Ideologia Da Morte
Ideologia Da Morte
Ideologia Da Morte
A IDEOLOGIA DA MORTE1
Herbert Marcuse
Tradução de Luís Gustavo Guadalupe Silveira**2
Resumo
Abstract
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MARCUSE, Herbert. The ideology of death. In: FEIFEL, Herman (Ed.). The meaning of
death. New York: McGraw-Hill Book Company, 1959. p. 64-76. Com permissão de Peter
Marcuse, executor da Propriedade Intelectual de Herbert Marcuse, cujo consentimento é
necessário para qualquer publicação futura. Material suplementar do trabalho anterior não
publicado de Herbert Marcuse, em grande parte nos Arquivos da Universidade Goethe
em Frankfurt/Main, está sendo publicado pela Routledge Publishers, na Inglaterra, em
uma série de seis volumes editada por Douglas Kellner e uma série alemã editada por
Peter-Erwin Jansen, publicada pela editora zu Klampen, Alemanha. Todos os direitos de
publicação futura são retidos pela Propriedade Intelectual.
**
Doutorando em Filosofia no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São
Paulo (USP). Mestrado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail:
[email protected]
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Agradece as contribuições de Enrico de A. P. Pinto, do Grupo de Estudos “Teoria Crítica
e Filosofia Social” da UFU e de todos que ajudaram a aperfeiçoar a presente tradução (NT).
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Ele via o sofrimento e a morte como as venturosas consequências de sua onipotência e
de sua soberana bondade (NT).
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“Oh Senhor, dê a cada qual sua própria morte.” Poema do escritor tcheco Rainer
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Cosmovisão, visão de mundo (NT).
HEGEL, G. W. The Philosophy of Fine Art. Translated by F. P. B. Osmaston.
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estabelecida da existência não pode ser mudada para que se torne uma
pólis “verdadeira”? N’A República, Platão responde de forma afirmativa.
O estado ideal destitui a morte de sua função transcendental, pelo menos
para os reis filósofos; já que eles vivem na verdade, não têm que ser
libertados pela morte. Assim como para os demais cidadãos, aqueles que
não são livres não têm que ser “reconciliados” com a morte. Isso pode
acontecer e ser levado a acontecer como um evento natural. A ideologia
da morte ainda não é um instrumento indispensável de dominação. Ela
assumiu essa função quando a doutrina cristã da liberdade e da igualdade
do homem enquanto homem foi assimilada pelas duradouras instituições
da não-liberdade e da injustiça. A contradição [p. 71] entre o evangelho
humanista e a realidade desumana demandava uma solução efetiva. A morte
e a ressureição do deus-herói, outrora o símbolo da renovação periódica
da vida natural e do sacrifício racional, agora direciona toda a esperança
para a vida transnatural daqui por diante. A pena suprema deve ser sofrida
para que então o homem possa encontrar a satisfação plena após o fim de
sua vida natural. Como alguém pode protestar contra a morte, lutar por
seu adiamento e conquista, quando Cristo morreu voluntariamente na cruz
para que a humanidade pudesse se redimir de seu pecado? A morte do filho
de Deus sanciona de forma definitiva a morte do filho do homem.
Mas o irracional persiste na razão. Eles continuam a temer a morte
como o horror supremo e como o fim derradeiro, o colapso do “ser” no
“nada.” A “angústia” surge como uma categoria existencial, mas em vista
do fato de que a morte não somente é inevitável como também incerta,
onipresente e o limite interdito da liberdade humana; toda angústia é
medo, medo de um perigo real e onipresente, a atitude e o sentimento mais
racionais que existem. A força racional da angústia talvez tenha sido um
dos fatores mais fortes do progresso na luta contra a natureza, na proteção
e melhoramento da vida humana. De modo inverso, a cura prematura da
angústia sem a eliminação de sua fonte e origem últimas pode representar o
oposto: um fator de regressão e repressão. Viver sem angústia é realmente
a única definição intransigente de liberdade, porque inclui todo o conteúdo
da esperança: felicidade material bem como espiritual. Mas não pode haver
(ou melhor, não deve haver) vida sem angústia enquanto a morte não for
conquistada – não no sentido de uma antecipação e aceitação conscientes de
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Tentei discutir o problema em meu livro Eros and Civilization. Boston: The Beacon
Press, 1955 [Edição brasileira: Eros e Civilização. 8. ed. Tradução de Álvaro de Cabral. Rio
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nos campos de batalha; nas mais recentes cartas de mães que asseguravam
seu perdão aos assassinos de seus filhos; na indiferença estoica com a
qual elas vivem próximas de áreas de testes atômicos e aceitam a guerra
como um fato consumado. Certamente, explicações estão prontamente à
mão: a defesa da nação é o pré-requisito para a existência de todos os
seus cidadãos, o julgamento final sobre o assassino pertence a Deus e
não ao homem, etc. Ou, em bases mais materialistas, há muito tempo o
indivíduo tornou-se impotente “para fazer qualquer coisa a respeito”, e
sua impotência é racionalizada como dever moral, virtude ou honra. De
qualquer modo, todas essas explicações parecem falhar num ponto central,
o caráter aberto, quase exibicionista de afirmação do consentimento
pulsional. Parece mesmo difícil rejeitar a hipótese de Freud sobre um
desejo de morte insuficientemente reprimido. Mais uma vez, porém, o
impulso biológico que opera no desejo de morte pode não ser tão biológico.
Ele pode ter sido “alimentado” por forças históricas, a necessidade de
sacrificar a vida do indivíduo para que a vida do “todo” possa continuar.
O “todo” aqui não é a espécie natural, a humanidade; é, antes, a totalidade
de instituições e relacionamentos que os homens estabeleceram em sua
história. Sem a afirmação pulsional de sua incontestável prioridade, essa
totalidade poderia estar em perigo de desintegração. Quando Hegel disse
que a história é o patíbulo no qual a felicidade dos indivíduos é sacrificada
para o progresso da Razão, ele não falava de um processo natural. Ele
identificou um fato histórico. A morte no patíbulo da história, a morte que
a sociedade exige dos indivíduos não é mera natureza – é também Razão
(com R maiúsculo). Por meio da morte no campo de batalha, nas minas
e nas autoestradas, de doença e pobreza invencíveis, pelo Estado e suas
instituições, a civilização avança. É possível conceber o progresso, sob
tais condições ao longo dos séculos, sem o efetivo consentimento dos
indivíduos, um consentimento pulsional, se não consciente, que [p. 76]
complementa e reforça a submissão imposta por sujeição “voluntária”? E
se tal consentimento “voluntário” prevalece, quais são suas raízes e suas
causas?
As questões levam de volta ao início. Submissão à morte é
submissão ao senhor da morte: a pólis, o Estado, a natureza, ou a divindade.
Não o indivíduo, mas um poder superior é o juiz; o poder sobre a morte
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