As Mulheres e A Vivência Pós-Cárcere
As Mulheres e A Vivência Pós-Cárcere
As Mulheres e A Vivência Pós-Cárcere
Recife
2011
ELAINE CRISTINA PIMENTEL COSTA
Recife
2011
Catalogao na fonte
Bibliotecria Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291
O longo percurso de construo desta tese no teria sido trilhado sem o apoio e a
colaborao daqueles que atuam em todas as instituies e rgos por onde andei e sem a
presena, o incentivo e o carinho de familiares e amigos. Cada um de vocs foi importante
para que este sonho fosse realizado.
Profa. Dra. Cynthia Hamlin, orientadora desta pesquisa, que me acolheu desde o
princpio como aluna especial da disciplina Epistemologia Feminista, oportunidade que me
fez compreender melhor a necessria relao entre cincia e gnero, fundamentais para os
desdobramentos deste trabalho. Agradeo por ter acreditado no projeto que deu resultado
tese, colaborando, atravs de sua leitura inteligente, criteriosa e sensvel, para que o
desenvolvimento do estudo proporcionasse um cuidadoso trato das questes relacionadas s
vivncias das mulheres libertas do crcere.
Aos colegas de turma Anne Gabriele, Miriam, Joo Pedro, Joilson, Conceio,
Adriana, Mariana, Roberta, Fabiana e Marcos, pelos intensos debates que tornaram as aulas
momentos muito interessantes.
s amigas Lindalva Cruz e Kaliani Rocha, cuja sensibilidade no trato com as questes
de gnero serviram para a nossa aproximao acadmica, logo transformada em belas
amizades.
Aos amigos da Seune, nas pessoas da Profa. Msc. Lana Palmeira e da Profa. Msc.
Claudia Amaral, pelo incentivo na fase inicial do Doutorado.
s queridas Marta Severo e Elita Morais, pelo apoio incondicional durante a pesquisa
de campo. Jamais esquecerei seus olhares atentos quando adentraram pela primeira no sistema
penitencirio.Vocs foram fundamentais para a realizao deste estudo. Muito, muito
obrigada.
A todos os meus familiares, meus sogros Ftima e Moacir e o Vov Jos Santiago, que
torceram por mim durante o trajeto de construo desta tese. Agradeo especialmente a minha
cunhada-amiga-irm Raquel, pelo entusiasmo e incentivo to presentes.
s mulheres que colaboraram para esta pesquisa, abrindo os livros de suas vidas para
tratar de assuntos to delicados e que, entre lgrimas e sorrisos, me ensinaram que a vida um
ciclo que se renova constantemente. Minha identificao com vocs maior do que eu mesma
possa compreender.
Ao meu Pai, Osas, que, no lugar de paz onde se encontra, celebra comigo este
momento. Quando, ainda no maternal, eu no queria ir para a escola, foi a sua persistncia
amorosa e segura que me levou a tomar gosto pelo saber. Esse legado est inscrito em mim,
junto com o amor e os momentos felizes que Deus nos porporcionou na passagem por esta
vida.
minha me, Eulina, minha principal referncia feminina, por estar comigo em todos
os momentos, incentivando-me com suas palavras doces e suas oraes to cheias de f e
certeza. Agradeo o amor incondicional e a coragem de se aventurar pelas estradas rumo a
Recife, tornando o trajeto um momento de muita alegria. Sem voc, nada disso se
concretizaria.
Ao meu irmo Humberto, que sempre acreditou em mim mais do que eu. Foi imitando
voc desde pequena que conheci a literatura, o gosto pelas artes e muitas outras coisas
interessantes que me levaram ao mundo acadmico.
minha tia Biuzinha e meus primos Pablo e Ivan Jnior, que amorosamente me
acolheram durante o tempo de permanncia em Recife, fazendo-me sentir em casa. Os
momentos vivenciados com vocs e, em especial, a doura da minha Violeta, ficaro para
sempre na minha memria. Minha gratido eterna.
Ao meu amor, Moacir, por tudo o que vivemos juntos nesse perodo de dedicao ao
Doutorado. Agradeo o olhar compreensivo e as palavras de incentivo nos momentos mais
difceis, o carinho e a dedicao na fase final de elaborao da tese, quando juntos
encontramos na nossa ddiva divina maior, Danilo, a fora para concluir esse importante ciclo
em minha vida.
A Danilo, meu filho, que gestado junto com esta tese, foi a minha maior fonte de
inspirao, ensinando-me, desde j, lies de um amor incondicional.
Preciso me encontrar
(Candeia)
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por a a procurar
Rir pra no chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por a a procurar
Rir pra no chorar...
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por a a procurar
Rir pra no chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por a a procurar
Rir pra no chorar...
Resumo
Le but de cette thse est de comprendre comment les processus de mortification du self, vcus
par des femmes qui ont accompli une peine de dtention, influencent la vie post-carcrale, en
particulier devant l'absence de politiques publiques pnitentiaires envisageant la protection
du genre fminin. Les fondements thoriques de la recherche sont des tudes de Goffman sur
la mortification du self et la stigmatisation, la fois dialoguant avec les thories qui discutent
des questions de genre ancres sur les particularits de l'identit fminine et sur la lutte pour
sa reconnaissance. L'hypothse de cette tude est l'affirmation selon laquelle il existe des
particularits dans les expriences vcues par des femmes en libert qui sont directement lies
des lments d'identit et aux rles jous dans les relations affectives et dans le march de
travail, tous les deux srieusement touchs par l'incarcration. Des recherches sur le terrain
ont t menes en Alagoas (tat brsilien), partir dun univers de 164 femmes condamnes
dans le cadre de dossiers criminels. Elles ont t renforces par lanalyse qualitative de 13
histoires de vie racontes par des femmes libres de prison. Il a t observ que le self des
femmes tudies est pntr par des lments de genre et de classe, en s'appuyant fortement
sur l'importance accorde aux liens familiaux et de travail domestique, o la confiance prend
une valeur centrale. L'incarcration favorise la rupture des lments didentit fminine, en
imposant de nouveaux arrangements affectifs et professionnels, principalement en raison des
pertes et des nouvelles relations dans l'espace carcral et au-del. Cela a des importantes
consquences, comme, par exemple, la difficult de rinsertion sociale, ce qui souligne
l'importance d'tablir politiques publiques pnitentiaires qui privilgient les particularits de
l'incarcration des femmes.
Introduo ................................................................................................................................. 12
Captulo 1
Mulheres, crcere e ps-crcere ............................................................................................ 22
1.1. Breve histria da pena e o imperativo da reintegrao social ....................................... 24
1.2. O mito da igualdade de gnero na reintegrao social .................................................. 32
1.3. O ps-crcere na legislao e a questo de gnero ........................................................ 35
1.4. Mulheres, crcere e ps-crcere em Alagoas ................................................................ 47
Captulo 2
Identidade e gnero ................................................................................................................ 54
2.1. Identidade, self e estigmatizao em Erving Goffman .................................................. 55
2.2. Identidade, self e estigmatizao numa perspectiva de gnero ..................................... 66
2.2.1. A perspectiva de gnero: uma necessidade histrica.............................................. 67
2.2.2. Identidade feminina ................................................................................................ 74
2.2.3. Mulheres, self e mortificao do self ...................................................................... 85
2.2.4. Estigmatizao feminina: a emergncia do reconhecimento das mulheres na esfera
jurdico-poltica ................................................................................................................ 89
Captulo 3
Caminhos trilhados ................................................................................................................ 94
3.1. A pesquisa de campo ..................................................................................................... 95
3.2. Espaos e tcnicas de coletas de dados ......................................................................... 96
3.2.1. A anlise documental ............................................................................................. 98
3.2.2. A definio da amostra ......................................................................................... 103
3.2.3. O dilogo entre o qualitativo e o quantitativo ...................................................... 107
3.2.4. Histrias de vida ................................................................................................... 111
3.2.4.1. A histria oral de vida e a entrevista ............................................................. 112
3.2.4.2. Entrevistas e ambientes ................................................................................. 115
3.2.4.2.1. Entrevistas com reincidentes presas ....................................................... 115
3.2.4.2.2. Entrevistas com mulheres em liberdade ................................................. 116
3.2.4.2.3. Entrevistas com outros sujeitos .............................................................. 117
3.3. O tratamento dos dados ............................................................................................... 118
3.3.1. A anlise de contedo ........................................................................................... 119
3.3.1.1. As unidades de anlise................................................................................... 120
3.3.1.1.1. Unidades de registro ............................................................................... 121
11
O prdio do presdio feminino era bem menor que o masculino. Embora exalasse um
forte cheiro das paredes velhas e midas, no tinha um aspecto sujo. Como a faxina era um
dos trabalhos das presas, no poderia ser diferente: durante todo o dia viam-se sempre
mulheres limpando os corredores. Nos quartos, igualmente limpos, havia objetos pessoais
como roupas, cosmticos, fotografias dos filhos e familiares, desenhos nas paredes, alm de
imagens de santos. Algumas presas tentavam dar quele ambiente um aspecto mais acolhedor,
pois sabiam que ali, ainda que provisoriamente, era uma morada. At hoje, as presas se
referem as suas celas com o verbo morar: Moro no mdulo dois, cela cinco. Como eu no
havia sentido esse clima de lar temporrio entre os homens, no presdio masculino, a
situao do feminino me causou grande surpresa.
No presdio Santa Luzia havia uma cela de castigo, destinada a presas indisciplinadas.
O lugar, que ficava embaixo da escadaria, era pequeno e escuro e no comportava uma
mulher de estatura mediana em p. Eu no conseguia imaginar como algum poderia passar
dias ali, mas tive a oportunidade de ver isso de perto mais adiante. Embora o ambiente no
presdio feminino parecesse menos hostil que o masculino, eram constantes os episdios de
indisciplina entre as presas, sobretudo conflitos resultantes do tenso ambiente carcerrio. A
viso daquela cela me fez pensar que nem sempre o presdio feminino est em paz, j que,
13
embora custodiadas e vigiadas 24 horas por dia, aquelas mulheres poderiam, no raro, expor
seus sentimentos, angstias e diferenas. Afinal, no deixava de ser um espao de
sociabilidade fechado, habitado por pessoas muito diferentes, oriundas de formaes
familiares distintas e, portanto, permeado por constante apreenso.
Mas essa tenso nos cercou por pouco tempo, pois o presdio feminino no era como o
masculino, que nos passou certa sensao de insegurana latente, reforada pelo fato de que a
nossa entrada no presdio So Leonardo havia sido acompanhada por agentes penitencirios
fortemente armados. Fomos guiadas dentro do presdio Santa Luzia apenas pela Diretora, sem
nenhum aparato de segurana.
Ali, embora as inimizades existissem, a relao cotidiana entre a maioria das presas
parecia ser mais maternal e fraternal, e isso se reproduziu no trato conosco. Passamos a
tarde conversando com elas, j nem to atentas ao roteiro de entrevista. Soubemos, ento, que
muitas eram excelentes cozinheiras, algumas eram casadas, tinham filhos e at netos. Guardo
na lembrana a minha sensao de no compreender como mulheres to meigas e gentis como
aquelas com as quais conversamos poderiam ter praticado crimes. Minha perplexidade
adolescente aumentou quando a Diretora, ao final de nossa visita, nos falou sobre os delitos
cometidos: homicdios, latrocnios e trfico de drogas em sua maioria. Como identidades to
contraditrias poderiam coexistir em uma s pessoa?
Embora ciente dos atos praticados por elas, ficou em mim o registro de que eram
mulheres com angstias, frustraes e sonhos. Enfim, mulheres como quaisquer outras que eu
conhecia. Alm disso, por fora da prpria ideologia do sistema punitivo brasileiro, eram
pessoas que retornariam ao convvio social. Elas mesmas relatavam suas expectativas, o
desejo de rever os filhos, de retomar a rotina do lar, de arrumar um emprego. Por outro lado,
14
Esse primeiro contato com as mulheres presas marcou profundamente a minha vida.
De alguma maneira, eu sabia que a partir daquele momento meu olhar sobre a realidade
daquelas pessoas jamais seria o mesmo. Sa dali com muitas ideias em mente e uma receita de
bolo de banana nas mos.
Mais adiante, j no ano 2000, tive a oportunidade de atuar como advogada do presdio
Santa Luzia. Atravs desse trabalho, tive acesso s histrias de vida, aos pronturios e aos
processos penais de todas as mulheres que povoavam o sistema penitencirio. Foi ento que
percebi que muitas delas em especial as acusadas e condenadas por trfico de drogas
tinham seus maridos e companheiros tambm presos, pelo mesmo tipo de delito. Essas
informaes foram fundamentais para o delineamento do tema de minha dissertao de
Mestrado em Sociologia, defendida em outubro de 2005, no Programa de Ps-Graduao em
Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Intitulado Amor bandido: as teias afetivas
que envolvem a mulher no trfico de drogas, o trabalho teve por propsito compreender
como a afetividade pode ser um fator impulsionador de prticas ilcitas relacionadas s
drogas.
Ao tratar de suas vivncias no crime e na priso, o tema do ps-crcere, mais uma vez,
apareceu naturalmente em suas falas. Embora o contexto do questionamento fosse outro a
permanncia da relao afetiva depois do cumprimento da pena , os relatos das entrevistadas
ultrapassaram essa esfera e contemplaram, alm da dimenso afetiva, aspectos como o temor
do preconceito no campo profissional, a vergonha de parentes e vizinhos e o receio de
retornar ao crcere. Estava lanada, ento, a semente do objeto desta tese.
briga de marido e mulher ningum mete a colher. A questo domstica tornou-se um debate
pblico, e as vtimas desse tipo de violncia foram convocadas a buscar o amparo do Estado
na defesa de sua liberdade, integridade fsica e vida. Embora ainda no estejamos num
patamar satisfatrio de respeito mulher, possvel observar um maior protagonismo dessas
vtimas na luta pelo fim da violncia domstica, atravs da busca de mecanismos jurdicos e
institucionais de proteo pessoal e familiar, alm de punio para os agressores.
As reflexes resultantes do estudo esto apresentadas nos cinco captulos que seguem.
O primeiro captulo tem por propsito delinear o objeto de estudo, a partir de uma breve
histria das penas privativas de liberdade, que encontram na reintegrao social um dos seus
pilares. Nesse contexto, estabelecido o debate sobre as vicissitudes do ps-crcere,
revelando a invisibilidade da questo feminina, tanto na esfera legal como nos
desdobramentos polticos das normas de execuo penal. Por isso, ainda nesse captulo,
procuro fazer uma anlise da legislao que trata do crcere e do ps-crcere, com nfase nos
silncios sobre a realidade das mulheres que passaram pela priso, que se refletem nas
prprias polticas pblicas, omissas com relao s mulheres. A partir dessa discusso,
apresento o panorama do Estado de Alagoas sobre crcere e ps-crcere, delineando o cenrio
e o objeto da pesquisa de campo.
dentro das quais deve estar a assistncia ps-crcere tendem a permanecer cegas para as
diferenas de gnero, em nome da igualdade legal entre homens e mulheres.
O sistema prisional marcado por uma constante condio de fragilidade. Mais do que
viver uma crise atual nessa esfera, o Brasil possui uma estrutura penitenciria que nunca
funcionou a contento. As propostas de mudana na legislao e nas formas de gesto que
contemplam at a privatizao dos presdios aparecem sem que sequer tenhamos vivenciado
a efetividade plena das normas que tratam da matria, j que o descumprimento da legislao
penitenciria a tnica do cotidiano carcerrio. Exemplos disso so a ausncia de
estabelecimentos apropriados para os regimes mais brandos de cumprimento de pena; sade,
educao (formal e profissionalizante) e assistncia jurdica deficientes ou mesmo ausentes
nos estabelecimentos prisionais; estruturas fsicas precrias e/ou desumanas; e a escassez de
polticas pblicas de reintegrao social, conforme demonstram relatrios do Conselho
Nacional de Poltica Criminal e Penitenciria do Ministrio da Justia, referentes a inspees
realizadas em diversos estabelecimentos prisionais masculinos e femininos dos estados do
Brasil, entre os anos de 2006 e 2010 (DEPEN, 2010b).
Essa grave lacuna estatstica revela o pouco conhecimento que o prprio Estado tem
sobre o que se passa com pessoas que saem da priso. Quantas retornam ao crcere? Que
crimes cometeram? Qual a proporo entre a reincidncia criminal masculina e a feminina?
Nada disso se conhece no Brasil.
Isso demonstra que a questo carcerria, no Brasil, carece de reflexes sobre o ps-
crcere, fundamentais para avaliar a eficcia do sistema, ou seja, os resultados produzidos
pelo cumprimento da pena privativa de liberdade. a priso um mecanismo de reeducao de
pessoas que cometeram delitos? Homens e mulheres que passaram pela priso tornam-se
pessoas melhores? Como a sociedade recebe essas pessoas? a reintegrao social algo
facilmente atingido?
Esse resgate histrico tem o importante papel de estabelecer o liame entre as tradies
e representaes h muito incrustadas no tecido social e os desdobramentos concretos da
poltica penitenciria em todo o mundo, inclusive no Brasil. Assim, analiso, tambm, as
prescries legais, na esfera internacional e brasileira, sobre o tema da reintegrao social,
demonstrando a ausncia de polticas pblicas especficas para as mulheres. Por fim,
apresento as peculiaridades dos sujeitos estudados mulheres libertas do crcere, no contexto
estrutural do estado de Alagoas , delimitando, ento, o objeto desta pesquisa.
No sculo XVIII, o italiano Cesare Beccaria leva a pblico a obra Dos delitos e das
penas (2003), que revolucionou o olhar sobre crimes e castigos. Inspirado nas perspectivas
contratualistas do Estado especialmente no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (2000) ,
Beccaria problematiza as origens do direito de punir a partir da necessidade que os indivduos
sentiram de abrir mo de parte de sua liberdade para dar cabo insegurana tpica do estado
de natureza e, assim, tornar a vida social mais harmoniosa. O fundamento do poder de punir
estaria, ento, na reunio de todas essas pequenas parcelas de liberdade (BECCARIA, 2003,
p. 19). A liberdade dos contratantes os indivduos , ento, a essncia do contratualismo,
25
comumente apontado como um dos mais importantes vieses de compreenso das origens da
sociedade civil e do poder punitivo do Estado, que demarcam o fim da vingana privada.
Beccaria reconhece que mesmo a previso legal de crimes e penas no retirava dos
castigos o carter sanguinrio evidenciado pelas punies supliciantes, cujo propsito era
expor pedagogicamente crimes e criminosos em praas pblicas, em rituais de sofrimento
extremo. Defendendo a mxima de que a pena no pode ser uma violncia contra o cidado, o
jurista italiano prope que a pena deve ser, de modo essencial, pblica, pronta, necessria, a
menor das penas aplicveis nas circunstncias dadas, proporcionada ao delito e determinada
pela lei (BECCARIA, 2003, p. 107).
Em Vigiar a punir: histria das violncias nas prises (1987), Foucault prope uma
leitura da histria dos castigos com nfase na pena de priso em interface com uma
histria do corpo e sua relao com uma microfsica do poder, ou seja, com um verdadeiro
campo poltico mediado por diversas formas de saber. Demonstra, ento, a migrao de um
padro espetacular e sangrento de punio para uma poca de sobriedade punitiva e de
suavidade no ato de punir. Essa metamorfose dos castigos, iniciada na Europa do final do
sculo XVIII, foi fortemente influenciada pelas ideias humanistas de Beccaria (2003).
1
O princpio da anterioridade da lei penal, positivado no art. 5, XXXIX, da Constituio Federal de 1988,
estabelece que no h crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prvia cominao legal.
26
tempo, porm, a execuo pblica, cujo propsito era inscrever aqueles exemplos no corao
dos indivduos, deu lugar a formas mais sutis de punio, que atribuam certeza do castigo
um resultado mais eficaz do que o teatro dos suplcios, sobretudo porque as execues
violentas no intimidavam o povo e no contribuam para a preveno de novos crimes.
Beccaria j tinha esse entendimento, naquela poca, e afirmava que para a maioria dos que
assistem execuo de um criminoso, o suplcio torna-se apenas um espetculo; alguns
poucos consideram-no objeto digno de piedade misturado indignao (BECCARIA, 2003:
p. 53).
Do suplcio do corpo, a pena passou a ser o suplcio da alma. O sofrimento fsico deu
lugar a outras formas de sofrimento, que atuam sobre o intelecto, os desejos, os desgnios.
Nessa perspectiva, a privao da liberdade tornou-se personagem principal no cenrio das
sanes penais em todo o mundo. A pena de priso sobretudo de carter temporrio tomou
como foco, alm da punio, a necessidade de recuperar o infrator, atravs de mecanismos de
correio aplicados no cotidiano do crcere. O pressuposto subjacente a essa nova realidade
o de que o ser humano pode ser corrigido.
seria possvel impor limites ao poder de punir do Estado pressupunha a criao racional da
estrutura poltica pelos prprios cidados, que outorgassem ao Estado o poder de punir
atravs do contrato social , dando fim prtica da vingana privada.
Considerada uma das penas mais civilizadas, a privao da liberdade evita o suplcio
do corpo, atingindo de imediato o bem jurdico liberdade, mas produz efeitos sobre a prpria
subjetividade de presos e presas, visto que os/as transforma, ainda que no necessariamente
no sentido de torn-los/as melhores. Ao recair sobre a liberdade, a priso, na realidade,
recodifica a prpria existncia desses sujeitos, sobretudo pelo isolamento que a segregao
produz. A priso, portanto, deveria ser apenas a privao da liberdade, mas muito mais que
isso.
Foucault procura demonstrar como a correo que se busca com a aplicao de penas
de priso no perptuas se d atravs de processos de controle das operaes do corpo a
disciplina , cujo propsito docilizar e adestrar os corpos e torn-los mais teis. Essa
disciplina, segundo Foucault, passa por mecanismos de exame, pela arquitetura utilizada
como instrumento de transformao dos indivduos, pela vigilncia e pela sano
normalizadora. Todos esses mecanismos, juntos, tm por objetivo corrigir o sujeito
desvirtuado, que violou as normas jurdicas.2
A anlise histrica que Foucault faz da pena de priso uma importante contribuio
para o estudo das mudanas ocorridas nos mecanismos de punio nos ltimos trs sculos.
Entretanto, ao imprimir um olhar estruturalista sobre a priso, Foucault no aborda os agentes
e, portanto, a dimenso subjetiva que est presente nos processos cotidianos de transformao
2
O olhar de Foucault sobre a disciplina vai alm dos muros de uma priso. Para ele, a mesma disciplina voltada
correo dos sujeitos dentro do espao penitencirio est difusamente posta no cotidiano das pessoas, atravs
de uma microfsica de poderes e saberes que compem uma verdadeira sociedade disciplinar. Essa perspectiva
envolve a prpria dinmica da sociedade, constituindo a concepo foucaultiana de sociedade de controle. No
propsito deste trabalho adentrar nas reflexes epistemolgicas de Foucault. A contribuio de sua obra para a
abordagem aqui levada a efeito est to somente no resgate da histria da pena e seus objetivos.
29
dos que passam pelo crcere. Na perspectiva apresentada por Foucault, subjaz uma ideia de
assujeitamento, ou seja, de passividade plena dos sujeitos diante da estrutura penitenciria,
considerada, no contexto de sua obra, mais uma rede de saber e poder. Assim, em tese, os
sujeitos deveriam sair recuperados e reintegrados, j que passaram por todos os instrumentos
de correio tpicos do crcere, assimilando as mudanas impostas pela estrutura. Porm, isso
no ocorre no plano da realidade. As transformaes vivenciadas por homens e mulheres que
cumprem pena privativa de liberdade dificilmente correspondem aos propsitos do Estado na
execuo das penas, sobretudo quando se est diante de uma estrutura penitenciria precria
como a brasileira, cega para questes subjetivas. Ao invs de pessoas corrigidas, presos e
presas sofrem mudanas identitrias que tanto dificultam sua reintegrao plena no campo das
relaes sociais e no mercado de trabalho, como contribuem para um maior envolvimento no
crime e, portanto, para a reincidncia criminal.
H, de fato, uma dimenso subjetiva fundamental para qualquer reflexo sobre o que
se passa com pessoas que cumprem pena de priso, sobretudo quando se tem como foco a
reintegrao social. A ideia de assujeitamento, presente em Foucault, parte de um sujeito
formado pelas estruturas de poder a priso , sem enfrentar essa dimenso subjetiva que
situa o/a preso/a na condio de ator social, importante para a compreenso da conexo entre
o cotidiano da priso e o que se vivencia quando do retorno liberdade. Isso sugere que a
historiografia sobre as prises tende a deter-se nas dinmicas estruturais dos estabelecimentos
prisionais, relativizando toda a dimenso subjetiva que est presente na relao entre crcere e
ps-crcere.
no debate proposto por Erving Goffman que parece estar situado o contraponto para
essa lacuna analtica presente no olhar de Foucault sobre as prises. Goffman aponta as
prises como exemplos claros das instituies totais, que so locais de residncia e trabalho
onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separados da sociedade
mais ampla por um considervel perodo de tempo, levam uma vida fechada e formalmente
administrada (GOFFMAN, 2003, p. 11). O carter total da instituio est configurado em
seu fechamento, na barreira estabelecida entre a comunidade interna e o mundo externo,
atravs de esquemas arquitetnicos e tecnolgicos que dificultam a comunicao com esse
mundo exterior. Essa separao, por si s, distancia o sujeito daquilo que marca a constituio
de sua identidade: as relaes sociais. Destitudo dessas relaes, o sujeito tende a
transformar-se, mas no necessariamente nos moldes dos processos de correio prisional de
que trata Foucault. Isso significa que antes de qualquer tentativa de transformao
30
intencionalmente estabelecida pelo Estado, pessoas que cumprem pena privativa de liberdade
j passam por processos de deteriorao da identidade, resultado da prpria natureza do
crcere, definido por Erving Goffman como uma estufa para mudar pessoas (GOFFMAN,
2003, p. 22).
Uma caracterstica marcante das instituies totais, para Goffman, que, por meio da
segregao social, todas as atividades corriqueiras dos indivduos passam a ser realizadas
naquele mesmo local, sob uma nica autoridade e em companhia de um grande nmero de
pessoas, tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto,
mediante as regras prprias do lugar. Assim, as pessoas entram em uma rotina diferenciada
daquela qual estavam acostumadas, passando por rebaixamentos, degradaes, humilhaes,
ou seja, mudanas radicais em sua carreira moral, que Goffman denomina de mortificao do
self (GOFFMAN, 2003, p. 24).3
3
Embora as tradues das obras de Goffman para o portugus faam uso da expresso eu para referir-se a self,
optei por fazer uso, nesta tese, do termo original em ingls self , que possui um significado sociolgico mais
amplo, contemplando a intersubjetividade nos processos de construo do sujeito. Em outras palavras, a
identidade pessoal resultado de algo socialmente constitudo.
31
Diante desse panorama, com amparo em teorias feministas que apontam para
construes identitrias diferenciadas para homens e mulheres , esta pesquisa procura
demonstrar como os processos de mortificao do self resultantes da passagem pela priso
carecem de uma abordagem de gnero, no sentido de compreender as vicissitudes da vivncia
feminina ps-crcere, agregando as experincias dessas mulheres a reflexes sobre uma
estrutura legal e penitenciria androcntrica, alheia s peculiaridades femininas.
O fato de termos uma histria protagonizada e narrada por homens tem repercusses
tanto na cincia como na prpria ordenao social, voltada preponderantemente para o
universo masculino e, secundariamente, para o feminino. Para alm das questes concretas
das prticas cotidianas, isso se desdobra, ainda, na atuao do Estado, atravs de polticas
pblicas assexuadas e, portanto, masculinas , ou que, quando consideram as mulheres,
ignoram pontos de relevncia. So os desdobramentos polticos dos silncios cientficos.
Por isso, no cerne desta pesquisa esto diversos questionamentos acerca das
peculiaridades das experincias vivenciadas pelas mulheres libertas do crcere. a
reintegrao social de mulheres que passaram pela priso permeada por questes diretamente
relacionadas aos papis por elas desempenhados na esfera das relaes afetivas e no mercado
de trabalho? possvel afirmar que as mulheres passam por experincias distintas das dos
homens quando reconquistam a liberdade aps alguns anos na priso?
34
Por outro lado, no se pode negar que os vnculos afetivos entre mes e filhos/as tm
uma natureza distinta daqueles entre pais e filhos/as. Embora existam casos excepcionais, a
prpria cultura patriarcal, apegada a elementos biolgicos como gestao e amamentao,
tende a atribuir mulher uma maior proximidade aos filhos/as e uma grande responsabilidade
no processo de educao. A separao que se d atravs da segregao imposta pela pena ou
quando ultrapassado o perodo de amamentao para os casos de mulheres que tiveram filhos
na priso, leva ao no acompanhamento do crescimento dos filhos e perda da autoridade no
processo educativo. Nesse sentido, a frustrao pelo no vivido, com relao aos filhos,
generalizada (SHEENAN, 2007).
4
Tudo isso tornou-se evidente nas diversas vezes em que estive no sistema penitencirio alagoano para a
realizao da pesquisa de campo que deu origem a esta tese, oportunidades em que observei a dinmica dos dias
de visitas nos presdios masculinos e no Estabelecimento Prisional Feminino Santa Luzia.
35
crcere deixa fortes marcas nas vidas dessas pessoas, dificultando, assim, a reintegrao
social, levou ao surgimento de diversas normas jurdicas voltadas questo carcerria.
O documento legal que se tornou referncia para diversas legislaes sobre execuo
penal no mundo, inclusive no Brasil, recebeu o nome de Regras Mnimas para o Tratamento
de Reclusos, aprovado em 1955, em Genebra, no Primeiro Congresso das Naes Unidas
sobre a Preveno do Crime e o Tratamento dos Delinquentes.
Nas Regras Mnimas esto dispostas diversas diretrizes sobre o tratamento dado a
pessoas que perderam a liberdade por fora de condenao penal, contemplando, inclusive,
diferenas de gnero, expressas, por exemplo, no tratamento conferido a presas grvidas, ou
na determinao de que diretoras e agentes penitencirios que funcionam em estabelecimentos
destinados a mulheres devem ser necessariamente do sexo feminino.
Tambm ali est o reconhecimento de que a priso e outras medidas que implicam
segregao dos sujeitos, ao estabelecer a separao do/a criminoso/a do mundo exterior,
imprimem sofrimento suficiente porque atingem frontalmente o direito de autodeterminao,
j que privam essas pessoas da sua liberdade. No item 57 das Regras Mnimas est expresso
que o sistema penitencirio no deve, exceto pontualmente por razes justificveis de
segregao ou para manuteno da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situao
(ONU, 1955).
Um item de grande importncia nas Regras Mnimas o que afirma que os reclusos
por fora de condenao penal continuam a fazer parte da sociedade. Essa afirmao rompe
com a ideia de que a segregao implica a excluso de presos/as do tecido social. A priso faz
parte da sociedade. uma instituio humana, criada para compor a dinmica da vida social
como um mecanismo de represso inserido no contexto da segurana pblica, um dos pilares
do ordenamento social. Ao recair sobre a liberdade de ir e vir, limitando a autodeterminao
dos sujeitos, a priso retira de homens e mulheres privados/as de liberdade a convivncia
direta com aquele grupo social, por um determinado perodo de tempo, mas eles/as continuam
a pertencer sociedade da qual so originrios.
Por isso, no se deve retirar do/a preso/a o contato com o mundo social de onde ele/a
advm. Visitas, correspondncias por cartas, telefonemas, alm da leitura de livros, revistas e
jornais atualizados so de grande importncia para manter esses sujeitos conectados com a
dinmica social durante o perodo de segregao, pois o contato com o mundo exterior
tambm uma forma de garantir a reintegrao social. Nesse sentido, recomendao expressa
das Regras Mnimas que as diferenas entre a vida na priso e a vida em liberdade sejam
reduzidas, de modo a preservar a dignidade dos/as segregados/as, expressa, entre outros
aspectos, na sua prpria identidade.
Essa orientao abre espao para o debate sobre o tratamento a ser dado a mulheres e
homens libertos do crcere, atravs de polticas governamentais que, amparadas no arcabouo
normativo, agreguem o pblico e o privado na reinsero social, de modo a incentivar aos
libertos/as o respeito a si prprios/as e o sentido de responsabilidade que permita o resgate da
autonomia plena e a autossustentao.
38
Em 2009 entrou em vigor a Lei 11.942, que alterou pontualmente a LEP. Alm de
assegurar acompanhamento mdico mulher presa, principalmente no pr-natal e no ps-
parto, extensivo ao recm-nascido, a nova lei determinou a criao, nas penitencirias
femininas, de uma seo para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianas maiores
de seis meses e menores de sete anos, com a finalidade de assistir a criana desamparada cuja
responsvel estiver presa, concedendo-se atendimento pessoal qualificado e horrio de
funcionamento que garanta a melhor assistncia criana e sua responsvel. Essa nova lei
teve por objetivo proporcionar maior proximidade entre me presa e filhos pequenos, no
perodo de permanncia na priso, alm de humanizar o tratamento concedido a mulheres
grvidas ou com filhos menores de sete anos, durante o cumprimento da pena privativa de
liberdade.
apto/a a retornar ao convvio social. Nesse sentido, a previses normativas se coadunam com
as reflexes de Goffman (2003) acerca da estreita ligao entre a vivncia na priso e as
expectativas com relao ao mundo exterior.
Para os casos dos que cumprem integralmente a pena privativa de liberdade aplicada,
h o pressuposto de que passaram pelo sistema progressivo de cumprimento de pena, previsto
na legislao brasileira. O imperativo da progressividade das penas est intimamente ligado
ao propsito da reintegrao social, pilar do sistema penal brasileiro, em harmonia com as
recomendaes internacionais. O objetivo do sistema progressivo de cumprimento de penas
permitir o retorno paulatino do/a condenado/a ao convvio social, de acordo com critrios
objetivos e subjetivos.
Para tanto, grande parte das normas voltadas para a administrao do cumprimento da
pena privativa de liberdade tm por escopo a reduo do tempo de permanncia do/a
5
Por isso, embora a LEP faa uso da linguagem no masculino ao referir-se a direitos dos sujeitos contemplados,
acrescento aqui o smbolo /a, logo aps a meno a egressos/as ou condenados/as, com o propsito de reforar
que essas normas tambm incidem sobre as mulheres.
6
Art. 26 da LEP.
41
apenado/a para retorno ao convvio social. o caso da remio da pena pelo trabalho.7 De
acordo com a LEP, o/a condenado/a que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto
poder abreviar, pelo trabalho prisional, parte do tempo de execuo da pena, razo de um
dia de pena reduzido a cada trs dias trabalhados.
7
As regras da remio esto dispostas nos arts. 126 a 130 da LEP.
8
As regras sobre os regimes de cumprimento de pena esto previstas nos arts. 33 a 36 do Cdigo Penal e arts.
112 a 119 da LEP.
9
A Lei 8.072, de 25 de julho de 1990 Lei de Crimes Hediondos proibia a concesso de progresso de regime
para condenados(as) a crimes hediondos. No entanto, aps ter sido declarada inconstitucional, nesse aspecto, a
lei sofreu uma importante modificao em seu art. 2, 2, por fora da Lei 11.464, de 28 de maro de 2007,
passando, ento, a permitir a progresso de regime nos crimes hediondos.
42
10
Os parmetros para a determinao do regime inicial de cumprimento de pena esto previstos no 2 do art.
33 do Cdigo Penal.
43
maior contato com a sociedade nesse regime. Aquele/a que ficava 24 horas segregado em
convvio apenas com outros/as presos/as e com o staff penitencirio, tendo contato externo
somente com eventuais visitantes, passa a ter a possibilidade de experimentar a liberdade,
vivenciando experincias fora das grades e se readaptando vida social.
Como o regime aberto aquele em que o/a apenado/a ter maior liberdade e menor
fiscalizao por parte do Estado, a legislao impe, ainda, alguns outros requisitos para que
seja concedida a progresso. Primeiro, o ingresso nesse regime supe a aceitao, pelo/a
condenado/a, do programa e das condies impostas pelo juiz. Mais do que mera formalidade,
essa aceitao consiste em compromisso assumido pelo/a condenado/a, em audincia, perante
o magistrado. Entre as condies obrigatrias, previstas pela LEP, esto as seguintes
obrigaes: permanecer no local que for designado durante o repouso noturno e nos dias de
folga; sair para o trabalho e retornar nos horrios fixados; no se ausentar da cidade onde
reside sem autorizao judicial e comparecer a juzo para informar e justificar as suas
atividades, quando for determinado.
Finalmente, a lei exige que o/a apenado/a apresente, pelos seus antecedentes, fundados
indcios de que ir ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo
regime. Essa me parece ser a regra mais complexa de todas as impostas. Afinal, a adaptao
dinmica e s rotinas do crcere consequncia direta do processo de enquadramento,
analisado por Goffman (2003b) , sobretudo se a pena foi cumprida em sistema penitencirio
44
11
As regras referentes ao livramento condicional esto previstas nos arts. 83 a 90 do Cdigo Penal e 131 a 146
da LEP.
45
Posta em liberdade, a pessoa tem de obedecer s seguintes condies, impostas por lei:
obter ocupao lcita, dentro de prazo razovel, se for apto/a ao trabalho; comunicar
periodicamente ao juiz sua ocupao; no mudar do territrio da comarca do Juzo de
Execuo sem prvia autorizao judicial. Tambm podem ser impostas outras condies: no
mudar de residncia sem comunicao ao juiz e autoridade incumbida da observao
cautelar e de proteo; recolher-se habitao em hora fixada e no frequentar determinados
lugares (bares, boates, prostbulos e locais de reputao duvidosa). Essas condies, cujo
propsito o controle do comportamento do/a liberado/a condicional, devero ser cumpridas
at o final da pena imposta na sentena. O tempo em que o/a apenado/a cumpre a pena em
liberdade aps receber livramento condicional o chamado perodo de prova. Nesse perodo,
ele/a tambm est apto/a a receber a assistncia ao egresso.
Uma importante inovao das regras o convite expresso, feito aos Estados-Membros,
para que levem em considerao as necessidades e as circunstncias especficas de mulheres
presas, ao elaborarem suas legislaes, os procedimentos, as polticas e os planos de ao.
Isso significa o reconhecimento das omisses legislativas existentes em todo o mundo, no que
diz respeito s peculiaridades de gnero.
considerar as limitaes de seu alcance para a realidade concreta dos sistemas penitencirios
em todo o mundo, o que inclui o Brasil. Entre as previses normativas ali dispostas e a
mudana concreta no cotidiano penitencirio h um enorme fosso, resultado da prpria
natureza dessas normas, no cenrio do direito internacional.
O mesmo pode ser dito com relao Declarao Universal de Direitos Humanos, de
1948, Conveno Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruis, Desumanos ou
Degradantes, de 1984, e s Regras Mnimas para o Tratamento de Reclusos, de 1955. No
entanto, como elas antecederam toda a legislao penitenciria em vigor no Brasil, cumpriram
o papel de influenciar na elaborao dessas leis, o que poder ocorrer com as Regras de
Bangkok, voltadas para mulheres reclusas.
Assim, possvel afirmar que essas normas trazem boas perspectivas para mudanas
paulatinas na legislao penitenciria brasileira, em longo prazo. Por enquanto, o panorama da
realidade carcerria feminina ainda toma como parmetro as regras em vigor no Brasil.
no estado de Alagoas. A escolha do lcus para a realizao da pesquisa de campo se deu pela
minha proximidade com o sistema penitencirio alagoano, fruto de diversas pesquisas e
atividades profissionais que me revelaram a necessidade de um estudo sobre a vivncia das
mulheres aps a experincia da priso em Alagoas.
Como os rumos tomados por essas mulheres no reencontro com a liberdade so plurais
e distintos, esto em foco tanto aquelas que conseguiram, de alguma forma, se reestruturar
depois da priso, afastando-se das redes do crime, quanto as que reincidiram e voltaram ao
crcere. Embora tenham trajetrias de vida bastante diferentes, todas elas trazem consigo as
fortes marcas da perda da liberdade, do no vivido, das rupturas nas relaes afetivas, alm da
estigmatizao, que se expressa, sobretudo, na esfera do trabalho. Esses so os aspectos
centrais da pesquisa realizada.
ordem judicial, diante da falta de condies dignas de alojamento para presos.12 H uma
expectativa de restaurao dos prdios, para que funcionem adequadamente. certo que a
progresso de regime tambm est severamente prejudicada atualmente nos presdios
masculinos, mas h probabilidades de que volte a funcionar, pelo menos em mdio prazo.
12
A nica exceo um espao para o regime semiaberto masculino, existente no Presdio de Segurana Mdia
Desembargador Luis de Oliveira Sousa, localizado na cidade de Arapiraca, no agreste do estado de Alagoas, que
funciona normalmente, embora tambm apresente uma srie de deficincias, passando ao largo do que determina
a lei para o cumprimento do regime semiaberto.
50
do Estado em construir esses espaos previstos em lei, porm, no pode acarretar prejuzos
para aqueles/as que cumprem pena privativa de liberdade e que, aps certo tempo de
cumprimento de parte da pena, aliado ao bom comportamento carcerrio, conquistaram o
direito a progredir de regime. Foi justamente esse raciocnio que levou juzes de execuo
penal de Alagoas, na ltima dcada, a conceder a progresso para regime mais brando, mesmo
inexistindo estabelecimento penal adequado, determinando, em cada sentena prolatada, a
imediata liberao de qualquer pessoa que acabou de progredir de regime. Isso, hoje, acontece
tanto com homens quanto com mulheres que cumprem pena nos presdios alagoanos.
Por isso, embora a LEP defina o/a egresso/a de forma taxativa o/a liberado/a
definitivo/a, pelo perodo de um ano aps o retorno liberdade ou aquele/a que cumpre o
perodo de prova do livramento condicional , para fins desta pesquisa tambm foram
contempladas como objeto de estudo aquelas mulheres que alcanaram a liberdade atravs da
progresso de regime. Por no serem tecnicamente egressas, as mulheres que progridem de
regime e so postas em liberdade no recebem a mesma assistncia garantida em lei s
liberadas definitivamente e s que receberam livramento condicional, embora sua realidade
concreta seja semelhante das egressas, j que so recebidas na sociedade como ex-
presidirias. A rigor, elas deveriam estar alojadas em estabelecimentos prprios para os
regimes mais brandos de cumprimento de pena, que inexistem no Estado. Assim, acabam se
deparando com a liberdade plena, dando um verdadeiro salto na progresso de regime prevista
em lei.
voltaram liberdade, em Alagoas. Juntas, elas compem a categoria que denomino mulheres
libertas do crcere.
Essa deveria ser uma das competncias do Patronato, rgo de execuo penal
previsto na LEP, destinado a prestar assistncia aos albergados (regime aberto) e aos
egressos/as. Alm de outras incumbncias, voltadas para o cumprimento de penas restritivas
de direitos, deve o Patronato colaborar na fiscalizao do cumprimento das condies do
livramento condicional. A legislao muito sucinta na descrio das atividades do Patronato
e silencia quanto sua composio ou procedimentos para as atividades prticas, deixando tal
regulamentao para os Estados-federados. No entanto, embora sejam de grande importncia
13
Esses convnios so apresentados no captulo 4.
52
Todas essas iniciativas demonstram que o Estado comea a despertar para a questo
carcerria no Brasil. A legislao atribui ao Poder Pblico o papel de mediador da
reintegrao social em diversos campos e, notadamente, no campo do trabalho, com a
cooperao da comunidade. No entanto, a poltica penitenciria e de amparo aos egressos/as
tende a voltar-se, como regra, ao universo masculino. Para as mulheres restam, apenas, as
polticas residuais, que seguem os rastros do que planejado e executado para os homens.
certo que a populao carcerria e a quantidade de homens libertos do crcere muito maior
do que a de mulheres. Porm, isso no justifica a omisso do Estado na criao de polticas
especificamente voltadas para as mulheres.
53
Por tudo isso, atravs desta pesquisa, procuro compreender, diante da realidade
concreta do estado de Alagoas, como vivem hoje mulheres libertas da priso que, mesmo
diante da liberdade, ainda se encontram presas s sombras de um passado bem recente. Que
transformaes identitrias sofreram essas mulheres na passagem pelo crcere? Como isso
atingiu suas relaes afetivas e profissionais? Que novos arranjos identitrios vivenciam no
ps-crcere, sobretudo diante da ausncia de polticas pblicas voltadas para as mulheres?
Identidade e gnero
Este captulo, que tem como temas centrais identidade e gnero, objetiva apresentar
algumas discusses tericas que contribuem para o estudo da problemtica dos processos de
mortificao do self feminino no crcere, da estigmatizao e dos mecanismos de
reconstruo das identidades no contexto do ps-crcere, quando as mulheres libertas da
priso buscam resgatar as relaes sociais anteriormente existentes e estabelecer novas
relaes sociais, levando consigo as marcas do que foi vivenciado no espao penitencirio.
Por isso, como debate final, neste captulo, apresento uma discusso sobre
reconhecimento nas polticas de identidade, justificando minha crtica ao sistema de justia
penal e s polticas pblicas voltadas para a questo penitenciria, fundados em certa
concepo de igualdade plena entre homens e mulheres que fecha os olhos para as
peculiaridades das experincias sociais femininas. com base nas reflexes de Nancy Fraser
(2002) sobre igualdade e reconhecimento que problematizo a necessidade de se inserir as
mulheres como destinatrias de polticas especficas que proporcionem meios para a efetiva
reintegrao social, vencendo as barreiras culturais que se expressam atravs da
estigmatizao e do preconceito, h tanto tempo incrustados no tecido social.
significa que no propsito de Goffman construir uma teoria social que explique a dinmica
da toda a vida em sociedade a partir das interaes face a face. Sua inteno demonstrar
como as interaes do cotidiano se constituem como objeto autnomo de anlise e que,
embora relacionadas com as estruturas e as instituies, apresentam, por si s, aspectos
importantes para a compreenso das relaes sociais. Dessa forma, justifica a perspectiva
microssociolgica de seus estudos.
Nas obras de Goffman traduzidas para o portugus, a expresso self aparece como
sinnimo de eu. Entretanto, o prprio pensamento de Goffman, em sua interface com as
ideias de Mead, que nos leva a compreender que o sentido de self ultrapassa a noo de eu,
j que evidencia o carter social da expresso. Assim, o eu no sinnimo de self, mas
compe uma parte dele, juntamente com a ideia de mim. No processo
comunicativo/interacional, o eu seria o self observador, que aparece na experincia como
57
memria, de modo que s pode ser reconhecido retrospectivamente, enquanto o mim seria o
self social, construdo atravs do controle social, que enseja a ao convencional e
conformista do sujeito. O self seria, ento, a interface do eu com o mim (MEAD, 1913).
O eu a parte do self com a qual nascemos, ou seja, a parte que age com base nos
instintos. medida que somos socializados, por meio da interao com os outros,
aprendemos a olhar para ns mesmos, da mesma forma que esses outros nos olham, isto ,
tornamo-nos objetos para ns mesmos. Passamos, ento, a agir com base nessa reflexo. Esse
processo de objetivao do eu se d no processo de socializao, constituindo o mim,
aquela parte do self que age com base nos elementos sociais/culturais. Por isso, para Mead,
ambos estariam na base da constituio do sujeito (MEAD, 1962).
Assim como Mead, Goffman entende o self como um processo contnuo de formao
das identidades, algo construdo nas interaes face a face e determinado pelas relaes do
cotidiano. No entanto, para Mead, esse processo de formao do self para quando se
consegue adotar a perspectiva do outro generalizado, enquanto em Goffman o self aparece
como algo menos fixo e mais contextual. Essa caracterstica reafirma a influncia de
Durkheim (2003) no pensamento de Goffman a fora do coletivo sobre o sujeito , alm de
evidenciar um sujeito no esttico, ou seja, um sujeito dotado de uma identidade
multifacetada, marcada por elementos que podem assumir o primeiro plano, de acordo com
as circunstncias das relaes sociais e das experincias vividas em determinados espaos de
sociabilidade. Por isso, tanto em Mead como em Goffman, o self pressupe
intersubjetividade e est intimamente relacionado ideia de processo.
conceitos apresentados por Goffman, que o self multifacetado e que essa condio se faz
necessria para a sobrevivncia nos diversos cenrios de sociabilidade pelos quais passa o
indivduo ao longo de sua vida.
Nesse sentido, a ideia de definio da situao em Goffman passa a ter uma relevncia
no contexto de construo do self. Para ele, a definio de situao se d quando um sujeito
chega diante dos outros (a audincia). Ao agir, esse sujeito influenciar na definio da
situao, ora atuando de forma calculada, de modo a passar para os outros um determinado
tipo de impresso atravs de performance , ora no ter conscincia desse agir calculado.
Segundo Goffman, os outros podem ficar convenientemente impressionados pelos esforos
do indivduo em comunicar-se, ou podem no compreender a situao e chegar a concluses
que no se justificam nem pelo propsito do indivduo nem pelos fatos (GOFFMAN, 2003a,
p. 15-16). Mais uma vez sobressai a ideia de Goffman de que o self no passivamente
constitudo pela fora do controle social, j que os indivduos tendem a representar no sentido
de manipular a forma como aparecem para os outros, buscando mostrar algo que lhes seja
favorvel nas relaes sociais.
social realizada por um indivduo e eventuais acontecimentos que podem emergir durante o
desenrolar de uma interao que a contradiz (MARTINS, 2009, p. 140).
Goffman reconhece a fora das instituies e seus espaos sobre as interaes e o self,
o que fica bastante evidente em seu olhar sobre as instituies totais (GOFFMAN, 2003b).
Embora os estudos goffmanianos no se dediquem anlise das relaes de poder, preciso
reconhecer que o autor est atento influncia dessas relaes na composio e na
deteriorao do self, no contexto das instituies. Para alm das exigncias especficas da
natureza da instituio em que se encontra determinado sujeito , a exemplo do uso de
fardamento, do corte de cabelo ou da rotinizao das condutas os internos se veem diante de
processos de adaptao, fundamentais para a sociabilidade naquele espao. Essa adaptao
denominada por Goffman de enquadramento e tem repercusso direta na deteriorao ou
mortificao do self (GOFFMAN, 2003b, p. 26). Isso revela como o self, na qualidade de
processo de construo e reconstruo contnua da identidade dos sujeitos, algo dotado de
grande complexidade. Se, por um lado, h a influncia das questes subjetivas, por outro, no
se pode negar a fora das situaes, que esto em estreita relao com os espaos e com as
instituies.
Para Goffman, as prises servem de exemplo claro para a anlise das instituies totais
(GOFFMAN, 2003b, p. 11). A segregao compulsria das prises exerce influncia sobre as
identidades dos presos, submetidos a processos de perda e aquisio de novas identidades,
em suas relaes afetivas e profissionais. Nesse contexto, as prises aparecem como espaos
de sociabilidade em que as circunstncias do cotidiano, mediadas pelas interaes sociais,
podem acarretar a mortificao do self, ou seja, a perda de elementos identitrios originrios
da vida no institucionalizada e a aquisio de novos atributos identitrios que resultam das
experincias no crcere. Da a afirmao de Goffman de que cada instituio total um
experimento natural sobre o que se pode fazer ao self (GOFFMAN, 2003b, p. 22).
acompanhamento das mudanas sociais mais recentes no mundo exterior. Mais uma vez
evidencia-se que a autonomia do sujeito recebe as influncias da segregao, configurando
certo processo de desculturamento ou destreinamento, algo que incapacita
temporariamente o internado a enfrentar alguns aspectos da sua vida diria (GOFFMAN,
2003b, p. 23).
instituies, que passam a ser reconhecidos a partir desses novos referenciais. No caso das
prises, a identidade de prisioneiro/a e, portanto, criminoso/a, passa a ser a marca mais forte
dos sujeitos, sobrepondo-se a todas as demais identidades, aqui tomadas como atributos
visualizados sob o olhar do outro. No se trata, pois, de pensar a identidade como algo fluido,
mas sim de admitir, a partir das ideias de representao e definio da situao apresentadas
por Goffman, que possvel a coexistncia de vrios elementos identitrios presentes nas
interaes cotidianas, de acordo com os distintos espaos de sociabilidade ocupados pelos
sujeitos e da representao desses atributos diante dos outros.
outro, mas no significa que o sujeito deixa de representar o self, na busca pelo resgate dos
atributos identitrios positivos, que permitam a aceitao social.
Embora entenda que o estigma, em si, pode referir-se a algo honroso ou desonroso,
Goffman reconhece que o termo passou a ser utilizado como referncia a um atributo
depreciativo, que leva ao descrdito (GOFFMAN, 2004, p. 13). Nesse contexto, analisa os
sentimentos de insegurana do indivduo estigmatizado em relao maneira como as
pessoas normais o identificaro e o recebero. A identidade constituda pelo self nem
sempre corresponde quela que compe as representaes sociais vigentes em determinadas
sociedades ou grupos sociais. Muito embora o sujeito traga consigo elementos identitrios
originrios de suas vivncias antes da experincia que o estigmatizou, a exemplo da
passagem por uma instituio total, aquelas marcas tendem a delinear novos elementos
identitrios que repercutem na imagem daquele sujeito diante dos outros.
Esse fenmeno muito comumente vivenciado por pessoas que passaram pelo crcere.
Muito embora presos e presas possam trazer consigo uma vida inteira de experincias
cotidianas no relacionadas criminalidade, o fato de cumprirem pena em um
estabelecimento prisional passa a representar a sua principal caracterstica. Vivenciado
plenamente quando os/as presos/as conquistam a liberdade, o estigma aparece como uma
verdadeira ndoa na identidade do/a ex-presidirio/a, remetendo-o/a, constantemente, ao
tempo em que esteve no crcere e tornando-se, portanto, sua marca distintiva.
Por isso, Goffman tambm reflete acerca das angstias do internado nos momentos
que antecedem a volta para a sociedade mais ampla. Embora o perodo vivido na priso seja
considerado, pelos prprios internos, como tempo perdido, que precisa ser apagado, j que
representou verdadeiro exlio da vida durante sua estada obrigatria naquela instituio, o
retorno liberdade no deixa de ser permeado por dvidas, medos e inseguranas,
sintetizadas por Goffman atravs da seguinte pergunta: Ser que posso me sair bem l fora?
(GOFFMAN, 2003b, p. 66).
Esse questionamento revela as vicissitudes do novo mundo que se abre diante do ex-
presidirio, depois de algum tempo de vivncia no crcere, onde passou por diversos
processos que acarretaram a mortificao do self e que modificaram no apenas a sua forma
de agir, mas tambm suas relaes sociais. O/A preso/a tem conscincia das dificuldades que
enfrentar quando retornar liberdade. Algumas de suas relaes sociais podem estar
fragilizadas ou rompidas pela prpria distncia que a segregao impe, e novos arranjos
afetivos podem ter se estabelecido dentro da priso. Alm disso, a necessidade de
65
subsistncia levar esse sujeito a buscar emprego, o que uma das maiores dificuldades para
ex-presidirios/as, j que a passagem pela priso tende a ser colocada como empecilho para a
aceitao dessas pessoas no mercado de trabalho, sobretudo porque sobre elas recai o estigma
do crcere. Essas dificuldades levam o estigmatizado a manipular o prprio estigma,
principalmente quando ele no consiste em uma marca fsica, de visibilidade imediata
estigma aparente , mas uma condio social, como a de ex-presidirio, que traz consigo um
estigma invisvel.
Mais uma vez, a ordem da interao o pano de fundo das reflexes de Goffman, que
considera, nesse contexto, as possveis marcas da passagem por uma instituio total. Para
ele, a manipulao do estigma se faz menos necessria com as pessoas ntimas, j
acostumadas com aquele elemento identitrio que marca o sujeito, de modo que no se
afastam do estigmatizado. Diferente, porm, o que acontece com os outros, alheios esfera
da intimidade, mas que tambm se fazem importantes na busca da integrao social. Para
Goffman, a rea de manipulao do estigma, ento, pode ser considerada como algo que
pertence fundamentalmente vida pblica, ao contato entre estranhos ou simples conhecidos,
colocando-se no extremo de um continuum cujo plo oposto a intimidade (GOFFMAN,
2004, p. 62). Assim, ocultar a condio de ex-presidirio manipulando, portanto, esse
elemento identitrio tende a ser um artifcio para evitar transtornos diante dos outros, muito
embora essa manipulao encontre limites na existncia da documentao referente a sua
identidade pessoal, normalmente requisitada como forma de conhecimento da biografia dos
sujeitos. Para Goffman, quando o estigma de um indivduo se instaura nele durante a sua
passagem por uma instituio total, e quando a instituio conserva sobre ele uma influncia
desacreditadora durante algum tempo aps a sua sada, pode-se esperar o surgimento de um
ciclo especfico de encobrimento (GOFFMAN, 2004, p. 105).
construo do self permanece como forma de composio dos elementos identitrios, a partir
de novos referenciais que passam a compor as vidas dos sujeitos.
Pouco mais de 70 anos depois dessa afirmao, a questo feminina ento apontada por
Beauvoir permanece como um problema sociolgico atual, com desdobramentos nas esferas
poltica e jurdica. Isso significa que a discusso sobre a condio das mulheres nas
sociedades contemporneas no algo destitudo de problemas; ao contrrio, ainda se faz
necessria uma anlise de como as representaes aparentemente ultrapassadas permanecem
no cerne dos problemas enfrentados pelas mulheres na vida cotidiana, proporcionando a
reproduo de um modelo de sociedade androcntrica, que ignora as peculiaridades das
mulheres em diversos aspectos da vida social. Porm, os problemas sociolgicos, quando
analisados a partir de uma perspectiva de gnero, com nfase na situao de mulheres, ainda
carecem de justificativa. preciso demonstrar por que discusses sobre elementos identitrios
das mulheres, embora contextualizadas dentro de uma sociedade marcada pela dicotomia
masculino/feminino, no podem ser diludas numa abordagem assexuada, tal como o faz
Goffman.
Muitas feministas Judith Butler (2008), Joan Scott (1995), Gisela Bock (2008) e
outras ainda partem de alguns dos pressupostos analticos de Beauvoir para abordar a
relao entre homens e mulheres nas sociedades contemporneas: a universalidade do homem
68
como representante dos seres humanos, de forma a aparecer como positivo e neutro; a
submisso das mulheres, vislumbrada na afirmao de que o homem um Um e a mulher, o
Outro; e a diviso dos sexos como um dado biolgico e no um momento da histria
humana. Todos esses temas esto na centralidade das discusses, que podem ser sintetizadas
na afirmao de Beauvoir de que os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de
condies (BEAUVOIR, 2002a, p. 14).
Seu longo estudo sobre dados biolgicos justificado como chave para compreender
as mulheres, embora recuse veementemente a ideia de que esses dados constituam um destino
imutvel para elas. Ou seja, as questes biolgicas, nessa perspectiva, no so suficientes para
definir a hierarquia entre os sexos, no explicam por que a mulher o Outro e no a
condenam para sempre condio de subordinao. na significao contextualizada dos
dados biolgicos nos campos econmico, social e psicolgico que se encontram as bases
histricas da sujeio da mulher. Trata-se de saber como a natureza foi nela revista atravs
da histria; trata-se de saber o que a humanidade fez da fmea humana (BEAUVOIR, 2002a,
p. 57). Em outras palavras, Beauvoir enfatiza a necessidade de se compreender como foram
delineados papis sociais que se tornaram marcas identitrias das mulheres.
69
A leitura que Michelle Perrot faz da histria das mulheres lana luzes sobre essa
questo. Trata-se de uma perspectiva peculiar, algo que se infere, de imediato, a partir do
ttulo de sua obra: Minha histria das mulheres (2007). Ali, as reflexes histricas
perpassam o corpo, a alma (religio, artes, o saber), o trabalho (do domstico ao remunerado),
e a vida das mulheres nas cidades. Em cada uma dessas esferas, Perrot procura delinear aquilo
que a histria e a cultura reservaram s mulheres, tornando-se suas marcas identitrias. As
identidades femininas resultam do que Perrot chama de pequena diferena anatmica, o
sexo, que inscreve os recm-nascidos em um ou outro sexo, classificando-os como homem ou
mulher (PERROT, 2007, p. 62). Portanto, assim como Beauvoir, a inscrio primria est,
sim, no corpo, suas funes e significados simblicos.
O corpo tomado a partir de sua histria fsica, esttica, poltica, ideal e material: a
virgindade das moas, a violao, o casamento. O amor conjugal analisado em sua relao
com a sexualidade, a esterilidade, a maternidade. Essa, alis, aparece como uma das principais
marcas identitrias das mulheres, mesmo daquelas que nunca tiveram filhos. Mais do que uma
experincia biolgica, uma funo social. uma identidade feminina traduzida no cuidado
com as crianas e as casas, na produo do alimento, na reproduo da educao. Segundo
Perrot, a funo materna um pilar da sociedade e da fora dos Estados (PERROT, 2007, p.
69). A maternidade, portanto, politizada. Ela no um momento apenas; ela perdura por
toda a vida da mulher e tem um papel preponderante na reproduo social. Como a principal
referncia identitria do feminino, torna-se parmetro de comportamento e motivo de
questionamento, sobretudo se a ela se contrape uma conduta no esperada para uma mulher.
Assim, a biologia no deixa de ser um ponto de partida histrico-analtico, que permite
contextualizar os questionamentos sobre a condio das mulheres nas sociedades
contemporneas inseridas nos debates sobre a cultura e, portanto, sobre as interpretaes das
relaes sociais.
Nesse sentido, Gisela Bock (2008) entende que a investigao histrica ainda est
longe de ser objetiva ou universal porque, ao se basear na experincia exclusiva dos homens,
situando-os no centro e como medida de todas as coisas relativas aos seres humanos, ignora a
71
metade da humanidade correspondente s mulheres. Essa perspectiva tem estreita relao com
a crtica que se faz aqui suposta incluso das questes de gnero no debate sobre identidade,
self e estigmatizao em Goffman. na histria das mulheres que esto reveladas as
diferenas sociais que tm repercusso direta sobre os atributos identitrios femininos e sobre
a forma como o self feminino formado, dentro das relaes de poder que marcam,
historicamente, a ordenao da vida social.
Na mesma esteira do pensamento de Perrot, porm, Bock pondera que nas ltimas
duas dcadas essa situao tem mudado e as mulheres vm ganhando mais visibilidade, em
dois importantes aspectos: a sua sujeio e a sua subjetividade, porque as mulheres no so
apenas vtimas, mas tambm so sujeitos activos na construo de suas prprias vidas,
sociedade e histria (BOCK, 2008, p. 78). Isso significa que as mulheres passam a
protagonizar os processos de construo de suas identidades, sobretudo no momento em que
direcionam, a partir das lutas por reconhecimento, a interpretao de sua condio na vida
contempornea, buscando ultrapassar as desigualdades de gnero, que ainda exercem forte
influncia na representao das identidades femininas.
Essa maior visibilidade das mulheres nos relatos histricos tem desdobramentos na
forma como a prpria produo terica avana e se aprofunda nas questes de gnero, com
especial ateno s lutas histricas das mulheres, que deram origem tanto aos movimentos
feministas quanto composio de campos de saber voltados para essa temtica. Franois
Collin (2008) analisa o termo estudos feministas a partir de trs hipteses: pelo seu sujeito,
pelo seu objeto e pelo parmetro cientfico. Entende que a hiptese do sujeito pensado
atravs de uma perspectiva naturalista, em que h uma ruptura epistemolgica com o modo de
racionalidade masculino, ou scio-histrica , uma expresso do empirismo, revelando uma
concepo positivista na elaborao histrica: A razo una, mas o seu uso no saber
masculino foi pervertido pela posio de poder que ocupam os homens, provocando uma
cegueira que a prtica terica, das mulheres, viria reparar (COLLIN, 2008, p. 36).
Por isso, possvel afirmar, tal como j ressaltava Beauvoir em 1940 (2002a), que,
embora a querela do feminismo j tenha sido enfrentada atravs de muitos debates, as
questes inerentes condio social das mulheres no est resolvida. Um dos sintomas dessa
realidade est no fato de ainda se identificar a mulher como correspondente a todas as
mulheres. Essa forma de identificao no adequada, justamente por fechar os olhos para a
pluralidade de situaes fticas e culturais que esto nos arredores das vivncias das mulheres
em todo o mundo. preciso dar visibilidade a muitas situaes peculiares de mulheres que
nada tm em comum com as europeias brancas de classe mdia, cujos problemas tendem a ser
tomados como parmetro para as questes feministas.
Por isso, a compreenso da fora dos valores nas sociedades ganha relevo para a
demarcao da identidade feminina, a partir dos elementos identitrios que esto no cerne da
construo do self feminino, no contexto das relaes sociais sexuadas e, portanto,
caracterizadas como relaes de poder.
As discusses sobre identidade tm tomado um espao cada vez maior na teoria social
contempornea, sobretudo no contexto de tenso entre modernidade e ps-modernidade, no
qual se inserem as novas reflexes sobre globalizao e multiculturalismo que, por sua vez,
abrem espao para um intenso debate acerca da subjetividade. dentro desse panorama que
se situa a questo da identidade feminina. Que representaes culturais e histricas norteiam
essa concepo? possvel afirmar que existem caractersticas identitrias das mulheres no
mundo de hoje? Essas caractersticas so rgidas ou podem ser consideradas fluidas,
indeterminadas? Que paradigmas identificam as mulheres atualmente?
Tal como Hall, Kathryn Woodward (2002) est atenta para as discusses sobre a
existncia dessa crise de identidade, tpica da vida contempornea e da globalizao, que
enseja uma importante transformao das relaes sociais, tendo em vista a interao entre
fatores econmicos e culturais, com mudanas nos padres de produo e consumo,
produtores de identidades novas e globalizadas. Para Woodward, porm, a globalizao
produz resultados distintos em termos de identidade, j que a homogeneidade cultural
proporcionada pelo mercado global tanto pode ensejar uma resistncia que venha a fortalecer
e reafirmar algumas identidades, como levar ao surgimento de novas posies de identidade
(WOODWARD, 2002, p. 21).
Segundo Hall, vivemos, atualmente, o declnio das velhas identidades, que durante
muito tempo concederam estabilidade ao mundo social. Consequentemente, surgem novas
identidades, que revelam a fragmentao do indivduo moderno, at ento tomado como um
sujeito unificado, por influncias das concepes iluministas. Essa crise da identidade faz
parte de um processo mais amplo de mudana, que est deslocando as estruturas e os
processos centrais de sociedades modernas e abalando os quadros de referncia que davam
aos indivduos uma ancoragem estvel no mundo social (HALL, 2004, p. 7). Por isso, toda a
reflexo de Hall est articulada com uma anlise sobre os processos de transformao pelos
quais passam os sujeitos na histria recente, a partir de mudanas ocorridas no contexto das
classes, do gnero, da sexualidade, da etnia, raa, nacionalidade etc. Essas transformaes,
porm, vislumbradas num nvel macrossociolgico, resultariam de mudanas na prpria
modernidade, com a ruptura de concepes essencialistas ou fixas de identidade, que h muito
tempo fundamentaram aquilo que seria considerado a essncia dos seres humanos.
histria humana, no suficiente afirmar, como o faz Hall, que houve uma transio de um
sujeito do Iluminismo que se desloca para um sujeito sociolgico, at chegar a um sujeito
ps-moderno, interligado cultura como fonte de demarcao dos processos histricos que
definem as identidades. A fluidez proposta por uma perspectiva ps-moderna, como a de Hall,
no d conta da permanncia do masculino e do feminino como parmetros para arranjos da
vida social, a partir dos papis de homens e mulheres na dinmica cotidiana da vida. Mais do
que postular uma identidade fragmentada com base em mudanas sociais, subjaz ao
pensamento feminista ps-moderno a ideia de que o modelo iluminista nunca foi suficiente
para lidar com a identidade. Muito embora uma importante dimenso ps-moderna do
pensamento feminista tome a masculinidade e a feminilidade como performance, de modo a
colocar a fluidez da subjetividade como marca do contemporneo, essa perspectiva no
corresponde realidade de mulheres que ainda vivem sob a gide das desigualdades de
gnero que norteiam as vivncias cotidianas.
Isso resultaria das prprias necessidades da cultura, como consequncia das mudanas
estruturais e institucionais. O prprio processo de identificao, atravs do qual nos
projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisrio, varivel e
problemtico (HALL, 2004, p. 12). A fluidez que marca a ideia de um sujeito ps-moderno
seria a justificativa para a pluralidade identitria dos sujeitos, que rompe com a noo
essencialista de subjetividade. No haveria, assim, uma essncia fixa que caracterize os
sujeitos, mas sim identidades diferentes, no unificadas e no necessariamente coerentes entre
si.
Mais uma vez essa perspectiva parece distanciar-se das questes de gnero que esto
na centralidade da ordenao da vida social contempornea, paralelas a elementos analticos
de raa e classe. Da ideia de um sujeito fluido, plural e contingente ps-moderno, na
linguagem de Hall no se infere que vivemos hoje a ps-modernidade em sua plenitude, j
que muitas das referncias cartesianas, tpicas do pensamento moderno, que demarcam
dicotomias como bem/mal, sagrado/profano, masculino/feminino, razo/emoo, entre outras
tantas, ainda permanecem como parmetros para a ordenao da vida social, seja atravs de
normas de natureza moral, seja nas normas jurdicas. No se pode negar que testemunhamos
importantes transformaes subjetivas que apontam para a ruptura com aquele sujeito
centrado e unvoco presente no Iluminismo. Isso , inclusive, um dos pilares do pensamento
feminista contemporneo, na suas mais diversas manifestaes, que buscam ir alm de um
conceito de mulher como ser unificado, para contemplar as situaes peculiares das
mulheres no mundo, alm das expresses mais contemporneas da sexualidade, que tendem a
mitigar a fixidez da dicotomia masculino/feminino. Porm, isso no suficiente para se
afirmar que, nas relaes sociais contemporneas, homens e mulheres j no so mais
tomados a partir da dicotomia masculino/feminino, ou seja, que a fluidez subjetiva descentrou
completamente esses parmetros historicamente compostos.
Woodward (2009) tambm lana luzes sobre a questo da identidade feminina, dentro
do contexto das discusses sobre identidade e subjetividade. Muito embora seu propsito no
seja o de apresentar um estudo sobre identidade feminina, a dimenso de gnero aparece
como consequncia da anlise que faz sobre identidade e diferena atravs da mediao da
cultura. A primeira importante constatao de Woodward, herana das clssicas discusses de
78
gnero, a afirmao de que a histria mostra que a identidade relacional, ou seja, que para
existir, ela depende de algo fora dela e que, portanto, dela se diferencia. Essa perspectiva
tambm est presente no pensamento de Joan Scott (1995), para quem esse carter relacional
da composio da identidade feminina est revelado na prpria ideia de gnero, inicialmente
debatido entre as feministas americanas, que queriam enfatizar o carter fundamentalmente
social das distines baseadas no sexo (SCOTT, 1995, p. 72). Com a expresso gnero
procura-se enfatizar como as definies normativas de feminilidade donde advm a
identidade so estabelecidas de forma relacional, definindo mulheres e homens em termos
recprocos, a partir de suas diferenas, que tambm contemplam variveis como raa e classe
como fatores externos que influenciam na demarcao da identidade feminina.
nessa perspectiva que Woodward afirma que a identidade , assim, marcada pela
diferena (WOODWARD, 2002, p. 9). Essa diferena seria estabelecida por uma marcao
simblica, que aparece como o meio atravs do qual atribumos sentido a prticas e relaes
sociais, estabelecendo, por exemplo, quem excludo e quem includo, de modo a apontar
para diferenciaes vivenciadas nas relaes sociais. Essa marcao seria relativa a outras
identidades e estaria vinculada a condies sociais e materiais, tal como acontece nas relaes
de gnero, em que a dominao masculina, historicamente forjada, determina lugares e papis
desempenhados por mulheres e homens na vida social. Tais papis seriam, portanto, os
elementos identitrios dos sujeitos. Atenta s diferenas biolgicas entre homens e mulheres
como fatores de delineamento das identidades de gnero, Scott entende que como sistemas de
significado, as identidades subjetivas so processos de diferenciao e de distino, que
exigem a supresso de ambigidades e de elementos de oposio, a fim de assegurar (criar a
iluso de) uma coerncia e (de) uma compreenso comum (SCOTT, 1995, p. 82).
Para Tadeu Tomaz da Silva, as afirmaes sobre diferena tambm dependem de uma
cadeia, em geral oculta, de declaraes negativas sobre (outras) identidades (SILVA, 2002,
p. 75). Identidade e diferena seriam, portanto, inseparveis, pois a diferena torna-se um
produto da identidade, sendo a segunda a identidade a referncia do que se estabelece
como o diferente. Isso reflete a tendncia a tomar aquilo que somos como sendo a norma
pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que no somos (SILVA, 2002, p. 76). Essa
postura dominante estaria no cerne da ordenao sexual das sociedades, historicamente
pautadas pela perspectiva masculina na atribuio de papis para mulheres e homens. No
contexto de sistemas duais de classificao que se encontram as diferenas entre masculino
e feminino ou entre homens e mulheres, constituindo os homens como referncia identitria
79
Isso revela que a identificao das pessoas com suas respectivas identidades no
totalmente livre. Ao contrrio, sofre todas as influncias da cultura e das relaes de poder
que esto na centralidade da ordenao da vida social. Para Silva (2002), a normalizao
um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da
diferena (SILVA, 2002, p. 83). Isso porque a normalizao implica a escolha de valores
como parmetros em relao aos quais as demais identidades so avaliadas e hierarquizadas,
de modo que as demais identidades tendem a tomar um significado negativo, j que
significam aquilo que ela a identidade-padro no .
Um dos vieses de anlise para esse questionamento est na ideia de que h uma
estreita relao entre identidade e representao, diretamente ligada relao entre cultura e
significado. Para Woodward, s podemos compreender os significados envolvidos nesses
sistemas se tivermos alguma ideia sobre quais posies-de-sujeito eles produzem e como ns,
80
como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior (WOODWARD, 2002, p. 17). Essa
perspectiva se aproxima do olhar de Goffman sobre as definies de situao, ou seja, o
sentido dado ao contexto vivido (GOFFMAN, 2003a). No entanto, h algumas diferenas
entre eles. A ideia de posio de sujeito implica certa sobredeterminao dos elementos
situacionais em detrimento da agncia. J a definio de situao traz o elemento subjetivo de
maneira muito mais forte porque sugere que uma mesma posio pode ser interpretada de
diferentes formas, dependendo dos elementos subjetivos que esto presentes na avaliao do
sujeito. O que parece ser um entrave nas abordagens ps-modernas a dificuldade em se lidar
com uma concepo de self que sugere autonomia (agncia), j que esta sempre identificada
com o Iluminismo, com a racionalidade e, portanto, com as diversas concepes que
justificaram a dominao masculina.
campo simblico que ordena a vida social, estabelecendo os padres normativos que
minimizam incoerncias e conflitos no convvio social, mas tambm, conforme Goffman
(2003a), atuar no sentido de expressar essas posies identitrias, num processo contnuo de
formao da autoidentidade, o self. Essa percepo goffmaniana, em certa medida, explica o
movimento contnuo e interacional de formao da identidade, mas ao ignorar os aspectos
histrico-socias e, portanto, valorativos que esto presentes nas relaes de gnero, no pe
em relevo as vicissitudes do processo contnuo de formao do self, j manipulado e
mortificado por fora da prpria histria.
Ocorre que a vida contempornea marcada pela diversidade de posies que ensejam
diferentes papis para mulheres e homens, como mes, pais, profissionais, por exemplo. Esses
elementos identitrios, porm, no so fixos, j que pressupem o olhar do outro, ou seja, a
informao que transmitimos e a informao que emitimos, demarcando, assim, nossa
identidade (GOFFMAN, 2004). As transformaes vivenciadas nas relaes cotidianas na
esfera familiar e nas relaes afetivas esto contextualizadas em mudanas sociais e
histricas, com reflexos no mercado de trabalho e nos padres de emprego. So mudanas que
82
A prpria sada da mulher dos espaos domsticos para o mundo do trabalho e para a
esfera poltica no foi algo pacificamente acordado no tecido social; ao contrrio, resultou de
diversas rupturas a tradies seculares, sendo interpretada, por um lado, como uma conquista
do universo feminino e, por outro, como o motivo da desestruturao da famlia
83
Para Perrot, as mulheres sempre trabalham. Seu trabalho era da ordem do domstico,
da reproduo, no valorizado, no remunerado. As sociedades jamais poderiam ter vivido,
ter-se reproduzido e desenvolvido sem o trabalho domstico das mulheres, que invisvel
(PERROT, 2007, p. 109). A invisibilidade do trabalho feminino, notadamente domstico, est
na sua prpria repetitividade cotidiana: no preparo da comida, no trato com a roupa, no
cuidado do lar. trabalho invisvel e no reconhecido. Dessa realidade para o trabalho
externo, assalariado, fruto da industrializao, h um enorme salto histrico, que suscitou
muitos questionamentos: As mulheres podem, devem, ter acesso ao salrio, isto , receber
uma remunerao individual, deixando a casa, o lar, que era seu ponto de apoio e sua
utilidade? (PERROT, 2007, p. 109). Em outras palavras, permitir uma nova forma de
atuao feminina a profissional no seria retir-la do trabalho domstico, papel basilar,
outra expressiva fonte de identidade feminina?
Helena Hirata (2003), ao revisitar o tema da diviso sexual do trabalho, reafirma que
a diviso sexual do trabalho est no mago do poder que os homens exercem sobre as
mulheres (HIRATA, 2003, p. 114). Porm, reconhece que nem tudo o que diz respeito
diviso entre os sexos dominao. No se pode negar que a entrada das mulheres no
mercado de trabalho proporcionou uma importante ampliao de seus horizontes polticos,
notadamente atravs do engajamento em movimentos sindicais e na luta pelo reconhecimento
de direitos, em especial da igualdade jurdica.
Isso tem a ver com a questo da identidade de ex-presidirias, que parece contraditria
diante dos papis por elas desempenhados cotidianamente, de natureza positiva, como os de
mes, esposas, profissionais. Essa incompatibilidade no est necessariamente inscrita nos
sujeitos que ostentam essas identidades, mas nas representaes de padres identitrios que
estabelecem os parmetros para a normalidade, atravs das classificaes simblicas. H,
portanto, uma estreita relao entre o social e o simblico, j que toda prtica social
simbolicamente marcada. Por isso, a questo da identidade das ex-presidirias tem
desdobramentos importantes na esfera das relaes afetivas e no mercado de trabalho, espaos
em que elementos identitrios femininos so levados em considerao para a definio de
papis e status sociais.
Ao tratar da condio das mulheres na vida contempornea, Perrot admite haver certa
angstia identitria que recai sobre as mulheres nas relaes entre os sexos, j que a ordem
hierrquica dos sexos, historicamente delineada, , ainda hoje, uma caracterstica dos cenrios
sociais. Por isso, afirma que a hierarquia dos sexos est longe de ser dissolvida (PERROT,
2007, p. 169). Essa afirmao de Perrot retoma a problemtica apresentada por Beauvoir
sobre a permanncia da querela do feminismo nos dias de hoje. Se, tal como afirma Goffman
(2003a), as identidades so imagens projetadas na vida cotidiana, dentro das interaes sociais
permeadas por representaes, a composio das identidades femininas, estreitamente ligadas
aos papis desempenhados nas prticas sociais, ainda serve como parmetro para a ordenao
da vida social, revelando a sujeio do feminino aos valores androcntricos das sociedades
contemporneas.
J foi dito que o conceito de self, em Goffman, est intimamente relacionado ideia de
processo contnuo de construo das identidades e pressupe a agncia dos sujeitos nas
interaes sociais cotidianas, dentro das quais se compem as representaes sobre a
identidade. Apresentada de forma abstrata, essa concepo parece alcanar todas as
86
Foi na dcada de 1960 que surgiram os primeiros lampejos da histria das mulheres,
na Gr-Bretanha, nos Estados Unidos e, depois, na Frana, influenciados por trs fatores
interligados: cientficos, sociolgicos e polticos. Como fatores cientficos, Perrot identifica a
proeminncia da subjetividade, resultado da renovao dos sistemas de pensamento, at ento
muito ligados s perspectivas estruturalistas. Nesse contexto, surge a redescoberta da famlia e
da dimenso sexuada dos comportamentos. Os fatores sociolgicos estariam ligados a uma
87
preciso reconhecer que, embora mudanas na histria e nos relatos sobre as mulheres
sejam muito ntidas hoje, isso no significa que o legado histrico de silncios e omisses
sobre a histria feminina tenha sido apagado ou se tornou insignificante. Ao contrrio, ainda
hoje a dinmica da organizao da vida social, em todo o mundo, reproduz certos modelos
pautados por uma viso de mundo androcntrica, fundada na dicotomia masculino/feminino,
repercutindo no somente na esfera privada, mas na forma como a ordem social moral e
jurdica se estabelece.
Se a histria que ainda hoje tomada como parmetro para a ordenao da vida social
aquela contada pelos homens, no se pode negar que ainda persistem situaes de
invisibilidade feminina que desembocam na demarcao das prprias identidades das
mulheres. Esse aspecto histrico-poltico, que tem desdobramentos at os dias de hoje, no
afasta as experincias pessoais cotidianas das mulheres, no contexto de suas histrias de vida,
como fontes de mortificao do self. Para alm do que vivenciado no contexto das
desigualdades de gnero que delineiam a dinmica das prticas sociais e, portanto as
macrorrelaes de poder, tambm no campo da subjetividade, permeado pelas peculiaridades
das histrias de vida de cada mulher, h diversas expresses da mortificao do self, presentes
nas interaes cotidianas, atravs de prticas de negao, humilhao e estigmatizao
feminina. Assim, nas interaes cotidianas, onde a vida social humana se reproduz, a herana
de tradies histricas repercute constantemente, de modo que at mesmo os fatos isolados,
ocorridos no contexto de interaes personalssimas, como as relaes afetivas e as relaes
profissionais, tendem a ser influenciados pela carga de valores que determinam socialmente
os lugares e os papis de homens e mulheres, a partir de parmetros androcntricos
aparentemente ultrapassados, mas que, na realidade, permanecem vigentes nas prticas
sociais.
(GOFFMAN, 2003b, p. 24), devem ser pensadas a partir dos parmetros histricos de
construo da identidade feminina, com todas as vicissitudes da vivncia das mulheres,
mesmo na vida contempornea. So essas marcas histricas que atingem os processos
contnuos de construo da identidade feminina, permeadas pelas desigualdades sociais que
marcam as relaes de gnero.
Para tanto, Fraser prope uma viso bifocal de gnero, ou seja, um olhar tanto
relacionado a classe como ligado a status, reconhecendo que somente juntas essas
perspectivas possibilitam uma compreenso plena das duas importantes dimenses: da
90
A partir da ideia de gnero como uma categoria bidimensional, Fraser identifica que os
padres androcntricos tendem a ser institucionalizados e aponta como expresses dessa
tendncia, entre outras, as codificaes na rea do Direito Criminal e nas polticas
governamentais, que se infiltram na cultura popular e nas interaes cotidianas. Como
consequncia, as mulheres sofrem formas especficas de subordinao de status, expressas,
entre outros aspectos, atravs da excluso ou marginalizao nas esferas pblicas e
deliberativas, e, finalmente, negao de seus plenos direitos e proteo igualitria como
cidads (FRASER, 2002, p. 65). Isso sintetiza as injustias de gnero provocadas pelo
reconhecimento equivocado, que no podem ser solucionadas somente pela distribuio, mas
tambm atravs de medidas de reconhecimento.
devem ser substitudos por outros valores que deem suporte paridade. Para Fraser, tudo isso
representa uma questo poltica-chave de nossos dias (FRASER, 2002, p. 77).
Abordando a dicotomia igualdade versus diferena, Bock afirma que os estudos sobre
mulheres faziam uso dos conceitos de igualdade sexual ou igualdade de gnero como
instrumento de anlise, negligenciado a diferena psicolgica por ser comumente utilizada
como justificativa para o tratamento discriminatrio das mulheres. Buscou-se, ento, exigir
igual tratamento para mulheres e homens, formulando leis em termos de neutralidade
relativamente a gnero, o que, desta forma, elimina a diferena sexual, transformando a
masculinidade e a feminilidade em questes politicamente irrelevantes (BOCK, 2008, p. 88).
Nesse debate surgem, ento, dois dilemas: o da diferena, comumente utilizado para
confirmar a inferioridade das mulheres em relao aos homens, e o da igualdade, utilizado,
por sua vez, para apagar as diferenas de gnero, levando as mulheres a serem absorvidas
pelas normas sociais masculinas. Da a importncia de se questionar a prpria dicotomia,
atravs da anlise da construo sexista da diferena e da igualdade. Nesse sentido, Bock
identifica como razo para que a nfase na igualdade seja to frequentemente a nica
estratgia de libertao das mulheres o fato de que, desde os tempos da polis grega, os
movimentos democrticos e socialistas terem perseguido a bandeira da igualdade como sendo
um dos seus objetivos, o que demonstra que esse conceito igualdade , alem de uma
herana do pensamento poltico ocidental, um dos seus conceitos mais bem estabelecidos.
Assim, a liberdade, a justia e o respeito mtuos representariam o reconhecimento tanto da
diferena como da igualdade, dentro do contexto da tolerncia, considerada outra importante
herana (BOCK, 2008, p. 92).
em tese, um patamar ideal de igualdade. No entanto, essa concepo feminista liberal foi
desafiada por aquelas que passaram a questionar o significado e a natureza de tal igualdade,
de modo que os clamores de outrora passaram a ser considerados ingnuos, embora tivessem
importante significado como ponto de partida para as lutas polticas nas prticas da justia
criminal. As contribuies feministas, uma vez amadurecidas, transformaram-se, ento, em
uma severa crtica ao sistema de justia criminal.
A questo penitenciria, que est na centralidade deste estudo, no isolada. Ela est
inserida no contexto mais amplo do prprio sistema de justia criminal, que fecha os olhos
para a condio das mulheres, desde a prpria legislao. Por isso, as discusses tericas que
fundamentam o tema das mulheres libertas do crcere no se limitam ao reconhecimento de
que h um problema de gnero resultante das concepes androcntricas culturalmente
cunhadas ao longo da histria. Essas discusses devem dar suporte compreenso dos
mecanismos atravs dos quais o sistema legal e as polticas pblicas dele resultantes
tratam a questo feminina.
Da a importncia das reflexes de Fraser, que prope um novo olhar sobre o sentido
da igualdade entre homens e mulheres na esfera dos direitos e, portanto, das polticas
pblicas. Quando tratamos de polticas de identidade feminina, preciso compreender como
os elementos identitrios devem ser levados em conta durante a execuo da pena, para que
permanncias e rupturas possam ser avaliadas nos mecanismos de reintegrao social.
fundamental que o Estado reconhea onde esto situadas essas diferenas de gnero e,
portanto, as peculiaridades femininas que surtem efeitos diretos no ps-crcere, momento em
que as mulheres buscam resgatar suas relaes sociais e encontram como barreiras no apenas
as transformaes de natureza subjetiva e, portanto, identitria, sofridas por elas, mas tambm
93
a estigmatizao que se revela no olhar dos outros com quem volta ou passa a conviver
quando do retorno liberdade.
Caminhos trilhados
Este estudo tem por objeto as experincias femininas no ps-crcere e sua relao com
os processos de mortificao dos self vivenciados durante o perodo de encarceramento. O
problema central, que orientou a pesquisa de campo, consiste no fato de que o retorno das
mulheres ao convvio social aps a experincia na priso tende a ser negligenciado pelas
polticas pblicas penitencirias, como se a priso fosse a ltima das intervenes do sistema
de justia penal, ignorando-se as transformaes de natureza subjetiva sofridas por aquelas
que cumprem pena privativa de liberdade e as repercusses disso na vida ps-crcere.
A pesquisa de campo teve por objetivo buscar respostas aos questionamentos centrais
da tese, atravs dos relatos das histrias de vida de mulheres que cumpriram pena privativa de
liberdade no Estabelecimento Prisional Feminino Santa Luzia, em Macei, interpretados luz
de outros elementos de anlise verificados no apenas na legislao brasileira, mas sobretudo
nas estruturas do sistema penitencirio alagoano.
O sistema penitencirio foi parte fundamental da pesquisa. Ali pude coletar os dados
das mulheres que compuseram o objeto de estudo, alm de entrevistar as reincidentes presas,
autoridades e gestores envolvidos com o processo de reintegrao social.
Por outro lado, tambm foi fundamental a observao nos espaos fora da priso. Os
ambientes domsticos e suas peculiaridades, alm dos ambientes profissionais, a maneira
como se apresentam as entrevistadas e as formas de interao delas com pessoas da famlia
98
Por isso, nos muitos locais onde coletei os dados aqui trabalhados, fiz uso da
observao livre, no participante, registrando as singularidades do ambiente e dos sujeitos,
alm dos procedimentos cotidianos. Isso tanto colaborou para a compreenso da realidade
estudada, como teve importante impacto na forma como a pesquisa foi desenvolvida. A minha
presena, como pesquisadora, nos lugares onde foram coletados os dados, agregada prpria
temtica estudada, implicou interao constante com diversos sujeitos que, direta ou
indiretamente, esto relacionados ao sistema penitencirio, a exemplo de integrantes e
servidores da justia criminal, gestores, agentes e servidores do sistema penitencirio, alm de
presas e presos. Essa interao tambm foi mediada pela observao, seja dentro do espao
penitencirio ou fora dele, contribuindo para a identificao de fatos e circunstncias que
revelaram elementos analticos ligados questo da identidade e do self femininos.
A anlise documental foi a primeira etapa para a coleta de dados e para a definio do
corpus de anlise. Ela consistiu, primeiramente, na investigao em documentos relacionados
ao sistema penitencirio alagoano desde a legislao local at convnios firmados com
instituies parceiras da IGESP e de pronturios e processos das mulheres libertas do
crcere, onde pude coletar dados que permitiram, primeiramente, a seleo daquelas que
contribuiriam para o estudo.
Em 2002, houve uma grande rebelio no ento Presdio So Leonardo, onde ficava
situado o setor de arquivamento de pronturios de todo o sistema penitencirio alagoano
(masculino e feminino). Nessa rebelio, a maioria dos pronturios foi queimada, perdendo-se
grande parte da memria das unidades penitencirias. Restaram intactos, apenas, alguns
exemplares mais antigos, referentes ao intervalo entre a dcada de 1980 e o ano de 2002.
Somente a partir de 2003 que os pronturios esto arquivados na ntegra, mesmo assim
99
misturados, j que organizados por ordem alfabtica at o ano de 2007. Desde 2008, a forma
de arquivamento passou a utilizar o ano de sada como critrio de separao, o que deixou
tudo mais ordenado.
14
O formulrio utilizado para a pesquisa se encontra no anexo A.
100
Os dados dos pronturios das mulheres em liberdade foram coletados na Diretoria das
Unidades Prisionais (DUP), rgo da IGESP, responsvel, entre outras coisas, pela
identificao e cadastramento de presos/as oriundos das delegacias e pelo arquivamento dos
pronturios de homens e mulheres libertos do crcere.
Atravs das pginas amarelecidas dos pronturios antigos e das pginas brancas
daqueles mais recentes, pude conhecer um pouco da histria de cada mulher que um dia
passou pelo sistema penitencirio alagoano. Os pronturios, preenchidos mo pelos
funcionrios do antigo Departamento do Sistema Penitencirio (DESIPE) atual DUP ,
101
Os dados sobre as reincidentes presas foram coletados no presdio Santa Luzia, pois
eram considerados pronturios ativos. Analisei, ento, todos os pronturios referentes a
mulheres apenadas que ganharam a liberdade (seja em livramento condicional, em progresso
de regime ou pelo trmino de cumprimento da pena) e reincidiram em crimes.
102
Por tudo isso, a insero das reincidentes presas na amostra seria importante para o
estudo dos processos de mortificao do self durante o cumprimento da pena e estigmatizao
na vida em liberdade.
A coleta de dados nos pronturios e processos durou cerca de dois meses (maio e
junho de 2009). A partir das informaes nos pronturios e nos processos, passei a definir a
amostra estudada.
Com o universo das mulheres condenadas em mos, passei a analisar quem seriam
aquelas que contribuiriam com suas histrias de vida para a pesquisa, permitindo uma
compreenso mais aprofundada dos processos de mortificao do self vivenciados no crcere
e de estigmatizao no ps-crcere.
Varas Criminais de Execuo Penal. Como essas mulheres, seja por liberdade condicional ou
por progresso de regime, so obrigadas por lei a se apresentar mensalmente em Juzo at o
trmino da pena, pensei na 11 e na 16 Varas como espaos fundamentais para esse primeiro
contato.
Esse primeiro dia de buscas me marcou de tal maneira que pensei at em mudar o
objeto de estudo, concentrando-me apenas nas reincidentes presas, caso no encontrasse essas
mulheres. Como o Estado poderia perder o contato com essas pessoas? Como possvel no
acompanhar algum que passou anos dentro de uma priso, sob a mo forte do Estado e,
agora, desaparece completamente da vista do sistema de justia?
Algo que eu no havia pensado antes contou em meu favor na busca pelas mulheres:
elas compem uma rede de amizade, firmada dentro da priso, de modo que, depois do
retorno liberdade, elas continuam a se comunicar e a se encontrar. Consegui endereos e
telefones com elas e peguei informaes sobre aquelas que estavam em cidades do interior ou
mesmo fora do estado de Alagoas, alm das que haviam sido assassinadas quando do retorno
liberdade.
106
Essa descoberta foi fundamental para que eu pudesse estabelecer contato com as
mulheres em liberdade, mas tambm contribuiu para a redefinio da amostragem. Como s
consegui contato com seis das mulheres que constavam da minha lista de 43 mulheres (sendo
trs em liberdade e trs reincidentes presas), retirei alguns nomes da lista inicial e outros
foram includos. Isso se deu tambm porque, nas instituies conveniadas com a IGESP para
a contratao de pessoas libertas do crcere, encontrei mulheres que, inicialmente, no
estavam na minha lista de libertas entre 2005 e 2006, mas que poderiam contribuir,
igualmente, com suas histrias de vida.
Ainda fiz outras tentativas de busca por mulheres que constavam da lista inicial, nas
demais reas da cidade de Macei, mas no as encontrei nos endereos indicados. Diante de
todas essas circunstncias, resultantes da natureza peculiar dos sujeitos estudados, que
desaparecem dos olhos do Estado, dificultando o contato pessoal, ajustes metodolgicos se
fizeram fundamentais para a definio da amostra final, ou seja, para a definio de quais as
mulheres cujas histrias de vida seriam trabalhadas na pesquisa.
Isso tanto permitiu descartar o critrio temporal (mulheres libertas entre 2005 e 2006),
quanto proporcionou o contato com mulheres que haviam sado h mais tempo ou h menos
tempo que aquelas anteriormente definidas, enriquecendo, inclusive, a amostra, que se
concentrava, a partir de ento, no aspecto qualitativo, que conduziria investigao
aprofundada dos processos de mortificao do self e estigmatizao vivenciados por essas
mulheres.
107
Por outro lado, nem todas as entrevistadas presas com uma segunda ou terceira entrada
no presdio compuseram o grupo analisado neste estudo. Isso se deu pelo fato de que, embora
aquela no fosse a primeira priso, no se tratava, tecnicamente, de reincidentes, mas de
mulheres que foram presas provisoriamente e liberadas por fora de arquivamento do
processo, habeas corpus, revogao da priso preventiva, liberdade provisria com ou sem
fiana, revogao da priso em flagrante, condenao ao regime semiaberto e aberto ou
absolvio. Por isso, entre as nove reincidentes, somente cinco estavam dentro dos critrios de
seleo dos sujeitos pesquisados. No caso das reincidentes, tambm foi utilizada a tcnica da
amostragem em bola de neve, pois havia outras reincidentes no constantes da lista primria e
que foram contempladas na pesquisa.
A opo pela nfase num estudo qualitativo harmonizado com a anlise de dados de
natureza quantitativa impe o envolvimento historicizado do/a pesquisador/a, a partir de
parmetros tericos que guiem as tcnicas de coleta de dados, as observaes de campo, a
anlise documental e a anlise de contedo, tudo isso permeado por percepes crticas,
proporcionando a maturao da pesquisa e a formulao de concluses que expressem o
110
refinamento subjetivo do/a pesquisador/a. Essa perspectiva foi o norte para a conduo dos
trabalhos de campo.
ajudassem a interpretar os sentidos inerentes aos seus relatos. Por isso as histrias de vida,
obtidas atravs de diversas entrevistas e associadas ao uso da observao livre, compuseram o
ncleo da dimenso qualitativa da pesquisa realizada, proporcionando o contato com fatos e
circunstncias ligados mortificao do self e estigmatizao.
A histria de vida uma tcnica de pesquisa que consiste em captar elementos das
vivncias dos sujeitos que possam ser trabalhados, qualitativamente, de modo a proporcionar
a anlise de fatos e circunstncias, de acordo com os referenciais tericos que fundamentam a
pesquisa. Ela tanto se afigura como tcnica de captao de dados, como documento prprio,
complementando-se, de modo a proporcionar a anlise de contedo.
No caso deste estudo, a utilizao das histrias de vida como documento foi
fundamental porque permitiu unir experincias das mulheres antes da priso que esto
presentes nos delineamentos de suas identidades (infncia, juventude, famlia, estudo,
trabalho, entre outras), situaes vivenciadas no crcere que configuram a mortificao do
self, outras relacionadas aos processos de estigmatizao que marcam o ps-crcere e, ainda,
as que sugerem os processos de reconstruo do self.
Haguette (2003, p. 82) fala da noo de processo como algo central na tcnica da
histria de vida. Ao se debruar sobre situaes e fatos que s podem ser compreendidos no
contexto mais amplo das vivncias dos sujeitos pesquisados, a histria de vida fornece uma
riqueza de detalhes sobre os processos de vivncia dos sujeitos, proporcionando, inclusive,
acesso s impresses dos prprios atores sociais sobre as situaes vividas. dessa noo de
processo que decorre a estreita relao entre essa tcnica e o presente estudo, que tem como
um de seus objetivos a anlise dos processos de mortificao do self feminino no crcere, algo
que pressupe reflexes e as percepes dos prprios sujeitos sobre si mesmo e suas relaes
sociais, na esfera afetiva e no mercado de trabalho, alm da anlise da estigmatizao vivida
no ps-crcere.
Os relatos orais das mulheres libertas do crcere, colhidos atravs das entrevistas,
foram centrais para as bases da reconstruo de suas histrias, mediadas pelas percepes
oriundas das experincias vivenciadas por elas antes da priso, durante o cumprimento da
pena e no ps-crcere.
Histria de vida e entrevista so coisas distintas, mas que podem ser utilizadas de
forma complementar, pois possvel buscar a reunio de fatos relacionados s histrias de
vida atravs de entrevista semiestruturada, cujo roteiro contemple aspectos de interesse para a
pesquisa realizada. Assim, a histria de vida composta no contexto da oralidade, mas no se
limita a ela, j que tambm recebe informaes outras que advenham das demais tcnicas de
pesquisa qualitativa.
Essa escolha metodolgica permitiu o contato com as falas dos prprios sujeitos
pesquisados, que foram gravadas com o devido consentimento das/os entrevistadas/os e
transcritas posteriormente, compondo o corpus de anlise, juntamente com os demais dados
coletados ao longo da pesquisa.
15
Todos os roteiros de entrevista se encontram no anexo B.
115
O local das entrevistas foi determinado por elas, de acordo com suas convenincias.
Algumas foram entrevistadas em casa notadamente aquelas que no trabalhavam fora e
desempenhavam apenas atividades domsticas. Uma delas, tambm desempregada, preferiu
conceder a entrevista na rua, no abrindo espao para que eu conhecesse a sua residncia.
Quando entrevistadas em suas casas ou na rua, as mulheres se encontravam sozinhas ou, no
mximo, acompanhadas por filhos pequenos.
Outras preferiram conceder entrevista no local de trabalho, o que foi importante para
que eu observasse a dinmica do local. Os poucos espaos que aceitam essas mulheres para o
trabalho notadamente as instituies conveniadas com a IGESP so dotados de
singularidades que no podem ser olvidadas, sobretudo porque revelam situaes e
117
anlise das comunicaes, sendo essas entendidas como contedos presentes tanto na mdia,
em discursos ou em relatos de histrias de vida, como no caso desta pesquisa. Para ela, o
analista de contedo como um arquelogo, que trabalha com vestgios, manipulando-os,
para inferir e chegar a concluses, por meio de processos interpretativos guiados por
indicativos construdos com base nas unidades de anlise escolhidas pelo/a pesquisador/a
(BARDIN, 2010).
elaborao das informaes coletadas no corpus de anlise seja bem claro, permitindo, por
sua vez, a identificao do contexto especfico da vivncia dos sujeitos que contribuem para o
estudo.
Essas esferas analticas, compostas de relaes sociais, esto diretamente ligadas aos
fatos e circunstncias que aparecem nas histrias de vida das mulheres libertas do crcere,
vivenciados de acordo com os ambientes por elas frequentados. Por isso, possuem grande
importncia para a compreenso e a interpretao das experincias na priso e no ps-crcere.
a) As relaes afetivas
Na esfera das relaes afetivas esto presentes todos os vnculos de afeto existentes
entre o sujeito e pessoas que compem suas redes de relaes cotidianas, notadamente famlia
e amigos. Em outras palavras, so pessoas que tm importncia para a definio do self, na
medida em que as relaes com elas estabelecidas aparecem como elementos identitrios dos
sujeitos. Assim como ressalta Meyers (2010), na composio do self feminino est presente a
demarcao de status e de papis sociais desempenhados nas relaes pessoais, como a
maternidade e o cuidado, que decorrem de questes biolgicas, sociais e polticas, definidoras
do lugar que as mulheres ocupam na ordenao social. Da a necessidade de se agregar
perspectiva goffmaniana do self as peculiaridades das relaes de gnero, perpassadas pelas
relaes de poder, que esto presentes nos espaos e instituies em que as interaes sociais
ocorrem, surtindo efeitos sobre a forma como o self feminino representado e constitudo.
A esfera das relaes afetivas, portanto, surge como uma importante unidade de
contexto, j que nesse campo esto presentes as relaes mais profundas e duradouras que
aparecem como elementos identitrios dos sujeitos. So relaes diretamente vinculadas aos
123
atributos de autoidentidade que fazem parte da representao dos self, de modo que a perda
desses vnculos significa uma das principais expresses da mortificao do self.
b) As relaes profissionais
Como ressalta Perrot (2007), sempre houve trabalho feminino, embora praticamente
invisvel, na ordem do domstico. Trata-se de um trabalho no valorizado e no remunerado,
presente na repetitividade cotidiana. A industrializao apontada como um marco histrico
para a entrada da mulher no mercado de trabalho, o que no significou o desligamento das
mulheres das tarefas tipicamente domsticas, acarretando a dupla ou tripla jornada de
trabalho, aliada precariedade do trabalho feminino. Assim, mesmo passando a ocupar
espaos no mundo do trabalho remunerado, o trabalho domstico no deixou de ser um
elemento identitrio feminino, sobretudo porque a baixa instruo das mulheres das classes
economicamente menos favorecidas tende a delimitar a atuao profissional feminina em
trabalhos remunerados que reproduzem atividades tipicamente domsticas, como as de
empregadas domsticas, babs, cozinheiras, arrumadeiras, entre outras cujo aprendizado se
deu no prprio lar. Por isso, a esfera profissional tambm aparece como um importante
elemento identitrio feminino, relevante para este estudo.
3.3.1.2.1. A pr-anlise
Assim, uma leitura prvia de todo o material coletado foi fundamental. Isso incluiu os
relatos das histrias de vida, j devidamente transcritos, que delinearam a amostra definitiva
das mulheres libertas do crcere, de acordo com os direcionamentos tericos da tese,
considerando, pela ltima vez, os critrios de excluso dos sujeitos que protagonizam a
pesquisa.
Ainda nessa fase, passei organizao dos dados socioeconmicos, dos dados
referentes ao crime praticado e pena cumprida, alm dos dados sobre estudo e trabalho no
crcere e no ps-crcere, organizando-os em forma de tabelas e grficos, de modo a
proporcionar a visualizao geral do grupo pesquisado. Esse perfil das mulheres, apresentado
no prximo captulo, foi acompanhado da interpretao dos dados, j que consiste em parte do
corpus de anlise.
Mais adiante, procedi ordenao das narrativas das histrias de vida das mulheres
libertas do crcere, enfatizando aspectos que diziam respeito ao objeto da tese. Essa liberdade
de manipulao das narrativas decorreu da prpria orientao terico-metodolgica da anlise
de contedo (BARDIN, 2010; FRANCO, 2008; GUERRA, 2010), acerca dos esforos do
pesquisador/a em interpretar os dados desde a fase inicial de coleta at o momento do
125
tratamento dos dados, permitindo sucessivos retornos e releituras de todas as informaes que
compreendem o corpus de anlise.
Por meio desse movimento reflexivo, de leitura e releitura das histrias de vida, e dos
dados documentais com amparo nas contribuies tericas de Goffman (2003a, 2003b e
2004), aliadas aos estudos de gnero que proporcionaram uma compreenso das questes
femininas ligadas identidade e ao self (BEAUVOIR, 2002a e 2002b; PERROT, 2007;
FRASER, 2002; MEYERS, 2010; SCOTT, 1990), pude demarcar as categorias analticas
centrais do estudo e seus respectivos indicativos.
Identidade feminina
Constituio do self
Mortificao do self
Estigmatizao
Reconstituio do self
categoria apareceu como basilar, sobretudo porque intrinsecamente ligada ideia de auto-
identidade que est no centro da definio de self feminino.
Por fim, a reconstituio do self aparece como a quinta categoria analtica. Ela est
diretamente ligada ao conceito de representao de Goffman (2003a), que compreende os
esforos dos sujeitos para transmitir mensagens sobre sua identidade, proporcionando sua
aceitao nos espaos de sociabilidade pelos quais passam. So, portanto, as tentativas de
recompor sua autoimagem diante dos outros, resgatando os antigos vnculos sociais ou
estabelecendo novas relaes.
Para cada uma dessas categorias analticas foram criados indicativos de categorias, que
contemplam aspectos relacionados s duas unidades de anlise demarcadas para este estudo:
as relaes afetivas e as relaes profissionais.
Maternidade
nfase no corpo/aparncia
Atividades de natureza domstica exercidas tanto na esfera privada quanto na esfera pblica
Nesse quadro foi apontado como primeiro indicativo de identidade feminina a relao
com a maternidade, que segundo Perrot (2007), est ligada ao aspecto biolgico da vivncia
humana, mas tambm tem uma importante repercusso na forma de ordenao poltica da
vida social. Em outras palavras, o corpo tem um importante papel, j que est diretamente
associado maternidade, forte referncia identitria das mulheres, mas a funo materna
como algo politizado e diretamente ligado reproduo social torna-se, por um lado, pilar da
sociedade e, por outro, parmetro de comportamento feminino, de forma a gerar expectativas
de conduta. Por isso, para alm da maternidade pensada na perspectiva biolgica, a ideia de
politizao da funo materna permite afirmar que ela no se restringe s mulheres que tm
filhos, mas compe um elemento identitrio de todas as mulheres, seja no sentido de negar,
seja de reafirmar tal centralidade socialmente atribuda. Alm disso, ao se inserir a
maternidade como elemento identitrio, leva-se em considerao a matrifocalidade como um
elemento identitrio feminino, sobretudo na classe mdia baixa, em que a pobreza, a incerteza
do ganho e o desemprego seriam cmplices predominantes, favorecendo a ocorrncia de
famlias centralizadas na figura da me, que tem na sua casa uma pea fundamental da
determinao da identidade feminina (SCOTT, 1990).
Esse indicativo se faz importante para a compreenso dos processos de mortificao do self
no espao carcerrio, uma vez que h limitaes expressas ao uso de certos adornos
tipicamente femininos, no presdio Santa Luzia, sobretudo aps a implantao do fardamento.
Isso tem reflexos no ltimo indicativo de identidade feminina, que aponta para a
questo das atividades de natureza domstica exercidas pelas mulheres de baixa escolaridade
que trabalham, seja na esfera privada ou na pblica.
da priso (o crime em si), ou a situao dos filhos muito pequenos, que j no reconhecem
aquela mulher como me.
Busca do resgate das relaes afetivas fragilizadas ou rompidas pela segregao social
Desejo de mudar
Resgate da autonomia
O prximo indicativo diz respeito ao apego a uma nova religio, cuja proximidade
pode ter acontecido no crcere ou no ps-crcere, surgindo como uma forma de agregar
valores que possibilitem a representao de novos elementos identitrios que permitam uma
maior aceitao nas interaes cotidianas.
O oitavo indicativo refere-se aos casos em que h uma grande lacuna afetiva no ps-
crcere, que impulsiona o apego famlia substituta ou entidade religiosa que d suporte
afetivo e emocional para as mulheres libertas do crcere.
133
16
Os ambientes ocupam um importante espao na compreenso dos processos de deteriorao da identidade, na
obra de Goffman, como foi mostrado no segundo captulo, j que situa os sujeitos no contexto das interaes
cotidianas, dentro de espaos e instituies.
135
No h postos de trabalho para todas as presas. Embora a LEP aponte o trabalho do/a
condenado/a como obrigao, nem todas tm ocupaes consideradas como trabalho e,
quando o fazem, desempenham servios de natureza domstica, para a limpeza das celas e do
prdio em geral, ou corte e costura, floricultura e pintura em tecido. Todas essas atividades
contam para fins de remio de pena, conforme a legislao brasileira, reduzindo-se um dia de
pena a cada trs dias trabalhados (Art. 126 da LEP).
As presas podem receber visitas duas vezes por semana, sendo permitida a entrada de
quatro pessoas em cada um desses dias, desde que anteriormente cadastradas. No h
momento nem local apropriado para a visita ntima, mas as poucas presas que recebem seus
companheiros acabam improvisando o momento de intimidade nas prprias celas, com o
respeito e a privacidade possveis para aquele ambiente. H muitas presas que no recebem
visitas, j que so moradoras de cidades do interior e, em alguns casos, at de outros estados,
o que dificulta a presena constante da famlia.
risco o cotidiano carcerrio. Essa revista mais um motivo para que muitos familiares no
visitem as mulheres presas. A visita, porm, um importante elemento de conexo das presas
com a famlia e amigos/as, de modo que a ausncia de visitantes, seja pela distncia ou pelos
constrangimentos da revista ntima, torna-se mais um fator de sofrimento na solido do
crcere.
Alguns fatos que presenciei no espao penitencirio trouxeram mais indagaes para
as minhas j numerosas inquietaes acadmicas. Em uma manh de entrevistas no presdio
Santa Luzia, tomei conhecimento de que, naquele dia, as mulheres passariam a usar a farda de
presidiria. Era janeiro do ano de 2010. Desde ento, nem mesmo nos dias festivos as
mulheres podem usar suas prprias roupas. Tambm no podem usar sapatos de salto ou
adornos que possam se transformar em moeda de troca dentro do estabelecimento, a exemplo
de bijuteria, maquiagem e outros. A justificativa dos gestores, mais uma vez, a segurana.
Isso tambm ficou bem claro para mim em outra oportunidade, tambm no Presdio
Santa Luzia, durante a soltura de quatro mulheres. Quando cheguei para realizar entrevistas,
elas estavam no hall de entrada do presdio, com suas sacolas, mas ainda vestidas de
uniformes. Depois de conferidos os alvars de soltura pela Direo, foram autorizadas a trocar
de roupa e pegar o resto dos pertences: colches, ventiladores, objetos pessoais etc. Depois de
cinco minutos, retornaram mulheres irreconhecveis, vestidas provavelmente com suas
melhores roupas, maquiadas e com os cabelos soltos. Uma delas avista o pai l fora, abre um
sorriso e acena, feliz. De fato, o momento do retorno liberdade realmente marcado por
grande emoo. Muito embora elas soubessem das dificuldades que enfrentariam dali em
diante, nada se compara possibilidade de ver o mundo novamente, sentir o vento e o sol no
rosto, caminhar livremente, deixando para trs os muros, as grades, os agentes armados e a
farda.
ganham a liberdade no tm qualquer amparo para o retorno ao convvio social pleno, nem
mesmo nos casos em que no possuem famlia.
A nica poltica pblica que se aproxima de um apoio a pessoas que saram da priso
o encaminhamento para o trabalho em instituies conveniadas com a Intendncia Geral do
Sistema Penitencirio (IGESP): Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de
Alagoas (IFAL), Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL) e Universidade Federal de
Alagoas (UFAL), das quais somente as duas primeiras recebem mulheres em seus quadros.
Desde 2001, a IGESP firma convnio com instituies pblicas que recebem homens e
mulheres libertas do crcere para o trabalho. Atravs dos convnios, essas instituies se
comprometem a contratar pessoas que esto em regime semiaberto e aberto, remunerando-as
pelo trabalho. No se trata de emprego celetista, com direitos trabalhistas. H, porm,
recolhimento para a previdncia social e desconto do Imposto sobre Servios (ISS).
Juridicamente, o trabalho que resulta do convnio considerado trabalho do preso e, por
isso, pode ser remunerado em do salrio mnimo, embora todas as instituies paguem mais
do que isso. Homens e mulheres beneficiados por esses convnios s podem permanecer no
trabalho at o trmino da pena, no havendo obrigao de contratao posterior. A maioria
deles/as passa muitos anos no convnio e, uma vez finalizada a pena, voltam condio de
desempregados/as. Por isso, no deixa de ser um trabalho de natureza temporria.
trabalho de pessoas libertas da priso, que possuem condio jurdica diferenciada dos
contratados celetistas.
Cada uma das trs instituies atualmente conveniadas com a IGESP tem
caractersticas peculiares, seja na estrutura de trabalho ou na forma como tratam os
trabalhadores e, em especial, as trabalhadoras. Apresento adiante as particularidades dessas
instituies.
Esse convnio serviu como uma espcie de modelo para as outras parcerias firmadas,
j que foi a primeira referncia no Estado de Alagoas. Embora no mencione expressamente a
contratao de mulheres, fazendo uso da expresso apenados apenas no masculino, a
interpretao que se faz, luz da igualdade constitucional, que h possibilidade de
contratao de mulheres, sobretudo porque no h clusula em contrrio.
17
Trecho retirado do relato de Dbora, cuja histria de vida apresentada no prximo captulo.
143
Entre todos os convnios existentes, o da CASAL parece ser aquele que mais valoriza
o/a trabalhador/a, pagando um salrio de R$ 730,00, vale-refeio e vale-transporte. Alm
disso, investe na educao desses/as trabalhadores, que atuam no apenas no trabalho braal,
de limpeza e na atividade-fim, mas tambm em atividades burocrticas, lidando com
protocolos e atuando em secretarias de setores administrativos. Esse investimento consiste no
incentivo a cursos de alfabetizao, informtica, ensino mdio, algo que eles mesmos
fornecem desde 2010, com a inaugurao de uma sala de aula especfica para esse fim. Com
essas caractersticas, o convnio da CASAL acaba sendo o mais visado por homens e
mulheres libertos da priso, porque considerado aquele que proporciona maior possibilidade
de crescimento profissional.
144
A UFAL firmou convnio com a IGESP em 2002, com o objetivo inicial de receber
apenados para o trabalho no campus Macei. Embora os termos do convnio sejam
absolutamente iguais aos do IFAL, h uma expressiva diferena na forma de execuo do
convnio pela UFAL, sobretudo diante da autonomia dos gestores imediatos, responsveis
pela administrao cotidiana das atividades dos trabalhadores.
Um segundo aspecto a ser analisado uma questo de gnero latente. No primeiro ano
de convnio havia duas mulheres beneficiadas. Atualmente, porm, somente homens
trabalham atravs do convnio da UFAL. A justificativa dada pelo responsvel imediato do
setor que administra o trabalho dos conveniados que essas mulheres ficam nos matos com
esses homens, e isso no d certo. Mulher com homem: lobisomem. Alegou, ainda, que os
problemas com drogas entre os trabalhadores/as ocorreram na poca em que as mulheres ali
trabalhavam. Essas informaes reforam a estigmatizao feminina presente na vida
cotidiana, j que tal proibio no consta das clusulas do convnio firmado entre a UFAL e a
IGESP. Como o mesmo convnio, por outro lado, no obriga a UFAL contratao de
mulheres, prevalecem as orientaes e o costume daqueles que tratam diretamente com os
beneficiados pelos convnios e com o setor da IGESP responsvel pelo encaminhamento e
fiscalizao dos trabalhadores.
Mesmo assim, as poucas vagas destinadas a mulheres nos atuais convnios tendem a
ser vistas como importantes oportunidades para reinsero no mercado de trabalho ou at
mesmo como a primeira oportunidade de trabalho para algumas delas, sobretudo as mais
jovens, que adentraram os muros do presdio com 18 ou 19 anos de idade. por isso que, nas
narrativas das mulheres libertas do crcere, a oportunidade de trabalhar atravs dos convnios
aparece como algo de grande importncia em suas vidas.
148
Os membros dessas igrejas tendem a estabelecer uma estreita relao com as mulheres
presas e estendem esses laos at o perodo do ps-crcere, j que, alm de prestarem
assistncia religiosa, tambm exercem o assistencialismo, com apoio s famlias e na busca de
emprego, por exemplo.
Aqui esto dispostos os dados gerais sobre um universo de 164 mulheres condenadas a
pena privativa de liberdade que passaram pelo sistema penitencirio alagoano at o ano de
2009. Todos os dados foram declarados pelas prprias mulheres, quando da entrada no
Estabelecimento Prisional Feminino Santa Luzia, momento em que so preenchidos os
pronturios.
Ano Quantidade
At 2002 61
2003 7
2004 25
150
Ano Quantidade
2005 16
2006 27
2007 16
2008 9
2009 3
fatores que contribuem para que no haja um nmero equilibrado de liberaes de mulheres a
cada ano em Alagoas.
Os dados socioeconmicos incluem faixa etria quando presas, cor da pele, estado
conjugal, religio, escolaridade e ocupao. importante esclarecer que nos pronturios no
constam dados sobre renda, de modo que a principal referncia para a dimenso econmica do
perfil est na escolaridade, j que diretamente relacionada natureza da ocupao das
mulheres e, portanto, posio que ocupam no mercado de trabalho.
O primeiro dado a ser analisado diz respeito faixa etria das mulheres quando presas.
Idade Quantidade
Entre 18 e 20 anos 18
Entre 21 e 30 anos 72
Entre 31 e 40 anos 34
Entre 41 e 50 anos 26
Entre 51 e 60 anos 8
152
Idade Quantidade
Mais de 60 anos 1
45,3
21,4
16,4
11,3
5,0
0,6
Grfico 1: Faixa etria, no momento da priso, das mulheres condenadas e libertas do crcere
em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
O grfico demonstra que as mulheres entre 18 e vinte anos representam 11,3% das
condenadas. So mulheres que se envolvem muito jovens em crimes e que adentram no
sistema penitencirio sem que sequer tenham atingido uma escolaridade mnima. Muitas
delas, certamente, no passaram pelo primeiro emprego, de modo que as atividades na priso
consistiro em suas experincias iniciais de trabalho e talvez nas nicas referncias
profissionais para a busca de emprego quando do retorno liberdade.
153
Apenas 22% das mulheres condenadas entram no presdio com mais de quarenta anos.
Nessa faixa etria, tendem a j no mais estudar, firmando-se, na grande maioria, em
empregos de natureza domstica e/ou precrios. Acima de sessenta anos h apenas uma
mulher condenada, o que refora a afirmao de que a populao carcerria feminina , de
fato, muito jovem 18.
Cor Quantidade
Pardas 109
Brancas 33
Negras 15
No consta 7
18
A tabela 2 e o grfico 1 contemplam um total de 159 mulheres porque em cinco dos pronturios analisados no
constam as datas de nascimento das condenadas, de modo que no foi possvel calcular a idade quando foram
presas.
154
66,5
20,1
9,1
4,3
Grfico 2: Cor da pele das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre 1980 e
2009, em porcentagem.
Solteiras 121
Casadas 15
Em unio estvel 8
Separadas 3
Divorciadas 6
Vivas 10
No consta 1
73,8
9,1 6,1
4,9 1,8 3,7 0,6
Grfico 3: Estado conjugal das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre
1980 e 2009, em porcentagem.
Verifica-se que mulheres solteiras compem a grande maioria desse universo, dado
que pode ser cruzado com o da faixa etria, indicando que as mulheres entram muito jovens
na priso, antes mesmo de estabelecer laos afetivos mais duradouros. No h, nos
pronturios, informaes sobre a existncia de filhos, o que seria um importante elemento
para a anlise dos laos afetivos que poderiam compor a rede de relaes sociais ps-crcere.
Afinal, no h relao direta entre o estado conjugal e a maternidade, j que muitas dessas
mulheres podem ser mes solteiras19.
19
Os dados apresentados sobre filiao esto presentes na anlise da amostra final deste estudo, ainda neste
captulo.
156
Tabela 5 Religio
Religio Quantidade
Catlicas 119
Evanglicas 19
Sem religio 25
No consta 1
72,6
11,6 15,2
0,6
Grfico 4: Religio das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre 1980 e
2009, em porcentagem.
Tabela 6 Escolaridade
Escolaridade Quantidade
Analfabetas 53
Alfabetizadas 29
Ensino Superior 2
Ps-graduao 0
No consta 3
32,3 31,1
17,7
9,8
4,9
1,2 1,2 1,8
0,0
a
r
ta
ta
o
o
rio
ad
et
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et
be
ns
pl
pl
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pl
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no
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si
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fu
En
si
fu
En
no
no
si
En
si
En
Grfico 5: Escolaridade das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre 1980
e 2009, em porcentagem.
O grfico acima demonstra que, se somados os 32,3% de analfabetas com 17,7% das
alfabetizadas e 31,1% das que possuem ensino fundamental incompleto, temos um percentual
de 81,1% de mulheres com escolaridade baixa, inaptas para ocupar espaos profissionais que
exijam um mnimo de conhecimentos.
Tabela 7 Ocupao
Ocupao Quantidade
Domstica 74
Comerciante 16
Do lar 16
Estudante 14
Servidora pblica 6
159
Ocupao Quantidade
Artes 4
Cabeleireira 4
Costureira 3
Agricultora 3
Marisqueira 2
Lavadeira 2
Secretria 2
Tcnica em culinria 1
Pescadora 1
Professora 1
Frentista 1
Autnoma 1
Enfermeira 1
Advogada 1
Artista de circo 1
Promotora de vendas 1
Massagista 1
Vendedora 1
No consta 7
45,1
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ra
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s
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id
C
rv
Se
Grfico 6: Ocupao das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre 1980 e
2009, em porcentagem.
A tabela abaixo apresenta todos os crimes que aparecem no universo das 164 mulheres
condenadas a pena privativa de liberdade em regime fechado no estado de Alagoas.
Crime Quantidade
Homicdio 40
Formao de quadrilha 17
Roubo 11
Latrocnio 10
Furto 9
Tentativa de homicdio 5
Estelionato 2
Favorecimento prostituio 2
Leso corporal 2
Tortura 2
Contrabando ou descaminho 1
Crime eleitoral 1
Facilitao de fuga 1
Vilipndio de cadver 1
Trfico de menores 1
penal anterior. Por isso, os dados acima representam todos os crimes registrados nos
pronturios, sem que necessariamente o somatrio corresponda ao universo estudado. So
vinte tipos penais diferentes, sendo mais recorrentes os de trfico ilcito de entorpecentes,
homicdio (tentado e consumado), formao de quadrilha, roubo, latrocnio e furto. Os demais
crimes, das mais diversas modalidades, aparecem apenas uma ou duas vezes. Em termos
percentuais, eles representam, juntos, 9,6% dos crimes, conforme o grfico abaixo.
43,7
20,3
8,6 9,6
5,6 5,1 4,6
2,5
ha
o
s
io
r to
s
te
di
ub
ni
ro
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Fu
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en
iva
de
at
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o
nt
cit
Te
Fo
il
o
ic
f
Tr
importante observar, tambm, que os dados coletados nos pronturios revelaram que
a incidncia do trfico de entorpecentes se deu em maior escala a partir da dcada de 2000. O
crescente nmero de usurios de drogas em todo o mundo algo apontado como verdadeiro
163
Pena Quantidade
At 4 anos 68
Mais de 20 anos 9
41,5
36,0
17,0
5,5
Grfico 8: Pena aplicada em mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre 1980
e 2009, em porcentagem.
Embora no Brasil o limite mximo para cumprimento de pena seja de trinta anos,
raramente ocorre uma situao em que um/uma condenada venha a passar todo esse tempo
encarcerado/a. Isso se d porque o tempo de pena aplicado na sentena no corresponde ao
tempo de permanncia na priso, j que benefcios como a remio da pena, a progresso de
regime e o livramento condicional todos analisados no primeiro captulo deste estudo
possibilitam a sada do estabelecimento prisional bem antes do trmino da pena, desde que
presentes os requisitos objetivos (determinado tempo de cumprimento de pena) e subjetivos
(bom comportamento carcerrio).
Os dados adiante apresentados caminham no mesmo sentido. Muito embora haja penas
maiores de vinte anos, no h sequer um caso em que a mulher condenada tenha permanecido
por mais de vinte anos presa.
Tempo Quantidade
At 4 anos 143
Tempo Quantidade
Mais de 20 anos 0
87,2
10,4
2,4 0,0
Esses dados de tempo de permanncia na priso, calculados atravs das datas de priso
e de sada em liberdade, permitem afirmar que, salvo algumas excees, a mdia de
permanncia das mulheres condenadas a penas privativas de liberdade, no regime fechado, em
Alagoas, de quatro anos.
coletados atravs desta pesquisa permitem compor nmeros fidedignos sobre reincidncia
criminal feminina, apresentados na tabela abaixo.
Tabela 11 Reincidncia
Reincidiu Quantidade
Sim 8
No 156
Das 164 situaes penais estudadas, apenas oito configuram a reincidncia, no sentido
tcnico do termo. Muito embora haja mulheres que tenham mais de uma entrada na priso, a
reincidncia s verificada caso haja condenao, sobretudo diante do princpio da presuno
da inocncia (ou estado de inocncia), disposto na Constituio Federal de 1988, segundo o
qual ningum considerado culpado seno aps o trnsito em julgado de sentena penal
condenatria. Assim, mulheres que foram presas, mas em seguida libertas do crcere sem que
houvesse condenao penal, no podem ser consideradas reincidentes.
95,1
4,9
Sim No
Grfico 10: Reincidncia das mulheres condenadas e libertas do crcere em Alagoas entre
1980 e 2009, em porcentagem.
Estudou Quantidade
Sim 12
No 152
Em nmeros percentuais, pode-se afirmar, com base nos dados coletados, que as
mulheres que estudaram durante o cumprimento da pena representam, apenas, 7,3% do
universo estudado.
curioso observar que esse baixo percentual ocorre em um estabelecimento prisional
que nomina as mulheres condenadas que ali cumprem pena privativa de liberdade de
reeducandas.
168
92,7
7,3
Sim No
Grfico 11: Estudo durante o cumprimento da pena das mulheres condenadas e libertas do
crcere em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
Participou Quantidade
Sim 50
No 114
69,5
30,5
Sim No
Grfico 12: Participao em cursos durante o cumprimento da pena das mulheres condenadas
e libertas do crcere em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
169
Trabalhou Quantidade
Sim 129
No 35
Percentualmente, observa-se que 78,7% das mulheres que passaram pelo presdio
Santa Luzia trabalharam. Com isso, tiveram direito a remir a pena, razo de um dia para
cada trs trabalhados. Com isso, tiveram mais rapidamente direito a benefcios como
progresso de regime e livramento condicional. O trabalho, alm de ser uma importante
atividade ocupacional, que evita a ociosidade no crcere, pode levar reduo da pena e ainda
, obrigatoriamente, remunerado.
78,7
21,3
Sim No
Grfico 13: Trabalho durante o cumprimento da pena das mulheres condenadas e libertas do
crcere em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
170
Indisciplina Quantidade
Sim 50
No 114
A indisciplina um item que aponta para dois fatores interessantes, relacionados aos
conflitos existentes ao longo do cumprimento da pena. Primeiro, o aspecto subjetivo, que
sugere insatisfao, inadequao s regras do espao penitencirio ou, ainda, inimizades com
outras mulheres presas. Segundo, o fato de retardar o retorno liberdade, j que o registro de
indisciplinas interpretado como mau comportamento carcerrio, no caracterizando,
assim, o requisito subjetivo necessrio para a concesso de benefcios como a progresso de
regime e o livramento condicional.
69,5
30,5
Sim No
Grfico 14: Indisciplina durante o cumprimento da pena das mulheres condenadas e libertas
do crcere em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
171
Finalizando esta seo, apresento a faixa etria das mulheres quando ganharam a
liberdade, calculada a partir do ano de nascimento e da data de sada da priso. O propsito
deste ltimo item demonstrar que, quando do retorno ao convvio social pleno, essas
mulheres esto em idade que proporciona, em tese, a reinsero no mercado de trabalho.
Idade Quantidade
Entre 18 e 20 anos 6
Entre 21 e 30 anos 67
Entre 31 e 40 anos 42
Entre 41 e 50 anos 30
Entre 51 e 60 anos 12
Mais de 60 anos 1
De acordo com os dados coletados, observa-se que a grande maioria das mulheres
estava entre os 21 e os cinquenta anos de idade quando reconquistaram a liberdade, o que
representa 88%. Pouco mais da metade 46,2% estava na faixa dos 18 aos trinta anos.
Muito jovens, portanto.
42,4
26,6
19,0
7,6
3,8
0,6
Grfico 15: Faixa etria, no momento do retorno liberdade, das mulheres condenadas e
libertas do crcere em Alagoas entre 1980 e 2009, em porcentagem.
172
A faixa etria com que as mulheres ganham a liberdade aparece como um indicativo
de que esto aptas a reconstruir seus vnculos afetivos e reinserir-se no mercado de trabalho.
No entanto, preciso ponderar que no se trata de um movimento automtico, ou seja, de algo
que facilmente atingido aps a sada da priso. So diversos fatores que devem ser levados
em considerao quanto o tema reintegrao social aps o cumprimento de pena na priso.
Esses fatores dizem respeito s dimenses afetiva e profissional dos sujeitos20.
Na prxima seo apresento o perfil da amostra estudada. Esse perfil est inserido no
universo das 164 mulheres aqui analisadas, mas aponta outros dados e informaes, coletados
a partir das entrevistas realizadas, que permitem uma compreenso de aspectos peculiares s
vivncias femininas, diretamente ligados aos processos de mortificao do self e
estigmatizao, situados no cerne deste estudo.
As mulheres libertas do crcere que compuseram a amostra final deste estudo so aqui
apresentadas quantitativamente, de modo a demarcar aquilo que tm em comum. Essa
perspectiva decorre da juno de dados sobre aspectos socioeconmicos, o delito cometido e a
pena recebida e cumprida, alm de dados sobre estudo e trabalho no crcere e no ps-crcere.
Assim, possvel ter uma ideia das principais caractersticas do grupo das mulheres cujas
histrias de vida sero apresentadas e interpretadas no prximo captulo, levando em
considerao a amostra de 13 mulheres entrevistadas, selecionadas atravs de amostragem em
bola de neve, sendo oito delas em liberdade e cinco reincidentes presas.
20
A tabela 16 e o grfico 15 contemplam um total de 158 mulheres porque em cinco dos pronturios analisados
no constam as datas de nascimento das condenadas e em um sexto pronturio consta que a condenada est
foragida, sem indicao da data da fuga, de modo que no foi possvel calcular a idade quando saram em
liberdade.
173
a) Dados socioeconmicos
Idade Entrevistadas
Entre 24 e 35 anos 10
Mais de 35 anos 3
Cor Entrevistadas
Branca 7
Parda 4
Negra 2
Tabela 19 Escolaridade
Escolaridade Entrevistadas
Analfabetas 7
Tabela 20 Ocupao
Ocupao Entrevistadas
Agricultora 2
Pescadora 1
Bab 1
Garonete 1
Auxiliar de cozinha 1
Costureira 1
Sem ocupao 6
Tabela 21 Religio
Religio Entrevistadas
Catlica 8
Evanglica 5
175
Solteira -
Casada 1
Em unio estvel 9
Em unio homoafetiva 1
Viva 2
Sem filhos 1
De 1 a 3 filhos 8
De 4 a 7 filhos 4
O tempo de permanncia na priso varia entre um ano e sete anos e trs meses, e
depende de variveis como remio pelo trabalho/estudo, alm de benefcios como progresso
de regime e livramento condicional.
176
O tempo em liberdade das entrevistadas varia entre seis meses e dez anos. J o novo
tempo de encarceramento, no caso das reincidentes, varia entre dois meses e dois anos.
Crime Entrevistadas
Homicdio 6
Roubo 1
Furto 1
Pena Entrevistadas
At 10 anos de recluso 6
De 10 a 20 anos de recluso 5
Tempo Entrevistadas
At 5 anos 6
De 5 a 10 anos 5
Mais de 10 anos 2
Tempo Entrevistadas
At 5 anos 12
De 5 a 10 anos 1
Tempo Entrevistadas
At 1 ano de priso 4
O estudo no ps-crcere aparece como um importante dado, pois revela o desejo das
mulheres em liberdade de possuir uma educao mais apropriada para o retorno ao mercado
de trabalho. No entanto, os dados indicam que apenas trs das entrevistadas voltaram a
estudar, sendo uma no ensino regular e duas em cursos de informtica. As demais no
estudaram. Aliando esse dado baixa escolaridade, isso significa que os empregos que vierem
a conseguir tendem a ter uma natureza mais precria, permanecendo no campo das atividades
domsticas, que no carecem de instruo.
Apresento adiante a sntese dos dados sobre estudo e trabalho no crcere e no ps-
crcere.
Estudou Entrevistadas
Sim 3
No 10
Curso Entrevistadas
Artesanato 9
Artesanato e Cabeleireira 1
Costureira e Cabeleireira 1
Nenhum 2
Trabalho Entrevistadas
Faxina 12
Costura 1
Estudou Entrevistadas
Sim 3
No 10
Trabalhou Entrevistadas
Sim 9
No 4
21
Dados compilados no anexo C.
Captulo 5
Neste ltimo captulo apresento as histrias de vida de cada uma das mulheres
estudadas, buscando interpret-las luz das discusses tericas e metodolgicas dispostas nos
captulos precedentes. Ao descrev-las, contemplo situaes e fatos por elas vividos antes da
priso e durante o encarceramento, que se tornaram centrais em suas narrativas, estando
intimamente ligados vida em liberdade. Tudo isso contextualizado de acordo com os
ambientes e as instituies ligadas s suas experincias. Atravs dessas vivncias, possvel
visualizar traos identitrios constitutivos do self feminino, alm de fatos e situaes que
sugerem processos de mortificao do self e de estigmatizao, tanto nas relaes afetivas
como na vida profissional.
Eva
Eva uma mulher de baixa estatura, pele clara, cabelos escuros e olhos verdes.
Aparenta ser bastante vaidosa, usando maquiagem discreta e brincos no ambiente de trabalho,
onde concedeu entrevista.
Ela vem de uma grande famlia de classe mdia baixa, do interior de Alagoas, e define
a infncia e a adolescncia como algo bom. Tem 12 irmos, sendo nove do casamento do pai
com sua me e trs irmos paternos, frutos de uma unio anterior. Segundo ela, os pais
sempre deram o melhor para todos os filhos. Uma das formas de demonstrar essa dedicao
dos pais a nfase que d ao fato de ter estudado em escola particular, a mais cara da regio
onde morava, no serto de Alagoas.
Eva gosta muito de falar, embora no entre em detalhes sobre o crime de homicdio
que a levou priso. Ressalta, apenas, que foi o primeiro marido, pai de seu nico filho, que a
colocou nessa situao, j que ele, verdadeiro autor do crime, no quis se entregar, libertando-
a da acusao que a levou condenao. Ela fala disso com certa mgoa e faz questo de
mencionar que os pais eram contra o relacionamento, mas ela no os ouviu e, aos 17 anos,
fugiu com o ento namorado, com quem conviveu por cinco anos. Eva no trabalhou antes de
ser presa e se diz arrependida de no ter levado os estudos adiante, fazendo valer os esforos
dos pais.
Condenada a sete anos e seis meses de recluso, Eva passou um ano e sete meses na
priso. Est em liberdade h quatro anos. Assim avalia o perodo de permanncia na priso:
Ali tem as bondades? Tem. O qu? Que voc vai aprendendo. Cada dia voc vai
amadurecendo, vai crescendo. Se voc no tiver cabea, voc vai sair pior do que
voc entrou. Se tem cabea, ensina a viver. Eu aprendi muitas coisas. Antes de eu
cair no presdio, eu era muito criana. Hoje eu me sinto uma pessoa madura, uma
pessoa mais responsvel. Antes eu no me achava. Antes eu queria ser dona do meu
nariz.
Eva estava grvida quando foi presa e teve o filho durante o cumprimento da pena. A
relao com o filho aparece como algo de grande importncia em sua vida, tornando-se um
verdadeiro elemento identitrio para ela. o que se observa atravs da seguinte afirmao: O
que me deu muita fora pra viver l dentro foi meu filho. Primeiramente Deus, mas meu filho.
No dia de angstia, no dia de querer sair e no poder, vinha aquele pensamento: meu filho.
Foi o que me fez viver. A referncia existncia do filho como algo que impulsiona a
182
vontade de viver refora a centralidade da relao materna em sua vida. Ela me, sente-se
assim e cuida de seu filho, mesmo no tendo convivncia cotidiana com ele, j que criado
por uma famlia evanglica, da Assembleia de Deus, que atua na assistncia religiosa no
presdio Santa Luzia, desde que tinha quatro meses de vida. A deciso de deixar a criana
com essa famlia se deu no momento em que houve uma grande rebelio no presdio
feminino, que colocou o filho de Eva em situao de vulnerabilidade no espao penitencirio.
Com medo de que algo acontecesse criana, Eva aceitou a proposta da matriarca da famlia
de evanglicos, que prometeu cuidar do seu filho at o momento em que ela ganhasse a
liberdade.
Essa senhora tornou-se uma espcie de me para Eva, cuidando de seu filho e
acolhendo-a por trs anos em sua casa, quando retornou ao convvio social. Eva fala da
resistncia de parte de alguns membros dessa famlia com relao ao seu filho, que se
dirigiam com comentrios estigmatizantes a essa me afetiva: Voc doida, querer um filho
de uma mulher que est no presdio? No!. Porm, faz questo de ressaltar que todos se
encantaram com a criana, de modo que hoje o amam como a um membro da famlia. O filho
de Eva se adaptou nova famlia e no quer mais voltar a viver com a me. Ela sofre com
isso, mas reconhece o amor e o carinho dispensados criana. Eva avalia: Hoje eu digo com
o maior orgulho: Eu amo meu filho, amo de verdade. Ele tambm me ama muito, mas ele
mais apegado famlia de l. Na hora que meu filho quiser morar comigo, no para
empatar, pode trazer ele. Mas at agora ele no quis vir.
ciente de que no ser fcil para ela vivenciar o relacionamento me-filho na plenitude, j que
essa famlia que o acolheu agora faz parte da vida dele.
O desejo de resgatar esse vnculo afetivo expresso em seu relato, mas tambm
permeado por cuidados para que o filho no sinta constrangimentos ao saber da condio de
ex-presidiria, algo que ela mesma deseja revelar, quando ele estiver maior, j que hoje a
criana tem apenas cinco anos de idade. Ela diz:
Eu tive meu filho no presdio e fico com o maior medo. Eu mesma queria, quando
ele tivesse j entendido de alguma coisa, chegar pra ele e dizer: Olhe meu filho, eu
passei por isso, passei por isso.... Eu no queria que outra pessoa chegasse e
dissesse: Sua me j foi do presdio.
A relao de Eva com a religio parece ser dotada de certa ambivalncia. Por um lado,
tornou-se uma referncia afetiva, representada pelas pessoas que a acolheram e ao filho na
priso e quando do retorno ao convvio social pleno. Por outro, como referncia moral,
acarretou uma srie de restries na sua autonomia, o que inclui mudanas na forma de
portar-se, de vestir-se, no vocabulrio e nas prticas sexuais.
184
Quando faz questo de ressaltar que acredita nos preceitos da Assembleia de Deus,
afirmando ser aquela a melhor forma de agradar a Deus, ela representa o que significa uma
mudana que aponte para algo diferente do que a referencia identitariamente a partir do crime
e do crcere. Assim, agrega sua vivncia ps-crcere algo que indica um valor positivo, um
elemento de aceitao social. Porm, ao resgatar hbitos anteriores, mesmo que contrrios
doutrina religiosa que passou a seguir na priso, Eva se depara com fatos e situaes
reconstituintes do self, notadamente o resgate da autonomia para estabelecer e manter relaes
afetivas, o que a aproxima de sua identidade anterior priso.
O dilema posto em sua vida, a partir da religio que se tornou central durante o
perodo de permanncia na priso, justamente instalado entre o desejo de seguir algo que
proporciona uma melhor aceitao social a converso religiosa plena e a resistncia diante
das muitas restries incompatveis com as possibilidades que a liberdade traz. Seguir regras
religiosas no espao penitencirio restrito, onde a liberdade tolhida, seja por meio de normas
sobre o uso de roupas, adereos, maquiagem, ou pela solido em si, muito diferente de
permanecer submetida aos rigores religiosos na vida ps-crcere, j que se depara com as
muitas possibilidades de resgatar seu antigo estilo de vida, os hbitos de lazer, a forma de
portar-se, de vestir-se e de vivenciar a sexualidade, elementos que compem sua identidade
feminina.
Isso significa que, na busca de reconstruir sua imagem perante os outros, ela no quer
abrir mo daquilo que a referencia como mulher. Em seu relato fica claro como ela se sente
dividida entre a fidelidade religio e o desejo de ter de volta a vida que tinha antes de ir para
a priso. Esse dilema recorrente na narrativa de Eva.
Quando saiu do presdio, Eva conseguiu emprego como bab de um menino que tinha
praticamente a mesma idade de seu filho, numa famlia de classe mdia alta, moradora de um
bairro nobre de Macei. Permaneceu nesse emprego por um ano e escondeu o fato de ser ex-
presidiria da patroa, pois sabia que no seria bem aceita se sua condio fosse revelada, j
que as pessoas temeriam que ela, por ser ex-presidiria, viesse a fazer algum mal criana.
Essa atitude de Eva expressa claramente a forma como a estigmatizao se d no campo do
trabalho e como isso introjetado por ela mesma. No entanto, h certa atitude reflexiva,
diante dessa situao, evidenciada na seguinte passagem de seu relato:
Eu tambm no sei se ela soube depois que eu era ex-presidiria. Se ela tivesse
descoberto, ela ia dizer o qu? O carinho que a Eva deu ao meu filho, outra pessoa
que nunca passou na priso no deu. Porque eu acho assim, o preconceito existe.
Mas importa saber que s vezes tem pessoas que nunca passaram por dentro do
185
presdio e fazem coisa pior que a gente. Errar humano. Qualquer pessoa tem
direito a errar. Agora, permanecer no erro que burrice.
Atualmente Eva trabalha no IFAL, onde conheceu seu segundo marido, tambm ex-
presidirio. Nessa relao afetiva aparecem elementos importantes para a compreenso da
reconstituio do self, estreitamente interligados a um sentido de matrifocalidade (SCOTT,
1990). Ela relata:
Ns, mulheres, queremos ter a nossa prpria casa pra cuidar. Eu sempre dizia:
Olhe, Deus, eu quero um esposo, no que seja bonito, mas sim, um esposo homem,
que trabalhe, que tenha responsabilidade. Do jeito que eu pedi, Deus me deu. A
gente se conheceu aqui no IFAL. Ele um homem maravilhoso at agora. No me
decepcionou. No sei, quem sabe Deus daqui pra frente. Porque a gente no deve
confiar em homem, no ? Tem os estressamentos dele, tem as ignorncias dele, mas
ele um timo esposo. Um companheiro, um timo marido.
Nas palavras de Eva esto sinais do que ela entende por ser algo que identifica as
mulheres: uma casa para cuidar. Mesmo sem ter o filho por perto, ela encontra na construo
de um ambiente domstico, compartilhado com o companheiro, o local ideal para reconstruir
sua vida depois da experincia na priso. O fato de o marido ser ex-presidirio tambm
aparece como algo significativo em sua vida. Eles comungam a mesma experincia. Foram
condenados, passaram pela priso e querem buscar uma nova vida juntos, compartilhando,
inclusive, as dificuldades no mercado de trabalho.
Quando a gente colocou o currculo para trabalhar num cemitrio, eles chamaram?
Nada! Por qu? O preconceito, no , no? Casa de famlia, t certo, porque quando
eles ficham, eles no pegam o Nada Consta. Mas negcio de firma, pega. Eu tendo
a minha ficha limpa, eu creio que eu consigo um emprego em qualquer canto.
186
A insero no mercado de trabalho aparece para Eva como algo fundamental para que
o passado na priso no seja revivido e para que no corra o risco de retornar ao crcere. Ela
afirma:
O importante que eu venha a trabalhar honestamente para que eu no, no... Deus
me livre! Home! Nem lembre do presdio! O que eu passei l dentro eu no desejo
pra ningum, nem para o meu pior inimigo. Por isso, para o futuro eu espero o
melhor. Eu peo a Deus que sempre abra uma porta. Um emprego fichado para no
futuro eu ter um prprio lar, para que um dia eu no venha a fechar o olho e meu
filho t desamparado. Eu penso no melhor para o meu filho. E que meu filho venha
sentir orgulho de mim.
Nessas palavras esto a sntese de tudo o que, para ela, aparece como os elementos
identitrios centrais na sua vida: o filho, um lar e um emprego. nessa busca que parece estar
situado o norte para a reconstituio do self.
Dbora
Dbora uma mulher jovem e bonita. Aos 29 anos, morena, magra, tem longos
cabelos negros e lisos, que chegam at a cintura. Ela aparenta bem menos idade e se veste
com roupas de adolescente. A sua performance evidencia esteretipos de feminilidade: ela
gesticula muito ao falar, mexendo sempre nos cabelos e cruzando as pernas.
Nascida e criada no interior de Alagoas, Dbora tem quatro irmos. Somente aos 18
anos foi morar na cidade de Macei, onde estudou at a 8 srie. Ela define a vida antes da
priso como tima e d uma sonora risada ao lembrar das antigas amizades, que incluam
delegados de polcia e funcionrios pblicos, bem como de um namorado alemo que,
segundo ela, dava de um tudo, ou seja, presentes que envolviam roupas, bijuterias, sapatos,
viagens. Essa forma de relatar o seu passado demonstra um estilo de vida em que as relaes
sociais envolviam pessoas de certo poder aquisitivo, por ela usufrudo durante bastante tempo.
Essas relaes figuravam como elementos identitrios importantes em sua vida, antes da
priso, que se aliavam sua prpria aparncia.
A maternidade aparece como outro elemento identitrio muito importante para Dbora.
Ela tem dois filhos, sendo um de nove anos e outro de dois. Quando foi presa, tinha somente o
primeiro, que ficou sob a responsabilidade da me dela. Enquanto esteve presa, a me ia
visit-la duas vezes por semana e levava a criana, de modo que Dbora no perdeu o contato
com o filho durante o encarceramento. Entretanto, isso no impediu que ela sofresse pela
187
ausncia do convvio cotidiano e pela falta de autonomia diante da forma como a me cuidava
da criana. Quando estive presa, meu filho mais velho sentia falta de mim. Ele chegava l e
comeava me abraar, me beijar. A dizia: Ah, Mainha, a V bateu em mim com a vassoura.
Uma coisa que eu no fao bater. Eu sofria com isso.
O pai do primeiro filho de Dbora hoje est preso por homicdio em Minas Gerais, mas
eles j estavam separados mesmo antes da priso dela. O pai do segundo filho foi assassinado.
Ele cumpriu pena no mesmo perodo que ela, pelo mesmo delito. Na poca, viviam juntos. Ela
ganhou a liberdade primeiro e ele, em seguida. Alugaram, ento, uma casa e estabeleceram
uma vida familiar. Foi ento que ela engravidou. Logo depois, ele foi assassinado por acerto
de contas no trfico de drogas.
Durante o tempo em que esteve presa, alm da me e do filho, Dbora recebia a visita
da irm, dos irmos, dos colegas, das comadres. A visita durante o encarceramento apontada
por ela como algo muito bom, que contribua para manter a ligao com as pessoas. No
entanto, no foi suficiente para evitar que muitos se afastassem dela.
Mesmo assim, Dbora retrata com alegria o dia em que saiu em liberdade, levando
consigo apenas algumas roupas e deixando para trs objetos como colcho, televiso e fogo:
Do presdio eu no quero nada, s quero a minha vida e quatro roupinhas pra me vestir
enquanto eu compro outras. Como morava perto do presdio, resolveu ir para casa
caminhando, mas os ps incharam e ela no aguentou, j que h dois anos no andava, por
falta de espao no Santa Luzia. Pegou uma lotao que a deixou na porta de casa. Ressalta a
alegria das pessoas familiares e amigos quando a viram chegar de surpresa. Comemorou a
liberdade em um barzinho. Pedi uma cerveja. Fiquei logo beba com uma cerveja s (risos).
Esse fato demonstra bem a busca de Dbora de reviver hbitos do passado em liberdade. A
cerveja no barzinho retoma um pouco de sua vivncia antes da priso e demonstra a sua busca
por reconstituir o que era antes do crcere. um fato isolado, mas que aparece como um
primeiro indicativo de reconstituio do self em sua vida ps-crcere. Ela pode caminhar e
pode escolher para onde ir. a autonomia que resgatada aos poucos, com a liberdade.
Na priso, Dbora no estudou nem fez cursos, mas trabalhou na faxina, o que contou
para a remio da pena. J em liberdade, tentou estudar, mas no tinha com quem deixar os
filhos pequenos. Sobre os estudos, afirma: Eu acho que eu j tenho estudo o suficiente, mas
aquela vontade estudar, eu tenho. Mas se vou sair daqui noite pra ir aqui pro colgio, e os
meus meninos?. Diante dessas dificuldades, Dbora fez apenas um curso de informtica,
ciente da necessidade de ter esse conhecimento para conseguir emprego.
189
Assim que saiu da priso foi encaminhada, atravs dos convnios do IGESP, para o
IFAL, onde trabalhou por um ano. Gostava do trabalho, mas critica as regras ali estabelecidas
para os/as trabalhadores/as conveniados/as, que envolviam, entre outras orientaes, a
proibio de falar com alunos da instituio, algo que ela define como preconceituoso. Ela
diz:
A gente no podia falar com nenhum dos estudantes. Se eles veem a gente falando
com estudante, eles colocam a gente pra fora do emprego. No pode! Eu j acho que
isso um preconceito. Eu disse: eu s num boto um processo nesse colgio porque
eu no sou ningum, entendeu?. Porque eu acho que os direitos deveriam ser iguais.
Um chefe l do colgio me proibir de falar com voc? Acho que isso no existe. No
pode dar nem um Oi, nem um Bom-dia?
difcil pra arrumar emprego, porque voc ex-presidiria. Mas a minha vontade
trabalhar com carteira fichada. Eu j procurei muito. Eu trabalho em qualquer coisa:
casa de famlia, cozinha, auxiliar de cozinha, garonete, que a minha profisso. S
que raro de dar emprego. No peguei o Nada consta ainda, que depois de cinco
anos. No fcil, no. ruim mesmo. S quem sabe quem passa.
espao pblico, quando consegue trabalhos espordicos. Porm, esses esforos em conseguir
alternativas para a sobrevivncia aparecem como formas de reconstituir o self, resgatando a
autonomia perdida pelo encarceramento.
O que mudou na minha vida durante o tempo que tive presa foi que passei a dar
valor s coisas, que antigamente eu no dava. At minha vida. Minha vida mudou
depois da priso. Eu fiquei mais feia (risos), t mais velha. Porque ningum fica
mais novo... Perdi muito tempo, minha juventude ali dentro. Eu tinha vinte e quatro
anos quando fui presa. T com vinte e nove, vou fazer trinta. uma vida perdida,
num , no? Dois anos? uma vida.
Ao olhar para o futuro, Dbora no reflete sobre si mesma, mas sim sobre seus filhos,
o que demonstra a importncia da maternidade na sua vida. No entanto, na sua experincia
na priso que parece estar o parmetro para investir na educao dos filhos e form-los como
cidados: O que eu espero pra o futuro que meus filhos estudem e se formem, que no vo
parar onde eu parei, no presdio. o que eu digo a eles direto: Estudem, estudem. Esse
olhar sobre os filhos representa bem a autocrtica com relao ao que foi vivenciado no
passado, o desejo de mudar e o desejo de se tornar exemplo na formao dos filhos. o self
em reconstruo.
Joana
Joana tem 28 anos e uma mulher magra e de semblante muito sofrido. Ela aparenta
mais idade do que tem. Tmida, no faz reflexes aprofundadas sobre a vida, mas, aos poucos,
revela aspectos de sua histria que esto no cerne de sua identidade e que se relacionam com
o que foi vivido na priso e com as experincias do ps-crcere.
Ela fala da vida antes da priso como algo bom. Era casada e tinha uma filha e um
filho. Foram as dificuldades financeiras que a levaram ao trfico de drogas. Quando
condenada a quatro anos e oito meses de recluso, tinha 23 anos de idade. O marido, tambm
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traficante, no foi preso e a abandonou na priso. Ela revela uma forte mgoa com relao a
esse fato, que contribuiu para que a passagem pelo crcere fosse mais sofrida: Ele no foi me
ver na priso, e quando eu soube, ele j tava com outra mulher. A pronto, foi o fim. Essa
circunstncia de abandono muito comum entre mulheres que cumprem pena privativa de
liberdade cujos maridos permanecem soltos. Trata-se de um importante elemento de
mortificao do self, pois representa a fragilizao ou ruptura de laos afetivos relaes
conjugais ou assemelhadas que constituem elementos identitrios particularmente centrais
para mulheres em contextos matrifocais.
Joana passou um ano e oito meses presa. Na priso, conheceu Dbora e ficaram
amigas. Dbora a apresentou ao irmo, tambm condenado, que cumpria pena num presdio
masculino. Naquela poca, as mulheres presas eram autorizadas a visitar os homens
conhecidos nos presdios masculinos, localizados no complexo penitencirio. Joana iniciou
um namoro com o irmo de Dbora na priso e, quando saram em liberdade, passaram a
viver em unio estvel. Moraram todos juntos, na mesma casa, at meados do ano de 2010:
Dbora, o companheiro e os filhos, e Joana, o companheiro e as duas filhas nascidas dessa
segunda unio.
Hoje Joana tem quatro filhos, mas apenas as duas mais novas vivem com ela. A
primeira, de 14 anos, vive com a av materna em Pernambuco e o segundo, de oito anos,
mora com a famlia paterna em Macei. Joana sente a falta dos filhos e faz questo de
ressaltar que fala com eles por telefone quase todos os dias. No entanto, faz oito anos que no
v a filha, j que no tem condies financeiras de viajar para v-la ou de mandar dinheiro
para que ela a visite em Macei. Segundo Joana, foi a priso que os separou. Como no tinha
com quem deixar as crianas, cada um passou a ser criado por uma av. Ela diz que gostaria
de viver com todos juntos, mas reconhece que no tem condies de faz-lo, j que no possui
emprego ou outra fonte de renda para sustent-los. Em sua histria, a perda do contato com os
filhos por causa da priso avaliada com tristeza, j que a identidade materna algo presente
em sua vida. Perceber esses vnculos fragilizados parece significar uma perda muito grande,
sendo motivo de sofrimento: uma expresso da mortificao do self proporcionada pelo
encarceramento.
Quando esteve presa, somente o filho de oito anos, que mora em Macei, a visitava na
priso de vez em quando, levado pelos familiares paternos. A me de Joana, que mora no
interior de Pernambuco com a filha mais velha, nunca foi visit-la. Embora sinta a falta da
me e da filha, ela afirma: Eu tambm no queria que a minha me me visse naquela
192
situao de presa. O contato com a me era exclusivamente feito por telefone, mas com
regularidade, o que no deixava de ser uma conexo familiar para Joana, sobretudo porque a
deixava a par do crescimento da filha. Ela conta que, nos dias de visita, ficava esperando,
pensando que alguma pessoa iria visit-la. Terminava o dia de visitas, e nada. Ela diz: Eu me
divertia com as visitas dos outros, conversando. Suas palavras possuem um tom de
lamentao nesse momento.
A visita, como forma de ligao da pessoa segregada com aqueles/as que compem
suas relaes sociais mais prximas, tem o importante papel de fazer permanecer os vnculos
afetivos e apontada, inclusive na legislao penitenciria, como um direito do/a preso/a, j
que favorece a reintegrao social. Pessoas como Joana, que recebiam poucas visitas e,
mesmo assim, sem regularidade, tendem a sentir a segregao prisional de uma maneira mais
expressiva, j que perdem o contato com pessoas particularmente familiares que esto na
base de sua composio identitria. No caso de Joana, o abandono do companheiro e a perda
de contato com os filhos/as, situaes que causaram a ela muito sofrimento, contriburam para
a composio de novos arranjos afetivos ainda na priso, a exemplo das novas amizades e do
relacionamento amoroso com um presidirio, com quem compartilhava as angstias do
crcere, sobretudo na fase em que passou oito meses sem receber nenhuma visita. Assim, ao
mesmo tempo que as perdas afetivas configuram o processo de mortificao do self vivido,
esses novos arranjos apontam para a busca por reconstruir o self, ainda na priso e fora dela,
j que Joana e o companheiro permaneceram juntos no ps-crcere e constituram famlia.
Joana no estudou durante o tempo em que esteve presa, mas trabalhou na faxina e no
artesanato do quengo do coco, trabalho oriundo de um curso ministrado no presdio. Do
quengo do coco fazia brincos, anis, bolsas, porta-moedas, colares, pulseiras. Afirma que
aprendeu muito com esse trabalho, tendo recebido, inclusive, o certificado de artes. No
entanto, esse conhecimento jamais foi utilizado quando voltou liberdade, j que a matria-
prima para a confeco desses produtos cara e ela no tinha dinheiro para investir. O que
aprendeu na priso, portanto, no contribuiu para a sua subsistncia no ps-crcere.
Em liberdade h quase dois anos, nunca conseguiu emprego desde que saiu da priso.
Relata que tentou vender panos de prato na rua, mas no era o suficiente para seu sustento.
Alm disso, precisava cuidar das filhas pequenas, que ficavam em casa. Ela ressalta as
dificuldades no mercado de trabalho, diante da condio de ex-presidiria:
O tempo que t em liberdade t bom. T bom assim. Eu t livre, t com sade, meus
filhos tambm to com sade. Mas a parte de emprego no t muito bom, no. Hoje
muito diferente porque, antes da priso, no tinha o nome sujo, no tinha a ficha
suja. Pra arranjar emprego era melhor, pra tudo era melhor. Depois da priso, no
muito bom, no.
Ela afirma que foi bem recebida pelas pessoas, mas j sofreu discriminao por ser ex-
presidiria e aponta como exemplo o fato de que nunca conseguiu emprego desde que saiu da
priso. Embora tenha reconstrudo sua vida afetiva restabelecendo o contato com o filho,
que a visita semanalmente , as dificuldades no mercado de trabalho, resultantes da
estigmatizao vivida, aparecem como o principal entrave na vida de Joana no ps-crcere. O
fato de no se adaptar em Macei depois do retorno liberdade e, sobretudo, de no conseguir
emprego, contribuiu para o fim do seu relacionamento com o segundo companheiro.
Ao refletir sobre a vida, o passado e o futuro, afirma: Minha vida mudou. Hoje eu no
faria a coisa que eu fiz antes. T mais madura. Eu espero pro futuro coisas boas. Tudo de bom
pra mim e pra os meus filhos.
Ana
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Ana tem 27 anos de idade e uma mulher muito bonita e vaidosa. Tem a pele negra e
gosta de usar acessrios como brincos, colares e maquiagem. Sua histria de vida marcada
por muitas perdas, mas tambm por fatos bastante curiosos. Ana vem de uma famlia grande e
pobre. Seus pais tiveram 23 filhos/as. O pai administrava uma fazenda em Batalha e a me
cuidava da casa e dos filhos/as. Ela relata que comeou a trabalhar muito cedo, aos nove anos
de idade, tomando conta de outras crianas. O pai de Ana no costumava dar dinheiro para
que os filhos comprassem roupas e calados. Assim, ainda pequena, ela foi trabalhar em busca
de independncia. Ela diz:
Fui me muito precoce, com 14 anos. O pai no assumiu. Quando ele soube, pediu
pra que eu tirasse a criana. Falei que no ia tirar porque eu acho imperdovel isso,
porque um ser que no tem culpa de nada, uma coisa inocente. Estaria sendo uma
assassina se tirasse a vida de uma coisa que no pode se defender. Ento, eu optei
por no tirar a criana. Da ele no quis mais ficar comigo.
A gravidez foi bastante conturbada, pois Ana teve de fugir de casa, por causa do pai.
Segundo ela, o pai jamais aceitaria aquela gravidez e seria at capaz de mat-la. A me
adoeceu por causa da sada dela de casa, chegando a ficar hospitalizada. Assim, Ana passou
temporadas em casas de amigas e de irmos, at que a criana nasceu. Foi quando voltou para
casa. O pai de Ana, que adorava crianas, se apaixonou pela neta e a aceitou de volta com a
filha, de braos abertos. A me dela morreu h alguns anos, quando Ana ainda no tinha sido
presa. O pai faleceu enquanto Ana estava no Santa Luzia.
Fui morar com ele no porque eu gostava dele, sim para dar uma vida melhor para a
minha filha. Eu nunca fui tratada dessa maneira, nunca na minha vida. Nem pelo
meu pai, nem pelos meus irmos, por ningum. Bom demais. Ele me deu uma vida.
Eu era uma gata borralheira que virei cinderela. Ele me deu uma vida que eu nunca
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imaginei que ia ter. Coisa que eu s via em televiso aconteceu na minha vida nesses
trs anos que eu passei com ele, tanto pra mim quanto pra minha filha. Ento isso
fez com que eu me apaixonasse, me apegasse demais a esse homem.
Ana relata que fez diversas viagens Europa, conhecendo muitos pases. Nas
temporadas que passavam na Itlia, ela tinha aulas de idioma e de etiqueta, com professoras
particulares, porque o companheiro no a deixava estudar em escola normal. Com o fim do
relacionamento, ocasionado por cimes dele com relao a Ana, ela retornou vida de
solteira e conheceu um novo namorado.
a que comea a histria de Ana com o crime e a priso, que j foi objeto de
reportagem no jornal impresso e na televiso, em Alagoas. O namoro com esse rapaz foi algo
fugaz, que no durou mais de 15 dias. Ela acabou o relacionamento porque descobriu que ele
era bissexual e que, alm de t-la como namorada, mantinha casos paralelos com homens.
No suportando a situao, Ana resolveu dar fim ao namoro. Ela afirma: Acho que tenho
mel, porque ele ficou no meu p e insistia muito que eu voltasse para ele. Comeou a me
perseguir e ameaar. Foi ento que Ana comeou um novo relacionamento, com outro rapaz,
que presenciou as cenas de cimes e as angstias dela com relao ao ex-namorado. Usurio
de drogas, esse novo namorado juntou-se com um sobrinho dela envolvido em crimes e
drogas e resolveu matar o ex-namorado de Ana. Ela assumiu a autoria intelectual do crime
para resguardar o namorado, verdadeiro autor intelectual do homicdio. O executor do crime
foi o sobrinho de Ana, menor de idade, na poca. Presa, ela foi processada, julgada e
condenada a 19 anos de recluso.
Ana faz a seguinte reflexo sobre o dia do seu julgamento e a longa pena recebida:
Demorou um ano e um ms para sair a sentena. Foram vinte anos de pena, s que
por eu ser menor de 21 e ter residncia fixa, ento ficou 19 anos. O meu namorado,
que eu assumi por ele, foi a nica testemunha de acusao no dia do meu
julgamento. Foi a quando que caiu a ficha do que eu tinha feito. Foi quando veio
aquele negcio na minha cabea: Meu Deus, o que foi que eu fiz? Achei que ia
passar vinte anos dentro da cadeia. Ia ficar esse tempo todo longe do meu pai, da
minha famlia, dos meus irmos, da minha filha. Ia ficar fora do mundo esse tempo
todo. Eu ia morrer ali dentro. Veio um monte de coisa ao mesmo tempo na minha
cabea. Passei mal, desmaiei.
Ana passou cinco anos na priso e est em liberdade h cinco anos. Ela fala do
sofrimento do crcere, mas enfatiza que esse sofrimento foi muito maior para a filha, que
ficou na casa de uma irm durante o perodo em que esteve presa.
A minha filha tava com quatro anos quando eu fui presa. Todas as visitas levavam
minha filha para mamar no presdio. S que era muito difcil para mim, porque
quando ela saa, ela ficava arrasada e chorava muito. Ela era muito pequena e muito
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apegada a mim. Ela era muito apaixonada. Era, no, ela muito apaixonada por
mim. At as prprias agentes de l do presdio se sensibilizavam, choravam quando
era dia que minha filha ia, pelo estado que ela saa de l. Ela ficava segurando nas
grades. Essa cena nunca vai sair da minha mente. Eu no sofri, mas a minha filha
sofreu. Quando eu sa da priso, ela ficou to feliz. Ela chorou, me abraou e disse:
Me, que bom! Graas a Deus que a senhora t perto de mim agora. Agora no vou
me separar nunca mais da senhora.
Eu costumo dizer que o pessoal da APAC minha segunda famlia, meus pais, meus
irmos, tios, tias. So pessoas que at hoje me apoiam. So as nicas pessoas com
quem eu posso contar. E quando eu falo posso contar, no nem tanto na situao
financeira. O que eu precisar, eles me ajudam, mas mais na parte afetiva,
entendeu? E eu sei que posso contar com eles quando t com algum problema em
casa. Eu ligo, converso, eles me tranquilizam. So coisas que dinheiro nenhum pode
comprar: o afeto e o carinho.
Esse apego s pessoas da APAC, que so elevadas ao patamar de famlia para ela,
parece representar a tentativa de reconstituir o self na dimenso afetiva a partir de novas
relaes sociais que no sejam influenciadas pela estigmatizao do crcere. uma forma de
sentir-se querida, respeitada e valorizada, sobretudo porque se sentiu muito rejeitada quando
retornou liberdade, j que os/as amigos/as e at familiares se afastaram dela.
A sucesso de relacionamentos afetivos que Ana descreve e que esto presentes nos
momentos mais cruciais de sua vida, ligando-se ou no ao crime, ao crcere e ao ps-crcere,
parece compor algo de muito central para ela, aparecendo em sua narrativa como suposta
marca de autonomia. Trata-se de algo caracterstico da matrifocalidade, na medida em que
pressupe relacionamentos pouco duradouros que, pela prpria impossibilidade do
cumprimento do papel de provedor atribudo aos homens, no garantem o sustento de Ana e
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de sua filha, gerando uma sucesso de envolvimentos afetivos inviabilizados pelas condies
concretas de existncia.
O relacionamento de Ana com a atual companheira, uma policial civil, foi iniciado na
priso, onde se conheceram atravs de agentes penitencirias. Angustiada com o sofrimento
da filha, que estava morando na casa de sua irm, Ana pediu que ela cuidasse da menina, at
que retornasse liberdade. Quando saiu da priso, foi morar com a companheira e a filha,
formando uma famlia. No entanto, entende que seu relacionamento, hoje, est desgastado,
sobretudo pelos constantes conflitos da filha, j adolescente, com a companheira. Revela,
ento, o desejo de pr fim ao relacionamento, para criar a filha sozinha.
A relao com a filha j era muito importante na vida de Ana. No entanto, mais do que
algo que concorreu para a mortificao do self durante o cumprimento da pena, a maternidade
passou a ocupar um lugar central como elemento de reconstruo do self, pois o que
impulsiona Ana na busca de trabalho remunerado o que significa autonomia e
independncia financeira , j que ela deseja dar orgulho filha, tornando-se exemplo na sua
educao. Nesse sentido, as esferas afetiva e profissional esto intimamente conectadas, uma
vez que na busca por um espao no mercado de trabalho que Ana encontra o meio para
vivenciar plenamente a maternidade.
Ana afirma que ainda no tem coragem de separar-se da companheira, por causa da
dependncia financeira, mas quando a tiver, jamais voltar a se envolver com mulheres, pois
essa experincia afetiva resultou apenas das decepes afetivas e da carncia na priso. Isso
demonstra bem os efeitos da segregao prisional sobre a vida afetiva de Ana, algo que
expressa a mortificao do self vivenciada no crcere. No a homoafetividade em si que
expressa essa mortificao, mas a mudana no comportamento sexual de Ana, desencadeada
pelo encarceramento e pela perda de referenciais afetivos que compunham o self antes da
198
priso. Apesar disso, o padro matrifocal, que coloca a mulher inicialmente como foco afetivo
e, posteriormente, como foco econmico da unidade domstica, repetido.
Atravs dos convnios, Ana foi remanejada para a CASAL, onde trabalha atualmente
como secretria da Presidncia. Como a CASAL valoriza mais os/as trabalhadores/as
beneficiados/as pelo convnio, ela sentiu essa mudana como algo positivo, um crescimento,
sobretudo porque passou a desempenhar atividades de natureza administrativa e no mais
aquelas atividades repetitivas tipicamente domsticas.
Aqui fora eu ainda estou me acostumando. Porque cinco anos que meu mundo foi
aquele. Minha vida se resumia quilo ali, quele espao ali. E assim, aqui fora tudo
muito grande, tudo muito diferente l de dentro. Sei l. Ainda no sei como
explicar. Olha, hoje eu dou valor ao ir na padaria comprar po. Me sinto to feliz de
estar fazendo isso novamente. Porque eu achei que ia morrer ali dentro, no presdio.
com esse apego liberdade que Ana faz planos para o futuro. Aponta como meta
adquirir uma casa prpria, fruto de seus esforos, e deix-la para a filha. na sua prpria
histria, cheia de vicissitudes, que Ana encontra parmetros para a educao da filha e para a
busca de um futuro melhor. O passado, portanto, no apontado por ela como algo a ser
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esquecido, mas como algo a jamais ser repetido. O futuro, por sua vez, j est acontecendo.
uma nova histria que ela escreve dia aps dia.
Dalila
Dalila tem 28 anos e uma mulher muito bonita. Alta, possui longos cabelos loiros
cacheados e olhos verdes. vaidosa e gosta de usar roupas curtas e coloridas. Sua aparncia e
a forma como se comporta atravs de gestos sensuais revelam a performance de sua
feminilidade de acordo com padres tradicionais.
Filha nica de uma famlia de classe mdia baixa, Dalila cursou at a 8 srie (no
concluda) e no levou os estudos adiante porque se envolveu com drogas. Ela nunca havia
trabalhado antes de ser presa e era sustentada pelo pai, que faleceu h cerca de um ano. Chora
ao falar do pai porque lembra o quanto ele ficou magoado com o crime cometido por ela, a
ponto de no visit-la na priso durante os quatro anos em que permaneceu encarcerada.
Como filha nica, encontrava no pai, na me e na filha mais velha, j nascida quando ela foi
presa, os seus principais laos afetivos, pois eram as pessoas mais importantes de sua vida.
Essas ligaes afetivas aparecem em seu relato como referncias identitrias fortes.
Dalila tem duas filhas. A primeira, de dez anos, fruto de um relacionamento que teve
no final da adolescncia. O pai da criana nunca a reconheceu oficialmente, mas d um
pequeno apoio financeiro, que ela chama de ridculo. A segunda filha, de dois anos, nasceu
da unio com um traficante de drogas, tambm viciado, com quem se envolveu depois de sair
da priso. Quando essa filha estava prestes a nascer, Dalila resolveu ir morar com os pais,
fugindo dos delrios do companheiro drogado, usurio de crack. Ela descreve o
relacionamento como algo conturbado e cheio de brigas. Desde ento, no voltou a morar
com ele que, tempos depois, foi assassinado. Sobre a morte do companheiro, afirma: Eu
gostava dele, mas eu num senti muito a morte dele, no. Num vou mentir... Era difcil. Ele
tava perturbado e eu tava vendo a hora dele fazer uma besteira comigo. Dalila j foi usuria
de maconha e crack, mas parou de usar desde que saiu do Santa Luzia. Descreve isso como
uma libertao.
sentimentos mistos. Alegria por v-las, mas tristeza por estar na condio de presidiria. Sua
relao com a filha mais velha restou muito fragilizada pela segregao da priso. Sobre isso,
ela relata:
Minha filha era pequenininha quando fui presa. Ela ia me visitar e ficava chorando
quando ia embora, mas todo dia eu ligava, conversava com ela. Hoje a minha
relao com ela boa, mas no como eu esperava. Pelo tempo que a gente passou
distante, ela se apegou mais a minha me do que a mim. Hoje mesmo, se for o caso
deu ir morar em outro lugar, ela no vai querer ir comigo. Ela t com dez anos j.
Ela sabe, esquece no, ela lembra tudo do tempo em que estive presa.
Dalila reconhece, ento, que foi o tempo de afastamento proporcionado pelo crcere
que contribuiu para que a ligao com a filha fosse modificada, a ponto de a criana apegar-se
mais av do que a ela. A frustrao da expectativa que guardava consigo para o retorno
liberdade grande, a ponto de reconhecer que o afeto da filha por ela jamais ser como era
antes da priso. Trata-se de uma perda significativa, expresso clara da mortificao do self,
desencadeada pelo encarceramento.
Voltei a estudar, noite. a oitava srie, nono ano. pra ver se eu consigo mais
oportunidade, porque t difcil. Eu fui fazer uma inscrio no SENAC, para fazer um
cursinho de recepo. Disseram que eu tinha que terminar os estudos. Por isso que
eu voltei a estudar, pra terminar, pra fazer o curso. Fiz um de informtica tambm,
mas a pessoa no consegue emprego. muito ruim.
Desde que saiu do presdio Santa Luzia, h cinco anos, Dalila s conseguiu empregos
precrios, sem carteira assinada, em lojas de roupas, restaurantes e bares. A estigmatizao
velada est presente em todos os fatos e circunstncias relacionados s suas tentativas de
insero no mercado de trabalho. Chegou a trabalhar por uma semana em um restaurante,
como garonete, mas quando pediram a documentao dela, logo a dispensaram, dizendo que
no precisavam mais dos seus servios. Ela fala da grande dificuldade de arranjar emprego
pela condio de ex-presidiria:
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s vezes a pessoa vai para uma entrevista e tem tudo pra dar certo. Quando depois,
no chamada. Eu passei por umas entrevistas no comrcio de Macei. Fui pra uma
loja, a a moa disse: Aguarde.... Depois da entrevista, levou os meus dados. Acho
que puxaram l a minha ficha. At hoje, sempre isso: Fique aguardando. A, voc
tem 99% de chance, mas depois, desaparece. Eu acho que por ser ex-presidiria.
Eles no perguntam sobre isso na entrevista, mas pedem Nada Consta. A...
Foi ento que surgiu uma oportunidade de trabalho, atravs do convnio da IGESP
com a CASAL. Ela ficou muito animada com o trabalho, mas no se adaptou bem s regras
do local. Logo no primeiro dia, foi trabalhar com roupas muito justas e a barriga mostra. O
chefe imediato mandou que ela providenciasse uma roupa mais adequada ao ambiente de
trabalho. Como a CASAL localizada no centro da cidade de Macei, Dalila tratou
imediatamente de comprar uma blusa para enquadrar-se s exigncias do trabalho. No
entanto, viu essa exigncia como um exagero: Qual o problema de usar a minha roupa?.
Acostumada com ambientes menos formais bares e restaurantes de periferia , Dalila custou
a se adaptar ao local, de modo que algumas pessoas que ali trabalham se referem a ela como
doidinha ou danada. Ela apenas ri, dizendo que esse o seu jeito de ser.
Dalila ainda trabalhou ali por alguns meses, quando iniciou um relacionamento com
um ex-presidirio que tambm trabalhava na CASAL. Passaram a morar juntos, e ela levou
consigo apenas a filha mais nova, j que a mais velha quis ficar com a av. Juntos, Dalila e o
companheiro passaram a faltar muito ao trabalho, perdendo a confiana da administrao da
empresa. Depois, desapareceram totalmente e foram desligados do convnio. Esto
desempregados, vivendo novamente de bicos.
Sara
Sara tem 45 anos de idade e costureira. uma mulher de estatura mediana, magra, de
pele morena, com traos indgenas. Descreve a infncia como legal, mas relata que trabalha
desde criana, ajudando a famlia. Para ela, os pais souberam cri-la bem. Ela diz: Eu sinto
que sou educada. Primeiro, a educao que meus pais me deram. Depois veio a dos
professores.
Sara casou-se cedo, com 17 anos de idade. O casamento durou 19 anos e deu origem a
quatro filhos, trs rapazes e uma moa, todos hoje adultos e independentes. A maternidade e a
relao com os filhos aparece como um elemento identitrio muito expressivo na vida de
Sara, o que se pode inferir pelo fato de que afirma ter assumido o crime de homicdio
cometido por um filho, menor de idade na poca, na tentativa de evitar que ele fosse recolhido
Unidade de Internao de Menores, para cumprir medida socioeducativa. Foi em nome do
afeto materno e com o sentido de proteger o filho que ela foi parar na priso.
Os relacionamentos afetivos tambm figuram na vida de Sara como outro forte trao
identitrio, verdadeiro elemento constituinte do self. atravs desses relacionamentos que ela
relata a histria de sua vida.
Aps dois anos e dois meses do fim do casamento de 19 anos, ela comeou novo
relacionamento. Neste momento, j estava presa, condenada a uma pena de 19 anos de
recluso. Ela o conhecia antes de ser presa, mas foi no presdio, nos dias em que as mulheres
recebiam autorizao para visitar os presos no complexo penitencirio, que comeou o
namoro. Tempos depois, eles j se consideravam casados.
Foi muito legal. Gostei do segundo casamento. No houve sofrimento para mim. E
tirei a cadeia mais fcil, com mais facilidade. Para mim o tempo passou que no
senti, porque estava acompanhada. Apesar da priso, foi legal. Estava bem
acompanhada, era bem tratada, tambm tratava bem dele, que era preso tambm.
Sara passou quatro anos, um ms e doze dias na priso. J est em liberdade h seis
anos. Refere-se priso, sempre, como aquele lugar. Quando foi presa, seus filhos eram
todos menores de 18 anos e foram amparados por familiares, em So Paulo e em Rondnia.
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Na priso, s recebeu visita uma vez, quando vrios parentes, juntos, foram at o presdio. Os
filhos, por estarem distantes, jamais a visitaram na priso. O contato com eles e os demais
familiares se dava apenas por telefone. Isso, porm, teve repercusso direta na forma como a
relao com eles passou a ser vivenciada, o que aparece constantemente em seu relato. A
segregao prisional acarretou uma intensa fragilizao dos vnculos afetivos, expresso clara
da mortificao do self na vida de Sara.
A solido da priso foi minimizada, ento, pela presena do companheiro preso. Nos
dias em que no ia visit-lo, Sara passava horas e horas concentrada na mquina de costura,
sua grande companheira de priso e meio de subsistncia, j que costurava para outras presas,
agentes penitencirias e at para a Direo. A manipulao contnua da mquina de costura
acarretou fortes dores de coluna, tratadas com medicao anti-inflamatria. Alm disso, Sara
fala de outras sequelas da priso sobre o seu corpo e sua mente, algo que tambm aponta para
a mortificao do self acarretada pelos efeitos do espao penitencirio sobre o corpo. Ela
desenvolveu enxaqueca crnica e tem hoje problemas de esquecimento. Atribui essas mazelas
ao sofrimento vivido naquele lugar. Ela relata:
Ali no presdio a gente s v o sol nascer quadrado. Est fechado. Meu mundo
aquele. Quando sa, fiquei assim, meio ababacada. que o tempo vai passando e a
gente que passa por aquele lugar vai ficando com problema mental. A gente no
enlouquece porque Deus mais. A gente fica com problema de esquecimento.
Ainda hoje eu sofro por isso. Eu no tive o prazer de sair daquele lugar [presdio] e
ter eles ao meu lado. Era meu maior prazer de ver os quatro juntos comigo, como era
antigamente. A gente se separou por causa da priso. A eu perdi o acompanhamento
da adolescncia deles. Meu sofrimento todinho por isso. Depois que eu sa, tudo
ficou diferente.
Sara afirma que o filho mais velho nunca a perdoou pelo crime cometido, embora no
verbalize isso. na forma hostil como ele a trata que ela interpreta esse sentimento do filho,
que jamais resgatou a intimidade antigamente existente na relao me-filho. Os outros trs
so mais afetuosos, mas, como vivem longe, no compem mais um ncleo familiar, como
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antigamente. Ela relata uma srie de tentativas de reconstituir essa relao, inclusive o fato de
ter viajado para visitar cada um deles em suas cidades. Essa tentativa de resgate demonstra a
busca de Sara em reconstituir o self atravs da restaurao dessas relaes afetivas
fragilizadas. Embora tenha avanado, no conseguiu, ainda, relacionar-se com eles da forma
como gostaria.
Poucos dias depois que saiu da priso, Sara conseguiu emprego de costureira em um
ateli. Afirma que a dona do estabelecimento sabia de sua condio de ex-presidiria, j que o
contato foi estabelecido atravs da psicloga do presdio Santa Luzia, que explicou a situao
de Sara. A empresria aceitou-a sem preconceito, segundo ela. Embora fosse uma excelente
costureira, recebendo o reconhecimento da dona do ateli, Sara no se adaptou ao espao de
trabalho, justamente pelas sequelas da priso em seu corpo. Sentia muito calor, fortes dores de
cabea e de coluna. Sabia, ento, que no permaneceria ali por muito tempo. Quando
apareceu a oportunidade de trabalhar no IFAL, deixou o emprego no ateli e foi trabalhar em
atividades domsticas naquele espao acadmico.
Sara saiu da priso antes do marido e, como no tinha para onde ir e no tinha meios
de pagar o aluguel de uma casa, permaneceu num quartinho l na parte externa do presdio
Santa Luzia, denominado albergue. No se tratava de um espao adequado para mulheres
em regime semiaberto, mas servia de apoio quelas que no tinham famlia por perto. Ela
descreve esse incio de retorno liberdade como um tempo sofrido pela perda da famlia.
Foi na sada da priso que ela realmente sentiu o peso da distncia dos filhos.
Aps um ano de trabalho, Sara conseguiu alugar uma casa, onde passou a viver com o
segundo companheiro por algum tempo. Foram oito anos de relacionamento, findados quando
ele comeou um relacionamento paralelo. Segundo ela, ele se embelezou por outra mulher e
quem perdeu foi eu. Fiquei solteira novamente. Ento no gostei de ficar s, porque eu gosto
da vida a dois. Um ms depois dessa ruptura, Sara iniciou outro relacionamento, com ex-
presidirio, beneficirio do convnio. J esto morando juntos h quase seis meses. Sobre esse
novo relacionamento, ela diz:
At aqui est dando certo. No sei at quando, porque os homens hoje so muito
namoradores e as mulheres no aguentam isso. As mulheres no aguentam traio e
separam logo. Ento at aqui est dando certo. No sei at quando, mas estou feliz
com isso.
pela segregao oriunda da priso. Isso tambm se evidencia na forma como descreve pessoas
amigas que a acolheram no ps-crcere, tornando-se uma verdadeira famlia para ela. Eu sou
recebida por uma famlia, que no famlia de sangue, mas eu me aproximei dessas pessoas e
j me tenho como uma pessoa da famlia, porque aqui eu no tenho famlia de sangue. Essa
compensao tambm evidencia a busca de Sara por novas relaes sociais e afetivas com
pessoas que proporcionem acolhimento, valorizao e respeito, o que ressalta atravs da
nfase que d ao fato de ter de visit-los todos os dias, porque eles cobram a presena
contnua deles em sua casa.
Sara faz a seguinte reflexo sobre as experincias vividas na priso e que a levam a
repensar o passado:
Para mim, a priso foi uma escola pela qual eu nunca tinha passado. Apesar de todo
sofrimento que passei, para mim foi melhor porque aprendi coisas melhores para a
minha vida. Tive mais experincia. Que aquilo passado no acontece mais porque j
estou pensando melhor. O que vier de mal para o meu lado, eu tenho que tolerar. Eu
no posso ser aquela do corao muito rgido de antes. O corao mudou para
melhor. Tudo de ruim que vier para o meu lado, eu tenho que me defender, mas de
outra forma melhor, no da forma como aconteceu.
Na histria de vida de Sara, a dimenso afetiva que se destaca como a marca mais
forte de constituio do self. Por isso, sua busca por reconstituir aquilo que para ela compe
seus elementos identitrios mais basilares est justamente ligada aos vnculos familiares com
os filhos, aos relacionamentos amorosos e s novas amizades que substituem a ausncia da
famlia. A dimenso profissional de sua vida importante como meio de subsistncia, mas
no aparece como um problema em sua vida. Por um lado, ela sabe que est em um trabalho
temporrio, no fichado. Por outro, tem cincia de seus atributos de costureira, que
aparecem como uma alternativa de subsistncia. Assim, na esfera afetiva que se concentram
todos os esforos de Sara na busca contnua de reconstruo do self na vida ps-crcere.
Maria
Maria tem 29 anos. uma mulher muito bonita, de pele clara, olhos verdes e cabelos
longos, lisos e bem tratados. Ela estudou at a 8 srie e possui uma educao domstica
diferenciada, o que se evidencia atravs de seus gestos delicados e da forma de se expressar,
com um vocabulrio rico e sofisticado. Sua aparncia ressaltada por todos com quem
convive, o que ficou evidente durante a pesquisa de campo no espao penitencirio e na
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instituio conveniada onde ela trabalhou por algumas semanas. Sua performance, que inclui
a forma elegante de vestir e os gestos sutis, signos de beleza feminina, constitui um elemento
identitrio ao olhar dos outros e reconhecido por ela como atributo de sua autoidentidade.
Isso verbalizado em alguns momentos de seu relato, sobretudo quando pondera que a
aparncia pode contar a seu favor, evitando a estigmatizao ou, como ela diz, o
preconceito na vida ps-crcere.
Natural de Macei, Maria relata que teve uma infncia feliz. Antes de ser presa, era
casada e morava com o marido e o filho pequeno. Ela conta que se envolveu em crimes por
causa do marido, assaltante, que foi assassinado na operao que a levou priso. Foi
condenada a uma pena de 17 anos por roubo e extorso.
O relacionamento de Maria com a me descrito por ela como algo um tanto difcil,
sobretudo porque a me superprotetora. Foi ela que ficou responsvel pelo filho de Maria
durante os quatro anos, sete meses e onze dias em que esteve presa. Eles iam visit-la
regularmente na priso e isso era motivo de grande alegria para ela, pois no perdeu o contato
com a criana nesse perodo. Atribui a isso, inclusive, o fato de no haver mudanas no
relacionamento com o filho.
Maria est em liberdade h cerca de um ano. Define o retorno liberdade como algo
maravilhoso, mas um recomeo difcil, porque tem de comear tudo do zero, voltar a morar
na casa da me, alm de buscar o prprio sustento, sabendo das dificuldades que uma ex-
presidiria enfrenta para encontrar espao no mercado de trabalho.
Para Maria, a priso ensinou muitas coisas boas, a exemplo do valor da famlia, que ela
no reconhecia antes de ser presa, alm da liberdade em si, representada em suas palavras
atravs do contato com o sol quente e a chuva: Nesses dias cheguei em casa toda molhada da
chuva a agradeci a Deus, porque l dentro do presdio eu desejei tanto tomar banho de chuva e
nunca tomei. Para ela, a sensao de respirar o ar ao cu aberto como nascer de novo. Essa
expresso sugere que a vida no crcere vista como um perodo de morte, de perdas, de
rupturas. um perodo do no vivido. Estar de volta liberdade, para ela, como se deparar
com uma nova vida, o que no significa esquecer o passado, mas tom-lo como parmetro
para o que ela buscar no futuro, tanto na vida afetiva como nas relaes profissionais.
Ela afirma que tem medo de voltar ao presdio e, por isso, est pisando em ovos.
Com essa expresso, revela os cuidados que tem para no mais se envolver com pessoas que
possam lev-la priso, seja atravs do descumprimento das regras do regime semiaberto,
seja atravs do envolvimento com novos crimes. Esse desejo de no mais errar reforado
pela prtica religiosa rigorosa que iniciou ainda quando presa, quando converteu-se
Assembleia de Deus. Maria relata que a religio consistiu em apoio fundamental durante o
tempo de encarceramento e atribui a isso a mudana em seu carter. Reconhece, porm, as
dificuldades enfrentadas para se adequar s regras da religio. Ela, que anteriormente era uma
mulher vaidosa e usava bijuterias, maquiagem e roupas curtas, passou por um profundo
processo de transformao, at que foi batizada ainda na priso. Assim, afirma: Eu mudei
muito. J no tenho os mesmos costumes de antes, no uso as mesmas roupas, maquiagem,
brincos, coisas que eu sempre gostei. preciso ressaltar que, quando a farda foi implantada
no presdio Santa Luzia, proibindo-se o uso de adornos, maquiagem e salto alto no cotidiano
carcerrio, Maria j havia se convertido religio. Portanto, essas mudanas em sua aparncia
foram decorrentes, exclusivamente, da converso religiosa.
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As mudanas sofridas por Maria em funo da nova religio representam uma forte
expresso dos processos de reconstruo do self iniciados j no espao penitencirio. Catlica
no praticante antes da priso, Maria busca na nova religio uma forma de apagar as marcas
do passado e nascer de novo, atravs de uma mudana de carter. A passagem pela priso
foi determinante para essa radical mudana em sua vida. Ela deixa elementos de sua
identidade anterior para viver uma nova forma de vida, desencadeada pelas vivncias na
priso e repercutindo em sua vida ps-crcere.
Foi nos cultos religiosos que Maria conheceu seu atual namorado, com quem mantm
um relacionamento em que, segundo ela, tudo na ordem e na decncia. Como aderiu s
regras e preceitos da religio que agora faz parte de sua vida, Maria e o namorado obedecem a
todas as recomendaes dadas pela Assembleia de Deus no que diz respeito castidade e ao
recato antes do casamento. Esse tornou-se, para ela, o parmetro ideal de relacionamento. Por
considerar que pessoa certa na hora certa, Maria passou a cultivar o desejo de casar e ter
mais filhos. Esse relacionamento, iniciado na vida em liberdade, sugere novos arranjos
afetivos, que atribuem elementos identitrios passveis de representao nas relaes
cotidianas, compondo uma nova imagem de Maria diante das pessoas com as quais convive.
Abgail
Abgail tem quarenta anos e uma mulher de aparncia sofrida e sorriso triste. Vem de
uma famlia humilde da zona rural de uma cidade do interior de Alagoas, mas afirma que teve
uma infncia tranquila. Casou-se aos vinte anos e teve trs filhos. Separou-se quando as
crianas ainda eram pequenas e criou os filhos sozinha, com a ajuda da me.
Abgail chora durante a entrevista quando fala do sofrimento dos trs filhos no tempo
em que esteve presa. Nesse perodo, as crianas ficaram com sua me, que, segundo ela, no
tinha pacincia para cuidar de crianas. Por isso, depois foram morar com o segundo
companheiro dela, padrasto deles. Afirma que o companheiro cuidou das crianas melhor do
que a me dela. O companheiro visitou Abgail na priso por trs anos e sempre levava as
crianas para ver a me. Por isso, ela no perdeu o contato com os filhos, mas sofria muito a
cada vez que os encontrava dentro da priso, sobretudo porque eles tambm expressavam o
sofrimento vivido. A perda da vivncia cotidiana com os filhos, do cuidado, da educao
durante o cumprimento da pena, aparecem em seu relato como fonte de muita angstia, j que
ela, segregada, no exercia na plenitude o seu papel de me, elemento identitrio tambm
forte em sua vida. Num contexto familiar matrifocal como o dela, as perdas ocasionadas pelo
encarceramento tanto se situam na dimenso afetiva, atravs das constantes referncias sua
ausncia nos processos de educao e no cuidado com os filhos, como no seu papel de
provedora, to central para ela.
Abgail passou sete anos e trs meses no presdio Santa Luzia e faz questo de ressaltar
que j estava ficando aperreada com tanto tempo de priso. O pequeno espao
penitencirio, as limitaes da autonomia, as regras internas e os conflitos com outras
mulheres presas tornaram o tempo de encarceramento muito angustiante, sobretudo porque o
tempo de cumprimento efetivo de pena de Abgail ultrapassou a mdia de quatro anos de
permanncia no crcere, em Alagoas.
Ela admite, porm, que aprendeu coisas que no sabia. Embora no tenha estudado,
Abgail fez cursos de artesanato e de cabeleireira. Ela diz: Se hoje sou cabeleireira, porque
aprendi na priso. Quando reconquistou a liberdade, h quatro anos, a primeira coisa que fez
foi batalhar trabalho. Enquanto no arrumava emprego, vendia tapioca e bolo que ela
mesma preparava, na feirinha de um bairro perifrico de Macei. Com essa atividade, lucrava
entre R$ 30,00 e R$ 40,00 todos os dias. Chegou a montar um pequeno salo de beleza na
casa da me, mas no teve condies de sustent-lo. Depois, conseguiu emprego em casa de
famlia, cuidando de uma senhora de idade e afirma que jamais escondeu da patroa que era
ex-presidiria. Essas atividades demonstram que ela, embora no estivesse alheia s
dificuldades no mercado de trabalho, buscou diversos meios de subsistncia na vida ps-
crcere, o que sugere tentativas de resgate de sua autonomia financeira, que tm repercusso
no apenas na subsistncia, mas tambm nas relaes afetivas, particularmente com os filhos.
Para demonstrar como foi bem aceita e como teve o seu trabalho valorizado, Abgail
ressalta que precisou mentir para poder deixar o emprego na casa de famlia e mudar para o
IFAL, quando apareceu uma oportunidade de trabalho. Na poca, inventou para a patroa que a
me estava doente e que, por isso, no poderia mais trabalhar. Ela conta que a patroa chorou
com sua sada. Ao relatar esses fatos, Abgail ressalta suas qualidades identitrias positivas,
representando atributos que favorecem a sua aceitao entre as pessoas com as quais convive,
mesmo com as marcas do crime violento praticado e do perodo de vivncia no crcere. Ela
reconhece que as pessoas temem uma ex-presidiria, estigmatizando-a, e resistem a
contratar mulheres libertas do crcere para o trabalho no espao domstico, onde a confiana
o pressuposto maior. No entanto, vale-se desse tratamento diferenciado para ressaltar aquilo
que se destaca nela como uma importante qualidade, que deve ser levada em considerao
quando diante do olhar dos outros.
outras filhas, mais velhas, j so casadas e vivem suas prprias vidas. Como forma de
complementar a renda, ainda vende bolo e tapioca nos finais de semana.
Abgail no tem grandes sonhos para o futuro. Deseja apenas deixar para trs as
lembranas da priso e levar uma vida honesta e em paz.
Betnia
Betnia foi menina de rua e tem no corpo as marcas de uma vida sofrida e ligada s
drogas. Aos 35 anos, tem uma aparncia bem envelhecida. magra, de baixa estatura e tem a
pele negra, cheia de cicatrizes. No aparenta vaidade com os cabelos, sempre desalinhados, e
j no tem os dentes da frente, o que dificulta, inclusive, a compreenso do que ela fala. Essa
forma de apresentar-se no resulta da segregao prisional. Como sua vida sempre oscilou
entre perodos em que morava nas ruas, envolvida com drogas, e outros em que recebia o
amparo da irm em casa, a vaidade parece algo alheio sua vida.
Betnia est presa pela dcima vez, sempre pelo mesmo crime: furto. Das dez vezes
em que esteve presa, a em que mais demorou foi quando passou um ano e sete meses, aps
condenao a sete anos de recluso. Das outras vezes, foi presa provisoriamente, mas
beneficiada por relaxamento de priso, diante da pequenez do delito praticado. A entrada mais
recente na priso se deu pelo furto de dois desodorantes em um mercadinho. Atualmente, ela
aguarda julgamento e considerada reincidente.
212
Betnia tem quatro filhas. Como sempre possuiu uma vida desregrada e marcada por
pequenos delitos e sucessivas entradas na priso, jamais conseguiu exercer a maternidade na
plenitude, pois todas as filhas foram criadas por outras pessoas da famlia. Duas vivem com a
av paterna e uma delas j tem um filhinho. Uma vive com a madrasta, companheira do pai, e
a outra com a irm de Betnia.
Quando esteve presa, somente a irm ia visit-la, mesmo assim apenas por trs vezes,
oportunidades em que levou a filha de Betnia que mora com ela. Ela at lamenta a separao
das filhas, no necessariamente ocasionada pelo encarceramento, j que somente uma morava
com ela e a irm, mas reconhece que no teria condies financeiras e mesmo emocionais de
cuidar e sustentar as meninas, pelo tipo de vida que leva.
Atualmente, Betnia no recebe visita alguma, porque a irm, nica pessoa a visit-la,
ficou com raiva, diante da dcima entrada no presdio. Agora ela no vem, no. Ela disse que
no vinha porque eu fui fazer isso de novo porque quis. Diante dessa circunstncia, define
esta ltima entrada como a mais triste de todas e chora. A irm aparece como referncia
afetiva muito importante para Betnia, de modo que a perda desse lao afetivo, pela
reincidncia no crime, acentua o sofrimento no crcere, j que ela no estabelece laos
afetivos na priso.
Nas passagens pelo crcere, Betnia fez cursos de artesanato (bijuteria e fuxico), mas
no usou esse aprendizado para a sua subsistncia nas vezes em que esteve em liberdade.
Relata, inclusive, que sua irm queria ajud-la nesse sentido, mas foi dela a deciso de no
fazer tal investimento. Ela diz: Minha irm queria comprar material pra eu fazer bijuteria e
vender, mas eu no quis e fui roubar de novo. Dois desodorantes! T aqui de novo, presa.
crime) de subsistncia, de modo a levar uma vida que lhe proporcione uma vivncia afetiva
plena e a insero no mercado de trabalho. Assim, no demonstra esforos em desempenhar
uma performance em que se apresente aos outros sob uma luz favorvel, o que parece
decorrer da ausncia de perspectivas em sua vida.
O fato de retornar priso por tantas vezes j a leva a tratar do assunto como algo
rotineiro. Quando eu vou pra rua bom, mas quando eu volto, um desgosto. Mas, eu t
aqui, n? Vou pagar pelo que eu fiz. Betnia no tem escolaridade, no expressa o desejo de
estudar, jamais trabalhou em emprego formal e atualmente, com dez passagens pela priso,
dificilmente conseguir espao no mercado de trabalho. Por isso, chora ao pensar no futuro,
que aparece para ela como uma pgina em branco.
Din
Din tem 26 anos de idade. Alta, tem olhos verdes e cabelos lisos, pintados ora de
loiro forte, ora de ruivo. Ela vem de uma famlia de classe mdia baixa e, segundo ela, os pais
fizeram de tudo a fim de dar o melhor para ela e os cinco irmos. A infncia, para ela, nem
foi as mil maravilhas e tambm num foi to ruim, no.
Din estudou at a 5 srie e parou porque foi expulsa de trs colgios. Naquela poca,
j comeava o seu envolvimento com drogas. Ela relata que usa droga desde os 16 anos, mas
no se considera viciada, j que no usava muita droga. No entanto, ressalta que esse era o
motivo para no ter nenhum interesse nos estudos, de modo que faltava constantemente s
aulas. A forma como descreve sua vida e seu passado demonstra bem a sua autonomia,
marcada pela impulsividade e pela aparente ausncia de parmetros e limites, em todas as
esferas da vida.
Essa reflexo de Din expressa bem o que, para ela, aparece como um elemento de
mortificao do self. A autonomia, presente em toda a sua vida como marca identitria,
tolhida no espao penitencirio, sobretudo pela fora e pela autoridade da instituio. Ela fala
seriamente sobre a falta de liberdade como a pior coisa da vida.
A primeira condenao de Din levou-a a passar dois anos na priso, tempo que avalia
como ruim, mas que no deixou de ser uma lio. Recebia a visita da me, de dois irmos e da
filha pequena, definindo esse momento como a melhor coisa que acontecia. Afirma que
somente aos poucos foi percebendo que famlia tudo, algo que ela no valorizava antes da
priso.
Quando saiu pela primeira vez do presdio, aos 21 anos, Din recebeu todo o apoio da
famlia, que se esforava para que ela no voltasse ao crime e ao crcere. Ainda em liberdade,
buscou auxlio em uma igreja evanglica, mas no gostou, porque as pessoas diziam que era
s mscara. Ela diz: Eu num acho que era s mscara, eu acho que eu me esforcei, porque
pelo que eu me conheo, eu acho que eu no tinha capacidade pra isso, no. Eu tava tentando,
s que ningum me ajudou. Fiquei sozinha, me revoltei. Ela afirma que hoje no tem
religio, mas que reza o Pai-Nosso, quando se lembra, embora no acredite muito, por causa
das injustias do mundo.
Este relato, que revela as impresses dos outros que a conheciam acerca do seu
suposto novo comportamento, demonstra como Din busca representar as tentativas de
enquadrar-se em um padro de conduta que seja aceito no meio social para o qual ela retornou
em liberdade. Suas tentativas de representar novos elementos identitrios dissociados
daqueles que sempre marcaram sua vida de rebeldia e liberdade plena parecem no ter tido
xito, diante da estigmatizao vivenciada nas relaes sociais. A referncia expressa
revolta sentida diante da impresso dos outros pode sugerir que o seu investimento em
reconstruir sua autoidentidade a partir de novos parmetros de valor aos quais ela no est
intimamente relacionada tenha permanecido apenas no campo da representao de um self
incompatvel com o que ela parece se identificar.
Em outra situao, essa questo tambm fica bastante evidenciada: na priso, Din no
trabalhou nem estudou. Chegou a fazer um curso de bijuteria, com certificado, mas, segundo
ela, isso no a ajudou a encontrar emprego. Rasgou o certificado porque achava que
acarretava discriminao, embora o documento no revelasse a condio de ex-presidiria. O
nico emprego que conseguiu foi no frigorfico de uma pessoa da famlia, que no deu certo
porque a acusaram de furtar um relgio, que na realidade havia sido furtado por outra pessoa.
Ao descobrirem o verdadeiro autor do crime, no se desculparam com ela, o que a levou a
ficar revoltada e quebrar parte do frigorfico. Tentou outros empregos e no conseguiu.
Afirma que desistiu: T fora, desisti. D pra mim, no. J comecei nessa vida e acho que eu
vou morrer assim. Todo mundo fica discriminando, ningum d uma oportunidade. Fica
difcil, revolta. Nessa fala de Din parece estar situada a sua indignao diante da
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estigmatizao vivida, sobretudo diante do fato concreto de ter sido acusada de um crime que
no cometeu o furto , j que sua condio de ex-presidiria a colocava em posio de alvo
das acusaes.
Din afirma que a segunda vez na priso est sendo mais difcil, porque sente falta dos
filhos, j que praticamente no teve oportunidade de cuidar deles. Como o primeiro perodo
de permanncia no crcere, de acordo com seu relato, foi fundamental para a descoberta dos
valores das relaes familiares, lamenta porque os dois filhos menores j no a reconhecem
como me e estranham quando vo visit-la na priso. Alm disso, sofre porque a filha mais
velha, de seis anos, sabe que ela est presa e chora com saudades. Ao expressar esses
sentimentos com relao aos filhos, ao no vivido, s referncias maternas perdidas, Din
demonstra como a maternidade, aos poucos, se instala em sua vida como uma nova referncia
identitria.
Hoje Din tem mais dois filhos trs no total , tendo a mais nova nascido j na
priso, quando da sua segunda entrada. Ela ficou com a filha apenas durante o perodo de
amamentao o que permitido por lei e a entregou para a me tomar conta. O pai de seus
filhos mais novos tambm est preso, cumprindo pena de 15 anos de recluso em Macei. Ela
no o v h mais de um ano e s teve notcias dele por carta. Embora expresse o desejo de
rev-lo, porque gosta dele, Din viveu um relacionamento homoafetivo no Santa Luzia. Ela
no gosta de falar no assunto e desconversa. No entanto, jamais se sentiu constrangida em
demonstrar o afeto pela mulher com quem se relacionava na priso, atravs de beijos, abraos
e carcias pblicas, o que levou a direo do presdio a separ-las em mdulos distintos por
algumas semanas. Essa proibio de vivenciar o relacionamento homoafetivo advm das
regras impostas pela instituio penitenciria, que estabelece certos padres morais para
definir o comportamento das mulheres que ali esto presas. Para Din, acostumada a uma
liberdade plena, sem limites, a imposio dessa separao aparece como tpica expresso da
mortificao do self.
217
Sobre a priso, Din afirma: o fim da vida. Nessa expresso esto implcitas todas
as impresses, sensaes, frustraes e revoltas de uma mulher que tem a autonomia como
sua principal marca identitria e que, tolhida pelo espao penitencirio, busca novos
elementos e novas relaes familiares e afetivas para a reconstruo do self. Para o futuro,
Din espera sair da priso, cuidar dos filhos e levar uma vida de gente, de uma pessoa
normal. Ela sabe que, com uma vida marcada por tantos altos e baixos, duas condenaes
penais e as marcas do crcere, sua histria guarda elementos que fogem ao padro de
normalidade de uma sociedade pautada por valores que para ela so indiferentes.
Judite
Judite tem 48 anos de idade, mas aparenta ter muito mais que isso. analfabeta.
Viva, criou sozinha os sete filhos, sustentando-se pelo trabalho braal, no corte da cana-de-
acar ou na pesca. Relata que comeou a se virar de outro jeito quando pararam de
contratar mulheres para a pescaria. O filho mais velho, ento, passou a vender drogas, o que
garantia o sustento da famlia. Quando a polcia pegou o filho traficante, ela assumiu o crime
no lugar dele e foi presa. Define essa deciso como uma bno, porque o filho vivia no
mundo das drogas, praticando roubos e outros ilcitos. Ela categrica ao afirmar: Se eu no
tivesse ficado na cadeia no lugar dele, talvez ele tivesse morrido. Hoje em dia ele um
homem. Eu agradeo a Deus pela cadeia que eu tirei da outra vez. Valeu a pena, porque eu ca
num lugar desses, mas salvei meu filho.
Esse relato de Judite indica a importncia das relaes familiares em sua vida,
revelando, ainda, o peso que os papis inerentes maternidade tm na sua forma de conduzir-
se com relao aos filhos. Como me, ela se sente responsvel pela vida e pelo futuro do
filho, a ponto de assumir o crime por ele, cumprindo pena privativa de liberdade por algo que,
segundo ela, no cometeu. Isso tanto aponta para seus elementos identitrios centrais a
maternidade e o cuidado com os filhos como sugere atributos de autoidentidade
218
constituintes do self, representados, sobretudo, pelos papis que ela atribui a si mesma, diante
da funo materna.
Judite est presa pela segunda vez, por trfico ilcito de entorpecentes. Na primeira
vez, foi condenada a trs anos de recluso e passou um ano e oito meses presa. Voltou
liberdade no final de 2005, passando trs anos fora da priso. Ainda no houve julgamento
pelo segundo crime, ocorrido em circunstncias semelhantes ao anterior. Afirma que a droga
encontrada em sua casa era de outra pessoa, que morava prximo, mas que no tem como
provar isso.
Judite compara os dois momentos em que esteve na priso. Afirma que na primeira
vez foi bem tratada, com respeito e sem humilhao, mas que dessa vez as coisas tm sido
diferentes. Como exemplo, narra o fato de que, por causa do sumio de uma tesoura do curso
de artesanato, foi obrigada a se despir e se acocorar sobre um espelho por trs vezes. O
enquadramento s regras da priso e as humilhaes vivenciadas no cotidiano do espao
penitencirio expressam processos de mortificao do self, na medida em que representam um
certo patamar de reeducao por meio da fora, algo distante de pessoas adultas,
independentes e autnomas, como no caso de Judite. Por isso, a obrigao de passar por
situaes como essa descrita por ela surge como uma espcie de afronta e desrespeito
condio de mulher, me de famlia e trabalhadora, que ela faz questo de ressaltar como suas
principais caractersticas.
Essa forma de descrever seu prprio comportamento carcerrio e o convvio com todas
as pessoas que transitam no espao penitencirio, ressaltando o lado positivo de sua conduta,
enseja certo olhar crtico de Judite para a dinmica penitenciria, as mudanas de gesto e,
portanto, a instabilidade da instituio. Sua nfase no fato de no haver mudado de
comportamento com relao primeira vez em que esteve presa pode consistir em uma forma
de representar uma imagem aceitvel, mesmo diante da reincidncia criminal. Enaltecendo
sua prpria pessoa, ela tira de si o foco de qualquer reflexo que a aponte como criminosa ou,
ainda, com esteretipos tpicos do que, no senso comum, se entende por presidiria.
219
Durante a primeira priso, Judite recebeu a visita de irms e dos filhos apenas quatro
vezes. Dessa segunda vez, quando j fazia trs meses de priso, no havia recebido nenhuma
visita. Ela fala com tristeza sobre essa solido no crcere e lamenta a perda de contato com a
famlia, sobretudo os filhos mais novos, que ficaram em casa, desamparados, com a sua
ausncia. Judite expressa o desejo de ir embora de Alagoas quando voltar liberdade.
Pretende ir para So Paulo onde moram os filhos mais velhos , levando consigo os outros
filhos. Ela reconhece a vulnerabilidade do local onde vive e sabe que isso pode concorrer para
uma terceira entrada no sistema penitencirio pelo mesmo motivo: trfico de drogas. Assim,
reflete:
Se ficar l, posso correr o mesmo risco de voltar. Porque eu moro num lugar onde
todo mundo vende droga. A, quando a polcia pega, vai direto na minha casa. Se eu
voltar pra l, vai ser do mesmo jeito. Eu no posso ficar num lugar que a qualquer
hora eu posso voltar a ser presa de novo, por uma coisa que eu no fao.
Judite no estudou na priso porque, segundo ela, tem problema de vista e isso
dificultava a leitura, mas fez cursos de artesanato. Trabalhava na faxina do presdio. Quando
saiu da priso, passou a fazer artesanato, mas ningum queria comprar. Afirma que no valia
a pena, porque no tinha para quem vender. Ento parou com o artesanato.
na relao com os filhos que esto situadas todas as mazelas do crcere em sua vida.
a separao do convvio cotidiano com os filhos que fez brotar nela a maior das angstias,
sobretudo porque, prestes a completar 49 anos, Judite se sente velha e no v um horizonte
220
favorvel no futuro. Ela termina a entrevista afirmando: Da vida, no espero mais nada, s
doena.
Rebeca
Rebeca tem 35 anos. uma mulher bonita, com traos indgenas e cabelos
avermelhados. Natural de Palmeira dos ndios (AL), vem de uma famlia de agricultores e
estudou somente at a 2 srie. Ela define a infncia como legal e relembra as brincadeiras
de criana e a escola como momentos felizes da vida. Na adolescncia, comeou a trabalhar
em casa de famlia, fazendo faxina e cuidando de crianas, mas deixou de trabalhar quando se
casou.
Rebeca passou trs anos e cinco meses presa e, com a remio da pena, fruto do
trabalho na priso, conseguiu sair em livramento condicional. Passou dez anos em liberdade.
Retornou priso por se envolver em uma briga de famlia que acabou na delegacia, com a
acusao de ameaa e leso corporal. Na oportunidade, o delegado descobriu que ela era ex-
presidiria em livramento condicional e que havia deixado de cumprir a obrigao de
apresentar-se mensalmente em juzo. Ela alega que deixou de comparecer porque foi morar no
interior, com medo de que a famlia da vtima do crime cometido se vingasse nela. Mesmo
tendo ouvido dizer que poderia transferir essa obrigao para a comarca onde mora, no o fez.
Quando a irregularidade foi verificada, ela, considerada foragida pela Justia Criminal,
acabou sendo recolhida e transferida para o Presdio Santa Luzia, onde h um ano aguarda a
deciso do juiz sobre a revogao do livramento condicional e sobre as novas acusaes que
recaem sobre ela.
Rebeca define o tempo em que esteve presa como pssimo. Refere-se s pessoas
diferentes com as quais tem de conviver, alm dos arrumadinhos e das arengas que
compem o cotidiano carcerrio. Para ela, isso significa que a priso no favorece a formao
de novos laos afetivos, porque se trata de um lugar hostil, em que no se sabe ao certo com
quem se est lidando. Assim, as principais referncias afetivas so, de fato, aquelas
221
anteriormente existentes, que esto na base de suas relaes sociais mais ntimas, como as
familiares.
Ela s recebia visita de vez em quando, da av. Naquela poca, tinha permisso para
visitar o marido preso, mas como o relacionamento acabou, no o visita mais. Ele permanece
preso at hoje. Assim, a priso significou para ela um perodo de muita solido. Como no
tem filhos e os pais so falecidos, encontra na av a principal referncia afetiva, sobretudo
depois do fim do casamento.
Rebeca no estudou durante o tempo em que esteve presa pela primeira vez, mas fez
cursos de artesanato (bijuteria e fuxico). Trabalhava na faxina do presdio e era remunerada
por esse trabalho. Nesta segunda vez, tambm j comeou a trabalhar, visando diminuir a
pena atravs da remio.
Quando saiu em liberdade, foi morar com a av, de quem dependia financeiramente.
Depois, iniciou um novo relacionamento, passando a depender do novo companheiro para
sobreviver. Tentou emprego em casa de famlia nica alternativa diante da baixa
escolaridade , mas no conseguiu. Atribui essa dificuldade ao fato de que a condio de ex-
presidiria gera preconceito entre as pessoas, principalmente no caso dela, que s se sente
apta a exercer atividades domsticas, j que no estudou. Essa constatao de Rebeca, que
indica a estigmatizao sofrida por ela no mundo do trabalho, relaciona-se diretamente ao fato
de que o trabalho domstico requer confiana, j que normalmente exercido em casas de
famlia ou locais assemelhados. Como mulheres que passaram pela priso trazem consigo no
somente a experincia do encarceramento em si, mas as marcas do cometimento de um delito,
as portas tendem a se fechar, dificultando a reintegrao social no campo profissional.
O tempo que permaneceu na priso no contribuiu em nada para que ela aprimorasse
sua escolaridade ou aprendesse algo que ajudasse na sua insero no mercado de trabalho.
Diante das portas fechadas para o trabalho, vivia em casa, cuidando de afazeres domsticos.
Isso demonstra o carter custodial da pena privativa de liberdade, que se limita a segregar as
pessoas, sem investimento concreto em atividades e ofcios que proporcionem a subsistncia
atravs do trabalho, formal ou informal.
Ela fala com tristeza do retorno ao presdio e do fato de que, nesta segunda vez,
ningum vem visit-la. Sobre a convivncia com as demais presas, avalia que muito difcil,
porque umas so amigas e outras so falsas. Isso significa que as relaes sociais
222
Ao falar do que espera para o futuro, chora e afirma: Eu no quero mais nunca voltar
pra aqui, at porque eu nunca fiz nada de errado para vir parar na cadeia. Eu vim pra cadeia
por causa desse ex-marido, que era perdido.
Berenice
Berenice tem 38 anos e uma mulher de aparncia sofrida, maltratada pelo uso das
drogas. Tem a pele morena e cabelos pretos. analfabeta e nunca estudou. Berenice tem
quatro filhas, sendo uma de 14 anos, uma de cinco, uma de quatro e outra de trs. A filha mais
velha, fruto de um primeiro relacionamento, foi criada por pessoas da famlia, j que ela no
tinha condies financeiras de educar a criana. As mais novas moravam com ela e o marido,
antes de serem presos e condenados. Mesmo sempre com dificuldades financeiras, Berenice e
o marido se esforavam para viver numa estrutura familiar tpica, mediada pelo afeto e pelos
investimentos na educao das crianas. Embora a maternidade, sobretudo nesse segundo
relacionamento, tenha se tornado uma referncia identitria de Berenice, isso no se
contrapunha ao fato de que ela mantinha estreita relao com o crime, mais especificamente
com o trfico de drogas.
Berenice foi usuria de drogas. Fumava maconha e crack. Deixou de usar drogas h
seis anos e hoje s fuma cigarro de nicotina. Para ela, isso foi uma vitria, um primeiro passo
para uma nova vida, distante do crime. Ela frequentava a Assembleia de Deus, ainda quando
em liberdade. Atribui as coisas ruins que aconteceram, inclusive o uso de drogas, ao fato de
ter se afastado da Igreja. Mesmo sem estar ligada Igreja, Berenice ainda guarda consigo
concepes religiosas que representam elementos identitrios favorveis sua aceitao
223
social, mesmo com as marcas do crime e do crcere em sua vida. So qualidades morais
ressaltadas por ela a fim de apresentar seu lado positivo, negando atributos identitrios
contrrios ao que se espera de uma me e dona de casa. Ao apontar a religio como antdoto
para as coisas ruins que aconteceram em sua vida, sugere haver sada para ela, ou seja,
demonstra que a vida envolta em drogas e crimes pode ser substituda por essa alternativa
que, durante algum tempo, produziu efeitos morais positivos em sua vida.
Presa pela terceira vez em Alagoas, Berenice passou pelo sistema penitencirio
pernambucano, embora apenas provisoriamente. Nas duas primeiras vezes em Alagoas foi
presa por roubo e, nesta ltima, por trfico de drogas. Afirma que o marido foi preso por
causa dela, que era traficante. Lamenta essa situao e se sente culpada, j que isso
proporcionou a desagregao de sua famlia.
Berenice foi condenada a cinco anos e seis meses de recluso. Entre a segunda e a
terceira entrada no presdio, ficou um ano em liberdade e est presa h um ano. Com a priso
dela e do marido, as filhas ficaram com a sogra. Ela lamenta o fato de estar distante das filhas,
perdendo momentos importantes no crescimento e na educao delas. Emociona-se ao falar
das crianas e do companheiro, demonstrando que o convvio familiar para ela um
importante elemento identitrio.
Afirma que, ao sair em liberdade, foi bem recebida por familiares e amigos e nunca
sentiu preconceito por parte deles, que jamais se afastaram ou fizeram comentrios negativos
a seu respeito, acolhendo-a nos momentos mais necessrios. Porm, sabia que isso no se
daria da mesma forma no mercado de trabalho, o que a levou a no procurar emprego formal,
revelando verdadeiro conformismo com relao estigmatizao presente no olhar dos outros
sobre ela.
224
Berenice se define como muito danada na cadeia. Isso significa que sente muitas
dificuldades em se enquadrar s normas do cotidiano carcerrio. No entanto, expressa o
desejo de mudar, cumprir a pena e ir embora, para poder criar as filhas. Pede a Deus que a
liberte, porque isso aqui [o presdio] no vida pra ningum. Ao referir-se ausncia de
vida no espao penitencirio, Berenice expressa claramente a sensao de mortificao
causada pelo distanciamento da famlia filhas e marido , alm da falta de autonomia em
sua vida. Vida, para ela, estar livre.
e, mais adiante, como provedora. o caso das narrativas de Eva, Joana, Ana, Abgail e
Rebeca.
Aliado a isso est o sentido de autonomia dessas mulheres, que tanto se expressa em
suas relaes afetivas, como na forma de administrar suas prprias vidas, seja atravs de
atividades reconhecidas como positivas ou por outros caminhos, como o da criminalidade,
como se verifica no caso de Betnia, que encontra nos pequenos furtos que j a levaram
priso por dez vezes, um meio de subsistncia, mesmo diante de oportunidades que foram
postas sua disposio.
Para algumas, essa separao acarretou perdas irreparveis, como no caso de Sara, Eva
e Dalila, cujos filhos perderam a intimidade com elas ou se apegaram mais fortemente s
pessoas que cuidaram deles durante o tempo em que a me esteve presa. J para outras, a
distncia ocasionada pela pena no foi suficiente para enfraquecer a relao me-filho/a, de
modo que, no ps-crcere, houve o resgate pleno do afeto filial. o que aparece nos relatos
de Ana e Maria, por exemplo.
Isso demonstra que, no campo das relaes afetivas, h uma preponderncia da ruptura
ou fragilizao dos vnculos afetivos materno-filiais, mas que tem desdobramentos distintos
no ps-crcere, que dependem da forma como elas conseguiram manter o contato ainda que
espordico ou apenas por telefone com os filhos, demarcando suas presenas na vida deles.
Nas pginas que seguem, apresento algumas reflexes conclusivas que, mesmo sem a
pretenso de ser exaustivas, apontam para os principais aspectos aqui analisados, e ajudam a
compreender os efeitos da segregao prisional sobre as mulheres e as consequncias da
ausncia de polticas penitencirias atentas s diferenas de gnero na vida ps-crcere.
Concluso
Este estudo teve por objetivo compreender como os processos de mortificao do self,
vivenciados pelas mulheres durante o cumprimento da pena privativa de liberdade, refletem
na vida ps-crcere, produzindo efeitos nas esferas afetiva e profissional, sobretudo diante da
ausncia de polticas pblicas penitencirias voltadas para a questo feminina.
A pena privativa de liberdade, no Brasil, a mais severa das punies aplicadas para
pessoas que cometeram crimes. Proibindo expressamente a pena de morte e a priso perptua,
a legislao brasileira traz consigo o pressuposto de que o encarceramento algo
temporalmente delimitado e que enseja o retorno do/a condenado/a ao convvio social pleno.
O perodo de segregao prisional no pode ser transformado em mera custdia. Esto na
essncia filosfico-terica da pena suas funes primordiais: punir o/a infrator/a, prevenir
novos crimes e reinserir socialmente aquele/a que cometeu o crime.
Foi neste ltimo objetivo da pena que se situou o foco deste estudo, problematizando a
questo numa perspectiva de gnero. Como as mulheres vivenciam esses processos de
reintegrao social? Quais as peculiaridades femininas, ligadas aos papis das mulheres na
vida social contempornea, que possuem implicaes na busca pelo resgate das relaes
sociais fragilizadas ou rompidas durante o tempo vivido no crcere? Como, no contexto da
vida afetiva e no mercado de trabalho, as mulheres vivenciam os efeitos do encarceramento,
lidando com a estigmatizao proporcionada pelo olhar dos outros?
transformao de homens e mulheres que passam pelo crcere, sobretudo quando se tem
como foco a reintegrao social.
Foi na obra de Goffman (2003a, 2003b, 2004) que essa dimenso no aprofundada por
Foucault pde ser contemplada, proporcionando uma ateno maior aos aspectos subjetivos
subjacentes questo penitenciria. Sua anlise das instituies totais, espaos, ambientes e as
interaes sociais no cotidiano, mediadas por estratgias de representao da identidade,
permitiram demarcar conceitos que se tornaram centrais para a compreenso dos processos de
deteriorao da identidade, pensados a partir das concepes de mortificao do self e
estigmatizao que recaem sobre os sujeitos que passam pela priso.
propsitos de retorno paulatino ao convvio social pleno. Isso tem reflexos tanto na forma
abrupta como se d a libertao de mulheres, como na mdia de tempo de cumprimento
efetivo de pena: quatro anos. Penas altas, portanto, no passam de mera fico. Elas produzem
efeitos sobre a populao, suscitando uma aparente sensao de justia, mas na realidade no
so efetivamente cumpridas. Tudo isso tende a reforar a sensao de impunidade
compartilhada pelos alagoanos e a percepo de que, em Alagoas, a justia no funciona
(VASCONCELOS, 2005).
Ocorre que no se trata apenas de uma questo objetiva de tempo de pena cumprido no
espao penitencirio, mas sim da forma como esse cumprimento se d. A legislao
estabelece que dever do Estado fornecer assistncia de diversas naturezas s pessoas
condenadas, destacando-se, na esfera das polticas de reintegrao social, a educao, formal
e profissionalizante, como meio de proporcionar um melhor acesso ao mercado de trabalho.
Ofertando uma educao extremamente deficiente, em Alagoas o Estado no cumpre esse
papel a contento, de modo que o sentido de reeducao inerente aos processos de reintegrao
social resta praticamente inexistente.
A nica poltica pblica criada em Alagoas para apoio a pessoas libertas da priso
consiste em convnios firmados entre a Intendncia Geral do Sistema Penitencirio (IGESP) e
instituies pblicas como o Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Alagoas
(IFAL) e a Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL), que recebem mulheres em
regime semiaberto e aberto para o trabalho em suas dependncias. certo que se trata de uma
contratao temporria, que dura at o final da pena cumprida em liberdade. Entretanto,
representam um importante passo rumo insero no mercado de trabalho, j que quebram as
barreiras da inrcia proporcionada pelas portas fechadas da sociedade e tornam-se referncias
para outros empregos.
Alagoas desde a dcada de 1980 at o ano de 2009. Verificou-se, ento, que se trata de
mulheres jovens, na faixa etria dos 21 aos quarenta anos, preponderantemente pardas e
solteiras. A baixssima escolaridade, indicada atravs de um percentual de 81,1% de mulheres
que se declaram analfabetas, alfabetizadas ou com ensino fundamental incompleto, revela os
baixos ndices socioeconmicos e repercute no tipo de ocupao dessas mulheres. A grande
maioria delas desempenha atividades domsticas ou outras que no precisam de
conhecimentos formais ou tcnicos, o que limita as possibilidades de insero no mercado de
trabalho.
Os dados sobre crimes e penas demonstram que o delito mais praticado o trfico de
drogas, que tem uma participao feminina crescente, normalmente ligada a relaes afetivas.
Sendo uma conduta delituosa sem violncia ou grave ameaa, comum que as traficantes no
se reconheam como criminosas, de modo que o trfico de drogas tende a ser um dos crimes
que mais favorece a reincidncia criminal feminina. O segundo crime que mais leva priso
o homicdio, mas se verifica um crescimento significativo de crimes contra o patrimnio
(furto, roubo e formao de quadrilha) nos ltimos anos. A maior parte das penas aplicadas
77,5% no ultrapassa os dez anos, sendo as penas maiores que dez anos representadas por
um percentual de 22,5%. No entanto, a mdia de cumprimento efetivo da pena inferior a
quatro anos, diante da ausncia de estabelecimentos adequados para os regimes semiaberto e
aberto em Alagoas. Os dados tambm revelam que a reincidncia criminal feminina est na
faixa dos 5%.
Diante desse panorama, a idade com que as mulheres ganham a liberdade 69% na
faixa dos 21 aos quarenta anos indica que, em tese, esto aptas a reconstruir seus vnculos
afetivos e reinserir-se no mercado de trabalho. No entanto, esse dado objetivo no suficiente
para representar a realidade vivenciada por cada uma delas, j que a reintegrao social, seja
no mundo profissional ou na esfera afetiva, permeada por vicissitudes somente
compreendidas quando suas histrias de vida se tornam elementos de anlise.
Esses elementos identitrios aparecem, em diferentes matizes, nas histrias de vida das
mulheres estudadas, demarcando aquilo que as caracteriza como mulher. Foi a partir deles que
se fez possvel compreender os efeitos do crcere sobre essas mulheres, atravs de seus
prprios olhares e da compreenso da identidade autoatribuda, ou seja, do self. Por isso, a
verificao dos processos de mortificao do self, desencadeada pela segregao prisional,
passou pela anlise de fatos e circunstncias que apontavam para a perda dos referenciais
identitrios femininos presentes nas narrativas das mulheres entrevistadas, tanto na esfera
afetiva como no mundo do trabalho.
Assim, oportunidades ofertadas pelos convnios da IGESP aparecem como uma alternativa
inicial importante para os primeiros anos de retorno liberdade, muito embora nem todas as
beneficiadas consigam se adequar dinmica do trabalho.
As histrias de vida dessas mulheres revelaram, ainda, que h uma conexo estreita
entre o resgate da autonomia por meio do trabalho e essa dimenso afetiva. A matrifocalidade,
que situa as mulheres como centro da vivncia domstica, assumindo, inclusive, o papel de
provedora do lar, torna o resgate da autonomia financeira, atravs do trabalho, uma
importante via de retomada desse papel na vida familiar. Assim, quando buscam emprego, as
mulheres libertas do crcere tm como objetivo proporcionar meios para que se torne possvel
uma vivncia familiar plena, independente, autnoma.
nos silncios da histria, nas limitaes da legislao e das polticas pblicas que
esto situados os elementos que me ajudaram a compreender como e por que as mulheres
vivenciam situaes mais complexas quando do retorno ao convvio social. Mais do que
assexuadas, a histria e as polticas pblicas so androcntricas e cegas para a dimenso
subjetiva de gnero. A igualdade plena, referenciada como uma conquista histrica para
homens e mulheres, carece de um novo olhar, que contemple as peculiaridades das vivncias
femininas na priso e fora dela.
O vis subjetivo deste estudo procurou dar voz a essas mulheres. So elas que do vida
a esta tese. Foi a coragem de cada uma delas de abrir o livro de suas vidas que me permitiu
adentrar em suas histrias e compreender o paradoxo do retorno liberdade aps o
cumprimento da pena: felicidade de um lado e muitas dificuldades de outro. Atravs de suas
narrativas pude compreender melhor a fragilidade do sistema punitivo brasileiro, incapaz de
concretizar os objetivos a que se prope e cego para as questes de gnero.
desencontros, perdas e ganhos, sonhos e realidades. Tambm no se trata de uma vida sem
passado. Elas recomeam, trazendo consigo as marcas da priso, que no esto inscritas no
corpo, mas que produzem efeitos sobre elas, seus familiares e todas as pessoas com as quais
se relacionam, afetiva ou profissionalmente.
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Gill McIvor, 2006, p. 159-182.
Anexos
250
Anexo A - Formulrio
1) Nome:____________________________________________________
3) Estado conjugal:
1. ( ) Solteira
2. ( ) Casada
3. ( ) Unio estvel
4. ( ) Divorciada
5. ( ) Viva
4) Filiao religiosa:
1. ( ) Catlica
2. ( ) Protestante
3. ( ) Evanglica
4. ( ) Candombl
5. ( ) Budista
6. ( ) Esprita
7. ( ) No tem religio
8. ( ) Atia
9. Outro (Especificar):____________________________________
5) Cor:
1. ( ) Negra
2. ( ) Parda
3. ( ) Amarela
4. ( ) Branca
5. ( ) Outra (Especificar): _______________________________
6) Naturalidade: ___________________________________________
1. ( ) Urbana
2. ( ) Rural
7) Escolaridade:
1. ( ) Analfabeta
2. ( ) Ensino fundamental incompleto
3. ( ) Ensino fundamental completo
4. ( ) Ensino bsico incompleto
5. ( ) Ensino bsico completo
6. ( ) Ensino mdio incompleto
7. ( ) Ensino mdio completo
8. ( ) Ensino superior incompleto
9. ( ) Ensino superior completo
10. ( ) Ps-graduao
8) Profisso: _______________________________________________
9) Ocupao: ______________________________________________
1. ( ) Integralmente fechado
2. ( ) Fechado
3. ( ) Semiaberto
4. ( ) Aberto
13) reincidente:
1. ( ) Sim
2. ( ) No
1. ( ) Sim
2. ( ) No. Qual o novo delito praticado? ___________________
1. ( ) Sim. Quais?______________________________________
2. ( ) No
1. ( ) Sim
2. ( ) No
1. ( ) Sim. Em qu?_____________________________________
2. ( ) No
1. ( ) Sim. O qu?______________________________________
2. ( ) No
20) Datas:
(Se reincidente):
1. ( ) Livramento condicional
2. ( ) Progresso de regime
3. ( ) Extino da pena aplicada
Observaes:_______________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________________
253
8. Na sua opinio, o que deve ser feito pelo Estado para que mulheres libertas do crcere
possam ser inseridas no mercado de trabalho?
259
Estado
Nome Idade Cor Escolaridade Ocupao Religio Filhos
Conjugal
Conjugal
Tempo de retorno
Tempo na Tempo em
Nome Crime cometido Pena priso
priso liberdade
(Para as reincidentes)
Tempo de retorno
Tempo na Tempo em
Nome Crime cometido Pena priso
priso liberdade
(Para as reincidentes)