Ideologia Da Morte

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Educação e Filosofia Uberlândia, v. 26, n. 51, p. 337-349, jan./jun. 2012.

ISSN 0102-6801 337

A IDEOLOGIA DA MORTE1

Herbert Marcuse
Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira**2

Resumo

Marcuse aborda o caráter ideológico da morte por meio da análise de


alguns de seus aspectos biológicos, históricos, sociais, filosóficos e
religiosos. O autor reflete a propósito de como o poder sobre a morte
também se torna poder sobre a vida das pessoas. Desse modo, libertar-se
do modo de vida repressivo significa assenhorear-se de sua própria morte.

Abstract

Marcuse discusses the ideological character of death through the analysis


of some of its biological, historical, social, philosophical and religious
aspects. The author reflects on how the power over people’s death also
becomes a power over people’s lives. Therefore, liberation from the
repressive way of life means taking possession of its own death.

1
MARCUSE, Herbert. The ideology of death. In: FEIFEL, Herman (Ed.). The meaning of
death. New York: McGraw-Hill Book Company, 1959. p. 64-76. Com permissão de Peter
Marcuse, executor da Propriedade Intelectual de Herbert Marcuse, cujo consentimento é
necessário para qualquer publicação futura. Material suplementar do trabalho anterior não
publicado de Herbert Marcuse, em grande parte nos Arquivos da Universidade Goethe
em Frankfurt/Main, está sendo publicado pela Routledge Publishers, na Inglaterra, em
uma série de seis volumes editada por Douglas Kellner e uma série alemã editada por
Peter-Erwin Jansen, publicada pela editora zu Klampen, Alemanha. Todos os direitos de
publicação futura são retidos pela Propriedade Intelectual.
**
Doutorando em Filosofia no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São
Paulo (USP). Mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail:
[email protected]
2
Agradece as contribuições de Enrico de A. P. Pinto, do Grupo de Estudos “Teoria Crítica
e Filosofia Social” da UFU e de todos que ajudaram a aperfeiçoar a presente tradução (NT).
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[p. 64] Der Mensch stirbt auch aus Gewohnheit...3


HEGEL

Il regardait la souffrance et la mort comme les effets heureux


de sa toute-puissance et de sa souveraine bonté.4
ATOLE FRANCE

Na história do pensamento Ocidental, a interpretação da morte


percorreu todo o espectro entre a noção de um mero fato natural, pertencente
ao homem como uma questão orgânica, até a ideia da morte como o telos
da vida, a característica distintiva da existência humana. A partir desses
dois polos opostos, duas éticas contrastantes podem ser derivadas: de um
lado, a atitude diante da morte é a aceitação estoica ou cética do inevitável,
ou mesmo a repressão do pensamento da morte pela vida; de outro lado,
a glorificação idealista da morte é o que dá “sentido” à vida, ou é a pré-
condição para a “verdadeira” vida do homem. Se a morte é considerada
um evento essencialmente extrínseco embora biologicamente intrínseco à
existência humana, a afirmação da vida tende a ser definitiva e, por assim
dizer, incondicional: a vida não é e nem [p. 65] pode ser redimida por nada
a não ser a vida. Mas se a morte aparece tanto como um fato essencial
quanto biológico, ontológico bem como empírico, a vida é transcendida,
ainda que a transcendência possa não assumir nenhuma forma religiosa.
A existência empírica do homem, sua vida material e contingente, é então
definida e redimida por algo que não ela mesma: ele deve viver em duas
dimensões fundamentalmente diferentes e até conflitantes, e sua existência
“verdadeira” envolve uma série de sacrifícios na sua existência empírica
que culmina no sacrifício supremo – a morte. É a essa ideia de morte que
as notas seguintes se referem.
É notável o quanto a noção de morte como necessidade ontológica,
e não somente biológica, permeou a filosofia Ocidental – notável porque a

O homem também morre por costume... (NT).


3

4
Ele via o sofrimento e a morte como as venturosas consequências de sua onipotência e
de sua soberana bondade (NT).
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superação e o domínio da mera necessidade natural foram, em contrapartida,


considerados como sinais distintivos da existência e do esforço humanos.
Tal elevação de um fato biológico à dignidade de uma essência ontológica
parece contrariar uma filosofia que vê como uma de suas tarefas principais
distinguir e discriminar entre fatos naturais e essenciais e ensinar o homem
a transcender os primeiros. Com certeza, a morte que é apresentada como
uma categoria ontológica não é o fim simples e natural da vida orgânica – é
antes o fim compreendido, “apropriado”, que se tornou parte integral da
própria existência humana. No entanto, esse processo de compreensão e
apropriação não muda nem transcende o fato natural da morte, mas, num
sentido brutal, permanece sendo submissão desesperada a ele.
Assim sendo, todo pensamento filosófico pressupõe a aceitação
dos fatos – mas então, o esforço intelectual consiste em dissolver sua
facticidade imediata, colocando-os no contexto de relações nas quais eles
se tornam compreensíveis. Assim eles surgem como produtos de fatores,
como algo que se tornou o que é ou que foi feito como é, como elementos
em um processo. O tempo constitui os fatos. Nesse sentido, todos os fatos
são históricos. Uma vez compreendidos em sua dinâmica histórica, eles
se evidenciam como pontos nodais de possíveis mudanças – mudanças
que são definidas e determinadas [p. 66] pelo local e função de cada fato
respectivo na respectiva totalidade dentro da qual ele se consolidou. Não
há necessidade – há somente graus de necessidade. A necessidade indica
falta de poder: incapacidade de mudar o que existe. O termo é significativo
somente como correlato da liberdade: o limite da liberdade. Liberdade
implica conhecimento, cognição. Compreender a necessidade é o primeiro
passo para a sua dissolução, mas necessidade compreendida ainda não
é liberdade. A última requer progressão da teoria à prática: conquista
efetiva daquelas necessidades [necessities] que impedem ou restringem a
satisfação das carências e privações [needs]. Nesse processo, a liberdade
tende a ser universal, pois a servidão daqueles que não são livres impede a
liberdade daqueles que dependem de sua servidão (como o senhor depende
do trabalho de seu escravo). Tal liberdade universal pode ser indesejada,
indesejável ou impraticável – mas então a liberdade ainda não é real,
perdura ainda um reino de necessidade incompreensível e inconquistável.
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Quais são os critérios para determinar se os limites da liberdade


humana são empíricos (ou seja, históricos, em última instância) ou
ontológicos (ou seja, essenciais e insuperáveis)? A tentativa de responder
essa questão tem constituído um dos maiores esforços da filosofia.
Entretanto, ela tem se caracterizado amiúde pela tendência de apresentar a
necessidade empírica como se fosse ontológica. Essa “inversão ontológica”
também opera na interpretação filosófica da morte. Ela se manifesta na
tendência de aceitar a morte não somente como fato, mas também como
necessidade, e como uma necessidade que deve ser conquistada não pela
sua dissolução, mas pela sua aceitação. Em outras palavras, a filosofia
assumiu que a morte pertencia à essência da vida humana, à sua realização
existencial. Além disso, a aceitação compreensiva da morte foi considerada
como prerrogativa do homem, o sinal distintivo da sua liberdade. A morte,
e somente a morte, consumou a existência humana. Sua negação final
era considerada a afirmação das faculdades e finalidades humanas. Num
sentido distante, a proposição pode ser verdadeira – o homem só é livre se
conquistou sua morte; se ele é capaz de determinar sua morte como o fim
autoimposto de sua vida; se sua morte está [p. 67] relacionada interna e
externamente com sua vida por intermédio da liberdade. Enquanto isso não
ocorre, a morte permanece mero limite natural e inconquistado de toda a
vida que seja mais que mera vida orgânica, mera vida animal. O poeta pode
suplicar: O Herr, gib jedem seinen eignen Tod5. A súplica não faz sentido
enquanto a vida humana não é propriamente sua, mas um encadeamento
de performances preestabelecidas e socialmente requeridas no trabalho e
no ócio. Sob tais circunstâncias, a exortação para fazer da morte “algo
próprio” é dificilmente mais do que a reconciliação prematura com forças
naturais indomadas. Um fato biológico brutal, permeado de dor, horror e
desespero é transformado num privilégio existencial. Do início ao fim, a
filosofia exibiu esse estranho masoquismo – e sadismo, pois a exaltação da
morte própria de uns envolveu a exaltação da morte de outros.
O Sócrates platônico aclama a morte como o início da verdadeira
vida – pelo menos para o filósofo. Mas a virtude, que é conhecimento, faz o

“Oh Senhor, dê a cada qual sua própria morte.” Poema do escritor tcheco Rainer
5

Maria Rilke (1875-1926) (NT).


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filósofo que heroicamente se submete à morte se assemelhar ao soldado no


campo de batalha, ao bom cidadão que obedece a lei e a ordem, a todo homem
digno do próprio nome; em níveis diferentes, todos eles compartilham a
atitude idealista diante da morte. E se a autoridade que sentencia o filósofo
à morte, longe de aniquilá-lo, abre para ele os portais da verdadeira vida,
então os executores são absolvidos de toda a culpa decorrente do crime
capital. A destruição do corpo não mata a “alma”, essência da vida. Ou será
que temos aqui uma assombrosa ambiguidade? Quão longe vai a ironia
socrática? Ao aceitar sua morte, Sócrates faz seus juízes incorrerem em
erro, mas sua filosofia da morte reconhece o direito deles – o direito da
pólis sobre o indivíduo. Será que, ao aceitar o veredito provocado por ele
e ao rejeitar a fuga, Sócrates não estaria refutando sua filosofia? Será que,
de um modo horrivelmente sutil e sofisticado, ele sugere que essa filosofia
serve para apoiar as mesmas forças contra as quais ele lutou durante toda a
sua vida? Pretende ele apontar para um segredo profundo – para a conexão
indissolúvel entre morte e escravidão, morte e dominação? Em todo caso,
Platão enterra o segredo: a verdadeira vida exige libertação [p. 68] da
falsa vida da nossa existência ordinária. A transvaloração está completa;
nosso mundo é um mundo de sombras. Somos prisioneiros no cárcere do
corpo, acorrentados por nossos apetites, enganados por nossos sentidos.
“A verdade” está além. Com certeza, esse além não é ainda o paraíso. Não
é certo ainda que a verdadeira vida pressupõe a morte física, mas não há
dúvida sobre a direção para a qual o esforço intelectual (e não somente o
intelectual!) é guiado. Com a desvalorização do corpo, a vida do corpo não
é mais a vida real, e a negação dessa vida é o começo mais do que o fim.
Além disso, o espírito opõe-se essencialmente ao corpo. A vida daquele é
dominação, se não negação, deste. A progressão da verdade é a luta contra
a sensualidade, o desejo e o prazer. Essa luta não busca somente libertar
o homem da tirania das necessidades naturais primitivas, mas também a
separação entre a vida do corpo e a vida do espírito – a dissociação entre
liberdade e prazer. A verdade que liberta é a verdade que rejeita o prazer. A
felicidade é redefinida a priori (ou seja, sem fundamentar-se empiricamente
em razões factuais) em termos de abnegação e renúncia. A enaltecedora
aceitação da morte, que carrega consigo a aceitação da ordem política,
também marca o nascimento da moralidade filosófica.
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Mediante todo refinamento e mitigação por que passou, a afirmação


ontológica da morte continua a desempenhar seu papel preponderante na
corrente principal da filosofia. Ela está centrada na ideia de morte que Hegel
descreveu como pertencente ao conceito romântico de Weltanschauung6.
De acordo com Hegel7, a morte tem o sentido de “negação do negativo”, ou
seja, de uma afirmação – como a “ressureição do espírito da mera aparência
da natureza e da finitude da qual se libertou.” A dor e a morte são assim
transfiguradas no retorno do sujeito a si mesmo, satisfação (Befriedigung),
bem-aventurança, e naquela existência reconciliada e afirmativa que o
espírito somente pode obter por meio da mortificação de sua existência
negativa, na qual se encontra separado de sua verdadeira realidade e vida
(Lebendigkeit).
[p. 69] Essa tradição chegou ao fim com a interpretação de
Heidegger da existência humana como antecipação da morte – a última
e mais apropriada exortação ideológica da morte, no exato momento em
que o terreno político era preparado para a correspondente realidade da
morte – as câmaras de gás e os campos de concentração de Auschwitz,
Buchenwald, Dachau e Bergen-Belsen.
Em contrapartida, pode-se imaginar um tipo de atitude “normal”
perante a morte – normal em termos dos meros fatos observáveis, embora
comumente reprimidos sob o impacto da ideologia predominante e das
instituições que ela apoia. Essa atitude supostamente normal pode ser
definida assim: a morte se afigura inevitável, mas ela é, na grande maioria
dos casos, um evento doloroso, horrível, violento e indesejável. Quando
ela é bem-vinda, é porque a vida foi ainda mais dolorosa que a morte.
Mas desafiar a morte é infelizmente algo ineficaz. Os esforços científicos e
técnicos da civilização desenvolvida, que prolongam a vida e aliviam suas
dores, aparentemente são frustrados, até mesmo malogrados, para boa parte
da sociedade assim como dos indivíduos. A “luta pela existência” dentro
da nação e entre as nações ainda é uma luta de vida e morte, que exige o
encurtamento periódico da vida. Além disso, a luta pelo prolongamento

6
Cosmovisão, visão de mundo (NT).
HEGEL, G. W. The Philosophy of Fine Art. Translated by F. P. B. Osmaston.
7

London: G. Bell & Sons Ltd., 1920. v. 2.


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da vida depende, para sua efetividade, da resposta da mente e da estrutura


pulsional dos indivíduos. Uma resposta positiva pressupõe que sua vida seja
realmente “a boa vida” – que eles tenham a possibilidade de desenvolver
e satisfazer suas necessidades e faculdades humanas, que sua vida seja
um fim em si mesmo em vez de um meio para sustentar a si próprios.
Caso sejam obtidas as condições para que tal possibilidade se concretize,
a quantidade pode se transformar em qualidade: a duração gradualmente
crescente da vida pode mudar a substância e o caráter não somente da vida,
mas também da morte. Esta perderia suas sanções ontológicas e morais;
os homens experimentariam a morte primeiramente como o limite técnico
para a liberdade humana, cuja superação se tornaria a meta declarada
do esforço individual e social. Cada vez mais, a morte participaria da
liberdade, e os indivíduos teriam o poder de determinar suas próprias
mortes. [p. 70] Como no caso do sofrimento irremediável, os meios para
uma morte indolor seriam disponibilizados. Existe algum argumento
contrário a tal raciocínio que não seja irracional? Somente um. Uma vida
com essa atitude perante a morte seria incompatível com as instituições
e valores estabelecidos da civilização. Ela levaria tanto ao suicídio em
massa (já que para grande parte da humanidade a vida ainda é um fardo tão
grande que o terror diante da morte é, provavelmente, um fator importante
para continuar seguindo em frente) ou à dissolução de toda lei e ordem
(visto que a aceitação temerosa da morte tornou-se elemento integrante da
moralidade pública e privada). O argumento pode ser irrefutável, mas, por
outro lado, a noção tradicional de morte é um conceito sociopolítico que
transforma fatos empíricos sórdidos em uma ideologia.
A ligação entre a ideologia da morte e as condições históricas sob
as quais ela se desenvolveu é indicada na interpretação de Platão sobre
a morte de Sócrates: obediência à lei do Estado sem a qual não pode
haver sociedade humana organizada; inadequação a uma existência que
é mais prisão que liberdade, falsidade que verdade; conhecimento da
possibilidade de uma vida livre e verdadeira solidário à convicção de que
essa possibilidade não pode ser realizada sem negar a ordem estabelecida
de vida. A morte é necessariamente ingresso na vida real, pois a vida
humana concreta é essencialmente irreal, ou seja, incapaz de existir na
verdade. Mas esse argumento está aberto à questão: Será que a ordem
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estabelecida da existência não pode ser mudada para que se torne uma
pólis “verdadeira”? N’A República, Platão responde de forma afirmativa.
O estado ideal destitui a morte de sua função transcendental, pelo menos
para os reis filósofos; já que eles vivem na verdade, não têm que ser
libertados pela morte. Assim como para os demais cidadãos, aqueles que
não são livres não têm que ser “reconciliados” com a morte. Isso pode
acontecer e ser levado a acontecer como um evento natural. A ideologia
da morte ainda não é um instrumento indispensável de dominação. Ela
assumiu essa função quando a doutrina cristã da liberdade e da igualdade
do homem enquanto homem foi assimilada pelas duradouras instituições
da não-liberdade e da injustiça. A contradição [p. 71] entre o evangelho
humanista e a realidade desumana demandava uma solução efetiva. A morte
e a ressureição do deus-herói, outrora o símbolo da renovação periódica
da vida natural e do sacrifício racional, agora direciona toda a esperança
para a vida transnatural daqui por diante. A pena suprema deve ser sofrida
para que então o homem possa encontrar a satisfação plena após o fim de
sua vida natural. Como alguém pode protestar contra a morte, lutar por
seu adiamento e conquista, quando Cristo morreu voluntariamente na cruz
para que a humanidade pudesse se redimir de seu pecado? A morte do filho
de Deus sanciona de forma definitiva a morte do filho do homem.
Mas o irracional persiste na razão. Eles continuam a temer a morte
como o horror supremo e como o fim derradeiro, o colapso do “ser” no
“nada.” A “angústia” surge como uma categoria existencial, mas em vista
do fato de que a morte não somente é inevitável como também incerta,
onipresente e o limite interdito da liberdade humana; toda angústia é
medo, medo de um perigo real e onipresente, a atitude e o sentimento mais
racionais que existem. A força racional da angústia talvez tenha sido um
dos fatores mais fortes do progresso na luta contra a natureza, na proteção
e melhoramento da vida humana. De modo inverso, a cura prematura da
angústia sem a eliminação de sua fonte e origem últimas pode representar o
oposto: um fator de regressão e repressão. Viver sem angústia é realmente
a única definição intransigente de liberdade, porque inclui todo o conteúdo
da esperança: felicidade material bem como espiritual. Mas não pode haver
(ou melhor, não deve haver) vida sem angústia enquanto a morte não for
conquistada – não no sentido de uma antecipação e aceitação conscientes de
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algo inevitável, mas no sentido de destituí-la de seu horror e de seu poder


incalculável, assim como de sua santidade transcendental. Isso quer dizer
que a luta planejada e sistemática contra a morte em todas as suas formas
seria levada a termo para além dos limites proibidos socialmente. A luta
contra a doença não é idêntica à luta contra a morte. Parece haver um ponto
no qual a primeira cessa para continuar na última. Alguma barreira mental
profundamente enraizada parece deter a [p. 72] vontade antes que a barreira
técnica seja atingida. O homem parece dobrar-se diante do inevitável sem
estar realmente convencido de que é inevitável. A barreira é defendida por
todos os valores perpetuados socialmente que se vinculam às características
redentoras e até criativas da morte: sua necessidade natural tanto quanto vital
(“sem morte a vida não seria vida”). A duração curta e incalculável da vida
impõe constante renúncia e labuta, esforço heroico e sacrifício pelo futuro. A
ideologia da morte opera em todas as formas de “ascetismo intramundano.”
A destruição da ideologia da morte envolveria uma transvaloração explosiva
dos conceitos sociais: a boa consciência em ser covarde, deseroicização
e dessublimação; ela envolveria um novo “princípio de realidade” que
libertaria, em vez de suprimir, o “princípio de prazer”.
A simples formulação dessas metas indica por que motivos elas
têm sido tão rigidamente proibidas. Sua realização seria equivalente ao
colapso da civilização estabelecida. Freud mostrou as consequências de
uma desintegração (hipotética) ou mesmo de um relaxamento essencial do
“princípio de realidade” predominante – a relação dinâmica entre Eros e a
Pulsão de Morte é tal que a redução desta abaixo do nível dentro do qual
ela funciona num modo socialmente útil libertaria aquele acima do nível
“tolerável.” Isso envolveria um grau de dessublimação que iria desfazer
as mais preciosas realizações da civilização. O entendimento de Freud foi
penetrante o suficiente para invocar contra sua própria concepção o tabu
que ela violou. A psicanálise fez tudo, menos se livrar dessas especulações
“não-científicas.” Este não é o lugar para discutir a questão segundo a qual a
afirmação da morte é expressão de um profundo “desejo de morrer”, de uma
primitiva “pulsão de morte” em toda vida orgânica, ou se essa “pulsão” não
se tornou uma “segunda natureza” sob o impacto histórico da civilização.8

8
Tentei discutir o problema em meu livro Eros and Civilization. Boston: The Beacon
Press, 1955 [Edição brasileira: Eros e Civilização. 8. ed. Tradução de Álvaro de Cabral. Rio
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O uso social da morte e a atitude social diante da morte parecem reforçar a


hipótese referente ao caráter histórico da pulsão de morte.
[p. 73] Tanto o medo da morte quanto sua repressão na aceitação
da morte como necessidade sancionada constituem fatores intrinsecamente
interligados na organização da sociedade. O fato natural da morte se torna
uma instituição social. Nenhuma dominação é completa sem a ameaça da
morte e sem o direito reconhecido de infligir a morte – morte por veredito
legal, na guerra, por inanição. E nenhuma dominação é completa sem que
a morte, uma vez institucionalizada, seja reconhecida como mais do que
uma necessidade natural e um fato cruel, quer dizer, como justificada e
como justificação. Essa justificação parece, em última análise e além de
todas as particularidades, um sentimento de culpa individual derivado
da culpa universal que é a vida em si mesma, a vida do corpo. A noção
cristã inicial, de acordo com a qual toda dominação secular é punição pelo
pecado, sobreviveu – embora ela tenha sido oficialmente descartada. Se
a vida em si é pecaminosa, então todos os padrões racionais para justiça,
felicidade e liberdade terrenas são meramente condicionais, secundários e
justamente substituídos por padrões irracionais (em termos de vida terrena),
porém mais elevados. O que é decisivo não é se alguém ainda “acredita
realmente” nisso, mas se a atitude, uma vez motivada por essa crença, é
perpetuada e reforçada pelas condições e instituições da sociedade.
Quando a ideia de morte como justificação enraíza-se firmemente
na existência do indivíduo, a luta pela conquista da morte é detida no âmago
dos indivíduos e por meio deles próprios. Eles experimentam a morte não
somente como o limite biológico da vida orgânica, como o limite técnico-
científico do conhecimento, mas também como um limite metafísico. Lutar,
protestar contra o limite metafísico da existência humana não é somente
tolice, é essencialmente impossível. O que a religião alcança por meio da
noção de pecado, a filosofia afirma em sua noção da finitude metafísica da
existência humana. Em si mesma, a finitude é um fato biológico natural
– que a vida orgânica dos indivíduos não dura para sempre, que ela
envelhece e se esvai. Mas essa condição biológica do homem não tem que
ser a fonte inesgotável de angústia, ela pode muito bem ser (e ela foi para

de Janeiro: LTC, 1999].


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muitas escolas filosóficas) o oposto, quer dizer, o estímulo para esforços


incessantes no intuito de ampliar os limites da vida, para empenhar-se por
[p. 74] uma existência sem culpa e para determinar seu fim – para sujeitá-la
à autonomia humana, se não em termos de duração, pelo menos em termos
de qualidade, pela eliminação da decrepitude e do sofrimento. A finitude,
enquanto uma construção metafísica, aparece sob uma luz bem diferente.
Nela, a relação entre a vida e o fim da vida é, por assim dizer, invertida.
Com a morte enquanto categoria existencial, a vida se torna ganhar a vida
mais do que vivê-la, um meio que é um fim em si mesmo. A liberdade
e a dignidade do homem são vistas na afirmação de sua inadequação
desesperada, sua limitação eterna. Assim, a metafísica da finitude aquiesce
com o tabu da esperança não mitigada.
A morte assume a força de uma instituição que, devido à sua
utilidade vital, não deve ser modificada, ainda que talvez ela pudesse ser
modificada. A espécie se perpetua pela morte dos indivíduos; esse é um
fato natural. A sociedade se perpetua pela morte dos indivíduos; esse não
é mais um fato natural, mas histórico. Os dois fatos não são equivalentes.
Na primeira afirmação, a morte é um evento biológico: desintegração da
matéria orgânica em inorgânica. Na segunda afirmação, a morte é uma
instituição e um valor: a coesão da ordem social depende em grande medida
da efetividade com a qual os indivíduos se sujeitam à morte como mais do
que uma necessidade natural; em sua disposição, chegam a desejar morrer
várias mortes que não são naturais; em sua concordância de sacrificar a si
mesmos e de não lutar “demais” contra a morte. A vida não deve ser muito
valorizada, pelo menos não como o bem supremo. A ordem social exige
sujeição à labuta e à resignação, ao heroísmo e à punição pelo pecado.
A civilização estabelecida não funciona sem um grau considerável de
servidão; e a morte, a causa final de toda angústia, sustenta a servidão. O
homem não é livre enquanto a morte não se tornar realmente “sua”, ou seja,
enquanto ela não estiver sob sua autonomia. A realização de tal autonomia
é concebível somente se a morte não mais aparece como a “negação da
negação”, como redenção da vida.
Há outro aspecto sinistro da aceitação enaltecedora da [p. 75] morte
como algo mais que um fato natural, um aspecto que se torna manifesto nas
histórias antigas de mães que se regozijavam com o sacrifício de seus filhos
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nos campos de batalha; nas mais recentes cartas de mães que asseguravam
seu perdão aos assassinos de seus filhos; na indiferença estoica com a
qual elas vivem próximas de áreas de testes atômicos e aceitam a guerra
como um fato consumado. Certamente, explicações estão prontamente à
mão: a defesa da nação é o pré-requisito para a existência de todos os
seus cidadãos, o julgamento final sobre o assassino pertence a Deus e
não ao homem, etc. Ou, em bases mais materialistas, há muito tempo o
indivíduo tornou-se impotente “para fazer qualquer coisa a respeito”, e
sua impotência é racionalizada como dever moral, virtude ou honra. De
qualquer modo, todas essas explicações parecem falhar num ponto central,
o caráter aberto, quase exibicionista de afirmação do consentimento
pulsional. Parece mesmo difícil rejeitar a hipótese de Freud sobre um
desejo de morte insuficientemente reprimido. Mais uma vez, porém, o
impulso biológico que opera no desejo de morte pode não ser tão biológico.
Ele pode ter sido “alimentado” por forças históricas, a necessidade de
sacrificar a vida do indivíduo para que a vida do “todo” possa continuar.
O “todo” aqui não é a espécie natural, a humanidade; é, antes, a totalidade
de instituições e relacionamentos que os homens estabeleceram em sua
história. Sem a afirmação pulsional de sua incontestável prioridade, essa
totalidade poderia estar em perigo de desintegração. Quando Hegel disse
que a história é o patíbulo no qual a felicidade dos indivíduos é sacrificada
para o progresso da Razão, ele não falava de um processo natural. Ele
identificou um fato histórico. A morte no patíbulo da história, a morte que
a sociedade exige dos indivíduos não é mera natureza – é também Razão
(com R maiúsculo). Por meio da morte no campo de batalha, nas minas
e nas autoestradas, de doença e pobreza invencíveis, pelo Estado e suas
instituições, a civilização avança. É possível conceber o progresso, sob
tais condições ao longo dos séculos, sem o efetivo consentimento dos
indivíduos, um consentimento pulsional, se não consciente, que [p. 76]
complementa e reforça a submissão imposta por sujeição “voluntária”? E
se tal consentimento “voluntário” prevalece, quais são suas raízes e suas
causas?
As questões levam de volta ao início. Submissão à morte é
submissão ao senhor da morte: a pólis, o Estado, a natureza, ou a divindade.
Não o indivíduo, mas um poder superior é o juiz; o poder sobre a morte
Educação e Filosofia Uberlândia, v. 26, n. 51, p. 337-349, jan./jun. 2012. ISSN 0102-6801 349

é também o poder sobre a vida. Mas isso é só metade da história. A outra


metade é a disposição, o desejo de renunciar a uma vida de mentiras –
uma vida que trai não somente os sonhos de infância, mas também as
esperanças e promessas maduras do homem. Elas se referem ao além,
ao além do paraíso ou do espírito – ou do nada. Decisivo é o elemento
de protesto – protesto por parte dos impotentes. Por serem impotentes,
eles não somente se submetem, eles perdoam aqueles que disseminam a
morte. Tal perdão pode congraçar e assegurar o amor do poder supremo,
mas também santifica a fraqueza. A noção de Nietzsche da genealogia da
moral também se aplica à atitude moral diante da morte. A revolta – e
vitória – do escravo se perfaz não por sua libertação, mas pela proclamação
de sua fraqueza como o apogeu da humanidade. A impotência do protesto
perpetua o poder temido e odiado.

Data de registro: 17/04/2011


Data de aceite: 24/08/2011

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