Escravidão No Brasil, Revendo Mitos - Flávio Versiani
Escravidão No Brasil, Revendo Mitos - Flávio Versiani
Escravidão No Brasil, Revendo Mitos - Flávio Versiani
1. INTRODUÇÃO
1
O artigo elabora argumentos expostos em Versiani, 2016. Agradeço comentários a versões anteriores por Edmar
Bacha, Luiz Paulo Nogueról e José Raimundo Vergolino (sem inculpá-los).
2
O desembarque de escravos africanos no Brasil evoluiu, em números redondos, de uma média anual de 600, no
século XVI, para 8.000 no século XVII, 20.000 no século XVIII, e 40.000 entre 1800 e 1850. Estimativas em Voyages,
2019
3
Na década de 1770, os dados de Alden (1963) sugerem que o número de escravos seria cerca da metade da
população total. Por ocasião da Independência, essa porcentagem estava ao redor de 30%; no Censo de 1872,
próxima de 15%. IBGE, 1990: p.32.
4
IBGE, 2018.
5
No quarto trimestre de 2016, a taxa de desocupação foi 9,5% (brancos), 14,1% (pardos), e 14,4% (pretos). No
mesmo semestre de 2013, antes da recessão que se seguiu, era 5,0% (brancos), 7,1% (pardos), e 8,2% (pretos).
IBGE, 2017.
2
6
Prado Jr., 1981 [1942]: p.31, grifo adicionado.
7
Furtado, 1976 [1959]: p.140, grifo adicionado.
3
de pesquisas sobre escravidão, nas últimas décadas. Pode-se dizer que alguns dos principais
resultados de tais investigações não tiveram ainda grande repercussão sobre o entendimento
do regime escravista, não só por parte dos proverbiais “leigos bem informados”, mas também —
em boa medida — por cientistas sociais não especializados na área.
É uma tese com longa tradição. Já em 1776 Adam Smith afirmava, na Riqueza das
Nações: “It appears […], from the experience of all ages and nations, I believe, that the work
9
done by freemen comes cheaper in the end than that performed by slaves.” Muito influentes,
entre nós, foram argumentos de Marx e Weber a esse propósito. Numa passagem muito citada
do primeiro volume do Capital, Marx sustentou que seria impossível introduzir melhorias
técnicas, na produção com trabalho forçado, pois o escravo, sendo apenas um instrumentum
vocale — uma ferramenta falante — não se identifica com os objetivos do trabalho que exerce,
não tendo, assim, qualquer empenho em realizá-lo bem. Equipamentos mais eficientes,
proporcionando aumento de produtividade, mas exigindo maior habilidade de manejo, nunca
poderiam ser confiados a escravos, que talvez até os danificassem de propósito, por represália.
Citando Olmsted — jornalista americano que investigou as práticas da escravidão no Sul dos
8
Prado Jr.,1959 [1945]: p. 180; Furtado, 1976[1959]: p. 139. Na literatura norte-americana, ver, por exemplo,
Genovese, 1967: cap. 1.
9
Smith, 1991[1776]: p. 72 (Book I, Chap. VIII).
4
10
Marx, 1967[1867]: pp. 196-97 (Part II, Chap. VII, Section 2).
11
Ver a nota 3 em Mill, 1936 [1848]: p. 251 (Book II, Chap. V).
12
Weber, 1961 [1923]: pp. 75, 105-06.
13
Cardoso, 1962.
14
Ibid.: p.190.
5
Dentro dessa perspectiva, autores como o sociólogo Octavio Ianni presumiram ter
havido uma separação crescente, a partir da extinção do tráfico africano em 1850, de
formações sociais de natureza distinta, no País: uma ligada à produção escravista, “cada vez
menos dinâmica”, e outra, baseada em produção organizada em bases capitalistas, “ganhando
16
dinamismo crescente”. Haveria, por exemplo, um contraste entre a produção cafeeira
escravista na Baixada Fluminense e no Vale do Paraíba, e a cafeicultura centrada na região a
oeste da cidade de São Paulo, como Campinas, baseada no trabalho livre. O cálculo econômico
e a racionalidade capitalista teriam emergido entre nós à medida que crescia e prosperava essa
nova cafeicultura. Celso Furtado vai um pouco nessa direção, quando contrasta a “nova classe
dirigente” do setor cafeeiro, com uma “consciência clara de seus próprios interesses”, com os
17
grupos dominantes na economia açucareira, que não teriam tal percepção.
Refutações empíricas
15
Ibid.: p
.196.
16
Ianni, 1988: p.42.
17
Furtado, 1976[1959]: pp. 115-16.
18
Ianni, 1988: p. 40.
6
Um raciocínio econômico
Qual o valor econômico do escravo, para seu senhor? É o que ele poderá produzir, ao
longo de sua vida de trabalho, deduzidos os custos de sua manutenção: alimentação, moradia,
vigilância. Ou seja, o conjunto de rendimentos líquidos proporcionados ao proprietário pelo
escravo. Exprimindo esse fluxo de rendimentos no tempo presente, fica claro que o preço a ser
pago pelo escravo não poderia ser maior que aquele montante, ou, de outra forma, o comprador
teria prejuízo: o preço de um bem não pode superar seu valor econômico. Por outro lado, se o
preço for muito inferior a esse valor, a margem de lucro do comprador será grande, e pode-se
19
Ver, a esse propósito: Eisenberg, 1989; Gorender, 1980: cap. 27.
20
Conrad & Meyer (1968); Fogel & Engerman (1974).
21
Mello, 1992a. Sua análise da reação dos cafeicultores à probabilidade crescente de abolição da escravatura, na
década de 1880, trouxe evidência na mesma direção: Mello, 1992b.
7
supor que a procura por mão de obra cativa faria seu preço subir. Assim, havendo concorrência,
o preço de compra e venda do escravo tenderá a ficar próximo de seu valor econômico para o
proprietário escravista.
Suponhamos que o escravo compre sua alforria, pagando a seu senhor aquele preço.
Uma vez liberto, ele teria — admitindo a hipótese da ineficiência relativa do trabalho escravo —
mais empenho no cumprimento de suas tarefas; sua atividade produtiva seria mais eficiente e
menos onerosa, já que não estariam presentes os fatores arrolados por Cardoso. Segue-se que
o escravo poderia comprar a alforria, pelo preço de mercado, e pagá-la com seu trabalho de
homem livre, de maior produtividade, e haveria um excedente nessa transação. Excedente que
poderia cobrir o sustento do trabalhador agora livre, e ainda o custo financeiro da operação,
supondo-se que houvesse um empréstimo envolvido para custear a alforria. As condições
institucionais para que essa operação fosse viável seriam a ausência de impedimentos à
alforria, a perfeita informação sobre rendimentos e custos e, principalmente, a existência de um
mecanismo de crédito para financiamento da operação, admitindo-se que o escravo não tivesse
fundos para isso.
22
V., por exemplo, Finley, 1974.
8
Mas a população livre aumentou, tanto pela grande imigração portuguesa no século
XVIII, quanto por crescimento vegetativo. Em 1819, estimou-se que sete entre dez habitantes
do País eram livres; e a literatura registra, nessa época, grande número de pessoas livres
aparentemente desocupadas ou subocupadas. No dizer de Caio Prado Júnior, “indivíduos de
ocupações mais ou menos incertas e aleatórias, ou sem ocupação alguma”, que constituíam “a
grande, a imensa maioria da população livre”, no início do século XIX. No final desse século, o
francês Couty supunha que tal camada interposta entre senhores e escravos, que não era
formada por “braços verdadeiramente produtivos”, compreenderia metade da população total de
12 milhões do País. Furtado esclareceu melhor esse ponto: grande parcela da população fazia
parte, nesse período, do que ele chama de “economia de subsistência”. Eram, principalmente,
moradores e agregados nas grandes fazendas, especialmente fazendas de criação de gado,
24
engajados em atividades com níveis muito baixos de produtividade e de renda.
23
Furtado, 1974[1959]: pp. 11-12 e cap.13.
24
Prado Jr., 1981 [1942]: pp. 281–282; Couty, 1988 [1881]: p. 88; Furtado, 1974[1959]: cap. 21.
25
Entre 1560 e 1850 desembarcaram no Brasil cerca de 4,9 milhões de escravos, dos quais cerca de 2,1 milhões no
período de 1801 a 1850. Voyages, 2019.
9
As análises da economia do escravismo, por autores como Fogel & Engerman, deixaram
claro que a preferência pelo trabalho escravo relaciona-se a um atributo fundamental da
escravidão: a coerção a que os cativos podiam ser submetidos, de forma institucional e
socialmente aceita. O escravo estava, para todos os efeitos práticos, inteiramente à mercê de
seu senhor, que podia tratá-lo da forma que quisesse (o que, como se sabe, abriu caminho para
exemplos extremos de violência e crueldade). Por definição, o escravo não era dono de seu
tempo. Assim, os trabalhadores escravizados podiam ser forçados a trabalhar da maneira e na
intensidade desejada pelos seus senhores. Não apenas trabalhar tanto quanto trabalharia um
homem livre, sob o estímulo da perspectiva de maior ganho monetário, mas mais do que isso:
nada impediria que os senhores pudessem extorquir de seus escravos um rendimento superior
ao do trabalhador livre — mais horas de trabalho por dia, por exemplo. E há muita evidência de
que, quando necessário (por exemplo, nos períodos de corte e moagem da cana de açúcar),
escravos trabalhavam até dezoito horas, ou mesmo vinte horas por dia, às vezes durante
26
meses — o que pode ser visto como próximo do máximo biologicamente suportável.
Ownership of the title to a slave gave a master the right to use whatever force was necessary —
including such force that might eventuate in death — to compel his chattel to engage in the
27
normal work routine of the plantation.
Nesse contexto, pode-se considerar que o escravo tinha, do ponto de vista de seu
senhor, uma vantagem comparativa, com respeito ao trabalhador livre: ele podia ser forçado a
render mais do que este último, sob a vigilância e pela ameaça de castigos, por intermédio de
um feitor. Mesmo existindo a possibilidade de uso de trabalho não escravo, seria necessário,
para induzir o homem livre a trabalhar tanto ou tão intensamente quanto o escravo, pagar-lhe
um salário muito alto, o que tenderia a eliminar o lucro. Em outras palavras, ainda considerando
o custo do investimento inicial, as despesas relacionadas ao controle e vigia dos cativos e a
menor possibilidade de divisão do trabalho, tudo isso poderia ser contrabalançado, para o
senhor de escravos, pela capacidade do escravo de produzir num ritmo e intensidade que não
seriam possíveis com o trabalho livre, a um custo compensador.
26
Ver, por exemplo, E.V.Costa, 1966: p. 241; Stein, 1970: p. 168. Em seu relatório, de cerca de 1636, sobre os
engenhos do Nordeste sob domínio holandês, José Israel Costa, judeu que se deslocara para a Holanda, menciona
um período de descanso dos escravos de apenas quatro horas, entre o final de um dia de moagem e o início do
seguinte (Gonsalves de Mello, 1981: p. 22).
27
Fogel & Engerman, 1974: vol. 1, p. 237.
10
É curioso que a noção de que coerção e violência pudessem viabilizar a produção com
trabalho escravo, superando os elementos de sua ineficiência, já aparecera na literatura desde
o século XIX. Stuart Mill, por exemplo, em seu livro de 1848, após dizer que a ineficiência do
trabalho forçado era de fato um truísmo, afirmava, no entanto:
It is true that in some circumstances human beings can be driven by the lash to attempt, and even
to accomplish, things which they would not have undertaken for any payment which it could have
29
been worth while to an employer to offer them.
Análoga é a asserção de Max Weber: “Slavery is profitable only when it is handled with
30
the most rigid discipline associated with ruthless exploitation. ”
Há razões para supor que algumas das desvantagens de custo do trabalho escravo,
apontadas por Cardoso, não fossem de grande relevância no Brasil, especialmente no século
XIX.
Em primeiro lugar, deve-se notar que os custos de sustento do escravo não exigiam
grandes gastos monetários da parte de seu senhor: a alimentação dos cativos era, em geral,
31
provida por eles próprios, pelo cultivo em terras do engenho ou da fazenda. O que também
minimizava o problema da dificuldade de adequar o tamanho da força de trabalho às
28
38; Gonsalves de Mello, 1981: p. 23.
Fogel & Engerman, 1974: vol. 1: p. 2
29
Mill,1936 [1848]: p. 251 (Book II, Chap. V).
30
Weber,1961 [1923]: p.75.
31
“[Os domínios da grande lavoura] são em regra autônomos no que respeita à subsistência [...]. Praticam-se aí as
culturas alimentares necessárias a este fim [...]. Parte é realizada por conta do proprietário, que emprega os mesmos
escravos que tratam da lavoura principal e que não estão permanentemente ocupados nelas; outra, por conta dos
próprios escravos, aos quais se concede um dia por semana [...] para tratarem de suas roças.” Prado Jr.,
1981[1942]: p. 158.
11
Quanto à vigia e controle da mão de obra cativa, não parece também que originasse, por
si, grandes despesas. Um observador francês, Tollenare, que morou no Recife ao redor de
1820, mostrou-se espantado por ter visto, ao visitar o Engenho Salgado, um dos maiores
daquela província, 120 a 130 escravos, e apenas “dois brancos que os governam”.
Perguntava-se por que os cativos, em tão grande superioridade numérica — e tendo acesso a
ferramentas, como enxadas e foices, que podiam ser armas temíveis — não tomavam a
iniciativa de dominar os brancos e fugir para as matas. Mas, como constatou, os senhores de
34
engenho não tinham essa preocupação.
A possibilidade de fuga, principalmente nesse período, era restringida por vários fatores.
Como assinalou Koster, que tinha conhecimento direto da questão, embora a vastidão do país
pudesse fazer supor que a recaptura de escravos fugidos fosse difícil, não era esse o caso: os
africanos, em particular, eram facilmente reconhecidos, e a recompensa usualmente oferecida
pelos proprietários era atraente. A própria cor da pele era indício de que um indivíduo seria ou
poderia ser um escravo; e havia, com frequência, posturas proibindo que cativos circulassem
sem portar um bilhete de seu senhor, ou outra indicação de que estavam obedecendo a ordens
— como notou Stein, entre outros. Tollenare presenciou, ele mesmo, no Engenho Salgado, o
32
Saint-Hilaire, 1974a [1833]: pp. 201-2; Koster, 1816: p. 428. É grande o número de estrangeiros que estiveram no
País no século XIX e publicaram relatos de suas experiências — cientistas, comerciantes, missionários, diplomatas,
aventureiros. Algumas dessas obras são fontes importantes de informação acerca do período; é o caso dos cinco
livros de Saint-Hilaire (nove, na tradução brasileira), naturalista francês que percorreu extensamente o Centro-Sul,
entre 1816 e 1822, pesquisando a flora nativa; e do relato do inglês Henry Koster, que morou em Pernambuco entre
1809 e 1820, foi senhor de engenho em Itamaracá, e viajou muito pelo Nordeste.
33
Benci, 1954 [1700]: pp. 38 e ss.
34
Tollenare, 1978 [1818]: pp. 46-7.
12
retorno de um escravo capturado cinco dias após sua fuga; e escreveu, mais adiante em seu
35
relato, que os negros fugidos “cedo ou tarde são pegados”.
Alguns quilombos maiores, persistindo vários anos ou mesmo décadas, ocorreram nos
séculos XVII e XVIII. Eram autossustentáveis, no sentido de produzirem víveres em quantidade
suficiente; mas o desequilíbrio de sexos fazia com que frequentemente recorressem a raptos de
37
mulheres nas vizinhanças.
O mais famoso deles, o de Palmares, com diversos núcleos distribuídos numa área
ampla, atualmente no norte de Alagoas e sul de Pernambuco, teve sua formação associada à
extensa destruição e abandono de engenhos decorrente da ocupação holandesa, a partir de
1630. Como escreveu Edison Carneiro, em seu conhecido relato sobre Palmares, “tudo indica
que a população do quilombo começou a engrossar por volta de 1630”. De fato, mais da
metade dos cerca de 150 engenhos do Nordeste foi abandonada pelos proprietários, nesse
38
período, e houve fuga em massa de escravos.
35
Koster, 1816: p. 440; Stein, 1970: p. 169; Tollenare, 1978 [1818]: pp. 47, 113.
36
Para referências a quilombos em várias localizações e épocas, v. Barbosa, 1972; Schwartz, 1992: cap. 4; Reis &
Gomes, 1996; Amantino, 2003; Klein & Luna, 2010: cap. 7. A classificação de quilombos em “dependentes” e
“autossustentáveis” é de Amantino.
37
Carneiro, 1966: p. 33; Amantino, 2003: p. 242; Barbosa, 1972: p.67.
38
Carneiro, 1966: p. 20; Cabral de Mello, 2007: p. 319.
13
Eram canaviais queimados, casas-grandes abrasadas, os cobres lançados aos rios, açudes
arrombados, os bois roubados ou abatidos, fugidos todos os negros. Só não haviam fugido os
39
negros velhos e os molequinhos.
Como se sabe, Palmares — com uma organização social relativamente complexa, muito
discutida na literatura — resistiu a sucessivas expedições, ao longo do século, vindo a ser
destruído apenas em 1694. Compreensivelmente, transformou-se no grande símbolo da
40
resistência dos escravos.
os núcleos mineradores vão surgir muito longe dos pontos de partida das correntes migratórias
[São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro], e no espaço intermediário permanecerá o deserto que só
41
raras vias de comunicação atravessam.
É provável que isso seja verdade também para outras regiões do País; pode-se supor
que a redução relativa do número de escravos de grandes propriedades, mais submetidos a
métodos coercitivos (ver abaixo), tenha contribuído para reduzir as fugas. De qualquer forma,
os quilombos do século XIX foram, regra geral, “dependentes”.
Não é fácil aquilatar a importância relativa dos escravos fugidos e aquilombados no total
da população escravizada, em cada período; mas algumas comparações são sugestivas. Em
meados do século XVII, avaliou-se que o quilombo de Palmares tinha cerca de 11.000
habitantes; uma estimativa muito repetida, para a década de1670 (que Schwartz julgou
43
exagerada), punha esse número por volta de 20.000. Esses números podem ser contrastados
com a estimativa de desembarque de escravos em Pernambuco, no século XVII: cerca de
39
Gonsalves de Mello, 1987: p. 177. O documento holandês está em Gonsalves de Melo, 1981: pp. 47-71.
40
O relato clássico de Palmares é o de Carneiro, 1966; v. também Freitas, 1990. Sobre a organização do quilombo,
Schwartz, 1992: cap. 4.
41
Prado Júnior, 1981 [1942]: p. 55.
42
Ver Barbosa, 1972: caps.4 a 6.
43
Freitas, 1990: pp. 72, 118; Schwartz, 1992: p. 123.
14
44
25.000 por década. No caso de Minas Gerais, no século XVIII, os cerca de trinta quilombos
relacionados por Barbosa continham um total de habitantes ao redor de 3.000 (incluindo cerca
45
de 1.000 no grande Quilombo do Ambrósio). Haverá omissões e subavaliações, mas
dificilmente o número de quilombolas da província iria muito além do dobro daquele soma. O
que pode ser comparado com o conjunto da população escrava da província, avaliado por
Martins: 33.000 em 1717, 50.000 em 1723 e cerca de 100.000 nas décadas de 1730 e 1740,
46
chegando a próximo de 190.000, na década de 1780. No século XIX, temos um dado
derivado de nossa própria pesquisa, em colaboração com o Prof. José R.O. Vergolino: o exame
riginários de todas as regiões de Pernambuco, no
de cerca de 4.000 inventários post mortem o
47
período 1800-1887, revelou informações sobre 21.932 escravos. Destes, foram indicados
como fugidos ou “fujões” (em um caso, com a observação: “tem por ofício ser fujão”) não mais
do que 54. Restringindo a comparação apenas aos 1.911 casos em que os inventários contêm
observações explícitas sobre as condições dos escravos, a porcentagem dos que fugiram é
ainda baixa, inferior a 3%.
O que os dados acima sugerem é que as fugas de escravos seriam um fenômeno pouco
importante, em termos quantitativos. Sendo isso verdade, os senhores de escravos não
precisariam, de fato, ter maiores preocupações — e despesas — com a vigia de seus
trabalhadores cativos. Também na área de mineração não havia essa preocupação: como
assinalou Schwartz, “so long as they were productive and turned over the gold they found to
48
their masters, slaves often had considerable autonomy of movement in the mining district. ”
[Os senhores de engenho] castigam rigorosamente [os escravos] e dizem é necessário assim,
porque de outro modo não seguiria a obra, nem eles teriam o temor do branco que se requer,
44
Os desembarques estimados montam a 122 mil, entre 1601 e 1650, e 125 mil, de 1651 a 1700. Voyages, 2019.
45
Total estimado a partir dos números contidos nos caps. 4 a 6 de Barbosa,1972.
46
Martins, 2018: p. 44.
47
Ver Versiani e Nogueról (orgs.), 2016.
48
Schwartz, 1992: p. 118.
15
pois em um engenho destes quando haja 8, 10 brancos é o mais e, muitas vezes, um só branco
49
e 30, 40, 50 escravos que lhe obedecem [...].
O jesuíta Antonil, em 1711, achava também necessário que se instilasse nos cativos o
temor de punições: “Convém que os escravos se persuadam que o feitor-mor tem muito poder
para lhes mandar e para os repreender e castigar quando for necessário [...].” Essa ideia de
uma advertência prévia era levada ao pé da letra por alguns senhores de escravos. Como um
deles, mencionado por Koster: à chegada de um novo escravo, “he takes him to the prison of
the state and shews him the stocks [ o tronco], the chains, the whips, &c. saying ‘this is what you
50
are to expect if you continue in your evil practices’ ”.
Fugas, quilombos e outros exemplos de resistência são fatos importantes para o estudo
da escravidão brasileira, evidenciando que muitos cativos reagiram de forma ativa à opressão a
que eram submetidos. Mas as condições objetivas eram progressivamente desfavoráveis a tais
manifestações de insubmissão, ao longo do período escravista, fazendo com que fossem
quantitativamente pouco importantes, e o custo de preveni-las não fosse, em geral, muito
expressivo.
49
Gonsalves de Mello, 1981: p. 23.
50
Antonil, 1982 [1711]: p. 83; Koster, 1816: p. 435.
51
Freyre, 1979: pp. 34, 86-87; Machado, 1987: p. 76.
16
No entanto, é necessário considerar que a coerção não era sempre vantajosa, para o
proprietário escravista. Em muitos casos, dependendo da atividade produtiva em que o escravo
estivesse engajado, impunham-se outras formas de impeli-lo a entregar o resultado desejado
pelo seu senhor.
Limites da coerção
O uso da coação como forma de controle do trabalho dos cativos demanda certas
condições. É preciso que as tarefas a serem executadas sejam de natureza tal a poderem ser
monitoradas e fiscalizadas diretamente por um feitor — o qual, mediante castigos físicos, ou a
ameaça deles, força o trabalhador ao rendimento desejado. Numa lavoura organizada no
regime de plantation, com trabalho feito em turmas, a maioria das tarefas é dessa espécie:
capinar o terreno, fazer covas para o plantio, cortar cana, colher o café, carregar sacas. São
atividades relativamente simples, que demandam, principalmente, força física, e cuja boa (ou
má) execução pode ser avaliada e fiscalizada visualmente.
Mas isso não seria verdade em outro tipo de tarefas, que podem ser classificadas como
“intensivas em habilidade” — em contraste com as típicas da grande propriedade agrícola, que
52
são “intensivas em esforço”. As primeiras são tarefas exercidas tipicamente de forma
individual e que, por suas características, em geral não se prestam a um monitoramento
constante, sendo difícil, ou mesmo impossível, que haja supervisão por um feitor. É o caso dos
serviços domésticos, seja os não especializados (descritos comumente, nos inventários, como
“serviço de casa”), seja os especializados (de cozinha, de costura, etc.). Assim como as tarefas
de ofícios como o de carpinteiro, carreiro ou ferreiro; ou as relacionadas à criação de gado. Na
mineração, a busca de pepitas de ouro ou diamantes no cascalho dos rios é outro exemplo de
tarefa intensiva em habilidade. Assim como os serviços dos “escravos de ganho”, que
trabalhavam nas ruas, como carregadores, vendedores, doceiras, etc., entregando a seus
senhores uma quantia fixa de seus ganhos.
52
Fenoaltea, 1974. Sobre o argumento dos próximos parágrafos, v. Versiani, 1994.
17
exemplo, de um escravo que não encontre pepitas na bateia, não ache um bezerro fugido, ou
faça um trabalho de carpintaria que se mostre, mais tarde, pouco duradouro. Nesses casos,
punições, ou ameaça delas, podem mesmo ser contraproducentes, despertando animosidade e
levando a represálias, como a má execução deliberada das tarefas ou atitudes mais extremas.
No caso de tarefas intensivas em esforço esse propósito poderia também existir, mas seus
efeitos seriam muito mais facilmente evitáveis pela vigilância do feitor. A ninguém ocorreria, é
evidente, recorrer a ameaças para obter de uma ama de leite ou de uma cozinheira o
comportamento desejado.
Incentivos positivos
53
Gorender,1980: p. 464; Freyre, 1981[1933]: pp. 476, 352.
18
servil, e embora dirigisse os outros escravos com autoridade, demonstrava para com eles uma
54
bondade extrema", escreveu o viajante.
Finalmente, a concessão unilateral da alforria (ou a promessa disso para o futuro) era
uma forma importante de incentivo positivo, em especial na escravidão doméstica, onde
predominavam tarefas intensivas em habilidade. Nas cartas de alforria registradas em cartório,
era frequente a menção a bons serviços prestados pelo alforriado, embora muitas vezes a
54
Saint-Hilaire, 1978 [1851]: p. 39. V. também: Saint-Hilaire, 1974a [1833]: pp. 189,190; 1974b [1887]: pp. 84, 130;
1976 [1851]: pp. 207, 222.
55
Saint-Hilaire, 1974a [1833]: pp. 15-17.
56
Saint-Hilaire, ibid.: p. 208. O Prof. Iraci Costa me chamou a atenção para essa passagem de Sant-Hilaire. Ver, a
propósito, Marcondes & Costa, 2002.
19
Eu, abaixo assignado, em atenção ao dia de hoje, Sexta-Feira da Paixão, e aos serviços que me
tem prestado meu escravo Victor, de idade de trinta anos mais ou menos, concedo-lhe sua
liberdade, com a condição porem de servir-me durante a minha vida, e por minha morte fazer
57
todas as despesas com o meu funeral.
Estudos sobre alforrias indicam que elas raramente ocorriam em áreas de grande
lavoura, sem que houvesse pagamento ao proprietário. Nessas áreas, como vimos,
predominavam tarefas intensivas em esforço, controláveis por feitores e métodos coercitivos: os
senhores de escravos não teriam necessidade de aplicar incentivos positivos. Por exemplo: das
489 alforrias registradas em Rio Claro, na região cafeeira de São Paulo, entre 1857 e 1887,
apenas 9 foram concedidas sem compensação ao proprietário escravista, segundo apurou
58
Warren Dean.
57
Trecho de Carta de Liberdade registrada no Cartório do 1º Ofício da Cidade de Goiás em 23 de abril de 1886. Não
se sabe se Victor teve que assumir tal encargo — ou se o 13 de maio veio antes.
58
Números baseados na tabela 5.1 em Dean, 1976: p. 133.
59
Versiani, Vergolino & Nogueról, 2016. Sobre predominância de mulheres nas alforrias, v. Klein & Luna, 2010:
pp.257-59.
20
ocorrência marginal, restrita a casos específicos, como a escravidão doméstica. Isso nos leva
ao segundo ponto deste artigo: qual o peso relativo da escravidão da grande lavoura?
Essa associação entre escravismo e grande propriedade agrícola foi reforçada pelo fato
de que vários autores de obras hoje clássicas analisaram o trabalho escravo principalmente no
âmbito dos engenhos e cafezais. Desde Perdigão Malheiro e Joaquim Nabuco, passando por
Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, até Celso Furtado, todos
olharam para a escravidão principalmente sob o prisma da lavoura extensiva. Embora seja
verdade que Gilberto Freyre tenha dado muita atenção à escravidão no âmbito doméstico, o
escravo dos engenhos patriarcais tem presença central em sua obra.
É certo que o tema geral desses autores foi a análise da formação histórica da
sociedade e da economia brasileiras; nessa perspectiva, será obviamente adequado pôr em
relevo a importância das economias açucareira e cafeeira e, nessas atividades, focalizar o
papel do trabalho escravo. É quando se pretende estudar o escravismo em si — suas
características, seu impacto sobre a economia e a sociedade brasileira no período em que
vigorou, as marcas que deixou depois, a natureza das relações entre senhores e escravos —
que importa saber até que ponto é adequado identificar a escravidão, no Brasil, com a
escravidão das grandes propriedades rurais.
muitos escravos, no açúcar e no café, ficou claro que ocorrera também, e com grande
frequência, o emprego de escravos em pequenas posses — às vezes bem pequenas.
Quadro análogo foi descrito para Minas Gerais e São Paulo na primeira metade do
século XIX: a maior parte dos cativos estava em conjuntos de no máximo 20 indivíduos. Em
Minas, Paiva mostrou, com base em listas nominativas (censos provinciais), que 66% do total
de escravos da província, em 1833-35, estavam em posses de até 20 cativos, e 44% em
posses de até 10. Passada a onda da mineração, Minas passara a ter uma economia
diversificada, fornecendo, principalmente para o Rio de Janeiro, produtos como toicinho,
queijos, fumo, tecidos. O café só chegaria de forma significativa na segunda metade do século.
63
60
Holanda, 1985: p. 282. O Regimento de 1702 está reproduzido em Eschwege, 1979 [1833]: 1º v., pp. 94 e ss.
61
Luna, 1981; porcentagens calculadas a partir de tabelas nas pp. 68 e 87.
62
Schwartz, 1982; 1985: cap. 16. As pequenas propriedades escravistas do Recôncavo foram estudadas por
Barickman, 1998.
63
Paiva, 1996.
22
Dos quase 22.000 cativos da amostra de inventários post mortem que examinamos, no
período entre 1800 e 1887, mais da metade (56%) faziam parte de posses de até 20 cativos, e
38% de posses de 10 ou menos indivíduos. Na Zona da Mata, essas proporções eram menores
(39% e 24%). Mas no restante da província, que abrigava cerca da metade dos escravos de
Pernambuco — o vasto Sertão, das fazendas de gado, o Agreste, onde se concentrava o
algodão, e a cidade do Recife — predominavam as pequenas posses. No Recife,
principalmente: aí dois terços (67%) dos cativos estavam em plantéis de até 10 indivíduos, e
86% em posses de até 20. E não eram só escravos domésticos: o exame dos inventários revela
64
Luna & Klein, 2003: p.122.
65
Marcondes, 2005.
23
Na criação de gado, no Sertão, alguns supunham que não fosse possível usar trabalho
escravo. Como Caio Prado, que escreveu: “Nestes territórios imensos, pouco povoados e sem
66
autoridades, é difícil manter a necessária vigilância sobre trabalhadores escravos.” Mas havia
escravos no Sertão pernambucano: cerca de um entre dez escravos da província estava nessa
região. Quase a metade deles (47%) em grupos de até 10, e quase quatro quintos (78%) em
grupos de até 20. Como as tarefas de criação de gado são, em sua maioria, “intensivas em
habilidade” (como procurar reses fugidas, em fazendas extensas e com poucas cercas), é de
supor que prevalecessem incentivos positivos, como a concessão de bezerros aos vaqueiros, e
67
fosse desnecessária uma vigilância estreita.
No Rio Grande do Sul, Nogueról mostrou um quadro semelhante. Nos 1.458 inventários
que examinou, no período 1787—1877, provenientes de várias regiões da província
(principalmente da campanha gaúcha, área de criação de gado, mas também da capital e da
região de colonização alemã), verificou que, dos 7.652 escravos da amostra, 4.617 (60%)
68
faziam parte de posses de até 20 cativos, e 3.038 (39%) de posses iguais ou menores que 10.
66
Prado Jr., 1959[1945]: p. 45. Afirmativas análogas são encontradas em outros autores, como Vianna Filho (1946:
p. 126).
67
Versiani & Vergolino, 2016.
68
Nogueról, 2016.
69
Passos Subrinho, 2016.
70
Marcondes, 2016.
24
mineradora de Minas, ainda no século XVIII; nas regiões açucareiras da Bahia, Pernambuco e
Sergipe; nas áreas de produção mais diversificada de São Paulo, Minas, Pernambuco, Rio
Grande do Sul e Sergipe, no século XIX; em região de predominância do café; em todos esses
locais verificou-se a ocorrência majoritária de posses de escravos de, no máximo, 20 indivíduos.
Se esses achados se confirmarem em outras regiões e períodos, isso poderá levar à conclusão
de que escravos trabalhando em pequenos grupos eram a regra, e não a exceção.
Pernambuco, que analisamos em colaboração com J.R. Vergolino, encontramos cerca de 400
proprietários de plantéis pequenos, de 1 a 5 cativos, que tinham nesses escravos a maior parte
(acima de 75%) de seus bens. E houve 64 casos em que escravos eram o único bem possuído.
71
E deve-se ainda considerar que, enquanto na grande lavoura muitas tarefas são
“intensivas em esforço” — onde a coerção é “funcional”, do ponto de vista dos senhores —, nas
pequenas posses é de se supor que sejam mais comuns as tarefas “intensivas em habilidade”
— onde incentivos positivos são mais indicados. É o que se verá a seguir.
71
I.N. Costa, 1992; Soares,1958: 48.
72
Por exemplo, Stampp, 1956: p. 30; Genovese, 1976: p. 7. Para Koster (1816: p. 362.), o número adequado de
escravos num engenho de açúcar seria 40.
26
73
Ver: Versiani, Vergolino & Nogueról, 2016.
74
Por ex., Gorender, 1980: pp. 348 e ss.; R.E. Conrad, 1994: pp. xx e ss.
27
Vimos que uma superioridade do trabalho escravo, do ponto de vista dos interesses do
produtor escravista, reside na faculdade que este detém de fazer o escravo trabalhar mais
horas, ou mais intensamente, do que um empregado livre trabalharia, recebendo o salário
usual. Superioridade que pode ser melhor entendida no caso de atividades em que predominem
tarefas intensivas em esforço.
75
Sobre esse ponto, v. Versiani, 2007.
28
esses moradores e o proprietário das terras, a quem interessava manter muita gente em seus
domínios, como oferta barata de mão de obra e para outros propósitos, como sua defesa em
situações de conflito local. Por seu lado, o morador sentia-se ligado à propriedade em que vivia
por uma “mística de fidelidade ao chefe” — e por poder contar, em caso de necessidade, com a
possível proteção e auxílio do fazendeiro. O rompimento de tais vínculos seria um obstáculo ao
uso dessa reserva potencial de mão de obra por outros setores, como a cafeicultura em
76
expansão.
Outro fator, também de natureza sociológica, parece ter sido igualmente um obstáculo
importante. É o fato, mencionado por vários observadores contemporâneos da escravidão, de
que havia muita resistência por parte da população livre em praticar tarefas que fossem
usualmente atribuídas a trabalhadores cativos. Essas tarefas passavam a ser consideradas
indignas de pessoas livres. No dizer de Vilhena, em 1802:
Como todas as obras servis, e artes mecânicas são manuseadas por [negros], poucos são os
mulatos, e raros os brancos, que nelas se querem empregar, sem excetuar aqueles mesmos
indigentes, que em Portugal nunca passaram de criados de servir, de moços de tábua, e
cavadores de enxada.
A primeira cousa que seduz um operário em Tijuco, quando ele consegue economizar algum
dinheiro, é arranjar um escravo; e, tal é o sentido de vergonha dado a certos trabalhos que, para
pintar a pobreza de um homem livre, diz-se que ele não dispõe de ninguém para buscar-lhe um
79
balde de água ou um feixe de lenha.
76
Furtado, 1976 [1959]: cap. 21; citação à p. 121.
77
Vilhena, 1969 [1802]: v.1, pp. 139-140. Luís dos Santos Vilhena, professor português radicado na Bahia, deixou em
manuscrito vinte cartas com observações sobre vários aspectos da vida baiana no final do século XVIII, publicadas
depois de sua morte.
78
Saint-Hilaire, 1974a [1833]: p. 135.
79
Ibid.: p. 33.
29
4. OBSERVAÇÕES FINAIS
Neste artigo examinaram-se duas crenças sobre a escravidão brasileira que, apesar de
muito difundidas, vão de encontro a resultados obtidos por vários pesquisadores, nas últimas
décadas.
80
Ver Versiani & Nogueról (orgs.), 2016: caps. 5 a 8.
30
A noção de que houvesse uma subordinação da produção ao comércio, nessa fase, está
em consonância com a tradição marxista, que vê o capital mercantil como dominante, antes da
prevalência do modo capitalista de produção. Vão nessa direção autores como Sodré, que
adota uma visão quase teleológica, na explicação do desenvolvimento da atividade exportadora
colonial: “a estrutura açucareira de produção é uma empresa do capital comercial, montada
85
para servi-lo”. Seguindo, de certa forma, essa linha, alguns historiadores enfatizam o tráfico
de escravos como elemento central da formação de capital, no período em que o uso da mão
de obra escravizada foi dominante, entre nós; os produtores agrícolas teriam uma posição
dependente, em relação aos traficantes. Como nesta passagem de Caio Prado:
81
Furtado, 1976 [1959]: p. 115
82
Ibid.: cap. 8.
83
Gonsalves de Mello, 1996: cap.1, esp. p. 26; Flory & Smith, 1978: p. 593.
84
Castro, 1980; Cabral de Mello, 1997: p. 422.
85
Sodré, 1979: p. 85.
31
Os traficantes se tinham tornado uma potência financeira, e [...] faziam sombra com seu dinheiro
às classes de maior expressão política e social no país: os fazendeiros e proprietários rurais, em
86
regra seus devedores pelo fornecimento de escravos.
Não se pode minimizar o peso dos traficantes de escravos — e, em geral, dos agentes
do comércio externo — na economia colonial; mas não é claro que a ideia de uma posição de
inferioridade de produtores, em relação a comerciantes, tenha respaldo empírico.
A evolução dos preços dos escravos no Brasil, ao longo do período de mais de três séculos em
que o trabalho forçado foi a base da atividade produtiva no País, pode ser explicada pela
interação entre a oferta e a demanda de trabalhadores cativos. Do lado da demanda, o fator
primordial é a lucratividade da atividade produtiva [...]. Do lado da oferta, há elementos para crer
que tenha sido muito elástica, no longo prazo, mas pouco elástica no curto prazo. Os
movimentos de preço podem ser vistos, assim, como resultantes de variações de curto prazo na
demanda por mão de obra, associadas à dinâmica da atividade produtiva na economia brasileira,
89
do século XVI ao século XIX.
Há várias indicações de que capitais ligados ao comércio foram uma fonte de
financiamento do investimento inicial nos engenhos de açúcar; e certamente os donos de
engenho se endividavam com traficantes de escravos, pois o tráfico era uma atividade baseada
86
Prado Júnior, 1959 [1945]: p. 155.
87
Alencastro, 2000: p. 37.
88
Gonsalves de Mello, 1996: cap.1; Flory & Smith, 1978.
89
Nogueról, Versiani & Vergolino, 2016, p. 285-86.
32
no crédito. Mas a ideia de uma subordinação dos produtores ao “capital mercantil!” carece de
base empírica sólida. Não havia separação nítida entre comerciantes e produtores, e nem há
sinais de que estes últimos enfrentassem mercados de compra e venda dominados por poucos
agentes, com grande poder de mercado
A segunda questão aqui revista é a forma de escravidão que teria sido a mais comum,
no Brasil. É frequente — em livros didáticos, por exemplo — que a escravidão tida como
representativa seja a da grande propriedade rural (às vezes ilustrada pela figura ameaçadora de
um feitor, com chicote na mão, diante de um grupo de trabalhadores escravizados). Mas a isso
se contrapõe a evidência, acumulada nas últimas décadas, da ampla difusão de pequenas
posses de escravos, em atividades produtivas as mais variadas, tanto no âmbito rural como no
urbano.
90
A citação é de Ianni, 2002: p. 304.
33
base social de apoio ao regime escravista não se restringia à elite da grande lavoura, mas
alcançava camadas extensas da população — o que certamente se relaciona com a longa
duração da escravatura em nosso país. Foi o grande paladino da Abolição, Joaquim Nabuco,
quem observou que, até pelo menos a década de 1860, a escravidão era vista no Brasil como
algo normal, elemento quase natural da vida quotidiana: “a sociedade, em todas as suas
categorias, dava tanta fé, tinha tanta consciência da anomalia da escravidão, como do
movimento da Terra.” Fora bem tardio o “alvorecer do sentimento antiescravagista, mesmo
91
entre os nossos melhores e mais nobres espíritos.”
91
Nabuco, 1975 [1897-99]: p. 602.
92
Ver Gardner, 1975 [1846]: esp. p. 25; Burton, 1976 [1869]: esp. p. 233. Sobre Saint-Hilaire, v. Versiani, 2000.
34
consequência, de um tratamento de escravos que podia ser visto como relativamente “brando”.
É revelador que Saint-Hilaire, nas duas ocasiões em que viu grandes posses de escravos, nos
engenhos de Campos e nas charqueadas do Rio Grande do Sul, tenha mencionado, com
desaprovação, o tratamento duro de escravos, nesses casos
Há ainda muito a explorar sobre a escravidão brasileira, nas várias fontes disponíveis,
como inventários, testamentos, listas censitárias nominativas, registros de matrícula de
escravos, listas de classificação para alforria, lançamentos de batismos e casamentos,
processos cíveis e criminais, livros de compra e venda de escravos, registros de alforria. Mas
numerosos trabalhos, nos últimos anos, usando essas e outras fontes, têm esclarecido muitos
pontos importantes para o melhor entendimento desse tema. É desejável, e muito necessário,
que tais resultados tenham uma difusão mais ampla do que têm tido.
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