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A propensão das coisas
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E-book335 páginas4 horas

A propensão das coisas

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Sobre este e-book

Por que a reflexão estratégica da China Antiga, bem como certa vertente de seu pensamento político, rejeitam a intervenção de qualidades pessoais (coragem dos combatentes, moralidade do governante) para alcançar o resultado desejado? Ou ainda: a que se deve, para os chineses, a beleza de um traço de escrita, o que justifica a montagem de uma pintura em rolos ou de onde vem o espaço que consideram poético? Ou, finalmente, como os chineses interpretam o "sentido" da História e por que precisam postular a existência de Deus para justificar a realidade? O objetivo deste estudo é encontrar, a partir da extrapolação de análises linguísticas, as linhas mestras subjacentes à cultura chinesa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de mai. de 2017
ISBN9788595460324
A propensão das coisas

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    A propensão das coisas - François Jullien

    1990.

    [7]

    Sumário

    Lista das ilustrações [11]

    Introdução [13]

    I. Entre estatismo e dinamismo – II. Uma ambiguidade embaraçosa: a palavra che (posição, circunstânciaspoder, energia) – III. Convergências entre campos: potencialidade em ação na configuração, bipolaridade funcional, tendência à alternância – IV. Uma palavra que revela uma cultura – V. O arrostamento de nossos partis pris filosóficos – VI. Remontando às origens de nossas interrogações

    Advertência ao leitor [23]

    I

    1 O potencial nasce da disposição(em estratégia) [27]

    I. A vitória é determinada antes do confronto – II. Noção de potencial nascido da disposição – III. Prioridade da relação de força sobre as virtudes humanas e eliminação de qualquer determinação sobrenatural – IV. Variabilidade circunstancial [8] e renovação do dispositivo – V. Principal originalidade: dispensar do confronto

    2 A posição é o fator determinante(em política) [47]

    I. A eficácia é extrínseca

    Conclusão I – Uma lógica da manipulação [73]

    I. Analogias dos dispositivos estratégico e político – II. Mo­ralistas contra realistas – III. Compromissos teóricos e convergências de base – IV. O compromisso histórico e a originalidade chinesa – V. A arte da manipulação

    II

    3 O elã da forma, o efeito do gênero [93]

    I. Ausência de mímesis: a arte concebida como atualização do dinamismo universal – II. Forma-força na caligrafia – III. Tensão da configuração na pintura – IV. O dispositivo estético – V. Configuração literária e propensão de efeito – VI. Diferença em relação à noção de estilo

    4 Linhas da vida através da paisagem [115]

    I. Linhas da vida na geomancia – II. Efeito de distanciamento e redução estética – III. O movimento de conjunto da paisagem – IV. O efeito da distância no espaço poético

    5 Disposições eficazes, por séries [135]

    I. Listas técnicas – II. Disposições eficazes da mão e do corpo – III. Posições que melhor encarnam a eficácia do movimento – [9] IV. Disposições estratégicas na poesia – V. O dispositivo discursivo e a profundidade poética

    6 O dinamismo é contínuo [167]

    I. Uma comunhão de evidências – II. A propensão ao encadeamento: na caligrafia – III. Na pintura – IV. Na poesia – V. No romance

    Conclusão II – O motivo do dragão [195]

    III

    7 Situação e tendência em história [223]

    I. O que é uma situação histórica? – II. Necessidade histórica da transformação (do feudalismo à burocracia) – III. A tendência à alternância – IV. A lógica da contraversão – V. Estratégia moral: a situação histórica como dispositivo que se deve manipular – VI. Ilustração: a tendência à renovação na literatura – VII. A concepção chinesa da História não leva a uma conclusão e não consiste em um relato de eventos – VIII. Explicação causal e interpretação tendencial

    8 A propensão em ação na realidade [283]

    I. O pouco interesse da tradição chinesa pela explicação cau­sal – II. O sentido da propensão natural – III. Desmistificação religiosa e interpretação tendencial – IV. O dispositivo da realidade e sua manipulação – V. A noção de tendência lógica e a interpretação dos fenômenos da natureza – VI. Tendência e lógica são indissociáveis – VII. Crítica do idealismo meta­físico e ideologia da ordem – VIII. A tendência concreta revela o princípio regulador; reversibilidade da relação entre eles – IX. Crítica do realismo político: princípio e tendência acompanham-se [10] – X. A concepção chinesa não é nem mecanicista nem finalista – XI. Ausência de uma teoria da causalidade: nem sujeito nem motor – XII. Propensão por interação espontânea ou aspiração a Deus

    Conclusão III – Conformismo e eficácia [335]

    I. Nem heroísmo trágico nem contemplação desinteressada. II. O sistema fechado de uma disposição evoluindo exclusivamente em função da interação dos polos – III. Sabedoria ou estratégia: conformar-se à propensão

    [11]

    Lista das ilustrações

    I: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    II: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    III: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    IV: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    V: Acima: Evolução da estrutura de um telhado, extraído do Grand Atlas de l’architecture mondiale, Encyclopaedia Universalis, Paris, 1981. Embaixo: Torre do sino, Xi’an, extraído do Grande tratado do som supremo.

    VI: Extraído das pranchas do Grande tratado do som supremo.

    VII: Extraído das pranchas do Grande tratado do som supremo.

    VIII: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    IX: Extraído do Jardim do grão de mostarda.

    X: Acima: Ziyantie, de Zhang Xu, extraído de L’Art chinois de l’écriture, de Jean-François Billeter, Genève, Albert Skira, 1989. Embaixo: Caligrafia de Zhao Mengfu, extraído de L’Art chinois de l’écriture.

    XI: Luz do entardecer sobre uma vila de pescadores (atribuído a Muqi), extraído de Peinture chinoise et tradition lettrée, de Nicole Vandier-Nicolas, Paris, Seuil, 1983.

    [12] XII: Detalhe de Nove dragões aparecendo através das nuvens e das ondas (atribuído a Chen Rong), extraído de Peinture chinoise et tradition lettrée.

    [13]

    Introdução

    I. De um lado, pensamos a disposição das coisas – condição, configuração, estrutura; de outro, tudo que é força e movimento. O estático de um lado, o dinâmico de outro. Mas essa dicotomia, como toda dicotomia, é abstrata; trata-se de uma facilitação da mente, um meio temporário – esclarecedor, mas simplificador – de conceber a realidade: o que acontece, devemos nos perguntar, com aquilo que, situado no entremeio, é condenado à inconsistência teórica e, por conseguinte, permanece amplamente impensado, mas no qual se dá, como bem pressentimos, o que existe de fato?

    A questão, embora rechaçada por nossa aparelhagem lógica, continua a nos atormentar: como pensar o dinamismo através da disposição? Ou ainda: como uma situação pode ser percebida ao mesmo tempo como curso das coisas?

    II. Uma palavra chinesa (che)*¹ nos servirá de guia nesta reflexão. Trata-se de um termo relativamente comum, ao qual normalmente [14] não se atribui alcance filosófico e geral. Entretanto, esse termo é em si uma fonte de dificuldade, e foi dessa dificuldade que nasceu este livro.

    Os dicionários dão como significado da palavra che tanto posição ou circunstâncias quanto poder ou potencial. Já os tradutores e exegetas, salvo em campos específicos (em política), na maioria das vezes compensam a imprecisão em relação ao termo com uma nota de fim de página em que se limitam a expor essa polissemia – sem dar grande importância ao fato. Como se estivéssemos lidando com mais uma das muitas imprecisões do pensamento chinês (insuficientemente rigoroso), diante das quais é preciso tomar partido e às quais acabamos nos habituando. Simples termo prático, inventado pelas necessidades da estratégia e da política, empregado na maioria das vezes em expressões tipificadas e glosado quase exclusivamente por certas imagens recorrentes: não há nada nele que lhe possa garantir a consistência de uma verdadeira noção – como nos impõe a filosofia grega – com finalidade descritiva e desinteressada.

    Ora, foi precisamente a ambivalência do termo que me atraiu, na medida em que perturba insidiosamente as antíteses bem acabadas sobre as quais repousa – e nas quais se fia – nossa representação das coisas: como o termo oscila ostensivamente entre os [15] pontos de vista do estatismo e do dinamismo, é-nos dado um fio que nos guia por trás da oposição de planos na qual nossa análise da realidade se deixa emparedar. Mas o próprio status do termo nos faz refletir. Porque, ao mesmo tempo que constatamos que essa palavra, nos diversos contextos em que se encontra, escapa a interpretações unívocas e permanece insuficientemente definida, sentimos que ela tem um papel determinante na articulação do pensamento: uma função discreta na maioria das vezes, raramente codificada, muito pouco comentada, mas cujo uso parece subentender, e fundamentar na razão, algumas das mais importantes reflexões chinesas. Portanto, foi também sobre a comodidade própria desse termo que me questionei.

    Assim, há uma primeira aposta na origem deste livro: a de que essa palavra desconcertante, apesar de se dividir entre perspectivas aparentemente divergentes, é uma palavra possível, cuja coerência pode ser descrita. Melhor ainda: cuja lógica nos ilumina. Essa lógica não ilumina apenas o pensamento chinês, e isso no espectro mais amplo, ele que, como sabemos, dedicou-se desde os primórdios a pensar o real em transformação. Ela ilumina também, transcendendo as diferenças de ótica próprias de cada cultura, aquilo sobre o qual o discurso tem tão pouco domínio em geral: a eficácia que não tem origem na iniciativa humana, mas é resultado da disposição das coisas. Em vez de impor ao real nossa aspiração ao sentido, vamos nos abrir a essa força de imanência e aprender a captá-la.

    III. Decidi aproveitar esse viés de uma palavra que serve de instrumento, mas nem por isso corresponde a uma noção global e definida (de âmbito já estabelecido e função marcada de antemão), vendo-a como uma oportunidade de enganar o sistema categorial [16] em que nossa mente corre sempre o risco de se enredar. Mas essa oportunidade também tem seu reverso. Como esse termo nunca levou a uma reflexão de conjunto, ao modo geral e unificador do conceito, por parte dos próprios chineses (nem mesmo em Wang Fuzhi, no século XVII, embora ele tenha sido o que foi mais longe nesse sentido) e, como dissemos, nem mesmo faz parte das grandes noções (o Caminho, Tao; o princípio organizador, li etc.) que serviram à tematização de suas concepções, somos obrigados a segui-lo de campo em campo para compreender sua pertinência: do campo da guerra ao campo da política; ou da estética da caligrafia e da pintura à teoria da literatura; ou ainda da reflexão sobre a História à filosofia primeira. Assim, somos conduzidos a examinar sucessivamente esses diversos modos de condicionamento do real e, aparentemente, nas mais diferentes direções: primeiro, o potencial que nasce da disposição (em estratégia) e o caráter determinante da posição hierárquica (em política); em seguida, a força em ação na forma do caractere caligrafado, a tensão que emana da disposição na pintura ou o efeito que resulta do dispositivo textual na literatura; enfim, a tendência que decorre da situação, em história, e a propensão que rege o grande processo da natureza.

    De passagem, e por meio desse termo, somos levados a examinar a lógica de todos esses grandes domínios do pensamento chinês. Disso surgem perguntas de interesse geral. Por que, por exemplo, a reflexão estratégica da China Antiga, como também certa vertente de seu pensamento político, rejeitam a intervenção de qualidades pessoais (coragem dos combatentes, moralidade do governante) para alcançar o resultado desejado? Ou ainda: a que se deve, para os chineses, a beleza de um traço de escrita, o que justifica a montagem de uma pintura em rolos ou de onde vem [17] o espaço poético, para eles? Ou, finalmente, como os chineses interpretam o sentido da História e por que precisam postular a existência de Deus para justificar a realidade?

    Sobretudo, fazendo-nos ir de domínio em domínio, essa palavra nos permite descobrir interseções. Da dispersão inicial procede uma série de convergências. Temas comuns se impõem: o da potencialidade em ação na configuração (seja a disposição dos exércitos em campo, a que é dada pelo ideograma caligrafado e pela paisagem pintada ou a que é instituída pelos signos da literatura...); o da bipolaridade funcional (seja entre soberano e súditos na política, entre alto e baixo na representação estética, entre Céu e Terra como princípios cósmicos...); ou ainda o de uma tendência gerada sponte sua, por simples interação, que se desenvolve por alternância (quer se trate, também nesse caso, do curso da guerra ou do desenrolar de uma obra, situação histórica ou processo da realidade).

    Todos esses aspectos, corroborando-se, tornam-se significativos da tradição chinesa. Mas será que ainda podemos falar tão simplesmente – e tão ingenuamente – de tradição, quando sabemos que uma corrente importante da reflexão sobre as ciências humanas, sobretudo depois de Foucault, tornou essa representação suspeita? Seríamos tão influenciados pela própria civilização chinesa, ela que tanto empregou a referência ao passado e deu tanta atenção às relações de transmissão? Ou será que a civilização chinesa foi mais unitária e contínua que as outras? (Mas sabemos também que a impressão de imobilismo que ela nos dá não passa de ilusão, porque ela também evoluiu muito fortemente.) Não será, ao contrário, que nosso ponto de vista de exterioridade em relação à cultura chinesa – o ponto de vista de heterotopia que Foucault evoca no início de As palavras e as coisas – nos permite notar, por [18] comparação, modos de permanência e homogeneidade que não aparecem tão nitidamente aos olhos dos que consideram de dentro as configurações discursivas que estão sempre se substituindo?

    Há, então, uma segunda aposta neste livro: é que, apesar de decepcionante do ponto de vista de uma história nocional do pensamento chinês, esse termo é precioso ao estudo porque revela esse pensamento: na interseção de todos esses domínios, temos a mesma intuição de base que parece veiculada, em grande medida, e durante séculos, como evidência adquirida: a da realidade – de toda a realidade – concebida como um dispositivo no qual devemos nos apoiar e o qual devemos empregar; consequentemente, a arte, a sabedoria, do modo como são concebidas pelos chineses, é explorar estrategicamente a propensão que emana desse dispositivo – para um efeito máximo.

    IV. Essa intuição da eficácia é difundida geralmente na China para levar à reflexão abstrata e disseminada demais para ser perceptível em estado isolado. Entranhada na língua, constitui uma base de entendimento absolutamente sólida, porque não precisa ser comentada. Sempre aquém das explicitações do discurso, não aflora completamente em nenhum termo em particular, mas é ela que o termo che nos faz entrever – en passant, mas significativamente; é ela que o che reflete a partir de um domínio próprio, como um exemplo privilegiado: ele não a expressa sozinho, mas é ele que nos permite detectar sua presença e descobrir sua lógica.

    Portanto, compete a nós, partindo dele e remontando à fonte através dele – e esse será meu intuito – tentar conceber, tirar do silêncio e desenvolver em teoria essa intuição. É claro que, de nossa parte, nenhuma noção dada será suficiente para apreender aquilo que se esgueira no discurso chinês, como se fosse evidente. Não [19] porque se trate, como na China, de um consenso do pensamento, mas, ao contrário, porque essa intuição, para ser entendida, implica que não sejam dissociados os planos cuja oposição é, no entanto, o que nos serve para pensar (e cujo sintoma característico é a difração da palavra che entre os pontos de vista do estatismo e do dinamismo, assim que é traduzida para as línguas ocidentais). Para iniciar o diálogo, portanto, não há outro meio senão começar a descentrar nossa visão, atacar de viés, recorrer a conceituações, que, embora secundárias até aqui, oferecem, por aquilo que delineiam, um novo ponto de partida possível. Para isso servirão precisamente aqui – pelas novas relações que, conjugando-se, eles estabelecem entre si – os termos dispositivo e propensão: pegos à margem de nossa língua filosófica, eles estabelecerão o quadro nocional a partir do qual trataremos, progressivamente, de uma cultura para outra, da diferença em questão.

    V. Evidência, de um lado; impensamento, de outro. Ao mesmo tempo que por efeito da interseção se destaca um modelo co­mum – implícito em todas as culturas – que é o de uma disposição que se dá por oposição e correlação e serve de sistema de funcionamento, vemos que são postas em questão, porque deixam de ser pertinentes, muitas das categorias que serviram de base para a elaboração de nosso próprio pensamento: em especial meio e fim, ou causa e efeito. Comparativamente, aparece certo parti pris da filosofia ocidental, cujo caráter de tradição a partir daí – visto de fora – também parece mais pronunciado: fundamentando-se mais na hipótese e na probabilidade do que na automaticidade, inclinando-se mais para uma polarização única e transcendente do que para a interdependência e a reciprocidade, e valorizando mais a liberdade do que a espontaneidade.

    [20] Em relação ao desenvolvimento do pensamento ocidental, a originalidade dos chineses deve-se ao fato de que eles não se preocuparam com um télos, como realização das coisas, e tentaram interpretar a realidade unicamente a partir dela mesma, do ponto de vista apenas da lógica interna dos processos em curso. Devemos nos libertar definitivamente, portanto, do preconceito hegeliano segundo o qual o pensamento chinês teria permanecido na infância porque não soube evoluir, a partir do ponto de vista cosmológico comum às civilizações antigas, para os estágios de desenvolvimento mais refletidos – e, portanto, superiores – que seriam representados pela ontologia ou pela teologia. Ao contrário, devemos reconhecer a extrema coerência subjacente desse modo de pensamento, ainda que este não tenha privilegiado a formalização conceitual, e fazê-la servir para decifrar de fora nossa própria história intelectual – que não conseguimos ler por nos ser tão familiar – e apontar melhor nossos a priori mentais.

    VI. Certamente, a filosofia ocidental atribuiu a si mesma, e desde o início, a vocação de fazer de seu livre questionamento o princípio de sua atividade (partindo, como fez, em busca de um pensamento cada vez mais emancipado). Mas também sabemos que, ao lado das perguntas que nos fazemos, que podemos nos fazer, há também tudo aquilo a partir de que nos interrogamos e, por isso mesmo, não temos condições de interrogar: esse fundo do nosso pensamento que foi tramado pela língua indo-europeia, formado pelos recortes implícitos da razão especulativa, orientado por uma expectativa peculiar da verdade.

    A excursão pela cultura chinesa que propomos aqui tem também a finalidade de verificar mais amplamente a medida desse condicionamento. Não, como poderia pensar o leitor, por desejo [21] ingênuo de evasão e fascínio pelo exotismo, ou para servir de argumento à má consciência ocidental e aos novos dogmas do relativismo cultural (simples reversos do etnocentrismo), mas simplesmente para tentar, por meio desse desvio, ir mais além em nossa apreensão das coisas. E, a partir daí, renovar nossa interrogação, reencontrar o elã – vivo, alegre – pela reflexão.


    *1 Shi em pinyin. Manteremos a transcrição che para a análise, já que é mais apropriada a nossa pronúncia. O pinyin é utilizado uniforme­mente nas notas e referências. O termo che, 势, é o mesmo que yi, que supostamente representa uma mão segurando alguma coisa, símbolo da potência, e ao qual foi acrescentado o radical diacrítico da força. Para Xu Shen, o que a mão segura é um torrão de terra, e este poderia simbolizar um local, uma posição. Como tal, a palavra che corresponde, no espaço, à palavra che, 時, tempo, tomado no sentido de oportunidade ou ocasião, e às vezes acontece de este ser escrito para aquele.

    [23] Advertência ao leitor

    Este livro é continuação direta de meu ensaio precedente, Procès ou création (ed. Seuil, 1989, col. Des travaux) e, mais particularmente, de seu último capítulo (17: Un même mode d’intelligibilité). O ângulo de ataque, em contrapartida, é quase o oposto: enquanto no trabalho precedente parti do pensamento de um único autor, Wang Fuzhi (1619-1692), com o intuito de analisar sua coerência, o termo chinês que tento explicar no presente estudo propicia um passeio, de um domínio ao outro, por mais de cinquenta nomes (que se distribuem da Antiguidade ao século XVII). Todavia, o espírito do trabalho é o mesmo: seja a propósito de uma única obra, seja a respeito da palavra che, o objetivo é encontrar, concentradas, as linhas mestras subjacentes a uma cultura. E, neste estudo também, o pensamento de Wang Fuzhi encontra-se no horizonte de minhas preocupações.

    A ambição também é a mesma: entre o perigo de uma especia­lização sinológica que, por se encerrar em si mesma, não tem mais em que pensar e torna-se estéril, e o perigo contrário da vulgariza­ção que, a pretexto de fazê-lo acessível, deturpa seu objeto e torna-o inconsistente, o único caminho possível é o caminho estreito de [24] um esforço de teoria. As exigências do filólogo e do filósofo devem ser conjugadas: convém ler mais de perto (descendo à individualidade do texto e de seu trabalho) e mais de longe (por diferença e perspectivação). A fim de transcender estas duas formas tão comuns de ilusão: a assimilação ingênua de que tudo se transpõe de uma cultura para outra; e o comparatismo simplista que procede como se tivesse a priori os quadros capazes de apreender a alteridade em questão. O procedimento aqui é, mais prudentemente, o de uma abertura problemática por interpretação progressiva.

    Daí as poucas escolhas que ditaram a concepção desta obra. Na apresentação de cada um dos domínios da cultura chinesa que invocamos, a filiação histórica é sempre respeitada e serve de fundamento à análise, mas não poderia ser desenvolvida por si mesma: isso é feito para que as articulações lógicas se deem plenamente e, ao mesmo tempo, o propósito sinológico (as referências contextuais são dadas em nota) decante-se ao máximo e torne-se mais fácil para o não especialista. Do mesmo modo, as comparações não são propostas de imediato, na forma de paralelo, mas entram, como hipóteses de conclusão, para servir de referência e indício da diferença procurada: a posição chinesa torna-se mais significativa, mesmo que as partes sejam desiguais entre as duas tradições (uma vez que se considerou, por princípio, que as referências à China estavam ainda por descobrir, ao passo que as referências à filosofia ocidental já eram familiares e podiam ser mencionadas alusivamente).

    Algumas figuras, no meio do livro, tentam tornar sensível ao leitor não iniciado a dimensão estética do che; as expressões chinesas, em nota, permitirão ao leitor sinólogo verificar no texto certas ocorrências características do termo.

    A ausência de índice, enfim, é voluntária.

    De fato, visei prioritariamente o prazer de seguir uma ideia.

    [25] I

    [27] 1

    O potencial nasce da disposição

    (em estratégia)

    A reflexão sobre a arte da guerra que floresceu na China no fim da Antiguidade (do século V ao III, na época dos Reinos Combatentes) vai muito além de seu próprio objeto: não apenas a sistematização peculiar que a caracteriza constitui uma inovação notável do ponto de vista da história geral das civilizações, como também o tipo de interpretação que ela origina projeta sua forma de racionalização [28] sobre o conjunto da realidade. A guerra pareceu muitas vezes o domínio privilegiado do imprevisível e do acaso (ou da fatalidade); ora, os pensadores chineses acreditaram notar, ao contrário, que seu desenrolar obedece a uma necessidade puramente interna, que pode ser logicamente prevista e, portanto, perfeitamente gerida. Uma concepção bastante radical para não revelar um frutuoso trabalho de elaboração: graças a ele, o pensamento estratégico esclarece exemplarmente como se dá a determinação do real e fornece uma teoria geral da eficácia.

    I. A intuição inicial é a de um processo que evolui unicamente em função da relação de força que ele próprio põe em jogo. Cabe ao bom estrategista calcular com antecedência, e de forma exata, todos os fatores implicados para fazer a situação evoluir constantemente de modo que esses fatores lhe sejam o mais inteiramente benéficos: a vitória não será mais do que a consequência necessária – e a consumação previsível – do desequilíbrio, agindo a seu favor, ao qual ele soube levar. Nesse sentido, não há desvio possível, um resultado vantajoso decorre infalivelmente das medidas apropriadas.¹ A arte do estrategista consiste, portanto, em conduzir a esse resultado, antes que ocorra o verdadeiro confronto: percebendo suficientemente cedo – em estágio inicial – todos os indícios da situação, de modo que possa influenciá-la antes mesmo que tome forma e se efetive. Porque quanto mais cedo essa orientação favorável é adotada, [29] mais facilmente ela atua e se realiza. Em seu estágio ideal, a ação do bom estrategista nem transparece: o processo que leva à vitória é determinado com tanta antecedência (e seu desenrolar é tão sistematicamente progressivo) que parece natural, e não resultado de cálculo e manipulação. A frase é paradoxal apenas na aparência: o verdadeiro estrategista alcança apenas vitórias fáceis.² Compreenda-se: vitórias que parecem fáceis porque, no momento em que se concretizam, não necessitam mais nem de proeza tática nem de grande esforço humano. As verdadeiras qualidades estratégicas passam despercebidas; o melhor general é aquele cujo êxito não é aplaudido: aos olhos do vulgo, ele não oferece para que se louvem nem valentia nem sagacidade.

    O ponto forte desse pensamento estratégico é reduzir ao mínimo o confronto armado. Até chegar à seguinte expressão: "as tropas vitoriosas [i.e., fadadas à vitória] procuram o enfrentamento em combate apenas depois de já ter triunfado, enquanto as tropas derrotadas [i.e., fadadas à derrota] procuram vencer apenas depois de iniciado o combate".³ Quem busca a vitória apenas na última etapa, a da luta armada, por mais talentoso que seja, sempre correrá o risco da derrota. Tudo deve definir-se previamente, num estágio anterior da determinação dos acontecimentos, quando disposições e manobras, ainda dependendo apenas de nossa iniciativa, podem ser espontaneamente adaptadas e, encadeando-se e reagindo logicamente, são sempre eficazes (espontaneidade ou lógica do processo: ambos os [30] termos significam a mesma coisa – como veremos amplamente nas próximas páginas – sob dois ângulos diferentes). Isso permite o controle efetivo do curso posterior dos acontecimentos, ou até que não seja mais necessário travar

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