Da Greve Ao Boicote Texto Completo
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Da Greve Ao Boicote Texto Completo
RESUMO: A greve consegue ser muitas coisas de uma vez só: é momento de liberdade, de
pausa, de rebelião e de sonho; tem traços de homem e de mulher; arroubos de jovem e
racionalidade de adulto. Exatamente por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela
sempre buscando fugir. Historicamente, a greve foi e tem sido a grande arma do sindicato
não só para criar direitos, como para torná-los mais eficazes; e não apenas para fins
trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Hoje, porém, a greve e o
sindicato estão em crise – que se reflete, por extensão, no próprio Direito do Trabalho.
Como meio de superar essa crise, o autor trata de um novo conceito de greve e - para além
da própria greve - da prática do boicote, que se articula com os valores e as tendências
desses tempos pós-modernos. Mas todas essas alternativas de luta são desafiadoras e
complexas: implicam a participação de novos atores e poderão afetar a própria estrutura da
organização sindical. Além disso, reclamam um novo olhar em direção à lei, considerando-
se a Constituição da República
SUMARY: Strike manage to be many things at the same time: it’s freedom, pause,
rebellion and dream moment, it has men and women`s traces, ecstasy of the youth and
rationality of an adult. Exactly because of this, laws are always trying to capture it and it is
always trying to escape. Historically, strike has been the union trade`s great gun not only to
create rights, but also to make them more efficient; and not only for labour purposes but to
promote the general oppressed classes. Today, however, strike and union trade are in crisis-
that reflets by extension on the labour law itself. As a way to surpass this crisis, the author
deals with a new concept of strike and –to beyond the strike itself –of the practice of
boycott that articulates itself with the values and tendencies of this post modern times. But
all this fight alternatives are challenging and complex: they imply the participation of new
actors and might affect the structure itself of the trade union organization. Besides, claims
a new vision upon the law, considering the Brazilian Constitution.
KEY WORDS: Strike – boycott – Trade Union – collective labor conflicts – globalization – to
become flexible
(*)
Professor nas Faculdades de Direito da UFMG e da PUC-Minas.
1
1. Entre a opressão e a resistência
Num texto de prosa que mais parece poesia1, Leonardo Boff nos ensina que a Natureza é
vida e morte, paz e guerra, céu e inferno.
Mesmo as mais tranqüilas florestas escondem terríveis batalhas. Raízes, cipós e troncos se
abraçam e se estrangulam. Insetos, vermes e flores se fecundam e se consomem.
São incontáveis – diz ele – os óvulos, espermas e sementes que morrem no exato instante
em que nascem. A harmonia parece se nutrir do conflito.
E se é assim com as formigas, abelhas e tico-ticos, não poderia ser mesmo diferente entre
nós – animais que também somos.
1
O Despertar da Águia, Vozes, Petrópolis, 1998, passim. A citação subseqüente não é literal.
2
Ferri, segundo Bogea, Antenor. Do concurso de agentes na suposta criminalidade animal", in "Estudos de
Direito e Processo Penal em Homenagem a Nelson Hungria, Forense, Rio, 1962, p. 428.
3
Depois de tentar resistir, elas acabam saqueando os próprios alvéolos, lado a lado com as invasoras.
4
Sem perceber a fraude, a fêmea do tico-tico alimenta e protege os filhotes alheios.
2
Calígula gostaria que as pessoas tivessem um único pescoço, para que ele o cortasse “de um
só golpe”. Spartacus desafiou as legiões5, Chico Rei libertou os antigos súditos 6 e Zumbi
repeliu por décadas o inimigo7, até cair morto pelo abraço fatal de um amigo.8
É que o trabalho – especialmente por conta alheia 9 - pode produzir, ao mesmo tempo, a
riqueza de alguns e a pobreza de muitos; o poder de ditar o destino alheio e a aflição de
sentir-se nas mãos do outro.
Por isso, e tal como as faces de uma moeda, opressão e resistência têm marcado a história
dos trabalhadores10. O moinho que mói o milho pode estar moendo o moleiro; mas a enxada
que fere a terra também pode ferir o senhor11.
Do mesmo modo que a opressão, a resistência tem mostrado cores e formas variadas, tal
como a argila nas mãos do artista, ou o camaleão que se ajusta a cada novo ambiente.
Assim é que, em algumas épocas ou lugares, ela foi individual e caótica – como quando os
escravos quebravam as ferramentas de trabalho, que para eles eram também ferramentas de
tortura12.
Outras vezes, foi racional e coletiva – como entre os luddistas do século XIX, que juravam
sobre a Bíblia os seus segredos, enviavam ultimatos a políticos e empresários,
identificavam as máquinas inimigas e só depois as quebravam (em pedaços bem pequenos,
para que não pudessem ser refeitas)13.
5
Gladiador escravo, fugiu com um punhado de homens e chegou a reunir mais de 10 mil, cruzando a Itália.
Foi traído por piratas com quem tinha acertado uma fuga pelo mar. O seu exército foi cercado e dizimado. Os
capturados foram crucificados. Alguns milhares ainda fugiram para o norte, mas as legiões de Pompeu os
esperavam (Rendina, Claudio. Storia insolita di Roma, Newton & Compton, Roma, 2001, p. 74) .
6
Diz a lenda que o seu senhor lhe deu uma mina já quase esgotada, mas ele conseguiu reativá-la e comprar a
carta de alforria dos irmãos escravos que compunham a sua antiga corte na África.
7
A República dos Palmares reunia vários quilombos. Neles havia escolas, repartições fiscais, serviço de
polícia, poder judiciário e assembléias do povo. As leis se transmitiam oralmente e todos deveriam conhecê-
las de cor. As cidades eram defendidas por cercas, valas, estacas e pontes levadiças, que enfrentaram 27
expedições A última batalha durou três anos, dia e noite, em meio a balas, flechas, água fervente, “numa
resistência heróica, espantosa!” (Luna, Luiz. O negro na luta contra a escravidão, Brasília, MEC, 1976,
passim. O trecho citado entre aspas é de Carvalho, referido pelo mesmo autor, p. 234)
8
Conta-se que ele escapou com um bando, mas algum tempo depois esse antigo amigo – Antonio Soares –
levou a tropa até o seu esconderijo, e – abraçando-o – apunhalou-o.
9
Note-se que o trabalho por conta alheia pode ser ou não subordinado.
10
A propósito, cf. o nosso Direito de Resistência: possibilidades de autodefesa do empregado em face do
empregador, LTr, S. Paulo, 1996
11
Nesse sentido, as enxadas nas costas, nas andanças dos sem-terra, podem significar tanto a procura de um
lugar como a busca de um trabalho e a disposição para a luta.
12
Segundo alguns, essa prática teria levado os senhores a superdimensionar as ferramentas de trabalho.
13
A propósito, entre outros, Thompson, E. P. A Formação da classe operária inglesa, Paz e Terra, Rio de
Janeiro, 1997
3
Entre nós, a resistência foi também preguiçosa e libertária – como depois da Lei Áurea,
quando muitos negros, perambulando pelas cidades, não só afirmavam seu novo direito,
mas negavam o próprio trabalho, memória e símbolo de sua degradação.14
Com Castro Alves, a resistência foi poética - e nem por isso menos forte e terrível:
A explicação pode ser encontrada nos paradoxos do próprio sistema. Como certa vez
escrevemos 18, o trabalhador, ao contratar, cede o domínio de seus gestos: à primeira vista,
usa a própria liberdade para perdê-la. No entanto, já nesse momento, a liberdade tem
traços de ficção: não detendo em suas mãos o capital e a matéria-prima, quem nasceu para
ser empregado simplesmente não tem como escolher a autonomia, vale dizer, o seu
contrário. Ainda assim - ou talvez por isso - o contrato é peça-chave do sistema, posto que
o legitima.
Se fosse realmente livre para vender (ou não) a sua liberdade, o trabalhador a manteria - e
o sistema seria outro. Desse modo, para que as relações de produção se perpetuem, é
14
Ao recusar-se ao trabalho, negando o próprio trabalho, eles afirmavam a liberdade recém-conquistada.
Naturalmente, muitos outros mendigavam por falta de opção (A propósito, cf. Cardoso, Fernando Henrique.
Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, Paz
e Terra, Rio de Janeiro, 1977, passim).
15
Conta-se que eles eram proibidos de conversar, mas ao mesmo tempo instados a cantar; por isso,
conversavam enquanto cantavam, introduzindo entre as notas musicais as suas formas de resistência.
16
Trecho de “Navio Negreiro”.
17
Trecho da canção “Gente Humilde”, de Chico, Vinicius e Garoto.
18
Viana, M. T. Conflitos coletivos do trabalho, in Franco Filho, Georgenor (org.) Presente e futuro das
relações de trabalho, LTr, S. Paulo, 2000, p. 308-346
4
preciso não só que haja liberdade formal para contratar, mas que falte liberdade real para
não contratar.19
Além disso, o empresário quer acumular, objetivo estranho ao trabalhador 20. E assim, tal
como o produto que fabrica, este mesmo trabalhador se estranha e se aliena. Marx explica
em quê consiste essa alienação:
De outro lado, ao contrário do que acontece com os demais meios de produção, não há
como atuar diretamente sobre a força-trabalho22. Em conseqüência, como ensina Catharino,
o homem é “pessoalmente atingido”23. E é nesse ponto que - em termos substanciais - a
subordinação pode significar sujeição.
Tudo isso faz com que no trabalho livre e (ao mesmo tempo) subordinado, os conflitos
estejam sempre presentes, ainda que ocultos ou em potência. Assim, não se trata de mera
patologia - mas, como dizíamos, da própria anatomia do sistema. Daí por quê no campo
do trabalho subordinado, o conteúdo dos acordos é sempre precário - resultado da natureza
anatomicamente conflitual das relações.
E esses conflitos não se reduzem ao choque entre as classes, mas se multiplicam no interior
de cada uma delas, opondo empresários a empresários, sindicatos a sindicatos, sindicatos a
trabalhadores, trabalhadores a sindicatos e até trabalhadores a trabalhadores.
Exemplo recente foi o sucesso, no meio empresarial, do livro “A arte da guerra”, escrito
por um general chinês do ano 2000 aC. Mas também poderíamos lembrar o tempo em que
músicos em greve quebravam as mãos dos que continuavam a tocar 24, ou as revoltas
operárias dos anos 60-70 (na Europa) e 70-80 (no Brasil), muitas delas à revelia dos
sindicatos, ou em oposição a eles.
Mas a História nos mostra também uma curiosa tendência à mimetização. Ao longo dos
tempos, trabalho e capital vão se moldando um ao outro, mesmo quando se enfrentam. O
aprendizado é constante e recíproco.
19
Ainda a propósito do poder nas relações de trabalho, cf. também Melhado, Reginaldo. Poder e sujeição,
LTr, S. Paulo, 2005; Coutinho, Aldacy Rachid. Poder punitivo trabalhista, LTr, S. Paulo, 1999; e Delgado,
Maurício Godinho. O poder empregatício, LTr, S. Paulo, 1996.
20
Nesse sentido, Leite, Márcia de Paula. O futuro do trabalho, Scritta, S. Paulo, 1997, passim.
21
Marx, K. apud Hunt & Sherman, História do pensamento econômico, Vozes, Petrópolis, 1992, p. 76
22
A observação não é nossa; escapa-nos, infelizmente, o nome do Autor.
23
Na mesma direção, escreve Russomano, em uma de suas obras, que não se pode contratar apenas um braço:
todo um homem vem junto com ele.
24
Episódio ocorrido nos Estados Unidos, em meados do século passado.
5
É o que podemos ver na sátira de Chaplin aos tempos modernos, quando o herói, para se
defender, esguicha óleos nos seus perseguidores; ou nesses nossos tempos pós-modernos,
quando a fábrica propõe e incentiva o trabalho em equipe, canalizando para si o sentimento
coletivo dos seus empregados.
O último exemplo nos mostra também que o conflito nem sempre é aberto e visível. Com
freqüência, poderes e contrapoderes se esquivam e se disfarçam, tentando fraudar um ao
outro, trocando a luz pelas sombras.
Assim é, por exemplo, quando a empresa transfere para a máquina ou para o próprio
empregado uma parte de seu comando; ou quando nos pergunta – na traseira de sua van -
se o seu motorista está “dirigindo bem”; ou ainda quando produz ideologias e recebe
assentimentos.
Às vezes, a resistência pode passar despercebida ao próprio agente que a pratica – como
acontece com algumas empregadas domésticas, ao quebrar sem querer copos e pratos da
patroa, protestando sem saber contra o trabalho humilhante – como se fossem luddistas
inconscientes...26
Outras vezes – como em certas formas de assédio – é a opressão que se disfarça tão bem
que o próprio trabalhador questiona a sua condição de oprimido: não sabe ao certo se
caçoam dele, ou se é dele mesmo a culpa dos gracejos; e então, ao invés de se defender,
agride-se.
Por fim, se olharmos mais a fundo, veremos como até o órgão máximo da resistência – o
sindicato – tem servido para regular, modular e conter o próprio conflito.
E por tudo isso é que podemos concluir, como já fizemos uma vez 27, que a resistência
convive com a submissão: a história do agressor também é a do agredido, que ora se curva
porque quer, ora por não ter como reagir.
2. Os significados da greve
25
Essa última prática, segundo alguns sociólogos, como Amnés Maroni, foi comum sobretudo nos últimos
anos da ditadura militar, quando nascia o “novo sindicalismo’.
26
A observação é de Freud, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana: esquecimentos, lapsos de língua,
atos descuidados, superstições e erros, Imago, Rio de Janeiro, 1976, passim.
27
Direito de Resistência, cit., p. 24.
6
Em Paris, nos velhos tempos, aconteceu certa vez que o Rio Sena - de tanto jogar para fora
as coisas que não queria - acabou construindo uma praça.
Essa praça foi batizada com o nome de Grève – palavra que significa “terreno plano e
unido, coberto de graveto e de areia, ao longo do mar ou de um curso de água”.28
Na I Revolução Industrial, era ali que os trabalhadores se reuniam para contar suas lorotas,
xingar os patrões29, esperar pelos gatos ou praticar suas greves. Assim, com o passar do
tempo, estar em (=na praça de) Grève passou a significar estar em (=fazendo) greve.
É curioso notar como as traduções dessa palavra em algumas línguas podem revelar os
significados da própria greve.
Em Inglês, greve é strike – que se traduz pelo substantivo “ataque” e pelos verbos
“golpear”, “bater”, “chocar-se”.30
Em Espanhol, é huelga – que entre outras coisas significa “folga, férias, descanso,
folguedo”; e tem a mesma raiz de huelgo, que se traduz por “fôlego, alento”. 31
Em Italiano, greve é sciopero – palavra cujas raízes latinas nos remetem à expressão “livre
da obra”, ou seja, do trabalho32, e que curiosamente tem o mesmo prefixo de sciolto, “livre
de ligações, de vínculos”.33
É strike enquanto violência. Golpeia o contrato de trabalho, pois questiona o que foi
ajustado e desobriga o empregado de sua prestação principal. 34 Por isso, se o conflito é
apenas aparente, a greve será também assim – ou seja, não será greve de fato.35
7
Como verdadeiros generais, os líderes do sindicato estudam o campo inimigo e traçam
estratégias. Assim é que pesam a situação econômica da empresa e o limite de resistência
dos trabalhadores; tentam evitar manobras dos patrões (como admitir terceirizados);
procuram passar a certeza na vitória, exacerbam ou moderam os ânimos, modulam a
resistência e a paciência, gerenciam os rancores e os medos.
E o outro lado também se organiza. A empresa contrata espiões37, espalha falsos boatos,
semeia discórdia entre os grupos, ameaça com o lock-out38 e oferece prêmios ao fura-greve
– visto pelos colegas como desertor e traidor.
Mas se a greve tem elementos da guerra, é uma guerra de conquista, em que só um dos
lados ataca, enquanto o outro se defende. Além disso, ao contrário da guerra, a violência da
greve é basicamente passiva; expressa-se por um não fazer E não termina em tratado de
paz, mas como linha de trégua, de equilíbrio fugaz - já acenando, implicitamente, com a
ameaça de uma próxima greve. Vindo a trégua, aquele não fazer se transforma não só num
fazer, mas num fazer melhor aceito, o que pode significar mais intenso.
Nesse sentido, o prejuízo causado pela greve é sempre relativo. Mesmo quando ela é
completamente vitoriosa (o que poucas vezes acontece), o empregador pode dizer aos
empregados: “vocês conseguiram o que queriam; espero que agora cumpram a sua parte”.
De certo modo, a greve limita os sonhos e – quando os realiza - cobra um preço por eles,
justificando a dominação subseqüente. Como vimos, não é como os quilombos, que
significavam ruptura.
Tal como acontece, em certa medida, com o seu contrário – o poder diretivo 39 – a greve
sempre surpreende, ainda que esperada; e tanto incita quanto irrita, mesmo se rotineira.
Em outras palavras, choca.
Mas greve é também sciopero, que lembra “livre”, “solto”. O trabalhador se desprende –
ainda que não de todo 40 - do poder de comando que o oprime.
Entre nós, nos últimos anos da ditadura, ela libertava os trabalhadores não só da linha de
montagem, mas de um clima difuso de ameaças41. Por isso, nascia não apenas por razões
econômicas, mas
37
Nas primeiras décadas do século passado, era esse um dos serviços oferecidos pela empresa norteamericana
Pinkerton.
38
V. tópico próprio, infra.
39
Como se sabe, o poder diretivo especifica, a cada momento, o que foi ajustado apenas genericamente, e
nesse sentido é ao mesmo tempo previsto (enquanto poder) e imprevisto (no modo de se manifestar); ou, em
outras palavras, esperado enquanto gênero, e surpreendente enquanto espécie.
40
Na verdade, o poder diretivo (em sentido amplo) permanece atuando secundariamente, como, por exemplo,
através das obrigações de não violar segredo da empresa e não ofender física ou moralmente o empregador.
41
Como se sabe, no período da ditadura, o poder diretivo patronal se articulou com o poder de repressão
policial. Havia não só agentes infiltrados nas fábricas, como policiamento ostensivo nas manifestações e
ameaças explícitas de enquadramento dos trabalhadores na Lei de Segurança Nacional.
8
(...) da necessidade que o trabalhador tem de respirar42
É a liberdade que volta, não obstante mitigada 43, temporária e sobretudo contraditória: em
termos reais, o trabalhador se coloca fora do contrato 44, ainda que formalmente dentro dele,
e para reentrar nele em seguida.
Em razão desse último objetivo, a greve pode passar de simples strike (ataque) a strike up,
que se traduz por “travar relações” 45. Se ela tem êxito, abre o diálogo, mas um diálogo em
nível diferente: já agora, é o trabalhador (através do sindicato) quem propõe as condições
para a sua subordinação.46
Tudo isso faz com que o não-trabalho tenha o sabor de um folguedo. A greve festeja
também o direito à preguiça47. Quanto maior a opressão no trabalho, maior a alegria na
greve, qualquer que venha a ser o seu resultado.
Por fim, greve é também grève: tal como o rio que transbordava, trazendo areias e seixos,
ela faz o contrato sair de seu leito, incorporando novas cláusulas. Por isso, se os
trabalhadores apenas se recusam coletivamente a fazer o que não está no contrato, como
horas extras, não se pode falar em greve.
42
Depoimento citado por Antunes, Ricardo. A rebeldia no trabalho: o confronto operário no ABC paulista –
as greves de 1968 a 1980. Unicamp/Ensaio, Campinas, 1988, p. 33.
43
Por não ter os meios de produção, o trabalhador continua sem a opção real de deixar de ser subordinado; daí
não ser completa a sua liberdade.
44
A expressão é de Santiago |Perez del Castillo (Direito de Greve, LTr, S. Paulo, 1999, passim).
45
Novo Dicionário Barsa das Línguas Inglesa e Portuguesa, Appletown Century Crofts, N. Y., 1972, p. 532.
Note-se que a expressão também tem outros significados.
46
Observaremos depois como esse quadro vem se alterando.
47
Hardman, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão!, UNESP, S. Paulo, 2002, p. 27
48
Em Roma, muitos trabalhadores levaram as suas famílias, e celebraram os comícios e a greve geral com
vinhos, pães e salames ao ar livre.
49
A propósito desse duplo caráter da greve, cf. Hardman, Francisco Foot. Nem pátria, nem patrão!, UNESP,
S. Paulo, 2002, p. 28.
9
A greve é a reavaliação coletiva de cada contrato de trabalho50. No entanto, o que ela faz, e
a lei legitima, não é apenas isso – mas sobretudo a produção de normas jurídicas pelos
atores sociais51. Desse modo, se não é lícito criar ou alterar individualmente uma cláusula
do contrato, é possível criar ou alterar coletivamente a norma que vai reger todos os
contratos. Como não pode estar presente com a velocidade e a eficácia que os conflitos do
trabalho exigem, o Estado abre mão do monopólio de dizer o Direito.
Por isso, um trabalhador isolado não tem como se colocar fora do contrato; aos olhos da lei,
só pode fazê-lo em grupo. Apenas nesse último caso a lei despreza, ignora ou esquece a sua
condição de contratante. A ação individual de não trabalhar desliza para a ação coletiva da
greve.
Ao mesmo tempo - e ainda como a enchente do rio - a greve irradia os seus efeitos para
outras categorias e mesmo para além das relações de trabalho55. É uma estratégia original
de transformação da sociedade pelas mãos dos oprimidos.
É curioso notar que, no mesmo momento em que a fábrica deixa de produzir mercadorias, a
greve – que é também o seu contrário – passa a produzir direitos. E direitos não só
50
Sinay fala em transposição dos contratos de trabalho para um plano coletivo (Op. cit., p. 346)
51
Por sua vez, a produção autônoma de normas coletivas pode se justificar por inúmeras razões, dentre as
quais uma de ordem prática: a impossibilidade de o Estado estar presente com a rapidez e a eficiência
necessárias.
52
No modelo pré-taylorista, ainda era possível, para os trabalhadores qualificados, exercer pressão individual
– pois detinham ainda uma parte expressiva do conhecimento sobre o processo produtivo. Depois,
acentuando-se o processo de desqualificação, o novo operário que surgiu – o operário-massa – perdeu aquela
possibilidade, mas o sindicato no mesmo momento a resgatou.
53
A propósito, observa com inteligência Maurício Godinho Delgado que a empresa é um ser coletivo na
medida em que produz efeitos macro, que vão influir sobre multidões (Curso de Direito do Trabalho, LTr, S.
Paulo, 2007).
54
Genro, Tarso. Contribuição à crítica do Direito Coletivo do Trabalho, LTr, S Paulo, 1979. Note-se que não
há necessidade de que o prejuízo seja desejado de forma direta e consciente.
55
Segundo Murilo Brasil e Vilma Gonçalves (3000 anos de sindicalismo, Edições Trabalhistas S/A, Rio de
Janeiro, 1992, p. 75),a greve influíram até na música. Na década de 40, os discos começaram a substituir as
orquestras nas rádios, sem pagar direitos autorais. A American Federation of Musicians decretou então uma
greve, que durou quase dois anos. Para sobreviver, a maioria dos músicos começou a tocar em pequenos
ambientes, com mais liberdade para criar, e para um público mais interessado em ouvir do que em dançar. Foi
assim que nasceu o bebop, uma das formas primeiras do jazz. E o jazz, como sabemos, é marcado pelo signo
da liberdade, o que nos remete de novo a alguns dos significados da greve.
10
trabalhistas, em sentido estrito, mas humanos, em sentido amplo. Um desses direitos pode
ser o próprio direito de fazer greve. 56.
Mas a greve tem muitos outros significados, para além da etimologia – e alguns deles,
talvez, para além de nossa percepção.
É importante notar, por exemplo, como a quantidade muda a natureza das coisas57. Como
observa Gide, qualquer um de nós pode parar no passeio ou andar em ziguezague, sem
causar transtornos ou mesmo sem ser notado; no entanto, se muitas pessoas o fizerem ao
mesmo tempo, todos se sentirão atingidos58.
E a greve conversa também com o próprio trabalhador: ensina-o a lutar pelos direitos que
tem e (principalmente) pelos que ainda não tem; a inverter o medo que sente pelo medo que
semeia; a ter orgulho, a sentir-se gente. Como disse certa vez um operário, ela às vezes
acontece
Nesse sentido, a greve é metáfora60; retrata não só a indignação que os trabalhadores sentem
diante das suas condições de trabalho, como o desabafo, mesmo inconsciente, pelo fato de
se subordinarem a outros homens. É nesse momento que cada trabalhador joga para fora os
desaforos, as pressões e as tristezas que teve de engolir.
Uma psicóloga do TRT da 3ª. Região 61 concluiu, observando inúmeras audiências, que os
acordos, com freqüência, escondem outros dramas. Nas entrelinhas da greve, pode-se
perceber que há um conflito visível e agudo, e outro maior e latente, que se oculta por
detrás e explode através dele. Para além das reivindicações do momento, a greve revive
momentos anteriores de opressão. Também ela tem silêncios que falam62.
56
Foi o que aconteceu na I Revolução Industrial e também em outras épocas, como, por exemplo, em meados
do século passado, quando os controladores de vôo franceses se uniram contra um projeto de lei que lhes
retirava aquele direito. (Sinay, H. Op. cit., p. 57)
57
A observação é antiga e não passou despercebida por Marx.
58
Gide, Ch., et alii . Le droit de grève, Gide, Ch. et alii. Le Droit de Grève, Félix Alcan, Paris, 1909, p Paris,
F Alcan, 1909, p. 7.
59
Trecho de depoimento colhido numa das greves dos anos 1978-80, segundo Frederico, apud Abramo, L. W.
Greve metalúrgica em S. Bernardo: sobre a dignidade do trabalho, in Cardoso, Ruth Correa et alii. As lutas
sociais e a cidade, Paz e Terra, S Paulo, 1991, p. 214.
60
Garcia, Jesús Ignacio Martinez. Op cit., p. 13
61
Judith E. R. de Albuquerque, que tem feito excelente trabalho na Escola Judicial do TRT da 3ª Região
62
Para lembrar uma observação instigante da colega Aldacy Rachid Coutinho, sobre as palavras do silêncio,
num Congresso da LTr, há alguns anos, em São Paulo.
11
Em toda greve, qualquer que seja o seu objeto imediato, cada trabalhador reafirma e realiza
– real e simbolicamente - a condição contrária à de sua própria existência: por algum
tempo, liberta-se, in-subordina-se, à semelhança daqueles ex-escravos que usavam o único
pequeno direito que julgavam ter – o de não trabalhar – para se sentirem dignos63.
E, desse modo, o que ele não faz na fábrica, faz na greve: canta, conta, xinga, inventa,
protesta, pensa, sonha e (paradoxalmente) se move. Ainda assim, porém, algumas coisas
que ele faz na fábrica também faz na greve: insere-se numa organização, divide o trabalho
com os companheiros, segue os ritmos ditados pelos líderes.
Mesmo o operário que treme diante do patrão consegue ousar na greve, pois a multidão o
esconde e protege; torna-o quase invisível. Nesse sentido, a força do número não viabiliza
apenas o sucesso, mas a própria existência da greve. A greve de um só, ainda que fosse
legítima, seria vencida pelo medo; não poderia se opor à empresa, ser coletivo.
A greve silencia as máquinas e abre o peito dos trabalhadores. Em nível coletivo, eles
expressam a sua união, a sua força, a sua coragem. Afirmam-se enquanto classe, deixando
nítida, assim, a existência de uma outra classe, que domina os meios de produção e por isso
mesmo os domina.
No entanto, nem sempre acontece assim. Por exceção – e razões estratégicas - este espelho
pode se tornar opaco; e o escândalo, mal percebido. Um bom exemplo foi a última greve
dos controladores de vôo, que depois de enfrentar uma forte reação das classes alta e média
preferiu tomar o caminho das sombras, disfarçando-se por detrás de neblinas e radares.
Em casos como este, a greve passa a ser explícita apenas entre os seus principais atores – o
sindicato, de um lado, e o Governo, de outro – pois ambos podem ter interesse em ocultá-
la65. Aos olhos da população, nem sempre é percebida como greve. Mistura-se com aqueles
outros fenômenos, reais ou falsos, ou meio reais e meio falsos, assumindo a forma de uma
espécie de cataclismo – o apagão66.
De certo modo, toda greve também conta e repete a história do próprio sindicato, pois nasce
com um traço revolucionário (ao negar por algum tempo a subordinação) e termina de
63
Na verdade, mais uma sensação de direito do que um direito real, se considerarmos que a vadiagem tem
sido historicamente considerada uma contravenção penal.
64
Garcia, Jesús Ignacio Martinez, Prólogo, in Martinez, M. Olga Sanchez. La huelga ante el Derecho:
conflictos, valores y normas, Dykinson, Madrid, 1997, passim
65
O possível interesse do Governo estaria no fato de que, se as coisas ficarem muito claras, terá de tomar uma
atitude também precisa. Ora, se atender aos grevistas, pode ferir hierarquias entre os militares, inclusive em
termos salariais; e se, ao contrário, reprimi-los, queimará a sua imagem junto aos trabalhadores. Por outro
lado, a idéia de um incontrolável “apagão” acaba servindo, ainda que não propositalmente, para afastar
eventuais responsabilidades de controladores a propósito de acidentes aéreos.
66
Como se sabe, este é o termo criado pela mídia para descrever o fenômeno, o que nos remete à crise
energética de alguns anos atrás, também sem culpados visíveis.
12
maneira mais ou menos conformista (ao aceitar tacitamente – ainda que com eventuais
mudanças - as mesmas relações de produção).67
Por tudo isso, a greve – tal como o sindicato – é ao mesmo tempo indisciplina e
disciplina68; nega e reafirma a condição operária, agredindo e legitimando o sistema. É
revanche, revide, quase vingança; mas é também convite, apelo, insinuação.
Essa dualidade fica muito evidente em alguns tipos de greve, como na de ocupação passiva,
ou lock in, quando os trabalhadores se afirmam pela sua presença e não pela sua ausência 69.
Nesse caso, os próprios muros da fábrica sinalizam os limites de sua luta. O que eles
querem simplesmente é melhorar as condições para que possam continuar dependentes.70
E, como símbolo que é, a greve tem também o seu ritual, a sua missa. Para Domenach, ela
conserva “qualquer coisa de trágico e de quase religioso” 71– do mesmo modo que parece ter
traços de loucura. Sua linguagem, como diz Garcia, é “a da parcialidade, do
posicionamento, da contradição”72. É difícil manter-se neutro.
No caso da greve geral74 - que já teve traços realmente anti-capitalistas - esta esperança foi
muitas vezes cantada em prosa e verso. Alguns, como Sorel, viam-na como a grande arma
67
Lembre-se que o sindicalismo, no início, via a própria greve como uma forma de derrubar o sistema,
especialmente em suas versões anarquista e marxista; mas pouco a pouco, sobretudo a partir do período
taylorista-fordista-keynesiano, foi trocando as utopias do futuro pelas conquistas imediatas do presente, e
convertendo-se, assim, numa importante peça do próprio capitalismo.
68
Nesse sentido, anota Sinay que foram os próprios sindicatos, na França, que pediram ao legislador a
instituição de uma arbitragem obrigatória, para ajudá-los a controlar as greves de ocupação. Do mesmo modo,
um dos papéis do sindicato, na greve, é canalizar e “moderar o ardor dos grevistas” (op. cit., p. 24 e 33).
69
Sinay, H. Op. cit., passim.
70
Ao narrar a sua própria experiência, Simone Weil nos dá outros detalhes dessa dualidade, ao descrever a
alegria de encontrar, na fábrica ocupada, não mais os rostos severos dos contramestres ou o apelo incessante
para o trabalho, mas os sorrisos dos companheiros e o silêncio das máquinas (A Condição Operária, xx.
71
Apud Bouère, Jean-Pierre. Le Droit de grève, Sirey, Paris, 1958, p. 15.
72
Garcia, Jesús Ignacio Martinez, Prólogo, in Martinez, M. Olga Sanchez. La huelga ante el Derecho:
conflictos, valores y normas, Dykinson, Madrid, 1997, p. 17.
73
“O homem pensa com largueza/ A mulher sente com profundidade/ O coração dela é o mundo/ O mundo
dele é o coração”
74
Mesmo sem contestar o sistema, a greve geral tem servido para outros propósitos para além de direitos
trabalhistas – como, por exemplo, para derrubar ditadores (como Ibañez, no Chile) e libertar cidades (como a
Paris de 1944). No Brasil, entre vários outros episódios, esteve presente na defesa do monopólio do petróleo.
13
para a transformação do mundo. Também para Pataud-Pouget, não poderia haver estratégia
mais eficaz:
Para vencer não se trata mais de fazer fuzilar (...) Basta cruzar pacificamente os braços.
Só por este fato a vida civilizada fica suspensa: os padeiros não cozinharão o pão; os
cozinheiros ficarão sentados diante dos fornos apagados; as imundícies entupirão as
cidades; os cadáveres empestarão a atmosfera. A burguesia será obrigada a entregar-se.75
Para os sindicatos marxistas e anarquistas, a revolução aconteceria assim, talvez num único
dia, ou numa “grande noite”, quando os trabalhadores de todo o mundo se uniriam na
inação. Por isso, Mirabeau advertia:
Cuidado! Não irritemos o povo, que produz tudo e que, por ser formidável, pode ficar
imóvel!76
Mesmo a greve apenas reivindicativa guarda um resíduo de sonho. E, como dizíamos, este
sonho se realiza – ainda que homeopaticamente – se não depois, pelo menos durante o seu
curso. Até certo ponto, a greve antecipa aquele futuro cheio de liberdades, em que o
trabalhador se reapropria de seus tempos e movimentos77.
E quando a greve é de ocupação ativa 78, esse futuro se faz ainda mais claro e presente: os
trabalhadores retomam os próprios meios de produção, ainda que de forma passageira e
sem a pretensão de subtraí-los ao empregador. Por alguns dias ou semanas, muda pelo
menos a posse, embora a propriedade se conserve.
Cada greve envolve nova distribuição de poderes, o que pode significar mudanças nas
coragens e nos medos, nas inquietações e nos sonhos, nos modos de opressão e nas futuras
formas de resistência.
Mas se a derrota é visível, completa, humilhante, a greve pode voltar contra si mesma,
minando a força do sindicato e reproduzindo ainda uma vez o medo. Por isso, a greve é
também um risco; não só para cada trabalhador, mas para o sindicato e para a próxima
greve.
75
Apud Bouère, Jean-Pierre. Le Droit de grève, Sirey, Paris, 1958, p. 15.
76
Apud Gide, Charles.Le Droit de Greve, in Gide, Ch. et alii. Le Droit de Grève, Félix Alcan, Paris, 1909, p.
13.
77
Volta e meia, surgem pretensões (em geral não atendidas) que espelham um pouco disso, como na greve da
Volks de 1978, quando os trabalhadores exigiam o direito de suspender os próprios chefes, caso praticassem
injustiças...
78
As greves de ocupação, ativas ou passivas, foram usadas pelos revolucionários russos e depois, em menor
escala, por metalúrgicos italianos e espanhóis; por volta da década de 30, propagou-se entre os trabalhadores
franceses e norteamericanos. O fenômeno voltou a acontecer em outras épocas e lugares, cmo em Portugal, no
fim do governo de Salazar, nos anos 68 na Europa e dez anos depois no Brasil.
14
De um modo geral, porém, a greve é fator de desordem, mas também princípio de
organização79. Por isso, qualquer que seja o seu resultado em termos de conquista de
direitos, quase sempre ajuda a preparar a greve seguinte. Ao mesmo tempo, ajuda a
manter, desequilibrar e recompor o próprio sistema, exibindo, cicatrizando e em seguida
reabrindo as suas feridas.
Esse fenômeno é ainda mais perceptível em certas greves atípicas, como na “greve
trombose”, em que os trabalhadores param o setor-chave da linha de produção,
inviabilizando por tabela o trabalho de seus companheiros – que podem se dizer
disponíveis, receber os seus salários e ajudar o “fundo de greve”.
Por outro lado, a greve atípica fere mais do que a típica a racionalidade da empresa. O
exemplo mais nítido é o da greve intermitente, em que os trabalhadores replicam o trabalho
em série, parcelado. Ao mesmo tempo, usam de um nível de organização igual ou maior
que o da fábrica82. O sindicato prevê, com precisão, cada pequena parada, exatamente para
que ela se torne imprevisível para o empregador83.
Às vezes, a greve atípica não replica, propriamente, mas faz uso dos exageros da
racionalidade. É o que acontece na “greve de zelo”, comum no setor público, em que se
trata simplesmente de seguir à risca os regulamentos do empregador – eliminando os
“jeitinhos” criados pelos próprios trabalhadores, para fazer o sistema funcionar melhor84. O
que nos mostra que – apesar de Taylor – o sistema nunca pôde (ou quis) eliminar por
completo o saber operário, pelo menos no que lhe convinha...
79
Garcia, Jésus Ignacio Martinez. Op cit., p. 15.
80
Note-se que esse prejuízo pode ser mínimo, em termos econômicos, como quando, por exemplo, se trata de
simples greve de advertência – que teoricamente pode durar alguns minutos, apenas.
81
Idem.
82
Assim, como anota Hélène Sinay (La Grève, in Camerlynck, G.H. (org.). Traitè de Droit du Travail, tomo
VI, Paris, Dalloz, 1966, passim ), ensaiam palavras de ordem e algumas vezes regulam os minutos de parada
com precisão absoluta. Um nível de organização ainda maior se vê nas greves de ocupação, quando o
sindicato tem de se preparar para manter a ordem e até organizar jogos e outros divertimentos para preservar
“o moral das tropas”.
83
Na “greve de rendimento”, ambos os lados às vezes são tocados pela racionalidade, que os leva a ajustar o
grau de lentidão que o trabalho será executado enquanto durar o movimento.(Idem, p. 38-39).
84
É o que acontece, por exemplo, na “operação tartaruga” ou “linguição”, freqüente nos transportes públicos;
ou na “operação padrão” dos fiscais da alfândega ou dos controladores de vôo. O resultado é mais ou menos o
mesmo que na “greve de rendimento”: lentidão e queda da produtividade.
15
Pode acontecer, também, que a greve atípica ajude a viabilizar a típica. É o caso do lock-in,
quando grevistas e não grevistas se encontram face a face, invertendo, de certo modo, as
suas posições: os primeiros se apresentando no local de trabalho e os outros se vendo
constrangidos a não trabalhar. Outras vezes, por fim, há uma espécie de coquetel de
greves85, misturando táticas e estilos.
Mais uma vez repetindo a fábrica, a greve faz os trabalhadores se sentirem ainda mais
iguais. Ela é substancialmente horizontal. Mesmo os líderes podem pouco diante da
assembléia. E o mesmo se pode dizer das conquistas da greve. Tal como acontece (ou
acontecia) com o trabalho, especialmente na produção em massa e em série, a greve ajuda a
igualar os contratos, reforçando para o futuro a identidade coletiva.
O tempo das greves varia. Já houve aquelas que duraram anos, como há outras de poucos
minutos: as “greves de advertência.” Nem sempre é fácil saber quando parar. E nem sempre
é fácil parar, especialmente se tudo parece estar dando certo 86. As greves no setor público
tendem a ser mais longas – pois não pesam no bolso de ninguém. Também por isso, são
menos eficazes. Talvez seja por essas razões que os servidores, com freqüência, revoltam-
se com o corte de salários.
Se a greve – tal como o sindicato - tem imitado os movimentos da fábrica, o lock out, por
sua vez, a mimetiza.
Já agora, quem toma a iniciativa são os empregadores, coligados ou não. Também eles
usam a tática do prejuízo. Também eles atacam passivamente, negando-se a cumprir o que
ajustaram – no caso, dar trabalho.
É verdade que, em geral,87 a lei não os obriga a isso – basta que paguem. Mas um dos
elementos usuais do lock-out é exatamente o não pagamento. Na verdade, nega-se o
trabalho como tática para suprimir-se o salário.
85
A observação é de Sinay, H. Op. cit., passim.
86
Idem.
87
Como se sabe, há exceções a essa regra, como nos casos do contrato de experiência (que supõe a
possibilidade efetiva de experimentar) ou da aprendizagem. Além disso, se o empregado pode ficar sem
trabalho, simplesmente à disposição do empregador (art. 4º da CLT), o empregador não pode utilizar essa
prerrogativa com fins contrários ao da norma, como, por exemplo, para humilhá-lo.
88
Sayous, A. E. Le Patronat et la Grève, in in Gide, Ch. et alii. Le Droit de Grève, Félix Alcan, Paris, 1909,
p. 144.
16
Há lock-outs simplesmente defensivos, ou preventivos, destinados a evitar ou enfraquecer
seja a greve como formas diferentes de violência, como depredações, saques e incêndios.
No primeiro caso, são ilícitos. No segundo, alguns autores os consideram lícitos – como
espécie de legítima defesa89.
Ao longo dos tempos, a greve tem sido vista com bons e maus olhos. Os juristas mais
antigos tinham mais dificuldade em aceitá-la. Mas a maioria parece ter simpatia por ela90.
Para Carnelutti,
(...) o direito de guerra é a negação do direito e, tanto quanto o direito de greve, contém
uma contradictio in adjecto.
Para Cesarino,
(...) o vencedor não é o que tem razão, mas o que pode agir ou resistir mais tempo.
Para Jaurès, vivemos numa sociedade do trabalho, em que todos somos devedores de todos;
em conseqüência, a greve
(...) o regime de concorrência é uma guerra perpétua; a greve, apenas um episódio dessa
luta.
um ato de violação que se compara à legítima defesa, figura que só se admite pela
impossibilidade de ser o Estado onipresente.
Na lição de Trindade,
89
Escrevendo há cerca de 40 anos, Sinay dava notícia de forte resistência doutrinária em relação ao lock-out,
porque (entre outros motivos, e ao contrário da greve) ele não visa melhorar a situação dos mais frágeis (Op.
cit., p. 340 e segs).
90
Infelizmente, não nos lembramos das obras onde se encontram boa parte das citações subseqüentes.
Algumas delas foram extraídas de Gide, Ch. et alii. Le Droit de Grève, Félix Alcan, Paris, 1909, passim.
17
(...) identifica-se o direito de greve a um direito natural do homem, no campo do Direito
do Trabalho, como é o da resistência à opressão no terreno político.
A propósito dessa última afirmação, é importante notar que há duas formas de resistência –
pelo direito já posto e para se pôr o direito. A primeira pode ser exercida pelo indivíduo ou
pelo grupo. Já a outra, no campo trabalhista, só pelo grupo.
É aí que entra a greve. Embora também sirva de arma contra violações da lei, ela se presta
especialmente para fabricar a lei, num contexto em que a lei não se ajusta ao direito ou à
justiça. Sinay observa que a conquista da liberdade é um processo que não dispensa a
força91.
Dizíamos que, na greve, o trabalhador se coloca fora do contrato. Pois também o legislador
o vê assim. A não ser em casos de graves abusos, ele não analisa o comportamento de cada
grevista, julgando-o a partir do contrato, mas o movimento, em si.
(... ) sistema para denunciar uma dose de injustiça na lei; dose insuportável, apelando à lei
fundamental.92”
No início do século XX, uma revista alemã abriu um concurso para premiar com 200
marcos a melhor resposta a esta pergunta: “porque você se declara em greve?”. A resposta
vencedora dizia:
Como operário, só possuo uma mercadoria para vender: minha força de trabalho. Quero
ter o direito de vendê-la a um preço decoroso, isto é, ao preço mais elevado possível, tal
como faz o patrão, que me dá trabalho, com as suas mercadorias.
Além disso, e sempre de acordo ou em conformidade com os métodos seguidos pelo meu
patrão, faço parte de uma associação que estabelece o preço a que devo vender a minha
força de trabalho. Membro dessa associação, por esse fato me obrigo a não vender a
minha única mercadoria a preço mais baixo ao que o preço estabelecido.
Se eu não quero pagar ao capitalista a sua mercadoria pelo preço por ele fixado, ele não m
´a dá; se ele não quer pagar pela minha mercadoria o preço que fixamos, eu não lh´a dou.
Eis aqui a greve.
No mesmo sentido, observa Roberto Santos93 que o empresário dispõe, como lhe apraz, da
matéria-prima, das máquinas e dos produtos. Pode utilizá-los, vendê-los ou estocá-los
estrategicamente, seguindo as leis da oferta e da procura.
91
Sinay, H. Op. cit., p.1.
92
Trindade, Washigton Luiz da. O superdireito nas relações de trabalho, Distribuidora de Livros Salvador
Ltda, Salvador, 1982.
93
Santos, Roberto A. O. Uma contribuição sociológica à renovação da teoria jurídica da greve, in Revista da
Academia Nacional de Direito do Trabalho, ano 1, n. 1, LTr, S Paulo, 1993, pp. 123-124
18
Já o trabalhador tem apenas uma mercadoria – a força de trabalho – e não pode deixar para
usá-la mais tarde. O máximo que pode fazer é adiar o seu uso por um breve tempo, mas
essa estratégia só dá resultado se todos a adotarem de uma só vez.
Na verdade, ocupam as greves um lugar tão importante, tão estratégico, que sem elas "não
é possível entender a História contemporânea".94
4. A greve e o Direito
Sinay observa que a greve nasce antes do direito, e se impõe a ele; por isso, a arquitetura
jurídica que tenta aprisioná-la é sempre pragmática e mutante. O direito apenas reage ao
fenômeno; não o domina. 95
(...) o Direito não pode entender nem desejar a greve. Sempre a teme, e sua consagração é
um pretexto para conjurá-la, para atraí-la e enganá-la, para apoderar-se dela e desativá-
la. Foi por isso, para torná-la sua e poder comprá-la, que fez a greve entrar no reino dos
direitos. Sua consagração, cheia de ardis, a realizou seu pior inimigo. Como tantas outras
consagrações..." 96
Desse modo, essa greve atraída, possuída e devolvida pelo Direito pode acabar se tornando
uma alternativa para a outra greve: aquela que desafia, surpreende, desarticula e ameaça,
“provocando um curto-circuito nos relatos do jurista” .97 É como se tivesse havido uma
troca.
De fato, com o passar do tempo, a greve foi perdendo para o Direito boa parte de sua face
utópica, guerreira e louca. Como uma espécie de compensação, o Direito lhe concedeu
regalias, começando por excluir a falta contratual do grevista – tal como faz nos casos de
legítima defesa e figuras afins98.
Mais do que isso, a greve – tal como o sindicato – torna-se uma peça importante do
sistema. Ela ajuda a pressionar o legislador e justifica, aos olhos da sociedade, a criação de
novos direitos trabalhistas. 99 Serve ao modelo do Estado do Bem Estar Social e – por
extensão – ao próprio capitalismo.
94
Martinez, M. Olga. Op. cit., p. 14. Alguns autores reduzem as suas críticas à greve no serviço público. Um
deles, Berthèlemy (op. cit., p. 4) argumenta que “usar violência para intimidar o legislador é exercer um ato
revolucionário, não um direito”.
95
Op.cit., p. 2.
96
Martinez García, J. Ignácio. Prefácio in "La Huelga ante el derecho - conflictos, valores y normas," M.
Olga Martínez, Dykinson, Madri, 1997
97
Martinez García, J. Ignácio. Op. cit., pág. 15.
98
A propósito, cf. Del Castillo, Santiago Perez. (Direito de Greve, LTr, S. Paulo, 1999, passim).
19
A greve é ao mesmo tempo pressão para construir a norma e sanção para que ela se
cumpra. Por isso, serve ao Direito de três modos sucessivos: primeiro, como fonte
material; em seguida, se transformada em convenção, como fonte formal; por fim, como
modo adicional de garantir que as normas efetivamente se cumpram100.
Em todos esses sentidos, a greve tem traços revolucionários também em termos jurídicos,
pois – ao contrário do que normalmente faz – o Estado deixa explodir o conflito e permite
que as próprias partes produzam, a partir dele, o seu próprio direito.
Ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, a lei quase que despreza o comportamento
individual das partes, para se fixar no significado coletivo do movimento. 101
Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§1º. A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das
necessidades inadiáveis da comunidade
Não nos parece que a greve seja, como se costuma dizer, o exercício coletivo do direito
individual de não trabalhar. Em princípio, esse direito nem existe fora da greve, pois o
empregado tem um contrato a cumprir. Além disso, como vimos, a quantidade muda a
qualidade: o fato de se tratar de um fenômeno coletivo lhe dá outra natureza. Na verdade,
esse modo de pensar legitima o fura-greve, que estaria exercendo o sacro-direito de cavar o
seu pão.
Ora, ao exercer o seu suposto direito, o fura-greve dificulta ou inviabiliza o direito real da
maioria. O que faz não é apenas trabalhar, mas – com perdão do trocadilho infame –
atrapalhar o movimento. Ele realmente fura a greve, como se abrisse um buraco num cano
99
Nesse sentido, cf. Revelli, Marco. La Sinistra Sociale: oltre la civiltà del lavoro, Bollati Boringhieri, Torino,
1997, p. 25
100
Mesmo as normas não conquistadas pela mesma greve, como também a própria lei.
101
Sinay, Hélène. Op. cit., p. 3
102
Apud Lobo, Dias. Responsabilidade objectiva do empregador por inactividade temporária devida a perigo
de lesão à vida e saúde do trabalhador, Coimbra Editora, Coimbra, 1985.
103
Constituição da República. In: CLT Saraiva Acadêmica e Constituição Federal, São Paulo: Saraiva,
2007, pág. 16
20
de água. E o seu gesto também tem algo de simbólico: mostra que a identidade operária não
é coesa, que há resistências internas.
Tal como o grevista, o fura-greve fala: ele põe em cheque o movimento, denuncia a
própria greve. Mas ao resistir à resistência revela dupla submissão. Ele luta contra os que
lutam por um novo e maior direito; esvazia o sindicato, dificulta a convenção coletiva e fere
o ideal de pluralismo jurídico e político104. Apesar disso, infelizmente, o Comitê de
Liberdade Sindical da OIT reconhece o princípio da liberdade de trabalho dos não-
grevistas.105
Por essas e por outras, preferimos inverter os termos da frase. A greve nos parece um
direito coletivo, que cada indivíduo pode e deve exercer, integrando-se ao grupo.
É que nesse caso, como vimos, a quantidade altera a qualidade; o fato de só poder ser
exercido em grupo, e especialmente o fato de servir para o grupo, fazem com que a greve
não afete apenas o indivíduo isolado.
104
No mesmo sentido, Coelho, Rogério. A greve, os revistas e os não grevistas, Revista LTr 53-11/1341.
105
Gernigon, B.; Odero, A.; e Guido, H. Princípios da OIT sobre o Direito de Greve, in Direito Sindical da
OIT: normas e procedimentos, OIT, Genebra, 1998, pág. 40.
106
Op. cit., p. 17
107
Um exemplo foi a “greve do balaio fechado”, relatada por alguns autores, em Estados do nordeste.
108
Até meados do século passado, as greves atípicas eram vistas como formas menos importantes de greve.
Sobre o tema, cf. também o nosso artigo “Conflitos coletivos de trabalho” e o livro “Direito de resistência”,
já citados.
21
Ocorre, porém – como ensina Pinho Pedreira – que o conceito legal está em crise. 109 Já não
corresponde à realidade. Além disso, acaba restringindo a norma constitucional. De resto,
numa economia de poucos empregos, a greve típica se torna mais arriscada.
Por isso, na doutrina comparada, autores como Javillier e Palomeque López tentam
aproximá-lo do seu sentido comum, identificando a greve com toda e qualquer ruptura com
o cotidiano. Para nós, essa é a lição mais correta, desde que se acrescente que aquele
cotidiano rompido é o da prestação de serviços. 110
Na verdade, é juridicamente possível adotar esta tese, mesmo em face da lei brasileira.
Basta: a) ou considerá-la inconstitucional, na medida em que parece reduzir o campo do art.
9º da CF; b) ou interpretar com mais largueza a expressão “suspensão (...) parcial da
prestação de serviços”, de forma a incluir nela aquelas hipóteses atípicas. 111
Note-se que o Comitê de Liberdade Sindical da OIT admite algumas modalidades de greves
atípicas – como o lock-in112, a greve de zelo e a greve de rendimento – desde que
pacíficas113; e já concluiu que os interesses que os trabalhadores “englobam também a
busca de soluções para s questões de política econômica e social”114. Em consequência,
Pela mesma razão, ainda de acordo com a OIT, pode haver greve mesmo quando o conflito
não é suscetível de desembocar numa convenção coletiva.116
Por outro lado, seria interessante retirar da lei a exigência da prévia tentativa de acordo 117.
Como já notavam os autores antigos118 e continuam a notar alguns dos novos 119, a greve é
um instrumento de pressão para que o acordo se faça; logo, não faz sentido exigir que ela
aconteça depois que ele se frustrou. De resto, como vimos, a Constituição permite que os
trabalhadores escolham a oportunidade de entrar em greve. Assim, ainda que a lei não
mude, é possível ignorar aquela exigência.
109
Pedreira, Luiz de P. "A greve com ocupação de locais de trabalho", S. Paulo, 1993, p. 98.
110
Viana, Márcio T. "Direito de Resistência", cit., p. 285.
111
A mesma interpretação dá Sinay, ao comentar a lei francesa (Op. cit., p. 133)
112
Ou greve de ocupação.
113
Gernigon, B.; Odero, A.; e Guido, H. Op. cit., pág. 21
114
Gernigon, B.; Odero, A.; e Guido, H. Op. cit, pág. 23
115
Idem, ibidem.
116
Idem, ibidem.
117
Diz o art. 3º da Lei n.7783/89: “Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recurso via
arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho”.
118
Como Sellier.
119
Como os colegas gaúchos Fraga, Ledur e Vargas.
22
Mais do que um subproduto do sistema, o sindicato é resultado de um seu modo de ser,
representado pela fábrica concentrada120. Foi ela que reuniu os trabalhadores entre quatro
paredes, para melhor controlá-los e racionalizar a produção. Mas foi também ela que os
ensinou a lutar.
Essa contradição – que fez nascer o sindicato e com ele o próprio Direito 121 – vem sendo
pouco a pouco superada. Graças às novas tecnologias, que permitem produzir sem reunir, a
fábrica se fragmenta, dividindo a classe operária.
Ao mesmo tempo, vivemos uma época em que se busca mais do que nunca a autonomia e
a afirmação da individualidade – o que por si só já produz uma crise em todas as
instituições, enfraquecendo ainda mais o sindicato.
Ora, a norma trabalhista – mais do que as outras normas do Direito – não depende das
fontes materiais (como o sindicato) apenas para nascer. Precisa delas, também, para
garantir a sua efetividade. Elas funcionam como uma espécie de sanção extra-estatal,
fortalecendo a do Estado.
O que vemos hoje, portanto, não é só a desintegração do coletivo operário – mas, em certa
medida, um corte na própria norma jurídica, separando preceito e sanção. E assim, livre de
riscos, o capital pode flexibilizar a norma diretamente, seja recompondo, negociando,
destorcendo ou simplesmente ignorando os seus comandos.
A crise do sindicato, naturalmente, é também a crise da greve – ou vice e versa.a Cada vez
mais ela se restringe às categorias fortes e sobretudo às que têm segurança no emprego. Daí
porque as greves típicas vão cedendo lugar às atípicas, que oferecem menos risco ao
trabalhador.
Não que as greves típicas sejam hoje menos eficazes do que antes. Ao contrário. Na fábrica
pós-fordista, o empregador trabalha sem estoques, ao sabor de um mercado instável e
exigente, às voltas com uma concorrência cada vez mais feroz e exposto a riscos muito
maiores. Como disse alguém, o just in time é vulnerável – e uma greve lhe causaria
enormes danos. Mas esses danos são neutralizados (ou evitados) pelos riscos que a mesma
greve traria aos trabalhadores. Assim, a empresa joga estrategicamente com a instabilidade.
A qualquer ameaça de greve, basta que ameace fechar as portas, deslocar-se da região ou
despedir em massa – numa espécie de lock out disfarçado.
Para atenuar um pouco esses problemas, pode-se pensar, no campo jurídico, em algumas
soluções – como, por exemplo, a re-ratificação da Convenção no. 158 da OIT 122, o combate
120
Com essa expressão queremos designar não necessariamente a fábrica fordista, mas toda e qualquer
fábrica, exceto a disseminada (que no período anterior à I Revolução Industrial, e por algum tempo depois
dela, era representada pelo trabalho a domicílio).
121
Naturalmente, houve outras fontes importantes, como a difusão das doutrinas socialistas do século XIX,
que serviu de elemento catalisador para a luta operária e inspirou o sindicalismo revolucionário entre os anos
1890 e 1919, aproximadamente (Sinay, H. Op. cit., p. 19)
122
Que trata da proteção ao emprego, foi ratificada e depois denunciada (a nosso ver, ilegalmente) pelo então
Presidente Fernando Henrique Cardoso e se encontra há anos em análise no STF.
23
às terceirizações123 e a releitura doutrinária e jurisprudencial da lei de greve 124, como
ensaiamos no item precedente.
É verdade que nem todos os ricos significados da greve são encontrados no boicote. Além
do mais, sua prática generalizada supõe uma transformação cultural. Por isso, não se trata
de uma alternativa única, mas de apenas uma entre outras ações que devem ser
(re)inventadas. Talvez só mesmo um conjunto de novas práticas se mostre bastante fértil
para compensar o declínio da greve.
Dizem que em fins do século XIX havia um certo irlandês, chamado James Boycott, que
gerenciava com mão de ferro uma vasta propriedade rural. Seus métodos de trabalho eram
tão cruéis que a comunidade vizinha deixou de comprar os produtos da fazenda.
A palavra boicotagem vem daí. Ao longo dos tempos, e sem perder o significado original,
ela foi se enriquecendo com as práticas, e adicionando novos sentidos.
Os exemplos se multiplicam.
Ora é a própria empresa que boicota, através de listas negras. Ora são os sindicatos que
criam selos para identificar as empresas “limpas”. Entre nós, o MTE denuncia os que
exploram o trabalho escravo, virtualmente impedindo que consigam financiamentos.
Assim, como se vê, James Boycott perdeu o emprego, mas ganhou um lugar na História... E
hoje, mais do que nunca, a lição que a comunidade lhe deu pode se tornar especialmente
útil, dando novo alento às lutas sindicais.126
Mas para compreender isso melhor, o Leitor terá de nos permitir umas poucas divagações.
Para começar – e como já o fizemos em outro artigo 127 - é importante perceber como a
evolução da ciência e da técnica permitiu um certo nivelamento entre os produtos, muitos
dos quais já alcançaram – ou estão perto de alcançar – um nível de perfeição quase
absoluta.
Assim é, por exemplo, que os relógios não mais se atrasam, os novos CDs nunca chiam, os
automóveis já não freqüentam as retíficas e até os pneus raramente furam. Na verdade, a
123
Restringindo mais o seu campo e/ou tornando-as tão onerosas como a contratação direta.
124
Tese nesse sentido foi aprovada no último Congresso da Anamatra.
125
A expressão tem sido utilizada pela OIT, para designar o trabalho em condições pouco (ou não) humanas,
como a escravidão e o trabalho infantil.
126
Quem primeiro nos chamou a atenção para essa possibilidade foi o Professor Giancarlo Perone, da
Università di Roma II Tor Vergata
127
Trabalho escravo e lista suja: um modo original de se remover uma mancha, in www.oitbrasil.org.br
24
vida curta desses e de outros produtos têm muito menos a ver com a sua durabilidade
material do que com as pequenas novidades que a fábrica vai introduzindo, a todo instante,
em cada novo modelo, envelhecendo assim o seu antecessor. E também se relacionam com
a obsessão pelo presente, pela última novidade, pelo que está na moda, em detrimento do
que já passou – obsessão esta alimentada pelo marketing e sintonizada com a própria
compressão do tempo.
Desse modo, tanto um selo verde aposto sobre uma mobília de madeira 128 como a notícia
de que a marcenaria do vizinho usou mãos infantis podem se tornar um traço importante de
distinção entre produtos que – sem isso – se mostrariam igualmente perfeitos; atendem de
forma melhor a busca constante de pequenas diferenças e desse modo passam a compor as
estratégias de concorrência129.
É que também ele, consumidor, está cada vez mais preocupado com a sua própria imagem
– não só física quanto imaterial. Além de freqüentar academias, quer parecer politicamente
correto, não só aos outros como a si mesmo; e, num mundo cada vez mais desigual,
compensa talvez, dessa forma, o sentimento de culpa que o invade.131
E é por tudo isso que vão se disseminando novas estratégias entre os consumidores. Cada
vez mais, especialmente nos países europeus, surgem grupos formais e informais que se
comprometem a comprar ou a vender produtos fabricados em países mais pobres e com
respeito aos direitos humanos.
É claro que não são apenas aquelas as causas que nos levam ao consumo consciente e ao
boicote – direto ou indireto - que o acompanha. As razões psicológicas podem estar, e
geralmente estão, conectadas com as nossas histórias de vida e com as nossas utopias.
128
A propósito, cf. Viana, Virgilio M. As florestas e o desenvolvimento sustentável na Amazônia, Valer,
Manaus, 2006, passim
129
Cova, Veronique; Cova, Bernard. Alternatives Marketing, Dunod, Paris, 2003, passim.
130
O Observatório Nacional da CUT tem observado, por exemplo, uma defasagem não só entre o discurso e
as práticas das empresas multinacionais, como entre as próprias práticas desenvolvidas nos países centrais e
as realizadas nos países periféricos.
131
Torres i Prat, Joan, Op. cit., passim.
132
Cova, Veronique; Cova, Bernard. Op. cit., passim.
25
possível, e até provável, que haja empresários realmente sensíveis às novas questões
sociais.
Essa realidade é tão mais intensa quando mais ágeis, penetrantes e ávidos vão se tornando
os meios de comunicação de massa. Se os satélites já são capazes de identificar até o
capacete de um soldado, e se na tribo dos pataxós, em plena Amazônia, os índios assistem
novelas na TV, é porque quase não há limites para o que a mídia pode saber e a quem pode
atingir.
Ainda que boa parte do mundo permaneça excluído das necessidades mais básicas, a
Internet permite a um universo crescente de pessoas trocar saberes e vivências, ver e ouvir
grandes mestres e visitar as maiores bibliotecas. Não foi por acaso que em 2006, em Belo
Horizonte, a Prefeitura disponibilizou computadores para que o povo fizesse propostas ao
orçamento participativo.
Nesse ponto, é curioso notar, mais uma vez, como o sistema parece andar como caranguejo,
cada pata arrastando a outra, ou mais propriamente o seu contrário. Assim, enquanto a
nova empresa - graças à tecnologia que ela própria fomenta – se fortalece criando redes,
também os consumidores se aproveitam disso, unindo-se telematicamente.
Mas o nosso tempo, também, é um tempo em que os direitos humanos – não só pela
evolução das idéias, mas até pela involução das práticas - alcançam os seus patamares mais
altos, em termos de importância133. Hegemônicos e ao mesmo tempo heterogêneos, não há
quem negue – pelo menos no discurso – que eles devem se estender por todos os lugares e
sobre todas as relações.
Nesse sentido, observa Flávia Piovesan que a globalização “propicia e estimula” a abertura
da Constituição para a normatização externa134. Os indivíduos deixam de ser considerados
133
A propósito, cf. o excelente livro Direito Fundamental ao Trabalho Digno, de Delgado, Gabriela Neves.
LTr, S. Paulo, 2006. Para uma abordagem também inovadora, cf. a já clássica obra de Jorge Luiz Souto
Maior, O Direito do Trabalho como Instrumento de Transformação Social, da mesma Editora.
134
Piovesan, Flávia. Temas de Direitos Humanos, Max Limonad, S. Paulo, 2003, pág. 46.
26
apenas cidadãos em seus próprios Estados, para se tornarem “sujeitos de Direito
Internacional”135, passíveis de serem protegidos através de denúncias formuladas por
entidades ou grupos diversos, de quaisquer outros países.
Por fim, vivemos um tempo em que os vazios deixados pelo Estado-nação - cada vez mais
fragilizado – são reocupados não só de forma autoritária pelo grande capital, mas de modo
democrático pela sociedade civil, que aos trancos e barrancos vai multiplicando as suas
associações de bairros, as pequenas cooperativas de produção e as estratégias coletivas de
sobrevivência.
Tudo isso nos faz crer que, com o passar dos anos, a prática do consumo solidário pode vir
a se tornar hegemônica; e, então, quando sairmos para comprar um novo tênis, a presença
ou a ausência de trabalho digno será um componente tão importante quanto as bolhas de ar
que irão proteger os nossos pés.
Se isso vier realmente a acontecer, o sindicato terá encontrado fora do trabalho o ambiente
de solidariedade que – em seu interior - vem sendo corroído não só pela fábrica em rede,
mas pela própria concorrência entre os trabalhadores. Ao mesmo tempo, como esses
trabalhadores estarão no momento do consumo, suas lutas já não terão como limites os
muros da fábrica, as identidades da profissão ou as características da categoria.
E isso nos leva a uma nova e instigante utopia: a possibilidade de o sindicato se organizar já
não apenas em volta de categorias, fábricas ou ofícios, mas em torno de uma luta comum
contra o sistema, ou pelo menos contra as suas distorções mais fortes – reunindo
empregados e desempregados, operários e engraxates, flanelinhas e ascensoristas,
prostitutas e sem-terra.136
Na verdade, todos eles têm identidades para além do trabalho: são, como todos nós,
consumidores, embora (cada vez mais) precarizados. Aliás, a precarização é outro ponto
que pode uni-los. O que não os impede de contar com o suporte da classe média, como já
aconteceu em tantos episódios da História.
Por fim, é importante lembrar, ainda uma vez, como o sindicato tem imitado a empresa – e
vice-e-versa – ao longo dos anos; e como um e outro têm se servido de elementos de seu
contrário. Assim, num tempo em que, para o empresário, a imagem passa a ser também um
produto, nada melhor que o sindicato a compre, utilizando-se dela como arma de luta.
BIBLIOGRAFIA
Piovesan, Flávia. Op. cit., pág. 62
135
Para um estudo a respeito da aplicação do Direito aos não-empregados, cf. Delgado. Gabriela Neves.
136
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