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Raissa Rodrigues*
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o livro Mocambos e Quilombos, publicado em 2015 pela editora Claro Enigma, Flavio
Gomes pretende desdobrar a história dos quilombos, do passado e no presente, com
as comunidades negras rurais e remanescentes de quilombos. A obra se propõe a
olhar para o passado de escravização por outro viés e, partindo de uma vasta bibliografia, se
debruça na tarefa de mapear alguns quilombos cujos rastros foram deixados na documentação
arquivística. Gomes exemplifica estratégias de resistência, de forma ampla, relatando casos bem
particulares, para que os detalhes documentados convençam o leitor de que tudo aquilo que
apreenderá a respeito do período escravista no Brasil é incompleto e, muitas vezes, falso.
Demostrar a importância da resistência negra é entender a conformação de toda uma população
pautada na luta, desde que nessas terras pisaram. O escamoteamento dessa história produz
efeitos devastadores para essa mesma população que acaba por não ser reconhecida enquanto
sujeitos ativos na busca por uma identidade, bem como na batalha histórica contra o racismo.
Ao longo do livro, Gomes vai enumerando datas e regiões de fuga de muitos grupos pelo
Brasil, muitas vezes culminando no surgimento de um quilombo, que tanto atraíam a repressão,
como mais fugas para ele, o que causava preocupação e medo aos fazendeiros, imprensa, e
sociedade em geral. Quilombos eram sinônimos de transgressão à ordem escravista, não era
incomum que seus habitantes se agrupassem para atacar fazendas e engenhos, cooptando mais
escravos, e a imprensa diariamente noticiava tais fugas e ataques. Interessante refletir sobre o
motivo de tais documentações a respeito dessas insurgências serem tão pouco estudadas pela
academia, o que gera uma falta de conhecimento a respeito da força e não aceitação do sistema
escravocrata pela própria população descendente desse povo escravizado. O que prevalece é a
figura do escavo ‘’pai joão’’ cantada por Chico Buarque, ou do negro da casa grande,
protagonizado nas novelas de época. Ademais, leituras como Casa Grande e Senzala, obra
enaltecida até hoje, que reforçam uma imagem dócil do negro escravizado, ajudam a deixar
obscurecido um passado de luta. Mas a imposição da liberdade por parte dos africanos era tão
latente que havia até os quilombos próximos a cidade, que chamavam-se quilombos
suburbanos, nos quais eram negociados produtos de suas roças e frutas silvestres com
taberneiros, viajantes e escravos de ganho.
Gomes também aponta para a imagem romantizada da cultura africana, que refletiria
num quilombo isolado que reproduziria a África. As evidências disponíveis, no entanto,
apontam para a cultura quilombola como algo adaptado nas Américas. Isto remete ao conceito
de Amefricanidade proposto por Lélia Gonzales, uma das mais importantes militantes e
intelectuais da questão negra e de gênero no Brasil. Amefricanidade é então conceituada como
“um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodação, reinterpretação,
criação de novas formas) referenciada em modelos africanos e que remete à construção de uma
identidade étnica. [O valor metodológico desta categoria] está no fato de resgatar uma unidade
específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa
determinada parte do mundo.” (GONZALES, 1988)
Seria uma espécie de unidade que, sem apagar a raiz africana, resgata a experiência fora
da África tendo-a como central. Para Lélia seu núcleo é constituído pela cultura negra,
expressando-se na gestualidade, corporalidade, cotidianidade da fala, e modos de ser que atuam
de tal maneira que muitas vezes nem se tem consciência. Os quilombos de toda América são
figuras fundadoras da ancestralidade mítica, representando respostas alternativas de
organização social desse povo em diáspora. Para Gonzales, portanto, um pilar da
Amefricanidade. Assim a cultura quilombola podia ser formada tanto de influências africanas
como de reinvenções na diáspora.
Impossível não reconhecer a grandiosidade e força que os quilombos tinham, tanto que
para muitos senhores, a alternativa era a tentativa de negociação. No contexto da lei de ventre
livre (setembro de 1871), as autoridades tentavam negociar a rendição dos mocambeiros e fazer
deles, pelo menos os nascidos nos mocambos, camponeses livres. Outras formas de resistência
podem ser ilustradas no ‘’aquilombamento por ocupação’’, dentro da própria fazenda ou
aquilombados que queriam ser vendidos, pois, estavam insatisfeitos com maus tratos. Há
também registros de indígenas aldeados em missões que foram utilizadas para capturar
fugitivos e destruir quilombos; de grupos indígenas isolados que atacavam os quilombolas
temendo que sua proximidade atraísse a perseguição colonial e de quilombos formados por
aliança entre fugitivos negros e indígenas.
Já no final do livro, é dedicado o capítulo ‘Em torno de Palmares’ para falar sobre
Palmares e dar conta da sua magnitude histórica. Considerado o mais antigo e famoso mocambo
do Brasil, Palmares surgiu em Alagoas, coração do Nordeste açucareiro colonial. Segundo
denúncias, com certo exagero, os mocambos palmaristas alcançavam áreas das capitanias de
Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte. Os quilombolas tanto amedrontavam como puniam os
senhores de engenho que promoviam expedições punitivas contra eles. Palmaristas chegavam a
cobrar tributos aos moradores das vilas e povoados e quem não colaborasse poderia ter suas
propriedades saqueadas, seus canaviais e plantações incendiados e seus escravos sequestrados.
As expedições para destruir Palmares foram seculares atravessando os últimos anos do século
XVI até o primeiro quartel do século XVIII, porém a maioria delas sendo frustradas, chegando
ao ponto de as autoridades oferecerem tratados de paz, visando o reconhecimento da autonomia
dos palmaristas em troca de lealdade à coroa. Zumbi, um dos principais líderes do quilombo, foi
traído, localizado e assassinado em 20 de novembro de 1695, hoje data do Dia Nacional da
Consciência Negra, feriado em várias cidades brasileiras.
Os primeiros registros que temos sobre mocambos no Rio de Janeiro são de 1625. A
história dos quilombos teve vários e diferentes capítulos, considerando regiões, períodos,
duração, cenários, personagens, reprodução e ações. Muitos, e não só Palmares, existiram
durante décadas e até mesmo séculos. Fazendeiros, autoridades e os próprios escravos sabiam
que em algumas regiões havia comunidades de fugitivos (e suas várias gerações ali nascidas)
longevas.
Com a abolição em 1888 não havia mais escravos, portanto, não havia mais fugitivos,
mas os mocambos e quilombos continuaram a se reproduzir sem, no entanto, constarem na
documentação policial e nas circulares jornalísticas. Esses quilombos que já eram micro
comunidades camponesas continuaram suas atividades, migrando, desaparecendo e emergindo
de norte a sul do país. As comunidades recriaram suas dimensões de suposta invisibilidade
através de linguagens e culturas próprias com festas que iam do jongo às congadas e outras
manifestações de uma cultura rural de base étnica e familiar. Elas foram tão estigmatizadas a
ponto de seus moradores recusarem a denominação de quilombolas ou ex-escravos.
No final do século XX, essas comunidades sofreram novos ataques de setores agrários.
No Brasil dos últimos anos o debate sobre reforma agrária vem se articulando com a questão
racial, em particular das comunidades negras rurais e remanescente (termo que foi oficializado
na constituição brasileira em 1988) de quilombos. A militância negra se apropriou do quilombo
como representação política de luta contra a discriminação racial e valorização da cultura negra,
agenciando essa ideia para articular a resistência e luta contra opressão.
NOTAS
*A autora cursa o último período do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Atualmente faz parte do Laboratório de Estudos de Relações Etnico Raciais (LERER)
coordenado pela professora Fernanda Santos do Núcleo de Estudo de Políticas Públicas e
Direitos Humanos (NEPP-DH). Também atua no projeto de extensão do mesmo núcleo,
coordenado pelo professor Vantuil Pereira. Trabalho como voluntária no Grupo de Estudos
Multidisciplinar de Ações Afirmativas (GEMAA) da UERJ.
REFERÊNCIAS
GONZALES, Lélia. “Nanny.” Humanidades, Brasília, (17): 23-25, 1988.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra :o cemitério dos pretos novos no Rio de
Janeiro / - Rio de Janeiro : Garamond : IPHAN, 2007.