Este documento apresenta uma dissertação de mestrado sobre as experiências de travestis e transexuais na escola. A pesquisa utilizou entrevistas e grupos de discussão para mapear as narrativas produzidas por sujeitos trans sobre seu processo de escolarização. Analisou como a sociedade constrói identidades de gênero binárias e heteronormativas e como isso afeta a experiência escolar de pessoas trans. Conclui que as experiências são singulares e que as narrativas são produzidas performaticamente, por meio das memóri
Este documento apresenta uma dissertação de mestrado sobre as experiências de travestis e transexuais na escola. A pesquisa utilizou entrevistas e grupos de discussão para mapear as narrativas produzidas por sujeitos trans sobre seu processo de escolarização. Analisou como a sociedade constrói identidades de gênero binárias e heteronormativas e como isso afeta a experiência escolar de pessoas trans. Conclui que as experiências são singulares e que as narrativas são produzidas performaticamente, por meio das memóri
Este documento apresenta uma dissertação de mestrado sobre as experiências de travestis e transexuais na escola. A pesquisa utilizou entrevistas e grupos de discussão para mapear as narrativas produzidas por sujeitos trans sobre seu processo de escolarização. Analisou como a sociedade constrói identidades de gênero binárias e heteronormativas e como isso afeta a experiência escolar de pessoas trans. Conclui que as experiências são singulares e que as narrativas são produzidas performaticamente, por meio das memóri
Este documento apresenta uma dissertação de mestrado sobre as experiências de travestis e transexuais na escola. A pesquisa utilizou entrevistas e grupos de discussão para mapear as narrativas produzidas por sujeitos trans sobre seu processo de escolarização. Analisou como a sociedade constrói identidades de gênero binárias e heteronormativas e como isso afeta a experiência escolar de pessoas trans. Conclui que as experiências são singulares e que as narrativas são produzidas performaticamente, por meio das memóri
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
DAYANA BRUNETTO CARLIN DOS SANTOS
CARTOGRAFIAS DA TRANSEXUALIDADE: A EXPERINCIA ESCOLAR E OUTRAS TRAMAS
CURITIBA 2010 2
DAYANA BRUNETTO CARLIN DOS SANTOS
CARTOGRAFIAS DA TRANSEXUALIDADE: A EXPERINCIA ESCOLAR E OUTRAS TRAMAS
Dissertao apresentada ao Setor de Ps Graduao em Educao, Universidade Federal do Paran, como parte das exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Educao.
Orientadora: Professora Doutora Maria Rita de Assis Csar
CURITIBA 2010
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DAYANA BRUNETTO CARLIN DOS SANTOS
CARTOGRAFIAS DA TRANSEXUALIDADE: A EXPERINCIA ESCOLAR E OUTRAS TRAMAS
BANCA EXAMINADORA: PROF. DRA. MARIA RITA DE ASSIS CSAR Universidade Federal do Paran (Orientadora)
PROF. DRA. DENISE BERRUEZO PORTINARI Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (Membro)
PROF. DRA. KATIA MARIA KSPER Universidade Federal do Paran (Membro)
AVALIAO: APROVADA (A banca ressalta a relevncia mxima da temtica abordada para a pesquisa em educao e salienta a consistncia terico-metodolgica do presente trabalho).
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Dedico a todas as/os transexuais e travestis vitimadas/os pela violncia todos os dias, s mulheres guerreiras da minha famlia que contriburam para que eu fosse essa mulher, minha mulher e, muito especialmente, ao meu filho Raphael Augusto, investimento e esperana de um mundo sem violncia.
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AGRADECIMENTOS
minha orix protetora, guerreira e valente Ians rainha dos ventos, intensas tempestades e suaves brisas que me guia e protege pelos caminhos da vida. Y Gun, por sua sabedoria, fora e por ser um exemplo vivo de persistncia e dedicao. Sem egocentrismo: a mim, pela persistncia, teimosia, entrega e superao. minha av Elizabeth, fonte de sabedoria, que me ensinou muito e tambm teve humildade para me entender e aprender comigo. minha av Luiza que, com sua simplicidade e histria de vida mostrou-me como a sujeio pode ser perigosa. minha me Rosngela, mulher guerreira que me ensinou a ir mais longe, sempre acreditando e torcendo por minhas conquistas. Ao meu irmo especial, Leonardo, por me ensinar que se pode viver com muito pouco em meio a vrias limitaes e ainda sorrir e ser feliz. Ao meu filho Raphael Augusto, pela compreenso nos momentos em que no pude brincar porque precisava estudar e por ter me ensinado os sabores doces e amargos da maternidade. Ensinou-me tambm que a sensibilidade e a indignao perante as injustias independem, muitas vezes, do saber sistematizado. Com seu olhar simples, evidencia todos os dias as possibilidades e os efeitos de uma educao no machista, no sexista, no lesbofbica, no homofbica, no transfbica e antirracista. minha mulher, Lo Ribas, que me apoiou incondicionalmente ensinando-me o significado do amor e da cumplicidade em uma relao, e por ter acreditado quando nem mesmo eu acreditava. E tambm por entender os momentos nos quais precisei me dedicar pesquisa. Ao meu av Augusto (in memorian) e ao meu tio Marcos Antnio (in memorian) que me ensinaram a importncia de se ter carter e de manter uma tica nas relaes. s minhas tias Alzira, Arlete, Elaine, Luciane, Elo e aos meus tios Nezinho, Nezo, Nen e Nael que mesmo longe torceram por mim. Ao meu pai, que com a sua ausncia tambm participou desse processo.
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minha orientadora, professora Dra. Maria Rita de Assis Csar, por ter me acolhido e me guiado pelos caminhos da academia com maestria, ensinando-me o significado do que tornar-se pesquisadora. Mostrou-me um mundo de possibilidades e de fazer desse acontecimento um ato de resistncia e subverso. professora Dra. Tnia Maria Figueiredo Braga Garcia que se disps a dialogar sobre a anlise dos dados da pesquisa atuando de forma importante para a organizao do captulo metodolgico dessa dissertao. banca de qualificao, composta pelas professoras Tnia Maria Baibich Faria e Roseli Boschilia, pelas valiosas contribuies. Ao Programa de Ps-Graduao em Educao e Linha de Cultura, Escola e Ensino, por proporcionar uma formao de qualidade sobre a produo do conhecimento acadmico. s entrevistadas e ao entrevistado da pesquisa e s participantes do grupo de discusso, que dividiram comigo suas experincias tornando esse trabalho vivel e ensinando-me que possvel sorrir mesmo quando tudo conspira para que se chore. E que se preciso chorar, que as lgrimas no sejam em vo, mas expressem uma raiva histrica e reverberem em luta contra o fascismo presente em nossa sociedade. minha amiga e irm, Dbora Oyayomi Cristina de Araujo, que sistematizou e fundamentou a minha indignao frente ao racismo, ensinando-me que podemos entrecruzar as dvidas histricas e lutar juntas frente s injustias e crueldade. E tambm pela disposio em corrigir esse texto em meio turbulncia de coisas a fazer. Sua competncia e seu olhar atento foram imprescindveis para a reviso desse trabalho. Ao amigo Marco de Oliveira, a Megui, pela presena sempre questionadora, instigante, guerreira e doce, pelas conversas fiadas e teorizaes. E por me ensinar tambm com competncia sobre as articulaes entre racismo e homofobia. s amigas Melissa Colbert Bello e Ktia Cristina Dias da Costa, por me ensinarem que possvel fazer amizades preciosas e contar com elas. E tambm pela contribuio essencial para esse trabalho. amiga Tnia Aparecida Lopes, pelas sbias e ponderadas palavras e atitudes de apoio, sempre que precisei.
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Ao meu amigo e compadre Flvio Bagatim pela amizade e apoio ao longo da vida. equipe do Ncleo de Gnero e Diversidade Sexual, Melissa Colbert Bello, Ktia Cristina Dias da Costa, Ricardo Jos Bis e Patrcia Maria Rodrigues, pela compreenso e disposio em assumir as demandas profissionais com competncia. Alayde Maria Pinto Digiovanni, amiga e Superintendente da Educao e a Wagner Roberto do Amaral, amigo e Chefe do Departamento da Diversidade, pelo apoio e incentivo sempre que precisei. s companheiras da Liga Brasileira de Lsbicas, pelos ensinamentos sobre as possibilidades de militar sem se deixar domesticar.
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Rafaelly: Voc uma trans que j nasceu operada.
Eu: Como assim?
Rafaelly: Voc se importa mais com a gente do que muitas trans... *
* Conversa com Rafaelly Wiest na I Conferncia Nacional LGBT. Braslia/DF, em 06/06/2008. 9
Me elijo en muchos cuerpos, en la multiplicidad de mis deseos. Renuncio a tener que elegirme gnero y sexo, y a todas aquellas categoras que atan la magia de mis placeres y deseos. Euforia Corporal **
A presente pesquisa teve como objeto de anlise as experincias transexuais na escola. A partir dessa perspectiva foi construdo o problema de pesquisa, isto , as narrativas produzidas por travestis e transexuais sobre seu processo de escolarizao formal. A metodologia utilizada foi a cartografia, com o objetivo de elaborar um desenho, no sentido cartogrfico, dos territrios subjetivos da transexualidade na escola. Essa carta-cartogrfica foi produzida por meio de uma imerso nas teorizaes de Michel Foucault, Thomas Laqueur, Gilles Deleuze, Judith Butler, Berenice Bento e Maria Rita de Assis Csar, entre outras/os. Tambm se props uma discusso bibliogrfica sobre a construo da sociedade sexuada e generificada atravs de um referencial binrio e heteronormativo; a respeito da performatividade dos gneros; sobre a patologizao da experincia transexual; sobre a escola; e sobre as narrativas elaboradas pelos sujeitos. As narrativas foram obtidas pela realizao de seis entrevistas com mulheres transexuais, uma com um homem transexual de Curitiba e tambm por meio de um grupo de discusso com lideranas do Movimento Social de Travestis e Transexuais da Regio Sul do Brasil. Para a anlise dessas narrativas, fez-se necessrio um estudo sobre as memrias e os processos de rememorao, esquecimento e silenciamento articulados para essa produo, alm de uma aproximao das teorizaes sobre memrias traumticas. A partir das narrativas foram observados e analisados trs atos performativos: Corpo e Identidade; A experincia escolar; Profissionalizao. Em sntese, pode-se pensar que as experincias transexuais e travestis na escola so mltiplas e singulares e que as narrativas so produzidas performaticamente, isto , por meio de atos performativos das memrias dos sujeitos. Com isso, pode-se compreender que qualquer generalizao que relacione transexualidade e escolarizao formal pode ser perigosa.
This research had as its object of analysis transsexual experiences in school. From this perspective we built the research problem, the narratives produced by transvestites and transsexuals on the process of their formal schooling. The methodology employed was the concept of carthography, aiming at drawing a map of transsexual subjective territories in school. This carthographic-map was produced through the theorizations of Michel Foucault, Thomas Laqueur, Gilles Deleuze, Judith Butler, Berenice Bento and Maria Rita de Assis Csar, among others. The research also proposed an outline analysis of the literature on the construction of gendered and sexualized society through binary references and heteronormativity; on gender performativity; on the pathologizing of transgender experience; on the school, and on narratives produced by the subjects. These narratives were obtained through six interviews with female transsexuals, one with a male transsexual of Curitiba and also through a discussion with leaders of the Transvestite and Transgender Movement in Southern Brazil. For analyzing these narratives, it was necessary to study the question of memory and the processes of remembering, forgetting and silencing articulated to these narrative productions, as well as an approach to theorizing traumatic memories. Regarding these narratives, three performative acts were analized and discussed: Body and Identity; the schooling experience; professionalization. To summarize the argument, one should consider that transsexual and transvestite experiences at school are varied and unique and that their narratives are produced performatively, in other words, through the performative acts of the subjects memories. Thus, one can understand that generalizations linking transsexuality and formal schooling may be dangerous.
ABGLT Associao Brasileira de Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais ADEH-Nostro Mundo Associao em defesa dos Direitos Homossexuais da grande Florianpolis ANTRA Articulao Nacional de Travestis, Transexuais e Transgneros APA Associao Psiquitrica Americana DSM Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais GDE Gnero e Diversidade na Escola GLBT Gays, lsbicas, bissexuais, travestis e transexuais HBIGDA Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association LGBT Lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais NGDS Ncleo de Gnero e Diversidade Sexual da Secretaria de Estado da Educao do Paran NRE Ncleo Regional de Educao da Secretaria de Estado da Educao do Paran OMS Organizao Mundial da Sade SEED Secretaria de Estado da Educao do Paran
Sobre as/os terroristas do gnero ....................................................................... 14
Parte 1. A fabricao da pesquisa e a cartografia das experincias ........... Transexuais 21 1.1 Entrevistas individuais ................................................................................. 1.1 ..........................................................................................................
29 1.2 Grupo de discusso .................................................................................... ..................................................................... . 33 1.3 Fragmentos de vida dos corpos e identidades fora da norma .................... 36 1.4 Perfil do grupo de discusso ....................................................................... 50
Parte 2. Territrios da pesquisa e da transexualidade .................................. 52 2.1 Quando a diferena sexual passou a fazer a diferena ............................ ....................... 53 2.2 O dispositivo da sexualidade e a inveno do sujeito homossexual .......... ............................................................................... ..................................................................... . 61 2.3 Os problemas de gnero da transexualidade ............................................ 67 2.4 O dispositivo da heterossexualidade .......................................................... ................................................................. 74 2.5 O dispositivo da transexualidade ................................................................
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Parte 3. Escola e transexualidade ................................................................... 87 3.1 A escola disciplinar ..................................................................................... 88 3.2 A pedagogia do controle ............................................................................. 96 3.3 Escola, sexualidade e transexualidade ....................................................... 104 3.4 A pedagogia Queer ..................................................................................... 111
Parte 4. Entre as tramas e performances da memria .................................. 122 4.1 Para se pensar a experincia transexual .................................................... 136 4.1.1 Primeiro Ato: Corpo e identidade .............................................................
137 4.1.2 Segundo Ato: A experincia escolar ........................................................
155 4.1.2.1 Cena um: Nome social x Nome civil ......................................................
156 4.1.2.2 Cena dois: O uso do banheiro ...............................................................
162 4.1.2.3 Cena trs: Nas aulas de Educao Fsica ............................................
164 4.1.2.4 Cena quatro: A relao com as/os professoras/es e funcionrias ........ 167 4.1.2.5 Cena cinco: A relao com a instituio ...............................................
170 4.1.2.6 Cena seis: As negociaes necessrias ............................................... 4.1.2.7 O abandono da escola 4.1.2.8 Retornar escola 4.1.3 A profissionalizao
172 4.1.2.7 Cena sete: O abandono da escola ........................................................ 174 4.1.2.8 Cena oito: Retornar escola ................................................................. 177 4.1.3 Terceiro Ato: A profissionalizao ............................................................
Agrado... Uma mulher autntica! Cancelaram o espetculo. Aos que quiserem ser devolvido o ingresso. Mas aos que no tiverem o que fazer, e j estando no teatro, uma pena sarem. Se ficarem, eu irei diverti-los com a histria de minha vida. Adeus, sinto muito [aos que esto saindo]. Se ficarem aborrecidos, ronquem, assim: RRRRR. Entenderei, sem ter meus sentimentos feridos. Sinceramente. Me chamam Agrado, porque toda a minha vida sempre tento agradar aos outros. Alm de agradvel, sou muito autntica. Vejam que corpo! Feito perfeio. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Um desperdcio, porque numa briga fiquei assim [mostra o desvio no nariz]. Sei que me d personalidade, mas, se tivesse sabido, no teria mexido em nada. Continuando. Seios: dois, porque no sou nenhum monstro. Setenta mil cada, mas j esto amortizados. Silicone... Onde? [Grita um homem da platia]. Lbios, testa, nas mas do rosto, quadris e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocs, pois eu perdi a conta. Reduo de mandbula: 75 mil. Depilao completa a laser, porque a mulher tambm veio do macaco, tanto ou mais que homem. Sessenta mil por sesso. Depende dos plos de cada um. Em geral, duas a quatro sesses. Mas se voc for uma diva flamenca, vai precisar de mais. Como eu estava dizendo, custa muito ser autntica senhora. E, nessas coisas, no se deve economizar, porque se mais autntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma 1 (Pedro Almodvar, 1999).
Essa dissertao partiu de um problema do presente sobre a escola e a experincia transexual, isto , a eminncia da presena de travestis e transexuais nas escolas pblicas reivindicando seu direito educao. Segundo muitas/os delas/es, um direito negado no passado devido ao preconceito e discriminao. Essa presena tem acontecido e vem desencadeado um mal estar, produzindo uma perturbao na instituio escolar. Com isso, a investigao se aproximou de experincias como esta da personagem Agrado, de Pedro Almodvar, que se produzem por meio de uma no domesticao da alteridade, assim como daquelas que, mesmo subvertendo a ordem binria do gnero, de alguma forma se encontram aprisionadas
1 Tudo sobre minha me, Pedro Almodvar, 1999, Espanha, 101min. Nesse filme do diretor Pedro Almodvar, Agrado uma travesti que se torna assessora e amiga de uma atriz famosa. Por um problema com a namorada, a atriz no se apresenta e Agrado, ao justificar o cancelamento da pea, assume o palco e diz s pessoas que falar sobre sua vida. 15
normatizao (Maria Rita de Assis CSAR 2 , 2009b, p. 153). Contudo, todas essas experincias que transgridem as normas de gnero e transbordam o limite das definies de gnero, corpo e sexualidade, produzem, assim como Agrado, personagens muito autnticas/os. Ao se apresentar como uma mulher muito autntica, a personagem Agrado 3
provoca um deslocamento e nos pe a pensar sobre o que significa um corpo autntico e, ainda, a respeito de como se pode definir essa autenticidade. Por meio de um traado singular, Agrado desenha e descreve seu corpo de mulher apresentando, uma a uma, as intervenes realizadas, as quais quantifica em relao ao preo pago e ao volume de silicone utilizado. Com essa fala, a travesti relata seus processos de autenticao. Em outro momento ela afirma ainda que pretende conservar seu pnis pois o considera muito til e rentvel como instrumento de trabalho, na sua atuao como prostituta. Agrado tambm se torna me ao assumir a criao do filho de outra travesti com uma freira que morre por complicaes decorrentes da Aids 4 . A fala de Agrado subverte as construes binrias de gnero, uma vez que materializa na descrio detalhada da fabricao do seu corpo autntico, o que para alguns pode ser impensvel, ou seja, como Agrado pode se considerar uma mulher autntica se possui um pnis em um corpo alterado e construdo como feminino? Importa compreender que a personagem Agrado expressa essa autenticidade como a experincia de interveno no prprio corpo em direo ao que sonhou para si mesma, ou seja, a fabricao do corpo feminino. De acordo com Csar (2008, p. 6): [e]la se tornou autntica, segundo sua prpria fala, em relao ao desejado corpo de mulher, produzindo-se a si mesma. Assim, Agrado
2 Na primeira vez em que cito a autoria, apresentarei o nome e sobrenome das/dos autoras/es para identificar se a referncia a uma autora ou a um autor, por compreender que as mulheres foram invisibilizadas historicamente dos processos de produo do conhecimento. 3 Importantes anlises sobre essa personagem podem ser encontradas em: MALUF, Snia Weidner. Corporalidade e desejo: tudo sobre minha me e o gnero na margem. Revista Estudos Feministas. 2002, v.10, n.1, p. 143-153. Disponvel em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11633.pdf>. Acesso em: 12/11/2009; LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte. Autntica, 2004; CSAR, Maria Rita de Assis. Quatro intervenes para uma pedagogia queer. In: Associao Nacional de Ps-graduao e Pesquisa em Educao ANPED, 31 Reunio da ANPED, 2008, Caxambu, MG. Anais, p. 1-13. Disponvel em: <http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT23-4614--Int.pdf>. Acesso em: 12/11/2009. 4 A grafia do termo Aids foi utilizada somente com a primeira letra maiscula por ser uma demanda do movimento social de pessoas vivendo com a sndrome. Esse movimento ressignificou esse termo deslocando o foco da patologia para a pessoa, com vistas humanizao das relaes sociais que envolvem esses sujeitos. De acordo com as lideranas, a doena no a parte mais importante nesse contexto. O Ministrio da Sade tambm j utiliza essa grafia. Para mais, acessar: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=13&id=109>. Acesso em: 12/06/2010. 16
operacionaliza uma afirmao pblica do desenho do seu corpo pelo que ele , ou seja, um corpo transformado, fabricado e construdo pelo seu desejo (Snia Weidner MALUF, 2002, p. 145-146). importante pensar tambm que na construo da personagem Agrado no h um desvelamento, isto , no existe nada oculto que precise ser descoberto, conforme problematizou Michel Foucault (1988) em sua Histria da Sexualidade a respeito do sexo como expresso da verdade sobre o sujeito. Para Maluf (2002, p. 146):
Agrado no se transforma para ocultar uma identidade anterior e autntica e mostrar outra, falsa mas que finge ser verdadeira. Quando lhe dado o palco, ela apresenta o carter fabricado de seu corpo. Ao romper com a oposio entre o falso e o verdadeiro, ela tambm rompe com outra oposio essencialista: natureza e antinatureza.
Agrado uma travesti, e por construir seu corpo de uma forma autntica na qual no se submete s rgidas normas do sistema corpo-sexo-gnero, situada margem das expresses hegemnicas esperadas para o feminino e o masculino (Guacira Lopes LOURO, 2003). Entretanto, com essa fabricao, a personagem descentra o centro, desnaturaliza o corpo biolgico como expresso da verdade sobre o sujeito e ainda produz outra possibilidade de se construir como feminina. Assim, poder-se-ia pensar essa transformao do corpo de Agrado como uma performance de gnero realizada no e pelo corpo. Nessa perfomance, o gnero s existe na prtica, ou seja, somente possvel mediante a sua materializao no corpo (Judith BUTLER, 2008), uma materializao da prpria Agrado como sujeito, por meio da inscrio do seu desejo no corpo. Isto significa uma desterritorializao de um sujeito da margem com o objetivo de se tornar real e inteligvel, tomando o conceito de Butler (2000; 2008). Para isso, fundamental pensar o corpo como construdo anteriormente ao prprio gnero. Para essa autora, [...] [o] corpo em si mesmo uma construo, assim como o a mirade de corpos que constitui o domnio dos sujeitos com marcas de gnero. No se pode dizer que os corpos tenham uma existncia significvel anterior marca de seu gnero [...] (BUTLER, 2008, p. 27, grifos da autora). Assim possvel pensar o corpo fabricado de Agrado como uma experincia de construo. A partir dessa construo, pode-se questionar sobre as normas 17
regulatrias do gnero que, articuladas pelo biopoder (FOUCAULT, 1988), tomam tambm os corpos travestis e transexuais como alvo. Importa tambm pensar que para Agrado o que interessou contar foi o processo, a transformao, um corpo devir, a experincia de transformao e no os resultados. Isto , o seio, o nariz, a bunda, etc... o processo que lhe confere autenticidade. Alm disso, a fala de Agrado se refere tambm a um potencial investimento nessa produo de si, pois a autenticidade para ela se relaciona com uma maior proximidade com o sonho que sonhou para si mesma. Uma narrativa produzida por Thas Prada, uma das entrevistadas dessa pesquisa, transexual no cirurgiada e, assim como Agrado, prostituta, evidencia um pensamento aproximado:
O problema da gente que a gente ganha dinheiro todo dia e gasta dinheiro todo dia, ento voc tem que ganhar todo dia, porque todo dia voc tem que ter uma roupa escndalo para ir para a rua, voc tem que ter uma bolsa, um perfume, maquiagem e nada disso custa barato, n? Ser mulher no custa barato, realmente. Custa caro. (Thas Prada, E)
Em outra anlise, segundo Csar (2008), Agrado se define como uma terrorista do gnero. Para a autora:
Ao definir-se a si mesma Agrado de [sic] intitula uma terrorista do gnero. Assim, os/as nossas quatro personagens-intervenes o/a so, pois subvertem [sic] a ordem normalizada do gnero, do desejo, da famlia nuclear, das formas de maternidade e paternidade, cada um ou uma ao seu modo, todavia todos/as subvertendo os pressupostos da heterossexualidade compulsria, sendo terroristas da norma heterossexual. Nesse sentido, terrorista tem um sentido libertador e libertrio, como [sic] a personagem Agrado, que nos retira de um centro, ou de uma norma internalizada e naturalizada que uma ordenao heterossexual do mundo e de uma lgica que contm simplesmente dois gneros/sexos, o feminino e o masculino (CSAR, 2008, p. 6, grifo da autora). 5
Ao se definir como terrorista do gnero, Agrado coloca-se como confortvel na fronteira, pautando sua experincia pela ambiguidade, ou seja, ela no deseja ser uma mulher que nasceu com vagina ou uma mulher sem pnis. Ela provavelmente
5 A autora analisa quatro personagens. So elas/es: Brandon Teena Meninos no choram, de Kimberly Peirce, 1999; Bree Osbourn Transamrica, de Duncan Tucker, 2005; Agrado Tudo sobre minha me, de Pedro Almodvar, 1999, e Thomas Beatie, o homem grvido (CSAR, 2008). 18
no se submeter a uma cirurgia para ser encaixada no que se espera para o corpo- gnero-feminino. Outro personagem, o fotgrafo drag king 6 , Del LaGrace Volcano 7 , que se auto identificou durante vinte anos de sua vida como Della Grace, fotgrafa lsbica, tambm se auto define como um terrorista do gnero. Para ele:
Llev los parmetros hasta lo que una lesbiana poda ser (o le estaba permitido ser) hasta [..] que me liber en el mar de las posibilidades. Soy un terrorista del gnero [] un terrorista del gnero es cualquiera que consciente e intencionadamente subvierte, desestabiliza y desafa el sistema de gnero binario (VOLCANO, 2007). 8
Em outra fala Del LaGrace Volcano passa a se intitular como abolicionista do gnero, sem, no entanto, abandonar a auto definio como terrorista do gnero. Para ele:
Como una variante de gnero de artista visual, accedo a las tecnologas de gnero con el objetivo de amplificar en vez de borrar los rasgos hermafroditas de mi cuerpo. Me llamo a mi misma, abolicionista del gnero, una terrorista del gnero a tiempo parcial, una mutacin intencionada e intersexual por diseo (no por diagnstico), para distinguir mi viaje del de miles de individuos intersexuales cuyos cuerpos ambiguos has sido mutilados y desfigurados en un intento de normalizacin. Creo en cruzar la lnea tantas veces como me lleve construir un puente por el que todos podamos caminar atravs (VOLCANO, 2005). 9
Assim como nas experincias de Agrado e Del LaGrace Volcano, importa considerar um movimento composto por coletivos de intersexuais, com uma participao menos expressiva, talvez, de travestis e transexuais pr e ps operadas/os que se auto intitulam terroristas do gnero, especialmente, na Espanha. A principal causa de luta empreendida por esse movimento consiste na negao dos
6 Para Eliane Borges Berutti (2003), Drag king so sujeitos que performam, isto , encenam e, com isso, deslocam a masculinidade do corpo masculino. Para a autora: [e]ste performer pode ser uma mulher heterossexual que assume uma persona masculina apenas para fazer o show, uma butch que encontra uma forma de expressar sua masculinidade, ou at mesmo um homem gay. Cumpre ressaltar que o drag king no limita sua existncia ao palco. Ele pode fazer uso apenas do palco para existir como tambm, ao inverso, fazer uso do drag para existir (BERUTTI, 2003, p. 55, grifos da autora). Para mais, consultar: BERUTTI, Eliane Borges. Drag kings: brincando com os gneros. In: Revista Gnero. v. 4. n. 1. Niteri. p.55-63. 2 sem. 2003. 7 Tambm citado em: BENTO, Berenice. A (re)inveno do corpo: sexualidade e gnero na experincia transexual. Rio de Janeiro: Garamond/CLAM, 2006, p. 86. 8 Disponvel em: <http://bajoelsignodelibra.blogspot.com/2007/08/del-lagrace-volcano.html>. Acesso em: 18/06/2010. Para mais, acessar: <http://www.dellagracevolcano.com/projects.html>. Acesso em: 18/06/2010. 9 Disponvel em: <http://www.dellagracevolcano.com/statement.html>. Acesso em: 18/06/2010. 19
diagnsticos, na despatologizao das experincias e na construo do prprio corpo conforme o desejo e em trnsito 10 . Berenice Bento (2006) diferencia essas experincias das de transexualidade. Para a autora:
O que diferencia os transexuais das drag kings que esses no reivindicam uma identidade de gnero, mas a legitimidade dos trnsitos, inclusive corporais, entre os gneros. Os hormnios, as cirurgias parciais ou totais das genitlias, o silicone, a maquiagem so utilizados pelos drag kings para construir intencionalmente pardias de gnero, para embaralhar fronteiras. O corpo utilizado como manifesto, como um locus de produo de contra-discursos, de reinscrituras ordem do gnero. As citaes so descontextualizadas de um referencial biolgico, so masculinidades sem homens (BENTO, 2006, p. 85, grifos da autora).
Essa dissertao possibilitou uma imerso nas experincias construdas pela ambiguidade e produzidas pela diferena, em especial a da transexualidade. A partir dessas experincias voltou seu olhar para a escola contempornea, tomada como um empreendimento biopoltico (FOUCAULT, 2008a) para o controle de corpos e a produo de subjetividades. Nesse sentido, analisou tambm as relaes entre a produo desses corpos transformados e a articulao dos processos de excluso nas escolas. A dissertao est composta por quatro partes. A primeira, intitulada A fabricao da pesquisa e a cartografia das experincias transexuais, possui um carter metodolgico e apresenta as trajetrias metodolgicas para a realizao da pesquisa. Justifica as escolhas tericas e metodolgicas, explicitando a bibliografia utilizada para os procedimentos de investigao, como tambm a forma de anlise do material construdo. Essa parte apresenta alguns fragmentos narrativos dos sujeitos entrevistados e um quadro descritivo sobre as participantes do grupo de discusso.
10 Em alguns blogs e sites espanhis podem ser observadas muitas falas como, por exemplo: [m]e desvo de lo cntrico a lo excntrico, y viceversa. Transito territorios... tan transgredidles!! Desvaro, disiento y me revuelvo. "Que me contradigo a m misma?, pues s, me contradigo. Soy inmensa, contengo multitudes" W. Withman (2007). Disponvel em: <http://heroinadeloperiferico.blogspot.com/>. Acesso em: 18/06/2010. Para mais, acessar: <http://pashb.wordpress.com/%c2%bfque-ves-cuando-me-ves/>. Acesso em: 18/06/2010; <http://euforiacorporal.blogspot.com/2009/01/poesia-porno-terrorista-queer.html>. Acesso em: 18/06/2010; <http://www.caribeafirmativo.com/?page_id=77>. Acesso em: 18/06/2010 e La identidad sexual en el arte contemporneo: del gnero al transgnero. Disponvel em: <http://www.transversalia.net/index.php?option=com_content&task=view&id=95&Itemid=47>. Acesso em: 18/06/2010. 20
A segunda parte, denominada Territrios da pesquisa e da transexualidade, tem uma perspectiva terica, pois explicita as escolhas terico-epistemolgicas utilizadas no trabalho. Essa parte tambm procura justificar o funcionamento interno dos conceitos, fundamentando a presena de cada um dos temas abordados. Na terceira parte, designada Escola e transexualidade, apresenta-se uma reflexo sobre a escola disciplinar, a partir das teorizaes de Michel Foucault a respeito da inveno da instituio escolar. Analisa tambm a escola contempornea como uma instituio da sociedade de controle, definida por Gilles Deleuze. Nessa parte esto presentes anlises sobre a Pedagogia do Controle, conceito definido por Maria Rita de Assis Csar, assim como tambm reflexes sobre sexualidade e transexualidade na instituio escolar. Realiza-se tambm uma explorao sobre a Pedagogia Queer. Na longa quarta parte do trabalho, denominada Entre as tramas e as performances das memrias, foram analisados os processos de produo das memrias e a construo das narrativas, em especial, de transexuais sobre a sua experincia escolar. Os processos de produo das memrias e narrativas foram denominados de atos performativos da memria, a partir dos quais as narrativas foram construdas. Dentre os atos performativos foram recortados para a anlise trs: Corpo e Identidade; A experincia escolar; Profissionalizao. Com as anlises construdas a partir desses atos traou-se o desenho cartogrfico das experincias. A anlise aqui realizada pretendeu deslocar-se do universo da crtica tradicional engendrada comumente ao se confrontar processos de excluso e violncia com a escolarizao formal. Procurou desnaturalizar narrativas construdas e tomadas como a-histricas, fixas e determinantes. Nas breves consideraes finais foi traado um histrico da fabricao da problemtica da pesquisa e algumas consideraes sobre o lugar da fala. Com isso, foi proposta uma interface entre o fazer-se acadmica e militante, sem que o estranhamento, a novidade, o acontecimento e o afeto fossem domesticados.
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PARTE 1 A FABRICAO DA PESQUISA E A CARTOGRAFIA DAS EXPERINCIAS TRANSEXUAIS
Esta parte da dissertao tem o objetivo de descrever a trajetria metodolgica realizada para a construo da pesquisa e da dissertao. A primeira parte apresenta as relaes dessa pesquisa com a cartografia. Na segunda parte tem-se uma descrio das entrevistas individuais realizadas. Em seguida, constam fragmentos das histrias de vida dos sujeitos entrevistados. E, para finalizar, a proposta consiste em apresentar um quadro delineando um perfil do grupo de discusso realizado. A idia de fabricao remete produo e montagem, isto , fabricao dos corpos e identidades de travestis e transexuais que, por iconoclasta analogia, foi utilizada neste captulo. A fabricao dessa dissertao aproximou-se dos processos cuidadosamente planejados e aplicados dentre os quais esses sujeitos tambm recorrem para construir seus corpos e identidades, com o objetivo de tornarem-se reais, ou seja, inteligveis 11 (BUTLER, 2000, p. 168). Tais processos compreendem procedimentos carregados de sentidos, significados e repletos de sofrimento e luto 12 . Entretanto, esses processos tambm podem ser tomados como subversivos, irreverentes e, de acordo com os prprios sujeitos, profundamente compensatrios, em cada procedimento realizado com sucesso 13 . A fabricao dessa dissertao, bem como a estruturao dos pargrafos, as leituras, os insights, a articulao conceitual, terica, metodolgica e a montagem de cada captulo so caminhos percorridos pelas histrias de injees de testosterona 14 , progesterona e estrognio, inmeras aplicaes de silicone
11 O conceito de inteligibilidade dos corpos est presente na Parte 2 dessa dissertao. 12 Para Alessandro Portelli (2006, p. 109) [n]a verdade, o luto, como a memria, no um ncleo compacto e impenetrvel para o pensamento e a linguagem, mas um processo moldado (elaborado) no tempo histrico (grifos do autor). 13 Sucesso, nesse contexto, se refere obteno dos resultados estticos desejados em direo ao gnero desejado. Na anlise das narrativas, presente na Parte 4, h uma fala que evidencia a imprevisibilidade desses processos, segundo a qual alguns procedimentos acontecem de forma diferente da esperada e produzem efeitos indesejados, podendo, inclusive, oferecer riscos para a sade. 14 As injees de testosterona so aplicadas, em geral, por amigas/os dos homens transexuais. De acordo com Andr Lucas, participante dessa pesquisa difcil conseguir comprar ou aplicar fora de um mercado paralelo, isto , os prprios sujeitos precisam se organizar para a construo do corpo e da identidade masculina porque as polticas que deveriam atend-los no contemplam homens transexuais. Para as mulheres transexuais, o acesso aos hormnios acontece mais facilmente. Em geral, elas utilizam anticoncepcionais, em drgeas ou injetvel. importante destacar que, de acordo com as narrativas dos sujeitos, esses processos so realizados, em geral, por meio da automedicao, ou seja, poucas/os so as/os transexuais que realizam a hormonioterapia 22
industrial 15 , intervenes cirrgicas para a retirada dos seios ou para colocao de prteses de silicone, depilaes com pina, cera ou laser. So histrias sobre converses do pnis em neovagina, mastectomia total 16 , interminveis correes das cirurgias de transgenitalizao, a cuidadosa maquiagem, a escolha das roupas e acessrios, o recorte da barba, o corte de cabelo, enfim, histrias sobre desejo e o capricho para fabricarem corpos viveis do gnero escolhido 17 , desejado e identificado 18 .
com algum acompanhamento especializado ou profissional. No que se refere s aplicaes de silicone industrial, so feitas artesanalmente e de forma clandestina, considerando que so classificadas como prtica ilegal da medicina, de acordo com os sujeitos dessa pesquisa. 15 De acordo com a reportagem de Andrea Inocente (2006), o silicone industrial de fcil acesso. A substncia pode ser adquirida em qualquer loja de produtos automotivos e materiais de construo, sem questionamentos. Algumas empresas enviam o produto /ao cliente via SEDEX, mediante o pagamento de um boleto bancrio. Alm disso, uma substncia barata. A equipe desta reportagem, por exemplo, adquiriu, no ano de 2006 na cidade de Rio Preto, localizada no Estado de So Paulo, vrias bisnagas, com 100 gramas cada, de silicone industrial pelo valor de R$ 4,50 cada. O silicone industrial aplicado com seringas de uso veterinrio, geralmente utilizadas para aplicar injees em cavalos, tambm facilmente adquiridas em qualquer loja de produtos veterinrios. Ainda segundo a reportagem, travestis e transexuais recorrem a esse mtodo por ser mais barato e acessvel, uma vez que mdicos se negam a implantar silicone em homens. O texto ainda informa que segundo o Coordenador Estadual da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plstica, Antnio Carmo Graziosi, esse procedimento seria antitico. Para o mdico, travestis deveriam passar pelo mesmo processo que transexuais para terem acesso aos procedimentos cirrgicos. Para mais acessar: INOCENTE, Andrea. Bombadeiras do mal. In: DirioWeb. Disponvel em: <http://www.diarioweb.com.br/noticias/imp.asp?id=74513>. Acesso em:09/08/2010. Para Leandro Luongo de Matos et alli. (2009, p. 510), [a] substituio de tecidos vivos por materiais inertes tem sido realizada h muitos anos em diversas especialidades mdicas. Atualmente, o substituto inerte mais utilizado o silicone, composto orgnico sinttico, com uma cadeia carbono intercalada por tomos de silcio, que pode ser encontrado sob a forma de slido, gel e lquido (dimetilclorosilano). O uso de silicone lquido em injees subcutneas com fins estticos se tornou popular aps a Segunda Guerra Mundial, sendo considerado um mtodo rpido e de baixo custo, se comparado cirurgia plstica convencional. Essa substncia foi originalmente desenvolvida para fins industriais e eltricos, jamais tendo recebido autorizao para uso como implante em tecidos moles. No entanto, as injees de silicone continuam a ser usadas por profissionais no-mdicos, particularmente em transexuais e travestis, para feminilizar o rosto, mamas, glteos e msculos da panturrilha. Para mais acessar: <http://apps.einstein.br/revista/arquivos/PDF/1155- Einsteinv7n4p509-11_port.pdf>. Acesso em: 10/08/2010. 16 Para homens transexuais que desejam alterar seus corpos cirurgicamente as possibilidades consistem em trs cirurgias: a mastectomia bilateral, tambm denominada de total, isto , a retirada do tecido mamrio; a histerectomia total, ou seja, a remoo do tero, das trompas e dos ovrios; e a construo de um pnis, denominado de neofalo. Entretanto, a possibilidade de realizao da cirurgia em homens transexuais como poltica pblica de sade consiste em uma realidade ainda distante, segundo os coletivos de homens transexuais. Sobre isso consultar: <http://ftmbrasil.blogspot.com/2009/12/cirurgias.html>. Acesso em: 10/08/2010. Andr Lucas, j citado anteriormente, realizou a sua mastectomia em uma clnica particular de Curitiba, no ano de 2009, com recursos prprios. De acordo com Berenice Bento (2008, p. 146-147) mais comum que os homens transexuais optem pela mastectomia e pela histerectomia total. importante destacar que todas essas cirurgias so irreversveis, assim como outras cirurgias plsticas tambm. Para uma descrio desses processos cirrgicos, ver: BENTO, Berenice Alves de Melo. A (re)inveno do corpo: sexualidade e gnero na experincia transexual. Rio de Janeiro: Garamond/CLAM, 2006. Sobre as polticas pblicas de sade e as cirurgias de transgenitalizao, consultar: ARAN, Mrcia; MURTA, Daniela; LIONO, Tatiana. Transexualidade e sade pblica no Brasil. Cincia & sade coletiva [online]. 2009, v.14, n. 4, p. 1141-1149. 17 importante tensionar a idia de escolha, pois em alguns contextos, acaba por se fragilizar, considerando que essa escolha no exclusivamente subjetiva e no se constitui numa prtica repleta de liberdade como pode parecer em uma primeira interpretao. Maria Rita de Assis Csar problematiza a questo da escolha ao discuti-la relacionada ao gnero oposto e ao nome social de transexuais e travestis: importante ressaltar que a idia de escolha sempre muito frgil, pois as experincias transexuais demonstram mltiplas formas de estar no mundo como homem e mulher. (CSAR, 2009b, p. 152). 18 Para Berenice Bento (2006; 2008), o gnero identificado, gnero de destino ou gnero adquirido consiste naquele pelo qual a/o transexual reivindica ser reconhecida/o. J o gnero atribudo seria aquele ligado estritamente genitlia, com o qual a/o transexual nasceu. 23
De forma semelhante, a fabricao da dissertao pressups processos de transformao, difceis e dolorosos, assim como tambm irreverentes, divertidos, marcantes e gratificantes. Fabricar essa dissertao suscitou uma imerso em procedimentos metodolgicos especficos que se constituem em um posicionamento poltico diante das narrativas de transexuais e travestis sobre a escola. Um posicionamento que pressupe a multiplicidade, a diferena, o encontro e o acontecimento (Franois ZOURABICHVILI, 2009). Os caminhos trilhados produziram-se como uma cartografia das experincias transexuais na escola. Sobre a cartografia, de acordo com o que aponta Durval Muniz de Albuquerque Jnior, Alfredo Veiga-Neto e Alpio de Souza Filho (2008), Gilles Deleuze afirmou que Foucault constitui-se em um novo cartgrafo, ao analisar as articulaes entre foras e saberes que atuaram e atuam na construo das sociedades ocidentais. A cartografia suscita um traado singular, em construo, por meio do esboo de movimentos e incurses no campo de pesquisa. O delineamento desses traos possibilitou pensar formas de anlise no moralizantes, isto , sem que algo seja prescrito. Assim, importou criar um lugar, no mbito da pesquisa em educao, para a anlise e a discusso que questionam incisivamente as formas normativas e moralizadas de estar no mundo. De acordo com Cynthia Farina (2010), para Deleuze a cartografia no se constitui no que se convencionou denominar de metodologia de pesquisa tradicional com etapas estabelecidas a cumprir, mas sim, em uma prtica do conhecer:
Deleuze no estabelece a cartografia como metodologia de pesquisa com etapas formuladas e procedimentos especficos. Isso iria contra sua filosofia. Ele trata a cartografia como um princpio de funcionamento do conhecer e d pistas sobre esse princpio ao longo de sua obra, como, por exemplo, nos plats Rizoma, Devir intenso, devir animal, devir imperceptvel e Trs novelas curtas de Mil Plats. Capitalismo e esquizofrenia (2000), como tambm em Foucault (1987). A cartografia tem sido entendida por seus praticantes como um modo de pesquisar objetos processuais, como os modos de subjetivao e os processos de formao, por exemplo. Quando um[a] investigador[a] tem um objeto processual e quer aceder poltica de suas formas e funcionamentos, ele[a] pode se valer de um mtodo de trabalho como esse, afinado com a processualidade daquilo que investiga (FARINA, 2010, p. 8, grifos da autora).
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Assim como a fabricao dos corpos e das identidades compreendem uma srie de processos de transformao com vistas ao delineamento de outros contornos corporais e de identidade de gnero 19 , a cartografia, de forma anloga, consiste em uma maneira de pesquisa, processual e transformadora. Isto , cartografar no depende de um plano pr-estabelecido a ser implementado, no prev um conjunto de passos a cumprir ou mesmo a verificao dos dados obtidos em campo, por meio de um escrutnio baseado em uma metodologia previamente escolhida e denominada. Cartografar vai se fazendo no processo, nos movimentos realizados no campo e pelo campo (Cintia Adriana Vieira GONALES, 2009). A cartografia se aproxima mais de uma forma de experimentao como modo de produo do conhecimento do que de uma maneira pr-estabelecida, com contornos fixos e engessados a obedecer para obteno dos resultados desejados. Com isso, pode-se afirmar que cartografar experincias escapa da obedincia e suscita a produo do novo. A cartografia no consiste em um mtodo institudo por uma metodologia ou teoria metodolgica ou epistemolgica universal. Isso significaria confrontar um de seus pressupostos bsicos, ou seja, o pressuposto de que no h um modo de fazer nico ou um a priori para ser cartografrado. Formalizar um nico mtodo cartogrfico seria desconsiderar as experincias recolhidas ou a empiria 20 . A cartografia prioriza o registro da intensidade da experincia 21 , do encontro e do (des)encontro entre pesquisadora e objeto de estudo. Para Flvia Garcia Guidotti (2007, p. 118):
[...] a cartografia assume o carter perspectivo de toda produo do conhecimento pautando-se pelo princpio de que os modos de subjetivao sempre intervm no processo de criao do conhecimento, cientfico ou no. Assim, o mtodo cartogrfico
19 Para Tomaz Tadeu da Silva (2007, p. 106), [...] as formas pelas quais aparecemos, pensamos, agimos como homem ou como mulher nossa identidade de gnero que so socialmente construdas [...]. 20 Importa compreender que empiria no est relacionada com o empirismo, como definido pelo mtodo cientfico moderno. Empiria, nesse contexto, relaciona-se ao conceito deleuziano de Emprico Transcedental, que significa o pensamento que no est no ser, mas na experincia, na experimentao. De acordo com Flvia Garcia Guidotti (2007, p. 117) [a]poiado em autores como Bergson e Nietzsche, Deleuze concebe que o emprico faz pensar, produto de atravessamentos de encontros e de reencontros e, por isso, ele no universal, mas produto de cada acontecimento. 21 O conceito de experincia utilizado nessa dissertao aproxima-se daquele proposto por Jorge Larrosa (2004) em um interessante ensaio, no qual define experincia como o que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca (p. 154). O autor problematiza a experincia na contemporaneidade e reflete que esta tem sido impedida de acontecer, devido ao funcionamento perverso e generalizado do par informao/opinio, mas tambm pela velocidade. (LARROSA, 2004, p. 158). Assim, a experincia apresenta-se subsumida na contemporaneidade, uma vez que a cada dia acontece uma infinidade de coisas, mas poucas ou quase nenhuma nos passa, nos acontece ou nos toca. Essas coisas passam com velocidade cada vez maior, mais depressa e, concomitantemente, mas a experincia, nessa perspectiva, cada vez mais rara. 25
concebe essa subjetividade, ligada ao olhar do[a] cartgrafo[a], como uma positividade. Esse olhar seleciona e constri, produz um conhecimento a partir de suas condies de possibilidades e de suas vises de mundo. [...] Dessa forma, a cartografia acaba desterritorializando uma dada forma de fazer cincia na medida em que insere o acontecimento no processo e, assim, se constitui como um dispositivo capaz de tensionar os fundamentos da pesquisa cientfica, sustentada pela verdade que supostamente atingida atravs da rigidez de seus processos (grifos da autora).
Cartografar aproxima-se do desejo e da intensidade na medida em que se interessa pelo que insiste em aparecer no presente, aquilo que emerge de vrias formas e em vrios territrios. Nesse sentido, Denise Mairesse (2003, p. 271) argumenta que
[...] no h o melhor caminho, nem o mais correto, no existe o verdadeiro, nem o falso, mas se encontra sim o mais belo, o mais intenso, o que insiste em se presentificar, o que se equivoca, se atrapalha..., o que falha. So [sic] pelos desvios que se comea a jornada, pelas linhas mal/bem traadas do desejo que se realiza a cartografia, potencializando vidas em territrios complexos e heterogneos de foras que se imiscuem umas s outras, num constante jogo de poder e afeto.
Os processos cartogrficos possibilitaram, dessa maneira, a fabricao de uma pesquisa aberta, que valoriza a experincia e a inventividade do desejo, uma pesquisa-devir (GUIDOTTI, 2007, p. 119, grifo da autora). A pesquisa-devir pressupe o registro do espao entre as relaes de poder, isto , os encontros entre sujeitos, pensamentos e acontecimentos. A cartografia possibilitou um entendimento sobre o acontecimento. Para Mairesse (2003, p. 261-262):
O acontecimento fala por si e rompe com todas as certezas e evidncias do que nos parece mais sagrado. Nesse sentido, o acontecimento rompe com a linearidade do tempo, funda um tempo outro no qual presente, passado e futuro coexistem. Desafia as lgicas cartesianas de progresso e evoluo, e inventa outros caminhos nunca imaginados.
Uma cartografia dos acontecimentos, nessa perspectiva, proporcionou um traado de outra marcao das redes de poder-saber sobre a experincia transexual na escola. Como a pesquisa foi produzida por meio da anlise das narrativas de transexuais e travestis sobre a experincia de produzir-se e, sobre a escola, pode-se 26
compreender que o desenho constitudo pela dissertao no consistiu em um mapa geogrfico que pretende a representao de um territrio esttico. O desenho produzido assemelha-se ao que se poderia denominar de mapa cartogrfico, no sentido que lhe configurou Deleuze, ou seja, um mapa de produo de sentidos. Esse mapa pode ser entendido ainda como uma carta-geogrfica que apresenta territorializao e materializao dinmica a respeito dessas experincias. Em uma interessante elaborao sobre a diferena entre o mapa geogrfico e o mapa elaborado pela/o cartgrafa/o, Gonales (2009, p. 72-73) afirma:
As diferenas so determinadas por cdigos previamente determinados. Os critrios de normalidade seriam os mapas, ou seja, um metro-padro para medir e classificar aquilo que se observa. Se o [a] profissional se atm necessidade de aplicar o mapa experincia (ou ao territrio), tudo que diferir daquele tender a ser rejeitado. O [A] cartgrafo[a], ao contrrio, busca produzir uma lngua, uma existncia no processo de mistura e separao das situaes que percorre. Tenta dar voz quilo que surge constantemente na atualidade de seu tempo, procurando no excluir o que estranho ou angustiante por no ser previamente mapeado.
Com isso, cartografar significou tambm desenhar as linhas que se formaram e se desmancharam no processo da pesquisa, bem como a produo de uma lngua para conferir sentido a esse desenho. O mapa cartogrfico foi construdo exatamente sob o desejo de analisar aquilo tomado como estranho ou angustiante, isto , as narrativas de transexuais sobre a escola. Alm disso, essa construo buscou focar as transformaes e os movimentos dos territrios subjetivos, o que suscitou uma insero no campo de pesquisa como produo da diferena e de outros modos de existncia (Auriseane Gomes SOARES, 2006). Farina (2008) argumenta acerca da peculiaridade dos territrios subjetivos produzidos pelo mtodo da cartografia. Para a autora:
Um territrio desse tipo coletivo, porque relacional; poltico, porque envolve interaes entre foras; tem a ver com uma tica, porque parte de um conjunto de critrios e referncias para existir; e tem a ver com uma esttica, porque atravs dela como se d forma a esse conjunto, constituindo um modo de expresso para as relaes, uma maneira de dar forma ao prprio territrio existencial. Por isso, pode-se dizer que a cartografia um estudo das relaes de foras que compem um campo especfico de experincias (FARINA, 2008, p. 8-9).
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Dessa forma, a cartografia consistiu em um modo fundamental para traar uma carta-geogrfica das relaes de fora e de saberes, diferente daquele mapa fixado, entendido como verdadeiro e absoluto. Esse mapa fixo foi desenhado pelas cincias mdicas, pela psicologia e psiquiatria, pela medicalizao do corpo e da identidade dos sujeitos e acabou produzindo a transexualidade como patolgica. Essa pesquisa percorreu as trilhas cartografadas por Michel Foucault, evidenciando a pertinncia de uma anlise que levasse em conta uma determinada Histria da Sexualidade, compreendida como um conjunto de mecanismos produtores de subjetividades especficas, de individualidades e de modos de vida, produzindo a separao entre normalidade e patologia. As anlises realizadas nessa dissertao exploraram as experincias tidas como menores, menos importantes e postas margem pela sociedade (Silvio Donizete GALLO, 2007). Experincias desterritorializadas nas instituies, como a escola e reterritorializadas nas ruas, nos compndios mdicos e nos movimentos sociais, que possibilitaram os contornos para um mapa cartogrfico pleno de sentidos e afetos a respeito da transexualidade. Dessa forma:
Para Foucault aquilo que uma sociedade exclui, joga para as margens o que constitui seus limites, as suas fronteiras e justamente o que a define, o que d seus contornos e o seu desenho. As experincias do fora, das margens, dos limites, das fronteiras, seriam experincias que permitiriam cartografar, novos desenhos, novas configuraes para o acontecer de uma dada sociedade (ALBUQUERQUE JNIOR, VEIGA-NETO e SOUZA FILHO, 2008, p. 9-10).
Nessa cartografia foram analisadas as costuras performativas das memrias das experincias narradas, implicando uma reflexo que considerou a construo dos sujeitos sexuais. Essa construo realizada pelos processos de normalizao das prticas sexuais na modernidade, engendradas por discursos e prticas mdico- psiquitricas, produziu e instituiu a configurao do modelo de sexualidade, estabelecido a partir do binmio heterossexual/homossexual. Nesse sentido, para fabricar essa cartografia, assim como na construo de corpos e identidades transexuais, foi impossvel se prender a lugares comuns, protocolos e convenes. Ao contrrio, esse processo de fabricao exigiu uma entrega a outros territrios. Para produzir os territrios subjetivos dessas experincias, foi necessrio entregar-se e adentrar em diversas e complexas teias 28
discursivas, emaranhadas em relaes de poder. Com isso, importou lanar-se no movimento sem temores e mergulhar em territrios existenciais tidos, muitas vezes, como menores. Foi necessria a inveno de outra perspectiva para analisar os discursos e as prticas que, por sua vez, tomaram a experincia transexual uma questo resolvida, classificada e encerrada no discurso mdico-psicolgico. Alm disso, a busca pela problematizao e desestabilizao das redes de poder-saber intensificou as possibilidades de compreenso sobre as mltiplas experincias transexuais na escola. O prprio campo apresentou inmeras conexes que suscitaram a inveno de espaos para a discusso. Assim, buscou-se desenhar os movimentos que aconteceram no territrio subjetivo, provocados por intensidades que o deslocaram, perturbaram, descentraram e transformaram, procurando estabelecer conexes, visibilizar e criar uma lngua que lhe conferisse sentidos. Os encontros, entendidos como encontros com idias e no apenas entre pessoas, como props Deleuze 22 , possibilitaram a fabricao da cartografia e aconteceram em dois momentos: em um primeiro foram realizadas sete entrevistas, entre as quais seis foram com mulheres transexuais e uma com um homem transexual. As entrevistas foram tomadas aqui como uma inveno dialgica, de acordo com Leonor Arfuch (1995), na qual se evidenciaram os jogos de poder e as performatividades das costuras nas memrias. Conforme Arfuch (1995, p. 152):
[...] si a travs de la experiencia biogrfica se postula un orden de la vida, los que hablan en la entrevista tambin postulan y reafirman un orden de lo social: posiciones, jerarquias, distribuiciones que, como las de entrevistador y entrevistado, no suelen ser intercambiales. Esta forma de la narracin, esta verdadera invencin dialgica, despliega as los matices de los juegos de poder, al tiempo que revela el entramado de reenvos entre lo individual y lo social, las marcas inequvocas de esa mutua implicacin. Desde ese espacio mvil y fluctuante, donde las identidades se reconfiguran sin cesar, puede pensarse el lugar peculiar de la entrevista como una intermediacin, como un reaseguro tranquilizador, no de buenas palabras o encuentros pacificadores, sino simplemente de la autenticidad de las voces, de su legitimidad, de la permanencia de las ubicaciones (grifos da autora).
22 Documento consultado on-line: O Abecedrio de Gilles Deleuze. Disponvel em: <http://www.oestrangeiro.net/esquizoanalise/67-o-abecedario-de-gilles-deleuze>. Acesso em: 15/05/2010. 29
Em um segundo momento, foi realizada uma interveno 23 com um grupo composto por lideranas representativas do movimento social de travestis e transexuais da Regio Sul do Brasil 24 .
1.1 Entrevistas individuais
Nos encontros fabricaram-se as narrativas de transexuais sobre a escola. Assim, importou compreender que o conceito de narrativa utilizado para a fabricao dessa dissertao consistiu em pens-la para alm da arte de contar uma histria vivida. Ao contrrio, a narrativa foi aqui tomada como um dispositivo no qual os
23 Resolvi denominar esse momento de grupo de discusso, em detrimento do conceito de grupo focal, amplamente utilizado pela Psicologia Social que prescinde de mtodos e enfoques de anlise especficos e distintos da adotada para essa pesquisa. Assim, essa dissertao no se aproxima das anlises comportamentais e esse momento coletivo no contou com a presena de uma/um assistente de pesquisa, aspectos caros Psicologia Social e s anlises empreendidas por meio de grupos focais. Para um estudo relacionado a grupos focais e a essa metodologia especfica, consultar: FERRAZ, Elisabeth Anhel; SOUZA, Cynthia Teixeira de; SOUZA, Luiza de Marilac de; COSTA, Ney. Travestis profissionais do sexo e HIV/Aids: conhecimento, opinies e atitudes. In: Anais do XII Seminrio sobre a Economia Mineira Economia, Histria, Demografia e Polticas Pblicas. Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional CEDEPLAR FACE, UFMG, 2006. Disponvel em: <http://www.cedeplar.ufmg.br/seminarios/downloads/dimantina_2006.pdf>. Acesso: 12/05/2010. 24 O VII Encontro Regional Sul de Travestis e Transexuais, aconteceu no perodo entre 22 e 25 de abril de 2010, com o tema: Avanos e Desafios na efetivao de Polticas Pblicas. O evento, realizado em Rio do Sul, no interior de Santa Catarina, foi organizado por meio de mesas redondas e de uma plenria final. A metodologia proposta foi denominada de conversa afiada e consistiu em posicionar a mesa uma mediadora do movimento social e representaes governamentais. Na platia outras lideranas faziam perguntas e cobravam a implementao das polticas, principalmente, as deliberadas pelo VI Encontro Regional Sul de Travestis e Transexuais, realizado em Curitiba, no ano de 2009. As temticas das mesas redondas foram: Educao para Travestis e Transexuais desafios na construo de Polticas Pblicas especficas ao enfrentamento da transfobia no ambiente escolar; Sade para Travestis e Transexuais desafios na construo de polticas pblicas especficas do Sistema nico de Sade SUS; Parceria entre organizaes governamentais e organizaes no governamentais OG/ONG o enfrentamento da epidemia do HIV/Aids e Hepatites Virais na Regio Sul; Controle Social o papel dos Conselhos de Sade; Seguridade Social para Travestis e Transexuais o Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) e a Previdncia Social; Travestis e Transexuais no Sistema Prisional marcos histricos e polticas intersetoriais de Direitos Humanos especficas. Participei da mesa redonda sobre educao no dia 24 de abril pela manh. A mesa teve como mediadora Rafaelly Wiest, presidente do Grupo Dignidade e, contou tambm com uma representante da Secretaria de Estado da Educao de Santa Catarina. A representante do Ncleo de Identidades de Gnero e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina e, a representante Nacional do Projeto Escola sem Homofobia, no compareceram. Muitas representaes do governo federal convidadas e confirmadas no compareceram. Como cheguei cidade no dia 23 noite, acompanhei apenas os dias 24 e 25, mas pude perceber que, para as lideranas que ali estavam, a educao no a prioridade, mas sim uma das prioridades. Com isso, no se deseja afirmar que as lideranas no consideram importante as questes de educao e formao. Algumas mesas, entretanto, geraram maior polmica, como a que discutiu sade e, que segundo elas, deveria garantir as transformaes corporais sem riscos e de forma mais gil, bem como um atendimento mais humanitrio e respeitoso s travestis e transexuais que vivem com Aids, que no so poucas. A mesa sobre o sistema prisional tambm gerou polmica, considerando que, segundo elas: muitas travestis e transexuais que esto presas sofrem violncia e abusos por parte dos policiais. Vrias foram e so vtimas de abuso sexual e estupro permanentemente na priso. Alm disso, quando acontece uma batida [revista], os outros presos nos fazem de cofre e colocam tudo no nosso nus para no serem repreendidos ou perderem celulares, carregadores de celulares, drogas. Chamou ateno tambm o fato de s haverem mulheres participando do encontro, o que j havia acontecido no VI encontro. Da mesma forma, chamou a ateno o fato de a cidade literalmente parar para esse encontro. Rio do Sul possua em 2007, segundo estimativa do IBGE, 56.919 habitantes e fica a aproximadamente 180 Km de Florianpolis. Dados disponveis em: <http://www.riodosul.sc.gov.br/portal/principal.php?pg=1757>. Acesso em: 05/05/2010. 30
sujeitos, incitados por outro sujeito, se colocaram em um processo permanente de experimentao de si. Para Valeska Maria Fortes de Oliveira (2007, p. 1):
Tendo como referncia dois conceitos operadores, tomados das reflexes de Michel Foucault (1995), o cuidado de si e as tecnologias de si, trazemos para o territrio da narrativa, tomando-a como um dispositivo onde o sujeito, provocado/implicado por um outro, se coloca num processo de experimentao de si (grifos da autora).
Pode-se dizer que as narrativas dos sujeitos foram produzidas a partir de uma experimentao de si proporcionada pelas entrevistas. Nas entrevistas, as narrativas foram produzidas por meio da interao entre a pesquisadora e as/o entrevistadas/o, por meio de entrevistas semi-estruturadas, com vistas a construir o campo de pesquisa, no sentido cartogrfico. O contato com alguns dos sujeitos entrevistados foi anterior construo da pesquisa e aconteceu nos congressos, seminrios e nas conferncias nas quais estavam presentes educadoras/es e representantes do movimento social de lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais LGBT 25 . Essa experincia anterior construo da pesquisa adquiriu importncia na medida em que foram nesses encontros que o tema e as problematizaes da pesquisa foram elaborados. Entretanto, importa considerar que esse contato anterior com o tema da transexualidade nos movimentos sociais
25 Nesses eventos, representei a Secretaria de Estado da Educao do Paran, qual estou vinculada profissionalmente. Dentre esses eventos destaco: a I Conferncia Estadual GLBT, realizada no perodo de 16 a 18 de maio de 2008, no municpio de Curitiba, no Paran, na qual coordenei o grupo de trabalho sobre Educao; e a I Conferncia Nacional LGBT, realizada no perodo de 5 a 8 de junho de 2008, na cidade de Braslia, no Distrito Federal, em que representei o poder pblico como delegada. Nesta conferncia, no primeiro dia houve uma votao em que as/os delegadas/os alteraram a sigla representativa do movimento social GLBT para LGBT. O argumento em defesa da alterao, elaborado pelas organizaes de lsbicas feministas, referia- se solicitao de conferir maior visibilidade s mulheres lsbicas, considerando que, por serem mulheres, so duplamente discriminadas, por viverem em uma sociedade machista e sexista, alm de lesbofbica. A votao foi polmica e conferida por contraste. Como a maioria votou pela alterao da sigla, atualmente o movimento social designado como LGBT. Recentemente h um movimento, nas listas LGBT, no sentido de que a sigla passe para TLGB, alterando a posio da letra que representa travestis e transexuais com o intuito de conferir maior visibilidade a esses sujeitos e, tambm, por se considerar que elas/es representam a populao mais vulnervel do movimento. Para mais acessar: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 09/08/2010. Nesses encontros, tive a possibilidade de me aproximar de histrias de vida de transexuais, assim como de pesquisas sobre o assunto, a exemplo da realizada por Berenice Bento (2006). Nessa aproximao, pude perceber pelos depoimentos que esses so sujeitos para os quais as portas do armrio esto desde sempre cerradas. Da mesma forma, percebi que essas no eram as nicas portas que se fechavam diante dos corpos transformados, fabricados fora da norma. Transexuais tambm afirmavam que no tinham acesso escola. E, alm disso, argumentavam sobre a ocupao que lhes restava para sobreviver, isto , a prostituio, uma vez que no tinham oportunidade de obter formao escolar da mesma forma que pessoas no travestis e no transexuais. Uma problematizao sobre essas questes est presente nas anlises desenvolvidas na Parte 4 dessa dissertao. 31
constituiu um desafio a ser enfrentado ao longo do trabalho, no sentido de deslocar- se da postura de ativista social 26 . A partir da minha participao nos movimentos de militncia LGBT foi constitudo o grupo de participantes da pesquisa. Rafaelly Wiest, Carla Amaral, Mait Schneider Caldas de Miranda, Andria Cristina Schuz, Dorothea Lavigne, Andr Lucas Guerreiro Oliveira e Thas Prada foram as/o entrevistadas/o para essa pesquisa. Os nomes utilizados nessa dissertao so os nomes sociais dos sujeitos, com a devida autorizao por escrito. Embora nos documentos de identificao figure em geral nomes femininos para homens transexuais e masculinos para mulheres transexuais, no dia-a-dia esses sujeitos adotam nomes de acordo com a construo do corpo e da identidade de gnero. Isto , os nomes pelos quais desejam ser chamadas/os e que, no seu entendimento, legitimam a construo corporal e identitria empreendida. Assim, mulheres transexuais adotam nomes femininos e homens, nomes masculinos. A solicitao de utilizao dos nomes sociais partiu dos sujeitos da pesquisa na ocasio das entrevistas. Considerando a importncia dessa solicitao para as problematizaes aqui propostas, ela foi atendida. Entretanto, nem todos os nomes utilizados so sociais. Carla e Mait so nomes civis. Carla Amaral foi a primeira e a nica at o momento transexual do Paran a obter a alterao do nome civil e a designao do sexo nos seus documentos de identificao, sem cirurgia de transgenitalizao. Essa mudana foi o resultado de um processo judicial 27 . Mait Schneider conseguiu a alterao do nome e da designao do sexo na sua documentao civil, alm da incorporao do Schneider, seu sobrenome artstico. A mudana tambm foi obtida por meios judiciais, aps a realizao da cirurgia de transgenitalizao. Ambas as alteraes representaram jurisprudncias,
26 Sou lsbica e atuo na militncia do movimento social LGBT nacional desde 2005. Estou vinculada Liga Brasileira de Lsbicas LBL. Alm disso, sou professora de Cincias e Biologia da Rede Estadual de Ensino, desde 1998. Trabalho na Secretaria de Estado da Educao do Paran, desde 2000. No entanto, somente a partir de 2009 que tenho presenciado uma preocupao em produzir uma poltica pblica relacionada s relaes entre os gneros e a diversidade sexual na educao pblica. Antes disso, trabalhei com a temtica de Sexualidade, mas me era proibido falar sobre Gnero e Diversidade Sexual. As orientaes polticas da chefia eram no sentido de trabalhar apenas a preveno e a sade. Sinto-me como uma agente infiltrada no governo, desempenhando meu trabalho a partir de uma divertida postura subversiva de resistncia. 27 De acordo com Carla, logo aps a sua sentena, o juiz foi transferido e todas as meninas que fizeram a mesma solicitao esto recebendo negativas por parte da justia. Para mais sobre jurisprudncias em relao utilizao do nome social de travestis e transexuais, consultar: ANIS: Instituto de Biotica, Direitos Humanos e Gnero; Associao Lsbica Feminista de Braslia Coturno de Vnus. Legislao e Jurisprudncia LGBTTT: Lsbicas Gays Bissexuais Travestis Transexuais Transgneros: atualizada at 09.2006. Braslia. Letras Livres, 2007. 32
considerando que nenhuma das situaes regulamentada por lei, sendo estas sentenas bastante incomuns na justia brasileira. Foram realizadas sete entrevistas no perodo entre abril de 2009 e abril de 2010 28 . As entrevistas foram realizadas na minha casa (Rafaelly, Carla, Andr, Dorothea) e na residncia das entrevistadas (Mait, Andria e Thas). Para Rosa Maria Hessel Silveira (2002), as entrevistas constituem-se em eventos discursivos complexos, traados pela dupla pesquisadora-sujeitos em meio a outros elementos que circulam nessa interao. Para a autora:
[...] proponho-me a levar o [a] leitor/a a olhar as entrevistas como eventos discursivos complexos, forjados no s pela dupla entrevistador[a]/entrevistado[a], mas tambm, pelas imagens, representaes, expectativas que circulam de parte a parte no momento e situao de realizao das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e anlise (SILVEIRA, 2002, p. 120).
Assim, as entrevistas foram realizadas em tom de conversa e no de inqurito e os encontros com os sujeitos aconteceram por mais de uma vez. Na realizao das entrevistas, em vrias oportunidades evidenciou-se que o gravador instaurara uma cena desconfortvel para as/os entrevistadas/os. Esse desconforto expressou-se por meio de repetidas reformulaes das respostas e pela procura insistente por construes lingusticas mais adequadas 29 para responder s questes, mesmo perante a garantia de que suas gravaes no seriam ouvidas por outras pessoas. As entrevistas foram realizadas de forma singular e nenhuma foi igual outra. Entretanto, todas produziram narrativas que possibilitaram a criao das categorias e subcategorias para a anlise 30 .
28 O roteiro das entrevistas constitui-se no Anexo 1 dessa dissertao. 29 Para Rosa Maria Hessel Silveira (2002, p. 129130) [...] se nossa vida, nossas experincias, os eventos em que j nos envolvemos so vividos como um discurso ao qual atribumos sucessivamente coerncia, as perguntas do[a] entrevistador[a] por vezes suscitam um quadro de referncias no pensado anteriormente, ao qual o/a entrevistado/a procura se ajustar, recriando a sua histria dentro dos parmetros que, em seu entorno, so aceitos como coerentes (grifos da autora). Maurcio Lissovsky (1998) problematiza, fundamentado em Walter Benjamin, a condio de possibilidade da linguagem, articulando o que se procura expressar potencialidade receptiva de quem vai ler. Assim, para o autor: Se, para Benjamin, a condio de possibilidade da linguagem a potncia receptiva que ela abriga, no devemos nos surpreender que o regime temporal de sua leitura seja a fugacidade assim como a interrupo regia a escrita da histria filosfica. Nisso que na leitura espera reside a legibilidade de ler o que nunca foi escrito (LISSOVSKY,1998, p. 32, grifos do autor). 30 Denominei as categorias de Atos Perfomativos e as subcategorias de Cenas, considerando uma reflexo sobre a perfomatividade das memrias presente na Parte 4 dessa dissertao, bem como a atuao de cada uma/um dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa.
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As categorias desenhadas para a anlise das entrevistas foram: 1. Corpo e identidade; 2. A experincia escolar e 3. Profissionalizao. Essas categorias foram produzidas para organizar as narrativas dos sujeitos em dilogo com o referencial terico. A segunda categoria foi dividida em oito subcategorias: Nome social x nome civil; O uso dos banheiros; As aulas de Educao Fsica; A relao com as/os professoras/es e outras/os profissionais da escola; A relao com a instituio; As negociaes; O abandono da escola; O retorno escola. As experincias vividas e (re)vividas pela arte de contar expressam as transformaes na vida dessas pessoas. Com isso, os sujeitos transexuais que participaram e colaboraram com essa pesquisa proporcionaram possibilidades de se pensar sobre o funcionamento das redes de poder-saber constituintes dos processos de excluso empreendidos na e pela escola. Redes estas que estabelecem como alvo seus corpos e identidades fabricadas.
1.2 Grupo de discusso
Outro momento importante na fabricao dessa dissertao foi oportunizado pela minha participao em uma mesa redonda do VII Encontro Regional Sul de Travestis e Transexuais, realizado no perodo de 22 a 25 de abril de 2010, na cidade de Rio do Sul, no interior de Santa Catarina. Neste evento, reuniram-se aproximadamente setenta lideranas do movimento social de travestis e transexuais dos Estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paran. O convite para a realizao de uma fala representando a Secretaria de Estado da Educao do Paran partiu das organizaes ADEH-Nostro Mundo Associao das Travestis e Transexuais da Grande Florianpolis 31 e ATRAV Associao das Travestis do Alto Vale do Itaja, promotoras do evento. A minha participao nesse encontro oportunizou a reunio de um grupo de representantes do movimento social de travestis e transexuais da Regio Sul para uma discusso coletiva com vistas cartografar a problemtica da pesquisa a partir de outro movimento. Esse encontro, que denominei de grupo de discusso, proporcionou uma aproximao com os sujeitos e suas experincias em outras localidades, geograficamente distintas da que se concentrou esta pesquisa, como
31 Maiores informaes sobre a organizao ADEH-Nostro Mundo podem ser obtidas nos endereos eletrnicos: <http://adeh-nostromundo.blogspot.com/> e <http://www.adeh-sc.org/>. Acesso em: 15/06/2010. 34
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Alm disso, possibilitou uma compreenso da relao entre essas experincias e as demandas organizadas pelo movimento social. O convite para o grupo de discusso foi feito aps a realizao da mesa redonda sobre educao, da qual participei. Convidei representantes de cada um dos Estados. As lideranas que militam h mais tempo no participaram e indicaram duas representantes por Estado. Outras participaram porque se interessaram pela discusso. Assim, na noite do dia 24 de abril, este grupo com dez participantes se reuniu para a conversa. Importa dizer que o grupo constituiu-se de forma heterognea e possibilitou discusses produtivas. Para iniciar expliquei, em linhas gerais, a minha pesquisa e solicitei que todas lessem e assinassem a autorizao para a utilizao das narrativas. Em seguida, solicitei que cada uma relatasse sobre sua experincia de transformao. Sugeri que falassem seu nome, idade, cidade onde residem, como se reconheciam em relao identidade de gnero, isto , travesti ou transexual, orientao sexual, profisso e formao escolar. Solicitei tambm que se houvesse alguma transexual submetida cirurgia de transgenitalizao, que comentasse tambm sobre a cirurgia, se assim o desejasse 32 . Com isso, o grupo foi constitudo por dez participantes, sendo que trs se apresentaram como travestis e sete como mulheres transexuais 33 . No final das discusses foram duas que se apresentaram como travestis e no mais trs porque Cristhiani, que iniciou no grupo apresentando-se como travesti, terminou autodesignando-se como mulher transexual. Isso se deu na medida em que a discusso problematizou as definies a respeito da separao entre transexualidade e travestilidade. Na discusso foram lanados alguns questionamentos sobre a experincia transexual e travesti na escola, com o objetivo de produzir as narrativas 34 . A
32 O grupo todo se apresentou e, uma das participantes se levantou, dizendo que iria at o quarto buscar os documentos e no voltou. Perla me procurou depois da realizao do grupo e disse que no ficou porque estava envergonhada por no saber responder s perguntas, nem preencher o formulrio direito. Entretanto, autorizou por escrito a utilizao do que havamos gravado. Isto , sua apresentao, bem como da longa conversa que tivemos. 33 importante destacar que no grupo de discusso, as relaes estabelecidas foram mais pontuais se comparadas s entrevistas individuais, considerando que foi realizado em uma nica interveno. A interveno realizada por essa pesquisa deu-se de forma mais direta e intensa com a experincia da transexualidade, campo no qual se concentraram as anlises. Embora seja importante notar que a aproximao das narrativas de travestis sobre a escola possibilitou um esboo de anlise sobre a experincia da travestilidade. 34 A anlise das narrativas est presente na Parte 4 dessa dissertao. 35
interao entre os sujeitos foi acalorada e polmica. Assim, os debates provocados pelo roteiro 35 foram realizados quase que na ntegra pelo prprio grupo. A cada afirmao de uma das participantes, outra logo se posicionava a favor ou contrariamente. As falas apresentavam traos de uma construo a partir da medicina, da psicologia e mesmo do senso comum. Todavia, algumas das entrevistas tinham conhecimento de pesquisas acadmicas, a exemplo de algumas utilizadas nessa dissertao 36 . Para facilitar a organizao do perfil do grupo, foi elaborado um quadro a partir das respostas das participantes no final desse captulo. As discusses se estenderam por duas horas, at aproximadamente meia noite, quando o grupo foi encerrado. Todas as participantes agradeceram e afirmaram que precisavam realizar mais vezes grupos como este. O grupo definiu essa experincia como muito importante:
Tivemos a oportunidade de nos aproximarmos, ns travestis e transexuais e discutirmos sobre as nossas questes em relao educao e a outros aspectos das nossas vidas. Porque voc sabe que existia uma rixa bem grande entre esses dois segmentos, no ? Nesses encontros, ns s debatemos as polticas, em geral e articulamos politicamente. Mas, no temos um tempo para falar de ns, enquanto sujeitos. Falar do que aconteceu conosco, da nossa experincia (CRISTHIANI, GD) 37 .
A realizao desse grupo de discusso foi muito produtiva para a fabricao da dissertao uma vez que proporcionou o encontro com uma multiplicidade de experincias transexuais, bem como de narrativas sobre a escola. Alm disso, embora as narrativas de travestis no se constitussem inicialmente em objeto de pesquisa, o grupo possibilitou tambm uma aproximao dessas experincias e de narrativas de travestis sobre a escola. Essas narrativas apresentaram-se construdas de forma semelhante s elaboradas por transexuais durante a realizao desse trabalho.
35 O roteiro para o grupo de discusso consiste no Anexo 2. 36 Luisa citou as seguintes pesquisas: BENTO, Berenice Alves de Melo. A (re)inveno do corpo: sexualidade e gnero na experincia transexual. Rio de Janeiro: Garamond/CLAM, 2006; DUQUE, Tiago. Montagens e desmontagens: vergonha, estigma e desejo na construo das travestilidades na adolescncia. Dissertao. (Mestrado em Sociologia) Centro de Educao e Cincias Humanas, Universidade Federal de So Carlos: So Carlos, 2009. 37 Como a produo de narrativas foi realizada em dois momentos, com o intuito de explicitar qual sujeito est falando e de que momento participou, a letra E foi acrescentada logo aps o nome e sobrenome das/do entrevistadas/o. Para as participantes do grupo de discusso, logo em seguida ao primeiro nome constam as letras GD. 36
1.3 Fragmentos de vida dos corpos e identidades fora da norma...
Rafaelly Wiest
Rafaelly nasceu em Curitiba, em 1983. Sua famlia numerosa. Rafaelly no conversa com o pai h dez anos. Relaciona-se bem com a me, com os sete irmos e demais membros, embora resida com sua av desde a infncia, na Vila Nossa Senhora da Luz, em Curitiba. Segundo ela, a av sua referncia, pois sempre a apoiou. J foi casada, mas atualmente est solteira. Rafaelly comeou a estudar com sete anos de idade na primeira srie do Ensino Fundamental. Frequentou a escola regularmente at a quarta srie do Ensino Fundamental e tirava notas altas. Interrompeu os estudos por trs anos para cuidar dos irmos menores, retornando aos quatorze anos na quinta srie e tendo que parar novamente. Voltou quinta srie com quinze anos no perodo noturno. Concluiu a quinta e a sexta sries e parou antes de terminar a stima srie, com dezessete anos. Com dezoito iniciou seu processo transexualizador, por meio da ingesto de hormnios femininos. Realiza o procedimento no Hospital de Clnicas de Curitiba. Fez terapia por dois anos com psiclogo e tratamento de reposio hormonal com uma endocrinologista. No possui laudo 38 , pois deixou de frequentar o hospital assiduamente devido ao trabalho com a militncia, que segundo ela toma
38 O laudo de transexualismo consiste em um relatrio no qual consta o diagnstico de disforia de gnero e a indicao para a realizao da cirurgia de transgenitalizao. fornecido, geralmente, por uma equipe multidisciplinar, composta por psiquiatras, psiclogas, endocrinologista, clnica geral, fonoaudiloga, cirurgi plstica. Dentre essas especialidades a que detm maior influncia sobre a liberao ou no do laudo a psicologia. So as/os profissionais de sade mental que do a ltima palavra sobre a realizao ou no da cirurgia (BENTO, 2006, p. 134; 150). Geralmente o laudo resulta do que foi denominado de Processo Transexualizador: conjunto de procedimentos aos quais as/os transexuais precisam se submeter, via de regra, se desejam transformar seus corpos. Esse processo compreende um protocolo com uma gama variada de procedimentos que incluem: Entre as obrigaes que toda pessoa transexual submete-se para ter a possibilidade de realizar a cirurgia [de transgenitalizao] esto: 1) A terapia psicolgica (mnimo de dois anos); 2) A terapia hormonal indicada para desenvolver as caractersticas corporais do gnero identificado. 3) O teste da vida real. Deve usar, durante todo o dia, as roupas comuns ao gnero identificado. 4) Os testes de personalidade, que tm como objetivo verificar se a pessoa transexual no sofre de nenhum tipo de Transtorno Especifico de Personalidade [...] 5) Os exames de rotina: Hemograma, triglicrides, glicemia, [...] Bilirrubi nas, Sorologia para vrus da Hepatite C, Testosterona livre, contagem de colnias urina e antibiograma, caritipo, ultrassonografia do testculo e prstata/plvico ou endovaginal, entre outros. Os protocolos podem variar, no entanto, essas regras so aceitas internacionalmente (BENTO, 2008, p. 147). Importa compreender que a submisso ao processo transexualizador no garante a obteno do laudo, podendo resultar em reencaminhamento, isto , se aps os dois anos de submisso ao processo a equipe concluir que o sujeito no uma/um transexual ser reencaminhada/o por mais dois anos para tratamento e, assim, sucessivamente. Ainda segundo a autora, no so raros os casos de transexuais que cumprem todos os protocolos e no conseguem obter o laudo (BENTO, 2006). Alm disso, importa tambm considerar que os prprios sujeitos inventaram meios de subverter essa lgica. Andr Lucas, por exemplo, estabeleceu um primeiro contato com a equipe multidisciplinar e desistiu de participar do Processo Transexualizador, por considerar que as/os profissionais do Hospital de Clnicas de Curitiba no so competentes para essa avaliao e diagnstico. Entretanto, possui o laudo assinado por uma psicloga de Campinas, no Estado de So Paulo, desde 2009, o que possibilitou a realizao da mastectomia total, nesse mesmo ano. 37
muito tempo. No colocou prtese de silicone por falta de recursos financeiros e no utiliza silicone industrial, pois para ela os riscos que esses procedimentos trazem sade no compensam. Voltou a estudar aos vinte anos na modalidade de Ensino a Distncia. Precisa fazer uma avaliao para terminar o Ensino Mdio, mas est sem tempo, devido s muitas viagens que realiza por ser a presidente do Grupo Dignidade 39 . Pretende concluir o Ensino Mdio e cursar Psicologia, na Universidade Federal do Paran. H quatro anos militante no movimento de lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais LGBT. Trabalhou por um ano como gerente de uma casa de prostituio de travestis e transexuais no centro de Curitiba, ocupando cargo de confiana de uma cafetina. No ano de 2009 passou de Coordenadora do Transgrupo Marcela Prado presidente do Grupo Dignidade, instituio curitibana com dezoito anos de existncia, o que lhe rendeu projeo nacional e internacional. de famlia pobre e possui limitados recursos financeiros. Reconhece-se como mulher transexual heterossexual, pois se interessa afetiva e sexualmente por homens heterossexuais. No possui averso ao seu pnis, embora, no o utilize nas suas relaes. Deseja fazer a cirurgia de transgenitalizao. Atuou como garota de programa durante seis meses da sua vida, mas segundo ela essa no a vida que almeja para si, porque romntica e quer construir uma famlia. Entretanto, por vezes ainda faz programas por opo, considerando que no depende disso para sua subsistncia. Em uma de nossas conversas definiu-se como uma puta de luxo, porque pode escolher o cliente com quem vai sair e o valor que vai cobrar.
Carla Amaral
Nasceu em Curitiba, em 1973. Segundo Carla, sua famlia, atualmente, restringe-se sua me. No fala com o pai desde os quinze anos, tampouco com o irmo mais novo. Relaciona-se com o irmo mais velho, com sobrinhas/os e reside com a me na regio do Centro de Curitiba. Carla ingressou na escola com sete anos de idade na primeira srie do Ensino Fundamental. Frequentou regularmente a escola at a sexta srie do Ensino Fundamental em 1986 e tinha notas dentro da mdia, at esse ano. Interrompeu os
39 Organizao no governamental fundada em 1992 em Curitiba, no Paran. Para mais acessar: <http://www.grupodignidade.org.br/blog/>. Acesso em: 10/08/2010. 38
estudos em 1987. Matriculou-se em 1988, mas no frequentou. Em 1990, segundo ela, retornou escola no perodo noturno, mas foi vtima de preconceito e discriminao constantemente, o que a fez abandonar os estudos por tempo indeterminado e se dedicar fabricao do corpo e da identidade feminina. Carla estava com quinze anos quando iniciou o processo de fabricao do corpo e da identidade por meio da ingesto de hormnios femininos. Injetou silicone industrial nos culotes, nas coxas, nos seios, nas ndegas e nas mas do rosto. Fez tambm depilao definitiva a laser. Ela considera a borboleta como o smbolo da transexualidade pois, segundo ela, representa a transformao de uma lagarta horrorosa, sem brilho e presa terra em uma borboleta linda, colorida e livre. Carla possui o laudo de transexualismo 40 h dez anos, embora no tenha conseguido at ento fazer a cirurgia de transgenitalizao, porque quando estava prestes a realizar o procedimento (e seria a quinta transexual a ser readequada na Clnica da Universidade Tuiuti do Paran) dois dias antes da sua cirurgia a justia embargou o funcionamento da clnica, alegando, segundo informou Carla, negligncia mdica. Em 2006, vinte anos depois de ter deixado a escola, Carla voltou para a Educao de Jovens e Adultos EJA, embora no tenha concludo. Em dezembro de 2009, Carla conseguiu por meio de um processo judicial a alterao do nome civil e da designao do sexo nos documentos de identificao, criando uma jurisprudncia. Carla esperava que a partir disso conseguisse novamente entrar e permanecer na escola, mas no efetuou sua matrcula. No momento em que saiu sua sentena judicial, estava na Europa, em busca de melhores oportunidades de trabalho no ramo da prostituio. Entretanto, na Espanha, onde atuou, disse no ter tido sucesso nessa empreitada pois ganhava bem mas gastava muito. Conta que o ritmo de trabalho muito desgastante e que em algumas noites chegava a atender at quarenta clientes, ficando sem dormir ou comer.
40 O termo Transexualismo relaciona-se condio de doena mental, distrbio, aberrao (BENTO, 2006, p. 140). Assim, muitas vezes, para ter acesso s cirurgias de transgenitalizao, transexuais assumem a condio de doentes mentais, embora no acreditem nela e criem performances de gnero com vistas ao convencimento da equipe multidisciplinar para obter o laudo e realizar a cirurgia (BENTO, 2006, p. 135). Outras vezes elas/es acreditam mesmo serem doentes mentais. A caracterizao de transexuais como doentes mentais aporta-se na psicanlise, fundamentada pelas teses de Robert Stoller e na biologia a partir das teorizaes de Harry Benjamin. Embora essas duas vertentes apresentem dissonncias, profissionais dessas reas trabalham juntas/os nos programas de transgenitalizao nos hospitais (BENTO, 2006, p. 150). Essas discusses esto presentes na Parte 2 dessa dissertao. No campo dos movimentos sociais de travestis e transexuais essa discusso polmica e apresenta nuances entre a patologizao e a despatologizao da experincia, como se evidenciou no grupo de discusso realizado em Rio do Sul. Sobre isso, consultar: BENTO, Berenice Alves de Melo. A (re)inveno do corpo: sexualidade e gnero na experincia transexual. Rio de Janeiro: Garamond/CLAM, 2006. 39
Carla trabalha como garota de programa desde os dezesseis anos. de famlia pobre e possui poucos recursos financeiros. Atua como militante, sendo a presidente do Transgrupo Marcela Prado, organizao que atende travestis e transexuais em Curitiba. Reconhece-se como mulher transexual heterossexual, pois se interessa afetiva e sexualmente por homens heterossexuais. Sua primeira experincia sexual foi aos onze anos de idade, com um homem heterossexual mais velho. Nessa experincia relata ter sentido muito prazer, embora no tenha existido a penetrao. Segundo ela, essa relao estava mais focada no desejo e na admirao pelo corpo masculino. Com quatorze anos teve sua primeira relao sexual completa, segundo ela. Sentiu prazer, mas parou de se relacionar, em seguida, pois sentia medo. Namorou dos dezessete aos vinte anos. Nunca se casou. Carla possui extrema averso ao prprio pnis e afirma que h muito no sente prazer nas relaes sexuais. Segundo ela, sente raiva quando chega a um orgasmo e ejacula pois imediatamente vem sua cabea que o pnis est secretando testosterona, o maldito hormnio masculino, em seu corpo. Isso a deprime, pois pensa que o orgasmo est diretamente relacionado com a secreo de testosterona que provocar a masculinizao do seu corpo. Em uma de nossas conversas, Carla afirmou que se reconhece como mulher transexual e que, embora saiba que jamais ser uma mulher devido sua constituio gentica, a sua felicidade e realizao est vinculada retirada do pnis e construo da sua neovagina. Tambm por isso sonha com a cirurgia de transgenitalizao o mais rpido possvel.
Dorothea Lavigne
Dorothea Lavigne Gyorf nasceu na cidade de Londrina, em 1979. a mais velha de uma famlia de trs irmos. Segundo ela, sua famlia complicada, pois um de seus irmos esquizofrnico e os outros dois so drogaditos [dependentes qumicos]. Reside com a me e dois de seus irmos, considerando que um deles est internado em uma clnica de reabilitao para dependentes qumicos. Conta que seu pai foi ausente desde os seus quinze anos e h uns dois anos e meio mudou-se para o litoral e no deixou nem o endereo. Recentemente, na semana 40
anterior realizao da entrevista, ele a reencontrou em um site da internet 41 e a adicionou. Ingressou na escola com dois anos, no maternal. Frequentou a escola regularmente at completar o Ensino Mdio. Sempre teve notas altas. Interrompeu os estudos por oito anos para trabalhar. Conquistou uma vaga na Universidade Federal do Paran com vinte e seis anos, em 2005 e, permanece at hoje, cursando Histria. Depois de se graduar em Histria, pretende fazer um curso de formao de atrizes/atores e trabalhar na Rede Globo de televiso, atuando na novela infanto- juvenil Malhao. Dorothea iniciou seu processo de transformao com vinte e oito anos, com a ingesto de hormnios femininos. No colocou prtese de silicone nem fez aplicaes de silicone industrial, segundo ela por falta de recursos financeiros. de famlia pobre. Dorothea nunca se casou. Reconhece-se como uma mulher transexual bissexual pois, segundo ela, sente atrao e desejo sexual por mulheres, por homens e por travestis. No perodo em que foi realizada a entrevista estava namorando uma menina da Universidade. Apresenta restries quanto ao uso de seu pnis nas suas relaes, mas se estiver envolvida pode at utilizar. Deseja fazer a cirurgia de transgenitalizao. No possui o laudo de transexualismo. Fez um programa certa vez mas afirma que no tem talento ou condies financeiras para isso, considerando-se que para cada programa completo se recebe trinta reais, valor que quando comparado diria da casa da cafetina, que custa em mdia cinquenta reais, muito baixo. Alm disso, para Dorothea, fazer programas exige um investimento financeiro alto em si mesma, uma vez que a concorrncia grande.
Andria Cristina Schuz
Andria Cristina Schuz nasceu na cidade de Curitiba, em 1975, onde reside no bairro Pinheirinho, em uma casa conjugada, com a me e o filho de onze anos. Sua irm mora na outra parte da casa, com as duas filhas. Seu irmo mais velho no frequenta muito sua casa por residir longe desse bairro. Quando ela tinha quinze anos, em 1990, seu pai foi assassinado na varanda da sua casa.
41 MSN Messenger do portal de contedo da Microsoft. Para mais acessar: <http://br.msn.com/>. Acesso em: 10/08/2010. 41
Iniciou sua formao escolar com sete anos de idade na primeira srie do Ensino Fundamental. Frequentou regularmente a escola at a oitava srie, quando seu pai foi assassinado. Tirava notas dentro da mdia. Mudou-se com a famlia para o Rio Grande do Sul e comeou a trabalhar. Terminou a primeira srie do Ensino Mdio e a famlia retornou ao Paran. Desde ento, teve dificuldades em continuar os estudos: cursou trs vezes a terceira srie do Ensino Mdio. Nesse processo enquanto, segundo ela, representava um papel masculino, aos dezenove anos conheceu uma menina com quem se casou e teve um filho. O casamento durou um ano. Com a separao, como a ex-esposa no tinha lugar para morar (porque sua me havia falecido), ela permaneceu na casa de Andria. Depois de quatro anos ela foi embora e deixou a criana com Andria. Hoje so amigas. Andria conta que quando fazia sexo com sua esposa fantasiava relaes homossexuais para ter, segundo ela, um mnimo de prazer. Concluiu o Ensino Mdio com vinte e cinco anos, em 2000. Com vinte e oito anos foi selecionada no concurso pblico para Educadora Infantil da Prefeitura Municipal de Curitiba, em 2003. Neste mesmo ano, iniciou seu processo de transexualizao, por meio da ingesto de hormnios femininos. Andria afirmou que com vinte e nove anos de idade, em 2004, assumiu-se como mulher. de famlia pobre. Nesse perodo trabalhava no centro de Curitiba, como garota de programa, mas nunca residiu em casa de cafetina. Residiu sempre com sua me. Nos primeiros seis meses de trabalho na prefeitura reuniu uma quantia em dinheiro para fazer depilao definitiva no rosto, o que lhe custou R$1.700,00. H dois anos colocou prtese de silicone nos seios com um dos melhores cirurgies da cidade, procedimento realizado por R$ 7.000,00. Andria se reconhece como uma mulher transexual bem heterossexual e totalmente passiva. No utiliza seu pnis nas suas relaes. Ela o compara com uma verruga, dizendo que sua nica funo para fazer xixi. Sobre o processo transexualizador, conta que est frequentando o Hospital de Clnicas de Curitiba, mas segundo ela, esse processo gera ansiedade, pois muito demorado. Ela ainda no possui o laudo, por isso est providenciando dinheiro para realizar a cirurgia em uma clnica particular. Andria compara a cirurgia de transgenitalizao para a mulher transexual cura de um cncer. 42
Em relao ao curso de Pedagogia na modalidade a distncia, no qual j cursou dois perodos, Andria pensa em desistir, por dois motivos: o primeiro, por estar fazendo esse curso para cumprir uma exigncia da Prefeitura, que reivindica um curso superior ou o Magistrio para a atuao das/dos educadoras/es infantis. O segundo motivo porque desde que assumiu o cargo de educadora tem sido vtima de transfobia 42 por parte da instituio. De acordo com Andria, h quatro anos e quatro meses vtima de violncia e assdio moral. Ela conta que est respondendo a um processo administrativo devido a uma nota baixa no estgio probatrio. Segundo ela, a instituio investe pesado na presso para que ela desista e pea demisso por transfobia. Assim, ela foi obrigada a se responsabilizar por uma sala de aula com trinta e trs crianas do Maternal II por trs meses, sendo que a orientao comum que existam no mnimo duas educadoras em uma sala com esse nmero de crianas nessa faixa etria. Ela conta que se esforou e conseguiu desenvolver o trabalho, mas ficou doente porque era muita responsabilidade, pois o risco dos acidentes com as crianas grande e, segundo ela, trabalha-se sob presso o tempo todo. A nota baixa na sua ficha funcional foi em razo de Andria procurar um psiquiatra que a afastou de suas atividades por quinze dias. Passados os quinze dias, ela afirma que ainda no estava bem e no retornou ao trabalho nos prximos quinze dias. Entretanto, nesse perodo no apresentou atestado mdico. Em seguida, o psiquiatra a afastou por mais quinze dias. No seu entendimento, a instituio deveria compreender que dois atestados psiquitricos de quinze dias cada, em menos de quarenta e cinco dias, deviam significar que a funcionria no estava em condies de trabalhar. Ao invs disso, a instituio baixou a nota e existe um processo administrativo em andamento. Andria tambm entrou na justia contra a Prefeitura. Esse processo tambm est em andamento.
42 O termo transfobia consiste em uma variao do termo homofobia, muito utilizada pelos movimentos sociais de travestis e transexuais. Para o Grupo de Identidad de Gnero y Transexualidad LAMBDA, coletivo de transexuais pesquisado por Berenice Bento (2006, p. 2): Transfobia: es el miedo, odio, rechazo y desprecio hacia las personas transexuales. Como todo prejuicio social, organiza la forma en que nos percibimos, sentimos, valoramos y comportamos respecto a una persona o todo el colectivo transexual. Tambin las leyes, las administraciones pblicas, los servicios sociales y sanitarios, los medios de comunicacin, etc., pueden ser transfbicos. La transfobia se manifiesta de muchas maneras: estigmatizacin (etiquetaje social basado en prejuicios y estereotipos), discriminacin (despidos encubiertos, no promocin en el puesto de trabajo, depreciacin del valor social de las personas transexuales, sus parejas y sus familias, etc.), aislamiento (rechazo afectivo por familiares y amistades, compaeros de trabajo, etc.), desigualdad jurdica, violencia (agresiones verbales y fsicas), etc.. Disponvel em: <http://www.revistafuturos.info>. Acesso em: 15/07/2010.
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Andria pensa em desistir do curso de Pedagogia e cursar Direito pois afirma estar encantada com as leis ao ter que estud-las para a sua defesa. Entretanto, afirma que desde que ela seja respeitada como mulher, voltar rua para prostituir-se uma opo, uma vez que ela sente prazer em fazer programas.
Andr Lucas Guerreiro Oliveira
Andr Lucas Guerreiro Oliveira nasceu em Curitiba, em 1974. Sua me era solteira e, possivelmente, o pai tem outros filhos. Andr no mantm contato com o pai ou com outras pessoas da famlia. Residiu com a me e a av materna. Como sua me trabalhava em dois empregos para poder sustent-lo, passou a maior parte da sua infncia e adolescncia com sua av, que era severa e o agredia fisicamente de forma constante. Sua me se suicidou quando Andr tinha treze anos e a famlia o culpou pelo suicdio da me por ele ser diferente das outras meninas. Andr no suportou a presso e saiu de casa. Viveu nas ruas durante um tempo. Quando tinha dezessete anos, retornou casa de sua tia, pois sua av havia falecido. Graduou-se em Fisioterapia nesse perodo, embora tenha continuado vtima de maus tratos, o que, segundo ele, culminou com a sua expulso de casa, quando se assumiu transexual. Ingressou na escola com um ano e sete meses porque sua me trabalhava muito e decidiu coloc-lo na creche. Frequentou a escola regularmente at concluir o Ensino Mdio. Sempre teve notas altas. Depois tentou por dois anos passar no vestibular. Cursou Fisioterapia na Universidade Tuiuti do Paran. Concluiu sua graduao, mas nunca atuou como fisioterapeuta. Durante dez anos cursou diversas disciplinas isoladas na Universidade Federal do Paran, nas reas de Histria e Cincias Sociais. Com trinta e dois anos de idade, em 2007, ingressou no curso de Cincias Sociais da UFPR. Nesta instituio, desde que iniciou o processo de transio, considera-se vtima de transfobia principalmente em razo da falta de respeito ao seu nome social, o que lhe rende constrangimento e violncia. Segundo ele, as vrias instncias desta Universidade no reconhecem sua experincia de transexualidade e no o apiam. Conseguiu que no ano de 2009 fosse redigido um parecer pela Procuradoria Geral da UFPR sobre a insero do nome social de travestis e transexuais nos documentos estudantis da UFPR. Entretanto, a 44
implementao at o perodo em que foi realizada a entrevista ainda no havia se efetivado por completo. Teve o nome social utilizado na carteirinha do Restaurante Universitrio e na Biblioteca, mas a alterao do nome nas listagens de presena no foi realizada. Essa, para ele, a principal mudana a ser realizada. Segundo ele, a Universidade alega que uma alterao dessas no sistema extremamente complicada, demorada e onerosa. Devido a essas questes pensou e ainda pensa em desistir da graduao. Iniciou seu processo de fabricao com a aplicao de injees de hormnio masculino em 2008. de famlia pobre e no dispe de meios financeiros. Fez mastectomia, em uma clnica particular, na cidade de Curitiba, em 2009, o que lhe custou R$ 4.500,00. Andr Lucas economizou esse dinheiro a partir da bolsa que recebe da Universidade por trabalhar na Biblioteca, no valor de R$ 500,00 por ms, a partir do que recebeu por aulas que ministrou como professor selecionado pelo Processo Seletivo Simplificado da Secretaria de Estado da Educao do Paran, como assistente de pesquisa na pesquisa Escola sem Homofobia, realizada com apoio do Ministrio da Educao em 2010 e como docente contratado da Secretaria de Estado da Educao do Paran. Tentou se inserir no protocolo do processo transexualizador realizado no Hospital de Clnicas, mas, segundo ele, no suportou a ingerncia do poder medicalizador sobre seu corpo e sua mente. Obteve o laudo de transexualismo assinado por uma psicloga de Campinas, que pouco o conhecia no ano de 2009. Reconhece-se como homem transexual heterossexual e est casado com uma mulher que se reconhece como bissexual. Atualmente, depois da mastectomia, luta pelo direito invisibilidade, isto , segundo ele, para passar despercebido nesse mundo heteronormativo e cruel.
Mait Schneider Caldas de Miranda
Mait Schneider Caldas de Miranda nasceu em Curitiba, em 1973. Mantm um forte vnculo com a famlia, especialmente com o pai. Seu pai, segundo ela, sempre a apoiou e consiste na sua referncia e exemplo de vida. Vem de uma famlia de classe mdia alta e tradicional na sociedade curitibana. Ingressou em uma escola particular confessional catlica de Curitiba, com dois anos. Frequentou a escola regularmente at completar o Ensino Mdio, 45
exceo de quando faltou alguns perodos devido, de acordo com ela, a duas tentativas de suicdio 43 , uma aos treze e outra aos quinze anos de idade. Nessas ocasies recebeu tambm o apoio do pai, que segundo Mait, problematizava a respeito do valor da sua vida e sobre o quanto a amava. Mait descreveu-se como sendo uma tima aluna. Em 1990, com dezessete anos, iniciou um curso pr-vestibular e tambm a transformao corporal, por meio da ingesto de hormnios femininos. Fez curso pr-vestibular durante trs anos tentando ingressar no curso de Odontologia. No obtendo xito, no terceiro ano, alm do curso de Odontologia tentou tambm Direito. Ingressou na Faculdade de Direito de Curitiba, uma das mais concorridas na poca, em 1994. Ao ingressar, no entanto, percebeu que no era o que desejava para a sua vida profissional pois em sua famlia muitos atuam como advogados, juzes de direito e essa profisso nunca chamou sua ateno pela formalidade que exige. Cursou direito por dois anos e meio porque gostou da turma de faculdade. Conta que quando comearam as aulas prticas com visitas a presdios e tambm uma diferenciao mais acirrada das vestimentas (em que os rapazes s poderiam vestir-se com terno e as moas com terninho) trancou o curso pois no desejava isso para a sua vida. Com vinte e quatro anos de idade ingressou no Curso de Letras Portugus Alemo, na UFPR, o qual frequentou por um ano e trancou a matrcula pois, segundo ela, tambm no era o que desejava. Nesse perodo conta que comeou a atuar na militncia. Criou um site 44 em 1997, para orientar as/os transexuais e suas famlias, o que a faz considerar que com isso sua vida adquiriu outro sentido. No terminou a graduao. Em 2009 retornou aos estudos. Est no segundo ano do curso de Artes Cnicas da Faculdade de Artes do Paran.
43 Sobre suas tentativas de suicdio, Mait conta que: Com treze anos eu coloquei um travesseiro no forno do fogo, liguei o gs e dormi ali. E com quinze para dezesseis anos foi uma tentativa: eu ia cortar os pulsos, mas como eu fiz cartas para todo mundo agradecendo as pessoas e pedindo que no se culpassem pela minha morte que eu estava dando fim num problema e que seria melhor para todo mundo, minha me achou essas cartas e me impediram de fazer. Mas eu j estava com todos os materiais, tudo... Nessas pocas foram outras lutas porque eu ficava um tempo em tratamento sem ir para a escola. Fazia acompanhamento com psiclogos e psiquiatras, tentando entender. Uma super proteo do meu pai, porque ele tinha medo pois no sabia o que eu podia fazer. Ento ele deixava de trabalhar para ficar comigo, tirava a chave do meu quarto, dizia que ia ficar 25 horas por dia comigo, porque ele no sabia o que eu podia fazer. Mas, hoje em dia eu vejo que seria uma soluo definitiva para problemas temporrios. Mas na poca eu no tinha essa noo, era uma coisa bem fria assim, acabar com o problema. No era nada romntico do tipo meu nome vai ficar na histria... Era uma coisa tipo o problema vai ser exterminado, OK? (Mait, E). 44 O site Casa da Mait aborda questes especficas sobre transexualidade e uma infinidade de outras mais gerais. Hospeda books de garotas de programa, travestis, transexuais e de garotos de programa alm de fornecer previses astrolgicas, contos erticos, artigos sobre Direitos Humanos e Movimento Social LGBT. Para mais acessar: <http://www.casadamaite.com/>. Acesso em 15/07/2010. 46
Em 2006 colocou prtese de silicone e fez a cirurgia de transgenitalizao, em uma clnica particular de So Jos do Rio Preto, no Estado de So Paulo. Essa primeira cirurgia de transgenitalizao lhe rendeu um tumor no canal vaginal. Teve vrias infeces, devido ao esquecimento de uma gaze no interior do seu corpo. H quatro anos est impossibilitada de ter relaes sexuais devido s dores que sente. Atualmente est na nona cirurgia mas, segundo ela, procurou o melhor cirurgio, em Jundia, porque quando fez a primeira cirurgia realizou com o segundo melhor do pas e aconteceram todas as complicaes. Reconhece-se como uma mulher heterossexual que est passando por um processo para harmonizar o corpo. Nunca se casou. Diz que, devido s cirurgias, encontra-se h quatro anos assexuada, voltando seus investimentos para o trabalho e os estudos pois, para ela, a vida sexual e sentimental foi apagada. Conta que, at o presente momento, s teve experincias sexuais com homens heterossexuais, mas que se o envolvimento surgir com uma mulher no v problemas nisso. Sonha em ser me e gerar suas/seus prprios filhas/os se at l a medicina evoluir e ela tiver recursos financeiros. A adoo tambm uma opo para Mait. Em relao constituio da famlia, afirma que no deseja ter uma produo independente, mas sim ter filhas/os de uma relao estvel pois, para ela, essa referncia veio da sua famlia e gostaria de vivenci-la. Deseja menstruar, mesmo sabendo que teria, provavelmente, que enfrentar clicas e tenso pr-menstrual. Atualmente, Mait define sua identidade profissional por meio do seu perfil no site, como: atriz profissional, poetisa, escritora, depiladora, profissional de TV e rdio e webdesign, alm de lutadora por um mundo em que as pessoas possam ser elas mesmas, sem medo de arrancarem seus direitos e at perderem sua vida.
Thas Prada
Thas Prada nasceu em Passo Fundo, em 1981. No fala com a famlia, constituda por dois irmos e uma irm que moram no Estado do Rio Grande do Sul. Reside com outras quatro colegas de profisso no bairro Atuba, em Curitiba. Iniciou os estudos aos sete anos de idade, na primeira srie do Ensino Fundamental. Frequentou regularmente a escola at completar o Ensino Mdio, em 1999, com dezessete anos de idade. Sempre teve notas altas, segundo ela por 47
gostar muito de ler. Aos treze anos de idade, Thas conta que comeou a ingerir hormnios femininos e a estudar no perodo noturno. Relata que foi vtima de transfobia e mesmo assim continuou os estudos, pois pretendia cursar Letras. Entretanto, durante o Ensino Mdio a discriminao foi maior porque o efeito dos hormnios foi muito rpido, seu corpo j estava transformado e a escola no sabia como trabalhar com isso. Comeou a trabalhar assiduamente na prostituio com dezessete anos de idade. Antes disso, quando estava cursando o Ensino Mdio, arrumava-se para ir escola, dava umas voltas e atendia alguns clientes para fazer uma arrecadao de fundos. Thas conta que muitos homens se aproximavam dela e a ofereciam dinheiro. Ento percebeu que poderia ganhar dinheiro com essa atividade e, comparado o valor que ganha nesse ramo com o que ganharia em outro com a mesma formao, a diferena significativa em favor da prostituio. Decidiu fazer programas para sobreviver. Destaca que a prostituio faz parte do mundo trans 45 . Trabalhou em uma boate mas conta que havia muitas taxas a pagar para a casa. Residiu alguns meses na casa de uma cafetina, na periferia de Curitiba, mas tambm se sentiu explorada. Desentendeu-se com a cafetina e precisou procurar um ponto para trabalhar. Em relao ao submundo da prostituio de travestis e transexuais, como ela mesma denominou, Thais conta que as cafetinas geralmente so travestis e transexuais mais velhas que trabalhavam com prostituio e demarcaram territrios muito bem divididos na cidade de Curitiba e na Regio Metropolitana. Essas cafetinas, segundo ela, aliciam adolescentes expulsas de casa pela famlia que deixaram de estudar e que no tiveram nenhum apoio, sob o pretexto de acolh-las.
45 Essa fala de Thas emblemtica para se pensar sobre uma aproximao entre travestis e transexuais e a prostituio como meio de sobrevivncia. No VII Encontro Regional Sul de Travestis e Transexuais, tive a oportunidade de acompanhar durante uma parte da noite, depois das discusses do curso, a forma como foi organizada a circulao dos corpos para a realizao dos programas. Em um momento, pouco antes da uma hora da manh, havia cerca de 20 travestis e transexuais frente do Hotel onde foi realizado o evento. Os carros no paravam de passar e de parar. Elas se organizaram em uma espcie de fila, pois assim: todas tinham a oportunidade de ganhar (Bruna, GD). Permaneci com elas at as duas horas da manh e, quando fui dormir, todas j haviam sado e voltado pelo menos duas vezes. Elas permaneceram at amanhecer, conforme relatos do grupo no dia seguinte. Outro grupo, bem maior, segundo elas, logo aps o jantar, foi um Bailo da cidade para trabalhar. Ainda de acordo com os relatos de algumas travestis e transexuais, muitos homens vieram das cidades vizinhas para fazer programas em Rio do Sul. Os programas demoravam cerca de meia hora e eram feitos nas redondezas. O valor era de R$ 30,00 se fosse realizado no carro ou em algum terreno baldio da redondeza e de R$50,00 se fosse em um Hotel ou Motel. Essa diferena de preo se deve, de acordo com elas, devido ao tempo que perdem para ir at o Hotel ou Motel e voltar. Assim, o preo maior porque elas podem estar perdendo um tempo em que poderiam estar atendendo outro cliente. 48
Nas casas de cafetinas, as jovens iro aprender a se montar, se maquiar, transformar o corpo, cuidar do cabelo e a trabalhar com a prostituio. Elas podem dormir, tomar banho, comer, enfim, morar e viver nessas casas, mas precisam pagar por isso. Todas as noites elas pagam R$ 50,00 por esses servios e precisam pagar a rua para trabalhar tambm, que custa cerca de R$ 20,00. De acordo com Thas, o valor das taxas muito alto, pois em alguns dias acontece de no se fazer muitos programas, especialmente para quem est comeando. Assim, a dvida s cresce. Alm disso, segundo ela existe a multa instituda pelas cafetinas que consiste em um instrumento de coao utilizado contra aquelas que decidem no pagar ou que se comportam de forma rebelde, enfrentando-as. Essa multa cobrada em dinheiro e em geral um valor alto, cerca de R$ 500,00. Se a travesti ou a transexual no paga, apanha, porque toda cafetina tem vrios capangas. Esses capangas so os mesmos que protegem o ponto da cafetina na rua e se as meninas esto em dbito e no pagam ou se no moram na casa da cafetina, dona do ponto, no podem trabalhar ali, ou apanham. As surras so dadas geralmente com as mos ou com faces. Coronhadas tambm so comuns. As condies de vida nessas casas tambm no so das melhores, segundo ela, pois muitas vezes as cafetinas empilham dez meninas em um nico quarto e essas dez precisam dividir com outras trinta dois banheiros apenas. Diante disso, Thais resolveu ento, h dez anos, trabalhar na BR 116, em um ponto que criou na Regio Metropolitana de Curitiba. Em relao segurana, conta que trabalhar na rua perigoso de qualquer forma, sob a proteo das cafetinas ou de forma independente, pois por vrias vezes foi agredida na rua, tanto por gangues de skin heads 46 , quanto por supostos clientes. Ela relata que pouco adianta chamar a polcia, considerando que demoram a vir at o ponto e que, quando chegam, cerca de trinta minutos depois da chamada, a culpa sempre das prostitutas. Ela diz que prefere nem comunicar polcia, uma vez que algumas de suas amigas que fizeram isso foram feitas refns e escravas sexuais dos policiais
46 Para saber mais sobre a organizao de grupos de Skinheads ou cabeas raspadas no Estado do Paran, consultar: AMPUDIA, Ricardo. Odiados e orgulhosos: um mapa da ao e organizao dos grupos skinheads no Estado do Paran. Ponta Grossa, 2007. A obra, produzida de forma independente e lanada em 2007, relata o resultado de pesquisas realizadas pelo jornalista no perodo de abril a outubro de 2006. Descreve crimes cometidos por neonazistas em Curitiba, explica ideologias e mostra como esses grupos se articulam numa rede empenhada em propagar as idias hitlerianas no Sul do pas. Em detalhes, o livro aborda a priso, em outubro de 2005, de um grupo de 11 pessoas acusado de esfaquear um homossexual e de promover panfletagem racista. Segundo Ampudia, pelo menos mais duas organizaes semelhantes ainda esto na ativa na capital paranaense. Dados disponveis em: <http://www.jornalcomunicacao.ufpr.br/node/939>. Acesso em: 15/06/2010. 49
que as obrigaram a ter relaes com eles gratuitamente na delegacia durante a noite toda. Afirma que as polticas pblicas, embora devessem atend-las como a qualquer outra cidad, no as consideram. Como profissional do sexo, faz o prprio salrio, que varia entre R$ 2.000,00 R$ 2.500,00 mensais, trabalhando de segunda a sbado, em qualquer condio climtica. Faz cerca de doze programas por noite, quando h movimento. Mas o movimento de clientes varia. Por vezes, forma-se uma fila no ponto e por outras no aparecem mais de cinco clientes, os quais so divididos entre as quatro profissionais que ali trabalham. Ela conta que os valores so ilusrios, porque ganha-se bem, mas se gasta muito, uma vez que preciso caprichar na produo para que se fique desejvel e autntica. Disse: ser mulher custa caro (Thas, E). Na sua carteira de clientes, constam mais de trezentos homens que so assduos. Considerando clientes espordicos, ela calcula que j saiu com mais de dez mil homens. Cada programa dura cerca de meia hora, no mximo cinquenta minutos e custa R$ 30,00 no carro e R$ 50,00 no motel ou hotel. Ela considera o valor baixo, mas diz que se aumentar o preo perde a clientela e que melhor contar com esse valor baixo fazendo vrios programas por noite do que aumentar o preo e no fazer nenhum. O programa completo inclui sexo oral e anal. Mas, segundo ela, existem muitos clientes que solicitam que ela os penetre com seu pnis. Ela no considera esse seu papel na negociao ento cobra mais caro. Como dificilmente eles pagam, ela em geral no faz penetrao nos clientes. Entretanto, quando pagam ela faz com a condio de no gozar. Thas tambm acredita que se tiver orgasmo e ejacular estar aumentando o nvel de testosterona em seu corpo, o que ela evita a todo custo. Assim, segundo ela, fica cerca de trs meses sem gozar e toma coquetis de estrognio e progesterona para evitar a masculinizao do corpo. Sobre seus clientes, Thas afirma que a maioria so homens heterossexuais casados e com filhas/os. Em geral, so feios, velhos, gordos e sujos, porque saem do trabalho, na fbrica, na oficina, e querem gozar antes de ir para casa. Vm de bicicleta, a p, de moto, de carro popular ou de carro de luxo. Conta que j mandou, com carinho, vrios homens tomarem banho antes do programa, pois segundo ela, mau cheiro ningum merece. Mas, explica que s vezes aparecem alguns bonitos e cheirosos. Trabalhar com sexo, para ela, pode ser prazeroso, s vezes. 50
Entretanto, pretende deixar de ser prostituta, pois afirma que essa profisso tem prazo de validade. Gostaria de cursar Letras, mas no para ser professora uma vez que no tem pacincia. Ela se definiu como pedfoba, porque tem averso s crianas. Thas reconhece-se como uma mulher transexual heterossexual. Deseja fazer a cirurgia de transgenitalizao mas, segundo ela, no tem pressa. Namorou por nove anos com um homem heterossexual que nunca viu seu pnis. No ano passado, ele faleceu de leucemia.
1.4 Perfil do grupo de discusso Nome Idade Cidade Identidade de Gnero Ocupao Formao Orientao Sexual Cristhiani 39 Florianpolis SC
Travesti (no incio do grupo) Transexual (ao final das discusses) - Cabeleireira, mas nunca exerceu essa profisso. - Voluntria em ONG. - Garota de programa h 20 anos, nas ruas de Florianpolis Voltou esse ano escola. Est cursando as duas ltimas sries do Ensino Fundamental a distncia Heterossexual Perla 37 Florianpolis SC
Travesti - Profissional do sexo h 20 anos nas ruas de Florianpolis. - Agente de Preveno Voltou esse ano escola. Est cursando as duas ltimas sries do Ensino Fundamental a distncia Bissexual Jeniffer 30 Florianpolis SC
Transexual Atua como promotora de vendas Ensino Mdio completo e Tcnica em Enfermagem Heterossexual Josiane 30 Curitiba PR Transexual - Colaboradora em ONG. - Profissional do sexo h 3 anos, atendendo em sua residncia. Ensino Fundamental completo Heterossexual Bruna 30 Curitiba PR Travesti Profissional do sexo h 10 anos. Atende por anncio em jornais locais e trabalha nas ruas do centro de Curitiba. Sexta srie do Ensino Fundamental Heterossexual Sabrina 21 Curitiba PR
Transexual Assistente de Coordenao de Projetos do Transgrupo Marcela Prado Ensino Mdio completo e curso de Moda Heterossexual 51
Clo 37 Itapiranga RS Transexual Coordenadora do Grupo Outros Olhares Superior Incompleto. Cursava graduao em Design Heterossexual Luisa 44 Porto Alegre RS Transexual Funcionria Pblica Formada em Cincias Contbeis e Direito Heterossexual Leandra 29 Campo Bom RS Transexual Representante comercial e Coordenadora do Grupo Liberti Ensino Mdio completo Heterossexual Joyce 47 Porto Alegre RS Travesti Agente de sade da ONG Igualdade Ensino Fundamental completo Heterossexual
importante ressaltar que foram analisados alguns fragmentos de falas de trs documentrios produzidos por organizaes do movimento social LGBT. Os documentrios consistem em: EU sou homem 47 ; Ser mulher 48 e VIDA fora do armrio 49 . A proposta a seguir consiste em apresentar uma articulao entre os conceitos utilizados nessa dissertao.
47 EU sou homem. Direo de Mrcia Cabral. So Paulo, Prefeitura Municipal de So Paulo, Coletivo de Lsbicas Feministas e Coletivo Minas de Cor, 2008. 1 DVD (23min. 12s), color. 48 SER mulher. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2007. 1 DVD (50 min), color. 49 VIDA fora do armrio. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2008. 1 DVD (37min), color. 52
PARTE 2 TERRITRIOS DA PESQUISA E DA TRANSEXUALIDADE
Contemporaneamente, a transexualidade compreendida como uma patologia, com diagnstico e tratamento especficos. Entretanto, nem sempre foi assim. Esse captulo tem como objetivo compreender as condies que possibilitaram que a transexualidade fosse tomada como uma patologia. Berenice Bento (2008) ao abordar a transexualidade a definir como uma experincia e no como uma identidade nica, fixa, sedimentada. Isto , a realizao de um processo de produo de si que implicar em um conjunto de transformaes corporais e sociais que, por sua vez, constituiro experincias de produo de corpos e subjetividades. Segundo a autora:
Prefiro referir-me experincia transexual, pois a transexualidade no a pessoa. Quem vive esta experincia tem outras identidades que povoam suas subjetividades: trabalha, namora, pode ter religio, membro de comunidades sociais mltiplas (famlia, grupos de interesse), como todo ser social (BENTO, 2008, p. 145, grifo da autora).
Nesse captulo foi realizada uma leitura do mapa esttico da transexualidade 50 , construdo por redes de poder-saber singulares, demonstrando as condies de possibilidade para a inveno do sujeito transexual, na segunda metade do sculo XIX. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a transexualidade no um dado natural e a-histrico, mas sim uma inveno engendrada nas redes de saber-poder. Como outros objetos e sujeitos, o sujeito transexual uma produo histrica e datada, construda a partir da articulao de mecanismos singulares de controle dos corpos e desejos. A produo da diferena sexual no interior do sistema sexo-gnero-corpo, isto , a partir dos pressupostos da dicotomia sexual e do binmio normalidade/ anormalidade e, em especial, o engendramento do dispositivo da sexualidade analisado por Michel Foucault em sua Histria da Sexualidade (1988, p. 85-144) ocupam lugar central nas problematizaes que orientaram essa dissertao.
50 A expresso mapa esttico refere-se ao desenho de um territrio fixo produzido a partir dos discursos, de prticas regulatrias especficas e das redes de poder-saber que construram a transexualidade como patologia. Esses discursos consistem, especialmente, no mdico e no psicolgico. Na Parte 1 dessa dissertao est presente a abordagem metodolgica adotada, isto , a cartografia da experincia transexual, em detrimento do mapa fixo aqui apresentado. 53
Importa tambm pensar sobre o conceito de gnero, a partir da construo dos corpos e identidades de transexuais, bem como sobre alguns deslocamentos do dispositivo da sexualidade. Cabe evidenciar aqui o dispositivo da heterossexualidade, como teorizado por Judith Butler (2008) e o dispositivo da transexualidade (BENTO, 2006; 2008). Tais anlises fundamentaram uma compreenso a respeito das formas de produo das narrativas das experincias transexuais nesse trabalho.
2.1 Quando a diferena sexual passou a fazer a diferena
O historiador Thomas Laqueur (2001) demonstrou, em sua obra Inventando o sexo: corpo e gnero dos gregos Freud, que desde a antiguidade at o sculo XVIII predominava no Ocidente um modelo de corpo com um sexo nico. Nesse modelo, denominado de isomorfismo sexual, a mulher era entendida como um homem invertido (LAQUEUR, 2001). Nos cortes anatmicos, a vagina foi tomada como um pnis invertido e interno, os lbios vaginais como o prepcio, o tero como o escroto e os ovrios como os testculos no interior da cavidade abdominal. Para mdicos, anatomistas e filsofos, em razo da falta do calor vital no corpo das mulheres, as estruturas anatmicas eram retidas no interior do corpo. No corpo masculino, as estruturas eram externas em virtude do calor prprio de seus corpos. Laqueur descreve casos de mulheres que devido ao aumento do calor em seus corpos transformaram-se em homens, a partir da exteriorizao de seus rgos. O autor comparou os relatos mais antigos com os contemporneos e destacou que nesses registros explicita-se a possibilidade da mudana de sexo. Segundo Laqueur, [c]om um pouco mais de calor ou de ao, a parte do outro gnero pode subitamente desenvolver um pnis, o que qualifica seu portador marca do falo, a ser considerado homem (LAQUEUR, 2001, p. 163). Entretanto, importante ressaltar que o movimento em sentido contrrio, isto , um homem transformar-se em mulher era, alm de pouco provvel, raramente descrito, considerando que seria uma ao desqualificada pela sociedade da poca. Ao analisar as produes do perodo, Laqueur destacou o trabalho de Gaspard Bauhin (apud Laqueur 2001), para quem os homens no poderiam se tornar 54
mulheres por uma tendncia natural perfeio. Uma fala construda por Mait produz sentido a essa problematizao:
Isso foi bem explcito para mim em determinado momento. Voc est largando do seu entre aspas direito de ser homem em uma sociedade machista onde o que vale um pinto na mesa. Voc est preparada para ser classificada como menor, para ganhar menos no emprego? Voc est largando do teu direito de ser homem pelo teu desejo de ser mulher, entende? Ento, uma coisa que as pessoas no entendem, porque se fosse numa sociedade onde as mulheres tivessem esse nvel de diferena, as pessoas entenderiam e pensariam que eu queria ser mulher pelas vantagens e pelos direitos, mas as pessoas no entendiam. Inclusive no movimento feminista que eu participava, elas me diziam: como voc pode ser to burro? Voc tinha tudo para quebrar essa histria. E no me entendiam. Ningum lembrava de mim nessa histria. Lembravam de outras coisas, cada um com as suas filosofias, com seus idealismos, e eu? Eu era a nica que podia pensar por mim. E tinha o meu pai que se importava... (Mait Schneider Caldas de Miranda, E).
Os anatomistas, at o sculo XVIII, operavam com a idia de que existia apenas um corpo e pelo menos dois gneros (LAQUEUR, 2001). Para Laqueur (2001, p. 130), [t]oda uma tradio clnica inclua as partes verificveis de um modelo de uma s carne. Embora nesse contexto histrico ainda no faa sentido falar em diferena sexual, j haviam sido mobilizados conhecimentos que produziam uma diferenciao entre os corpos, isto , as representaes anatmicas dos corpos partiam do pressuposto de que o homem seria o modelo a partir do qual o corpo feminino estaria submetido. Segundo Laqueur (2001, p. 205), [p]arte-se do princpio de que o corpo humano masculino. O corpo feminino s apresentado para mostrar como diferente do masculino. O modelo do sexo nico se orientava em direo a uma maior ou menor perfeio, sendo que o corpo masculino estaria mais prximo desse conceito ao passo que a mulher era definida como um homem imperfeito (LAQUEUR, 2001, p. 189). De acordo com o autor:
[...] havia apenas um sexo, cujos exemplares mais perfeitos eram facilmente julgados masculinos no nascimento, e os menos perfeitos rotulados de femininos. [...] havia apenas um [sexo] para escolher e esse deveria ser partilhado por todos, do mais bravo guerreiro ao mais efeminado homem da corte, da mais agressiva virago mais delicada virgem. Na verdade, na ausncia de um sistema 55
simuladamente estvel de dois sexos, as rgidas leis sunturias do corpo tentavam estabilizar o gnero mulher como mulher e homem como homem e as punies para os transgressores eram bastante severas (LAQUEUR, 2001, p. 161, grifo meu 51 ).
As possibilidades de variaes entre as mulheres das agressivas s delicadas e homens dos bravos aos efeminados criavam um campo amplo e mltiplo de possibilidades para estar no mundo e um papel social reconhecvel, tanto de mulher como homem. Laqueur (2001, p. 161) afirma que [n]esse mundo, o corpo de sexo nico e elstico era muito mais livre para exprimir o gnero teatral e as ansiedades produzidas por isso [...]. E ainda: aquilo que estaria em jogo no isomorfismo sexual seria o gnero e no o sexo (LAQUEUR, 2001, p. 170). Segundo o autor:
Nos textos pr-Iluminismo, e mesmo em alguns textos posteriores, o sexo, ou o corpo, deve ser compreendido como o epifenmeno, enquanto que o gnero, que ns consideraramos uma categoria cultural, era primrio ou real. O gnero homem e mulher era muito importante e fazia parte da ordem das coisas; o sexo era convencional, embora a terminologia moderna torne essa reordenao sem sentido. Pelo menos, o que ns chamamos de sexo e gnero existiam em um modelo de sexo nico explicitamente ligados em um crculo de significados; escapar da para um suposto substrato biolgico a estratgia do Iluminismo era impossvel. Foi no mundo do sexo nico que se falou mais diretamente sobre a biologia de dois sexos, que era mais arraigada no conceito do gnero, na cultura. Ser homem ou mulher era manter uma posio social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural, no ser organicamente um ou o outro de dois sexos incomensurveis. Em outras palavras, o sexo antes do sculo XVII era ainda uma categoria sociolgica e no ontolgica (LAQUEUR, 2001, p. 19, grifos do autor).
A compreenso social do gnero foi descrita por Laqueur na medida em que o sexo nico poderia representar um dos dois papis sociais delimitados, o masculino ou o feminino, com algumas possibilidades de transgresso. Nessa lgica social, a mulher foi fixada em uma posio inferior. Para Laqueur (2001, p. 170-171):
No curso normal dos acontecimentos, o sexo no era problema. As criaturas com pnis externo eram consideradas meninos e tinham todos os privilgios e obrigaes dessa condio, e as que tinham pnis interno eram relegadas categoria inferior de meninas. Em um
51 Conforme discutido na primeira parte dessa dissertao vale lembrar que a idia de escolha sempre muito frgil (CSAR, 2009b, p. 152). 56
mundo onde o nascimento era to importante, o sexo era mais uma caracterstica atribuda com conseqncias sociais; pertencer a um sexo ou a outro dava pessoa o direito a certas consideraes sociais [...] O corpo parecia ser o absoluto fundamento de todo o sistema do gnero bipolar.
Nessa perspectiva, a posio do pnis, interna ou externa, constitua-se em um sinal distintivo, dentre outros atributos sociais do nascimento. queles nascidos com o pnis na parte exterior do corpo eram atribudas caractersticas sociais especficas, assim como tambm quelas com o pnis no interior do corpo. Nesse contexto, no caso de nascimento de crianas com um posicionamento ambguo do pnis, fazia-se necessrio encontrar um encaixe social para esses corpos ou a aproximao com um dos gneros. De acordo com Laqueur (2001, p. 170):
[...] para os hermafroditas a questo no era [ainda] a que sexo eles pertenciam realmente, mas a que gnero a arquitetura de seus corpos mais se ajustava. Os magistrados eram menos preocupados com a realidade corprea o que hoje ns chamaramos de sexo que com a manuteno de claras fronteiras sociais, a manuteno de categorias de gnero (grifos do autor).
Aquilo que estava em jogo no isomorfismo sexual era evitar que uma mulher assumisse o lugar de um homem e, com isso, alcanasse os privilgios que esta posio social possibilitava. A ameaa de que algum se fizesse passar por homem instigou diversas punies s mulheres e aos hermafroditas que ousaram assumir o papel social do homem, principalmente no que se referia ao papel ativo numa relao com outra mulher. De acordo com Laqueur, a acusao feita a essas mulheres, por exemplo, consistia na violao da lei do gnero.
No final do sculo XVII [...] a mulher que fazia o papel de homem no ato sexual com outra mulher era considerada uma trbade (fricatrice), que assumia ilicitamente o papel ativo, que fazia a frico quando devia ser basicamente friccionada. Ela era acusada de violar a lei do gnero, desempenhando o papel do homem durante uma relao sexual (LAQUEUR, 2001, p. 172, grifo do autor).
Nesse contexto ainda no h uma idia sobre o sexo como sinnimo de verdade sobre o corpo e o sujeito, o que s aconteceria no sculo XIX. No entanto, foi nesse solo epistemolgico que se desenhou, ainda nos sculos XVII-XVIII, a idia de um corpo sexuado. A problemtica instaurada a partir da mistura entre mulher e 57
homem em um mesmo corpo foi explicitada nos registros das condenaes de hermafroditas analisados por Foucault (1982). No entanto, para esse autor, tais condenaes dos hermafroditas no se deram devido mistura entre os sexos, mas sim a outro fator:
Na Idade Mdia, as regras do direito cannico e civil eram bastante claras a esse respeito: eram chamados de hermafroditas aqueles em quem se justapunham, segundo propores que podiam ser variveis, os dois sexos. Nesse caso, era papel do pai ou do padrinho (os que nomeavam a criana) fixar, no momento do batismo, o sexo que deveria ser mantido. Se fosse o caso, aconselhava-se escolher dentre os dois sexos o que parecesse dominar, o que tivesse maior vigor ou maior calor. [Possivelmente o masculino para as discusses da poca.] (LAQUEUR, 2001, p. 163)]. [...] no incio da idade adulta, quando chegasse o momento de se casar, o hermafrodita era livre para decidir se desejava ser sempre do sexo que se lhe havia atribudo ou se preferia outro. O nico imperativo era que, uma vez escolhido seu sexo, ele no mais o poderia trocar, e o que havia ento declarado deveria ser mantido at o fim da sua vida, sob pena de ser considerado sodomita. Eram essas mudanas de opo e no a mistura anatmica dos sexos que engendravam a maior parte das condenaes dos hermafroditas de que se tem notcias na Frana, na Idade Mdia e no Renascimento (FOUCAULT, 1982, p. 12; 2001, p. 84, grifos do autor). 52
Assim, nos achados de Foucault, o que estava em jogo no era a genitlia ambgua dos corpos dos hermafroditas mas sim a possibilidade de prtica da sodomia. As preocupaes em relao s prticas sexuais se intensificaram a partir do sculo XVIII. Segundo Foucault (1988; 2007), o sculo XVIII trouxe mudanas significativas tanto na ordem social, poltica, econmica, como no campo epistemolgico e no funcionamento do poder. As mulheres passaram a ter um corpo e um gnero especficos, deixando de ser definidas apenas em relao aos homens. Se, a partir da Revoluo Francesa, do Iluminismo e entre outras transformaes do final do sculo XVIII os seres humanos passaram a ser entendidos culturalmente como iguais, foi necessrio buscar a diferena em outro lugar, fora da cultura. Dessa forma, a diferena sexual foi produzida a partir de uma idia de natureza. Assim, o sexo se transformou em
52 Thomas Laqueur faz uma crtica descrio de Foucault, em relao escolha do gnero a que pretendem pertencer realizada pelos hermafroditas pois para ele essa era mais uma imposio do grupo social no qual o hermafrodita estava inserido do que uma escolha livre e autnoma da pessoa (LAQUEUR, 2001, p. 161). Entretanto, importante ressaltar que a partir dessa escolha os hermafroditas no seriam perseguidos em razo da ambiguidade. Entretanto, uma condenao seria o destino daqueles/as que alterassem a sua posio de gnero (LEITE JNIOR, 2008, p. 38). 58
biologia e a diferena pode ser produzida agora em razo de uma natureza distinta, isto , dois sexos e dois gneros. Nesse novo regime de saber-poder, uma nova interpretao dos corpos fez-se necessria. Para Thomas Laqueur, esse regime de saber-poder construiu o dimorfismo sexual. Segundo o autor:
No sculo XVIII as coisas mudaram. O ventre, que era uma espcie de falo negativo, passou a ser o tero um rgo cujas fibras, nervos e vascularizao ofereciam uma explicao e uma justificativa naturalista para a condio social da mulher. Quando, por vrias razes, a ordem transcendental preexistente ou os costumes de tempos imemoriais tornaram-se cada vez menos uma justificativa plausvel para as relaes sociais, o campo de batalha do gnero mudou para a natureza, para o sexo biolgico. A anatomia sexual distinta era citada para apoiar ou negar todas as formas de reivindicaes em uma variedade de contextos sociais, econmicos, polticos, culturais ou erticos. [...] Qualquer que fosse o assunto, o corpo tornou-se o ponto decisivo (LAQUEUR, 2001, p. 191-192).
As formas de definio do corpo antes centradas no gnero social se deslocaram voltando-se para um corpo que seria o resultado de uma natureza. Importa pensar, entretanto, que esse deslocamento, ou seja, a passagem do isomorfismo ao dimorfismo sexual ocorreu em meio a uma rede de disputas de poder no campo poltico (LAQUEUR, 2001).
Dois sexos incomensurveis eram e so, tanto os produtos da cultura como era e o modelo de sexo nico. [...] O sexo nico, repito no morreu. Mas, encontrou uma poderosa alternativa: uma biologia da incomensurabilidade na qual a relao entre o homem e a mulher no era inerentemente uma relao de igualdade ou desigualdade mas de diferena, que exigia interpretao. O sexo, em outras palavras, substituiu o que ns poderamos chamar de gnero como uma categoria basicamente fundamental. Na verdade, uma estrutura onde o natural e o social podiam ser claramente distinguidos entrou em ao (LAQUEUR, 2001, p. 192).
Nessa perspectiva, a diferena entre mulher e homem deslocada do mbito dos papis sociais passando a ser definida por meio de uma biologia e uma moral. Essa definio se consolidou por definitivo no sculo XIX 53 . De acordo com o autor:
53 Nessa poca o dispositivo da sexualidade, como analisado por Foucault em sua Histria da Sexualidade (1975), tambm est em pleno funcionamento, como analisado mais frente. 59
Nenhum livro foi escrito antes do sculo XVII com ttulos como De la femme sous ses rapports physiologiques, morals et littraires ou De la pubert... chez la femme, au point de vue physiologue, hyginique et medical que argumentasse to explicitamente os fundamentos biolgicos da ordem moral. Surgiram centenas, se no milhares desses trabalhos, nos quais as diferenas sexuais foram articuladas nos sculos que se seguiram. Os cientistas fizeram mais que oferecer dados neutros aos idelogos. Eles emprestaram seu prestgio ao empreendimento, descobrindo ou comprovando os aspectos da diferena sexual que haviam sido ignorados. Alm disso, a poltica do gnero afetou muito claramente, no s a interpretao dos dados clnicos e de laboratrio, como tambm sua produo (LAQUEUR, 2001, p. 192-193, grifos do autor) 54 .
Essa mobilizao de saberes produziu a diferena sexual a partir da qual somos todas e todos classificados na sociedade contempornea. Assim, a compreenso de que as categorias de feminino e masculino foram inventadas em posies opostas sob condies especficas fundamental para se pensar como as redes de poder-saber engendraram a construo da experincia transexual. Segundo Laqueur, [n]o final do sculo XVII e ao longo do sculo XVIII a cincia passou a considerar, em termos aceitveis nova epistemologia, as categorias masculina e feminina como sexos biolgicos opostos e incomensurveis (2001, p. 193-194, grifos do autor). A inveno das categorias feminina e masculina nos discursos e nas prticas sociais construiu os sujeitos sexuados e suas posies na sociedade. somente a partir da inveno dos sexos, como descrita por Thomas Laqueur (2001), que se torna possvel a produo de novos sujeitos pelo discurso mdico- psicolgico, dentre os quais, a/o transexual. A maioria dos sujeitos entrevistados para essa pesquisa construiu narrativas a partir de uma viso binria de mundo, na qual feminino e masculino ocupam lugares bem distintos. Nesse sentido, para Carla (E), [n]a nossa sociedade h duas maneiras de julgar as pessoas: como homem ou como mulher; ou somos julgadas pelo sexo biolgico ou pela aparncia. Importa compreender que o dimorfismo sexual funciona como um mecanismo que enreda a todas e todos ns nas redes de poder-saber sobre o corpo, o sexo, o gnero e a sexualidade.
54 Os ttulos a que o autor se refere so: De la femme sous ses rapports physiologiques (Da mulher nos relatrios fisiolgicos); morals et littraires (moral e literria); De la pubert... chez la femme (A partir da puberdade em fmeas); au point de vue physiologue (do ponto de vista da fisiologia); hyginique et medical (higiene e sade). (Traduo livre minha). 60
Laqueur nos ensinou que o corpo sexuado e generificado tem tambm uma histria singular e no pode ser tomado como um dado natural. Nas anlises de Maria Teresa Citeli (2001, p. 134-135):
Thomas Laqueur fez sucessivas investigaes para mostrar que, entre o final do sculo XVIII e o comeo do sculo XIX, as significativas mudanas scio-polticas ocorridas no Ocidente produziram um contexto favorvel (seno imperativo) emergncia de um novo modelo mdico para interpretar as diferenas de sexo, modelo esse que no pode ser considerado resultado apenas dos avanos tecnolgicos da poca. O autor est convencido de que, mesmo portadora de contradies, essa reinterpretao da biologia reprodutiva feminina foi convocada para resolver tambm problemas ideolgicos. Constatando que no se tratava apenas de utilizar a biologia para subestimar as mulheres, o autor conclui que partes do corpo e das fisiologias masculina e feminina passaram a ser desenhadas e vistas atravs da lente ideolgica que lhes dava a forma. Assim, apesar da crena que leva alguns cientistas naturais a acreditar que suas proposies so um espelho da natureza, elas na verdade refletem, e muito, sua cultura; no so produzidas num vcuo (grifo da autora).
Importa compreender que essa construo modificou por completo uma forma de compreenso do corpo feminino e da mulher, que passou de um homem invertido a algum com o sexo oposto ao do homem. Esse deslocamento engendrou as caractersticas fsicas e sexuais que se tornaram fonte e natureza, no mais dos efeitos ou manifestao sociais e culturais, mas agora em uma natureza que se desdobra em mecanismos de opresso e violncia (Rogrio Diniz JUNQUEIRA, 2007, p. 9-10). importante considerar tambm que antes dessas teorizaes que separam o mundo em duas metades complementares, isto , feminino e masculino, a ambiguidade ou mesmo o cruzar a fronteira no se constitua em um problema ou em uma questo relevante (Virgnia WOOLF, 2008; FOUCAULT, 1982). Foi a partir do nascimento do dispositivo da sexualidade e da colocao do sexo em discurso, em meados do sculo XVIII e no sculo XIX que essa situao adquiriu status de problema (FOUCAULT, 1988). Para Laqueur (2001, p. 152), [a] natureza do sexo, [...] resultado das nossas necessidades de falar a respeito, no da biologia.
61
2.2 O dispositivo da sexualidade e a inveno do sujeito homossexual
No prefcio do livro sobre as memrias de Herculine Barbin, uma hermafrodita que viveu no incio do sculo XIX, Michel Foucault perguntou se precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? (1982, p. 1, grifo do autor). Como o autor argumentou, esse questionamento somente adquire sentido a partir de meados do sculo XVIII e incio do sculo XIX, quando a pergunta sobre o verdadeiro sexo dos hermafroditas emergiu na sociedade, por meio do discurso mdico e jurdico. Nesse contexto, a ambiguidade passou a ser um problema e a necessidade de definio de um nico e verdadeiro sexo, que expressava toda a verdade sobre o hermafrodita, apareceu na histria. Esse sexo no poderia ser escolhido pelo prprio sujeito, mas precisava de um olhar especializado. O verdadeiro sexo dos hermafroditas deveria ser definido por um especialista (FOUCAULT, 1982, p. 1). Foi somente a partir do advento da modernidade, com a inveno do dispositivo da sexualidade nas sociedades ocidentais, que o sexo verdadeiro tornou- se uma questo importante. Foucault explica que a partir do sculo XVIII, ao contrrio do que se pensava, o sexo entra em discurso e cada vez mais colocado em pauta. Entretanto, fundamental entender que essa fala sobre o sexo produzida em meio a disputas de poder. Segundo Foucault (1988, p. 87):
Dentre seus emblemas, nossa sociedade carrega o do sexo que fala. Do sexo que pode ser surpreendido e interrogado e que, contrado e volvel ao mesmo tempo, responde ininterruptamente. Foi, um dia, capturado por um certo mecanismo, bastante frrico a ponto de tornar-se invisvel. E que o faz dizer a verdade de si e dos outros num jogo em que o prazer se mistura ao involuntrio e, o consentimento inquisio.
O jogo que articula a verdade sobre o sexo e o prazer mobiliza a produo de saberes e de prazeres que, articulados, distantes de consolidar um sexo reprimido ou oculto, evidenciam um sexo produtivo, implicado na construo das subjetividades modernas. Para Foucault (1988, p. 87):
Vivemos todos, h muitos anos, no reino do prncipe de Mangoggul: presas de uma imensa curiosidade pelo sexo, obstinados em 62
question-lo, insaciveis a ouvi-lo e ouvir falar nele, prontos a inventar todos os anis mgicos que possam forar sua discrio. Como se fosse essencial podermos tirar desse pequeno fragmento de ns mesmos, no somente prazer, mas saber e todo um jogo sutil que passa de um para o outro: saber do prazer, prazer de saber o prazer, prazer-saber; [...].
Com o advento da modernidade, o saber sobre o sexo e seus prazeres passa a ocupar um lugar central das indagaes mdico-cientficas. Os jogos de saber-prazer circulam na sociedade moderna, em um movimento duplo, importando saber como est o nosso sexo, ao mesmo tempo em que o sexo suspeito de saber a quantas andamos ns (FOUCAULT, 1988, p. 88). Importa compreender que esse sexo, sobre o qual teoriza Foucault, no qualquer sexo. No se refere ao sexo relacionado natureza ou proveniente de uma abordagem da biologia. Nas anlises do autor, esse sexo constitui-se no sexo- histria, sexo-significao, sexo-discurso. Assim, para Foucault as sociedades ocidentais colocaram a todas e todos ns sob o signo de uma lgica da concupiscncia e do desejo (FOUCAULT, 1988, p. 88). Antes da era moderna, concupiscncia e desejo no apareciam nas discusses sobre sexo 55 . Ao analisar esse deslocamento, o autor se atm forma como o sexo das/dos hermafroditas passou a ser determinado e entendido. Segundo Foucault, na modernidade foi entregue a cada hermafrodita seu sexo verdadeiro e cada uma/um ficou refm desse mesmo sexo, passando a ser definida/o por ele. Para Foucault (1982, p. 2):
A partir de ento, um s sexo para cada um. A cada um sua identidade sexual primeira, profunda, determinada e determinante; quanto aos elementos do outro sexo que possam eventualmente aparecer, eles so apenas acidentais, superficiais, ou mesmo simplesmente ilusrios. Do ponto de vista mdico, isto quer dizer que no se trata mais de reconhecer no hermafrodita a presena dos dois sexos justapostos ou misturados, nem de saber qual dos dois prevalece; trata-se, antes, de decifrar qual o verdadeiro sexo que se esconde sob aparncias confusas.
Assim, o projeto da modernidade se constituiu tambm em desvelar o verdadeiro sexo da/do hermafrodita, ou ainda, como aconteceu com Herculine Barbin, significou inventar um nico sexo verdadeiro para cada sujeito, dissipando a
55 O que importava era a questo de posio social dos sujeitos, conforme discutido no item 2.1 dessa parte da dissertao, segundo as teorizaes de Thomas Laqueur (2001). 63
ambiguidade definitivamente dos corpos hermafroditas (FOUCAULT, 1982). De acordo com o que afirma o autor:
Admite-se [atualmente] tambm, alis com muita dificuldade, a possibilidade de um indivduo adotar um sexo que no biologicamente o seu. No obstante, a idia de que se deve ter um verdadeiro sexo est longe de ser dissipada. Seja l qual for a opinio dos bilogos a esse respeito, encontramos, pelo menos em estado difuso, no apenas na psiquiatria, psicanlise e psicologia, mas tambm na opinio pblica, a idia de que entre sexo e verdade existem relaes complexas, obscuras e essenciais. Somos, verdade, mais tolerantes em relao s prticas que transgridem as leis. Mas continuamos a pensar que algumas dentre elas insultam a verdade [...] (FOUCAULT, 1982, p. 3-4, grifo do autor).
Esse investimento na decifrao do sexo verdadeiro das/dos hermafroditas pode guardar alguma semelhana com a experincia transexual patologizada na atualidade, na qual a genitlia deve falar a verdade sobre o sujeito. Assim, estabeleceu-se pelo discurso mdico-psicolgico, uma necessidade de se produzir uma/um transexual verdadeira/o e de cuja/o sexo esteja adequado, por meio de intervenes cirrgicas. Esse sexo, concomitantemente, precisa ser tambm o sexo verdadeiro. Muitas/os transexuais assimilaram esses discursos e prticas e reproduzem essas concepes, considerando imprescindvel possuir esse sexo verdadeiro, acompanhado de um nome tambm de acordo, que o designe. Nesse sentido, Rafaelly (E) afirma: [a] mulher biolgica nasceu com vagina e a mulher trans nasceu sem vagina. Com a redesignao sexual, a construo da minha vagina e a mudana do meu nome, serei uma mulher completa e ningum poder questionar o meu sexo. importante compreender, entretanto, que no foram somente os corpos ambguos a serem tomados por esse projeto moderno como alvo de investimentos sobre o sexo. A Histria da Sexualidade, traada por Michel Foucault, constitui-se em uma ferramenta fundamental para se pensar as relaes entre sexo e verdade. Ao elabor-la, Foucault identificou a partir do sculo XVIII e, mais especificamente do XIX, quatro figuras que se desenvolveram no ncleo familiar e tornaram-se alvo de investimentos do poder. So elas: a mulher histrica, a criana masturbadora, o casal mauthusiano e o adulto perverso. Esses conjuntos estratgicos atuaram na produo de saberes e poderes sobre o sexo (FOUCAULT, 1988, p. 115-116). 64
Essas quatro figuras descritas por Foucault atuaram no projeto moderno de inveno da sexualidade, que articulada por diversas estratgias de saber-poder pautadas pelo discurso mdico-psicolgico constituiu-se em um dispositivo 56 . Esse dispositivo agiu e continua agindo sobre os mais diversos assuntos relacionados ao sexo da sociedade moderna como o corpo, os prazeres, o prprio discurso, os saberes, os controles e as resistncias. De acordo com o autor:
As sociedades ocidentais modernas inventaram e instalaram, sobretudo a partir do sculo XVIII, um novo dispositivo que se superpe ao primeiro [da aliana] 57 e que, sem o pr de lado, contribui para reduzir sua importncia. o dispositivo da sexualidade: como o de aliana, este se articula aos parceiros sexuais; mas de um modo inteiramente diferente (FOUCAULT, 1988, p. 117, grifo do autor). 58
Dessa forma, segundo Foucault, foi por meio de um dispositivo de controle de corpos articulado por diversas estratgias que surgiu uma sexualidade. Essa sexualidade serviu de fundamento para discursos e prticas regulatrias que produziram os prprios sujeitos e uma hierarquizao entre os mesmos. Essa hierarquizao estruturou-se por meio da patologizao das condutas 59 . Ainda afirma que:
A sexualidade o nome que se pode dar a um dispositivo histrico: no realidade subterrnea que se apreende com dificuldade, mas grande rede da superfcie em que a estimulao dos corpos, a intensificao dos prazeres, a incitao ao discurso, a formao dos conhecimentos, o reforo dos controles e das resistncias, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratgias de saber e de poder (FOUCAULT, 1988, p. 116117).
No mbito familiar, o dispositivo da sexualidade contou com o apoio externo dos especialistas, mdicos, psiquiatras e pedagogos. Esses especialistas
56 Para Michel Foucault (1993, p. 244), dispositivos so formados por um conjunto heterogneo de prticas discursivas e no discursivas que possuem uma funo estratgica de dominao. O poder disciplinar obtm sua eficcia da associao entre os discursos tericos e as prticas reguladoras. 57 Segundo Foucault, o dispositivo da aliana relaciona-se com o sistema de matrimnio, de fixao e desenvolvimento dos parentescos, de transmisso dos nomes e dos bens (1988, p. 117). 58 Para Foucault (1988, p. 118), [h]istoricamente, alis, foi em torno e a partir do dispositivo de aliana que o de sexualidade se instalou. 59 Dentre esses conjuntos de estratgias, a psiquiatrizao do prazer perverso produziu a patologizao das condutas. Estratgia que interessa de forma particular as discusses aqui propostas. Nesse sentido, para Foucault (1988, p. 116), [e]nfim, psiquiatrizao do prazer perverso: o instinto sexual foi isolado como instinto biolgico e psquico autnomo; fez-se a anlise clnica de todas as formas de anomalia que podem afet-lo; atribuiu-se-lhe um papel de normalizao e patologizao de toda a conduta; enfim, procurou-se uma tecnologia corretiva para tais anomalias. (grifo do autor). 65
produziram a psicologizao e psiquiatrizao das relaes entre os indivduos no interior da famlia e produziram novos personagens. Nas anlises de Foucault (1988, p. 121-122):
Aparecem, ento, estas personagens novas: a mulher nervosa, a esposa frgida, a me indiferente ou assediada por obsesses homicidas, o marido impotente, sdico, perverso, a moa histrica ou neurastnica, a criana precoce j esgotada, o jovem homossexual que recusa o casamento ou menospreza sua prpria mulher. So as figuras mistas da aliana desviada da sexualidade anormal: transferem a perturbao da segunda para a ordem da primeira; [...] (grifo meu).
A inveno do sujeito homossexual tambm fundamental para se pensar sobre os processos de medicalizao dos corpos e das prticas sexuais. Importa compreender que somente a partir da inveno desse personagem, a pergunta sobre a normalidade 60 adquire algum sentido. Para Foucault (1988, p. 128129):
[...] a tecnologia do sexo, basicamente, vai-se ordenar a partir desse momento, em torno da instituio mdica, da exigncia de normalidade e, ao invs da questo da morte e do castigo eterno, do problema da vida e da doena. A carne transferida para o organismo. Essa mutao se situa na passagem do sculo XVIII para o sculo XIX; ela abriu caminho para muitas outras transformaes que da derivam. Uma delas separou a medicina do sexo da medicina geral do corpo, isolou um instinto sexual, suscetvel, mesmo sem alterao orgnica, de apresentar anomalias constitutivas, desvios adquiridos, enfermidades ou processos patolgicos. [...] A medicina das perverses e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovaes da segunda metade do sculo XIX (grifos do autor).
As/os homossexuais passam a ser definidas/os a partir de uma idia de sexualidade desviante. Essa inveno da/do homossexual como a/o perversa/o sexual encontra-se implicada na construo do sujeito transexual, algum portador de uma patologia. Segundo o autor,
[a/o] homossexual do sculo XIX torna-se um[a] personagem: um passado, uma histria, uma infncia, um carter, uma forma de vida; tambm morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma
60 Para Foucault (1988, p. 129): A Psychopathia sexualis de Henrich Kaan, em 1846, pode servir de indicador: datam desses anos a relativa autonomizao do sexo com relao ao corpo, o aparecimento correlativo de uma medicina, de uma ortopedia especficas do sexo (grifos do autor).
66
fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele , no fim das contas, escapa sua sexualidade (FOUCAULT, 1988, p. 50).
Para Foucault, o sujeito homossexual nasceu no artigo do mdico Westphal, que versava sobre as sensaes sexuais contrrias, em 1870. Esse artigo produziu a/o homossexual como um invertido sexual, isto , caracterizou a homossexualidade como uma espcie de natureza do homossexual. Assim, a sexualidade toma conta do corpo e das condutas da/do homossexual:
necessrio no esquecer que a categoria psicolgica, psiquitrica e mdica da homossexualidade constituiu-se no dia em que foi caracterizada o famoso artigo de Westphal em 1870, sobre as sensaes sexuais contrrias pode servir de data natalcia menos como um tipo de relaes sexuais do que como uma certa qualidade da sensibilidade sexual, uma certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prtica da sodomia, para uma espcie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual uma espcie (FOUCAULT, 1988, p. 5051; 2001, p. 212).
O dispositivo da sexualidade e essa tecnologia do sexo foram produzidos pela burguesia e testados sobre ela mesma, no como uma forma de sujeio do proletariado, mas sim como uma forma de auto-afirmao. Isto , a burguesia fez valer o alto preo poltico de seu prprio corpo, de suas sensaes, seus prazeres, sua sade, sua sobrevivncia (FOUCAULT, 1988, p. 135). Sua insero deu-se de forma gradual nas classes populares, principalmente, por meio do controle dos nascimentos, pelo controle da famlia tomada como um instrumento potencial de sujeio do proletariado urbano e com vistas proteo da sociedade (FOUCAULT, 1988, p. 133). Com a inveno do dispositivo da sexualidade, o funcionamento do poder se altera e emerge, assim, um poder normalizador. Esse tipo de poder tem no exame seu instrumento mais eficiente e produz o anormal como um problema terico e poltico relevante. Para Foucault (2001, p. 5253):
Com o exame, tem-se uma prtica que diz respeito aos anormais, que faz intervir certo poder de normalizao e que tende, pouco a pouco, por sua fora prpria, pelos efeitos de juno que ele proporciona entre o mdico e o judicirio como o saber psiquitrico, a 67
se constituir como instncia de controle do anormal. E na medida em que constitui o mdico-judicirio como instncia de controle, no do crime, no da doena, mas do anormal, nisso que ele ao mesmo tempo um problema terico e poltico importante.
Com isso, pode-se pensar que a partir do momento em que foi possvel perguntar pela normalidade, foram produzidos vrios sujeitos anormais, o que fortaleceu o discurso mdico-psicolgico e seus efeitos de patologizao sobre as experincias (FOUCAULT, 1988; 2001).
2.3 Os problemas de gnero da transexualidade
A experincia transexual, assim como outras experincias, apresenta-se atravessada tanto pela diferena sexual quanto por seu efeito de poder, isto , a hierarquizao entre os gneros. Essa hierarquizao se deu em meio s disputas de poder entre o isomorfismo e o dimorfismo sexual, conforme teorizou Laqueur (2001), dentro do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1988). A releitura dos corpos, demonstrada por Laqueur (2001), produziu uma sociedade pautada pela diferena sexual e de gnero. Os corpos passam a ser entendidos sob duas nicas possibilidades: um corpo feminino e um corpo masculino. Esse pressuposto funcionou como base para que a diferena sexual se construsse em uma questo politicamente importante. Assim, a partir de uma problematizao sobre o dimorfismo sexual, poder-se-ia pensar sobre os efeitos de poder produzidos pelo conceito de gnero, a partir da experincia transexual. Em um primeiro momento, poderia se pensar sobre as produes de tericas feministas que procuraram explicar a subordinao das mulheres em relao aos homens, construdas pelo referencial binrio. Essas teorizaes, das quais Simone de Beauvoir (1987), com seu clssico O segundo sexo representa um marco, produziram uma desnaturalizao importante da identidade feminina, embora no tenham rompido com uma essncia universalizante (BUTLER, 2008). Isto , ao procurar demonstrar que a mulher no nasce, torna-se, a autora critica a inferiorizao da mulher baseada no referencial da diferena biolgica. Entretanto, esse movimento produz um efeito essencializador ao deslocar a construo da categoria mulher do campo biolgico para o social e histrico. Com isso, Beauvoir acaba por fixar dois gneros distintos em posies bem determinadas e opostas 68
entre si, bem como supe que esses constructos sejam universalizantes, ou seja, aplicveis a todas e todos. Assim, para Beauvoir (1987, p. 9):
Em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupaes so manifestamente diferentes.
Vrias dcadas depois Joan Scott (1995) pensou o gnero como uma categoria de anlise histrica. Segundo a autora, (1) o gnero um elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas entre os sexos e (2) o gnero uma forma primria de dar significado s relaes de poder (SCOTT, 1995, p. 86). Pode-se entender, a partir das teorizaes da autora, que se operou um deslocamento em relao elaborao universalista de Beauvoir, no qual o conceito de gnero passou a ser analisado como relacional. Contudo, a produo do conceito de gnero, nesta perspectiva, parece ter se dado tambm a partir da diferena sexual. Importa compreender que, em ambas as teorizaes, somente algumas formas de ser e de estar no mundo, como mulher e homem, contam. Isso porque nem as teorizaes universalistas nem as relacionais sobre gnero consideraram corpo, sexo, gnero, sexualidade ou desejo para alm de uma concepo binria (BENTO, 2006, p. 78). Nesse sentido, pode-se entender que a partir das produes discursivas e prticas pautadas pelo dimorfismo sexual, os trnsitos entre os gneros so interditados. Para Berenice Bento (2008, p. 25):
Por essas convenes, o nico lugar habitvel para o feminino em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens. Nesses lugares como se existisse uma essncia prpria, singular a cada corpo, inalcanvel pelo outro. [...] Nessa lgica dicotmica no possvel fazer descolamentos. O masculino e o feminino s conseguem inteligibilidade quando referenciados diferena sexual.
Guacira Lopes Louro (1997) analisa o conceito de gnero como uma construo histrica, social e lingustica sobre o feminino e o masculino, que est implicada nas relaes sociais entre mulheres e homens. Alm disso, a autora acrescenta outros elementos anlise do gnero como a histria, a representao e os discursos como produtores do sexo. Nas suas anlises, uma nova linguagem 69
pode ser utilizada para se pensar sobre o gnero no mbito social. Uma linguagem relacional e no universal. Para a autora:
necessrio demonstrar que no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histrico. Para que se compreenda o lugar e as relaes de homens e mulheres numa sociedade importa observar no exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, ento, atravs de uma nova linguagem, na qual gnero ser um conceito fundamental (LOURO, 1997, p. 21, grifo da autora).
Entretanto, Judith Butler (1990), em seu livro Problemas de Gnero: feminismo e subverso da identidade polemiza as teorizaes feministas em vrios aspectos, dentre os quais questiona se por serem pautadas na diferena sexual e por construrem categorias coerentes e estveis, como, por exemplo, a identidade das mulheres, essas teorizaes no estariam produzindo outra regulao. Essa regulao produziria, por sua vez, os mesmos corpos sexuados e generificados. Alm disso, para Butler, talvez essa regulao acabe por produzir sentido categoria mulheres apenas por meio da heterossexualidade (BUTLER, 2008, p. 23). Assim, de acordo com a autora:
Parece necessrio repensar radicalmente as construes ontolgicas de identidade na prtica poltica feminista, de modo a formular uma poltica representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos. Por outro lado, tempo de empreender uma crtica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base nica e permanente, invariavelmente contestada pelas posies de identidade e de anti-identidade que o feminismo invariavelmente exclui (BUTLER, 2008, p. 23-24).
Com vistas a problematizar o conceito do gnero, Butler considera que este no pode ser concebido como uma inscrio da cultura em um corpo previamente sexuado, mas precisa considerar os processos produtivos do prprio sexo. Dessa forma, a autora provoca uma desestabilizao importante na relao causal entre corpo e natureza e entre sexo e cultura. Para Butler (2008, p. 25):
70
Resulta da que o gnero no est para a cultura como o sexo para a natureza; ele tambm o meio discursivo/cultural pelo qual a natureza sexuada ou um sexo natural produzido e estabelecido como pr-discursivo, anterior cultura, uma superfcie politicamente neutra sobre a qual age a cultura (grifos da autora).
Segundo Butler (2008, p. 48), o gnero [...] sempre um feito, ainda que no seja obra de um sujeito tido como preexistente obra. Assim, nas anlises da autora, o gnero se faz a partir de atos performativos. De acordo com a autora:
Significativamente, el gnero es instictuido por actos internamente discontinuos, la apariencia de sustancia es entonces precisamente eso, una identidad construeda, un resultado performativo llevado a cabo que la audiencia social mundana, incluyendo los propios actores, ha venido a creer y a actuar como creencia. Y si el cimiento de la identidad de gnero es la repeticin estilizada de actos en el tiempo, y no una identidad aparentemente de una sola pieza, entonces en la relacin arbitraria entre esos actos, en las diferentes maneras posibles de repeticin, en la ruptura o la repeticin subversiva de este estilo, se hallarn posibilidades de transformar el gnero (BUTLER, 1998, p. 297).
Pode-se compreender que para Butler no existe a priori, em termos do gnero, isto , o gnero feito e refeito por meio da reiterao performativa de normas regulatrias. Essa reiterao se d atravs de uma operao lingustica a qual Jacques Derrida denominou de citacionalidade. A citacionalidade consiste em uma repetio insistentemente promovida por meio de diversos mecanismos. Pensar sobre essa operao suscita uma compreenso dos processos pelos quais os discursos produzem os efeitos daquilo que nomeiam, isto , o significado de ser menina ou menino dever ser reiterado o tempo todo. Ao longo de nossas vidas devemos aprender exatamente o que ser uma menina ou um menino, em um ato de citao contnua. nesse processo de atos performativos de gnero que os corpos se produzem generificados e assumem esse gnero em interpretaes temporais (BUTLER, 2000). Ainda para a autora:
Pese al carcter penetrante del patriarcado y la frecuencia con que se usa la diferencia sexual como distincin sexual operativa, no hay nada en un sistema binario de gnero que est dado. Como campo corporal o del juego cultural, el gnero es un asunto fundamentalmente innovador, aunque est clarsimo que se castiga estrictamente cuestionar el libreto actuando fuera del turno o con una improvisacin no autorizada. El gnero no est pasivamente inscrito 71
sobre el cuerpo, y tampoco est determinado por la naturaleza, la lenguaje, lo simblico o la apabullante historia del patriarcado. El gnero es lo que uno asume, invariablemente, bajo de coaccin, a diario y incesantemente, con ansiedad y placer, pero tomar errneamente este acto continuo por un dato natural o lingstico es renunciar al poder de ampliar el campo cultural corporal con performances subversivas de diversas clases (BUTLER, 1998, p. 314).
Dessa forma, o mapa fixo do que significa ser mulher ou homem foi esquadrinhado por discursos e prticas que ainda hoje se constituem em referenciais. Nesse sentido, discursos e prticas produzem efeitos de poder e criam posicionamentos tambm para as/os transexuais. Esses sujeitos, provavelmente, jamais se encaixaro nas relaes de poder que envolvem e enredam os dois sexos ou os dois gneros. A matriz de inteligibilidade cultural que constri corpos, sexos, gneros e desejos por meio da heterossexualidade concede carter de viabilidade aos constructos produzidos no interior da norma. Isto se d antes mesmo desses corpos serem designados como humanos. Segundo Butler (2000, p. 160-161):
A atividade dessa generificao no pode, estritamente falando, ser um ato ou uma expresso humana, uma apropriao intencional, e no , certamente, uma questo de se vestir uma mscara; trata-se da matriz atravs da qual toda inteno torna-se inicialmente possvel, sua condio cultural possibilitadora. Nesse sentido, a matriz das relaes de gnero anterior emergncia do humano (grifos da autora).
Assim, pode-se compreender que antes mesmo de serem considerados como humanos, os sujeitos so sexuados e generificados. Entretanto, na esteira da prpria norma regulatria que surgem possibilidades de escape e de rematerializao dos corpos, sexos, gneros e desejos (BUTLER, 2000). Nesse sentido, para a autora:
[...] o sexo produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiterao. Como um efeito sedimentado de uma prtica reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e contudo, tambm, em virtude dessa reiterao, que fossos e fissuras so abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construes, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que no pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Esta instabilidade a possibilidade desconstitutiva no prprio processo de repetio, o poder que desfaz os prprios efeitos pelos quais o sexo estabilizado, a possibilidade de colocar a 72
consolidao das normas do sexo em uma crise potencialmente produtiva (BUTLER, 2000, p. 163-164, grifos da autora).
Essa crise produtiva da norma regulatria inventa meios para que performances subversivas de gnero aconteam. A transexualidade, por ser uma experincia que se materializa pela ambiguidade, acaba por borrar as fronteiras do que se entende por feminino e masculino, produzindo feminilidades em corpos masculinos ou vice-versa. Pensar em corpos construdos como femininos, com pnis e que se colocam no mundo de forma feminina, desestabiliza algumas das certezas produzidas pelas redes de poder-saber, em especial, naquilo que se refere diferena sexual e a prtica heterossexual naturalizada. Se for somente a partir da diferena sexual que feminino e o masculino tornam-se inteligveis, a experincia transexual, analisada por esse prisma, torna-se invivel, impensvel, perturbadora. Para Berenice Bento (2008, p. 18):
Diante da experincia transexual, o[/a] observador[/a] pe em ao os valores que estruturam os gneros na sociedade. Um homem de batom e silicone? Uma mulher que solicita uma cirurgia para tirar os seios e o tero? Mulheres biolgicas que tomam hormnios para fazer a barba crescer e engrossar a voz? Ela ele? Ele ela?
Dessa forma, essa experincia parece adquirir sentido apenas quando pensada para fora dos padres binrios, pois protagoniza o impensvel em termos de sexo e de gnero feminino e masculino. Assim, o que est em jogo na experincia transexual a prpria humanidade, uma vez que os processos de construo dos corpos, gneros e desejos de transexuais propem uma desordenao do mundo generificado, ao se constiturem como corpos abjetos. Para Butler (2000, p. 161):
Ns vemos isto mais claramente nos exemplos daqueles seres abjetos que no parecem apropriadamente generificados; a sua prpria humanidade que se torna questionada. Na verdade, a construo do gnero atua atravs de meios excludentes, de forma que o humano no apenas produzido sobre e contra o inumano, mas atravs de um conjunto de excluses, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulao cultural. Portanto, no suficiente afirmar que os sujeitos humanos so construdos, pois a construo do humano uma operao diferencial que produz o mais e o menos humano, o inumano, o humanamente impensvel. Esses locais excludos vm a limitar o humano com seu exterior constitutivo, e a assombrar 73
aquelas fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbao e rearticulao (grifos da autora).
As experincias transexuais por localizarem-se na fronteira, no ambguo e entre os gneros e os corpos possveis e viveis, so ininteligveis, isto , impensveis. So nomeadas como aberraes e engrossam as estatsticas de crimes de segunda importncia nas investigaes policiais, ou seja, valem menos do que outras vidas que se encaixam nos padres da heteronormatividade, ou em outras palavras, da heterossexualidade como norma (BENTO, 2008). So corpos que no importam e podem ser descartados sem maiores questionamentos. Mulheres e homens que produzem a transexualidade e fabricam seus corpos por meio de atos performativos subversivos e questionam a norma heterossexual tornam-se seres inviveis, inumanos, corpos abjetos (BUTLER, 2000). Embora as teorizaes sobre a categoria do gnero sejam indispensveis para a discusso sobre as constituies dos padres de feminino e masculino que inventaram o modelo de sociedade no qual estamos todas e todos inseridas/os, talvez seja relevante pensar alm. Importa compreender que tanto a cuidadosa fabricao de identidades femininas em corpos masculinos quanto a construo de identidades normativas, na qual se pressupe uma relao causal entre corpo, sexo, gnero e desejo, produzem uma cpia da cpia. Judith Butler (2008) analisou a performatividade parodstica de gnero nos processos de fabricao empreendidos pelas drags. Nessa anlise, a autora enfatizou a performance. Para a autora:
No lugar da lei da coerncia heterossexual, vemos o sexo e o gnero desnaturalizados por meio de uma performance que confessa sua distino e dramatiza o mecanismo cultural da sua unidade fabricada. [...] trata-se de uma produo que, com efeito isto , em seu efeito , coloca-se como imitao. [...] No lugar de uma identificao original a servir como causa determinante, a identidade de gnero pode ser reconcebida como uma histria pessoal/cultural de significados recebidos, sujeitos a um conjunto de prticas imitativas que se referem lateralmente a outras imitaes e que, em conjunto, constroem a iluso de um eu de gnero primrio e interno marcado pelo gnero, ou parodiam o mecanismo dessa construo (BUTLER, 2008, p. 196-197, grifos da autora).
Ao pensar na experincia transexual e em outras que subvertem a ordem generificada do mundo a partir de um dilogo com as teorizaes sobre gnero pode-se questionar, com Butler (2008), se as categorias produzidas pelo gnero no 74
fixam o pensamento na lgica binria e hierrquica que se propem a superar, naturalizando de outra forma o corpo, o sexo, o gnero e o desejo. Em se tratando da experincia da transexualidade, importante tencionar o conceito de gnero. Esse conceito, apesar de fundamental, no suficiente para que se possa pensar os corpos e identidades analisados por esta pesquisa. Assim, poder-se-ia pensar sobre a produo das mulheres transexuais que participaram dessa pesquisa que, embora se esforcem para fabricar seus corpos e identidades baseadas na lgica heterossexual, jamais se constituiro em mulheres abarcadas pela categoria do gnero. Ainda que ingiram hormnios femininos, possuem pnis, uma vez que no so cirurgiadas ( exceo de Mait) e tm um nome masculino nos registros oficiais 61 , elementos que as ligam indesejada subjetividade masculina. Nesse sentido, talvez pela teoria da performatividade dos gneros proposta por Judith Butler, possa-se compreender a produo realizada pelas/os transexuais. Para a autora, todas as prticas e discursos so performticos, ou seja, no h um a priori ou uma essncia quando se pensa em sexo, em gnero e em desejo. Ao contrrio, as performances de gnero possibilitam um deslize da compreenso do sexo como constructo biolgico e uma compreenso performativa desse mesmo sexo, bem como do gnero (BUTLER, 2008). Com isso, importa perceber que no h sentido na consolidao dos sujeitos fixos, como mulher, mulheres, homem ou homens, bem como travesti e transexual. Cada subjetividade construda consiste em uma performance.
2.4 O dispositivo da heterossexualidade
O imperativo heterossexual em funcionamento pode ser pensado tambm como um dispositivo que engendra prticas discursivas e no discursivas com vistas a produzir a dominao por meio do controle dos corpos, conforme problematizou Foucault (1993), a respeito dos dispositivos. Esse dispositivo a heterossexualidade
61 importante lembrar que em relao ao nome, apenas Carla e Mait conseguiram alterar seus nomes e designao do sexo no documento de identificao, por meio de processo judicial. Os outros sujeitos entrevistados para a pesquisa utilizam para fins legais nomes civis masculinos (Rafaelly, Thas, Andria Cristina, Dorothea) e feminino (Andr Lucas). Todas as participantes do grupo de discusso tambm utilizam nomes civis masculinos. 75
foi tomado como um dos deslocamentos do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1988). Nessa dissertao, a heterossexualidade foi tomada no somente como uma prtica sexual, mas como um regime de poder que desloca as categorias feminino e masculino para o campo poltico, conforme proposto por Monique Wittig (1977; 2001). Para Wittig, a heterossexualidade a matriz do poder que produz os corpos e os sujeitos sexuados. Pensar a heterossexualidade dessa forma significa compreender que antes de ser uma destinao dos corpos, inscreve-se nos corpos a partir de uma reiterao contnua e construda como natural. Isto , os discursos e as prticas empreendidas para a produo do gnero e da sexualidade objetivam a produo de corpos e subjetividades heterossexuais (WITTIG, 1977; 2001). Tnia Navarro Swain (2002) analisa, em um artigo, os importantes deslocamentos provocados nas teorizaes feministas pelo pensamento de algumas tericas que se propuseram a entender a heterossexualidade de forma desnaturalizada. Assim, segundo Swain (2002, p. 26):
Adrienne Rich propunha, nos anos 80, a anlise da heterossexualidade enquanto instituio, como um sistema complexo de imposies, de leis, de controle, nas esferas do poltico, religioso ou jurdico. Os corpos das mulheres so, assim, delimitados em seu desejo e prticas sexuais atravs dos ritos de iniciao, dos tabus e dos interditos que restringem sua mobilidade, suas tendncias, a erotizao de seus gestos fora da esfera do masculino. 62
A instalao de um regime de heterossexualidade, construda como a norma social ideal em termos de sexo, gnero e desejo, tambm foi analisada por Butler (2008) em suas teorizaes. Para a autora, o processo de construo da heterossexualidade produziu uma matriz de inteligibilidade cultural:
[...] [a matriz heterossexual consiste na] grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os corpos, gneros e desejos so naturalizados. [...] [essa matriz caracterizada por um] modelo discursivo/epistemolgico hegemnico da inteligibilidade do gnero, o qual presume que para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fmea), necessrio haver um sexo estvel, expresso por um gnero estvel, que definido oposicional e hierarquicamente por meio da prtica compulsria da heterossexualidade (BUTLER, 2008, p. 215-216).
62 Para mais sobre o pensamento de Adrienne Rich, consultar: RICH, Adrienne. La countrainte l htrosexualit. In: Le existence lesbienne. Nouvelles Questtions Fministes. mar. n. 01. 1981. 76
Importa compreender que essa matriz heterossexual investe, por meio de redes de saber-poder, tanto sobre os corpos construdos no interior da norma que, com isso, adquirem algum sentido, quanto naqueles fabricados em seu exterior. Para Bento (2008) esse investimento se d pela ao de um aparato de controle e produo detalhada das normas regulatrias heterossexuais. Segundo a autora, [n]ascemos e somos apresentados a uma nica possibilidade de construirmos sentidos identitrios para nossas sexualidades e gneros. H um controle minucioso na produo da heterossexualidade (BENTO, 2008, p. 33). Dessa forma, poder-se-ia compreender que somos todas e todos alvos de investimento desses mecanismos de poder que visam a produo da heterossexualidade hegemnica como nica possibilidade vivel e inteligvel de ser e estar no mundo. Para Butler, a heterossexualidade como matriz de significao de corpos, gneros e desejos realiza um movimento duplo, em que produz os corpos que podem ser considerados sujeitos, como tambm os que no o so. Esses processos de produo encontram-se articulados, ou seja, na produo do corpo- gnero-desejo inteligvel, so produzidos os corpos externos ao ideal regulatrio. Ou, em outras palavras, no heterossexuais so fundamentais. Segundo Butler (2000, p. 155):
Esta matriz excludente pela qual os sujeitos so formados exige, pois, a produo simultnea de um domnio de seres abjetos, aqueles que ainda no so sujeitos, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domnio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas inspitas e inabitveis da vida social, que so, no obstante, densamente povoadas por aqueles que no gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do inabitvel necessrio para que o domnio do sujeito seja circunscrito (grifos da autora).
Assim, se produz tambm, por meio da reiterao da heterossexualidade, uma territorializao em que corpos normatizados ocupam o centro e os demais, outros espaos. Nesse sentido, para Swain (2002, p. 18):
A utilizao da categoria gnero e a naturalizao da heterossexualidade delimitam a legitimidade de seus espaos discursivos; tudo que ultrapassa as margens desviante e apresentado como tal. Desta zona de sombra desabrocha o que eu chamaria de prticas patognero, as que recebem o estigma da doena, da vergonha, da inverso da ordem natural do mundo. 77
na esteira daquilo que Swain define como patognero que se materializam as/os transexuais: corpos e gneros da experincia transexual questionam os padres heteronormativos. Talvez por no se encaixarem nas definies desses padres que, para Berenice Bento, limitam as possibilidades de interpretao do gnero. Segundo a autora:
Os gneros inteligveis obedecem seguinte lgica: vagina-mulher- feminino versus pnis-homem-masculino. A heterossexualidade daria coerncia s diferenas binrias entre os gneros. A complementaridade natural seria a prova de que a humanidade necessariamente heterossexual e que os gneros s tm sentido quando relacionados s capacidades inerentes de cada corpo. [...] Os gneros inteligveis esto condicionados heterossexualidade e esta precisa da complementaridade dos gneros para justificar-se como norma (BENTO, 2008, p. 35).
Importa compreender que as/o transexuais/l entrevistadas/o para essa pesquisa realizam um esforo para se construrem como heterossexuais. Isso se evidenciou considerando as sete entrevistas realizadas, das quais dentre as entrevistadas apenas Dorothea se reconheceu com bissexual. Todas as demais mulheres transexuais, bem como Andr Lucas, reconheceram-se como heterossexuais. Esse auto-reconhecimento tambm apresentou contornos expressivos no grupo de discusso no qual, de um total de dez participantes, apenas Perla apresentou-se como bissexual. Nesse sentido, vrias falas reiterativas da heterossexualidade normativa foram apresentadas. Essas falas conferem sentido construo da heterossexualidade como norma. Para Rafaelly (E):
Eu sou uma mulher. No me considero menos que mulheres que tem vagina. Eu vou a ambientes normais. Normais que eu quero dizer que no so para o pblico gay, so heterossexuais. Eu levo uma vida totalmente voltada ao padro normal. Porque queira ou no a referncia do mundo masculino e feminino. Tem gente que fala que tem que quebrar esses paradigmas de sexo e gnero, mas no adianta, o padro homem e mulher. E eu tive essa migrao do nascer homem e hoje me reconhecer plenamente como mulher transexual heterossexual, mas uma caminhada.
fundamental, entretanto, entender que embora algumas experincias subvertam e escapem s normas regulatrias do gnero e heterossexualidade 78
compulsria, essa fala de Rafaelly 63 representativa de outras tambm produzidas para a pesquisa. Essas falas, alm de explicitarem o funcionamento do dispositivo da heterossexualidade, evidenciam tambm sua articulao com o binmio normalidade/anormalidade. Assim, poderia se pensar sobre as experincias transexuais tanto subversivas porque desafiam as normas de gnero como tambm domesticadas, pois se submetem s mesmas normas. Essa representatividade de construes heteronormativas com vistas a atender aos imperativos das normas regulatrias de sexo-gnero pode instrumentalizar uma reflexo sobre a construo desses corpos e gneros como heterossexuais. Para Judith Butler (2008, p. 38), [o]s gneros inteligveis so aqueles que, em certo sentido, instituem e mantm relaes de coerncia e continuidade entre sexo, gnero, prtica sexual e desejo (grifo da autora). Transexuais aqui pesquisadas/o relataram um enorme empreendimento de construo do gnero identificado e a maior parte delas/e direcionou essa construo rumo a um projeto de heterossexualidade, ou seja, de reconhecerem-se como heterossexuais na tentativa de assegurar um grau de inteligibilidade para esse corpo. Quando transexuais se reconhecem como bissexuais e homossexuais tornam-se sem qualquer possibilidade de serem inteligveis pelas regras de gnero e sexo. Pode-se pensar, aqui, que a aproximao com a heteronormatividade importante para a maioria das experincias analisadas nessa dissertao. Em um mundo sexuado e generificado, produzido em meio ao funcionamento do dispositivo da heterossexualidade, as possibilidades de multiplicidade dos desejos encontram-se subsumidas. Nesse sentido, para Swain (2002, p. 16):
As representaes hegemnicas esteiam sua posio de poder e sua legitimidade sobre sbios discursos que escondem, de fato, os fundamentos externos de seu poder sobre a realidade. Este o caso da naturalizao do binrio heterossexual. Os paradigmas de gnero e a heterossexualidade fazem parte da homogeneizao da
63 importante analisar que no documentrio Ser Mulher (2007, 50min, Curitiba) do qual Rafaelly participou, ela aparece em uma cena com um beb de uma vizinha nos braos. Em outra cena, ela, casada na poca, aparece misturando uma massa de bolo e relatando que se orgulha de ter conquistado seu marido pelo estmago. As construes de mulheres transexuais parecem se dar na direo oposta das conquistas dos movimentos feministas, pois elas, de forma geral, pautam-se pela submisso feminina masculina. Em uma de nossas conversas, Rafaelly comparou as mulheres transexuais s mulheres que nasceram com vagina, dizendo que os homens teriam maiores vantagens ao se relacionar com transexuais porque elas no menstruam, no tm tenso pr-menstrual e desejam ficar em casa, cuidando dos afazeres domsticos enquanto os maridos trabalham para sustent-las. 79
realidade social e do carter de evidncia que encobre a erotizao obrigatria do sexo biolgico generizado. Mesmo neste incio de milnio, questionar a heterossexualidade problemtico: em vista da diferena fsica dos caracteres sexuais entre fmea e macho e da fora das representaes sociais, que exigem a correspondncia exata gnero/sexo, a multiplicidade do desejo obscurecida e sobretudo domesticada.
Assim, na lgica heteronormativa, pressupe-se que, para um corpo trans feminino cirurgiado para o qual foi construda uma neovagina, a possibilidade de prtica sexual ser restrita a penetrao vaginal por um homem heterossexual. Nesse pressuposto, mulheres transexuais cirurgiadas, lsbicas ou bissexuais so ininteligveis tanto para o senso comum, que perguntar o porqu da cirurgia e das transformaes todas, como para o discurso mdico, que tem como objetivo o retorno norma heterossexual. A multiplicidade do desejo na experincia da transexualidade impensvel. Quando mulheres e homens transexuais afirmam-se como bissexuais, lsbicas ou gays, a impossibilidade de compreenso se instaura de forma contundente. A transexualidade no heteronormativa desestabiliza por completo a matriz heterossexual de entendimento dos sexos e dos gneros. Refletir sobre a transexualidade lsbica, gay e bissexual desloca o pensamento. De acordo com Berenice Bento, esse deslocamento necessrio considerar outra lgica de pensamento que no lgica binria tendo em vista que os binarismos limitam as possibilidades do pensamento. Nesse sentido, para a autora:
Para muitos profissionais de sade, responsveis em elaborar o relatrio com o diagnstico, impensvel que pessoas faam a cirurgia de transgenitalizao e se considerem lsbicas ou gays. Quando uma pessoa que j vive o deslocamento entre o corpo e o gnero (sou uma mulher num corpo equivocado) e tem como objeto do desejo uma pessoa do mesmo gnero que o seu, produz-se um outro deslocamento. [...] Ler a sexualidade pela lente do gnero, supor o masculino e feminino como expresses da complementaridade do sexo, ou que as transformaes corporais realizadas pelas pessoas transexuais so os ajustes necessrios para se tornarem heterossexuais, considerar o binrio como modelo nico para expressar as construes das identidades (BENTO, 2008, p. 46, grifos da autora).
Os investimentos do dispositivo da heterossexualidade iniciam-se antes do nascimento e acompanham a vida dos sujeitos. A primeira instituio a operar por 80
esse dispositivo a famlia, mecanismo no qual ainda hoje ter uma filha lsbica ou um filho gay, com raras excees, representa um problema ou motivo de decepo. Assim, o regime de verdade da heteronormatividade 64 estabelecido como uma obrigao, isto , uma condio sem a qual se torna impossvel estar no mundo. A heterossexualidade compulsria fortalece o enfoque da inteligibilidade cultural no corpo, reafirmando que para existirem ou possurem algum lugar nesse mundo generificado, transexuais femininas precisam fazer a cirurgia de transgenitalizao 65 , transformando o pnis em neovagina para as prticas heterossexuais. A lgica do heteroterrorismo, como bem denominou Bento (2008, p. 31) propiciou, juntamente com a patologizao da transexualidade 66 , um entendimento de que transexuais precisam das cirurgias de redesignificao 67
sexual para poderem exercer a sexualidade correta, ou seja, a heterossexual. A teoria da performatividade de gnero de Judith Butler possibilita uma compreenso no essencializada, tanto do sexo quanto do gnero. Para a autora no existe um corpo e uma subjetividade feminina ou masculina a priori. No h um modelo a ser imitado. Todas as situaes sexuadas e generificadas so performativas, mesmo as mais internas norma (BUTLER, 2008). Assim, para a autora:
[...] la aparente copia no se explica en referencia a una origen, sino que el origen se considera tan performativo como la copia. A travs de la performatividad, las normas de gneros dominantes y no dominantes se equiparan. Sin embargo, algunas de esas realizaciones performativas reclaman el lugar de la natureza o el lugar de la necesidad simblica, y lo hacen slo obstruyendo las formas en que estn performativamente establecidas (BUTLER, 2001, p. 11).
Com isso, pode-se compreender que a performatividade dos gneros suprime a distncia entre a experincia heteronormativa e a no heteronormativa
64 Para Berenice Bento (2008, p. 40), [p]or heteronormatividade entende-se a capacidade da heterossexualidade apresentar-se como norma, a lei que regula e determina a impossibilidade de vida fora dos seus marcos. 65 A cirurgia de transgenitalizao feminina consiste na produo da neovagina com os tecidos externos do pnis. Nessa cirurgia alguns pedaos de tecido do escroto so utilizados para a produo dos grandes e dos pequenos lbios. O clitris feito com um pedao da glande (BENTO, 2006, p. 50-51). 66 A patologizao da experincia transexual consistiu em um movimento articulado por regimes de saber-poder ao longo da histria, que como efeito principal produziu o sujeito transexual como um doente mental (BENTO, 2008, p. 85-93). 67 Segundo Berenice Bento, [r]edesignificao o nome adotado oficialmente pela HBIGDA para as intervenes cirrgicas nos/nas transexuais. Tambm usual na esfera mdica a expresso mudana de sexo". (2006, p. 48, grifo da autora). Nessa dissertao, utilizarei cirurgias de transgenitalizao por entender que este o termo que mais se aproxima da afirmao dos corpos e das subjetividades fabricadas pelas/os transexuais. 81
porque transforma ambas em perfomances, isto , imitaes de alguma coisa que nunca existiu como tal.
2.5 O dispositivo da transexualidade
O dispositivo da transexualidade, segundo Bento (2006, p. 136), [...] no algo homogneo; seus saberes internos formam um conjunto heterogneo, que busca sua eficcia por vrios caminhos. Assim, esse dispositivo constitui-se tambm como um deslocamento do dispositivo da sexualidade. A partir do funcionamento do dispositivo da transexualidade, a prpria transexualidade inventada, em meio a um diagnstico e tratamento especficos. Esse processo de inveno resulta na construo de um personagem, a/o verdadeira/o transexual e na patologizao da experincia. Para a autora:
A experincia transexual um dos desdobramentos do dispositivo da sexualidade, sendo possvel observ-la como acontecimento histrico. No sculo XX, mais precisamente a partir de 1950, observa-se um saber sendo organizado em torno dessa experincia. A tarefa era construir um dispositivo especfico que apontasse os sintomas e formulasse um diagnstico para os/as transexuais. Como descobrir o verdadeiro transexual? (BENTO, 2006, p. 132, grifos da autora).
importante ressaltar que antes de 1950 no existiam definies ou caracterizaes especficas para transexuais, isto , no havia diferenciao entre transexuais, travestis e homossexuais. A inveno do dispositivo da transexualidade se deu por meio da proliferao de publicaes mdicas sobre o tema. Embora vrias reas de produo de conhecimento tenham se voltado a essa experincia, os trabalhos publicados podem ser agrupados sob os referenciais de uma vertente da psicanlise e da biologia (BENTO, 2006). Os saberes produzidos por esse setor da psicanlise e pela biologia sobre a experincia transexual funcionaram juntos, produzindo poder e controle, na criao do diagnstico da/o transexual verdadeira/o. O conjunto dos saberes produzidos pela psicanlise amparou-se tanto nas concepes do psicanalista Robert Stoller 68 e, como na biologia, nas teorizaes do
68 De acordo com Bento: O livro de Stoller, A experincia transexual, uma das referncias obrigatrias para os profissionais que se aproximam da transexualidade. Escrito em 1975, ele aponta como um dos principais indicadores para a possibilidade de uma [...] sexualidade anormal (homossexual, bissexual, travesti e transexual) o fato de a criana gostar de brincadeiras e de se vestir com roupas do outro gnero (BENTO, 2006, 82
endocrinologista Harry Benjamin. A articulao desses saberes constitui redes de saber-poder e produz os personagens que do vida patologizao da experincia transexual. H o transexual stolleriano e o transexual benjaminiano, conforme denominou Bento (2006, p. 133):
Ambos os autores [Stoller e Benjamin] definiro critrios para se diagnosticar o verdadeiro transexual. Os critrios foram estabelecidos levando em conta caractersticas inferidas como compartilhadas por todo/a transexual, o que propiciar dois desdobramentos umbilicalmente ligados: (1) a definio de protocolos e orientaes aceitas internacionalmente para o tratamento de pessoas transexuais e (2) a universalizao do/a transexual (grifo da autora).
As teorizaes de Robert Stoller localizam a verdade sobre a/o transexual na infncia, especialmente na relao da criana com a me. Para Stoller, o tratamento teraputico intenso realizado logo no primeiro ano de vida de crianas afeminadas poderia desenvolver a masculinidade. No caso de pacientes adultos, a terapia deveria agir para que elas/es deixassem de sentir repulsa pelo rgo sexual. Com isso, o tratamento obtinha sucesso, uma vez que as/os desviantes passariam de uma condio de aberrao sexual para a de perverso, pois se tornariam homossexuais ou bissexuais (BENTO, 2006, p. 137-138). O objetivo do tratamento stolleriano consistia em fazer com que transexuais desistissem da cirurgia de redesignao sexual, considerada por muitos psicanalistas como mutilaes (BENTO, 2008). O diagnstico do transexual stolleriano pauta-se pelo dimorfismo sexual e pela heterossexualidade. A ao do terapeuta deveria se dar no sentido de restabelecer a ordenao coerente entre as performances de gnero, a sexualidade e a subjetividade que constituem a identidade do sujeito (BENTO, 2006). Nas teorizaes de Harry Benjamin 69 o sexo apresenta-se subdividido em: sexo cromossomtico (tambm denominado de gentico), o gondico, o fenotpico, o
p. 136, grifo da autora). Ainda de acordo com a autora, as teses de Stoller fundamentam-se nas teorizaes de Sigmund Freud (1976), especialmente as desenvolvidas acerca do complexo de castrao, para o qual a mulher apresenta inveja do pnis. Essa inveja desloca-se e o desejo pelo pnis substitudo pelo desejo por um beb. Assim, para Freud, a maternidade e a heterossexualidade constituem-se em destinos para uma feminilidade pautada pela normalidade. (BENTO, 2006, p. 139-140). Para mais sobre essas teses de Freud, consultar: FREUD, Sigmund. Feminilidade. In: ______. Obras completas. v. 12. Rio de Janeiro. Imago. 1976. 69 Harry Benjamin, mdico alemo, radicado nos Estados Unidos da Amrica, publicou suas teses sobre transexualidade na obra The Transsexual Phenomenon, em 1966 (BENTO, 2006, p. 40). Segundo Bento, para Benjamin, a verdade ltima dos sujeitos deveria encontrar-se na biologia dos corpos, especialmente nos 83
psicolgico e o jurdico. O sexo cromossomtico determina o sexo e o gnero, sendo que dois cromossomos X designam as mulheres e um cromossomo X e um Y designam os homens (BENTO, 2006). Assim, para Benjamin, a normalidade se expressava pela harmonia entre os diversos sexos. O comportamento que se deslocasse em relao a qualquer um desses sexos representaria um mau funcionamento do corpo. A heterossexualidade articularia os vrios sexos em um e a sexualidade foi tambm relacionada procriao. Para Harry Benjamin, a nica possibilidade de terapia para as/os transexuais verdadeiras/os consistia na cirurgia de redesignificao sexual, considerando que esta poderia evitar o suicdio. Nesse sentido, o mdico defendia ainda que as psicoterapias eram inteis para transexuais de verdade 70 (BENTO, 2006; 2008). O diagnstico do transexual benjaminiano foi construdo por meio de um conjunto de indicativos constantes na vida de transexuais atendidos em seu consultrio. Esses indicativos transformaram-se em convenes internacionais. Verdadeiros tratados estabelecem os critrios pelos quais o saber mdico passou definir o transexual verdadeiro e, portanto, quem pode ou no adequar o seu corpo. Assim, foi produzido um mapa fixo, no qual determinadas caractersticas definem a identidade transexual. Com isso, deflagrou-se um processo de produo do transexual universal. Foi construdo um estatuto para a transexualidade, diferenciando o verdadeiro transexual de homossexuais e de travestis, alm de diagnostic-lo e de determinar o tratamento adequado. Nesse sentido, para Bento (2006, p. 151):
A transexualidade ganhou um estatuto prprio e um diagnstico diferenciado. Segundo Benjamin, alguns pesquisadores acreditam que as duas situaes, travestismo e transexualismo, devem separar-se claramente, principalmente com relao a seu sentimento sexual e seus pares sexuais eleitos (objeto de eleio). O travesti dizem um homem, sente-se como homem, heterossexual e simplesmente quer vestir-se como uma mulher. O transexual se sente uma mulher (aprisionada em um corpo de homem) e se sente atrado por outros homens. Isso faz dele um homossexual se seu sexo for diagnosticado de acordo com seu corpo. No entanto, ele se autodiagnostica segundo seu sexo psicolgico feminino. Ele sente
hormnios. Para mais, consultar: BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. The Julian Press. INC Publishers, 1966. 70 Para mais consultar: BENJAMIN, Harry. Transvestism and Transexualism. In: Internacional Journal of Sexology. v. 7. n. 1. 1953. 84
atrao sexual por um homem como heterossexual, ou seja, normal (grifos da autora).
Assim, importa compreender que, enquanto as teorizaes de Stoller produziram a transexualidade como uma anomalia, as teses de Benjamin a construram como uma enfermidade. A ao articulada dessas duas posies produziu, no mbito do dispositivo da transexualidade, a patologizao da experincia (BENTO, 2006; 2008). Atualmente, o diagnstico da transexualidade fornecido pelos profissionais das cincias psi, isto , psiclogos, psiquiatras e psicanalistas (BENTO, 2008). Para essas/es profissionais, o autodiagnstico pode representar uma ameaa em relao deciso sobre o destino das/dos pacientes transexuais, considerando que estes sairiam do seu controle (BENTO, 2006). J para as/os profissionais que se amparam no pensamento benjaminiano, o autodiagnstico legtimo (BENTO, 2006). A partir da dcada de 1960 os discursos tericos e as prticas regulatrias sobre os corpos de transexuais adquiriram visibilidade e foram colocadas em funcionamento. Isso se deu, especialmente, atravs da criao dos Centros de Identidade de Gnero nos Estados Unidos, instituies que se destinavam a atender, especificamente, s/aos transexuais (BENTO, 2006). O sujeito transexual surge na histria como um doente mental. Segundo Bento (2008, p. 77), [a] sua incluso no Cdigo Internacional de Doenas, em 1980, foi um marco no processo de definio da transexualidade como uma doena. Os regimes de saber-poder definiram o transexual como uma entidade conceitual e como o sujeito que poder realizar a cirurgia de transgenitalizao, ou seja, migrar do gnero atribudo pelo nascimento para o gnero identificado por meio da interveno cirrgica. Definiram tambm a organizao de grupos mdicos em associaes internacionais que visam construir um diagnstico especfico para as/os transexuais. E ainda, definem um investimento por parte do saber mdico na produo de um tratamento exclusivo para a transexualidade 71 . De acordo com
71 O diagnstico e o tratamento de transexuais ainda hoje se fundamentam principalmente em dois documentos oficiais. Esses documentos consistem nas Normas de Tratamento da Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association HBIGDA e, no Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais (DSM), da Associao Psiquitrica Americana (APA) e contm as convenes para o diagnstico detalhado de transexuais, bem como alternativas para o tratamento. A Associao Psiquitrica Americana incluiu a transexualidade no item Transtornos de Identidade de Gnero, no captulo dedicado aos Distrbios de Identidade de Gnero, a partir da sua terceira verso (DSM III), no ano de 1980. interessante lembrar que, segundo Berenice Bento, a transexualidade foi inserida neste documento no mesmo ano em que a retirada da homossexualidade, realizada em 1975, foi oficializada (BENTO, 2006, p. 48). Outro documento oficial que detalha o diagnstico do sujeito 85
Bento (2006, p. 40), [n]ota-se que prtica e teoria caminham juntas. Ao mesmo tempo em que se produz um saber especfico, so propostos modelos apropriados para o tratamento (grifo da autora). A descrio da transexualidade pelo discurso mdico e das cincias psi como uma patologia, e do indivduo transexual como doente mental corresponde subsuno da experincia do indivduo ao dispositivo da transexualidade. Entretanto, para essa dissertao importou realizar um deslocamento desse foco, considerando que os conflitos estabelecem-se no campo da fixao e da produo de hierarquias do gnero e no no campo da individualidade ou da patologia, como foi definido pelo discurso mdico. Os discursos mdico e das cincias psi a respeito da transexualidade produzem paradoxalmente lugares identitrios, alm de prticas de excluso, isto , prticas que interferem, como apareceu nas narrativas 72 produzidas para essa dissertao, nas histrias de vida de transexuais de forma dolorosa e violenta. Segundo Berenice Bento (2008, p.136):
A patologizao das identidades autoriza, confere poder queles que esto no centro para realizar com as prprias mos a assepsia que deixar a sociedade livre da contaminao. a patologizao das identidades distribuindo humanidade, proferindo sentenas e castigos aos que ousaram romper a lei (grifos da autora).
A cartografia desenhada nesta dissertao demonstrou que transexuais adquirem seu status de sujeito nos tratados mdicos. Nesses contextos, seus corpos constituem-se em objetos de anlise e matria prima para a elaborao de teorias, diagnsticos e classificaes. Desse modo, mdicos, psiclogos, psiquiatras, entre outros/as profissionais da sade aferem, por meio do processo transexualizador 73 , o grau de verdade da transexualidade.
transexual o Cdigo Internacional de Doenas CID, elaborado pela Organizao Mundial da Sade, que nomina a transexualidade, como Transexualismo, identificando-o com o CID 10 (BENTO, 2008, p. 76-77). 72 A anlise das narrativas est presente na Parte 4 dessa dissertao. 73 De acordo com Berenice Bento, o processo transexualizador constitui-se em um conjunto de alteraes corporais e sociais que possibilitam a passagem do gnero atribudo (biologicamente) para o identificado (ao qual o sujeito reconhece seu pertencimento), e pressupe um protocolo a que todas as pessoas transexuais que almejam ser reconhecidas como de outro gnero precisam se submeter. Esse processo compreende: 1. terapia psicolgica (mnimo de 2 anos); 2. terapia hormonal para desenvolver as caractersticas corporais do gnero identificado; 3. teste da vida real em que obrigada/o a usar as roupas do gnero com o qual se identifica durante todo o tempo; 4. testes psicolgicos que buscam aferir se a pessoa transexual no possui outro tipo de transtorno de personalidade; 5. exames de rotina a que essas pessoas devem se submeter. Alm disso, no existe garantia de que a equipe multidisciplinar (formada por psiclogos, psiquiatras, endocrinologista e outras especialidades) que avalia essas pessoas conceda o laudo autorizando a realizao das cirurgias para readequao de sexo. Ou seja, as pessoas transexuais so obrigadas a se curvar equipe multidisciplinar se 86
Os movimentos sociais de travestis e transexuais tambm constroem identidades, entretanto, com base em algumas narrativas produzidas para essa pesquisa, pode-se afirmar que na construo dessas identidades coletivas existe uma reproduo dos discursos mdico e psi, pois nesse lugar que sua experincia ganha inteligibilidade. Alm do discurso mdico e psi, outros lugares so fundamentais na construo da identidade, isto , nas ruas, nas pistas e nas boates de programas sexuais, esses corpos adquirem sentido e lugar de pertencimento. Contudo, os efeitos de poder que engendram os processos de excluso de transexuais so potencializados quando a anlise deslocada para as instituies, a exemplo da escola 74 . As escolas no suportam trabalhar com transexuais, pois empreendem toda uma maquinaria com vistas a estabelecer e reiterar a norma heterossexual. Talvez pelo carter definitivo dessa experincia, pois uma vez iniciado o processo de transexualizao, com a ingesto de hormnios, a colocao de prteses ou a retirada de partes do corpo, no h como retroceder s normas de gnero e sexualidade, estes so sujeitos que escapam eficiente poltica de governo de corpos e subjetividades no funcionamento da maquinaria escolar. Nesse sentido, Maria Rita de Assis Csar (2008, p. 11) problematiza:
Se a presena de alunos e alunas homossexuais e bissexuais dentro da escola j um incmodo, ento, a partir daquela perspectiva, a experincia da transexualidade se torna verdadeiramente insuportvel do ponto de vista da instituio escolar, pois, diante de seus corpos transformados, a fala competente da instituio no v esperana de retorno norma heterossexual. Assim, aquilo que resta o afastamento desses corpos indesejveis, isto a expulso, que hoje se constitui em um elemento importante da evaso escolar.
Na prxima parte dessa dissertao, est presente uma anlise sobre a escola e algumas conexes entre esta instituio e a experincia da transexualidade.
desejam readequar seu corpo para se sentirem em consonncia com sua identidade de gnero (BENTO, 2006, p. 47-50). 74 Uma anlise sobre a escola est presente na Parte 3 dessa dissertao. 87
PARTE 3 ESCOLA E TRANSEXUALIDADE
Essa parte se debrua sobre a escola e traa uma relao com a experincia escolar da diferena e, sobretudo da transexualidade. Parece no ser possvel perguntar sobre relao entre transexuais e a escola antes da metade do sculo XX, pois antes desse perodo transexuais no existiam como sujeitos. 75
Tambm, a instituio escolar entendida aqui como uma inveno do final do sculo XVIII. Desse modo, tanto a escola como a transexualidade so tomadas como construes histricas da modernidade. 76
Para que as narrativas de transexuais sobre a experincia escolar sejam localizadas na instituio escolar, faz-se necessrio uma anlise da escola e de sua construo na modernidade assim como tambm sobre os deslocamentos contemporneos que dizem respeito a essa instituio no presente. Assim, fundamental analisar a inveno da escola como instituio disciplinar e a forma como suas prticas e discursos foram e so engendrados em meio a relaes de saber-poder para a produo de corpos dceis, teis e governveis (FOUCAULT, 2007). Importa tambm compreender os deslocamentos contemporneos sobre a pedagogia do controle, isto , um conjunto de transformaes em meio a rupturas e deslocamentos histricos que no Brasil se deu nos anos de 1990 do sculo XX (CSAR, 2004). No somente na escola, mas tambm nas instituies em geral, essa nova conformao social, denominada por Gilles Deleuze (1992) de sociedade de controle, imbrica as instituies na produo de subjetividades distintas daquelas engendradas pela escola disciplinar da modernidade (FOUCAULT, 1988). Esse captulo est dividido em quatro partes. A primeira parte descreve a escola disciplinar produzida no mbito da sociedade disciplinar. A segunda se ocupa dos deslocamentos contemporneos e localiza a escola atual na sociedade de controle. A terceira analisa a escola por meio da sexualidade e da experincia transexual. Como uma alternativa pedagogia do controle, a quarta parte do
75 Trabalho com a noo de inveno dos sujeitos. Uma anlise mais rigorosa sobre o tema encontra-se na Parte 2 dessa dissertao. 76 De acordo com Veiga-Neto (2007), Foucault chama de Modernidade o perodo histrico aps a Revoluo Francesa (1789). Mas, preciso entender que, para Foucault, modernidade designa menos um perodo da Histria e, mais uma atitude (...) (VEIGA-NETO, 2007, p. 64). 88
captulo traz as teorizaes queer, como possibilidade para pensar as resistncias ao controle. Tais estratgias, de escapar dos controles, implicam em uma compreenso da educao como prtica de liberdade 77 e como um ato poltico de resistncia (CSAR, 2010).
3.1 A escola disciplinar
O conceito de disciplina de Michel Foucault fundamental para se pensar a constituio da escola moderna como instituio disciplinar. As disciplinas consistem em tcnicas de poder que incidem sobre os corpos visando seu domnio detalhado para produzir subjetividades especficas. Segundo o autor:
[e]sses mtodos que permitem o controle minucioso das operaes do corpo, que realizam a sujeio constante de suas foras e lhes impem uma relao de docilidade-utilidade, so o que podemos chamar de disciplinas (FOUCAULT, 2007, p. 118, grifo do autor).
A descoberta do corpo como alvo de poder se constitui em elemento essencial para o exerccio da disciplina (FOUCAULT, 2007). Em sua obra Vigiar e Punir, publicada em 1975, ao analisar historicamente o funcionamento das prises, Foucault elaborou uma importante teorizao sobre as instituies, na qual compreendeu que suas atividades e seus procedimentos tm no corpo-organismo, isto , no corpo individual, seu alvo privilegiado (FOUCAULT, 2007). Importa compreender a disciplina em termos produtivos, ou seja, a disciplina que produz efeitos sobre os corpos de forma ampla, permanente e contnua 78
(VEIGA-NETO, 2007b).
77 Segundo Edgardo Castro (2009, p. 246), [a] liberdade foucaultiana no da ordem da liberao, mas da constituio. [...] no a propriedade de uma substncia, mas uma forma que tem e teve diferentes configuraes histricas. [...] Para formular essa idia, Foucault serve-se da expresso prticas de liberdade. [...] Mais exatamente, o conceito foucaultiano de liberdade surge com base na anlise das relaes entre os sujeitos e na relao do sujeito consigo mesmo, as quais se denominam, em termos gerais, poder. E isso de dupla maneira: nas relaes de poder que se estabelecem entre diferentes sujeitos e nas relaes de poder que o sujeito pode estabelecer consigo mesmo. No primeiro caso, podemos falar de liberdade poltica (em um sentido amplo, no reduzido ao estatal, ao institucional); no segundo, de liberdade tica ou tambm utilizando uma linguagem mais foucaultiana, de prticas de liberdade e de prticas reflexas de liberdade (grifos do autor). 78 Com isso, no se quer dizer que no sistema disciplinar no existiram punies. Entretanto, essas punies ocorreram de uma forma diferente, ou seja, sutil. Essa anatomia-poltica e mecnica do poder foi se constituindo, ao longo dos sculos, de forma difusa em vrias localidades e por isso no deve ser entendida como uma descoberta sbita (FOUCAULT, 2007, p. 119).
89
A escola disciplinar se constituiu de forma lenta, em meio a rupturas, deslocamentos e permanncias. possvel identificar elementos dessa construo desde o sculo XV at o sculo XVIII, quando a escola moderna se consolida. Ao longo desse processo aconteceu uma srie de transformaes importantes que configuraram no surgimento da escola disciplinar. 79 O conjunto dessas transformaes constituiu-se em uma rede de prticas sociais que visava especificamente a disciplinarizao dos corpos das crianas e dos jovens. Embora as transformaes sociais e polticas tenham se dado de formas diferentes e em vrias localidades, o objetivo comum entre elas foi o estabelecimento de uma ordem para as coisas 80 (CSAR, 2004). Assim, a escola foi inventada em meio a um (re)ordenamento do campo pedaggico que imps novas regras aos jogos de poder que se expressaram em vrias frentes 81 . Nessa perspectiva, pode-se refletir sobre estratgias que engendraram a escola moderna como, por exemplo, a inveno do sujeito escolar, ou seja, o aluno 82 . Para Pablo Pineau (2005), a inveno do sujeito pedaggico consistiu em uma especial definio da infncia. Nas anlises do autor,
79 A educao jesuta, no sculo XV; a Didtica Magna de Comenius no sculo XVII (CSAR, 2004); a inveno da infncia normalizada relacionada escolarizao; a separao das crianas, primeiramente dos adultos e depois, entre si, por idade, a partir do sculo XVIII e em especial na segunda metade do sculo XX (NARODOWSKI, 1984); a obra Pedagogia de Immanuel Kant, no sculo XVIII; a conformao do discurso pedaggico moderno (CSAR, 2009); os exames; a arquitetura escolar; dentre outros processos que estabeleceram uma rede de saber-poder para a construo da escola moderna e constituram, dessa forma, uma teia de prticas da sociedade voltadas especificamente disciplinarizao dos corpos das crianas e dos jovens. No farei a anlise detalhada desses processos. A inteno aqui chamar a ateno sobre alguns deles, relacionados mais especificamente com o controle dos corpos das crianas e dos jovens. Uma anlise mais detalhada desses processos pode ser apreciada em Csar (2004), Veiga-Neto (2000; 2006), Pineau (2005), Dussel e Caruso (2003), e Narodowski (1994). 80 A partir de uma histria no linear, essa premissa de ordenao das coisas funcionou como um pressuposto para a constituio da instituio escolar disciplinar como uma inveno, datada do final do sculo XVIII (FOUCAULT, 2007, p. 121; VEIGA-NETO, 2000, p. 12; PINEAU, 2005, p. 42). 81 Pablo Pineau (2005) elabora uma importante reflexo sobre como a escola triunfou e permanece como uma das maiores construes da modernidade. O autor enumera uma srie de transformaes que atuam como peas para erigir o que se convencionou denominar de escola. Assim, como a inteno aqui explorar a tese foucaultiana da escola disciplinar, selecionei algumas que desenvolverei de forma sucinta. Entretanto, cito tambm as outras transformaes no menos importantes. Nas anlises de Pineau: Estas piezas son: a) la homologa entre la escolarizacin y otros procesos educativos, b) la matriz eclesistica, c) la regulacin artificial, d) el uso especfico del espacio y el tiempo, e) la pertinencia a un sistema mayor, f) la condicin de fenmeno colectivo, g) la constitucin del campo pedaggico y su reduccin a lo escolar, h) la formacin de un cuerpo de especialistas dotados de tecnologas especficas, i) el docente como ejemplo de conducta, j) una espacial definicin de la infancia, k) el establecimiento de una relacin inmodificablemente asimtrica entre docente y alumno, l) la generacin de dispositivos especficos de disciplinamento, m) la conformacin de currculos y prcticas universales y uniformes, n) el ordenamiento de los contenidos, ) la descontextualizacin del contenido acadmico y creacin del contenido escolar, o) la creacin de sistemas de acreditacin, sancin y evaluacin escolar, y p) la generacin de una oferta y demanda impresa especfica (PINEAU, 2005, p. 31). 82 importante explicitar que aluno no consiste simplesmente em um sinnimo de criana, mas ambos foram inventados, por meio do estabelecimento de regimes de poder-saber. Da mesma forma, vale salientar que o conceito de aluno foi inventado no masculino. As mulheres e meninas, como se pode analisar pelas teses produzidas pelos estudos feministas so sujeitos historicamente invisibilizados da histria da educao. Para mais consultar: LOURO, Guacira Lopes. Gnero, sexualidade e educao: uma perspectiva ps-estruturalista. 8. ed. Petrpolis: Vozes, 1997. 90
primeiramente, na modernidade, teve incio a diferenciao e segregao das crianas por meio das idades. As crianas foram agrupadas em um coletivo que se convencionou denominar de infncia. Esse coletivo passou a ser alvo de diversos saberes que procuravam diferenci-lo objetivamente em relao aos adultos 83 . Essa objetivao construiu a infncia como um campo especfico para a ao educativa. Para Pineau (2005, p. 35):
La infancia comenz a ser interpelada e caracterizada desde posturas negativas: hombre primitivo, buen salvaje, perverso polimorfo, futuro delincuente o loco, sujeto ingenuo, egosta, egocntrico, pasional, etc. As, se aporto a la construccin de su especificidad, diferencindola de la adultez a partir de su incompletud, lo que la convirti en la etapa educativa del ser humano por excelencia. Se construy un sujeto pedaggico, el alumno, y se lo volvi sinnimo de infante normal, y la totalidad de la vida de este nio normal fue escolarizada [...] (grifos do autor).
Depois de inventada e separada por faixa etria, a infncia foi segregada dos adultos e a criana se tornou um sujeito singular no interior do espao e do tempo da educao escolar. A partir de ento as atividades das crianas passaram a ser definidas em funo da escola e das aes escolares. O corpo da criana tornou-se alvo para a ao das disciplinas e da produo dos saberes sobre a infncia 84 . O investimento do poder sobre os corpos se deu de forma a atingir todos os corpos simultaneamente da maneira mais detalhada possvel sem que se anulasse a ao sobre cada corpo 85 .
83 Para uma anlise sobre a inveno da infncia, consultar o importante trabalho: NARODOWSKI, Mariano. Infancia y poder. La conformacin de la pedagoga moderna. Buenos Aires, Aique, 1994. 84 Ainda pensando com Pablo Pineau sobre as estratgias que engendraram a escola, importa compreender que todas as atividades realizadas pelas crianas nesse espao-tempo so educativas e sem possibilidade de escape considerando sua matriz eclesistica de conformao. Para o autor: Todo lo que sucede en las aulas, en los patios, en los comedores, en los pasillos, en los espacios de conduccin, en los sanitarios, son experiencias intrnsecamente educativas a las que son sometidos, sin posibilidad de escape, los alumnos. (PINEAU, 2005, p. 32). 85 Dessa forma, a arquitetura e a organizao espacial dos corpos tornaram-se fundamentais. Para Alfredo Veiga-Neto (2000, p. 13-15): [...] isso implica em que os corpos no estejam dispersos, mas de preferncia submetidos a algum tipo de cerceamento ou confinamento que os torne acessveis s aes do poder. A clausura em tantos aspectos copiada pela escola o exemplo limite desse confinamento. [...] dentro desse confinamento, a distribuio dos corpos deve ser o menos catica, difusa e informe possvel , pois preciso que o poder atinja igualmente a todos. [...] O quadriculamento a melhor imagem para uma distribuio em que a lgica : um lugar para cada corpo e um corpo em cada lugar. [...] A funo de uma quadrcula , em ltima instncia, desempenhada pelo corpo que a ocupa. [...] o que mais importa no tanto o territrio nem o local em termos fsicos ocupados por um corpo, mas, antes, a sua posio em relao aos demais. E desses demais entre si e assim por diante. [...] Assim, o espao no se reduz a um simples cenrio onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do que isso, o prprio corpo que institui e organiza o espao, enquanto o espao d um sentido ao corpo (grifos do autor). 91
No processo de constituio da escola moderna disciplinar no foram somente os corpos a serem disciplinados. A disciplina atingiu tambm os saberes, produzindo os saberes escolares ou a pedagogizao do conhecimento (VEIGA- NETO, 2000). A partir desse processo, deflagra-se um enfrentamento no campo do saber relacionado ao exerccio de poderes, determinando o rearranjo dos prprios saberes. Segundo Julia Varela (1994, p. 89-90):
A partir de finais do sculo XVIII, e em conexo com esse processo de pedagogizao do conhecimento, produziu-se uma nova transformao, que Michel Foucault denominou de disciplinamento interno dos saberes. [...] [Para Foucault, importava] analisar o mltiplo e imenso combate que ento se travou no campo do saber, em relao com a formao e o exerccio de determinados poderes, o que implicou uma reorganizao dos prprios saberes (grifo da autora).
O processo de disciplinarizao dos saberes foi orientado por meio de procedimentos como organizao, classificao, depurao e censura dos conhecimentos, constituindo-se em uma operao moralizadora. Assim, a distino entre corpo e conhecimento na escola disciplinar anulou-se, uma vez que ambos foram disciplinados e moralizados com o intuito de produzir um determinado tipo de sujeito. Esse conjunto de corpos e conhecimentos disciplinarizados engendrou a produo de um sujeito especfico, ou seja, o sujeito anormal (CSAR, 2004, p. 54). Esse deslocamento importante na medida em que articula uma relao imprescindvel para a compreenso da problemtica proposta por essa dissertao, isto , a dicotomia entre normalidade e anormalidade. Nesse sentido, Maria Rita de Assis Csar (2004, p. 54) argumenta que:
De conhecimentos verdadeiros, tal como eram entendidos no sculo XVII, os conhecimentos passaram a ser separados entre morais e amorais, em uma operao que classificou, hierarquizou e excluiu conhecimentos em nome da produo de uma subjetividade normalizada.
A produo dessa subjetividade normalizada pressups um aparato que a tornou possvel, potencializando a observao dos corpos, para vigiar, controlar e separar os indivduos no interior das instituies. Essa vigilncia e controle se efetivaram por meio de uma relao especfica em que as prprias prticas 92
disciplinares e de vigilncia agem de forma a instituir e manter a vigilncia e o controle (VEIGA-NETO, 2007b). No projeto disciplinar, o exame ocupa lugar central. Esse procedimento se constitui, segundo Foucault, por meio de uma espcie de comparao e de um desejo relacionado a uma mdia idealizada no que se refere aos comportamentos e condutas (FOUCAULT, 2007). No interior do regime de saber-poder, por meio do qual se articulam saberes produzidos e prticas regulatrias, o exame a culminao do processo, pois articula as tcnicas de hierarquia que vigia e as da sano que normaliza (FOUCAULT, 2007, p. 154). Na forma de tcnicas, esses saberes e prticas, intentam o controle dos corpos, por meio dos exames. Esse regime pressupe tambm a punio aos indivduos desviantes das regras estabelecidas. Segundo Foucault (2007, p. 152-153):
Em suma, a arte de punir, no regime do poder disciplinar, no visa nem a expiao, nem mesmo exatamente a represso. Pe em funcionamento cinco operaes bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que ao mesmo tempo campo de comparao, espao de diferenciao e princpio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivduos em relao uns aos outros e em funo dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar como base mnima, como mdia a respeitar ou como o timo de que se deve chegar perto. [...] A penalidade perptua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituies disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza (grifo do autor).
Assim, estabelece-se uma diferenciao entre os sujeitos e sua segregao, entre duas dimenses bem distintas e caracterizadas, isto , o normal e o anormal. A diferena passa a ser pertinente como subsdio para a diferenciao e a classificao. Produz-se, dessa forma, uma hierarquia entre os sujeitos fundamentada em uma aproximao ou distanciamento da norma (FOUCAULT, 2007). Instaura-se, com isso, a dicotomia entre normalidade e patologia, que sustenta o funcionamento das instituies disciplinares, propiciando o cumprimento da sua funo de disciplinar e normalizar os sujeitos (CSAR, 2004). O Estado moderno nasce e cresce em meio s transformaes na dinmica do poder, articulando soberania, disciplina e gesto governamental, sendo essa ltima, segundo Veiga-Neto, compreendida como uma nova arte de governamento exercida minuciosamente, ao nvel do detalhe individual e, ao mesmo tempo, sobre 93
o todo social (VEIGA-NETO, 2007b, p. 72). O conceito foucaultiano de governamentalidade fundamental para se pensar esses deslocamentos 86 . As anlises de Foucault, ao tomarem as formas de governar como um objeto de investigao, definiram um domnio de governo em que tais prticas tm a populao como seu objeto, a economia poltica como forma central e os dispositivos de segurana como seu instrumento tcnico essencial (Edgardo CASTRO, 2009). Nessa perspectiva analtica, [...] o poder poltico acabava de assumir a tarefa de gerir a vida (FOUCAULT, 1988, p. 151). Assim, de acordo com Foucault, instalou-se uma tecnologia de dupla face sobre a vida: enquanto o poder disciplinar centrou-se no adestramento do corpo, cerrado nas instituies, a biopoltica 87 centrou-se na regulao da populao. A essa tecnologia o autor denominou de bio-poder (FOUCAULT, 1988, p. 152). A educao, assim como a sade e a habitao, por exemplo, passam, a partir da metade do sculo XVIII, a ser uma preocupao do Estado (DUSSEL e CARUSO, 2003, p. 158). Ernesto Pimentel Filho e Edson Vasconcelos (2007), em um artigo descrevem as formas de atuao da biopoltica, a partir das teorizaes de Michel Foucault:
Essa nova tecnologia no se resume ao homem como corpo, ela se dirige aos fenmenos mais globais, mais gerais. Vai afetar os processos ligados vida, como o nascimento, a morte, a doena, a produo, o casamento. Nesse sentido, no ser a individualizao que se coloca, mas a massificao; no o homem-corpo, mas o homem-ser vivo. Processos como os de natalidade, mortalidade e de longevidade se articulam a uma srie de outros de ordem poltica e econmica, eles sero os principais campos de saber e alvos dessa
86 O conceito de deslocamento utilizado nessa dissertao foi explicitado na Parte 1. 87 O conceito de biopoltica, elaborado por Michel Foucault surge em meio racionalidade poltica do liberalismo (CASTRO, 2009, p. 60). Para Sylvio de Sousa Gadelha Costa (2007): Foucault aborda a governamentalidade, no curso intitulado Nascimento da biopoltica, [ministrado no Collge de France no perodo de 1978-1979, publicado em portugus no ano de 2008] pelo liberalismo, entendido como crtica estratgica de um tipo de arte de governar sedimentada em uma Razo de Estado e pelo neoliberalismo, nos vieses alemo e norte americano. (COSTA, 2009, p. 172-173). Nas anlises de Karla Saraiva e Alfredo Veiga-Neto (2009, p. 188-189) [o] liberalismo, a partir da dcada de 1980, vem sendo ressignificado na forma de neoliberalismo. Como mostrou Foucault, [em seu curso Nascimento da biopoltica, 2008b], o neoliberalismo apresenta deslocamentos importantes em relao ao liberalismo inventado no sculo XVIII. A diferena mais marcante [...] seria que, enquanto no liberalismo a liberdade do mercado era entendida como algo natural, espontneo, no sistema neoliberal a liberdade deve ser continuamente produzida e exercitada sob a forma da competio. O princpio de inteligilibilidade do liberalismo enfatizava a troca de mercadorias: a liberdade era entendida como a possibilidade de que as trocas se dessem de modo espontneo. Para uma anlise sobre a passagem de uma governamentalidade liberal neoliberal, veja-se: GADELHA COSTA, Sylvio. Biopoltica, governamentalidade e educao. Belo Horizonte, Autntica, 2009; NILO, Tiago. Alguns apontamentos sobre a governamentabilidade liberal e/ou neoliberal a partir de Michel Foucault. In: Knesis. Revista Eletrnica da UNESP. Marlia. So Paulo. v. 2. n. 3. abr./2010. p. 345-358. Nessa dissertao, as anlises se centraram na governamentalidade e nas redes de poder-saber inventadas em meio ao neoliberalismo. 94
biopoltica. ento que se lana mo de incrementos para a melhor captao destes processos (FILHO e VASCONCELOS, 2007, p. 18- 19).
A biopoltica transforma os fenmenos de populao em um problema poltico e cientfico (DUARTE, 2006, p. 112). A fabricao da vida como fenmeno poltico o objetivo de uma tecnologia cujo alvo central a populao. As vrias possibilidades de intervenes no biolgico criam mecanismos e efeitos at ento impensveis (PONTIN, 2007, p. 69). Com isso, pode-se compreender a escola como um empreendimento biopoltico por excelncia. Considera-se que os novos saberes criados a servio do poder tiveram como objetivo principal o controle do corpo como espcie. Assim, a populao constitui-se em um corpo com mltiplas cabeas que, para ser compreendido, descrito, numerado, quantificado, analisado, alm de ser comparado em relao quilo que se instituiu como norma. Disso, resultam dois efeitos: o controle das populaes e a previso dos seus riscos (VEIGA-NETO, 2007b; Ins DUSSEL e Marcelo CARUSO, 2003). A escola adota a estratgia de tomar a infncia como objeto de cuidado, disciplina e produo de saberes e tambm ensinar todas as crianas de uma nica vez, o que chamado de escola mtua, e esse conjunto de coisas denominado de governamentalidade, por Foucault (PINEAU, 2005). Governamentalidade, para Foucault, refere-se ao objeto de estudo das maneiras de governar (CASTRO, 2009, p. 190). O governamento 88 e a governamentalidade so conceitos que ocupam lugar central na obra de Foucault no final dos anos de 1970. Assim, importa compreender que, para Foucault, o governamento acontece em duas perspectivas: o governo como relao entre sujeitos e o governo como relao consigo mesmo (CASTRO, 2009, p. 190). Olena Fimyar (2009), ao comentar as contribuies do pesquisador alemo Thomas Lemke 89 para o campo de estudos sobre a governamentalidade, argumenta:
Ao fundir o governar (gouverner) e a mentalidade (mentalit) no neologismo governamentalidade, Foucault enfatiza a
88 Conforme Alfredo Veiga-Neto props, utilizo governamento quando a expresso estiver se referindo ao ou ato de governar e governo quando for relacionado instituio (sd, p. 3). Disponvel em: <http://filoesco.unb.br/foucault/artigos.html>. Acesso em: 05/07/2010. 89 Para ler a obra citada pela autora: LEMKE, T. Foucault, governamentality and critique. Paper presented at the Rethinking Marxism Conference, University of Amherst MA, 21-24 September, 2000. Disponvel em: <www.thomaslemkeweb.de/publikationen/Foucault,%20Governmentality,%20and%20Critique%20IV-2.pdf>. Acesso em: 12/07/2010. 95
interdependncia entre o exerccio do governamento (prticas) e as mentalidades que sustentam tais prticas. Em outras palavras, a governamentalidade pode ser descrita como o esforo de criar sujeitos governveis atravs de vrias tcnicas desenvolvidas de controle, normalizao e moldagem das condutas das pessoas. Portanto, a governamentalidade como conceito identifica a relao entre o governamento do Estado (poltica) e o governamento do eu (moralidade), a construo do sujeito (genealogia do sujeito) com a formao do Estado (genealogia do Estado) (FIMYAR, 2009, p. 38, grifos da autora).
Assim, pode-se compreender que as formas de governamento so produtivas e atuam no sentido de produzir verdades e conhecimentos, que por sua vez, produzem coisas e sujeitos. Nessa perspectiva:
[...] governamos de acordo com o que consideramos ser as verdades sobre nossa existncia. Consequentemente, as formas como governamos do origem produo de verdade sobre a sociedade, a educao, o emprego, a inflao, os impostos, os negcios, etc. Na literatura sobre governamentalidade, tais prticas organizadas, atravs das quais as pessoas so governadas e atravs das quais elas governam outras, so definidas como regimes de prticas ou regimes de governamento, que envolvem prticas de produo de conhecimento e de verdade atravs de vrias formas de racionalidade prtica e de clculo (FIMYAR, 2009, p. 41, grifos da autora).
Nesse sentido, uma analtica da governamentalidade procura analisar as prticas de governamento em suas complexas relaes com as vrias formas pelas quais a verdade produzida nas esferas social, cultural e poltica (FIMYAR, 2009, p. 37, grifos da autora). Assim, poder-se-ia dizer que as anlises da governamentalidade abrangem amplamente o que Foucault denominou de artes de governar (FOUCAULT, 1999), dentre elas, o estudo do governo de si (tica), o governo dos outros (as formas polticas da governamentalidade) e as relaes entre o governo de si e o governo dos outros (CASTRO, 2009, p. 191). nesse campo, composto pelas relaes entre o governo de si e dos outros, que se insere a biopoltica (Sylvio de Sousa GADELHA COSTA, 2009). A escola, como empreendimento biopoltico, busca por meio da ao da disciplina e do biopoder a regulao ou o governamento da populao escolar. A instituio articula esses dois mecanismos de forma a garantir a produo e a 96
manuteno da norma 90 . A norma, por sua vez, articula tanto os mecanismos disciplinares quanto os de regulamentao, pois atua tanto sobre o corpo a ser disciplinado quanto sobre a populao a ser regulada. Para Alfredo Veiga-Neto (2007b, p. 75):
A norma o elemento que, ao mesmo tempo em que individualiza, remete ao conjunto dos indivduos; por isso, ela permite a comparao entre os indivduos. Nesse processo de individualizar e, ao mesmo tempo, remeter ao conjunto, do-se as comparaes horizontais e verticais entre cada elemento e conjunto. E, ao se fazer isso, chama-se de anormal aqueles cuja diferena em relao maioria se convencionou ser excessivo, insuportvel. Tal diferena passa a ser considerada um desvio, isso , algo indesejvel porque des-via, tira do rumo, leva perdio (grifo do autor).
Essas e outras transformaes constituem-se nas condies de possibilidades histricas para o deslocamento nas formas de governo e controle dos corpos escolares pelo empreendimento biopoltico da escola. A partir de uma ruptura na conformao da sociedade moderna, por meio de transformaes histricas e polticas e tambm no funcionamento do poder, a escola disciplinar adquire outros contornos (CSAR, 2004).
3.2 A pedagogia do controle
Nas ltimas dcadas, uma nova ordenao social tem se feito sentir. Essa nova ordem social est sendo implementada ainda que sua anlise e compreenso passe, muitas vezes, despercebida sob a forma da naturalizao de discursos e prticas sociais. Nesse sentido, Gilles Deleuze (1992), argumenta que [o] que est sendo implantado, s cegas, so novos tipos de sanes, de educao, de tratamento (DELEUZE, 1992, p. 216). O pressuposto foucaultiano sobre o exerccio das disciplinas em que cada corpo ocupava o seu lugar, o mais visvel possvel para facilitar o controle e a produo de corpos dceis e teis no foi extinto, deslocou-se. A idia de crise
90 Nas anlises de Veiga-Neto (2007, p. 75): Para todos, o guarda-chuva normativo o mesmo. Com isso, se compreende melhor, entre outras coisas, o desenvolvimento da rea psi aplicada Educao. A colonizao da educao pela psicologia tambm consistiu em uma das estratgias da escola de normalizao. Nesse processo, saberes produzidos no contexto da psicologia, j legitimada como cincia no sculo XIX, sero incorporados pela pedagogia moderna como uma estratgia em busca de cientificidade, exigncia do positivismo, que estabeleceu esse critrio para a validao das propostas educativas (PINEAU, 2005, p. 44). 97
ocupa na nova ordem social um lugar central na produo de relaes de poder diferenciadas das engendradas pela disciplina, na modernidade. Gilles Deleuze, em um ensaio de 1992 91 , em que reflete sobre as transformaes sociais, polticas e econmicas a partir da segunda metade do sculo XIX e tambm a partir de suas anlises sobre a contemporaneidade, refere-se a uma crise generalizada nas instituies disciplinares modernas de confinamento, dentre as quais a escola (DELEUZE, 1992). A compreenso dessa crise da escola como meio de confinamento e exerccio do poder disciplinar est implicada na apreenso da escola como objeto historicamente construdo com data de nascimento e, por ser histrica, suscetvel ao desaparecimento (PINEAU, 2005). O provvel desaparecimento do modelo disciplinar moderno j havia sido notado e anunciado pelo prprio Michel Foucault, na anlise da modernidade e da inveno das instituies disciplinares. Segundo Deleuze (1992, p. 219-220):
Foucault situou as sociedades disciplinares nos sculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no incio do sculo XX. [...] Mas, o que Foucault tambm sabia era a brevidade deste modelo [...]. As disciplinas, por sua vez, tambm conheceriam uma crise, em favor de novas foras que se instalavam lentamente e que se precipitaram depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares o que j no ramos mais, o que deixvamos de ser. Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, priso, hospital, fbrica, escola, famlia (grifo do autor).
Dessa forma, para Deleuze, Foucault demonstrou a brevidade das sociedades disciplinares e a crise que engendrou as relaes sociais a partir da Segunda Guerra Mundial, considerando as atrocidades empreendidas nos campos de extermnio, como os assassinatos em massa de judias/eus, ciganas/os e homossexuais, entre outros (CSAR, 2004; DUSSEL e CARUSO, 2003). Nesse importante ensaio, Gilles Deleuze desenvolveu o conceito de sociedade de controle, que consiste em uma ferramenta fundamental para a elaborao das problematizaes sobre essa nova ordenao social, alm de ser essencial nessa dissertao que toma a escola contempornea como o lugar sobre o qual os sujeitos da pesquisa se inscrevem.
91 De acordo com Maria Rita de Assis Csar (2004), Gilles Deleuze parte de uma frase de Foucault, dos anos oitenta, em que ele afirmava que a sociedade disciplinar estava agonizando [...] (CSAR, 2004, p. 116, grifo da autora). 98
As transformaes que constituem as sociedades de controle tm operado em muitas frentes 92 . A visibilidade, fundamental para o modelo disciplinar de escola, agora perde a funo nesse espao-tempo de controle, uma vez que a prpria sociedade se tornou visvel por meio de uma intensificao do panptico, o modelo de visibilizao da sociedade disciplinar. Nesse sentido, para Veiga-Neto (2000, p. 18):
O prprio mundo se tornou uma imensa e permanente mquina panptica. [...] De fato, o avano de toda uma sofisticada tecnologia eletrnica de vigilncia e documentao de que so bons exemplos os circuitos de televiso e os potentes e velozes sistemas de informao e bancos de dados aponta para o progressivo barateamento e disseminao de todos os atributos do panptico. O principal desses atributos a visibilidade no apenas se conserva, mas foi at mesmo melhorado.
Assim, importa destacar, pensando com Deleuze, que a porosidade do mundo contemporneo altera os processos de produo e organizao das instituies. As subjetividades a serem produzidas constituem-se em gerenciamentos que administram e no mais em operrias/os de uma linha de produo. Segundo Gadelha Costa (2009, p. 177), [o] indivduo moderno, a que se qualificava como sujeito de direitos, transmuta-se, assim, num indivduo microempresa: Voc S/A (grifo do autor). As formas de governamento dos corpos esto centradas em atender as demandas do mercado, em que produtos, metas e resultados passam a se constituir em preocupaes, isto , a forma de governamentalidade passa de liberal neoliberal 93 . Para Gadelha Costa essa nova governamentalidade engendrada pelo neoliberalismo caracteriza-se como:
92 Dentre as quais, o avano tecnolgico, a comunicao instantnea, os deslocamentos na linguagem nas relaes de poder e nas de produo e reproduo, a permanente reforma das instituies, a quebra do confinamento, o controle continuo, a visibilidade potencializada, o cmbio do conhecimento pela informao e, especialmente, a reorganizao do espao, do tempo e dos saberes, to fundamentais para a escola disciplinar, constroem-se como evidncias importantes. 93 Nas anlises de Gadelha Costa (2009, p. 174): No incio dos anos 1960, o neoliberalismo norte-americano toma por base a economia de mercado, bem como certas anlises econmicas empreendidas tendo em vista a compreenso de seu funcionamento e de sua dinmica, com o intuito de explicar relaes e/ou fenmenos sociais no considerados, pelo menos em princpio, como genuinamente econmicos (ou seja, como costumeiramente relacionados s relaes de mercado). Nesse sentido, temos duas novidades importantes nesse novo tipo de economia poltica: em primeiro lugar, observa-se um deslocamento mediante o qual o objeto de anlise (e de governo) j no se restringe apenas ao Estado e aos processos econmicos, passando a ser propriamente a sociedade, quer dizer, as relaes sociais, as sociabilidades, os comportamentos dos indivduos etc.; em segundo, alm de o mercado funcionar como chave de decifrao (princpio de inteligibilidade) do que sucede sociedade e ao comportamento dos indivduos, ele mesmo generaliza-se em meio a ambos, constituindo-se como (se fosse a) substncia ontolgica do ser social, a forma (e a lgica) mesma desde a qual, com a qual e na qual deveriam funcionar, desenvolver-se e transformar-se as relaes e os fenmenos sociais, assim como os comportamentos de cada grupo e de cada indivduo. (grifos do autor). Para uma anlise sobre 99
Tendo na economia e no mercado sua chave de decifrao, seu princpio de inteligibilidade, trata-se de uma governamentalidade que busca programar estrategicamente as atividades e os comportamentos dos indivduos; trata-se, em ltima instncia, de um tipo de governamentalidade que busca program-los e control-los em suas formas de agir, de sentir, de pensar e de situar-se diante de si mesmos, da vida que levam e do mundo em que vivem, atravs de determinados processos e polticas de subjetivao: novas tecnologias gerenciais no campo da administrao (management), prticas e saberes psicolgicos voltados dinmica e gesto de grupos e das organizaes, propaganda, publicidade, marketing, branding, literatura de autoajuda etc. Esses processos e polticas de subjetivao, traduzindo um movimento mais amplo e estratgico que faz dos princpios econmicos (de mercado) os princpios normativos de toda a sociedade, por sua vez, transformam o que seria uma sociedade de consumo numa sociedade de empresa (sociedade empresarial, ou de servios), induzindo os indivduos a modificarem a percepo que tm de suas escolhas e atitudes referentes s suas prprias vidas e s de seus pares, de modo a que estabeleam cada vez mais entre si relaes de concorrncia (GADELHA COSTA, 2009, p. 177-178, grifos do autor).
Esse deslocamento importante no modo de organizao do capitalismo ocupa lugar central na implementao da sociedade de controle 94 . Para Deleuze (1992, p. 223-224):
J no um capitalismo dirigido para a produo, mas para o produto, isto , para a venda ou para o mercado. Por isso ele essencialmente dispersivo, e a fbrica cedeu lugar empresa. A famlia, a escola, o exrcito, a fbrica no so mais espaos analgicos distintos que convergem para um proprietrio, Estado ou potncia privada, mas so agora figuras cifradas, deformveis e transformveis, de uma mesma empresa que s tem gerentes.
Com essa reorganizao do capitalismo, a qual Deleuze denominou mutao, estabelece-se uma nova ordem global das coisas e das instituies como empresas. Esse deslocamento determina transformaes para uma nova construo histrica de escola e de educao. A educao passa a ser regulada pela nova ordem econmica mundial (CSAR, 2004). Dessa forma, pautada pelas mudanas
governamentalidade neoliberal e educao, veja-se tambm: SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade lquida, capitalismo cognitivo e educao contempornea. In: Educao & Realidade, v. 2. n. 34. mai./ago. 2009, p. 187-201. 94 Para uma anlise mais elaborada sobre essa questo veja-se: DUSSEL, I; CARUSO, M. A inveno da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. So Paulo: Moderna, 2003. PINEAU, Pablo Por qu triunfo la escuela? O La modernidad dijo: Esto es educacin, y la escuela respondi: Yo me ocupo In: PINEAU, Pablo; La escuela como mquina de educar: tres escritos sobre un proyecto de la modernidad. Buenos Aires: Paids, 2005. CSAR, M. R. A.; DUARTE, A. M. Governo dos corpos e escola contempornea: pedagogia do fitness. Educao e Realidade, v. 2, p. 119-134, 2009. 100
da economia, cuja ordem o crescimento e a ampliao, relacionando-se ao progresso e sucesso econmico do Estado (DUSSEL & CARUSO, 2003). O Estado passa a gerenciar as polticas educacionais 95 e a escola se constitui em uma empresa que tem nas metas e nos resultados da administrao da aprendizagem seu foco principal. Em se tratando da escola como empresa, importa retomar o ensaio de Gilles Deleuze sobre as sociedades de controle, em que o autor realiza algumas consideraes para pensar a escola contempornea, nessa perspectiva. Para Deleuze (1992, p. 225):
No regime das escolas: as formas de controle contnuo, avaliao contnua, e a ao da formao permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introduo da empresa em todos os nveis de escolaridade (grifos do autor).
Dessa forma, o que se percebe uma continuidade permanente na formao, isto , formao permanente, educao continuada, avaliao processual, nada mais se conclui na sociedade de controle (DELEUZE, 1992). Evidenciam-se novos elementos tanto nas prticas pedaggicas como nas narrativas oficiais, ou seja, Leis, Decretos, Diretrizes Curriculares e Parmetros Curriculares Nacionais 96 . O neoliberalismo derruba as portas da escola, que passa a adotar prticas e discursos, gerenciando os corpos de crianas, jovens, professoras/es, mes, pais, responsveis, gestoras/es e toda uma chamada comunidade escolar. Nesse sentido, todas/os sero responsveis pelo sucesso ou fracasso do empreendimento escolar e todas/os sero chamadas/os a participarem democraticamente das aes da escola (Gicele Maria CERVI, 2010). A busca pela qualidade total na educao, o empreendedorismo, a motivao, a competitividade, a metodologia de projetos, aes pontuais sobre os temas sociais desarticuladas do currculo, a recuperao paralela, a promoo automtica das/os alunas/os, a frequente presena de organizaes no- governamentais, alm da presena de policiais nas escolas realizando atividades
95 Foucault, ao elaborar o conceito de governamentalidade, argumenta: Enfim, por governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justia da Idade Mdia, que nos sculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2008a, p. 144, grifos do autor). 96 Para uma anlise genealgica sobre a escola e os discursos das narrativas oficiais sobre a instituio escolar apreciar: CSAR, M. R. de A. Da Escola Disciplinar Pedagogia do Controle. 173 f. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. 101
para as quais as/os professoras/es, descrentes de sua prpria formao, no se sentem preparadas/os, marcam esse contexto (DUSSEL e CARUSO, 2003). O importante conceito de pedagogia do controle, elaborado por Maria Rita de Assis Csar (2004) consiste em uma ferramenta fundamental para pensar a construo da escola contempornea. Nessa perspectiva, a prpria idia de conhecimento se altera, uma vez que o importante na nova ordem social a informao. Os investimentos em educao e na escola visam transmisso, o fluxo e o movimento da informao, com velocidade. Essa transformao produz efeitos no que se refere ao discurso e s prticas pedaggicas, alterando, assim, o funcionamento das escolas. Na elaborao da autora:
Partindo da tese da passagem de um mundo a outro, a educao disciplinar est deixando de existir, ainda que seus fantasmas ainda se faam presentes, e no seu lugar est surgindo a pedagogia do controle. Na medida em que isso implica a transformao radical do conceito de conhecimento, que agora d lugar noo de informao como o verdadeiro objeto a ser transmitido segundo algumas regras metodolgicas especficas, a educao strito sensu fica reduzida a uma mera reelaborao moral. [...] Na pedagogia do controle no s as normas e valores morais so pedagogizadas e escolarizadas, mas tambm todo e qualquer aspecto da vida (CSAR, 2004, p. 150; 153, grifos da autora).
A escola aqui pensada como empreendimento biopoltico, que implica em uma potencializao do governo dos corpos e das mentes. Com isso, os agenciamentos biopolticos da escola deslocam-se para uma governamentalidade neoliberal, isto , se a sociedade passa do seu modelo disciplinar, para o controle, a escola passa a ser pautada pela governamentalidade neoliberal. A escola contempornea situa-se nas relaes entre a biopoltica e essa nova forma de governamentalidade neoliberal. agenciada pelas biopolticas e, com isso, tomada como um campo de investimento que pode potencializar a produo e o consumo. Nessa perspectiva, a escola como empreendimento biopoltico contemporneo objetiva capturar os corpos para torn-los viveis para a produo e para o consumo (CSAR, 2010). Esse consumo se orienta para a satisfao imediata dos desejos, que cedem espao a outros, to logo sejam satisfeitos. Os produtos procurados so leves, volteis, descartveis (SARAIVA e VEIGA-NETO, 2009, p. 193). Nesse sentido, estar na escola atualmente significa ser gestora/r de si, por meio de investimentos no corpo, que de acordo com Foucault (2008a), foi 102
denominado de capital humano 97 . Segundo Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 199), [g]erir seu capital humano buscar estratgias de multiplic-lo. escola caberia ensinar essas tcnicas de gesto. Isto , a escola contempornea est imbricada pela teoria do Capital Humano, uma vez que funciona como um investimento cuja acumulao permitiria no s o aumento da produtividade do indivduo-trabalhador, mas tambm a maximizao crescente de seus rendimentos ao longo da vida (GADELHA COSTA, 2009, p. 177). Assim, a formao educacional e profissional dos indivduos funcionaria como uma estratgia para garantir o aumento da produtividade tanto no que se refere s empresas quanto aos prprios indivduos. (GADELHA COSTA, 2009). Os agenciamentos biopolticos construdos produzem tambm uma sensao de liberdade, em que a prpria liberdade produzida e consumida. A competio ocupa lugar central nesses processos. Para Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 183):
O princpio de inteligibilidade do neoliberalismo passa a ser a competio: a governamentalidade neoliberal intervir para maximizar a competio, para produzir liberdade para que [todas e] todos possam estar no jogo econmico. Dessa maneira, o neoliberalismo constantemente produz e consome liberdade. Isso equivale a dizer que a prpria liberdade transforma-se em mais um objeto de consumo (grifos da/o autora/r).
Dessa forma, o que se observa a criao de uma forma de estar no mundo, produzida pelo que Gadelha Costa (2009) denominou de cultura de empreendedorismo. Essa cultura, presente tambm na educao formal, atua de maneira a produzir indivduos fragmentados e responsveis apenas por si mesmos. O indivduo passa a ser responsvel pela sua aprendizagem. Assim, o que ganha centralidade a iniciativa individual e o processo de aprender a aprender 98
(GADELHA COSTA, 2009, p. 182, grifo do autor). Ainda de acordo com o autor, o processo de produo dessas relaes acaba por dificultar os agenciamentos entre os prprios indivduos no sentido da inveno de novos modos de vida, e de
97 Para a anlise sobre o pensamento neoliberal referente teoria do Capital Humano formulado pela Escola de Chicago veja-se: FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopoltica. So Paulo. Martins Fontes, 2008b. E tambm: GADELHA COSTA, Sylvio. Biopoltica, governamentalidade e educao. Belo Horizonte, Autntica, 2009. 98 Para mais, ver: DELORS, Jacques et all. Educao: um tesouro a descobrir. Relatrio para a UNESCO da Comisso Internacional sobre Educao para o sculo XXI. Corts Ed. 1998. 103
interveno em favor de novos modos de existencializao e de sensibilidade, que no aqueles apregoados pelo mercado [...] (GADELHA COSTA, 2009, p. 182) Nesse processo de produo ampliado, rigorosamente tudo ser pedagogizado (CSAR, 2004). Essa transformao, constituinte de uma escola globalizada e sem fronteiras, produz tambm um esvaziamento de sentido em relao instituio disciplinar que no responde mais aos questionamentos contemporneos. Segundo Maria Rita de Assis Csar (2007, p. 5), [...] a escola disciplinar no faz falta, pois as crianas j vm sendo educadas em outros tipos de espao e numa outra temporalidade como, por exemplo, por meio das mdias em geral (grifo da autora). Com isso, produz-se uma pedagogizao de todas as esferas da vida, em que se engendra uma equiparao entre os discursos pedaggicos e as prticas escolares com outros discursos e prticas do senso comum. A sociedade de controle produz, com isso, uma despolitizao da educao e da nova escola tanto pelas narrativas oficiais quanto pelas polticas pblicas educacionais. Assim, a passagem do tempo dos espaos quadriculados para o dos espaos mveis, em que a ordem o fluxo e o deslocamento de informaes, sujeitos, bens ou riquezas, com rapidez, determina que o espao escolar transforme- se em um espao de mediao de conflitos e promoo de consensos e de convivncia. As novas regras sociais orientam para que se evite o conflito (CSAR, 2004). Essa convivncia virtualmente pacfica entre os sujeitos diferentes, produzidos pela sociedade de controle constitui-se no ideal regulatrio da prpria produo das subjetividades pela escola contempornea. Enquanto a escola disciplinar visava produo de corpos dceis, teis e produtivos, a escola do controle objetiva a produo de trabalhadoras/es conectadas/os, competitivos/as e motivados/as. Essa subjetividade, para Gilles Deleuze alterna-se continuamente, na forma daquilo que o autor denominou de modulaes, ou seja, uma subjetividade flexvel e cambiante, o que possibilita a intensificao do controle (DELEUZE, 1992). Nesse sentido, para Maria Rita de Assis Csar e Andr Duarte (2009, p. 127):
A introduo desse novo conjunto de discursos, de prticas e de saberes configurou novas formas de governamento da infncia e da juventude. Com a introduo da nova pedagogia do controle, os discursos escolares e no-escolares tornaram-se idnticos e 104
assumiram uma mesma funo, que pode ser compreendida em termos da produo do novo sujeito moral, o sujeito flexvel, tolerante e supostamente autnomo, requerido pelas novas modulaes do controle que gravitam entre o Estado e o mercado neoliberal (grifos da autora/r).
A produo dessas subjetividades contemporneas tambm pela escola pautada em diversas modulaes. Assim, em relao sexualidade e transexualidade so engendradas prticas, discursos e saberes por meio do controle, isto , a escola contempornea, como empreendimento biopoltico, constri uma rede de podersaber, alm de gerenciar e capturar os corpos sexuados, transmutando-os em corpos que produzem e consomem.
3.3 Escola, sexualidade e transexualidade
Se na pedagogia disciplinar o corpo era alvo de investimento para os mecanismos de poder, na pedagogia do controle esse investimento ampliado por meio da ao do biopoder. A escola contempornea faz investimentos no corpo e na sade da populao em idade escolar, isto , a alimentao, a preveno da gravidez e das doenas sexualmente transmissveis, as prticas esportivas, entre outros. A subjetividade normalizada a ser construda nesse novo engendramento do poder no mais a criana disciplinada, pois essa j est diagnosticada, controlada e governada por medicamentos (CSAR, 2007b). A potencializao dos efeitos do biopoder sobre os corpos produz uma subjetividade que materializa a prpria modulao, como definiu Deleuze (1992), ou seja, a subjetividade produzida pela nova governamentalidade neoliberal, nas anlises de Gadelha Costa, consiste em:
Um indivduo estranho, ainda mal-esboado, cujo corpo por exemplo, j no seria mais mecnico-orgnico, mas ciberntico, ps-orgnico, ps-humano; por outro lado, um indivduo cuja identidade, cujo Eu, cujas maneiras de pensar, de agir e de sentir, j no so, apenas e to somente, constitudos por uma normatividade mdico-psi, mas cada vez mais produzidos por uma normatividade econmico- empresarial (GADELHA COSTA, 2009, p. 180, grifos do autor).
Na escola, o corpo desejvel jovem, saudvel, magro, bonito e heterossexual, que atenda de forma linear e natural a relao de correspondncia 105
entre sexo, gnero e desejo. Essa correspondncia acaba por materializar o que Deborah Britzman (1996) problematizou como uma espcie de pressuposto universal da heterossexualidade. A partir desse pressuposto, toda a populao escolar passa a ser objetivada como heterossexual a priori (BRITZMAN, 1996). Ou seja, os discursos e as prticas regulatrias ditam e difundem, por vrios meios, as definies ideais de corpo feminino e masculino e de feminilidade e masculinidade, produzidas em funo do mercado neoliberal. Essas definies se tornam condicionantes para o encaixe dentro da norma regulatria. Assim, o corpo saudvel, normal e desejvel o corpo definido pelas demandas do mercado, numa linearidade entre sexo-gnero-sexualidade 99 . Dessa forma, da singular Histria da Sexualidade elaborada por Foucault, na qual os investimentos do poder disciplinar e do biopoder concorreram para a produo do sistema sexo-corpo-gnero, a partir da medicalizao das prticas sexuais e da inveno do sujeito homossexual, o que se observa a intensificao da escola como empreendimento biopoltico de controle sobre o corpo e a sexualidade. A partir desse investimento produzem-se as subjetividades, alvo da normalizao contempornea em relao ao sistema sexo-corpo-gnero, sistema que, para Csar (2009), a escola insiste em preservar. A nova anomalia a ser produzida, diagnosticada, controlada e medicalizada consiste no corpo que toma forma no exterior da norma de regulao estabelecida pelo dispositivo da sexualidade e da heterossexualidade normativa, isto , o corpo transexual. Opera-se, assim, um movimento: alm de medicalizar as prticas sexuais e objetivar os sujeitos como desviantes pelas prticas sexuais 100 no normativas, medicaliza-se os processos produtivos da materialidade dos corpos. Esse movimento acaba por produzir, na perspectiva de anlise dessa dissertao, o corpo e a mente transexual doente 101 , conforme as anlises de Berenice Bento (2006; 2008), ou seja, a patologizao da experincia transexual. Na pedagogia do controle, as fronteiras entre a/o m/mau e a/o boa/bom aluna/o so definidas por um afastamento do corpo indesejvel e delimitadas
99 Esses conceitos foram discutidos na Parte 2 dessa dissertao. 100 Deborah Britzman, a partir das teorizaes de Jeffrey Weeks (1996, p. 76), argumenta: A pessoa com a qual fazemos sexo, como diz Jeffrey Weeks (1986), importa. Importa tanto que nossas prticas as imaginadas e as reais tornaram-se sinnimas de nossa identidade e nosso gnero (grifo da autora). A obra de Jeffrey Weeks, citada pela autora : WEEKS, Jeffrey. Sexuality. New York, Routledge, 1986. 101 Considerando-se que tanto o corpo quanto a mente de transexuais constituem-se em alvo do tratamento e da medicalizao no processo transexualizador. Para uma anlise sobre o processo transexualizador, vide: (BENTO, Berenice. 2006; 2008). 106
principalmente pelo estreitamento da relao entre a pedagogia e a psicologia 102 . A escola contempornea intensificou suas interaes com a psicologia, procurando preencher a lacuna que se formou com a crise de sentidos na qual est inserida. A aproximao entre a pedagogia e a psicologia produziu sentidos sobre os sujeitos psicologizando-os e medicalizando-os. Isso determina a produo contnua de diagnsticos que identificam os comportamentos e os corpos que precisam de encaminhamento/tratamento tanto por parte da escola, como por parte de profissionais especficos como psiclogos e psiquiatras. Nas anlises de Maria Rita de Assis Csar (2004, p. 140):
importante ressaltar que para a pedagogia a psicologia que ir garantir o estatuto da subjetividade dos sujeitos da educao, ou seja, a psicologia que ir definir [a aluna] o aluno em termos de seu desenvolvimento cognitivo e delimitar as fronteiras entre a normalidade e a patologia escolar. Em outros termos, a psicologia que ir separar [a boa aluna] o bom aluno [da m aluna] do mau aluno, ela que ir diagnosticar as causas das deficincias de aprendizagem, da indisciplina, da falta de ateno, entre outras ocorrncias do cotidiano escolar (grifos da autora).
Na esteira dessas ocorrncias do cotidiano escolar aparecem as experincias que desafiam, desestabilizam e subvertem as normas de gnero, como a travestilidade e a transexualidade 103 . A visibilidade desses sujeitos intensifica-se na medida em que na sociedade de controle ou na governamentalidade neoliberal o princpio da incluso se coloca como imperativo. Entretanto, travestis e transexuais, embora atendam parte das demandas desse imperativo, quebram regras com seus corpos, isto , as normas binrias do gnero, e essa quebra pode ser percebida por meio da transformao de seus corpos. Para esses sujeitos no existe a possibilidade de resistncia em relao visibilidade, ou seja, pensando com Veiga- Neto (2008) ao refletir sobre a sociedade de controle, seus corpos so de cristal, isto , produzem uma visibilidade absoluta, sendo que a sua inadequao encontra-se
102 Para saber mais sobre a aproximao entre a colonizao da pedagogia pela psicologia, vide: DUSSEL, Ins; CARUSO, Marcelo. A inveno da sala de aula. Uma genealogia das formas de ensinar. So Paulo: Moderna, 2003; CSAR, Maria Rita de Assis. Da Escola Disciplinar Pedagogia do Controle. Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de Educao, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. 103 Embora tenha teorizado sobre identidades lsbicas e gays em seu artigo, a problematizao elaborada por Deborah Britzman em relao aos corpos que desafiam a naturalidade e a normalidade de sexo e gnero podem ser ampliadas para uma anlise do corpo trans. Nesse sentido, para a autora: [a] confuso entre gnero e sexualidade parece ser mais notada quando, por qualquer razo, certos corpos no podem ser facilmente lidos e fixados como mais uma confirmao dos discursos da universalidade e da natureza. Estou chamando a ateno, aqui, para aqueles corpos que so vistos como cometendo uma traio naturalidade e, portanto, normalidade do gnero e do sexo. (grifos da autora)(1996, p. 76). 107
corporificada. Para esses sujeitos no existe a possibilidade de permanecer no armrio 104 . Estes sujeitos-corpos ficaro presos a uma ultra-visibilidade 105 que os define subjetivamente como inadequados. Em relao s/aos travestis e transexuais, a experincia de visibilidade que se instaura a partir da pedagogia do controle a do excesso, pois so corpos e identidades para os quais no existe nem mesmo a possibilidade da existncia do armrio. Embora sejam mltiplas e apresentem vrias nuances, as experincias travestis e transexuais so engendradas para fora dos limites do armrio, porque travestis e transexuais fabricam seus corpos e identidades fora do armrio 106 , isto , nas ruas, nas pistas, nas caladas. O olhar inquisidor e escrutinador sobre os corpos e identidades trav e trans constri um aparato acusatrio para essas personagens. Entretanto, nem mesmo a cristaleira 107 suficiente, pois o aparato transparente
104 Para saber mais consultar: Epistemology of the Closet. In: ABELOVE, Henry et all. The lesbian and gay studies reader. New York/London, Routledge, 1993:45-61. Uma verso desse mesmo artigo traduzido para o portugus encontra-se em: SEDGWICK, Eve Kosofsky. A epistemologia do armrio. In: Cadernos Pagu. n. 28. jan./jun. 2007, p. 19-54. Disponvel em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/cpa/n28/03.pdf> Acesso em: 12/07/2010. 105 Ao analisar as relaes possveis entre homofobia e esporte, Rodrigo Braga do Couto Rosa (2010) elaborou o conceito de cristaleira, por meio de uma descrio e anlise das relaes de poder-saber empreendidas pelo caso do jogador do So Paulo Futebol Clube, Richarlyson. O autor observa que a heterossexualidade constituda como uma condio social a priori para atletas. A menos que estes deslizem e forneam indcios contrrios ou que se instaure a dvida em relao heterossexualidade, elas/es so, sob o olhar de todos/as, um/a heterossexual fora de qualquer suspeita. O jogador no se assumiu gay em momento algum. Pelo contrrio, negou ser gay veementemente em todas as suas declaraes. Mas, a suspeita de que fosse gay instaurou um processo de potencial visibilidade para a sua sexualidade como um desvio (ROSA, 2010, p. 138- 151). Para saber mais: ROSA, Rodrigo Braga do Couto. Enunciaes afetadas: relaes possveis entre homofobia e esporte. Dissertao (Mestrado em Educao) Faculdade de Educao Fsica, Universidade Estadual de Campinas, 2010. 106 Os processos de fabricao dos corpos e identidades aos quais me refiro nessa problematizao foram definidos nas interaes com os sujeitos da pesquisa tanto nas entrevistas individuais como no grupo de discusso, a partir de padres estticos. Esses padres, segundo os sujeitos, esto postos na sociedade. No que se refere s mulheres transexuais e travestis, as produes de si constroem-se de forma a empreender-se como o mais feminina possvel, como uma forma de concorrncia em busca de uma feminilidade idealizada. Nesse processo, o imprescindvel a construo dos seios, eleito por unanimidade entre elas como o principal smbolo do feminino que precisa ser alcanado a qualquer custo. A maioria das travestis e transexuais que participaram da pesquisa construiu seus seios por hormonioterapia e aplicao de silicone industrial. Andria e Mait colocaram prtese de silicone. No que se refere ao homem transexual, o que se observou que a sua produo de si orienta-se na busca da invisibilidade. Assim, depois da realizao da mastectomia, em clnica particular, em 2009, na qual retirou, segundo ele, as porcarias dos seios que eram a principal marca que me denunciavam e lembravam que o meu corpo no era aquele, est construindo um processo de invisibilizao satisfatrio e prazeroso. Para ele, agora, minimizei um pouco o preconceito e a discriminao porque at passo despercebido (Andr Lucas Guerreiro, E). importante ressaltar que essa invisibilidade est em processo de construo e, muitas vezes, no funciona em espaos como o da escola no qual h uma estreita relao entre identidade e corpo. Essas anlises foram elaboradas na Parte 4 dessa dissertao, na categoria Corpo e Identidade. 107 O conceito de cristaleira foi importante para a leitura de Rosa (2010) em relao ao jogador Richarlyson. Entretanto, procurei realizar um deslizamento desse mesmo conceito no que se refere s/aos transexuais, uma vez que as experincias analisadas so diferentes. Ao pensar na realidade do mundo trans, como denominado pelos sujeitos que participaram do desenvolvimento dessa pesquisa, pode-se perceber que, via de regra, consiste em um mundo onde as cristaleiras so raras, isto , as experincias de transexualidade analisadas por esta dissertao no ficam expostas sociedade na perspectiva de exposio do referido jogador. Os corpos transexuais so noticiados quando engrossam as estatsticas de criminalidade. Sobre isso, ver, por exemplo: ANGELI, Gladson. Trs travestis so assassinadas em menos de 10 dias em Curitiba. In: Gazeta do Povo. Disponvel em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=883998&tit=Tres- 108
construdo pelos olhares sobre esses corpos parece se assemelhar mais a um olhar de amplo alcance, que penetra a vestimenta, desnudando esses corpos e chegando at a sua genitlia. O olhar lanado a esses sujeitos um olhar genitalizado que ir inquirir sobre a desconformidade entre corpo e genitlia. Aquilo que se constri no entorno dos corpos e identidades trans e trav parece se assemelhar a uma gigantesca lupa, ou uma espcie de lente de aumento que procura ver os rgos e as prticas sexuais, centrando-se na suspeita de uma genitlia diferente da esperada. Procura-se enxergar a genitlia em desarmonia com a fabricao do gnero empreendida. A cirurgia de transgenitalizao e a alterao do nome nos documentos, importantes para os sujeitos, no parecem importar nesse contexto do olhar, considerando que as transexuais readequadas cirurgicamente e que possuem documentos alterados tambm so alvo de diagnstico e escrutnio. Nesse sentido, os prprios corpos de transexuais que se tornaram de cristal. Os corpos transexuais so marcados pela fabricao exterior norma regulatria de sexo e gnero, constituindo-se tambm em corpos a serem medicalizados pela pedagogia do controle. Deborah Britzman argumenta que [...] a pedagogia produz no apenas verses particulares do conhecimento de sujeitos mas o prprio sujeito que-supostamente-conhece (BRITZMAN, 1996, p. 77). Berenice Bento (2008), ao analisar os documentos 108 que produziram o discurso oficial da patologizao da experincia transexual, encontrou uma articulao na qual um desses documentos enreda a escola, a famlia e a medicina/psicologia para a produo dos diagnsticos e das normas de gnero 109 .
travestis-sao-assassinadas-em-menos-de-10-dias-em-Curitiba> (Acesso em: 05/07/2010) e tambm em www.ggb.org.br/ (Acesso em: 05/07/2010). A idia de estar em uma cristaleira pode suscitar tambm uma falsa representao de proteo, isto , por detrs de um vidro, os corpos podem estar vulnerveis mas, concomitantemente de alguma forma, inatingveis e constiturem-se em objetos frgeis por um lado, mas estimados por outro. Corpos aos quais se deveria dispensar cuidados ou se teria prazer em expor. Corpos e identidades trans constituem-se de cristal e ficam expostos s ruas, nos movimentos sociais e nos tratados mdicos. Assim, diferentemente do que se passa com o jogador Richarlyson, esses corpos e identidades enfrentam o escrutnio sem recorrer muitas vezes justia por falta de recursos, sem direito de resposta, sem contar com a proteo da cristaleira. Transexuais so a prpria cristaleira de si mesmas/os. 108 Normas de Tratamento (State of Care ou SOC), publicado pela Harry Benjamin Internacional Gender Dysphoria Association HBIGDA (esse documento est em sua sexta verso); Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais DSM, publicado pela Associao Psiquitrica Americana APA, atualmente na quarta verso; Cdigo Internacional de Doenas CID, da Organizao Mundial da Sade OMS, em sua dcima verso (BENTO, 2008, p. 76-77). 109 O texto do Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais DSM, publicado pela Associao Psiquitrica Americana APA e atualmente na quarta verso descreve essa articulao entre escola, famlia e medicina/psicologia na produo da patologia da transexualidade. Nas anlises de Berenice Bento (2008, p. 128- 129): O DSM-IV [Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais] reconhece o papel dessa instituio [escola] em alertar aos pais sobre os comportamentos desviantes dos/as filhos/as. Segundo o DSM- 109
Nessa articulao, o papel da escola consiste em alertar s mes, pais ou responsveis sobre seu comportamento anormal em relao sexualidade. A preocupao com esse comportamento desviante consiste no medo de que a criana seja, ou se torne lsbica ou gay (BENTO, 2008, p. 129). Em geral, a interveno se d por meio de um movimento de uma reconduo heterossexualidade. Com isso, a correo do desvio transforma-se em uma espcie de meta a ser cumprida a qualquer custo (BRITZMAN, 1996). Em se tratando de travestis e transexuais, a pedagogia do controle tem produzido prticas 110 fora das instituies escolares, uma vez que esses se constituem em corpos e identidades que escapam (CSAR, 2009). Corpos cuja esperana de retorno norma regulatria praticamente nula, considerando que a maioria dos processos e intervenes empreendidas para a fabricao de si irreversvel, diferentemente dos corpos de lsbicas e gays. Assim, as relaes entre a escola e essas experincias estabelecem-se no campo do estranhamento e, em geral, da tenso. Segundo a narrativa oficial do Movimento Social LGBT, a escola contempornea tem sido eficiente em apagar as diferenas e em propagar a excluso e a violncia, pois objetiva a todas e todos como iguais na diversidade 111 . Entretanto, por meio de uma reflexo sobre a diferena, a presena 112 dessas experincias na escola contempornea poder ser tomada como um acontecimento 113 . Para Carlos Skliar (2008, p. 21-22):
IV: o isolamento e o ostracismo contribuem para a baixa auto-estima e podem levar averso e abandono da escola. O ostracismo e a zombaria por parte dos seus pares so seqelas especialmente comuns para meninos com o transtorno. [...] Tipicamente, as crianas so encaminhadas [ao psiclogo] por ocasio de seu ingresso na escola, em vista da preocupao dos pais de que aquilo que consideravam uma fase parece no estar sendo superado (grifos da autora). Assim, a escola do controle incorpora o discurso psicolgico, que por sua vez a responsabiliza em acionar a famlia, informando sobre os comportamentos infantis desviantes da norma regulatria, como uma preocupao. 110 Conforme Veiga-Neto (2007a, p. 256-257), [...] Foucault nos diz que, depois da nfase na extenso, caracterstica da poca Clssica, o espao passou a ser entendido, j na Modernidade, como posicionamento. Atualmente, ento, o lugar que cada corpo ocupa no espao faz sentido no por si mesmo, mas em funo das suas relaes com os lugares vizinhos. A posio relativa o que mais importa: estamos numa poca em que o espao se oferece a ns sob a forma de relaes de posicionamentos (Foucault, 2001, p. 1.573), uma estrutura que guarda forte correspondncia com a grade. Chamei de lugarizao a essa capacidade diferencial de criar lugares no espao ou de trocar as posies relativas de modo mais ou menos controlado, com o fim de maximizar as vantagens por ocupar essa ou aquela posio (grifos do autor). 111 Veja-se: Site da Articulao Nacional de Travestis, Transexuais e Transgneros: <http://pessoal.atarde.com.br/marccelus2/antra/plantao.html>. Acesso em: 12/07/2010. Site da Associao em defesa dos Direitos Homossexuais da grande Florianpolis ADEH - Nostro Mundo: <http://adeh-nostromundo.blogspot.com/>. Acesso em: 12/07/2010. Site da Liga Brasileira de Lsbicas Paran <ligabrasileiradelesbicaspr.blogspot.com>. Acesso em: 12/08/2010. Site da Associao Brasileira de Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 12/07/2010. 112 Na I Conferncia Nacional LGBT, o Movimento LGBT assumiu a causa de travestis e transexuais em relao garantia de acesso e permanncia nas escolas pblicas, por meio de aes afirmativas, tais como a utilizao do nome social desses sujeitos nos registros escolares. No Estado do Paran, a autorizao para a utilizao do 110
[...] a partir de uma incapacidade, a partir de um no-conhecimento, a partir da impossibilidade para responder a essa pergunta, que alguma coisa acontece ali, no lugar onde no h lugar, faz-se acontecimento. Alguma coisa torna-se acontecimento, pois o impossvel se torna possvel.
Assim, o que se percebe que a simples presena desses sujeitos perturba e desestabiliza o empreendimento biopoltico da escola, uma vez que diferentemente da sade 114 , a escola no encontrou ainda meios de capturar esses corpos e torn-los viveis para o consumo e a produo. Dentro do imperativo da incluso escolar, a presena trans na escola deflagraria um processo de reorganizao da instituio sobre modulaes at ento impensadas. Entretanto, isso no ocorre, produzindo, ao contrrio, os processos de excluso (CSAR, 2010). Corpos e identidades transexuais operam uma desconstruo no sistema corpo-sexo-gnero por meio de estratgias que, possibilitadas pela prpria produo regulatria, desestabilizam a escola e perturbam a nova ordem das coisas. Esses efeitos determinam, muitas vezes, a rejeio e a excluso desses sujeitos, justamente porque se produzem fora da norma e fogem ao controle (CSAR, 2009). A produo do sujeito pela pedagogia do controle obedece a um novo conjunto de normas, fundamentado por saberes e discursos que por sua vez se articulam por meio de poderes produtores de subjetividades viveis ao consumo e produo. A funo desse conjunto consiste em manter a nova ordem estabelecida
nome social nos registros escolares internos das escolas pblicas da Rede Estadual de Ensino da Educao Bsica, bem como nas Universidades e Faculdades Estaduais foi concedida pelo Conselho Estadual de Educao em 09 de outubro de 2009. Esse parecer representa um avano na aproximao entre a escola contempornea e as experincias travestis e transexuais e, tambm uma conquista do Frum Paranaense de Gnero e Diversidade Sexual. Disponvel em: <http://www.cee.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/Pareceres2009/CP/pa_cp_01_09.pdf>. Acesso em: 12/07/2010. A instruo de matrculas da Secretaria de Estado da Educao do Paran foi publicada em 20 de maio de 2010. Disponvel em: <http://www.diaadia.pr.gov.br/sued/arquivos/File/Instrucao2010/Instrucaoconjunta02suedesude.pdf>. Acesso em: 12/07/2010. Mas a orientao mais detalhada que problematiza a respeito da presena da experincia transexual na escola do Ncleo de Gnero e Diversidade Sexual permanece na forma de minuta. Para saber mais, acessar: <http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php>. Acesso em: 12/07/2010. O nome social constitui-se em uma das subcategorias de anlise desenvolvidas por essa dissertao na Parte 4. 113 Acontecimento utilizado aqui como conceito, no sentido elaborado por Michel Foucault. Para Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 200) [o] acontecimento o inesperado, o imprevisvel, o singular. Segundo Foucault (1979, p. 15), no campo da pesquisa genealgica, indispensvel marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade montona; espreit-los l onde menos se os esperava (grifos da/o autora/r). 114 No campo da sade os agenciamentos biopolticos funcionam uma vez que os corpos foram capturados e esto sob controle, isto , so as instituies da sade que determinam, a partir de seus pressupostos, quem ou no verdadeiramente transexual e quem far ou no a cirurgia de redesignificao sexual. Sobre isso, ver: Portaria n 1707 de 18 de agosto de 2008, Carta dos Direitos dos Usurios da Sade, instituda pela Portaria n 675/GM, de 31 de maro de 2006, disponveis em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/default.cfm>. Acesso em: 12/07/2010. De outra forma, a biopoltica educacional no conseguiu ainda capturar esses corpos e control- los, assim os agenciamentos biopolticos na educao no funcionam, determinando uma reorganizao da prpria escola como instituio do controle. 111
pela sociedade de controle. Nesse contexto, a escola se produz como o lugar da informao, da incluso, da tolerncia, da democracia, da participao, alm de promotora da igualdade. Entretanto, nesse discurso atuam novos jogos de poder que iro aniquilar as diferenas em razo de uma igualdade moralizante e de uma pedagogia da tolerncia que, por sua vez, produz mais excluso e violncia 115 . Um desafio para educao e para a escola consistiria em procurar alternativas para se pensar a partir da diferena e da multiplicidade, como uma expresso da alteridade (Hannah ARENDT, 1987; VEIGA-NETO, 2007a). Talvez assim se possa traar meios para resistir e escapar aos tentculos do monstro do controle. Com isso, talvez, a educao se constitua em uma possibilidade, como um ato poltico de resistncia e liberdade, em meio s incertezas e fluidez, produzindo um enfrentamento pedagogia da tolerncia.
3.3 A Pedagogia Queer
Realizar uma reflexo sobre experincia transexual e a escola suscitou uma aproximao com as teorizaes queer 116 . Esse aporte terico fundamenta concepes pelas quais possvel desestabilizar a idia da necessidade da ordenao social fixa e binria e da obsesso pelas identidades sexuais, como empreendidas pelas disciplinas e tambm pelo controle. A escola contempornea no suporta lidar com a desestabilizao das suas verdades e a afasta produzindo e reiterando a norma, continuamente, para que possa classificar de forma mais efetiva as nuances entre os binarismos. Segundo Tnia Navarro Swain (2009, p. 26):
Estou falando da interpretao binria do mundo, no somente em relao aos sexos, homem/mulher (na ordem), mas igualmente quanto viso dualista do que compe a inteligibilidade da vida: o
115 Nilson Fernandes Dinis (2008) argumenta sobre a relao entre a tolerncia e a incluso dos sujeitos que se constroem externamente norma regulatria contempornea de gnero na escola: Ou, ento, apenas afrouxando os limites da tolerncia para a incluso de alguns dos/das desviantes mais bem comportados/as e que possam ser mais facilmente includos/as na ordem, criando novas zonas de excluso para as/os que desafiam ainda mais as fronteiras de gnero, tais como indivduos bissexuais, transexuais e outras experimentaes de transgneros (DINIS, 2008, p. 485). Outras abordagens nesse sentido: Csar (2009), Silva (2007), Louro (2003). 116 Para Guacira Lopes Louro (2004), o significado do termo queer pode estar tambm diretamente ligado aos sujeitos da sexualidade fora da norma heterossexual. Para a autora, [q]ueer tudo isso: estranho, raro, esquisito. Queer , tambm, o sujeito da sexualidade desviante homossexuais, bissexuais, transsexuais, [sic] travestis, drags. o excntrico que no deseja ser integrado e muito menos tolerado (LOURO, 2004, p. 7, grifos da autora). Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2007), o termo queer pode ser entendido como estranho, esquisito, incomum, fora do normal, excntrico (SILVA, 2007, p. 105, grifos do autor). 112
bem e o mal, o bom e o mau, o real e o imaginrio, o puro e o impuro, o claro e o obscuro, o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o esprito e a matria, a vida e a morte. As filigranas, as nuances, que fazem o maravilhoso no desabrochar da vida so assim reduzidas ao silncio e monotonia de mais uma conexo binria: eu e o outro.
O que incomoda tanto a escola em relao a esses sujeitos? Seriam os corpos fabricados? Seria a ambiguidade? Seriam as verdades da escola em relao a esses corpos? Para Maria Rita de Assis Csar (2009a, p. 48):
Alunas/os e professoras/es gays, lsbicas, bissexuais, [travestis] e transexuais compem a diversidade contempornea da instituio escolar; entretanto, para esta instituio que nasceu disciplinar e normatizadora, a diferena, ou tudo aquilo que est fora da norma, em especial, a norma sexual, mostra ser insuportvel por transbordar os limites do conhecido.
Aquilo que se coloca como desafio pensar a partir de um campo epistemolgico e poltico desconhecido, considerando que o conhecido est engendrado na heteronormatividade compulsria. Faz-se importante pensar sobre as formas como a escola contempornea constituiu-se em um espao de controle e governo dos corpos e das mentes, produzindo as normas regulatrias que sustentam o sistema corpo-sexo-gnero e, por meio das teorizaes queer, tambm indagar sobre os imperativos heteronormativos que operacionalizam os processos de excluso (BUTLER, 2000). As narrativas de travestis e transexuais produzidas no mbito das entrevistas e do grupo de discusso, bem como os depoimentos gravados em documentrios sobre o tema 117 , explicitam uma relao de estranhamento e de
117 Selecionei trs documentrios, produzidos pelo movimento social LGBT, em que transexuais, embora no tenham sido questionadas/os sobre seus processos de escolarizao formal, constroem narrativas do trauma em relao a essa experincia na escola. Algumas falas desses documentrios foram utilizadas nessa parte. Os documentrios so: VIDA fora do armrio. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2008. 1 DVD (37min), color. SER mulher. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2007. 1 DVD (50 min), color. EU sou homem. Direo de Mrcia Cabral. So Paulo, Prefeitura Municipal de So Paulo, Coletivo de Lsbicas Feministas e Coletivo Minas de Cor, 2008. 1 DVD (23min. 12s), color. Das quatro mulheres transexuais que gravaram o documentrio Ser Mulher, trs abordaram a vida escolar. So elas: Carla, Rafaelly e Mait, que tambm participaram desta pesquisa. Rafaelly cita a relao difcil com a escola, mas no explica. Segundo ela: A sociedade discrimina tudo que diferente para ela mas eu nunca vi uma discriminao to pesada que nem [sic] sofrem as travestis. E as transexuais acabam entrando junto porque a sociedade no sabe diferenciar. Se eu pudesse escolher viver nesse corpo de homem, logicamente eu escolheria porque eu passei sofrimento em colgio, passei dificuldade na famlia, no comeo da aceitao. (Rafaelly). Essa narrativa de Rafaelly, analisada com as outras produzidas para a pesquisa, produz um silenciamento em relao experincia escolar, a qual ela cita, mas no explica. Produz tambm uma hierarquizao e diferenciao entre as identidades travestis e transexuais. Uma anlise dos silenciamentos das narrativas e da hierarquizao entre essas identidades est presente na Parte 4 dessa dissertao. Como a fala construda por Mait em relao experincia de 113
rejeio da instituio escolar frente aos corpos e identidades construdas fora das rgidas normas de gnero. Nesse sentido, Alcione, personagem de um dos documentrios analisados, 118 relata que no conseguia se relacionar no espao escolar.
O colgio, eu acho que foi uma das coisas mais difceis para mim, porque eu no me identificava nem um pouquinho com os meninos e tinha uma excluso por parte das meninas tambm. Elas diziam: No! Menina tem que brincar com menina e menino tem que brincar com menino. Da, com menino eu no brincava. Eu ia brincar com elas. O dia que elas estavam assim, de bem com a vida, at me aceitavam no meio da brincadeira. Minha adolescncia foi um perodo muito triste assim, eu me trancava no quarto e no saa. Eu ficava em casa dias e dias com a minha me... At ir ao mercado era um terror. [...] Eu tenho o Ensino Fundamental incompleto, at a 4 srie. (Alcione)
Carla Amaral, uma das entrevistadas nessa pesquisa, narra sobre os receios em retornar escola depois de um longo perodo de afastamento.
Depois de vinte anos fora da escola por medo... n... [sic] do preconceito e da discriminao... Parei de estudar. E vinte anos depois eu resolvi voltar. Encontrei uma escola e fui. E para minha surpresa... Muito morrendo de medo assim que eu estava de como as pessoas me receberiam ou como receberiam a Carla trans para ser uma aluna dessa escola... No primeiro dia de aula eu no queria ir, eu tive dor de barriga, eu tive clica, eu tive vontade de chorar... Eu no queria ir. Mas eu respirei fundo e fui. Fui, entrei na escola, sentei, fiquei muito acanhada, muito tmida, muito retrada. Eu fiquei muito mal. (Carla)
As narrativas de Alcione e de Carla materializam o funcionamento da escola como um empreendimento biopoltico em que permaneceram, em geral, os corpos e subjetividades desejveis, isto , heterossexuais e normalizados ou no- heterossexuais ocultados. Aos outros corpos e subjetividades cria-se um
escolarizao para o documentrio prxima s fabricadas para essa pesquisa, a anlise das suas narrativas est presente tambm na Parte 4 dessa dissertao, com destaque em nota de rodap. 118 Alcione participou como mulher transexual, do documentrio, intitulado Vida Fora do Armrio, gravado em Curitiba, em 2008. A proposta de elenco desse documentrio diferente quando comparado com o Ser Mulher e Eu Sou Homem, pois rene depoimentos no s de sujeitos transexuais, como tambm de duas lsbicas que se relacionam h algum tempo e, de um gay. No entanto, a temtica geradora a mesma, ou seja, um relato da vida cotidiana. Dele participaram um homem e uma mulher transexual e, embora o enfoque do documentrio no fosse especificamente a experincia de escolarizao formal, tanto Alcione quanto Andr Lucas relatam essa dimenso das suas histrias de vida como algo importante, que merece ser falado. 114
posicionamento exterior instituio escolar 119 , por meio de discursos e prticas pedaggicas, que quando bem empreendidas resultam, com sucesso, na expulso dos sujeitos anormais para a garantia de permanncia dos normalizados. Como a escola se constituiu em uma engrenagem da mquina normativa de excluso sistematizada de travestis e transexuais? (CSAR, 2008, p. 9). O conceito de racismo, ligado biologia, elaborado por Foucault, ao analisar a emergncia do biopoder (FOUCAULT, 2008a) fundamental para se pensar sobre esses processos. Assim, nas anlises de Silvio Gallo (2007, p. 36):
Na medida em que no suportamos a sensao de estrangeiridade, necessrio encontrar elementos para justificar e suportar o processo de apagamento das diferenas. Os mecanismos de excluso que permeiam o cotidiano da escola fundam-se em relaes de racismo, como meio de justificar que o outro (o anormal, aquele que escapa da norma) deve ficar de fora. No cotidiano da escola, as relaes de excluso pelo racismo colocam-se para muito alm da questo de raa, mas trespassam as questes de gnero e de sexualidade, como formas de violncia fsica e simblica.
Dessa forma, o racismo pode ser entendido como um poder de corte, de promoo de uma segmentao na populao, separando, normatizando, controlando e, quando necessrio, excluindo aquelas/es que desviam demais da norma, que no conseguem ser normalizadas/os. Essa excluso justifica-se pela proteo e garantia dos direitos para os que permanecem na norma (GALLO, 2007; CSAR, 2007a). Assim, poder-se-ia perguntar sobre o que a escola enxerga nesses corpos e identidades, produzindo a excluso desses sujeitos? Para Butler (2000), esses corpos so abjetos, materializados por meio da matriz heterossexual no domnio do inumano, portanto, no importando, no pesando e podendo serem descartados sem maiores consequncias. A escola percebe esses corpos a partir de uma matriz de inteligibilidade fixa e excludente, isto , a heterossexualidade normativa (BUTLER, 2000). Alm disso, a escola se coloca no centro e posiciona-os margem. Esta tambm os define e nomeia por meio do seu referencial, como diferentes (LOURO, 2003). No os suporta. O que decorre disso que o racismo
119 Outra possibilidade de efeito do conjunto desses dispositivos em relao a transexuais e escola a produo de um posicionamento exterior internamente aos espaos da instituio escolar, isto , criou-se uma excluso por dentro. Importa refletir sobre como se articularam esses modos de excluso da sociedade e da escola do controle em relao aos sujeitos contemporneos, dentre os quais travestis e transexuais.
115
engendrado pela escola produz um efeito em que a excluso se efetiva, em um nvel timo, na tentativa de garantir padres de qualidade, ao formar as subjetividades desejadas pela pedagogia do controle. 120
A partir de uma anlise da biopoltica contempornea, possvel pensar que na sociedade neoliberal, na qual as exigncias de formao mnima para o exerccio de qualquer atividade profissional intensificaram-se, os efeitos dessa tecnologia do poder empreendida pela escola so potencializados. Ser impedida/o de estudar, hoje no representa somente no estar na escola, mas significa no possuir valor na escala das identidades moduladas pelo controle. Significa, ainda, no ter se esforado o bastante, ser indolente e preguiosa/o, no ter controle sobre si, nem saber planejar a vida e o futuro, obstaculizando o acesso aos bens e servios da sociedade de controle para produzir a subjetividade desejada por ela. A excluso empreendida pela escola contempornea apresenta-se multifacetada e com efeitos amplos sobre a vida dos sujeitos 121 . Para Alcione:
Perdi meu emprego num Hotel que fechou porque o prdio foi interditado. O qu me restou fazer? Tem transexuais do movimento [social de travestis e transexuais] no Brasil que no aceitam transexuais que se prostituem. Tem trans at adequadas que trabalham de professora, mas elas tiveram que brigar muito para estar l. Tiveram que brigar muito e elas tm um grau de estudo, uma instruo boa. No meu caso, eu tenho o Ensino Fundamental incompleto, at a 4 srie. (Alcione)
120 Atualmente, dificilmente se v travestis ou transexuais inseridas/os tanto nas escolas, como no mercado de trabalho formal. Para mais, acessar: Site da Articulao Nacional de Travestis, Transexuais e Transgneros: <http://pessoal.atarde.com.br/marccelus2/antra/plantao.html>. Acesso em: 12/07/2010; site da Associao em defesa dos Direitos Homossexuais da grande Florianpolis ADEH - Nostro Mundo: <http://adeh-nostromundo.blogspot.com/>. Acesso em: 12/07/2010; site da Associao Brasileira de Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - ABGLT: <http://www.abglt.org.br/port/index.php>. Acesso em: 12/07/2010. Alguns relatos desses sujeitos enfatizam que a maioria dessa populao est envolvida com a prostituio, por possurem uma formao escolar insuficiente para uma oportunidade em outras profisses. Essa afirmao produziu uma narrativa comum aos sujeitos entrevistados nessa pesquisa. importante lembrar, entretanto, que pesquisas quantitativas que demonstrem essa afirmao dos sujeitos inexistem. Talvez pela fluidez e trnsito caracterstico a essa populao. comum que esses sujeitos migrem para outros locais em busca de oportunidades financeiras mais lucrativas. Um exemplo disso so as viagens internacionais em busca de outras oportunidades de trabalho. Alcione, personagem do documentrio Vida Fora do Armrio, participaria dessa pesquisa, mas embarcou para a Europa no decorrer do seu desenvolvimento. A fala de Xande, um homem transexual que participou, juntamente com Celinho, do documentrio Eu Sou Homem, explicita a dificuldade em retomar os estudos devido s suas memrias traumticas em relao escola. Para ele: Eu acho ainda complicado voltar pra escola, eu sei que eu tenho que terminar meus estudos, mas eu no consigo entrar em numa escola, eu me sinto em um lugar que eu no tenho sada, quando estou dentro de uma escola (Xande). 121 Assim, na sociedade de controle, dificilmente se encontra travestis e transexuais atuando como mdicas/os, engenheiras/os, arquitetas/os, jornalistas, pilotos, ou aeromoas. A atuao profissional referente a essas profisses implica o cumprimento de etapas fixas, subsequentes e bem delimitadas pela escolarizao formal. E apenas um nmero reduzido de travestis e transexuais consegue completar essas etapas com sucesso na atualidade. 116
Na lgica binria da escola, esses sujeitos significam (des)ordem. Talvez por colocarem em xeque o sistema corpo-sexo-gnero por meio da ambiguidade que apresentam em relao s normas de gnero to bem engendradas e naturalizadas nos espaos e tempos escolares. Para pensar sobre isso, importante lembrar a organizao dos espaos e das muitas atividades e at mesmo de disciplinas, como a Educao Fsica 122 , por exemplo, que, muitas vezes, materializam as diferenas de forma binria e heteronormativa. As teorizaes queer, assim como as experincias transexuais e travestis desestabilizam tambm a prpria categoria de gnero. Na perspectiva binria, o gnero foi construdo a partir da consolidao dos dispositivos da sexualidade e da heterossexualidade por meio do dimorfismo sexual 123 e de um pressuposto naturalizado do sexo e do gnero (BUTLER, 2008). Pensar a partir das teorizaes queer significa romper radicalmente com o pensamento que produz e faz funcionar o sistema corpo-sexo-gnero, este por sua vez, fundado no binarismo e centrado na conjugao do binmio normal/anormal. O queer tem como pressuposto descentrar o centro, isto , questionar o lugar central de um conjunto de caractersticas subjetivas como ser branco, homem, heterossexual (LOURO, 2003). O queer aproxima-se do abjeto e pensa a partir da diferena e da performatividade, demonstrando a artificialidade da construo do gnero, do sexo e do corpo (BUTLER, 2000). A proximidade entre a teoria queer e a ambiguidade remete prpria materializao dos sujeitos travestis e transexuais, pois para muitos deles a ambiguidade representa a prpria a satisfao do desejo 124 . Esse movimento pode ser percebido nos sujeitos que fabricam seus corpos e escolhem seus nomes sociais como uma forma de estar no mundo. Entretanto, para alm dos sujeitos e das classificaes, queer um modo de pensar e de interpretar o mundo que pode ser estendido para a educao, suas instituies, seus discursos, normas e
122 Certamente a disciplina escolar de Educao Fsica se reorganizou (ALTMANN, 1998; AUAD, 2004; DORNELLES e FRAGA, 2009). Entretanto, em certas localidades, como no Estado do Paran, por exemplo, algumas escolas pblicas estaduais insistem em separar meninas de meninos durante as aulas dessa disciplina. Sobre isso acessar: ESPLENDOR, Elizabeth Vieira dos Santos. Educao escolar e desafios contemporneos. Unidade Pedaggica inserida no Caderno Pedaggico. Disponvel em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2274-6.pdf?PHPSESSID=2010012008183564>. Acesso em: 05/07/2010. 123 O conceito de dimorfismo sexual foi trabalhado na Parte 2 dessa dissertao. 124 Com isso, no se quer afirmar que todas as experincias travestis e transexuais desejam a ambiguidade ou a fronteira. Pelo contrrio, essas experincias so mltiplas e apresentam vrias nuances. Em muitas delas, h o desejo pelo centro, pelo encaixe na norma e, em outras, os sujeitos no se reconhecem em nenhuma categoria, nem aceitam qualquer tipo de definio ou classificao. 117
procedimentos. Uma forma de pensar que possibilita rupturas e deslocamentos em relao aos pressupostos da escola, desafiando o monstro do controle. Nesse sentido, Guacira Lopes Louro argumenta que:
Queer um jeito de pensar e de ser que no aspira o centro nem o quer como referncia; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatrias da sociedade, que assume o desconforto da ambigidade, do entre lugares, do indecidvel. Queer um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2004, p. 7-8, grifos da autora).
Assim, as teorizaes queer desestabilizam a nova ordem pedaggica do controle em relao ao sistema corpo-sexo-gnero, assumindo uma fluidez em relao a esse sistema, no se incomodando em localizar-se na fronteira entre um sexo e outro, entre um gnero e outro, entre uma sexualidade e outra. Pensar queer consiste no enfrentamento e na desconstruo da lgica do binrio. Um posicionamento queer, frente lgica estabelecida pela sociedade do controle, possibilita adentrar a multiplicidade, entendendo como possveis as vrias formas do desejo e da fabricao de corpos e identidades, demonstrando tambm a artificialidade daquilo que compreende como natural. Esse posicionamento subverte tambm as respostas prontas que professoras e professores, direo, equipe pedaggica e as/os novas/os gestoras/es da educao trazem consigo sobre currculos e prticas pedaggicas. Nas anlises de Guacira Lopes Louro (2004, p. 28-29):
O grande desafio no apenas assumir que as posies de gnero e sexuais se multiplicaram e, ento, que impossvel lidar com elas apoiadas em esquemas binrios; mas tambm admitir que as fronteiras vm sendo constantemente atravessadas e o que ainda mais complicado que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem exatamente a fronteira. Escolas, currculos, educadoras e educadores no conseguem se situar fora dessa histria. Mostram- se, quase sempre, perplexos, desafiados por questes para as quais pareciam ter, at pouco tempo atrs, respostas seguras e estveis. Agora, as certezas escapam, os modelos mostram-se inteis, as frmulas so inoperantes. Mas impossvel estancar as questes. No h como ignorar as novas prticas, os novos sujeitos, suas contestaes ao estabelecido. O anseio pelo cnone e pelas metas confiveis abalado. A tradio imediatista e prtica leva a perguntar: o que fazer? A aparente urgncia das questes no permite que se antecipe qualquer resposta; antes preciso conhecer as condies que possibilitaram a emergncia desses sujeitos e dessas prticas (grifos da autora). 118
Andr Lucas, um dos entrevistados nessa pesquisa e tambm personagem do documentrio Vida Fora do Armrio 125 , relata que desde pequeno foi alvo da produo das reiteraes das normas de gnero (BUTLER, 2000). Para ele:
O mundo muito dividido entre masculino e feminino e isso imposto para a criana desde pequena. Eu fui para a escola com um ano e sete meses. Ento, muito jovem pra vir com aquela coisa de me dar boneca. Eu no queria boneca. Eu queria os carrinhos! Eu queria a bola! Pelo menos at a minha adolescncia era muito claro pra mim. Eu era um menino e as pessoas que eram idiotas e que no estavam enxergando aquilo. (Andr Lucas)
A escola contempornea tambm pensa, objetiva e classifica seus sujeitos por meio da sua genitlia, ou seja, no campo biolgico. Para uma/um transexual ou travesti, uma atitude cotidiana, como utilizar o banheiro da escola ou ser nomeada/o por algum, transforma-se em problema. Em um artigo, Helena Altmann e Carlos Jos Martins (2007) analisam a fala de uma diretora de escola sobre uma aluna travesti que abandonou a escola na infncia. Com vinte anos, a aluna foi matriculada pela me no Ensino Fundamental, na modalidade de Educao de Jovens e Adultos EJA, no perodo noturno. Depois de efetuada a matrcula da jovem, a diretora a chamou para uma conversa sobre o uso do banheiro 126 . Qual banheiro ela vai usar? Depois da conversa, mesmo a aluna dizendo que est acostumada a frequentar banheiros femininos, a diretora decidiu que o banheiro que ela utilizaria seria o masculino, em razo de sua identidade civil e biolgica. O motivo pelo qual essa deciso foi tomada consiste em, segundo a diretora, no causar estranheza e constrangimento s senhoras que ali estudam (ALTMANN e MARTINS, 2007, p. 134). Apesar da conversa entre a diretora e a aluna, o nome utilizado na escola tambm foi o civil, isto , o masculino. Dessa forma, para a autora e o autor:
Fisiologicamente, e perante a sociedade, ele do sexo masculino, afirma a diretora. Vemos, nesse raciocnio, o biolgico sendo colocado na origem da identidade de gnero. Podemos, no entanto, questionar se o rgo sexual masculino mais definidor de sua identidade de gnero do que os seus desejos, sentimentos, jeito de se vestir, de se comportar, etc. Vestir-se, comportar-se e sentir-se
125 Andr Lucas um dos sujeitos dessa pesquisa e participou desse documentrio, juntamente com Alcione. 126 A utilizao do banheiro constituiu-se tambm em uma das subcategorias de anlise desenvolvidas por essa dissertao na Parte 4. 119
como mulher no seriam mais determinantes para a sua identidade do que os rgos sexuais? Alm disso, algum vestida de saia, sapato de salto, maquiada, com bolsa e cabelo comprido produzir mais constrangimento num banheiro feminino ou masculino? Todos esses smbolos de feminilidade esto muito mais visveis do que um rgo sexual, que no precisa sequer ser visto por algum, no uso do banheiro. Por fim, no poderia a escolha de Cristina ser o critrio de definio do banheiro a ser freqentado? (ALTMANN e MARTINS, 2007, p. 135, grifo da autora e do autor). 127
Assim como nessa situao analisada por Altmann e Martins (2007), Celinho, um homem transexual, retratado no documentrio Eu Sou Homem 128 , relata suas dificuldades para ter sua nova identidade de gnero reconhecida na escola:
Eu no queria colocar calcinha, vestidinho, nada disso, eu queria colocar o calo do meu irmo. Eu queria ir pra escola, colocar um tnis, chegar na hora do recreio e jogar futebol com a molecada. A, eles pensavam: aquela maria-homem. Maria-homem por qu? No pela minha fisionomia, mas por causa do nome. A, a professora vinha e falava assim: Voc no vai falar presente? E eu falava: Mas a senhora no falou meu nome! Ela falava: Falei sim! Falei seu nome. E eu dizia: Esse no meu nome! E ela disse: sim! A, eu falava: Ento eu no vou responder! A, eu ficava calado. Ento, ela sabia que era eu e no perguntava mais, porque ela via que eu estava l. (Celinho)
Apesar dos PCNs, das abordagens sobre Educao Sexual/Orientao Sexual ou Educao para a sexualidade (como so denominadas), dos cursos de formao continuada para professoras/es, entre outras aes, a presena de travestis e transexuais na escola incomoda, perturba e chega s vias do insuportvel. No parece ser uma experincia que consiga ser apaziguada pelos ordenamentos da sociedade de controle. Do ponto de vista da teoria queer uma experincia que, ao contrrio, escapa e subverte. Esses corpos e identidades escapam do controle da instituio e da sociedade, isto , travestis e transexuais, no raras vezes, no desejam ser includas/os, respeitadas/os ou aceitas/os se, para isso, tiverem que abrir mo do que sentem e da forma como se fabricaram produzindo corpos e identidades.
127 Para Maria Rita de Assis Csar importante problematizar a ideia de escolha quando se discute a construo das identidades de gnero de transexuais, pois, para a autora, [] importante ressaltar que a ideia de escolha sempre muito frgil, pois as experincias transexuais demonstram mltiplas formas de estar no mundo como homem e mulher. (CSAR, 2009b, p. 152). 128 No documentrio Eu sou Homem, gravado em 2008, na cidade de So Paulo, dois dos quatro homens transexuais que participaram explicitam suas percepes sobre o perodo em que estiveram na instituio escolar. 120
Guacira Lopes Louro (2004) argumenta que a teoria queer diz respeito a uma disponibilidade para conhecer aquilo que era impensvel, argumentando sobre as limitaes do conhecimento. Para ela a possibilidade estaria marcada sobre [...] o que ou quanto um dado grupo suporta conhecer (LOURO, 2004, p. 65). Essa questo se torna fundamental para pensar o impensvel sobre a escola e a experincia transexual, pois convida a um mergulho no (des)conhecido, a escapar da domesticao das alteridades produzidas pela pedagogia do controle e a resistir e criar, desestabilizando a docilidade e o governo a partir da compreenso da educao como um ato poltico de liberdade (CSAR, 2004). Nas anlises de Gallo (2007, p. 31-32):
A liberdade inerente condio humana, mas nem sempre exercitada. Para que sejamos livres de fato, necessrio que conquistemos e construamos a liberdade. E penso que a liberdade s possvel se todos so livres; no pode haver liberdade de uns, quando ela condio de opresso de outros.
Assim, importa pensar a educao como ato de resistncia ao novo monstro do controle. Considera-se que as experincias aqui narradas construram alteridades a partir da sua fabricao, dolorosa, caprichosa e autntica. Da mesma forma, importante reconhecer do dia-a-dia escolar, entendido como os acontecimentos cotidianos, as possibilidades e linhas de fuga em relao nova ordem imposta pelo controle. Para o mesmo autor:
Abrir-se para as relaes do cotidiano da escola, mergulhar nesses acontecimentos, agindo como vetor de transformao possibilidade de resistir excluso e investir na construo da cidadania. [...] Para resistir importante abrir-se ao acontecimento. Estar atento quilo que ocorre no cotidiano da escola, a fim de potencializ-lo criativamente, e no ser tragado engolido pelo acontecimento. Perder-se no acontecimento, no conseguindo produzir, to ruim quanto estratific-lo, faz-lo perder a potncia, dominando os fluxos e reenquadrando as diferenas na norma. Resistir e criar. Essas so as possibilidades que nos abre o cotidiano da escola, quando escolhemos agir no fluxo dos acontecimentos (GALLO, 2007, p. 38- 39).
Pensar queer para resistir e criar diante dos acontecimentos do cotidiano escolar parece ser possvel por meio da aproximao entre escola e a multiplicidade das experincias transexuais. Essa aproximao, pautada pelo questionamento e 121
pela pluralizao, pode produzir um deslocamento nas formas de pensar as sexualidades engendradas pelos discursos e por meio de prticas. Considerando com isso as alternativas e combinaes do desejo, ser possvel a produo de pedagogias que engendrem menos discursos [e prticas] normalizadores[as] dos corpos, dos gneros, das relaes sociais, da afetividade, [dos desejos] e do amor (BRITZMAN, 1996, p. 93).
122
PARTE 4 ENTRE AS TRAMAS E PERFORMANCES DA MEMRIA
A memria a costureira, e costureira caprichosa. A memria faz a sua agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para c e para l. No sabemos o que vem em seguida, o que vir depois (Virgnia WOOLF, 2003, p. 53-54).
Nesse quarto e ltimo captulo da dissertao nos deparamos com a caprichosa costura da memria das experincias transexuais 129 . Entre lembranas, silncios, esquecimentos e performances 130 , as narrativas 131 foram produzidas percebendo-se que a memria se movimenta em mltiplas direes, construindo diversos sentidos. A partir das costuras da memria, alinhavadas pelo ato de narrar-se, essa dissertao indagou sobre as experincias escolares da transexualidade e outras tramas, isto , histrias que demonstram a constituio da subjetividade, do corpo e da identidade. As narrativas analisadas compuseram uma cartografia 132 das experincias transexuais. Com efeito, podemos aqui afirmar que o trabalho cartogrfico produzido com esta pesquisa aproximou-se, analogamente, da construo dos corpos transexuais. Assim como no mtodo cartogrfico, corpos transexuais compem um desenho cartogrfico, em outras palavras, um desenho dinmico que se desloca produzindo novas rotas que correspondem ao desejo de produzirem corpos e histrias femininas e masculinas. Dessa forma, corpos transexuais so aqui tomados
129 Como foi explicado na primeira parte dessa dissertao, as entrevistas foram realizadas com seis mulheres e um homem transexual. Foi realizado tambm um grupo de discusso com dez sujeitos, inicialmente, dentre os quais trs se reconheceram como travestis e sete como mulheres transexuais. 130 Utiliza-se aqui a idia de performance em dois sentidos. Em primeiro lugar porque a performance est presente na produo de si em todas as narrativas utilizadas para esta pesquisa. Transexuais, mulheres e homens, hetero, homo e bissexuais, conforme se descrevem, sempre realizaro performances de gnero e da identidade desejada e/ou construda nos processos de transformao. O conceito de performance tambm fundamental para esse trabalho, considerando que para Judith Butler as identidades de gnero e sexuais sero sempre performativas (BUTLER, 2000, p. 154). No caso de uma reflexo sobre a memria das experincias transexuais poder se pensar em algo como uma performatividade da memria. E por que no pensar que para todas/os ns seja assim? 131 Lucilia de Almeida Neves Delgado define um conceito sobre narrativas a partir das teorizaes de Walter Benjamin. Para a autora, [n]arrativas sob a forma de registros orais ou escritos so como caracterizadas pelo movimento peculiar arte de contar, de traduzir em palavras as reminiscncias da memria e a conscincia da memria no tempo. [...] So suportes das identidades coletivas e do reconhecimento [da mulher] do homem como ser no mundo. Possuem natureza dinmica e como gnero especfico do discurso integram a cultura de diferentes comunidades. So peculiares, incorporam dimenses materiais, sociais, simblicas e imaginrias. Plenas de dimenso temporal tm na experincia sua principal fonte [...] (DELGADO, 2003, p. 21-22). 132 O conceito de cartografia foi explorado na Parte 1 dessa dissertao. 123
como cartografias que desafiam e subvertem a ordem natural e biolgica estabelecida pelas normas de gnero. So corpos cartogrficos porque se fazem e refazem nos processos de fabricao de si, como as linhas de uma cartografia, repletas de incertezas, apagadas e re-traadas a cada novo re-comear. Pensar sobre a memria a partir de uma perspectiva cartogrfica torna-se fundamental para as discusses que se apresentam nessa dissertao. Como afirma Lucilia de Almeida Neves Delgado (2003, p. 17), [o]s conceitos e significados da memria so vrios, pois a memria no se reduz ao ato de recordar. [...] Dessa forma, o conceito de memria no homogneo e conforma-se por mltiplos significados [...]. O conceito de memria trabalhado nessa dissertao aproxima-se das teorizaes de Jacques Le Goff (2003). Para este autor, a memria se constitui como uma parte importante daquilo que se convencionou chamar de identidade dos sujeitos, sendo tambm construda e utilizada como um objeto de poder. Segundo Le Goff (2003, p. 469-470):
A memria um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca uma das atividades fundamentais dos indivduos e das sociedades de hoje, na febre e na angstia. Mas, a memria coletiva no somente uma conquista, tambm um instrumento e um objeto de poder. So as sociedades cuja memria social , sobretudo, oral, ou que esto em vias de constituir uma memria coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominao da recordao e da tradio, esta manifestao da memria (grifo do autor).
Para Le Goff (2003), a memria como um campo de disputas de poder e de desejo de dominao sobre aquilo que deve ser lembrado e tambm esquecido ou apagado, coloca-a em uma posio central na construo das identidades. Os processos de produo e fabricao de uma determinada memria foram observados na construo da identidade das/o transexuais/l entrevistadas/o para essa pesquisa. Por exemplo, a maior parte das/o entrevistadas/o remetia infncia um sentimento de no pertencimento ao universo feminino ou masculino. Alm das narrativas de no pertencimento, outras explicitaram a necessidade de pertencer e de se identificar com o modelo dicotmico do sistema sexo-corpo-gnero. Tais narrativas foram produzidas por meio das costuras entre lembranas e esquecimentos, tanto em relao infncia lugar escolhido pela 124
maioria das/o entrevistadas/o como lugar ontolgico da experincia transexual como na direo do gnero identificado, isto , a certeza em relao ao gnero produzido. Para esses sujeitos:
As lembranas que eu tenho so aos cinco anos, onde [sic] hoje eu percebo a minha condio de mulher trans nessa fase. Pelas minhas atitudes, pelas coisas que eu gostava de fazer, pelo meio em que eu me identificava e me sentia bem em estar. Eu s brincava com meninas. Nunca tive amigos meninos. Quando comecei a fazer amizades, as minhas amigas eram as filhas das vizinhas. Engraado que isso eu trago para a minha vida adulta. Eu tenho poucos amigos homens, independente das suas orientaes. (Carla Amaral, E)
Percebi desde cedo que era diferente, no sei precisar o tempo exato, mas desde muito cedo soube que tinha algo de errado. E errado assim, justamente com esse juzo de valor, porque eu sabia que no era o que se esperava de mim. Percebi que eu tinha interesses, desejos diferentes dos que se esperava de mim. Eu era um menino e as pessoas que eram burras e no viam isso. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Mas desde muito cedo eu j sabia. Eu sempre s brincava com as meninas. Minha identificao foi sempre com a minha irm, eu no tive vnculo nenhum com o meu irmo e isso causava uma srie de incmodos. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
As trs narrativas citadas constroem um sentido para a transexualidade que busca algo em uma natureza de cada uma dessas infncias narradas. Para Leonor Arfuch (1995, p. 68), [l]a infancia aparece como territorio privilegiado, como clave de inteligibilidad donde se acecha el momento en que surgen las primeras manifestaciones de lo que convoca el momento presente (grifo da autora). Ainda de acordo com a autora, [l]a infancia es un territorio privilegiado, donde se encuentran las claves del presente, el xito, la notoriedad, la excelencia, que hacen del entrevistado un personaje (ARFUCH, 1995, p. 88, grifo da autora). Percebe-se que infncia acaba por responder a uma necessidade de buscar a razo e o sentido para a realizao da experincia transexual. Essa razo ser encontrada ou construda a partir de uma narrativa sobre a infncia, como se naquele lugar especfico do passado, a verdade sobre si mesma/o j estivesse inscrita nos corpos e subjetividades. Uma percepo sobre a diferena ou o no pertencimento ao sexo-gnero determinado por um corpo, ou ainda, a falta de ligao identitria com os indivduos do mesmo sexo, estaro sempre nesse lugar. 125
Cada um desses elementos parte de um constructo individual e coletivo sobre a experincia transexual. As narrativas dessa pesquisa consistem em uma seleo de memrias que articula processos de lembrana e esquecimento, relato, omisso e silenciamento. Para Mrcio Seligmann-Silva (2003, p. 62), [o] registro da memria , sem dvida, mais seletivo e opera no double bind entre lembrana e esquecimento, no tecer e destecer [...] (grifos do autor). Como se d esse processo de lembrana e esquecimento? Poderia se afirmar que esse um processo dinmico e contnuo, em que a costura das lembranas, ou aquilo que se quer lembrar, tem uma relao direta com a memria coletiva e possui uma finalidade localizada no tempo. A esse respeito Berenice Bento argumenta:
A organizao das lembranas funciona como um recurso para legitimar suas histrias de insatisfao com o gnero imposto. A infncia uma fase da vida evocada com grande fora. No entanto, a memria no pode ser compreendida como um arquivo de imagens que posto em movimento em suas narrativas. Relembrar um ato interpretativo, no qual o sujeito atualiza uma leitura sobre o passado e as lembranas so matizadas pelas condies do presente (BENTO, 2006, p. 167).
Nessa dissertao, as lembranas e os esquecimentos, as costuras, os tecidos e (des)tecidos das/o transexuais/l organizaram-se por meio do que denominei de atos performativos da memria. Essa ao, ou esses atos performativos, precisam ser entendidos como uma detalhada e caprichosa produo das narrativas que evocam lembranas e esquecimentos, como em um trabalho de produo de um corpo ou de uma subjetividade pretendida. A performance uma ao constitutiva da experincia transexual, assim como tambm um conceito chave para Judith Butler analisar a produo das identidades de gnero. 133 Importa considerar que em cada ato de fala realizado na entrevista, a memria se reconstri em um ato performativo no qual o enunciado a matria dessa produo (ARFUCH, 1995). Assim, passado e presente esto em constante processo de construo em uma articulao de fragmentos que produziro os atos performativos. Nesse sentido, as narrativas dos sujeitos evidenciam tambm aquilo que desejam relatar:
133 Essa discusso foi realizada na segunda parte dessa dissertao, em que os conceitos utilizados foram analisados. 126
Engraado que era muito fcil meu relacionamento com o mundo feminino. Eu fazia amizade fcil e brincava. E compartilhava aquela brincadeira de menina, sem ter distino e dizer assim: Ah, voc menino, voc no pode brincar comigo assim! As minhas amigas aceitavam muito bem. At quando vinha o momento do adulto, quando percebia que eu permanecia tempo demais naquilo. A minha me percebia que eu estava h tempo demais brincando de casinha, brincando de boneca... A vinha o momento da repreenso: Voc no pode porque voc menino, voc tem que brincar de carrinho, voc tem que jogar bola. E eu odiava isso... Odiava, odiava e como eu odiava. (Carla Amaral, E)
Eu comecei a ser percebido como diferente desde muito cedo. Muito cedo eu ca na armadilha das normas de gnero. Por isso eu falo que hoje eu no sei se sentia interesse pelas coisas tidas como de menino ou se como eu me sentia um menino, eu me forava a s ter interesse pelas coisas reconhecidas como de menino. E quando eu me forava a ter interesse pelas coisas s de menino, eu ia atrs disso. Eu no queria boneca, eu queria carrinho, eu queria bola. E as pessoas no entendiam. Eu no queria usar vestido, nem deixar o cabelo comprido. A eu colava chicletes para a minha me ter que cortar. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Eu trocava os presentes que ganhava no natal, porque eu j sabia que a minha irm ia ganhar alguma coisa que eu queria. Ento, eu colocava meu nome no dela e o dela no meu. E eu ganhava os presentes dela e era a maior confuso. Coisas que a gente passa... Mas foi desde muito pequena que eu me percebi diferente, porque as pessoas vinham e diziam para a minha me: Nossa, que bonitas as suas filhas!, e minha me dizia: No filha, filho! Desde o comeo eu percebi, pelas atitudes, pelas aes, por tudo, pelos brinquedos que eu no queria, como eu falei. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Arfuch (2008), teorizando sobre as memrias traumticas e narrativas femininas, destaca que o eu narrativo, embora se pretenda autobiogrfico, muitas vezes pode no ser. Ao se contar uma histria, vrios elementos so deslocados sobre um referencial construdo na cultura. Esse deslocamento provoca uma associao caprichosa das recordaes. Alm disso, a autora explica o paradoxo de se ser o mesmo e o outro ao articular os movimentos de ir e vir da linguagem, a temporalidade e o sentido da fala que narra. Arfuch destaca tambm a falta de controle do eu narrativo sobre a leitura e a escuta dessa narrativa construda, para quem poder fazer sentido quilo que se deseja silenciar. Para Arfuch (2008, p. 5):
As, ms all del grado de veracidad de lo narrado, de los propsitos de autenticidad o la fidelidad de la memoria registros esenciales en el plano tico se tratar siempre de una construccin, en la que el 127
lenguaje o la imagen o ambos imprimen sus propias coordenadas, el orden del decir o del mostrar, sus procedimientos, su retrica, las convenciones del gnero discursivo elegido, las infracciones que todo gnero tolera o alienta, las voces que hablan inadvertidamente en la propia voz, las insistencias del inconsciente, la caprichosa asociacin de los recuerdos. El yo narrativo no es necesariamente autobiogrfico aunque as se presente y el autobiogrfico no tiene patente de inequvoca unicidad por ms que intente y crea contar siempre la misma historia: la iterabilidad derrideana pone en evidencia esa paradoja de ser el mismo y otro cada vez, en la deriva del lenguaje y los avatares de la temporalidad, de ese deslizamiento del sentido en los vaivenes del discurso y su ms all, lo ingobernable de su apropiacin en la lectura o en la escucha, en esa atencin modulada donde quiz hace sentido aquello no marcado, lo sbito, lo inesperado, lo rechazado, lo silencio... (grifos da autora).
Nessa perspectiva, importa tambm pensar que nenhuma performance narrativa a expresso nica de verdade. Alm disso, nenhuma performance narrativa igual outra. A mesma histria contada pela/o mesma/o narradora/r algumas vezes para interlocutoras/es diferentes e em momentos diferentes provavelmente ser contada de diversas formas. Isso, conforme Arfuch, no garante /ao narradora/r que a leitura, interpretao ou escuta, atinja os objetivos desejados pelos sujeitos ao construir a fala. O ato de escuta, bem como o referencial a partir do qual se escuta, tambm se torna importante na medida em que pressupe uma disposio diferenciada do prprio ato de ouvir. A escuta, nesse sentido, pressupe ouvir aquilo que dito e tambm o que no o . Conforme a autora:
Pequeos relatos que podemos escuchar disponiendo el odo en el sentido tenso que le ortoga Derrida tanto en el silencio de la escritura como en la voz trmula del testimonio que da cuenta de una memoria traumtica, compartida; en la historia de vida que se ofrece al investigador[a] como rasgo emblemtico de lo social; [...] a menudo sin voz de la catstrofe y el sufrimiento, que los medios han convertido en uno de los registros paradigmticos de la poca (ARFUCH, 2008, p. 2, grifo da autora).
Sobre a escuta do esquecimento e da dor, Andria Cristina Schuz, uma das entrevistadas nessa pesquisa, disse: [e]u tenho um pouco de lapso de memria.... Esse lapso de memria, verbalizado por Andria, poderia ser entendido por meio do desconforto da fala e da dor expressa no silncio como um movimento em busca de coerncia na produo das suas memrias. Carla Amaral (E) relatou: [s]ei que 128
jamais serei uma mulher, porque se eu morrer hoje em um acidente e meu corpo ficar carbonizado tero que fazer um exame de DNA para me identificar e vo achar um XY e no um XX. Aqui, a narrativa da dor explicitada: a dor de no ser aquilo que se deseja, depois de tudo o que j foi realizado. Carla produz uma narrativa que justifica a sua feminilidade, entretanto, para ela existe uma natureza que a condena, pois ainda o ltimo reduto natural, o seu DNA, ir conden-la a masculinidade indesejada. Assim como na elaborao das narrativas e nas costuras da memria de sobreviventes da barbrie da guerra, essa busca pela coerncia talvez pressuponha uma mutilao da memria. Conforme Alessandro Portelli (2006), ao analisar a descrio de Antonio Parisella 134 sobre o tipo de lembrana que esquece:
Terra de ningum uma boa metfora para os sentimentos de ambivalncia dessa lembrana. Para que sua experincia vivida fizesse sentido, o povo de Cisterna precisou fazer um inventrio de suas lembranas e sentimentos e separar os legtimos dos que ficavam melhor esquecidos luz do relato total da guerra. Para construir uma memria coerente, ento, [elas e] eles precisaram primeiro mutil-la. Suas lembranas s se tornaram aceitveis depois que a lembrana do ressentimento foi relegada terra de ningum da vergonha e do inaceitvel (PORTELLI, 2006, p. 81, grifo do autor).
Dessa forma, uma anlise das costuras da memria de transexuais poder remeter-se s memrias de sobreviventes da guerra, nas quais o abandono de algumas lembranas parece ser fundamental para a produo de sentido das narrativas. Quando se est analisando as memrias do ps-guerra, assim como as memrias de situaes e experincias traumticas, acontece um deslocamento e a anlise se torna complexa, considerando que numa mesma tessitura pode-se perceber o que o sujeito deseja esquecer e o que no consegue deixar de lembrar. Para Portelli (2006, p. 72):
Lembrar e esquecer no mais se dividem [...] em textos alternativos; melhor dizendo, esto to intimamente envolvidos nos mesmos textos que no podem mais ser separados. [...] Lembrar pode ser
134 Historiador que descreve essa espcie de lembrana que esquece em seu relato sobre os eventos de Cisterna, a meio caminho entre Anzio e Roma, utilizando a metfora da terra de ningum para explicitar o estado da conscincia dos sobreviventes guerra da regio de Cisterna. Para Parisella: Por algum tempo, sua conscincia foi uma espcie de terra de ningum (1989[sic], p. 39, apud PORTELLI, 2006, p. 81, grifo do autor). Para mais consultar: PARISELLA, Antonio. Sopravvivere liberi: Riflessioni sulla storia della Resistenza a cinquantanni dalla liberazione. Roma, Gangemi, 1999. 129
uma forma de esquecer e no ato de esquecer pode subsistir uma lembrana inesquecvel (grifo do autor).
Arfuch (2008) tambm problematiza esse deslocamento e a complexidade da anlise das experincias traumticas. Para a autora, a memria dos sujeitos e a sua costura em narrativas por meio da performatividade da linguagem 135 de alguma forma constri os prprios sujeitos, uma vez que voltar a dizer significa voltar a viver a experincia. Nesse sentido, Mait (E) afirma: [m]as, parece que no vai acabar nunca, porque eu vou revivendo cada vez que eu falo. Com isso, a narrao torna- se tanto um ato de conferir forma prpria histria, como um trabalho de luto, quando falar pode representar uma necessidade. Alm disso, ao se trabalhar com memrias traumticas, reescrevem-se as relaes de interao, nas quais escutar assume uma responsabilidade tica em relao a quem narra. Para Arfuch (2008, p. 3):
Si de algn modo las narrativas del yo construyen los efmeros sujetos que somos, esto se hace an ms perceptible en relacin con la memoria y la elaboracin de experiencias traumticas. All, en la dificultad de traer al lenguaje vivencias dolorosas que estn quiz semiocultas en la rutina de los das, en el desafo que supone volver a decir, donde el lenguaje, con su capacidad performativa, hace volver a vivir, se juega no solamente la puesta en forma y en sentido de la historia personal sino tambin su dimensin teraputica la necesidad del decir, la narracin como trabajo de duelo y fundamentalmente tica, por cuanto restaura el circuito de la interlocucin y permite asumir el escuchar con toda su carga significante en trminos de responsabilidad por el otro (grifos da autora).
Nessa perspectiva, ao analisar memrias traumticas, o ato de escutar suscita uma responsabilidade para com o outro, pautada em uma tica, anterior ao outro. Para Carlos Skliar (2008, p. 27), [d]igamos que a preocupao com o outro denota uma tica que , que deve ser anterior ao outro, a qualquer outro ao seu rosto, a qualquer rosto, ao seu nome a qualquer nome [...]. Assim, o processo de recriao do passado poderia ser entendido como uma performance ou a
135 Para Leonor Arfuch, a performatividade da linguagem consiste em entender o carcter eminentemente creador, transformador da realidad (ARFUCH, 1995, p. 46). Para a autora, amparada nas teorizaes de John Austin, esse carter prprio da linguagem em movimento. Ainda segundo a autora: As, todo enunciado, ms all de lo que diche cumple un acto ilocutorio por el hecho mismo de su enunciacin, un hacer inherente al lenguaje: afirmar, proponer, objetar, opinar, interrogar, negar, prometer, ordenar, aconsejar, etc. En este sentido, lejos de ser un mero reflejo de lo existente, produce modificaciones en la situacin, generando nuevas relaciones entre los [las] interlocutores[as] (ARFUCH, 1995, p. 46, grifo da autora). 130
elaborao de um pensamento e de uma narrativa performtica pelos sujeitos envolvidos ou, ainda, como um ato performativo da memria. Esse ato performativo d-se a partir de referenciais normativos que produzem um outro ilusrio sobre o mesmo que se est narrando. Essa reflexo ampara-se na reiterao dos discursos, como proposta por Butler (2000) e recria os prprios sujeitos e suas formas de estar no mundo. De outra forma, a experincia da dor e do sofrimento (re)significada pelas/o transexuais/l em meio expectativa das mudanas. Transformar o corpo em direo ao gnero identificado e no permanecer com o que foi imposto pela biologia aparece de forma marcante nos relatos, como uma condio sine qua non da liberdade e da felicidade. As/o transexuais/l dessa pesquisa narram sensaes repletas de desejos de liberdade, principalmente em relao necessidade das cirurgias para corrigir o corpo, readequando-o ao seu gnero. Nesse sentido, Carla Amaral relata: [s]ou uma mulher que nasceu no corpo errado. S serei feliz e terei uma vida plena com a minha cirurgia. Importa considerar que na costura das memrias enredam-se expectativas frente s possibilidades de alterao do corpo e frustraes perante os limites, dores, sofrimentos e descontentamentos. Os atos performativos da memria consistem em recortes intencionais dos sujeitos sobre suas experincias e na fabricao das suas narrativas a partir das suas referncias sociais e dos contextos em que esto inseridos 136 . Para Bento (2006, p. 167-168):
Se o social que fornece as matrizes por meio das quais os indivduos processam suas lembranas, ele, o sujeito quem recorda, a partir de uma leitura singular [e intencional, muitas vezes,] do seu passado. [...] a memria [...] est condicionada aos espaos sociais em que [o sujeito] transita no momento em que essa memria evocada. No basta afirmar que recordar interpretar; deve-se ir alm e apontar este interpretar como um ato relacional, vinculando- o aos contextos em que so evocados (grifo da autora).
Leonor Arfuch tambm argumenta a esse respeito, em relao ao conceito de memria coletiva: si bien es posible pensar en lo colectivo cuando se trata de acontecimientos vividos y padecidos por una comunidad, slo los individuos, las personas, recuerdan (ARFUCH, 2008, p. 3).
136 Em relao ao tempo ver: Delgado (2003, p. 10). 131
Nesse contexto, em alguns momentos, tanto nas entrevistas realizadas quanto no grupo de discusso, percebeu-se uma intencionalidade de fala na medida em que os sujeitos pesquisados viram nessa pesquisa a possibilidade de essa ser um veculo de defesa das causas do movimento social de travestis e transexuais, tanto em relao utilizao do nome social nas escolas, bem como ao direito educao e permanncia nas instituies de ensino. Inmeras vezes fui tomada como uma espcie de porta-voz 137 dos sujeitos entrevistados. Nesse sentido, Thas Prada afirma:
Hoje eu sei, que parece que a Secretaria de Educao [...] Voc que trabalha l, sabe, que parece que vai ser respeitado, no ? Se eu estivesse hoje no colgio, ter o meu nome social respeitado seria um luxo, no verdade? Porque a coisa mais importante. muito importante para tudo ser chamada pelo nosso nome, afinal, o nome que a gente usa, no verdade? Mas, voc que est l que tem que ajudar a gente. (Thas, E)
A caracterstica performativa que atribu s memrias, lembranas e silenciamentos das/os transexuais evidenciou-se tambm na produo de algumas narrativas comuns entre as/o entrevistadas/o. Para exemplificar essa performatividade da memria, importa destacar o estabelecimento de uma relao causal entre a baixa escolaridade e a prostituio 138 como destino para mulheres transexuais e travestis. Essa narrativa comum relaciona a ausncia de oportunidades de emprego impossibilidade de permanecer na escola por preconceito, discriminao e violncia. Nesse sentido, Mait e Andr Lucas, que afirmaram nunca terem atuado na prostituio, dizem:
Para mim uma coisa visvel a relao entre a baixa escolaridade e a prostituio, no tem como negar. No sei se tem alguma estatstica sobre isso, mesmo porque no uma coisa da qual a pessoa se orgulhe. Porque a prostituio em si vista socialmente como algo inaceitvel, assim. E depois de tudo o que voc passa, sendo trans, ter que ir para a prostituio independente da sua vontade... difcil. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Se voc pensar nas meninas que esto na prostituio no por opo, mas sim como destino. [...] Eu no sei se tem algum dado estatstico, assim, mas pela minha percepo em relao s meninas
137 Sobre isso, ver: ARFUCH, Leonor. La entrevista, una invencin dialgica. Barcelona: Edies Paidos, 1995. (Especialmente, p. 128). 138 Essa relao ser explorada mais frente nessa mesma parte da dissertao. 132
que eu conheo, so tantas meninas fora da escola e, a... [...] Dentro da prostituio, eu penso que, por mais que elas digam que fazem isso porque querem, eu acho que no. Eu acredito que elas vo para a prostituio at por uma necessidade de sobrevivncia mesmo e acabam vivendo um ciclo vicioso porque a prostituio bem remunerada em relao a outros trabalhos com equivalente faixa de escolaridade. (Andr Lucas Guerreiro, E)
J Andria Cristina e Dorothea, que se aproximaram desse contexto social durante certo tempo, relatam:
Eu trabalhei um ano na rua. [Na prostituio.] E conheo muitas transexuais que no tiveram opo porque a escola no as respeitou, assim... desde o nome social, passando por banheiro e tudo o mais. (Andria Cristina, E)
A nossa sociedade bem rgida em relao ao papel de cada um. Cada pessoa tem um lugar especfico na sociedade. Ento, assim, ao mesmo tempo em que voc tem vrias foras querendo que a pessoa saia da escola, tem vrias foras puxando para a prostituio, que o lugar definido pela sociedade como o lugar de trans e travestis. meio que obrigado. O espao esse. (Dorothea Lavigne, E)
Pode-se observar nas quatro narrativas construdas a relao direta entre a prostituio como destino e a baixa escolaridade. Essa narrativa comum mesmo entre os sujeitos que afirmam no terem atuado como profissionais do sexo. Entretanto, nem todos os sujeitos utilizaram-se dos mesmos caminhos para convergir nessa fala. Isso talvez indique uma multiplicidade de elementos a serem interrogados na produo das memrias, isto , uma continuidade em relao s experincias memoradas. As memrias 139 constituem um campo com especificidades pautadas em fragmentos, escombros, estilhaos e rearranjos. Como afirma Virgnia Woolf (2003), bigrafa e escritora das memrias de Orlando 140 : [c]om fragmentos assim que
139 Mrcio Seligmann-Silva (2003) destaca autores como Walter Benjamin e Maurice Halbwachs e argumenta que o conceito de memria tal como desenvolvido por esses autores e suas/seus contemporneas/os possibilitou tambm entend-la como um processo de montagem, uma juno de pedaos pequenos de um passado que apenas figura como runas no presente (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 70). Esse ajuntamento de fragmentos das experincias se d por meio de uma produo que poderia ser recriada, por analogia, nos processos de fabricao e montagem do gnero identificado, cuidadosamente empreendidos pelas/os travestis e transexuais. Isto , as memrias, as lembranas e os esquecimentos somente so possveis tomando-se elaboraes do pensamento no presente. Assim, a cada acessrio diferente corresponderia a um pequeno pedao do passado que, agregado a outro e a mais um, construiria uma produo distinta da anterior e condicionada ocasio para a qual o sujeito est se produzindo. 140 Orlando foi um personagem criado pela romancista Virginia Woolf para esse romance homnimo. Um lord ingls que no sculo XIX transforma-se em lady Orlando, sem que essa mudana provocasse na sociedade da 133
devemos fazer o possvel para reconstituir a vida e o carter de Orlando por esse tempo (WOOLF, 2003, p. 82). Ainda nesse sentido, Delgado (2003, p. 13-14) argumenta que:
O passado apresenta-se como vidro estilhaado de um vitral antes composto por inmeras cores e partes. Buscar recomp-lo em sua integridade tarefa impossvel. Buscar compreend-lo atravs da anlise dos fragmentos desafio possvel de ser enfrentado.
Nesse sentido, as narrativas produzidas pelos sujeitos no representam a verdade do que aconteceu no passado, mas sim a construo de uma realidade 141 . Essas narrativas so construdas de forma imbricada a outros enunciados tambm construdos na cultura por meio da utilizao da linguagem. Segundo Arfuch (1995, p. 52-53):
Aun cuando aparezca como un recorrido azaroso, librado a la iniciativa mutua, todo dilogo est atravesado por mltiples determinaciones, no slo las inherentes al uso del lenguaje y a las posiciones de los enunciadores [...] sino tambin las que imponen las instituciones involucradas en cada caso [...]. [...] Esta ajenidad de la palabra (por cuanto se est obligado a decir o no decir, a hablar por boca de otros), compartida por los interlocutores, participa de un fenmeno mayor, [...] y que tiene que ver con la pluralidad de voces que hablan, sin que nos demos cuenta, en los enunciados que consideramos propios: vejos saberes, creencias, dichos del sentido comn, verdades que no necesitan demonstracin, opiniones fijadas por el estereotipo. As, cada enunciado no solamente interacta, [...] con un Otro que instituye frente a si (dialogismo) sino tambin con la otredad de lo ya dicho, con el antiguo sustrato de una lengua y una cultura. En ese sentido nunca es un primero, por ms que responda a nuestra iniciativa personal, al mundo de nuestra experiencia (grifos da autora).
Conforme a autora, o sujeito deixa de ser fonte de sua palavra e dos sentidos que produz, passando a ser falado em meio trama sociocultural na qual est inserido. Nessa perspectiva, importou compreender os sujeitos da pesquisa
poca reaes de estranhamento que merecessem destaque. Para mais, consultar: WOOLF, Virginia. Orlando. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 141 A representao do passado pressupe uma concepo de trabalho conjunto entre memria e historiografia, em que interessa compreender que o passado que se est recriando distinto da sua forma primeira. Nesse sentido, Mrcio Seligmann-Silva (2003) problematiza: Uma tal representao, no mais do que uma iluso dessa representao total. Respeitar esses limites [...] implica, na verdade, respeitar a diferena entre o passado e sua atualizao; implica perceber que a historiografia apenas uma (re)inscrio do passado e no seu texto original (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 73-74, grifos do autor). O autor argumenta ainda sobre a utilizao da expresso apresentao em detrimento de representao: Graas ao conceito de memria, eles [Benjamin e Halbwachs] trabalham no no campo da re-presentao, mas sim da apresentao enquanto construo a partir do presente (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 70, grifo do autor). 134
como personagens operando um distanciamento entre autoras/es e narradoras/es. Transexuais foram as/os narradoras/es de suas memrias 142 utilizadas nessa pesquisa. Narradoras/es, entendidas/os nessa dissertao, como figuras discursivas que constroem suas falas e se constroem para o momento do dilogo, isto , a sua exibio pblica (ARFUCH, 1995). Dessa forma, poder-se-ia pensar que nos atos performativos da memria so agregados pensamentos e elaboraes antes feitas que j por si s no eram a imagem do passado. Poder-se-ia perguntar, diante dessas colocaes, se a no estaria um possvel enunciado para a performatividade das memrias. Contar fragmentos das experincias traumticas de transexuais sobre a escola suscitou tambm a compreenso da memria e das narrativas produzidas pelos sujeitos como uma inveno. Para Arfuch (1995, p. 149):
El lugar de la memoria en su solicitacin en el dilogo, ms all del rastreo laborioso o el azar de la escritura, es muy particular. Los saltos, los encadenamientos, las bruscas iluminaciones, el devenir del recuerdo frente a un otro que espera tiene una especie de sacralidad. Las historias, los acontecimientos, los climas de poca pueden reconstruirse a partir de huellas materiales, de documentos, de otras textualidades, pero hay sin duda un plus en la voz, un ambiente intangible que cobra actualidad en las imgines guardadas, aun vacilantes, en los sentidos inesperados que siempre trae aparejada su evocacin. Aqu, como en el relato vital, no slo est en juego un valor de verdad sino tambin los recorridos, no menos significantes de la imaginacin (grifos da autora).
Outro movimento pode ser percebido tambm em direo narrao de tudo o quanto foi vivenciado, no qual se encontra a impossibilidade de narrar o indizvel. Conforme argumenta Arfuch (1995), falar da totalidade de uma experincia traumtica habita o campo da impossibilidade, considerando que os detalhes dessas lembranas e esquecimentos so (re)conhecidos e experienciados novamente atravs dos atos de performatividade da linguagem. Para a autora:
142 Conforme Mrcio Seligmann-Silva (2003), essa dissertao considerou a pluralidade das memrias, tendo em vista uma tenso entre as vrias formas de se ler o passado. Para o autor: [...] no existe uma Histria neutra; nela a memria, enquanto uma categoria abertamente mais afetiva de relacionamento com o passado, intervm e determina em boa parte os seus caminhos. A memria s existe no plural: na sociedade d-se constantemente um embate entre diferentes leituras do passado [...] (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 67). Essas diferentes formas de ler o passado encontram-se nessa pesquisa em constante enfrentamento pois se evidenciam, nesses processos, a ambiguidade e as incoerncias das memrias elaboradas.
135
Un decir todo exacerbado porque todo no puede decirse. En ese decir todo est el detalle aterrador de la tortura, la violacin, el sufrimiento. Detalle que, lejos de lo morboso, se instituy en necesidad de prueba ante un tribunal, atestacin del delito para la intervencin de la justicia, y tambin documento para el registro de la historia (ARFUCH, 2008, p. 5-6, grifos da autora).
Alm de outras dores, a cartografia construda nessa dissertao d-se tambm a partir das narrativas do trauma de transexuais em relao ao perodo de escolarizao. Essas narrativas foram elaboradas por meio do detalhe e tem em corpos e identidades transexuais fabricadas talvez a nica prova do indizvel. Assim, a produo da pesquisa e a fabricao da dissertao aproximam-se da compreenso de Mrcio Seligmann-Silva sobre a funo da/o historiadora/r contemporneo como arquelogo[a] e cartgrafo[a], responsvel por (re)traar a topografia do terror 143 (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 65-66). Esse ato de (re)traar a topografia do terror requer uma reflexo a partir da anlise das condies de possibilidade dos processos de percepo desses sujeitos como corpos abjetos 144 , como demonstrou Judith Butler (2000). Assim, essa dissertao 145 procurou cartografrar a experincia da transexualidade na escola a partir de outro lugar, um lugar e uma forma de fazer pesquisa e produzir conhecimento que prioriza a democratizao da memria social de sujeitos comuns, conforme Jacques Le Goff (2003, p. 471). Experincias transexuais na escola guardam entre si semelhanas nos relatos de dor, sofrimento e terror. Em sua pesquisa sobre histrias de vida de transexuais, Berenice Bento (2006) provocada pela fala dos sujeitos a analisar o baixo nvel de escolaridade de suas/seus entrevistadas/os no Brasil. Refletindo sobre isso, destaca que [a] escola lembrada como um espao de terror, onde os/as transexuais eram vtimas de todo tipo de preconceito (BENTO, 2006, p. 208). nesse sentido, que as memrias, os esquecimentos e os silenciamentos das/os
143 Esse termo foi parafraseado pelo autor e consiste no nome da exposio-memorial que se localiza em Berlim nas runas do antigo quartel-general da Gestapo. Para saber mais, consultar: SELIGMANN-SILVA, Mrcio. Reflexes sobre a memria, a histria e o esquecimento. In: Histria, memria, literatura: o testemunho na era das catstrofes. Campinas, UNICAMP, 2003. 144 Esse conceito foi explorado na segunda parte dessa dissertao. 145 Esse trabalho desloca-se, portanto, dos conhecimentos que j se tornaram tradicionais sobre a transexualidade, isto , do saber mdico, psicolgico, normalizador, produzidos na e pela insti tuio, para um campo complexo de saberes considerados no formais e no institucionalizados (LE GOFF, 2003, p. 471). Assim como Alessandro Portelli localiza logo no incio do seu artigo sobre A Bomba de Turim: [u]sarei, sobretudo, lembranas no institucionais, relatos de pessoas comuns que viveram a experincia da guerra e da libertao e trazem consigo essa memria (PORTELLI, 2006, p. 69). 136
transexuais apresentados nessa dissertao so penetrados pela condio da experincia traumtica. Concomitantemente, as narrativas produzidas pelos sujeitos entrevistados apresentam tambm espaos de resistncias e negociaes que propiciam outras reflexes, isto , apresentam-se como experincias mltiplas e singulares. Conforme Leonor Arfuch (2008, p. 3):
Y en este recuerdo [de los sujetos], si bien operan las determinaciones sociales las modulaciones de la memoria y el olvido funcionan tambin como mecanismos identificatorios en una sociedad stas se recortan sobre el trasfondo de una biografa, de los matices que hacen a la singularidad.
Assim, pode-se compreender que as narrativas 146 produzidas pelos sujeitos esto repletas dos significados que desejaram conferir as suas experincias transexuais no perodo de escolarizao, bem como de expectativas de mudana. Importa considerar que nas prticas dialgicas os sujeitos constroem a ordem, as relaes e os sentidos da sociedade em que se inserem. Da mesma forma, constroem tambm as prprias diferenas, sejam elas tnicas, de gnero ou sexualidade (ARFUCH, 1995, p. 45). A (re)inscrio das memrias e dos silenciamentos das mulheres e homens transexuais, bem como das travestis participantes dessa pesquisa deu-se no presente e considera as marcas visveis e invisveis das suas experincias escolares.
4.1 Para se pensar a experincia transexual
Essa dissertao inscreve-se no campo epistemolgico da educao e tem na escola a sua anlise mais significativa. Para a anlise das entrevistas realizadas produziram-se trs categorias 147 para a reflexo. So elas: corpo e identidade, a experincia escolar e a profissionalizao. Essas categorias foram delimitadas durante o processo de escuta e anlise das narrativas e sero aqui apresentadas
146 importante assinalar que esses relatos foram direcionados a uma mestranda em educao da maior Universidade Pblica do Estado, responsvel, no momento de realizao das entrevistas e do grupo de discusso, pela implementao da poltica pblica educacional de Gnero e Diversidade Sexual da Secretaria de Estado da Educao do Paran. 147 Outras categorias seriam possveis em relao sade, segurana pblica e aos relacionamentos afetivo- sexuais e sentimentos, por exemplo. Esses assuntos parecem interessar aos sujeitos, pois so espaos onde enfrentam tambm situaes de excluso e violncia. Entretanto, como foi preciso delimitar a pesquisa ao campo da educao, essas falas sero preservadas e utilizadas em outro momento de discusso. 137
em forma de atos performativos de interpretao. Esses atos performativos referem- se s cuidadosas montagens dos fragmentos e estilhaos das experincias de transexuais vivenciadas no passado, deslocadas com uma incurso ao presente.
4.1.1 Primeiro Ato: Corpo e identidade
A primeira categoria refere-se s narrativas sobre a construo dos corpos e das identidades das/o transexuais/l e das travestis 148 . Foram aqui analisados os processos de fabricao dos corpos e das identidades que, por sua vez, adquirem centralidade em todas as narrativas produzidas. Importa destacar que nem todos os sujeitos entrevistados iniciaram a fabricao de seus corpos e identidades no gnero identificado no perodo da Educao Bsica. Carla, Rafaelly, Thas e Mait estavam nessa faixa etria quando iniciaram essa construo. J Andr Lucas, Dorothea e Andria Cristina, transformaram seus corpos e identidades aps esse perodo. No grupo de discusso, Cristhiani, Perla, Jennifer e Leandra, iniciaram seus processos na faixa etria de escolarizao bsica. Clo, Sabrina, Bruna, Joyce, Josiane e Luisa transformaram seus corpos e construram suas identidades alguns anos mais tarde. Entretanto, em algum momento, e por diferentes motivos, todas/os abandonaram a escola, ainda que por um perodo curto. Nas narrativas dos sujeitos da pesquisa evidencia-se o funcionamento dos dispositivos da sexualidade, da transexualidade e da heterossexualidade 149 . Esses dispositivos articulam-se s experincias desses sujeitos, conferindo posicionamentos para esses corpos e identidades na sociedade. Assim, formaram- se dois grupos nos quais importou a faixa etria do incio dos processos de transformao corporal e construo identitria. Todavia, ambos os grupos produziram narrativas comuns. A primeira narrativa comum produzida pelos dois grupos remete-se infncia. As narrativas sobre a infncia encontram-na como o lugar da reiterao do sistema sexo-gnero, isto , o feminino e o masculino ou, ainda, o lugar ontolgico da verdade sobre a sua construo futura. Essa reiterao das identidades de
148 importante destacar que todas as categorizaes e pertencimentos identitrios foram criados pelos sujeitos em seus processos de construo. Assim, essa dissertao reproduz esses pertencimentos na anlise das narrativas, embora compreenda que essas categorias identitrias so performticas, construdas, fluidas e transitrias, conforme analisado na Parte 2. 149 Esses conceitos foram explorados na segunda parte dessa dissertao. 138
gnero evidencia-se nas narrativas de todas as mulheres travestis e transexuais, bem como nas de Andr Lucas. Assim, para elas:
E, nessa fase, [a infncia] o que me determina tambm como do universo feminino, na minha concepo, a busca de viver isso. Ento, quando eu ia brincar... nessa fase a forma de voc viver brincar. Eu roubava as bonecas da minha irm para brincar escondido, sem que minha me visse. Os sapatos da minha me... Ah, como eu adorava pegar os sapatos de salto dela e sair andando pela casa. Para mim era um momento de xtase e de realizao. E se eu pudesse ver no espelho aquilo tudo ento... Era louco isso! Eu queria me ver... Eu queria me ver! (Carla Amaral, E) Eu sempre fui muito feminina, muito delicada, muito menina. E eu s tinha amigas meninas, s brincava com as meninas. Sempre gostava de fazer o que as meninas estavam fazendo. De me comportar, andar e falar como elas. (Cristhiani, GD) Ento eu pegava roupas escondidas da minha irm, da minha me, calcinha, vestido. Porque eu sempre fui muito feminina, todo mundo me confundia com menina. Eu era uma menina, no ? (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
No que eu queira ser melhor do que qualquer uma que est aqui dentro, eu era uma menina, desde muito pequena. Mesmo quando eu era menino e minha me raspava minha cabea, e ela raspava, as pessoas perguntavam se eu no era menina. (Josiane, GD)
Essas narrativas deslocaram lembranas, esquecimentos e silncios para um movimento de construo de outra narrativa comum que pode ser compreendida como traumtica na medida em que expressa a impossibilidade de vivenciar a experincia transexual nesse perodo. Essa construo narrativa apareceu em todas as falas das/o entrevistadas/o. Assim, para elas:
Minha frustrao e decepo comearam dentro de casa nessa poca. Apesar de a minha irm ser a caula, ns temos quatro anos de diferena. Ento, quando eu tinha cinco anos, ela tinha um e as coisas que ela tinha eu gostaria de ter e no tinha. As bonecas que ela ganhava, eu queria ter e no tinha. Ento, comea nessa poca a percepo e a identificao de pertencer a esse mundo feminino. E eu queria pertencer, viver e estar nessa realidade e no podia. Primeiro porque eu no entendia o que era isso, eu s sei que eu queria. Eu queria, desesperadamente, ter aquelas coisas, ser tratada como aquela menina. E no era assim. Eu era tratada como meus outros dois irmos, por nome masculino, sexo masculino. Era assim que eu era apresentada para os outros tambm, como filho, como menino. (Carla Amaral, E) 139
Desde criana eu me percebi diferente, porque no dia das crianas, meus irmos escolhiam um brinquedo de menino e eu escolhia uma boneca. E se no me dessem a bonequinha eu chorava... E davam, com resistncia, mas davam... At cinco, seis anos de idade eu achava que eu era menina. At onde eu me lembro, eu me via muito menina. Da, depois que a realidade vem tona que a gente vai vendo o que a gente realmente , no ? (Thas Prada, E)
Na narrativa de Thas aparecem tambm traos de um no pertencimento a nenhum dos dois gneros, assim como tambm questionamentos sobre o que realmente se , ou se pode ser. Pode-se pensar, a partir dessas narrativas, sobre a construo binria do corpo e da identidade de gnero, assim como acerca do modo pelo qual o feminino e masculino foram incorporados, reiterados e performaticamente expressos nessas experincias. Com isso, importa perguntar sobre o que representa a fabricao de um corpo e de uma identidade feminina para essas mulheres transexuais ou sobre a importncia da fabricao do corpo e da identidade masculina para o homem transexual.
Meus desejos e sensaes em relao ao mundo feminino j estavam mais aflorados. Queria muito mais do que tinha vivido at ali, muito mais. Isso aconteceu na dcada de 1980, quando ocorreu o boom da transexualidade. Foi quando se comeou a falar sobre as cirurgias, inclusive na TV, do caso da Roberta Close. E meus olhos brilhavam s de ver a possibilidade, porque a eu j entendia que eu tinha nascido biologicamente menino, mas que eu no era obrigada a ser aquilo, s porque eu nasci. Esse era o meu sentimento que eu no entendia direito. Mas eu via nas reportagens e ficava louca com a possibilidade de reverter aquela situao. Mesmo com o cabelo curto, a minha essncia de mulher estava mais pulsante. (Carla Amaral, E)
Porque as pessoas insistem em querer mandar no meu corpo? Esse corpo que eu carrego somente eu deveria determinar o que desejo fazer com ele. Como as porcarias dos seios que comeam a nascer num lugar difcil de esconder. Para a maioria dos homens trans, a cirurgia mais importante a mastectomia total porque os seios so o que denunciam que voc no o que sente ser, a todo o momento. Hoje, depois dessa cirurgia, me reconheo mais no meu corpo. No sei se farei outras mas hoje eu j me sinto mais feliz por ter feito essa. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Eu queria muito harmonizar meu corpo. Ento, agora tenho minha vagina. Sou cirurgiada, mesmo com todos os problemas que disso decorreram. Coloquei prteses de silicone nos seios. Alterei meu nome nos documentos. Mas tem vrias coisas que eu gostaria de ter e no tenho: eu gostaria de menstruar e no menstruo, mesmo vrias mulheres no gostando. So umas coisas que a gente passa... 140
Mesmo eu entendendo que a menstruao pode trazer clica, tendo que aguentar TPM, eu queria... Ento, quando eu vejo uma mulher reclamando: Ai menstruei, mas que droga! E eu querendo tanto isso... Eu queria gerar um filho ou uma filha... E ainda no posso... Ento, so umas coisas assim, engraadas... (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Essas trs narrativas apresentam questes fundamentais para se pensar sobre a importncia que a fabricao dos corpos em direo ao gnero identificado representa nas experincias desses sujeitos. As formas como elas e ele se referem aos corpos em desacordo com seus sentimentos de pertencimento de gnero, isto , maneira como se sentem pertencentes ao feminino ou ao masculino, aproximam- se do encantamento em relao a uma idealizao do gnero identificado. Outras vezes, denotam a incompletude na qual se inscreve o ideal de mulher e de homem pretendido. Importa considerar que os procedimentos utilizados ao percorrer dessa trajetria do gnero atribudo ao gnero identificado so singulares, isto , cada sujeito faz a fabricao do seu corpo e da sua identidade. Embora todas/os desejem fabricar seus corpos em relao quilo que sentem ser, alguns fatores influenciam nesse processo. Dentre esses fatores encontram-se a disponibilidade de recursos financeiros e as redes sociais nas quais esto inseridas/os, alm do apoio da famlia. Para a maioria dos sujeitos, a hormonioterapia o primeiro procedimento a ser adotado. A maioria das travestis e mulheres transexuais que participaram dessa pesquisa utilizou hormnios femininos, isto , estrognio e progesterona, por via oral ou injetvel, na maior parte das vezes sem qualquer superviso clnica. Andr Lucas comeou tambm por esse procedimento, injetando testosterona em seu corpo. Alm disso, importa considerar tambm que embora o desejo de realizao da cirurgia de transgenitalizao esteja muito presente entre os sujeitos transexuais da pesquisa, a cirurgia se configura como um elemento importante do dispositivo da transexualidade, ou ainda, o desejo de realizar a cirurgia surge como a produo de sentido para a identidade transexual. Esse mecanismo de apropriao do discurso mdico apareceu de forma marcante nas narrativas; outra construo presente na maioria das narrativas foi em relao identificao com a heterossexualidade. Dos sete sujeitos entrevistados, apenas Dorothea se reconheceu como bissexual, as/o outras/o se reconhecem como transexuais heterossexuais. Em relao ao grupo de discusso, apenas Perla tambm se apresentou como bissexual. Importa perceber 141
que a maioria, isto , seis 150 entrevistados e nove participantes do grupo de discusso reconhecem-se como heterossexuais. Em se tratando dos procedimentos para a fabricao individual dos corpos de travestis e transexuais, foram considerados primeiramente aquelas que construram seus corpos na adolescncia, ou seja, na faixa etria relacionada Educao Bsica do processo de escolarizao formal. Em relao construo da identidade, a maioria das travestis e transexuais narram que toma as mulheres heterossexuais como referncia 151 . Assim, como conta Thas, [n]ossas referncias so as mulheres, porque elas so as nossas deusas inspiradoras, no verdade? (Thas Prada, E). importante, contudo, questionar sobre quais mulheres constituem-se nessas referncias para a construo do corpo travesti e transexual. Essas narrativas atribuem s mulheres em geral caractersticas de uma feminilidade sonhada, tomada como natural e essencializada. Entretanto, importante ressaltar aqui que para Butler (2008) mesmo a feminilidade e a masculinidade para mulheres e homens heterossexuais entendida como performatividade, na medida em que natureza e essncia para essa autora so construes, enunciados, histria e linguagem. 152
Thas recorreu apenas ingesto de hormnios femininos. Entende que no precisa de um procedimento mais agressivo, por enquanto, pois diz que sempre foi muito feminina. Afirma ingerir quantidades expressivas de hormnios 153 , no se descuidando da produo do corpo feminino e buscando eliminar qualquer vestgio da indesejada masculinidade. Nesse sentido afirma:
150 Importa compreender que a heterossexualidade est presente nas bases do dispositivo da transexualidade, no qual os procedimentos que incluem a cirurgia de transgenitalizao so orientados para a norma heterossexual, conforme discutido na Parte 2 dessa dissertao. No entanto, uma narrativa de Mait desestabiliza essa produo do discurso mdico-psicolgico. Para Mait, [a] cirurgia tem a ver comigo, com o meu corpo, independente de com quem eu vou me relacionar. At hoje s fiz sexo com homens heterossexuais, portanto, me considero hetero, mas se acontecer de me envolver com outra mulher, sem problemas... (Mait, Schneider, E). 151 Jennifer, transexual, construiu uma narrativa que se aproximou da fabricada por Thas, na qual evidenciou a busca por uma essncia para a categoria mulheres. Assim, Jennifer contou que comeou os procedimentos aos quinze anos com a ingesto de comprimidos de hormnios femininos. Relatou que tomava muitas cartelas ao mesmo tempo. Em se tratando do desejo de colocao de prtese de silicone, afirmou: quem de ns mulheres no sonhamos em transformar o corpo? (GD). Carla tambm elaborou uma narrativa nesse sentido, quando afirmou que a primeira vez que pode olhar para um corpo feminino desnudo, em uma revista pornogrfica de seu irmo, passou a admirar o corpo feminino como modelo de fabricao do prprio corpo. (Carla Amaral, E) 152 Essas discusses foram realizadas na segunda parte dessa dissertao. 153 As narrativas sobre ingesto de quantidades expressivas de hormnios foram produzidas pela maioria das mulheres transexuais e travestis. Nesse sentido, Cristhiani contou: [a]os quinze anos eu era viciada em hormnios. Uma drogadita. Eu tomava muito, demais. Eu estava dependente qumica do hormnio. Ento, com dezoito eu estava enorme, inchada e passei ao silicone industrial a partir da. (Cristhiani, GD) 142
[...] eu tomo muito hormnio, s vezes mais, s vezes menos... No coloquei silicone. Eu tomo injetvel porque eu acho que faz mais efeito. Eu tomo bombas de hormnio, coquetis de hormnio. E quando eu era mais nova eu era mais afetada com isso, mas a eu fui vendo que no precisa. E a gente chega a se machucar para tirar os pelos, principalmente do rosto e dos seios. Alis, nem pelo tem e a gente acha que tem. (Thas Prada, E)
Thas comeou a ingerir hormnios femininos com treze anos de idade quando ainda estava na escola e seguiu com os estudos enquanto transformava o prprio corpo. Conforme o corpo mudava, sentia-se mais vulnervel e excluda da instituio escolar. Para ela:
O colgio te v de uma maneira e medida que voc vai mudando, aumenta o preconceito e a discriminao. Porque processo, voc no dorme homem e acorda mulher, bonita, feminina. Tem uma fase que voc est entre e a eles no conseguem lidar e no s no colgio, a sociedade em geral, amigos, tudo. (Thas Prada, E)
Essa narrativa de Thas explicita a dificuldade em geral no que se refere ambiguidade dos corpos e identidades. Evidencia tambm que a produo do corpo desejado consiste em um processo no qual a ambiguidade, a fronteira, a posio de estar entre duas coisas, ou posies, potencializa os processos de excluso, operacionalizando um afastamento desses corpos abjetos e indesejveis das instituies. A narrativa performtica de Carla, assim como a de Cristhiani, sobre a fabricao do prprio corpo traz para o debate a utilizao de um recurso comum entre travestis e transexuais nesses processos, isto , a utilizao de silicone industrial. A esse respeito, Cristhiani, relatou: comecei a aplicar silicone industrial com dezoito anos quando os hormnios me fizeram mal, porque eu tomava demais e sem acompanhamento. Eu sou toda oleosa. O mais puro silicone [industrial] (GD). Carla conta que com quinze anos iniciou a fabricao do seu corpo por meio de injees de hormnio e silicone industrial 154 com bombadeiras, ou seja, travestis e transexuais mais velhas que atuam na fabricao dos corpos das mais jovens aplicando silicone industrial. Segundo Carla, esse procedimento doloroso e possui uma variedade de efeitos colaterais mas, quando se tem sorte, o resultado
154 Uma anlise sobre silicone industrial foi realizada na primeira parte dessa dissertao. 143
compensa 155 . Carla injetou aproximadamente dezesseis litros de silicone industrial no rosto, lbios, seios, culotes, panturrilhas, coxas e joelhos. Nesse sentido, narra:
Iniciei [a construo do corpo] aos 15 anos, em Curitiba, quando perguntei a uma travesti, na rua: Mas, como que faz pra ter seios? Porque eu j tinha visto na televiso que era com implante de silicone. E ainda silicone injetvel que eu via no Comando da Madrugada, com o Gullart de Andrade, que contava muitas histrias de travestis. Quando eu comecei a ir no banheiro escondido para me maquiar, aos meus 9 anos, o meu ideal de mulher era ser o que eu sou hoje. Eu sonhava em ser uma mulher grande, no to grande como eu sou, mas eu me via adulta. Eu me idealizava de cabelos compridos, seios grandes, cintura fina e quadril super largo. Esse era meu ideal de mulher e eu criava essas imagens na cabea e no incio eu at pensei que tudo iria se desenvolver naturalmente, com o tempo. Na adolescncia que eu percebi que isso no iria acontecer, assistindo ao Comando da Madrugada. E a eu tive contato com outras meninas. Conheci uma que estava no comeo do processo, mas estava mais adiantada do que eu. Ela injetava hormnio feminino e bombava. Eu j me empolguei, porque eu vi que ela j estava com a voz fininha e com os peitinhos crescendo. E eu fiquei louca e disse: Eu quero tambm. (Carla Amaral, E)
Essa narrativa explicita tambm como se do esses processos de construo nos quais os procedimentos so realizados, em geral, de forma independente do trabalho de uma/um profissional qualificada/o. Nesse sentido, importa compreender que apenas recentemente as polticas de sade conseguiram capturar os corpos dessas mulheres por meio do processo transexualizador 156 . Em relao utilizao do silicone industrial, as narrativas se dividiram em opinies diferentes. Rafaelly 157 afirmou que embora seja uma alternativa financeiramente mais acessvel, jamais far aplicao de silicone industrial devido aos efeitos colaterais. Para ela:
155 Os efeitos colaterais decorrentes do uso do silicone industrial para fins estticos foram explorados na primeira parte dessa dissertao. Os mais comuns, de acordo com Rafaelly (E), so: o silicone anda no corpo e pode causar danos a diversos rgos e prejudicar todo o funcionamento do corpo. Alm de cair com a idade, formando bolsas horrveis... Pelancas mesmo. 156 Essa discusso foi realizada na Parte 3 dessa dissertao. 157 Rafaelly ingere hormnios femininos desde os dezessete anos. No colocou prtese de silicone por falta de dinheiro. Fez tambm laser no rosto para eliminar os pelos que, segundo ela, engrossaram quando se apresentou ao Exrcito. No quartel, obrigaram-na a raspar o rosto com barbeador. Andria Cristina relata que tambm passou por isso. As narrativas de Dorothea sobre a construo do corpo feminino, iniciada aos 28 anos, aproximam-se das de Rafaelly em relao ao uso do silicone industrial. Sobre isso afirmou: Eu no tenho coragem de aplicar. Doideira. Eu j falei com vrias pessoas que colocaram no culote e todas elas falam que anda e que no fica perfeito (Dorothea, E). J Leandra, transexual, que participou do grupo de discusso, contou que iniciou sua transio com dezessete anos com a ingesto de hormnios femininos e que no injetou silicone industrial nem colocou prtese, por enquanto, apenas por falta de recursos financeiros. Ela tambm deseja realizar a cirurgia, mas no est vinculada ao processo transexualizador. 144
A aplicao de silicone industrial uma loucura. J vi muitas meninas ficarem deformadas e at morrerem, porque quando se mistura com o sangue e com o msculo complicado para tirar. Quando eu trabalhava como gerente do pensionato da [Shirlei], muitas morreram nos meus braos. sorte. Uma roleta russa. Umas ficam lindas e outras horrveis e deformadas, porque quando no d certo, precisa fazer raspagem, descolar toda a pele e limpar o que der, porque como um lquido, mistura com o sangue e os msculos. Mas eu entendo e no julgo quem faz porque uma prtese custa cinco mil reais e uma aplicao de silicone para fazer o peito custa oitenta reais. Muitas meninas no conseguem esperar e cumprir o protocolo do tratamento que determina no mnimo dois anos de acompanhamento de uma equipe multidisciplinar para fazer as cirurgias. Eu estou juntando dinheiro e vou colocar prtese. J aguentei at agora, aguento mais um pouco. (Rafaelly Wiest, E)
A nsia em transformar o corpo, narrada por Rafaelly, apareceu em outras narrativas. Carla, afirmou que [a] Carla no podia mais ficar escondida. Eu pagaria qualquer preo para ser aquela menina naquele momento. Sobre isso Mait disse que realizou uma tentativa desesperada de fabricar o corpo feminino. Ela narrou que tentou extirpar os testculos em casa, certa vez. Ao fazer a primeira inciso desmaiou, pois teve uma hemorragia. Afirmou ainda que preparou tudo para a cirurgia, adquirindo os materiais e estudando pela internet. E que avisou um amigo e enfermeiro sobre a data em que faria cirurgia, fornecendo uma chave da sua casa para ele, caso desse alguma coisa errada. Ele a conduziu ao hospital. Importa pensar sobre essa nsia por transformar os corpos em direo ao gnero identificado como a busca por uma forma de adquirir alguma inteligibilidade 158 num mundo generificado (BUTLER, 2000; 2008). O dispositivo da transexualidade reitera a necessidade dessas transformaes que devero direcionar-se para um padro de construo de corpos e identidades por meio do qual o sujeito possa ser reconhecido como uma/um transexual verdadeira/o. A captura dessa experincia pelo saber mdico-psicolgico se d pelo controle das transformaes corporais, alm do reconhecimento da/o transexual verdadeiro, que por sua vez poder ter acesso, no final do processo, ao laudo mdico atestando uma patologia denominada de transexualismo ou disforia de gnero, fator determinante para a realizao da cirurgia de transgenitalizao (BENTO, 2006; 2008). Essa discusso sobre a transexualidade verdadeira apareceu na maioria das narrativas produzidas para essa pesquisa e apresenta-se colada a
158 Esse conceito foi explorado na segunda parte dessa dissertao. 145
uma idealizao do feminino e do masculino. A narrativa de Mait trata menos de uma idealizao feminina e se aproxima de um ideal do que ela chamou de harmonia e est relacionado com o corpo biolgico:
Eu nunca me considerei uma transexual. Eu sabia que eu era uma mulher e passava um processo transexualizador. Eu tinha esse entendimento de que era algo, que era um processo que eu ia passando, eu ia vencendo barreiras at eu estar harmnica, o objetivo sempre foi estar harmnica, fosse de que jeito fosse. A minha cabea pensando condizente com o meu corpo. Agora, o que enlouquece a tua cabea pensando uma coisa e voc tendo outra percepo daquela casca que vista e no conseguir mudar isso. E ainda por cima tendo que ouvir: Isso sem-vergonhice, falta de vergonha na cara... Isso complicado. [...] E da, vai ter muitas coisas no caminho, porque uma situao super agressiva, os hormnios mexem de maneira intensa e cirurgias. Cada cirurgia dessas um incmodo. Ento, sempre me percebi como algum que estava passando esse processo e que ia sair. Porque bem isso mesmo, como uma pessoa que tem seis dedos. Eu quero fazer uma cirurgia para ficar com cinco porque todo mundo tem cinco. S que a no era s um dedo. Era um desencontro geral no qual todo o meu corpo no estava nada condizente com aquilo. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Essa narrativa de Mait produz sentidos para um pertencimento criado por ela que no se fixa na identidade de mulher transexual, ao contrrio de todas as outras entrevistadas. Para Mait, a fabricao do prprio corpo est relacionada com a produo de um equilbrio, ou como ela chamou, de ideal de harmonia fosse de que jeito fosse. importante destacar que em busca desse equilbrio, Mait disse: [e]u at tentei ser um gay, porque a seria mais fcil, no precisaria alterar o corpo, nem nada. Tentei ser travesti. Mas, no deu certo. Isso no bastou. Diante disso, poder-se-ia perguntar em que medida esse equilbrio relaciona-se com uma subverso ou est tambm relacionado ao desejo de pertencimento a uma ordem da normalidade ou da inteligibilidade do desejo e do corpo. Mait 159 construiu uma performance narrativa na qual se evidenciou a dor e o sofrimento em relao fabricao do prprio corpo. Esse sofrimento fsico,
159 Mait, assim como Carla, iniciou seus processos de transformao corporal com dezessete anos de idade. Alm da ingesto de hormnios, ela colocou prtese de silicone e fez a cirurgia de transgenitalizao no ano de 2006, em uma clnica particular. Para isso, conseguiu o laudo de transexualismo em 2005. Fez aplicaes de laser no rosto e peito para extrair os pelos e evitar que cresam novamente. No entanto, ao contrrio de todas as outras entrevistadas e de Andr Lucas, ela teve o apoio da famlia. Segundo ela, seu pai a apoiou desde o primeiro momento em que ela se apresentou como diferente. Nesse sentido, relatou: Meu pai super legal. Meu pai foi quem acreditou quando eu no acreditava mais, quando eu j tinha tido duas tentativas de suicdio, at os dezesseis anos, porque eu coloquei na minha cabea que era um problema e eu iria acabar com esse 146
relatado por ela, est relacionado s tentativas de construo do corpo e aos procedimentos cirrgicos que sofreu 160 . A esse respeito relatou:
Eu tenho esse negcio da cirurgia. A primeira que eu fiz foi h 4 anos, em So Jos do Rio Preto, em So Paulo. Depois eu tive um tumor no canal da vagina. Hoje eu estou livre, graas a Deus! Mas, depois disso so quatro anos que eu no tenho uma relao, que eu estou lutando. Eu j tirei enxerto de tudo que lugar. Eu estou indo para a nona cirurgia. Ento, difcil, porque voc fala: nunca acaba? Porque acaba uma coisa a vo para outra e nunca acaba. No ano passado fiz trs cirurgias. Uma enorme, na qual eu tirei um pedao do intestino, entende? Me dividiram de um lado ao outro. Mas hoje eu fiquei sabendo, no ginecologista, que eu terei que refazer. Eu tenho uma estenose dentro, ento eu no consigo ter relao. Eu tive problemas de gazes que o mdico esqueceu dentro, infeces e depois comeou essa dor, essa dor, essa dor. [...] Eu falava para o mdico e ele dizia: no, frescura tua. [...] Ento, arrumei outro mdico que est tentando, mas milagres no esto acontecendo. Hoje em dia eu j estou melhor do que na primeira vez que ele mexeu, mas um processo e s vezes cansa. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Nessa narrativa, Mait expressa um desnimo em relao s vrias cirurgias para a fabricao do seu corpo, embora tenha afirmado no estar arrependida, uma vez que essa era a nica soluo para o seu caso. Poderia se pensar sobre essa narrativa como uma reiterao do discurso mdico-psicolgico em relao ao dispositivo da transexualidade. Para o mdico Harry Benjamin, a cirurgia a nica terapia possvel no caso de transexuais verdadeiros (BENTO, 2006). Ainda sobre as cirurgias, Mait contou que:
complicado, porque eu fao em Jundia, fico longe da famlia, com anestesia geral, fico 20 dias parada l, inutilizada. E a voc para a tua vida, para as tuas coisas e ainda demora pelo menos trs meses para poder ver o resultado. Ento, um processo desgastante, porque voc fica naquilo, naquela expectativa, como qualquer cirurgia, mas... Eu j estou indo para a nona cirurgia, entende? Ento, s vezes d um super desnimo, assim, e eu penso: no vou
problema e a ia ficar bom para todo mundo. Porque no estava bom para mim, no estava bom para as pessoas que eu morava perto, que eu gostava. 160 As cirurgias de transgenitalizao so consideradas de alta complexidade e podem ser realizadas em vrios estados brasileiros, em hospitais pblicos e clnicas particulares. Para Rafaelly e Carla, o Hospital de Clnicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul localizado em Porto Alegre, pioneiro nesse procedimento, sob a coordenao do urologista Walter Koof, representa excelncia na realizao das cirurgias de transgenitalizao. O Hospital Universitrio da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Hospital de Clnicas da Faculdade de Medicina de So Paulo tambm realizam as cirurgias, alm de outros como o de Goinia. Para mais sobre isso, consultar: ARAN, Mrcia; MURTA, Daniela and LIONO, Tatiana. Transexualidade e sade pblica no Brasil. Cinc. sade coletiva [online]. 2009, vol.14, n.4, p. 1141-1149.
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fazer, no vou para essa nona, contrariando todo esse meu jeito assim entusiasta. E foi meu pai que falou: no, temos que ajeitar isso e ento, fora, vamos l. Logo ele que contra cirurgias. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Nessa narrativa, Mait enfatiza as dificuldades em relao cirurgia de transgenitalizao, considerando que consiste em um processo demorado e complexo. Esse processo cria expectativas que, segundo ela, no raras vezes resultam em decepo e frustrao. Contudo, sempre ressalta o apoio do pai nos seus processos de transformao. Andria Cristina comeou a ingerir hormnios femininos com vinte e oito anos, tarde, segundo ela. Colocou prtese de silicone em uma clnica particular de Curitiba e pretende realizar a cirurgia de transgenitalizao o mais rpido possvel. Nesse sentido, contou:
Eu estava preparada emocionalmente, numa fase adulta. Agora para uma criana de uns treze, quatorze anos eu penso que seria melhor se ela assumisse com onze, doze anos, devido ao tratamento. Porque o efeito seria melhor, a parte hormonal. Porque quanto mais cedo ela comear a tomar hormnio, antes da adolescncia, quando ela estiver na adolescncia ela vai ser uma mulher e ningum vai distinguir, a parte do gog. At que eu no tenho muito, mas foi uma graa porque eu poderia ter bastante pois comecei a tomar tarde. Coloquei [prtese de] silicone h uns dois anos atrs, mas s para aumentar os seios, porque eu desenvolvi seios com hormnios, mas no iria crescer mais porque a minha famlia tem seios pequenos, minha parte gentica j assim e tambm porque eu comecei a minha hormonizao tarde assim. Eu j estava uma mulher com seios de ninfeta, bonitinhos, mas no dava... Eu pretendo operar, estou no programa do Hospital de Clnicas, mas muito demorado. O meu plano juntar o dinheiro e pagar pela cirurgia particular. (Andria Cristina Schuz, E) 161
A narrativa de Andria expressa grande ansiedade em relao cirurgia de transgenitalizao. Ela relatou que a cirurgia fundamental na sua vida, pois ela se sente incompleta e doente. Andria afirma ainda que far o que for preciso para realizar a cirurgia, uma vez que vem economizando recursos para isso.
Eu vejo que no custa caro, se for ver o benefcio, porque ter essa parte masculina para mim no nada legal. como se eu tivesse uma verruga, uma coisa que me atrapalhasse, assim... essa a
161 Sobre a colocao de prtese em clnica particular, Andria (E) falou: Eu no podia colocar, porque era super caro, mas dei uma de madame e coloquei. No me arrependo. 148
sensao. Eu sei que eu nasci assim, mas eu no tenho nem aquela diverso de me tocar nem nada. No tem isso comigo, no legal. Eu respeito e higienizo porque uma parte do meu corpo como as outras, mas, para mim no condiz porque uma parte que eu no uso mesmo, eu s uso para ir no [sic] banheiro. Fazer xixi a nica utilidade que essa parte do meu corpo tem. Ento, uma parte perdida. Eu no tenho medo das correes que eu sei que as meninas esto fazendo porque como se eu tivesse uma doena grave e estivesse me tratando. Estaria mais condizente comigo, mesmo assim. Para uma trans uma necessidade muito ntima. como se ela tivesse uma doena. Para uma trans seria mais ou menos como a cura de um cncer. (Andria Cristina Schuz, E)
Essa narrativa de Andria emblemtica para se perceber a associao da transexualidade doena, isto , a assimilao do discurso mdico-psicolgico pelas/os transexuais que, por sua vez, produzindo-se como transexual verdadeira/o, alcanaro a possibilidade de realizar a cirurgia. Esta uma narrativa comum entre as mulheres transexuais e travestis que participaram dessa pesquisa. Importa compreender a assimilao do dispositivo da transexualidade por estes sujeitos, na medida em que a produo do dispositivo histrica e localizada no tempo 162 . Imersas/os no dispositivo, transexuais e travestis tornam a patologia parte da construo identitria transexual e tambm como uma estratgia de construo de uma identidade coletiva fixada como transexual. Nesse sentido, o apego patologia poderia ser um distanciamento da identidade da travesti 163 . Poderia se pensar em qual medida essa identidade coletiva evocada para se obter maior aceitao social, uma vez que segundo elas, transexuais so menos marginalizadas do que travestis (GD). De acordo com elas, outra funo dessa construo coletiva a organizao poltica para lutar por polticas pblicas especficas. Sobretudo a identidade transexual tem a finalidade de garantir a possibilidade da cirurgia de transgenitalizao, considerando que a realizao da cirurgia por meio da sade pblica est diretamente articulada ao processo transexualizador e exige a assuno da identidade patolgica 164 .
162 Conforme as discusses realizadas na segunda parte dessa dissertao. 163 Entre as participantes do grupo de discusso, a diferena entre uma identidade e outra aparece como uma marcao das narrativas. Talvez por ser um grupo no qual estavam representadas as duas identidades coletivas em um evento onde as polticas de identidade eram pauta central. Em se tratando da fabricao do corpo e da identidade dessas mulheres, pode-se observar que a maioria ingere ou ingeriu hormnios femininos, em comprimidos ou injetveis. Entretanto, existem algumas peculiaridades tanto nas transformaes dos corpos quanto na construo das identidades. 164 Essa problematizao relaciona-se com os conceitos de biopoltica e governamento, explorados na terceira parte dessa dissertao. 149
Desse modo, estabelece-se uma relao de interdependncia entre alguns desses sujeitos e os saberes e discursos produzidos sobre eles tanto pela medicina quanto pela psicologia. Rafaelly, ao elaborar uma narrativa em relao diferena entre travestis e transexuais, explicita essa incorporao dos discursos mdico-psi e de seus efeitos nas experincias transexuais, estabelecendo uma fronteira que diferencia essas identidades. Para ela:
[...] travesti busca a aparncia fsica e a atitudes do sexo oposto, mas no tem problema com seu sexo biolgico. A trans tem. Eu tive. Eu tentei, mas no consegui sair com mulheres. Essa a diferena. A transexual tem problemas com o sexo. Mas isso inicialmente. Por isso, eu sou total a favor do tratamento. Eu fui uma pessoa super depressiva. Eu no sou feliz e eu s vou ser realizada depois da minha cirurgia. [...] s fui ter uma vida normal depois que eu conheci meu psiclogo. Antes eu no encarava as pessoas. Eu falo muito que a minha vida se resumiu a antes e depois do meu psiclogo. E eu no sou apaixonada por ele, porque ele nem bonito. Eu falo pra ele: Voc me salvou! (Rafaelly Wiest, E)
Embora a maioria das narrativas aproxime-se da reflexo de Rafaelly na qual o discurso mdico-psicolgico possui um carter salvacionista e estabelece posies de sujeito diferenciadas para travestis e transexuais e assumidas por elas, muitas vezes sem questionamentos, a narrativa de Andr Lucas desestabiliza esse lugar da fala. Para ele, travestis e transexuais so identidades que, na prtica, se misturam porque a cirurgia no parmetro para se classificar as identidades.
Acho que essas discusses so muito mais hierarquizantes do que reais, assim. Eu acho que na prtica as pessoas se confundem. Eu j vi muitas pessoas que se dizem transexuais e no seguem esse conceito. E que no tem esse desejo de cirurgia, ou podem at ter, mas um desejo muito mais produzido para ganhar uma certa aceitao porque a pessoa acredita que a partir da cirurgia todos os seus problemas acabaram. Algumas travestis que, ao contrrio, pleiteiam a cirurgia e no se reconhecem como transexuais. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Essa narrativa de Andr Lucas provoca um deslocamento a partir do qual poderia se pensar sobre at que ponto o enunciado da cirurgia significa a possibilidade de inteligibilidade para o corpo transexual. Poderamos perguntar ainda por que travestis so mais estigmatizadas do que transexuais. Seriam corpos menos submissos aos dispositivos? Esses corpos insubmissos subverteriam radicalmente a 150
lgica do sistema sexo-gnero no se deixando capturar pelas armadilhas do discurso mdico-psicolgico e pelo sistema normativo sexo-corpo-gnero? Em relao aos sujeitos que iniciaram as transformaes corporais j na fase adulta da vida, Andr Lucas conta que iniciou aos trinta e trs anos, por meio da aplicao do hormnio testosterona em seu corpo, no ano de 2008. Sobre os efeitos da testosterona em seu organismo, ele contou:
A testosterona agiu de uma forma muito rpida e eficaz. Fiquei impressionado, pois com as primeiras injees j me sentia diferente. Depois que iniciei a hormonioterapia no menstruei mais. Adquiri barba, os pelos cresceram por todo o corpo, a voz engrossou, tive mais espinhas e meu apetite aumentou. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Andr contou tambm que em 2009 conseguiu um laudo de transexualismo com uma psicloga de Campinas e realizou a mastectomia total, retirando os seios, em uma clnica particular de Curitiba. Importa dizer que ele no cumpriu o protocolo exigido pelo processo transexualizador por considerar que as terapias consistiram em violentas intervenes e tentativas de domesticao da sua produo de si. Para Andr [o] psiclogo que me atendia era um ignorante. No sabia nada nem sobre gnero, que dir sobre transexualidade. Certa vez, me achou menos homem transexual porque eu estava usando dois brincos e s poderia estar com um (Andr Lucas Guerreiro, E). Andr construiu seu laudo com a psicloga atravs de conversas virtuais e por e-mail. Isto importante na medida em que representa um movimento de subverso e resistncia, pois em certa medida desconstruiu os processos de submisso das experincias transexuais ao saber mdico/psicolgico. Relatou ainda que no decidiu se realizar outras cirurgias, como por exemplo, para a construo de um neofalo, pois est aproveitando os efeitos da mastectomia. Essa narrativa fundamental para se compreender que em homens transexuais a mastectomia representa a cirurgia mais desejada (BENTO, 2006). Andr contou que antes da mastectomia no podia utilizar uma regata. Era obrigado a usar roupas largas e ainda espremia os seios com fitas adesivas por debaixo das roupas, procurando escond-los. Ainda a esse respeito, contou que a cirurgia lhe conferiu uma condio de liberdade e uma identificao, uma aproximao com o mundo masculino, que me fez sentir mais gente, mais humano. (Andr Lucas Guerreiro, E). 151
Essa narrativa de Andr Lucas fundamental para se compreender o pensamento de Butler (2008) quando afirma que a matriz de inteligibilidade de gnero entra em pleno funcionamento antes mesmo da emergncia do carter de humano 165 . Isto , antes dessa cirurgia Andr, no se sentia pertencente categoria de humano, pois embora tenha se construdo pelas fissuras das normas de gnero, no se encaixava nessas normas. No se sentia masculino o suficiente para adquirir o reconhecimento como homem e, por outro lado, se sentia muito distante do feminino. A partir de uma comparao sobre a ao dos hormnios em homens e em mulheres transexuais, Andr construiu uma narrativa na qual expressa que as mudanas corporais se do de forma diferente. Para ele, as alteraes so mais expressivas e rpidas em homens do que em mulheres transexuais:
Nas meninas, como j tm a testosterona agindo por um tempo no corpo, quando se transformam e passam a ingerir estrognio e progesterona, as mudanas ocorrem mais devagar. [...] A transio fsica, a modificao corporal de um corpo feminino reconhecido como caminhando para o masculino s pela utilizao da testosterona, que um hormnio bastante potente, faz milagres. Tanto que eu passo invisvel hoje nos cursos que eu dou, como o Gnero e Diversidade na Escola, por exemplo, em que eu brincava com os professores dizendo que eles poderiam estar em frente de um homem transexual e no saberem. Tanto que eles achavam que eu era gay de todas as formas. (Andr Lucas Guerreiro, E) 166
Nessa narrativa, poderia se pensar sobre a busca da invisibilidade social dos corpos e identidades transexuais masculinos transformados 167 . Nesse sentido, Andr Lucas relatou que conhece vrios homens transexuais que ao conseguirem fazer a mastectomia, alteram os documentos e mudam de cidade para comear uma
165 Essa discusso foi realizada na segunda parte dessa dissertao. 166 Andr Lucas ministrou oficinas sobre Diversidade Sexual para aproximadamente mil professoras/es da Rede Pblica Estadual de Ensino do Paran, nas quatro etapas do Curso Gnero e Diversidade na Escola. Esse curso foi promovido pela Secretaria de Estado da Educao do Paran SEED e pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Para saber mais acessar: <http://www.diaadia.pr.gov.br/ngds/>. Acesso em: 12/07/2010. Alm disso, atuou como docente tambm em duas reunies tcnicas entre as/os tcnicas/os dos 32 Ncleos Regionais de Educao NRE da SEED e a equipe do Ncleo de Gnero e Diversidade Sexual NGDS. Essa equipe ampliada, composta pelo NGDS SEED e pelas/os 32 tcnicas/os dos NRE atua na implementao da poltica pblica estadual de educao em Gnero e Diversidade Sexual no Paran. Andr tambm foi docente em duas mesas redondas sobre Gnero no Curso de Formao de professoras/es para o Itinerante, ao que se desdobrou na formao de mais de sete mil professoras/es da rede estadual de ensino na temtica de Gnero e Diversidade Sexual na educao. 167 Conforme exposto na primeira parte dessa dissertao, nos encontros nacionais e regionais de transexuais e travestis, a participao de homens transexuais expressivamente menor quando comparada de mulheres transexuais e travestis. Nos encontros de lideranas travestis e transexuais da Regional Sul, realizados em 2009 e 2010, por exemplo, no havia homens transexuais. 152
vida nova, invisveis do ponto de vista da experincia transexual. Poder-se-ia compreender essa nova vida como a experimentao de uma produo de si no gnero identificado e, concomitantemente, como a tentativa de apagamento da identidade de gnero atribuda anteriormente. Dorothea Lavigne narrou que iniciou a fabricao do seu corpo feminino tardiamente, na sua concepo, aos vinte e oito anos com a ingesto de hormnios femininos. Entretanto, diferentemente de Thas e Carla, relata no ter sentido a urgncia em transformar seu corpo, dizendo-se cautelosa. No perodo da entrevista, contou que no estava ingerindo hormnios por no ter conseguido um acompanhamento mdico. Falou ainda que deseja realizar a cirurgia de transgenitalizao, mas no tem pressa. A performance narrativa de Cristhiani no grupo de discusso representou um exemplo interessante da construo da identidade transexual. Cristhiani apresentou- se como travesti no incio dos trabalhos e ao final das discusses se reconheceu como transexual. Para ela, difcil saber a diferena entre uma identidade e outra.
Ns somos todas iguais, passamos pelos mesmos processos, temos pnis, porque aqui ningum operada, ou ? porque as trans no gostam do pnis? s vezes eu tambm no gosto do meu. porque elas querem operar? s vezes eu tambm quero, mas depois desisto porque tem aquela coisa de ficar louca e pode morrer. Eu hein? Para mim mais vale um passarinho na mo do que embaixo da terra grudado no corpo todo, no ? (Cristhiani, GD)
Ao alterar seu pertencimento durante o grupo de discusso, Cristhiani, elencou duas razes para se reconhecer como transexual.
Porque no mercado de trabalho (a prostituio), esse termo d mais dinheiro. Porque uma vez eu anunciei como transex e os clientes me pagaram mais. E porque as pessoas acham mais bonito. Parece que travesti est mais ligado ao bafo [escndalo], ignorncia, sei l. Mas me sinto bem como travesti. Sempre fui travesti e sempre fui feliz. Mas agora no sou mais. Sou trans que no quer operar. (Cristhiani, GD)
Sobre as identidades fixadas pela necessidade de cirurgia, a narrativa de Joyce, participante do grupo de discusso, um exemplo de deslocamento. Joyce se apresentou como travesti e contou que comeou a ingerir hormnios aos vinte 153
anos de idade. Explicou que foi impedida de se submeter a alguns procedimentos e intervenes no corpo por viver com HIV/Aids 168 :
Como eu sou uma pessoa, uma travesti vivendo com Aids, no pude realizar a cirurgia de redesignao sexual. E era meu sonho. Fiz todo o processo, passei por mdico, psiclogo, psiquiatra. Mas a peguei Aids e fui afastada do programa porque o risco de se fazer a cirurgia no meu caso muito grande. risco de morte mesmo. Fui diagnosticada como travesti. Agora, sonho com a minha prtese no peito para aumentar os seios, porque a prtese nos seios o sonho de toda travesti. (Joyce, GD)
A narrativa de Josiane, transexual, evidenciou tambm a importncia dos seios para travestis e transexuais.
Comecei a tomar hormnio com vinte e oito anos. A eu injetei silicone industrial, porque a primeira referncia que travestis e transexuais tm do feminino so os seios. E importante falar que ns fazemos isso para ns e no para os homens. (Josiane, GD)
Bruna (GD), tambm travesti, no deseja fazer a cirurgia de transgenitalizao. Sobre isso, ela afirmou: [e]u no quero fazer, afinal, sou travesti. Mas, tambm porque eu me sinto bem com meu rgo sexual. Sou feliz assim. E tambm dizem que as transexuais que operam ficam loucas (GD) 169 . Sabrina (GD), transexual que comeou a hormonioterapia aos vinte anos de idade, depois da aproximao com o movimento social de travestis e transexuais, relatou que antes disso se montava, isto , usava brilho nos lbios, cabelos compridos, roupas mais justas e unhas pintadas. Para Sabrina, esses processos de montagem consistem tambm em uma transio. Para ela, [d]e alguma forma eu me sentia feminina, utilizando essas estratgias. Eu usava roupas mais coladas, como camisetas baby look. Ela deseja colocar prtese de silicone nos seios e realizar a cirurgia de transgenitalizao 170 .
168 A grafia do termo Aids foi utilizada somente com a primeira letra maiscula por ser uma demanda do movimento social de pessoas vivendo com a sndrome. Esse movimento ressignificou esse termo deslocando o foco da patologia para a pessoa, com vistas humanizao das relaes sociais que envolvem esses sujeitos. De acordo com as lideranas, a doena no a parte mais importante nesse contexto. O Ministrio da Sade tambm j utiliza essa grafia. Para mais, acessar: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=13&id=109>. Acesso em: 12/06/2010. 169 Essa ligao entre as experincias transexuais e a loucura aparece em vrias narrativas do grupo de discusso e das entrevistas individuais e poderia suscitar muitas reflexes. Entretanto, no foi realizada uma anlise sobre isso devido ao recorte da pesquisa, no qual foram priorizadas outras categorias de anlise. 170 Antes da finalizao dessa dissertao, aconteceu o concurso de beleza Miss Curitiba Trans, especfico para mulheres travestis e transexuais, do qual participei como jurada. a quinta edio desse concurso no Estado do 154
Clo (GD), transexual, afirmou: [q]uando eu vivia escondida na pele de um gay eu j me preparava para o processo. Cuidei dos pelos do rosto. Eu tirava todos. Coloquei silicone industrial no peito e nunca tomei hormnio (GD). Essa narrativa de Clo traz um elemento fundamental para se pensar a construo das identidades, pois vrias falas que se aproximam dessa sugerem que o processo evolutivo, passando-se de gay travesti e de travesti transexual. A identidade transexual aparece no topo da hierarquia, como se fosse uma identidade privilegiada. Na narrativa de Luisa (GD), transexual, o ocultamento da experincia uma marca importante:
Ingeri hormnios, fiz depilao e todo tipo de coisas que poderiam ficar camufladas, escondidas. Assim, eu fui durante uns dez, quinze anos. H cinco anos, com trinta e nove, eu me assumi e tomo hormnios regularmente. No tenho prtese nem silicone industrial, mas no ano passado fiz umas aplicaes de metacril e botox no meu rosto. E estou me preparando para a cirurgia. (Luisa, GD)
Poder-se-ia pensar se essa produo em segredo no estaria relacionada com a possibilidade de se construir dentro do armrio. Entretanto, segundo ela:
Eu me assumi como transexual h cinco anos. Antes eu tinha identidade e corpo masculino. Os efeitos dessas estratgias que adotei foram mnimos e serviram apenas para minha satisfao pessoal. Mas eu era um gay mais afeminado. (Luisa, GD)
Em relao ao grupo que iniciou os processos na faixa etria abaixo dos dezoito anos, pode-se observar que todas as mulheres transexuais e travestis priorizaram a experincia de transexualizao em detrimento de outras que poderiam ter vivenciado como, por exemplo, o processo de escolarizao formal. Nesse sentido, Carla, que abandonou os estudos com quinze anos, sobre o incio dos processos de transformao narrou:
E com tudo o que eu passei nesse ano eu resolvi no estudar mais, porque eu no tinha apoio de ningum. Nem da famlia, nem da escola. A escola no sabia, no entendia ou se entendia no fazia nada e eu no me sentia forte para enfrentar tudo aquilo sozinha, porque no bastava eu dizer que era para pararem com aquilo ou me
Paran. O evento foi idealizado, desde a primeira edio, por Carla Amaral. Sabrina participou do concurso e se classificou em terceiro lugar. Para esse concurso Sabrina fabricou seus seios com silicone industrial. Fez duas aplicaes. Josiane tambm participou do concurso e foi eleita Miss Simpatia. Para mais, acessar: <http://www.grupodignidade.org.br/blog/>. Acesso em: 12/07/2010. 155
respeitarem. Ento, eu optei por parar e assumir aquela mulher que estava gritando dentro de mim. (Carla Amaral, E)
A anlise das narrativas dos sujeitos da pesquisa, a partir do referencial terico adotado, sugere que a nsia por construir corpos e identidades para se tornarem reais no mundo generificado pode ter influenciado no nvel de escolaridade desses sujeitos. Embora essa relao no se d de forma causal, poderia se pensar sobre a relao entre a idade em que elas/e iniciaram/ou a fabricao dos corpos e identidades, os processos e intervenes utilizados e o abandono da escola.
4.1.2 Segundo Ato: A experincia escolar
As primeiras aproximaes com as narrativas sobre a experincia escolar demonstraram que esta se constituiu por memrias traumticas, na medida em que articulam dor, sofrimento e reivindicao do reconhecimento do gnero identificado pela escola. Para Rafaelly, Carla e Andr Lucas, indivduos bastante envolvidos com a militncia LGBT, narrar suas experincias transexuais na escola significa produzir narrativas da dor e do trauma.
Minhas lembranas da escola so traumticas. No fui para o regular por medo. Peguei pnico de escola. Medo de olharem e me xingarem de novo. Medo de encarar o mundo. Porque eu no aguentava mais, eu estava com 17 anos e era xingada e humilhada todos os dias. Era tratada com desprezo. J tinha os conflitos pessoais de no me aceitar como homem. Me via como mulher. E os xingamentos reforavam que eu no era uma mulher. Doa. Doa muito. Pegava trauma. (Rafaelly Wiest, E)
Minha experincia transexual na escola, em uma palavra: traumatizante. Porque eu carrego esse trauma at hoje. Mesmo agora com a mudana de nome e que as pessoas perguntam: Ah, mas agora voc vai voltar a estudar? Ou quando eu consegui essa mudana que eu disse que ia retomar a minha vida na esperana de sofrer menos preconceito e discriminao. Mas ainda quando fala da escola me d um frio na barriga. A minha definio de escola, desde o momento que eu entrei at o ltimo em que permaneci, muito traumatizante. Eu no consegui acompanhar e ter o rendimento necessrio dentro da escola. (Carla Amaral, E)
Na escola bsica eu me reconhecia como lsbica e j sentia o preconceito e a discriminao. Se fosse como trans, penso que dificilmente eu teria concludo porque muito complicado. E eu 156
tambm j percebia que tinha algo de diferente. Eu acho que era muito ntido para mim porque eu me lembro assim, muito explicitamente, de situaes em que eu ficava esperando o nibus da escola que me levava para casa na sada... E eu me lembro que tinha um corredor de rvores, bem grande e aquilo at hoje me traz uma nostalgia triste, assim, de tristeza, daquele tempo, porque eu me sentia muito triste. Eu sempre me lembro que eu me questionava, e isso muito forte na minha memria: por que eu era um coc? Eu me lembro muito dessa frase assim, eu me via como um coc, literalmente, um coc. E, obviamente, para eu ter construdo isso com to pouca idade porque eu percebia que eu no respondia ao que as pessoas queriam. E com o passar do tempo eu fui fazendo cada vez mais conexes. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Essas trs narrativas produzem um sentido de experincias do trauma. Evidenciam um estranhamento acentuado entre os dolorosos processos empreendidos para a fabricao de si e a escola. Assim, essa categoria, ou Ato Perfomativo, subdivide-se em oito subcategorias, as quais denominei de Cenas, considerando a perfomatividade e a atuao dos sujeitos envolvidos na pesquisa e, a necessidade de uma anlise detalhada dessas questes. Importa pensar aqui tambm em como esses sujeitos elaboram suas experincias de subverso do gnero no espao escolar.
4.1.2.1 Cena um: Nome social x Nome civil
A problemtica narrada nessas experincias que subvertem as rgidas normas de gnero potencializa o nome como uma questo importante, bem como a sua representao para sujeitos transexuais e travestis. O nome social foi o nome escolhido 171 , muitas vezes, pelo sujeito e outras tantas por uma transexual ou travesti mais velha, que exerce a funo de guia e/ou cafetina, tambm denominada de madrinha ou me. O significado desse nome construdo juntamente com a identidade de gnero fabricada pelas/os transexuais e travestis como uma espcie de legenda, isto , uma identificao diante do mundo e, sobretudo, materializa a nova identidade produzida pela construo do corpo. No entendimento dos sujeitos da pesquisa, a utilizao do nome social em detrimento do nome civil parece propiciar uma sensao de conforto e satisfao. Parece ainda garantir, de alguma forma, o reconhecimento de outros sujeitos sobre seus
171 A idia de escolha foi problematizada na primeira e na terceira parte dessa dissertao. 157
processos de fabricao, tanto naquilo que se refere a seus corpos, como tambm s suas identidades. Essa busca por uma confirmao de compreenso, por parte da sociedade, dos processos de fabricao pode ser entendida a partir do referencial das matrizes de inteligibilidade dos gneros como proposta por Judith Butler (2000; 2008) 172 . O nome possibilita primeiramente o reconhecimento de um sujeito e designa imediatamente um pertencimento de gnero. Nesse sentido, nomes com significado dbio sempre produzem uma certa insatisfao do ponto de vista do outro. Por exemplo, ao ouvirmos um nome como Jaci, logo procuramos saber se se trata de uma mulher ou de um homem. Do ponto de vista das polticas da diferena, as relaes se complexificam no campo da escola. O nome proporciona tambm meios de classificar, categorizar, agrupar por semelhanas, opor e comparar grupos pelas diferenas 173 . Nesse sentido, as narrativas sobre o nome enfatizam as lembranas e esquecimentos constitudos em memrias traumticas no que se refere publicizao ou utilizao do nome civil. A ao de nomear uma/um transexual ou travesti pelo seu nome civil suscita sentimentos de dor, raiva, sofrimento e revolta, explicitados nas narrativas de todos os sujeitos entrevistados. Essas narrativas tambm se constituram em narrativas comuns. Sobre esse tema Carla disse:
No. No vou falar meu nome de batismo porque isso representa um retorno a um passado e um sofrimento muito grande ao qual eu no estou disposta. Eu sou Carla Amaral. Quando eu peguei meus documentos [novos], peguei uma tesoura, piquei meus documentos antigos e com eles tudo o que me lembrava aquele passado, com muito dio. Joguei tudo fora. Me libertei disso. Enterrei o meu passado e com ele tudo o que passei. E sou Carla Amaral. Sempre fui. (Carla Amaral, E)
Essa narrativa expressa uma forte carga emocional, isto , o quo pesaroso a meno ao seu nome civil 174 . Assim, mesmo com a alterao dos documentos, para Carla, a simples aluso ao nome civil provoca reaes de dor.
172 Essa discusso foi explorada na segunda parte. 173 Ins Lacerda de Arajo (2001), amparada no referencial foucaultiano, afirma que [o] nome nomeia o que representado, designando o elemento comum s vrias representaes. geral e possibilita classificao: um animal, um quadrpede, um gato (ARAJO, 2001, p. 40). 174 importante lembrar que Carla, mesmo no sendo cirurgiada, conseguiu alterar seus documentos por meio de um processo judicial e atualmente em seus documentos, seu nome Carla Amaral e seu sexo feminino. 158
nesse momento, quando comecei a transformao, aos quinze anos que veio o meu nome, Carla, porque eu entendia que se voc queria viver esse gnero, voc tinha que ter um nome desse gnero. E eu tinha que escolher o meu, mas no sabia como. At esse momento adotava o nome Patrcia, que me lembrava a minha amiga. Mas eu dizia esse nome s pessoas e no me identificava com ele, pois soava falso. No era eu. Um dia algum me perguntou e eu disse: Carla. A pessoa repetiu e me identifiquei na hora. esse o meu nome. E era o nico nome com o qual eu me identificava. Nem pelo meu nome civil, o antigo, eu respondia. Aquilo me magoava quando algum falava. Me doa. Parecia que estavam me cravando um machado. E essa a histria do nome Carla. Ele surgiu, no foi escolhido, foi um momento de identificao, de reconhecimento meu mesmo, da Carla que existia. (Carla Amaral, E)
Essa narrativa de Carla expressa a necessidade de escolher um nome em concordncia com o gnero identificado. Na relao entre o nome social e a escola, as narrativas demonstram que na escola o nome representa a diferena entre a permanncia ou no na instituio. Assim, para Andr Lucas, que tambm declara ter dificuldades em relao a mencionar seu nome civil, o qual denomina de nome feio:
O nome social na escola , talvez, a principal garantia, mais do que da prpria identidade... da condio do humano, porque se a pessoa possui uma incongruncia entre a aparncia dela e o nome, se algum insiste em usar o nome civil, essa pessoa vai ser descaracterizada. Ela deixa de ser uma pessoa e passa a ser um objeto a ser hostilizado. Pensando at no nome social como poltica pblica, ele uma poltica pblica dentro dos direitos humanos porque voc d uma garantia bsica daquela pessoa ser tratada como pessoa, como indivduo humano, com direitos e, se isso no acontece, pronto, j est tudo prejudicado. Voc j comea sem esse mnimo direito que talvez seja o mais importante de todos. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Na narrativa produzida por Andria Cristina tambm fica evidente a relao entre o nome e a possibilidade de permanncia na escola.
O uso do nome social na escola o respeito pela pessoa, pelo ser humano, porque at ento, eu vejo por mim, se me chamarem pelo nome masculino eu acho uma falta de respeito, uma ofensa. Eu acho uma ofensa, em qualquer momento. Eu exijo que me chamem por Andria tanto na minha vida particular, pessoal, como na minha vida profissional. Se no me chamarem de Andria esto me ofendendo. Assim... Se me chamarem pelo meu nome masculino esto me ofendendo e no que eu queira que seja uma ofensa, mas que eu no me aceito com esse nome. Eu acho que todas [as trans] pensam 159
assim, uma questo de precisar. uma necessidade do prprio eu que a gente construiu. Provavelmente se uma trans adolescente em processo de descoberta e transformao estiver na escola e no respeitarem o nome dela, ela vai desistir. (Andria Cristina Schuz, E)
As duas narrativas explicitam elementos essenciais para se compreender a importncia atribuda pelos sujeitos utilizao do nome social nas escolas. Essa importncia parece estar diretamente relacionada ao binmio afirmao/negao de seus processos de fabricao da identidade. Poder-se-ia problematizar que o nome social de travestis e transexuais extrapola a ordem do capricho ou da vaidade, situando-se num campo de condio de possibilidade para a existncia e viabilidade desses corpos e identidades no mundo, para alm da invisibilidade. A necessidade de silenciamento do nome civil de Andr Lucas expressou-se por meio de uma narrativa em que as experincias de dor, sofrimento e frustrao em relao ao uso do nome social e a prpria universidade, instituio na qual Andr aluno regular, apareceram sob forte tenso.
Em meio ao meu processo de transio, empreendi uma luta meio solitria em busca da garantia do direito ao uso do nome social nas listas de chamada, que resultou, depois de muita humilhao, no Parecer da Procuradoria Geral da UFPR, desde 2009, que na prtica no se efetivou. E quando eu percebia que os professores no iriam usar o nome social, eu desistia da matria. Outros, questionando at que ponto importante para mim o uso de um nome masculino, ironizando e ridicularizando as minhas necessidades. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Rafaelly relatou que no teve grandes dificuldades em relao ao nome porque desde muito cedo foi chamada de Rafa. Entretanto, costura uma narrativa sobre isso, com certo desconforto. Para ela:
Eu digo o nome como se fosse o do meu irmo. Rafael Henrique da Silva o nome que est na minha carteira de identidade, mas esse nome no meu. O meu Rafaelly Wiest. Eu no tive tanto problema porque desde pequena todo mundo me conhece como Rafa. (Rafaelly Wiest, E)
Mait narrou que, embora no tenha sofrido constrangimentos em relao ao uso do nome social na escola por ter iniciado o processo de transio depois do Ensino Mdio e a fabricao do corpo no cursinho pr-vestibular, criou uma 160
estratgia em relao aos editais de nota. No cursinho no fez amizades e, como no existia chamada, no era identificada como Alexandre, seu antigo nome civil 175 . Sobre o edital de notas, exposto nos murais do cursinho, relata que quando as colegas perguntavam o motivo pelo qual a nota dela no estava neste documento, ela dizia que iria verificar.
Eu comecei as mudanas depois que sa do Bom Jesus. Foi no cursinho que eu comecei. Mas l voc no tem muito essas coisas de amizade. Cursinho muito cada um com o seu objetivo, nmero e vamos passar... A voc no forma amizade. Alm disso, voc sabe quando vai terminar, um ano, seis meses, intensivo... Mas a eu no tive muitos problemas porque era s uma carteirinha, ento eu passava a carteirinha e mostrava que eu estava l dentro. Ento no tinha chamada. O nome estava s no papel. Ento as pessoas no sabiam. Eu falava Mait e no tinha que mostrar a carteirinha. Quando pregavam as listas com o nome, as pessoas me perguntavam: Quanto voc tirou Mait? Teu nome no est na lista? E eu dizia: Pois , vou ter que perguntar o que aconteceu l na secretaria... (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Em se tratando do uso do nome social nas escolas, para Mait isso fator determinante em relao evaso escolar de travestis e transexuais.
A importncia do nome social para a vida escolar gigante. Porque o que eu j vi... Eu no pude viver isso porque na minha poca de escola era impossvel pensar numa coisa dessas, mas quando eu vejo hoje essas mudanas em termos de sade, de educao, agora com as medidas que esto sendo tomadas, resolues... um passo super importante para diminuir inclusive a evaso escolar, fazendo com que elas tenham um pouco mais de dignidade. Lgico que no vai solucionar todos os problemas de um rapaz ou uma menina no
175 Mait falou que quando passou no vestibular em 2009 e ainda utilizava Mait como nome social, precisou impor os seus direitos instituio, isto , Faculdade de Artes do Paran, para que respeitassem seu nome social. Sobre isso, ela relatou: Foi muito engraado, porque quando eu passei, quem passou no vestibular foi o Alexandre e hoje s existe a Mait. E foi uma outra luta l dentro porque quando eu prestei vestibular eu pensei: puxa, eu no vou aguentar esse negcio de nome... vou ter que passar por tudo de novo. E quando eu fui fazer a prova do vestibular, na minha sala s tinha Alexandre. Era dividido por nome, sabe? E quando eu entrei na sala o fiscal me falou: Olha, voc est na sala errada moa, Alessandra ali na frente. A eu s olhei assim e falei: Ai, meu Deus. Olhei na sala aquele bando de homem. Da eu fui, chamei ele, expliquei, me levaram para a Comisso de Vestibular, eu expliquei tudo de novo, contei a histria, mostrei os documentos, assinei, carimbei os dedos para conferirem minhas impresses digitais, aquelas confuses todas... A eu fui fazer a prova e na minha sala, logicamente, ningum se concentrou porque todo mundo ficava falando: Nossa, o que ela est fazendo numa sala s de Alexandres? tanto que nenhum outro Alexandre entrou. Eu eliminei todos s por estar na sala. tristeza, n? E da a primeira coisa que eu fiz foi protocolar a mudana de nome na faculdade, que mesmo sendo estadual ainda no tinha uma resoluo. Como eu conhecia todos os professores e todos eles me conheciam como Mait, porque j tinham visto minhas peas, ento eu pude me impor. E o professor chamava: Alexandre Caldas de Miranda. E eu dizia: Olha, professor, eu acho que esqueceram de colocar meu nome na lista. Mait Schneider. A ele comeou a me chamar de Mait e disse: Ah, depois eu vou ver l embaixo na secretaria. E eu dizia: Eu acho bom voc colocar meu nome porque eu no vou responder a chamada de Alexandre (Mait Schneider, E) 161
processo transexualizador, mas vai dar pelo menos uma chance dela respirar nessa turbulncia que tem com relao a esse encontro de identidade a viver num mundo em que todo mundo diferente, mas ao mesmo tempo no se aceita. A diferena tratada como uma coisa negativa. Ento ela vai poder respirar pelo menos um pouco, porque eu acho que as coisas s mudam se tiver um embasamento na educao. Eu acredito muito na educao como forma de mudana de uma sociedade, assim como de mudanas pessoais. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Pode-se perceber nessa narrativa, que embora afirme no ter passado constrangimentos em relao ao uso do nome social, Mait costura caprichosamente suas memrias em narrativas que associam a utilizao do nome social na escola com o enfrentamento da evaso escolar de transexuais. As participantes do grupo de discusso, sem exceo, costuraram narrativas comuns em relao ao nome social. A primeira narrativa refere-se importncia da utilizao desse nome nas escolas como uma forma de garantir a permanncia desses sujeitos nesses espaos. Nesse sentido, para Luisa:
O nome social na escola fundamental. Eu tenho certeza de que se eu fosse mais jovem e tivesse iniciado o processo mais cedo na minha vida e no tivesse meu nome social respeitado eu no teria feito nenhuma graduao. Porque a violncia, a discriminao e o preconceito uma realidade muito cruel e excludente. O uso do nome social super importante. uma ao afirmativa para manter essas pessoas na escola. (Luisa, GD)
Outro ponto evidenciado na narrativa comum do grupo relaciona-se com uma maior facilidade de cursar o Ensino a Distncia, considerando que nessa modalidade no existe o momento da chamada. Para Josiane:
No Ensino a Distncia a facilidade muito maior. Voc vai, faz a prova, entrega, espera corrigir, v a tua nota e sai fora. No precisa falar com ningum e no precisa ouvir nada de ningum. uma forma de se resguardar, se defender e no sofrer o que a gente passa no ensino normal. (Josiane, GD)
A partir dessas costuras das memrias, considerando tambm que a maioria dos sujeitos transexuais e travestis que participaram da pesquisa militam tambm pelas causas do movimento social de travestis e transexuais, talvez se possa compreender a performatividade dessas narrativas. Importa notar tambm a forma como o movimento social de travestis e transexuais organizou-se, em junho de 162
2008, na I Conferncia Nacional de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em Braslia, lanando uma campanha nacional por meio da qual solicitaram a utilizao do nome social nas escolas em todos os sistemas de ensino do Brasil 176 . Dessa forma, os atos performativos da memria evidenciaram-se medida que os sujeitos que dizem no terem vivenciado de forma traumtica essa experincia na escola passam a construir narrativas comuns. Importa notar a semelhana entre essas narrativas e aquelas elaboradas pelos sujeitos que experimentaram uma negociao tensa para o reconhecimento do corpo, do nome e da identidade pela escola.
4.1.2.2 Cena dois: O uso do banheiro
O uso do banheiro na escola, para a maioria dos sujeitos da pesquisa, um complicador da permanncia de travestis e transexuais nas escolas. Carla costura suas memrias traumticas em relao a essa experincia, pois lembra que nunca utilizou esse espao na escola. Carla narra:
Banheiro de escola, ento, eu nunca usei. No conheci banheiro de escola. Porque tinha banheiro de menina e de menino e no dos meninos eu no ia porque no me sentia bem. No das meninas eu no ia porque no me deixavam. Quando sentia vontade de ir ao banheiro na escola, segurava at chegar em casa. (Carla Amaral, E)
176 Atualmente a utilizao do nome social na educao foi inserida como poltica afirmativa nos seguintes Estados: Paran, Gis, Alagoas, Cear, Maranho, Par, Santa Catarina, Mato Grosso, Distrito Federal, Tocantins, Rio Grande do Sul e nas cidades de So Paulo e Belo Horizonte. Para saber mais acessar: <http://mixbrasil.uol.com.br/>. Acesso em: 12/07/2010. O Paran foi o quinto Estado a aprovar a utilizao do nome social de travestis e transexuais nas escolas pblicas da Rede Estadual de Educao. A utilizao do nome social nas escolas e universidades pblicas estaduais foi aprovada pelo Conselho Estadual de Educao do Paran, por meio do Parecer n 01/09, do Conselho Pleno. A partir desse parecer, a Secretaria de Estado da Educao do Paran elaborou uma instruo de matrcula para normatizar a insero do nome social de travestis e transexuais no sistema de cadastro das/os alunas/os. Para saber mais acessar: <http://www.diaadia.pr.gov.br/ngds/>. Acesso em: 12/07/2010. A normatizao da implementao dessa ao est em processo na Secretaria de Estado da Educao do Paran. importante destacar que embora haja essa resoluo no Paran, h uma limitao imposta pela faixa etria do parecer, isto , apenas travestis e transexuais com 18 anos de idade ou mais podem solicitar a utilizao do nome social nos registros escolares. Entretanto, no final do ms de julho/20010 foi protocolado, na Secretaria de Estado da Educao, o pedido de uma transexual com 16 anos de idade, do municpio de Lidianpolis, interior do Paran, em que a me da transexual solicita a utilizao do nome social da filha na escola pblica (SANTOS, Dayana Brunetto Carlin dos. Subverso das normativas sobre a utilizao do nome social nas escolas: a escola no descompasso em relao a corpos e identidades fabricadas no prelo). Alm disso, o texto refere somente s/aos alunas/os, ignorando-se as/os profissionais da educao.
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Mait tambm elabora uma costura de memrias traumticas em relao utilizao do banheiro da escola.
Eu no entendia porque que eu no podia ir ao banheiro das meninas, ento me tiravam do banheiro das meninas, da quando eu descobri que eu s podia usar o banheiro dos meninos, porque eu era menino, eu no tomava gua o dia todo para no ter que ir ao banheiro. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Andria Cristina, assim como outras que realizaram seu processo de transio tardiamente, relata que no teve muitos problemas pois como seu processo de transio foi tardio, utilizava o banheiro dos meninos. Entretanto, faz questo de chamar a ateno para o caso de uma menina que estudava em uma escola do seu bairro:
Teve at um caso aqui no La Salle, aquele colgio aqui, sabe? H uns 3 ou 4 anos teve uma trans ali, que a famlia aceitava ela como mulher em casa e ela tinha problemas no colgio. Era um colgio, tipo de freira assim... do Estado e tudo, mas tem as freiras l que tocam e ela tinha grandes dificuldades. No queriam aceitar ela como mulher e ainda tinha a questo do banheiro. So coisas bsicas. Tem que ter a incluso. Banheiro feminino, at porque se ela for ao banheiro masculino, corre o risco de ser estuprada. Ento so necessidades que tem que ser respeitadas. muito importante assim em relao ao nome e liberdade de poder escolher os espaos, banheiro e tudo o mais e de ser tratada como mulher porque na verdade ela uma mulher. (Andria Cristina Schuz, E)
As narrativas costuradas por Thas em relao ao uso dos espaos da escola expressam silncio e angstia, considerando a forma como escolheu para narrar. Com a cabea baixa, olhando para o cho, ela conta:
Eu me comparava com as meninas e via que eu era diferente delas na escola, mas eu procurava me aproximar delas. E a me impunham a usar o banheiro dos meninos e a roupa de menino. E no meu colgio na poca no usavam uniformes e da eu ia trajadinho de menino: cabelo curtinho... Principalmente aquela de entrar em banheiro masculino porque terrvel, a gente assediada, batiam na porta quando a gente ia urinar... Voc fica sufocada. Eu ficava com dor na bexiga de tanto segurar para no ir ao banheiro na hora do recreio. (Thas Prada, E)
De forma especfica, as narrativas sobre o banheiro da escola evidenciam esse espao escolar como interdito s mulheres transexuais e travestis. Diante 164
disso, a maioria desenvolveu uma estratgia, subsistindo e persistindo na fabricao da identidade. Nesse processo de construo, observa-se uma imposio da identidade construda pelos sujeitos ao espao interdito da instituio, conforme evidencia Carla. Ela conta que utilizou o banheiro feminino na ltima escola em que estudou, quando j estava na fase adulta. Relata que depois de ter se afastado da escola por vinte anos, procurou uma escola particular porque pensou que encontraria menos preconceito e utilizou o banheiro feminino:
Ah, mas tem a histria do banheiro. Dessa vez eu usei o banheiro... feminino. que hoje pra mim super normal. Depois que a Carla veio, ela nunca mais deixou de usar o banheiro feminino porque j era natural pra mim. Depois que a Carla veio e assumiu essa identidade nunca mais eu me sujeitei a no usar o banheiro. E eu ia mesmo, sou mulher e acabou. E se algum viesse falar, eu dava o troco: sou mulher mesmo e aqui que eu vou. (Carla Amaral, E)
Assim, poder-se-ia pensar sobre como se estabelecem os processos de excluso desses corpos fora da norma dos espaos escolares, construdos como exclusivos, sob os signos da heteronormatividade 177 . Carla esperou at os trinta e sete anos para usar o banheiro feminino de uma escola.
4.1.2.3 Cena trs: Nas aulas de Educao Fsica
As memrias das aulas de Educao Fsica foram expressas por Carla, Thas e Mait. Estas aulas representaram para elas tambm um espao que colocou em xeque a construo das identidades e dos corpos em direo ao gnero identificado.
Na 4 srie do Ensino Fundamental, com dez anos, estudei em uma escola de freiras, particular. E foi outro suplcio. Eu tinha mudado de escola e nessa escola nova tinha Educao Fsica. Essa outra tortura da mulher trans: a Educao Fsica. Porque at a 3 srie eram brincadeiras, cada um faz o que quer... Mas nessa escola no. Nessa escola que eu estudei tinha professor [especfico] e eles separavam meninas de meninos. O nico problema dessa escola era a Educao Fsica, porque comeava a aula, j tinha que separar os grupos: meninos e meninas. Mas o problema no estava na separao, mas sim na aula que o professor dava para os meninos, pois era s jogar bola. Eu odeio futebol. No que futebol ou bola seja
177 As discusses sobre heteronormatividade foram realizadas na segunda parte desse trabalho. 165
um negcio masculino, mas era o que era me imposto naquele momento que menino tinha que gostar de jogar bola porque era menino, ento, eu criei uma repulsa por esse esporte. At hoje eu no gosto. Algumas coisas que me foram impostas como coisas de menino at hoje me causam repulsa. como a cor azul que at hoje eu odeio. Eu odeio azul, principalmente azul marinho. Outros azuis at passam. E o rosa tambm eu odeio, porque eu associo com o que diziam que rosa era cor de menina, logo no era minha cor. (Carla Amaral, E)
Entretanto, como Carla priorizou os processos de fabricao do seu corpo e identidade feminina, ela desenvolveu estratgias de resistncia e sobrevivncia nesses espaos e tempos.
Eu usava algumas estratgias para no ser obrigada a fazer a Educao Fsica: eu falsificava bilhetes, dizendo que eu tinha problemas de sade e no podia fazer esforo e assinava como minha me. No sei se o professor acreditava, mas dava certo porque eu no fazia aula. Eu ficava sentadinha olhando as meninas fazerem a aula delas, jogando vlei, pulando corda e jogando handebol. Eu tinha que ficar na quadra dos meninos, mas ficava virada, olhando para o lado das meninas. O mais triste dessa situao que minha tortura era to grande que quando eu acordava, antes mesmo de chegar na escola, eu passava na igreja, porque sou catlica e tenho a minha f. Eu passava na igreja e me ajoelhava pedindo que o professor casse na minha cartinha e me dispensasse da aula dos meninos ou que ele no viesse dar aula hoje. Olha o absurdo! Veja o ponto em que chegava, uma criana de 9 anos lutando contra tudo e contra todos para ser o que sentia ser. Eu chorava no altar da igreja e pedia que Deus me ouvisse e Ele ouvia minhas preces. Nessa escola tambm enfrentei situaes preconceituosas por parte das/dos alunas/os. (Carla Amaral, E)
As aulas de Educao Fsica para as mulheres transexuais que realizaram quando mais jovens a sua transformao, representam uma dificuldade ainda maior em relao sua permanncia na escola. Segundo Thas:
Educao Fsica tambm era terrvel porque sempre queriam colocar a gente com os meninos, porque sempre tinha aquela diviso e para mim era terrvel. A eu no ficava. Eu me isolava e no fazia nada. As minhas notas mais baixas eram em Educao Fsica. (Thas Prada, E)
Mait relatou que dentre um mundo de coisas fora do lugar na escola, em relao a ela as aulas de Educao Fsica representavam mais uma.
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Na poca no Bom Jesus era tudo separado, recreio de meninas e recreio de meninos, tinha sala s masculina. Era totalmente diferente do que hoje, entende? E da eu no entendia [...] no queria fazer Educao Fsica. E da comea aquele bando de coisas na minha vida... o colgio que comea a chamar o pai l toda semana para entender o que tinha acontecido, porque eu estava na fila das meninas, porque eu no queria ir para a outra, porque eu me negava a fazer as aulas de Educao Fsica. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Para os sujeitos que construram suas identidades e corpos mais tarde, as aulas de Educao Fsica so rememoradas com algum descontentamento, mas de uma forma diferente. Dorothea, por exemplo, conta que fazia as aulas de Educao Fsica com os meninos quando o professor separava as turmas, entretanto, ao longo das aulas, comumente, era encaminhada ao grupo de meninas.
Mas assim, eu fazia as brincadeiras que me mandavam fazer na escola. Se me mandavam jogar bola eu jogava. Eu no gostava, mas eu fazia. E uma coisa interessante assim que era muito normal os professores e os colegas me colocarem nos grupos com as meninas. Talvez porque eu fosse meio afeminado, assim... E eu na minha inocncia... Eu fazia o que mandavam. (Dorothea Lavigne, E)
Andria Cristina e Josiane relatam que, como no princpio, viviam como meninos, atuavam sem grandes problemas nas aulas de Educao Fsica. Para Andria Cristina:
Eu fazia Educao Fsica com os meninos porque eu no tinha o que fazer, entende? Mas eu nunca fui bom em esportes, nem futebol, nada. Ento eu ficava isolado. Mas a minha educao foi masculina. Toda a minha educao foi masculina, no colgio, em casa, a minha adolescncia, tudo era baseado no masculino. (Andria Cristina Schuz, E)
No grupo de discusso, as narrativas convergiram em dois polos, assim como nas entrevistas: para os sujeitos que migraram em direo ao gnero identificado mais cedo, pareceu ter sido mais difcil atuar nas aulas de Educao Fsica. No segundo polo, das transexuais que se construram mais tarde, as aulas de Educao Fsica so rememoradas como algo que precisava ser executado e que, na sua atuao masculina, realizavam s vezes com algum desconforto. Com isso, no se est afirmando que os sujeitos que no se construram em outro perodo da vida no tenham histrias de excluso nas aulas de Educao Fsica, ao 167
contrrio, esses sujeitos sofreram e expressam suas memrias de dor e sofrimento, como Josiane relata:
Eu sofri quando estava na escola tambm com essa coisa da Educao Fsica porque como eu era muito frgil e afeminado, eu ficava mais isolado. Eles me chamavam de viadinho o tempo todo, queima rosca e de outros apelidos carinhosos. (Josiane, GD)
A partir disso, poder-se-ia pensar se a construo da identidade atribuda pelos sujeitos ao perodo da infncia e as transformaes do corpo e da identidade realizadas na adolescncia no contriburam para a evaso escolar. Importa compreender em relao a isso que, se tomando as narrativas construdas para essa pesquisa, travestis e transexuais que se fabricaram na adolescncia permaneceram menos tempo na escola.
4.1.2.4 Cena quatro: A relao com as/os professoras/es e funcionrias/os
Foram analisadas aqui as narrativas sobre as relaes estabelecidas com professoras/es e funcionrias/os da escola. As narrativas nesse aspecto evidenciam singularidades das experincias transexuais na escola. Alguns dos sujeitos entrevistados expressam recordaes agradveis desse contato. Para Rafaelly (E): [a]t os dez anos no tive problemas com preconceito na escola. Sempre fui muito estudiosa e popular. Os professores me adoravam porque eu era a melhor da sala. Entretanto, ao rememorar o seu processo de escolarizao, Rafaelly narra tambm momentos em que a relao com as/os professoras/es foi difcil e dolorosa.
Nossa, parece que passa um filme na cabea... Faltava um ms para concluir a 7 e eu parei. Lembro que alguns professores falavam: olha a mariquinha!; Corta esse cabelo!; Cria jeito de homem!. Nessa poca, meu cabelo era chanel. O diretor dessa escola na poca, que permanece at hoje, tambm no achava certo eu ser, na poca, gay. Abandonei os estudos por causa disso. No aguentei a presso. (Rafaelly Wiest, E)
As relaes entre Mait e suas/seus professoras/es so definidas por ela como complicadas e difceis. Ela atribui isso ignorncia das/os professoras/es sobre a sua experincia. Narra algumas situaes pelas quais passou na escola, 168
situaes em que as professoras privilegiavam outras/os alunas/os em detrimento dela.
Naquela poca no existia pedagoga na minha escola. Essas coisas de acompanhamento foram posteriores. Tinha uma psicloga que raramente estava l e que no entendia direito e no se aprofundava muito no problema. Por ignorncia mesmo. Mas nem eu sabia. Quando acontecia alguma coisa de chacota na sala de aula, mesmo eu no sendo a culpada de nada, era eu que tiravam da sala porque eu era a mazinha diferente. Era eu que saia, mesmo quando eu no tinha culpa nenhuma. Para a professora, era melhor tirar eu do que tirar os outros 39 alunos. Tira a Mait e tenta resolver isso. Eu no tive nenhum acompanhamento ou encaminhamento da escola. Sempre me culpabilizaram e, ao mesmo tempo, no podiam falar muito porque eu era uma tima aluna. E no sei se mudou muito, agora que tem as pedagogas. Pelo que eu escuto do Richard, aquele amigo da minha sobrinha, que trans e estuda aqui no Bom Jesus, parece que o entendimento continua bem complicado. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Andr Lucas, que vive sua transexualidade no ensino superior, conta que estabeleceu relaes difceis tanto com suas/seus professoras/es, quanto com as/os funcionrias/os da universidade. Segundo ele, em nenhum momento sentiu-se amparado na sua experincia transexual.
[...] J comea com o coordenador usando a bacia de Pilatos e lavando as mozinhas dele. J comea com isso, ento difcil. A maioria dos professores desligada. [...] A equipe tcnica de psiclogos e assistentes sociais no est sensibilizada. Ento, hoje eu vejo que a Pr-reitoria fez mais por obrigao e no compreendeu que deveria encampar essa luta. E o Ncleo de Gnero, nem se fala, porque eu cheguei a pedir e no houve nenhum encaminhamento. Tanto que as pessoas sempre me questionam: ningum pode ajudar? No, no pode, porque no quer. Ento, foi uma decepo muito grande. [...] tanto que uma das professoras do Ncleo de Gnero foi minha professora e tambm no fez nada. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Ao construir suas lembranas do perodo escolar em relao s/aos professoras/es, entretanto, Andr Lucas relata:
Eu sempre vou me lembrar de bons professores. Daqueles que me influenciaram, que me fizeram inclusive acreditar na educao como os culos da transformao, que me fizeram querer estar dentro da educao. E que me trataram como gente, me elogiando quando mereci. (Andr Lucas Guerreiro, E) 169
Essa narrativa de Andr Lucas explicita uma complexidade em relao escola, pois embora tenha lembranas de professoras/es que lhe mostraram outras possibilidades de entendimento da educao, a meritocracia tambm parece ter feito parte dessas interaes. Em relao sua interao com as/os professoras/es e funcionrias/os da escola, Carla conta que na terceira srie as professoras chamaram sua me escola para dizer que ela tinha problemas, porque tinha um comportamento fora do padro esperado para um menino. Alm disso, tentaram convencer sua me sobre a necessidade de tratamento para o seu caso 178 . Assim, nas suas lembranas, Carla expressa sentimentos de ressentimento e mgoa em relao escola:
As professoras diziam minha me que eu tinha problemas, que ela precisava me levar num mdico, num psiclogo, porque no era normal esse meu comportamento, de querer estar s no meio das meninas e brincar s com meninas. Mas esse meu comportamento incomodava somente s professoras, pois nem as meninas e nem os meninos se incomodavam com a minha presena s nos grupos de meninas. E a mim incomodava menos ainda, porque era nesse grupo que eu me sentia bem. Uma vez cheguei a apanhar da minha me devido a essa situao e fui proibida de me aproximar das meninas. Ento, obedeci e me isolei, pois se eu no podia falar com as meninas, com os meninos que eu no ia falar. A eu ficava na sala de aula nos intervalos. E isso me deixa triste, pois nenhuma professora chamou minha me para relatar que eu estava, agora sim, com problemas, pois no tinha mais contato com as amigas e passava os intervalos isolada dentro da sala de aula. (Carla Amaral, E)
A narrativa de Thas evidencia uma lembrana de apoio em relao sua experincia transexual na escola. Ela relata que uma nica vez se sentiu amparada na escola por uma professora-pedagoga. No entanto, segundo ela, essa relao foi pontual no seu processo de escolarizao.
Na stima srie, tinha uma orientadora no colgio e ela viu minha situao. Eu cheguei a reclamar com ela que no dava mais e ela conseguiu que eu fosse ao banheiro dos professores, mas foi s na stima porque no outro ano ela saiu da escola e da voltou tudo ao normal. O segundo grau eu fui fazer em outro colgio e tive que passar por tudo de novo. (Thas Prada, E)
178 Uma anlise a esse respeito foi realizada na terceira parte dessa dissertao. 170
Nessa narrativa de Thas importante notar tambm uma espcie de banalizao das situaes de constrangimento, humilhao e violncia, pois, voltar ao normal significa estar submetida a essas prticas na escola. Entre as participantes do grupo de discusso, apenas Jennifer relata se lembrar de ter estabelecido uma relao com um professor, segundo ela, de afeto e carinho que se prolongou por dois anos. Ela lembra:
Tinha s um professor que quando eu comecei a tomar hormnio, tarde j, com quinze anos, ele passou pela minha carteira um dia e colocou a mo no meu pescoo perguntando se eu estava bem. Da em diante ficamos juntos. E a gente saiu por dois anos. (Jennifer, GD)
A costura coletiva das memrias das outras participantes feita no territrio do silenciamento. Elas afirmaram se lembrar de terem tido uma relao nem afetuosa nem difcil com suas/seus professoras/es e com as/os funcionrias/os da escola. Joyce relata: [a] relao com os professores era mecnica. Eles mandavam e a gente fazia, porque tinha que passar de ano. Ningum se aproximava muito. A gente se isolava. Era o patinho feio (GD). Importa pensar por que as memrias sobre o relacionamento com professoras/es e funcionrias/os da escola invisibilizam as/os profissionais da educao. Isso se evidencia nas narrativas da maioria dos sujeitos que dizem no se lembrar de ter tido uma relao prxima com suas/seus professoras/es. Poder-se- ia pensar no apagamento dessas memrias.
4.1.2.5 Cena cinco: A relao com a instituio
As narrativas sobre a instituio escolar explicitam sentimentos de desamparo, evidenciando um sentimento de no pertencimento a esse espao institucional. A montagem das memrias que importam para elas/e parece estabelecer uma relao causal entre a sua experincia e as situaes vexatrias, promovidas pela prpria instituio. Para Andr Lucas:
Eu penso que eu fui hostilizado e humilhado, tanto na escola como na universidade, porque eu era diferente, por eu estar fora das normas de gnero, porque a sociedade dicotmica. sempre aquela maldita idia maniquesta de bem e mal. Ento, a norma o 171
bem e fora da norma o mal. Ento, se voc est fora da norma, a sociedade te l como o mal. Ento, portanto, se voc o mal a sociedade pode te hostilizar pode fazer o que quiser com voc. Acho que uma explicao essa. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Entretanto, outras construes narrativas, como uma do mesmo Andr Lucas, explicitam a escola como uma instituio importante, de alguma forma, na sua experincia:
At o reconhecimento, porque eu fui diversas vezes o melhor aluno da escola. Ento tinha aquela coisa de hastear a bandeira e isso te d certo status. Ento isso era legal, porque eu sempre me defini como uma pessoa muito carente. Porque para mim sempre foi muito difcil conseguir carinho. Ento, quando voc tem certa admirao, mesmo que comprada, mesmo que engolida, goela abaixo das pessoas, para quem est muito carente, legal. As lembranas boas so nesse sentido. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Nessa narrativa de Andr Lucas aparece tanto o mrito acadmico quanto as negociaes. Mait narra que estabeleceu uma relao utilitarista com a escola. Segundo ela, como o ensino praticado na escola em que ela estudava era confessional catlico, ela sentia que estava pecando sempre. Assim, resolveu ignorar o que era discutido pela escola em relao s experincias fora da norma heterossexual, transformando a escola em um meio para alcanar um fim.
Escola para mim sempre foi um caminho para chegar num fim, entende? Era bem seco assim, no tinha nada de segunda famlia, no tinha nada de nada, no tinha nenhum vnculo afetivo com a escola. Era um caminho que eu tinha que trilhar para chegar no fim que eu queria, da melhor maneira possvel, mesmo com todas essas impossibilidades. A escola nunca teve um vnculo do tipo lugar de saber e nada disso... (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
Thas, ao montar suas memrias sobre a instituio escolar, pensa, silencia, e acaba por reconhecer a instituio escolar como promotora do preconceito e da discriminao, juntamente com outras instituies da sociedade. Segundo ela, as/os transexuais e as travestis so os sujeitos que mais sofrem na escola, por influncia dos ensinamentos religiosos presentes na estrutura escolar 179 . Nesse sentido, relata:
179 Os dogmas e doutrinas crists, em especial catlicas e evanglicas, presentes nas escolas pblicas de todo o pas representam um elemento que contribui para a excluso de lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, assim como de praticantes das religies de matriz africana, desse espao. Por esse motivo, uma 172
Hoje a coisa j se modificou um pouco mais, embora no exista lei nenhuma que defenda a gente, no verdade? Tem que criminalizar a homofobia, porque os negros tm, no verdade? As mulheres tm a Lei Maria da Penha, por que a gente no pode ter? Essa raa de evanglicos que vive pegando no p da gente achando que a gente uma criatura que sei l, subdesenvolvida, que no desse mundo, que filho do capeta, s isso que eles imaginam a respeito da gente. complicado... E ns sofremos muito mais exposio do que os gays e do que as lsbicas na escola, por exemplo, no verdade? Eu penso que a maioria das meninas, tanto de pensionato quanto de rua, sofrem o preconceito, no aguentam e saem do colgio. Porque tem travestis que no d para conversar, sabe assim? Que so realmente ignorantes. E no por falta de que elas no quisessem aprender, porque meio que isso foi negado para elas, no verdade? (Thas Prada, E)
Embora a maioria das narrativas dos sujeitos da pesquisa expresse sentimentos que se aproximam dos expressos na fala de Thas, importa considerar que as narrativas so desestabilizadas. Essa desestabilizao se d por meio daquelas que conseguem produzir algum significado para a instituio escolar em relao experincia da transexualidade, como se pode perceber na segunda fala de Andr Lucas. Contudo, mesmo com as desestabilizaes produzidas nas falas que ora tomam a instituio escolar como produtora da excluso e do preconceito, ora atribuindo algum valor para a experincia escolar, as narrativas demonstram o descompasso entre a escola e a experincia da transexualidade.
4.1.2.6 Cena seis: As negociaes necessrias
Na construo de suas narrativas, Mait, Andr Lucas, Dorothea e Thas expressaram as negociaes que realizavam no perodo em que estavam inseridas/o na escola. Mait narra:
Teve as chacotas, desde cedo, o que me dificultou muito o contato com os outros na escola. Ento, sempre foi muito difcil, porque me
das pautas do movimento LGBT consiste em lutar pelo cumprimento da Constituio Federativa do Brasil de 1988, que institui a laicidade do Estado. Sobre isso, consultar: <http://www.180graus.brasilportais.com.br/politica/remocao-de-simbolos-religiosos-dos-orgaos-publicos-gera- polemica-217702.html>. Acesso em: 12/07/2010. Entretanto, na prtica, no Estado do Paran o texto da Constituio parece no funcionar, como pode ser observado nas falas de Andria Cristina, sobre a escola estadual na qual so freiras que comandam, bem como nesta narrativa de Thas. importante destacar outros indicativos dessa afirmao como a existncia de uma capela na prpria Secretaria de Estado da Educao, onde vrias/os funcionrias/os se renem em momento de expediente para rezar o tero. Alm disso, salas de professoras/es e direo com crucifixos e outros smbolos religiosos catlicos so comuns nas escolas estaduais do Paran, bem como a realizao de missas. Essas discusses poderiam transformar-se em outra dissertao. Entretanto, a inteno aqui foi a de registro, considerando o recorte da pesquisa. 173
chamaram uma vez de mariquinha no recreio e fizeram uma roda para mim e eu achei o mximo. Eu estava com cinco anos, terminando o pr e no sabia nem o que era. Depois que meu pai me explicou o que era eu fiquei muito triste, porque a partir desse momento, eu soube que as pessoas me tratavam como algum diferente e isso me magoou muito. E era tanto de um lado quanto de outro [entre as meninas e os meninos]. Ento eu ficava na linha do meio. E a partir desse momento eu comecei a minha vida escolar e no meu segundo ano eu percebi que quanto mais estudiosa eu fosse, mais eu teria alguma qualificao que faria com que as pessoas vissem uma coisa boa, onde as pessoas no viam qualificao nenhuma. Ento, foi muito transparente, desde cedo, que eu tinha que ser a melhor da minha turma. No porque eu queria ser, no porque estivesse dentro de mim, mas, porque seria um jeito de negociar uma posio que eu no tinha. Eu tinha sido colocada l embaixo e esse era um jeito de negociar uma ascenso na escola. Comecei a ser a melhor da minha turma e as pessoas comearam a depender de mim. Querem cola? Querem copiar o que tem no meu caderno porque tem toda a matria? Ento vocs tm que me convidar para a festa. E comecei a negociar esse tipo de coisa na escola. Eu aprendi a ser super dissimulada com relao a isso. No acho que seja uma qualidade tambm, mas foi uma defesa. No uma coisa que eu me orgulhe muito. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E) 180
Para Dorothea, as estratgias de negociao tiveram um sentido diferente. Segundo ela, no havia negociao mas sim coao por parte das outras crianas.
Minhas lembranas do perodo escolar so que eu no me identificava nem com os meninos nem com as meninas e descontava estudando um monte e sendo a CDF da turma, sempre. E eu no negociava com as crianas. Eu me isolava mesmo. Mas era muito comum as pessoas me obrigarem, me forarem a passar cola. Elas diziam para mim: ou voc me passa cola ou eu te espanco na sada. A eu pensava: j que ele pediu com tanta educao, no ? Eu passava. Mas no era por amizade. Eu me isolava mesmo nos livros, nos cadernos e nos materiais. Meus amigos da sala de aula eram meus materiais, mesmo. (Dorothea Lavigne, E)
A esse respeito, Andr Lucas conta que:
Em contrapartida, assim tambm, eu encontrei na escola talvez o nico espao onde eu pudesse de alguma forma comprar o meu respeito justamente pela dedicao muito grande aos estudos. realmente comprar o respeito. Hoje eu no sei se eu sou uma pessoa que gosta de estudar ou eu passei a gostar de estudar para poder ter
180 Essa cena da escola, em que as crianas chamam Mait de mariquinha foi tambm narrada por ela no documentrio Ser Mulher, ao qual me referi na Parte 3 dessa dissertao. 174
boas notas e poder aliviar um pouco o preconceito assim, eu no sei definir. (Andr Lucas Guerreiro, E)
Sobre as negociaes que estabeleceu na escola, Thas conta:
O segundo grau foi muito barra pesada por causa do preconceito, porque voc est mais sexuada, chegamos transexualizadas no colgio... Porque at ento a gente ia levando, tranquilinha, na maciota. Eu sempre fui uma aluna inteligente e s vezes tinha alguns alunos que no gostavam de mim, ento eu conquistava e colocava o nominho deles no trabalho para evitar que eles pegassem tanto no meu p, t entendendo? (Thas Prada, E)
Embora de maneira diferente Luisa e Josiane, participantes do grupo de discusso, tambm constroem essas narrativas comuns. Essas narrativas tambm expressam memrias do trauma e foram articuladas pelos sujeitos como uma forma de barganhar a sua presena na escola. Com efeito, essa presena perturba porque desloca a inteligibilidade dos gneros e desarticula os pensamentos binrios entre o que se constituiu historicamente como feminino e masculino.
4.1.2.7 Cena sete: O abandono da escola
Ao pensar as costuras das memrias como narrativas traumticas, neste momento, importa analisar as narrativas em relao ao distanciamento da instituio escolar. O primeiro posicionamento diz respeito percepo do sujeito em relao ao seu afastamento da instituio por preconceito e discriminao. Em relao ao grupo, dentre as dez participantes, Bruna, Joyce e Christiani dizem terem sido expulsas da escola por essa razo. Andr Lucas narra processos excludentes, articulados na universidade, que colaboraram para que no frequentasse as aulas, o que para ele de alguma forma significou uma desistncia parcial do curso.
Fiz a minha transio na UFPR. Entrei como lsbica em 2007 e, em meados de 2008, j era o Andr. No deixei de estudar formalmente, mas quando eu no tinha minimamente meu nome social respeitado, eu no frequentava as aulas porque era muito sofrimento. Ento, d para dizer que eu desisti tambm, no ? Porque eu realmente no fiz. Eu fazia somente as matrias com os professores que me aceitavam plenamente assim... Eu fazia uma ou outra matria com os professores que haviam compreendido de alguma forma a minha situao e me apoiado. (Andr Lucas Guerreiro, E)
175
J Andria Cristina, Thas, Rafaelly, Sabrina e Carla produzem uma narrativa comum articulando a expulso da escola prostituio como destino. Alm disso, segundo elas, as transexuais que possuem graduao ou uma profisso diferenciada formaram-se antes da transformao. Nesse sentido, Thas afirma:
Eu acho que do meu ponto de vista, a prostituio nos imposta porque no do para a gente o direito de estudar e nos tornarmos profissionais de outra rea. Porque muito difcil voc conhecer alguma transexual que no esteja na prostituio, que esteja atuando em outra rea assim, que seja formada em medicina, que seja formada em uma outra coisa assim sabe? Uma coisa que d para ela o status quo. Uma transexual advogada... Ah, existe, existe sim. Mas eu penso que durante um bom tempo da vida delas elas j se especializaram nisso, se mantm e depois que elas esto formadas que elas se transformam. (Thas Prada, E)
Outro deslocamento se d em relao s narrativas que os sujeitos constroem no sentido de negar o abandono da escola por preconceito. Entretanto, como as falas se articulam por meio dos atos performativos da memria, pode-se perceber a contradio, muitas vezes, em um mesmo depoimento. Assim, Mait relata: [e]u no larguei a escola em momento nenhum.... (Mait Schneider, E). Contudo, na sua trajetria escolar se percebe descontinuidades a partir do trmino do Ensino Mdio. Segundo ela, chegou a pensar que por estar tomando muitos hormnios estaria com um problema neurolgico, pois queria cursar Odontologia e no passava nos vestibulares. Passou no vestibular do curso de Direito e cursou por cinco perodos, mesmo no gostando.
A eu peguei uma turma super boa, super gostei e fiquei l 5 perodos, mesmo no querendo, detestando Direito. Eu nunca gostei porque uma rea super formal, que no tem nada a ver comigo. Mas, por conta da minha turma e porque estava naquela base, no incio eu acabei indo. Mas no 5 perodo comearam as prticas. Com isso as exigncias tambm vieram, visitar presdio e ter que os rapazes usarem terno e gravata e as mulheres sempre de terninho e eu no queria isso para mim. Eu falei assim: olha, no o que eu quero. E tranquei. Fiz vestibular, passei em Letras na Federal. Fiz um ano de Letras, Portugus Alemo e falei: ai, tambm no isso que eu quero. Tranquei e comecei a trabalhar, com a militncia, nessa poca. O site comeou em 1997 e comearam todas essas coisas na minha vida, que tomou outro sentido e eu no terminei a faculdade. Eu estava com 25 anos na poca. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
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Dorothea (E), assim como Clo (GD), relata que no abandonou a escola por preconceito e discriminao, mas sim por dificuldades financeiras. Nesse sentido, Dorothea afirma:
Eu fiquei na escola direto at terminar o 2 grau, que foi em 1999. A eu parei de estudar at 2005 porque eu precisava trabalhar. Eu precisava de dinheiro. Nunca parei por preconceito. Nesse nterim comecei a me enxergar como trans, porque at ento eu no senti tanto o preconceito porque eu no me enxergava. Algumas pessoas enxergavam alguma coisa diferente mas eu no me enxergava. (Dorothea Lavigne, E)
A narrativa de Carla evidencia um posicionamento singular em que a transformao foi priorizada em detrimento da formao e dos estudos, isto , para Carla foi mais importante transformar o corpo e construir sua identidade feminina do que a formao escolar. Ela narra que desistiu vrias vezes de estudar, reprovou e at faltou aulas para fazer leituras sobre transexualidade. Faltava s aulas tambm devido ao preconceito e discriminao que sofria e, ento, quando precisava fazer as provas, no alcanava a nota mnima exigida. Para ela:
Isso, somado s lembranas do que passei na escola, fui adiando o retorno escola e relutando. Eu via minha evoluo como pessoa e como mulher e pensava: como eu vou voltar para escola? A escola no vai me aceitar. As pessoas vo me odiar. Elas vo me chicotear. E eu no abro mo de ser o que eu sou por causa da escola. E a, tem aquela fala de que quem no aprende na escola aprende com a vida. Eu fui tentar aprender com a vida, fazer o qu? Se na escola eu no consigo, pensei. E passaram-se 20 anos. (Carla Amaral, E)
A anlise das narrativas, tanto das entrevistas como do grupo de discusso, suscitou uma reflexo sobre o abandono da escola por preconceito e discriminao. Essa anlise sugere que essa relao no pode ser tomada como causal. Importa considerar os diversos elementos que articulam esse afastamento da instituio. Assim, o abandono da escola por preconceito e discriminao constitui-se em uma possibilidade muito evidente, tendo em vista a interferncia que essas situaes produziram no rendimento escolar desses sujeitos. Outras experincias expressas, como a resistncia ao processo de escolarizao tambm apareceram. Importa considerar tambm que, na anlise dessas narrativas, a idade em que transexuais e travestis empreenderam a transformao de seus corpos e identidades ocupa um 177
lugar central, assim como os procedimentos adotados e os efeitos produzidos. Talvez seja produtivo pensar que no so transexuais e travestis que abandonam a escola, mas a escola que as/os abandonam.
4.1.2.8 Cena oito: Retornar escola
As narrativas sobre o retorno escola tambm so mltiplas e singulares. A maioria das participantes do grupo de discusso construiu uma narrativa comum em que expressaram no pretenderem retornar escola 181 . Entretanto, Sabrina deseja fazer graduao em Moda, Leandra pretende fazer Servio Social, Clo deseja retomar a graduao em Design, Rafaelly pretende cursar Psicologia, Thas espera conseguir cursar Letras e Carla pretende voltar escola apenas depois da cirurgia de transgenitalizao. Christiani voltou a estudar esse ano. Est cursando a stima srie do Ensino Fundamental a distncia, assim como Perla. Christiani relata que est adorando, mas preferia cursar o ensino regular. Diz que s no est no ensino regular porque nessa escola a oferta de vagas para o perodo da manh e como ela trabalha na prostituio, noite, no pode estudar de manh. Sobre a educao a distncia tambm foi criada uma narrativa coletiva no grupo de discusso. Para o grupo, essa modalidade facilita a formao escolar dos sujeitos travestis e transexuais por evitar situaes constrangedoras como a ato da chamada, por exemplo. Andria Cristina est cursando Pedagogia a distncia e relata que o seu retorno escola foi tranquilo. Andr Lucas, Dorothea e Mait esto em cursos de graduao presencial. Entretanto, cada sujeito elaborou uma narrativa diferente em relao ao seu retorno escola. Dorothea relata que fez o vestibular para o curso de Histria por dois motivos: primeiro como uma estratgia para se transformar, em razo da expectativa sobre uma ausncia do preconceito e da discriminao na universidade, e depois por entender que como universitria poderia obter um emprego com uma remunerao melhor. Segundo Dorothea:
181 O grupo de discusso considerou importante a participao nesta pesquisa, para que, de alguma forma, a questo do preconceito e da discriminao em relao transexualidade e travestilidade nas escolas seja discutida e assim ajude as novas geraes de travestis e transexuais no enfrentamento do preconceito e da discriminao nesses espaos. 178
A percebi que precisava voltar a estudar e resolvi fazer uma graduao. Mas, assim, entrar para a Universidade, alm de eu perceber que eu precisava voltar a estudar, que eu sentia falta disso, foi uma espcie de estratgia. Eu j havia comeado a transformao. Ento eu vi a possibilidade de arrumar um emprego no meio acadmico, onde voc teoricamente sofreria menos discriminao. (Dorothea Lavigne, E)
Em relao a esse tema, Dorothea afirma:
Mas, na verdade eu senti que o preconceito igual. A questo que na Universidade o pessoal tenta ser politicamente correto. Ento, assim, a gente percebe que as pessoas no querem nem debater o assunto, tm um preconceito velado, mas pelo menos no batem. Eu me sinto menos agredida na Universidade. (Dorothea Lavigne, E)
Mait voltou a estudar no ano de 2009, est cursando Artes Cnicas e relata que o seu retorno universidade foi tranquilo, mesmo com alguns receios porque, segundo ela:
Agora eu senti a importncia de fazer uma faculdade para mim mesma, porque eu sei o que eu quero fazer, que atuar. Eu j estou atuando. Fiz vestibular e passei no ano passado e voltei a estudar, agora com trinta e poucos anos. Mas a eu falei: uma coisa que eu vou ter que ter de segunda a sbado na minha vida, ento, eu vou ter que abrir mo de uma vida que eu tinha, vida boa... para entrar nesse roteiro escolar. Porque diferente, quando voc acabou de sair do Ensino Mdio voc est naquele pique. Ento, eu no tinha o pique, eu no acompanhava eles. Mudou muito a faculdade. Na minha poca no tinha tantos seminrios, encontros. Ento, eu falei: nossa, eu no vou dar conta, no vou dar conta. E passou o primeiro ano, da eu falei: estou no segundo... (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
J a experincia acadmica de Andr Lucas, desde 2008, tem sido difcil, segundo ele, em razo do preconceito e discriminao que vem enfrentando na universidade.
Avaliando e fazendo um contraponto assim at com a minha vida... Hoje que eu j caminho para a senilidade... Hoje que eu supostamente j teria muito mais maturidade, assim. Hoje, eu j penso em desistir e uma idia fixa, porque muito difcil... Imagino que mais jovem se eu tivesse comeado a transio eu provavelmente no concluiria a fase em que eu estivesse. complicado. Eu tentei fazer o caminho mais curto. Mas nunca funcionou. Logo no incio eu tentei falar com o coordenador de curso 179
que disse que poderia falar com os professores, mas que cabia a eles a deciso. Nunca falou, porque eu sempre tive que falar um a um. Ento, assim foi uma srie de constrangimentos mesmo. Ter que ir sempre na primeira aula e esperar o professor ficar sozinho. Ter que conversar, explicar. Ter que me expor. Isso gerava uma srie de sofrimentos. (Andr Lucas Guerreiro, E)
A costura das memrias de Andr Lucas articula sentimentos de sofrimento e dor. Assim, ele relata que tinha a inteno de estar na universidade como um estudante apenas, sem questionamentos ou constrangimentos sobre a sua transexualidade. Para ele:
A idia que eu pudesse, na UFPR, ter uma identidade estudantil. Afinal, eu entrei l para estudar e me formar e no para ser um homem transexual. No que eu possa desconectar, mas l a funo da minha estada era de ser um estudante e um estudante simplesmente responde chamada. Um estudante no tem que ficar se preocupando, porque at hoje assim: toda vez que vai ter uma chamada eu comeo a tremer, eu suo muito, eu fico com medo, sempre uma angstia muito grande. Ento, eu queria essa invisibilidade para que se eu optasse em falar, fosse uma opo e no uma obrigao. E no foi isso. Ento, a invisibilidade era nesse sentido. (Andr Lucas Guerreiro, E)
A partir dessa multiplicidade de narrativas e de construes das memrias de travestis e transexuais sobre o retorno escola, percebe-se como cada sujeito desenvolve suas estratgias nesse espao de excluso especfico que a escola, seja a escola bsica ou a universidade. Pode-se pensar sobre a singularidade das narrativas, at mesmo como a educao no a prioridade na vida de algumas das participantes da pesquisa. Para outras/o, como a educao se tornou uma prioridade em relao aos processos de construo da identidade e sobrevivncia. Importa perceber, tambm nas narrativas, a forma como a escola demonstra a necessidade de controlar a sexualidade e o corpo das/os estudantes, demonstrando quelas/es que fabricaram seus corpos e identidades fora da norma heterossexual que seus corpos e identidades no so bem vindos nessa instituio.
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4.1.3 Terceiro Ato: A profissionalizao
Nesse momento interessa uma discusso sobre a relao causal, estabelecida pelas narrativas, entre a baixa escolaridade de travestis e transexuais e a prostituio, e esta como a nica possibilidade de sobrevivncia para mulheres travestis e transexuais 182 . Mait, Andr Lucas e Luisa narraram de forma semelhante suas experincias, produzindo uma narrativa em que afirmam nunca terem feito programas. Entretanto, cada uma/um, com base na experincia de amigas, consideram que essa relao causal efetiva-se. Nesse sentido Luisa afirmou:
Eu nunca fiz programas porque eu no tenho vocao para isso. Acho que eu morreria de fome... Mas o que a gente observa pelo que ouve de relatos e pesquisas que, sem generalizar, a maioria absoluta das travestis e transexuais do Brasil afora que esto na prostituio no possuem uma formao educacional porque foi vtima de preconceito na escola e no aguentaram a presso. E essa relao to naturalizada, principalmente entre travestis e prostituio, que as meninas mais jovens, mesmo tendo um pouco de escolaridade, desejam fazer programas como uma afirmao da identidade travesti. (Luisa, GD)
Para Mait, as travestis e transexuais que deixaram de estudar por constiturem-se em vtimas do preconceito, da discriminao e da violncia na escola, acabam se inserindo na prostituio pela falta de opo de trabalho em outro campo. Isso se d por no possurem formao adequada. Mait afirmou ainda que acredita que elas apagam essa possibilidade das suas vidas e que dificilmente retomam os estudos:
As outras que eu conheo tm pouca formao assim, primeiro grau, no mximo segundo, muito sofridamente, assim, que fez depois, que foi fazer Ensino a Distncia... Mas a maioria que entra [na prostituio] no tem mesmo [formao] e no sente importncia em ter, assim, porque elas meio que deletam isso, porque foi onde voc foi trucidada, massacrada. Ento, voc tenta apagar isso. (Mait Schneider Caldas de Miranda, E)
182 Sobre a insero de homens transexuais na prostituio, Andria Cristina relatou: Quando trabalhei na rua, como prostituta, conheci alguns que atuam nesse ramo profissional. Mas, como a prostituio um comrcio mais ligado ao mundo feminino, eles no gostam muito de falar sobre isso. Os que eu conheo no falariam com voc sobre isso. A maioria procura trabalhos bem pesados e masculinos (Andria Cristina, E). 181
Rafaelly, Carla, Andria Cristina, Dorothea, Sabrina e Jennifer reafirmam essa narrativa, importando considerar que de uma forma ou de outra, todas elas j atuaram como profissionais do sexo. Vale considerar que o referencial dessas narrativas desloca-se e o ato performativo das memrias evidencia-se na medida em que so sujeitos que j atuaram na prostituio construindo narrativas semelhantes s de quem diz no ter atuado. Dessa forma, para Sabrina 183 :
A maioria das meninas que trabalham na rua no teve oportunidade de estudar. Tem umas que se transformaram muito cedo e a famlia e a escola expulsaram. Outras se envolveram com drogas e precisam sustentar o vcio. Outras a famlia expulsou muito cedo. difcil voc conhecer uma trans que tenha baixa escolaridade atuando em outras profisses que no a prostituio. Mas uma profisso como qualquer outra. trabalho e elas ficam expostas a todo tipo de violncia tambm. (Sabrina, GD)
Leandra e Thas costuram suas narrativas de forma longa e detalhada, nesse mesmo sentido. Thas conta que h dez anos trabalha como prostituta, em um ponto de prostituio de rua, prximo a uma rodovia, em um bairro afastado de Curitiba. A esse respeito ela narra:
Eu comecei com 17 anos na rua. Eu acredito que ningum vai porque gosta, porque o submundo da prostituio duro. Eu entrei na prostituio por conta da sociedade que hipcrita. Eles usam do servio da gente, mas, pergunta se algum d um emprego para a gente? E tambm por causa de lucros, no ? Somando o que a gente ganha no ms, a gente ganha mais ou menos R$ 2.000,00, R$ 2.500,00. Qual outra profisso que ia pagar para a gente isso, se a gente ainda no tem uma formao? Porque no tem nada, alm disso. E vai procurar um curso, vai procurar qualquer coisa, a gente passa preconceito. Se eu pudesse ter tido uma formao eu acredito que teria outras escolhas, apesar de que quem trabalha como professor ganha mau, no ? No ganha muito bem. Mas, seria outra opo, pelo menos. (Thas Prada, E)
Assim, Thas agrega costura da narrativa comum da relao causal a lucratividade da prostituio. Importa considerar tambm que Thas, atualmente, reside em uma casa alugada em parceria com trs amigas e no paga pedgio 184 ,
183 Sabrina trabalha no movimento social fazendo abordagem nos pontos de prostituio de Curitiba com o intuito de distribuir preservativos masculinos para o enfrentamento da epidemia de HIV/Aids entre essa populao, isto , o movimento social atuando em uma poltica pblica de sade. 184 A expresso pedgio se refere aos valores cobrados pelas cafetinas das travestis e transexuais que moram em suas casas e trabalham em seus pontos de prostituio, conforme explorado na Parte 1 dessa dissertao, na narrativa que esboa traos da vida de Thas. 182
nem do ponto onde trabalha, nem para dormir, isto , ela no reside em casa de cafetina. E segue, contando que muitas vezes o seu trabalho pode ser prazeroso, embora considere que preciso fazer muitos programas por noite para garantir a renda. Nesse sentido, ela afirma:
Mas, s vezes, trabalhar com sexo prazeroso. Quem no gosta de fazer sexo, no mesmo? Mas eu levo de 3 a 4 meses para gozar porque eu tomo muito hormnio e procuro no gozar para no aumentar o nvel de testosterona no meu organismo. s vezes eu fico louquinha da cabea nesses 3 meses, mas eu no gozo e procuro sempre estar colocando estrognio no meu corpo. E eu acredito que para gozar, eles deviam pagar um pouco mais, ento eles no querem pagar e da eu no gozo. O programa completo ns cobramos R$ 30,00 no carro e R$ 50,00 no motel. No motel, hotel geralmente mais longe, ento mais caro. Completo o sexo oral, o sexo anal e s vezes tem alguns homens que querem que a gente exera nosso lado masculino, a eu cobro um pouquinho mais, porque eu acredito que tem que ser mais caro, no verdade? um papel que a gente est exercendo ali que no o nosso. pouqussimo, mas se cobrar mais eu no tenho clientela. Porque difcil, difcil arrumar clientes que paguem R$ 50,00, R$ 100,00 no motel. Tem, s vezes aparece. S que eles custam a aparecer, t entendendo? Tem clientes que so viciados e vem toda a semana. Ento, cobrando s o trintinha deles voc sabe que eles voltam na outra semana. Em mdia, quando a noite est boa, a gente faz de 10 a 12 programas por noite, porque a gente sai num modelito mesmo de arrasar, sabe? (Thas Prada, E)
Essa narrativa de Thas traz vrios elementos importantes, como a preocupao em evitar que a testosterona circule pelo organismo para, assim, afastar-se da indesejvel masculinidade, mesmo que para isso precise comprometer seu prazer. Alm disso, importante notar que quando solicitada, Thas utiliza seu pnis para manter relaes sexuais, penetrando seus clientes, embora acredite que essa no deve ser a ordem natural das coisas 185 .
185 Outro elemento interessante dessa narrativa de Thas foi o baixo valor cobrado para os programas. Esse valor foi confirmado por Andria Cristina e tambm pelo grupo de discusso, como valor vigente tambm em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Importa compreender que na construo de uma narrativa coletiva, segundo elas, isso se deve prostituio da prostituio, pois em geral as meninas que se envolvem com drogas baixam o preo e saem at por R$ 5,00 ou R$ 10,00, o que equivale a uma pedra de crack. Assim, fica difcil subir o preo, pois haveria perda de clientes. Se voc no faz, mil outras fazem por R$ 30,00. (Thas Prada, E) (GD). Alm disso, importante notar tambm na narrativa de Thas que a vaidade ocupa lugar central na produo de si para a prostituio. importante perceber que a vaidade no exclusiva das produes de si entre travestis e transexuais. Mas no interior desse grupo ela parece ser um elemento que institui posies de sujeito. Jennifer, por exemplo, ao se arrumar para sair na cidade de Rio do Sul, cortou os pelos do rosto com a l mina de barbear e colocou um pedacinho de papel higinico para estancar o sangue. Veio at o grupo que estava em frente ao Hotel para se despedir, pois estava se dirigindo at o baile. Ao se afastar deste grupo foi escrutinada e julgada devido sua ineficiente produo de si no gnero identificado. Muitas falas foram geradas pelo grupo sobre a performance de Jennifer, como por exemplo: [n]ossa, essa a [Jennifer] no tem muita prtica em se produzir, 183
A narrativa construda por Josiane 186 desloca a prostituio como destino e a articula lucratividade como uma opo e ao orgulho em ser profissional do sexo. Josiane conta que atende como garota de programa h trs anos em Curitiba. Ela coloca anncios na internet e recebe seus clientes em casa. Assim, para ela:
Espera um pouco a gente. No gosto desse discurso de que seja s esse caminho, ou s porque no estudou. Eu no acredito nisso. Quando voc entra na prostituio porque voc quer e tambm porque financeiramente te d um retorno melhor. Porque eu, por exemplo, larguei um trabalho de chef de cozinha, mas o meu salrio no era de chef de cozinha. Ento, eu trabalhei em restaurantes que o cardpio no era arroz, feijo, bife e batata-frita. Eram pratos sofisticados. E eu aprendi a fazer e fazia tudo isso. Mas, o meu salrio no compensava porque o cara que estava l ganhava muito mais do que eu. Eu no ganhava. E, assim, no sou coitadinha por fazer programa. No sou mesmo. Chegou uma hora que eu cansei. Eu no conseguia pagar um aluguel direito, eu no conseguia me vestir direito, eu no conseguia comprar as minhas coisas para me sentir bonita, ento, eu peguei esse caminho. Toda a profisso tem um lado bom e um ruim. S que eu procuro fazer daquilo que eu fao o melhor. Ento eu sou profissional do sexo, mas eu procuro ter tica no que eu fao. (Josiane, GD)
Alm desse deslocamento, Josiane relata que antes mantinha relaes sexuais sem cobrar por isso e tinha dificuldades financeiras. Hoje, mantm relaes sexuais e ainda paga as suas contas. Conta ainda que se sente valorizada ao trabalhar nessa profisso. Nesse sentido:
O carinho de um cliente melhor do que o que voc vai ter ali na esquina, na baladinha, que te pegou, te encostou no paredo, te comeu e foi embora. Aquele homem que vem e te paga para voc ser voc. O cliente te trata bem. Voc vive um momento ali com aquela pessoa em que voc se sente gente. Ele te d um presente. Agora fala com aqueles ogros l da internet para voc ver, nas salas de bate papo. Eles no sabem nem dizer para voc: vamos para um motel, vamos para um barzinho? Eles j perguntam: voc tem local? E a, alm de voc ter que dar para eles, voc ainda tem que
pois nem de longe parece uma Amap. A expresso amap utilizada como sinnimo de mulher feminina. A expresso bem garota tambm utilizada nesse sentido. Poder-se-ia pensar em que medida esses padres de feminilidade so utilizados nessa hierarquizao de performances de gnero, entre esses sujeitos, produzindo tambm um aprisionamento dos corpos e identidades em posicionamentos fixos. Esses posicionamentos podem conferir sentido aos corpos e, em um grupo de corpos e performances que valem menos se criam outros que valem menos ainda. 186 Bruna e Joyce, travestis, e Jennifer e Cristhiani, transexuais, concordaram com a fala de Josiane. importante registrar que Bruna parou de estudar no Ensino Fundamental e Joyce possui o Ensino Fundamental completo. Jennifer concluiu o Ensino Mdio e formou-se em um curso tcnico de enfermagem, mas no atua nessa profisso. E no v o menor problema em fazer programas de vez em quando, afinal, para ela: [a] gente se diverte e ainda ganha para isso (Jennifer, GD). Cristhiani no terminou o Ensino Fundamental ainda, mas est estudando e se formou em um curso de cabeleireira, embora nunca tenha atuado nessa profisso. 184
dar cama, banho. Eu vou ser bem sincera: nos homens que me procuram como acompanhante, porque eu gosto dessa palavra, acompanhante, eu sinto muito mais carinho, muito mais afeto quando estou com esses homens. meio irnico isso, porque na rua os homens te classificam, porque na rua, eles te veem daquele jeito... (Josiane, GD)
Em relao forma do programa, Josiane conta que h uma escala que estrutura os ganhos na prostituio. Assim, para ela:
Da rua para um anncio de jornal voc subiu um degrau, da para um anncio no site, voc alto nvel. E a um homem que te v nesse site vai te levar nos melhores motis. Por exemplo, os melhores motis que eu j fui, eu fui com os meus clientes. Ento, de tomar banho de hidro, piscina, champanhe, de eu pedir um vinho, ser bem tratada, assim. E eu adoro. E isso to gostoso. (Josiane, GD)
Nesse contexto, evidenciam-se tenses, entre as narrativas: aquelas que apontam uma relao de causa e consequncia entre a baixa escolaridade de travestis e transexuais e a prostituio produzidas por sujeitos que dizem nunca ter atuado nessa profisso; as narrativas de prostitutas que apresentam um sentido de prazer para sua atuao no campo da prostituio, mas ainda a relacionam de certa forma com uma vitimizao; e as narrativas de acompanhantes que dizem fazer programas por opo e prazer 187 . Assim, pode-se pensar que a cada narrativa performaticamente costurada, os sujeitos articulam as lembranas e os esquecimentos a partir de um referencial. Analisam para quem e com que finalidade esto narrando e oferecem a narrativa do que elas/es consideram importante. Importa perceber que essas disputas de poder no territrio das memrias criam sentidos para as narrativas, tanto sobre o que foi dito quanto sobre quilo que no se ousou mencionar. Nesse sentido, as generalizaes ou a transformao dessas narrativas em a narrativa de travestis e
187 Andria Cristina tambm sente prazer em realizar programas. Nesse sentido, afirmou: [e]u vivendo como mulher, posso ganhar como garota de programa que para mim est 10. mais importante eu ser mulher e viver como mulher do que eu aceitar presses sociais para ser uma coisa que eu no sou. E isso na transexual geralmente muito forte. Porque no uma vaidade ou uma escolha, ela tem que ser o que ela , seno ela no tem uma vida plena. Acaba, sei l, entrando em depresso mais facilmente. mais fcil ela estar vivendo como mulher e passando as dificuldades da vida, do que estar vivendo como homem, ter suas facilidades e no estar vivendo o que ela mesmo assim. Eu gostava de trabalhar na rua. Eu tenho uma lado talvez fetichista assim, uma parte minha, mas isso de cada uma, eu tenho amigas que detestam. Eu tinha teso, acho muito sensual, uma parte minha. Mas uma opo minha no momento, porque da agora eu tenho meu emprego... Mas sempre na rua quando eu trabalhei eu gostava, assim, eu ia at com teso fazer programa, eu tinha esse lado meu interior com relao a isso... (Andria Cristina Schuz, E) 185
transexuais sobre a baixa escolaridade e a prostituio se tornam problemticas, uma vez que produzem posies de sujeitos. Dessa forma, poder-se-ia pensar tambm nas narrativas traumticas, tanto de transexuais quanto de travestis como falas articuladas por atos performativos das memrias e da linguagem. Esses atos se apresentam em meio a lembranas, esquecimentos e silenciamentos, sobre as histrias de vida desses sujeitos. Nesse sentido, como afirmou Mait em uma das entrevistas: [e]nto, voc nunca sabe at que ponto as histrias vo, muito mais profundo do que simplesmente, uma resposta (Mait Schneider Caldas de Miranda, E). Essa dissertao analisou os fragmentos dessas histrias sobre a experincia de fabricao da transexualidade e sua relao com as experincias escolares sem, no entanto, considerar essas experincias como construes padronizadas. Ao contrrio, poder-se-ia pensar em experincias complexas, mltiplas e singulares, que apresentam variadas nuances e operam por meio da transformao caprichosa das identidades, dos corpos e das prprias memrias. Assim, tanto corpos, nomes, roupas, como as prprias memrias expressam a forma desses sujeitos de estar no mundo como mulheres e homem.
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LTIMAS CONSIDERAES
A diferena entre os sexos tem, felizmente, um sentido muito profundo. As roupas so meros smbolos de alguma coisa profundamente oculta. Foi uma transformao do prprio Orlando que lhe ditou a escolha das roupas de mulher e do sexo feminino. E talvez nisso ela estivesse expressando apenas um pouco mais abertamente do que usual a franqueza, na verdade, era a sua principal caracterstica algo que acontece a muita gente sem ser assim claramente expresso. Pois aqui de novo nos encontramos com um dilema. Embora diferentes, os sexos se confundem. Em cada ser humano ocorre uma vacilao entre um sexo e outro; e s vezes s as roupas conservam a aparncia masculina ou feminina, quando, interiormente, o sexo est em completa oposio com o que se encontra vista. Cada um sabe por experincia as confuses e complicaes que disso resultam [...] (WOOLF, 2008, p. 124-125).
E depois de tudo, o que fica? Penso que essas discusses por um bom tempo no estaro resolvidas, pois as experincias da transexualidade e da travestilidade implicam em desdobramentos complexos. Cartografar a complexidade dessas experincias nesse espao? Talvez somente seja possvel a partir de investimentos imaginativos e criativos. Este o movimento ao qual me entreguei nessa dissertao. Ao iniciar a pesquisa, algumas linhas sobre as minhas idias preliminares foram traadas, construindo um esboo ou um primeiro mapeamento do tema de pesquisa, alm da aproximao com as/o entrevistadas/o. Fazer um inventrio de tudo aquilo que me inquietava sobre essas formas de ser e existir como mulheres e homens no mundo constituiu-se na prxima etapa. De alguma forma, essas no eram questes novas na minha experincia profissional pois h doze anos atrs estes sujeitos comearam a fazer parte do meu cotidiano e da minha caminhada profissional 188 .
188 Como professora de Cincias e Biologia da Rede Estadual do Ensino do Paran, desde 1998, por vrias vezes deparei-me com situaes de excluso em relao aos sujeitos em idade escolar que insistiam em transitar pela escola pblica com seu jeito diferente. Um jeito de viver e de expressar sexualidades e gneros diferentes dos padres normais que, por sua vez incomodava a vida escolar e extrapolava os limites dos muros da escola perturbando tambm seu entorno. A primeira situao que eu acompanhei aconteceu na cidade de Palmas, no interior do Paran. Para mais sobre esse municpio, acessar: <http://www.cnm.org.br/dado_geral/mumain.asp?iIdMun=100141249>. Acesso em: 12/07/2010. Mrcio [nome fictcio] foi meu aluno numa turma do Projeto Correo de Fluxo, no ano de 1998, em um colgio pblico estadual daquela cidade. Por usar unhas compridas e pintadas, cabelos longos, ser delicado no contato com colegas e professoras/es, utilizar um gestual e falas esperados para as meninas, alm de gostar de fazer uso de 187
No processo de fabricao desta dissertao, surpreendi-me, frustrei-me, sorri e chorei, mais de uma vez. Talvez o desafio mais doloroso tenha sido produzir um afastamento entre pesquisadora e objeto, ou seja, entre a militncia e a pesquisa, entre uma escrita engajada, o manifesto e a escrita acadmica. Com essas dores aprendi e continuei aprendendo em todos os momentos da fabricao dessa pesquisa. Posso afirmar que no sou, nem de longe, a mesma pessoa que iniciou o mestrado em maro de 2008. Aprendi o significado de tornar-se pesquisadora. Como mulher, feminista, branca, lsbica, me, militante, professora, desloquei minhas expectativas e percebi que as correspondncias entre aquilo que se pensa antes de iniciar uma pesquisa e o que foi obtido como resultado nem sempre so o que se espera. Aprendi, sobretudo, que existem outras possibilidades de me construir como militante. Nesse processo de aprendizado ficou tambm a fabricao da pesquisadora, fabricada em sua performance 189 investigativa e atravessada por perguntas que questionam o movimento do fazer-se e, aqui nesse momento, do narrar-se. Assim, nestas ltimas pginas identifico uma imensa vontade de retomar, reinventar, reescrever, entrevistar novamente, analisar outras perspectivas, realizar outras fabricaes e outros processos. Atribuo essa vontade de pesquisar ao ato performativo de fabricar-me como pesquisadora. Constru-me pesquisadora com a investigao e no movimento da pesquisa, em meio a um amadurecimento que me fez mais ponderada e desconfiada.
acessrios e vestimenta femininos, Mrcio foi vtima de violncia, tanto por parte das/os colegas quanto por parte das/os professoras/es, direo e funcionrias/os da escola. Talvez a defasagem entre a idade e a srie na qual Mrcio se encontrava tenha sido determinada por tais situaes de constrangimento. Ele contava com dezesseis anos e cursava as sries finais do Ensino Fundamental. Entretanto, tinha interrompido seus estudos na 5 srie e retornado depois para o programa de correo de fluxo, com vistas a recuperar a equivalncia entre a idade e a srie. Para mais sobre esse programa acessar: <http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/1080/982>. Acesso em: 12/07/2010. Naquela poca, Mrcio demonstrava um grande talento para criao de roupas e acessrios femininos. Conversvamos muito e eu tentava convenc-lo de que a escola pblica era seu lugar, que ele pertencia sim quele universo e que precisava superar as situaes de preconceito para continuar seu processo de escolarizao formal e garantir uma vida melhor. Mrcio era um garoto de famlia pobre e eu me preocupava com o seu futuro. Nessa poca, eu acreditava que a escola poderia modificar a sua vida. Entretanto, Mrcio no suportou a violncia e evadiu-se da escola. Deixou a cidade e foi para So Paulo. Atualmente, Malu [nome fictcio] a mais bela travesti da regio de Palmas. Depois da fuga para a metrpole, ela retornou linda, poderosa, realizada e toda feita. Por meio da hormonioterapia, isto , o procedimento de ingesto de hormnios femininos, o que lhe proporcionou o crescimento dos seios, o arredondamento e aumento dos quadris e a reduo dos plos, Mrcio se produziu em Malu. Os cabelos negros longos e ondulados, as roupas e acessrios elegantes, como sapatos de salto alto, meias de seda e roupas colantes fazem parte do seu cotidiano. Malu vem fabricando seu corpo continuamente para si e para os outros. Malu nunca foi escola... 189 O conceito de performance aqui utilizado o mesmo desenvolvido na segunda parte dessa dissertao. 188
Conforme Elizabete Franco da Cruz (2009), procurei superar a dificuldade de transitar entre dois territrios a academia e o movimento social. Percebi que so dois territrios distintos, cada um com suas especificidades, exigncias, nuances e importncias nos processos de questionamento e produo de conhecimento e de realidade. Entretanto, transitar e cruzar as fronteiras foi, desde o incio, o incentivo para realizar essa investigao que, por sua vez, provocou um movimento produtivo nesses territrios. Para Cruz (2009, p. 156-157):
De todo modo, penso que este um desafio, posto que transitar entre as fronteiras destes espaos nem sempre uma escolha serena. Acredito ser possvel ter identidade mltipla e circular com competncia nesses territrios, observando que as cartas de cada jogo so diferenciadas. Portanto, para estar nessas fronteiras, h que se conhecer bem os espaos e suas exigncias, at para quem sabe romper os binarismos e fazer uma prtica acadmica politicamente comprometida e uma militncia fundamentada teoricamente, ou para dizer que teoria e poltica so dois lados da mesma moeda, duas faces do mesmo dado.
Sem pretender que a produo do saber acadmico se faa militante ou que a militncia se faa acadmica, defini essa tenso como importante na medida em que os movimentos sociais so tambm pautados pela pesquisa acadmica, assim como tambm a academia muitas vezes pautada pelas questes dos movimentos sociais. Nesse movimento, importa refletir como essas relaes se estabelecem 190 . Poder-se-ia pensar sobre a funo social da/o intelectual. Michel Foucault (1979), em a Microfsica do Poder, desloca o fazer intelectual, antes definido como exterior produo dos regimes de verdade e aos jogos de poder. Para Selvino Jos Assman e Nei Antonio Nunes (2007, p. 6), [] no interior da esfera poltica, sendo marcado e atravessado pelas relaes de poder e saber, que Foucault situa o intelectual. Nessa perspectiva, cabe /ao intelectual afastar-se de discursos que se pretendem universais e de uma suposta posio imparcial ou neutra, questionando os discursos legitimados como verdadeiros no meio cientfico. Da mesma forma, faz- se tambm necessrio questionar as verdades produzidas no contexto social e poltico. Os saberes para os quais contribui e se vincula, as condies polticas s
190 Nesta pesquisa, chamou-me a ateno quando cheguei casa de Thas (E), e ela chamou suas colegas dizendo: podem vir, uma pesquisa sria, no palhaada.... Depois, Thas explicou que muitas universidades fazem pesquisas com elas, entrevistam, querem saber tudo e, segundo ela, depois te esquecem, te ignoram, podem at passar por voc e no te reconhecerem. Ento, para qu? (Thas, E). 189
quais se submete ou frente s quais exerce resistncia e os posicionamentos morais assumidos compem o universo dessas/es novas/os intelectuais, denominadas/os por Foucault (1993) de intelectuais especficas/os. importante considerar que a crtica realizada por essa prtica intelectual consiste em uma autocrtica, antes de qualquer coisa. Essa autocrtica no pretende oferecer alternativas salvacionistas ou atuar como uma instncia de defesa das/os oprimidas/os. Antes disso, uma crtica que remete a um compromisso tico-poltico da/o intelectual. Nesse sentido:
[...] [a] participao nas lutas sociais, as resistncias polticas exercidas, tanto no espao em que vive e trabalha quanto frente aos grandes regimes de verdade que ganham formas hegemnicas no mundo atual, podem constituir as prticas desse intelectual em consonncia com suas opes tico-polticas e cientficas (ASSMAN e NUNES, 2007, p. 6, grifo dos autores).
O compromisso tico-poltico assumido na fabricao dessa dissertao no consistiu em fornecer solues ao problema das/os pesquisadas/os (UBERTI, 2007), nem em pedagogizar o objeto de investigao (CSAR, 2004), ou seja, fornecer prescries para o bem viver. Para Luciane Uberti (2007, p. 46-47):
O trabalho genealgico do intelectual especfico no parte em busca de solues no porque ignore os problemas ou queira favorec-los. Antes disso, ele entende que todas as solues carregam perigos, pois todas as solues so imperfeitas. A diferena est no fato de que o intelectual especfico no parte da premissa de que tudo ruim, do mal, mas de que tudo perigoso[...]. Partir da premissa de que tudo seja perigoso possibilita que se tenha sempre algo a fazer, a questionar e a problematizar [...].
O compromisso tico-poltico assumido consistiu antes em desenhar um mapa cartogrfico, como nos ensinou Deleuze sobre as singularidades e coletividades em trnsito, por meio das narrativas de transexuais sobre seu perodo de escolarizao. Importa destacar que a interface com as travestis e suas narrativas sobre a escola, embora faam parte das imprevisibilidades dessa pesquisa, foram importantes para um deslocamento nas anlises realizadas. As anlises que compuseram esse mapa cartogrfico podem tambm ser tomadas como ferramentas teis nas lutas especficas sobre a transexualidade e a escola. 190
A fabricao do corpo e da identidade de transexuais e travestis foi um elemento fundamental para pensar a escola e a experincia transexual. Outra hiptese tambm era a relao entre a idade em que os sujeitos iniciavam seus processos de transformao corporal e o abandono da escola. Na grande maioria das entrevistas essa hiptese foi confirmada. Entretanto, apareceram outros elementos que foram considerados nessa anlise. Essa relao no se deu de forma causal, sendo matizada pelos diferentes tipos de procedimentos adotados, os mais sutis e os mais invasivos, como tambm pela importncia que a experincia escolar representa para cada um dos sujeitos. Em relao fabricao da identidade, pensei que poderia existir uma diferenciao estabelecida pelos prprios sujeitos entre a identidade travesti e a transexual. Aprendi, contudo, que as identidades no podem ser fixadas, isto , elas so fluidas e transitrias. Isso apareceu de forma tmida nas entrevistas, mas foi potencializado pelo grupo de discusso. No tocante experincia transexual e escola, evidenciaram-se os processos de excluso, tanto nas entrevistas, quanto no grupo de discusso. Entretanto, no foi possvel pensar sobre isso como uma relao causal. Existiram outras interpretaes, pois nem todas as narrativas evidenciaram o preconceito e a discriminao como motivos do abandono da escola. Em algumas, a questo dos recursos financeiros e de alterao nos rumos da prpria existncia familiar importaram mais. Em outras, ainda, pode-se perceber que a escola no se constitua em uma prioridade, principalmente por ser o lugar da normalizao da identidade e do corpo. Dessa perspectiva, pode-se compreender como os reducionismos e as generalizaes podem ser perigosos. Sobre a relao causal entre a baixa escolaridade e a prostituio, possvel afirmar que a hiptese desenhada no incio da pesquisa no se confirmou. Inicialmente pensei que talvez houvesse uma relao mais direta entre a prostituio e a baixa escolaridade de transexuais e travestis. importante lembrar que essa a narrativa oficial dos movimentos sociais de travestis e transexuais. Contudo, pude perceber, pela narrativa comum de algumas participantes do grupo de discusso, que essa relao estabelece-se de forma complexa e no causal. 191
Assim, nessa reflexo, o conceito de educao menor pareceu-me importante para se pensar tanto a presena de transexuais e travestis na escola como o fazer intelectual. Para Silvio Gallo (2008, p. 64-65):
Uma educao menor um ato de revolta e de resistncia. Revolta contra os fluxos institudos, resistncia s polticas impostas; sala de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do co. Sala de aula como espao a partir do qual traamos nossas estratgias, estabelecemos nossa militncia, produzindo um presente e um futuro aqum ou para alm de qualquer poltica educacional. Uma educao menor um ato de singularizao e militncia.
Pensar a presena desses sujeitos na escola como parte de uma educao menor assumida como um compromisso tico-poltico pode ser interessante (GALLO, 2008). Para isso, talvez seja importante perceber a diferena e a multiplicidade como elementos constitutivos da escola e da educao. Para Silvio Gallo (2008, p. 68), [a] educao menor um exerccio de produo de multiplicidades. Se a educao menor atua nas micro-polticas, nas experincias e fazeres cotidianos, talvez seja possvel pensar a educao e a presena de travestis e transexuais na escola como um acontecimento desejvel. Para Silvio Gallo, a/o professora/r atenta/o s multiplicidades, aos acontecimentos e as experincias poderia ser tomada/o como a/o professora/r militante. Como explicitou o autor, [...] o[a] professor[a] militante, por sua vez, est na sala de aula, agindo nas micro- relaes cotidianas, construindo um mundo dentro do mundo, cavando trincheiras de desejo (GALLO, 2008, p. 65). Alm disso, importa tambm pensar sobre o valor coletivo das escolhas e aes realizadas na escola, como uma das caractersticas de uma educao menor. Para Gallo (2008, p. 61):
Essa a chave da ao do militante. Sempre uma construo coletiva. [...] Ento, o professor militante seria aquele que, vivendo as misrias dos alunos ou as misrias da situao social da qual ele participa, procuraria, coletivamente, ser um vetor da produo de superao dessa misria, ser um vetor de libertao, de possibilidades de libertao (grifos do autor).
192
Isso significa afirmar que, ao escolher a forma de atuar na escola, as/os profissionais da educao estaro escolhendo tambm para aquelas/es com as/os quais iro trabalhar, procurando tocar todas e todos os indivduos. Importa compreender que uma educao menor no pressupe atos isolados, todo ato implica vrios indivduos (GALLO, 2008). O fazer intelectual, assim como o fazer-se pesquisadora, tambm podem estar imbricados em uma educao menor, produzindo-se como resistncia e ato poltico, por meio da militncia, na perspectiva desenvolvida por Silvio Gallo (2008). Com isso, poder-se-ia questionar sobre as possibilidades de se produzir saberes acadmicos a partir da prpria fabricao como pesquisadora-militante. Essa dissertao no consiste em um ato isolado ou representativo de autoria de um sujeito, mas sim de muitos, considerando que [t]oda singularizao ser, ao mesmo tempo, singularizao coletiva (GALLO, 2008, p. 68). Assim, as anlises que ora se apresentam, figuram como um agenciamento coletivo (GALLO, 2008) possvel, e se oferecem como instrumental poltico e acadmico construdo por meio de trnsitos conflitivos e performticos, entre a militncia e a academia. importante compreender que estas anlises no se revestem com uma mscara salvacionista, ao contrrio, dividem conquistas e percalos com todas e todos implicadas/os na ao.
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SER mulher. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2007. 1 DVD (50 min), color.
TUDO sobre minha me. Direo de Pedro Almodvar. Madri: Sony Pictures Classics / 20th Century Fox Film Distributing, 1999. 1 filme (101 min), sonoro, legenda, color.
VIDA fora do armrio. Direo de Luciano Coelho. Curitiba, Projeto Olho Vivo, 2008. 1 DVD (37min), color.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO LINHA DE PESQUISA CULTURA, ESCOLA E ENSINO Uma idia que no perigosa no merece ser chamada de idia. Oscar Wilde (The Soul of Man under Socialism 1891)
Aluna: Dayana Brunetto Carlin dos Santos Orientadora: professora Dra. Maria Rita de Assis Csar A experincia transexual na escola
Saudaes... (cumprimentos e agradecimentos) Vamos falar sobre a sua histria de vida antes do perodo escolar. Nome social x civil Lugar de nascimento; Data; Sobre a famlia situao financeira; membros; quantas irms ou irmos; Onde morou; com quem; Quando se percebeu diferente? Como foi a reao da sua famlia frente sua experincia transexual? Voc se reconhece como... (referente identidade de gnero e orientao sexual) Por qu? Para voc existe diferena entre essas identidades? Quais seriam? Com que idade voc comeou a transformao corporal? Quais procedimentos adotou? Por qu? Como foi a sua experincia escolar? Quais so as suas lembranas do perodo escolar? Relate sobre a sua experincia na escola. A partir de que momento voc comeou a ser percebida/o como diferente na escola? Como voc se deu conta disso? 208
Por que voc acha que isso aconteceu? Vamos falar sobre a sua formao escolar. Qual a sua formao escolar? Voc interrompeu os estudos em algum momento? Quando e por que abandonou a escola? Como foi a sua experincia transexual na escola (nas vrias etapas do ensino)? Qual foi o encaminhamento da escola em relao sua experincia de transexualidade? O que voc esperava que a escola fizesse em relao a isso? Se voc tivesse concludo as etapas do ensino, sem interrupo, voc acredita que a sua vida teria sido diferente? Qual a importncia da escolarizao formal? Por qu? Atuao profissional
Agradecimento
209
ANEXO 2 ROTEIRO PARA REALIZAO DO GRUPO DE DISCUSSO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO LINHA DE PESQUISA CULTURA, ESCOLA E ENSINO Uma idia que no perigosa no merece ser chamada de idia. Oscar Wilde (The Soul of Man under Socialism 1891)
Aluna: Dayana Brunetto Carlin dos Santos Orientadora: professora Dra. Maria Rita de Assis Csar A experincia transexual na escola Saudaes... (cumprimentos e agradecimentos) Apresentao Nome social x civil; Idade; Cidade e estado onde reside; Auto reconhecimento em relao identidade de gnero e orientao sexual; Atuao profissional; Formao escolar; Existe diferena entre as identidades para vocs? Quais? Por que existem somente mulheres travestis e transexuais neste encontro? Quantas de vocs possuem Ensino Superior completo? Ensino Mdio? Ensino Fundamental? Vocs conhecem travestis e transexuais que possuem graduao, especializao, mestrado ou doutorado na Regio Sul? Podem enumerar quantas so? Para vocs esse baixo nmero de travestis e transexuais com graduao, especializao, mestrado e doutorado est relacionado com o qu? 210
Quem de vocs foi vtima de preconceito e discriminao na escola e por isso desistiu de estudar? Vocs podem comentar mais sobre isso? Quem de vocs est estudando? Vocs podem relatar essa experincia? Na concepo de vocs o que representa o Ensino a Distncia no processo de escolarizao formal de travestis e transexuais? Com que idade vocs comearam a transformao corporal? Quais procedimentos adotaram? Por qu? O que vocs pensam sobre a relao entre a baixa escolaridade e a prostituio entre travestis e transexuais? E em relao ao discurso de travestis e transexuais que atuam na prostituio e afirmam que atuam como prostitutas por falta de opo devido ao preconceito e a discriminao dos quais foram vtimas na escola? Travestis tambm possuem um Cdigo Internacional de Doena CID. Entretanto, menos comum se ouvir falar sobre isso tanto nos movimentos sociais quanto na mdia ou na academia. Por qu? Qual a importncia da utilizao do nome social nas escolas? Por qu? Agradecimentos.
"Confusão não é boa pra ninguém"?: uma imersão sobre autoridade e regramentos nas relações entre os agentes do Estado e a prostituição na "Rua da Zona", Três Rios/RJ
Justiça de Transição No México: As Investigações Jurídicas e o Informe Histórico Da Fiscalía Especial para Movimientos Sociales y Políticos Del Pasado (2001-2006)
Colonialidade e direitos humanos das mulheres: uma análise da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW/ONU) no contexto brasileiro
GOSS, Karine Pereira - Retóricas em Disputa o Debate Entre Intelectuais em Relação Às Políticas de Ação Afirmativa para Estudantes Negros No Brasil - Tese