A Imanência. Uma Vida, de Gilles Deleuze
A Imanência. Uma Vida, de Gilles Deleuze
A Imanência. Uma Vida, de Gilles Deleuze
Gilles Deleuze*
* Gilles Deleuze, um dos filósofos mais considerados so século XX, publicou Lógica do sentido, Dife-
rença e repetição, Crítica e clínica, entre muitos outros. Este texto foi o último editado em vida.
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imanência absoluta é nela mesma: ela não está em alguma coisa, dentro de
alguma coisa, ela não depende de um objeto nem pertence a um sujeito. Em
Espinosa, a imanência não está na substância, mas a substância e os modos
estão na imanência. Quando, caindo fora do plano de imanência, o sujeito e
o objeto são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a
imanência é atribuída, ocorre toda uma desnaturação do transcendental que
não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant) e uma deforma-
ção da imanência que se acha contida no transcendente. A imanência não se
remete a Alguma coisa como unidade superior a todas as coisas nem a um
Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência é
imanência apenas a si que se pode falar de um plano de imanência. Assim
como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de
imanência não se define por um Sujeito nem por um Objeto capaz de o
conter.
Dir-se-á que a pura imanência é UMA VIDA, nada mais. Ela não é
imanência à vida, mas o imanente que não é imanente a nada específico é ele
mesmo uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência abso-
luta: ela é potência e beatitude completas. Na medida em que ultrapassa as
aporias do sujeito e do objeto, Fichte, em sua última filosofia, apresenta o
campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser nem se
encontra submetida a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja própria
atividade não se remete a um ser, mas não cessa de se colocar numa vida3.
Assim, o campo transcendental se faz um verdadeiro plano de imanência
que reintroduz o espinozismo no mais profundo da operação filosófica. Não
se trataria de uma aventura similar à que Maine de Biran se lançou em sua
“última filosofia” (aquela que ele já estava muito cansado para levar a bom
termo), quando descobriu, sob a transcendência do esforço, uma vida
imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de
imanência, e o plano de imanência por uma vida.
O que é a imanência? uma vida... Ninguém narrou melhor do que
Dickens o que é uma vida (tendo-se em conta o artigo indefinido como
índice do transcendental). Um canalha, um sujeito malvado, menosprezado
por todos, é trazido moribundo, e aqueles que cuidam dele manifestam um
tipo de prontidão, respeito e amor pelo seu menor sinal de vida. Todos se
empenham em salvá-lo, a ponto de, no mais profundo de seu coma, o pró-
prio calhorda sentir algo suave adentrá-lo. À medida, entretanto, em que ele
retorna à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele retoma toda sua
grosseria e maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é
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mais do que o de uma vida jogando com a morte4. A vida do indivíduo deu
lugar a uma vida impessoal, contudo singular, que libera um puro aconteci-
mento sem acidentes da vida interior e exterior, isto é, da subjetividade e da
objetividade disso que sucede. “Homo tantum” do qual todos se compade-
cem e que alcança um tipo de beatitude. Ele é uma hecceidade que não é mais
individualizadora, mas singularizante: vida de pura imanência, neutra, para
além do bem e do mal, pois apenas o sujeito que a encarna no meio das coisas
a traduzia como boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em prol da
vida singular imanente a um homem que não tem mais nome e que, apesar
disso, não se confunde com nenhum outro. Essência singular, uma vida...
Não seria necessário encerrar uma vida no simples momento em que a
vida individual se afronta com a morte – universal. Uma vida está por todos
os lugares, por todos os momentos que atravessam este ou aquele sujeito
vivo e que medem tais objetos vividos: vida imanente trazendo os aconteci-
mentos ou singularidades que apenas se atualizam nos sujeitos e nos objetos.
Essa vida indefinida não tem, ela mesma, momentos, por mais próximos
que estejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entremomentos. Ela
não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio em
que se vê o acontecimento ainda porvir e já transcorrido, no absoluto de
uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet Holenia coloca o
acontecimento num entretempo que pode absorver regimentos inteiros. As
singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem
com os acidentes da vida correspondente, mas não se agrupam nem se dis-
tinguem da mesma maneira. Eles se comunicam entre si de uma maneira
totalmente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singu-
lar pode abrir mão de toda individualidade ou de toda outra concomitância
que a individualize. Por exemplo, todos os bebês se parecem e não têm ne-
nhuma individualidade; mas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma
careta, acontecimentos que não são características subjetivas. Mediante so-
frimentos e fragilidades, os bebês são atravessados por uma vida imanente
que é pura potência e, até, beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem
toda indeterminação à medida em que ocupam um plano de imanência ou,
o que vem a dar no mesmo, constituem os elementos de um campo trans-
cendental (a vida individual, ao contrário, permanece inseparável de deter-
minações empíricas). O indefinido como tal não marca uma indetermina-
ção empírica, mas uma determinação de imanência ou uma determinabilidade
transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa sem
antes ser a determinação do singular. O Um não é o transcendente que pode
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Notas
1
Bérgson, Matière et Mémoire: “como se nós refletíssemos sobre as superfícies a luz que delas emanam,
luz que, propagando-se sempre, jamais haviam sido reveladas”, Oeuvres, PUF, p. 186.
2
Cf. Sartre, La transcendence de l’Ego, Vrin: Sartre coloca um campo transcendental sem sujeito, que
remete a uma consciência impessoal, absoluta, imanente: em relação a ela, o sujeito e o objeto são
“transcendentes” (p. 74-87) – Sobre James, cf. a análise de David Lapoujade, “Lê flux intensif de la
conscience chez William James”, Philosophie, no 46, junho de 1995.
3
Já na segunda introdução à Doutrina da ciência: “a intuição da pura atividade que não é nada fixa,
mas avanço, não um ser, mas uma vida” (p. 274 Ouvre choisies de philosophie première, Vrin). Sobre a
vida segundo Fichte, cf. Initiation à la vie bienheureuse, Aubier (e o comentário de Gueroult, p. 9).
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4
Dickens, L’ami commun, III, ch. 3, Pléiade.
5
Mesmo Husserl reconhecia isso: “O ser do mundo é necessariamente transcendente à consciência,
mesmo na evidência originária, permanecendo necessariamente transcendente. Mas isso não muda o
fato de que toda transcendência se constitui unicamente na vida da consciência, como inseparavelmente
ligada a esta vida...” (Méditations cartésiennes, Ed. Vrin, p. 52). Este será o ponto de partida do texto de
Sartre.
6
Cf. Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du livre.