); o bairro era a capital cultural
do Rio, e portanto, a capital cultural do Brasil
(O Globo: 34); Talvez seja impossvel denir o
carioca sem o espao informal de cordialidade...
Em Ipanema, como bairro carioqussimo que ,
no podia faltar botequim (Jornal do Brasil: 14)
e Ipanema traduz um estilo de vida bem carioca:
praia, calado e espontaneidade (O Globo: 16).
O livro de Ruy Castro sobre Ipanema expressa as mesmas idias encontradas na imprensa. O ttulo Ela carioca sugere que o bairro
no poderia estar localizado em outra cidade
que no fosse o Rio de Janeiro. Em abril deste
ano, esse escritor foi convocado por uma livraria
para tratar o aniversrio de 110 anos do bairro.
Em suas primeiras palavras, Ruy Castro sugeriu
que Ipanema um bairro tpico do Rio atravs
da oposio formalidade x informalidade que
comumente se estabelece entre paulistas e cariocas. O autor negou que naquela ocasio faria
uma palestra com vis acadmico, pois isso
s seria possvel se Ipanema fosse em So Paulo, e preferiu denominar de bate-papo a sua
participao na homenagem ao bairro.
A importncia de um projeto de preservao
cultural para o bairro de Ipanema fundamenta-se
no decreto publicado em julho de 2003, no Dirio Ocial da Prefeitura do Rio de Janeiro, por
meio de consideraes como estas: ...Ipanema,
pela sua histria, tornou-se uma referncia do
modo de vida do carioca, reetindo-se em todo
cadernos de campo n. 13 2005

o pas. O depoimento do Secretrio Municipal


das Culturas tambm dissemina a mesma idia:
Pela peculiaridade de Ipanema no poderamos
tombar apenas imveis. Ipanema resume bem o
esprito do carioca, seu comportamento, suas atitudes. E isso que estamos preservando tambm
(O Globo 20.jul.2003).
Ao considerar a relao metonmica que
se estabelece entre bairro, cidade e pas, podese pensar que as representaes sobre Ipanema
apresentam dimenses mais amplas do que as de
um simples bairro e se estendem a um imaginrio
sobre ser carioca e ser brasileiro. Apesar disso, os elementos que estabelecem a ligao entre
o ipanemense, o carioca e o brasileiro, como os
conceitos de moda, boemia e estilo de vida, so
tratados aqui como tpicos de Ipanema. preciso ter em mente, contudo, que essa simbologia
capaz de transcender os limites territoriais de
1,67 quilmetro quadrado desse lugar.

A Ipanema do passado
Nos suplementos de imprensa pesquisados, a idia de moda recorrentemente utilizada para designar o passado de Ipanema: Nos
anos 60 e 70, Ipanema viveu uma espcie de
fase urea, exportando personagens, moda, artistas, posicionamentos polticos e modos de
vida (Jornal do Brasil: 4). O bairro qualicado como Laboratrio de moda... centro irradiador de tendncias (O Globo:18) ou Lugar
onde no faltaram musas, modismos, acontecimentos e polmica (Veja Rio: 12). Nos livros,
a idia tambm freqente. Jaguar acredita que
o bairro se intrometia na cidade e no estado,
ditava moda, hbitos e costumes para o Brasil e
o mundo; cagava regras (: 12).
A concepo de moda utilizada para qualicar Ipanema no se relaciona somente ao
sentido mais comum de inovaes nas vestimentas ou nos acessrios de uso pessoal; envolve tambm outros signicados. A associao

50 |

entre Ipanema e moda fundamenta-se na idia


de que os ipanemenses do passado tinham uma
habilidade peculiar de transgredir, criar e inventar estilos de vida, comportamentos e atitudes. Para ilustrar esta idia no preciso ler
os livros ou as matrias de jornais e revistas que
falam sobre o bairro, bastando observar as fotograas que se repetem nesse material.
A praia serve como o cenrio privilegiado
das imagens mais emblemticas do passado de
Ipanema, como a da atriz Leila Diniz grvida de
biquni; a do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira
de tanga tomando uma limonada ou a de um
grupo de mulheres com os seios mostra, rodeadas de reprteres e de curiosos. Ipanema teria
sido, sob esse ponto de vista, um local pioneiro, onde nasceram costumes e comportamentos que romperam com padres tradicionais de
conduta. De acordo com os livros e o material
de imprensa, as atitudes ipanemenses teriam
sido posteriormente difundidas e at copiadas
em outros locais do Rio de Janeiro e do Brasil.
A barriga grvida de uma personalidade pblica, o topless feminino e a semi-nudez de um
militante de esquerda so imagens estrategicamente utilizadas para tornar concretas as idias
de moda, inovao e ousadia que tambm
contribuem para o imaginrio que associa Ipanema ao conceito de vanguarda. Percebe-se que
essas fotos no so selecionadas arbitrariamente,
j que so justamente aquelas em que a transgresso est mais evidente por recair no prprio
corpo das personalidades fotografadas.
A partir da pesquisa de Velho (1998) sobre
jovens da dcada de 1970, nota-se que a idia
de ser vanguarda aparece como um valor
fundamental para as camadas mdias da zona
sul do Rio de Janeiro nessa dcada. Esse grupo
apresentaria forte anseio por mostrar um estilo de vida vanguardista, que se traduziria no
valor atribudo ao tema da mudana como um
modo de se opor a uma viso de mundo tradicional e conservadora:

O grupo denia-se como sendo orientado para a


mudana. O vanguardismo implica na inovao,
na inveno... ser um artista de vanguarda, por
exemplo, implicaria no ser pessoalmente quadrado, careta, pequeno-burgus. Mesmo as
pessoas que no desempenhavam uma atividade
que no fosse considerada especialmente inovadora ou vanguardista aceitavam, em princpio, a
importncia de ser aberto, rejeitando as escalas
de valores das famlias de origem, consideradas
hipcritas, repressivas etc. (: 63-64).

Se Ipanema entendida como um bairro


onde se desenvolveram comportamentos vanguardistas, no espao da praia mais propcio
para a exposio corporal que as novas moralidades de Ipanema ganharam um destaque pblico. A partir da anlise de Goldenberg (1995)
sobre a trajetria da atriz Leila Diniz, pode-se
argumentar que na praia que o corpo ipanemense aparece sob sua forma transgressora,
polmica ou libertria. Lembrando que na
dcada de 1970 as mulheres grvidas evitavam
freqentar espaos como a praia ou procuravam
disfarar suas barrigas com trajes de banho apropriados, Goldenberg (1995) sustenta que a barriga grvida de Leila Diniz, tornada pblica em
1971, materializou e corporicou seus comportamentos transgressores. A barriga grvida de
Leila Diniz, exibida de biquni nas praias de Ipanema, ainda hoje lembrada como smbolo da
liberao da mulher no Brasil... (: 208-209).
Para compreender a crena de que Ipanema
lanou modas preciso atentar para o destaque atribudo s personalidades desse bairro. O
material pesquisado sugere que falar de Ipanema no signica apenas descrever um espao
geogrco delimitado, mas principalmente,
lembrar de indivduos ousados, irreverentes e polmicos. O bairro recebe as mesmas qualicaes que so atribudas aos seus
freqentadores e habitantes, o que faz pensar
em uma espcie de contgio que se estabelece
cadernos de campo n. 13 2005

: X |

entre o espao e os indivduos e vice-versa. O


ipanemense teria a capacidade de contagiar o
bairro, ao mesmo tempo em que contagiado
pelas caractersticas desse espao.
A imprensa endossa esta associao entre
Ipanema e suas personalidades quando se refere
ao bairro de Tom e Vincius, da Garota de
Ipanema e divulga as fotos da tanga de Gabeira e da gravidez de Leila Diniz. O formato de
Ela carioca que se apresenta sob a proposta
de uma enciclopdia tambm induz idia de
que cada indivduo retratado na obra portador de uma denio particular. A descrio dos
comportamentos, manias, gostos, preferncias e
vontades de cada ipanemense, demonstra uma
valorizao das escolhas individuais e enfatiza o
carter autnomo de um grupo social, sobretudo de jovens de classes mdias, que vivenciavam
de modo pioneiro no Brasil, um processo de
socializao marcadamente individualista. Ruy
Castro salienta, ainda, que a experincia com a
prtica psicanaltica tornou-se recorrente entre
aqueles jovens de Ipanema na dcada de 1970.
No seria incorreto armar que apenas
em sociedades que tomam o indivduo como
um valor moral que a moda poderia despontar
como um tema possvel para anlise acadmica.
A maneira como a maioria dos lsofos, socilogos e historiadores concebem o fenmeno
por meio de mecanismos constantes de imitao e de distino revela a tenso do indivduo
moderno ocidental que oscila entre o desejo de
receber apoio e aceitao de grupos sociais e as
exigncias internas e externas por criar os contornos de uma individualidade singular. Esse
dualismo de nossa existncia, como se refere
Simmel (1988), auxilia o entendimento das
sociedades metropolitanas e individualistas colaborando tambm para a compreenso da associao entre Ipanema e a idia de moda.
Sem deixar de lembrar que o foco desta pesquisa um bairro e, portanto, uma estrutura
fsica delimitada, interessante observar que
cadernos de campo n. 13 2005

as representaes elaboradas pelos livros e pela


imprensa recaem, muitas vezes, sobre espaos
especcos de Ipanema. Nem todas as ruas, casas
e esquinas recebem as mesmas qualicaes que
so atribudas ao bairro como um todo. Existem
localidades que recebem maior destaque por
assumirem o esprito ipanemense. evidente que os espaos emblemticos do passado so
precisamente aqueles onde os indivduos criativos e que lanam modas se encontravam.
Alm da praia, antigos botequins so lembrados como locais da efervescncia cultural
ipanemense da dcada de 1960. No livro de
Ruy Castro, os botecos e ps-sujos ocupam
oito verbetes da enciclopdia: Bar Lagoa, Bofetada, Calypso, Jangadeiro, Mau Cheiro, Varanda, Veloso e Zeppelin. Na imprensa, esses
locais aparecem como os principais pontos de
encontro de artistas brasileiros, como os msicos da Bossa Nova e os cineastas do Cinema
Novo. O Caderno Zona Sul do Jornal O Globo
diz que os artistas cariocas da dcada de 1960
zeram nascer uma nova Ipanema a partir dos
movimentos nascidos em mesas de bar. Crias
dessa gerao foram a Bossa Nova e o Cinema
Novo (: 35). A imprensa especica cada bar
ipanemense segundo seu tipo de pblico: Escritores e jornalistas reuniam-se no Zeppelin...
msicos no Veloso... Havia tambm o Jangadeiro, reduto da Banda de Ipanema... e o p-sujo
Mau Cheiro freqentado pelo pessoal do Cinema Novo (Veja Rio: 14).
Assim como o Mau Cheiro pensado como o p-sujo do pessoal do Cinema
Novo, os msicos da Bossa Nova so recordados por freqentar, principalmente, o Bar
Veloso. O signicado do Veloso como um dos
espaos que associam a Bossa Nova ao bairro
de Ipanema relaciona-se, em primeiro lugar,
criao de Garota de Ipanema, a msica mais
famosa desse estilo musical. Em decorrncia do
grande xito alcanado por Garota de Ipanema
no Brasil e no exterior a cano est entre as

52 |

mais executadas do mundo a histria da criao dessa msica, que envolve os compositores
Tom Jobim e Vincius de Moraes, a musa inspiradora Hel Pinheiro e o bar Veloso, transformou-se em uma lenda do bairro, narrada
por todas as matrias analisadas:
Nenhuma cano nacional foi e continua sendo to executada quanto Garota de Ipanema.... A msica de Tom e Vincius, de 1962,
foi inspirada em Hel Pinheiro quando passava a caminho do mar em frente ao bar Veloso
hoje Garota de Ipanema (O Globo: 38).

Uma das mais executadas canes do mundo foi composta em 1962, na casa de Tom Jobim. A idia nasceu nas mesas do bar Veloso,
onde Tom e Vincius passavam horas bebericando, jogando conversa fora e observando
as mulheres, entre elas a musa Hel Pinheiro
(Veja Rio: 14).
A ligao entre o Cinema Novo e a Bossa Nova
com o bairro de Ipanema se faz pelo carter
vanguardista desses dois movimentos; ambos
so entendidos como estilos artsticos que romperam com os padres estticos e musicais tradicionais. Todavia, nota-se que o vnculo da Bossa
Nova com o bairro aparece de modo ainda mais
peculiar se comparado ao do Cinema Novo.
Como a prpria imprensa menciona, embora a
troca de idias entre os cineastas brasileiros se
desenrolasse nos botecos de Ipanema, os lmes
desse movimento voltaram-se para cenrios nada
parecidos com o bairro, como, por exemplo, o
serto nordestino. No caso da Bossa Nova, Ipanema aparece no apenas como um ponto de
encontro de seus principais representantes, mas
gura tambm como temtica de suas canes
mais famosas.
A construo simblica de Ipanema como um
bairro que lanou moda e que se consolidou
como vanguarda dos costumes e das manifes-

taes artsticas brasileiras edica-se por uma


associao entre espaos e pessoas. O bairro
como um todo tomado por suas partes. A
valorizao da praia e dos bares demonstra que
Ipanema no era apenas o local onde os indivduos se encontravam, criavam e executavam os
acontecimentos pioneiros. Mais do que isso, o
bairro entendido como um local propcio para
as inovaes por servir de fonte de inspirao e
motivo de celebrao para os ipanemenses.

O livro de Jaguar fornece outras evidncias


de que os botequins foram importantes para
denir o passado de Ipanema. O autor expressa essa idia a partir da caracterizao dos ipanemenses, narrando histrias bem humoradas
ocorridas no espao dos bares:
Aquela histria do coelho no Jangadeiros acho
que todo mundo j conhece. Quando um garoto gritou papai, olha um coelho! foi um alvio geral. Ningum ousava dizer que tinha um
coelho correndo entre as mesas; pensavam que
estavam tendo alucinao alcolica (: 52).

Entre os ipanemenhos padres descritos


no livro de Jaguar, quase todos so apresentados como assduos freqentadores de bares e
botecos, ou lembrados pelas loucuras cometidas em estados alterados de conscincia, sob
o efeito de bebidas alcolicas. O prprio autor
no se exclui dessa caracterizao, desculpando-se, em pelo menos dois trechos do livro,
pela sua amnsia alcolica que o fez esquecer
de pessoas ou embaralhar as lembranas. O
estilo de vida bomio do autor e de seus amigos de Ipanema est evidenciado no captulo
dedicado ao ipanemense ilustre Carlinhos
de Oli:
Nunca marcamos encontro, mas durante anos a
gente se esbarrava na ronda dos bares... chegvamos em horrios diferentes mas amide ramos os
cadernos de campo n. 13 2005

: X |
ltimos a sair. S amos embora quando os garons
comeavam a jogar baldes dgua nos nossos sapatos. Numa dessas madrugadas, no Degrau, estvamos tomando a saideira em p porque as cadeiras
j estavam empilhadas em cima da mesa. Carlinhos pagou a conta com um cheque que assinou
contra a parede. Teve um ataque de fria quando o
cheque foi devolvido; a assinatura Jos Carlos de
Oli no conferia. O veira restante estava escrito
na parede (: 31-32).

O trecho acima poderia representar uma descontinuidade nas representaes sobre o bairro
de Ipanema, j que o bar mencionado localiza-se no Leblon. Contudo, Jaguar insiste que,
embora o seu grupo freqentasse outros locais
da cidade, inclusive os bares da Lapa, Leblon e
Copacabana, o clima que emprestavam a esses
ambientes era marcadamente ipanemense:
As festas que Albino e eu dvamos na Estudantina Musical, na praa Tiradentes, no Silvestre,
em Santa Teresa, no Elite, na Praa da Repblica, e na Banda Portugal, na Presidente Vargas,
eram festas ipanemenses... A turma de Ipanema
aprontava no Degrau (Leblon)... no Alfredo
(Lido), no Bar Brasil (Lapa), na Gndola, Katakombe e Galeria Dezon (Copacabana)... e at
em Petrpolis (: 17).

Com base nessa idia de Jaguar, pode-se pensar que a categoria Ipanema, pensada como
um adjetivo que qualica pessoas, lugares e comportamentos, no precisa estar necessariamente
vinculada ao espao fsico do bairro. Da mesma
forma, ipanemense ou ipanemenho so identidades utilizadas para designar pessoas que no
tm, necessariamente, um vnculo direto com os
limites territoriais de Ipanema. Morar no bairro,
por exemplo, no uma condio necessria, nem
tampouco suciente, para que um indivduo assuma essa identidade. De modo anlogo, ipanemenses tpicos podem ser habitantes de outras
cadernos de campo n. 13 2005

localidades, como o caso do prprio Jaguar:


Ns, ipanemenses dos anos 60, estvamos nos
lixando para os limites geogrcos do bairro.
Eu mesmo, enchendo a boca falando em ns,
ipanemenses, morava em Copacabana.... Havia
uma espcie de imperialismo ipanemense. Como
grileiros, invadamos a cidade e at o estado do
Rio (: 17).

Na obra de Ruy Castro essa idia tambm


marcante j que nem todas as personalidades
que aparecem em seu livro foram moradoras
de Ipanema. Exemplos paradigmticos da autonomia que esse conjunto de representaes
apresenta diante das fronteiras do bairro so os
artistas internacionais que aparecem na enciclopdia desse autor.
Um verbete interessante o de Isadora Duncan, que esteve de passagem pelo Rio de Janeiro,
em 1915, na seqncia de uma turn mundial.
Percebe-se que o que explica a presena dessa
danarina na enciclopdia de Ipanema no
somente o fato da artista ter conhecido a praia
do Arpoador durante sua estadia na cidade, mas
a percepo de que seu perl assemelha-se ao
da tpica mulher ipanemense, defendido por
Ruy Castro. O autor descreve Isadora Duncan
como uma modernista radical, na dana e no
comportamento: escolhia os homens que queria
como amantes, tinha lhos com eles, dispensava-os de casar e aonde fosse, arrastava squitos
de todos os sexos (: 174). Aqui, o bairro associado no ao imaginrio bomio, mas s
noes de ousadia e liberdade, que tambm
so empregadas na descrio de quase todas as
mulheres da enciclopdia. A percepo de que
as ipanemenses teriam uma inclinao para
romper com os papis de gnero convencionalmente prescritos aparece no seguinte trecho:
As mulheres de Ipanema tinham desprezo por
conceitos como virgindade, casamento burgus,

54 |
fritar bolinhos, monogamia e maridinho-provedor-do-lar. Elas estudavam, trabalhavam, moravam sozinhas, namoravam quem quisessem
e no davam satisfaes. Nada que zessem era
chocante em Ipanema (: 210).

Ao qualicar como ipanemenses a americana Isadora Duncan e as festas na Praa Tiradentes e em Santa Tereza, Ruy Castro e Jaguar
sugerem que os aspectos simblicos atribudos
Ipanema transcendem os limites territoriais do
bairro. Ao contrrio do que pode parecer, esse
aspecto somente comprova a importncia do
espao para a criao de classicaes sociais.
Como sugeriu Mauss (1974) ao pesquisar a
sociedade esquim e Halbwachs (1990) ao
reetir sobre o tema da memria o espao
uma categoria de pensamento que estrutura representaes e prticas sociais. Assim, embora
o imaginrio sobre Ipanema seja slido o suciente a ponto de se desligar das fronteiras do
bairro, somente em referncia quele espao
que esse conjunto de representaes e de memrias se consolida, adquirindo sentido.
So muitas as representaes evocadas pela
palavra Ipanema, podendo designar tanto
estilos de vida livres, transgressores e modernos quanto bomios, criativos e informais. De uma maneira ou de outra, Ipanema
uma categoria repleta de signicados, e vale
a pena pensar que, se por um lado, essas elaboraes so utilizadas para enaltecer o bairro,
por outro, elas tambm podem assumir valores
negativos e transformar a identidade ipanemense em uma categoria de acusao.
Para compreender de que modo Ipanema
simbolizou um rtulo negativo interessante
buscar alguns emblemas capazes de traduzir
aquilo que se considera como o esprito do
bairro em pocas passadas. Dentre todas as personalidades, acontecimentos e lugares recorrentemente citados nos livros e na imprensa,
acredito que a atriz Leila Diniz e o jornal O

Pasquim podem ser bons para pensar um tipo


de representao atribudo Ipanema contra o
qual voltaram-se alguns discursos acusatrios.
A associao entre Leila Diniz e o passado
de Ipanema evidente. A atriz integrava a turma de Ipanema de que falam Jaguar e Carlos
Leonam, e na enciclopdia de Ruy Castro sua
descrio possui um nmero de pginas superior ao da grande maioria dos demais verbetes.
A imprensa tambm sustenta que poucas mulheres encarnaram to bem o esprito de Ipanema. Bem-humorada, curiosa, transgressora,
Leila Diniz foi a grande musa do bairro. (Veja
Rio: 13). Na clebre entrevista ao jornal O Pasquim, comenta Goldenberg (1995), Leila Diniz transgrediu as regras de linguagem, negou
os principais valores do campo artstico armando que escolhia o trabalho pela patota e
pela diverso e mostrou viver sua sexualidade
de forma livre e intensa. A fotograa de sua
gravidez de biquni amplamente divulgada pela
imprensa da poca (e de hoje tambm) simbolizou a transgresso em relao aos usos do corpo feminino, alm de trazer para a polmica a
rejeio da atriz pelo casamento convencional
e pelos papis tradicionais de ser mulher. Assim, se a gura de Leila Diniz apropriada pelos meios de comunicao para exemplicar o
tipo ideal ipanemense, isso se deve, em grande medida, pelo fato de a atriz ter demonstrado
publicamente sua recusa a uma srie de valores
predominantes na sociedade brasileira das dcadas de 1960 e 1970.
A partir das acusaes que recaram sobre os
comportamentos dessa atriz, possvel pensar
sobre o modo como a identidade ipanemense foi vivenciada como um rtulo negativo. O
trabalho de Goldenberg (1995) mostra que as
acusaes de desvio variam conforme o grupo
que cria o rtulo. Enquanto Leila foi chamada
de puta e de subversiva pela direita, a esquerda e as feministas da poca acusavam-na
de ser alienada, supercial e porra-louca.
cadernos de campo n. 13 2005

: X |

Outro cone do passado de Ipanema capaz


de colaborar para o entendimento das acusaes
de desvio o jornal O Pasquim. Vale dizer que os
trs autores aqui analisados Jaguar, Carlos Leonam e Ruy Castro j trabalharam ou, pelo menos, colaboraram com esse semanrio. Em ns
de 1970, nove integrantes de O Pasquim foram
presos pelo governo militar e o jornal foi mantido sob censura. Na enciclopdia ipanemense,
Ruy Castro defende que o jornal era engraado,
provocativo e desrespeitoso, mesmo quando tratava de assuntos srios (: 281) e faz ressalvas ao
classic-lo como um jornal de oposio:
Nitidamente era um jornal de esquerda mas
no da esquerda ocial, do Partido... ou mesmo da esquerda estudantil, maosta, que j comeara a assaltar bancos e a fazer caixa para a
luta armada. Era uma esquerda de humoristas,
mais para festiva, tipo Ipanema, que os militares
ainda no levavam a srio (: 280).
Era o apogeu da Esquerda festiva, da qual o Pasquim era um alegre porta-voz, e do mito de Ipanema, de que ele foi o grande estimulador (: 282).

No livro Os degraus de Ipanema, Carlos Leonam mostra que as crticas dirigidas aos ipanemenses eram uma preocupao para Jaguar,
fundador dO Pasquim, nas primeiras tiragens
do jornal. Em resposta ao pedido de Carlos
Leonam para colaborar com o tablide, Jaguar
teria advertido: queremos fazer um jornal que
no seja rotulado de ipanemenho (: 218). Segundo Braga (1991: 193), uma acusao freqente que se fez a O Pasquim que, apesar
de crtico e politicamente avanado, o jornal
era machista. De acordo com o autor, embora
O Pasquim abrisse espao para artigos escritos
por colaboradoras que participavam das lutas
da mulher, ele tambm ironizava as feministas
mais engajadas em algumas frases de capa como
Pasquim um jornal ao lado da mulher. E se
for o caso, sobre e sob; Pasquim Um jornal
cadernos de campo n. 13 2005

por dentro das feministas ou Desculpe Dona


Betty [Friedan], mas ns vamos dar cobertura
s furadoras da greve do sexo.
Se Ipanema representava, de um lado, uma
ameaa ao governo militar por ter sido, segundo Ruy Castro, um reduto permanente
de oposio que combateu ou criticou todos
os governos dos ltimos sessenta anos (: 11),
muitas acusaes dirigiam-se, por outro, postura excessivamente descontrada e falta
de compromisso e seriedade dos ipanemenses
frente s questes mais importantes do pas.
Talvez seja em referncia a esses aspectos que o
autor comenta a condenao da cantora Nara
Leo alienao de Ipanema (: 59).
As acusaes dirigidas a O Pasquim e atriz
Leila Diniz variaram conforme grupos sociais
distintos. De um lado, sofreram perseguies
por representarem uma ameaa ideologia do
governo militar; eram considerados perigosos
pelos segmentos mais conservadores da sociedade brasileira da dcada de 1960. De outro,
aos olhos dos militantes polticos de oposio
ou das lutas feministas, esses cones de Ipanema
simbolizavam o desbunde, a falta de seriedade e a alienao. Sob esse aspecto, os ipanemenses tpicos ocupavam uma posio peculiar
em um sistema de rotulao e de acusao. A
ameaa apresentada por esses jovens resultava
de uma condio que oscila entre plos antagnicos, como o de subversivo, de um lado, e
o de alienado, de outro. Estes exemplos mostram de forma paradigmtica a idia de Becker
(1971) segundo a qual no existem condutas
essencialmente desviantes, mas diferentes maneiras de se reagir a elas. Para o autor, o desvio
no criado por aquele que o realiza mas pelos
grupos que o classicam como desviante.

A Ipanema do presente
Os autores aqui investigados sugerem que
Ipanema no mais como antes pois os locais

56 |

e acontecimentos mais representativos de suas


memrias, como os bares, a praia e a Banda
de Ipanema perderam o seu carter distintivo e
autntico. Sob o ponto de vista de Jaguar e de
Carlos Leonam, Ipanema aquela Ipanema,
ou seja, o bairro que marcou os anos gloriosos de sua gerao. J o material de imprensa,
embora tambm celebre o passado de Ipanema, apresenta uma verso mais positiva sobre
o bairro. Ipanema teria adquirido, segundo os
jornais e revistas, novos atributos igualmente
valorizados. Os maiores responsveis por emprestar um novo carter ao bairro teriam sido
os servios de alto luxo inaugurados nos ltimos anos em Ipanema. Esta idia pode ser vista
nos trs suplementos pesquisados:
Tudo est muito distante da velha Feira Hippie
que marcou os anos loucos do bairro. O comrcio sosticou-se para atender uma rica clientela
de vrias partes do mundo....Ipanema se prossionalizou... A maioria dos velhos casares do
bairro j no existe mais. Eles deram lugar a
hotis de luxo, edifcios comerciais modernos e
inteligentes ou a condomnios residenciais sosticados (Jornal do Brasil: 4).

Alm de uma volta ao passado, este especial


do Globo-zona sul revela que a histria do bairro, da qual fazem parte Tom Jobim e Vincius de
Moraes, continua sendo escrita, hoje, por empresrios da moda que, sediados em Ipanema,
exportam seu estilo de vida (O Globo: 16).
Nas ltimas dcadas, enquanto os saudosistas lamentavam o m do agito cultural que marcou o
bairro dos anos 40 aos 70, estilistas, designers e
restaurateurs foram, aos poucos, mostrando mais
uma vocao de Ipanema... o bairro hoje o mais
luxuoso shopping a cu aberto da cidade. tambm praia de modismos e corpos esculturais, mesa
de inovaes gastronmicas, vitrine de roupas e
acessrios impecveis (Veja Rio: 11).

A Ipanema atual retratada pela imprensa por meio das categorias luxo, charme e
sosticao. Essas noes ganham contornos
mais especcos quando se observam quais so
as localidades percebidas como luxuosas e
sosticadas. O Caderno H do Jornal do Brasil, por exemplo, fundamenta o glamour de
Ipanema quando ressalta que no bairro esto reunidas as joalherias mais sosticadas do
mundo como Amsterdam Sauer, H. Stern,
Mont Blanc, Cartier... (: 4). Os restaurantes,
as livrarias e algumas lojas tambm aparecem
como exemplos do carter moderno e requintado da regio. A importncia conferida a
esse novo comrcio para a nova feio do bairro
se manifesta atravs da freqncia com que os
proprietrios ou representantes desses locais so
solicitados pela imprensa. As matrias abrem
espao para os indivduos dessa categoria justicarem suas escolhas por Ipanema, e eles argumentam tratar-se de um local estratgico:
Hoje Ipanema fundamental para projetar uma
marca no pas e internacionalmente. Como a
Rua Oscar Freire em So Paulo, explica o estilista Tu Duek, que inaugura na tera uma megaloja da sua Forum na Praa Nossa Senhora da
Paz (Veja Rio: 14).

O prestgio conquistado por esse grupo envolvido com o novo comrcio do bairro tal
que eles so solicitados no apenas para discutirem o carter rentvel ou promissor de Ipanema, mas tambm para revelarem suas opinies
pessoais sobre o bairro:
Minha mulher est sempre descobrindo coisas
fantsticas por aqui, conta Rui Campos, o Rui
da Livraria da Travessa.... A gastronomia hoje,
sem dvida, um dos trunfos de Ipanema diz
Angela Hall, gerente da Louis Vuitton e moradora do bairro... um bairro cheio de vida,
arma a arquiteta Bel Lobo, que deu forma a
cadernos de campo n. 13 2005

: X |
vrios restaurantes e lojas da regio... (Veja Rio:
15-16).

No difcil imaginar que a imprensa demonstre outros interesses para alm da comemorao do aniversrio de 110 anos para
elaborar uma imagem positiva sobre Ipanema.
Seria ingnuo desconsiderar os interesses econmicos dos meios de comunicao nos empresrios atuantes no bairro. Nesse sentido, possvel
pensar que muitas matrias acabam cumprindo
uma funo publicitria que visa tornar mais
atrativos os servios dos anunciantes por meio
de uma exaltao do bairro onde estes se localizam. De qualquer maneira, possvel reetir que
se o passado do bairro conforme expressam os
livros elaborado por uma elite intelectual que
se coloca como protagonista das memrias do
bairro, a atualidade de Ipanema como revela a imprensa elaborada por uma elite comercial que tambm se inclui com destaque nas
representaes simblicas desse bairro. Pode-se
sugerir que os critrios que tornam determinadas pessoas legtimas para falar sobre Ipanema
variam segundo o recorte temporal que se pretende abordar. Enquanto os portadores das memrias autnticas ou do relato mais convel
sobre o passado so artistas e intelectuais, a hierarquia de credibilidade (Becker, 1977) se transforma quando o tema a atualidade, em que os
indivduos que ganham maior legitimidade so
os representantes do comrcio de luxo.
Dentre os prossionais ligados ao campo da
moda e da gastronomia, h dois indivduos que
merecem ateno por receberem destaque nos
trs suplementos analisados. So eles, Oskar
Metsavaht e Alexandre Accioly. O primeiro
proprietrio da cadeia de lojas Osklen, grife que vende roupas para um pblico jovem
de classe mdia/alta. J o segundo scio de
quatro restaurantes de elevado padro relativamente recentes no bairro. Ambos so descritos
como fortes investidores na regio:
cadernos de campo n. 13 2005

Ipanema rma-se como endereo predileto


das grifes e atrai novos investidores. Entre eles,
Oskar Metsavaht, dono da Osklen h 15 anos,
que h apenas dois abriu a primeira loja no local: Ipanema foi o bairro que escolhi para ncar a primeira loja internacional da Osklen...
(O Globo: 18).
Alexandre Accioly, capa deste H, acredita em
Ipanema. Ele seguramente quem mais investe no bairro nos ltimos anos... Somando tudo,
so US$ 12 milhes jogados no pano verde que
hoje se tornou investir no Brasil (Jornal do Brasil: 11).

No apenas a imagem de proprietrios de


negcios que torna curiosa a apario desses
dois indivduos na imprensa. Accioly e Metsavaht parecem corporicar um tipo de representao sobre o bairro. Nas fotograas e em alguns
trechos presentes nessas matrias, os hbitos e as
preferncias de ambos, como a prtica de esportes ao ar livre, so descritos por meio de uma relao estreita com os espaos do bairro. A praia
de Ipanema, por exemplo, representativa de
seus hbitos cotidianos, servindo inclusive como
o cenrio de quase todas as fotograas em que os
dois aparecem nos jornais. A relao de Accioly
com a praia surge na descrio de sua trajetria
como morador do bairro desde a infncia:
Pedra do Arpoador, o point de suas tardes, onde
[Accioly] curtia o pr-do-sol... Adulto, transferiu-se para a rede de vlei em frente ao Country,
onde dava planto nos ns de semana. Das nove
at a noitinha (Jornal do Brasil: 11).

Esse empresrio foi eleito O garoto de Ipanema, aparecendo em uma enorme fotograa
de capa do Caderno H. Alto, de pele bronzeada
e aparncia jovial, o empresrio est vestido com
camisa social, calas compridas e chinelo, sentado noite no calado da praia de Ipanema.

58 |

Essa mistura de elegncia com informalidade


tambm transmitida na foto do interior da
matria, onde Accioly est de trajes sociais, tomando gua de coco mas com os ps descalos
na praia. O texto localizado abaixo diz: Coco
verde, areia no p e o privilgio de ser, desde
sempre, um garoto de Ipanema (: 11). Outra
matria ressalta que Accioly vive no edifcio Cap
Ferrat, supra-sumo do luxo beira-mar, onde
no se compra um imvel por menos de 3,5 milhes de dlares (Veja Rio: 15).
De modo semelhante, Oskar Metsavaht
aparece no Caderno Zona Sul do jornal O
Globo com a praia ao fundo, vestindo uma camiseta que diz United Kingdom of Ipanema.
Seu depoimento colocado em destaque abaixo dessa fotograa: Ipanema muito privilegiada, com uma vida cosmopolita integrada
natureza (: 20). Essa mesma opinio est presente na Veja Rio, que dedicou um trecho da
reportagem para a apresentao das atividades
fsicas realizadas por Metsavaht em Ipanema:
O bairro simboliza uma vida urbana integrada com a natureza, o que no existe em nenhum lugar do mundo, diz o estilista gacho
Oskar Metsavaht, que h vinte anos mora,
surfa, corre, pedala e anda de skate no bairro.
(Veja Rio: 16).

A idia de que Ipanema um bairro de pessoas jovens, ricas e descoladas tambm


est implcita na escolha de suas atuais musas.
Esse bairro est fortemente associado a uma
dimenso ldica que se constri por meio de
uma exaltao de elementos naturais. A praia,
o mar, os coqueiros e a pedra do Arpoador, por
exemplo, so smbolos que associam o bairro
idia de beleza. Insistindo na percepo de um
contgio entre espao e pessoas, Ipanema percebida como um local que produz pessoas belas, sobretudo, mulheres. Na medida em que o
imaginrio do bairro sofre transformaes com

o passar dos anos, o perl das musas de Ipanema tambm se modica. Se Leila Diniz foi
considerada musa do bairro na dcada de 1960,
a imprensa atual elege a apresentadora de um
programa televisivo de esportes como um cone
da Ipanema de hoje. Cntia Howlett j foi eleita
musa do vero e lembrada por habitar em
uma localizao de prestgio em Ipanema; em
um edifcio de frente para a praia do Arpoador.
Fotos ou depoimentos ligados a essa ipanemense so recorrentes em matrias sobre Ipanema:
Entre os rostos manjados de Ipanema est a
apresentadora Cntia Howlett, moradora do
Arpoador. Gerao sade, Cntia corre no calado, nada, anda de bicicleta na ciclovia. Minha
ginstica Ipanema, e isso no tem preo, observa. (Veja Rio: 16)

Assim como os emblemas masculinos anteriormente citados, Cntia Howlett tambm


representa uma dimenso nobre combinada
a um estilo de vida despojado, jovem e esportivo. No suplemento da revista Veja, outras
mulheres so assim percebidas na matria de pgina dupla Ipanema, uma jovem de 110 anos.
Na pgina direita, a fotograa revela uma mulher branca, jovem, cabelos lisos, de culos escuros, caminhando na calada da Rua Visconde
de Piraj: A estilista Joana Saladini: compras a
p pelas ruas do bairro (: 11). Na outra pgina
h uma garota de short e biquni na praia com
a seguinte descrio A wakeboarder Juliana na
Praia de Ipanema: beleza no Posto 10.... corpo
moldado pelo treino de wakeboard (: 10-13).
Segundo a matria, as duas moas de Ipanema
no hesitam em apontar o mesmo passatempo
para as horas vagas: bater perna de olho nas vitrines que se espalham pelas ruas dali (: 13).
Assim como um nico ipanemense pode
reunir as diferentes caractersticas atribudas ao
bairro, o estilo de vida descontrado e requintado tambm pode ser identicado em uma
cadernos de campo n. 13 2005

: X |

mesma localidade. O Caderno Zona Sul destaca


que os restaurantes com varandas e mesas na calada se multiplicaram em Ipanema nos ltimos
anos e sugere que sem perder a descontrao da
cidade praiana, eles tm o tpico requinte ipanemense(: 45). A Veja Rio destaca o almoo na
varanda e a vida saudvel beira mar como
programas tpicos de Ipanema: alm da vida
saudvel beira-mar, programa em Ipanema o
footing pelas ruas aos sbados, compras todos os
dias, almoos na varanda do Gula Gula, cineminha no Estao (Veja Rio: 16).
A categoria Ipanema, tal como transmitida pelos jornais e revistas, parece representar
algo mais do que o espao geogrco de um
bairro. Ela denota, acima de tudo, um estilo
de vida. A descrio de personalidades como
Oscar Metsavaht, Alexandre Accioly e Cntia
Howlett apenas uma maneira de expressar
algumas das representaes associadas ao bairro, como a de um lugar informal, com belezas
naturais, propcio para os esportes e, ao mesmo
tempo, urbano, de elevado padro e sosticado. Essa juno de atributos se transfere para
os indivduos do bairro. Ipanema teria produzido pessoas que assumem um estilo de vida
esportivo e espontneo sem deixarem de ser
elegantes e cosmopolitas.
Para tornar essas representaes mais concretas, vale mencionar a estratgia do estilista
Oskar Metsavaht em explorar comercialmente esse imaginrio atravs da criao de uma
identidade ipanemense para sua grife de
roupas Osklen. Vale lembrar que mesmo antes da instalao da Osklen de Ipanema, a
marca, voltada para um pblico de elite, j
era identicada com as idias de valores como
juventude, esportes e natureza. Com a
chegada Ipanema, a estratgia de marketing
parece ter sido a de reforar esses conceitos
associando a Osklen a um estilo de vida tpico
de Ipanema:

cadernos de campo n. 13 2005

Ipanema admirada no mundo inteiro e tem


uma condio privilegiada com uma vida urbana cosmopolita integrada natureza diz Metsavaht, que estampou Arpoador e Posto 9
em blusas da ltima coleo da Osklen e criou a
campanha United Kingdom of Ipanema, que
d a dimenso do quanto ele gosta do bairro (O
Globo: 20).

Atravs dessa jogada publicitria nota-se


que o bairro de Ipanema tambm se apresenta
sob a forma de um bem de consumo. O que
se vende na Osklen no so simples camisetas,
mas um estilo de vida ipanemense que socialmente valorizado.

Dois bairros, duas moralidades


A partir da anlise sobre os livros e as matrias
de imprensa observou-se que, mais do que um
territrio espacial, Ipanema pensada como um
adjetivo capaz de qualicar pessoas, comportamentos e estilos de vida. De uma viso de mundo orientada para a vanguarda comportamental,
a criatividade artstica e a boemia, o bairro passou
a simbolizar uma dimenso de elite, inclinada
para o consumo e para as atividades fsicas.
Notou-se, portanto, a elaborao de duas
Ipanemas; uma do passado e outra do presente. Enquanto a primeira caracterizada como
um bairro transgressor, que lanou modas,
a Ipanema atual um local sosticado e descolado. Essas duas construes simblicas se
elaboram por meio de uma associao entre
espaos e indivduos, evidenciando-se atravs
de uma mudana nas personalidades e nos locais tidos como emblemticos do bairro. Se os
ipanemenses do passado so artistas, cineastas e
msicos, os de hoje so empresrios, estilistas e
esportistas. Enquanto os bares representaram o
esprito ipanemense do passado, as joalherias,
os restaurantes e as grifes de roupa denem o
esprito atual desse bairro.

60 |

Para ilustrar essas variaes de imaginrio


interessante reetir sobre o perl das musas e
sua relao com o principal espao do bairro;
a praia. Foi na praia que a musa de Ipanema
na dcada de 1960 Leila Diniz cou publicamente conhecida por seu comportamento transgressor. As musas atuais de Ipanema
percebem a praia como o local da ginstica e
dos esportes. Se a praia de antes simbolizou
o espao da transgresso s normas, onde o
corpo ipanemense se apresentou de modo polmico e livre, a praia de hoje o local das
atividades fsicas, da moralidade da boa forma
onde o corpo valorizado trabalhado, saudvel ou sarado (Goldenberg 2002).
Esta pesquisa permitiu pensar sobre algumas
mudanas sociais dos ltimos quarenta anos na
medida em que os valores utilizados para enaltecer um bairro emblemtico da cidade do Rio de
Janeiro tornaram-se quase antagnicos. Embora
permanea a noo de um bairro ldico, bonito
por natureza e propcio para um estilo de vida
descontrado e informal, pode-se pensar em
uma mudana de atitude frente s normas socialmente prescritas. O signicado de Ipanema
como um bairro peculiar da cidade do Rio de
Janeiro na dcada de 1960 foi construdo por
uma exaltao de aspectos contestadores e transgressores, como a liberao do corpo e da sexualidade, a arte de vanguarda e a boemia. De modo
contrrio, esse bairro atualmente celebrado por
representar uma conformidade com os valores
predominantes, como a produtividade, a riqueza, o consumo, o corpo saudvel e esttico.

Referncias bibliogrficas
BECKER, Howard. 1971. Los Extraos: sociologa de la
desviacin. Buenos Aires: Tiempo Contemporneo.
_____. 1977. De que lado estamos?. In Uma teoria da
ao coletiva. Rio de Janeiro: Zahar.
BRAGA, J.L. 1991. O Pasquim e os anos 70. Braslia:
UnB.
DAMATTA, Roberto. 1978. O ofcio de etnlogo, ou
como ter anthropological blues. In A aventura sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar.
_____. 1998. Nobres e Anjos: um estudo sobre txicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas.
GOLDENBERG, Mriam. 1995. Toda Mulher meio
Leila Diniz. Rio de Janeiro: Record.
_____. 2002. Nu & Vestido. Rio de Janeiro: Record.
HALBWACHS, Maurice. 1999. A memria coletiva. So
Paulo: Vrtice.
MAUSS, Marcel. 1974. Ensaio sobre as variaes sazoneiras das sociedades esquim. In Sociologia e Antropologia. So Paulo: EPU/EDUSP (v. 2).
SIMMEL, George. 1988. La moda. In Sobre la aventura. Barcelona: Editora Pennsula.
VELHO, Gilberto. 1978. A utopia urbana: um estudo de
antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar.

Fontes de Pesquisa
CASTRO, Ruy. 1999. Ela Carioca: uma enciclopdia de
Ipanema. So Paulo: Companhia das Letras.
JAGUAR. 2000. Ipanema, se no me falha a memria. Rio
de Janeiro: Relume Dumar.
LEONAN, Carlos. 1997. Os degraus de Ipanema. Rio de
Janeiro: Record.
Ipanema, 110 anos na vanguarda. 22.abr.2004. Caderno Zona Sul. O Globo.
O garoto de Ipanema Ipanema 110 anos, edio especial. 25.abr.2004. Caderno H. Jornal do Brasil.
Ipanema 110 anos: Histrias e personagens do bairro
mais charmoso da cidade. 26 abr. 2004-02 maio
2004. Veja Rio.

cadernos de campo n. 13 2005

Filhos do Rei Sebastio, Filhos da Lua:


construes simblicas sobre os nativos da Ilha
dos Lenis
MADIAN DE JESUS FRAZO PEREIRA
Mestre em Antropologia Social pelo PPGAS/
UFPA e doutoranda em Sociologia pelo PPGS/
UFPB.
Artigo aceito para publicao em 28/09/05

resumo Este artigo aborda a construo do

abstract This article approaches the construc-

imaginrio de uma ilha considerada encantada: a


Ilha dos Lenis, no Estado do Maranho. Apresenta uma simbologia sobre os ilhus, principalmente
acerca daqueles singularizados por marcas corporais,
os albinos. Enfatiza a compreenso explicativa das
prticas discursivas do universo de fora (sobretudo matrias veiculadas na imprensa de uma maneira geral) e do universo de dentro (representaes
nativas) sobre duas denominaes que sintetizam o
imaginrio sobre os albinos da Ilha dos Lenis: lhos da Lua e lhos do Rei Sebastio.
palavras-chave imaginrio, prticas discursivas, albinos, ilha encantada.

tion of the imaginary of an island considered enchanted: the Ilha dos Lenis (Lenois Island),
in the State of Maranho. It presents a symbology
about the islanders, principally about those individulized by body birthmarks, the albinos. It emphasizes the explanatory understanding of the discursive
practices of the outside universe (above all matters
transmitted in the press in a general way) and of the
inside universe (native representations) on two
denominations that synthesize the imaginary on the
albinos of the Ilha dos Lenis: children of the
Moon and children of King Sebastio.
keywords imaginary, discursive practices, albinos, enchanted island.

Na rota de lugares que incitam o imaginrio


sobre parasos insulares, com uma verve que enaltece a vida natural e elementos fantsticos,
insere-se a Ilha dos Lenis, situada no litoral
norte do Estado do Maranho. Pertencente ao
municpio de Cururupu, numa rea denominada Reentrncias Maranhenses, a Ilha dos Lenis
singular e merece uma apreciao no intercruzamento de suas caractersticas naturais, culturais
e simblicas. Digamos que uma pluralidade simblica reveste a Ilha, considerada encantada, enquanto morada do encantado Rei Sebastio, e

que abriga uma comunidade de pescadores, com


cerca de 450 habitantes, que pode ser considerada sui generis pela presena signicativa de quase
3% de albinos em sua populao, onde todos os
nativos, albinos e no-albinos, autodenominamse como lhos do Rei Sebastio.
Os nativos da Ilha dos Lenis afetados
pelo albinismo uma anomalia congnita caracterizada principalmente pela ausncia total
ou parcial da melanina, do pigmento da pele
incitam uma simbologia muito rica a partir
de suas marcas corporais e do espao onde seus

cadernos de campo n. 13: 61-74, 2005

62 |

smbolos esto alocados numa ilha encantada, isolada1 e misteriosa.


A Ilha dos Lenis considerada uma ilha
encantada, enquanto lugar privilegiado para morada de El Rei Dom Sebastio, gura histrica,
morto em batalha contra os mouros, nos campos
de Alccer-Quibir, na frica, no ano de 1578.
Segundo a crena messinica, difundida em vrias partes do Brasil, Dom Sebastio, o jovem rei
de Portugal, no morrera, ele havia se encantado
com todo o seu reinado, por sortilgio dos mouros, numa ilha (provavelmente marcada por muitas dunas semelhana do deserto marroquino
onde ocorrera a batalha), e que um dia ele h de
emergir do fundo do mar, onde est sediado seu
palcio de riquezas, para instaurar seu Imprio e
distribuir bens materiais para os seus adeptos.
Crenas e mitogeograa permeiam a construo de um imaginrio fantstico sobre a Ilha
dos Lenis. Segundo Pedro Braga (2001: 32):
Os primeiros portugueses que se instalaram naquela regio, provavelmente escolheram as praias
dos Lenis para habitat do Rei pelo fato de suas
dunas sugerirem alguma semelhana com a paisagem do Norte da frica, onde desaparecera
Dom Sebastio; ou talvez porque era presumivelmente a Ilha Afortunada a que se referem os
textos antigos.2
1. A Ilha dos Lenis, caracterizada pelo seu imponente
conjunto de dunas, uma ilha dltica (uviomarinha),
localizada no arquiplago de Maia, a 160 km noroeste da capital do Maranho, So Lus. O acesso ilha
muito difcil, somente de barco ou de avio mono ou
bimotor. A viagem de barco dura, em mdia, 12 horas
a partir de So Lus e 7 horas a partir de Cururupu.
Essa diculdade de acesso signicativa na construo do imaginrio sobre os mistrios de Lenis. Uma
ilha encantada no para ser conhecida facilmente;
as diculdades fazem parte de um processo de desao
imposto aos aventureiros, queles que querem olhar o
Reino Encantado de Dom Sebastio.
2. Poderia ser considerada uma das ilhas afortunadas
(Insulae Fortunae), na medida em que se localiza no
Oceano Atlntico, esquerda da Mauritnia, como

O sebastianismo foi transplantado para o


Brasil sob vrias vertentes, tais como: a dos movimentos messinicos ocorridos no sculo XIX,
com carter de fanatismo, em torno de lderes
carismticos que se diziam reis e que pregavam
o desencantamento de Dom Sebastio custa de muito sangue, como nos movimentos da
Cidade do Paraso Terrestre (Monte Rodeador
PE), da Pedra Bonita (Vila Bela PE) e do
Imprio de Belo Monte (Canudos BA) (cf.
Queiroz 1976; Ribeiro 1982); e a vertente da
Encantaria. Interessa-nos aqui destacar esta
ltima vertente, na qual o gentil ou dalgo
Dom Sebastio surge como Rei Sebastio, uma
entidade de cultos afro-brasileiros identicada como encantado, categoria retirada da
Pajelana amaznica utilizada para se referir
queles que viveram na Terra h muitos anos,
venceram a morte e continuam vivos nas
encantarias: ...que geralmente so concebidas como mundos situados no fundo das
guas, dentro das rvores, ou abaixo da Terra
(em outro planeta). (Ferretti 2000: 108).
Segundo Maus & Villacorta (2001: 19),
o Rei Sebastio ...habita em vrias praias de
ilhas existentes ao longo do litoral entre Belm
e So Lus.... No Par, na regio do Salgado,
as moradas que se destacam so a da ilha de
Maiandeua (no municpio de Maracan) e a da
ilha de Fortaleza (no municpio de So Joo de
Pirabas). No Maranho, muitos pescadores e
adeptos do Tambor de Mina religio afrobrasileira predominante neste Estado no
tm dvidas de que o encante mais forte est
na Praia do Lenol.3
sugeria Santo Isidoro de Sevilha, a respeito da existncia dessas ilhas, consideradas ditosas, que no
deveriam ser confundidas com o paraso bblico. (Cf.
Holanda 1994: 159).
3. Praia do Lenol ou Praia de Lenis so os termos
mais populares, utilizados sobretudo pelos ilhus, referentes tanto ao povoado quanto parte desabitada
da ilha.
cadernos de campo n. 13 2005

, |

O imaginrio sobre a Ilha dos Lenis


muito rico. Seja no discurso de jornalistas, de
literatos, de compositores,4 seja no discurso de
pescadores, de adeptos das religies afro-brasileiras, muito j se comentou sobre o encante
da ilha: relatando-se que muitas pessoas de l
j viram El Rei Dom Sebastio em sua forma
humana, ou em forma de um animal, mais precisamente de um touro negro; que na praia
possvel encontrar-se objetos de ouro, mas que
ningum deve ousar em retir-los de l, pois os
mesmos pertencem s riquezas do Rei Sebastio;
e que a conhecida toada de carter messinico
Rei, Rei, Rei Sebastio, quem desencantar
Lenis, vai abaixo o Maranho aponta que
no momento em que Rei Sebastio se desencantar, o seu reinado emergir e a ilha de So Lus,
capital do Maranho, submergir. Alm de tudo
isso, o alto ndice de albinismo vericado na
ilha encantada suscitou diversas interpretaes
imaginrias sobre a comunidade local.
O ndice de albinismo na ilha considerado alto, j que bastante superior freqncia
normal que de 0,0005% numa dada populao. O alto ndice de albinismo chamou a
ateno de pesquisadores da rea mdica que,
patrocinados pela Organizao Mundial da
Sade (OMS) e outras instituies, foram at
a localidade, em 1972. A explicao cientca sobre o albinismo local foi dada por uma
junta de mdicos (oftalmologista, dermatologista, cardiologista e especialista em gentica
celular), interessada em estudar esta anomalia
gentica numa amostragem isolada. A expedio foi liderada pelo geneticista Newton FreireMaia, da Universidade Federal do Paran, que,
4. O patrimnio simblico-cultural dessa comunidade
de certa forma conhecido, pois por vrias vezes foi
enredo de escola de samba, roteiro de peas teatrais,
temas literrios etc.; no entanto, no reconhecido,
pois a comunidade continua desassistida, seja pelo
poder pblico, seja por aqueles que se apropriam de
sua imagem.
cadernos de campo n. 13 2005

atravs do levantamento de uma genealogia de


seis geraes (com quase 400 pessoas), constatou a presena ...de uma forma muitssimo rara de albinismo em 18 pessoas (dentre
estas, 3 falecidas e 5 no residiam na ilha), o
que corresponde a uma freqncia aproximada de 3% (Freire-Maia 1973: 13), decorrente
de casamentos consangneos entre pessoas
descendentes de Sebastiana Silva, lha de um
portugus e de uma albina, que chegou Ilha
em 1900 data em que, segundo fontes orais,
o povoamento da Ilha iniciado.
Embora haja uma explicao cientca sobre
a presena de uma concentrao de albinos (de
origem branca descendentes de portugueses)
bastante signicativa numa amostragem isolada,
o carter de mistrio que envolve essas pessoas ainda muito grande e reete um conjunto
de representaes dadas pelos moradores locais,
albinos e no-albinos (na denio nativa, respectivamente, brancos ou louros e morenos que podem ser considerados como
caboclos, descendentes, em grande maioria, de
ndios e brancos),5 pela religiosidade local (intercruzamento da Cura/Pajelana e do Tambor
de Mina), e pela imprensa que de uma maneira
geral vem veiculando matrias sobre a excentricidade da Ilha dos Lenis e dos albinos que ali
vivem.
Em meio a tantos dados instigantes, lancei-me a fazer uma pesquisa antropolgica que
resultou na minha dissertao de Mestrado,
intitulada O Imaginrio Fantstico da Ilha dos
Lenis: estudo sobre a construo da identidade
5. A populao de Lenis, bem como a de outras praias e
ilhas do litoral cururupuense, caracteriza-se principalmente pela presena de pessoas de pele clara, indcio
da fraca penetrao do contingente populacional negro
expressivo nas reas urbana e rural (campo) do municpio de Cururupu. Tal contingente negro representado por descendentes de africanos trazidos, sobretudo,
da Costa DOuro e do Daom (hoje, Benin) para servirem de mo-de-obra escrava na fabricao do acar
e da farinha de mandioca, nos engenhos da regio.

64 |

albina numa ilha maranhense (Pereira 2000),


por meio da qual busquei analisar as prticas
discursivas do universo de fora (sobretudo matrias veiculadas na imprensa, de uma maneira
geral, e fragmentos encontrados na literatura,
nas artes e nos registros de visitantes da ilha) e
do universo de dentro, atravs de pesquisa de
campo, apreendendo representaes nativas, no
sentido de perceber a construo do imaginrio
possibilitada por tais discursos e representaes.
Colocando em evidncia pontos dessa
empreitada, atravs do intercruzamento das
temticas sobre corpo, imaginrio e encantaria sebastianista, o presente artigo apresenta,
de forma mais detida, uma parte do material
proposto na dissertao, em que procuro esmiuar as duas denominaes que so fundamentais na construo da comunidade da Ilha
dos Lenis: 1) os Filhos da Lua criao de
fora, sobretudo de reprteres, a qual os ilhus
(albinos e no-albinos) rejeitam, posto que a
consideram numa concepo negativa, que os
estereotipa numa imagem de anormalidade;
2) os Filhos do Rei Sebastio vertente da
Encantaria, aceita por eles, na qual se pensam
coletivamente nessa descendncia mitolgica cujo imaginrio marca uma liao com o
dono da ilha.

O discurso de fora sobre os Filhos da


Lua
Como ilha encantada, cheia de mistrios,
ainda considerada isolada, criou-se um imaginrio sobre o desconhecido:
Conta-se que l vive um bando de gente branca, de pele e cabelos da cor das dunas, que no
suportam a luz do sol. Cognominaram-nos de
Filhos da Lua, supondo que ela os teria concebido. E nas noites de luar mais intenso, essa
mesma gente saa em longas caminhadas pelas
praias (romarias), cantando hinos estranhos

numa linguagem indecifrvel (Vasconcelos in


Manchete 1980: 36).

A divulgao de um exotismo da Ilha dos


Lenis e de seus habitantes dos albinos, em especial se d sobremaneira pelo discurso literrio
da imprensa, que ao exaltar o natural mantm
esteretipos sobre esses ilhus que entranham
no imaginrio dos receptores de tal discurso. A
imprensa sensacionalista, de uma maneira geral,
utiliza a expresso os Filhos da Lua para se referir aos albinos da Ilha dos Lenis, com o intuito
de vender uma imagem de exotismo.
O levantamento desse aspecto discursivo,
que apresento em minha pesquisa,6 consiste na
apreciao de um material que se pode designar
como documento de divulgao sobre a Ilha
dos Lenis e seus habitantes. Nesse material,
esto inseridos, por exemplo, artigos de revistas
de circulao nacional, artigos disponibilizados
na internet, artigos de jornais locais, catlogos,
informativos tursticos e vdeos-documentrios
transmitidos em canais televisivos.
De antemo, coloco que, dentre o material
analisado, a divulgao do imaginrio sobre os
albinos exaltada com uma reportagem da revista Manchete, de 24 de maio de 1980.7 Em tal
6. Durante a elaborao da dissertao de Mestrado z
um levantamento, sobremaneira, de matrias veiculadas na imprensa que discorrem sobre a excentricidade
da Ilha dos Lenis. Atualmente, estou dando continuidade a esse levantamento (sem pretenses de fazlo exaustivamente) na minha pesquisa de doutorado,
cujo projeto de tese intitula-se Ecoturismo e patrimnio
cultural na ilha encantada. Nesse empreendimento,
colocam-se questes emergentes no momento em que
em que a Ilha dos Lenis apresentada como vitrine
num dos plos de ecoturismo do Estado do Maranho,
procurando identicar o que e de que forma est sendo
exposto como atrativo turstico e em que medida os
nativos esto re-elaborando suas posies nesse novo
cenrio, com vistas tanto conservao da biodiversidade local como do seu patrimnio cultural.
7. Em conversa com alguns nativos da ilha e com outras
pessoas de So Lus que tiveram acesso s primeiras
cadernos de campo n. 13 2005

, |

matria, l-se a armao de que durante muito


tempo a presena da colnia de albinos na ilha
foi fruto de lendas e histrias fantsticas, mas
que uma tentativa de desmisticao foi feita
quando da expedio organizada pela OMS ao
local, para estudar as caractersticas de tal albinismo e a sua origem. Alguns resultados da investigao, realizada por essa expedio mdica,
foram apontados na matria jornalstica. Contudo, o estilo de um jornalismo literrio encontrado na matria contribuiu para que o imaginrio
sobre os albinos continuasse vivo, atravs de um
discurso que concebe os albinos como pessoas
arredias, desconadas e de difcil contato, principalmente em relao ao assdio da imprensa.
Pela fora de tais prticas de linguagem, os
albinos ainda hoje so pensados como seres arredios. Uma gente estigmatizada por um discurso
que alm de ter sido impresso repetidamente,
expresso, transmitido de boca em boca, por
aqueles que tm um conhecimento supercial
ou ao menos j ouviram falar da Ilha dos Lenis e seus mistrios. Mas se os albinos so assim
considerados, no se descarta a hiptese de que
haja uma base para que o estigma se perpetuasse;
ou seja, apreendendo-se algumas representaes
nativas sobre o contedo dessa matria, nota-se
que alguns albinos tornaram-se por certo tempo arredios numa atitude reativa ao contato que
para eles foi mal sucedido.
Entre os escritos analisados, um dos que
chama maior ateno o do jornal Vagalume (jan.-fev. 1989) suplemento cultural do
Dirio Ocial do Estado do Maranho que
formulaes escritas sobre os albinos da Ilha dos Lenis, essa construo primeva se deu no ano de 1972
com duas reportagens: uma da revista O Cruzeiro e a
outra da revista Veja. A referncia da matria principalmente da revista O Cruzeiro est no discurso dos nativos, como a reportagem que primeiro lanou mo da
denominao Filhos da Lua para se referir aos albinos
da localidade, cujo contedo criticado pelos nativos
porque, segundo seus relatos, foi muito pejorativo em
relao a eles e cheio de inveno de reprter.
cadernos de campo n. 13 2005

uma compilao de vrias matrias sobre a


Ilha dos Lenis em que se percebe, de uma
maneira geral, um discurso naturalista presente nos textos. Uma matria (sem autoria) do
referido jornal apresenta o povo da Ilha como
fatalmente marcado pelo determinismo do
meio, reforando a idia de que tudo provisrio e precrio, e, ainda mais, a ressaltar o
destino a que os albinos da Ilha esto sujeitos,
devido ao envelhecimento precoce e doenas
de pele.
Para o nativo, principalmente os albinos, tudo
provisrio, precrio.
Existencialistas, os seres humanos da Ilha dos
Lenis constroem suas casas de estrutura leve,
isto , de madeira, sobre jiraus casas modestas,
simples, sem a expectativa da permanncia, do
imvel construdo para durar.
Tem o habitante de Lenis o instinto de que
a vida para eles breve e no alimenta sonhos
para o futuro. Existe e aproveita o tempo presente (Vagalume 1989: 6).

Alm do discurso naturalista, nota-se que


em todos os escritos h uma exaltao da beleza
fantstica do lugar, e que a maioria privilegia
o mito sebstico e os mistrios da Ilha. Seno
vejamos:
Tal qual o mito que a cerca, Lenis, uma das
muitas ilhas das Reentrncias Maranhenses, parece impalpvel. Vista do ar, das janelas de um
velho Sneca que a sobrevoa, como uma prola
luzidia em meio ao oceano, tantas e to brancas
so as suas areias. Neste pedao do mar ocidental do Maranho, banhado e escurecido por um
incontvel nmero de rios a fazer meandros e
a criar mangues, ela salta aos olhos. Ilha-mitomiragem (Rocha 1996: 78).
So miragens que despontam no desenho irregular desse litoral, o mais recortado do Brasil,

66 |
j em terras da Amaznia.[...] Ali conuem o
bafo quente do deserto e o verde da oresta. Da
memria ancestral saltam fantasiosas vises que
deram origem a lendas. Numa delas aparece o
rei D. Sebastio. Em noites de lua, o monarca
derrotado pelos mouros toma a forma de um
touro negro, com uma estrela na testa. [...] Navega tambm pelos furos, canais formados pelas guas das mars mais altas da nossa costa, que
invadem o continente e encontram os rios. [...]
A imensido de guas serve de refeitrio para
bandos de aves pernaltas de colorido avermelhado, smbolo dessas paragens. So os guars.
Estamos na costa oeste do Maranho, fronteira
com o Par. Bem-vindos s Reentrncias. Bemvindos oresta dos guars (Pavone. Disponvel
em http://www.jt.estadao.com.br/suplementos/
turi/2002/01/31/turi003.htm).
O Maranho uma terra de alma negra. Disso
no h dvida. As tradies africanas, trazidas
na pestilncia do navio negreiro, criaram razes
profundas na cultura regional, transformando
o Estado num pedao de Me frica no Brasil.
[...] H um lugar, porm, onde o Maranho ,
antes de tudo, branco, muito branco: na Ilha
dos Lenis, no Arquiplago de Maia. Para
comear, o panorama dominado pela palidez
monocromtica de dunas sem m, a Morraria,
segundo os locais. Os habitantes deste lugar,
alis, merecem destaque especial: so brancos,
branqussimos, mais at que as prprias dunas.
De to brancos que so, caram conhecidos
como os Filhos da Lua pelos poucos viajantes
que se aventuravam pela regio (Ajl. Disponvel em http://www.terra.com.br/turismo/diario/2003/03/14/).

A geograa extica da ilha-mito-miragem


fornece matria-prima para a construo do
imaginrio fantstico, dado pela perplexidade
ou deslumbramento diante do diferente, contribuindo para a imaginativa popular. O que

dizer ento de ilhas isoladas que oferecem praias


desertas, paisagens desconhecidas que abrigam
um povo e sua cultura quase intocados?
Se h por um lado questes sobre a natureza
do espao, h tambm questes sobre as gentes
que ocupam esse espao. O foco central continua sendo a busca desse outro. A busca se d
ou como forma de explorao ou como forma
de reexo e anseio por um retorno a uma
vida mais natural.8
Os nativos da Ilha dos Lenis so apresentados, pela anlise que fao, ora na viso infernista (principalmente pelos artigos de matrias
sensacionalistas), ora na viso ednica (principalmente sob a tica dos relatos dos visitantes e
das incipientes propagandas ecotursticas).9 Os
8. Se os viajantes de outrora se aventuravam alm-mar
em busca do den bblico que se acreditava perdido
em algum lugar recndito ou de um eldorado pago
as Ilhas Afortunadas que ...se achavam perdidas entre as guas do oceano, quase inacessveis aos
mortais... (Holanda 1994: 160) os viajantes atuais,
como os que visitam a Ilha dos Lenis, parecem continuar envolvidos com a busca de espaos desconhecidos, de preferncia, terras distantes e isoladas, s que
agora em busca de um outro tipo de riqueza: a possibilidade de encontrar um refgio paradisaco para
que possam se afastar dos problemas das sociedades
urbanizadas e industrializadas. A observao sobre os
viajantes interessante para se perceber como se d
a construo de um mercado simblico do exotismo
que propaga a imagem da Ilha dos Lenis no projeto
de desenvolvimento do ecoturismo na regio. Nessa
construo vem tona o mito do paraso perdido,
atravs da idia da natureza intocada (cf. Diegues
1998), o que faz crescer um consumo visual do meio
ambiente atrelado iluso do primitivismo.
9. Na esteira do Programa de Desenvolvimento do Ecoturismo na Amaznia Legal (PROECOTUR), percebe-se que a divulgao do lugar est crescendo atravs
do programa de turismo do Governo do Estado do
Maranho denominado Plano Maior. A Ilha dos
Lenis faz parte do plo ecoturstico intitulado, pelo
referido programa, de Floresta dos Guars, cuja porta
de entrada o municpio de Cururupu. Chamo a ateno para que no se confunda a Ilha dos Lenis com
o Parque Nacional dos Lenis Maranhenses, que se
cadernos de campo n. 13 2005

, |

discursos analisados so reveladores de como as


imagens sobre a Ilha dos Lenis so reinterpretadas e reapresentadas constantemente. O
imaginrio em torno da Ilha marcado por essas leituras atravs de lentes. Tem-se uma viso
ofuscada pela rememorao dos muitos mitos
contados e pelo contato direto com a geograa fantstica. So construdos, assim, discursos literrios, entre a co e a realidade.
Ainda sobre meios de comunicao que participam da construo do imaginrio sobre os
albinos da Ilha dos Lenis, no poderia deixar
de mencionar uma das matrias sobre o assunto em que fui solicitada a conceder entrevista,
como pesquisadora do universo de representaes sobre os albinos da ilha encantada.10
A respeito da referida matria, da revista
Seara, h uma deturpao muito grande das
informaes passadas por mim ao reprter, e
que no pude revisar porque no tive acesso ao
material antes de sua publicao. E um fato a
mais a destacar: como se trata de uma revista
evanglica, sua divulgao ca muito restrita ao
circuito das igrejas evanglicas, em especial, da
Assemblia de Deus, ou compra pelo sistema
de assinaturas.11
A matria construda por fragmentos da
minha entrevista (por trs vezes so citadas falas minhas) e por depoimentos de um pastor
que faz pesquisa sobre o mito do sebastianismo
e que esteve na ilha no ano de 1984. E o que
chama muito a ateno so os esteretipos atribudos aos albinos e a insistncia na urgente
localiza na poro oriental do Estado, ocupando uma
rea de 155 mil hectares, e que vem se consolidando
como o carro-chefe do turismo no Maranho.
10. Concedi entrevistas a jornalistas das seguintes revistas: Parla (Garrone & Fvia Regina fev. 1999), Seara (Soarez abr. 1999), National Geographic Brasil
(Moura & Correa fev. 2004) e Almanaque JP Turismo
(Moura & Correa ago./set. 2004).
11. Lamentavelmente, s recebi um exemplar da revista
em dezembro de 1999, enquanto que a mesma foi
posta em circulao desde abril daquele ano.
cadernos de campo n. 13 2005

propagao do evangelho na comunidade de


Lenis. Assim, encontram-se na matria de
Soarez (Seara abr. 1999) trechos tais como:
O fenmeno gentico chamado albinismo est
presente em toda populao local [...] Seriam
extra-terrestres? Gente de outro mundo? Anal,
que seres humanos so esses que assustam uns e
chamam a ateno de outros?! (: 13).
O pastor acredita que um trabalho de evangelizao adequado deva ser feito com urgncia, pois
atualmente, embora seus descendentes estejam
nascendo de cor diferente e conseguindo prolongar um pouco mais seus anos de vida, outro
fator constitui desao para a obra missionria:
os moradores cultuam o rei Sebastio e armam
que um dia ele vir para arrebat-los. (: 14).

Na exaltao da diferena so atribudos


fortes estigmas e preconceitos. No discurso
evanglico os albinos esto fora da cultura e
fora da religio que lhes possibilitaria a salvao. H um clamor para que um forte trabalho
de evangelizao no tarde a chegar na comunidade de albinos que, para os evanglicos, se
encontra adormecida sob o mito sebastianista,
sem conhecer a salvao em Jesus Cristo.
A grande maioria das matrias da imprensa escrita sobre o imaginrio da Ilha dos Lenis procura instigar o leitor sobre as lendas e
mistrios do lugar, enfatizando a excentricidade dos albinos que ali residem, atravs de um
estilo de discurso que designo como pseudodocumentrio (apresentado por meio no s
de textos como de imagens),12 interessado em
12. Chama-se a ateno aqui para uma das matrias mais
recentes de circulao nacional que foi a da revista Isto Filhos do Encanto (06 fev. 2002). O fato
que o diferente apresentado como uma pea
visitao de curiosos, como foi mostrado pelos
responsveis da reportagem o corpo de Seu Macieira, um dos albinos mais velhos da comunidade

68 |

propagar o imaginrio sobre lugares e pessoas


exticas. O fato que essas reportagens acabaram gerando muito constrangimento para a
comunidade, principalmente para os albinos.
Desde a dcada de 1970, a Ilha sofre visitas, sobretudo de reprteres que por l aportam, em
busca do extico ou da sua inveno, o que de
alguma forma agrediu a populao. Chega-se
a essa concluso atravs do bloqueio colocado
por alguns albinos e moradores mais antigos da
Ilha. Tal bloqueio se d, por exemplo, na forma
de taxas cobradas para entrevistas e fotograas
aos visitantes, com certas excees a pesquisadores que conseguem estabelecer uma relao
de maior conana.

O discurso de dentro: albinismo, encantaria e os Filhos do Rei Sebastio


Alm de me enveredar em destrinchar os
discursos de fora, o empreendimento antropolgico vigente consiste na abordagem da compreenso explicativa, tomando a cultura como
um texto a ser interpretado, investigando como
os observados representam e atravs de quais
lentes percebem suas prprias crenas e condutas, apreendendo, assim, as representaes
nativas pelo exerccio da interlocuo.
Como entender ento um pouco do universo de dentro? Como os nativos da Ilha dos
Lenis se auto-representam? Diante disso, comecei as minhas indagaes sobre a genealogia
da suposta genitora da histria da localidade,
D. Sebastiana Silva. Para tanto, busquei apreender fragmentos de narrativas biogrcas de
trs albinos, descendentes de D. Sebastiana
atualmente, residente em Cururupu que sempre
se mostrava muito simptico e receptivo para dar
informaes s pessoas de fora. E com tanta receptividade, e talvez ingenuidade, foi alvo de explorao,
no que se refere exposio indelicada que teve de
suas marcas corporais, j to combalidas pelo cncer
de pele.

Silva: D. Neusa (80 anos), Seu Macieira (72


anos) e Telma (38 anos).13 Os dois primeiros
so netos de D. Sebastiana Silva e so primos
paralelos. Telma bisneta de D. Sebastiana Silva, sendo lha de uma prima paralela de D.
Neusa e de Seu Macieira. Segundo seus relatos, da unio de D. Sebastiana Silva com Seu
Tributino Marino Oliveira nasceram quatro lhas no-albinas Baslia, Vicncia, Raimunda
Amada e Alzira que geraram lhos albinos.14
Unies entre parentes so freqentes na
comunidade de Lenis, o que nos leva a pensar numa tendncia endogmica. Dicilmente
uma mulher se casa com um homem de fora.
Alis, casamento no um termo muito utilizado pelos nativos de Lenis. Como a maioria
dos casais no so reconhecidos pelo contrato
civil e/ou religioso, isto , no so casados formalmente, alguns interlocutores, no incio da
minha investigao, diziam que em Lenis no
havia casamentos entre parentes, muito menos
entre primos. Fiquei ento intrigada: como se
justica a tese de que o alto ndice de albinismo
na Ilha devido a casamentos consangneos?
Somente com a observao direta e com
conversas informais junto a diversas pessoas da
localidade que percebi que eu estava formulando perguntas atropeladas, sem, portanto,
utilizar o vocabulrio nativo. Quando as reformulei, indagando se havia parentes que se
amigavam, a resposta era bem diferente da
anterior. Como diz Seu Macieira:
Aqui o pessoal no so muito distncia uns dos
outros. A maioria aqui tudo parente. [...]Essa
lha aqui minha amigada a bem dizer com
um primo dela, que o Domingos Arajo. Ele
13. Os trechos das entrevistas apresentados neste ensaio
foram coletados, em sua maioria, em 1999, porm as
idades dos meus interlocutores esto atualizadas, isto
, referentes ao ano de 2005.
14. D. Neusa lha de Baslia, Seu Macieira lho de
Vicncia, e Telma neta de Alzira.
cadernos de campo n. 13 2005

, |
lho duma prima minha. Tem outro lho que
parente da mulher. Eu sou lho do pai que
irmo do pai dele. Meu primo era lho do pai
que irmo do pai dele (18.01.1999).

As descries do grau de parentesco parecem


um tanto confusas; no entanto, so reveladoras da
freqncia com que se do as unies e de como
so consideradas corriqueiras. No so consideradas, portanto, algo inusitado, que seja observado
com tantas mincias. Sabe-se apenas que todo
mundo parente, porque so do lugar.
A tendncia endogmica na comunidade remonta a unies de duas lhas no-albinas de D.
Sebastiana Silva (Baslia e Alzira) com dois irmos
no-albinos (Saturnino e Nazaseno) de uma outra
famlia. Da para frente o casamento entre primos
foi o responsvel pelo grande nmero de albinos
na Ilha. (Vasconcelos in Manchete, 1980: 37).
Aqui comea uma confuso terminolgica
que fruticou uma maldio sobre os habitantes da Ilha dos Lenis. Segundo relato
de um primo no-albino de Seu Macieira, Z
Mrio,15 que curador/pai-de-santo, quando
a imprensa noticiou que a histria dos albinos
de Lenis tivera incio com a unio conjugal
entre dois irmos e duas irms, interpretou-se
que se tratava de uma relao incestuosa, entendendo-se que seriam irmos e irms, lhos
dos mesmos pais. Isso levou muitas pessoas de
fora, at mesmo de lugares vizinhos, a consider-los como uma raa amaldioada.
Apesar dessa denio de que o povoado de
Lenis seria habitado por uma raa amaldioada no se encontrar de forma corriqueira nas
representaes dos nativos, conforme indagaes feitas por mim a vrias pessoas, ela aparecia
quase sempre como alguma inveno de reprter para maltratar na revista os brancos (D.
15. O pai de Z Mrio, Flaviano, era irmo de Baslia,
Vicncia, Raimunda Amada e Alzira. Ele quase nunca citado pelos ilhus na reconstituio genealgica,
porque no teve descendentes albinos.
cadernos de campo n. 13 2005

Neusa 02.07.1999). Tambm se pode dizer que


a representao quanto ao termo amaldioado, em outras apreenses do discurso nativo,
reforava a idia de que essa designao dada a
um povo resulta da quebra de uma regra universal: a proibio do incesto (cf. Lvi-Strauss
1976). Embora esse dado seja interessante, o
mesmo no foi aprofundado devido carncia
de informaes a seu respeito.16 Com isso, passei a observar outros aspectos referentes s relaes de parentesco encontradas em Lenis.
Entre os ilhus de Lenis o parentesco apresenta um marcado bias matrilateral. Do universo
de parentes conhecidos de uma pessoa, a maioria formada por parentes matrilaterais, e os laos de solidariedade e afetividade so mais fortes
entre estes. Outro dado que deve ser observado
quanto transmisso do albinismo. Os relatos
dos meus interlocutores convergem no sentido
em que atribuem s quatro irms, lhas de D.
Sebastiana Silva, a procriao dos lhos e dos
demais descendentes albinos.17 Os companheiros dessas mulheres nunca so citados, a no ser
16. O que se pode destacar do contexto narrativo aqui
ventilado so elementos estruturais que evidenciam
as categorias de incesto como sendo base lgica em
quase todos os mitos, conforme indicaes de Leach
(1983: 67) em sua anlise sobre mitos bblicos, de
onde se extrai os seguintes fragmentos: ...o tema do
incesto homossexual da estria de Caim e Abel reaparece na saga de No quando este, bbado, seduzido
por seu prprio lho Cam (9, 21-5). Os cananeus,
descendentes de Cam, so por isso amaldioados. [...]
Bbado, Lot seduzido por suas prprias lhas (19,
30-8). Os moabitas e amonitas, descendentes dessas
lhas, so por isso amaldioadas.
17. Vale ressaltar que pela explicao cientca (da gentica) no h nenhum dado que indique que a me, e
no o pai, seja a principal transmissora dos genes recessivos que condicionam o albinismo. Como cada
pessoa recebe um ou outro desses genes [A e a], atravs de cada gameta que recebe de seus pais, h indivduos AA, Aa e aa. Os indivduos AA e Aa so normais
(o alelo A dominante; o a recessivo); os indivduos
aa so albinos. (Freire-Maia 1987: 33; grifo meu).

70 |

que se insista em perguntar quem eram eles. A


ausncia dos nomes dos maridos das lhas de
D. Sebastiana na rememorizao da rvore genealgica dos albinos acentua, portanto, o vis
matrilateral da comunidade.
A rede de parentesco de qualquer pessoa nativa bastante signicativa. Todos sobrevivem
atravs de suas relaes com parentes, principalmente no que diz respeito s pescarias, das quais,
geralmente em grupo, eles obtm seu sustento.
Os albinos, como os outros ilhus, participam
das pescarias sem nenhum tipo de discriminao.
Entretanto, no se pode dizer que eles interagem
em perfeita harmonia com o ambiente natural
que os cerca, pois sentem na pele, literalmente,
os efeitos de um trabalho sob o sol escaldante.
Sem poderem se proteger habitualmente
(com culos escuros, chapu, camisa de manga
comprida e bloqueador solar) contra os raios ultravioletas, os albinos so vtimas de doenas de
pele, e alguns foram levados ao mais grave tipo
de cncer de pele: o melanoma. Estes albinos
morreram precocemente por falta de uma assistncia mdica adequada. A nica assistncia que
tinham, de fato, segundo alguns depoimentos,
era a de suas mes (principalmente), de lhas ou
de irms. A maioria dos outros parentes tinham
nojo e nem chegavam perto do convalescente. Esta constatao leva-nos observncia do
princpio de distncia de sangue, trabalhado
por Woortmann: ...quanto maior a distncia,
tanto menor a obrigao. [...] Teoricamente os
laos mais fortes seriam aqueles entre dois parentes afastados um grau (irmos, pais e lhos)
que vivem prximos um do outro e que mantm contato constante... (1987: 156).
A doena que come as partes do corpo18
18. O cncer de pele denominado pelos nativos atravs dos
termos canco, ferida, doena que come as partes do
corpo, doena que maltrata os brancos. A presena do
canco s reconhecida quando a doena se apresenta
bastante explcita. Muitas pessoas de Lenis com certo
grau de albinismo apresentam uma pele bastante espessa

de certa forma um assunto tabu para os ilhus


que se consideram, pelo menos por enquanto,
estar livres da doena. O cncer uma doena
da qual se evita comentar, pois a antivida em
estado puro, objeto de vergonha e de escndalo (Laplantine 1991: 103). O cncer do qual
os albinos padecem, particularmente, manifesta-se no mais exposto rgo humano (o mais
exteriorizado e visualizado), a pele, e, portanto,
sujeito percepo dos sinais corporais e estigmatizao.
Embora os ilhus no exprimam com clareza a origem ou as causas das feridas malignas, eles consideram que os brancos esto
mais sujeitos doena por conta da fragilidade
de suas peles em exposio excessiva ao sol. Os
nativos colocam as representaes do cncer
assentadas em causas naturais, ou simplesmente acham que a doena seja uma fatalidade; isto , que alguns podem ser acometidos,
outros no. Assim, o cncer pensado como
doena individual e no coletiva. Em contrapartida, a anomalia congnita caracterizada
pela falta de pigmentao na pele tida como
uma manifestao corporal muito mais coletiva que individual, no importando o pequeno
nmero de albinos da localidade que expressa
essa coletividade.
Para acrescentar um ponto j ventilado,
uma das representaes coletivas sobre os albinos de Lenis a de que eles se conguram
como uma raa amaldioada. Aqui recorro
a Laplantine (1991: 229), que nos faz pensar
na categoria doena-punio, que a representao da doena como ...conseqncia de
uma transgresso coletiva das regras sociais, [...]
conseqncia do pecado coletivo e individual.
Desse modo, os albinos de Lenis puderam
ser pensados na categoria de raa amaldioada, como relatou o curador/pai-de-santo Z
com manchas na pele e pequenas feridas, mas armam
que isso uma coisa normal, uma conseqncia da exposio excessiva ao sol, sem maiores complicaes sade.
cadernos de campo n. 13 2005

, |

Mrio, como um castigo merecido para a coletividade pelo fato de determinados integrantes do grupo terem transgredido a uma lei: a
proibio do incesto. Porm, h de se levar em
conta que essa denio a mais fracamente
percebida no universo das representaes nativas sobre o albinismo; talvez porque seja muito
mais interessante os ilhus se pensarem enquanto uma raa privilegiada, Filhos do Rei
Sebastio, partcipes da corte encantada, a se
pensarem enquanto uma raa castigada.
O que est em questo que nas representaes nativas o albinismo sempre se manifestar: Essa raa dos brancos sempre vai ter,
porque acredito que isso do lugar. (Z Mrio
26.05.1999); ...uns morrem, outros j nascem:
assim que . (Seu Macieira 19.01.1999).
Independente da causa da morte, pessoa alguma falecida enterrada na Ilha dos Lenis,
a no ser natimortos, os anjinhos. Na Ilha
dos Lenis no h cemitrio. O receio, ento,
no s com as pessoas acometidas pelo cncer
de pele. Alguns depoimentos sobre a ausncia
de cemitrio na ilha fornecem representaes
sobre o fato:
O nado Sissi e a Zuca tentaram reunir algumas
pessoas do Lenol pra fazer um cemitrio, mas o
pessoal no tinha coragem de fazer o cemitrio
aqui no lugar. Morre uma pessoa tem que enterrar l no Bate-Vento... (D. Neusa 04.07.1999).
No tem cemitrio por causa do encante e porque a
terra anda muito. Eles tm medo. Eu tenho certeza
que Lenis encantado (Z Mrio 26.05.1999;
grifo meu).

A partir desses depoimentos, extrai-se o seguinte dado: os nativos de Lenis tm medo


de construir um cemitrio no lugar, uma morada (no plano material) para os mortos, por
causa do encante da ilha mundo do fundo
onde vivem pessoas que nunca morreram.
cadernos de campo n. 13 2005

Os mortos, situados nas fronteiras do no


mans land antropolgico (Morin 1997: 24),
so seres ambguos que precisam ser colocados
em seus devidos lugares, de acordo com o tratamento dado pela cultura especicada. Para
os nativos de Lenis, enterrar o corpo morto
um meio de a comunidade assegurar a seus
membros que o indivduo morto caminha na
direo da ocupao do seu lugar determinado,
devidamente sob controle. (Rodrigues 1986:
53). E justamente isso que no aconteceria
em Lenis se ali fossem enterrados os seus
mortos, pois supe-se que debaixo daquelas
areias h um mundo da Encantaria que reproduz o mundo real, cheio de vitalidade.
Com a constatao desse fato, pude perceber o quo signicativa a crena na Encantaria sebastianista, interferindo no ethos e na
viso de mundo dos nativos, dando subsdios
para se analisar as construes simblicas em
torno da nominao Filhos do Rei Sebastio.
Por outro lado, muitas pessoas de fora fazem
referncia aos albinos atravs da seguinte descendncia mitolgica: Filhos da Lua. Essa denominao foi memorizada atravs da recepo
de um discurso dos meios de comunicao que
assim faziam suas chamadas. Na matria da
revista Manchete (1980), o reprter atribuiu a
origem dessa cognominao a uma histria inventada pelo patriarca da Ilha, Saturnino Oliveira, pai de D. Neusa. Com uma conotao
de um furo jornalstico, o reprter diz o que o
patriarca da Ilha lhe confessou:
O patriarca da ilha, Saturnino de Oliveira, que
diz ter oitenta e tantos anos, bom de conversa e
com a vitalidade de um pescador mais jovem,
ri quando se fala nos Filhos da Lua: Essa histria foi inventada por mim para me livrar de
um portugus perguntador que apareceu por
aqui, senhor. Ele vivia sempre olhando meus
lhos, com tanta admirao que dava at pra
desconar. Um dia ele tomou coragem e veio

72 |
falar comigo. Disse que na sua terra havia muitos brancos e louros, mas ningum to branco
como meus lhos. E perguntou como eu explicava aquilo... A para no estender muito a
conversa, eu disse que quando as mulheres, nos
primeiros meses de gravidez, saam a passear nas
noites de lua cheia pelas dunas, o claro da lua
transformava os meninos, dando-lhes pele e
aos cabelos a brancura de sua luz... (in Manchete 1980: 38).

Como Seu Saturnino j falecido, recorri


D. Neusa para que ela desse a sua verso sobre
esse depoimento posto na reportagem. Ela diz
que seu pai gostava muito de conversar com as
pessoas de fora e que falava que a natureza do
lugar poderia ter alguma relao com o nascimento de albinos, mas que essa suspeita nunca chegou
a ser armada categoricamente para ningum, e
que tudo no passa de inveno dos reprteres.
De qualquer forma, cabe ainda instigar a
considerao sobre o princpio associativo que
rege a simbologia do nascimento dos albinos
com a atuao do brilho da Lua sobre as mes
grvidas que passeiam sobre as dunas em noite
de lua. Ou seja, a simbologia da transmisso de
cor de um corpo (humano ou no) para outro
nos remete ao princpio da magia simptica,
trabalhado por Frazer (1982: 35), o qual supe:
...a possibilidade de interao entre coisas que
esto distantes umas das outras, atravs de uma
simpatia secreta, sendo o impulso transmitido
de uma a outra por meio do que poderamos
conceber como um ter invisvel.... Da o imaginrio sobre a Lua e o nascimento de albinos
ser fruticado por um princpio simptico.
Tambm no se pode desprezar que a Lua
acompanha a imaginao desde as primeiras
civilizaes, estando associada fertilidade e
mulher. H de se notar que a Lua fomenta uma
pluralidade de representaes associadas ...
morte e renovao, obscuridade e clareza... (Durand 1997: 295). O imaginrio sobre os Filhos

da Lua busca emitir uma explicao fantstica


sobre fenmenos naturais envoltos numa redoma
de mistrio, como o caso do nascimento de
pessoas albinas numa incidncia fora do comum
constatada numa amostragem isolada. Mas tambm h de se chamar ateno para o fato de que
essa uma explicao mais de fora que de dentro, buscando-se uma lgica, uma invariabilidade no conjunto das representaes universais.
Buscando-se as representaes nativas, percebe-se que os albinos sempre cam contrariados com essa alcunha a que foram relegados
porque lhes d a impresso de que seriam pessoas desconhecedoras do processo de fecundao, e assim rejeitam a idia de que o astro lua
substitua o genitor masculino. Conforme a indignao de Telma e de D. Neusa:
Dona, como que Lua vai fazer lho?! Lua
no nhanha... Isso s inveno. (Telma
06.09.1998).

Como que a gente vai ser Filho da Lua,


senhora?! (risadas). Foi isso que inventaram.
Foram botar isso numa revista. Isso foi o que o
papai tambm se aborreceu: que o lho do Saturnino mais a Baslia Oliveira Silva era Filho
da Lua. (D. Neusa 19.01.1999).
O diferente apresentado na Ilha dos
Lenis por discursos internos e externos que
exaltam a Encantaria do lugar e a misteriosa
presena de pessoas de pele to alva como a cor
das dunas ou da Lua, e cuja referncia a tais
pessoas se d por uma postura de exotismo e
perplexidade advinda, sobretudo, de reportagens que tm interesse em lanar mo da moda
ocidental do exotismo. A Ilha dos Lenis,
quando retratada pelos meios de comunicao, pelo teatro e pela literatura, apresentada
sob os adjetivos: encantada, misteriosa, fantstica, fascinante, isolada etc. Tais adjetivos
tornam-se cones do imaginrio sobre o lugar,
tanto pela formao geogrca marcada por
cadernos de campo n. 13 2005

, |

um imponente conjunto de dunas, como pela


Encantaria, morada do Rei Dom Sebastio. O
cenrio fantstico se completa com a presena de nativos exticos: os albinos.

Re-significaes sobre a filiao dos


nativos da ilha encantada
A representao do diverso, atravs da pigmentao da pele, est em pauta. Identica-se
a construo de um estigma a partir de marcas
corporais e tambm do imaginrio mtico que
o envolve, onde se d a explicao da existncia
desses seres humanos descoloridos atravs da
liao no universo mtico, ora como Filhos
do Rei Sebastio, ora como Filhos da Lua.
E atravs desta ltima designao, alguns elementos do subsdios para ser pensada a criao de um imaginrio fantstico a cor da pele
(a no-cor) dos albinos e o lugar encantado
onde vivem com a possibilidade de se reetir
sobre uma gnese ambgua:
Brilho da Lua Cheia

Mulher Grvida

Feto (atingido) = Albino

(Natureza)

(Humanidade)

(Natureza/Humanidade)

Se levarmos em conta que esta trade apontada seja uma operao de uma estrutura mtica,
logo devemos pelo menos suspeitar que haja em
seu conjunto uma mensagem cifrada que precisa
ser interpretada. O mito sobre os Filhos da Lua,
embora rechaado pelos albinos, possui um grande valor no em termos de uma verdade, mas
sim por possuir uma eccia ao criar e projetar
para o universo de fora uma imagem extica
dos ilhus descoloridos de Lenis. Imagem
essa reforada pelos princpios estruturais do
mito, no qual a gnese dos albinos no pressupe
um tempo cronolgico e marcada pelo desaparecimento de barreiras entre Natureza e Cultura
(Humanidade), e por isso a comunicao e a fertilidade entre esses planos tornam-se possveis.
cadernos de campo n. 13 2005

Concebo que, pela anlise privilegiada na


presente abordagem, a perplexidade o foco
instaurador da identidade/alteridade. Fornecida pelos discursos de fora, a perplexidade contribui para apresentar os albinos numa imagem
estereotipada, em que o ethos do grupo condicionado pela natureza somtica dos indivduos,
tendo sua gnese condicionada tambm extica natureza mesolgica da ilha encantada.
E assim tem-se uma identidade sobre os albinos construda, sobretudo, pela terminologia
os Filhos da Lua. Por outro lado, os nativos
reforam uma identidade de pertencimento a
um povo, mas no como descendente do satlite natural, e sim como descendente do rei que
se encontra encantado no fundo da Ilha dos
Lenis: seriam os Filhos do Rei Sebastio.
As representaes de dentro a respeito de
smbolos diferenciadores, contrastados em relao a outros grupos, como por exemplo em relao s comunidades vizinhas de pescadores, vm
tona quando propagam que os nativos da Ilha
dos Lenis so Filhos do Rei Sebastio, concebendo a presena dos sinais adscritos marcados
nos corpos de determinados ilhus como reveladora de uma identidade que se estende a toda coletividade nativa. Ou seja, reveladora de que no
so s as pessoas estigmatizadas que representam
o sobrenatural, mas que toda a Ilha dos Lenis
misteriosa, cujo o reinado do Rei Sebastio, e,
portanto, todos os nativos so seus lhos/sditos.
Dessa forma, o outro no quer ser apresentado
como extico no plano da natureza, mas sim
identicado no plano da sobrenatureza, identicao esta em direo a uma identidade onrica de
pertencimento a um povo eleito.

Referncias bibliogrficas
AJL, Daniel Henry. Ilha dos Lenis. Terra: on-line,
Dirios de Viagem. Disponvel em: http://www.terra.
com.br/turismo/diario/2003/03/14/.
BRAGA, Pedro. 2001. O Touro Encantado da Ilha dos Lenis: o sebastianismo no Maranho. Petrpolis: Vozes.

74 |
DIEGUES, Antnio C. S. 1998. O Mito Moderno da Natureza Intocada. So Paulo: HUCITEC/NUPAUB/
USP.
DURAND, Gilbert. 1997. As estruturas antropolgicas do
imaginrio. So Paulo: Martins Fontes.
FERRETTI, Mundicarmo. 2000. Desceu na Guma: o caboclo do tambor de mina no processo de mudana de um
terreiro de So Lus: a Casa de Fanti-Ashanti. 2 ed. rev.
e atual. So Lus: EDUFMA.
FRAZER, James. 1982. O ramo de ouro. Rio de Janeiro:
Guanabara.
FREIRE-MAIA, Newton. set. 1973. Gentica de populaes e sade pblica. Cincia & Cultura. 1 (25):
11-17.
_____. 1987. Brasil: Laboratrio Racial. 8 ed. rev. Petrpolis: Vozes (Coleo Cosmoviso).
GARRONE, Raimundo & Flvia Regina. fev. 1999. O
mito sob as cobertas da Ilha dos Lenis. Parla, 5 (1):
16-18.
HOLANDA, Sergio Buarque de. 1994. Viso do Paraso:
os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do
Brasil. 6 ed. So Paulo: Brasiliense.
LAPLANTINE, Franois. 1991. Antropologia da Doena.
So Paulo: Martins Fontes.
LEACH, Edmund. 1983. O gnesis enquanto um mito. In
DA MATTA, Roberto. (Org.) Edmund Leach: Antropologia. So Paulo: tica, p. 57-69. (Coleo Grandes Cientistas Sociais; 38)
LENIS. Jan./fev. 1989. Vagalume suplemento cultural
do Dirio Ocial do Estado do Maranho. 1(2).
LVI-STRAUSS, Claude. 1976. As Estruturas Elementares do Parentesco. Petrpolis: Vozes.
MAUS, Raymundo Heraldo & VILLACORTA, Gisela M.
2001. Pajelana e encantaria amaznica. In PRANDI,
Reginaldo (Org.). Encantaria Brasileira: o livro dos mestres,
caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, pp. 11-58.

MORIN, Edgar. 1997. O Homem e a Morte. Rio de Janeiro: Imago.


MOURA, Flvia & CORREA, Lucimara. fev. 2004. Os
lhos da lua: albinos resistem em ilha do Maranho.
National Geographic Brasil. 46 (4): 12.
_____. Ago./set. 2004. Ilha de encantos. Almanaque JP
Turismo. I (3): 14-18.
PAVONE, Antnio Paulo. 31 jan. 2002. A Floresta dos
Guars. Estado: on-line. Disponvel em: http://www.
jt.estadao.com.br/suplementos/turi/2002/01/31/
turi003.htm
PEREIRA, Madian de Jesus Frazo. 2000. O Imaginrio
Fantstico da Ilha dos Lenis: estudo sobre a construo
da identidade albina numa ilha maranhense. Dissertao
de mestrado em Antropologia. Belm: PPGAS/UFPA.
_____. 2003. Ecoturismo e Patrimnio Cultural na Ilha
Encantada. Projeto de Tese em Sociologia. Joo Pessoa: PPGS/UFPB.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. 1976. O messianismo
no Brasil e no mundo. 2 ed. So Paulo: Alfa-mega.
RIBEIRO, Ren. 1982. Movimentos messinicos no
Brasil. In _____. Antropologia da religio e outros estudos. Recife: Massangana.
ROCHA, Ana Augusta. 1996. Ilha de Lenis (MA): a
encantada = Lenois, the enchanted island. In Brasil
Aventura 3: Ilhas: Parasos na Terra = Islands: Paradises
on Earth. So Paulo: Terra Virgem.
RODRIGUES, Madi. 6 fev. 2002. Filhos do encanto.
Isto . 1688: 42-44.
RODRIGUES, Jos Carlos. 1986. Tabu do Corpo. 3 ed.
So Paulo: Brasiliense.
SOAREZ, Battista. Abr. 1999. Filhos da lua. Seara: a
revista evanglica. 29 (42): 12-14.
VASCONCELOS, Larcio. 24 maio 1980. Os lhos da
Lua, na Ilha dos Lenis. Manchete: 36-41.
WOORTMANN, Klaass. 1987. A Famlia das Mulheres.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

cadernos de campo n. 13 2005

Nhanhembo: infncia, educao e religio


entre os Guarani de MBiguau, SC*
MELISSA SANTANA DE OLIVEIRA
Mestre em Antropologia Social pela UFSC.
Artigo aceito para publicao em 25/11/05

resumo Este artigo tematiza a participao

abstract This article has as its theme children

das crianas no processo de valorizao da tradio na Aldeia Guarani MBiguau, SC. A partir
de uma abordagem etnogrca, discorro sobre a sua
atuao nas rezas, no coral e na escola, trs espaos
considerados fundamentais neste processo. Com
base nos pressupostos recentes da Antropologia da
Educao e da Infncia, mostro que a construo da
Op (casa de rezas Guarani), e mais especicamente, a formao do coral e a implantao da escola
revelam uma inteno pedaggica das lideranas na
organizao de espaos de ensino-aprendizagem da
tradio voltados para a educao das crianas.
Alm disso, demonstro que a participao das crianas nesses contextos est pautada numa noo de
educao que concebe o ensinar (mbo) e o aprender (nhanhembo) como aes que se constituem
mutuamente, de modo que tanto aquele que ensina
como aquele que aprende so considerados sujeitos
atuantes no ensino-aprendizagem.
palavras-chave antropologia da educao e
da infncia, ensino-aprendizagem, valorizao da
tradio.

participation in tradition valorization process in


MBiguau village, SC. Through an ethnographic
boarding, it discourses upon their atuation in praying, choral and school, three fundamental spaces in
this process. With base in recent presuppositions
of Anthropology of Education and Childhood, it
shows that construction of Op (Guarani Praying
House), and most especically, the formation of a
choral and the implantation of a school in the village reveal a conscious and systematic leaderships
pedagogical intention in the constitution of contexts for tradition teaching and learning, directed
to children education. Besides, it shows that children active participation in these spaces is suited in
an education notion in which the act of learning
(nhanhembo) and the act of teaching (mbo) are
conceived as mutually implicated actions and both
who teaches and who learns are considered subjects
in the teaching and learning.
keywords anthropology of education and
childhood, teaching and learning, tradition valorization.

Este artigo foi redigido com base em minha dissertao intitulada Kringue y kuery Guarani Infncia,
educao e religio entre os Guarani de MBiguau,
SC, defendida pelo Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina em 2004. Apesar de ter estabelecido contato
com o grupo desde o ano 2000, o trabalho de campo

cadernos de campo n. 13: 75-89, 2005

direcionado para a problemtica da dissertao foi realizado mais sistematicamente entre os meses de maro
e agosto de 2003. Os dados de campo so aqui apresentados como recurso de uidez textual. Agradeo aos
Guarani de MBiguau pela receptividade e colaborao em campo e a Antonella Maria Imperatriz Tassinari pela orientao e incentivo minha pesquisa.

76 |
As crianas, quando choram, esto falando com
Nhanderu, esto indo longe. Do outro lado do
oceano elas olham... (Cano Kringu y kuery
Wher Tup / traduo Kara Djer)

A Teko Morot Wher: tradio


e religiosidade
A Aldeia MBiguau (Mby Bigua) ou
Teko1 Morot Wher (Reexo das guas
Cristalinas), est localizada no km 190 da BR101, prximo ao municpio de Biguau, Grande
Florianpolis. Sua populao de aproximadamente cento e cinqenta indivduos, que em
sua maioria identicam-se e so identicados
como Guarani Xirip, havendo tambm a presena de pongu (mestios, descendentes de
casamentos intertnicos).
Dentre todos os moradores, Wher Tup,
de noventa e trs anos de idade, considerado o mais sbio e respeitvel. A ele se referem
como Tche rami (meu av) e sua esposa
como Tche djar (minha av), independente
do lao de parentesco. Wher Tup o Kara,
liderana religiosa2 da aldeia que conduz sesses
de reza dirias na Op (casa de rezas Guarani),
e quem atribui o tcherer (nome Guarani) s
crianas. Sobre isso me contou:
uma tarefa muito trabalhosa. Eu tenho que
ver a criana, ir para casa e conversar com o
Nhanderu. O cu dividido em vrios lugares e
a cada lugar corresponde um nome. Cada criana recebe o nome do lugar de onde vem...3
1. O termo teko o modo pelo qual os Guarani se referem a uma terra onde podem viver de acordo com
seus preceitos morais, ou seu modo de ser (Meli
1989). Nimuendaj ([1914] 1987) arma que para
os Guarani o termo tek signica religio e costume.
2. Kara tambm consiste num nome masculino comum. Ao longo do texto grafarei Kara (em itlico)
ao referir-me liderana religiosa e Kara (sem itlico) ao referir-me a nome masculino comum.
3. A liderana religiosa Guarani quem realiza a nominao das crianas, que consiste na atribuio do

Nos ltimos anos as lideranas de


MBiguau tm investido num movimento
de valorizao do que consideram ser a sua
tradio. Ao referir-me ao termo tradio no
estou fazendo aluso a aspectos imutveis da
cultura Guarani, mas sim a um conceito mico apropriado por sujeitos que tomam alguns
conhecimentos e prticas a eles relacionadas
como elementos constituintes de um passado
comum, que lhes confere um sentimento de
unidade e que os caracteriza como um grupo
especco no presente (Toren 1988).
Na direo desta valorizao da tradio
possvel apontar trs movimentos de suma importncia: 1) A criao de uma escola na aldeia
em 1996, no contexto mais amplo da conquista do direito educao escolar diferenciada
por parte dos povos indgenas no Brasil.4 Essa
escola foi instituda a partir de uma deciso
poltica das lideranas no intuito de propiciar
aos alunos Guarani um estudo que permitisse o seu acesso aos conhecimentos no-ndios
mas, principalmente, o aprendizado da escrita
e leitura da lngua Guarani. 2) A formao do
Coral vtch Ov (Nuvens Azuis) em 1998. O
coral performatiza msicas e danas Guarani,
relacionadas a questes mticas e religiosas. 3)
A construo, na mesma poca, de uma Op,
feita de taquara, barro e coberta por palha, em
frente casa do Kara. A existncia de uma casa
de rezas considerado um fator fundamental
na congurao da vida religiosa do grupo.
Essas iniciativas revelam uma preocupao
das lideranas, especialmente do Kara, com a
nome por meio de cerimnia em que se identica o
lugar de origem da alma da criana. A este local corresponde uma divindade a qual o nome faz referncia (Nimuendaj ([1914] 1987). Borges (2002: 55)
mostra que alma da criana ainda no nascida pode
aparecer em sonho para o pai e lhe contar seu nome,
mas apenas uma conrmao nal do rezador poder
referendar este nome.
4. Constituio de 1988; Lei Darcy Ribeiro n. 9.394/96,
de 20.dez.1996.
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

construo de um local adequado para se viver


segundo certos preceitos religiosos, o que aponta para a busca da constituio de um teko, um
lugar onde os Guarani vivam de acordo com o
seu tek ou rek, seu modo de ser.
Neste artigo discorrerei sobre a participao
e o papel das crianas neste contexto polticoreligioso, atravs da descrio de sua atuao
nas rezas, no coral e na escola, concebidos
como espaos/momentos privilegiados de ensino-aprendizagem da tradio. Para isso parto dos pressupostos das pesquisas recentes da
Antropologia da Educao (Pelissier 1991) e da
Infncia (Silva, Nunes & Macedo 2002; James
& Prout 1997) assumindo uma perspectiva
que est atenta atuao da criana como um
sujeito ativo na construo da vida social e no
desenrolar dos processos educativos, s especicidades das noes de infncia de diferentes
grupos sociais, ao carter histrico e processual
da educao e interatividade das relaes de
ensino e aprendizagem.

As crianas Guarani
Antes de abordar a atuao das crianas na
vida social da aldeia necessrio denir quem
so as crianas do ponto de vista Guarani. Um
caminho para o entendimento da categoria nativa
de infncia est na ateno ao modo pelo qual os
Guarani estabelecem os limites entre as diferentes
categorias de idade. Aqui, apresentarei uma breve
sistematizao das categorias de idade, tal como
so referidas pelos Guarani de MBiguau.
Tabela. Categorias de idade com distino de gnero.
Grifo na categoria Kyringu criana.
Idade aproximada Sexo masculino
Sexo feminino
0-3 anos
Mynta (nens)
Kringu
3-13 anos5
Ava (menino) Kunh (menina)
13-18 anos
Kunumy (moo)
Kunht (moa)
20-50 anos
Tudj (homem adulto) Vaivi (mulher adulta)
A partir dos 60 anos Tudj (velhinho)
Vaivi (velhinha)

cadernos de campo n. 13 2005

Os Mynta (nens) dependem inteiramente


do cuidado dos mais velhos. Geralmente esto nos colos de suas mes e de seus irmos,
que improvisam panos ao estilo de uma tipia,
para carreg-los junto a suas cinturas. Quando
esto soltos, engatinhando ou arriscando seus
primeiros passos, sempre h algum por perto
acompanhando seus afazeres, fazendo-lhes carinhos, brincadeiras ou cuidando para que no
se machuquem.5
As Kringu (crianas) apresentam uma
maior autonomia em suas aes cotidianas e
desempenham um papel mais ativo nas atividades da aldeia. Apesar de no haver uma distino terminolgica entre Kringu maiores
e menores, no dia-a-dia, elas no constituem
um bloco homogneo. As crianas menores
so livres de ocupaes: pela manh acordam,
recebem o alimento preparado por suas mes
ou irmos e saem de casa para brincar. Geralmente brincam em frente escola, e vez em
quando entram na sala de aula, sentam-se nas
carteiras e fazem desenhos. Na hora do recreio,
comem a merenda e brincam junto s crianas
maiores, mas logo so chamadas por suas mes
para voltarem para casa, pois apesar de terem
liberdade para circularem sozinhas pela aldeia
sempre h algum vericando o que esto fazendo. Seus dias se passam assim, em meio a
brincadeiras. Ao entardecer, durante os ensaios
do coral, pem-se a cantar e danar, e mesmo
sem ocuparem uma posio denida guardam
na memria todas as canes. Ao anoitecer, sua
participao na Op descontrada, entram e
saem, brincam l dentro e algumas vezes cantam e tocam instrumentos, mas ao sentirem
5. A partir do momento em que se tornam adolescentes os indivduos de sexo masculino so chamados
Ava e os de sexo feminino so chamados Kunh, termos que, segundo meus interlocutores, no correspondem a categorias de idade mas apenas marcam
a diferena de sexo e esto relacionadas a questes
biolgicas, de maturao.

78 |

cansao aconchegam-se ao lado de suas mes e


dormem.
A partir dos seis ou sete anos, as crianas
passam a ter um cotidiano composto por ocupaes pr-denidas. Pela manh, preparam seu
prprio caf-da-manh e partem para a escola.
Ao longo do dia no deixam de brincar, mas
assumem algumas atribuies na vida da aldeia. Cuidam de seus irmos menores, iniciam
atividades de artesanato, ajudam no preparo de
alimentos em casa e auxiliam os adolescentes
em algumas tarefas como na coleta de lenha na
mata, onde cumprem tarefas mais leves como
carregar gravetos. Algumas crianas maiores fazem parte do coral. Participam ativamente das
rezas na Op, cantando, danando, tocando
instrumentos, e at mesmo auxiliando o Kara
nas atividades de cura. Suas vidas continuam
restritas aldeia e no tm liberdade para sair
de l sozinhos. As incurses ao mundo djuru
(no-ndio) restringem-se s apresentaes do
coral e viagens familiares.
Algumas evitaes6 e prescries marcam a

passagem da infncia para a adolescncia para


meninos e meninas. A mudana de categoria
implica novas atribuies sociais. Os Kunumy
(moos) ajudam o pai a buscar lenha no mato,
vo venda sozinhos, carregam comida e aprimoram suas habilidades na confeco do artesanato, especialmente bichinhos de madeira.
As Kunht no podem mais brincar, ajudam
a me em seus afazeres domsticos, principalmente a preparar a comida e a lavar roupa, e
comeam tambm a se aperfeioar na confeco de artesanato: colares, cestarias e zarabatanas. Esta poca marcada pela ida a bailes
nas cidades prximas e pelo estabelecimento de
laos afetivos, namoros, entre moos e moas, preferencialmente Guarani, quer sejam de
MBiguau ou de outras aldeias. Alm disso,
alguns jovens passam a freqentar a escola dos
djuru (no ndios).
Tendo delimitado o perodo correspondente infncia Guarani, apresento a seguir uma
descrio da sua atuao nos contextos da escola, do coral e das rezas.

6. Quando o menino comea a apresentar a voz mais


grave, no pode comer noite e no pode mais brincar. No deve falar muito, nem falar no mato, e nem
tomar banho de rio, pois pode pegar odjepota (encantamento sexual). Aps um perodo de mais ou menos
um ano estas proibies so abolidas. Logo quando
tem a primeira menstruao, a menina corta os cabelos, at ento nunca cortados. Um pano posto
entorno da cabea, para evitar dores de cabea e friagem. improvisado para ela um canto separado da
casa que pode ser um quarto ou um lugarzinho feito
com lenis e cobertores. Deve permanecer durante
um ms restrita a esta rea da casa, sendo iniciada para
a vida adulta, aprendendo afazeres como o artesanato.
No pode sair, o que inclui a interrupo freqncia das aulas na escola. Nem sorrir, nem ver televiso.
Deve alimentar-se com comidas leves como arroz
puro e mbojap. No deve comer doce nem gorduras.
A menina tambm deve, ao sair de casa para realizar
alguma tarefa andar depressa e realiz-la rapidamente. Nesta fase de passagem so o tche rami(av) e a
tche jary (av) que aconselham meninos e meninas
respectivamente em relao ao comportamento que

As crianas e a religiosidade
Em reconhecida obra sobre os ApapocuvaGuarani, Curt Nimuendaj ([1914] 1987), ao
descrever as atividades de reza entre os Guarani, em nenhum momento se refere atuao
das crianas, a no ser quando, atravs de um
desenho, mostra os movimentos de danas dos
homens e mulheres e indica em determinado
local do que chama casa de dana a presena
de crianas adormecidas. Em MBiguau as
Kringu participam de modo ativo das rezas
noturnas realizadas diariamente na Op.
As atividades de reza Guarani, chamadas
em MBiguau de mbora, incluem o canto,
devem manter durante o perodo de passagem e a
partir dele. Durante o perodo de passagem, rituais
especcos so realizados na Op, os quais no tive a
oportunidade de presenciar.
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

a dana, o toque de instrumentos musicais e


sesses de cura. Ao anoitecer, os Guarani renem-se na Op. Alguns se sentam em roda sobre bancos dispostos ao redor do fogo, outros
se dispem sobre seus cobertores, tomam ka
(chimarro) e impreterivelmente fumam seu
petyngu7 (cachimbo). As Kringu (crianas)
fazem o mesmo, sustentando pequenos petyngu. Este momento inicial marcado por certa
descontrao: as pessoas esto chegando, trocam cumprimentos e conversam. As Kringu
passam as mos nos cabelos umas das outras,
riem e conversam entre si. A fumaa da fogueira e do tabaco e o odor que produzem atribuem
ao ambiente uma atmosfera peculiar. Desde o
momento em que entram na Op para rezar,
os indivduos de sexo masculino so chamados
Yvyraidj (dono da madeira: yvyr rvore, idja
dono) e os de sexo feminino, Kunh Kara8
(mulher Kara), termos sagrados que indicam a
cooperao com o trabalho do curandeiro.
Muitas vezes so as Kringu (crianas) que
iniciam a reza. Formam uma leira e, uma a
uma, realizam uma espcie de beno nos
presentes, colocando uma mo em suas cabeas e borrifando a fumaa do petyngu sobre as
mesmas. Em seguida, as Kunh (meninas), a
7. Na mitologia Guarani, ao criar os seres humanos:
Nhamandu fez existir as imagens desse tempo,
a chama como calor e luz, a bruma como signo da
chama. Haver nesse mundo uma dupla cpia dessa bruma: de uma parte a neblina que os primeiros
longos sis fazem surgir acima das orestas no m
do inverno; de outra parte, a fumaa do tabaco que
fumam em seus cachimbos os sacerdotes e os pensadores indgenas. (Clastres 1990: 27) De acordo com
um interlocutor Guarani de MBiguau: O petyngu um instrumento de comunicao direta com o
Nhanderu (nosso pai/deus).
8. Este termo tambm utilizado em referncia a mulher que uma lder religiosa de fato. Este caso de
polissemia, dentre outros, conrma a armao de
Montardo (2002: 32): Uma caracterstica dos termos que se relacionam ao ritual e ao xamanismo
[Guarani] a polissemia.
cadernos de campo n. 13 2005

partir de sua iniciativa prpria, s vezes seguidas por algumas Kunhta (moas), colocamse umas ao lado das outras prximas ao altar, e
com a cabea voltada para o leste9 comeam a
cantar, danar e bater no cho o takuapu, instrumento feminino que consiste num basto
feito de taquara e utilizado na marcao do
compasso das msicas. O canto/dana acompanhado pelo rav (rabeca) e mbaraka (violo),
tocado por homens.
Enquanto isso, o Kara, sentado em um
banco ao redor do fogo, prepara-se para a sesso de cura10, fumando petyngu junto a seus
auxiliares especiais, que so seu lho mais
velho, Kara O Kend, um neto adolescente
chamado Kara Wher e seu neto de oito anos
de idade, Kara Mirim. Os auxiliares mais
jovens so denominados Yvyraidja Kuery (pequenos yvyraidja: pequeno, kuery plural).
Kara OKend, auxiliar mais velho, chamado Yvyraidja Tenond (tenond: aquele que
est adiante).11
9. Kara O Kenda me disse que: O Guarani quando
reza deve car voltado para o leste, a direo do sol,
o Nhamandu, e se concentrar. Desta forma ele consegue ver atravs da parede, o sol e o mar. De acordo
com Nimuendaju ([1914] 1987: 100) os Guarani
realizam todos os seus atos religiosos com o rosto
voltado para o sol nascente.... Numa outra passagem
o autor arma: Mais de uma vez ouvi os Apapocuva
armarem que o sol o verdadeiro pai de tudo o que
existe na terra... (1987: 65).
10. Como j foi apontado por Littaif (1996), entre os
Guarani impossvel dissociar rezas e cura.
11. Nimuendaj ([1914] 1987: 42) arma que yvyrai j
o ajudante especial do paj. O autor tambm refere-se ao termo yvyraij (neste caso grifa-se tudo junto) para designar um tipo de melodia acelerada e com
forte marcao rtmica ([1914] 1987: 36). Segundo
Montardo (2002: 32-33): O termo yvyraija, etimologicamente, quer dizer dono da madeira pequena
e usado em vrias situaes. Uma delas a designao dos ajudantes do xam na execuo do ritual, bem
como dos ajudantes divinos, os mensageiros do heri
criador.[...]. As pessoas tm seus yvyraija tambm, seres que as acompanham e as protegem de situaes

80 |

Em seguida, um banco posto no centro


da Op e para l se encaminha a pessoa que ser
curada. Os benzedores, entre eles o pequeno
Kara Mirim, aproximam-se em leira, com o
tronco rgido, levemente inclinado para frente
e os braos um pouco afastados do corpo, caminhando lentamente, passo a passo, sempre
fumando seu petyngu. O Kara entoa o nheenmongara,12 reza/canto especco para cura,
circunda o doente e borrifa a fumaa do petyngu sobre ele. Toca o corpo do doente e age
como se dele estivesse extraindo algo com as
mos, e concomitantemente realiza com a boca
uma espcie de sopro. Nesses atos sempre
seguido pelos outros benzedores, que fazem
o mesmo, inclusive o pequeno Kara Mirim.
O momento de xtase ocorre quando o Kara
extrai do corpo do doente uma semente, que
segundo os Guarani personica o mal, a doena que est no corpo da pessoa.
Kara Wher, o Kunumy (moo) que participava da cura, me disse que as Kringu que participam das sesses so responsveis por curar
apenas doenas mais leves. J Kara OKend, o
Yvyraidja Tenond, falou que as Kringu tambm tm o poder de curar e a presena destas
importante, pois delas se retira fora visto
que so puras e sagradas. Kara Mirim, por
sua vez, me disse sem eu nada perguntar: Eu
sou benzedor e seguro o petyngu para o meu
av. De fato, especialmente enquanto o Kara
retira a doena do corpo do doente Kara Mirim quem segura o seu petyngu.
O Kara me disse uma vez que, assim como
ele decidiu aprender a curar com seu falecido

pai, o interesse em ser curandeiro parte das


prprias Kringu, porque cada um escolhe
seu prprio caminho. O problema daquele
que escolhe o caminha errado... Porm, ainda
segundo o Kara, elas esto livres para desistir
a qualquer momento, e apenas as que agentam (ndepyaguachu)13 permanecem. Logo que
iniciei minha pesquisa um outro ava (menino) participava junto a Kara Mirim das sesses
de cura, mas geralmente ele se cansava antes
deste e no meio da sesso juntava-se a roda
de chimarro. Com o tempo, simplesmente
deixou de participar. Sobre isto Kara Mirim
comentou: Ele no agenta!.14
Aps as sesses de cura, as rezas so retomadas com a participao de adultos,
adolescentes e tambm das crianas. A
participao dos Mynta (nens) mais descontrada, mas os mais velhos acreditam que os
Guarani devem participar da reza desde cedo,
pois aos poucos vo entendendo o sentido.
Geralmente os bebs cam dormindo nos cobertores estendidos no cho ou brincando. Vi
algumas vezes Mbodjer, de um ano de idade,
tentando tocar um takuapu que tinha o dobro
do seu tamanho e acompanhar balbuciando alguns cantos. Sua me e outros presentes riram e
se mostraram muito orgulhosos com o feito.
As rezas dirias costumam ser nalizadas
perto das 21 horas. Segundo Kara O Kend:
Os Guarani de outras aldeias viram a noite rezando. Aqui ns no podemos pois as crianas
tm aula no dia seguinte....
Muitas vezes, cedo pela manh, as Kringu
entoam msicas repentinamente. Em uma

difceis. [...] Yvyraija utilizado tambm para falar das


canes do repertrio do jeroky que tem andamento
rpido e so acompanhadas por coreograas de lutas.
Este gnero musical ... entre os Mby, teria correspondncia com o Xondaro ou Sondaro (2002: 225).
12. Nimuendaju ([1914] 1987: 31) arma que o
engara (...) constitui o ponto culminante de toda
dana de pajelana.

13. A traduo literal deste termo : o que tem corao


grande. Nde 2a pessoa do singular, pya corao,
guachu grande. Um interlocutor armou que, alm
de agentar esta palavra signica rezar com o corao e ter coragem.
14. Alguns meses depois em uma visita a aldeia quei
sabendo que ele havia voltado a participar como auxiliar das sesses de cura.
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

conversa Kara OKend me falou que, por serem mais puras, elas tm facilidade em receber msicas das divindades e que quando ouve
alguma criana entoando uma msica que ningum conhecia antes, sabe que foi recebida
em reza. Pelo que pude perceber, a msica recebida pelas crianas no possui letra.15
Atravs do que foi descrito acima se pode
observar que em MBiguau as Kringu participam de modo ativo das atividades religiosas
da aldeia e realizam elaboraes signicativas
a respeito das mesmas. Sustentam uma postura autnoma em toda sua atuao nas rezas. A
gura de Kara Mirim, o pequeno benzedor,
ilustra exemplarmente esta autonomia, pois sua
insero, bem como sua permanncia no cargo,
do-se a partir de uma escolha pessoal baseada
no seu interesse em participar. Ningum tem
o poder de coagir uma Kringu a assumir este
papel, nem a permanecer nele.
O modo autnomo pelo qual as Kringu
inserem-se na vida religiosa da aldeia pode ser
compreendido se atentarmos a uma caracterstica fundamental da religio Guarani, que
consiste na valorizao da experincia religiosa
pessoal e na crena de que o aprendizado das
rezas se d atravs de uma relao direta entre
o indivduo e Nhanderu. De acordo com Schaden (1974), os Guarani-Nandeva armaramlhe que no ensinam as rezas s crianas pois
estas so individuais e mandadas diretamente
pelas divindades. Assim, as crianas participam das cerimnias familiares e comunitrias,
aprendendo o que faz parte do patrimnio
grupal e esperando que suas rezas lhes sejam
enviadas durante o sonho. Clastres (1978), por
sua vez, destaca que para os Guarani as rela15. Durante a descrio de um ritual mbya e chirip,
Montardo (2002: 128) chama a ateno para o fato
de que um paj lhe falou que por ser muito jovem a
reza de determinado rapaz de quinze anos ainda no
tinha palavra. Tudo indica, poranto, que as rezas s
passam a ter palavra na idade adulta.
cadernos de campo n. 13 2005

es com o sagrado so sempre pessoais e que


depende do indivduo pessoalmente, segundo
seu desejo e esforo, alcanar a aguyje (estado
de completude/perfeio, imprescindvel para
se atingir a Terra sem mal). Aponta tambm
que o arandu por (belo saber, inspirado pelas
palavras dos deuses que revelam, entre outras
coisas, as normas do aguyje) no varia com o
indivduo que o detm, mas sua aquisio no
coletiva e s pode ser desvendado numa comunidade singular com as divindades.
Uma outra noo que apareceu e mostrou ser
de grande importncia no contexto religioso dos
Guarani de MBiguau, presente at mesmo nos
discursos das prprias Kringu, a de agentar/ suportar / ter coragem de enfrentar
(ndepyaguatchu) as diculdades. Isso pode ser
constatado no modo como encarada a permanncia ou no da Kringu no papel de benzedor,
interpretado como uma questo de agentar a
situao da cura. Este agentar neste caso signica uma disposio para o exerccio da cura,
que de acordo com Kara OKend no consiste
numa tarefa simples, pois implica que a alma
do benzedor entre na alma do doente, o que
exige uma certa preparao pois os problemas
dos outros podem ser fortes e podem causar uma
reao naquele que o est curando. Agentar
e ter coragem, ambas denidas pelo termo
ndepyaguatchu, vo de acordo com aquilo que
Clastres (1978) apontou como qualidades que
os Guarani acreditam ser essenciais para alcanar
o aguyje, a saber: a perseverana obstinada (mburu), a coragem (py aguachu) e a fora espiritual
(mbaraete). Segundo a autora, o mburu pode ser
atribudo a quem consagra tempo aos cnticos e
palavras, dana e ao jejum. Apenas o manterse no esforo permite adquirir mbaraete, a fora
por excelncia, e o pyaguachu, o corao grande.
Fora e coragem para enfrentar sozinho a grande
gua, e desta forma chegar a yvy mar ey.
Se partirmos da fala do Kara de que cada
um escolhe seu prprio caminho, podemos

82 |

armar que em MBiguau as Kringu tm escolhido seguir o bom caminho indicado por
este lder espiritual. Esta escolha acatada e incentivada pelos outros Guarani, que, partindo
da noo de que as Kringu so seres puros e
sagrados e fonte privilegiada de fora para o
bom rendimento dos processos curativos, consideram-nas seres aptos a lidarem com assuntos
de extrema importncia e delicadeza e de grande inuncia no bem estar de todo o grupo.

A participao das crianas no Coral


vtch Ov (Nuvens Azuis)
O Coral vtch Ov16 mantm ensaios regulares e uma agenda lotada de apresentaes.
Essas apresentaes so realizadas durante todo
o ano, na prpria aldeia, em cidades prximas
e at mesmo em outros estados. Alm disso, o
coral alcanou em 2003 sua mais esperada conquista, a gravao de um CD.17
Segundo Coelho (1999: 26) uma parte das
canes que compem o repertrio do coral
so aquelas canes que o Kara aprendeu na
sua infncia e que ele relembrou devido a um
interesse demonstrado por seus lhos em saber como eram essas canes que j estavam
esquecidas h muito tempo. O Kara passou a
cant-las e um de seus lhos, Kara Djer (na
poca apenas um Kunumy moo), fez os arranjos, ... para ento ensin-las s crianas.
Em uma conversa que tive com o Kara, este
me falou: os cantos do coral foram recebidos
por mim em reza e depois meu lho anotou
as letras e melhorou com o violo. Mais tarde
ele mesmo passou a receb-los em sonho e at
mesmo durante o dia. Nhanderu lhe falou o
que ele devia cantar....
16. De acordo com Clastres (1990: 35), entre os Guarani:
So chamadas de azuis todas as coisas e todos os seres
no-mortais que povoam o territrio celeste do divino.
17. CD Nhe garai mar en. FAPEU, BADESC, Governo do Estado de Santa Catarina, 2003.

Apesar do coral no ser constitudo apenas


pelas Kingu, os Guarani costumam referir-se a
ele como coral das crianas.18 Os componentes do coral vestem-se com trajes elaborados por
Kara Djer a partir de vises. Os trajes apresentam diferentes cores, s quais correspondem categorias mitolgicas. A cor vermelha, utilizada
pelos Tudja (adulto), corresponde categoria
do Sondaro (Guerreiro). A cor verde, utilizada
pelos Kunumy (moo), corresponde categoria
dos Sondaro mirim (pequeno soldado). A cor
branca, utilizada pelos Ava (menino) e Kunh
(menina) menores, corresponde categoria
dos Yvyraidja (dono da madeira pequena).19 E
a cor azul, utilizada pelas Vaiv (mulher), Kunhta (moa) e Kunh (menina) que esto
prestes a tornarem-se Kunhta , corresponde
categoria das Sondarya (ya indica exo de
gnero). Ocorre portanto, uma reclassicao
das categorias de idade em termos de categorias
mtico-religiosas.
Segundo a explicao de um interlocutor:
Os Sondaro so aqueles que comandam o
coral e os Sondaro mirim, so seus aprendizes.
As Sondarya , so as pequenas soldadas... Esses termos tm a ver com guerras entre grupos
indgenas que no existem mais. Hoje a gente
ataca e se defende do mundo a fora...
Essas categorias so utilizadas, portanto, em
um sentido blico que remete a um passado
povoado por guerras intertribais. Na atualidade esta atitude guerreira seria acionada frente
18. Durante a redao da dissertao assisti a uma apresentao feita apenas por crianas e adolescentes, sem
a presena de homens e mulheres. Surpreendeu-me a
conana dos Guarani no trabalho dos mais jovens.
19. Este termo tanto utilizado para designar a todos
os Ava (homens) durante as rezas, que so concebidos sem exceo como auxiliares do Kara, como
utilizado em referncia a seus auxiliares especiais,
que exercem com ele especicamente as atividades
de cura.
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

aos perigos cotidianos, entre estes o relacionamento com os djuru (no-ndios).


De acordo com outro interlocutor, a categoria dos Yvyraidja, a qual pertencem as duas
pequenas Kunh e os dois Ava , tem grande
importncia pois considera-se que eles cuidam
dos mais velhos. Isto est de acordo com uma
das denies apontada por Montardo (2002:
32-33) para o termo Yvyraija, como seres que
protegem as pessoas em situaes difceis. Meu
interlocutor me falou ainda que eles so considerados os donos da palavra, atentando-me para
o fato de que so eles que ao trmino de cada
cano pronunciam em alto tom Aguydjeuete!,
ao que os outros respondem Aguydjeuete!.
A classicao dos componentes nessas categorias guardam certo grau de equivalncia
com a atuao dos mesmos nas rezas e com as
categorias que eles ento assumem. Isto pode
ser vislumbrado na fala deste interlocutor:
Os Sondaro do Coral so aqueles mesmos que
conduzem os cantos na Op, tocam o mbarak
e o rav. Os Sondaro mirim so os que tocam os
outros instrumentos nas rezas. As Sondarya so
as Kara Kunh, meninas, moas e mulheres que
cantam e tocam o takuapu. Os Yvyraidja so os
pequenos que ajudam o Kara.

Portanto os Guarani entendem que a cada


categoria do coral corresponde uma categoria
de reza. A categoria Sondaro, que, segundo um
interlocutor, no acionada durante as rezas,
aparece no coral. Ela desempenhada pelos Ava,
que so aqueles que durante as rezas cumprem
o papel de Yvyraidja, entendido aqui no sentido
de auxiliar do xam de modo geral. Os termos
Yvyraidja e Sondaro20 so deste modo aproximados, tornados equivalentes, no nvel reza-coral.
20. Na literatura (Mello 2001; Montardo 2002, entre
outros) o termo Yvyraidja utilizado no sentido de
mestre do Sondaro, o que aponta para uma equivalncia entre ambos.
cadernos de campo n. 13 2005

Os meninos que so classicados como Yvyraidja no coral so justamente os que recebem a


denominao Yvyraidja nas rezas por serem
auxiliares especiais do Kara durante as curas.
A continuidade em relao Op faz-se notar
durante os prprios ensaios que l so realizados ao
entardecer. Coelho (1999) arma que, segundo o
que os Guarani lhe disseram, a Op foi construda
para se ter um lugar para cantar e ensaiar.
Os Sondaro se responsabilizam em organizar
o espao, preparar os instrumentos musicais, e
exigir que todos os componentes compaream
aos ensaios. E ainda so eles que chamam a
ateno daqueles que se mostram distrados ou
esto conversando. Durante um dos ensaios que
presenciei, ao perceber o pouco envolvimento
de algumas Kunh e Kunhta , o Sondaro Kara Djer pediu a todos que parassem de cantar
e danar e proferiu um discurso em tom solene,
durante o qual falou: Todos ns temos que
nos concentrar, cantar pensando no Nhanderu e no ter vergonha dos outros....21 Aps essa
fala os componentes fumaram um petyngu,
passando-o de mo em mo, e recomearam a
cantar e danar com muito entusiasmo.
Nos dias de apresentao todos costumam
reunir-se na entrada da aldeia e esperar o nibus
locado pela instituio que os contratou, o qual
vem busc-los para lev-los at o local onde a
apresentao ser feita. As Kringu so sempre as primeiras a descer a aldeia para esperar
a chegada do nibus. Enquanto o nibus no
chega, os instrumentos vo sendo anados, e as
Kunh e Kunhta retocam suas vestimentas,
21. Montardo (2002: 242) j apontou a importncia da
concentrao para os Guarani no cotidiano e nos
rituais xamansticos. Em relao aos rituais, arma
que ocorre uma alterao ou ampliao de estado de
conscincia provocada pela conjugao de vrios fatores, sendo um deles a concentrao. Ainda segundo
a autora: Entre os Guarani a concentrao uma
atitude valorizada tambm no cotidiano. A pessoa
deve estar inteira no que est fazendo. (...) No caso
do ritual, esta concentrao levada ao extremo.

84 |

cabelos, fazem maquiagens e pem colares. As


Kunhta ajeitam as Kunh , ajudando-as a se
vestir, fazendo tranas em seus cabelos, ou enfeitado-as com colares e pintando suas faces.
Esta incurso ao mundo djuru toma a
caracterstica de um passeio. marcada pela
descontrao e alegria, mas, ao mesmo tempo, exige o seguimento de algumas regras de
comportamento, entre as quais: o cuidado em
no se afastar do grupo e o respeito ao modo
de ser do branco. As crianas costumam ser
bastante silenciosas ao longo da viagem de nibus, algo que contrasta com o comportamento
das crianas no-ndias em nibus escolares ou
tursticos. Vez ou outra as Kringu entoam algum canto durante o trajeto.
Em todas as apresentaes chamou-me ateno a presena de familiares. Entre eles destaco a
presena do tcherami (av) e da tchejar (av).
O tcherami que, como j foi dito, o Kara,
costuma ser chamado para discursar ao pblico a
respeito da situao atual dos Guarani e da vida
em MBiguau. Puxa o canto Nh e mbaraete
(traduzido como O poder do grande esprito22)
que costuma ser evocado por ele durante as rezas
na Op. Kara OKend apresenta o coral, responde s perguntas feitas pelo pblico, e faz alguns comentrios sobre a letra das canes.
As apresentaes feitas pela manh contam
como atividade de aula e so assistidas pelas
crianas pongu (mestias). Estas crianas costumam prestar ateno no coral durante certo
tempo, mas logo cansam-se e comeam a brincar. Muitas vezes fazem barulho enquanto o coral
est se apresentando, o que causa certo desconforto por parte dos Guarani, que tecem comentrios a respeito de seu mau comportamento.
Durante as apresentaes, os componentes
cantam sempre com muito anco e os Guarani que esto na platia acompanham atenciosamente. O modo apaixonado com o qual as
22. Traduo retirada do encarte do CD anteriormente
citado.

Kringu realizam as apresentaes no passa


despercebido pelos djuru, que ao observ-los
cantando e danando de olhos fechados, exclamam frases como: Que concentrao!.
Em pocas festivas para os djuru, especialmente na Semana do dia do ndio, o coral
costuma se apresentar vrias vezes. Nos intervalos das apresentaes, os adolescentes e adultos costumam sentar-se nos ptios externos
das escolas e estdios, onde se apresentam, para
conversar e fumar. As Kringu aproveitam essas pausas para brincar muito nas quadras de
esporte, nos parquinhos, ou em qualquer local
onde possam se movimentar vontade. s vezes aproveitam para coletar pequenas sementes
que caem das rvores, guardando-as em seus
bolsos para utiliz-las na confeco de colares.
Nos perodos de intervalo ocorre uma
maior interao entre os Guarani e os djuru.
As crianas djuru olham com curiosidade
para as Kringu Guarani e procuram se aproximar destas por meio de perguntas variadas
sobre a vida na aldeia, tais como: O que vocs
comem l? e at mesmo: Como o Natal na
aldeia?. As Kringu Guarani costumam responder com poucas palavras ou simplesmente
no respondem. Pude observar que algumas
vezes isso ocorre porque elas nem mesmo
compreendem as perguntas que lhes foram
feitas. Em geral, as Kringu mantm um certo
distanciamento das crianas no-ndias que
me parece estar pautado num sentimento de
timidez ou vergonha. Mas isso pode variar de
acordo com o modo de abordagem adotado
pelas crianas no-ndias.
Apresentaes em cidades distantes causam
grande empolgao nas crianas, so comentadas vrios dias antes de acontecerem e requerem ensaios mais rduos. Costumam envolver
um nmero maior de familiares, principalmente as mes que vo para cuidar dos seus lhos.
O coral tambm realiza apresentaes na
prpria aldeia, quando h visitas de turmas
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

de estudantes djuru de escolas prximas. As


Kringu pouco interagem com os estudantes.
Algumas se escondem quando avistam um nibus escolar subindo o morro que d acesso
aldeia. No entanto, mostram-se sempre entusiasmadas a apresentar o coral. Ao perguntarlhe sobre o que achava das visitas dos estudantes
djuru, uma Kunh no hesitou em responder: Eu gosto porque a gente canta!.
certo que o Coral Yvch Ov consiste
numa fonte de renda alternativa para a aldeia. E,
ainda, que consiste num novo modo de interao
entre os Guarani e os djuru, no qual o canto e
a dana so eleitos como smbolo diacrtico. Porm, mais do que isso, a existncia de um coral
envolve signicados religiosos de grande importncia interna para o grupo. O coral revela sobretudo um investimento consciente e sistemtico
no ensino-aprendizagem de cantos, danas e
toques de instrumentos e de certas disposies,
como a concentrao (edjapitchaka). Da a imprescindibilidade da participao do Kara, que
considerado detentor privilegiado dos saberes
tradicionais Guarani, e o envolvimento de
adultos, jovens e crianas. O teor educativo do
coral pode ser vislumbrado numa armao de
Kara OKend que, ao ser perguntado sobre o
signicado das canes que compem o repertrio do coral, respondeu: As canes falam sobre
as crianas, a educao e a religio.
O aprendizado das crianas se d ao mesmo tempo em que so imbudas de desempenhar um papel de destaque na vida do grupo,
tomando a posio de protetores, guardies
e guerreiros do grupo. Em reza, as categorias
Yvyraidja, Sondaro e Sondarya so acionadas
no enfrentamento dos perigos do mundo sobrenatural. No caso do coral, parece haver um
duplo sentido: so acionadas na mediao com
um Outro, os djuru.
O coral representa tambm uma oportunidade de sair da aldeia, algo que pouco ocorre
no seu cotidiano. Durante o passeio ao muncadernos de campo n. 13 2005

do do djuru, pode-se armar que as Kringu


elegem como modo privilegiado de interao o
canto, ocupando assim posio de destaque do
qual detm um saber (musical e cosmolgico)
respeitado e apreciado pelo outro.

A Escola na vida das Kyringu Guarani


Durante os dias de semana, as Kyringu
Guarani que possuem aproximadamente entre
sete e dez anos de idade freqentam a escola
presente na aldeia. Acordam entre seis e sete da
manh e vestem suas roupas. Fazem uma refeio, muitas vezes preparada por elas mesmas,
que consiste geralmente em caf preto, acompanhado de mbojap ou tchipa (po e bolinho
feitos base de trigo e gua), pegam seu material escolar e partem para a escola para participarem das aulas, que iniciam mais ou menos s
oito horas da manh.
O ambiente da escola composto por
apenas uma sala de aula, que comporta uma
turma de alunos multi-seriada, uma turma de
alfabetizao (que corresponde ao 1o ciclo) e
uma de complemento (correspondente ao 2o
ciclo). Metade dos alunos do primeiro ciclo e
dois alunos do segundo ciclo fazem parte de famlias consideradas pongu (mestias). Os alunos Guarani e mestios, do 1 ciclo, sentam-se
diariamente em lados opostos da sala, apesar
de cursarem ambos o mesmo ciclo. O professor
guarani Kara OKend leciona para a turma
do primeiro ciclo e a professora no-ndia Isabel Eiko leciona para o segundo.
Apesar do espao fsico da escola apresentar um aspecto convencional quadro negro,
carteiras distribudas em leiras e mesa para os
professores a frente , a forma como as Kringu
guarani do vida a este cenrio peculiar. As
crianas sentam-se sobre suas pernas, debruam-se sobre as mesas, mexem-se bastante.
Durante as aulas, h um burburinho contnuo,
uma constante circulao das crianas pela sala

86 |

de aula, um entra e sai de crianas pequeninas


que ainda no ingressaram na escola e tambm
de suas mes.
O ensino-aprendizado dos saberes nondios realizado apenas na medida em que
consiste num instrumento para a luta por direitos do grupo e para a intensa convivncia
com os djuru. O foco central da escola est
voltado para o que os Guarani consideram ser
o conhecimento tradicional da sua cultura.
Esse conhecimento tematizado por meio do
desenvolvimento de projetos junto liderana
religiosa do grupo, o Kara, tcherami (av) de
grande parte das crianas.
Pude acompanhar o desenrolar de alguns
projetos. Um deles consistiu na plantao de
mudas por parte das Kringu em um terreno
acima da escola. Cada criana acompanhou o
desenvolvimento de sua muda, realizando visitas semanais plantao nas quais mediam
seu tamanho, vericavam o quanto ela cresceu e a regavam quando necessrio. Tudo isso
foi registrado atravs de anotaes e desenhos
realizados em um dirio especco para este
m. Nessa atividade estavam sendo trabalhados conceitos da biologia e matemtica. As
Kringu envolveram-se bastante nesse projeto,
entusiasmando-se nos perodos em que visitavam suas plantinhas. Uma Kunh (menina),
chegou a apresentar uma sugesto que foi acatada por todos: fazer fotograas de cada aluno
junto a sua planta. Essas fotograas foram axadas em porta-retratos produzidos pelas prprias Kringu em sala de aula e entregues aos
seus pais como presente do Dia dos Pais.
Tive a oportunidade de observar tambm um
projeto de construo de uma maquete de argila
da Op. Kara OKend, que possui grandes habilidades artsticas, esteve frente dessa atividade.
As Kringu por sua vez no deixaram de ajudar,
trazendo ripas de madeira, modelando a argila e
dando palpites: O tcherami (av) no vai caber a
dentro!, Vamos ter que diminuir o tcherami!.

Pesquisas relacionadas a rituais de cura e


cerimnias Guarani so realizadas com freqncia e costumam suscitar grande envolvimento por parte das Kringu. Durante uma
pesquisa os alunos do 2 ciclo ouviram o Kara
falar sobre o poder curativo do uso do petyngu (cachimbo) e de ervas medicinais dentro
da Op. Como atividade complementar realizaram desenhos de objetos rituais, atribuindo
seus respectivos nomes, e sob a orientao do
professor Kara OKend elaboraram pequenos
petyngu de argila.
Outro tipo de atividade realizada na escola
so as caminhadas pelo territrio da aldeia sob a
orientao do Kara, que indica para as crianas
os nomes das espcies de plantas que compem
o terreno e suas propriedades medicinais.
Todos esses projetos, alm de outros aqui
no citados, tiveram a participao ou at
mesmo a idealizao (como o caso dos dois
primeiros) do Kara. Alm dos projetos realizados em parceria com o mais velho da aldeia,
as crianas tm semanalmente momentos de
aprendizagem da confeco de artesanato (cestaria e colares) na escola, com Kara OKend.
No posso deixar de salientar que essa situao favorecida pela existncia de um consenso
entre os professores em relao ao que deve ser
tematizado na escola. Kara O Kend, alm de
professor, tem ocupado um papel importante
na vida religiosa da aldeia, pois vem se aprimorando a cada dia como benzedor. A professora
Isabel assume uma postura de pesquisadora da
cultura Guarani, consultando sempre os mais
velhos, especialmente o Kara, para o desenvolvimento de uma abordagem dialgica dos saberes Guarani e no-ndios em suas aulas.
Pode-se armar que em MBiguau a escola est numa relao de continuidade com
a vida da aldeia e constitui-se num espao de
(re)construo de relaes sociais de grande
importncia para o grupo. Apesar da existncia de professores, na escola, o lder espiritual,
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

gura central no contexto atual da aldeia, reconhecido como aquele que deve ser ouvido.
As Kringu valorizam esta insero da escola na vida alde, participando com entusiasmo
das atividades referentes tradio. No depoimento de uma kunh :
J estudei em outra escola, mas gosto mais daqui
porque a gente estuda Guarani e Portugus. Seno a gente fala s Portugus, e isso ruim, porque a gente perde nossa cultura. Na outra semana
vamos fazer histria de ervas que a gente conhece.
L em casa tem uma rvore bem grando que tem
uma folha assim... Meu pai tira, coloca na panela,
faz e a gente toma quando d dor de cabea. s
vezes eu sozinha vou no mato, buscar remdio,
quando minha me t doente. Na semana que
vem os professores vai tirar foto e a gente vai escrever. Vamos no mato e o tcherami vai pra tirar
o remdio. O remdio do ndio mais forte.

Consideraes Finais: As crianas, a


educao e a religio
Acompanhamos a descrio da atuao das
Kringu Guarani da aldeia MBiguau em trs
contextos fundamentais no processo de valorizao da tradio: as rezas, o coral e a escola. O
resgate e a valorizao da tradio Guarani tem
como elemento central a religiosidade, que tanto
acionada na criao de um ethos interno, como
eleita smbolo diacrtico na relao com os djuru.
A valorizao da tradio signica fundamentalmente uma preocupao em no esquecer-se de
Nhanderu e em manter uma comunicao intensa com este por meio das rezas. Centralizado que
est nos saberes do Kara, o resgate da tradio
exige uma atitude pedaggica, de ensino-aprendizagem desses saberes. Essa pedagogia envolve a
todos, e d-se mediante um duplo movimento:
uma preocupao em ensinar, por parte das geraes mais velhas, e um interesse em aprender,
por parte das geraes mais jovens, entre estas as
cadernos de campo n. 13 2005

Kringu, de modo que tanto quem ensina como


quem aprende so considerados sujeitos no processo de ensino-aprendizagem.
O carter coletivo da noo de educao
Guarani e a inter-relao entre o ensino e a
aprendizagem podem ser notados na prpria
composio dos termos utilizados em referncia aos atos de ensinar e aprender. Os Guarani
de MBiguau se referem palavra aprender por
Nhanhembo, que traduzem literalmente como
Vamos aprender (nhanhe vamos, mbo
aprender), o que remete a uma concepo que
preza a coletividade. A partcula mbo, que foi
traduzida por meus interlocutores como aprender, tambm utilizada por estes em referncia
ao ensinar. H, portanto, uma sinonmia entre
os dois termos, o que indica uma aproximao
entre as duas aes. Em uma pesquisa etimolgica no dicionrio de Dooley (1999), pude
vericar que Nhanhembo composta pela
partcula /nha/, que indica 3a pessoa do plural,
/nhe/, que indica pronome reexivo, e /mboe/,
ensinar. Ou seja, uma traduo literal formal
deste termo seria: Ns nos ensinamos, o que
aponta para uma noo de aprendizagem como
espcie de auto-ensinamento coletivo.
O ensino-aprendizagem da tradio no se
d de modo natural, mas implica na constituio de contextos de prtica e agncia favorveis
ao desenvolvimento de processos educativos.
A construo da Op, idealizada pelo Kara,
e sua ativao como um locus de realizao de
rezas envolveu grande parte dos Guarani de
MBiguau. Fundamental foi o interesse de
alguns, dentre estes as Kringu, em aprender
cantos, danas e toque de instrumentos, mas
tambm em receber os ensinamentos referentes
ao exerccio de cura. Isso implica fundamentalmente em um ensino-aprendizado de tcnicas e posturas corporais e o desenvolvimento
de uma certa resistncia fsica e psicolgica
para se agentar (pyaguatchu) a permanncia
nas rezas, que alm de envolverem sentimentos

88 |

intensos, muitas vezes tm um longo perodo


de durao. A importncia da concentrao
(edjapychaka), de escutar seu corao e o de
Nhanderu tambm ressaltada.
Desde sua idealizao, a formao de um
Coral de Crianas esteve marcada pela inteno de constituio de um contexto de ensinoaprendizagem voltado mais especicamente
educao das Kringu. O termo pelo qual os
Guarani de MBiguau se referem palavra ensaiar o mesma pelo qual se referem palavra
aprender, Nhanhembo. Em relao de continuidade com a Op, a participao no coral
propicia uma formao no mesmo sentido.
A implantao de uma escola, do mesmo
modo, envolveu uma preocupao com a educao das Kringu. No processo de resgate
cabe s Kringu, alm do aprendizado da lngua e da histria, a problematizao de assuntos
referentes vida religiosa da aldeia, na qual elas
mesmas esto ativamente inseridas. Espao de
ensino-aprendizagem da tradio, a escola
chamada pelos Guarani de nhanhemboeaty, que
eles traduzem literalmente como lugar onde a
gente aprende.
Apesar de haver claramente uma inteno
das geraes mais velhas na formao das geraes mais novas, esta no concebida como
uma mera assimilao de saberes e exige um
envolvimento consciente e prtico das crianas.
Nas rezas e no coral, enquanto aprendem, as
Kringu simultaneamente assumem posies
que possuem importante signicao mticoreligiosa. So consideradas protetoras, auxilares (Yvyraidj) e guerreiras (Sondaro mirim
/Sondarya) e atuam como mediadoras dos
adultos na relao com dois Outros: o mundo
sobrenatural e o mundo djuru. Na escola,
o bom andamento dos projetos depende principalmente de seu envolvimento nos mesmos.
A partir do ponto de vista Guarani, pode-se
armar que aquilo que a criana aprende com
o grupo, especialmente com o Kara, consiste

apenas em meios para se atingir um tipo mais


pleno de aprendizado, aquele que se d diretamente entre o indivduo e o Nhanderu, as
divindades e os antepassados. O lder religioso
quem indica o bom caminho, aponta para
a direo que leva a Nhanderu. Cabe ao prprio indivduo, a partir de seu interesse, escolher segui-lo ou no. Como escolhedoras de
seus prprios caminhos, as Kringu seguem
de modo autnomo a direo indicada pelo
Kara, o tcherami (av).
O fato de escutarem Nhanderu no impede que tenham um certo deslumbramento
em relao aos djuru, e que estejam sempre
dispostas a realizar incurses a este outro
mundo. Mas mesmo nesses momentos
tradio que recorrem para se relacionar com
o Outro. Ao eleger o canto como modo privilegiado de comunicao intertnica, escolhem
assumir-se como crianas Guarani.
Enm, as Kringu Guarani de MBiguau
assumem em seu dia-a-dia papis de extrema
importncia para a vida social do seu grupo: so
crianas-religiosas, crianas-cantoras e crianasestudantes. Apesar da seriedade inerente a estes
papis, estas Kringu no deixam de encontrar
modos de, em meio a estas experincias, ocupar grande parte de seu tempo em brincadeiras,
ensinando aos adultos que no precisam deixar
de lado a vivncia ldica do mundo para participarem ativamente do processo de fazer-se
Guarani na atualidade.

Referncias bibliogrficas
BORGES, Paulo H. P. abr. 2002. Sonhos e nomes: as
crianas Guarani. Cadernos Cedes. Campinas: XXII
(56), pp. 53-62.
CLASTRES, Helene. 1978. Terra sem mal: o profetismo
tupi-guarani. So Paulo: Brasiliense.
CLASTRES, Pierre. [1974]. A fala sagrada. Campinas:
Papirus, 1990.
COELHO, Lus Fernando H. 1999. Canes Guarani entre os Nhandva da aldeia de Biguau. Trabalho de Concluso de Curso. Florianpolis: CEART/UDESC.
cadernos de campo n. 13 2005

NHANHEMBO:

, |

DOOLEY, Robert. 1999. Lxico Guarani, dialeto mby.


Verso para ns acadmicos. Cuiab: SIL.
JAMES, Allison & PROUT, Alan. 1997. A new paradigm for the sociology of childhood?: provenance,
promise and problems. In Constructing and reconstructing childhood. London: Falmer.
LITAIFF, Aldo. 1996. As Divinas Palavras: Identidade tnica dos Guarani Mby. Florianpolis: Edufsc.
MELI, Bartolomeu. jul.-set. 1989. La Tierra sin Mal
de los guaran: economia e profecia. Amrica Indgena. 3(XLIX), pp. 491-507.
MELLO, Flvia C. 2002. AATA TAP RUPY Seguindo
pela estrada: uma investigao dos deslocamentos territoriais realizados por famlias Mby e Chirip Guarani no
Sul do Brasil. Dissertao de Mestrado. Florianpolis:
PPGAS/UFSC.
MONTARDO, Deisy L. O. 2002. Atravs do Mbarak:
Msica e xamanismo Guarani. Tese de Doutorado. So
Paulo: PPGAS/USP.

cadernos de campo n. 13 2005

NIMUENDAJ, Curt. [1914]. As lendas da criao e


destruio do mundo como fundamentos da religio dos
Apapocuva-Guarani. So Paulo: HUCITEC/EDUSP,
1987.
PELISSIER, Catherine. 1991. The Anthropology of
Teaching and Learning. Annual Review of Anthropology. 20, pp. 75-95.
SCHADEN, Egon. 1974. Aspectos fundamentais da cultura guarani. So Paulo: EPU/EDUSP.
SILVA, Aracy Lopes; NUNES, Angela & MACEDO,
Ana Vera L. S. 2002. Crianas Indgenas: Ensaios Antropolgicos. So Paulo: Global (Coleo Antropologia
e Educao).
TOREN, Christina. 1988. Making the present, revealing de past: the mutability and continuity of tradition
as process. Man. Journal of the Royal Anthropological
Institute. 23 (4).

Oloniti e o castigo da festa errada:


relaes entre mito e ritual entre os paresi*
RENATA BORTOLETTO SILVA
Mestre em Antropologia Social pelo IFCH/
UNICAMP e doutoranda em Antropologia Social pela FFLCH/USP.
Artigo aceito para publicao em 12/07/05

resumo Este artigo se prope a realizar um

abstract This article is an ethnographic exer-

exerccio etnogrco envolvendo a descrio de um


ritual intercomunitrio conhecido como oloniti, que
coletamos entre os Paresi, grupo Arawak do Brasil
Central. O exame do ritual, em especial por sua relao de simetria e inverso com o mito denominado O castigo da festa errada, tambm oriundo dos
Paresi, permite desvelar certos cdigos que governam as relaes sociais, cdigos estes que contm,
a um s tempo, valores como a reciprocidade e a
predao. Apesar de seu carter mais marcadamente
etnogrco, acreditamos que esse caso, ora analisado, possa vir a contribuir para uma reexo terica
feita hoje na Etnologia Sul-Americana sobre o lugar
da parceria e da guerra para os povos da regio.
palavras-chave relaes entre mito e ritual,
ndios Paresi, reciprocidade, predao.

cise intending to describe an intercommunity ritual


known as oloniti, that we collected among the Paresi,
an Arawak group of Central Brazil. The study of
this ritual, especially regarding its symmetrical and
reverse relationship with the so-called myth The
punishment of the wrong party, that also originated
from the Paresi, allow to watch certain codes that
govern social relationships, and such codes consist
of values like reciprocity and predation. In spite of
its ethnographic aspect, we believe that the case
presently analyzed can contribute to a theoretical
reection done at present at South-American Ethnology about the question of war and partnership
among the people of this region.
keywords myth and ritual relationships,
Paresi indians, reciprocity, predation.

Introduo

contatos. Eles costumam referir-se a si mesmos


como haliti, categoria que possui vrios signicados, dentre eles dono e gente (Schmidt
1943: 11; Costa 1985: 50).
Habitantes imemoriais da regio sudoeste do
estado de Mato Grosso, os Paresi entraram em
contato com diferentes e, no mais das vezes, nocivas frentes de expanso, tanto de ordem econmica (minerao, extrativismo), como de ordem
religiosa (misses catlicas e protestantes), o que
levou o grupo a uma severa depopulao nos
primeiros anos de contato. Hoje, sua populao

Os Paresi falam uma lngua da famlia Arawak e somam uma populao de cerca de mil
indivduos (OPAN 1996). Eles sero aqui chamados Paresi, termo que, embora no corresponda a uma autodenominao, veiculado
na literatura etnogrca pelo menos desde o
sculo XVIII, quando ocorreram os primeiros
*

Quero agradecer a Stela Abreu, Marcio Silva e Joo


Dal Poz pela leitura minuciosa e pelas valiosas sugestes ao texto.

cadernos de campo n. 13: 91-100, 2005

92 |

encontra-se em expanso e est distribuda em


trinta aldeias ou grupos locais, freqentemente
localizados ao longo de rios.1
Muito embora a bibliograa etnogrca
recente sobre os Paresi seja razoavelmente expressiva, estamos ainda longe de ver esgotados
temas bastante elementares. A, certos aspectos
do domnio ritual aparecem muito timidamente diludos em outros temas como a histria de
contato e a poltica indigenista, interesses mais
imediatos dessas pesquisas (Costa 1985; Roberto 1994; Costa Filho 1996).
A morfologia social parece caracterizar-se por
constantes cises dos grupos locais que, por decorrncia, apresentam, em sua maioria, pequenas
dimenses e encontram-se dispersos geogracamente por um territrio relativamente vasto.
Apesar disso, as aldeias mantm um certo grau
de integrao, sobretudo aquelas de uma mesma
origem, ou seja, que so resultado da fragmentao de um nico grupo local, e costumam ligar-se por trocas matrimoniais e rituais. Uma das
formas de ocorrncia de tais associaes o ritual
do oloniti, momento em que grupos com laos
socialmente distantes se encontram e expressam
suas relaes. Seu carter conjuntivo tambm se
expressa simbolicamente, como procuraremos
demonstrar neste exerccio analtico, de tal modo
que valores como a generosidade e a reciprocidade so continuamente evocados durante o ritual. Alm disso, o caso paresi pode se tornar um
exemplo etnogrco interessante, vindo a contribuir para uma reexo bastante atual na Etnologia Sul-Americana sobre o lugar da reciprocidade
e da guerra nos esquemas sociais da regio (Viveiros de Castro 1986; McCallum 1990; Rivire
1. Estive entre os Paresi nos meses de outubro de 1996
a janeiro de 1997, quando realizei meu trabalho de
campo para a pesquisa de mestrado junto ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social pela
UNICAMP. Os dados aqui arrolados esto contidos
na dissertao de mestrado que resultou dessa pesquisa (Bortoletto 1999).

2001; Fausto 2001), uma vez que o ritual evoca,


seja como possibilidade, seja como efetivao, a
predao em seu quadro geral. Passemos a ele.

Etnografia do oloniti
Oloniti o nome dado principal festa dos
Paresi. Esse tambm o termo usado para a bebida fermentada, feita com o polvilho torrado
da mandioca brava (Manihot esculenta), servida
durante o ritual. A festa motivada pelos seguintes acontecimentos: nominao da criana,
iniciao feminina e cura de doenas. Apesar de
ocasies aparentemente dspares, h algo que
une esses momentos, pois em todos eles trata-se
de receber um nome, novo no caso do batizado,
reforado no caso da iniciao e da cura.
Assim, o rito tem um papel na produo da
pessoa, pois para os Paresi o nome o esprito
da pessoa e serve para dar vida (Costa 1985:
188). Liga-se ainda fertilidade da natureza,
uma vez que apresenta ntima relao com as
fases do ciclo produtivo. Ele realizado durante
a seca, entre os meses de abril e setembro, perodo de colheita da mandioca e no qual a caa
mais abundante (Rondon & Faria 1948: 58;
Costa 1985: 167; Rowan & Rowan 1972: 67).
A oferta de comida e bebida em grande
quantidade a condio material da realizao do ritual. J as condies sociolgicas e
cosmolgicas so garantidas pela presena dos
convidados que so, via de regra, indivduos de
grupos locais relativamente afastados no cotidiano e, como veremos, simbolizam os espritos que acedem ao ritual. Tais requisitos podem
ser depreendidos na maneira como feito o
convite para as grandes festas de chicha, oloniti
kalorec (kalorec = grande), ou seja, para aquelas em que concorrem vrias aldeias. Depois
que os caadores retornam da caada, o dono
da festa, harekahar, ou um outro homem da
aldeia, sai levando uma corda feita de tucum na
qual so feitos ns indicando os dias que faltam
cadernos de campo n. 13 2005

OLONITI

: |

para o incio da festa. Chegando aldeia a ser


convidada, o dono da festa profere, no ptio
central, o manati, uma dissertao histrica
ou religiosa que se faz nos festivais (Rondon
& Faria 1948: 52). Como introduo do convite, relatado o mito da origem da mandioca,
conforme o qual uma menina, aborrecida com
o desprezo com que era tratada pelo pai, pede
sua me que a enterre no mato. Do corpo da
menina surge a mandioca. Depois de contado
o mito, assim se expressa o dono da festa:
Morreu muita ema, muito veado, muito peixe
e mais caa ainda, obtendo como resposta do
mais velho da aldeia:
Morreu muita ema, muito veado, muito peixe e
mais caa ainda: ns vamos para a festa de vocs
(Pereira 1986: 128).

Aceito o convite, as pessoas arrumam seus


pertences e prontamente seguem o dono da festa at a aldeia antri. Chegando l, a entrada
no ocorre imediatamente. Eles permanecem na
regio que circunda a aldeia e se vestem com roupas especialmente reservadas para essas ocasies.
Mais tarde, os primeiros convidados, apenas os
homens, adentram o ptio da aldeia. Dois dentre
eles so designados zekhatihareze, aproximadamente festeiro malvado (Costa 1985: 177), e
empunham varas compridas com penachos em
suas pontas denominadas iohoho, com as quais
batem nas casas onde esto as mulheres da aldeia
antri: a simulao do ataque cessa com a chegada dos antries trazendo chicha. Num dos
lados da aldeia, juntam-se todos os homens para
quebrar o tanoh, duas varas de tamanhos diferentes que so colocadas sobre duas estacas xas
ao cho e rompidas pelos homens com a utilizao de seus ombros. As varas quebradas, pintadas
com crculos feitos de urucum, so entregues aos
donos da festa e levadas em seguida para a casa
das autas, Ymaka, permanecendo ali durante
um tempo e depois dispensadas.
cadernos de campo n. 13 2005

Ymaka ou jararaca , segundo Pereira (1986:


31), o nome dado s autas secretas, as quais as
mulheres no devem avistar. Tais objetos cam
cotidianamente guardados numa casa especialmente construda para elas e denominada ymaka
han (em que han = folha, casa). Ao contrrio
das malocas paresi, com duas portas voltadas para
o nascente e poente, as casas das autas possuem
apenas uma porta, sobre o eixo norte-sul.2
Um dos temas que subjaz ao oloniti diz respeito precisamente aos oferecimentos que se faz
aos espritos. Como mencionado, alguns desses
espritos so personicados em instrumentos
musicais, tais como ymaka. Essa associao
entre instrumentos musicais, em especial os
aerofnicos, e espritos poderosos e perigosos
bastante difundida em grupos das Terras Baixas
da Amrica do Sul, sejam eles Arawak ou no.
Do mesmo modo a interdio ligada s mulheres tambm comum e aparece referenciada
pela mitologia com base na posse ancestral que
elas tinham do instrumento e lhes foi roubada
pelos homens (Piedade 2004: 111-ss).
No ritual do oloniti, alm de ymaka, h
tambm xhali, um outro tipo de auta que entra tambm em cena. Ao contrrio da ymaka,
xhali ca guardado cotidianamente dentro de
casa, no sendo interdito s mulheres. A referida auta, cujo nome o mesmo que se d aos
2. interessante notar que, embora no sendo Paresi,
a interdio foi estendida a mim, o que se vericou
tambm com uma pesquisadora que esteve entre os
Wauj, grupo Arawak do Alto Xingu (Piedade 2004).
No entanto, Gregor (1982), em seu trabalho entre
os Mehinku, os quais tambm tm restries a que
as mulheres do grupo avistem as autas, nos faz o
seguinte relato: quando mulheres Txico, um outro
grupo xinguano, em visita aos Mehinku, adentraram a casa das autas, no sofreram a punio esperada, o estupro, segundo os Mehinku, por no serem
mulheres do grupo. Desse modo, o fato de ter sido
proibida de presenciar a dana com as ymaka indica
que, para os Paresi, eu era mulher antes de ser branca,
ou seja, ao contrrio dos Mehinku, a prevalece o
gnero em detrimento da origem do indivduo.

94 |

besouros (Coleptero, indistintamente), uma


vez que o formato circular e achatado da auta
lembra o inseto, ca guardada em um bornal
pendurado na haste principal da casa.3 Ambos,
ymaka e xhali, so instrumentos de posse
individual e sua transmisso se d de pai para
lho. Porm, para quem os possui, e tambm
em relao aos parentes prximos do dono, so
exigidos oferecimentos cotidianos de carne,
beiju e chicha, caso contrrio tais espritos podem trazer malefcios aos seus donos.
H ainda outros seres para os quais possvel
estabelecer relaes com oloniti. So os donos
de alguns animais consumidos pelos Paresi, tais
como o dono das emas e dos veados campeiros,
Enohar (Pereira 1986: 21), e o dono do queixada grande, Ahzay (Pereira 1987: 463). Para
esses so feitos oferecimentos cotidianos porta
da casa das autas, bem como nos rituais.
Se no houver os cuidados regulares para
com os espritos, sejam eles personicados ou
no nas autas, esses podem se indispor com
os humanos causando-lhes doenas bem como
outros infortnios. Alm dos oferecimentos, h
tambm uma srie de tabus a serem obedecidos
quando da preparao dessas festas, tais como
as interdies sexuais, dentre outras que, se no
forem seguidas, podem ocasionar malefcios ao
descumpridor e aos seus parentes prximos.
Voltando ao esquema do rito, temos que a
quebra de Tanoh seguida pela entrega das
autas sagradas pelos antries aos convidados
que, por sua vez, deixam a aldeia em direo ao
mato. A passagem das Ymaka vem a indicar
uma associao, j apontada por outra autora
(Costa 1985: 180; 184), entre homens e espritos que ocorre no ritual. Segundo os Paresi,
quem, de fato, participa da festa so os espritos: eles bebem a chicha, cantam e danam.
Vejamos isso mais de perto.

3. Segundo os Paresi, nem todas as casas tm a auta xhali,


assim como nem todos os homens tm auta secreta.

Convidados e anfitries
A entrada das mulheres no ritual nos ajuda
a esclarecer melhor a posio de convidados e
antries na festa. Elas entram na aldeia depois
dos homens e so recebidas apenas pelas antris
que as encaminham para os locais onde caro
as redes. Os homens retornam ao ptio da aldeia
onde, empunhando outras varas, novamente atacam a casa onde esto agora todas as mulheres.4
Dessa perspectiva, os ataques s casas onde esto as mulheres nos levam a pensar que a clave antrio/convidado pode corresponder a uma outra,
de carter sexual, que ope mulheres e homens.
Como se viu, so todas as mulheres que vo para
casa (ocupando a posio de antries, de dentro),
enquanto os homens esto no ptio (na posio
de convidados, de fora). Alm disso, os antries
levam a chicha para os convidados, desempenhando uma tarefa que feminina no cotidiano.
Alm das questes de gnero, oloniti imprime tambm nas relaes entre convidados e
antries sentimentos de hostilidade prprios
aos ans. O canto chamado Zeratyalo em
que zerati signica cantar (Rondon & Faria
1948: 70), e cujo nome designa um dos tipos
de auta5 apresenta motivos que evidenciam
4. As convidadas, durante o ataque realizado pelos homens casa, permanecem ajeitando suas redes e os seus
pertences, enquanto as antris continuam seus afazeres, enchendo os baldes de chicha que os antries vm
apanhar, dentre outras tarefas. Dito de outro modo,
no interior da casa, o clima predominante no o de
temor pelos ataques sofridos da parte dos homens.
5. A informao que me foi dada em campo fazia aluso
a quatro tipos de autas, a saber, amore, tzyr, zertyalo, xhali. J Pereira (1986: 31) refere-se a, alm destas, outras nove: hit, hwerare, txeyxikahar, imkolo,
zolh, kaxie, tiryama, ayririkwar e walalos. Imkolo,
foi dito por um informante ser uma das varas com
as quais os homens atacam as casas. J walalos corresponde, segundo outro informante, a um momento
ritual que ocorre dentro da casa e tem como instrumento musical xhali, como veremos adiante. Kaxie
tambm o nome dado auta de P, Zer.
cadernos de campo n. 13 2005

OLONITI

: |

certos conitos entre sogro e genro. Vejamos


ento,
Abandone Uati
Meu genro Macaquarece
No tem nada
Meu genro preguioso
No se v servio dele
(...)
Nem jacar tem pra comer
Eu mesmo cuido de ti
Minha lha Cahala.
(Rondon e Faria 1948: 78)

Essas e outras canes com as ymaka estendem-se at por volta das duas horas da madrugada, quando essas ltimas so guardadas na
casa das autas, e os homens ainda de braos
dados adentram a casa onde est a chicha. Com
a entrada dos homens na casa, as mulheres, que
at esse momento descansavam em suas redes,
preparam-se para danar o zolane, termo para o
qual no obtive traduo, mas que Rondon &
Faria (1948: 72) e Costa (1985: 183) armam
tratar-se de um instrumento musical.
A dana cessa nos momentos em que os antries oferecem bebida e comida aos cantadores
e danadores, precisamente as pessoas que mais
bebem durante uma festa. A obrigao de aceitar chicha est embutida na prpria designao de convidado, oloniti hoaher, aquele que
bebe chicha (Rowan e Rowan 1972: 67; Costa
1985: 170). A chicha (de mandioca e abacaxi)
trazida pelos festeiros bebida em quantidade
pelos convidados at provocar o vmito.
Esses oferecimentos, por sua vez, podem
apresentar um carter ambguo. De um lado, tal
obrigao parece ter conotao semelhante quela dos Wari descritos por Vilaa (1992), para os
quais as ofertas constantes de chicha aos convidados at que esses morram so tidas como
uma vingana pela destruio que provocaram s
casas dos antries. No caso aqui em questo, o
cadernos de campo n. 13 2005

mesmo parece se dar, pelo menos num determinado momento, j que, segundo Costa (1985:
181), os festeiros malvados, aqueles que primeiro
adentraram a aldeia empunhando as varas com as
quais batiam nas casas, bebem mais porque devem ser punidos por terem danicado as casas.
De outro lado, interessante contrapor aqui
um trecho retirado de uma cano enunciada
quando se fazia a preparao para a festa do Kotitiko. Diziam os cantadores: estamos cantando
bonito, nos d chicha. Nesse perodo da preparao apenas participam os co-antries, alm
de partes do ritual serem suprimidas, sobretudo
aquelas que simulam ataques guerreiros. Parece-nos, assim, que a diferena nos atributos associados bebida, ora como punio, ora como
graticao, corresponde a diferenas atribudas
aos participantes: para os primeiros, tidos nesse
momento como inimigos, a chicha viria a domestic-los; j para os segundos, parentes prximos, a chicha viria a gratic-los.
O momento ritual descrito at aqui parece
expressar-se, portanto, por uma certa agressividade e, conseqentemente, caracteriza-se pela
potencialidade dos conitos. Tal carter tornase mais evidente pelos acontecimentos que descreverei a seguir.
Estes fatos tm lugar apenas durante a primeira noite de execuo da dana no interior
da casa, num determinado momento em que
os cantos que tm como temas certos mitos so
substitudos por improvisaes que versam sobre
fatos do cotidiano, em especial relaes extraconjugais ou outros fatos geradores de intrigas e
desentendimentos que envolveram a platia presente, colocando em perigo o convvio social, e
que so relatados e discutidos abertamente.6 As
6. Assim, diferena das improvisaes que marcam os
cantos dos caadores guayaki, belamente descritos por
Clastres (1990), atravs dos quais esses homens procuram proclamar a sua individualidade, e, portanto,
uma armao do indivduo, so a vida em sociedade
e os problemas que colocam em risco uma convivncia

96 |

atitudes dos convidados para com os antries


a essa altura da festa no se caracterizam pela
polidez. H, por exemplo, inmeros relatos de
brigas ocorridas durante as festas, o que muitas
vezes resulta na sada antecipada de um grupo de
convidados, antes do m do ritual.
ainda durante essa etapa do ritual que os
homens deixam a maloca e se dirigem casa das
autas com alimentos recebidos. L, as pores
so distribudas entre os ocupantes, que ento
retornam maloca, levando nesse instante a
auta denominada xhali. A referida auta, cujo
nome o mesmo que se d aos besouros, uma
vez que seu formato lembra o inseto, ca guardada em um bornal pendurado no esteio principal
da casa. Nos dias de festa, enquanto tocada,
predomina um clima de euforia geral em que os
convidados tentam destruir objetos da casa, vomitar sobre a comida, ou ainda apagar o fogo.
A, como se referiu um informante, j uma
questo de baguna. Os donos da casa, na tentativa de proteger alimentos e outros pertences,
tentam escond-los do ataque dos convidados.
A inteno no a de consumir tais bens, como
ocorre em situaes similares descritas para outras sociedades, como em um ritual dos Cinta
Larga, grupo Tupi Mond que habita a poro
noroeste do estado de Mato Grosso, relatado por
Dal Poz (1991). Entre os Paresi, o intuito o da
destruio de tais bens. De qualquer modo, ambos parecem evocar um potlatch, instituio de
troca total descrita por Mauss (1974), em que o
ofertante, ao se despojar de todos os seus bens,
submete o convidado, que se torna um devedor
e dever retribuir com outro, porm mais considervel do que aquele que recebeu.
No dia seguinte, os homens costumam iniciar um dos dois jogos comumente praticados
nas festas paresi: zicunati e tirimore.7 Tais disputas
harmoniosa, os temas para os cantos e as improvisaes
paresi que ocorrem durante a primeira noite do ritual.
7. O primeiro, no qual dois times compostos de trs a
dez jogadores se enfrentam, tem como objetivo evitar

apresentam um carter fortemente ritualizado e,


por essa razo, devem ser distinguidas de outras
modalidades, como os campeonatos de futebol,
de que tambm participam os Paresi,8 uma vez
que nos confrontos rituais as equipes devem se
enfrentar at que ambas tenham obtido a vitria
(Costa 1985: 408; Machado 1994: 102). Podemos, inclusive, fazer um contraponto dos jogos
rituais com as partidas de futebol que acontecem
entre as aldeias.
Assim, a diferena entre as partidas de futebol e os jogos tradicionais pode ser melhor
esclarecida ao recorrermos s sugestes feitas
que a bola feita de mangaba caia no cho, utilizando
para isso a cabea. Ganha aquele que conseguir lanar
trs bolas no campo adversrio, um retngulo traado
no ptio da aldeia. J tirimore, do qual participam duas
equipes ou apenas dois indivduos, consiste em arremessar manualmente uma bola de marmelo com o objetivo
de atingir duas estacas de arame ncadas no solo e sobre
as quais espetam-se dois gros de milho. Os jogadores
posicionam-se a cerca de dez metros das estacas que devem acertar. Muito embora os jogos aconteam nas festas, eles no esto circunscritos apenas a essas ocasies.
Para que um jogo de bola de cabea ocorra, basta que
uma aldeia convide outra que, por sua vez, no pode
recusar o convite, que os Paresi chamam de desao
(Costa 1985: 406). Este o termo usado para descrever a forma como se do os convites para as lutas entre
os Mehinku do Alto Xingu. Um outro ponto comum
com os vizinhos xinguanos que entre esses as lutas no
cam restritas aos rituais, podendo acontecer no cotidiano, quando se enfrentam pessoas de uma mesma
aldeia. J nos rituais, os times que entram na disputa
so compostos por pessoas das aldeias antris contra
as dos convidados. Atualmente, as apostas restringem-se
aos bens ditos de imoti (branco) sabo, fsforos, linha,
agulha , mas antigamente apostavam-se arcos, echas
e machados (Faria 1924: 272), ou ainda alguns homens
podiam apostar suas irms (Costa 1985: 406-ss).
8. Os Paresi realizam em alguns nais de semana, competies semelhantes aos nossos campeonatos, das
quais participam equipes de futebol de grande nmero de grupos locais. Tambm como nos nossos
torneios, l os times se enfrentam at que o melhor
classicado seja considerado vencedor, com direito
inclusive a um trofu.
cadernos de campo n. 13 2005

OLONITI

: |

por Lvi-Strauss (1970b: 54) sobre a distino entre rito e jogo. O jogo, por seu carter
disjuntivo, resulta em uma diviso diferencial
entre jogadores individuais ou equipes, que no
eram designados, a princpio, como desiguais.
No entanto, no m da partida, distinguir-se-o
em vencedores e perdedores. De maneira simtrica e inversa, o ritual conjuntivo, uma vez
que, de uma diferenciao inicial, institui uma
unio ao nal. Nessa perspectiva, nas partidas
de futebol paresi, terminada a competio, os
homens voltam s suas respectivas aldeias, alguns como vencedores, outros como perdedores. De modo inverso, percebemos nos jogos
que acontecem durante um ritual, que tero
continuidade em outras ocasies para que, enm, terminem empatado, ou seja, at que os
oponentes terminem iguais, como no ritual.
Essa igualdade est tambm relacionada
a um outro aspecto desse momento ritual, a
saber, preparao pelas mulheres, a partir da
mandioca dgua, do kazalo, em substituio
ao oloniti (chicha), no mais ingerido. Kazalo,
feito na tarde do segundo dia do ritual, uma
bebida doce servida quente. Ao contrrio do
oloniti, cuja ingesto exagerada provoca o vmito, kazalo no ingerido para ser vomitado. Do
mesmo modo como armou Dal Poz (1991)
para uma das bebidas rituais dos Cinta Larga
que, por ser bebida exageradamente e provocar
o vmito no serve como alimento, o oloniti
tambm possui o carter de anti-alimento.
Assim, a mudana do tipo de bebida consumida marca, ao meu ver, a distino entre dois
momentos do ritual. O primeiro descrito at
aqui, consistiu na chegada dos festeiros, bem
como na primeira execuo da dana no ptio
com as ymaka e da dana na maloca, cujo nal
culminou com a destruio dos bens dos antries por convidados bagunceiros. Uma segunda
fase, que j comeamos a descrever, tem incio
com os jogos entre as equipes formadas por antries e convidados, seguido pelo banho no rio
cadernos de campo n. 13 2005

e a nominao, bem como pelas novas execues


da dana na casa e com a ymaka. O ponto nal
dessa segunda fase corresponde aos pedidos de
presentes pelos convidados. Vamos a ele.
J quando os convidados preparam-se para
deixar a aldeia, acontece a dana da formiguinha, zok-zok. Esse termo designa a formigade-fogo ou lava-ps (Solenopsis sp). Esse momento,
assim como os ocorridos no interior da casa,
marcado por grande descontrao. Um ou mais
homens convidados colocam-se porta da casa
onde a festa se realizou e, com passos curtos de
dana vo e vm na direo da casa, solicitando
roupas, alimentos, os de linha, animais, assim se
expressando textualmente: A formiga de fogo j
vai embora. Ela mora longe e quer alguma coisinha para a viagem (Roquette Pinto 1950: 346).
Os moradores que permanecem dentro da casa
depositam, do lado de fora, os presentes no cho e
respondem, a cada entrega, de acordo com o que
foi pedido. Assim, para oloniti: Toma o resto da
chicha que oferecemos a ymaka.
A referncia formiga nessa parte do ritual
parece-me associar-se a uma caracterstica do animal de apanhar e levar nas costas para a casa alimentos que encontre pelo cho. Os Paresi fazem
o mesmo nesse momento ritual e vo para casa
carregando os presentes. Alm disso, no zok-zok
que presenciei, o ltimo pedido, proferido num
tom de brincadeira ainda maior, tinha como objeto uma criana da casa. Anunciaram o nome da
menina e completaram dizendo que ela j estaria
grande quando voltassem.9 Todos riram, o grupo
se desfez e comeou a partida.

Mito e ritual
O percurso seguido na descrio dos passos do ritual procurou evidenciar dois de seus
9. Nesse caso, o rito promove uma inverso da prtica
social, uma vez que a regra de uxorilocalidade temporria, seguida pelos Paresi, faz com que o homem se
mude para a aldeia do sogro e no o contrrio.

98 |

momentos que nos parecem distintos e correspondentes a atributos e comportamentos diferenciados que se associam aos convidados da
festa. H um mito, denominado O castigo da
festa errada (Pereira 1986: 424-26) que, por
conter a imagem invertida dos procedimentos considerados corretos no ritual, ajuda-nos
a elucidar esses aspectos do ritual. O mito, em
resumo, conta que:
As pessoas de uma aldeia preparavam-se para
dar uma festa. O dono da festa resolveu ento
sair para caar, enquanto as mulheres cavam na
aldeia preparando a chicha. Seu lho, que vivia
sempre junto das mulheres, no quis acompanh-lo. Quem seguiu o caminho do pai foi sua
lha, que estava perto da primeira menstruao.
Nesse caminho passou por um morro, uma
baixada at chegar ao mato, onde nalmente
encontrou o pai. Surpreso com a chegada da
menina, o pai a repreendeu pois estava perto
da menarca e por esse motivo no deveria estar
l, mas em casa. A menina respondeu que sabia
disso, mas quis vir assim mesmo e foram pescar.
Foi no rio que a garota menstruou, mas nada
disse ao seu pai. Dormiram beira do rio. Enquanto dormiam, seres espirituais denominados
homens do mato e homens da gua foram se
aproximando, at que mataram e comeram pai
e lha. Depois disso os espritos, transformados
nos humanos que haviam matado, tomaram o
caminho da aldeia.
L, sabendo da menstruao da menina, sua
me, que no percebeu que a lha havia se
transformado em homem do mato, mandou-a
para o quartinho de recluso. A menina dormia
muito e se recusava a tomar banho.
Nos dias seguintes comearam a chegar os convidados. O dono da festa-homem do mato, em
vez de faz-lo ele mesmo, mandou que os outros
levassem chicha aos convidados no acampamento da festa. De novo recusou-se a levar chicha
para os convidados que tocavam a auta secreta,

assim como no ofereceu carne de caa a eles.


Ao invs disso, fumava os cigarros preparados
para a ocasio. A moa, por sua vez, recusava-se
a danar com os moos.
A um sinal dos espritos que se apresentavam
sob a forma de pai e lha, outros espritos adentraram a aldeia matando e comendo todos os
participantes.
O no retorno dos convidados s aldeias de origem comeou a despertar preocupao em seus
parentes, que foram tentar descobrir o que acontecera. Ento, um esprito lhes falou que todos
haviam morrido porque Enohar mandara os
homens do mato e da gua mat-los e com-los,
como punio a alguns fatos ligados festa como
a menina ter sua primeira menstruao no mato
e homens e mulheres terem relaes sexuais durante a preparao da bebida fermentada.

O mito acima descrito contm vrias passagens do ritual paresi de iniciao feminina, s
que os apresenta de maneira invertida ao modo
como deveriam ocorrer. Seno vejamos.
Em relao aos procedimentos correspondentes fase de preparao do ritual, a menina
deve permanecer em recluso, tendo contato
apenas com a me e a irm do pai at que chegue
a sua primeira menstruao. Sua sada do quarto,
onde esteve reclusa, s ocorre durante o segundo dia do ritual quando, acompanhada por dois
rapazes, corre em direo ao rio para banhar-se.
Posteriormente, a inicianda participa da festa,
devendo danar com os rapazes, numa atitude
de plena disposio para com os convidados.
Esses ltimos, durante a festa, devem fartar-se
de bebida, servida insistentemente pelo dono da
festa. Por m, os convidados pedem presentes
aos antries, para s depois irem embora.
Por sua vez, o mito, como para anunciar
um conjunto de inverses que vo se suceder,
tem incio com um absurdo, no apenas do
ponto de vista do ritual como da prpria vida
social, ao relatar que uma moa menstrua no
cadernos de campo n. 13 2005

OLONITI

: |

mato quando deveria estar em recluso, e que o


irmo no acompanha o pai na caada, cando
com as mulheres na aldeia. Alm disso, quando
pai e lha voltam, homens do mato, na verdade, escapam s suas obrigaes de doadores
em relao aos convidados, receptores.
O interesse da Etnologia pelas relaes entre
mito e ritual remonta a Durkheim e Malinowski, dentre outros importantes autores, mas
apenas a partir de Lvi-Strauss que tais relaes
deixam de ser tomadas unicamente como redundncia. Conforme nos mostra Lvi-Strauss
(1970a: 255) ao comparar um mito Pawnee
com ritos dos Mandan e Hidatsa, povos das
plancies norte-americanas, essa relao no se
funda em uma espcie de causalidade mecnica, mas no plano de uma dialtica acessvel
somente sob a condio de ter, previamente,
reduzido ambos a seus elementos estruturais.
assim tambm que, no caso paresi, reduzindo o mito O castigo da festa errada e o
rito de iniciao feminina a alguns de seus elementos estruturais, podemos visualizar ento
os contrastes encontrados.
Rito: enquanto as mulheres permanecem na aldeia, os homens
saem como caadores.
Mito: enquanto o lho permanece com as mulheres na aldeia,
pai e lha tornam-se caa.
Rito: quando entram na aldeia, os convidados transformam-se
em espritos ancestrais.
Mito: quando esto no mato, os homens do mato transformamse em antries.
Rito: antries do em excesso aos convidados-espritos ancestrais, que nunca recusam.
Mito: homens do mato-antries sequer fazem oferecimentos
aos convidados, que sempre pedem.
Rito: convidados-espritos ancestrais pedem presentes para levarem, quando sarem da aldeia.
Mito: antries desmascarados trazem outros homens do mato
para dentro da aldeia, a m de devorarem os convidados.

Tais contrastes, agrados na comparao entre mito e ritual merecem alguns comentrios:
cadernos de campo n. 13 2005

em primeiro lugar, o mito, pela imagem invertida


que fornece, chama a ateno para a importncia
dos oferecimentos para o bom desfecho da festa.
Como vimos, no oloniti, as atitudes dos convidados, a princpio pouco amistosas, vo sendo
modicadas. O motor de tal transformao nos
parece ser a bebida, posto que ela servida sobretudo nos momentos em que os convidados
se mostram mais perigosos: quando tentam destruir a casa com as varas e no momento em que,
j no seu interior, tentam destruir tudo o que
nela se encontra. Alm disso, quando os convidados vo adquirindo boas maneiras, j no segundo dia do ritual, e comeam os jogos que, como
observamos, apresentam um carter conjuntivo,
de aproximao entre os participantes, a bebida
substituda: oloniti no ser mais ingerido e kazalo, bebida adocicada consumida como alimento
no cotidiano, ou seja, nos momentos em que se
est entre iguais, passa a ocupar o seu lugar.
A substituio da bebida aparece ainda associada a outras oposies que diferenciam o
momento ritual que se inicia. Primeiramente, a
ordem das danas invertida, pois se no primeiro dia a dana com ymaka precede aquela no
interior da casa, no segundo, com a dana no
interior da casa que a noite se inicia. Em segundo
lugar, durante a dana na maloca j no acontecem mais as improvisaes dos cantos relatando
brigas e desentendimentos entre os participantes,
bem como no se praticam mais ataques s casas
ou aos bens nelas contidos, indicando mudanas
nos atributos associados aos convidados.
Nesse sentido, as relaes com os convidados,
vistas no incio sob o signo da inimizade e do
conito, rumam para um nal em que o acento
colocado sobre a parceria e a troca entre os grupos envolvidos. Digo isso me amparando no fato
de que a continuidade nos rituais enunciada
em vrios de seus momentos: nos jogos que tero
seqncia at que terminem empatados, no momento da partida, quando se pede uma menina
dizendo que viro busc-la numa ocasio futura,

100 |

ou ainda porque, ao aceitar o convite, o convidado se v obrigado a retribuir.


Por outro lado, ao aproximarmos oloniti a outros rituais de grupos lingisticamente aparentados ou geogracamente prximos, percebemos
que nesses ltimos o prprio ritual encerra uma
troca, j que o convidado retribui durante a execuo da festa os presentes recebidos, seja levando o peixe, como entre os Enawene Nawe (Silva
1998), seja entregando o artesanato, no caso dos
Cinta Larga (Dal Poz 1991). J no ritual paresi
o antrio o nico doador: de bebida, comida,
roupas, artesanato, dentre outros bens. Porm,
assim como aqueles, oloniti tambm instaura
reciprocidade, mas aqui, esta se desenrola em
um ciclo longo, com desdobramentos num momento futuro quando houver a retribuio dos
presentes, completando um ciclo de troca.
Enm, o rito parece se constituir em um
circuito de trocas diferidas, ou seja, em que as
posies de doadores e receptores no so intercambiveis e que agrega tambm em si o tema
da predao, seja esta como possibilidade, como
nos mostra a narrativa mtica, em que a recusa
em oferecer leva a um desfecho de guerra e canibalismo, seja efetivamente pelas atitudes dos
convidados que pedem o tempo todo, chegando a destruir bens e alimentos dos antries.

Referncias bibliogrficas
BORTOLETTO, Renata. 1999. Morfologia social paresi:
uma etnograa das formas de sociabilidade em um grupo
Aruak do Brasil Central. Dissertao de Mestrado em
Antropologia. Campinas: IFCH/UNICAMP.
COSTA, Romana M. 1985. Cultura e Contato: um estudo
da Sociedade Paresi no contexto das relaes intertnicas.
Dissertao de Mestrado em Antropologia. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ.
COSTA FILHO, Aderval. 1996. Mansos por natureza:
situaes histricas e permanncia Paresi. Dissertao de
Mestrado em Antropologia. Braslia: Departamento
de Antropologia/UnB.
CLASTRES, Pierre. 1978. O arco e o cesto. In A Sociedade contra o Estado. Rio de janeiro: Francisco Alves,
pp. 71-89.

DAL POZ, Joo. 1991. No pas dos Cinta Larga: uma etnograa do ritual. Dissertao de Mestrado em Antropologia. So Paulo: PPGAS/USP.
FARIA, Joo Barbosa. 1924. Zicunati. Boletim do Museu Nacional. 1(4): 271-73.
FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos is: histria, guerra e
xamanismo na Amaznia. So Paulo: EDUSP.
GREGOR, Thomas. 1982. Mehinku: o drama da vida
diria em uma aldeia do Alto Xingu. So Paulo: Ed.
Nacional; Braslia: INL (Col. Brasiliana 373).
LVI-STRAUSS, Claude. 1970a. Estrutura e Dialtica. In Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, pp. 254-63.
_____. 1970b. A cincia do concreto. In O pensamento
selvagem. So Paulo: Companhia Editora Nacional,
pp.19-55.
MACHADO, Maria F. R. 1994. ndios de Rondon. Rondon
e as linhas telegrcas na viso dos sobreviventes Wimare
e Kazniti, grupos Paresi. Tese de Doutorado em Antropologia. Rio de Janeiro: Museu Nacional/UFRJ.
MAUSS, Marcel. 1978. Ensaio sobre a ddiva. Forma e
razo da troca nas sociedades arcaicas. In Sociologia e
Antropologia, vol 2. So Paulo: Edusp, pp. 37-184.
OPAN. 1996. Levantamento de dados do povo Paresi (Banco de Dados).
PEREIRA, Adalberto. 1986. O pensamento mtico do Paresi (primeira parte). Pesquisas, Antropologia. So Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas.
PIEDADE, Accio. 2004. O canto do Kawok: msica,
cosmologia e losoa entre os Wauj do Alto Xingu. Tese
de Doutorado em Antropologia Social. Florianpolis:
PPGAS/UFSC.
RIVIRE, Peter. 2001. A Predao, a Reciprocidade e o
Caso das Guianas. Mana. 7(1): 31-53.
RONDON, Candido. M. & FARIA, J. B. 1948. Esboo gramatical; vocabulrio; lendas; e cnticos dos ndios
Ariti (Pareci). Conselho Nacional de Proteo aos ndios. Rio de Janeiro: Comisso Rondon, 78.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. 1950. Rondnia. Bibl. Pedag. Bras. 39. So Paulo: Companhia Editora Nacional.
ROWAN, Orland & ROWAN, Philips. 1972. Dicionrio: Parecis-Portugus e Portugus-Parecis. Braslia: SIL.
SCHMIDT, Max. 1943. Los Paressis. Revista de la Sociedad Cientica del Paraguay. 6(1): 1-294.
SILVA, Marcio. 1998. Tempo e Espao entre os Enawene Nawe. Revista de Antropologia. 41 (2): 21-52.
VILAA, Aparecida. 1992. Comendo como gente. Rio de
Janeiro: ANPOCS/UFRJ Editora.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Arawet: os
deuses canibais. ANPOCS/Zahar.

cadernos de campo n. 13 2005

Relendo Walter Benjamin: etnografia da msica,


disco e inconsciente auditivo*
ANDR-KEES DE MORAES SCHOUTEN

GIOVANNI CIRINO

Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/


USP, membro do Ncleo de Antropologia da
Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e
bolsista FAPESP.

Mestrando em Antropologia Social pela FFLCH/


USP, membro do Ncleo de Antropologia da
Performance e do Drama (NAPEDRA/USP) e
membro do Grupo de Som e Msica em Antropologia (SOMA/USP).

Artigo aceito para publicao em 05/09/05

resumo Conforme Walter Benjamin apontou

abstract According to Walter Benjamins es-

em seu ensaio A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica, diante das modernas tcnicas
de reproduo a arte v-se destituda de sua aura,
fundamento de sua autenticidade. Para o autor, s
seria possvel mostrar as condies sociais de tal decadncia entendendo-a no como perda de importncia da arte no mundo moderno, mas sim como
alteraes no medium de percepo contemporneo.
Tratando do cinema e da fotograa, diz Benjamin
que a reproduo tcnica tanto autonomiza a arte
de sua existncia no ritual, inserido-a agora numa
prxis poltica, como as obras que reproduz permitem acessar o inconsciente ptico da sociedade moderna. Partindo das sugestivas idias deste autor, e
tomando como objeto de reexo o disco, procuramos nesse trabalho explorar algumas possibilidades
de tratamento etnogrco do material fonogrco
no mbito de uma etnograa da msica, procurando neste material algo alm de sua capacidade de
testar hipteses.
palavras-chave teoria crtica e etnograa
da msica, reproduo tcnica da msica (disco),
medium de percepo contemporneo, inconsciente
auditivo.

say The work of art in the age of mechanical reproduction the arts aura, its autenticity basis, is
destroyed facing modern techniques of reproduction. For this author, we can show the social conditions of this decadence understanding it not as a
reduction of the importance of the art in the modern world, but as alterations on the contemporary
perception medium. Analysing the cinema and the
photography, Benjamin writes that the thecnical reproduction emancipates the art from its parasitary
existence inside the ritual, and puts it in the political praxis, as well as the works that it reproduces give
access to the optical unconscious of the modern society. From the suggestive ideas of this author, and
assuming the record as reection object, we would
like to explore some possibilities of ethnographic
treatment for phonographic material, in the range
of ethnography of music, searching in this material
something beyond its capability to test hypothesis.
keywords critic theory and ethnography of
music, technical reproduction of music (record),
contemporary perception medium, aural unconscious.

Verso revista e ampliada do trabalho apresentado


na 24 Reunio Brasileira de Antropologia, FP 25:
Perspectivas antropolgicas das sensibilidades musicais contemporneas, coordenado pelas professoras

cadernos de campo n. 13: 101-114, 2005

Elizabeth Travassos (Instituto Villa-Lobos PPGM/


UNIRIO) e Santuza Cambraia Naves (PUC/RJ
NUM/CESAP/UCAM). Olinda, junho de 2004.

102 | -

Introduo
Apesar de realizarmos pesquisas um tanto
distintas (as prticas da msica popular instrumental na cidade de So Paulo e a experincia
do serto na obra fonogrca de Elomar Figueira Mello), temos nos discos um importante
material, o que nos colocou s voltas com um
problema comum:1 seria possvel um tratamento etnogrco deste material fonogrco ou, em
outras palavras, que lugar ele ocuparia no contexto de um empreendimento etnogrco? O
que por ora apresentamos so algumas ponderaes acerca das possibilidades de tal tratamento no mbito de uma etnograa da msica.
De incio, apresentamos a maneira como
Anthony Seeger (1992) e John Blacking (1995)
entendem a noo de etnograa da msica, salientando a posio que reservam aos discos e
outros meios tcnicos de captao e reproduo
sonora. Para esses autores, dada a capacidade
que trazem de iludir quanto essncia humana
da msica (o fazer musical), tais meios no forneceriam chaves signicativas para a compreenso da natureza do discurso musical, servindo
apenas como ferramentas no teste de hipteses
junto aos msicos e sua audincia. Indagamos ento se no seria possvel tratar esta iluso
auditiva produzida pelos meios tcnicos como
constituinte do fazer musical contemporneo,
tentando trazer os discos para o foco central
do empreendimento etnogrco. Nesta tentativa que encontramos amparo na (re)leitura
de Walter Benjamin, cujas idias so alvo de
ateno no segundo momento do texto.2
1. Agradecemos ao nosso orientador, professor John
Cowart Dawsey, por nos ter apontado esta comunho problemtica, sugerindo que trabalhssemos
juntos sobre ela. O presente trabalho surge, ento,
como tentativa de responder ao desao apontado.
2. Neste sentido, o presente trabalho dialoga com o ensaio do antroplogo Jos Jorge de Carvalho, Transformaes da sensibilidade musical contempornea

No ensaio A obra de arte na era da sua


reprodutibilidade tcnica ([1936] 1985d;
[1955] 1992), o crtico alemo prope que a
cmara seria capaz de nos conduzir ao inconsciente ptico da sociedade contempornea,
uma vez que sua linguagem essencialmente
diferente daquela do olho humano. neste
sentido que procuramos reler Walter Benjamin, interrogando pela pertinncia de se pensar
a reproduo tcnica como capaz de produzir
efeito anlogo na apercepo musical, ou seja,
se a diferena de linguagem entre gravador e
ouvido humano no nos permitiria acesso ao
inconsciente auditivo. Para tanto, resgatamos
tambm o dilogo com seu parceiro intelectual
Theodor Wiesengrund Adorno em Idias para
a sociologia da msica ([1959] 1983a) e O
Fetichismo na msica e a regresso da audio
([1963] 1983b), procurando passar da imagem
ao som tecnicamente reprodutvel.
Feita esta arriscada incurso em certos
campos de caa da teoria crtica, procurando
salientar, no dilogo estabelecido entre Adorno e Benjamin, como a reproduo tcnica
(visual/musical), na sua diferena de linguagem, se relaciona com o acesso ao inconsciente
(ptico/sonoro), passamos ao terceiro e ltimo
momento, buscando retornar a paragens mais
antropolgicas.
Na leitura dos autores acima, foi possvel
perceber que eles lanam mo de certas noes
da psicanlise para enfrentar os problemas de
comunicao colocados pelas inovaes tcnicas, pela reproduo tcnica. Na antropologia
moderna, um dos primeiros a indicar uma
aproximao entre etnologia e psicanlise foi
Marcel Mauss, como nos lembra Claude LviStrauss em sua clebre Introduo obra de
(1999), onde procura reetir sobre tais mudanas a
partir das profundas transformaes na tecnologia
da produo musical contempornea. Como aqui,
o autor tambm recorre aos pensamentos de, entre
outros, Benjamin e Adorno.
cadernos de campo n. 13 2005

: , |

Marcel Mauss ([1950] 2003), armando ser


esta uma das caractersticas mais signicativas
do modernismo do outro.3 Mas se possvel relacionar os pensamentos de Mauss e Benjamin
a partir da psicanlise, uma outra opo, talvez
mais frutfera para este trabalho, seja enfocar
as maneiras como ambos encaram as relaes
entre tcnica e corpo, na tentativa de entender
os problemas que a linguagem tcnica coloca
comunicao humana.
Ao nal retornamos ao problema inicial,
qual seja, a compatibilizao entre discos e etnograa da msica, procurando costurar algumas consideraes acerca das possibilidades de
tratamento etnogrco do material fonogrco,
numa perspectiva que incorpore a iluso auditiva trazida pela tcnica de reproduo sonora
como parte do fazer musical contemporneo.

Com Seeger e Blacking: discos e etnografia da msica


Entendemos etnograa da msica nos
termos denidos por Anthony Seeger e John
Blacking, ou seja, como (...) escrita sobre as
maneiras que as pessoas fazem msica (Seeger
1992: 89, traduo nossa), prtica que exige
do pesquisador uma abordagem atenta ao fazer musical, obrigando-o a incluir na sua visada no s os sons produzidos, mas tambm
os seres humanos envolvidos na sua realizao
(dos msicos audincia), perseguindo as maneiras como concebem, produzem e apreciam
estes sons, assim como inuenciam outros indivduos, grupos, processos sociais e musicais,
3. Assim, Mauss no apenas estabelece o plano de trabalho que ser, de forma predominante, o da etnograa
moderna ao longo dos dez ltimos anos, mas percebe
ao mesmo tempo a conseqncia mais signicativa dessa nova orientao, isto , a aproximao entre etnologia e psicanlise (Lvi-Strauss [1950] 2003: 13). Um
pouco mais frente, Lvi-Strauss adverte ainda que O
problema etnolgico portanto, em ltima anlise, um
problema de comunicao (...) (idem: 29).
cadernos de campo n. 13 2005

sendo a msica entendida como um sistema de


comunicao utilizado pelos membros de uma
comunidade para se comunicarem com outros
membros (Seeger 1992; Blacking 1995).
Essa combinao discos e etnograa da
msica a princpio pode soar estranha, pois se
so as pessoas que fazem msica para outras ouvirem, a ateno demasiada aos discos perderia
de vista o fazer musical. Isto porque, segundo
esses autores, todo o aparato tcnico-eletrnico de captao e reproduo sonora utilizado
em nossa sociedade, captando e reproduzindo
apenas o aspecto acstico da msica, criariam
uma iluso auditiva (Seeger 1992) ou de objetividade (Blacking 1995), como se os sons pudessem ser produzidos independentemente da
ao humana, confundindo quanto
(...) essncia do fazer musical e da compreenso
musical [que] so os atos humanos de produzir sentido com os smbolos musicais atravs da composio, da performance e da audio (Blacking 1995:
229; traduo nossa).

De acordo com os autores, ento, dada sua


caracterstica ilusria, os meios tcnicos de registro e reproduo sonora no so capazes de
fornecer chaves signicativas para a compreenso da natureza do discurso musical quando
muito so boas ferramentas de pesquisa, pela
sua capacidade de testar hipteses (Blacking
1995); bem como so em parte responsveis
pela confuso entre msica e som na sociedade
contempornea (Seeger 1992).
Mas graas a esses meios tcnicos que ns,
pelo menos desde meados do sculo XX, ouvimos grande parte da msica que conhecemos:
msicas do mundo inteiro nos so acessveis
por meio de discos, tas e rdios. E mesmo
que aquela iluso auditiva no seja caracterstica da prpria msica, mas um aspecto dos
meios tcnicos utilizados, preciso lev-la em
considerao e no descart-la para tentar

104 | -

entender o que seria fazer msica com o auxlio


de tais meios. Em outras palavras, mais do que
iludir quanto essncia humana da msica, a
iluso auditiva que acompanha a tcnica de reproduo participa criativamente do fazer musical contemporneo, provocando alteraes
na concepo, na produo e na apreciao das
msicas que reproduz.
Como certa vez armou Walter Benjamin ([1929] 1985a), de nada adianta apontar
no enigmtico seu lado enigmtico, j que o
mistrio s desvelado na medida que o encontramos no cotidiano, graas a uma tica
dialtica que permita ver o cotidiano como
impenetrvel e o impenetrvel como cotidiano.4 Em busca do aspecto produtivo que a
iluso auditiva assume quando a msica passa
a ser tecnicamente reprodutvel que nos propusemos a reler Walter Benjamin. Partindo de
uma armao feita em seu ensaio A obra de
arte na era da sua reprodutibilidade tcnica
([1936] 1985d; [1955] 1992), indagamos: da
mesma maneira que a (...) cmara leva-nos ao
inconsciente ptico, tal como a psicanlise ao
inconsciente das pulses (...) ([1936-1955]
1992: 105), o gravador seria capaz de nos conduzir ao inconsciente auditivo?

Com Benjamin e Adorno: reproduo


tcnica, inconsciente tico e apercepo
No ensaio acima referido, dirigindo a palavra aos crticos de arte de sua poca, Walter
Benjamin defende que os valores artsticos
encerrados na fotograa, mas sobretudo no
cinema, j no so apreensveis pelos conceitos tradicionais criatividade e gnio, validade
eterna e estilo etc. , exigindo a formulao de
4. A este procedimento Walter Benjamin deu o nome
de iluminao profana, que no ser tratado no
presente trabalho. Para uma exposio de tal procedimento, ver o ensaio O surrealismo o ltimo instantneo da inteligncia europia ([1929] 1985a).

novos conceitos em teoria da arte. Para ele, isto


s possvel entendendo quais as novas exigncias que o cinema, fruto da tcnica de reproduo artstica, impe ao modo de percepo do
homem contemporneo (condicionado natural
e historicamente). Segundo o autor, a apercepo5 de um lme exige de seu espectador um
estado de descontrao, atitude bem diferente da ateno e do recolhimento diante de um
quadro, por exemplo. A atitude crtica que o
cinema requer de seu pblico se d na descontrao, sendo o pblico caracterizado por ele
numa frmula um tanto paradoxal: um examinador distrado (Benjamin [1936] 1985d;
[1955] 1992).
Para o autor, o que caracteriza o lme no
s a forma como o homem se apresenta diante do equipamento de registro, mas tambm
como, com a ajuda deste, reproduz o seu meio
ambiente. Embora reconhecendo que a psicologia do desempenho ilustra a capacidade de
teste do equipamento, ele prefere abordar tal
fato a partir de um dilogo com a psicanlise:
(...) o cinema enriqueceu o nosso horizonte de
percepo com mtodos que podem ser ilustrados pela teoria freudiana (Benjamin [1955]
1992: 102).

Vale lembrar que Walter Benjamin no est


propondo nenhuma espcie de psicanlise do
social a ser feita atravs do cinema, mas que
as alteraes produzidas pela linguagem cinematogrca na percepo que o homem contemporneo tem de si e do seu meio (natural
e histrico) so comparveis s alteraes que
a psicanlise trouxe para a compreenso que o
indivduo tem de sua psique. Ou seja, da mesma maneira que a psicanlise tornou possvel
5. apercepo s. f. 1. Ao ou faculdade de perceber. 2.
Conscincia imediata de si e do mundo. 3. Intuio;
percepo. (Grande Dicionrio Larousse Cultural da
Lngua Portuguesa 1999).
cadernos de campo n. 13 2005

: , |

ao indivduo apreender seu eu mais secreto, tomar conscincia das formas de atividade de seu
inconsciente individual, o cinema possibilitou
ao homem contemporneo acesso ao inconsciente da sociedade onde est inserido.
Para o autor, assim como o trabalho de
Freud6 permitiu isolar e analisar o que antes
passava despercebido no uxo do perceptvel,
como um lapso numa conversa que transcorre
supercialmente, levando agora abertura de
perspectivas profundas, o cinema teria como
conseqncia um aprofundamento semelhante
da apercepo, j que os desempenhos em um
lme podem ser analisados com maior exatido e sob mais pontos de vista do que aqueles
apresentados num quadro ou no palco. Arma
ento que atravs dos grandes planos, do realce de pormenores escondidos nos aspectos do
cotidiano, e na explorao dos ambientes mais
banais pela direo genial da objetiva, o cinema foi capaz de aumentar a compreenso das
imposies que regem nossa existncia, assim
como nos assegurou um novo campo de ao
imenso e insuspeitado. E no apenas porque a
cmara e seus meios auxiliares revelam motivos
conhecidos em movimento, mas antes por descobrir nesses movimentos conhecidos outros,
desconhecidos. E isso torna compreensvel que
a natureza da linguagem da cmara seja diferente da linguagem do olho humano. Diferente, sobretudo, porque ao invs de um espao
preenchido conscientemente pelo homem,
surge um outro preenchido inconscientemente
(Benjamin [1936] 1985d; [1955] 1992).7
Feita esta rpida apresentao do problema
em Benjamin, possvel indagar: a tcnica de
6. Benjamin se refere ao Psicopatologia da Vida Quotidiana, de Sigmund Freud. Para as relaes do pensamento benjaminiano com a teoria freudiana ver o
trabalho de Srgio Paulo Rouanet (1981).
7. Esta discusso j havia sido feita por Benjamin num
ensaio anterior: Pequena histria da fotograa
([1931] 1985b).
cadernos de campo n. 13 2005

reproduo sonora teria, na apercepo contempornea, um efeito anlogo tcnica cinematogrca? O ouvinte de discos, tas e rdios
seria capaz de se colocar no mesmo estado de
descontrao que o cinema exige de seu espectador? E sendo a linguagem do gravador diferente da linguagem do ouvido humano, seria
possvel falar num espao sonoro preenchido
inconscientemente? Neste ponto a leitura dos
textos de Theodor Wiesengrund Adorno nos
ajuda nessa difcil passagem da imagem ao som
tecnicamente reprodutvel.8
Para Walter Benjamin, o seu ensaio A obra
de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica
([1936] 1985d; [1955] 1992) e o de Adorno
O Fetichismo na msica e a regresso da audio ([1963] 1983b), so duas abordagens diferentes do mesmo fenmeno, onde ele procura
articular os momentos positivos daquilo que o
outro ressalta como negativos, apontando para
uma possvel mediao dialtica entre seus pontos de vista na anlise do lme sonoro.9 Esta
8. Para uma brilhante e instigante exposio das convergncias e divergncias entre os pensamentos de
Benjamin e Adorno, neste e noutros confrontos que
marcaram ambas as produes, ver o trabalho de Flvio Ren Kothe (1978).
9. In my essay [The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction] I tried to articulate positive
moments as clearly as you managed to articulate
negatives ones. Consequently, I see strengths in your
study at points where mine was weak. (...) An analysis of the sound lm would constitute a critique of
contemporary art which would provide a dialectical
mediation between your views and mine (Benjamin
[1938] 1994: 140). Como lembrou Flvio Ren Kothe (1978), tanto Benjamin quanto Adorno, nestes
e em alguns outros ensaios da mesma poca, tinham
como preocupao comum decadncia como problema da arte moderna, apresentando todavia propostas diferentes no enfrentamento da questo. Nas
palavras de Flvio Kothe: Enquanto Adorno enfatiza
o desenvolvimento autnomo das tcnicas da obra de
arte, Benjamin enfatiza a ligao e o condicionamento delas em relao s tcnicas de produo social
(1975: 32).

106 | -

ida s idias de Adorno acerca da msica contempornea nos autoriza, na chave da relao
entre reproduo tcnica e inconsciente, pensar
num paralelo auditivo do inconsciente ptico
de Benjamin, mas que olhe positivamente para
a tcnica de reproduo musical, ou seja, vendo
a inovao tcnica na msica no do ponto de
vista do desenvolvimento autnomo das tcnicas da obra de arte, mas do seu condicionamento em relao s tcnicas de produo social.
No referido ensaio, Theodor W. Adorno
arma que a atual msica de massas encontra
na descontrao o seu modo de comportamento perceptivo, lembrando que a observao de Walter Benjamin quanto apercepo
de um lme em estado de distrao vlida
tambm para a msica ligeira. No entanto,
arma tambm que, se o lme enquanto totalidade adequado apreenso em estado de
descontrao, a audio desconcentrada torna
impossvel apreender uma totalidade (Adorno
[1963] 1983b). Assim, ao mesmo tempo em
que Adorno reconhece a possibilidade da apercepo musical na descontrao, ele aponta
que, ao contrrio do que Walter Benjamin v
no cinema, a tcnica de reproduo na msica no se apresenta como um progresso, mas
como um retrocesso.10 O autor parece dizer: h
um ouvinte descontrado, mas que incapaz de
10. A ttulo de ilustrao da maneira como os autores
entendem a relao entre tcnica e arte, citamos aqui
estes dois trechos: (...) o conceito de tcnica pode
ajudar-nos a denir corretamente a relao entre tendncia e qualidade (...). Se em nossa primeira formulao dissemos que a tendncia poltica correta de uma
obra inclui sua qualidade (...), porque inclui sua tendncia (...), possvel agora dizer, mais precisamente,
que essa tendncia (...) pode consistir num progresso
ou num retrocesso da tcnica (...) (Benjamin [1934]
1985c: 122-123); O que decide se uma determinada
tcnica pode ser considerada racional e constitui um
progresso, o sentido original, a sua posio no conjunto social e no conjunto da obra de arte concreta e
individual (Adorno [1963] 1983b: 189).

atitude crtica semelhante ao espectador distrado do lme.


Neste ponto caberia uma indagao a
Adorno: se disco e lme tm seu fundamento
na tcnica de reproduo, e se tanto espectador quanto ouvinte so capazes da apreenso
desconcentrada, por que essa apreenso no
permite ao ltimo vislumbrar a totalidade?
No outro ensaio Idias para a sociologia da
msica ([1959] 1983a) Adorno nos oferece
algumas pistas para responder a esta questo.
Em suas palavras:
A msica, tomada em conjunto, particularmente apropriada para ideologia, pois a ausncia de conceitos permite que os ouvintes se
sintam como seres de sentimento, que associem
livremente, que pensem o que quiserem. Ela
funciona como realizao dos desejos, como
satisfao substitutiva, mas sem que o mecanismo seja evidente, como o no lme (Adorno
[1959] 1983a: 262).

Em outras palavras, o ouvinte descontrado no capaz de perceber a totalidade porque o mecanismo de realizao dos desejos no
evidente. E isso acontece, segundo o autor,
dada a natureza no-conceitual da msica que,
a despeito de sua gura e sentidos prprios,
contribui para o que chama de ideologia do
inconsciente; e como esfera cultivada da irracionalidade em meio ao mundo racionalizado,
ela acaba por justicar a perpetrao da irracionalidade global (Adorno [1959] 1983a).
possvel perceber que aqui Adorno est
pensando com Max Weber e, seguindo com
ele, ressalta que a categoria da racionalizao
decisiva para a sociologia da msica, corroborando a tese weberiana de que a histria
da msica ocidental a de uma progressiva
racionalizao.11 No entanto, lembra o autor
11. Weber, Max. Os Fundamentos Racionais e Socio-

lgicos da Msica ([1911] 1995).


cadernos de campo n. 13 2005

: , |

que a racionalizao apenas um de seus aspectos sociais, como a racionalidade ela prpria
Aufklrung um momento na histria da
sociedade, e que no interior do movimento
progressivo de desencantamento do mundo do
qual participou, a msica foi tambm a voz do
que cara para trs no caminho dessa racionalidade, ou do que dela fora vtima. Diz ainda ser
esta a contradio social que est no centro da
msica, e tambm a tenso da qual a produtividade musical tem-se alimentado na sociedade
moderna. Feita esta crtica a Max Weber, o autor ento arma que:
Por seu puro material a msica a arte em que os
impulsos pr-racionais e mimticos se armam
irredutivelmente, entrando ao mesmo tempo
em constelao com as tendncias ao progressivo domnio da natureza e dos materiais. Da a
sua transcendncia em face da engrenagem cotidiana da auto-conservao (...). Se que efetivamente ela vai alm da mera repetio do que
j existe, ser por essa razo. Mas pela mesma
razo, por outro lado, que ela to apropriada
constante reproduo da estupidez. O que faz
dela mais que mera ideologia tambm o que
mais facilita a caricatura ideolgica. Como campo delimitado e cultivado da irracionalidade em
meio ao mundo racionalizado, ela se transforma
no estritamente negativo, tal como racionalmente planejado, produzido e administrado pela
indstria da cultura de massas em nossos dias. S
por fora da racionalidade a msica pode ultrapass-la (ibidem).

Para Adorno, ento, essa irracionalidade da


msica socialmente manipulada seria um dos
fenmenos que exprimiriam um nexo social
de maior alcance: o predomnio da produo. Conceito que para ele no deve ser posto
como absoluto, assim como no deve ser identicado produo social de bens. Tendo isso
em mente, arma ser possvel distinguir entre
cadernos de campo n. 13 2005

dois momentos da produo musical: o da autonomia da exigncia expressiva e da lgica do


objeto, que diz ser respeitada pelo compositor;
e o das leis de produo de bens para o mercado, mesmo que estas possam penetrar nos momentos estticos mais sublimes. Diz ainda que
a tenso entre os dois momentos essencial na
esfera da produo, uma vez que o nexo imanente da motivao musical no corre inteiramente fechado, ou seja, ao mesmo tempo em
que a msica se desdobra segundo sua prpria
lei que secretamente social , tambm
movimentada e desviada no interior do campo
das foras sociais.
Da o autor armar a necessidade da dupla
abordagem que prope em sua sociologia da
msica, fugindo das aproximaes externas entre obras do esprito e relaes sociais: partindo
de uma anlise tcnica e sionmica que d
sentido e nome ao momento formal como momento de signicao musical e da passando
sociedade, levando assim com que os constituintes formais da msica, sua lgica, falem
em termos sociais. E isso no signica procurar
elos intermedirios entre a msica ou o autor
de determinada poca e a sociedade na qual foi
produzida mas, como apontou Gabriel Cohn
ao introduzir as idias de Adorno, signica
(...) procurar a marca dessa sociedade na tessitura
das obras mesmas, nos problemas que o compositor enfrentou para dar conta do material musical ou seja, do conjunto de elementos tcnicos
e construtivos historicamente constitudos de que
dispunha e nas solues encontradas na efetuao da lgica interna da lei formal(...) (Cohn
1986: 20).

Mas voltemos ao dilogo com Walter Benjamin. Como transparece nestas palavras de
Cohn em referncia a Adorno, os dois autores
partem da comum idia que o contedo espiritual s se realiza nas obras de arte mediante

108 | -

categorias tcnicas,12 ou seja, pelo agenciamento de tcnicas de que o artista dispe para
levar suas aspiraes subjetivas a se superar
na objetividade do material e da forma. Mas
se para Benjamin a tcnica de reproduo no
cinema constitui um avano da tcnica cinematogrca, para Adorno ela constitui um retrocesso da tcnica musical, da ele chamar a
apercepo descontrada da msica ligeira de
audio regredida. Como apontam, tanto
o lme quanto a msica ligeira13 so adequados apercepo em estado de descontrao.
No entanto, como quer Adorno, s o primeiro possibilita a apreenso de uma totalidade
nesse estado, pois s nele o mecanismo inconsciente de realizao dos desejos se torna
evidente. Em outras palavras, a tcnica de reproduo s tecnicamente conseqente no
12. curioso como esta armao, a princpio to losca, dialtica e materialista, prxima daquela
feita por Marcel Mauss ao apresentar a importncia
da noo de habitus que introduz na discusso sociolgica: preciso ver tcnicas e a obra da razo
prtica coletiva e individual, l onde geralmente se v
apenas a alma e suas faculdades de repetio ([1950]
2003a: 404).
13. preciso considerar que, ao longo dos dois textos,
Adorno utiliza diversos adjetivos ao se referir msica sria, ligeira, de massas, de entretenimento e
artstica , que devem ser entendidos no como denies taxativas que separe esta daquela msica, e
sim como um conjunto de noes que devem ser
entendidas em suas relaes e oposies ao longo do
texto. Da a diculdade em especicar como ele entende cada uma delas. Mesmo assim possvel dizer,
num resumo empobrecedor, que nos dois trabalhos
msica sria e msica ligeira surgem em oposio,
sendo a msica sria (grande msica) entendida por
ele como a msica tradicional da Europa Ocidental, a
msica ligeira parece identicada msica popular e
em especial ao jazz; a msica de entretenimento est
associada ao jazz comercial, sendo ao mesmo tempo
msica ligeira e de massas; e por m a msica artstica
seria aquela que, realizando uma msica de massas
tecnicamente conseqente, afasta-se das massas, em
busca de seu prprio destino.

cinema porque o espectador capaz de, pelos


valores do sentido, acessar os valores do esprito. Como armou Benjamin:
O lme serve para exercitar o homem nas novas
percepes e reaes exigidas por um aparelho
tcnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho
tcnico do nosso tempo o objeto das inervaes
humanas essa a tarefa histrica cuja realizao d ao cinema seu verdadeiro sentido (Benjamin [1936] 1985d: 174).

exatamente este exerccio nas novas percepes e reaes exigidas por um aparelho tcnico
que Adorno v faltar na atual msica de massas,
fazendo esta tecnicamente inconseqente:
Como quer que seja no cinema, a atual msica
de massas pouco apresenta deste progresso no
desencantamento. Neste tipo de msica nada
mais forte e mais constante que a aparncia
externa, e nada mais ilusrio do que a objetividade (Adorno [1963] 1983b: 188).

Mesmo assim o autor acredita ser possvel


uma msica de massas tecnicamente conseqente, que chama de msica artstica, capaz
de fugir rotina do sempre igual, mesmo que
para isso ela perca as caractersticas que a torna
aceita pelas massas; isto , o momento de sua
produo, orientada com vistas a respeitar a autonomia da exigncia expressiva e da lgica do
objeto, procura se esquivar das leis de produo
de bens para o mercado.
Se estendermos o raciocnio de Adorno seria possvel dizer que, entre todas as msicas
adequadas a apercepo em estado de descontrao, somente na msica artstica a tcnica de
reproduo produz efeitos comparveis aos que
Benjamin v no cinema, ou seja, a experincia do inconsciente auditivo. Mas para que tal
experincia seja possvel, para que a inovao
cadernos de campo n. 13 2005

: , |

tcnica permita este acesso, necessria uma


nova atitude, um adestramento da percepo
do homem contemporneo, sendo capaz de se
colocar em descontrao. Assim percebemos
que no possvel uma reexo sobre a tcnica,
por mais autnoma que seja, que no considere
tambm uma educao do corpo, ou melhor,
que no considere as atitudes exigidas pelo aparelho tcnico.
Vista desse ngulo, e por mais paradoxal
que possa parecer, essa discusso encontra ressonncia tambm nas preocupaes de Marcel
Mauss apresentadas em seu Tcnicas do corpo ([1950] 2003), uma vez que toda a reexo
apresentada ali parte da observao emprica
sobre as variaes de atitude que os homens
apresentam, de sociedade em sociedade, no
emprego de suas tcnicas. Em busca de tal ressonncia que iniciamos o terceiro e ltimo momento deste trabalho.

Com Benjamin e Mauss: corpo,


tcnica e sociedade
Uma boa maneira de iniciar o dilogo entre
as idias de Marcel Mauss e Walter Benjamin
talvez seja indagar como o primeiro classicaria, de acordo com suas propostas para o estudo dAs tcnicas do corpo ([1950] 2003a),
aquela atitude apresentada pelo examinador
distrado, vendo a o produto da aplicao de
uma possvel tcnica da descontrao.
Nessa comunicao feita Sociedade de Psicologia em 1934 e publicada no ano seguinte
pelo Journal de Psychologie, Marcel Mauss expe aquilo que v como um novo campo de
estudos a ser explorado: o das tcnicas do corpo. Aps apresentar como entende a noo (ato
tradicional ecaz; srie de atos montados no
indivduo, por sua educao e pela sociedade,
com a nalidade de adaptar o corpo ao seu uso,
e que podem ser ordenados num sistema de
montagens simblicas), Mauss faz uma longa
cadernos de campo n. 13 2005

considerao sobre as maneiras de se classicar


tais tcnicas (por sexo e idade, rendimento e
transmisso; ou ainda pela enumerao biogrca, pela distribuio ao longo do curso de vida
do indivduo), concluindo com consideraes
gerais acerca do exposto anteriormente. Vale
lembrar que, neste clssico da antropologia,
mais do que elaborar a teoria geral das tcnicas
do corpo que diz ser possvel, Mauss apresenta
uma espcie de plano de trabalho aos etngrafos, indicando aquilo que se est por fazer para
que tal teoria possa ento ser levada a cabo.
De certa maneira, ao nos debruarmos sobre
a atividade descontrada, a atitude desconcentrada do espectador/ouvinte descrita por Walter Benjamin,14 procuramos retomar esta velha
pauta de trabalho.
Para que o indivduo se torne um examinador distrado, se coloque em descontrao,
preciso o adestramento da percepo, a educao de seus sentidos, em suma, de seu corpo.
Dessa forma, e seguindo os princpios de classicao inicialmente propostos por Mauss, a
tcnica da descontrao poderia ser abordada
do ponto de vista da natureza de sua educao
e adestramento, da transmisso da forma das
tcnicas:
4) transmisso da forma das tcnicas. ltimo
ponto de vista: o ensino das tcnicas sendo
essencial, podemos classic-las em relao
natureza dessa educao e desse adestramento.
E eis aqui um novo campo de estudos: incontveis detalhes inobservados, e cuja observao
deve ser feita, compem a educao fsica de
14. Lembramos que Benjamin, na primeira verso do ensaio sobre a arte tecnicamente reprodutvel ([1936]
1985d), tece consideraes sobre a reproduo tcnica da msica pelos discos, numa analogia tcnica
cinematogrca, comentrios que esto ausentes na
segunda verso. De qualquer forma, e pelo exposto
anteriormente, j devemos estar autorizados a armar
que espectador e ouvinte apresentam a mesma atitude desconcentrada, seja diante do lme ou do disco.

110 | -
todas as idades e dos dois sexos (Mauss [1950]
2003a: 411).

Como havia apontado Walter Benjamin, o


cinema cumpre a funo de educar os sentidos
para a descontrao, j que
O lme serve para exercitar o homem nas novas
percepes e reaes exigidas por um aparelho
tcnico cujo papel cresce cada vez mais em sua
vida cotidiana (Benjamin [1936] 1985d: 174).

possvel perceber, na enumerao biogrca das tcnicas do corpo apresentada por


Mauss, que o ensino tcnico dos indivduos
inicia-se na mais tenra idade e se prolonga at
a idade adulta, tendo seu momento decisivo
na adolescncia, sobretudo nos ritos de iniciao. Quanto s tcnicas da idade adulta especicamente que nos interessam aqui , o
autor diz ser possvel distinguir entre tcnicas
do sono e da viglia e, nesta, entre atividade
e repouso, podendo este ltimo ser ativo ou
passivo, frisando que as tcnicas de repouso
ativo dizem respeito no s esttica, mas
tambm aos jogos do corpo (Mauss [1950]
2003a).
Dito isto, e aceitando que a descontrao
caracterstica do examinador distrado de Benjamin alcanada por meio de um adestramento tcnico, de uma educao dos sentidos,
a tcnica da descontrao poderia ser abordada no s pela forma de sua transmisso, mas
tambm como uma das tcnicas da viglia do
repouso ativo. Dessa maneira, a formulao
paradoxal de um examinador distrado encontra seu princpio de classicao na formulao
no menos paradoxal de uma atividade realizada em repouso, repouso ativo. Mas por que
paradoxal?
Como apontou Marcel Mauss ao apresentar
as tcnicas da viglia, inicialmente atividade e
repouso encontram-se em oposio:

3) Tcnicas da atividade, do movimento. Por denio, o repouso a ausncia de movimentos,


o movimento, a ausncia de repouso ([1934]
2003a: 416).

Mesmo iniciando sua argumentao sobre


as tcnicas da viglia contrapondo atividade e
repouso, possvel perceber que ele substitui
o primeiro termo por movimento. Tal substituio, que poderia passar despercebida, revela algo importante na sua argumentao: se o
repouso no mais ausncia de atividade, mas
de movimento, ento a ausncia de movimento, que o repouso, no exclui a atividade. Ou
seja, sem tal operao seria impossvel considerar toda uma srie de atividades que perpassam
os momentos de repouso, da alimentao
conversao, mas sobretudo as atividades estticas e os jogos do corpo, sendo os dois ltimos
associados mais diretamente ao que Mauss chamou de repouso ativo. Tambm a apercepo
desconcentrada de um lme uma atividade
realizada em repouso, j que sua fruio esttica s possvel na medida que o espectador
esteja distrado, como defendeu Walter Benjamin contra os crticos de arte de sua poca, incapazes de ver na descontrao a possibilidade
de uma atitude crtica.
Para exemplicar uma atividade esttica realizada no repouso ativo, Mauss apresenta a noo de dana do repouso, partindo da diviso
proposta por von Hornbostel e Curt Sachs entre
danas de repouso e danas de ao. Ao mesmo
tempo em que admite esta diviso, aponta que
os autores so vtimas do mesmo erro fundamental em que vivia parte da sociologia naquele
tempo, qual seja, acreditarem que as sociedades
se repartiriam em sociedades de descendncia
masculina ou descendncia uterina, associando
assim danas de ao s primeiras e danas de repouso s outras. Arma ainda que Sachs (1933)
classicou um pouco melhor tais danas em extrovertidas e introvertidas, dizendo ento que
cadernos de campo n. 13 2005

: , |
Estamos em plena psicanlise, provavelmente
bastante fundamentada aqui. Em verdade, o
socilogo deve ver as coisas de modo mais complexo ([1950] 2003a: 417).

Deixando de lado a polmica em torno de


sociedades e descendncias, possvel indagar:
por que Mauss diz que estamos em plena psicanlise? E o que quer dizer quando arma que
o socilogo deve ver as coisas de modo mais
complexo?
Recorremos mais uma vez a Claude LviStrauss. Como dito anteriormente, na sua
Introduo obra de Marcel Mauss ([1950]
2003), este aponta como uma das caractersticas fundamentais do modernismo do seu
antecessor, o fato de Mauss ter indicado a
aproximao entre etnologia e psicanlise,
expressa sobretudo no recurso s noes de
categoria inconsciente e de categoria do pensamento coletivo, chamando a ateno para
a especicidade do uso que faz na anlise etnolgica:
O problema etnolgico portanto, em ltima
anlise, um problema de comunicao; e essa
constatao deve bastar para separar radicalmente esta via seguida por Mauss, identicando inconsciente e coletivo, da de Jung (...). Pois no
a mesma coisa denir o inconsciente como uma
categoria do pensamento coletivo ou distingulo em setores, conforme o carter individual ou
coletivo do contedo que se lhe atribui (LviStrauss [1950] 2003: 29).

Assim, ao mesmo tempo em que Mauss se


aproxima da psicanlise recorrendo noo
de inconsciente, ele se afasta ao associ-la a
pensamento coletivo, e muito provavelmente o faz por acreditar que os atos praticados
pelos indivduos, mais do que mera expresso
da educao individual, trazem as marcas da
sociedade em que esto inseridos, devendo
cadernos de campo n. 13 2005

assim ser abordados da perspectiva do homem total.15


Em Benjamin trata-se da mesma operao,
lidando tambm com um problema de comunicao: tanto o inconsciente de que fala
coletivo inconsciente ptico da sociedade
contempornea quanto a atitude desconcentrada do examinador distrado no expresso
apenas do comportamento individual, mas reveladora tambm das condies sociais de uma
poca determinada. Desta maneira possvel
perceber a aproximao estabelecida por Walter Benjamin entre crtica de arte e psicanlise
como similar que Mauss props entre esta e
a etnologia: assim como Benjamin percebe no
cinema, enquanto obra tecnicamente reprodutvel, uma linguagem capaz de dar acesso
ao inconsciente ptico da sociedade moderna,
Mauss v nas tcnicas do corpo uma linguagem que permite acompanhar a atividade do
inconsciente.
Antes de passarmos s consideraes nais,
h ainda uma distncia entre as idias de Mauss
e Benjamin que precisa ser superada aqui: pois
se o primeiro trata de uma tecnologia sem instrumentos, o outro est falando de uma tecnologia com instrumentos. Esta distncia deve ser
percorrida, indicando os caminhos que ligam
os dois pontos.
o prprio Mauss quem nos oferece o
termo mediador entre estas aparentemente diferentes tecnologias. Pois se ele adverte que
preciso no incorrer no erro de achar que s
h tcnica onde h instrumento, cuidado que
o fez empreender toda a enumerao e descrio daquela innidade de tcnicas corporais,
isso no signica que d pouca importncia s
tcnicas onde h instrumentos. Pelo contrrio,
15. Esta noo foi discutida por Mauss dez anos antes,
em outra comunicao feita mesma Sociedade de
Psicologia e publicada no Journal de Psycologie et Pathologique: Relaes reais e prticas entre a psicologia
e a sociologia ([1950] 2003b).

112 | -

e deixando de lado o recurso ao cinema para


explicar como o modo de caminhar de suas enfermeiras americanas migrou para o corpo das
moas nas ruas de Paris, Mauss chega a cunhar
um termo para designar tal arranjo: a formao
de pares mecnicos com o corpo, alvo de um
estudo dos movimentos mecnicos que, segundo ele, j vinha sendo empreendido por Reulaux e Farabeuf, demonstrando a relevncia do
tema. Mesmo assim, inconteste a precedncia que d para as primeiras, j que, nas suas
palavras, antes das tcnicas de instrumentos,
h o conjunto das tcnicas do corpo (Mauss
[1950] 2003a: 407).
Mesmo que Walter Benjamin esteja nos falando da mais emancipada de todas as tcnicas,
a reproduo tcnica, e mesmo tendo dito que
a fotograa s revelou suas verdadeiras potencialidades no momento que o rosto humano
deixou de gurar em seu centro, ele no negaria a precedncia do corpo, de suas tcnicas.
Pelo contrrio, pois todas as energias revolucionrias contidas no cinema dissipariam no ar se
antes o espectador no fosse capaz de se colocar
em descontrao.
Enquanto um habitus16 pois disto que se
trata! a atitude desconcentrada no s fruto da educao individual do espectador que se
distrai, mas tambm das condies sociais de
uma poca, de uma sociedade cuja tcnica a
mais emancipada jamais vista e que, por isso
mesmo, se confronta com a sociedade na forma
de uma segunda natureza, to elementar quanto a primeira, obrigando ao homem contemporneo o aprendizado das novas percepes e
reaes exigidas pelo aparelho tcnico de nosso
tempo, tornando-se assim objeto das inervaes
humanas. Assim, por mais autnoma que a tcnica se apresente, capaz de iludir quanto a sua
16. Vale lembrar que a noo de habitus aqui entendida
na acepo de Marcel Mauss ([1950] 2003a), no levando em conta os usos ulteriores que teve, como em
Pierre Bourdieu, por exemplo.

essncia humana, como se operasse sem a agncia dos homens, no m das contas ao corpo
que ela novamente se dirige, exigindo uma nova
atitude, uma educao dos seus sentidos.
Em suma, e da mesma maneira que Benjamin havia apontado para uma superao
dialtica entre a sua posio e a de Adorno na
anlise do lme sonoro, possvel dizer que o
enfoque na formao de pares mecnicos poderia oferecer a mesma mediao entre a perspectiva sem instrumentos de Mauss e a perspectiva
com instrumentos de Benjamin. E isto porque,
tanto no possvel tratar das tcnicas do corpo sem fazer referncia aos instrumentos, como
impossvel falar da reproduo tcnica sem
lembrar do corpo. De qualquer maneira, nos
dois casos trata-se de
(...) ver tcnicas e a obra da razo prtica coletiva e individual, l onde geralmente se v apenas
a alma e suas faculdades de repetio (Mauss
[1950] 2003a: 404).

Etnografia da msica, disco e inconsciente auditivo


Resta-nos agora a difcil tarefa de tentar
responder ao problema posto no incio: seria
possvel ver a iluso auditiva produzida pelos
meios tcnicos emancipados como parte integrante do fazer musical contemporneo, e assim trazer os discos para o foco central de uma
etnograa da msica, vendo neles algo mais
que ferramentas para o teste de hipteses? Talvez mais que propriamente dar uma resposta,
gostaramos de indicar como esta constelao
inusitada de autores pode ajudar na construo
de uma estratgia reexiva alternativa para o
enfrentamento da questo.
Como vimos com Anthony Seeger (1992) e
John Blacking (1995), tal compatibilizao seria extremamente problemtica, j que o efeito
ilusrio dos meios tcnicos impediria o acesso
cadernos de campo n. 13 2005

: , |

ao fazer musical. Com o perdo da palavra, chega a parecer ingnuo pensar que uma pessoa,
ao se distrair ouvindo um bom disco, acredite
mesmo que aqueles sons reproduzidos pelo seu
equipamento estejam sendo realizados sem a
agncia humana. De qualquer maneira, h de
fato uma iluso operando ali, j que o ouvinte
confrontado com o produto da atividade humana, da sua prpria atividade, mas de forma
emancipada, isto , como produto alienado do
trabalho humano, como j diria Karl Marx.
Buscando ento superar a diculdade apontada por Seeger e Blacking, Walter Benjamin
([1936] 1985d; [1955] 1992) nos oferece
como alternativa encarar os meios tcnicos
atentando para a diferena entre linguagem do
equipamento de registro e linguagem do corpo
humano. Desta perspectiva o disco, enquanto
obra de arte tecnicamente reprodutvel, no s
exige uma nova atitude a descontrao de
seu ouvinte, como permite acompanhar um espao sonoro que passa a ser preenchido inconscientemente o inconsciente auditivo. Com
isto a iluso auditiva, a auto-alienao humana
diante de um aparelho tcnico emancipado,
torna-se produtiva, j que
Com a representao do homem pelo aparelho, a auto-alienao humana encontrou uma
aplicao altamente criadora (Benjamin [1936]
1985d: 180),

pois no s exige do homem contemporneo uma nova atitude crtica diante das obras
que reproduz, como tambm, nesta mudana,
revela as condies sociais de sua poca. Ou
ainda, para usar os termos dos dois primeiros, a
iluso auditiva produzida pelos meios tcnicos
provoca alteraes na concepo, na execuo e
na apreciao das msicas que reproduz: mais
que iludir, demonstra uma outra maneira de
fazer e ouvir msica utilizada pelos membros
de uma sociedade determinada.
cadernos de campo n. 13 2005

Mas se samos pelas portas dos fundos da


etnograa da msica para nos arriscar em certas
veredas tortuosas da teoria crtica, faltava ainda uma base emprica, se podemos dizer assim,
um lugar de onde se pudesse acompanhar o
adestramento da percepo exigido pela iluso
auditiva caracterstica da reproduo tcnica da
msica, e que nos trouxesse de volta aos caminhos da antropologia. E Marcel Mauss que
oferece pistas indicativas de um tal lugar.
Como procuramos salientar anteriormente,
a aparente contradio entre tecnologia sem
instrumentos em Mauss e tecnologia com instrumentos em Benjamin encontraria sua possvel superao dialtica enfocando a formao
de pares mecnicos entre corpo e instrumento,
onde a atitude desconcentrada exigida pelos
meios tcnicos emancipados tomada como
produto de uma tcnica da descontrao, uma
atividade realizada em repouso, uma tcnica do
repouso ativo, fruto de um empreendimento
que ao mesmo tempo individual e social.
verdade que o inesperado recurso a
Marcel Mauss no basta para garantir a base
emprica necessria para se levar a cabo uma
etnograa da msica que incorpore o disco,
no apenas como instrumento de trabalho,
mas tambm como objeto da observao. Tal
garantia s ser dada medida que avanarem
as etnograas dos usos sociais e da produo
social dos discos, preenchendo aquela lacuna
etnomusicolgica que procuramos evidenciar
anteriormente. Acompanhar como a iluso
auditiva opera criativamente no fazer musical
contemporneo, alterando a concepo, a execuo e a apreciao da msica tecnicamente
reprodutvel, talvez seja uma boa maneira de,
qui, rastrear algumas daquelas luas mortas,
ou plidas, ou obscuras, no rmamento da razo (Mauss [1950] 2003b: 343).

114 | -

Referncias bibliogrficas
ADORNO, Theodor Wiesengrund. [1959]. Idias para
a sociologia da msica. In Textos escolhidos/Walter
Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jrgen Habermas; tradues de Jos Lino Grnnewald...
[et al.]. 2a edio. So Paulo: Abril Cultural, 1983a.
_____. [1963]. O Fetichismo na msica e a regresso
da audio. In Textos escolhidos/Walter Benjamin, Max
Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jrgen Habermas; tradues de Jos Lino Grnnewald... [et al.]. 2a edio.
So Paulo: Abril Cultural, 1983b.
_____. 1994. Theodor Adorno Letters to Walter Benjamin. In Aesthetics and Politics/Ernst Bloch, Georg
Lukcs, Bertold Brecht, Walter Benjamin, Theodor Adorno; translation editor Ronald Taylor; afterword by Fredric Jameson. London, New York: Verso.
BENJAMIN, Walter. [1929]. O surrealismo o ltimo
instantneo da inteligncia europia. In Magia e tcnica, arte e poltica Ensaios sobre literatura e histria
da cultura; traduo de Srgio Paulo Rouanet e prefcio de Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Editora
Brasiliense, 1985a.
_____. [1931]. Pequena histria da fotograa. In Magia e tcnica, arte e poltica Ensaios sobre literatura e
histria da cultura; traduo de Srgio Paulo Rouanet
e prefcio de Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985b.
_____. [1934]. O autor como produtor. In Magia e
tcnica, arte e poltica Ensaios sobre literatura e histria
da cultura; traduo de Srgio Paulo Rouanet e prefcio de Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Editora
Brasiliense, 1985c.
_____. [1936]. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica (1a verso). In Magia e tcnica, arte e
poltica Ensaios sobre literatura e histria da cultura;
traduo de Srgio Paulo Rouanet e prefcio de Jeanne Marie Gagnebin. So Paulo: Editora Brasiliense,
1985d.
_____. [1955]. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade tcnica (2a verso). In Sobre Arte, tcnica,
linguagem e poltica; traduo de Maria Luz Moita.
Lisboa: Relgio Dgua Editores, 1992.
_____. 1994. Walter Benjamin Reply In Aesthetics and
Politics/Ernst Bloch, Georg Lukcs, Bertold Brecht, Walter Benjamin, Theodor Adorno; translation editor Ro-

nald Taylor; afterword by Fredric Jameson. London,


New York: Verso.
BLACKING, John. 1995. Music, Culture and Experience In Music, Culture & Experience Selected papers of
John Blacking; edited and with an introduction by Reginald Byron; foreword by Bruno Nettl. Chicago and
London: University of Chicago Press.
CARVALHO, Jos Jorge de. 1999. Transformaes da
sensibilidade musical contempornea In Horizontes
Antropolgicos msica e sociedade, Porto Alegre, no.
11, p. 53-91.
COHN, Gabriel. 1986. Adorno e a teoria crtica da sociedade In Theodor W. Adorno Sociologia; organizao e introduo de Gabriel Cohn; traduo de Flvio
R. Kothe, Aldo Onesti e Amlia Cohn. So Paulo:
Editora tica.
Grande Dicionrio Larousse Cultural da Lngua Portuguesa. So Paulo: Nova Cultural, 1999.
KOTHE, Flvio Ren. 1975. Benjamin e Adorno: um confronto. Tese de doutorado em teoria literria e literatura comparada. So Paulo: FFLCH/USP. (Publicada
em livro com o ttulo Benjamin & Adorno: confrontos.
So Paulo: tica, 1978.)
LVI-STRAUSS, Claude. [1950]. Introduo obra de
Marcel Mauss. In Mauss, Marcel. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cossac & Naify, 2003.
_____. [1950]. As Tcnicas do Corpo. In Sociologia e
Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2003a.
MAUSS, Marcel. [1950]. Relaes reais e prticas entre
a psicologia e a sociologia. In Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosac & Naify, 2003b.
ROUANET, Srgio Paulo. 1981. dipo e o anjo: itinerrios freudianos na obra de Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Editora Brasiliense.
SACHS, Curt. 1933. Weltgeschichte des Tanzes. Berlim.
SEEGER, Anthony. 1992. Ethnography of Music In
Ethnomusicology: an introduction; edited by Helen
Myers. London: The Maximillan Press. (Etnograa
da msica. In: Sinais Diacrticos: msica, sons e signicados. Traduo de Giovanni Cirino, com uma nova
introduo de Anthony Seeger. No. 1. So Paulo: Departamento de antropologia/FFLCH/USP, 2004.)
WEBER, Max. [1911]. Os Fundamentos Racionais e Sociolgicos da Msica; traduo, introduo e notas de
Leopoldo Waizbort; prefcio de Gabriel Cohn. So
Paulo, EDUSP, 1995.

cadernos de campo n. 13 2005

Imagens perigosas: a possesso e a gnese do


cinema de Jean Rouch*
RENATO SZTUTMAN
Doutorando em Antropologia Social pela
FFLCH/USP e co-editor da revista Sexta-Feira:
antropologia, artes e humanidades.
Artigo aceito para publicao em 03/10/05

resumo Este artigo trata da gnese do cinema

abstract This article lies on the genesis of Jean

de Jean Rouch (1917-2004), dando foco ao lme


Les matres fous, de 1954. Com este, Rouch realiza a
transio do lme etnogrco em seus moldes clssicos para um questionamento mais sosticado sobre a linguagem. Ao lmar um ritual de possesso
na Costa do Ouro (hoje em dia, Gana), Rouch acaba por promover uma reexo sobre a relao entre
realidade e imaginrio, que diz muito sobre outra
relao, aquela que se d entre a prxis cinematogrca e a anlise antropolgica.
palavras-chave Jean Rouch, lme etnogrco, ritual, possesso.

Rouchs cinema (1917-2004). Its focus is on the lm


Les matres fous, which rst appeared in 1954. With
this lm, Rouch abandons ethnographic lm in
its classical fashion towards a more sophisticated
investigation on language. While lming a possession ritual in the Golden Cost (nowadays, Ghana),
Rouch nds a reection on reality-imaginary relationship, which seems to be able to tell too much
about the relationship between cinematographic
praxis and anthropological analysis.
keywords Jean Rouch, ethnographic lm,
ritual, possession.

Ao imaginrio se chega quando se derrapa.


Jean Rouch

Accra, Paris, 1954


Paris. 1954. Sala de projeo do Museu do
Homem. Jean Rouch exibe pela primeira vez o
curta-metragem Les Matres Fous, hoje reconhecido como marco na histria do lme documentrio e etnogrco, o que se deve utilizao de
uma nova linguagem cinematogrca para re*

Uma primeira verso deste texto foi apresentado no


28 encontro anual da ANPOCS (outubro de 2004)
na mesa Jean Rouch, cinema, antropologia, realizada como uma homenagem a esse importante antroplogo e cineasta, falecido em fevereiro de 2004, aos
84 anos, num acidente de carro ocorrido no Nger.

cadernos de campo n. 13: 115-124, 2005

tratar um ritual africano de possesso, realizado


num contexto colonial e urbano. Esto presentes na platia africanistas como Marcel Griaule,
Luc de Heusch e Germaine Dieterlen, alm de
alguns alunos, muitos deles de origem africana.
As luzes se apagam. A cortina vermelha se abre.
A projeo comea.
Na tela, a imagem esttica de uma oferenda
de comida. De fundo, a msica africana mistura-se a rudos urbanos. Um texto nos explica
que o lme versar sobre um episdio da vida
Agradeo a Paulo Menezes, coordenador, pelo convite gentil e pela oportunidade que me propiciou de
reetir, junto a pesquisadores da rea de antropologia
visual, sobre a obra de Rouch. Agradeo tambm a
Sophie Abiven e Stelio Marras, que discutiram comigo algumas das questes aqui expostas.

116 |

dos Hauka, membros de uma certa seita religiosa que incorporam novos deuses. O texto
adverte ainda que as imagens fortes que seguiro foram lmadas a pedido dos sacerdotes e
que nenhuma delas proibida ou secreta, sendo assim abertas a todos que estiverem dispostos a assistir ao jogo violento que nada mais
seno o reexo de nossa civilizao.
Um corte abrupto nos leva a uma estao de
trem e, logo depois, ao cenrio urbano. Rouch
conta-nos, em voz o (como o far ao longo de
todo o lme), que estamos numa certa cidade
da frica Ocidental Accra, capital da ento
Costa do Ouro, colnia britnica, hoje Gana.
Vemos homens trabalhar so todos migrantes que vm de diferentes partes. Doqueiros,
estivadores, comerciantes, artesos, faxineiros,
mineiros, entre tantos outros compem essa
Babilnia Negra. A sobreposio de diferentes planos indica a convivncia de sons, cores e
religies. Em um bar, denominado Califrnia,
ouvimos o som do calipso. De um cortejo iorub passamos a uma manifestao de prostitutas,
destas s irmzinhas de Jesus que cantam nas
ruas a sua f e, por m, a uma fanfarra militar.
Chegamos ao mercado de sal, na periferia
de Accra, onde se encontram os Hauka. Rouch
explica que domingo o dia em que eles se renem para celebrar os novos deuses e, nesse
momento, oferece ashes de rostos em transe,
antecipando a matria do lme. So rostos desgurados que se confundem na escurido. Na
seqncia seguinte, j domingo. Logo cedo,
os Hauka deixam a cidade em direo ao stio,
onde ser realizado o ritual. Quem guia todos
Mountyeba, o sacerdote que, como os demais, um migrante vindo do Nger.
No stio, o velho casebre apresentado como
palcio do governador e l encontramos um
altar com o cone do governador britnico. O
ritual comea ento com a apresentao de um
novio, Gherba, que tem crises intensas em frente cmera todos sabem que ele est possudo

por um esprito Hauka. Em seguida, tm incio


as consses pblicas. Um homem diz que teve
relaes sexuais com a esposa do amigo e h dois
meses est impotente. Outro diz que colocou
em dvida a existncia dos espritos Hauka. Um
apito d o sinal de ordem e os punidos separamse dos demais, cando de fora do ptio, vigiado
por sentinelas. Uma galinha sacricada e seu
sangue esparramado no altar.
Sobre a esttua do governador, vemos uma
mensagem telegrca e um cartaz do lme A
marca do Zorro. J passa das dez da manh e
um violinista comea a tocar as rias Hauka. O
sacerdote dorme. Algum traz um co, que dever ser sacricado e comido. Rouch explica que o
sentido deste ato est em romper um tabu, o que
os permite mostrar para os africanos e para os
europeus que eles so mais fortes que os outros homens. Todos se pem a marchar em torno do local onde ser realizado o sacrifcio eles
portam faixas vermelhas e fuzis de madeira. Seu
comportamento imita a disciplina militar europia. A dana principia, puxada pelo sacerdote.
A cmera procura acompanhar o movimento
efusivo dos participantes. De repente, a possesso comea. Acompanhamos de perto as reaes
corporais de um homem. A tremedeira se inicia
pelo p esquerdo, passa ao direito, invadindo as
mos, os braos, os ombros e, por m, a cabea.
Esse homem, reconhecido como cabo de guarda,
levanta-se, cumprimenta a todos e pede fogo para
se queimar ele precisa mostrar que j no um
homem, mas um Hauka, comenta Rouch.
Aos poucos, todo o panteo de ociais militares desce ao ptio. Vm o capito, o condutor
da locomotiva, Madame Locotereau, o tenente, o governador e Madame Salme. A cmera,
fortemente subjetiva, busca acompanhar os
movimentos aparentemente desgovernados dos
personagens em transe, alternando entre planos
de conjunto, que focalizam a dana e a algazarra,
e closes em diferentes expresses faciais, temperadas pela baba branca que escorre das bocas.
cadernos de campo n. 13 2005

: |

De sbito, o tenente aproxima-se da esttua do governador e, como num ato sacricial,


quebra sobre ela um ovo de galinha. No plano
seguinte, vamos parar no desle do exrcito
britnico com suas cores gritantes. Rouch explica que a funo simblica do ovo pode ser
buscada naquelas imagens e, no plano seguinte, focaliza as penas amarelas e brancas do capacete do governador em carne e osso. O que
vamos como imitao agora realidade: os
militares, de uniforme vermelho, realizam uma
parada em frente Assemblia de Accra. H
um pblico imenso que assiste ao espetculo e,
lembra-nos Rouch, haver ali certamente um
Hauka que veio buscar seu modelo.
Um novo corte nos devolve ao ritual. A possesso continua. O governador convoca uma assemblia para decidir se o co ser comido cru
ou cozido. Decide-se cozinh-lo. (Enquanto
isso, o novio chega possudo pelo secretrio
geral). Morto, o co feito em pedaos, e os
homens, inquietos, fartam-se com o seu sangue. Pronto o cozido, os melhores pedaos so
disputados. As imagens so de causar nuseas.
Com o cair da noite, o ritual termina a no ser
para o motorista da locomotiva que se pe a
discursar. Momentos depois, todos deixam o
stio. Por um instante, sob a escurido, vemos
os vestgios do rito.
Na manh seguinte, Rouch nos traz de volta
ao mercado de sal, onde reencontramos os personagens da vspera todos sorridentes, sem
qualquer aparncia de ressaca. Vemos ali uma
nova assemblia, no para decidir a morte de
um co, mas para jogar cartas. Rouch ajuda-nos
a reconhecer os participantes, valendo-se de ashes dos rostos desgurados da vspera. Madame
Locotereau , na verdade, um menino efeminado que trabalha como vendedor e usa muita
vaselina no cabelo. O cabo de guarda caminhoneiro. O general s um soldado. Madame
Salme Magasia, uma prostituta. O governador,
o condutor de locomotiva e o secretrio geral so
cadernos de campo n. 13 2005

operrios da Water Rocks, empresa de abastecimento de gua. Por ironia, eles trabalham numa
obra localizada em frente ao hospital psiquitrico municipal. Jean Rouch xa-se, ento, no
sorriso ingnuo de Gherba, o novio que foi o
secretrio geral e agora tem a cabea raspada.
E, sobre essa imagem, o lme nda com uma
indagao do prprio diretor: Provavelmente,
esses africanos conhecem certos remdios que os
permitem no serem anormais, mas justamente
se integrarem ao meio em que vivem. E estes remdios ainda nos so desconhecidos.
As luzes se acendem na sala de projeo do
Museu do Homem. A platia est atnita depois
de assistir aos apenas vinte e sete minutos do
lme. Alguns africanos presentes declaram que
as imagens vistas so uma afronta sua dignidade, que elas apresentam os nativos como selvagens. Marcel Griaule pede, ento, que Rouch
destrua o lme: aquelas imagens no poderiam
ser veiculadas, visto que eram demasiadamente perigosas. Elas jamais poderiam ser vistas por
no-iniciados, que no partilhassem aquele universo. Tampouco poderiam ser exibidas a iniciados, que, ao v-las, entrariam em transe.
Uma histria, contada por Rouch, bastante curiosa para falar do perigo dos espritos
Hauka e de suas imagens:
Entre a minha equipe estava um jovem chamado Tallou que depois viria a atuar em Cocorico Monsieur Poulet (1975). Ele cou chocado:
Tudo isso falso. Falso!. E Gherba disse a
ele: Tallou, tome cuidado. Voc no deveria
dizer isso, pois os Hauka podem se vingar.
Dito e feito. Trs semanas depois, Tallou foi
possudo. Foi um transe selvagem, que causou
muito problema, pois ele foi possudo no meio
de Accra e comeou a agredir os seus amigos.
Encontramos-no passando a noite num cemitrio fora da cidade, e eu o levei a Mountyeba,
o sacerdote, que disse: Sim, ele est possudo,
mas preciso esperar quem sabe um ano para

118 |
que ele seja nalmente iniciado. E disse tambm (mas s para mim): Voc reponsvel,
pois foi voc quem o trouxe aqui. O melhor
a fazer lev-lo de volta sua aldeia natal.
O sacerdote me deu um pouco de perfume e
outras coisas mais e me explicou como aquietar
Tallou se ele voltasse a ter uma crise. Ento eu
levei Tallou ao meu motorista, Lam, que, alis,
tambm atuou em meus lmes. Eles voltaram
ao Nger de trem e caminho, e durante a viagem ele foi possudo duas ou trs vezes. Lam
teve de o acalmar passando perfume em sua cabea. Isso foi dois anos antes de sua iniciao.
Um dos ltimos Hauka foi um general francs
que comandou o exrcito durante a guerra da
Indochina. Ele se chamava General Marseilles,
pois certas tropas africanas que partiam Indochina paravam em Marselha, Frana. Tallou foi
possudo por este general, o ltimo dos Hauka
(Rouch, Marshall & Adams, 1978: 1010; minha traduo).

Durante o debate, Luc De Heusch o nico a defender o lme de Rouch, apontando ali
um documento de grande importncia para a
antropologia.

Antecedentes e ecos
Para alm do Museu do Homem, Les Matres
Fous no teve melhor sorte. Foi rechaado pelas
autoridades coloniais britnicas, que acusaram o
autor de desrespeito ao Exrcito e rainha. Tendo em vista todas as objees, Rouch optou por
restringir a circulao do lme, exibindo-o apenas em um circuito alternativo de cineclubes.
Com todos esses pesares e mesmo por
causa deles Les Matres Fous tornou-se um
clssico. Inspirou rapidamente campos artsticos, como o cinema de co e o teatro. Claude Chabrol foi logo procurar Rouch para saber,
anal, como ele tinha adquirido tamanha tcnica na direo de atores. (O cineasta no

havia acreditado que aquilo pudesse ser um ritual). Jean Genet, de sua parte, inspirou-se na
possesso Hauka para escrever Os Negros, pea
em que um grupo de escravos se rebela contra
seus mestres. E Peter Brook usou as imagens
para treinar os atores de Marat/Sade.
De modo curioso, Les Matres Fous atraa, sobretudo, pelo seu lado dramtico. Como lme
etnogrco, no entanto, foi considerado, por
pares como o prprio Griaule, como incompleto, por ser breve demais e no contextualizar na
medida necessria o ritual apresentado, e perigoso, por no medir o efeito que aquelas imagens
poderiam ter para a audincia, africana e europia (Stoller 1994). Que seriam, anal, aqueles
homens negros ditos Hauka, que imitavam personagens coloniais e eram possudos pelos seus
espritos? Que pensar de uma cena escatolgica
como a do sacrifcio do co, em que se cogitou
a possibilidade de comer a carne crua? Acusava-se o lme de Jean Rouch de endossar justamente o que ele pretendia combater, ou seja, o
racismo, a idia de que a subordinao poderia
ser explicada pelo carter selvagem (portanto,
inferior) dos negros, que agiam na tela como
doentes mentais, incapazes de separar a realidade vivida da imaginao.
Apesar da recepo receosa por parte dos
antroplogos, Les Matres Fous no pode ser
dissociado do processo de pesquisa iniciado por
Rouch em meados dos anos 1940 no que viria a
ser a Repblica do Nger, e nesse ponto recobra
um lugar importante na histria da antropologia
e do cinema. Rouch formou-se em engenharia civil e se tornou supervisor da construo de estradas na colnia francesa ali estabelecida. Foi nesse
cenrio que conheceu Damour Zika, que se
tornaria um grande amigo e parceiro. Damour
trabalhou como tcnico de som em lmes como
o prprio Les Matres Fous, e protagonizou outros
lmes como Jaguar (1967) e Petit Petit (1969).
Tambm ali Rouch presenciou os primeiros rituais de possesso, que o conduziram a reetir
cadernos de campo n. 13 2005

: |

mais sistematicamente sobre aspectos daquelas


religies e, assim, reavivar os estudos de etnologia
realizados quando era ainda um aluno de graduao. Com apoio de Griaule, Rouch passou a se
interessar pela coleta de dados e pela religio dos
Songhay povo agricultor da savana antes da
presena islmica, o que inclua o interesse por
prticas como feitiaria, sacrifcio e possesso.
Rouch acompanhou, durante 1946 e 1947, uma
expedio ao longo do rio Nger e lmou, entre outras coisas, uma caada de hipoptamos.
Como conta Paul Stoller (2005), foi devido a
um trip quebrado que Rouch teve de passar a
usar a cmera na mo. Por acidente, ele cunhava
um mtodo muito particular de lmar. Essa seria
a sua marca desde o primeiro lme, Au pays des
mages noirs (1947), exibido como complemento
de Stromboli (1949), longa-metragem do diretor
italiano Roberto Rosselini, que contava com a
presena da atriz Ingrid Bergman no elenco.
Em 1947, j includo no Centre National
de la Recherche Scientique (CNRS), Rouch
partia como doutorando ao Nger e ao Mali
para colher histrias sobre os Songhay do perodo pr-islmico. Ele encontrava nos rituais
realizados por esse povo a via de acesso mais
ecaz para a revelao dessa memria coletiva.
Em Les magiciens de Wanzerb (1948), ele apresentava um retrato da vida social em uma aldeia
songhay famosa pelos seus feiticeiros. Por meio
de um longo plano-seqncia, documentava
um ato por assim dizer extico para o espectador ocidental: o feiticeiro-danarino cuspia
um objeto de metal que estaria alojado em seu
estmago. Les Fils de leau, longa-metragem
de 1953, reunia imagens, rodadas no Nger e
no Mali, de diferentes momentos rituais, tais
a circunciso dos meninos songhay, a caa ao
hipoptamo no rio Nger e um rito funerrio
dogon. Em 1952, Rouch defendia na Sorbonne
a sua tese de doutorado, A religio e a magia entre os Songhay, sob orientao de Marcel Griaule. A partir do mesmo ano, iniciava uma nova
cadernos de campo n. 13 2005

pesquisa, j inseparvel do cinema e desta vez


no mais entre grupos tribalizados, mas sobre
os migrantes que vinham do Nger sobretudo
Songhay Costa do Ouro. Boa parte desses
migrantes integrava as prticas Hauka, que no
eram assim to inovadoras como se pode pensar.
Incorporava-se aos rituais de possesso tradicionais novos deuses, justamente os espritos de
administradores coloniais. A seita, como foi
logo taxada pelo governo colonial francs, teria
emergido por volta de 1927, e seus membros
teriam sido expulsos do Nger por atemorizar as
autoridades pblicas, o que evidencia o enorme
impacto sobretudo poltico que tiveram.

Os Hauka revisitados
As imagens dos corpos possudos por divindades coloniais pareciam sintetizar de
modo notvel a experincia de povos como os
Songhay em cidades algo cosmopolitas como
Accra. E, com efeito, elas atuaram na fundao
do cinema de Jean Rouch. Mas, como atentava Griaule, estas eram imagens perigosas e
descontextualizadas (Stoller 1994).
Trs anos aps o lanamento de Les Matres
Fous, em 1957, a Costa do Ouro tornava-se independente. A partir de ento, os Hauka que l
viviam retornavam ao interior do Nger, recuperando o estilo de vida aldeo. Seu panteo,
que congurava uma espcie de prtica fora da
lei, era aos poucos assimilado pelos sacerdotes
tradicionais. Intrigado pelas imagens de Rouch,
Paul Stoller, antroplogo norte-americano, voltou aos Songhay do Nger na dcada de 1980,
portanto no perodo ps-colonial. Ao contrrio
do que previu Rouch, Stoller (1989 e 1995) sustenta que a religio dos Hauka no cessou com o
m da colonizao, mas transformou-se no tempo e acarretou diferentes arranjos polticos. Basta aqui salientar que, com a independncia do
Nger, muitos Hauka tornaram-se membros do
Supremo Conselho Militar, um deles chegando

120 |

a ser eleito como presidente da Repblica. Notase tambm que, nesse novo perodo, os Hauka
foram responsveis pela legitimao de vrios
atos de violncia poltica. Segundo Stoller, que
perseguiu as metamorfoses dos Hauka na segunda metade do sculo XX, esses rituais de possesso no eram simplesmente um modo para
resistir colonizao, mas sobretudo para constituir uma memria do grupo e, assim, habitar
o tempo atual. E isso s era possvel mediante
um trabalho de inscrio no corpo. O autor
lembra tambm que, entre os Songhay, esse tipo
de memria incorporada (embodied) contrasta
com dois outros: uma tradio escrita, herdada
do Isl, e uma tradio oral-pica, concentrada
na gura dos griots, contadores de histrias e
guardies da tradio oral.
Em linhas gerais, o argumento de Stoller
reside na idia de que os rituais de possesso
Hauka imitam o homem branco e sua organizao militar para domestic-los, control-los.
Na esteira de Michael Taussig (1993), Stoller
(1995) pensa o poder mimtico embutido
nesses atos de incorporao. Povos como os Songhay teriam, assim, nos rituais de possesso uma
espcie de mquina de processamento dos episdios de contato com a alteridade, que remete
tanto a tempos imemoriais o tempo do mito
como a tempos datados a conquista muulmana, a incorporao de outros grupos tnicos
etc. Podemos concluir, com Stoller e Taussig,
que a possesso entre esses povos um ato a um
s tempo cognitivo, histrico e poltico, e isso
signica que esta maneira de habitar no mundo
de existir passa necessariamente pelo simblico ou, para usar um termo bastante frisado por
Rouch, pelo imaginrio, pela imaginao.
O fato de que os Hauka incorporavam elementos coloniais s suas prticas correntes para
poder, enm, domestic-los ou control-los segundo seus prprios termos deve explicar, por
exemplo, a permisso dos sacerdotes para lmar
o ritual. Rouch lembra, alis, que Les Matres

Fous foi realizado a pedido dos prprios Hauka.


Minha hiptese que eles usariam a cmera no
culto da mesma forma que usaram uma arma
de madeira (Rouch, Marshall & Adams 1978:
1007). O ritual se apropria, assim, de mais um
elemento ocidental, que no , diga-se de passagem, um elemento qualquer, mas sim dotado de
grande valor a um s tempo simblico e tecnolgico, dado pela capacidade de reproduzir imagens em movimento e veicul-las a um grande
pblico. O cinema era, na poca em que Rouch
lmava em Accra, um dos signos mais fortes da
modernidade: apropriar-se dele era claramente
um modo de exibir controle sobre a situao e,
principalmente, de tornar visvel uma situao
que permanecia invisvel. Mquina de sonhos,
o cinema poderia materializar, como na possesso, aspectos invisveis do cosmos, criando um
novo contexto de interao. Como sugere
Michael Taussig, que volta a Les Matres Fous:
O lme toma de emprstimo a prtica mgica da
mmese no prprio momento da lmagem. O
primitivismo no modernismo permite-se orescer.
Nesse mundo colonial onde a cmera encontra-se
com esses possessos por divindades, podemos realmente apontar o renascimento ocidental da faculdade mimtica por meio da maquinaria mimtica
da modernidade (1993: 242; minha traduo).

Se as imagens de Les Matres Fous eram,


como acusou Griaule, perigosas, isso ocorria
sobretudo porque elas eram capazes de amplicar de maneira descontrolada (e aberta a
diferentes manipulaes) os cultos de possesso e, por isso mesmo, deveriam ser veiculadas
com cautela. Elas eram poderosas (no sentido
de Taussig) e poderiam ser usadas no apenas
para ns racistas, por parte dos colonizadores,
mas tambm pelos prprios sacerdotes Hauka,
que desejavam cooptar novos adeptos, o que
poderia promover um crescimento desmedido
do movimento e causar grande represlia por
cadernos de campo n. 13 2005

: |

parte da administrao colonial. De fato, como


j salientado, Les Matres Fous teve circulao
restrita durante a dcada de 1950, atendo-se a
um pblico seleto de intelectuais. Quando da
descolonizao, no entanto, Rouch pde voltar
a algumas das aldeias songhay, no Nger, e ali
exibir o lme. Nesse novo momento, os espritos Hauka j estavam em grande parte incorporados s prticas tradicionais e ao panteo
de divindades, o que retirava de seus cultos o
carter propriamente contestatrio.
O dinamismo das tradies songhay, notado por Stoller, pode ser conrmado em um comentrio de Rouch a Marshall & Adams (1978)
sobre a incorporao, na fase ps-colonial, de
uma nova classe de divindades. No incio dos
anos 1970, quando os espritos Hauka pareciam ter sido aceitos pela maioria dos sacerdotes
songhay, apareciam os assim chamados espritos
Sasale, subversivos, porm de modo distinto
ao dos Hauka. Espritos de cantores, prostitutas, playboys etc., os Sasale apoderavam-se dos
corpos de meninas e meninos fazendo-os reproduzir gestos erticos ou obscenos. Essa nova
religio se assim for possvel chamar toda
forma incorporao de novas divindades num
panteo cuja marca justamente essa abertura
ao evento foi, conta Rouch, revestida de um
signicado contestatrio e novamente reprimida pelo governo da Repblica do Nger.
Esta nova religio est comeando do mesmo
jeito: ele absolutamente underground, pois o
governo contra o sexo. Eu comecei um lme
sobre isso, mas eles me pediram para no mostr-lo, pois (...) todas as danas falavam sobre
sexo: Olhem s o meu clitris, Ah, como
so maravilhosos os seus testculos, e da por
diante. Era uma coisa de louco. Como vocs
vem, isso acontece a todo o momento. () As
pessoas no conseguem explicar o que elas esto
fazendo, elas s podem mostrar o que elas esto
pensando, e isso signica que durante todos escadernos de campo n. 13 2005

ses anos, dos anos 1920 independncia, elas


estavam pensando no poder militar, administrativo e burocrtico e, agora, elas comearam
a pensar mais no sexo e na morte. Os Hauka
introduziram a idia de pessoas fora-da-lei, o
sentido exato da palavra ( importante ter mitos
de pessoas fora-da-lei). Mas agora que os Hauka
esto dentro da lei, tomaram o poder, pois eles
so os lhos de Dongo, preciso que tivessem
aparecido os novos fora-da-lei, os Sasale. Mesmo na situao poltica atual, continua funcionando (1978: 1013; minha traduo).

Hoje, as imagens de Rouch, que, como os


espritos europeus (os Hauka), so parte constitutiva da memria coletiva local, podem ser
exibidas em lugares pblicos como o Centro
Cultural do Nger, sem causar maiores desconcertos. Seu perigo foi, como se v, domesticado
e, assim, deslocado para outros domnios. Com
efeito, passados cinqenta anos, podemos voltar a essas imagens e medir seu impacto para a
histria do cinema e da antropologia.

Imagens possessas
Se as imagens de Les Matres Fous so mesmo
perigosas, isso ocorre sobretudo porque elas parecem estabelecer com a possesso uma associao
por contigidade. As imagens ambguas criadas
no ritual Hauka de colonizados que incorporam (espritos de) colonizadores no apenas
mimetizam elementos ocidentais, como querem
Taussig e Stoller, mas condensam e do visibilidade s contradies vividas na experincia cotidiana da poca.1 Ora, o lme etnogrco inspira-se,
1. Carlo Severi (2000) vai alm da idia de mmese, presente
em Stoller e Taussig, para pensar fenmenos hbridos,
tais os cultos Hauka, como resultado de um processo de
interao ritual e de condensao de imagens. O ponto
no seria apenas imitar os colonizadores, mas sobretudo
inserir o seu universo, sobretudo imagtico, dentro de
um contexto ritual j dado; no caso Hauka, a possesso.

122 |

curiosamente, nessa mesma relao perigosa com


o real. Filmar o ritual , nesse sentido, menos retrat-lo que potencializ-lo, amplic-lo. Eis que
entra em cena o cine-transe, expresso cunhada
por Jean Rouch para se referir lmagem de Les
Matres Fous: preciso lmar como se estivesse
em transe para que o efeito do lme aproximese do efeito do ritual (Rouch 1978). De certo
modo, se no ritual os africanos so cavalos de
espritos ocidentais, na sala de cinema a relao
parece se inverter: tudo se passa como se ns nos
tornssemos os cavalos deles.
A cmera do cineasta que participa ativamente da cena lmada possibilita para o pblico ocidental uma experincia anloga do
ritual africano. Les Matres Fous no apenas
perigoso para eles, mas tambm para ns, espectadores. Ainda que se trate de contextos
radicalmente diversos, um mesmo tipo de
impacto no pode ser negligenciado. nessa
mesma direo que Paul Stoller (1994) associa
Les Matres Fous, e o cinema em geral criado
por Rouch, s experincias dos surrealistas e,
mais precisamente, ao teatro da crueldade
de Antonin Artaud. O espectador posto em
confronto com dimenses reprimidas dando
vazo ao inexprimvel e ao invisvel e, assim,
o lme pode transformar a audincia psicologicamente e politicamente, promovendo uma
descolonizao do imaginrio.
Como vemos, a misso do cinema confunde-se, em Jean Rouch, com a misso do ritual,
no caso, de possesso. assim que as lmagens
da possesso Hauka encontram-se na base de
seu cinema verdade uma verdade que, no
entanto, no diz respeito a um realismo ingnuo e que s pode ser revelada no discurso do
cinema. Como Rouch assume inmeras vezes,
referindo-se sempre a Dziga Vertov, trata-se no
de uma verdade nua, mas uma verdade flmica,
uma verdade do cinema. No de uma verdade
visvel, mas uma verdade que deve ser descortinada, inacessvel ao olho seno pela mediao

da cmera. A essa verdade se acede, vale ressaltar, pelo imaginrio, pela imaginao.
Como o ritual, o cinema uma espcie de
explicitao de uma poro que permanece
oculta e que s pode ser acionada na suspenso
do cotidiano.2 A sala escura, como a possesso, permite que nos transportemos para outro
mundo, o que signica voltar e ver este mundo
j com outros olhos. Olhos de um recm-iniciado, tais aqueles que compem a ltima seqncia de Les Matres Fous.

Depois de Les Matres Fous


O ritual de possesso Hauka e suas imagens
perigosas podem ser tomados como fundadores do
cinema rouchiano. deles que emerge a potncia
provocadora e desaadora dos lmes seguintes do
realizador. Na segunda metade da dcada de 1950,
as imagens aterrorizantes de Les Matres Fous davam
lugar a outras formas de acessar o mundo por meio
do imaginrio e da imaginao, que passavam pela
utilizao da co e do psico-drama. O lme etnogrco sofria, ento, uma reforma decisiva, visto
que as fronteiras entre o ccional e o documentrio
eram submetidas ao apuro.
Com Moi, un Noir (1958) e Jaguar (1967),
duas etno-cces, Rouch fazia os lmados encenarem as suas prprias vidas tendo como palco cidades assaltadas pela ocidentalizao, como
Abdijan (Costa do Marm) e Accra (Gana). Esses
lmes tratavam justamente dos sonhos de jovens
africanos migrantes, que espremidos entre a tradio e a automao, entre o islamismo e o lcool,
no renunciaram s suas crenas nem aos dolos
modernos do boxe e do cinema tal o texto em
o de Jean Rouch para a abertura de Moi, un
Noir. Em La Pyramide Humaine (1959) e Chronique dun t (1960), Rouch lanava mo de
2. Sobre a idia que me bastante simptica de que
objetivo da comunicao ritual , sobretudo, tornar
visvel, dar a ver relaes invisveis, ver Houseman
& Severi (1994).
cadernos de campo n. 13 2005

: |

psico-dramas sociais: reunia pessoas de diversas


origens para discutir entre si e em frente cmera,
temas como racismo, xenofobia e guerra. A presena do realizador a no era jamais transparente
e os lmados falavam diretamente para a cmera. Em Pyramide Humaine, por exemplo, Rouch
reunia estudantes brancos e negros que viviam em
Abdijan para discutir com eles o tema das relaes
raciais. Ao suscitar novos contextos de interao
entre os jovens, o lme acabava por produzir situaes, como o namoro entre um africano e uma
francesa situao que no era exatamente pensvel naquela poca tingida pelo colonialismo.
Nesses lmes, vemos com mais nitidez tambm o
projeto de uma antropologia compartilhada e o
delineamento de um compromisso tico com os
lmados. Ou seja, o lme etnogrco tornava-se
um dilogo entre os nativos e o realizador, que
deveria retornar a eles as imagens produzidas.3
Com esses lmes, Rouch rompe com a imposio de uma representao realista e com o ideal
de transparncia da cmera. Moi, un Noir busca na
co o gnero ideal para se referir experincia
contraditria da modernidade e do cosmopolitismo vividos pelos migrantes africanos. Lembremos,
contudo, que Les Matres Fous j antecipava esses
aspectos, agarrando um tema clssico da antropologia: o ritual. Revelava como um certo grupo de
homens e mulheres conseguia viver a colonizao
dentro de seus prprios termos; e estes, vale ressaltar, passavam pela possesso, pela inscrio no
corpo de uma memria coletiva.
Se Les Matres Fous versa sobre a maneira
pela qual o ritual pode trabalhar um impacto
ou trauma causado pela colonizao, ele resulta
em imagens no menos impactantes e traumticas para o espectador ocidental, impressionado com aqueles atos que evocam, no seu
3. Para uma discusso um pouco mais aprofundada sobre a porosidade das fronteiras entre o documentrio
e a co no cinema de Jean Rouch e a produo, por
conseguinte, de uma antropologia compartilhada,
ver Sztutman (2004).
cadernos de campo n. 13 2005

imaginrio, a loucura e a selvageria. Les Matres


Fous foi, na poca de seu lanamento, vtima de
um mal-entendido, pois que a desordem que
apresentava era, com efeito, um modo de estabelecer uma certa ordem, de conferir sentido a
uma experincia marcada pela sobreposio de
mundos distintos e distantes. Como j havia sugerido diversas vezes Claude Lvi-Strauss, que
muitas vezes teorizou o que Rouch mostrou
(mesmo que jamais tenha havido interlocuo
entre ambos), comparar as desordens psquicas, como a concebemos no Ocidente, quelas
que parecem se apresentar, de maneira anloga,
nas narrativas mticas e nos rituais de diversos
povos ditos primitivos seria apenas possvel e
prudente se compreendssemos que aqueles
elementos de simbolizao comumente tomados por ns como patologia como expresses
do sofrimento individual podem emergir, em
outros lugares, como terapia como modos de
conferir sentido ou mesmo inibir o sofrimento
a um s tempo individual e coletivo.4
A incorporao dos Hauka, uma espcie de
materializao das ambigidades do cosmos e da
sociedade, era a maneira especca pela qual os
migrantes do Nger lidavam com o seu cotidiano,
4. Fao referncia a textos como A eccia simblica
(1976) e Cosmopolitismo e esquizofrenia (1986),
nos quais Lvi-Strauss compara, respectivamente, os
rituais xamnicos e a mitologia de dois grupos amerndios os Cuna da Amrica Central e os Chinook
da Amrica do Norte a domnios teraputicos. Se
a tendncia foi comparar o xam ao esquizofrnico
e identicar nos motivos mticos elementos relacionados esquizofrenia tal o tema da clivagem interior e das confuses exteriores , Lvi-Strauss prope
uma inverso decisiva, comparando o trabalho do
xamanismo e da mitologia ao trabalho do psiquiatra.
O movimento por eles realizado seria, assim, inverso ao do delrio esquizofrnico, pois o que neste
interiorizado subjetivamente pelo doente, torna-se
objetivamente espalhado entre diversos protagonistas
e repartido por diversos aspectos do cosmos. Os materiais simblicos so talvez os mesmos, mas o mito e
o delrio fazem deles usos opostos (1986: 260).

124 |

invadido pela experincia da ocidentalizao. Era


preciso dar aos colonizadores um lugar no panteo
de divindades para que, como as demais divindades, eles pudessem ser domesticados, submetidos
ao jugo dos homens. Era preciso ser possudo por
essas novas divindades, confundir-se com elas,
condensar elementos nativos e estrangeiros, para
que fosse possvel voltar ao cotidiano no mais
como sujeito cindido aterrorizado pela tenso
entre mundos descontnuos mas como trabalhador que, integrado ao movimento catico da
cidade grande, jamais se esquece do compromisso
sagrado no domingo. Em linhas gerais, a mensagem de Les Matres Fous consiste em dizer que para
ser normal, ou melhor, para suportar as contradies do vivido e estabelecer um certo grau de
autonomia pessoal, era preciso experimentar uma
certa loucura e uma certa selvageria, obtidas
nessa entrega imaginao, nessa interao com
imagens e espritos, que condensavam elementos
da religio nativa e da situao colonial, criando
novas formas e, atravs delas, novos sentidos para
habitar o mundo.
Como o totemismo abordado por LviStrauss (1961), toda essa selvageria, que continua a chocar o olhar do espectador ocidental
(que teme se descobrir selvagem), talvez no esteja longe de ns, mas sim em ns. O ponto que
ela mobilizada de maneiras bastante opostas na
experincia de c e na de l. Com suas imagens
perigosas, que geram opinies e efeitos adversos
e que os nativos temem extrapolar o domnio
da tela, Rouch pretendia, em Les Matres Fous,
fazer o mundo africano com seus smbolos,
ritos e mitos afetar a nossa prpria realidade.
O cinema rouchiano constri-se, tal o argumento deste pequeno ensaio, sob o signo do ritual
de possesso, que lhe oferece, sem abolir o perigo, um certo modo de mostrar e agir sobre o
mundo, passando pela proposio de um outro
mundo, prenhe de imagens ambguas, entre a
humanidade e a divindade, entre o tradicional e
o moderno.

Com Rouch, o cinema deixa de ser mera iluso para se converter numa prxis capaz de descortinar uma verdade muito particular, jamais
dada na superfcie visvel das coisas, mas que deve
ser extrada, ou mesmo decretada, sob esforo da
imaginao. Tendo em vista esse notvel projeto,
Les Matres Fous, inquietante tanto pelo seu tema
quanto pela sua linguagem, permanece eternizado no panteo do cinema e da antropologia.

Referncias bibliogrficas
HOUSEMAN, Michael & SEVERI, Carlo. 1994. Naven
ou le donner voir: essai dinterprtation de laction rituelle. Paris: Eds. MSH/CNRS.
LVI-STRAUSS, Claude. 1961. Le totemisme aujourdhui.
Paris: PUF.
_____. 1976. A eccia simblica In Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, pp. 215-236.
_____. 1986. Cosmopolitismo e esquizofrenia In O
olhar distanciado. Lisboa: Ed. 70, pp. 253-164.
ROUCH, Jean. 1960. La religion et la magie Songhay.
Paris: PUF.
_____. 1978. On the vicissitudes of the self: the possessed dance, the magician, the sorcerer, the lmmaker
and the ethnographer. Studies in the Anthropology of
visual communication. 5 (1), pp. 112-121.
ROUCH, Jean, MARSHALL, John & ADAMS, John.
1978. Jean Rouch talks about his lms to John Marshall and John W. Adams. American Anthropologist.
80 (4), pp. 1005-1022.
SEVERI, Carlo. 2000. Cosmologia, crise e paradoxo: da
imagem de homens e mulheres brancos na tradio
xamnica cuna. Mana. 6 (1), p. 121-155.
STOLLER, Paul. 2005. Cin-trance: a tribute to Jean Rouch. In American Anthropologist. 107, p. 123-126.
_____. 1989. Fusion of the worlds: an ethnography of possession among the Songhay of Niger. Chicago: Chicago
University Press.
_____. 1994. Artaud, Rouch and the cinema of cruelty
In Taylor, Lucien (ed.). Visualizing theory: selected essays from V.A.R. London: Routledge, pp. 84-98.
_____. 1995. Embodying colonial memories: sprit possession, power and the Hauka in West Africa. New York:
Routledge.
SZTUTMAN, Renato. 2004. Jean Rouch, um antroplogo-cineasta. In CAIUBY NOVAES, Sylvia et alli (orgs.)
Escrituras da imagem. So Paulo: Edusp, pp. 49-62.

cadernos de campo n. 13 2005

artes da vida

Escrita urbana: a pixao paulistana


ALEXANDRE BARBOSA PEREIRA
Mestre e doutorando em Antropologia Social
pela FFLCH/USP e Pesquisador do Ncleo de
Antropologia Urbana {NAU/USP).

Vandalismo, Sujeira e Poluio Visual, denies logo levantadas ao se discutir o que seria
esta forma de expresso urbana que vista por
quase toda a paisagem da cidade de So Paulo:
a pixao, escrita assim mesmo com x, conforme o uso feito pelos prprios pixadores. Fato
que poderia sinalizar apenas uma suposta ignorncia das regras gramaticais, visto que a graa
correta da palavra seria pichao com ch,
colocado pelos prprios pixadores como uma
maneira de diferenciar a sua prtica da denio comum de pichao. Pois o que fazem no
simplesmente pichar um nome, uma palavra
ou uma frase qualquer em um muro, mas sim
pixar a sua marca desenhada com letras estilizadas, contorcidas e com um formato anguloso.
As marcas que lanam nos muros, prdios, viadutos e monumentos da cidade so
geralmente nomes de grupos de pixadores. Estes nomes, no entanto, tm pouca importncia
quando esto inseridos no contexto mais geral da pixao. Os pixadores no se importam
muito com o que signica a denominao empregada por determinado grupo, embora esta
siga muitas vezes um certo padro no repertrio que utilizado para nome-los, tendo nas
idias de sujeira, marginalidade, transgresso e
loucura, temas a que se referem constantemente. Estes jovens, no entanto, do grande valor
ao formato impresso s letras, s guras que so
desenhadas entre as letras e estilizao adotada para se escrever, ou inscrever, aquela pixao
na paisagem urbana. No se pixa de qualquer
modo ou com qualquer letra, mas com um formato pr-elaborado, com tipos de letras criadas
cadernos de campo n. 13: 127-130, 2005

pelos prprios, demonstrando um padro esttico peculiar. Alm disso, h um dilogo com
o espao urbano, com o local onde esta marca
ser lanada: preciso que ela esteja em local
de grande destaque na cidade. Obter grande
visibilidade um outro fator que torna uma
pixao ainda mais atraente para os pixadores.
Porm, a idia de que h uma beleza nesta
escrita urbana, conforme outra denominao
dada s pixaes pelos seus prprios autores,
no compartilhada por grande parte dos cidados paulistanos, seno por todos. A pixao vista pela populao e pelo poder pblico
como vandalismo, sujeira e poluio visual,
devido, em grande parte, ao desconhecimento
da mensagem que ali transmitida e ao ato em
si que considerado um ataque propriedade
alheia. Por isso, a pixao e os pixadores so
vistos como um dos grandes viles da cidade.
As marcas que eles deixam pelos muros afora
so constantemente apagadas e alguns chegam
a ser presos ou espancados pela polcia se pegos
em ao. Dessa maneira, eles, alm de enfrentar o perigo de escalar edifcios e desaar a polcia, tm de lidar com a efemeridade do suporte
em que inserem suas pixaes, pois a qualquer
momento elas podem ser apagadas. Uma das
formas encontradas para solucionar essa questo a troca das folhinhas, folhas de papel
em que eles inscrevem as marcas que deixam
na cidade. Os pixadores trocam estas folhinhas
entre si e as colecionam em pastas. Alguns tm
verdadeiros acervos de folhinhas em que xam
em um outro suporte suas inscries to malvistas e efmeras na cidade.

Autores desconhecidos, 2003

Autores desconhecidos, 2003

Autores desconhecidos, 2003

Autores desconhecidos, 2003

entrevista

Entrevista com Peter Fry

DANIELA DO AMARAL ALFONSI


RIS MORAIS ARAJO
LLIAN SALES
RACHEL RUA BAPTISTA
RAFAELA DE ANDRADE DEIAB

PROF. DR. JLIO ASSIS SIMES

Antroplogo formado em Cambridge, Peter Fry fez sua primeira pesquisa de campo nos
anos 1960 entre os Zezuru da Rodsia do Sul
(atual Zimbbue), ligado Universidade de
Londres e a sua associada na frica, a University
College of Rhodesia and Nyasaland. Defendido
seu doutorado, Fry veio para o Brasil em 1970,
onde ajudou a fundar a UNICAMP e se integrou vida acadmica local, pesquisando no
pas temas relacionados a relaes raciais, homossexualidade e religio. Entre 1989 e 1993,
retornou frica como representante adjunto
da Fundao Ford e, de volta ao Brasil, passou a integrar o corpo docente da UFRJ, onde
permanece at hoje. Sua produo mais recente concentra-se no campo das discusses sobre
sexualidade e na anlise das conseqncias da
utilizao de categorias como raa, diversidade e outras, correntes no mtier antropolgico,
nas polticas pblicas para a populao negra
implementadas nos ltimos anos. Textos sobre
este assunto foram reunidos em A persistncia
da raa,1 livro que nos serviu de mote para a
realizao desta entrevista realizada em 24 de
agosto de 2005, em Campinas, que discorre
sobre muitos pontos polmicos e revela uma
profunda delidade do antroplogo a certos
pressupostos de nossa disciplina.
1. FRY, Peter. 2005. A persistncia da raa: ensaios antropolgicos sobre o Brasil e a frica Austral. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira.
cadernos de campo n. 13: 133-146, 2005

CC: No incio de A persistncia da raa, o


senhor recupera sua formao prossional e expe uma tenso entre duas correntes tericas
presente em seu primeiro trabalho de campo.
Ela seria entre a Escola de Cambridge, onde
estudou, e a de Manchester, presente na University College of Rhodesia and Nyasaland, onde
foi pesquisar. O senhor poderia aprofundar as
questes levantadas por essa tenso e explicitar
em que pontos cada uma dessas escolas foram
importantes para sua formao?
PF: A antropologia que eu estudei durante a
graduao era absolutamente clssica. Meu orientador era o Jack Goody e em Cambridge eram
todos africanistas, com exceo do Edmund
Leach. Ele representava nesse departamento o
incio do estruturalismo; o restante dos professores era estrutural-funcionalista. Como ainda
no havia mestrado l, fui, depois de me formar, trabalhar em Londres. Jack Goody sugeriu
que eu zesse uma pesquisa de campo mesmo
sem nenhum treinamento, j que a graduao
era totalmente terica. Sempre tive muita diculdade de imaginar como seriam na realidade
aqueles conceitos que aprendamos: linhagem
mnima, linhagem mxima etc.; nunca consegui visualizar nada disso. Concorri, ento,
a uma bolsa e fui estudar na frica, na antiga Rodsia do Sul. Uma das razes pelas quais
concorri a uma vaga naquele departamento
que Jack Goody disse que ele era muito bom.

134 |

Naquela poca, a Universidade de Londres estabeleceu liais em vrios lugares e um deles


era a Rodsia do Sul: era a derradeira tentativa
de assegurar o poderio branco naquela zona. A
Universidade era muito nova e bem planejada e era o nico lugar onde negros, mulatos e
brancos conviviam. O chefe de departamento
era o Clyde Mitchell, antigo colaborador de
Max Gluckman que, na poca, era professor
em Manchester. Outra pessoa de muito destaque era o Jaap van Velsen, uma gura muito
interessante, holands, membro da Resistncia
na Segunda Guerra Mundial, aluno do Gluckman que fez pesquisa em Niassalndia (atual Malavi) entre os tonga. Mitchell e outros
alunos de Gluckman, ao invs de fazerem estudos tradicionais, rurais, comearam a fazer
antropologia urbana, predominantemente nas
cidades de Zmbia (antiga Rodsia do Norte).
A questo que guiava esse grupo no era tentar
destrinchar a lgica de sociedades tradicionais,
mas ver e analisar a situao urbana nascida e
caracterizada pela imigrao da mo-de-obra
rural para as cidades. Na poca, havia uma teoria muito parecida com as teorias de aculturao daqui do Brasil, cuja idia principal era
a de que as pessoas sairiam de suas sociedades
tradicionais e se aculturariam no processo de
imigrao. O pessoal do Gluckman no adotou essa teoria e isso em grande parte por causa
dos primeiros trabalhos dele na frica do Sul.
No ensaio seminal Anlise de uma situao
social na Zululndia moderna,2 do incio da
dcada de 1940, ele desenvolve o conceito de
situao social. O argumento seria que a interpretao das sociedades passa pela anlise de
situaes sociais concretas. No que diz respeito mudana sociocultural, criticava-se a no2. GLUCKMAN, Max. [1940-1958]. Anlise de
uma situao social na Zululndia moderna. In
FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia
das sociedades contemporneas: mtodos. So Paulo:
Global, 1987.

o de encontro de culturas (culture contact)


para pensar no encontro de agentes em situaes concretas. Evidentemente, eles agiriam
de acordo com suas tradies, mas tambm
de acordo com as suas avaliaes sobre aquela
situao. Ento, toda essa antropologia eliminou do vocabulrio as idias de destribalizao, aculturao etc., e olhava para o indivduo
como quase um manipulador, estrategista. s
vezes, eu penso criticamente que esse indivduo era visto como uma espcie de homo universal, um indivduo universal e racional. Mas
eu penso isso agora, em retrospecto. Para a
poca, era muito importante frisar justamente
esse aspecto racional e moderno para contrariar aquela posio que dizia que os africanos
no deveriam votar, no poderiam participar
por serem destitudos da rational choice. Ou
seja, essa perspectiva era adotada tambm por
razes polticas: a nossa preocupao era resgatar os negros africanos da pecha de tradio, de
obscurantismo etc. Assim, quando cheguei
Rodsia do Sul, entrei em contato com o Jaap
van Velsen que, evidentemente, achou que eu
era um produto tpico da classe mdia protegida britnica que precisava de um banho de
realidade, e acusou o pessoal de Cambrigde de
no abrir os olhos para o que estava acontecendo no mundo. Ele me deu para ler o artigo de
Gluckman sobre a Zululndia e um outro trabalho do Mitchell chamado A dana kalela,3
que trata da relao das vrias etnias entre si e a
relao delas com o poder branco nas fbricas e
nas minas de Zmbia. De fato, o argumento do
Gluckman era que a antropologia tradicional era
demasiadamente formal: ela elegia modelos que
eram desenvolvidos pelos antroplogos, que em
3. MITCHELL, James Clyde. 1956. The kalela dance:
Aspects of social relationships among urban Africans
in Northern Rhodesia. Manchester: Manchester
University Press (The Rhodes-Livingstone Institute
Papers, 27). Disponvel em: www.era.anthropology.
ac.uk/Kalela.
cadernos de campo n. 13 2005

seguida traziam o seu material de campo apenas


para ilustr-los. Para Gluckman, o material de
campo deveria ter primazia: sempre voltavam
a Malinowski, porque todos concordavam que
este antroplogo apresentava tantos dados que
era possvel inclusive discordar de sua anlise.
Ento, a justicativa disso era que, se o antroplogo apresentasse uma massa de dados e depois a sua interpretao, evidentemente o leitor
teria liberdade de discordar e reinterpretar. Um
outro argumento, mais marxista, era de que
qualquer situao conteria dentro de si todas as
contradies da sociedade como um todo. Para
estudar a sociedade, ento, estudam-se as situaes. Mas tambm acho que tem mais uma
questo da qual eles no falavam, e quem me
alertou para isso foi o Carlos Vogt. Trata-se do
que ele chamou de truque de escrita: comea-se
com uma situao, o que muito conveniente porque normalmente ela tem incio, meio e
m; linear. E a grande diculdade da antropologia, creio eu, que como tudo se relaciona
a tudo, muito difcil estabelecer prioridades,
sobretudo saber por onde comear a escrever.
A situao um truque de escrita, porque ela
d a oportunidade de apresentar ao leitor algo
que, de fato, uma narrativa. Eu continuo a
defender esse partido terico porque ainda
acredito nele. Nessa perspectiva, que tambm meio gomaneana, o ator visto com
mltiplos papis e no h tanta preocupao
com identidade, j que o ator assumiria suas
identidades de acordo com as situaes isso
muito ps-moderno, avant la lettre, mesmo
que os ps-modernos no reconheam. Era, assim, uma atitude anti-culturalista, no sentido
de no atribuir nada cultura reicada, mas somente s relaes sociais. Isso vinha, evidentemente, de uma herana da Antropologia Social
Britnica, da idia de que se olha para o sistema de relaes sociais na sua totalidade, e no
apenas para um conjunto de relaes qualquer.
Tinha como herana a primazia do concreto,
cadernos de campo n. 13 2005

que talvez seja criticvel hoje em dia, mas que


um bom ponto de partida, pelo menos. Alm
disso, a observao participante foi exacerbada
ao extremo pela Escola de Manchester. No se
tinha que car l vestido de roupas coloniais
e com tenda de etngrafo tipo Malinowski,
no... Tinha que realmente entrar em campo.
Eles acreditavam nessa possibilidade e insistiram nela: cada vez que eu saa do meu campo
e voltava para a Universidade, recebia olhares
muito desconados. Eu comprei essa idia totalmente; durante dois anos e meio vivi bem
com os meus vizinhos, e isso era incomum, eu
acho. Ou seja, essa tenso entre perspectivas tericas no era muito sria de fato, porque no
se negava a velha antropologia, mas se cobrava
uma maior ateno para o presente, para a mudana e para a no-reicao da cultura.
CC: O senhor desenvolveu sua pesquisa no
perodo de descolonizao da frica. Em que
medida a observao participante se relacionava a algum tipo de envolvimento poltico na
luta anti-colonialista?
PF: Eram coisas diferentes. A gente tinha, e
at hoje tem, uma atitude totalmente anti-racista e anti-raa. Evidentemente, as nossas simpatias estavam com o movimento de libertao.
Mas vejam bem: a atitude no era exatamente
de interferncia. O Jaap van Velsen me pegou
pelo colarinho, me colocou contra a parede e
disse assim: Voc vai se simpatizar muito com
esses movimentos, mas voc no vai fazer parte.
Voc no de l, voc no negro, voc no
africano, voc um quase proto-intelectual antroplogo. Se voc quer inuenciar a situao
voc vai conversar com os seus pares, voc vai
escrever para eles e esperar que aquilo que voc
escreveu inuencie desta forma nos resultados
polticos. Foi um conselho que levei muito a
srio. Mais tarde percebi a ironia da situao:
meses depois eu vi o professor holands em sua

136 |

sala recebendo uma liderana do movimento


estudantil e ensinando-lhe instrues de como
fazer poltica universitria. Mais tarde ainda,
fui descobrir que ele fazia parte de um movimento de guerrilha urbana que, depois da independncia unilateral liderada por Ian Smith
na Rodsia do Sul,4 importava granadas, pois
achavam que pequenas intervenes a bomba
seriam o estopim da revoluo. Mas ele foi expulso do pas antes da polcia descobrir o seu
papel. Com relao poltica, existia o agravante de haver dois partidos nacionalistas negros
que se degladiavam. O perigo para os negros
era tanto entre os negros quanto que entre os
brancos, o que convinha muito ao poder branco, evidentemente, porque os negros se destruam. A minha pesquisa de campo teve que ser
cuidadosamente negociada com as autoridades
governamentais, os velhos chefes, e as novas
lideranas polticas. Era uma situao muito
difcil de negociar porque era bastante indito um jovem antroplogo branco viver com os
africanos nas suas aldeias. Era necessria a autorizao do poder pblico e o Comissrio do
Distrito me olhava com bastante desconana,
todo mundo me olhava com desconana. Porm, eu no podia me queixar, ningum tinha
me convidado, estava l por minha vontade
apenas. Mas que foi uma situao muito difcil
foi, e muito difcil de fazer pesquisa tambm.
CC: Como a sua pesquisa se desenvolveu
ento?
PF: A proposta original era fazer um estudo sobre migrao de mo-de-obra: minha
idia era passar um ano nesta aldeia e depois
4. Mesmo sem o reconhecimento da Gr-Bretanha, em
1965 Ian Smith tornou-se primeiro ministro da Rodsia do Sul, garantindo o poderio branco na regio
atravs de um regime de apartheid, que perdurou at
1980. Somente nessa data que este pas foi reconhecido como independente.

um ano na cidade, bem na linha da Escola de


Manchester. Mas no consegui as informaes
necessrias com os trabalhadores, sobre renda,
por exemplo, porque eles eram muito desconados. Ao mesmo tempo, apesar de o Jaap
van Velsen me instruir a no entrar no tema
da religio, este assunto foi cando para mim
cada vez mais fascinante. Van Velsen tinha razo porque, de fato, quase todo mundo queria
estudar religio entre os shona, j que era um
sistema bastante complexo. Alm disso, havia
uma fascinao por possesso pelos espritos,
pois na Inglaterra no existia esse tipo de crena. Mas, para fazer a pesquisa, contratei um
professor primrio como intrprete e guia. Eu
trabalhava em sua aldeia e morava na casa de
sua irm. L pelas tantas, ele comeou a desenvolver uma srie de alergias em relao a
comidas e bebidas. Comeou com a cerveja
local, produzida pelas pessoas de l. Esses encontros com cerveja so os mais ideais para a
pesquisa, porque est todo mundo presente
e a conversa ui. Ento, o que eu mais fazia
era car tomando cerveja e ouvindo conversas. Meu intrprete comeou a no suportar
sequer seu cheiro. Eu cava com algumas pessoas tomando uma cerveja e ele cava longe de
mim. Depois, ele comeou a no poder comer
mais a comida bsica de l, que uma espcie
de polenta de milho. Ele s podia comer um
outro gro nativo chamado rapoko (paino,
em portugus), que produz muito pouco e
muito trabalhoso para moer. Ento, comeamos uma via-crucis para tentar descobrir as
razes disso tudo, e o que foi revelado que
ele estaria sendo escolhido pelos espritos para
ser um mdium. Nesse processo, eu fui vendo
que vrias pessoas da gerao dele, de vinte e
poucos anos, estavam seguindo exatamente o
mesmo caminho. J tinham sado os primeiros
resultados da pesquisa do grande historiador
Terence Ranger (o livro maravilhoso dele que
se chama Revolt in Southern Rhodesia 1896-7:
cadernos de campo n. 13 2005

A Study in African Resistance,5 saiu logo em seguida) que sobre a rebelio dos negros contra os brancos em 1896. Os brancos do Cecil
Rhodes6 chegaram em 1890, e em 1896, apenas
seis anos depois, houve uma revolta coordenada
em vrios lugares do pas. Ningum conseguiu
entender tal articulao porque no havia governos centralizados no norte. Descobriram, no
nal, que foram os mdiuns que organizaram a
rebelio, porque eles mantinham uma rede de
comunicao que perpassava as fronteiras polticas territoriais. Eu pensei: isso que est
acontecendo aqui. Estou vendo o repeteco dessa mesma situao. Ficava cada vez mais claro
que aqueles jovens estavam em um processo de
rejeio da religio crist; para eles, Jesus Cristo
era apenas um profeta ou um antepassado dos
brancos, no dos negros, e que eles tinham de
voltar para os seus antepassados, e no para os
antepassados dos brancos. Essa idia estava intimamente ligada mensagem poltica, uma espcie de nacionalismo cultural. Quando voltei
para a Universidade, disse a Van Velsen: Isso
est acontecendo na minha frente e no posso
evitar de escrever sobre isso. Assim, escrevi sobre religio em um contexto contemporneo de
luta poltica. Depois saiu um segundo livro de
outro antroplogo, David Lan,7 conrmando
tudo que eu suspeitava: de fato, essa rede de comunicao entre os mdiuns era utilizada para
coordenar a guerrilha que eclodiu no norte do
pas depois da minha volta para a Inglaterra.
CC: O senhor fala de sua experincia na
frica e como ela inuenciou, em um primeiro
5. RANGER, Terence O. 1967. Revolt in Southern Rhodesia 1896-7: A Study in African Resistance. London:
Heinemann.
6. Poltico e empresrio, Rhodes considerado o fundador da Rodsia.
7. LAN, David. 1985. Guns & Rain: Guerrillas & Spirit Mediums in Zimbabwe. Harare: Zimbabwe Publishing House.

cadernos de campo n. 13 2005

momento, sua percepo das relaes raciais no


Brasil. Num segundo momento, mostra como
sua experincia no Brasil o fez repensar sua interpretao sobre as relaes raciais na frica.
O que a sua formao e atuao nos centros
acadmicos africanos e brasileiros contriburam para a sua reexo sobre questes raciais
no Brasil e na frica? Quais seriam, nessa perspectiva, os rendimentos de uma antropologia
comparativa?
PF: No so apenas experincias em departamentos, so experincias de vida. Ao chegar
ao Brasil, o que mais me chamou a ateno,
depois da frica e da Inglaterra, era a ideologia de no-racismo; eu nunca tinha encontrado um pas com esse tipo de ideologia e achei
muito positivo. Tambm quei impressionado
com a homogeneidade cultural, com o fato de
todo mundo, independentemente da aparncia
fsica, falar a mesma lngua, comer a mesma
feijoada, beber a mesma caipirinha, crer nos
mesmos espritos etc. Mesmo as religies chamadas afro-brasileiras no eram de africanos,
nem de negros, eram de todos. Isso est nas
obras de Bastide, mas eu no imaginava. Tanto
que, quando comecei a estudar a umbanda,
achava que ela ia ser parecida com o que tinha
estudado na frica, que ia ser uma espcie de
resistncia, e eu vi o contrrio, era uma religio
absolutamente integrada ao tecido social brasileiro porque no dizia sobre relaes de classe e
muito menos sobre relaes de raa. No Brasil,
as crenas bsicas so muito parecidas e pesquisas de opinio pblica revelam isso, inclusive. Elas variam um pouco por classe social,
mas muito pouco por regio e muito menos
por cor auto-atribuda. Porm, como digo no
livro, era bvio que alguma coisa no estava legal: ao mesmo tempo que no havia nenhum
sinal de racismo aberto, quase todos os negros
eram pobres. Eu tinha lido o Gilberto Freyre
do luso-tropicalismo, seus livros que traziam

138 |

essa ideologia para sustentar a manuteno do


poder branco na frica, mas no Casa-grande
& Senzala. Quando o li, o z desconado. Era
a poca de discutir a democracia racial como
ideologia e ento parecia que, de fato, essa idia
era um engodo, uma mscara. Era essa a minha
posio. Quando fui para a frica pela segunda
vez, em 1989, nove anos depois da independncia de Zimbbue, a primeira sensao foi de
euforia por estar de volta. Estava muito curioso
e queria rever os meus amigos. Mas, no fundo,
foi uma sensao de profunda tristeza. Uma de
minhas idias era tentar reescrever a histria
daquele lugar nos dez anos aps a independncia, mas desisti; era uma histria absolutamente
no-contvel. Isso me fez repensar muita coisa.
Descobri, por exemplo, que um grande amigo
meu, chamado Nestor, foi morto nas ltimas
semanas da guerra civil. Acusado de ter sido
traidor, foi ao tribunal sem defesa e acabou
queimado vivo em um saco de fertilizantes. Percebi que a primeira eleio de Zimbbue no
era uma eleio como se imagina, com eleitores
mais ou menos livres para escolher, porque no
era uma questo de escolha eleitoral, mas sim
de medo: o exrcito que mais amedrontava ganhou. Mas o mais grave que o pas no tinha
superado as premissas do racismo. Os brancos
que l caram, os meus amigos, s vezes velhos
amigos, viviam achando que estava tudo uma
maravilha: na casa deles havia sempre um, dois,
trs, quatro ou cinco africanos, mas era uma espcie de cota, uma coisa forada, que no tinha
nenhuma espontaneidade. Os nicos lugares
onde as pessoas comiam juntas eram naqueles almoos tipo business lunch, em que havia
homens de negcios comendo juntos. Mas
noite ainda havia os restaurantes de branco e
de negro, tudo continuava igual. Quando o
Robert Mugabe8 comeou a invocar a nossa
cultura, vi todas as premissas e pressupostos

explcitos do racismo colonial reelaborados


em um outro contexto, mas com exatamente
a mesma funo, de associar a raa cultura e
us-la como arma poltica. Por isso, eu achava que o Zimbbue estava nos grilhes de um
pensamento racializado, o que prejudicaria
tudo. Quando eu desci pela primeira vez em
Maputo, em Moambique, vi o contrrio. Era
o nalzinho do perodo socialista, no havia
nada nas lojas e apenas um restaurante; tudo
estava caindo aos pedaos, era impressionante.
Mas fui muito bem recebido pelos intelectuais
de l, na posio de funcionrio da Fundao
Ford. Convidaram-me para visitar as suas casas
(isso nunca acontecia em Zimbbue), onde, falando portugus, comendo bife e batata frita e
tomando vinho, conheci uma elite cosmopolita
que gostava das mesmas coisas de que eu gosto.
E l, como c, todo mundo cientista poltico e tcnico de futebol, quer dizer, a conversa
muito gostosa e com as mesmas ironias daqui. O Samora Machel9 era absoluta e visceralmente anti-tribalista e anti-racista. Os ltimos
anos do Imprio portugus tinham sido menos
agressivamente racistas do que os anos anteriores, ento Moambique viveu um perodo de
relativo no-racismo. Evidentemente, eu me
lembrei do Brasil, porque tudo combinava: nos
trs lugares (Brasil, Zimbbue e Moambique)
os brancos eram dominantes, a distribuio de
riqueza e da educao era muito parecida, com
exceo que os dois pases africanos tinham
uma pequena elite de negros com um grau de
escolaridade muito alto. Mas o que mais me
chamou a ateno em Moambique que as
relaes entre africanos e europeus e o que eles
chamam de mistos (porque so vrias misturas
em Moambique devido ao uxo de pessoas
da Europa e do subcontinente indiano) no
eram caracterizadas pela desconana. Muitos
racistas mais veementes devem ter sado de l

8. Presidente do Zimbbue desde 1980.

9. Primeiro presidente de Moambique, Machel governou este pas entre 1975 e 1986.
cadernos de campo n. 13 2005

em 1975, possibilitando uma situao relativamente relaxada, e eu pessoalmente me senti muito mais vontade naquele ambiente do
que em Zimbbue. Com isso, comecei a fazer
uma crtica dos pressupostos do colonialismo
britnico que nunca havia feito antes. E pensei:
Meu Deus, talvez o Gilberto Freyre ao menos
tivesse razo quando reconhecia dois estilos de
colonizao e que certamente a maneira pela
qual se compreende as diferenas no a mesma em Zimbbue e nesses pases (Moambique
e Brasil). A mudana de perspectiva na anlise
foi uma combinao no tanto pelo que eu li,
mas pela experincia pessoal mesmo. Foi uma
experincia comparativa; penso que a melhor
maneira de estranhar qualquer instituio
ter o conhecimento de outra, de uma sociedade em relao a outra, pessoal ou atravs dos
livros. Certamente foram aquelas experincias
de Zimbbue e Moambique que me chamaram a ateno para essas questes. Foram experincias existenciais, de distanciamento de
viver. Eu ansiava voltar para Moambique o
tempo todo. E o interessante que este pas
agora cresce 12% ao ano, enquanto Zimbbue
decresce 20% ao dia! Moambique vai de vento
em popa; com o nal do socialismo se liberou
uma energia reprimida muito positiva. E no
um pas de rano. Tem diculdades inter-tnicas, inter-raciais, claro que tem, todo lugar do
mundo tem, mas no so empecilhos, e penso
que l as pessoas sabem conviver.
CC: Ainda sobre este assunto, como a sua
experincia como representante adjunto da
Fundao Ford o ajudou a pensar sobre as relaes inter-raciais nos pases de colonizao
inglesa e portuguesa?
PF: A Fundao Ford americana e bastante
racializada, ento a minha experincia naquele
escritrio foi fundamental. Eu tinha um companheiro de trabalho, Michael Chege, negro
cadernos de campo n. 13 2005

africano do Qunia, que se tornou um grande


amigo. De vez em quando vinham pessoas da
Amrica do Norte, e eu nunca vou esquecer o
dia que chegou um negro americano que s falava com o Michael, chamando-o de brother.
Eu estava me sentindo cada vez mais incomodado e, evidentemente, o Michael percebeu.
Depois de um tempo ele se virou para o outro
e disse: Escuta, voc est me chamando de
brother. Eu no sou o seu irmo. Se voc est
usando este termo metaforicamente, o Peter
muito mais o meu irmo do que voc. O Michael tambm tinha esse dio da racializao
das relaes sociais. Tivemos muitas experincias, desmascarando e ridicularizando os novos
racismos. Uma vez, em Dar-es-Salaam, na Tanznia, encontramos um mdico que morava
em Washington, que comeou a me xingar pela
minha responsabilidade como um ingls por
ter destrudo as casas arredondadas da sua tribo
e t-los obrigado a fazer casas quadradas. Eu
disse assim: Desculpe, no estive l na poca,
e realmente no me sinto responsvel por isso.
Mas Michael foi muito mais alm: Senhor
mdico, voc mora aonde?. Washington.
E... qual o formato da sua casa?. Enm, o
que me chamava a ateno era a nocividade, a
mentira, a hipocrisia dessas posies completamente alucinadas que se produzem quando se
racializa as situaes, mesmo as mais prximas.
A prpria Fundao Ford foi obsessivamente
dividindo o mundo entre mulheres e homens,
negros e brancos etc., ento se comea a no
ver mais nada, s essas categorias. Este no o
mundo que eu quero para mim. Por isso comecei a pensar que a idia de uma sociedade sem
raa uma idia legal, que no uma idia maluca, e nalmente percebi que o inimigo era o
racismo, e no a democracia racial. Eu gostava
de ser inimigo do racismo, mas no inimigo da
idia do no-racismo. Passei a argumentar que
a idia da insignicncia social da raa produz,
e no mascara apenas, um tipo de relao social

140 |

e certas situaes que deveriam ser compreendidas. Ou seja, no uma ideologia, um mito
no sentido antropolgico do termo; um guia
para a ao social, bem malinowskiano mesmo.
Assim, entrei na contra-corrente dos meus velhos amigos. Por isso, no consigo assinar embaixo de uma reengenharia social que fortalece
aquilo no qual discordo e tenho a mesma ojeriza que tenho para com a acusao de bruxaria,
por exemplo. Porque alis, bruxaria e racismo
so casos muito parecidos.
CC: O senhor trabalha em seu livro com
a idia de democracia racial a partir de trs
formas. A primeira como falsidade, aquilo
que encoberta uma realidade social. A outra,
mais ligada antropologia britnica, como
um modo de justicar contradies postas por
um grupo social. E a terceira como utopia,
um ideal a ser alcanado. Gostaramos que o
senhor relacionasse um pouco mais essas trs
idias.
PF: A segunda forma tem a ver com a terceira, e baseada em toda aquela mudana
da antropologia nas dcadas de 1960 e 1970,
quando se quebra com o estrutural-funcionalismo e com a relao direta que ele faz entre as
relaes sociais e as representaes (a infra-estrutura e super-estrutura dos marxistas, mais ou
menos). Tudo comea a car no mesmo plano
analtico quando se percebe as interaes entre
representaes, ao e prtica. Quem ajudou
muito foi Michel Foucault. Eu nunca consigo
v-lo como arauto do ps-modernismo, sempre o vi como um antroplogo olhando para a
histria. A idia da positividade do discurso era
muito importante; por isso, eu acho que se no
tivesse existido esse discurso da democracia racial, certas situaes seriam impossveis, como
o futebol, o carnaval etc. Quando meus amigos
sul-africanos vm aqui, eles no acreditam: eles
acham que foi forjado, porque l eles tm de

forjar. No entanto, esse mito concorre com outro o da inferioridade africana que produz
a situao de desigualdade e um certo apartheid
que se v sobretudo nos mercados imobilirio
e de trabalho. Acho que esses dois mitos produzem a situao contraditria em que a gente
vive. Mas necessrio entender os dois; s um
complicado. A terceira forma de entender a
idia de democracia racial a que diz qual o
caminho pela frente, ou seja, evidentemente
atacar o segundo mito e enaltecer o primeiro.
Este mito, ento, se torna utopia; o outro, por
sua vez, tem de ser demonizado.
CC: No livro, o senhor trabalha com trs
conceitos-chaves. O primeiro o de diversidade como conceito nativo, mas importado das
naes anglo-saxs especialmente via agncias
de fomento pesquisa. O segundo o de mestiagem, mistura ou cadinho como categoria
cultural existente no Brasil. O terceiro o de
sincretismo e hbrido, que seria um conceito
analtico do pesquisador. Cada uma dessas
categorias revela reexes diferentes, mas que
tm como questo de fundo uma tenso entre
cultura nacional homognea e cultura nacional
segregada. possvel, ento, falar de cultura
nacional em termos analticos, sem correr o risco de essencializar essa categoria?
PF: Se a gente for ver a constituio das
burguesias nacionais na Europa, elas se construram como cosmopolitas, incentivando,
incitando e produzindo diversidade cultural
local. As naes metropolitanas aplicavam
esse conceito de diversidade em suas colnias,
os ingleses mais que os portugueses. Se confrontado o modelo de assimilao contra o de
segregao, de fato, os portugueses eram muito
mais assimilacionistas que os ingleses. Isso no
quer dizer que os portugueses tambm no fossem segregacionistas, ou no incitassem certa
diversidade. Mas o resultado desses processos
cadernos de campo n. 13 2005

o apartheid por um lado e talvez, por outro,


Moambique. Essa idia de diversidade, ento, produzida emicamente, como tambm
a idia de cultura nacional. Existem esses dois
modelos; eles coexistem e produzem situaes,
mas penso que, nessa oscilao e estou sendo
leacheano comigo mesmo , a predominncia
de um sobre o outro tende a produzir o que
chamamos de realidades nacionais. No se trata de essencializar, mas o fato que quando se
sai do Brasil, sabe-se que se sai do Brasil.
CC: Por que se sai de uma cultura homognea?
PF: No totalmente homognea, mas que
tem qualquer coisa que eu sei, e que chamo de
Brasil. Mas como vamos falar disso sem essencializar? No sei, no sei mesmo. verdade que
as explicaes culturalistas no Brasil so muito
complicadas, arma-se que o Brasil assim,
assim e assado. A palavra , em portugus,
no o ingls is, porque no portugus ela se
contrape ao est, o que torna tudo muito
mais esttico. Sobre essa questo de hbrido e
sincrtico serem analticos, no sei... So e no
so. Sincretismo mais usado no campo religioso, aparece o tempo todo e pressupe, logicamente, a existncia de algo puro em algum
momento, o que no se pode acreditar. Ento,
a prpria noo de sincrtico eu acho que
mais mica, mais nativa que analtica. Porque
as pessoas falam assim. uma maneira de tentar descrever, de colocar em palavras aquilo que
as pessoas dizem, mas eu acho que so palavras pobres. Hbrido tambm muito pobre,
eu acho, por causa da sua prpria etimologia:
aquilo que hbrido infrtil, no tem futuro. Logo, eu acho que no so conceitos muito teis, apesar de saber que esto muito em
voga, porque entram na linguagem acadmica
e dos projetos polticos. O Brasil, na propaganda que se faz l fora, especialmente nesse
cadernos de campo n. 13 2005

Ano do Brasil na Frana, fala de hbrido, de


um pas maluco e ps-moderno; so esses os
termos usados. Eu acho que so idias nativas
mesmo, que vale a pena entender como elas entram em circulao. Mas no Brasil h os dois:
o elogio da mistura e isso muito arraigado
e tambm a idia de autenticidade presente,
por exemplo, no candombl, onde se produz
cada vez mais frica. Por isso se tem, quase leachanamente, os gumsa e gumlao oscilando e
interagindo. Para mostrar como essa idia da
mistura est internalizada nos indivduos, vou
falar da pesquisa que estamos fazendo em escolas do Rio de Janeiro. Ao invs de perguntar
s pessoas a raa/cor tal como o IBGE faz, a
gente formulou assim: Voc sabe que o Brasil
foi povoado pelos amerndios, pelos europeus
e pelos africanos. Em que proporo voc acha
que tem essas trs ascendncias? Nenhum aluno respondeu evocando apenas uma nica ascendncia. Eu escrevi que sou 100% europeu,
mas ningum colocou 100% europeu, africano
ou amerndio. Os que se diziam pardos armavam que eram mais ou menos 1/3, 1/3, 1/3.
Ou seja, eles reproduziram a idia de mistura, o que, alis, conrma a minha prtica em
sala de aula. Eu sempre pergunto isso para as
pessoas, e aquelas que tm mais variedade so
as mais orgulhosas, sobretudo as que dizem ter
ndio e africano. Elas sorriem de complacncia, enquanto os puramente poloneses sofrem
horrores...
CC: Hoje percebemos uma tendncia reicao da idia de tradio por parte de grupos
polticos e agncias nanciadoras, tornando-a
um valor. Pede-se aos antroplogos denies
de cultura tradicional para a implementao de
polticas pblicas. Como o senhor se posiciona
diante dessa situao?
PF: H um movimento mesmo, nesse sentido. Fica mais claro em alguns lugares do que

142 |

em outros, como na produo da indianidade


e nos quilombos. Eu co estarrecido diante de
tudo isso, porque se fala agora de quilombos
como se fossem lugares completamente diferentes do resto do Brasil. Isso me chama muito
a ateno, porque quando o Carlos Vogt e eu
zemos a nossa pesquisa sobre o Cafund,10 escrevemos sobre isso, e como se no tivssemos
escrito. Eu lamento que a gente escreva, escreva, escreva e o discurso no mude. Fomos para
o Cafund porque l tinha um vocabulrio de
origem africana; isso verdade. Fora disso, culturalmente, era absolutamente igual a qualquer
bairro rural pobre paulista, que j foi bastante estudado e sobre o qual muito se escreveu.
Quando fomos atrs dessa lngua que nunca
mais achamos, fomos a dezenas de comunidades rurais negras onde as pessoas diziam que
tinham essa lngua, mas no tinham. Ento, o
pressuposto hoje que quilombo um lugar
completamente distinto, o que no vi quando
o pesquisei.
CC: Com o argumento forte, tambm, que
so formados por descendentes de escravos.
Procura-se buscar em documentos essa comprovao...
PF: No mais necessrio comprovar nada
em princpio porque o decreto presidencial
4.887, de 20 de novembro de 2003, que rege
a matria, diz claramente que so os prprios
quilombolas que se denem como tal. No
necessrio demonstrar nada em princpio,
embora antroplogos so chamados para participar no processo de titulao das terras. Ao
mesmo tempo comeam a existir polticas pblicas para garantir a manuteno e a tradio
dos quilombos. O projeto de Rafael Sanzio
Arajo dos Anjos, chefe do Departamento de
10. Cf. VOGT, Carlos & FRY, Peter. 1996. Cafund, a
frica no Brasil: linguagem e sociedade. Campinas/
So Paulo: Ed. Unicamp/Companhia das Letras.

Geograa da Universidade de Braslia, diz assim: Ns temos que ter polticas pblicas nos
quilombos, evitando que os jovens saiam, porque se os jovens saem vo perder a tradio.
Isso foi exatamente a poltica do apartheid, que
connou as pessoas nas suas tradies. Quer
dizer, para ns, elite, bom falar ingls, francs, portugus; para os outros no. Claro que
isso tem a ver com os nossos tempos: acho que
estamos assistindo a uma situao foucaulteana
mesmo, onde h um discurso sobre diversidade sendo produzido e repetido. E h instituies dedicadas produo desse discurso que
classicamente lembram a idia da Microfsica
do poder,11 sobretudo a Secretaria Especial de
Polticas de Promoo da Igualdade Racial
(SEPPIR). um pequeno grupo, mas que est
em todos os lugares, nos Municpios, nos Estados, em todos os Ministrios. Qualquer projetinho tem a mo dessa Secretaria, que produz e
retroalimenta todo esse discurso, que se repete
at nos lugares mais capilares da sociedade. De
repente, a D. Zuleika acorda como uma quilombola. Antes ela no era, de repente ela ,
assim como de repente a lha da D. Zuleika
vai ter uma educao especca. No sei como
ser, como tampouco no sei o tipo de sade
especca que eles tero...
CC: Mas, ao mesmo tempo, o que faremos,
j que necessrio o laudo antropolgico para
garantir o direito dessas populaes terra?
PF: Esse o grande paradoxo, exatamente. Uma amiga minha, Suzana Viegas, quando
estava escrevendo sua tese de doutorado sobre
os tupinamb, foi responsvel pelo laudo de
demarcao das terras desse grupo. Quer dizer que ela sabe o processo atravs do qual esse
grupo indgena se nomeia o mais famoso da
histria do Brasil. Ela fez o laudo, pois se ques11. FOUCAULT, Michel. 1984. Microfsica do Poder.
Rio de Janeiro: Graal.
cadernos de campo n. 13 2005

tionava: Como que vou deixar esse pessoal


margem do mundo? Se eu tivesse que fazer,
faria, mas sei perfeitamente que o meu laudo
contrariaria tudo que estudei. Eu acho que isso
um problema muito srio, pois os antroplogos so chamados para fazer coisas que vm a
contrapelo da nossa disciplina. Anal, na minha acepo, a antropologia moderna nasceu
crtica em relao a esse tipo de pensamento,
que demarca e essencializa fronteiras. Por isso,
sempre incentivei, em Campinas e no Rio, que
os alunos aproveitassem o espao universitrio
para dizer o que no dizvel alhures, e as pessoas fazem isso bem. Isso parte da tradio
da disciplina e muito legal... Nesse sentido,
eu acho que Malinowski um exemplo. Ele
vivia da crtica das convenes do seu tempo,
questionando a universalidade da famlia monogmica burguesa, por exemplo; isso era uma
bomba para a poca. As universidades so na
verdade os nicos lugares de onde possvel falar... Mas os antroplogos esto numa situao
complicada. Como que podemos nos recusar
a ajudar um grupo de pessoas, completamente sem terra e sem condies de sobrevivncia,
dessa oportunidade assegurar a sua segurana
territorial? S que esse direito passa por este
caminho... A eu me pergunto, por que no
lanar mo do usucapio? No tem como? O
usucapio se funda num direito que no discrimina raa, nem gnero, e alm do mais
produz o ttulo individual, ao contrrio dos
quilombos, onde o ttulo coletivo. Acontece
que os processos de usucapio simplesmente
no andam! A reivindicao de especicidade
tnica tem conseqncias muito mais imediatas. Alm disso, do ponto de vista da antropologia, importante reconhecer que as palavras
da prpria disciplina entraram denitivamente
para o cenrio poltico. A questo da relatividade cultural virou assunto, assim como a idia
de alteridade, mas no uma alteridade como
constatao analtica, e sim como um valor. H
cadernos de campo n. 13 2005

uma srie de discursos a produzir esses valores


e a incitar prticas em relao a eles. Alis, eu
estou fascinado por isso, porque o Brasil se v
como misturado h anos, ensina s criancinhas
que misturado, e de repente ele no mais
misturado, diverso! Essa pedagogia racial est
sendo distribuda nas escolas para as crianas, e
quem est dando as aulas? O Movimento Negro! No mais a sociedade brasileira e toda
a sua complexidade que so apresentadas aos
menininhos, uma verso. Todo mundo acha
que aquela Lei 10.639, que tornou obrigatria
a incluso na rede ocial de ensino a temtica
Histria e cultura afro-brasileira fantstica,
mas ningum leu o parecer. Ele de deixar o
cabelo em p. O governo continua, cada vez
mais, com programas especcos para a populao negra. H uns meses, escrevi um artigo
sobre a racializao da AIDS e ningum respondeu. Imagino que isso produzir situaes
muito interessantes de contradio, de confuso. Os mais otimistas acham que o Brasil
to completamente misturado nesse sentido
ideolgico que, no m das contas, tudo isso
vai ser apenas uma nuvem passageira. s vezes
eu penso assim, outras vezes eu penso que no,
porque essa pedagogia racial nas escolas algo
srio. E quem passou pela frica do Sul e viu
tudo aquilo no pode car calado! Eles lutaram
no sei quantos anos contra essa diviso de polticas pblicas especcas, e sobretudo em educao. Que tipo de educao que se pode dar
para um quilombola que diferente da nossa?
Isso signica algo, e foi o fato de as pessoas no
discutirem estas questes que me levou a juntar
esses ensaios em um livro.
CC: Mas no se trata de polticas pblicas
que visam compensar situaes passadas de excluso e segregao?
PF: Se fosse para o governo colocar a escola de Notre Dame no quilombo eu estaria de

144 |

acordo. Mas no acredito que seja isso, duvido


muito. Porque se houvesse uma poltica compensatria que ningum nunca fez tinhase colocado, no Rio de Janeiro, as Escolas de
Aplicao nas favelas. Quando o Brizola tentou
fazer, durou pouco, os CIEPs foram exterminados. Dizem que tambm exterminaram essa
experincia feita pelo governo Marta Suplicy, os
CEUs. Eu acho essa uma idia genial. Enfrenta-se a desigualdade fazendo, por exemplo, a
melhor escola possvel nos lugares mais pobres.
CC: Essas polticas no revelam um Estado liberal que nunca funcionou direito? Anal,
educao e sade seriam direitos de todos...
PF: Seriam para todos e com a mesma qualidade. Porm, quando as pessoas dizem que as
polticas universais nunca funcionaram, a soluo que se pensa para esse problema partir
para as especcas. Mas ningum nunca aplicou
uma poltica universal, todo mundo sabe disso.
Dessa maneira, eu acho interessante como uma
sociedade imaginada como sociedade de classes
se torna, de repente, uma sociedade de diversidade tnica e de gnero... interessante que se
trata do mesmo debate em relao s questes
de gnero. Eu tive conversas maravilhosas com
o Roger Raupp Rios, que Juiz Federal no Rio
Grande do Sul e trabalha com legislao para
direitos sexuais. a mesma discusso porque,
por um lado, h aqueles que querem dividir o
mundo em identidades com legislao especca, e ele est tentando produzir uma legislao genrica, universal, em que caibam todas
as possibilidades, no reprima nenhuma e no
incite a represso.
CC: Sobre esse ponto, como o senhor v as
possibilidades de comparao entre a questo
racial e da sexualidade para compreend-las no
Brasil?

PF: Olhando para a sexualidade masculina,


percebeu-se que havia uma complexidade novisvel e comportamentos que, primeira vista,
so ambguos. A descoberta disso foi a salvao
do Brasil, pois se no tivesse percebido isso no
se saberia como combater a AIDS. Quando se
olha para a questo racial, a palavra que aparece muito tambm ambiguidade. Ento,
nos dois casos, a percepo de fronteiras no
muito clara; h essa questo em comum. Mas,
diferentemente, a identidade homossexual que
as organizaes construram positiva. Por
exemplo, a Parada Gay positiva e acolhedora os resultados das pesquisas mostram que
20% das pessoas que estavam l se diziam heterossexuais , isto , o movimento homossexual produziu assim uma identidade positiva e
no-exclusiva. Seu smbolo, o arco-ris, uma
boa metfora disso, porque se tem uma bandeira geral e debaixo dela h uma multiplicidade de possibilidades. Assim, politicamente,
o movimento homossexual consegue colocar
dois milhes de pessoas na rua em So Paulo,
e isso muito signicativo, pois todo mundo
em um mesmo espao implica em algum tipo
de comunho. Apesar de ainda ser uma categoria muito estigmatizada, mesmo assim se tem
uma identidade positiva e um movimento que
acolhe qualquer simpatizante. Agora, comparando com o outro lado, qual a identidade
que est sendo produzida sobre os negros no
Brasil? sobretudo uma identidade de vtima e
um movimento que procura marcar diferena.
Por isso, um movimento que no se expande,
no aumenta; no e nunca foi de massa, apesar de ser politicamente fortssimo. O Ministrio da Reforma Agrria, por exemplo, vai ter
que titular no sei quantos quilombos em um
ano... E cota uma palavra que surge em 2001,
literalmente. Como explicar que ela, desde ento, se prolifera sozinha, sem precisar nem de
legislao federal?

cadernos de campo n. 13 2005

CC: O senhor trabalha com as idias de


aparncia e esttica como importantes para
a construo de uma imagem negra positiva,
promovendo uma identidade no racializante.
Em que medida possvel fazer essa discusso
e implementar aes anti-racistas e anti-racializantes na sociedade civil, fora do mbito do
Estado, a partir dessas categorias?
PF: Qualquer sociedade feita a partir de
uma leitura esttica; os indivduos so classicados assim. Para mim, parecia mais ou menos
bvio que qualquer ataque contra o racismo
tinha que ser um ataque esttico, e eu quei
fascinado quando o mercado de bens higinicos comeou a se expandir e se diversicar para
vrias peles, cabelos etc. medida que fui falando com os cabeleireiros, descobri que eles
tambm cavam fascinados, e que as pessoas
que se sujeitavam a esse tipo de tratamento
cavam felizes. Antes, no havia propaganda
com mulher negra porque no havia produto
para ela. Ento, eu comecei a olhar para as propagandas desses novos produtos de uma forma
distinta, porque achava que era uma maneira
de se notar que algo estava mudando, e que
uma esttica antes esquecida tornava-se absolutamente visvel. E isso corria a contragosto do
prprio mercado, porque ele pouco se lixa para
essas questes de racismo; se interessa, evidentemente, pelo mercado de consumidores. Mas
o mercado que est efetivamente produzindo
uma nova esttica, e digo isso apenas a partir de
uma reexo muito supercial sobre a televiso
mais popular, que cada vez mais povoada por
pessoas de estticas diversas. Ento, romanticamente, eu acho que por a que a coisa vai...
O nico lugar onde passou a existir cotas e que
no me deixou arrepiado foi quando o governo
do Municpio do Rio de Janeiro instituiu cotas
para a propaganda pblica. Eu achava a idia
interessante, porque no colocava em evidncia
sempre as mesmas pessoas, e isso no ofende
cadernos de campo n. 13 2005

em nada porque obriga o reconhecimento da


diversidade esttica. Eu achei muito importante e penso que a publicidade brasileira poderia
ser mais consciente disso. Por isso, quando eu
escrevi esse artigo, no o z em tom de denncia de propsito, no porque eu no co chocado com o racismo, mas por ser uma maneira
de falar com os produtores de propaganda. A
idia no foi coloc-los contra a parede, porque quando se coloca algum contra a parede
a tendncia que se que ainda mais contra a
parede, o adversrio normalmente nca o p.
Isso acontece quando se produz um movimento muito agressivo, e o que de certa maneira
aconteceu com o Movimento Negro. Na minha opinio, ele agride ao acusar todo mundo
de racista, pois as pessoas no se vem como
racistas; mesmo sendo, elas no se vem assim.
CC: O seu livro termina com uma proposta
de deslocar o debate em relao s polticas de
ao armativa na Universidade de um foco de
raa para o de classe social. Em que medida h
limitaes nessas solues que o senhor prope
como a desterritorializao, a criao de um
fundo de custeio para os estudos dos pobres,
a reserva de vagas para estudantes de escolas
pblicas j que so planos que no so discutidos pelo corpo acadmico como um todo,
alm de trazerem, em graus diversos, diculdades para a implementao?
PF: Eu acho que essa a parte mais fraca do
livro porque, no fundo, no vejo soluo nenhuma a curto prazo. Eu penso que no h outra
maneira de enfrentar essas questes, seno um
choque de educao e, nesse aspecto, o Brasil est
anos-luz atrs de todo o mundo. Seria necessrio
mudar o sistema, pois nalmente se descobriu
que o sistema educacional ibrico feito para
excluir. No Brasil, no se sai do Ensino Mdio
com um certicado sem ser aprovado em todas
as matrias; na Inglaterra, sai-se graduado com as

146 |

matrias em que se aprovou. Eu no tenho uma


viso muito clara sobre isso, mas sei que faria
como Marta Suplicy fez, eu colocaria as melhores escolas e os melhores professores nos lugares
mais pobres no Brasil. Se o programa dos CIEPs
no Rio de Janeiro tivesse sido mantido de acordo com os princpios iniciais, teramos hoje um
contingente enorme de ex-pobres formados nas
melhores universidades.
CC: Como o senhor avalia o espao que o
senhor conseguiu, como professor universitrio, para inuir no debate pblico em relao a
todos esses temas?
PF: Eu sou absolutamente ctico, infelizmente. J escrevi e falo bastante sobre racializao e poucos me levam a srio (pelo menos em
pblico). Ento, no sei porque escrevo. Esse
programa para a populao negra de combate
a AIDS muito srio mesmo, e o que me espanta que no h intelectuais negros tambm
preocupados. Anal, eles deveriam car receosos da racializao indevida. E por qu? Porque
toda poltica que leva diviso entre brancos e
negros no Brasil apoiada automaticamente.
uma espcie de leninismo racial. Ento, tornase necessrio fazer um programa de AIDS para
a populao negra sabendo perfeitamente que
uma questo de classe, que no tem nada a
ver com raa. E isso loucura porque estamos

construindo cegamente aquilo que os outros


pases de tradio racializadora gostariam de
desconstruir. Eu no acredito que o Tarso Genro pensou nisso quando mudou de um dia para
o outro e disse: Era contra cotas e agora sou a
favor. No acredito que ele tenha ponderado
que h uma rearmao da categoria raa que
implcita poltica de cotas. Isso muito espantoso porque ele pertence esquerda do PT,
que sempre pensou em termos de classe social
e que, de repente, passou a apoiar uma poltica
compensatria para as etnias que, alis, virou
uma espcie de metfora para classe. Desse jeito, cria-se uma espcie de sosma, fala-se que
os negros so pobres, a maioria dos pobres so
negros; ento, ns esquecemos os pobres e falamos que a AIDS est aumentando entre os
negros, quando teramos que falar entre os negros e os brancos pobres. Exclui-se os brancos
e racializa-se a discusso. O rumo planejado por
essa poltica parece ser apenas fortalecer as organizaes negras da sociedade civil. Mas antes de
tomar esse rumo, acho que o Brasil tinha que se
discutir como nao e no como um movimento. Fico numa posio absolutamente incmoda
lutando contra os pressupostos da maioria dos
ativistas negros; no gosto de parecer contrrio
a essa luta, muito desagradvel. Mas uma
convico, e essa a convico que funda a antropologia moderna que vem desde Franz Boas,
que dissociou raa de cultura, e pronto.

cadernos de campo n. 13 2005

tradues

Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia


MARCIO GOLDMAN
Professor Adjunto do PPGAS/MN/UFRJ; pesquisador do CNPq e bolsista da FAPERJ; autor
de Razo e Diferena. Afetividade, Racionalidade e
Relativismo no Pensamento de Lvy-Bruhl (1994),
Alguma Antropologia (1999) e Como Funciona a
Democracia. Uma Teoria Etnogrca da Poltica
(no prelo), alm de co-organizador de Antropologia, Voto e Representao Poltica (1996). Realiza
trabalho de campo sobre poltica, etnicidade e
religies afro-brasileiras em Ilhus, sul da Bahia.

Se o escritor um feiticeiro porque escrever


um devir, escrever atravessado por estranhos
devires que no so devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo etc.
Gilles Deleuze e Flix Guattari

Jeanne Favret-Saada faz parte desse grupo


de autores conhecidos por terem escrito um
livro. Neste caso, ainda que isso fosse inteiramente verdadeiro, no se poderia dizer que
trata-se de pouca coisa. Les Mots, la Mort, les
Sorts uma maravilha etnogrca e, ao mesmo
tempo, uma das raras obras-primas da histria
do pensamento antropolgico. Elaborado e escrito em uma poca (no to distante assim)
em que a imagem do pensamento dominante
na academia ainda no era construda com os
parmetros empresariais capitalistas da rentabilidade e da produtividade, o livro levou quase
dez anos para car pronto. Perodo que envolveu uma longa e intensa pesquisa de campo,
conduzida entre 1968 e 1971, sua redao e
sua publicao, que s ocorreu em 1977.
Esse tempo que hoje, certamente, seria
considerado apenas uma demora faz, entrecadernos de campo n. 13: 149-153, 2005

tanto, parte intrnseca e constitutiva do trabalho. De fato, Favret-Saada no se cansou de


relatar, em diversas ocasies, como os primeiros
meses no campo (quase um ano, na verdade)
foram, aparentemente, estreis. Apenas a autora parecia se interessar por seu tema, a feitiaria; seus interlocutores reagiam, antes, evitando
o assunto, negando ou denegando sua prpria
existncia, imputando-o a pessoas tidas como
ignorantes ou remetendo-o a um passado j superado h muito tempo.
Se a pesquisa tivesse, ento, durado apenas
um ano (quantos de ns dispomos mesmo desse prazo atualmente?), Favret-Saada no teria
muito a dizer alm do que pode ser obtido pelo
limitado procedimento de investigao que
Malinowski j condenava sob o nome de mtodo de pergunta e resposta. Ou do que se pode
extrair da consulta de documentos e arquivos
onde, como lembra Favret-Saada (1981b: 336),
o povo falado mais do que fala, aparecendo
como o objeto do discurso administrativo, no
como o sujeito de um discurso autnomo
produzidos por aqueles mesmos que desprezam
e desejam condenar ao silncio prticas como a
feitiaria. De psiquiatras, jornalistas e dos que

150 |

se consideram parte das elites, no se pode esperar muita coisa quando o tema em questo
parece desaar suas certezas e at mesmo sua
dominao.
O passar do tempo, entretanto, no apenas o passar do tempo. Esse falso trusmo conduziria apenas s banalidades que repetem que,
com o tempo, os nativos se acostumam com
a presena dos etngrafos e passam a se comportar mais normalmente e at mesmo a relatar
a eles seus segredos mais ntimos.
Em lugar de supor que o tempo apenas
fornece um meio externo para as relaes humanas, preciso compreender que ele , ao
contrrio e em si mesmo, uma relao. Pois
apenas com o tempo, e com um tempo no
mensurvel pelos parmetros quantitativos
mais usuais, que os etngrafos podem ser afetados pelas complexas situaes com que se deparam o que envolve tambm, claro, a prpria
percepo desses afetos ou desse processo de ser
afetado por aqueles com quem os etngrafos se
relacionam. Foi apenas quando algum diagnosticou que a etngrafa fora pega (prise) pela
feitiaria que passou a fazer algum sentido falar
com ela sobre o assunto.
No se trata, contudo, de imaginar nenhum
crdulo local que, para a felicidade de uma pesquisadora que permaneceria distante e inclume em sua objetividade de cientista, tivesse
decidido acreditar que ela tambm fora enfeitiada. Na verdade, Favret-Saada tinha seus
sintomas, de repetidos acidentes de automvel
a um certo tremor das mos e um brilho diferente no olhar. Sintomas que permitiam levantar a hiptese do enfeitiamento. Por outro
lado, indagar se ela tambm acreditava na feitiaria igualmente um exerccio cheio de inutilidade, uma vez que no se trata, justamente,
de crena, mas como o leitor aprender no
texto da autora aqui traduzido em tima hora
de afeto. No de afeto no sentido da emoo
que escapa da razo, mas de afeto no sentido

do resultado de um processo de afetar, aqum


ou alm da representao.
No h nenhuma necessidade de supor,
tampouco, que os afetos de Favret-Saada no
mundo em que passara a viver (e que, por
um tempo, ltrava tambm o mundo com o
qual ela estava mais habituada e que costumamos chamar de nosso) fossem idnticos aos
sentidos por aqueles que viviam mais longa e
cotidianamente, no a crena, mas a experincia da feitiaria. Basta que os etngrafos se
deixem afetar pelas mesmas foras que afetam
os demais para que um certo tipo de relao
possa se estabelecer, relao que envolve uma
comunicao muito mais complexa que a simples troca verbal a que alguns imaginam poder
reduzir a prtica etnogrca. Trata-se em suma,
como escreve a autora (Favret-Saada 1990a:
7-9), de conceder estatuto epistemolgico a
essas situaes de comunicao involuntria e
no intencional, evitando a desqualicao
da palavra indgena em benefcio da promoo da do etngrafo, assim como a armadilha
suprema de imaginar que fazer etnograa signica explorar as trevas com uma losoa das
Luzes (Favret-Saada 1981b: 344).
Em funo de tudo isso, Les Mots, la Mort,
les Sorts no pode ser enquadrado em nenhum
dos dois estilos etnogrcos contemporneos
mais usuais. No se trata de apresentar as pessoas e suas aes (inclusive o que elas dizem e,
s vezes, at mesmo o que elas supostamente
pensam) como um antigo naturalista descrevia,
sobre um mesmo plano, fauna, ora e geograa.
Mas no se trata, tampouco aps condenar
essa primeira modalidade de descrio como
empirista, ingnua ou autoritria, na medida
em que se arroga o direito de representar o outro , de voltar-se para dentro, opondo uma
suposta transparncia do sujeito para si mesmo
opacidade do mundo dos outros. Ao transitar do cienticismo para algo como um certo
tipo de autobiograa, o gnero etnogrco no
cadernos de campo n. 13 2005

-, , |

parece ter avanado muito: que um etngrafo


aceite ser afetado no implica que se identique com o ponto de vista indgena, nem que
aproveite a experincia de campo para excitar
seu narcisismo (Favret-Saada 1990a: 7).
Na verdade, conta a autora (Favret-Saada
2004a), os afetos suscitados no campo, a despossesso e a perda de controle de si, a aceitao do desejo desconhecido do outro, o
reconhecimento de uma opacidade constitutiva da comunicao humana, tudo isso que
era insuportvel para os etnlogos, era banal
para os psicanalistas. Por outro lado, bastou
que a autora sustentasse que a feitiaria ou
antes, o desenfeitiamento constitui uma forma de terapia que nada deve psicanlise, para
que o cienticismo que os analistas sem dvida
compartilham com os etnlogos impedisse que
a acolhida do trabalho de Favret-Saada fosse
muito longe. De fato, ela sugere que no se trata, no desenfeitiamento, nem de uma forma
primitiva de lidar com aquilo que s a cincia realmente conhece, nem de uma simples
modulao cultural de uma prtica universal.
Trata-se, antes, de um dispositivo completo,
destinado a ajudar algumas pessoas, dispositivo que funciona to bem (ou to mal, segundo
os casos) quanto outro qualquer e que deveria
ser investigado em conjunto com outras instituies curativas a psicanlise, por exemplo
no contexto de uma antropologia das terapias (Favret-Saada 1989b: 55; 1990a: 3).
uma certa forma de cienticismo, portanto, que explica que tanto etnlogos quanto
analistas por razes distintas, talvez tenham, ao mesmo tempo, admirado e recusado
Les Mots, la Mort, les Sorts. Como observou
a autora (Favret-Saada 2004a), o livro parece
ter sido objeto do que Benjamin denominava
incompreenso entusiasta, uma espcie de
quadro famoso, pendurado nas paredes dos
departamentos de antropologia, que os estudantes so incitados a admirar sem imitar.
cadernos de campo n. 13 2005

E, de fato, quase to difcil encontrar uma


crtica explcita ao livro quanto um trabalho
que leve efetivamente a srio as potencialidades por ele abertas.
Para faz-lo seria preciso abandonar de vez o
paradigma cienticista no qual ainda nos movemos em benefcio de um mtodo clnico,
no sentido mdico e psicanaltico do termo.
Na primeira opo, as escolhas so limitadas:
ou procedemos indutivamente, generalizando a
partir do maior nmero possvel de casos empricos, ou dedutivamente, por meio da aplicao
a qualquer caso concreto de alguns princpios
gerais previamente estabelecidos. Favret-Saada,
por outro lado, procede por meio da observao,
exame e constituio de casos cuja singularidade
no elimina o fato de que cada um pode compartilhar com outros certos elementos e caractersticas. Isso faz com que, aos olhos do clnico,
cada caso seja, ao mesmo tempo, uma sndrome
nica e parte de sndromes mais gerais, e que
cada um se benecie indiretamente das anamneses anteriores e contribua para as futuras.
No de admirar, portanto, que o trabalho
de Favret-Saada tenha suscitado algumas reaes estranhas, tanto na mdia (Favret-Saada
1989b: 112) onde ela chegou a ser batizada
de a feiticeira do CNRS (o Centro Nacional
de Pesquisa Cientca) quanto na academia,
onde um colega chegou a sugerir que o CNRS
deveria cancelar sua bolsa uma vez que, repudiando a cincia, ela a teria empregado simplesmente para aprender a se tornar uma feiticeira
(Favret-Saada 1977a: 287).
Em outras palavras, no so apenas os fantasmas suscitados pela equvoca noo de observao participante que, como sugere a autora
(Favret-Saada 1990a: 5-6), tendem a funcionar
como obstculos para o trabalho do etngrafo.
Ela enumera outros: a similaridade cultural excessiva do etngrafo com o grupo estudado; a
concentrao da investigao nas elites e/ou nos
arquivos; a hiptese de que tudo se esclarece

152 |

uma vez remetido ao social; a adoo de noes como a de crena ou de ideais como objetividade e cienticidade. Isso no signica,
claro, que o antroplogo no possa estudar a
sociedade a que pertence, apenas que isso deve
ser feito com os cuidados e os distanciamentos
necessrios; ou que arquivos e elites tenham
de car, necessariamente, fora da investigao,
apenas que devem ser colocados em seu devido
lugar; ou que as situaes de enunciao, que
no se confundem com simples contextos,
no sejam fundamentais para a anlise; ou que
as representaes nativas, assim como o ideal de
conhecimento do antroplogo, no tenham que
ser respeitados, uma vez que trata-se sempre, na
etnograa, de uma espcie de alinhamento entre esses programas de verdade (cf. Favret-Saada
1977a: 287, passim).
Se fosse, ento, inteiramente verdadeiro
que Jeanne Favret-Saada autora de um livro, e
se esse livro for Les Mots, la Mort, les Sorts, isso
j seria bastante. Entretanto, e evidentemente,
no bem assim que as coisas se passam. Na
verdade, os primeiros trabalhos de FavretSaada (reapresentados em Favret-Saada 2005)
como antroploga remontam ao nal da dcada de 1950, quando investigou sistemas segmentares rabes e brberes no norte da frica,
em campos relativamente prximos a seu local
de nascimento no sul da Tunsia (em 1934, em
uma famlia de origem judaica). Aps a independncia da Arglia, Favret-Saada mudou-se
para a Frana, onde os acontecimentos de maio
de 1968 zeram com que decidisse concentrar
sua pesquisa, tendo em vista no deixar o pas
em um momento que, como militante poltica,
considerava fundamental. Dessa deciso, e de
modo algo tortuoso, nasceu a pesquisa sobre
feitiaria na regio do Bocage francs.
Entre as duas temticas, despontam alguns
pontos de contato o mais sugestivo sendo,
sem dvida, uma certa relao de redundncia entre segmentaridade e desenfeitiamento.

Pois se a primeira , sabidamente, um modo de


promover modalidades de conito (na conhecida forma das oposies e sses segmentares)
e de, ao mesmo tempo, regul-los (na forma
das fuses segmentares ou dos complexos sistemas de vingana e compensao), algo parecido poderia ser dito do enfeitiamento e de
seu combate. Pois trata-se, aqui tambm, de
um conito ou de uma oposio (entre feiticeiro e enfeitiado), devidamente sistematizada
e, em geral, resolvida pela interveno de uma
terceira instncia, o desenfeitiador, que, no
entanto, no aparece como externa e acima das
demais (como ocorreria com uma regulao estatal ou mdica de conitos ou perturbaes),
e sim como um aliado e um duplo da vtima
contra seu inimigo. Nesse sentido, a violncia
e as formas de, ao mesmo tempo desencade-la
e regul-la, aparecem como tema que de certo
modo atravessa no apenas essas duas fases do
trabalho da autora bem como aquela que a estas se segue.
Do nal da dcada de 1980 ao incio da de
1990, foi em torno da feitiaria e de suas implicaes (como modalidade de violncia, como parte de prticas teraputicas, como locus de afetos,
como questo para a etnograa e a antropologia) que se concentrou o trabalho de FavretSaada. A partir da, um novo tema sem dvida
relacionado aos anteriores passou a ocupar sua
ateno, a blasfmia e o projeto de elaborao
de uma antropologia da blasfmia. Ateno suscitada, em parte, pelas reaes ao chamado Caso
Rushdie e exibio do lme Amem, de CostaGavras, mas tambm pelo impacto da constatao de que religies que sempre se detestaram
se uniam contra a modernidade blasfemadora
(Favret-Saada 2004a).
Essa antropologia da blasfmia, por sua
vez, conduziu Favret-Saada elaborao de
um trabalho (em colaborao, mais uma vez,
com Jose Contreras, psicanalista que com ela
trabalhou em outras ocasies, especialmente na
cadernos de campo n. 13 2005

-, , |

edio de parte de suas notas de campo Favret-Saada 1981a) acerca das relaes entre o
cristianismo e os judeus na Europa nos ltimos
dois sculos. Assim como ao que deve ser seu
prximo livro, que examinar como, a partir
de 1880, as apresentaes teatrais da Paixo de
Cristo passaram a ser condenadas por diversas
igrejas protestantes, s quais, no obstante, no
apenas no estendiam essa condenao s exibies cinematogrcas da mesma Paixo, como
at mesmo as incentivavam.
No difcil, pois, perceber que na obra
de Jeanne Favret-Saada agenciam-se, de forma
muito singular, afetos muito diferentes: alguns
ligados sua histria pessoal, outros s suas opes ticas e polticas, outros, ainda, relacionados com a antropologia como campo de saber,
e assim por diante. Mas uma das originalidades
de seu trabalho talvez resida no fato de que o
principal operador desse agenciamento sejam
os afetos suscitados ou revelados em uma experincia vivida da alteridade, seja no trabalho de
campo, seja por outros meios. O que produz
resultados que, evidentemente, reagem sobre
os prprios afetos agenciados: h, em mim,
uma espcie de perptua retroao entre um
modo no partidrio de ser em poltica e um
modo no escolar de fazer a pesquisa (FavretSaada 1984).

Referncias bibliogrficas
Alm dos textos acima citados, esta bibliograa, ainda que incompleta, rene a maior
parte dos trabalhos de Jeanne Favret-Saada. Seu
ltimo posto acadmico foi o de diretora de pesquisa na cole Pratique des Hautes tudes, titular
da cadeira de etnologia religiosa da Europa.
1966. La Segmentarit au Maghreb. LHomme, VI:
105-111.
1967. Le Traditionnalisme par Excs de Modernit. Archives Europennes de Sociologie, VIII: 71-93.

cadernos de campo n. 13 2005

1968. Relations de Dpendance et Manipulation de la


Violence en Kabylie. LHomme, VIII: 18-44.
1977a. Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.
1977b. Excusez-Moi, je ne Faisais que Passer. Les Temps
Modernes, 371: 2089-2103.
1981a. Corps pour Corps. Paris: Gallimard (em colaborao com Jose Contreras).
1981b. Sorcires et Lumires. In Jeanne Favret-Saada
& Jose Contreras. Corps pour Corps. Paris: Gallimard,
pp. 333-363.
1981c. Corps pour Corps. Les Temps Modernes, 416:
1589-1607 (em colaborao com Jose Contreras).
1984. Jeanne Favret-Saada. In Ides Contemporaines.
Entretiens Le Monde. Paris: La Dcouverte.
1985. LEmbrayeur de Violence: Quelques Mcanismes
Thrapeutiques du Dsorclement In J. Contreras et
alii. Le Moi et lAutre. Paris, Denol, pp. 95-148.
1985. La Thrapie sans le Savoir. Nouvelle Revue de
Psychanalyse, 31.
1989a. La Gense du Producteur Individuel. In Annie
M.D. Lebeuf et alii. Singularits. Textes pour ric de
Dampierre. Paris: Plon, pp. 485-496.
1989b. Unbewitching as Terapy. American Ethnologist,
16 (1): 40-56.
1990a. Etre Aect. Gradhiva. Revue dHistoire et
dArchives de lAnthropologie, 8: 3-9.
1990b. Ah! La Fline, la Sale Voisine. Terrain, 14:
20-31 (em colaborao com Jose Contreras). [http://
terrain.revues.org/document2968.html]
1991a. Sale Histoire. Gradhiva. Revue dHistoire et
dArchives de lAnthropologie, 10: 3-10.
1991b. Le Dsorclement Comme Thrapie. Ethnologie
Franaise, 2.
1991c. Rushdie et Compagnie. Pralables une Anthropologie du Blasphme. Ethnologie Franaise, 3.
1994. Weber, les motions et la Religion. Terrain, 22: 93108. [http://terrain.revues.org/document2968.html]
1995. Liaisons Fatales. Esprit, 12.
2000. La-Pense-Lvi-Strauss. ProChoix, 13: 13-18.
[http://www.prochoix.org/pdf/levi-strauss.pdf ]
2002. Amen: une Juste Polmique?. ProChoix, 21.
2004a. Glissements de Terrains Entretien avec Jeanne
Favret-Saada. Vacarme, 28. [http://www.vacarme.
eu.org/article449.html]
2004b. Le Christianisme et ses Juifs. 1800-2000. Paris:
Seuil (em colaborao com Jose Contreras).
2005. Algrie, 1962-1964, Essais dAnthropologie Politique. Paris: d. Bouchene.

Ser afetado, de Jeanne Favret-Saada*

PAULA SIQUEIRA

TNIA STOLZE LIMA

Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/


MN/UFRJ e pesquisadora de grupos culturais,
poltica e religio em Nilo Peanha, no Baixo
Sul da Bahia.

Professora Doutora de Antropologia pelo


ICHF/UFF.

Meu trabalho sobre a feitiaria no Bocage


francs levou-me a reconsiderar a noo de
afeto, e a pressentir o interesse que haveria em
trabalh-la: primeiro, para apreender uma dimenso central do trabalho de campo (a modalidade de ser afetado); depois, para fazer uma
antropologia das terapias (tanto selvagens
exticas, como cientcas ocidentais); e nalmente, para repensar a antropologia.
Com efeito, minha experincia de campo com o desenfeitiamento, e, em seguida,
minha experincia com a terapia analtica levaram-me a pr em questo o tratamento paradoxal do afeto na antropologia: em geral, os
autores ignoram ou negam seu lugar na experincia humana. Quando o reconhecem, ou
para demonstrar que os afetos so o mero produto de uma construo cultural, e que no
tm nenhuma consistncia fora dessa construo, como manifesta uma abundante literatura
anglo-sax; ou para votar o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como nico destino
possvel o de passar para o registro da representao, como manifesta a etnologia francesa e
tambm a psicanlise. Trabalho, ao contrrio,
com a hiptese de que a eccia teraputica,
quando ela se d, resulta de um certo trabalho
realizado sobre o afeto no representado.

De um modo mais geral, meu trabalho pe


em causa o fato de que a antropologia acha-se
acantonada no estudo dos aspectos intelectuais da experincia humana, nas produes culturais do entendimento, para empregar um
termo da losoa clssica. parece-me urgente, reabilitar a velha sensibilidade, visto
que estamos mais bem equipados para abordla do que os lsofos do sculo XVII.
Inicialmente, valem algumas reexes sobre
o modo como obtive minhas informaes de
campo: no pude fazer outra coisa a no ser
aceitar deixar-me afetar pela feitiaria, e adotei um dispositivo metodolgico tal que me
permitisse elaborar um certo saber posteriormente. Vou mostrar como esse dispositivo no
era nem observao participante, nem (menos
ainda) empatia.
Quando viajei para o Bocage, em 1968, havia uma abundante literatura etnogrca sobre
feitiaria, composta de dois conjuntos de textos
heterogneos e que se ignoravam mutuamente:
aquele dos folcloristas europeus (que se tinham
recentemente condecorado com o ttulo vantajoso de etnlogos, embora no tivessem mudado em nada sua forma de trabalhar), e aquele
dos antroplogos anglo-saxes, sobretudo africanistas e funcionalistas.
Os folcloristas europeus no tinham nenhum
conhecimento direto da feitiaria rural: seguindo
as prescries de Van Gennep, eles praticavam
investigaes regionais, encontrando-se com as

FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. tre Aect.


In: Gradhiva: Revue dHistoire et dArchives de
lAnthropologie, 8. pp. 3-9.

cadernos de campo n. 13: 155-161, 2005

156 |

elites locais (o grupo menos bem situado para saber alguma coisa sobre o assunto) ou enviandolhes questionrios, interrogando tambm alguns
camponeses para saber se ainda se acreditava
nisso. As respostas recebidas eram to uniformes
quanto as questes: aqui, no, mas na aldeia vizinha, so uns atrasados. Seguiam-se, ainda,
algumas anedotas cticas ridicularizando os crentes. Para ir direto ao ponto, digamos que os etnlogos franceses, desde que se tratasse de feitiaria,
dispensavam-se tanto de observar como de participar (situao que permanece, alis, a mesma,
ainda em 1990). Os antroplogos anglo-saxes
pretendiam, ao menos, pr em prtica a observao participante. Levei um certo tempo para
deduzir dos seus textos sobre feitiaria que contedo emprico podia-se atribuir a essa curiosa
expresso. Em retrica, isso se chama oxmoro:
observar participando, ou participar observando,
quase to evidente como tomar um sorvete fervente. No campo, meus colegas pareciam combinar dois gneros de comportamento: um, ativo,
de trabalho regular com informantes pagos, os
quais eles interrogavam e observavam; o outro,
passivo, de observao de eventos ligados feitiaria (disputas, consultas a adivinhos). Ora,
o primeiro comportamento no pode de forma
alguma ser designado pelo termo participao
(o informante, ao contrrio, quem parece participar do trabalho do etngrafo); e, quanto ao
segundo, participar equivale tentativa de estar
l, sendo essa participao o mnimo necessrio
para que uma observao seja possvel.
Portanto, o que contava, para esses antroplogos, no era a participao, mas a observao.
Desta, eles tinham, alis, uma concepo bastante estreita: sua anlise da feitiaria reduziase quelas das acusaes, porque, diziam eles,
so os nicos fatos que um etngrafo pode
observar. Acusar , para eles, um comportamento, at mesmo o comportamento por
excelncia da feitiaria, j que o nico empiricamente vericvel, todo o resto sendo somen-

te erros e imaginaes nativas. (Ressaltemos de


passagem que, para esses autores, falar no
um comportamento, nem um ato suscetvel
de ser observado). Esses antroplogos davam
respostas precisas a uma nica questo quem
acusa quem de o ter enfeitiado em dada sociedade? mas cavam mudos quanto a todas as
outras como se entra numa crise de feitiaria?
Como se sai dela? Quais so as idias, as experincias e as prticas dos enfeitiados e dos seus
magos? Nem mesmo um autor to minucioso
quanto Turner permite sab-lo, e, para se fazer
uma idia disso, preciso voltar leitura de
Evans-Pritchard (1937).
De maneira geral, havia nessa literatura um
perptuo deslizamento de sentido entre vrios termos que teria sido melhor distinguir: a
verdade vinha escorrer sobre o real, e este,
sobre o observvel (aqui, havia uma confuso suplementar entre o observvel como saber
empiricamente vericvel, e o observvel como
saber independente das declaraes nativas),
depois sobre o fato, o ato ou o comportamento. Essa nebulosa de signicaes tinha
por nico trao comum o fato de opor-se a seu
simtrico: o erro escorria sobre o imaginrio, sobre o inobservvel, sobre a crena e,
por m, sobre a palavra nativa.
Alis, no h nada mais incerto que o estatuto da palavra nativa nesses textos: s vezes, ele
classicado entre os comportamentos (acusar) e, s vezes, entre as proposies falsas (invocar a feitiaria para explicar uma doena). A
atividade de fala enunciao escamoteada,
no restando mais do discurso nativo que seu
resultado, isto , os enunciados so impropriamente tratados como proposies e a atividade
simblica reduz-se a emitir proposies falsas.
Como se pode ver, todas essas confuses giram em torno de um ponto comum: a desqualicao da palavra nativa, a promoo daquela
do etngrafo, cuja atividade parece consistir
em fazer um desvio pela frica para vericar
cadernos de campo n. 13 2005

, - |

que apenas ele detm no se sabe bem o qu,


um conjunto de noes politticas, equivalentes para ele verdade.
Voltemos a minha pesquisa sobre a feitiaria
no Bocage. Lendo essa literatura anglo-sax para
ajudar em meu trabalho de campo, quei impressionada com uma curiosa obsesso presente em todos os prefcios: os autores (e o grande
Evans-Pritchard no era exceo) negavam regularmente a possibilidade de uma feitiaria rural
na Europa de hoje. Ora, no somente eu estava
dentro dela, como a feitiaria era amplamente
vericada em vrias outras regies, ao menos
pelos folcloristas europeus. Por que um erro emprico to evidente, to grande e to compartilhado? Sem dvida, tratava-se de uma tentativa
absurda de realizar novamente a Grande Diviso
entre eles e ns (ns tambm j acreditamos em feiticeiros, mas foi h trezentos anos,
quando ns ramos eles), e assim proteger
o etnlogo (esse ser a-cultural, cujo crebro somente conteria proposies verdadeiras) contra
qualquer contaminao pelo seu objeto.
Talvez isso fosse possvel na frica, mas eu
estava na Frana. Os camponeses do Bocage
recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande
Diviso comigo, sabendo bem onde isso deveria terminar: eu caria com o melhor lugar
(aquele do saber, da cincia, da verdade, do
real, qui algo ainda mais alto), e eles, com o
pior. A Imprensa, a Televiso, a Igreja, a Escola, a Medicina, todas as instncias nacionais de
controle ideolgico os colocavam margem da
nao sempre que um caso de feitiaria terminava mal: durante alguns dias, a feitiaria era
apresentada como o cmulo do campesinato, e
este como o cmulo do atraso ou da imbecilidade. Assim, as pessoas do Bocage, para proibir
o acesso a uma instituio que lhes prestava servios to eminentes, ergueram a slida barreira
do mutismo, com justicaes do gnero: Feitio, quem no pegou no pode falar disso ou
a gente no pode falar disso com eles.
cadernos de campo n. 13 2005

Pois ento, eles falaram disso comigo somente quando pensaram que eu tinha sido pega
pela feitiaria, quer dizer, quando reaes que
escapavam ao meu controle lhes mostraram
que estava afetada pelos efeitos reais freqentemente devastadores de tais falas e de tais
atos rituais. Assim, alguns pensaram que eu era
uma desenfeitiadora e dirigiram-se at a mim
para solicitar o ofcio; outros pensaram que eu
estava enfeitiada e conversaram comigo para
me ajudar a sair desse estado. Com exceo
dos notveis (que falavam voluntariamente de
feitiaria, mas para desqualic-la), ningum
jamais teve a idia de falar disso comigo simplesmente por eu ser etngrafa.
Eu mesma no sabia bem se ainda era etngrafa. Certamente, nunca acreditei ser uma
proposio verdadeira que um feiticeiro pudesse
me prejudicar fazendo feitios ou pronunciando encantamentos, mas duvido que os prprios
camponeses tenham algum dia acreditado nisso dessa maneira. Na verdade, eles exigiam de
mim que eu experimentasse pessoalmente por
minha prpria conta no por aquela da cincia os efeitos reais dessa rede particular de
comunicao humana em que consiste a feitiaria. Dito de outra forma: eles queriam que
aceitasse entrar nisso como parceira e que a
investisse os problemas de minha existncia de
ento. No comeo, no parei de oscilar entre
esses dois obstculos: se eu participasse, o
trabalho de campo se tornaria uma aventura
pessoal, isto , o contrrio de um trabalho; mas
se tentasse observar, quer dizer, manter-me
distncia, no acharia nada para observar. No
primeiro caso, meu projeto de conhecimento
estava ameaado, no segundo, arruinado.
Embora, durante a pesquisa de campo, no
soubesse o que estava fazendo, e tampouco o
porqu, surpreendo-me hoje com a clareza das
minhas escolhas metodolgicas de ento: tudo
se passou como se tivesse tentado fazer da participao um instrumento de conhecimento.

158 |

Nos encontros com os enfeitiados e desenfeitiadores, deixei-me afetar, sem procurar pesquisar, nem mesmo compreender e reter. Chegando
em casa, redigia um tipo de crnica desses eventos enigmticos (s vezes aconteciam situaes
carregadas de uma tal intensidade que me era
impossvel fazer essas notas a posteriori). Esse
dirio de campo, que foi durante longo tempo
meu nico material, tinha dois objetivos:
O primeiro era a curto prazo: tentar compreender o que queriam de mim, achar uma
resposta a questes urgentes do gnero: Por
quem X me toma? (uma enfeitiada, uma
desenfeitiadora), O que Y quer de mim?
(que eu o desenfeitice). Eu tinha interesse
em achar uma boa resposta, j que no encontro seguinte, me pediriam para agir. Mas, em
geral, no tinha os meios necessrios para isso:
a literatura etnogrca sobre feitiaria, tanto
anglo-sax quanto francesa, no permitia que
se representasse esse sistema de lugares em que
consiste a feitiaria. Eu estava justamente experimentando esse sistema, expondo-me a mim
mesma nele.
O outro objetivo era a longo prazo: por
mais que vivesse uma aventura pessoal fascinante, em nenhum momento resignei-me a
no compreender. Na poca, alis, no sabia
muito para que ou por que queria poder compreender, se para mim, para a antropologia
ou para a conscincia europia. Mas eu organizava meu dirio de campo para que servisse
mais tarde a uma operao de conhecimento:
minhas notas eram de uma preciso manaca
para que eu pudesse, mais tarde, realucinar os
eventos, e ento como eu no estaria mais
enfeitiada, apenas reenfeitiada compreend-los, eventualmente.
Os leitores de Corps pour Corps tero notado que no h nada neste dirio que o assemelhe queles de Malinowski ou de Mtraux. O
dirio de campo era para eles um espao ntimo
onde podiam enm se deixar livres, reencon-

trar-se fora das horas de trabalho, durante as


quais eram obrigados a representar diante dos
nativos. Em suma, um espao de recreao pessoal, no sentido literal do termo. As consideraes privadas ou subjetivas esto, ao contrrio,
ausentes do meu prprio dirio, exceto se tal
evento de minha vida pessoal tivesse sido evocado com meus interlocutores, quer dizer, se
tivesse sido includo na rede de comunicao
da feitiaria.
Uma das situaes que vivia no campo era
praticamente inenarrvel: era to complexa que
desaava a rememorao, e de todos os modos,
afetava-me demais. Trata-se das sesses de desenfeitiamento a que assistia, seja como enfeitiada (minha vida pessoal estava passando pelo
crivo e eu era instada a modic-la), seja como
testemunha dos clientes, mas tambm da terapeuta (eu era constantemente instada a intervir
bruscamente). No comeo, tomei muitas notas
depois de chegar em casa, mas era muito mais
para acalmar a angstia de ter-me pessoalmente
engajado. Uma vez que aceitei ocupar o lugar
que me tinha sido designado nas sesses, praticamente no tomei mais notas: tudo se passava
muito depressa, deixava-as correr sem pr-me
questes, e, da primeira sesso at a ltima, no
tinha compreendido praticamente nada do que
tinha acontecido. Mas registrei discretamente
umas trinta sesses das aproximadamente duzentas a que assisti para constituir um material
sobre o qual pudesse trabalhar mais tarde.
A m de evitar os mal entendidos, gostaria
de ressaltar o seguinte: aceitar participar e ser
afetado no tem nada a ver com uma operao
de conhecimento por empatia, qualquer que
seja o sentido em que se entende esse termo.
Vou considerar as duas acepes principais e
mostrar que nenhuma delas designa o que pratiquei no campo.
Segundo a primeira acepo (indicada na
Encyclopedia of Psychology), sentir empatia consistiria, para uma pessoa, em vicariously expecadernos de campo n. 13 2005

, - |

riencing the feelings, perceptions and thoughts of


another1. Por denio, esse gnero de empatia supe, portanto, a distncia: justamente
porque no se est no lugar do outro que se
tenta representar ou imaginar o que seria estar
l, e quais sensaes, percepes e pensamentos ter-se-ia ento. Ora, eu estava justamente
no lugar do nativo, agitada pelas sensaes,
percepes e pelos pensamentos de quem ocupa um lugar no sistema da feitiaria. Se armo
que preciso aceitar ocup-lo, em vez de imaginar-se l, pela simples razo de que o que ali
se passa literalmente inimaginvel, sobretudo
para um etngrafo, habituado a trabalhar com
representaes: quando se est em um tal lugar,
-se bombardeado por intensidades especcas
(chamemo-las de afetos), que geralmente no
so signicveis. Esse lugar e as intensidades
que lhe so ligadas tm ento que ser experimentados: a nica maneira de aproxim-los.
Uma segunda acepo de empatia einfhlung, que poderia ser traduzida por comunho afetiva insiste, ao contrrio, na
instantaneidade da comunicao, na fuso com
o outro que se atingiria pela identicao com
ele. Essa concepo nada diz sobre o mecanismo da identicao, mas insiste em seu resultado, no fato de que ela permite conhecer os
afetos de outrem.
Armo, ao contrrio, que ocupar tal lugar
no sistema da feitiaria no me informa nada
sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modica meu
prprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros.
Mas e insisto sobre esse ponto, pois aqui
que se torna eventualmente possvel o gnero
de conhecimento a que viso , o prprio fato
de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada
por ele abre uma comunicao especca com
os nativos: uma comunicao sempre involun1. Nota da tradutora: experimentar, de uma forma indireta, as sensaes, percepes e pensamentos do outro.
cadernos de campo n. 13 2005

tria e desprovida de intencionalidade, e que


pode ser verbal ou no.
Quando verbal, acontece mais ou menos
isto: alguma coisa me impele a falar (digamos,
o afeto no representado), mas no sei o qu, e
tampouco sei por que isso me impele a dizer justamente aquilo. Por exemplo, digo a um campons, em eco a alguma coisa que ele me disse:
Pois , eu sonhei que, e eu no teria como
explicar esse pois . Ou ento meu interlocutor observa, sem fazer qualquer ligao: Outro
dia, fulano lhe disse que Hoje, voc est com
essas erupes no rosto. O que se diz a, implicitamente, a constatao de que fui afetada: no
primeiro caso, eu prpria fao essa constatao,
no segundo, um outro quem a faz.
Quando essa comunicao no verbal, o
que ento que comunicado e como? Trata-se justamente da comunicao imediata que
o termo einfhlung evoca. Apesar disso, o que
me comunicado somente a intensidade de
que o outro est afetado (em termos tcnicos,
falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
carga energtica). As imagens que, para ele e
somente para ele, so associadas a essa intensidade escapam a esse tipo de comunicao. Da
minha parte, encaixo essa carga energtica de
um modo meu, pessoal: tenho, digamos, um
distrbio provisrio de percepo, uma quase
alucinao, ou uma modicao das dimenses;
ou ainda, estou submersa num sentimento de
pnico, ou de angstia macia. No necessrio (e, alis, no freqente) que esse seja o
caso do meu parceiro: ele pode, por exemplo,
estar completamente inafetado na aparncia.
Suponhamos que no lute contra esse estado, que o receba como uma comunicao de
alguma coisa que no saiba o que . Isso me
impele a falar, mas da forma evocada anteriormente (ento, eu sonhei que), ou a calarme. Nesses momentos, se for capaz de esquecer
que estou em campo, que estou trabalhando, se
for capaz de esquecer que tenho meu estoque

160 |

de questes a fazer se for capaz de dizer-me


que a comunicao (etnogrca ou no, pois
no mais esse o problema) est precisamente se dando, assim, desse modo insuportvel e
incompreensvel, ento estou direcionada para
uma variedade particular de experincia humana ser enfeitiado, por exemplo porque por
ela estou afetada.
Ora, entre pessoas igualmente afetadas
por estarem ocupando tais lugares, acontecem
coisas s quais jamais dado a um etngrafo
assistir, fala-se de coisas que os etngrafos no
falam, ou ento as pessoas se calam, mas tratase tambm de comunicao. Experimentando
as intensidades ligadas a tal lugar, descobre-se,
alis, que cada um apresenta uma espcie particular de objetividade: ali s pode acontecer
uma certa ordem de eventos, no se pode ser
afetado seno de um certo modo.
Como se v, quando um etngrafo aceita
ser afetado, isso no implica identicar-se com
o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da
experincia de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supe, todavia, que
se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, no acontece nada.
Mas se acontece alguma coisa e se o projeto
de conhecimento no se perde em meio a uma
aventura, ento uma etnograa possvel. Ela
apresenta, creio eu, quatro traos distintivos:
1. Seu ponto de partida o reconhecimento de que a comunicao etnogrca ordinria
uma comunicao verbal, voluntria e intencional, visando aprendizagem de um sistema
de representaes nativas constitui uma das
mais pobres variedades da comunicao humana. Ela especialmente imprpria para fornecer informaes sobre os aspectos no verbais e
involuntrios da experincia humana.
Noto, alis, que, quando um etngrafo
lembra-se do que houve de nico em sua estada no campo, ele fala sempre de situaes em

que no estava em condies de praticar essa


comunicao pobre, pois estava invadido por
uma situao e/ou por seus prprios afetos.
Ora, nas etnograas, essas situaes, apesar de
banais e recorrentes, de comunicao involuntria e desprovida de intencionalidade no so
jamais consideradas como aquilo que so: as
informaes que elas trouxeram ao etngrafo
aparecem no texto, mas sem nenhuma referncia intensidade afetiva que as acompanhava
na realidade; e essas informaes so colocadas exatamente no mesmo plano que as outras,
aquelas que so produzidas pela comunicao
voluntria e intencional. Poder-se-ia dizer, inclusive, que virar um etngrafo prossional
tornar-se capaz de maquiar automaticamente
todo episdio de sua experincia de campo em
uma comunicao voluntria e intencional visando ao aprendizado de um sistema de representaes nativas.
Eu, ao contrrio, escolhi conceder estatuto
epistemolgico a essas situaes de comunicao involuntria e no intencional: voltando
sucessivamente a elas que constituo minha etnograa.
2. Segundo trao distintivo dessa etnograa: ela supe que o pesquisador tolere viver em
um tipo de schize. Conforme o momento, ele
faz justia quilo que nele afetado, malevel,
modicado pela experincia de campo, ou ento quilo que nele quer registrar essa experincia, quer compreend-la e fazer dela um objeto
de cincia.
3. As operaes de conhecimento acham-se
estendidas no tempo e separadas umas das outras: no momento em que somos mais afetados,
no podemos narrar a experincia; no momento
em que a narramos no podemos compreendla. O tempo da anlise vir mais tarde.
4. Os materiais recolhidos so de uma densidade particular, e sua anlise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas cientcas
mais bem estabelecidas sejam quebradas.
cadernos de campo n. 13 2005

, - |

Consideremos, por exemplo, os rituais de


desenfeitiamento. Se no tivesse sido assim
afetada, se no tivesse assistido a tantos episdios informais de feitiaria, teria dado aos
rituais uma importncia central: primeiro,
porque sendo etngrafa, sou levada a privilegiar a anlise do simbolismo; segundo, porque
os relatos tpicos de feitiaria lhes do um lugar
essencial. Mas, por ter cado tanto tempo entre os enfeitiados e entre os desenfeitiadores,
em sesses e fora de sesses, por ter escutado,
alm dos discursos de convenincia, uma grande variedade de discursos espontneos, por ter
experimentado tantos afetos associados a tais
momentos particulares do desenfeitiamento,
por ter visto fazerem tantas coisas que no eram
do ritual, todas essas experincias zeram-me
compreender isso: o ritual um elemento (o
mais espetacular, mas no o nico) graas ao
qual o desenfeitiador demonstra a existncia
de foras anormais, as implicaes mortais da
crise que seus clientes sofrem e a possibilidade
de vitria. Mas essa vitria (no podemos sobre
esse assunto falar de eccia simblica) supe
que se coloque em prtica um dispositivo teraputico muito complexo antes e muito tempo

cadernos de campo n. 13 2005

depois da efetuao do ritual. Esse dispositivo


pode, claro, ser descrito e compreendido, mas
somente por quem se permitir dele se aproximar, quer dizer, por quem tiver corrido o risco
de participar ou de ser afetado por ele: em
caso algum ele pode ser observado.
Para nalizar, uma palavra sobre a ontologia
implcita de nossa disciplina. Em Meurtre dans
lUniversit Anglaise (Lne, n 21, abril-junho,
1985), Paul Jorion mostra que a antropologia
anglo-sax pressupe, entre outras coisas, uma
transparncia essencial do sujeito humano a
si mesmo. Ora, minha experincia de campo
porque ela deu lugar comunicao no
verbal, no intencional e involuntria, ao surgimento e ao livre jogo de afetos desprovidos
de representao levou-me a explorar mil aspectos de uma opacidade essencial do sujeito
frente a si mesmo. Essa noo , alis, velha
como a tragdia, e a ela sustenta tambm, desde h um sculo, toda a literatura teraputica.
Pouco importa o nome dado a essa opacidade
(inconsciente etc.): o principal, em particular
para uma antropologia das terapias, poder daqui para frente postul-la e coloc-la no centro
de nossas anlises.

Victor Turner e antropologia da experincia


JOHN C. DAWSEY
Professor Livre-Docente do Departamento de
Antropologia da USP e coordenador do Ncleo
de Antropologia da Performance e do Drama
(Napedra/USP).

Em 1980, no encontro anual da American


Anthropological Association, Victor Witter
Turner, Edward Bruner e Barbara Myerho
organizaram um simpsio sobre antropologia
da experincia. Deste simpsio resultaria The
Anthropology of Experience (1986), com o artigo, Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in
the Anthropology of Experience, de Turner
(1986).1 Trata-se de um dos seus ltimos textos.
Publicado trs anos aps a morte do seu autor
e no mesmo ano da publicao de alguns dos
escritos mais conhecidos da antropologia psmoderna2 , o subttulo poderia evocar, para
um leitor desavisado, a imagem de um testamento com os conselhos de um velho antroplogo,
do alto da sua experincia, alertando os mais
novos para riscos iminentes. Certamente no
essa a idia que Turner tem de experincia.
Se no ensaio de Turner algum conselho
houver, certamente ele no seria da ordem de
no corram riscos, ou evitem perigos. A etimologia de experincia, ressalta o autor, deriva
do indo-europeu per, com o signicado literal,
1. Tambm em 1980, ao discutir os usos da metfora
do drama nas cincias sociais, Cliord Geertz ([1980]
1983:29) destaca o conceito de experincia como sendo uma categoria central para o entendimento da contribuio de Victor Turner ao campo da antropologia.
2. Aqui me rero a Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography (Cliord e Marcus 1986) e Anthropology as Cultural Critique: An Experimental Moment
in the Human Sciences (Marcus e Fischer 1986).
cadernos de campo n. 13: 163-176, 2005

justamente, de tentar, aventurar-se, correr riscos. Experincia e perigo vm da mesma raiz.


A derivao grega, perao, passar por, tambm
chama a ateno de Turner pelo modo como
evoca a idia de ritos de passagem.
A idia de passagem no deixa de ser sugestiva. De novo, retomando o incio do pargrafo anterior, se nesse ensaio algum conselho
houver, provvel que ele seja da espcie que
Benjamin descobriu na atividade do narrador:
uma sugesto de como continuar uma histria
(Benjamin 1985b: 200). Porm, no se trata de
testamento. Mais se parece com um manifesto.
Um detalhe: nascido em 1920, Turner no era
to velho assim quando escreveu este texto.
Num momento de inexo no campo da
antropologia, trs imagens do passado articulam-se ao presente, inscrevendo-se no ttulo de
um ensaio: Dewey, Dilthey e drama. A terceira
imagem no deixa de evocar o jovem Turner
e suas reexes originrias, sados do redemoinho dos anos de 1950, quando ele iniciava-se
nas pesquisas de campo.
A gura de Dilthey tambm aparece com
destaque na introduo de From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play, na qual
uma premissa se anuncia: a antropologia da
performance uma parte essencial da antropologia da experincia (Turner 1982b: 13).
Atravs do processo de performance, o contido
ou suprimido revela-se Dilthey usa o termo
Ausdruck, de ausdrucken, espremer. Citando

164 | .

Dilthey, Turner descreve cinco momentos


que constituem a estrutura processual de cada
erlebnis, ou experincia vivida: 1) algo acontece
ao nvel da percepo (sendo que a dor ou o
prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que comportamentos repetitivos ou de
rotina); 2) imagens de experincias do passado
so evocadas e delineadas de forma aguda; 3)
emoes associadas aos eventos do passado so
revividas; 4) o passado articula-se ao presente
numa relao musical (conforme a analogia
de Dilthey), tornando possvel a descoberta e
construo de signicado; e 5) a experincia se
completa atravs de uma forma de expresso.
Performance termo que deriva do francs antigo parfournir, completar ou realizar inteiramente refere-se, justamente, ao momento
da expresso. A performance completa uma
experincia (Turner 1982b: 13-14).
A imagem de Dilthey tambm fulgura em
The anthropology of performance (Turner
1987b). O prprio Turner apresenta-se neste artigo como um dos precursores da virada
ps-moderna na antropologia. O perigo, diz
Turner, no vem dos chamados ps-modernos, mas das tentativas clssicas e recentes
de fazer da antropologia uma das variantes das
cincias naturais, uma cincia do ser humano sem vida, despojada de experincia vivida
mais um sintoma de uma poca em que o
signicado que no h signicado.3 Da a
importncia de Dilthey. No mundo contemporneo a busca do sentido torna-se cada vez
mais difcil. As anidades entre a antropologia
ps-moderna e antropologia da experincia
(e da performance) de Turner revelam-se num
desvio: a ateno do antroplogo volta-se aos
rudos e elementos estruturalmente arredios.
Nesta apresentao, levando a srio a seriedade humana da brincadeira [The Human
3. Este comentrio, sobre uma poca em que o signicado que no h signicado, aparece em Turner
(1986: 43).

Seriousness of Play] (Turner 1982a), eu gostaria


de brincar com o modelo de drama social
do autor, explorando uma possvel meta-narrativa de Dewey, Dilthey and Drama: An Essay
in the Anthropology of Experience. Embora eu
no esteja exatamente contribuindo para atenuar algumas das crticas aos usos da noo
de drama social que vira, de acordo com
Geertz, uma frmula para todas as estaes
(Geertz [1980] 1983: 28) , intriga-me ver
como o prprio texto de Turner ilumina uma
forma dramtica. Alguns rudos que surgem,
quem sabe, do lmen do seu ensaio podem suscitar questes em relao noo de experincia. Haveria em Turner a nostalgia por uma
experincia que se expressa melhor na noo
de erfahrung do que na de erlebnis? Anidades
entre a antropologia de Turner e o pensamento
benjaminiano merecem ateno. Assim como
algumas diferenas. Antes de tudo isso, porm,
convido o leitor a um exerccio de rememorao do percurso de Turner, que vai, como
veremos, do ritual ao teatro, e do liminar ao
liminoide.

I Ritos e dramas sociais


primeira vista, o percurso de Turner sugere algo como um esquema evolucionista: do ritual ao teatro. No princpio, o ritual. Por outro
lado, questes do pensamento teatral colocamse desde o incio. Inclusive, a me de Turner,
Violet Witter, que era atriz, foi uma das fundadoras do Teatro Nacional Escocs nos anos de
1920. Em Schism and Continuity in an African
Society, Turner supe que ritos de passagem,
assim como dramas sociais, evocam uma forma
esttica que se encontra na tragdia grega (Turner [1957] 1996). As atenes de Turner para
elementos estruturalmente arredios evidenciam-se desde suas primeiras pesquisas, luz
das discusses de Max Gluckman sobre ritos
de rebelio (Gluckman 1954), de Van Gencadernos de campo n. 13 2005

nep sobre ritos de passagem ([1908] 1960),


e, certamente, de Violet Witter sobre teatro.
Roland Barthes dene teatro como uma atividade que calcula o lugar olhado das coisas
(Barthes 1990: 85). Essa idia pode ser interessante para se discutir a prpria antropologia,
particularmente como ela se manifesta em Victor Turner. As anidades entre procedimentos
etnogrcos e ritos de passagem so bastante
conhecidas. Ambos envolvem estratgias que
visam produzir efeitos de estranhamento em
relao ao familiar. A partir de deslocamentos do lugar olhado das coisas, conhecimento
produzido e adquire densidade. A sacada de
Turner foi ver como as prprias sociedades sacaneiam-se a si mesmas, brincando com o perigo, e suscitando efeitos de paralisia em relao
ao uxo da vida cotidiana. Isso atravs de ritos,
cultos, festas, carnavais, msica, dana, teatro,
procisses, rebelies e outras formas expressivas. Universos sociais e simblicos se recriam a
partir de elementos do caos.
Nos anos de 1950, vendo como as aldeias
Ndembu ganhavam vida em momentos de crise, Victor Turner elaborou o modelo de drama
social que lhe serviria como instrumento de
anlise, inclusive nas formulaes posteriores
da antropologia da performance e antropologia
da experincia. Discusses sobre ritos de passagem foram fundamentais para as formulaes
de Turner. De acordo com o modelo de Van
Gennep, ritos de passagem envolvem trs momentos, ou sub-ritos: 1) de separao, 2) de
transio (liminares), e 3) de reagregao. No
modelo de drama social elaborado por Turner,
os trs momentos desdobram-se em quatro: 1)
ruptura, 2) crise e intensicao da crise, 3)
ao reparadora, e 4) desfecho (que pode levar
harmonia ou ciso social).
Estruturas sociais entendidas, sob o signo da antropologia social britnica, como
conjuntos de relaes sociais empiricamente
observveis esto carregadas de tenses. Em
cadernos de campo n. 13 2005

determinados instantes, tenses aoram. Elementos no resolvidos da vida social se manifestam. Irrompem substratos mais fundos do
universo social e simblico. As relaes sociais
iluminam-se a partir de fontes de luz subterrneas.
Victor Turner produz um desvio metodolgico no campo da antropologia social britnica. Para se entender uma estrutura, preciso
suscitar um desvio. Busca-se um lugar de onde
seja possvel detectar os elementos no-bvios
das relaes sociais. Estruturas sociais revelam-se com intensidade maior em momentos
extraordinrios, que se conguram como manifestaes de anti-estrutura. O antroplogo
procura acompanhar os movimentos surpreendentes da vida social.
Experincias que irrompem em tempos e
espaos liminares podem ser fundantes. Dramas sociais propiciam experincias primrias.4
Fenmenos suprimidos vm superfcie. Elementos residuais da histria articulam-se ao
presente. Abrem-se possibilidades de comunicao com estratos inferiores, mais fundos e
amplos da vida social. Estruturas decompemse s vezes, com efeitos ldicos. O riso faz
estremecer as duras superfcies da vida social.
Fragmentos distantes uns dos outros entram
em relaes inesperadas e reveladoras, como
montagens. Figuras grotescas manifestam-se
em meio a experincias carnavalizantes (Turner
1967b: 105-106). No espelho mgico de uma
experincia liminar, a sociedade pode ver-se a
si mesma a partir de mltiplos ngulos, experimentando, num estado de subjuntividade,
com as formas alteradas do ser.5
No espelho da anti-estrutura, guras vistas como estruturalmente poderosas podem
4. Turner discute a noo de processo primrio, termo
sugerido por Dario Zadra, em seu artigo sobre Hidalgo e a revoluo mexicana (Turner 1974a: 110).
5. A metfora do espelho mgico aparece em vrios
escritos de Victor Turner (Turner 1987a: 22).

166 | .

mostrar-se como sendo extremamente frgeis.


Inversamente, personagens estruturalmente
frgeis transformam-se em seres de extraordinrio poder (Turner 1969b: 94-130). De
fontes liminares, imagens e criaturas ctnicas
irrompem com poderes de cura para revitalizar
tecidos sociais.6 Entidades ambguas ou anmalas, consideradas como sendo estruturalmente
perigosas, energizam circuitos de comunicao
atroados.7 Abrem-se passagens em sistemas
classicatrios estticos. Surgem reas de contgio. Espaos hbridos. Escndalos lgicos.
Nos momentos de suspenso das relaes
cotidianas possvel ter uma percepo mais
funda dos laos que unem as pessoas. Despojadas dos sinais diacrticos que as diferenciam e
as contrapem no tecido social, e sob os efeitos
de choque que acompanham o curto-circuito
desses sinais numa situao de liminaridade,
pessoas podem ver-se frente a frente. Sem mediaes. Voltam a sentir-se como havendo sido
feitas do mesmo barro do qual o universo social e simblico, como se movido pela ao de
alguma oleira oculta, recria-se. A essa experincia Turner d o nome de communitas.8
Da experincia no lmen, propiciada por
dramas sociais, surgem poderosos smbolos
6. O terceiro momento dos dramas sociais, referente
reparao de crises, propcio, de acordo com Turner,
para a manifestao de ritos de cura (Turner 1968;
1967a: 359-393).
7. A discusso de Mary Douglas sobre o pangolim em
rituais da cultura lele oferece um exemplo desse fenmeno (Douglas [1966] 1976: 202-204).
8. Turner encontra nas discusses de Durkheim sobre
efervescncia social um exemplo de liminaridade e
communitas (Durkheim [1912] 1989: 456). Communitas, termo inspirado pelas reexes de Martin
Buber, no deve ser confundido com qualquer princpio de organizao social em comunidade, ou com
formas de solidariedade descritas por Durkheim.
Trata-se de uma experincia que irrompe de modo
espontneo a partir de momentos de interrupo das
formas de organizao social (Turner 1969b: 126127).

multivocais.9 Assim se articulam diferenas. Os


os que tecem as redes de signicado unicamse em tramas carregadas de tenses.

II Do liminar ao liminoide
A publicao de From Ritual to Theatre: The
Human Seriousness of Play, em 1982, marca
uma inexo no pensamento de Victor Turner.
Aqui se encontram as suas primeiras formulaes sobre uma antropologia da performance,
um campo de estudos que surge nas interfaces
da antropologia e do teatro nos anos de 1970,
a partir do encontro e colaborao entre Victor Turner e Richard Schechner. Uma de suas
armaes particularmente reveladora. At
aqui as cincias sociais praticamente s tm se
preocupado com questes de estrutura e desempenho de papis, diz Turner. A sua prpria
abordagem, ele prossegue, procura focar os
momentos de interrupo de papis (Turner
1982c: 46).
Esta questo retomada em The Anthropology of Performance, onde Turner aponta
as diferenas entre a abordagem de Erving Goman e a sua.10 Ao passo que Goman apresenta-se como um observador do teatro da vida
cotidiana, Turner se interessa particularmente
pelos momentos de suspenso de papis, ou
seja, pelo meta-teatro da vida social.11
Em Liminal to liminoid, in Play, Flow,
Ritual: An Essay in Comparative Symbology,
Turner procura comparar sistemas simblicos
de culturas que se desenvolveram antes e depois
9. Dois artigos de Turner discutem a polifonia dos smbolos e o modo como eles surgem ou so elaborados
em meio aos dramas sociais (Turner 1974a: 98-155;
1974c: 60-97).
10. De Goman, ver, especialmente, The Presentation of
Self in Everyday Life (1959).
11. Turner diz: se a vida cotidiana pode ser consideradea
como uma espcie de teatro, o drama social pode ser
visto como meta-teatro... (Turner 1987b: 76; minha
traduo).
cadernos de campo n. 13 2005

da revoluo industrial (Turner 1982c:30). A


palavra liminoid, inventada por Turner, apresenta a terminao oid, derivada do grego eidos
que designa forma e sinaliza semelhana.
Liminoid, portanto, semelhante sem ser idntico ao liminar.
As idias sobre gneros liminoides de ao
simblica haviam sido anunciadas, embora no
elaboradas, no prefcio de Dramas, Fields and
Metaphors: Symbolic Action in Human Society, indicando a direo de suas pesquisas posteriores:
Eu gostaria de sugerir a idia de que aquilo que
temos tratado como sendo os gneros srios
de ao simblica ritual, mito, tragdia, e
comdia (no seu nascimento) esto profundamente implicados em vises repetitivas
do processo social, ao passo que os gneros que
oresceram desde a Revoluo Industrial (as artes e cincias modernas), embora menos srios
aos olhos da populao em geral (cincia pura,
entretenimento, interesses da elite), tm apresentado um potencial maior para transformar
os modos como as pessoas se relacionam entre
elas e o contedo de suas relaes. Sua inuncia tem sido mais insidiosa. Tendo-se em vista o
fato de se manifestarem em espaos exteriores s
arenas centrais da produo industrial, e de se
constiturem analogamente como liminoides
em relao aos processos e fenmenos liminares de sociedades tribais e agrrias, a sua prpria
exterioridade as libera da atividade funcional
em relao ao pensamento e comportamento
dos membros da sociedade. Constituem para os
seus agentes e audincias uma atividade optativa
a ausncia de obrigaes ou constrangimentos
advindos de normas externas lhes confere uma
qualidade prazerosa que favorece a sua absoro
nas conscincias individuais. Desta forma, o prazer transforma-se em assunto srio no contexto
de mudanas inovadoras (Turner 1974b:16; minha traduo).

cadernos de campo n. 13 2005

Nas culturas pr-industriais, esferas de atividade ritual no se separam do trabalho: ritual trabalho. E trabalho no se desvincula da
vida ldica da coletividade. Nessas sociedades,
particularmente, a brincadeira constitui um
dos componentes centrais dos processos de revitalizao de estruturas existentes. O espelho
mgico dos rituais propicia uma poderosa experincia coletiva.
Sociedades industrializadas produzem o que
poderamos chamar de um descentramento e
fragmentao da atividade de recriao de universos simblicos. Esferas do trabalho ganham
autonomia. Como instncia complementar ao
trabalho, surge a esfera do lazer que no deixa de se constituir como um setor do mercado.
Processos liminares de produo simblica perdem poder na medida em que, simultaneamente, geram e cedem espao a mltiplos gneros de
entretenimento. As formas de expresso simblica se dispersam, num movimento de dispora, acompanhando a fragmentao das relaes
sociais. O espelho mgico dos rituais se parte.
Em lugar de um espelho mgico, poderamos
dizer, surge uma multiplicidade de fragmentos
e estilhaos de espelhos, com efeitos caleidoscpicos, produzindo uma imensa variedade de
cambiantes, irrequietas e luminosas imagens.12
As diferenas e semelhanas sinalizadas por
Turner em sua anlise exploratria dos fenmenos liminares e liminoides so resumidas a
seguir:
1) Fenmenos liminares tendem a predominar em sociedades tribais ou agrrias, caracterizando-se por princpios que Durkheim
chamou de solidariedade mecnica. Fenmenos liminoides ganham destaque em sociedades de solidariedade orgnica, em meio aos
desdobramentos da Revoluo Industrial.
12. Cf. nota 5, para uma referncia do uso da metfora
do espelho mgico em Turner. A metfora do estilhaamento de um espelho mgico inferida de
suas discusses.

168 | .

2) Fenmenos liminares tendem a emergir


de uma experincia coletiva, associando-se a
ritmos cclicos, biolgicos e scio-estruturais,
ou com crises que ocorrem nesses processos.
Fenmenos liminoides geralmente apresentam-se como produtos individuais, embora os
seus efeitos freqentemente sejam coletivos ou
de massa.
3) Fenmenos liminares integram-se centralmente ao processo social total, constituindo
o plo negativo, subjuntivo e anti-estrutural
de um todo que se constitui de modo dialtico. Fenmenos liminoides desenvolvem-se s
margens dos processos centrais da economia
e poltica. Trata-se de manifestaes plurais,
fragmentrias, e experimentais que ocorrem
nas interfaces e interstcios do conjunto de instituies centrais.
4) Fenmenos liminares tendem a apresentar caractersticas semelhantes s que se
encontram nas discusses de Durkheim sobre
representaes coletivas. Trata-se da produo
de smbolos que evocam signicados intelectuais e emotivos comuns a todos os membros do
grupo. Embora se manifestem freqentemente como a anttese das representaes coletivas
profanas, no deixam de compartilhar das
suas feies coletivas. Fenmenos liminoides
tendem a apresentar caractersticas mais idiossincrticas, associando-se a indivduos e grupos especcos que freqentemente competem
num mercado do lazer, ou de bens simblicos.
Nesse caso, as dimenses pessoais e psicolgicas dos smbolos tm preponderncia sobre as
dimenses objetivas e sociais.
5) Fenmenos liminares, mesmo quando
produzem efeitos de inverso, tendem a revitalizar estruturas sociais e contribuir para o
bom funcionamento dos sistemas, reduzindo
rudos e tenses. Fenmenos liminoides, por
outro lado, freqentemente surgem como manifestaes de crtica social que, em determinadas condies, podem suscitar transformaes

com desdobramentos revolucionrios (Turner


1982c: 53-55).

III O drama de Dewey, Dilthey, and


Drama...
Agora, passemos ao ensaio que serve como
pr-texto desta apresentao. Invocando o esprito liminoide que, de acordo com Turner,
caracteriza boa parte da atividade intelectual
no mundo contemporneo, como tambm a
seriedade humana da brincadeira (que talvez
a caracterize um pouco menos) sou tentado,
como j falei no incio desta apresentao, a
brincar com o modelo de drama social do autor, aplicando-o ao prprio Dewey, Dilthey,
and Drama: An Essay in the Anthropology
of Experience. O artigo, de fato, apresenta
elementos de um drama, que podem ser pensados em termos dos momentos de ruptura,
crise e intensicao da crise, ao reparadora e desfecho. No drama do artigo e
aqui preciso ateno a prpria metfora
do drama social de Turner aparece como momento importante de reparao da crise,
junto s contribuies de Dilthey e Dewey. O
elemento de ruptura pode ser identicado
com a Revoluo Industrial. E a crise e intensicao da crise com as diculdades encontradas para ressignicar o mundo. Trata-se
de uma crise de ao simblica. O indivduo
carrega a responsabilidade de dar sentido ao
seu universo. Os gneros expressivos foram
desmembrados e perderam poder no mundo
contemporneo. Foram colocados s margens dos processos sociais centrais. As noes
de drama social e liminaridade (e suas fontes
de poder) so importantes para se buscar um
desfecho feliz. Este vem com uma discusso
sobre a experincia de communitas suscitada
pelo teatro!
Tomando os quatros momentos do drama social como elementos meta-narrativos
cadernos de campo n. 13 2005

(codicados a, b, c, e d), as seqncias


do ensaio de Turner podem ser analisadas da
seguinte forma:
[C1] AO REPARADORA: DEWEY.
Inicia-se com uma discusso de Dewey, autor
estratgico por sua nfase na articulao das
tradies do passado ao presente (o tempo do
agora). Tradio no precisa (nem deve?) virar
sacrifcio. Assim como a tradio, a expresso
artstica no se desvincula do cotidiano. Tratase de uma celebrao da experincia cotidiana
(ordinary experience). Dewey aparece, no contexto do ensaio, como um dos atores centrais
que contribuem para uma ao reparadora da
crise de fundo, ainda a ser delineada. Porm,
Turner ir propor algumas reformulaes em
relao sua noo de experincia.
[C2] AO REPARADORA: DILTHEY.
A primeira reformulao vem de Dilthey, que
propicia uma distino fundamental entre
mera experincia e uma experincia. Aqui
se introduz a noo de erlebnis, experincia
vivida. A etimologia de experincia remete
noo de perigo, etc. Os elementos do modelo de experincia discutidos na introduo de
From Ritual to Theatre aparecem, embora no
de modo esquemtico. Dilthey surge como
uma poderosa gura ancestral, tal como as
que irrompem durante ritos de cura entre os
Ndembu.13
[B] CRISE E INTENSIFICAO DA
CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE DE
SIGNIFICAR O MUNDO. Surgem as pri13. Como j foi visto, Dilthey uma gura recorrente
nos artigos de Turner. Na introduo de From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play, Turner
imagina a frase O Professor Dilthey aprovaria como
um selo nal de aprovao das tentativas de gerarse uma antropologia e um teatro da experincia (Cf.
Turner 1982b: 18).
cadernos de campo n. 13 2005

meiras referncias ao que se poderia ver, nos


termos do modelo de drama social, como a
crise e intensicao da crise. Turner discute
as diculdades de se recriar universos sociais e
simblicos no mundo contemporneo, onde
indivduos se vem sozinhos e abandonados
diante da responsabilidade de darem sentido
s suas vidas. Trata-se de uma crise de ao
simblica. Como essa discusso segue apresentao da noo de erlebnis, seria possvel
perguntar se Turner no estaria se vendo diante
dos limites dessa idia de experincia.
[C3] AO REPARADORA: A METFORA DO DRAMA SOCIAL DE TURNER. Turner parece sinalizar algo nessa direo:
a unidade de experincia de Dilthey privilegia
questes de cultura e psicologia. Talvez a meno psicologia seja crucial. Em Liminal to
liminoid... Turner observa que smbolos liminoides tendem a ser de natureza pessoal e psicolgica em vez de objetiva e social. At que
ponto erlebnis se restringe experincia vivida
do indivduo? O artigo de Roger D. Abrahams,
que segue ao de Turner em The Anthropology
of Experience, bastante explcito nesse sentido (Abrahams 1986: 45-72). Abrahams sugere cautela nos usos da noo de experincia,
produzindo um distanciamento reexivo em
relao ao entusiasmo demonstrado por ela ao
longo da histria cultural dos Estados Unidos.
De qualquer forma, num movimento que revela o carter propositivo de seu ensaio, Turner
procura demonstrar a relevncia de sua noo
de drama social para questes de experincia. Dramas sociais podem propiciar formas
de acesso a substratos do universo social e simblico. Ritos que surgem como expresses de
ao reparadora (terceiro momento do drama
social), assim como ritos que inauguram momentos de ruptura (primeiro), criam o palco para que estruturas de experincia nicas
(erlebnis) possam ocorrer. Isso devido s fontes

170 | .

de poder (e perigo) que se associam ao lmen.


Enm, a prpria noo de drama social, em
conjunto com as idias de Dilthey e Dewey,
apresenta-se, na organizao do artigo, como
elemento crucial para a reparao da crise.
[A] RUPTURA: REVOLUO INDUSTRIAL; e [B] CRISE E INTENSIFICAO
DA CRISE: DIFICULDADE LIMINOIDE
DE SIGNIFICAR O MUNDO. Turner observa: os rpidos avanos na escala e complexidade da sociedade, particularmente aps a
industrializao, zeram passar essa congurao liminar unicada pelo prisma da diviso
do trabalho (...) reduzindo cada um dos seus
domnios sensoriais a um conjunto de gneros
de entretenimento que orescem no tempo de
lazer da sociedade, no mais no lugar central de
controle (Turner 1986: 42). Sinaliza-se nesse
trecho, com a meno industrializao, aquilo
que pode ser entendido como o primeiro momento do drama social: a ruptura. A seguir,
o autor evoca processos associados ao que podemos interpretar como a crise e intensicao da
crise, referindo-se aos gneros especializados
amputados que surgem do desmembramento (sparagmos) das formas de ao simblica.
Mas Turner tambm sugere perspectivas para
um desfecho feliz: em meio fragmentao
dos gneros, h sinais de uma busca para recuperar dimenses suprimidas da experincia do
numinoso, caracterstica do ritual arcaico.
[C1] e [C3]. AO REPARADORA:
DEWEY E DRAMA SOCIAL. A seguir, Turner retoma a discusso de Dewey de que a
forma esttica do teatro inerente prpria
vida sociocultural. Mas, interpreta Dewey
luz da noo de drama social. A natureza teraputica e reexiva do teatro tem suas fontes
na liminaridade. Trata-se de uma unicao de
posies (as de Turner e Dewey, inicialmente
distintas) para a ao reparadora.

[D] DESFECHO: COMMUNITAS. Enm, o desfecho. As idias de Dewey, complementadas por investigaes na neurobiologia,
contribuem para mostrar que o teatro e outros
gneros de performance podem suscitar experincias de communitas. Um senso de harmonia
com o universo se evidencia e o planeta inteiro
sentido como uma communitas (Turner 1986:
43). Pouco antes de chegar a esse momento climtico, Turner comenta que o ritual e as artes
performativas derivam do cerne (corao)
liminar do drama social at mesmo, como
acontece freqentemente em culturas declinantes, em que o signicado de que no h
signicado. Completou-se um percurso. Da
celebrao da experincia cotidiana (ordinary
experience) de Dewey chegou-se, em companhia do prprio Dewey, experincia extraordinria que interrompe o cotidiano, dando-lhe
sentido. E, sob a inspirao de Dilthey, o grande esprito protetor ancestral, foi-se da mera
experincia a uma experincia.
Enm, esse exerccio de interpretao da
meta-narrativa dramtica do texto de Turner
sugere um forma:
Frase inicial
C1
C2
B
C3
A
B
C1 e C3

Ttulo
Ao reparadora
Ao reparadora
Crise...
Ao reparadora
Ruptura
Crise...
Ao reparadora

Desfecho

Dewey, Dilthey, e drama


Dewey
Dilthey
Diculdade liminoide...
Drama (Turner)
Revoluo industrial
Diculdade liminoide
Dewey e drama (Turner)
Communitas
(Dewey, Dilthey e drama)

Esta codicao poder evocar as partes de


uma pea musical que so repetidas, variadas,
combinadas, e retomadas.14 A analogia propcia. Conforme o modelo de experincia de
14. Agradeo ao meu orientando, Andr-Kees de Moraes
Schouten, mestrando do Programa de Ps-Graduao
em Antropologia Social da USP, por esta observao.
cadernos de campo n. 13 2005

Dilthey, citado no incio desta apresentao, a


descoberta e construo do signicado tornamse possveis na medida em que o passado articula-se ao presente numa relao musical. Na
frase inicial do ttulo irrompem trs imagens
do passado: Dewey, Dilthey, e... o jovem Turner (que elaborou o modelo do drama social).
Estas, poderamos sugerir, articulam-se a um
presente que vivido como uma crise: a diculdade liminoide de ressignicar o mundo.15
No caso de Dewey e Dilthey, particularmente,
trata-se de vozes ancestrais oriundas de substratos mais prximos aos de onde ocorrem os
abalos originrios da ruptura, a Revoluo
Industrial. No desfecho, ressoam novamente
Dewey, Dilthey e drama agora em voz unssona. At mesmo alguns rudos evocativos da
crise retornam neste nal. Vamos a eles.

IV Rudos
Um nal feliz: podemos ter experincias
de communitas no teatro. Porm, o desfecho
do artigo como revela a frase de Turner sobre
culturas declinantes no elimina os rudos.
Seria surpreendente para o prprio Turner, particularmente, se os eliminasse: desfechos harmonizantes (ou at unissonantes) tendem a oferecer
apenas solues parciais e provisrias. Mesmo
sem recorrer a Bertolt Brecht, Antonin Artaud,
Nelson Rodrigues, Jos Celso Martinez Corra
ou outras expresses do teatro contemporneo,
h no prprio texto de Turner imagino no seu
lmen, em meio a inmeras sugestes de como
continuar a histria razes para estranhar-se o
desfecho. Se h nos escritos de Turner uma espcie de nostalgia por experincias de communitas,
15. Observa-se que o ensaio foi publicado, como vimos
anteriormente, no mesmo ano em que ganha fora,
no campo da antropologia, a percepo de uma crise
das representaes atravs da publicao de dois
dos textos mais conhecidos da antropologia ps-moderna. Cf. nota no. 2.
cadernos de campo n. 13 2005

tambm l se encontram bons indcios de cautela em relao s suas manifestaes. Ressalta-se


nesse autor, alm da busca por communitas, a
sua ateno aos rudos. Um lembrete: aquilo que
interessa a Turner o que ele chama de communitas espontnea, e no as manifestaes superciais, discutidas no captulo quatro de The
Ritual Process, como communitas ideolgica e
communitas normativa (Turner 1969a: 131165).
Hoje temos acesso a experincias liminoides,
cujas origens remetem s dimenses do liminar,
diz Turner. At que ponto possvel num mundo ps-revoluo industrial o acesso direto a experincias liminares no est claro. No nal de
Liminal to liminoid... Turner parece buscar
na noo de ow (uxo) de Csikszentmihalyi
noo que se refere ao envolvimento total da
pessoa naquilo que ela faz algo parecido com a
communitas (Csikszentmihalyi 1990). O desfecho daquele artigo em contraste com Dewey,
Dilthey and drama... anti-climtico: communitas algo que se manifesta entre indivduos, enquanto ow acontece no indivduo. Flow
pertence ao domnio da estrutura.
Duas questes se oferecem:
1. A nostalgia de Turner pela experincia
liminar que os rituais em sociedades de solidariedade mecnica podem proporcionar teria
a ver com uma percepo aguda, embora no
explicitada, dos limites da noo de erlebnis,
experincia vivida? Creio que a tentativa de articular a noo de dramas sociais discusso
sobre erlebnis sugere que sim.
2. Rondando esse ensaio no seu lmen,
quem sabe no haveria outra categoria de
experincia discutida por Dilthey erfahrung?
No seria esta categoria mais apropriada do
que a de erlebnis para iluminar a nostalgia de
Turner por uma experincia coletiva, vivida em
comum, passada de gerao em gerao, e capaz de recriar um universo social e simblico
pleno de signicado?

172 | .

V Benjaminianas
As anidades entre as vises de Victor Turner a respeito de fenmenos e processos liminares, e a de Benjamin sobre erfahrung chamam
ateno. Ambas evocam a idia de passagem.
Lembremos aqui, diz Gagnebin, que a palavra Erfahrung vem do radical fahr usado
ainda no antigo alemo no seu sentido literal
de percorrer, de atravessar uma regio durante
uma viagem (Gagnebin 1994: 66).
Experincia, no sentido de erfahrung, forma-se atravs da associao de dois saberes: da
pessoa que vem de longe, vista como quem
tem muito que contar; e da pessoa que passou
a vida sem sair do seu pas e que conhece suas
histrias e tradies. Benjamin escreve:
Se quisermos concretizar esses dois grupos
atravs dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um exemplicado pelo
campons sedentrio, e outro pelo marinheiro comerciante. (...) A extenso real do reino
narrativo, em todo o seu alcance histrico, s
pode ser compreendido se levarmos em conta
a interpenetrao desses dois tipos arcaicos. O
sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetrao. O mestre
sedentrio e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma ocina; cada mestre
tinha sido um aprendiz ambulante antes de
se xar em sua ptria ou no estrangeiro. (...)
No sistema corporativo associava-se o saber
das terras distantes, trazidos para casa pelos
migrantes, com o saber do passado, recolhido
pelo trabalhador sedentrio (Benjamin 1985b:
198-199).

A interpenetrao desses dois saberes tal


como acontece nos ritos de passagem requer
a transformao do estranho em familiar, e, ao
mesmo tempo, um movimento inverso capaz
de provocar, em relao ao familiar, um efei-

to de estranhamento. No relato benjaminiano,


tanto a gura do sedentrio como a do estrangeiro produzem estranhamento: uma, no caso
do estrangeiro, suscitando distncia espacial, e
outra, no caso do sedentrio, distncia temporal. Atravs do saber recolhido pelo sedentrio,
o passado faz estremecer o presente.
Um detalhe chama ateno: a relao entre
o mestre sedentrio e os aprendizes migrantes
se constitui numa ocina de trabalho. Num
ambiente como esse, ao mesmo tempo em que
elementos extraordinrios iluminam o cotidiano, este no deixa de provocar os seus prprios
efeitos de interrupo sobre as teias do extraordinrio. Esse detalhe, parece-me, pode ser
signicativo, iluminando algumas das margens
do pensamento de Turner.
Mas, antes de lidar com essas ou outras
margens, deve-se ressaltar uma segunda anidade entre as vises dos dois autores: a discusso de Turner sobre o enfraquecimento
da experincia de liminaridade no mundo
contemporneo ressoa nas anlises benjaminianas sobre o declnio da grande tradio
narrativa, e debilitao de uma experincia
coletiva, comunicvel, e tecida na passagem
das geraes (erfahrung). Sabedoria, diz Benjamin, se expressa num conselho a respeito de
como continuar uma histria. Na medida em
que as pessoas j no passam pelas mesmas
experincias, ou, se passando, no conseguem
articular o presente ao que foi transmitido de
gerao em gerao como no caso dos soldados que voltavam mudos da guerra , a capacidade de dar conselhos entra em declnio.
Resta-lhes a sua experincia vivida, erlebnis
e, diante da fragmentao da experincia
coletiva, a perplexidade em relao ao sentido
de suas vidas.
H, ainda, uma terceira anidade. Ao deparar-se com as novas formas narrativas do cinema, da fotograa, etc., Benjamin encontra, em
sua dimenso mais profunda, algo que evoca
cadernos de campo n. 13 2005

a grande tradio narrativa: o seu no-acabamento essencial (Gagnebin 1985:12). Tratase da abertura dessa tradio para as mltiplas
e espantosas possibilidades interpretativas.
Como exemplo de narrativa tradicional, Benjamin apresenta a histria de Psammenites,
contada por Herdoto. E diz:
Herdoto no explica nada. Seu relato dos
mais secos. Por isso essa histria do antigo
Egito ainda capaz, depois de milnios, de
suscitar espanto e reexo. Ela se assemelha
a essas sementes de trigo que durante milhares de anos caram fechadas hermeticamente
nas cmaras das pirmides e que conservam
at hoje suas foras germinativas (Benjamin
1985b: 204).

De modo semelhante, nos substratos mais


fundos do entretenimento e dos novos gneros
de ao simblica, Turner descobre as fontes do
poder liminar. As formas expressivas que germinaram aps a Revoluo Industrial tambm
propiciam manifestaes do caos criativo, capazes de surpreender, com efeitos de estranhamento, as conguraes do real, energizando
e dando movncia aos elementos do universo
social e simblico. Embora estejam s margens
de processos centrais de reproduo da vida
social, estas expresses liminoides apresentam
um potencial ainda maior do que as formas arcaicas para promover a transformao das relaes humanas.

VI. Margens das margens


Antes de abandonar esta apresentao, arrisco algumas questes:
1. O que dizer do rudo a frase sobre culturas declinantes em que o signicado de
que no h signicado provocado por Turner no momento em que o seu ensaio chega a
um nal feliz? Ressalta-se que o rudo imecadernos de campo n. 13 2005

diatamente precede algumas de suas armaes mais entusiasmadas sobre communitas.16


Como interpret-lo? Haveria aqui uma hesitao, e, quem sabe, um indcio da cautela de
Turner diante de manifestaes de communitas, particularmente em meio fragmentao
das relaes sociais e ao estilhaamento do espelho mgico do ritual?17
2. Considerando-se que a experincia de
communitas tende a irromper s margens da
sociedade, o rudo produzido no texto de Turner seria proveniente de um duplo deslocamento s margens das margens?18
16. Um senso de harmonia com o universo se evidencia
e o planeta inteiro sentido como uma communitas
(Turner 1986: 43).
17. Tendo-se em vista o movimento de expanso do universo liminoide e seus efeitos de descentramento nas
esferas de ao simblica evocativos, quem sabe, de
uma espcie de revoluo copernicana sob a gide do
mercado , haveria nas expresses de nostalgia por
liminaridade e communitas uma reao centrpeta,
ou, ainda, uma tentao ptolomaica? At que ponto
a nostalgia pelo liminar manifesta processos de formao, num mercado do lazer, de centros de poder
simblico para controle e uso do caos criativo que
se associa aos gneros liminoides de expresso?
Em meio ao estilhaamento, ressalta-se a perplexidade dos indivduos. Mas, haveria como reviver as condies do teatro antigo? O que implicaria transferir
o peso da responsabilidade de atribuio de signicado do indivduo para o grupo (Turner 1986: 37)?
Como reconstituir a coeso do universo simblico em
meio proliferao das possibilidades interpretativas?
E, nessas circunstncias, como reviver experincias de
communitas sem que elas virem experincias coletivas em que o signicado a falta de signicado? Enm, uma questo de fundo: a constituio de centros
gravitacionais num universo liminoide, e seus efeitos
de atrao sobre as margens.
18. O que irrompe s margens das margens? Turner
compara uma experincia, no sentido que lhe dado
por Dilthey, a uma pedra num jardim de areia Zen
(Turner 1986: 35). Quando pedras viram areia na rbita de uma reao centrpeta em meio ao possvel
ofuscamento da viso talvez seja preciso um duplo
deslocamento do lugar olhado das coisas. Isso, para

174 | .

3. Se a experincia liminar caracteriza-se


pelo efeito de estranhamento que se produz
em relao ao cotidiano, este rudo pode sinalizar um estranhamento s avessas, provocado
em relao ao extraordinrio?19 Isso, a partir
de um cotidiano estranhado? No haveria aqui
uma anidade com rudos produzidos em determinadas ocinas de trabalho, tais como as
dos mestres sedentrios e aprendizes migrantes
discutidas por Benjamin, conforme vimos anteriormente?
4. Nas ocinas medievais, Benjamin se depara com a abertura da grande tradio narrativa para as mltiplas e espantosas possibilidades
interpretativas. Se o modelo de drama social de
Victor Turner, assim como o modelo de ritos
de passagem de Van Gennep, nos leva a pensar em termos de uma oposio dialtica entre
dois momentos, o cotidiano e o extraordinrio,
o caso dessas ocinas no apresentaria um desao metodolgico, levando-nos a falar de um
cotidiano extraordinrio ou extraordinrio cotidiano, que se congura num quase susto ou
espanto dirio? E de um espanto que se aloja
numa tradio? Walter Benjamin escreve: A
tradio dos oprimidos nos ensina que o estado
de exceo a regra (Benjamin 1985c: 226).
Ao tentar distinguir a sua abordagem da de
Erving Goman, Turner evoca, como vimos,
uma distino entre teatro e meta-teatro. Ao
passo que Goman toma interesse pelo teatro
da vida cotidiana, Turner procura focar os momentos de interrupo, os instantes extraordinrios, ou seja, o teatro desse teatro. Turner

descobrir elementos que se distinguem ou escapam


inclusive da periferia carnavalizante do movimento
ordenador e para que o extraordinrio no vire
mera experincia.
19. s margens das margens, abrem-se perspectivas num
universo liminoide para que se possa detectar os efeitos de estranhamento que se produzem em relao
no apenas ao cotidiano, mas ao extraordinrio tambm.

observa o meta-teatro da vida social.20 Mas, as


ocinas descritas por Benjamin podem sugerir a necessidade de se juntar Goman e Turner para tratar de um meta-teatro cotidiano.
Anal, espelhos mgicos tambm tm as suas
ocinas. E viram estilhaos. Nas irrupes do
extraordinrio tambm se encontra a experincia do ordinrio.
Enm, de Dewey a Turner e de volta.
E uma pergunta de rodap (virando texto):
seriam determinadas manifestaes liminoides com destaque aos rudos que ocorrem s
margens das margens dos processos centrais
mais is, em sua dimenso mais profunda, ao legado da experincia liminar do que
certas tentativas de reviver uma experincia de
communitas em meio ao esfacelamento das relaes?21 Num mundo como esse, onde a experincia da fragmentao torna-se cotidiana,
os efeitos de estranhamento e a percepo do
inacabamento das coisas ganham densidade.

Passagens
Depois de haver brincado com Dewey,
Dilthey, and Drama..., sou tentado tambm a
brincar com esta apresentao que est prestes a desmanchar. Nesse caso, porm, intrigame ver como ela ilumina uma espcie de rito
20. Cf. nota 11.
21. Estou parafraseando a frase de Jeanne Marie Gagnebin, que, numa anlise do ensaio benjaminiano sobre
a obra de arte na era da reprodutibilidade tcnica,
escreve: Essas tendncias progressistas da arte moderna, que reconstroem um universo incerto a partir
de uma tradio esfacelada, so, em sua dimenso
mais profunda, mais is ao legado da grande tradio narrativa que as tentativas previamente condenadas de recriar o calor de uma experincia coletiva
(Erfahrung) a partir das experincias vividas isoladas
(Erlebnisse). Ela completa: Essa dimenso, que
me parece fundamental na obra de Benjamin, a
da abertura (Gagnebin 1985: 12; Benjamin 1985a:
165-196).
cadernos de campo n. 13 2005

de passagem aqum do drama. Tomando os


trs momentos dos ritos de passagem como
elementos meta-narrativos (codicados a,
b, e c), as seqncias da apresentao podem ser analisadas da seguinte forma:

margens.22 Quer dizer, vamos s margens das


margens. Uma ressalva: esta lio aprendemos
com o prprio Turner. O lmen pode ser um
lugar privilegiado para se observar um fenmeno, tal como um texto.

[A] RITOS DE SEPARAO. PREPARANDO O LEITOR PARA O CONTATO


COM UMA TRADUO. Aps uma breve introduo, cujo intuito de preparar o leitor para
uma passagem, inicia-se num lugar relativamente familiar: os escritos de Victor Turner a respeito
de ritos e dramas sociais. Aos poucos, como num
rito de separao, adentra-se em territrios menos conhecidos, apresentando ao leitor alguns
dos estudos de Turner sobre a Antropologia da
Performance e Antropologia da Experincia lugar perigoso onde se localiza boa parte da obra
no traduzida de Turner. Assim se prepara o leitor para o contato com uma traduo.

Enm, esta apresentao revela caractersticas


de um rito de passagem. Falta-lhe, porm, o
rito de reagregao [C]. Trata-se de uma passagem para um estado de passagem. No nal,
multiplicam-se as manifestaes de um gnero de
discurso caracterstico de ritos de transio: as
perguntas sem respostas boas para fazer pensar.
Tradues, como a que vem a seguir, so
passagens. Requerem a transformao do estranho em familiar ao mesmo tempo em que
provocam no familiar um efeito de estranhamento. Desenvolvem-se no lmen. Este termo,
como Turner gostava de lembrar, vem do latim
antigo, que evoca o lugar de surrar e debulhar. A idia de extrair gros ou sementes sugestiva. No lmen se encontram sementes que
conservam as suas foras germinativas tais
como as dos relatos de Herdoto.
A imagem de uma ocina, que vimos discutindo nesta apresentao, tambm interessante. Na ocina do tradutor interpenetram-se dois
saberes, e duas lnguas uma que vem de longe,
e outra supostamente sedentria. Ambas brincam com o perigo. Na entrada da ocina vem
escrito: tentar, aventurar-se, correr riscos.

[B1] RITOS DE TRANSIO. BRINCANDO COM UMA META-NARRATIVA


DO TEXTO TRADUZIDO. A seguir, como
quem se encontra num rito de transio, brinca-se com o estranho, nele suscitando um efeito de estranhamento. A brincadeira consiste em
explorar o lmen do texto traduzido de Turner. O
prprio Turner (nosso esprito ancestral) apresenta-se como um guia convel, mostrando-nos
como voltar ao lugar familiar de onde havamos
sado: os seus escritos sobre ritos e dramas sociais,
e experincias de liminaridade e communitas.
[B2] RITOS DE TRANSIO. BRINCANDO S MARGENS DAS MARGENS.
Porm, no voltamos ao lugar familiar. A experincia de liminaridade ganha densidade.
No apenas permanecemos em meio s discusses do texto de Turner sobre a Antropologia
da Experincia, mas, na companhia de Walter Benjamin (pessoa relativamente estranha
antropologia), exploramos os seus rudos e
cadernos de campo n. 13 2005

Referncias bibliogrficas
ABRAHAMS, Roger D. 1986. Ordinary and Extraordinary Experience. In TURNER, Victor e BRUNER,
Edward M. (orgs.). The Anthropology of Experience. Urbana/Chicago: University of Illinois Press, pp. 45-72.
BARTHES, Roland. 1990. Diderot, Brecht, Eisenstein.
In O bvio e o Obtuso: Ensaios Crticos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, p. 85.
22. As aberturas para uma antropologia benjaminiana
tornam-se expressivas nos estudos de Michael Taussig
(Taussig 1980; 1986; 1993).

176 | .
BENJAMIN, Walter. 1985a. A Obra de Arte na Era de
Sua Reprodutibilidade Tcnica. In Obras Escolhidas:
Magia e Tcnica, Arte e Poltica. Volume 1. So Paulo:
Editora Brasiliense.
_____. 1985b. O Narrador. In Obras Escolhidas: Magia
e Tcnica, Arte e Poltica. Volume 1. So Paulo: Editora
Brasiliense.
_____. 1985c. Sobre o Conceito de Histria. In BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e
Poltica. Volume 1. So Paulo: Editora Brasiliense.
CLIFFORD, James, e MARCUS, George E. (orgs.).
1986. Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press.
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. 1990. Flow: The Psychology of Optimal Experience. New York: Haper & Row
Publishers.
DOUGLAS, Mary. [1966]. Pureza e Perigo. So Paulo:
Perspectiva, 1976.
DURKHEIM, mile. [1912]. As Formas Elementares da
Vida Religiosa. So Paulo: Edies Paulinas, 1989.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. 1985. Prefcio: Walter
Benjamin ou a Histria Aberta. In BENJAMIN,
Walter. Obras Escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica. Volume 1. So Paulo: Editora Brasiliense.
_____. 1994. Histria e Narrao em Walter Benjamin.
So Paulo: Perspectiva.
GEERTZ, Cliord. [1980]. Blurred Genres: The Reguration of Social Thought. In GEERTZ, Cliord.
Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York: Basic Books, 1983.
GLUCKMAN, Max. 1954. Rituals of Rebellion in SouthEast frica. Manchester: Manchester University Press.
GOFFMAN, Erving. 1959. The Presentation of Self in
Everyday Life. Garden City, New York: Doubleday
Anchor Books.
MARCUS, George E., e FISCHER, Michael M. J. 1986.
Anthropology as Cultural Critique: An Experimental
Moment in the Human Sciences. Chicago: University
of Chicago Press.
TAUSSIG, Michael. 1980. The Devil and Commodity Fetishism in South America. Chapel Hill: University of
North Carolina Press.
_____. 1986. Shamanism, Colonialism, and the Wild
Man: A Study in Terror and Healing. Chicago/ Londres: The University of Chicago Press.
_____. 1993. Mimesis and Alterity. New York/Londres:
Routledge.
TURNER, Victor. [1957]. Schism and Continuity in an
African Society: A Study of Ndembu Village Life. Oxford
e Washington, D.C.: BERG, 1996.

_____. 1967a. A Ndembu doctor in practice. In The


Forest of Symbols: Aspects of Ndembu Ritual. Ithaca and
London: Cornell University Press.
_____. 1967b. Betwixt and Between: The Liminal Perido in Rites of Passage. In The Forest of Symbols: Aspects
of Ndembu Ritual. Ithaca and London: Cornell University Press.
_____. 1968. The Drums of Aiction. London: Oxford
University Press.
_____. 1969a. Communitas: Model and Process. In
The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. Ithaca,
New York: Cornell University Press, pp. 131-165.
_____. 1969b. Liminality and Communitas. In The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. Ithaca, New
York: Cornell University Press.
_____. 1974a. Hidalgo: History as Social Drama. In
TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors:
Symbolic Action in Human Society. Ithaca and London:
Cornell University Press, pp. 98-155.
_____. 1974b. Preface. In TURNER, Victor. Dramas,
Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca and London: Cornell University Press.
_____. 1974c. Religious Paradigms and Political Action:
Thomas Becket at the Council of Northhampton. In
Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca and London: Cornell University
Press, pp. 60-97.
_____. 1982a. From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: PAJ Publications.
_____. 1982b. Introduction. In TURNER, Victor.
From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play.
New York: PAJ Publications.
_____. 1982c. Liminal to Liminoid, in Play, Flow, Ritual: An Essay in Comparative Symbology. In TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human
Seriousness of Play. New York: PAJ Publications.
_____. 1986. Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in
the Anthropology of Experience. In TURNER, Victor, e BRUNER, Edward M. (orgs). The Anthropology
of Experience. Urbana e Chicago: University of Illinois
Press.
_____. 1987a. Images and Reections: Ritual, Drama,
Carnival, Film and Spectacle in Cultural Performance. In The Anthropology of Performance. New York:
PAJ Publications.
_____. 1987b. The Anthropology of Performance. In
The Anthropology of Performance. New York: PAJ Publications.
VAN GENNEP, Arnold. [1908]. The Rites of Passage.
Chicago: The University of Chicago Press, 1960.

cadernos de campo n. 13 2005

Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em


Antropologia da Experincia (primeira parte),
de Victor Turner*

HERBERT RODRIGUES

JOHN C. DAWSEY

Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/


FFLCH-USP e membro do Ncleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA/
USP).**

Professor Livre-Docente do Departamento de


Antropologia da FFLCH-USP e coordenador
do Ncleo de Antropologia da Performance e
do Drama (NAPEDRA/USP).

De todos os estudos e cincias humanas, a


antropologia a que est mais profundamente enraizada na experincia social e subjetiva do investigador. Nela, toda avaliao tem
como referncia o sujeito, toda observao
nalmente apreendida na batida do pulso. Evidentemente, muitas coisas podem ser
mensuradas, consideradas, contadas e submetidas anlise estatstica. Porm, todos os atos
humanos esto impregnados de signicado, e
signicado difcil de ser mensurado, embora
possa ser compreendido, mesmo que apenas
de modo fugaz e ambguo. O signicado surge quando tentamos associar o que a cultura e
a lngua cristalizaram a partir do passado com
o que sentimos, desejamos e pensamos em relao ao instante presente da vida. Em outras
palavras, retomamos as concluses que nossos
ancestrais estabeleceram como modos culturais

que classicamos hoje, dentro da tradio ocidental, como religiosos, morais, polticos,
estticos, proverbiais, aforsticos, de senso comum etc., para ver como e em que medida essas concluses iluminam ou se relacionam
com as nossas questes, diculdades, problemas, ou alegrias individuais do presente. Cada
movimento de frico entre as madeiras duras
e brandas da tradio e do presente potencialmente dramtico. Em caso de venerarmos
ditos ancestrais, talvez seja preciso concluimos com pesar desfazer-nos das alegrias do
presente ou abandonar a explorao sensvel do
que percebemos como desenvolvimentos sem
precedentes do entendimento humano mtuo
e das formas relacionais.
Conseqentemente, teremos o auto-sacrifcio por um ideal, se tivermos f na autoridade
de uma cultura herdada do passado. Mas se a
tragdia aprova essa postura, os novos caminhos de orientao para a modernidade podem
rejeitar o resultado do auto-sacrifcio e sugerir
alternativas que podem parecer problemticas,
pelo menos para um pblico geral ainda no
sado do confortvel bero da tradio. Uma
experincia desse tipo da prpria natureza do
drama tanto do drama social, onde os coni-

TURNER, Victor. 1986. Dewey, Dilthey, and Drama: An Essay in the Anthropology of Experience In
Turner, Victor W. & Bruner, Edward M. (eds.) The
Anthropology of Experience. Urbana and Chicago,
University of Illinois Press, pp. 33-44.
** Agradeo a Evelise Paulis, a Andr-Kees de Moraes
Schouten e a Danilo Paiva Ramos pela colaborao
na traduo.

cadernos de campo n. 13: 177-185, 2005

178 |

tos so trabalhados na ao social, quanto do


drama de palco, onde eles se espelham numa
multiplicidade de enredos hipotticos, smbolos, e enquadramentos estticos experimentais.
Entretanto, possvel que no haja nenhum
confronto absoluto entre o passado e o presente, o passado coletivo e o presente pessoal e existencial. Todo antroplogo sabe que qualquer
campo sociocultural coerente contm muitos
princpios contraditrios, todos consagrados
pela tradio. No teatro japons, por exemplo,
as verses Bunraku e Kabuki de Chushingura,
a famosa fbula dos quarenta e nove Rnin,
mostram a tenso entre duas lealdades igualmente axiomticas, mas conitantes uma
para com o senhor feudal e outra para com a
ordem imperial. A obedincia a ambos poderia
signicar a morte aos detentores da vingana.
A subordinao da lealdade feudal lei do estado poderia ter sido uma perda humilhante
de identidade social formada sob os princpios
samurai de honra e de vergonha. Mas, algo
subversivo e oculto ocorre no drama de palco.
A burocracia Tokugawa, com sua extensa despersonalizao das relaes, est sendo silenciosamente respondida por gestos marcantes e
complexos do teatro que rearmam as paixes
contra as legalizaes aquelas grandes paixes
que Samuel Coleridge, referindo-se aos heris
trgicos shakespearianos, declarou serem ateus
que acreditavam em nenhum futuro. No entanto, as paixes esto sob controle e chegam a
uma honrosa consumao atravs de um emaranhado de meios tortuosos e de modos que
poderiam ter chocado Aldous Huxley, com seu
dito de que maus meios no produzem bons
ns. Isso, se ele no fosse um homem com capacidade para a ironia e consciente das ambigidades ticas.
Passemos agora para a viso de John Dewey
sobre a experincia, da qual parcialmente compartilho, mas que devo parcialmente concluir precisa ser superada em relao a um

importante aspecto. Dewey (1934) sustentou


que as obras de arte, incluindo obras teatrais,
so celebraes, reconhecidas como tais, da
experincia cotidiana (ordinary experience).
Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendncia nas sociedades capitalistas de colocar a arte
num pedestal, separada da vida humana, mas
comercialmente valiosa dentro de normas estabelecidas por especialistas esotricos. Dewey
disse: At mesmo uma experincia simples, se
for uma experincia autntica, mais adequada
para dar uma pista natureza intrnseca da experincia esttica do que um objeto j colocado
parte de qualquer outro modo de experincia (citado em McDermott 1981: 526). Tudo
isso e mais a esse respeito encontra-se no seu
grande livro Art as Experience, publicado quando Dewey tinha setenta e cinco anos de idade.
Em meu livro From Ritual to Theatre (1982:
17-18), ensaiei uma etimologia da palavra inglesa experincia, derivando-a da base indoeuropia *per-, tentar, aventurar-se, arriscar
podemos ver como seu duplo, drama, do
grego dran, fazer, espelha culturalmente o
perigo etimologicamente implicado na palavra experincia. O cognato germnico de per
relaciona experincia com passagem, medo
e transporte, porque p torna-se f na Lei de
Grimm. O grego pera relaciona experincia a
passar atravs, com implicaes em ritos de
passagem. Em grego e latim, experincia associa-se a perigo, pirata e ex-per-imento.
H aqui uma dicotomia que Wilhelm Dilthey (1979 [1914]: 210) imediatamente captou na sua distino entre mera experincia e
uma experincia. A mera experincia , simplesmente, a passiva resignao e aceitao dos
eventos. Uma experincia, como uma pedra
num jardim de areia Zen, destaca-se da uniformidade da passagem das horas e dos anos e
forma aquilo que Dilthey chamou de uma estrutura da experincia. Em outras palavras, ela
no tem um incio ou um m arbitrrios, recorcadernos de campo n. 13 2005

, : |

tados do uxo da temporalidade cronolgica,


mas tem o que Dewey chamou de uma iniciao e uma consumao. Ao longo da vida,
cada um de ns j teve certas experincias
que foram formativas e transformativas, isto ,
seqncias distinguveis de eventos externos e
de reaes internas a eles tais como iniciaes
em novos modos de vida (o primeiro dia na escola, o primeiro emprego, entrada no exrcito,
cerimnia de casamento), aventuras amorosas,
o envolvimento naquilo que Emile Durkheim
chamou de efervescncia social (uma campanha poltica, uma declarao de guerra, uma
causa clbre tais como o caso Dreyfus, o Watergate, a crise dos refns iranianos ou a Revoluo
Russa). Algumas dessas experincias formativas
so altamente pessoais, outras so partilhadas
com grupos aos quais pertencemos por nascimento ou escolha. Dilthey via tais experincias
como tendo uma estrutura temporal ou processual elas so processadas atravs de estgios
distinguveis. Alm disso, elas envolveram em
suas estruturaes, a cada momento e fase, no
simplesmente uma estruturao do pensamento, mas a totalidade do repertrio vital humano
que inclui pensamento, vontade, desejo e sentimento, sutil e variavelmente interpenetrante
em muitos nveis. Uma navalha cognitiva de
Occam, reduzindo tudo a abstraes frias e
sem sangue (isso se pudermos visualizar uma
navalha nesses termos), simplesmente no faria
nenhum sentido humano nesse caso.
Essas experincias que interrompem o comportamento rotinizado e repetitivo do qual
elas irrompem , iniciam-se com choques de
dor ou prazer. Tais choques so evocativos:
eles invocam precedentes e semelhanas de um
passado consciente ou inconsciente porque
o incomum tem suas tradies, assim como
o comum. Ento, as emoes de experincias
passadas do cor s imagens e esboos revividos
pelo choque no presente. Em seguida ocorre
uma necessidade ansiosa de encontrar signicadernos de campo n. 13 2005

cado naquilo que se apresentou de modo desconcertante, seja atravs da dor ou do prazer, e
que converteu a mera experincia em uma experincia. Tudo isso acontece quando tentamos
juntar passado e presente.
estruturalmente irrelevante se o passado
real ou mtico, moral ou amoral. A
questo se diretrizes signicativas emergem
do encontro existencial na subjetividade, daquilo que derivamos de estruturas ou unidades de experincia prvias numa relao vital
com a nova experincia. Isso uma questo
de signicado, no meramente de valor, como
Dilthey entendia esses termos. Para ele, o valor pertencia essencialmente a uma experincia
num presente consciente, em seu prazer afetivo ou no fracasso deste. Mas os valores no
esto signicativamente conectados, eles nos
bombardeiam como amontoados aleatrios de
discrdias e harmonias. Cada valor nos ocupa
totalmente enquanto prevalece. No entanto,
para Dilthey, os valores no tm uma relao
musical um com o outro. somente quando
relacionamos a preocupante experincia atual
com os resultados cumulativos de experincias
passadas se no semelhantes, pelo menos relevantes e de potncia correspondente que
emerge o tipo de estrutura relacional chamada
signicado.
Aqui, o cognitivo se auto-arma heroicamente, pois na maioria das experincias, a emoo e o desejo tm preeminncia no incio, em
pulsos que repudiam todo o passado. Quando
uma guerra declarada; quando encontramos o
mais desejvel amor; quando fugimos do perigo
fsico; ou recusamos nos submeter a uma tarefa necessria, mas desagradvel , estamos sob
o poder do valor. a herica combinao de
vontade e de pensamento que se ope ao valor
por meio do poder integrativo do signicado
relacional. Talvez o valor poder se transformar
em signicado, mas ter de ser, primeiramente,
peneirado de maneira responsvel. Na maioria

180 |

das sociedades pr-industriais, essa busca rdua


pelo signicado foi poderosamente reforada
pelos valores culturais coletivos que ofereciam
s nossas faculdades cognitivas algum suporte
ancestral, o peso de um passado, seno tico,
pelo menos legitimado consensualmente. Nos
dias de hoje, infelizmente, a cultura insiste que
devemos assumir o fardo ps-renascentista de
elaborar cada signicado por ns mesmos, um
de cada vez, sem ajuda dos outros, a menos que
escolhamos um sistema tecido por outro indivduo cuja legitimidade coletiva no maior
que a nossa. Essa , possivelmente, uma diferena importante entre o teatro de hoje e os
primeiros tipos de teatro, na medida em que
o teatro se oferece como espelho cultural do
processo de busca de signicado num nvel
pblico e generalizado. As primeiras formas de
teatro transferiram o peso da responsabilidade
de atribuio de signicado do indivduo para
o grupo, embora o sofrimento trgico ento tenha resultado do terror fsico do indivduo, ou
pelo menos da relutncia extrema face ao dever
social cujo cumprimento poderia signicar tormento fsico ou mental e at a morte.
Na viso de Dilthey, a experincia incita a
expresso, ou a comunicao, com os outros.
Somos seres sociais e queremos dizer o que
aprendemos com a experincia. As artes dependem desse mpeto para confessar e declamar.
Os signicados obtidos s duras penas devem
ser ditos, pintados, danados, dramatizados,
enm, colocados em circulao. Aqui o mpeto do pavo para exibir-se no se distingue da
necessidade ritualizada de se comunicar. O eu
e o no-eu, o ego e o no-ego, a auto-armao
e o altrusmo, encontram-se e se fundem em
comunicaes signicativas.
Subjacente a todas as artes, Dewey viu uma
conexo intrnseca entre a experincia, seja
ela natural ou social, e a forma esttica. Ele
escreveu: h na natureza, mesmo que abaixo
do nvel da vida, algo alm do mero uxo e

da mudana. A forma se apresenta sempre que


um equilbrio estvel, embora em movimento,
seja alcanado (citado em McDermott 1981:
536). Ele argumenta que, mesmo no nvel prhumano biolgico, a vida de qualquer organismo enriquecida pelo estado de disparidade
e resistncia por qual passou com sucesso. A
oposio e o conito so superados e, de fato,
transformados em aspectos diferenciados de
uma vida potencializada e mais signicativa.
Entre os humanos, o
ritmo da perda de integrao com o meio ambiente e a recuperao da unio, no apenas
persiste, mas torna-se consciente com ele; suas
condies so materiais a partir das quais ele elabora propsitos. A emoo o sinal consciente
de uma ruptura, atual ou iminente. O desejo de
restaurao da unio converte a mera emoo
em interesse por objetos como condio de realizar a harmonia. Com a realizao, o material
de reexo incorporado aos objetos como o
seu signicado. Considerando-se que o artista
tem um cuidado peculiar com a fase de experincia em que a unio alcanada, ele no evita
os momentos de resistncia e de tenso. Ele antes os cultiva, no por razes intrnsecas, mas
por causa de suas potencialidades, trazendo para
a conscincia viva uma experincia que total e
una. Em contraste com a pessoa cujo propsito
esttico, o cientista est interessado em problemas, em situaes em que a tenso entre a matria da observao e do pensamento marcante.
Claro, ele se interessa por sua resoluo. Mas
no se acomoda; passa para um outro problema fazendo uso de uma soluo anteriormente
obtida como quem busca um ponto de partida
para novas investigaes.
A diferena entre o esteta e o intelectual ,
portanto, um dos lugares onde a nfase recai
no ritmo constante que marca a interao das
criaturas vivas com o seu ambiente. A questo
fundamental de ambas as nfases na experincia
cadernos de campo n. 13 2005

, : |
a mesma, como tambm a sua forma geral.
A idia esquisita de que um artista no pensa e
de que um cientista no faz outra coisa seno
pensar o resultado da converso de uma diferena de andamento e de nfase numa diferena
de tipo. O pensador tem seu momento esttico
quando suas idias deixam de ser meras idias e
transformam-se em signicados corporicados,
em objetos. O artista tem seus problemas e pensa
enquanto trabalha. Mas seu pensamento mais
imediatamente incorporado no objeto. Por conta do distanciamento comparativo de seu m, o
cientista opera com smbolos, palavras e signos
matemticos. O artista realiza seu pensamento
nos prprios meios qualitativos com quais ele
trabalha, e os termos situam-se to prximos ao
objeto que ele est produzindo que se fundem
diretamente neste.
Considerando-se que o mundo real, o mundo
onde vivemos, uma combinao de movimento e culminao, de rupturas e reunies, a
experincia de uma criatura viva capaz de ter
uma qualidade esttica. O ser vivo perde e re-estabelece, de modo recorrente, o equilbrio com
o ambiente. O momento de passagem do distrbio
para a harmonia o mais intenso na vida. Num
mundo acabado, no seria possvel distinguir
entre o sono e a viglia. Num mundo totalmente perturbado, no seria possvel sequer lutar
com as condies. Num mundo feito de acordo com os padres daquele que conhecemos, os
momentos de realizao pontuam a experincia
em intervalos rtmicos (citado em McDermott
1981: 536-537, grifos meus).

A esttica, ento, refere-se quelas fases que,


numa dada estrutura ou unidade processual de
experincia, ou constituem uma realizao que
atinge as profundezas do ser (como Dewey coloca) de quem tem uma experincia, ou constituem os obstculos e falhas que necessariamente
fazem parte da alegre luta para alcanar a consumao, alm do prazer e do equilbrio onde
cadernos de campo n. 13 2005

se encontra a verdadeira alegria e felicidade da


realizao. H tambm presente no trabalho de
Dewey o sentido de que o tempo de consumao tambm do recomeo qualquer tentativa de prolongar o prazer de consumao para
alm de seu termo natural implica um tipo de
retirada do mundo e, portanto, uma diminuio e perda de vitalidade.
A unidade de experincia de Dilthey enfatiza a cultura e a psicologia, pois ele viu a busca
pelo signicado e sua expresso na performance como manifestaes das fases de luta e consumao. Em Dewey, o processo de experincia
tendia mais para o biolgico. No entanto, ambos enfatizaram que a esttica tem sua gnese
na experincia humana sensvel e no procede
de um domnio ideal, ou de um reino platnico de arqutipos superiores s atividades humanas vulgares que, supostamente, ele deveria
avaliar e organizar. Para os dois lsofos, as artes, incluindo todos os gneros de teatro, tm
suas origens nas cenas e objetos da experincia
humana, e no poderiam ser consideradas
parte deles. O belo a or consumada da busca desordenada de signicado pelos homens e
mulheres que vivem na complexidade plena
de sua mtua atrao e repulso na guerra, no
culto, no sexo, na produo econmica e no
mercado.
Como alguns sabem, tenho concentrado
meu trabalho num tipo especco de unidade de experincia, a qual chamo de drama
social. Trata-se, em seus desdobramentos, de
uma forma proto-esttica. Em muitas situaes de pesquisa de campo em culturas notavelmente diferentes, na minha experincia de
vida em sociedades ocidentais, e em numerosos
documentos histricos, podemos claramente
discernir o movimento de uma comunidade
atravs do tempo como tomando uma forma
qual dicilmente podemos negar o epteto
dramtico. Uma pessoa ou sub-grupo quebra
uma regra, deliberadamente ou por compulso

182 |

interior, num contexto pblico. Os conitos


entre os indivduos, setores e faces seguem
ruptura original, revelando embates ocultos
de carter, interesses e ambies. Estes resultam
numa crise de unidade e continuidade do grupo, a menos que sejam rapidamente bloqueados
por uma ao pblica reparadora, consensualmente empreendida por lderes, guardies, ou
membros mais velhos do grupo social. A ao
reparadora freqentemente ritualizada e pode
ser empreendida em nome da lei ou da religio.
Os processos judiciais acentuam a razo e a
evidncia; os processos religiosos enfatizam as
questes ticas, as maldies ocultas que operam atravs de bruxarias, ou a ira dos ancestrais
contra as quebras de tabu ou a impiedade dos
vivos em relao aos mortos. Se um drama social percorrer seu curso completo, o resultado
(ou consumao, como Dewey diria) pode se
manifestar atravs ou da restaurao da paz e
normalidade entre os participantes ou do reconhecimento social de uma ruptura ou ciso
irremedivel.
Claro, esse modelo, como todos os modelos, est sujeito a muitas manipulaes. Por
exemplo, a ao reparadora pode falhar, e nesse
caso haver um retorno fase da crise. Se a lei
e/ou os valores religiosos perderem sua eccia,
um faccionalismo contnuo e endmico poder contaminar a vida pblica por longos perodos. Ou o fracasso de uma ao reparadora
numa comunidade local poder levar a apelos
a instncias superiores situadas em nveis mais
inclusivos de organizao social da aldeia ao
distrito provncia nao. Ou o ancien rgime pode ser rejeitado in toto, dando incio
revoluo. Nesse caso, o grupo poder ser radicalmente reestruturado, incluindo sua maquinaria reparadora.
A cultura evidentemente afeta tais aspectos, como o estilo e o andamento do drama
social. Algumas culturas procuram retardar as
deagraes de crise aberta elaborando regras

sosticadas de etiqueta. Outras admitem o


uso de violncia organizada na crise ou como
ao reparadora, como se pode vericar em
exemplos tais como o holmgang dos islandeses
(combate individual na ilha), a luta com varas
dos Nuba do Sudo, e as recprocas expedies
dos caadores de cabeas dos povos da colina
Ilongot em Luzon. Georg Simmel, Lewis Coser, Max Gluckman e outros indicaram como
o conito desde que colocado sob controle,
evitando-se o massacre e a guerra pode inclusive realar a conscincia de pertencimento a
um grupo. O conito fora os antagonistas a
diagnosticarem as suas causas e, assim fazendo, a se tornarem plenamente conscientes dos
princpios que os unem para alm e acima das
questes que os cindiram temporariamente.
Como insistiu Durkheim, a lei precisa do crime e a religio precisa do pecado para se tornarem sistemas plenamente dinmicos, porque,
sem o fazer, sem a frico social que acende a
conscincia e a auto-conscincia, a vida social
seria passiva e at inerte.
Essas consideraes, acredito, levaram Barbara Myerho (1979) a distinguir cerimnias
denitrias de dramas sociais, que ela concebeu como um tipo de auto-biograa coletiva, um meio pelo qual um grupo cria sua
identidade ao contar para si uma histria sobre
si mesmo, um processo ao longo do qual ganha
vida a sua Identidade Determinada e Denida (para citar William Blake). Aqui, no sentido diltheyniano, o signicado engendrado
pela articulao de problemas presentes a um
rico passado tnico, que ento infundido nos
feitos e provaes (frase de Dewey) da comunidade local. Alguns dramas sociais podem ser
mais denitrios do que outros, isso certo,
mas muitos dramas sociais contm, mesmo que
apenas implicitamente, meios de reexividade
pblica em seus processos reparadores. Ao ativ-los, os grupos avaliam a sua situao atual: a
natureza e a fora de seus laos sociais, o poder
cadernos de campo n. 13 2005

, : |

de seus smbolos, a eccia de seus controles


morais e legais, a sacralidade de suas tradies
religiosas, e assim por diante.
O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui
que o mundo do teatro, como ns o conhecemos tanto na sia como no Ocidente, e a imensa variedade de sub-gneros teatrais, derivam
no da imitao, consciente ou inconsciente,
da forma processual do drama social completo
ou saciado ruptura, crise, reparao, reintegrao, ou ciso (embora o modelo de tragdia
de Aristteles se assemelhe a esse movimento
seqencial), mas especicamente da terceira
fase, reparao, e, especialmente, da reparao
como processo ritual. Os rituais reparadores
incluem adivinhaes a respeito das causas escondidas de infortnios, conitos e doenas
(todos estes, em sociedades tribais, estando
intimamente interconectados e diagnosticados
como sendo gerados por aes de espritos invisveis, deidades, bruxos e feiticeiros), rituais
curativos (que podem freqentemente envolver episdios de possesso de espritos, transe
xamnico, mediunidade, e estados de transe
entre os pacientes que so os participantes de
um ritual), e os ritos iniciatrios relacionados
aos rituais de aio. Alm disso, muitos dos
ritos que chamamos de cerimnias de crise da
vida, particularmente os de puberdade, casamento e morte, indicam, eles mesmos, uma espcie de ruptura na ordem costumeira da vida
grupal, depois da qual muitos relacionamentos entre os membros do grupo devem mudar
drasticamente, envolvendo muita competio
e conitos potenciais, e at mesmo reais (por
direitos de herana e sucesso, por mulheres,
pelos dotes da noiva, lealdade ao cl ou linhagem, entre outras coisas). Os rituais de crise da
vida (assim, alis, como os rituais sazonais) podem ser chamados de prolticos, enquanto
rituais de aio so teraputicos.
Todos esses processos rituais de terceirafase ou primeira-fase (no caso de crise da
cadernos de campo n. 13 2005

vida) contm uma fase liminar, que fornece um


estgio1 (uso esse termo advertidamente) para
estruturas nicas de experincias (o Erlebnis de
Dilthey) em meios isolados da vida mundana
e caracterizados pela presena de idias ambguas, imagens monstruosas, smbolos sagrados,
provaes, humilhaes, instrues paradoxais
e esotricas, a emergncia de tipos simblicos
representados por palhaos e mascarados, inverses de gneros, anonimatos e muitos outros fenmenos e processos que tenho descrito
em outros textos como liminares. O limen,
ou limiar2 um termo emprestado da segunda das trs fases dos ritos de passagem de van
Gennep uma terra-de-ningum entre3 o
passado estrutural e o futuro estrutural, tal
como antecipado pelo controle normativo da
sociedade sobre o desenvolvimento biolgico.
Isso ritualizado de muitas formas, mas freqentemente os smbolos que expressam uma
identidade ambgua so encontrados numa variedade expressiva de culturas: guras andrginas e teriomrcas,4 combinaes monstruosas
de elementos retirados da cultura e da natureza, com alguns smbolos tais como cavernas,
representando nascimento e morte, tero e tmulo. s vezes, falo sobre a fase liminar como
algo que predomina no modo subjuntivo da
cultura, o modo do talvez, do pode ser, do
como se, hiptese, fantasia, conjectura, desejo dependendo de qual elemento da trindade
de cognio, afeto e vontade est situacionalmente dominante. A vida cotidiana acontece
no modo indicativo, em meio expectativa
da operao invariante de causa e efeito, do
senso comum e racionalidade. A liminaridade
pode talvez ser descrita como um caos frutfero, um armazm de possibilidades, no uma
1. Turner usa o termo stage, que tambm quer dizer
palco (N. da R.).
2. Turner usa o termo threshold (N. da R.).
3. Turner usa a expresso betwixt and between (N. da R.).
4. Turner usa o termo theriomorphic (N. da R.).

184 |

montagem aleatria, mas uma busca por novas


formas e estruturas, um processo de gestao,
uma irrupo fetal de modos apropriados de
existncia ps-liminar.
O teatro uma dessas muitas herdeiras do
grande sistema multifacetado que chamamos
de ritual tribal, que abrange idias e imagens
do cosmos e do caos, interdigitando palhaos
e suas folias com deuses e suas solenidades, e
fazendo uso de todos os cdigos sensoriais para
produzir sinfonias para alm da msica: o entrelaamento da dana, de diferentes tipos de
linguagens corporais, canes, cnticos, formas
arquitetnicas (templos e anteatros), incensos,
oferendas, banquetes ritualizados, pinturas, tatuagens, circuncises, escaricaes, e marcaes corporais de muitos tipos, a aplicao de
loes e a ingesto de poes, a encenao de
tramas mticos e hericos retirados de tradies
orais e muito mais. Os rpidos avanos na
escala e complexidade da sociedade, particularmente aps a industrializao, zeram passar
essa congurao liminar unicada pelo prisma da diviso do trabalho, com suas especializaes e prossionalizaes, reduzindo cada
um dos seus domnios sensoriais a um conjunto de gneros de entretenimento que orescem
no tempo de lazer da sociedade, no mais no
lugar central de controle. Apesar do fato de que
o pronunciado carter sobrenatural do ritual
arcaico tem sido grandemente reduzido, h sinais, no presente, entre gneros especializados
amputados, de uma busca para recuperar algo
da experincia do numinoso, que se perdeu em
seu sparagmos, ou desmembramento.
Claramente, como Dewey argumentou, a
forma esttica do teatro inerente prpria
vida sociocultural, mas o carter reexivo e teraputico do teatro, cujas origens remontam
fase reparadora do drama social, precisa recorrer s fontes do poder freqentemente inibidas
na vida do modo indicativo da sociedade. A
criao de um espao liminar separado, qua-

se-sagrado, permite uma busca de tais fontes.


Uma fonte desse excessivo meta-poder certamente o prprio corpo liberado e disciplinado,
com seus mltiplos recursos no explorados
de prazer, dor e expresso. Uma outra fonte
encontra-se em nossos processos inconscientes, tais como os que ocorrem em estados de
transe. Trata-se de fenmenos semelhantes aos
que freqentemente encontrei na frica, onde
senhoras idosas, magras e mal-nutridas, entre
um cochilo ou outro, danam, cantam e realizam atividades rituais durante dois ou trs dias
e noites sem parar. Penso que um aumento no
nvel de estmulo social, a despeito de como
produzido, pode liberar fontes de energia nos
participantes individuais. O recente trabalho
sobre a neurobiologia do crebro (ver dAquili,
Laughlin & McManus 1979), mostra, entre
outras coisas, como as tcnicas de conduzir o
ritual (incluindo conduo snica, por exemplo, com instrumentos de percusso) facilitam
o domnio do hemisfrio direito, resultando
em experincias atemporais, no-verbais, e gestalt, diferenciadas e nicas quando comparadas
com as manifestaes da funcionalidade do hemisfrio esquerdo ou a alternao dos hemisfrios (Lex 1979: 146).
Meu argumento tem sido que a antropologia da experincia encontra, em certas formas
recorrentes de experincia social entre elas,
os dramas sociais , fontes de forma esttica,
incluindo o drama de palco. Mas o ritual e sua
prognie, com destaque s artes performativas, derivam do corao subjuntivo, liminar,
reexivo e exploratrio do drama social, onde
as estruturas de experincia grupal (Erlebnis)
so copiadas, desmembradas, rememoradas,
remodeladas, e, de viva voz ou no, tornadas
signicativas mesmo quando, como acontece freqentemente em culturas declinantes,
o signicado de que no h signicado. O
verdadeiro teatro a experincia da vitalidade
intensicada, para citar Dewey novamente.
cadernos de campo n. 13 2005

, : |

Em seu auge, signica a completa interpenetrao do eu e do mundo de eventos e objetos


(citado em McDermott 1981: 540). Quando
isso acontece numa performance, o que pode
ser produzido o que dAquili e Laughlin chamam de um fugaz estado de xtase e sentido
de unio (com durao freqente de somente
alguns segundos) [que] pode ser descrito como
um arrepio nada mais que isso que desce
pelas costas at um certo ponto (dAquili et
al. 1979: 177). Um senso de harmonia com
o universo se evidencia e o planeta inteiro
sentido como uma communitas. Esse arrepio,
contudo, deve ser conquistado, para tornar-se
uma consumao. Isso, aps lidar com um
emaranhado de conitos e desarmonias. o
teatro que melhor exemplica o dito de Thomas Hardy: se h um caminho para o melhor,
ele exige um olhar de frente para o pior. As
transformaes rituais ou teatrais no ocorreriam de outra forma.

cadernos de campo n. 13 2005

Referncias bibliogrficas
DAQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles D., and
McMANUS, John. (eds.). 1979. The Spectrum of Ritual. New York, Columbia University Press.
DEWEY, John. 1934. Art as Experience. New York, Minton, Balch & Co.
DILTHEY, Wilhelm. [1914]. Selected Writings. Ed. H.
P. Rickman. Cambridge, Cambridge University Press,
1976.
LEX, Barbara. 1979. The Neurobiology of Ritual Trance. In DAQUILI, E. G., LAUGHLIN, JR., Charles
D., and McMANUS, John. (eds.). The Spectrum of
Ritual. New York, Columbia University Press.
McDERMOTT, J. J. (ed.). 1981. The Philosophy of John
Dewey. New York, Putnams.
MYERHOFF, Barbara. 1979. Number Our Days. New
York, Dutton.
TURNER, Victor. 1982. From Ritual to Theatre. New
York, Performing Arts Journal Press.

resenhas

FABIAN, Johannes. [1983]. The Time and the


Other: how anthropology makes its object. 2. ed.
New York: Columbia University Press, 2002; 205pp.
RONALDO LOBO
Mestre em antropologia pelo PPGACP/UFF e
doutorando no PPGAS/UnB.
Resenha aceita para publicao em 27/07/05

Por que fazer a resenha da segunda edio


em lngua inglesa de um texto publicado pela
primeira vez em 1983? De alguma forma a resposta est contida na prpria pergunta, pois j
se passaram mais de 20 anos e este livro seminal
de Johannes Fabian ainda no foi publicado em
portugus! No que ele no circule nos meios
acadmicos nacionais, mas se mantm restrito
a um pblico necessariamente bilnge, quem
sabe para que o poder de sua crtica no ameace
formaes no consolidadas.
A barreira do idioma tambm um mecanismo de controle de poder, como o prprio Fabian nos apresentou em Language and Colonial
Power, de 1986, estudando o Shaba Swahili e
administrao colonial belga no Zaire. Enm,
tratam-se de livros sobre mecanismos de poder
e como so exercidos, mesmo que de forma imperceptvel e, portanto, ameaadores.
Johannes Fabian, nascido em 1937, foi professor do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade de Amsterd. Obteve seu
ttulo de Doutor na Universidade de Chicago,
no nal da dcada de 1960, com etnograa sobre
o movimento carismtico Jamaa em Katanga.
Desde ento publicou mais de doze livros, dos
quais dois so coletneas de ensaios. Suas pesquisas abrangem movimentos religiosos, linguagem,
trabalho e cultura popular, alm de propor questes epistemolgicas e acerca da construo da
antropologia.
cadernos de campo n. 13: 189-192, 2005

A perspectiva crtica talvez a maior marca


deste brilhante antroplogo e pode ser percebida na frase nal de seu livro Time and the
Work of Anthropology: critical essays, de 1991:
Quem somos ns para ajud-los? Precisamos
da crtica (exposio das mentiras do imperialismo, das maquinaes do capitalismo, das
idias equivocadas do cienticismo, e de todo
o resto) para ajudar a ns mesmos. O detalhe ,
decerto, que ns mesmos tanto pode ser eles
como ns (: 264).1
Em The Time and The Other, Fabian desenvolve um poderoso argumento para mostrar
que a construo do Outro, o objeto da Antropologia, foi realizada custa da manipulao
da temporalidade, ou seja, tanto pelas formas
como o Tempo percebido nas diversas sociedades humanas, quanto em suas implicaes
recprocas. Para Fabian, o principal mecanismo
para o estranhamento antropolgico no foi o
afastamento espacial, e sim o temporal. Para
exemplicar as propostas de Fabian, podemos
dizer que a transformao do familiar em extico, ou do extico em familiar, d-se em termos
de manipulao, por parte dos antroplogos
em relao ao seu objeto, das percepes acerca
do tempo.
Para Fabian, ao Outro foi negada uma perspectiva temporal coetnea, ou seja, h o Tempo
1.

As tradues so minhas.

190 |

do sujeito que distinto do Tempo de seu


objeto, s que o Tempo do Outro um No
Tempo! Como esta operao feita? Acompanhemos os argumentos de Fabian.
No prefcio Fabian apresenta o Tempo, assim como o dinheiro e a linguagem, como um
condutor de signicados, uma forma pela qual
se denem as relaes entre o Eu e o Outro. E,
sob as condies do modo de produo capitalista, o tempo pode construir relaes de poder
e desigualdade. Assim, se verdadeiro que o
Tempo pertence economia poltica das relaes entre indivduos, o Antroplogo constri
seu objeto atravs de uma poltica do tempo,
que deve ser vista como uma construo dialtica do Outro.
Para Fabian, o conhecimento produzido pelos antroplogos possui uma contradio fundamental: de um lado a Antropologia
est baseada em uma pesquisa de campo, que
consiste em uma prolongada interao com
o Outro. Mas a construo do conhecimento
utiliza-se de um discurso sobre o Outro fundado em uma distncia temporal e espacial. A
presena emprica do Outro se transforma em
uma ausncia terica, para a qual as equaes,
being here, being there de Cliord Geertz, ou
olhar, ouvir e escrever de Roberto Cardoso
de Oliveira, no do conta, pois em ambas o
Tempo contido nos afastamentos que est mediando o surgimento do Outro.
Fabian mostra que na matriz da sociedade
ocidental, capitalista, o tempo vem sendo manipulado em consonncia com a dinmica das
relaes de poder. Na tradio judaico-crist o
Tempo foi concebido como um meio para a
Histria Sagrada. O Tempo Sagrado linear,
em oposio ao tempo pago, representado por
um eterno retorno. A secularizao do Tempo
realizada na tradio judaico-crist colocou
em questo a universalizao da histria, que
nascera como a histria de um povo eleito.
Para Fabian, a noo de Universal teve duas

conotaes: a primeira, de totalidade, ou seja,


o mundo todo, todo o tempo; a segunda, de
generalidade, quer dizer, o que aplicvel em
um grande nmero de casos.
Da histria, passamos Evoluo, ou
Naturalizao do Tempo. Fabian arma que o
resultado da secularizao do Tempo produziu
dois elementos importantes para os acontecimentos do sculo XIX. O primeiro que o
Tempo passou a ser considerado imanente, ou
seja, coextensivo ao mundo, e o segundo que
as relaes entre os componentes do mundo
natural e scio-cultural tornaram passveis
de serem compreendidos atravs de relaes
temporais. A nova dimenso quantitativa que
o Tempo geolgico produziu, permitiu que o
Evolucionismo fosse pensado. A mudana no
tempo estava completa, tanto em termo de sua
qualidade do sagrado ao profano como em
quantidade, do nito ao innito. Entretanto,
o processo complementar que os Antroplogos
do sculo XIX desenvolveram, para Fabian, foi
a espacializao do tempo, ou seja, na construo do Outro, a diferena foi encarada como
distncia.
Desde ento, os Antroplogos tm abordado
trs dimenses do Tempo. A primeira delas Fabian chama de Tempo Fsico, que corresponde
a um parmetro ou vetor na descrio de processos scio-culturais. A segunda diz respeito
ao tempo plotado em escalas (calendrios, diria
eu), que se desdobra em duas abordagens: um
Tempo Mundano e um Tempo Tipolgico. O
primeiro aglutina perodos de tempo em grande escala, aos quais no se deseja qualicar detalhadamente, como a designao Idade de Ouro.
A segunda cobre perodos de tempo no to
extensos, e que possuem entre si caractersticas
comuns e opostas, como, por exemplo, tradio versus modernidade, campesinato versus urbano, sociedades com escrita versus sociedades
sem escrita. A terceira abordagem corresponde
ao Tempo Intersubjetivo. Para Fabian, quer o
cadernos de campo n. 13 2005

antroplogo use uma abordagem sincrnica,


quer use um enfoque diacrnico, ambas esto
baseadas em uma dada cronologia, impensvel
sem a dimenso do Tempo.
Uma das premissas de um Tempo Intersubjetivo o fato de que os participantes do
encontro devem estar em uma mesma temporalidade, ou seja, serem coetneos. Entretanto,
Fabian denuncia que a caracterstica da escrita
etnogrca exatamente oposta: h uma tendncia persistente e sistemtica em colocar os
referentes da antropologia em um Tempo distinto do presente daquele que est produzindo
o discurso antropolgico (: 31), ou seja, negar
ao Outro o direito de ser coetneo, ou coevo.
Com isso no se est produzindo uma situao anacrnica, reveladora de um evolucionismo ultrapassado. Para Fabian, na verdade, o
que se produz uma situao em que o Outro
revelado pelos antroplogos como sendo alcrono, ou seja, no est em temporalidade alguma. O exemplo marcante para a excluso da
temporalidade na antropologia o pensamento
de Lvi-Strauss, para quem o Outro que no
est presente no mundo; ele habita uma matriz que permite que ele, no s coloque, mas
marque todo e qualquer trao cultural em uma
rede lgica (: 55).
No quarto captulo Fabian analisa o processo acadmico, ainda vigente, de pesquisa de
campo, notadamente em seu constrangimento
temporal. As alternativas existentes, o aprendizado da lngua previamente quando o caso ,
o estudo de pequenas comunidades atravs de
mapas, quadros de parentesco, censos diversos,
todos tem como objetivo fazer com que o pesquisador de campo ganhe tempo, no perca
tempo, cumpra seu prazo. Fabian arma que
existem trs pressupostos subjacentes a estas
prescries que merecem ser explicitados: coloca o aprendizado da lngua nativa como uma
ferramenta para extrao de informaes,
adota uma perspectiva visualista, ou seja, que
cadernos de campo n. 13 2005

ver uma cultura equivalente a entend-la, e


por m, o tempo do antroplogo que dita as
relaes de produo do conhecimento.
As concluses de Fabian so claras: como
relaes entre os povos e sociedades que estudam e aqueles que so estudados as relaes
entre a antropologia e seu objeto inevitavelmente poltica: a produo do conhecimento
ocorre em um frum pblico de relaes internas aos grupos, entre as classes e internacionais (: 143). Em sua busca por territrio,
o ocidente utilizou o Tempo para acomodar a
Histria unilinear: progresso, desenvolvimento, modernidade (e suas imagens contrrias:
estagnao, subdesenvolvimento, tradio).
Para Fabian, a geopoltica do ocidente tem seus
fundamentos em uma cronopoltica.
Trazer o Tempo para o centro das relaes
de poder coloca uma ferramenta de anlise que
supera em muito as discusses acerca do papel da antropologia e da dominao colonial.
O presente etnogrco de etnograas famosas, mesmo aquelas que tiveram a sensibilidade de perceber diferenas entre os sentidos das
temporalidades particulares, como Os Nuer
de Evans-Pritchard, congelam os grupos no
tempo. O povo nuer, observado na dcada de
1930, permaneceu o mesmo ao longo da trilogia de seu etngrafo, at seu ltimo livro, Nuer
Religion, publicado na dcada de 1950.
Enm, a crtica de Fabian coloca para os
antroplogos um desao: como superar em
nossas prticas acadmicas e/ou prossionais
os limites de uma temporalidade linear, caracterstica de nosso modelo de cienticidade,
quando em contato com outras construes
sociais que no esto fundadas no mesmo modelo? Neste livro, a resposta de Fabian que
devemos reconhecer que nossas teorias sobre a
sociedade do Outro so nossas prxis as formas pelas quais produzimos e reproduzimos o
conhecimento acerca do Outro em funo de
nossa sociedade (: 165).

192 |

E tal ensinamento fundamental para que


se inicie um novo processo de compreenso sobre o modelo de reconhecimento de polticas
pblicas nacionais voltadas para nossos Outros:
ndios, quilombolas e populaes tradicionais.
Os conitos recentes de Roraima, acerca da
Reserva Indgena Raposa Serra do Sol, sugerem
que a anlise das temporalidades em jogo pode
fornecer uma pista para uma compreenso mais

acurada acerca dos interesses em disputa, e das


possibilidades de sua administrao.
O livro de Fabian , antes de tudo, uma revelao sobre ns mesmos. E, como tudo que
traz tona o que est no fundo de nossas prticas e nossas crenas incomoda, instiga, provoca
reaes inesperadas. Talvez este seja o motivo de
seu ocultamento: o potencial questionador que
contm sobre ns mesmos e nossas certezas.

cadernos de campo n. 13 2005

LEWGOY, Bernardo. 2004. O grande mediador:


Chico Xavier e a cultura brasileira.
Bauru: EDUSC; 135 pp.
MARCELO TADVALD
Mestre em Antropologia Social pela UFRGS.
Resenha aceita para publicao em 22/09/05

O espiritismo kardecista sem dvida alguma


possui um espao privilegiado dentro do panteo de crenas existentes no Brasil. Tal espao
foi galgado e construdo ao longo do sculo XX
a partir de uma srie de fenmenos que podem
ser resgatados e melhor compreendidos a partir
da gura do mdium mais popular da histria
do espiritismo brasileiro, Francisco Cndido
Xavier Chico Xavier.
Percebo que a produo antropolgica brasileira ainda carece de estudos que se destinem
a discutir o espiritismo dentro dos cdigos de
nossa disciplina. Pelo que conheo, a prpria
discusso sobre a vida e a obra de Chico Xavier parece ter se tornado condio sine qua non
para desvelarmos uma discusso maior sobre o
espiritismo brasileiro.
Lanado recentemente, O grande mediador
Chico Xavier e a cultura brasileira, de Bernardo Lewgoy, de certa maneira precipita e insere
o olhar antropolgico para dentro deste debate
que se demonstra cada vez mais atual e recorrente. A partir da anlise da trajetria (mtica)
de Chico Xavier, o autor procura compreender
de que maneira o espiritismo brasileiro se constituiu da forma que o , diferentemente, em
alguns aspectos, do espiritismo francs, bero
desta doutrina, e como a gura de Chico Xavier
pode ser compreendida como catalisadora de
uma retrica sincrtica entre elementos notavelmente espritas e notavelmente catlicos. Tal
fenmeno contribuiu para o desenvolvimento
cadernos de campo n. 13: 193-196, 2005

do espiritismo brasileiro e do espiritismo brasileira.


Chico Xavier, falecido em 2002, a principal referncia do espiritismo no Brasil. Percebemos que a trajetria religiosa deste mdium se
confunde com a prpria trajetria da doutrina
no Brasil durante o sculo XX (Chico Xavier
nasceu em 1910 e publicou seu primeiro livro
Parnaso de Alm-Tmulo em 1932). Bernardo Lewgoy nos sugere que a compreenso
da gura de Chico Xavier deve ser apreendida em dois nveis distintos: um que se refere
obra medinica do autor e outro que se refere
hagiograa do santo existente em torno da
gura do mdium. Em todo caso, este estudo
demonstra que, quaisquer que sejam as leituras
realizadas em torno do mdium, estas nos apresentam uma personagem cercada de uma aura
de sacralidade que faz sentido para o imaginrio religioso brasileiro, fato que contribuiu decisivamente para a criao e consolidao deste
espiritismo tupiniquim.
A obra est dividida em cinco captulos. O
primeiro captulo se prope realizar um breve
esboo biogrco de Chico Xavier. Nesta parte, tomamos conhecimento do incio de uma
trajetria mtica marcada pelo sofrimento e
pela provao, aspectos que iriam acompanhar a gura de Chico Xavier durante toda sua
vida. De infncia pobre e triste, Chico Xavier
comea desde cedo a tomar conhecimento de
sua misso maior, destinada a si nesta vida,

194 |

atravs de encontros com o esprito de sua me.


Posteriormente, se encontraria com um dos espritos mais presentes e parceiro durante seu
trabalho espiritual Emmanuel. Aqui, o autor
procurou demonstrar como tais acontecimentos da vida de Chico Xavier, encontrados em
suas diferentes biograas existentes, possuem
elementos que podem ser tomados como comuns em histrias de santidade, ou seja, que
contriburam para a constituio de uma imagem de santidade para Chico Xavier.
O segundo captulo, no por acaso o mais
extenso, reconstitui o contexto social, religioso, poltico e histrico da obra literria do mdium ao longo do tempo e a articula prpria
constituio do mito Chico Xavier. O estudo
apresenta de que maneira o papel familiar e religioso das mes estar presente ao longo das
manifestaes pblicas do mdium, chamando
a ateno para o fato de que tal aspecto esteve
inserido na vida de Chico Xavier de maneira
muito peculiar.
Para Lewgoy, a matrifocalidade da obra de
Chico Xavier resume, em parte, a aproximao
da doutrina esprita com o catolicismo popular, em um tempo em que a prpria Igreja atacava a doutrina. Isto nos permite pensar de que
maneira existira uma valorizao da mulher
dentro do espiritismo brasileiro desde ento.
Tal discusso pode contribuir para nosso entendimento acerca dos motivos que expliquem
o fato de quase 60% dos espritas brasileiros serem mulheres, de acordo com o censo de 2000.
Como deixa claro esta obra, a aproximao
do espiritismo brasileiro com o catolicismo se
constitui como um dos fatos que diferem em
essncia este espiritismo do europeu preconizado por Allan Kardec, tambm mais secular e
racionalista.
Durante o Estado Novo ocorre uma reaproximao do governo para com a Igreja Catlica.
O grande mediador nos demonstra que o escritor
Chico Xavier entra em cena exatamente durante

este perodo. Ao ampliar o leque de trocas com o


catolicismo popular, revitalizado, Chico amplia
as possibilidades de difuso da doutrina esprita
entre as camadas populares, atravs de um espiritismo de vocao nacional e conciliador (: 44).
Ficamos com a impresso, lendo este estudo, de
que graas ao trabalho de Chico Xavier, o espiritismo no Brasil consegue se solidicar e se integrar a realidade urbano-industrial consolidada a
partir dos anos 1930.
Diferentemente do espiritismo francs de
Allan Kardec, o espiritismo brasileiro de Chico
Xavier se constitui a partir de uma estrutura
dissertativa que privilegia os pequenos relatos
espirituais em primeira pessoa, fato que para
Lewgoy pode ser explicado a partir da inuncia de uma moralidade catlica e da literatura
de folhetim.
Para Lewgoy, a gura de Chico Xavier, que
se encontra em certo sentido consubstanciada
nas categorias de santidade e caxias, apontava
sempre para um ideal conservador aproximado a um ethos militar de disciplina. O estudo
em questo prope tal ethos ser parte inerente
do Estado Novo. Se Chico Xavier no fosse,
na conduta de sua vida pessoal, um verdadeiro
caxias, seria possvel construir uma doutrina
esprita brasileira sob tais caractersticas?
bastante interessante o fato trazido pelo estudo de que, o tempo inteiro, a tenso entre os
desgnios espritas e a vida pessoal de Chico
Xavier estaro presentes, assim como uma linguagem burocrtica e administrativa caxias
que fazia apologia categorias da estirpe de
servio, trabalho, obra, mediunato, etc.
Para o autor, essa concepo cvica e orgnica
de cidadania ana-se com a hegemnica matriz
autoritria do pensamento social brasileiro na
dcada de 1930 (: 68). A obra de Chico Xavier est inserida perfeitamente em seu tempo.
Por exemplo, curioso descobrirmos, lendo
O grande mediador, porque possumos, desde
ento, centros espritas constitudos como se
cadernos de campo n. 13 2005

fossem reparties do governo, com uma lgica administrativa e burocrtica de atendimento aos seus seguidores. De fato, se realizarmos
uma visita a algum centro esprita brasileiro,
podemos vericar tal aspecto sem muitas surpresas.
A proposta do terceiro captulo se resume
em resgatar certos elementos que constroem e
aproximam a gura de Chico Xavier a de um
santo. Tal imagem se consagra a partir dos
anos 1950, devido muito tica de humildade
e caridade que perpassa a gura do mdium.
Como demonstra esse estudo, sua biograa de
entrega, de caridade e humildade, apropriadas
como so pelo imaginrio religioso do brasileiro e de suas relaes sociais, adquiriu um
aporte indelvel de santidade gura de Chico,
ainda que este tenha recusado, durante toda a
sua vida, o epteto de santo.
Uma vez o quarto captulo versar sobre a
importncia da obra escrita de Chico Xavier
para o Brasil, podemos vericar a importncia desta obra no somente no que se referiu
disseminao da doutrina esprita no Brasil,
como tambm a sua importncia poltica, dada
a unicao das federaes espritas ento existentes (Pacto ureo, em 1949) em torno daquela federao (FEB) que editava suas obras.
Se tal aspecto fortaleceu a representatividade
e a ampliao da doutrina em nvel nacional,
em consonncia a isso, a obra de Chico Xavier,
ao formar um conjunto prprio de referncia e
ao possuir um mecanismo de divulgao bem
estruturado, contribuiu para consolidar um espiritismo brasileiro autnomo com relao ao
espiritismo francs. Tal proposta, apresentada
no livro de Lewgoy, nos parece coadunar certas
representaes existentes dentre a comunidade
esprita brasileira que lhe agregam um certo
sentido de identidade especco e bem fundamentado.
Ainda que o autor no discuta diretamente
tal questo, O grande mediador resgata alguns
cadernos de campo n. 13 2005

elementos que nos permitem vislumbrar tais


categorias, pois demonstra como a obra de
Chico Xavier conseguiu constituir uma doutrina que clamava pelo pertencimento social sem
exageros ou radicalismos, agregando valores
catlicos e somando a tudo isso smbolos de
prestgio e de diferenciao para seus seguidores, como o estudo, a erudio, a cincia e a valorizao da leitura. Mesmo as camadas menos
favorecidas da sociedade encontravam valores
simblicos importantes que tambm possibilitavam sua aproximao com a doutrina.
No quinto e ltimo captulo traada uma
anlise histrica e contextual do espiritismo no
Brasil, relacionada gura de Chico Xavier ao
longo do tempo. Aqui descobrimos como o espiritismo enfrentou problemas de legitimao
no Brasil durante toda a Repblica Velha, encontrando forte oposio entre segmentos da
Igreja Catlica e do prprio Estado. Porm, ao
combinar nacionalismo e profetismo e sofrer a
inuncia da matriz autoritria do pensamento
social existente nos anos 1930, a doutrina conseguiria encontrar paulatinamente seu espao,
graas, em parte, ao trabalho de Chico Xavier.
Seria a partir dos anos 1950 que o espiritismo encontraria seu momento maior de armao. Lendo O grande mediador, descobrimos
que, no por acaso, ser neste perodo em que
haver a maior oposio catlica contra o espiritismo e que gura de Chico Xavier ser
agregada de fato uma imagem de santidade.
Para o autor, nos anos 50 e 60, o espiritismo
buscou mostrar-se mais cristo do que os demais cristos, mais religioso e popular do que
os falsos religiosos de batina que o perseguiam,
e, nalmente, mais branco, racional, europeu e
identitrio que as demais religies medinicas
(: 115). Descobrimos tambm que durante os
anos de 1970-80, a gura de Chico Xavier se
resignara a de um homem de bem dentro do
regime militar, reforando sua imagem de santo, laico, ecumnico e caridoso.

196 |

Ao concluir o estudo, Lewgoy refora o fato


de que no h como desvincular uma anlise
do espiritismo de uma anlise dos diferentes
momentos sociais porque passaram as foras
armadas no Brasil, ao longo do sculo XX. Tal
perspectiva faz meno aos momentos histricos da vida poltica brasileira em que o papel
das foras armadas se fez mais evidente; momentos estes em que o espiritismo conquistou
espaos importantes dentro da vida religiosa
brasileira. O sucesso desta doutrina pareceu estar relacionado abertura republicana realizada em 1891 s diferentes crenas religiosas. De
fato, produto de seu tempo, o espiritismo soube se incluir nas diferentes ordenaes sociais

porque passou a sociedade brasileira ao longo


do sculo XX.
A sensao que podemos ter ao terminar
a leitura a de que tal estudo nos parece colocar em xeque o limite entre o escritor espiritual e o escritor encarnado. Fato que
Chico Xavier viria publicar 412 livros at a
sua morte, em julho de 2002, no por acaso
sendo considerado um dos autores mais profcuos na histria da lngua portuguesa. E, se de
fato o espiritismo se encontra na ordem do
dia, nada melhor do que poder contar com
um estudo antropolgico sobre aquele que
possivelmente deu a cara que o espiritismo
brasileiro possui hoje.

cadernos de campo n. 13 2005

informe

OS CIRCUITOS DO NAU
Informe das atividades desenvolvidas pelo
Ncleo de Antropologia Urbana da USP

O Ncleo de Antropologia Urbana, NAU,


formado em 1988 no Departamento de Antropologia da USP, um grupo de pesquisa e
discusses terico-metodolgicas sobre questes relativas s sociedades urbano-industriais
contemporneas. O Ncleo integra pesquisadores nos nveis de doutorado, mestrado e graduao (iniciao cientca), que se distribuem
em quatro linhas temticas: Prticas culturais e
sociabilidade no contexto urbano, Formas de
religiosidade, Mtodos em antropologia urbana e Antropologia das sociedades complexas.
A maioria dos estudos realizados pelos integrantes do NAU localizada na cidade de So
Paulo, mas h trabalhos que foram ou esto
sendo desenvolvidos em cidades como Florianpolis (SC), Belm (PA), Curitiba e Londrina
(PR), Natal (RN), So Carlos (SP) e Campo
Grande (MT) e outras.
Os pesquisadores renem-se regularmente
no Departamento de Antropologia da USP
para exposio e discusso de projetos, das estratgias metodolgicas escolhidas, de textos
tericos e resultados do trabalho de campo de
seus participantes (conforme a dinmica das
diferentes pesquisas em andamento).
Nos ltimos anos, o NAU se subdividiu em trs grupos temticos: NAU Jovem,
NAU Estudos da Comunidade Surda e Cultura Brasileira. O primeiro rene alunos de
graduao em Cincias Sociais e mestrado em
Antropologia e Sociologia que tm como tema
cadernos de campo n. 13: 199-202, 2005

de estudo grupos de jovens da cidade de So


Paulo. Desde 2001, seus integrantes se encontram para compartilhar dados sobre o trabalho etnogrco, trocar experincias de campo
e discutir questes tericas e metodolgicas
transversais e comuns a todas as pesquisas.
Fruto deste trabalho foi a coletnea de artigos
intitulada Jovens na Metrpole: uma anlise
antropolgica dos circuitos de lazer, encontro e
sociabilidade (no prelo), organizada pelo coordenador do Ncleo e orientador dos trabalhos,
Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani e
por Bruna Mantese.
Os pesquisadores do subgrupo NAU Estudos da Comunidade Surda tm como temticas
centrais de estudo a sociabilidade e a dinmica
cultural das comunidades surdas na cidade de
So Paulo. Alm de discutir as experincias etnogrcas de cada pesquisador, o grupo estuda
o tema da surdez a partir de diferentes reas,
como a Antropologia, a Lingstica e a Histria
Oral. Com uma equipe multidisciplinar, composta por antroplogos, lingistas e historiadores, o NAU Estudos da Comunidade Surda
integra, junto com o Departamento de Lingstica da USP o grupo Estudos da Lngua e
Cultura Surdas em So Paulo.
1. Uma introduo a essas discusses pode ser encontrada no recente artigo Os circuitos dos jovens
urbanos, de Jos Guilherme Magnani, publicado
na revista Tempo Social, vol 17, n 02, novembro de
2005.

200 |

O grupo de Cultura Brasileira rene alunos


do Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva e conta
tambm com a orientao da Profa. Dra. Rita
Amaral. Ambos desenvolvem o projeto Do Afro
ao Brasileiro: Religies Afro-Brasileiras e Cultura
Nacional: uma Abordagem em Hipermdia, que
conjuga uma larga pesquisa de campo em cinco
estados do pas e a experincia metodolgica de
representao etnogrca em novas mdias. As
investigaes desse grupo buscam compreender
as relaes entre as prticas de grupos locais e a
cultura nacional e podem ser lidas, entre outros,
no artigo Foi Conta pra Todo Canto Msica popular e cultura religiosa afro-brasileira de
ambos os pesquisadores, e nos volumes 1 e 2
da Coleo Memria Afro-brasileira, organizada
pelo Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva, alm
de outros trabalhos como Saints noirs, saints de
noirs: couleur et dvotion dans le catholicisme
afro-brsilien, tambm de Vagner Gonalves da
Silva, publicado na Frana, na coletnea organizada por Christiane Falgayrettes-Leveau: Brsil,
Lhritage africain.
Nos circuitos acadmicos o NAU promove,
tambm, desde 2002, o seminrio A Graduao
em Campo seminrios de Antropologia Urbana das Cincias Sociais. O objetivo do evento
propiciar um espao de apresentao e debate
(at ento praticamente inexistente na graduao em Cincias Sociais na USP) de pesquisas
realizadas por alunos de graduao nas disciplinas voltadas ao estudo das sociedades complexas. Em 2005 o evento teve sua quarta edio,
consolidando-se como espao relevante para o
estmulo e aperfeioamento da pesquisa acadmica entre os graduandos.
O NAU dialoga ao mesmo tempo com outros grupos de estudos e pesquisa, como o Modelos teraputicos, polticas de sade, prticas
corporais e a investigao antropolgica, liderado por Luz Henrique de Toledo, Antropologia
do Estado e da Guerra, liderado por Piero de
Camargo Leirner, ambos da Universidade Fede-

ral de So Carlos, o grupo Ddiva, Estado e


Relaes de Mercado, liderado por Cima Barbato Bevilaqua e Christine de Alencar Chaves,
da Universidade Federal do Paran, o Ncleo
de Arte, Ritual e Performance coordenado entre outros por Sandra Jacqueline Stoll da mesma
universidade e o grupo Cultura, Identidade e
Representaes Sociais, coordenado por Elisete
Schwade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Outra importante atuao do Ncleo, e que
o caracteriza desde sua formao, a prestao
de consultorias para projetos culturais realizados fora do campo estritamente acadmico. Um
exemplo recente foi a participao de nove pesquisadores do NAU (professores e alunos) no
evento Expedio So Paulo 450 anos, ocorrido
entre os dias 11 e 18 de janeiro de 2004. Resultado de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura, o Grupo O Estado de So
Paulo e o Instituto Florestan Fernandes, contou com o patrocnio da Petrobras e foi parte
das comemoraes dos 450 anos de So Paulo,
em janeiro de 2004. A Expedio tinha como
objetivo maior consolidar a implantao do
Museu da Cidade de So Paulo, projeto aprovado em decreto municipal desde 1993 e engavetado por diversas gestes. O objetivo da viagem
foi conhecer So Paulo por dentro, recolhendo
e documentando, durante o percurso, impresses, entrevistas, atividades artsticas, polticas,
sociais, formas de trabalho, lazer, moradia e sociabilidade que embasariam o acervo daquele
Museu. A expedio, dividida em duas equipes
compostas por especialistas em antropologia,
museologia, arqueologia, arquitetura e urbanismo, histria, etnomusicologia, geograa, sociologia, artes, cincias ambientais, educao
e medicina, percorreu diversos bairros de So
Paulo nos sentidos Sul-Norte e Leste-Oeste a
partir de um roteiro previamente estabelecido.
O NAU colaborou neste projeto durante
todo o ano de 2004 e incio de 2005 por meio
cadernos de campo n. 13 2005

da consultoria e coordenao de Jos Guilherme Cantor Magnani e pela assistncia de alguns


alunos integrantes do Ncleo, com o Projeto
de Implantao do Museu da Cidade de So
Paulo. Alguns resultados deste trabalho foram
a produo do livro Expedio So Paulo 450
anos uma viagem por dentro da metrpole (So
Paulo, Secretaria Municipal de Cultura/IFF/
Petrobras, 2004), do documentrio de mesmo
nome em DVD sobre a expedio, alm de
um CD-Rom e da Exposio Expedio So
Paulo 450 anos, realizada na Galeria Olido, de
dezembro de 2004 a janeiro de 2005.
Ainda na rea de consultorias a projetos
museolgicos, o NAU participou, na pessoa
do Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva contribuindo com suas pesquisas e dados de seu
projeto em parceria com a Profa. Dra. Rita
Amaral, de consultorias para a implantao e
consolidao do Museu Afro Brasil, inaugurado no nal de 2004 em So Paulo. Desse
trabalho tambm resultou o texto Devoo
catlica, culto indgena e a pesquisa sobre o
mdulo Arthur Bispo do Rosrio, presente no
catlogo da exposio Brasileiro, Brasileiros
no Museu Afro-Brasl em 2004. Na pessoa de
Rita Amaral o NAU prestou consultoria ao
projeto de implementao do Museu da Igreja
Presbiteriana de Pinheiros, em 2004.
Desde 2003 o NAU pde, atravs de um espao virtual, expandir seus circuitos e contatos
atravs da criao do seu website: www.n-a-u.org.
Idealizado e produzido pela Profa. Dra. Rita Amaral,2 o site hoje disponibiliza gratuitamente artigos
de autoria dos integrantes do Ncleo, inclusive
alguns artigos produzidos a partir de trabalhos de
alunos de graduao apresentados em edies dos
seminrios Graduao em Campo, alm de links
de interesse para os temas de pesquisa, divulgao
2. Rita Amaral contribui, tambm, para a divulgao de
trabalhos realizados na rea de Antropologia urbana
editando a revista eletrnica Os Urbanitas, Revista
Digital de Antropologia Urbana.
cadernos de campo n. 13 2005

de eventos, contatos dos pesquisadores, lanamento de livros e outros temas relacionados com
a Antropologia Urbana. Atravs deste website, o
NAU vem estabelecendo um amplo dilogo via
Internet com pesquisadores de todo o pas e tambm estrangeiros, que demonstram vido interesse na troca de conhecimentos. O NAU, por meio
de seu espao virtual, vem realizando na prtica,
e em grande escala (o site recebeu 100.000 acessos nicos em 2 anos) a proposta de difundir e
ampliar conhecimentos e de estabelecer parcerias
com a comunidade acadmica nacional e internacional. Diariamente o Ncleo recebe e-mails
de alunos, professores e pesquisadores solicitando
informaes, dados, enviando notcias etc. Em
2004, o website do NAU foi indicado e includo
pelo Portal UOL como um dos cinco melhores
na categoria Antropologia. O NAU tem assessorado tambm a imprensa em geral em matrias
sobre a vida nas cidades, eventos e grupos urbanos e sempre que possvel as matrias publicadas
so disponibilizadas aos internautas no cone
clippings do NAU.
Tambm com instituies de ensino privado o NAU tem estabelecido dilogo por intermdio, atualmente, das pesquisadoras docentes
Profa. Dra. Denise Pirani, da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais e Profa. Lilian
De Lucca Torres, da Fundao Armando lvares Penteado e das Faculdades Integradas Alcntara Machado. A Profa. Rosa Maria M. Lpez
intermedeia o dilogo do NAU com a Universidade Federal de So Paulo, abordando temas
antropolgicos relativos a questes de sade em
So Paulo. J a Profa. Dra. Fraya Frehse tem se
envolvido, como docente da Escola de Sociologia e Poltica e at o incio deste ano, da Escola
da Cidade, em pesquisas sobre reas denidas
de So Paulo visando a formulao de polticas
pblicas para tais localidades. Em particular na
Escola de Sociologia e Poltica coordenou, entre abril e novembro de 2005, uma investigao
etnogrca com alunos de graduao e de ps-

202 |

graduao para a elaborao de um diagnstico


situacional sobre o bero histrico do bairro da
Mooca, popularmente conhecido hoje em dia
como Mooca Baixa. Retomando, com nova
roupagem, a antiga tradio de estudos urbanos
da Escola, a pesquisa desembocou na construo de uma metodologia para a formulao de
diagnsticos para outras regies da cidade, sendo que os resultados etnogrcos do empreendimento vm sendo trabalhados pelos alunos em

artigos que comporo uma coletnea que Fraya


est organizando atualmente.
Este conjunto de pesquisadores formados,
ps-graduandos e graduandos (ver www.n-a-u.org/
pesquisadores.html) tem constitudo uma inestimvel massa crtica e vem fazendo do NAU um
espao acadmico vivo, democrtico e empenhado no somente em produzir conhecimento em
nvel de excelncia, mas tambm em torn-lo
acessvel comunidade acadmica e sociedade.

www.n-a-u.org
[email protected]
Ncleo de Antropologia Urbana da USP
Prof. Dr. Jos Guilherme Cantor Magnani
Prof. Dr. Vagner Gonalves da Silva
Rita Amaral (NAU/USP); Luis Henrique Toledo (UFSCar);
Piero de Camargo Leirner (UFSCar); Cima Barbato Bevilaqua (UFPR);
Sandra Jacqueline Stoll (UFPR); Elisete Schwade (UFRN).
Lilian De Lucca Torres (FAAP-FIAM); Denise Pirani (PUC-MG);
Rosa Maria M. Lpez (UNIFESP); Fraya Frehe (FESP).
Alexandre Barbosa Pereira; Eufrzia Cristina Menezes Santos;
Janine Helfst Leicht Collao; Silvana de Souza Nascimento
Antonio Gracias Vieira; Bruna Mantese; Carolina de Camargo Abreu;
Carol Roxo; Csar Augusto de Assis Silva; Daniela do Amaral Alfonsi;
Fernanda Silva Noronha; Mrcio Jos Macedo; Paulo Malvasi;
Rachel Rua Baptista; Thoms Meira; Natacha Leal
Ana Luiza Mendes Borges; Anglica de Almeida Durante Pacheco;
Camila Iwasaki; Clara de Assuno Azevedo; Henrique Generese;
Renata de Toledo Rodovalho.

cadernos de campo n. 13 2005

Instrues para colaboradores

Objetivo e poltica editorial

Critrios para apresentao de colaboraes

1. Cadernos de Campo revista dos alunos de


ps-graduao em antropologia social da USP
uma publicao anual dedicada a divulgar trabalhos que versem sobre temas, resultados de
pesquisas e modelos terico-metodolgicos de
interesse para o debate antropolgico contemporneo e que possam contribuir no desenvolvimento de pesquisas em nvel de ps-graduao,
no pas e no exterior. As contribuies podem ser
apresentadas nos seguintes formatos: artigos e
ensaios, tradues, resenhas, entrevistas e produes visuais.
2. A pertinncia para publicao das contribuies ser avaliada pela comisso editorial
quanto adequao ao perl e linha editorial
da revista e por pareceristas ad hoc no que
toca ao contedo e qualidade dos trabalhos. Os
nomes dos pareceristas permanecero em sigilo,
omitindo-se tambm os nomes dos autores perante os primeiros.
3. A comisso editorial entende que a remessa espontnea de qualquer colaborao implica
automaticamente a cesso integral dos direitos
autorais a Cadernos de Campo. Publicados os
trabalhos, a revista reserva-se esses direitos, mesmo os de traduo, permitindo entretanto a sua
posterior reproduo, desde que citada a devida
fonte.
4. Conceitos e opinies expressos nos trabalhos publicados so de responsabilidade exclusiva
dos autores, no reetindo obrigatoriamente a
opinio da comisso editorial.

5. De preferncia redigidos em portugus,


Cadernos de Campo publicar eventualmente trabalhos em lngua estrangeira (espanhol, francs
e ingls).
6. Os trabalhos devem ser apresentados em
duas vias impressas, acompanhadas de uma cpia em mdia eletrnica (de preferncia e-mail
ou CD, conforme o caso). Os textos devem estar
digitados em pgina A4, fonte Times New Roman, corpo 12, espaamento 1,5 cm, com margens esquerda/direita 2,5 cm, cabealho/rodap
3 cm, em processador de texto compatvel com
MSWord. As notas devem ser numeradas com algarismos arbicos, em ordem crescente e listadas
ao p da pgina. Quadros, mapas, tabelas, imagens etc., devem ser enviados em arquivo separado, com indicaes claras, ao longo do texto, dos
locais em que devem ser includos. No caso das
fotograas, devem estar digitalizadas com resoluo acima de 300 dpi e formato TIFF.
a) Artigos e ensaios inditos. Devem indicar ttulo (em portugus e ingls), nome(s) do(s)
autor(es), titulao, aliao acadmica, endereo para correspondncia e e-mail; devem tambm
apresentar um resumo com no mximo 15 linhas
e um elenco de palavras-chave que identique seu
contedo (em portugus e ingls). Limite mximo de 30 pginas, includas as referncias.
b) Tradues de trabalhos relevantes e indisponveis em lngua portuguesa. Devem apresentar
ttulo, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es),
indicando deste(s) ltimo(s) titulao, aliao

204 |

acadmica, endereo para correspondncia e email. Devem ainda ser acompanhadas de cpia do
original utilizado na traduo, bem como autorizao do editor ou do autor para publicao.
c) Resenhas de livros, coletneas, dissertaes, teses, lmes, documentrios, discos etc.
Devem indicar a referncia bibliogrca do trabalho resenhado, nome(s) do(s) seu(s) autor(es),
acompanhado(s) de titulao, aliao acadmica, endereo para correspondncia e e-mail. No
devem ultrapassar 6 pginas.
d) Entrevistas. Devem apresentar o(s) nome(s)
do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es), indicando, deste(s) ltimo(s), titulao, aliao acadmica, endereo para correspondncia e e-mail.
Devem trazer tambm uma apresentao de, no
mximo, 1 pgina. Solicitamos tambm o envio
da autorizao do(s) entrevistado(s), concordando
com a publicao do trabalho. As entrevistas no
devem exceder 30 pginas.
e) Produes visuais ensaios fotogrcos,
ilustraes, desenhos, caricaturas etc. devem
trazer ttulo e nome(s) do(s) autor(es), indicando
titulao, aliao acadmica, endereo para correspondncia e e-mail. Apresentao e legendas
so opcionais, no podendo a primeira ultrapassar 1 pgina. Os trabalhos no devem exceder 8
imagens, acompanhadas da indicao do autor e
do ano. Quando necessrias, solicitamos tambm
as devidas autorizaes de uso da imagem.
7. Menes a autores ou citaes presentes no
corpo do texto devem adequar-se aos respectivos
modelos: (Geertz 1957) e (Geertz 1957: 235).
Ttulos do mesmo autor com o mesmo ano de
publicao devem ser identicados com uma letra
aps a data: (Lvi-Strauss 1962a) e (Lvi-Strauss
1962b). Recomenda-se o uso da data original de
publicao da obra.

8. As referncias bibliogrcas devem vir ao nal do trabalho, listadas em ordem alfabtica, obedecendo aos seguintes padres exemplicados:
a) Livros:
LVI-STRAUSS, Claude. 1962a. La pense
sauvage. Paris: Plon.
___. [1962]b. O totemismo hoje, traduo de
M. B. Corrie. So Paulo: Abril Cultural, coleo
Os Pensadores, n. 50, 1980.
___. [1964] O cru e o cozido (mitolgicas 1),
traduo de B. Perrone-Moiss. So Paulo: Cosac
& Naify, 2004.
b) Artigos em peridicos:
GEERTZ, Cliord. 1957. Ethos, world view
and the analysis of sacred symbols. The Antioch
review, 17 (4): 234-267.
c) Trabalhos em coletneas:
GEERTZ, Cliord. 1966. The impact of the
concept of culture on the concept of man. In J.
Platt (org.), New view of the nature of man. Chicago: University of Chicago Press, pp. 93-118.
d) Teses ou dissertaes acadmicas:
DAWSEY, John Cowart. 1999. De que riem
os bias-frias? Walter Benjamin e o teatro pico de
Brecht em carrocerias de caminhes. Tese de livredocncia. So Paulo: FFLCH-USP, datilo.
9. As contribuies devem ser enviadas para:
Comisso editorial Cadernos de Campo
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
Av. Professor Luciano Gualberto, 315
So Paulo, SP
CEP: 05508-900
e-mail: [email protected]

Para adquirir os nmeros de Cadernos de Campo,


escreva para [email protected]

cadernos de campo n. 13 2005

Nmeros anteriores

N 12 (2004)

N 11 (2003)

ARTIGOS
Nova sociedade emergente: consumidores de produtos ou produo discursiva?
Diana Nogueira de Oliveira Lima

ARTIGOS
Consideraes sobre a diplomacia num encontro
etnogrco
Cristina Patriota de Moura

Os peregrinos eclticos cristos


Glucia Buratto Rodrigues de Mello

Amaznia em movimento: redes e percursos entre


os ndios Yekuana, Roraima
Elaine Moreira Lauriola

Rompendo tabus: a subjetividade ertica no trabalho de campo


Luiz Fernando Rojo
Construindo narrativas orais: interaes sociais no
trabalho de campo
Marilda A. Menezes, Ldia M. Arnaud Aires, Maria
R. de Souza
O altar no laboratrio: a cincia e o sagrado no projeto genoma humano
Guilherme Jos da Silva e S
Processo criativo e apreciao esttica no grasmo
Wauja
Aristteles Barcelos Neto
ARTES DA VIDA
Ddivas da oleira navegante: ensaio fotogrco sobre a cermica Wauja
Aristteles Barcelos Neto
TRADUO
Apresentao: Cliord Geetz e o selvagem cerebral: do mandala ao crculo hermenutico
John C. Dawsey
O Selvagem Cerebral: sobre a obra de Claude LviStrauss, de Cliord Geertz
Traduo de Antonio Maurcio Dias da Costa

Analogismo: a natureza do social


Gilton Mendes dos Santos
Uma faxina na identidade de imigrantes brasileiras
Soraya Fleischer
A propsito dos 500 anos do Brasil: Saudaes a
Oxal e ao Senhor do Bonm no serto de Minas
Gerais
Rubens Alves da Silva
Catolicismo, massa e revival: Padre Marcelo Rossi e
o modelo kitsch
Slvia Regina Alves Fernandes
ARTES DA VIDA
Entre arabescos e mesquitas
Francirosy Campos Barbosa Ferreira
ENTREVISTA
Entrevista com Mariza Corra
Carolina Abreu, Francirosy Ferreira, Francisco Paes,
Janine Collao, Ronaldo Trindade e Ugo Maia
TRADUO
Apresentao: Roger Bastide e questes de mudana
cultural
Fernanda Aras Peixoto

206 |
Sociologia das Mutaes Religiosas, de Roger Bastide
Traduo de Rita de Cssia Amaral
RESENHAS
Ecologia Humana, de Daniel E. Brown e Edward
Kormondy
Ana Beatriz Miraglia e Joana Cabral de Oliveira
Art and Agency: an Anthropological Theory, de Alfred
Gell
Aristteles Barcelos Neto
N 10 (2002)
ARTIGOS
Narrativas e o modo de apreend-las: a experincia
entre os caxinaus
Eliane Camargo
O Nome ndio: patronmico tnico como suporte simblico de memria e emergncia indgena no
Mdio Jequitinhonha Minas Gerais
Izabel Missagia de Mattos
Etnias de fronteira e questo nacional: o caso dos
regressados em Angola
Luena Nascimento Nunes Pereira
Atores/Autores: histrias de vida e produo acadmica dos escritores da homossexualidade no Brasil
Jos Ronaldo Trindade
Um grande atrator: tor e articulao (inter)tnica
entre os Tumbalal do serto baiano
Ugo Maia Andrade
ARTES DA VIDA
Fotos de Luiz de Castro Faria
ENTREVISTA
Entrevista com Luiz de Castro Faria
Ana Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra
Mendes de Arajo
TRADUO
Apresentao: Sylvia Caiuby Novaes
Estruturas elementares de reciprocidade: uma nota
comparativa sobre o pensamento scio-poltico nas
Guianas, Brasil Central e Noroeste Amaznico, de
Joanna Overing
Traduo de Renato Sztutman

RESENHAS
Punir os pobres: a nova gesto da misria nos Estados
Unidos, de Loc Wacquant
Antnio Rafael
O Mundo das caladas: por uma poltica democrtica
de espaos pblicos, de Eduardo Yzigi
Fraya Frehse
COMUNICAES E INFORMES
Informe sobre teses e dissertaes defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: janeiro de
2001 a dezembro de 2001
N 9 (2000)
ARTIGOS
Noes sociais de infncia e desenvolvimento infantil
Clarice Cohn
Elipses temporais e o inesperado na pesquisa etnogrca sobre crise e medo na cidade de Porto Alegre
Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert
A natureza da fartura
Flvia Maria Galizoni
As prticas e os cuidados relativos sade entre os
Karipuna do Ua
Laercio Fidelis Dias
Militncia na cabea, direitos humanos no corao e
os ps no sistema: o lugar social do advogado popular
Laura D. von Mandach
Aprendendo novas formas de representao poltica: as inter-relaes entre cursos de formao de
professores Waipi e o Conselho APINA
Silvia L. da S. Macedo Tinoco
ARTES DA VIDA
Artefatos dos povos indgenas do Oiapoque, Amap
Miguel Pacheco Chaves
ENTREVISTA
Entrevista com Lux Vidal
Alecsandro J. P. Ratts, Fraya Frehse, Janine H. L.
Collao e Melvina A. M. de Arajo
cadernos de campo n. 13 2005

|
TRADUO
Apresentao: Marshall Sahlins ou por uma antropologia estrutural e histrica
Lilia Moritz Schwarcz
Antropologia e histria em Marshall Sahlins: Introduo e Concluso de Historical Metaphors
and Mythical Realities, de Marshall Sahlins
Traduo de Fraya Frehse
RESENHAS
A viagem da volta: etnicidade, poltica e reelaborao
cultural no nordeste indgena, de Joo Pacheco de
Oliveira (org.)
Melvina Afra Mendes de Arajo
Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estao do chopp,
de Maria Bernadete Ramos Flores
Sidney Antonio da Silva
COMUNICAES E INFORMES
Informe sobre teses e dissertaes defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: setembro
de 1999 a outubro de 2000
N 8 (1999)
ARTIGOS
A irmandade em redenio: tenses entre tradio
e coletivizao num grupo campons
Alessandra Schmitt
Soltando o Leo: observaes sobre as prticas de
scalizao do Imposto de Renda
Ana Paula Mendes de Miranda
Almofala dos Trememb: a congurao de um territrio indgena
Alecsandro J. P. Ratts
De festas, viagens e xams: reexes primeiras sobre
os encontros entre Waipi setentrionais meridionais
na fronteira Amap-Guiana Francesa
Renato Sztutman
Os pees de gado e a representao dos animais no
Pantanal da Nhecolndia
lvaro Banducci Jnior

ENTREVISTA
Entrevista com Alba Zaluar
Alessandra El Far, Ana Paula Mendes de Miranda,
Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Melvina
Mendes de Arajo e Ronaldo R. M. de Almeida
TRADUO
Apresentao: A casa Kabyle na perspectiva estruturalista de Pierre Bourdieu
Paula Montero
A casa kabyle ou o mundo s avessas, de Pierre
Bourdieu
Traduo de Claude G. Papavero
RESENHAS
Trememb, Torm, Etnicidade e Campo Indigenista, de Gerson Augusto Oliveira Jnior
Luena Nascimento Nunes Pereira
Antropologia urbana. Cultura e sociedade no Brasil
e em Portugal, de Gilberto Velho (org.)
Alessandra El Far
COMUNICAES E INFORMES
Direito, poltica e meio ambiente: dilogos entre a
Antropologia e a Cincia Poltica no NUFEP/UFF
Roberto Kant de Lima
Informe sobre teses e dissertaes defendidas no
Departamento de Antropologia da USP: outubro
de 1998 a agosto de 1999
N 7 (1998)
ARTIGOS
Imposto de Renda e contribuintes de camadas mdias: notas sobre a sonegao
Cima Bevilaqua
O Antroplogo no campo da justia, o investigador
e a testemunha ocular
Joana Domingues Vargas
A formao de um grupo de imortais nos primeiros
anos da Repblica
Alessandra El Far
Trocas, faces e partidos: um estudo da vida poltica em Araruama-RJ
Ana Cludia Coutinho Viegas

cadernos de campo n. 13 2005

208 |
Antroplogos vo ao cinema: observaes sobre a
constituio do lme como campo
Rose Satiko Gitirana Hikiji
Cidadania e prticas sociais: as disputas entre empregadas e empregadores domsticos pela mediao
do sindicato
ENTREVISTA
Entrevista com Ruth Cardoso
Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar
Teodoro da Cunha, Fraya Frehse e Ronaldo R. M.
de Almeida
DEBATE
A responsabilidade tica e social do antroplogo
Dominique Gallois, Mariana K. L. Ferreira e Vagner Gonalves da Silva
TRADUO
Os dilemas do antroplogo entre estar l e estar
aqui: primeiro e ltimo captulo de Works and lives: the anthropologist as author, de Cliord Geertz
Traduo de Fraya Frehse

N 5-6 (1995-1996)
ARTIGOS
Do velho ao antigo: etnograa do surgimento de
um patrimnio
Bernardo Lewgoy
Classicaes micas da natureza: a etnobiologia no
Brasil e a socializao das espcies naturais
Eduardo Carrara
Poder criativo e domesticao produtiva na esttica
piaroa e kaxinw
Elsje Maria Lagrou
Metforas convencionais & atribuio de crenas
Paulo A. G. Sousa
A metfora do olhar em Janela indiscreta, de Alfred
Hitchcock
Jos de Souza Martins
Quando o Metro era um palcio: salas de cinema e
modernizao em So Paulo
Helosa Buarque de Almeida

RESENHAS
Dirio no sentido estrito do termo, de Bronislaw Malinowski
Vagner Gonalves da Silva

Entre largo e praa, matriz e catedral: a S nos cartes-postais paulistanos


Fraya Frehse

Woman in the eld: anthropological experiences, de


Peggy Golde (ed.)
Heloisa Buarque de Almeida

Representaes depreciativas e espaos: notas sobre


um estudo de caso
Maria das Graas Furtado

A heresia dos ndios: catolicismo e rebelio no Brasil


colonial, de Ronaldo Vainfas
Marcos Pereira Runo

Da raa identidade: da disputa por paradigmas na


cincia do outro
Andreas Hofbauer

COMUNICAES E INFORMES
Extrativismo mineral por e para comunidades indgenas da Amaznia: a experincia do garimpo entre
os Waipi do Amap e os Kaiap do sul do Par
Terence Turner

ENTREVISTA
Falando de Antropologia
Entrevista com Roberto Cardoso de Oliveira
Lus Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fajardo Grupioni

Informe sobre teses e dissertaes defendidas no


Departamento de Antropologia da USP: setembro
de 1997 a setembro de 1998

TRADUO
dipo e J na frica Ocidental, de Meyer Fortes
Traduo de Samuel Titan Jr.
RESENHAS
Em busca da China Moderna, de Jonathan Spence
Marcos Lanna
cadernos de campo n. 13 2005

|
Under the rainbow. Nature and supernature among
the Panare Indians, de Jean-Paul Dumont
Renato Sztutman
A trama das imagens, de Paulo Menezes
Rose Satiko Gitirana Hikiji
A vez e a voz do popular: movimentos populares e
participao poltica no Brasil ps 70, de Ana Maria
Doimo
Carolina Moreira Marques
COMUNICAES E INFORMES
Imagens e o olhar das Cincias Sociais: a trajetria
do GRAVI
Edgar Teodoro da Cunha

TRADUES
Apresentao: Introduo ao Signicado Etnolgico das Doutrinas Esotricas, de Franz Boas
Margarida Maria Moura
Signicado Etnolgico das Doutrinas Esotricas
Franz Boas
Traduo de Margarida Maria Moura
Apresentao: Introduo a A Doena E Suas
Causas, de Andras Zemplni
Paula Morgado
A Doena e suas Causas, de Andras Zemplni
Traduo de Solange Unti Cunha Pinto

N 4 (1994)

RESENHAS
No encalo da luta cidad
Privado porm pblico: o terceiro setor na Amrica Latina, de Rubem Csar Fernandes
Marcos Pereira Runo

ARTIGOS
Katukina, Yawanawa e Marubo: desencontros mticos e encontros histricos
Edilene Coaci de Lima

As redes e o cotidiano em Laboratory Life


Laboratory Life: The construction of scientic facts, de
Bruno Latour & Steve Woogar
Lus Eduardo Lacerda de Abreu

Antroplogos e seus Sortilgios: uma releitura do Esboo de uma teoria da magia de Mauss e Hubert
Emerson Alessandro Giumbelli

Os Bororo e a Igreja Catlica: paradoxos da identidade vistos em um caleidoscpio


Jogo de espelhos: imagens da representao de si atravs
dos outros, de Sylvia Caiuby Novaes
Ana Lcia Marques Camargo Ferraz

Informe sobre teses e dissertaes defendidas no Departamento de Antropologia da USP: 1995 a 1997

O Pluralismo Mdico Wayana-Aparai: a interseco


entre a tradio local e a global
Paula Morgado
Homo Solitarius: notas sobre a gnese da solido
moderna
Celso Castro
Mscaras Iluministas: os usos retricos do selvagem
Samuel Titan Jr.

COMUNICAES E INFORMES
O grupo MARI: educao e respeito diversidade
brasileira
Andr Luiz da Silva
Informe sobre teses e dissertaes defendidas no Departamento de Antropologia da USP: 1991 a 1994
N 3 (1993)

A Reforma da Cultura Popular e suas Implicaes


para a Construo do Sujeito Moderno
Fabola Rohden
ENTREVISTA
Entrevista com Darcy Ribeiro
Lus Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fajardo Pereira
cadernos de campo n. 13 2005

ARTIGOS
A Aquarela do Brasil: reexes preliminares sobre
a construo nacional do samba e da capoeira
Letcia Vidor de Souza Reis
Por que xingam os torcedores de futebol?
Luiz Henrique de Toledo

210 |
Quando 1 + 1 = 2: prticas matemticas no Parque
Indgena do Xingu
Mariana Kawall Leal Ferreira
As mulheres negras do Oriash: msica e negritude
no contexto urbano
Luciana Ferreira Moura Mendona

At que nem to Esotrico assim: o NAU e suas caminhadas pelas formas de lazer e prticas esotricas
da grande cidade
Flvia Prado Moi e Renato Sztutman
N 2 (1992)

Para no ver cara nem corao: um estudo sobre o


servio telefnico Disque-Amizade
Lilian de Lucca Torres

ARTIGOS
Entre penas e cores: cultura material e identidade
bororo
Lus Donizete Benzi Grupioni

Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular


Karina Kuschnir

Vdeo nas aldeias: a experincia Waipi


Dominique T. Gallois e Vicent Carelli

Durkheim: uma anlise dos fundamentos simblicos da vida social e dos fundamentos sociais do
simbolismo
Helosa Pontes

Da excluso participao: o movimento social dos


trabalhadores atingidos por barragens
Lidia Marcelino Rebouas

TRADUO
Apresentao: Introduo: a questo colonial revisitada
Paula Montero

Tribos urbanas: metfora ou categoria?


Jos Guilherme Cantor Magnani
Dilemas da modernidade no mundo contemporneo
Paula Montero

A noo de situao colonial, de Georges Balandier


Traduo de Nicols Nyimi Campanrio

Fico cientca: um mito moderno


Piero de Camargo Leirner

ENTREVISTA
Entrevista com George Marcus
Helosa Buarque de Almeida, Ldia Marcelino Rebouas e Vagner Gonalves da Silva

Lgica e racionalidade em Lvi-Strauss


Felipe Soeiro Chaimovich

RESENHAS
O espetculo das raas
O espetculo das raas, de Lilia Moritz Schwarcz
Alessandra El Far
Estrangeiros no Brasil
Estrangeiros no Brasil, de Fernanda Peixoto Massi
Ana Paula Cavalcanti Simioni
As iluses do multiculturalismo
Questo de raa, de Cornel West
Omar Ribeiro Thomaz
COMUNICAES E INFORMES
Carnaval: o potlatch da sociedade complexa no Brasil
Angelo Jos Perosa

A antropologia e a reexo inacabada em MerleauPonty


Alberto Alonso Muoz
A fora e a fraqueza do argumento anti-liberal democrata: a crtica Primeira Repblica em Oliveira Vianna, Srgio Buarque de Holanda e Vitor Nunes Leal
Fernando Luiz Abrucio
A origem do Homo Sapiens Sapiens: uma questo
ainda no esclarecida
Diogo Meyer
Indigenismo sanitrio? Instituies, discursos e polticas indgenas no Brasil contemporneo
Istvn Van Deursen Varga
TRADUO
O sagrado selvagem, de Roger Bastide
Traduo de Rita de Cssia Amaral
cadernos de campo n. 13 2005

|
ENTREVISTA
Entrevista com Claude Lvi-Strauss
Edmundo Magaa

Ex-escrava proprietria de escrava: um caso de Sevcia na Bahia do sculo XIX


Joclio Teles dos Santos

RESENHAS
As estratgias textuais de Cliord Geertz
El antropologo como autor, de Cliord Geertz
Fernanda Massi

A crtica antropolgica ps-moderna e a construo


textual da etnograa religiosa afro-brasileira
Vagner Gonalves da Silva

Rock brasileiro: retratos de uma tribo urbana


Retratos de uma tribo urbana, de Almerinda Sales
Guerreiro
Helosa Buarque de Almeida
A morte uma festa
A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no
Brasil do sculo XIX, de Joo Jos Reis
ris Kantor
ndios no Brasil: os caminhos do futuro
ndios no Brasil, de Lus Donizete Benzi Grupioni
Edmundo Antnio Peggion
COMUNICAES E INFORMES
Estes quinhentos e outros tantos
Marcos Pereira Runo
Relaes sujeito-objeto na pesquisa antropolgica:
seminrio temtico e exposio fotogrca
Maria Denise Fajardo Pereira
ndios no Brasil: alteridade, diversidade e dilogo
cultural
Lilia Katri Moritz Schwarcz
N 1 (1991)
ARTIGOS
As tatuagens e a criminalidade feminina
Marina Albuquerque Mendes da Silva
Loucas, agitadas, doentes ou perigosas: representao e cotidiano das internas do Hospital de Juqueri
Cristina Pozzi Redko

Duas mulheres negras: histrias de religiosidade popular e resistncia


Neusa Maria Mendes de Guesmo
Ana Lcia E. P. Valente
cadernos de campo n. 13 2005

A etnopoesia de Hubert Fichte


Plcido Alcntara
TRADUO
Da cosmologia histria: resistncia, adaptao e
conscincia social entre os Kayap, de Terence Turner
Traduo de David Soares
ENTREVISTA
Novas propostas para a ps-graduao: a academia
deve estar mais perto da sociedade
Entrevista com Eunice Ribeiro Durham
Lus Donizete Benzi Grupioni e Omar Ribeiro
Thomaz
RESENHAS
M. M. para no ntimos
Margaret Mead: uma vida de controvrsia, de Phyllis
Grosskurth
Lus Donizete Benzi Grupioni
Os escritos de uma conquista: a educao escolar
indgena
OPAN: a consquista da escrita, de Loretta Emiri e
Ruth Monserrat (org.)
Marina Kahn
Mutiro: utopia e necessidade, de Jeanne BisilliatGardet (org.)
Zulmara Salvador
COMUNICAES E INFORMES
A nova LDB e os ndios: a rendio dos caras-plidas
Lus Donizete Benzi Grupioni
Declarao Universal dos Direitos Coletivos dos Povos
Clara Massip
MARI: Grupo de estudos de educao indgena
Tribunal permanente dos povos
Lux Vidal

FONTE
PAPEL
GRFICA
IMPRESSO

ADOBE GARAMOND PRO 11/14


PLEN SOFT 80 G/M2
PROL GRFICA
MARO DE 2006

Você também pode gostar