Schwarz Ao Vencedor As Batatas Roberto Schwarz PDF

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Roberto Schwarz

AO VENCEDOR
AS BATATAS
Forma literária e processo social
nos inícios do romance brasileiro

[Al Livraria
Duas Cidades

editorali34
L.
As idéias
fora do lugar
Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema.
Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora,
no Brasil domina o fato “impolítico e abominável” da escravidão.
Este argumento — resumo de um panfleto liberal, contem-
porâneo de Machado de Assis' — põe fora o Brasil do sistema
da ciência. Estávamos aquém da realidade a que esta se refere;
éramos antes um fato moral, “impolítico e abomindvel”. Gran-
de degradação, considerando-se que a ciência eram as Luzes, o
Progresso, a Humanidade etc. Para as artes, Nabuco expressa um
sentimento comparável quando protesta contra o assunto escra-
vo no teatro de Alencar: “Se isso ofende o estrangeiro, como não
humilha o brasileiro!”?. Outros autores naturalmente fizeram o
raciocínio inverso. Uma vez que não se referem à nossa realida-
de, ciência econômica e demais ideologias liberais é que são, elas
sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis.

1 A, R. de Torres Bandeira, “A lil?erdade do trabalho e a concorrência, seu


efeito, são prejudiciais à classe operária?”, in O Futuro, nº 9, 15/01/1863. Macha-
do era colaborador constante nesta revista.
2 A polêmica Alencar-Nabuco (organização e introdução de Afrânio Cou-
tinho), Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965, p. 106.

"
Ao vencedor as batatas

“Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nos-


sa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, es-
quecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre ir-
mão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipó-
crita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filan-
tropia, o fado de nosso escravo feliz”.?
Cada um a seu modo, estes autores refletem a disparidade
entre a sociedade brasileira, escravista, e as idéias do liberalismo
europeu. Envergonhando a uns, irritando a outros, que insistem
na sua hipocrisia, estas idéias — em que gregos e troianos não
reconhecem o Brasil — são referências para todos. Sumariamente
está montada uma comédia ideológica, diferente da européia. É
claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de
modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também;
mas lá correspondiam às aparências, encobrindo o essencial —
a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas idéias seriam falsas
num sentido diverso, por assim dizer, original. A Declaração dos
Direitos
do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Cons-
tituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como-tor-
ya mais abjeto o instituto da escravidão.é A mesma coisa para
professada universalidade dos princípios, que transformavaem
escândalo a prática geral.do favor. Que valiam, nestas circuns-
tâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos tanto? Não
descreviam a existência — mas nem só disso vivem as idéias. Re-

3 Depoimento de uma firma comercial, M. Wright & Cia., com respeito à


crise financeira dos anos 50. Citado por Joaquim Nabuco, Um estadista do Impé-
rio, vol. I, São Paulo, 1936, p. 188, e retomado por S. B. de Holanda, Raízes do
Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1956, p. 96.
4 E, Viotti da Costa, “Introdugo ao estudo da emancipagio politica”, in
C. G. Mota (org.), Brasil em perspectiva, São Paulo, Difel, 1968.

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As idéias fora-do lugar

fletindo em direção parecida, Sérgio Buarque observa: “Trazen—‘


do de paises distantes nossas formas de vida, nossas instituições !
e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso cm!
ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns dester- .
rados em nossa terra”>. Essa impropriedade de nosso pensamento, |
que não é acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua,
atravessando e desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológi-
ca do Segundo Reinado. Freqiientemente inflada, ou rasteira, ri-
dícula ou crua, e só raramente justa no tom; a prosa literária do
tempo é uma das muitas testemunhas disso.
Embora sejam lugar-comum em nossa historiografia, as ra-
zões desse quadro foram pouco estudadas em seus efeitos. Como
é sabido, éramos umpaís agrário e independente, dividido em '
latifándios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um
lado, e por outra do mercado externo. Mais ou menos diretamen- |
te, vêm daí as singularidades que expusemos. Era inevitável, por |
exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês
— a prioridade do lucro, com seus corolários sociais — uma vez
que dominava no comércio internacional, para onde a nossa eco-
nomia era voltada. A prática permanente das transações escolava,
neste sentido, quando menos uma pequena multidão, Além do
que, l_lª/_íaglg_s,fcigº,Ãbdegydênçiq)hápguco, em nome
de idéias -
francesas, inglesas e americanas, _ygíi.gªgmeíh?e“íií)—e—r_aís, que assim
faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com
igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a
escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles.ó No
plano das convicções, a incompatibilidade é clara, e já vimos

5 S. B. de Holanda, op. cit, p. 15.


6 E. Viotti da Costa, 0p. cit.

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Ao vencedor as batatas

exemplos. Mas também no plano prático ela se fazia sentir. Sen-


do uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não des-
pedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberc ade aseu
patrão, além de imobilizar menos capital. Este aspecto — um
entre muitos — indica o limite que a escravatura opunha à ra-
cionalização produtiva. Comentando o que vira numa fazenda,
um viajante escreve: “não há especialização do trabalho, porque
se procura economizar a mão-de-obra”. Ao citar a passagem, F.
H. Cardoso observa que “economia” não se destina aqui, pelo
contexto, a fazcr o trabalho num mínimo de Lempo, maLnum

com todo o prestigio que lhes advinha da revolução que ocasio-


navam na Europa, eram sem propósito no Brasil. Para compli-
car ainda o quadro, considere-se que o latifúndio escravista ha-
via sido na origem um empreendimento do capital comercial, e
/que5 portanto o lucro, fôra desde e sempre o seu pivé. Ora, oL0
lucro
como prioridade subjetiva é comum s formas antiquadasdo
capital e às mais modernas. De sorte que os incultos e abominá-
Veis escravistas até certa data — quando esta forma de produgio
veio a ser menos rentvel que o trabalho assalariado — foram no
essencial capitalistas mais conseqiientes do que nossos defenso-
res de Adam Smith, que no capitalismo achavam antes que tudo
a liberdade. Estd-se vendo que para a vida intelectual o nó esta-

7 E. H, Cardoso, Capitalismo e escravidio, São Paulo, Difel, 1962, pp. 189-


91e198.
As idéias fora do lugar

va armado. Em matéria de racionalidade, os papéis se embara-


lhavam e trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral,
o obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não
era prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc. E, de ma-
neira geral, na ausência do interesse organizado da escravaria, o
confronto entre humanidade e inumanidade, por justo que fos-
se, acabava encontrando uma tradução mais rasteira no conflito
entre dois modos de empregar os capitais — do qual era a ima-
gem que convinha a uma das partes.º
Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia li-
beral, que era a das jovens nações emancipadas da América, des-
carrilhava. Seria fácil deduzir o sistema de seus contra-sensos,
todos verdadeiros, muitos dos quais agitaram a consciência teó-
rica e moral de nosso século XIX. Já vimos uma coleção deles.
No entanto, estas dificuldades permaneciam curiosamente ines-
senciais. O teste da realidade não parecia importante. É como se
coerência e generalidade não pesassem muito, ou como se a es-
fera da cultura ocupasse uma posição alterada, cujos critérios
fossem outros — mas outros em relação a quê? Por sua mera
presença, a escravidão indicava a impropriedade das idéias libe-
rais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento.
Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não
era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa.
Para descrevê-la é preciso retomar o país como todo. Esquema-
tizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no ,

8 Conforme observa Luiz Felipe de Alencastro em sua tese de doutorado,


O trato dos viventes: trdfico de escravos e Pax Lusitana’ no Atlântico Sul, séculos XVI-
XIX (Universidade de Paris, Nanterre, 1985-1986), a verdadeira questio nacio-
nal de nosso século XIX foi a defesa do trifico negreiro contra a pressao inglesa.
Uma questão que não podia ser menos propicia ao entusiasmo intelectual.

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Ao vencedor as batatas

monopoho da terra, três classes de população: o latifundidrio, o


|
escravo e o Fhomem livre”] na verdade dependente. Entre os
primeiros dois a relaçãoé clara, é a multidão dos terceiros que
nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida
social e a seus bens depende materialmente dd favor) indireto ou
direto, de um grande.º O agregado é a sua caricatura/Ofalo_“t"ç;
portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das gran- -
des classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que -
têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá aconte-
cer a vida ideológica, regida, em conseqiiéncia, por este mesmo
mecanismo.!º Assim, com mil formas e nomes, o favor atraves-
sou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sem-
pre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Este-
ve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas ati-
vidades, mais e menos afins dele, como administração, política,
indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões
liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a |
tipografia, que, na acepção européia, não deviam nada a ninguém, \
entre nés eram governadas por ele. E assim como o profissional |
dependia do favor para o exercicio de sua profissao, o pequeno
proprietério depende dele para a seguranga de sua propriedade,
e o funcionério para o seu posto. Q favor é a nossa mediagio qua-
se universal— e sendo mais simpdtico do que o nexo escravista,
os |
a outra relação que a coldnia nos legara, ¢ compreensivel que

9 Para uma exposição mais completa do assunto, Maria Sylvia de Carvalho


Franco, Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo, Instituto de Estudos Bra-
sileiros, 1969.
10 Sobre os efeitos ideolégicos do latifiindio, ver o cap. III de Raizes do Bra-
sil, “A heranga rural”.

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As idéias fora do lugar

Escritores tenhambaseado nele a sua interpretação


do Brasil,
involuntariamente disfarçando a violéncia, que sempre reinou na
esfera da produção. )
O escravismo. desmente as idéias liberais; mais insidiosa-
mente o favor, tão incompativel com elas quanto o primeiro, as
absorve e desloca, originando um padrio particular. O elemen-
to de arbitrio, o jogo fluido de estima e auto-estima a que o fa-
vor submete o interesse material, não podem ser integralmente
racionalizados. Na Europa, ao atacd-los, o{universalismovisara
o privilégio feudal. No processo de sua afirmagdo histérica, a ci-
vilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universa-
lidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneragao objetiva, a
ética do trabalho etc. — contra as prerrogativas do Ancien Régime.
O favor, ponto da pessoa, a ex-
por ponto, pratica a dependéncia d/

ceção a regra, a cultura interessada, remuneragao e servigos pes-


soais. Entretanto, não est4vamos para a Europa como o feuda-
lismo para o capitalismo, pelo contrdrio, éramos seus tributdrios
em toda linha, além de não termos sido propriamente feudais —
a colonização é um feito do capital comercial. No fastígio em que
estava ela, Europa, e na posição relativa em que estávamos nós,
ninguém no Brasil teria a idéia e principalmente a força de ser,
digamos, um Kant do favor, para bater-se contra o outro.!! De
modo que o confronto entre esses princípios tão antagônicos re-
sultava desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com fa-
cilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burgue-
sia européia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquan-

11 Como observa Machado de’Assis, em 1879, “o influxo externo é que


determina a direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente, a força
necessária à invenção de doutrinas novas”. Cf. “A nova geração”, Obra completa,
vol. III, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, pp. 826-7.

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Ao vencedor as batatas

to na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado


pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos
€ as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das ins-
tituições, por exemplo com burocracia e justiça, que embora
regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do
estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este anta-
jgonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada —
que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as idéias e razões
uropéias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justifica-
lçãa, nominalmente “objetiva”, para o momento de arbitrio que é
natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se
desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas. Esta
recomposição é capital. Seus efeitos são muitos, e levam longe
em nossa literatura. De ideologia que havia sido — isto é, en-
gano involuntário e bem fundado nas aparências — o liberalis-
mo passa, na falta de outro termo, a penhor intencional duma
; variedade de prestígios com que nada tem a ver. Ao legitimar o
| arbítrio por meio de alguma razão “racional”, o favorecido cons-
cientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por sua vez
não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmen-
ti-lo. Nestas condições, quem acreditava na justificação? A que
aparência correspondia? Mas justamente, não era este o proble-
ma, pois todos reconheciam — e isto sim era importante — a
intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor. À com-
pensação simbólica podia ser um pouco desafinada, mas não era
mal-agradecida. Ou por outra, seria desafinada em relação ao
Liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao favor, que
era principal. E nada melhor, para dar lustre às pessoas e à so-
ciedade que formam, do que as idéias mais ilustres do tempo, no
caso as européias. Neste contexto, portanto, as ideologias não
descrevem sequer falsamente a realidade, e não gravitam segun-
do uma lei que lhes seja própria — por isso as chamamos de se-
As idéias fora do lugar

gundo grau. Sua regra é outra, diversa da que denominam; é da


ordem do relevo social, em detrimento de sua intenção cogni-
tiva e de sistema. Deriva sossegadamente do óbvio, sabido de
todos — da inevitável “superioridade” da Europa — e liga-se ao
momento expressivo, de auto-estima e fantasia, que existe no
favor. Neste sentido dizíamos que o teste da realidade e da coe-
rência não parecia, aqui, decisivo, sem prejuízo de estar sempre
presente como exigência reconhecida, evocada ou suspensa con-
forme a circunstância. Assim, com método, atribui-se indepen-
dência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às
exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc. Com-
binando-se à prática de que, em princípio, seria a crítica, o Li-
beralismo fazia com que o pensamento perdesse o pé. Retenha-
se no entanto, para analisarmos depois, a complexidade desse
passo: ao tornarem-se despropósito, estas idéias deixam também
de enganar.
É claro que esta combinação foi uma entre outras. Para o
nosso clima ideológico, entretanto, foi decisiva, além de ser aquela
em que os problemas se configuram da maneira mais completa
e diferente. Por agora bastem alguns aspectos. Vimos que nela
as idéias da burguesia — cuja grandeza sóbria remonta ao espí-
rito público e racionalista da Ilustração — tomam função de...
ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação
numa esfera augusta, no caso a da Europa que se... industrializa.
O qiiiproquó das idéias não podia ser maior. A novidade no caso
não está no caráter ornamental de saber e cultura, que é da tra-
dição colonial e ibérica; está na dissonância propriamente incrí-
vel que ocasionam o saber e a cultura de tipo “moderno” quan-
do postos neste contexto. São inúteis como um berloque? São
brilhantes como uma comenda? Serão a nossa panacéia? Enver-
gonham-nos diante do mundo? O mais certo é que nas idas e
vindas de argumento e interesse todos estes aspectos tivessem

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Ao vencedor as batatas

ocasião de se manifestar, de maneira que na consciência dos mais


atentos deviam estar ligados e misturados. Inextricavelmente, a
vida ideológica degradava e condecorava os seus participantes,
entre os quais muitas vezes haveria clareza disso. Tratava-se, por-
tanto, de uma combinação instável, que facilmente degenerava
em hostilidade e crítica as mais acerbas. Para manter-se precisa
de cumplicidade permanente, cumplicidade que a prática do favor
tende a garantir. No momento da prestação e da contraprestação
— particularmente no instante-chave do reconhecimento recí-
proco — a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, ten-
do embora a todo instante os elementos necessários para fazé-lo.
Esta cumplicidade sempre renovada tem continuid: als

imais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasi-


leiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca,
| de que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserdvel dos favore-
| cidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que trans-
formava prestação e contraprestagao, por modestas que fossem,
I numa ceriménia de superioridade social, valiosa em si mesma.
Lastreado pelo infinito de dureza e degradagdo que esconjurava
— ou seja a escraviddo, de que as duas partes beneficiam e tim-
bram em se diferencar — este reconhecimento é de uma coni-
véncia sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabu-
lário burgués da igualdade, do mérito, do trabalho, da razão.
Machado de Assis serd mestre nestes meandros. Contudo veja-se
também outro lado. Imersos que estamos, ainda hoje, no universo
do Capital, que ndo chegou a tomar forma cldssica no Brasil,
tendemos a ver esta combinagio como inteiramente desvantajosa
para nés, composta só de defeitos. Vantagens não hd de ter tido;
mas para apreciar devidamente a sua complexidade considere-se
que as idéias da burguesia, a principio voltadas contra o privilé-
gio, a partir de 1848 se haviam tornado apologética: a vaga das
lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarca an-

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As idéias fora do lugar

tagonismos de classe.!? Portanto, para bem lhe reter o timbre


ideológico é preciso considerar que o nosso discurso impróprio
era oco também quando usado propriamente. Note-se, de pas-
sagem, que este padrão iria repetir-se no século XX, quando por
várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as
ideologias mais rotas da cena mundial. Para a literatura, como
veremos, resulta daí um labirinto singular, uma espécie de oco
"A dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre.
Em suma, se insistimos no viés que escravismo e favor intro-
duziram nas idéias do tempo, não foi para as descartar, mas para
descrevê-las enquanto enviesadas — fora de centro em relação à
exigência que elas mesmas propunham, e reconhecivelmente nos-
sas, nessa mesma qualidade. Assim, posto de parte o raciocínio
sobre as causas, resta na experiência aquele “desconcerto” que foi
o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo
e factício — contrastes rebarbativos, desproporções, disparates,
anacronismos, contradições, conciliações e o que for — combina-
ções que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política
nos ensinaram a considerar.!> Não faltam exemplos. Vejam-se
alguns, menos para analisá-los, que para indicar a ubiqiiidade do
quadro e a variação de que é capaz. Nas revistas do tempo, sendo
grave ou risonha, a apresentação do número inicial é composta

12 G. Lukécs, “Marx und das Problem des ideologischen Verfalls”, in Pro-


bleme des Realismus, Werke, vol. IV, Neuwied, Luchterhand.
13 Explorada em outra linha, a mesma observação encontra-se em Sérgio
Buarque: “Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de
aspectos novos e imprevistos, elevar à p/erfeição o tipo de civilização que represen-
tamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho e de nossa preguiça parece
participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem”,
op. cit., p. 15.

21
Ao vencedor as batatas

para baixo e falsete: primeira parte, afirma-se o propósito redentor


da imprensa, na tradição de combate da Tlustração; a grande seita
fundada por Guthenberg afronta a indiferença geral, nas alturas
o condor e a mocidade entrevêem o futuro, ao mesmo tempo que
repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha regene-
radora do ]ornal desfaz as trevas da corrupção. Na segunda parte,
conformando-se às circunstâncias, as revistas declaram a sua dis-
posição cordata, de “dar a todas as classes em geral e particular-
mente à honestidade das famílias, um meio de deleitável instrução
e de ameno recreio”. A intenção emancipadora casa-se com chara-
das, união nacional, figurinos, conhecimentos gerais e folhetins.!É
Caricatura desta seqiiência são os versinhos que servem de epi-
grafe & Marmota na Corte: “Eis a Marmota/ Bem variada/ P'ra
ser de todos/ Sempre estimada.// Fala a verdade,/ Diz o que sente,/
Ama e respeita/ A toda gente”. Se, noutro campo, raspamos um
pouco os nossos muros, mesmo efeito de coisa compésita: “A
transformago arquitetdnica era superficial. Sobre as paredes de
terra, erguidas por escravos, pregavam-se papéis decorativos eu-
ropeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um
ambiente novo, como os interiores das residéncias dos paises em
industrializagio. Em certos exemplos, o fingimento atingia o ab-
surdo: pintavam-se motivos arquitetdnicos greco-romanos — pi-

14Ver o “Prospecto” de O Espelho, nº 1, Revista semanal de literatura, mo-


das, industrias e artes, Rio de Janeiro, Typographia de F. de Paula Brito, 1859, p
1; “Introdução” da Revista Fluminense, ano 1, nº 1, Semanário noticioso, literário,
científico, recreativo etc., etc., novembro de 1868, pp- 1-2; A Marmota na Corte,
Typographia de F. de Paula Brito, 07/09/1840, p. 1; Revista Ilustrada, nº 1, Rio
de Janeiro, publicada por Angelo Agostini, 01/01/1876; “Apresentação” de O
Bezouro, ano 1, nº 1, Folha humorística e satírica, 06/04/1878; “Cavaco”, in O
Cabrião, nº 1, São Paulo, Typ. Imperial, 1866, p. 2. )

22
As idéias fora do lugar

lastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. — com perfeição de pers-


pectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclás-
sica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no
local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas so-
bre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um
exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, es-
cravos e terreiros de serviço”!*”. O trecho refere-se a casas rurais
na Província de São Paulo, segunda metade do século XIX. Quan-
to à corte: “A transformação atendia à mudança dos costumes,
que incluíam agora o uso de objetos mais refinados, de cristais,
louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial,
como maneiras formais de servir & mesa. Ao mesmo tempo con-
feria ao conjunto, que procurava reproduzir a vida das residén-
cias européias, uma aparéncia de veracidade. Desse modo, os
estratos sociais que mais beneficios tiravam de um sistema eco-
ndmico baseado na escravidio e destinado exclusivamente a pro-
dução agricola procuravam criar, para seu uso, artificialmente,
ambientes com caracteristicas urbanas e européias, cuja opera-
ção exigia o afastamento dos escravos ¢ onde tudo ou quase tudo
era produto de importação”!6, Ao vivo esta comédia estd nos
notáveis capítulos iniciais do Quincas Borba. Rubido, herdeiro
recente, é constrangido a trocar o seu escravo crioulo por um
cozinheiro francés e um criado espanhol, perto dos quais não fica
à vontade. Além de ouro e prata, seus metais do coração, apre-
cia agora as estatuetas de bronze — um Fausto e um Mefistófeles
— que são também de prego. Matéria mais solene, mas igual-

15 Neestor Goulart Reis Filho, Arquitetura residencial brasileira no século XIX,


pp. 14-5 (manuscrito). '

16 Nestor Goulart Reis Filho, op. cit, p. 8.

23
Ao vencedoras batatas

mente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República,


escrita em 1890, pelo poeta decadente Medeiros e Albuquerque.
Emoções progressistas a que faltava o natural: “Nós nem cremos
que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre país!” (outro-
ra é dois anos antes, uma vez que a Abolição é de 88). Em 1817,
numa declaração do governo revolucionário de Pernambuco,
mesmo timbre, com intenções opostas: “Patriotas, vossas pro-
priedades inda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sa-
gradas”.*7 Refere-se aos rumores de emancipação, que era preci-
so desfazer, para acalmar os proprietários. Também a vida de Ma-
chado de Assis é um exemplo, na qual se sucedem rapidamente
o jornalista combativo, entusiasta das “inteligências proletárias,
das classes ínfimas”, autor de crônicas e quadrinhas comemora-
tivas, por ocasião do casamento das princesas imperiais, e final-
mente o Cavaleiro e mais tarde Oficial da Ordem da Rosa.'8
Contra isso tudo vai sair a campo Sílvio Romero. “É mister fun-
dar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de
sua força e de seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um ar-
remedo de judas das festas populares que só serve para vergonha
nossa aos olhos do estrangeiro. [...] Só um remédio existe para
tamanho desideratum: — mergulharmo-nos na corrente vivifi-
cante das idéias naturalistas e monísticas, que vão transforman-
do o velho mundo.”!? A distância é tão clara que tem graça a
substituição de um arremedo por outro. Mas é também dramá-

17 E, Viotti da Costa, op. cit., p. 104.


18 Jean-Michel Massa, 4 juventude de Machado de Assis, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1971, pp. 265, 435, 568.
19§, Romero, Ensaios de critica parlamentar, Rio de Janeiro, Moreira, Ma-
ximino & Cia., 1883, p. 15.

24
As idéias fora do lugar

tica, pois assinala quanto era alheia a linguagem na qual se ex-


pressava, inevitavelmente, o nosso desejo de autenticidade. Ao
pastiche romântico iria suceder o naturalista. Enfim, nas revis-/
tas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronun- {
ciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mes- A
ma composição “arlequinal”, para falar com Mário de Andrade:
o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabe-
mos ser o seu contexto. — Consolidada por seu grande papel no
mercado internacional, e mais tarde na política interna, a com-
binação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou impá-
vida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira Re-
pública, e hoje mesmo é matéria de controvérsia e tiros.?º O rit-
mo de nossa vida ideológica, no entanto, foi outro, também ele
determinado pela dependência do país: à distância acompanha-
va os passos da Europa. Note-se, de passagem, que é a ideologia
da independência que vai transformar em defeito esta combina-
ção; bobamente, quando insiste na impossível autonomia cultu-
ral, e profundamente, quando reflete sobre o problema. Tanto
a eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideoló-
gica das “elites” eram parte — a parte que nos toca — da gravi-
tação deste sistema por assim dizer solar, e certamente interna-
cional, que é o capitalismo. Em conseqiiéncia, um latifándio
pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássi-
ca romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa
acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem
social. Seria de supor que aqui perdessem a justeza, o que em parte
se deu. No entanto, vimos que é inevitável este desajuste, ao qual

20 Para as razões desta inércia, ver Celso Furtado, Formação econômica do


Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971.
.

25
Ao vencedor as batatas

estávamos condenados pela máquina do colonialismo, e ao qual,


para que já fique indicado o seu alcance mais que nacional, esta-
va condenada a mesma máquina quando nos produzia. Trata-se
enfim de segredo mui conhecido, embora precariamente teori-
zado. Para as artes, no caso, a solução parece mais fácil, pois sem-
pre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar
ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que refletis-
sem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos re-
íconheccmos. Mas, voltemos atrás. Em resumo, as idéias liberais
| não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis.
Foram postas numa constelação especial, uma constelação prá-
tica, a qual formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso,
pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é
acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte
verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonha-
do diante delas — as idéias mais adiantadas do planeta, ou qua-
se, pois o socialismo já vinha à ordem do dia — e rancoroso, pois
não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgu-
lho, de forma ornamental, como prova de modernidade e dis-
tinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesaram
no Abolicionismo. Submetidas à influência do lugar, sem per-
derem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra
nova, cujas graças, desgraças, ambigiiidades e ilusões eram tam-
bém singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamen-
tos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatali-
dade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utiliza-
ção imprópria dos nomes era a sua natureza. Largamente senti-
do como defeito, bem conhecido mas pouco pensado, este siste-
ma de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideo-
lógica e diminuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o
ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e des-
cansado, e compatível aliás com muito verbalismo. Exacerbado

26
As idéias fora do lugar

um nadinha, dará na força espantosa da visão de Machado de


Assis. Ora, o fundamento deste ceticismo não está seguramente
na exploração refletida dos limites do pensamento liberal. Está,
se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo, que nos
dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não descrevem
nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmada
já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a
natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas
próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam
sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de
arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. As-
sim, o que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre
nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem
utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa
entre outras, muito da época mas desnecessariamente apertada.
Está-se vendo que este chão social é de conseqiiéncia para a his-
tória da cultura: uma gravitação complexa, em que volta e meia
se repete uma constelação na qual a ideologia hegemônica do
Ocidente faz figura derrisória, de mania entre manias. O que é
um modo, também, de indicar o alcance mundial que têm e
podem ter as nossas esquisitices nacionais. Algo de comparável,
talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante desta, ainda
os maiores romances do realismo francês fazem impressão de
ingênuos. Por que razão? Justamente, é que a despeito de sua
intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim como
a moral formalista, faziam no Império Russo efeito de uma ideo-
logia “estrangeira”, e portanto localizada e relativa. De dentro de
seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um
quadro mais complexo. A figura caricata do ocidentalizante, fran-
cófilo ou germanófilo, de nome freqiientemente alegórico e ri-
dículo, os ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram
tudo formas de trazer à cena a modernização que acompanha o

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Ao vencedor as batatas

Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente


lundticos, ladrões, oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas
etc. O sistema de ambigiiidades assim ligadas ao uso local do ideá-
rio burguês — uma das chaves do romance russo — pode ser
comparado àquele que descrevemos para o Brasil. São evidentes
as razões sociais da semelhança. Também na Rússia a moderni-
zação se perdia na imensidão do território e da inércia social, en-
trava em choque com a instituição servil e com seus restos —
choque experimentado como inferioridade e vergonha nacional
por muitos, sem prejuízo de dar a outros um critério para medir
o desvario do progressismo e do individualismo que o Ocidente
impunha e impõe ao mundo. Na exacerbação deste confronto,
em que o progresso é uma desgraça e o atraso uma vergonha, está
uma das raízes profundas da literatura russa. Sem forçar em de-
masia uma comparação desigual, há em Machado — pelas ra-
zÕes que sumariamente procurei apontar — um veio semelhan-
te, algo de Gógol, Dostoiévski, Gontcharov, Tchecov, e de ou-
tros talvez, que não conhego.?! Em suma, a própria desquali-
ficação do pensamento entre nós, que tão amargamente sentía-

?! Para uma constiução rigorosa de nosso problema ideológico, em linha


um pouco diversa desta, ver Paula Beiguelman, Teoria e ação no pensamento aboli-
cionista, primeiro volume de Formação política do Brasil, São Paulo, Pioneira, 1967,
em que há várias citações que parecem sair de um romance russo. Veja-se a seguinte,
de Pereira Barreto: “De um lado estão os abolicionistas, estribados sobre o senti-
mentalismo retórico e armados da merafísica revolucionária, correndo após tipos
abstratos para realizá-los em fórmulas sociais; de outro estão os lavradores, mudos
¢ humilhados, na atitude de quem se reconhece culpado ou medita uma vingança
impossível”. P. Barreto é defensor de uma agricultura científica — é um progres-
sista do café — e neste sentido acha que a abolição deve ser efeito automético do
progresso agrícola. Além de que os negros são uma raça inferior, e é uma desgraça
depender deles. Op. cit., p. 159.

28
As idéias fora do lugar

mos, e que ainda hoje asfixia o estudioso do nosso século XIX,


era uma ponta, um ponto nevralgico por onde passa e se revela
2 histéria mundial22

Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil


põe e repde idéias curopéias, sempre em sentido impréprio. E
nesta qualidade que elas serdo matéria e problema para a litera-
tura. O escritor pode não saber disso, nem precisa para usé-las.
Mas só alcanga uma ressonincia profunda e afinada caso lhes
sinta, registre e desdobre — ou evite — o descentramento € a
desafinação. Se hd um número indefinido de maneiras de fazé-lo,
sio palpéveis e definiveis as contravengdes. Nestas registra-se,
como ingenuidade, tagarelice, estreiteza, servilismo, grosseria etc.,
a eficécia especifica e local de uma alienação de bragos longos —
a falta de transparéncia social, imposta pelo nexo colonial e pela
dependéncia que veio continuá-lo. Isso posto, o leitor pouco fi-
cou sabendo de nossa histéria literdria ou geral, e não situa Ma-
chado de Assis. De que lhe servem então estas pdginas? Em vez
do “panorama” e da idéia correlata de impregnagao pelo ambien-
te, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa,
tentei uma solugio diferente: especificar um mecanismo social,
na forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultu-
ra; uma dificuldade inescapdvel — tal como o Brasil a punha e
repunha aos seus homens cultos, no processo mesmo de sua re-
produgio social. Noutras palavras, uma espécie de chão históri-

22 Antonio Candido langa algumas idéias neste sentido. Procura distinguir


uma linhagem “malandra” em nossa literatura. Veja-se a sua “Dialética da malan-
dragem”, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 8, São Paulo, 1970. Re-
publicado em O discurso e a cídagíe, São Paulo, Duas Cidades, 1993. Também os
pardgrafos sobre a Antropofagia, na “Digessio sentimental sobre Oswald de An-
drade”, in Vários escritos, São Paulo, Duas Cidades, 1970, pp. 84 ss.

29
Ao vencedor as batatas

co, analisado, da experiência intelectual. Pela ordem, procurei ver


na gravitação das idéias um movimento que nos singularizava.
Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no
Brasil as idéias estavam fora de centro, em relação ao seu uso
europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse des-
locamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo
no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia
intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital. Em suma, para
analisar uma originalidade nacional, sensível no dia-a-dia, fomos
levados a refletir sobre o processo da colonização em seu conjunto,
que é internacional. O tic-tac das conversões e reconversões de
liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo pla-
netário. Ora, a gravitação cotidiana das idéias e das perspectivas
práticas é a matéria imediata e natural da literatura, desde o mo-
mento em que as formas fixas tenham perdido a sua vigência para
as artes. Portanto, é o ponto de partida também do romance,
quanto mais do romance realista. Assim, o que estivemos descre-
vendo é a feição exata com que a História mundial, na forma
estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos,
passa para dentro da escrita, em que agora influi pela via interna
— o escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras pala-
vras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado,
que é resultado histórico, e pode ser origem artística. Ao estudá-lo,
vimos que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário.
Portanto a própria diferença, a comparação e a distância fazem
parte de sua definição. Trata-se de uma diferença interna — o
descentramento de que tanto falamos — em que as razões nos
aparecem ora nossas, ora alheias, a uma luz ambígua, de efeito
incerto. Resulta uma química também singular, cujas afinidades
e repugnâncias acompanhamos e exemplificamos um pouco. É
natural, por outro lado, que esse material proponha problemas
originais à literatura que dependa dele. Sem avançarmos por ago-

30
As idéias fora do lugar

ra, digamos apenas que, ao contrário do que geralmente se pen-


sa, a matéria do artista mostra assim não ser informe: é histori-
camente formada, e registrá de algum modo o processo social a
que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez, o escritor
sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta ope-
ração, desta relação com a matéria pré-formada — em que im-
previsível dormita a História — que vão depender profundida-
de, força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm
de automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós,
acertá-las para o romance. E vê-se, variando-se ainda uma vez o
mesmo tema, que embora lidando com o modesto tic-tac de nosso
dia-a-dia, e sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Bra-
sil, o nosso romancista sempre teve como matéria, que ordena
como pode, questões da história mundial; e que não as trata, se
as tratar diretamente.

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