AmorisLaetitia Resumo
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AmorisLaetitia Resumo
Premissa
A Exortação apostólica chama a atenção pela sua amplitude e articulação. Está dividida em
nove capítulos e mais de 300 parágrafos. Tem início com sete parágrafos introdutórios que
evidenciam a plena consciência da complexidade do tema, que requer ser aprofundado.
Afirma-se que as intervenções dos Padres no Sínodo constituíram um «precioso poliedro»
(AL 4) que deve ser preservado. Neste sentido, o Papa escreve que «nem todas as discussões
doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais».
Por conseguinte, para algumas questões «em cada país ou região, é possível buscar soluções
mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, “as culturas são muito
diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de
ser inculturado”» (AL 3). Este princípio de inculturação revela-se como muito importante até
no modo de articular e compreender os problemas, modo esse que, sem entrar nas questões
dogmáticas bem definidas pelo Magistério da Igreja, não pode ser «globalizado».
Mas sobretudo o Papa afirma de imediato e com clareza que é necessário sair da estéril
contraposição entre a ânsia de mudança e a aplicação pura e simples de normas abstratas.
Assim declara: «Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e
mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo
sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através
da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões
teológicas» (AL 2).
Enunciadas estas premissas, o Papa articula a sua reflexão a partir das Sagradas Escrituras no
primeiro capítulo, que se desenvolve como uma meditação acerca do Salmo 128,
característico da liturgia nupcial hebraica, assim como da cristã. A Bíblia «aparece cheia de
famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares» (AL 8) e a partir deste dado pode
meditar-se como a família não é um ideal abstrato, mas uma «tarefa “artesanal”» (AL 16)
que se exprime com ternura (AL 28), mas que se viu confrontada desde o início também pelo
Partindo do terreno bíblico, o Papa considera no segundo capítulo a situação atual das
famílias, mantendo «os pés assentes na terra» (AL 6), bebendo com abundância dos
Relatórios conclusivos dos dois Sínodos e enfrentando numerosos desafios, desde o
fenómeno migratório à negação ideológica da diferença de sexo («ideologia de género»); da
cultura do provisório à mentalidade anti-natalidade e ao impacto das biotecnologias no
campo da procriação; da falta de habitação e de trabalho à pornografia e ao abuso de
menores; da atenção às pessoas com deficiência ao respeito pelos idosos; da desconstrução
jurídica da família à violência para com as mulheres. O Papa insiste no carácter concreto, que
é um elemento fundamental da Exortação. E é este carácter concreto e realista que
estabelece uma diferença substancial entre «teorias» de interpretação da realidade e
«ideologias».
Citando a Familiaris consortio, Francisco afirma que «é salutar prestar atenção à realidade
concreta, porque “os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos
da história” através dos quais “a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais
profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da família”» (AL 31). Sem escutar a
realidade não é possível compreender nem as exigências do presente nem os apelos do
Espírito. O Papa nota que o individualismo exacerbado torna hoje difícil a doação a uma
outra pessoa de uma maneira generosa (cf. AL 33). Eis um interessante retrato da situação:
«Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo tempo,
cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações
pessoais» (AL 34).
A humildade do realismo ajuda a não apresentar «um ideal teológico do matrimónio
demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das
possibilidades efetivas das famílias tais como são» (AL 36). O idealismo não permite
considerar o matrimónio assim como é, ou seja, «um caminho dinâmico de crescimento e
realização». Por isso, também não se pode julgar que se possa apoiar as famílias «com a
simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à
graça» (AL 37). Convidando a uma certa “autocrítica” de uma apresentação não adequada
da realidade matrimonial e familiar, o Papa insiste na necessidade de dar espaço à formação
da consciência dos fiéis: «Somos chamados a formar as consciências, não a pretender
substituí-las» (AL37). Jesus propunha um ideal exigente, mas «não perdia jamais a
proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera» (AL
38).
O quarto capítulo trata do amor no matrimónio e ilustra-o a partir do “hino ao amor” de São
Paulo de 1 Cor 13, 4-7. O capítulo é uma verdadeira e autêntica exegese cuidadosa, precisa,
inspirada e poética do texto paulino. Poderemos dizer que se trata de uma coleção de
fragmentos de um discurso amoroso que cuida de descrever o amor humano em termos
absolutamente concretos. Surpreende-nos a capacidade de introspeção psicológica
evidenciada por esta exegese. O aprofundamento psicológico chega ao mundo das emoções
dos cônjuges - positivas e negativas - e à dimensão erótica do amor. Este é um contributo
extremamente rico e precioso para a vida cristã dos cônjuges, que não tinha até agora
paralelo em anteriores documentos papais.
À sua maneira, este capítulo constitui um pequeno tratado no conjunto de um
desenvolvimento mais amplo, plenamente consciente do carácter quotidiano do amor que
se opõe a todos os idealismos: «não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o
peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua
Igreja, porque o matrimónio como sinal implica “um processo dinâmico, que avança
gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus”» (AL 122). Mas, por outro
lado, o Papa insiste de modo enérgico e firme no facto de que «na própria natureza do amor
conjugal, existe a abertura ao definitivo» (AL 123) precisamente no íntimo daquela
«combinação necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e
libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres» (Al 126) que é de facto o
matrimónio.
O capítulo conclui-se com uma reflexão muito importante acerca da «transformação do
amor» uma vez que «o alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros
tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro, cinco ou
seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha» (AL
163). A aparência física transforma-se e a atração amorosa não desaparece, mas muda: com
o tempo, o desejo sexual pode transformar-se em desejo de intimidade e «cumplicidade».
«Não é possível prometer que teremos os mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas
No sexto capítulo, o Papa aborda algumas vias pastorais que orientam para a edificação de
famílias sólidas e fecundas de acordo com o plano de Deus. Nesta parte, a Exortação recorre
aos Relatórios conclusivos dos dois Sínodos e às catequeses do Papa Francisco e de João
Paulo II. Volta-se a sublinhar que as famílias são sujeito e não apenas objeto de
evangelização. O Papa observa que «os ministros ordenados carecem, habitualmente, de
formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das famílias» (AL 202). Se,
por um lado, é necessário melhorar a formação psicoafetiva dos seminaristas e envolver
mais a família na formação para o ministério (cf. AL 203), por outro, «pode ser útil também a
experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados» (AL 202).
Em seguida, o Papa desenvolve o tema da orientação dos noivos no caminho de preparação
para o matrimónio, do acompanhamento dos esposos nos primeiros anos da vida
matrimonial (incluindo o tema da paternidade responsável), mas também em algumas
situações complexas e, em particular, nas crises, sabendo que «cada crise esconde uma boa
notícia, que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração» (AL 232). São
analisadas algumas causas de crise, entre elas uma maturação afetiva retardada (cf. AL 239).
Além disso, fala-se também do acompanhamento das pessoas abandonadas, separadas ou
divorciadas e sublinha-se a importância da recente reforma dos procedimentos para o
reconhecimento dos casos de nulidade matrimonial. Coloca-se em relevo o sofrimento dos
filhos nas situações de conflito e conclui-se: «O divórcio é um mal, e é muito preocupante o
aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais
importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para
podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo» (AL 246). Referem-se de seguida
as situações dos matrimónios mistos e daqueles com disparidade de culto, e a situação das
famílias que têm dentro de si pessoas com tendência homossexual, insistindo no respeito
para com elas e na recusa de qualquer discriminação injusta e de todas das formas de
agressão e violência. A parte final do capítulo, «quando a morte crava o seu aguilhão», é de
grande valor pastoral, tocando o tema da perda das pessoas queridas e da viuvez.
O sétimo capítulo é totalmente dedicado à educação dos filhos: a sua formação ética, o valor
da sanção como estímulo, o realismo paciente, a educação sexual, a transmissão da fé e,
mais em geral, a vida familiar como contexto educativo. É interessante a sabedoria prática
que transparece em cada parágrafo e sobretudo a atenção à gradualidade e aos pequenos
passos que «possam ser compreendidos, aceites e apreciados» (AL 271).
Há um parágrafo particularmente significativo e de um valor pedagógico fundamental em
que Francisco afirma com clareza que «a obsessão (...) não é educativa; e também não é
possível ter o controlo de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se
(...). Se um progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os
seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o
educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima
de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade,
de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia» (AL 261).
A secção dedicada à educação sexual é notável, e intitula-se muito expressivamente: «Sim à
educação sexual». Sustenta-se a sua necessidade e formula-se a interrogação de saber «se
as nossas instituições educativas assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a
banalizar e empobrecer a sexualidade». A educação sexual deve ser realizada «no contexto
duma educação para o amor, para a doação mútua» (AL 280). É feita uma advertência em
relação à expressão «sexo seguro», pois transmite «uma atitude negativa a respeito da
finalidade procriadora natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de
que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade narcisista, em vez do
acolhimento» (AL 283).
***
Como já se pode depreender a partir de um rápido exame dos seus conteúdos, a Exortação
apostólica Amoris laetitia pretende reafirmar com força não o «ideal» da família, mas a sua
realidade rica e complexa. Há nas suas páginas um olhar aberto, profundamente positivo,
que se nutre não de abstrações ou projeções ideais, mas de uma atenção pastoral à
realidade. O documento é uma leitura densa de motivos espirituais e de sabedoria prática
útil a cada casal ou a pessoas que desejam construir uma família. Nota-se sobretudo que foi
fruto de uma experiência concreta com pessoas que sabem, a partir da experiência, o que é
a família e o viver juntos durante muitos anos. A Exortação fala de facto a linguagem da
experiência e da esperança.