LIVRO Ebook Nas Tramas Da Prisão 2
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Conselho Científico
Afrânio Silva Jardim (UERJ) Jonas Eduardo Gonzalez Lemos (IFRN)
Anne Augusta Alencar Leite (UFPB) Jorge Eduardo Douglas Price (UNCOMAHUE/ARG)
Carlos Wagner Dias Ferreira (UFRN) Flávio Romero Guimarães (UEPB)
Celso Fernandes Campilongo (USP/ PUC-SP) Juliana Magalhães Neuewander (UFRJ)
Diego Duquelsky (UBA) Maria Creusa de Araújo Borges (UFPB)
Dimitre Braga Soares de Carvalho (UFRN) Pierre Souto Maior Coutinho Amorim (ASCES)
Eduardo Ramalho Rabenhorst (UFPB) Raffaele de Giorgi (UNISALENTO/IT)
Germano Ramalho (UEPB) Rodrigo Costa Ferreira (UEPB)
Glauber Salomão Leite (UEPB) Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar (UFAL)
Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Mello Bandeira (IPCA/PT)
Vincenzo Carbone (UNINT/IT)
Gustavo Barbosa Mesquita Batista (UFPB) Vincenzo Milittelo (UNIPA/IT)
Expediente EDUEPB
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Jefferson Ricardo Lima Araujo Nunes | Design Gráfico e Editoração
Leonardo Ramos Araujo | Design Gráfico e Editoração
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Campina Grande - PB
2020
Estado da Paraíba
João Azevêdo Lins Filho | Governador
Ana Lígia Costa Feliciano | Vice-governadora
Estado da Paraíba
Nonato Bandeira | Secretário da Comunicação Institucional
João Azevêdo Lins Filho | Governador
Claudio Benedito Silva Furtado| Secretário da Educação e da Ciência e Tecnologia
Ana LígiaRamos
Damião Costa Feliciano
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Vice-governadora
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Nonato Bandeira | Secretário da Comunicação Institucional
EPC - Benedito
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Furtado| Secretário da Educação e da Ciência e Tecnologia
Damião
Naná GarcezRamos Cavalcanti
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Diretora Presidente
William Pereira Costa | Diretor de Mídia Impressa
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Macedo| Gerente da Editora A União
Albiegede
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Fernandes
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Alexandre Macedo| Gerente da Editora A União
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BR 101 - KM 03 - Distrito Fernandes- João
| Diretora de Rádio
Pessoa-PB e TV 58.082-010
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101na- KM 03 - Distrito
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Nacional, confome - João
Lei nºPessoa-PB
10.994, de- 14
CEP:
de58.082-010
dezembro de 2004.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA HELIANE MARIA IDALINO SILVA - CRB-15ª/368
Copyright © EDUEPB
A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui
violação da Lei nº 9.610/98.
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violação da Lei nº 9.610/98.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO, 7
CAPÍTULO 1
UMA NARRATIVA SOBRE O PRESÍDIO SERROTÃO: A RELA-
ÇÃO DE CONFIANÇA ENTRE PRESOS E FUNCIONÁRIOS ,
30
CAPÍTULO 2
ASPECTOS MULTIFACETADOS DO TRÁFICO DE DROGAS
DENTRO DO PRESÍDIO DO SERROTÃO, 40
CAPÍTULO 3
ASPECTOS DE GÊNERO E OS DANOS PSICOSSOCIAIS SO-
FRIDOS PELAS MULHERES NO CÁRCERE, 59
CAPÍTULO 4
MÃOS À OBRA: OS PRESOS E O TRABALHO NA PENITEN-
CIÁRIA DO SERROTÃO, 87
CAPÍTULO 5
CORPOS NA PRISÃO: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE
A EXPERIÊNCIA DE MULHERES ENCARCERADAS , 108
CAPÍTULO 6
A LEITURA QUE LIBERTA: UMA ANÁLISE SOBRE A
POSSIBLIDADE DA RESSOCIALIÇÃO PELO ESTUDO, 132
CAPÍTULO7
A REINVENÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS NO ENTORNO
DO PRESÍDIO DO SERROTÃO, 153
CAPÍTULO 8
CORPOS DEMARCADOS, CORPOS CONDENADOS: O
CÓDIGO DAS TATUAGENS E OS MICROPODERES PRISIO-
NAIS, 175
CAPÍTULO 9
O USO DOS RECURSOS DO FUNDO PENITENCIÁRIO
NACIONAL – FUNPEN E A SUPERLOTAÇÃO DO SISTEMA
PRISIONAL NO BRASIL, 198
APRESENTAÇÃO
Vanderlan Silva
Valdeci Feliciano Gomes
7
como elemento constituinte da vida em sociedade. Portanto, o con-
flito não é um incidente, uma imprevisibilidade, um evento fortuito,
fruto do acaso. Ao contrário, ele é basilar na configuração das relações
humanas.
Embora esteja na base das relações, sua emergência é resultado de
motivações plurais que concorrem para seu surgimento. E, como fenô-
meno sociológico, ele traz em si uma dupla potencialidade, de destruir
dada realidade e de criar condições para fazer emergir novos arranjos
sociais, a partir das transformações produzidas no processo “conflitual”.
Existe uma sútil, porém importante diferença conceitual entre con-
flito e violência. O primeiro emerge nas relações de forma espontânea,
por exemplo, quando dois indivíduos desejam um mesmo objeto. O
conflito é latente, inconsciente e pode assim permanecer por muito
tempo, sem que os indivíduos optem por mudar seu estado. Mas ele
pode ser igualmente reconhecido, consciente, sem que os atores sociais
que o produzem se mobilizem para se enfrentarem na busca de solu-
ções. A violência, por sua vez, se produz a partir da intenção e dos meios
aos quais os indivíduos recorrem para resolver as ‘pendências’ entre eles.
Em outras palavras, ela existe quando os sujeitos e/ou grupos procuram
fazer uso de ações, de estratégias para exercerem domínio sobre outros,
levando-os a agirem contra suas vontades. Muitos acreditam que a vio-
lência só existe quando a força física é empregada. Essa certamente é
sua forma mais visível. Contudo, suas expressões são múltiplas e podem
ser nomeadas, grosso modo, de duas maneiras: física e simbólica.
A violência nas suas mais variadas formas de expressão se constitui
como poder, no sentido bourdesiano.
8
O adágio popular segundo o qual “há males que vêm para o bem”
exprime bem a dualidade a partir da qual a violência se produz. Ela
pode ser um mal ou um bem, depende do ponto de vista de quem é be-
neficiário ou vítima. Para estudiosos do fenômeno tais como Chesnais
(1981), Maffesoli, (2001) e Elias (1994), a violência não é em si mesma
negativa nem positiva, pois sua definição depende do uso que é feito e
do grau de racionalidade que seus praticantes reivindicam, em conso-
nância com as armas que escolhem.
Portanto, é preciso que se diga que não existem sociedades, nem
grupos, tampouco indivíduos que não sejam violentos. Em regra (e po-
tencial), todos o são, o que varia é a frequência e as formas de expressão
a partir das quais procuram impor suas vontades aos adversários e ini-
migos. Enquanto fenômeno humano, a violência exprime bem a duali-
dade de sua formação no limiar entre natureza (agressividade, também
comum aos animais) e cultura (regras).
Como observado em linhas anteriores, não é possível escapar, viver
sem violência. Contudo, não mantê-la sob controle é correr o risco
de não mais existir vida social. Mas como controlá-la? Quais forças,
que mecanismos podem ser utilizados para conter fenômeno que se
emprega de tantos meios para emergir e se expressar? Paradoxalmente,
a resposta a tais questões não está longe do nosso fenômeno mor, ou
melhor, é o próprio fenômeno que serve como antídoto, como forma
de controle.
A instituição sobre a qual nos debruçamos nesta introdução e ao
longo desse livro é uma forma moderna e legal desse antídoto, que
combina de maneira intermitente a possibilidade dos usos de violência
física2 e simbólica. A Penitenciária Regional de Campina Grande Rai-
mundo Asfora, também conhecida como Penitenciária do Serrotão, em
referência ao bairro no qual se situa e como será doravante nomeada
nesse texto, faz parte de um complexo3 penitenciário que congrega além
2 Em geral, as forças policiais preferem afirmar que empregam energia nas ações em
que a força física ganha proeminência. É uma maneira de reconhecer implicita-
mente os perigos da violência.
3 A maior parte da obra teve como campo de pesquisa a Penitenciária Raimundo As-
fora e dois capítulos são dedicados à Penitenciária Feminina. Os números de presos
nas referidas penitenciárias, em dezembro de 2019, eram os seguintes: Penitenciária
9
dela, a Penitenciária Regional Padrão de Campina Grande (Máxima) e
a Penitenciária Feminina de Campina Grande.
No cotidiano das relações penitenciárias, assim como se produzem
conflitos, igualmente se constroem momentos relacionais nos quais im-
pera a camaradagem, a cordialidade e, em certos casos, estabelecem-se
laços de amizade. Ali como alhures, as relações precisam ser (re)cons-
truídas, no dia a dia, com bases nos múltiplos referenciais de poder,
hierarquia, tempo de vivência na instituição etc. Tudo isso faz da pe-
nitenciária um lugar a ser conhecido e praticado para quem nela chega
na condição de condenado pela Justiça, de policial, de agente peniten-
ciário, de funcionário público ou de pesquisador que deseja conhecer e
decifrar os valores e práticas que ali ganham vida no dia a dia.
10
No sistema penitenciário brasileiro, a situação se agravou em pro-
porções alarmantes. Em 1990, a taxa5 de aprisionamento, no país, era
de 61 pessoas para grupo de cem mil habitantes, trinta anos depois
essa taxa chegou a 359,40 pessoas presas por grupo de referência. Em
números absolutos, no início da década de noventa do século passado,
o país tinha 906 mil presos; no final de 2019, esses números chegaram a
748.009 pessoas em situação de aprisionamento.
Visto de maneira crua, unívoca, sem esquecer as múltiplas variá-
veis que contribuem para o aumento vertiginoso do aprisionamento
no país sejam consideradas, especialmente nas últimas duas décadas,
constata-se que a sociedade brasileira se tornou mais violenta ao lon-
go desse período. E, de fato, ela vem sendo palco de muitos conflitos
sociais com a emergência de novos sujeitos e pautas reivindicatórias,
cuja busca por direitos tem transformado ruas, escolas, igrejas, famílias,
parlamentos e presídios em palcos de disputas entre os mais distintos
grupos sociais. No campo da violência urbana, a figura do Estado, que
por princípio jurídico deveria ser o principal agente na sua prevenção e
contenção, tem sido um dos protagonistas na produção de ‘descontrole’
da violência urbana que ora vivemos, seja por negligência na prevenção,
seja como agente promotor, cujas ações de várias polícias nos estados
brasileiros, especialmente as militares, contribuem sobremaneira para
os altos índices de letalidade; seja ainda por causa da inércia política e
administrativa na apuração e resolução dos casos de violência homici-
da, fazendo com que mais de 90% dos crimes de homicídios não sejam
esclarecidos e, por conseguinte, seus perpetradores não sejam punidos.
E, neste caso, a inércia estatal expressa uma clara decisão política de não
agir para apurar a maioria dos casos de homicídios no país. Por quê?
Mas é preciso que se diga que a sociedade reagiu a esse crescimento
de violência com sua face estatal punitiva contra os segmentos mais
pobres, negros e marginalizados da população. Entre 1990 e 2019, a po-
pulação encarcerada cresceu 8,3 vezes, como atestam os dados oficiais.
5 https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZTlkZGJjODQtNmJlMi00OTJhLW-
FlMDktNzRlNmFkNTM0MWI3IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtND-
NmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: junho de 2020.
6 https://www.justica.gov.br/news/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-
terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf. Acesso em: 10 de junho de 2020.
11
No mesmo período, o crescimento populacional7, observado entre 1991
e 2020, foi de 44%.
Os números e as diferenças entre eles certamente não falam por
si mesmos, mas exprimem os caminhos escolhidos pelos segmentos
empoderados da sociedade brasileira para controlar as disputas sociais
ocorridas durante tal período, inclusive os entreveros violentos.
Os níveis de concentração de renda econômica e de acesso aos
principais bem de consumo materiais e simbólicos permanecem inal-
terados há décadas no país. Mesmo com a população crescendo, a alta
concentração de poder nas mãos de poucas famílias ou grupos sociais
tem se intensificado, de acordo com o que mostram estudos8 de orga-
nismos internacionais. As políticas públicas de transferência de renda
ou de apoio às famílias mais pobres implementadas pelo governo de
centro-esquerda nos quatorze anos (2002-2016) que esteve à frente do
Executivo Federal, mesmo merecendo inúmeros elogios de entidades
internacionais, a exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU),
internamente foram fortemente atacadas pelos segmentos conservado-
res, entre os quais se destacam a grande mídia controlada por cinco
famílias; os grandes empresários e segmentos da classe média, quase
sempre rancorosos e com temor de serem transformados em pobres.
Programas como Bolsa Família, Pró-jovem, Mais Médicos, de ações
afirmativas nas universidades e Estudantes Sem Fronteiras foram lar-
gamente atacados por preconceitos de classe que procuraram transfor-
mar muitos desses em objeto de ações policiais e judiciais, pois em
muitos casos os segmentos mais conservadores, cujo sonho de visitar
a Disneylândia e postar fotos das redes virtuais para demonstrar que
‘venceram na vida’, mesmo que o valor da viagem tenha sido dividido
no cartão de crédito em parcelas a perder de vista, não toleram ter que
dividir o lugar no aeroporto ou as cadeiras na universidade com pessoas
cuja cor da pele, a imagem física e os comportamentos denunciam o
pertencimento ao andar de baixo da sociedade brasileira. Quem não se
12
lembra da triste frase da professora9 universitária carioca, que postou
foto em rede virtual com a imagem de um senhor de short no aeroporto
Santos Dumont, na qual se perguntava, ironicamente, se ali era aero-
porto ou rodoviária. Esse evento é representativo das práticas cotidianas
de parte dos segmentos privilegiados que cada vez mais procuram se
desresponsabilizar dos espaços públicos, autoisolando-se em lugares re-
gidos pela lógica privada de vigilância, tais como condomínios de mo-
radia, shopping centers, clubes de lazer privados, na mesma proporção
que passam a considerar os espaços públicos, tais como ruas e praças
como lugares perigosos, frequentados por gente de igual quilate.
Esse não é um movimento exclusivo do Brasil. Os estudos de Wac-
quant (2001) e Caldeira (2001) mostram como as políticas neoliberais, a
partir dos anos noventa do século passado, vêm estimulando o processo
autoinclusão dos segmentos médios e altos nos “enclaves fortificados”,
ao passo que estimulam o controle e aprisionamento dos segmentos po-
bres, habituais frequentadores das ruas e dos espaços não fortificados.
Tal processo se observa nos principais países ocidentais, onde as po-
pulações pobres são excluídas das benesses do capitalismo e constante-
mente apontadas pelos ‘donos do poder’ de serem segmentos perigo-
sos. Vitimados pela violência estrutural das desigualdades econômicas,
sociais e raciais que perduram, no Brasil, há séculos, os mais pobres
se veem excluídos ou com acesso restrito às instâncias estatais de reso-
lução de conflitos, não por acaso, são os mais atingidos pela violência
urbana que nos atinge no Brasil e no resto do mundo. E, pelo que se
pode supor, são também seus membros os principais responsáveis pela
violência miúda do cotidiano, aí incluídas as práticas homicidas, que de
menor nada têm, pois ceifam vidas.
As práticas de violência cotidiana praticadas pelos segmentos mais
pobres da população não são necessariamente mais agressivas do que as
exercidas pelas classes médias e abastadas. Em seu estudo sobre o pro-
cesso de ‘refinamento’ dos costumes no ocidente, Elias (1994) observa
que os costumes nas sociedades ocidentais modernas que fazem uso
das expressões diretas e físicas da violência foram sendo paulatinamen-
te desestimulados junto aos segmentos considerados privilegiados do
9 https://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/02/professora-da-puc-debocha-de
-passageiros-pobres-em-aeroporto.html.
13
ponto de vista econômico e social. De modo que aqueles que recorriam
às práticas da violência física passaram a ser vistos como não refinados,
brutos. Na mesma perspectiva, Chesnais (1981) mostra bem como a in-
tolerância entre os segmentos médios e altos da população contra o uso
da violência física cresceu consideravelmente nas sociedades modernas
durante os últimos séculos.
A violência é um instrumento que serve para resolver problemas,
como bem observou Arendt (2009). Portanto, não se trata de ser menos
ou mais violento, mas de usar instrumentos diferentes e que, de acordo
com contextos históricos e sociais, são mais tolerados ou menos deseja-
dos, como já observado. Para exemplificar, vejamos dois exemplos das
mudanças produzidas nas sensibilidades de parte das populações mo-
dernas nas últimas décadas: o primeiro deles trata da violência contra as
mulheres e o segundo aborda as práticas recorrentes de violência entre
pares nas escolas. Até meados do século XX, no Brasil assim como em
vários países, a violência de gênero praticada contra as esposas era tole-
rada pelo conjunto da sociedade e o arcabouço jurídico brasileiro não
previa nenhuma penalidade específica para tais casos, ao contrário, eles
eram considerados pelas autoridades policiais e judiciais como sendo
de caráter privado, sobre a qual o Estado não deveria ter interferência.
Muitas décadas se passaram desde que os primeiros gritos de intolerân-
cia contra tais práticas foram dados até que tal violência fosse tipificada
como crime, especialmente pela lei Maria da Penha. Obviamente, a
existência da lei não é fruto do acaso, mas resultado de lutas que muitos
movimentos sociais organizados travaram no seio da sociedade, a exem-
plo da luta dos movimentos feministas para que os crimes praticados
contra as mulheres pudessem ter previsão legal de punição.
Processo semelhante de intolerância contra determinada expressão
da violência pode ser observado nos casos das práticas recorrentes de
violência entre estudantes, também conhecido como bullying. Até o
início da década de setenta do século passado, não havia nenhum con-
ceito que explicasse tais eventos como violência. Muitos os conside-
ravam como brincadeiras entre crianças que literalmente queriam se
divertir. Uma professora universitária, que aqui chamaremos de Lolita,
que na década citada era estudante do ensino fundamental, coteja sua
experiência com a das crianças de hoje, afirmando através das redes
14
digitais: “Os meninos hoje sofrem por tudo. Não podem mais sofrer
uma reclamação. A gente levava cacete e piada”. A afirmação da docente
valoriza as práticas violentas de outrora como sinais de fortaleza dos
estudantes de sua geração e paralelamente acusa de fraqueza a gera-
ção atual. Tal perspectiva se associa à lógica daqueles que causavam ou
causam sofrimento nos outros. Para quem é vítima de preconceito das
mais variadas ordens ou é atingido por agressões físicas e psicológicas
o bullying ou práticas recorrentes de violência entre estudantes, como
bem definiu Olweus (1993) são fontes de violência que causam sofri-
mentos físicos e psíquicos.
A complacência da professora não é uma prática incomum entre
muitos dos que veem exagero nas novas sensibilidades que se produzi-
ram, nas últimas décadas, no tocante à diminuição do grau de aceitação
do uso da violência física. Nesse sentido, não é raro encontrar homens
que se opõem às leis que estabelecem proteções às vítimas das práticas
machistas e misóginas que diariamente recaem sobre milhares de mu-
lheres no Brasil e no mundo.
É preciso destacar que essas novas sensibilidades não atingem a to-
dos os segmentos sociais, aí incluídos classes, grupos raciais, religiosos,
geracionais etc., da mesma maneira nem com intensidades semelhan-
tes. Por muitas razões, a violência urbana brasileira é menos aceita, tole-
rada ou até autorizada dependendo dos grupos sociais e dos indivíduos
e grupos que ela atinge, bem como de quem a perpetra. Por que o
genocídio da população jovem e negra que ocorre, no Brasil, não tem
suscitado clamor nacional por parte dos segmentos brancos de classe
média e da grande mídia nacional? Por que a violência de gênero que
barbariza a vida de muitas mulheres a cada instante teima em persistir
em números crescentes? Ainda, por que a violência estrutural que cria
condições desumanas nas penitenciárias e presídios brasileiros não me-
rece ações permanentes de combate às situações de degradação da vida
humana que os encarcerados enfrentam diariamente?
Quando o praticante de delito é oriundo dos segmentos privile-
giados, o tratamento dispensado por setores influentes da sociedade,
incluindo-se parte considerável da mídia, muda. Os exemplos de be-
nevolência se multiplicam. Vejamos alguns: O Portal G1 de 21 de feve-
reiro de 2020 apresenta o seguinte título de reportagem “Estudante de
15
medicina é preso com 42 kg de cocaína e 16 kg de crack escondidos em
carro na BR-277, diz PRF”10. No dia 24 de abril deste ano, o mesmo
portal trazia reportagem de Itapetininga e Região na qual destacava:
“Traficante que escondia drogas em pé de mamona é preso em Tatuí”11.
No texto da reportagem, as informações colhidas junto à Polícia Mili-
tar revelam que o homem de 25 anos foi preso tendo em sua posse R$
80,00 e 90 pedras de crack, tendo inclusive uma foto para demonstrar
a apreensão do material. No dia 1º de maio de 2020, o mesmo Portal
anunciava que em Caruaru “Estudante de direito é preso por tráfico de
drogas em Floresta, diz polícia; com ele foram encontrados 34 kg de
maconha”12.
As três reportagens trazem informações sobre práticas delituosas
cujas acusações recaem sobre três suspeitos. Nisso, eles parecem estar
em pé de igualdade: são suspeitos de terem praticado crime de tráfico
de drogas. A pergunta que se impõe é: Por que então o mesmo portal
do órgão jornalístico os trata de maneiras diferentes? A primeira repor-
tagem mostra a apreensão de 42 kg de cocaína e de 16 de crack. A se-
gunda revela a apreensão de noventa pedras de crack, além de R$ 80,00.
Já a terceira nos mostra que foram apreendidos 34 kg de maconha. Se
fizermos um exercício para imaginar a distribuição desses quantitati-
vos junto aos usuários, quais desses suspeitos terá maior potencial de
atingir mais pessoas? Qual deles tem menor potencial? Curiosamente a
reportagem indica como “traficante”, em seu título, o que teve menos
droga apreendida consigo. Os demais aparecem como “estudantes”.
As leituras feitas pelos jornalistas que assinam as matérias não são
ingênuas nem despretensiosas. Elas são frutos das maneiras de sentir,
interpretar e apresentar o mundo que os cerca. Os contextos das prisões
10 https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2020/02/21/estudante-de-medici-
na-e-preso-com-42-kg-de-cocaina-e-16-kg-de-crack-escondidos-em-carro-na-br-
277-diz-prf.ghtml. Acesso em: junho 2020.
11 https://g1.globo.com/sp/itapetininga-regiao/noticia/2020/04/28/traficante-que
-escondia-drogas-em-pe-de-mamona-e-preso-em-tatui.ghtml Acesso em: junho
2020.
12 https://g1.globo.com/pe/caruaru-regiao/noticia/2020/05/01/estudante-de-direito
-e-detido-com-34-kg-de-maconha-e-tres-radio-comunicadores-em-floresta.ghtml
Acesso em: junho em 6 de junho de 2020.
16
são descritos de modo a revelar os lugares sociais de pertencimentos dos
suspeitos. Os substantivos não aparecem nos títulos de modo gratuito.
Estudante é alguém que tem como atividade primordial produzir algo
importante para si e para a sociedade. E traficante? De maneira subli-
minar os títulos e, por conseguinte, as reportagens propõem modos de
ler, de sentir os acontecimentos e a vida dos praticantes. A ação de tráfi-
co é apresentada como algo fortuito, ocasional nas vidas dos estudantes.
Uma derrapagem, uma besteira praticada por gente com futuro garan-
tido. E a vida do homem classificado como traficante pela reportagem?
No seu seminal estudo sobre prisões, Foucault já observou que os
distintos grupos sociais têm indivíduos com práticas desviantes, no li-
mite: criminosas, e que todos têm reservados para si lugares que come-
çam com P. Para os ricos e privilegiados o poder, em suas mais variadas
instâncias. Para os pobres e marginalizados, a prisão.
Recorramos a mais um exemplo ilustrativo. No dia 21 de janeiro de
2017, durante uma blitz na cidade de João Pessoa, o motorista Rodol-
pho Carlos13 após receber ordem para estacionar o seu carro porsche,
acelerou para fugir da abordagem dos agentes de trânsito. Na fuga,
atropelou um agente de trânsito, que veio a óbito no dia seguinte. As
disputas judiciais que ocorreram nas horas seguintes são reveladoras das
tramas políticas no estado da Paraíba e, evidentemente, de como são
tratados os filhos das elites quando cometem crimes. Na mesma noite
em que fugiu sem prestar socorro, o motorista teve sua prisão decre-
tada por uma juíza plantonista. Horas depois, durante a madrugada,
um desembargador do Tribunal do Estado revogou a prisão temporária
decretada e lhe concedeu salvo-conduto. Na justificativa que embasou
sua decisão o desembargador anotou que ele não possuía antecedentes
criminais.
Coincidências (não tão) à parte, Rodolpho Carlos vem a ser neto de
um dos principais empresários do ramo das comunicações e de gêneros
alimentícios no Estado. Consta ainda no currículo do avô que foi vice-
governador da Paraíba (1983-1986) e senador (1996-1999).
Na esteira dos debates que se produziram sobre o tema, as palavras do
advogado Olímpio Rocha exprimem bem as configurações produzidas
13 http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2017/01/carro-fura-blitz-e-atropela-agen-
te-da-lei-seca-em-joao-pessoa.html.
17
pelas teias sociais que distinguem “uns dos outros”, cujas tessituras aju-
dam a compor e são compostas também por decisões judiciais.
18
os presos se veem forçados a fazer rodízio para dormir ‘deitados’, en-
quanto outros ficam em pé por causa da insuficiência de espaço para
todos repousarem ao mesmo tempo.
O referido documento publicado no governo de Bolsonaro omite
dados referentes à raça e renda dos presos brasileiros. Entretanto, outras
fontes oficiais trazem números a partir dos quais podemos vislumbrar
a incidência das populações negras e brancas nas prisões brasileiras.
Segundo a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputa-
dos,16 os presos negros (pretos e pardos) compõem 61,7% da população
prisional; os brancos representam 37,22% nesse universo. O quadro se
inverte quando observamos a representação desses segmentos na popu-
lação geral, em que os negros são 53,63% e os brancos 45,48%. Ainda
segundo a mesma fonte, 75% dos presos brasileiros estudaram até o
ensino fundamental.
Esses dados são reveladores do quadro estrutural de injustiças sociais
produzidas no Brasil, que aprisiona massivamente os segmentos mais
vulneráveis da população, com destaque para os jovens negros, pobres,
com baixos índices de escolaridade e baixa (ou nenhuma) qualifica-
ção profissional. Não se trata de defender que os presos condenados
e oriundos desses segmentos sejam inocentes, longe disso. Trata-se de
demonstrar como os segmentos das elites brasileiras, inclusive através
de suas representações nas instâncias judiciais, têm predileção por apri-
sionar e condenar prioritariamente indivíduos dos segmentos mais vul-
neráveis, tal como indicam as palavras do advogado Olympio Rocha e o
estudo de Adorno (1995), além dos dados oficiais aqui elencados.
Dentre os vulneráveis, as mulheres parecem ocupar os lugares mais
baixos dentre os que chegam à penitenciária na condição de presos,
provisórios ou condenados. São elas que mais sofrem, que veem o aban-
dono de companheiros e familiares se produzir de maneira dura, cruel.
Em muitos casos, só resta a solidariedade da mãe. Como demonstra a
pesquisa realizada por Jaqueline dos Santos e presente nesta coletânea,
menos de 5% das presas na Penitenciária feminina do Serrotão recebiam
visitas.
No universo masculino, a prisão parece macular a honra social,
16 https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoespermanen-
tes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao.
19
imputando ao condenado a classificação de delinquente, uma forma de
controle social que tende a ser utilizada contra ele ao longo de sua exis-
tência, como observou Foucault (2014). No caso do gênero feminino, a
transformação em prisioneira parece igualmente afrontar certo ideal de
mulher que tende a situá-la como conciliadora, defensora da paz e dos
bons costumes. Ideal tão largamente utilizado no ideário cristão.
A tese de Vanuza Silva (2014) cuja pesquisa foi desenvolvida na Pe-
nitenciária Feminina do Serrotão demonstra bem os sofrimentos pelos
quais as mulheres passam no interior das prisões. Permitimo-nos fazer
uso de um extrato da tese. Trecho cuja leveza poética não nos impede
de imaginar as dores sentidas pelas mulheres no deserto da solidão, no
cume da serra campinense.
20
se olhar, como se a memória precisasse daquele mo-
mento para se eternizar, para fotografar um instante
improvisado, esperado. Mal sabiam, mãe e filha, que
aquele era o último encontro, o último olhar, mas não
as últimas lágrimas daquela mãe, agora prisioneira da
saudade e da solidão. A presa dessa história é Ana Ma-
ria, uma das jovens mortas no incêndio... (SILVA,
2014, p. 180).
21
grau parte do cotidiano institucional, impondo, por exemplo, em quais
celas presos devem ‘morar’ ou resolvendo entreveros entre os internos?
22
de muitos de seus membros em decorrência da progressão de regime
(ou de fugas) e as alianças estabelecidas com parceiros fora dos muros
da prisão fizeram com que o PCC expandisse sua atuação para vários
ramos no mundo criminal, sendo hoje, inclusive, uma das principais
organizações que traficam drogas na América Latina, tendo criado o
Primeiro Cartel da Capital17, em referência a sua forte atuação no mun-
do das drogas.
Os impactos, estragos e traumas provocados pelo PCC, principal-
mente na capital paulista, com reflexos em todo o país, são amplamente
conhecidos de todos nós brasileiros. Se aqui invocamos a atuação desta
organização é para mostrar que em meio ao funcionamento cotidiano
dessa instituição total se produzem espaços e possibilidades (positivas
e negativas) não desejadas nem previstas pelas autoridades penitenci-
árias, judiciárias e policiais, bem como pelas normas internas de cada
unidade prisional.
O surgimento de tais possibilidades se vincula à atuação dos indi-
víduos e grupos que compõem o cotidiano penitenciário, desde os que
estão diretamente vinculados ao seu funcionamento: dirigentes, agen-
tes penitenciários, funcionários, até os que mantêm vínculos ‘externos’:
policiais responsáveis pela vigilância externa, judiciário, familiares,
amigos, etc. São as maneiras como esses atores sociais agem, reagem
e estabelecem relações que tornam cada penitenciária única, plena de
desafios para quem nela vive e trabalha. Ao mesmo tempo, coloca-se
como desafio para todos os que têm interesse em analisar e compreen-
der cientificamente a dinamicidade das relações ali estabelecidas.
Este livro é resultado do enfrentamento desse desafio por parte
de vários pesquisadores em compreender as configurações relacionais
estabelecidas no complexo Penitenciário do Serrotão em Campina
Grande-PB. Em sua maioria os textos aqui apresentados em forma de
capítulo foram produzidos com base em pesquisas desenvolvidas em
nível de mestrado, especialização ou como trabalho de conclusão de
curso. A pluralidade de perspectivas reflete a diversidade da formação
17 O Portal de Notícias UOL produziu documentário que leva este nome, no
qual mostra a atuação do PCC na venda de drogas no Brasil e em outros pa-
íses da América Latina. Ele pode ser acessado em https://www.youtube.com/
watch?v=ZJ1odbHDWPU.
23
e de atuação profissional deles. São advogados, professores, comunicó-
logos, policiais, agente penitenciário, socióloga, psicóloga, antropólogo
e historiador.
A riqueza das análises apresentadas favorece a compreensão das
multiplicidades relacionais que vem à luz no dia a dia no complexo
penitenciário do Serrotão. A direção sobre a qual os olhares analíticos
se debruçaram é outro ponto que merece ser destacado. Até onde vai
nosso conhecimento, essa é a primeira obra coletiva a se dedicar exclu-
sivamente à análise das relações sociais no complexo do Serrotão. As
muitas pesquisas empreendidas pelos autores dos capítulos deste livro
fizeram verdadeiras radiografias, escaneamentos das relações cotidianas
no interior de duas das três unidades que compõem o complexo. E, tal
como nos dados captados pelos instrumentos utilizados pela medicina
(scanner e aparelhos de radiografia), dos quais nos servimos aqui de
modo metafórico, as imagens reveladas precisam ser interpretadas, seja
a partir das condições que contribuíram para suas emergências, seja
considerando as consequências produzidas. As pesquisas que origina-
ram este livro foram empreendidas, em boa parte dos casos, a partir de
observações minuciosas do cotidiano dos internos e das internas. Al-
gumas dessas pesquisas merecem ser chamadas de etnográficas, mesmo
que seus autores não reivindiquem tal nomenclatura.
As análises produzidas a partir de olhares aprofundados sobre dis-
tintas temáticas e sujeitos concentram a riqueza desta obra, que está
organizada em nove capítulos.
O primeiro capítulo, “Uma narrativa sobre o presídio Serrotão: a re-
lação de confiança entre presos e funcionários”, escrita pelo jornalista e
policial civil Saulo da Silva Nunes, traz relatos de sua experiência como
agente penitenciário. Escrito com leveza e competência, é revelador das
relações estabelecidas entre dois dos principais personagens do univer-
so penitenciário. Em meio a essas, alguns presos se constituem como
de “confiança” (mesmo que “preso seja preso”) de agentes e diretores,
com a possibilidade de receber em retribuição a chance de trabalhar e
frequentar churrasco fora da prisão. Nem sempre a prisão é um lugar
indesejado, por vezes é o único possível na vida do interno. A porosida-
de e a complexidade desse universo se revelam nas relações que vários
atores sociais tecem entre si.
24
O segundo capítulo, intitulado “Por trás das lentes do scanner: a
realidade do tráfico de drogas dentro dos presídios” escrito em parceria
por Melissa Piano Montenegro e Valdeci Feliciano, apresenta e discute
as tentativas de controle sobre as muitas tentativas de entrada de dro-
gas ilícitas na penitenciária, empreendidas por presos. Muitas são as
situações criadas por pessoas que frequentam a unidade prisional para
fazer com que as drogas possam chegar até as mãos dos usuários que se
encontram em situação de prisão, algumas revelam a criatividade desses
atores sociais. No outro polo, encontram-se as práticas dos agentes que
procuram a todo custo impedir a entrada de entorpecentes na prisão.
O terceiro capítulo, produzido por Jaqueline dos Santos, intitula-se
"Aspectos de gênero e os danos psicossociais sofridos pelas mulheres no
cárcere" no qual a autora mostra a crueldade do mundo prisional para
as mulheres, pois a penitenciária foi planejada e é direcionada para o
gênero masculino. Por exemplo, os banheiros, cujas privadas encrava-
das no chão exigem dessas mulheres (grávidas) esforços excepcionais
para que façam uso. Privadas da liberdade e de itens básicos, tais como
absorventes, elas são abandonadas também por familiares e amigos.
Apenas 4% recebem visitas. "A presa perde muito mais do que a sua
liberdade. Perde sua dignidade e acaba se sentindo um nada". Observa
a autora num dos momentos marcantes do capítulo.
O capítulo subsequente, “Uma análise da in(eficácia) da ressociali-
zação pelo trabalho no Presídio do Serrotão em Campina Grande-PB”
de autoria de André de Araújo Vieira e Valdeci Feliciano Gomes. Nele,
os autores discutem as condições sociais que ajudam a produzir uma
leva de indivíduos em potenciais criminosos, dos quais muitos caem na
prisão. No interior dela, o trabalho surge como possibilidade de mos-
trar que a recuperação está acelerada. Ilusão, pois o trabalho realizado
por eles (limpeza, cozinha, horta, manutenção predial) serve antes para
transformar alguns em presos de “confiança”, distinguindo-os da massa
carcerária. Assim, o trabalho interno cumpre sua missão, de ajudar a
manter o controle sobre os presos.
No capítulo cinco, escrito por Nadjaria Kalyenne de Lima Antero e
um dos organizadores deste livro, cujo título “Corpos na prisão: Um es-
tudo etnográfico sobre a experiência de mulheres encarceradas” traz re-
flexões sobre como as mulheres lidam com seus corpos na penitenciária
25
feminina. A partir de observações feitas in loco e de entrevistas realiza-
das com internas, procuramos refletir sobre as transformações sofridas
pelos corpos femininos num lugar de tantas carências, mas também de
reinvenções, de alternativas criadas para a alimentação, plantação de
hortas, maquiagem, produção de penteados, desenhar tatuagens nos
corpos, etc. Nele, buscamos compreender como as mulheres aprisiona-
das (sobre)vivem, (re)inventam-se a partir de seus corpos.
O sexto capítulo, “A leitura que liberta: uma análise sobre a pos-
sibilidade da ressocialização pelo estudo”, de Caíque Renan Azevedo
Batista e Camilo Lélis Diniz de Farias, mostra, a partir de dados empí-
ricos, as evidências daquilo que Foucault (2014) e Wacquant (2001) já
tinham denunciado em outros contextos. 90% dos presos do Serrotão
são negros. O que dizer? 77% não tinham ensino fundamental. A prisão
é reservada aos indivíduos pobres, negros, semialfabetizados. Em uma
palavra: despossuídos. Nesse universo, a ressocialização se concretiza
como forma de controle, pois a penitenciária é uma coluna de susten-
tação do sistema político e econômico que segrega, controla e pune
negros pobres das periferias brasileiras.
No sétimo capítulo temos “A reinvenção do tráfico de drogas no
entorno do presídio do Serrotão” de Charles Dayan Ramos Targino e
Valdeci Feliciano. Neste instigante texto, os autores mostram as alter-
nativas criadas pelos presos para fazer chegar até o interior da prisão
drogas, telefones celulares, carregadores e chips. Alguns desses entram
com ajuda de familiares, amigos, agentes, mas outros chegam através
do auxílio de gatos, garfos, cordões arremessados sobre o muro e de
drones. As descrições dos autores revelam o poder de observação do
cotidiano e a criatividade dos presos para darem vida ao tráfico no en-
torno da penitenciária, através de planejamento bem elaborado e de
ações realizadas com esmero.
O oitavo capítulo, de Guaíra Moreira Camilo de Melo Dutra,
“Corpos demarcados, Corpos condenados: o código das tatuagens e os
micropoderes prisionais”, debruça-se sobre os significados produzidos
e emitidos pelas tatuagens corporais de penitenciários. São formas de
comunicação, expressões de sujeitos aprisionados e seus universos re-
lacionais, quase sempre estigmatizados pela ótica mais conservadora e
tradicional da sociedade brasileira. Através dos símbolos religiosos e de
26
outras representações presentes nas tatuagens, os presos emitem men-
sagens para os seus pares, bem como para os que lhes são diferentes.
Assim, expressam suas objetividades e demarcam posições no mundo.
O último capítulo é de autoria de Lígia Macedo Rodrigues, “O
uso dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional e a superlotação do
Sistema Prisional no Brasil”. É o único texto que não se debruça sobre
dados empíricos no complexo do Serrotão, mas nem por isso é menos
importante e necessário a este livro, pois os usos dos recursos do Fun-
do penitenciário têm influência direta no cotidiano do Serrotão, assim
como das demais instituições penais brasileiras. A análise empreendida
pela autora revela como recursos que deveriam ser utilizados para pro-
piciar condições dignas e humanas àqueles que cumprem pena de re-
clusão acabam por ser utilizados de maneira que ajudam a construir as
condições e as imagens que vemos regularmente nas prisões brasileiras.
As múltiplas abordagens apresentadas, ao longo dos capítulos deste
livro, são convites para cada leitor melhor conhecer as condições que
são tão próximas de quem reside ou passa por Campina Grande e pela
Paraíba, atravessando a Alça Sudoeste, na qual o complexo penitenci-
ário parece dominar a paisagem, como que anunciando as violências
e atrocidades cometidas por muitos dos que lá se encontram na con-
dição de presos. Paralelamente, a imponência do Serrotão faz ecoar as
relações sociais estabelecidas pelos mais variados atores sociais que ali
convivem, em meio a circunstâncias sociais criadas para controlar e
punir parte dos indivíduos pobres e de tantas maneiras marginalizados
que não conseguiram ser mantidos de outras formas dentro dos limites
legais da sociedade brasileira.
Este não é um livro sobre as relações estabelecidas num complexo
prisional que comporta três instituições, apenas. É um livro sobre as
relações humanas a partir de indivíduos e lugares singulares e, por isso,
sua importância vai muito além do universo prisional encravado na
Serra da Borborema. E isso faz dele uma obra complexa, desafiadora
para aqueles que desejam estudar e conhecer os limites e possibilidades
da “sociedade dos cativos”.
Por fim, não é um livro sobre os presos e suas relações, exclusiva-
mente. É também sobre nós outros que nos encontramos para além das
grades que aprisionam. É sobre como nossas ações e inações, omissões
27
e cumplicidade ajudam a produzir o quadro social e penitenciário que
de muitas maneiras e através de vários olhares e análises este livro revela.
REFERÊNCIAS
28
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar,
2001.
29
CAPÍTULO 1
UMA NARRATIVA SOBRE O PRESÍDIO
SERROTÃO: A RELAÇÃO DE CONFIANÇA
ENTRE PRESOS E FUNCIONÁRIOS
O AUTOR E CAMPO
Não, não quero falar “sobre mim”. O foco aqui é o maior presídio da
Paraíba, em área cercada. Mas antes das próximas linhas, é pertinente
uma breve apresentação pessoal, para que o leitor contextualize este
universo ora ameno, ora macabro.
Sou jornalista por formação e atuei algum tempo em órgãos de im-
prensa de Campina Grande, entre os anos 2003 e 2008. Em 2009, fui
nomeado Agente de Segurança Penitenciária após ser aprovado no pri-
meiro e até então único concurso público para a pasta no Estado.
Iniciei os primeiros dias de trabalho na antiga Casa de Detenção
de Campina Grande (Presídio Monte Santo), hoje unidade reservada a
‘albergados’, que passam o dia na rua e se recolhem à noite. Em agosto
de 2010, fui transferido para a Penitenciária Padrão de Campina Gran-
de e, seis meses depois, para a Penitenciária Raymundo Asfora, mais
conhecida como Presídio Serrotão, onde trabalhei até meados de 2015.
No meu tempo, aquela unidade prisional abrigava algo em torno de
700 presos (hoje, março de 2020, passam de mil detentos ali dentro).
18 Formado em Comunicação Social com habilitação para jornalismo pela Univer-
sidade Estadual da Paraíba, Investigador Criminal da Polícia Civil do Estado da
Paraíba e autor do Livro “Monte Santo: a Casa de Detenção de Campina Grande”.
30
Do alto da ladeira cuja rua dá acesso à penitenciária era impossível
não olhar para os nove pavilhões que compreendem o grande presídio,
quando chegávamos para mais um dia de trabalho. Por mais que, su-
postamente, estivéssemos acostumados com aquele ambiente, a força
natural da prudência nos obrigava uma visualização prévia daquele gi-
gante, como forma de avaliar seu ‘estado de espírito’.
No primeiro portão de entrada, o agente do setor fazia os cum-
primentos de praxe. Por parte de quem estava chegando, a inevitável
pergunta “tá tudo em ordem aí?”, por vezes se antecipava ao esperado
bom-dia aguardado pelo colega que encerrava seu horário.
Essa troca de plantões se dava entre as 7h40 às 8h, no máximo. Cada
agente que chegava ia assumindo seus postos: portão de entrada; portão
de acesso aos pavilhões; monitoramento de câmeras; setor administrati-
vo; equipes de escolta; etc.
Quando chegávamos para mais um dia de labuta, aquela ‘cidade’ já
estava em pleno vapor. Os presos que trabalhavam nas cozinhas (a dos
funcionários e a da massa carcerária) estavam de pé antes das 6h. Lim-
pavam e remexiam panelas para não deixarem atrasar a sagrada refeição
de cada dia.
Apesar de o presídio engolir uma área equivalente a 14 campos de
futebol, talvez 80% dela fossem compostas de mato. E isso exigia uma
capinação permanente, serviço realizado por outra leva de condenados.
As pás, enxadas e facões nas mãos deles eram as ferramentas necessárias
para a limpeza, assim como as facas afiadas em poder dos cozinheiros.
Concomitantemente, um prisioneiro passava arrastando um com-
prido ferro de 3/8 – desses usados em construções –, chamando a aten-
ção pelo chiado oriundo do atrito do objeto com o chão. Sua função
era desentupir esgotos que eventualmente estivessem obstruídos, em
todo o presídio.
Mais acima, a uma distância de 300 metros, dava para avistar dois
ou três detentos cavando a terra. Calma, não era um túnel para fugas
(ainda não!). No Serrotão, existe uma imensa horta onde diversos tipos
de fruteiras e plantas são cultivados. Seu tamanho e importância variam
conforme o perfil dos diretores que são nomeados/exonerados naquela
penitenciária.
Ao lado daquele grande pedaço verde do presídio, cerca de 80
31
detentos passavam algemados, em fila, para mais um dia de aula. A
unidade penal conta com uma estrutura razoavelmente boa para os pre-
sos frequentarem os ensinos Fundamental e Médio (este segundo em
muito menor escala).
E ainda ‘colada’ à horta, a Enfermaria do presídio isolava os presos
mais gravemente doentes, como nos casos de tuberculose e HIV. Mas
atendida também a demandas diversas, a exemplo de gripes, resfriados,
dor de cabeça, tonturas, aferição de pressão, espancamentos, acompa-
nhamento odontológico, etc. Tudo com profissionais de saúde em suas
respectivas áreas.
Ao lado da sala da administração do presídio, uma ala lotada de
prontuários individualizava o histórico de cada detento ali recolhido:
todo o relato do seu crime; como fora cometido; o número de vítimas;
a tipificação penal; a sentença aplicada; etc. Para quem gosta do assunto
(como eu), aquilo é uma verdadeira biblioteca.
Mais à direita, a cerca de 30 metros de distância, a padaria do pre-
sídio (sim, existe uma panificadora dentro do Serrotão!) exalava seu
cheiro de massa ao forno. Além dos chamados pães ‘doce’ e ‘francês’,
o maquinário produzia também ‘sonhos’ deliciosos, além de outras
guloseimas.
Eram bons mesmo. Lembro-me de que até um juiz da Vara da Exe-
cução Penal, à época, não hesitava em frequentar o local, quando visi-
tava a penitenciária. Entrava, conversava com os detentos, comia um
ou dois pães e fazia questão de levar uma sacola cheia para o Fórum. A
padaria produzia cerca de 3 mil pães diariamente, para alimentar todos
os presos de Campina Grande.
Toda essa engrenagem de mão de obra prisional é mantida com
presos condenados por crimes diversos. No total, aproximadamente
90 detentos circulando livremente, no cumprimento de seus afazeres
diários. Só para efeito de comparação, cada plantão tinha seus 15 ou 20
agentes penitenciários, quando muito.
Presos e funcionários se misturavam sem querer. Um precisando do
outro, era comum, em certas ocasiões, até baterem meia hora de con-
versa, dependendo do caso.
Eu mesmo conservo muitas delas na memória. Certo dia, um ho-
mem com 50 anos de idade e condenado a mais de 40 anos de prisão
32
me confidenciou algo inacreditável, apesar de fazer todo sentido:
– Seu Saulo, sou sincero ao senhor: no dia que eu sair daqui, eu faço
de tudo pra voltar!
– Por quê? – questionei.
– Porque na rua, eu continuarei sendo ladrão, ex-presidiário, já ‘véi
de idade’, analfabeto, sem família lá fora e com um bocado de ini-
migo querendo me matar. Que vida é essa? É melhor morrer ou vi-
ver preso? Aqui eu tenho pelo menos onde comer e dormir sossegado
– explicou-me.
33
“via de mão dupla”, digamos.
Saiu e foi cumprir pena no regime semiaberto (albergue). Cerca
de seis meses depois, não deu sorte em um roubo de carga e foi preso
novamente. Voltou para o Serrotão.
Ser bem comportado na penitenciária não garante que o preso está
‘ressocializado’. Muitos deles acabam assimilando que essa é a melhor
forma de conseguir um trabalho – e diminuir os dias na prisão –, além
da confiança dos funcionários.
Mas nem todos que estão ali, transitando com facas na mão, conse-
guiram a vaga por ‘merecimento’. Uma parcela considerável é composta
de psicopatas.
Explico. Josué (nome fictício) era vigia de rua em Campina Grande.
Gozava de certa confiança dos moradores do bairro onde trabalhava.
Certo dia, invadiu uma daquelas casas, tentou estuprar uma mulher e,
não conseguindo, a matou. Foi condenado, cumpriu o regime fecha-
do, progrediu para o regime semiaberto e foi preso novamente tentan-
do atacar outra mulher, em plena via pública, às vistas de uma tarde
ensolarada.
E por que Josué conseguiu uma vaga para trabalhar no presídio?
Porque estuprador não pode viver junto com o restante da massa car-
cerária. E como a penitenciária só contava com dois ambientes – a área
dos presos trabalhadores e a dos que não trabalham –, Josué teve de ser
enquadrado na primeira secção.
Isso acontece com todo tipo de preso excluído do convívio com
os demais: estupradores; devedores de drogas; pessoas que matam os
pais, a esposa ou os filhos; outro motivo qualquer que justifique sua
exclusão. A massa carcerária não os aceita no convívio, e a direção do
presídio tem de encaixar esse grupo em outro lugar.
Assim, daqueles quase 90 detentos que circulavam livremente entre
os 15 ou 20 agentes de plantão, a maioria era pessoas bem perigosas.
Josué, por exemplo, era o desentupidor de esgotos que puxava seu ferro
barulhento.
PRESOS DE CONFIAÇA
A relação interpessoal entre presos e funcionários em um presídio como
o Serrotão exige, necessariamente, determinado grau de confiança. Eles
34
estão ali, lado a lado, fazendo aquela cidade andar.
De um lado, os agentes portando suas armas de fogo na cintura.
É claro que eles tentam tomar os cuidados possíveis, mas ninguém,
naquelas circunstâncias, consegue estar alerta o tempo todo. Se o preso
quiser de verdade, a desgraça está feita.
Matias (nome fictício) era um detento que estava apresentando dis-
túrbios psicológicos. Foi expulso do convívio em sua cela justamente
por causa das confusões que provocou por lá. Como também não po-
deria ir para o setor dos presos trabalhadores, restou-lhe a cela de isola-
mento. Seria encaminhado ao manicômio judiciário de João Pessoa, no
dia seguinte, para ser tratado.
Antes de entrar na cela, deu um bote na pistola do agente mais pró-
ximo. Por sorte, não conseguiu pegar a arma. E acabou tomando uns
corretivos que... Deixa para lá.
Matias foi levado à capital, onde passou algum tempo em tratamen-
to. Passadas algumas semanas, retornou a Campina Grande, e eu acabei
não tendo mais notícias dele, a não ser o dia em que ele tentou tomar a
arma de um policial militar, fardado e em serviço, em pleno centro da
cidade. Matias morreu no local.
Quem faz a comida dos agentes? Os presos. Quem está em maior
número? Os presos. Quem passa informações importantes para a dire-
ção do presídio? Alguns presos.
Os funcionários vivem eterna e obrigatoriamente sob uma sujeição
de confiança diante dos detentos, devido às circunstâncias já descritas,
e quando algum deles foge, logo vem a pergunta turbinada de crítica:
“E existe preso de confiança?”
Dezembro de 2011, os funcionários do Serrotão programaram sua
festa de confraternização daquele ano, a ser realizada em uma granja a
cerca de dois quilômetros do presídio. Para assar as carnes, resolveram
levar dois detentos que trabalhavam na cozinha dos agentes.
Eram sujeitos ‘de confiança’, respeitadores, bem comportados, e ga-
nharam esse presente de Natal: sair um pouco dos ares sufocantes de
uma prisão.
Aliás, conforme as duvidosas “orientações de ressocialização”, é sa-
lutar que presos e funcionários possam ‘interagir’ sempre que puderem.
E na tarde do dia 10 de dezembro de 2011, aquela confraternização
35
era uma oportunidade de fazer ao menos dois “reeducandos” interagi-
rem mais com os funcionários. Os presos assavam as carnes e serviam
os agentes, mas não apenas isso. Comiam, tomavam refrigerante, con-
versavam e até jogavam sinuca. Todo mundo junto e em paz de espírito,
como rezam algumas técnicas de ressocialização.
Mas... “existe preso de confiança?” Depende. Já no final da tarde,
beirando o escurecer, um dos presos fugiu pelo mato que circundava a
granja. Os agentes, quando perceberam, ainda fizeram buscas pela área,
mas não o encontraram. O outro detento, além de não querer fugir
também, ainda ajudou na busca do fujão.
Na segunda-feira, o episódio foi destaque em tudo o que era emisso-
ra de rádio, TV e portais de notícias. Até em rede nacional a manchete
foi veiculada. Os funcionários que participaram da festa foram todos
ouvidos em sindicância.
Como era de se esperar, choveram insinuações de que a fuga teria
sido ‘facilitada’ pelos agentes, como se aquele detento tivesse dinheiro
para “calar a boca” de 30 funcionários. Anos depois, Investigadores da
Polícia Civil em Campina Grande recapturaram esse apenado na zona
metropolitana de Recife.
“PRESO É PRESO”
Existe uma expressão muito dita no ambiente carcerário que soa até
um pouco ‘pesada’, dependendo de quem a escuta: “Preso é preso e tem
que ser tratado como tal”. As palavras carregam um tom contundente,
mas no fundo visam apenas tentar manter o funcionário em estado de
alerta sempre, precaução que parece impossível se a unidade prisional
não oferecer uma estrutura razoável de segurança.
Não se trata de ‘desumanidade’. A prisão é uma cidade ‘filha’ da
grande sociedade aqui fora. Quem sai da liberdade para o confinamen-
to traz consigo todos os costumes da vida extramuros. A diferença é
que, devido às suas especificidades, o ambiente carcerário exige a impo-
sição de regras mais duras, em determinados momentos.
Isso, inevitavelmente, acabar por ‘enrijecer’ também a alma do
agente penitenciário – agora policial penal –, por vezes tendo que tratar
todo mundo no mesmo nível.
Quem vai medir o grau de desconfiança nessa relação dia após dia
36
é o curso da história e seus didáticos exemplos deixados como ‘estudos
de caso’.
CONFIANÇA EM QUEM?
Eu já nem estava mais trabalhando no sistema penitenciário. Aprovado
no concurso púbico para Investigador da Polícia Civil, abracei a nova
missão em meados de 2015. E foi na Central de Polícia do Catolé onde,
em encontro ocasional com um colega do Serrotão, ele me veio com
uma novidade:
37
quatro aparelhos por plantão, para os apenados.
Quando ‘Fulano’ foi pego com oito, é óbvio que ele já havia abas-
tecido outras vezes os pavilhões. E quanto maior o número de funcio-
nários no setor, maior será a probabilidade de entrarem mais objetos
proibidos, caso a unidade penal não disponha de um sistema de segu-
rança eficiente.
Mas não foquemos apenas nos agentes prisionais. Um presídio
como o Serrotão deve ter em torno de 50 policiais militares se reve-
zando naquelas guaritas, em seus respectivos plantões. Assim como
os demais funcionários da unidade, os PMs também não passam por
nenhum controle de revista pessoal para trabalhar na penitenciária. É
tudo na base do ‘confiômetro’.
Chegam, conversam, assumem seus postos (guaritas) e seja o que
sua consciência mandar. Vez por outra, algum deles também é punido/
afastado por causa de denúncias de envolvimento em irregularidades.
A não ser sua própria consciência, absolutamente nada impede de
um policial militar lançar drogas, armas ou aparelhos celulares para
dentro do presídio. A penitenciária foi construída em 1990, numa épo-
ca em que quase ninguém sequer sabia da existência desses “telefones
de mão”, e pouco avançou para impedir a entrada dessa tecnologia no
recinto.
A tragédia seria menor se apenas agentes penitenciários e policiais
militares cometessem esses deslizes. Certo dia, uma assistente de den-
tista que ‘estagiava’ no Serrotão foi flagrada com chips de celular que
seriam entregues a um preso. Não sei se o caso não foi “levado à frente”,
mas ela, claro, perdeu a oportunidade de estágio.
Desde os primeiros dias de trabalho no sistema penitenciário, nos
lendários plantões da então Casa de Detenção do Monte Santo, que
colegas mais antigos me apontavam até professoras como ‘canais de
entrada’ de objetos proibidos. Nunca vi um caso concreto, mas tenho
vivência o suficiente para não descartar as suspeitas.
O fato é que, em um presídio grande e movimentado como o Ser-
rotão, sua estrutura ainda deficiente permite que centenas de pessoas
ingressem ali sem passar por um mínimo de fiscalização eletrônica. O
único aparelho de raio x existente na penitenciária já é uma ‘ajuda’,
mas ainda de muito pouco retorno prático, para uma unidade prisional
38
naquelas dimensões. A engenharia do presídio não permite que esse
raio x fiscalize todo mundo que ali ingressa.
Muito diferente, por exemplo, das cinco penitenciárias federais exis-
tentes no Brasil, unidades destinadas aos criminosos ditos ‘mais perigo-
sos’ do país. Pelo menos na propaganda do Ministério da Justiça, nunca
houve fuga e sequer o registro de um aparelho celular dentro de alguma
de suas celas.
Seriam os agentes penitenciários federais o corpo funcional mais
honesto do Brasil? Não, necessariamente. De acordo com o MJ, cada
presídio federal conta com 250 câmeras de segurança estrategicamente
instaladas e monitoradas por uma central em Brasília.
Os presídios preservam uma área de segurança em seus arredores; o
efetivo de agentes é compatível com suas demandas; são 208 celas em
cada penitenciária, porém nenhuma unidade prisional pode atingir sua
capacidade (por questões de segurança); e até para se aproximar de um
preso, o policial penal é obrigado a usar um microfone de lapela, con-
forme as descrições do Ministério da Justiça. Se existe algo de primeiro
mundo no Brasil, os presídios federais estão incluídos.
Agora preste atenção: juntando a massa carcerária das cinco peni-
tenciárias federais brasileiras, o resultado ainda não chega ao número de
presos recolhidos no velho Serrotão de Campina Grande.
Assim, seja qual for o presídio, a qualidade de sua estrutura é crucial
para a inibição de atos de irregularidade. Quanto mais vigiados, funcio-
nários e presos terão menos chances de cometerem atos em desacordo
com as normas.
A tecnologia e o poderio do controle estatal no ambiente carcerário
deveriam ser o maior braço de confiança em que se apegar.
Por enquanto – e não se sabe até quando –, em muitos casos conti-
nua sendo o preso.
39
CAPÍTULO 2
ASPECTOS MULTIFACETADOS DO
TRÁFICO DE DROGAS DENTRO
DO PRESÍDIO DO SERROTÃO
INTRODUÇÃO
O tema sistema prisional tem sido recorrente em diversos noticiários e
no debate acadêmico, tendo em vista que, rotineiramente, a grande mí-
dia noticia acontecimentos relacionados ao universo prisional. Diante
disso, muito se debate sobre o sistema prisional, sobretudo devido às
rebeliões, fugas e massacres envolvendo os presos, além da presença de
grupos faccionados, da negligência do Estado e falhas na ressocialização.
Com advento da internet e a propagação da mídia televisiva e fala-
da, a sociedade tem cada vez mais acesso a informes relativos aos siste-
mas prisionais do Brasil e aos problemas que ele enfrenta, com relatos,
imagens e vídeos de dentro das penitenciárias, que mais desinformam
do que trazem informações propriamente ditas.
19 Bacharela em Direito pela Unesc Faculdades - União de Ensino Superior de Cam-
pina Grande.
20 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, Mestrando em
Direito Constitucional pela UNESA / FARR; Especialista em Direito Penal e Di-
reito Processual Penal pela Universidade Estadual da Paraíba, Bacharel em Direito
pela Universidade Estadual da Paraíba e Licenciado em História Pela Universidade
Federal da Paraíba.
40
O artigo 59 do Código Penal traz, em seu texto, o caráter punitivo
e preventivo da pena, mas a doutrina e os debates atuais discutem que
a finalidade do encarceramento deve ser voltada para a prevenção e não
para a punição em si mesma, ou seja, reparar o mal com o mal. Porém,
diante das falhas do Estado em melhorar o sistema prisional brasileiro,
questiona-se: como a pretensa ressocialização ocorre dentro do cárcere?
Ao longo do trabalho, os dados coletados fornecem subsídios para res-
ponder a este questionamento.
Disto isto, este artigo tem, como locus de estudo, a Penitenciária Re-
gional de Campina Grande Raymundo Asfora (Serrotão), como objeto
de estudo o sistema prisional, e por objetivo fazer uma análise sobre o
tráfico de drogas que ocorre dentro do contexto da prisão.
A importância deste tema se dá em virtude de uma análise de um
dos problemas que afeta a ressocialização dos detentos: o tráfico de dro-
gas. A droga é um dos principais produtos comercializados e serve
como moeda de troca na prestação de serviço dos detentos e dependen-
tes que não têm condições de pagar em relação àqueles que vendem e
comandam o tráfico dentro da prisão.
DROGAS E CRIMINALIDADE
Diversos fatores são responsáveis pelo aumento e propagação da cri-
minalidade e, dentre eles, a droga ocupa um lugar de destaque, isso
porque, com uso rotineiro, aqueles que consomem drogas se tornam
dependentes e para satisfazerem sua vontade usam os recursos que estão
em suas mãos ou procuram diversas maneiras de adquirir.
A droga, geralmente, é apresentada de graça e como algo bom, mui-
tas vezes, essa apresentação parte de pessoas próximas, que já tendo
contato arrastam outras para o uso, transmitindo a ideia de que aquilo
é inofensivo e que consegue controlar. Dessa forma, com argumentos
diversos ou desafios, aqueles que nunca tiveram contato com as drogas
o fazem para provar que não temem nada ou fazem uso para permane-
cerem próximos de pessoas que estão fazendo no meio.
Mesmo que algumas drogas não causem a dependência imediata, o
primeiro contato já deixa uma “porta aberta” para o novo encontro e
mesmo achando que, realmente, as drogas não fazem mal, o recém-usu-
ário está caminhando para o abismo, que se torna cada vez mais fundo
41
e escuro, quando o organismo passa a sentir falta daquela substância, e
o uso, que até então era ocasional, passa a ser habitual. A esse respeito,
Farias Júnior (2009) afirma:
42
o ato infracional. Paralelamente, o uso reiterado do
tóxico favorece uma série de anormalidades, condu-
zindo a mulher à prostituição e o homem à vadia-
gem, à mendicância e às inversões e perversões sexuais
(FERNANDES, 2012, p. 639).
Pela leitura do trecho acima, fica reforçado que pelos efeitos psicoló-
gicos que o tóxico produz para o usuário habitual, uma vez privado da
droga e ante a dificuldade pecuniária de obtê-la, recorrerá à apropriação
indébita, ao furto, à extorsão, ao roubo até ao latrocínio para conseguir
numerário para a aquisição do tóxico. Associado ou não a esses crimes
vem o tráfico de drogas, em que muitos dependentes ingressam devido
ao contato com aqueles que fazem o comércio.
Walter Fernandes e Newton Fernandes destacam o problema da
prostituição, da vadiagem e da desestruturação da família, que passa
a carregar nas costas aqueles que antes contribuíam ou não geravam
despesas não planejadas e agora se tornam um peso e uma preocupa-
ção para suas famílias. Os autores deixam claro que o Estado também
sente esse peso, pois deve oferecer casas de apoio e recuparação para os
dependentes, que estão na criminalidade, fruto do mundo das drogas.
43
prisional paraibano, sua entrada no cárcere não é permitida pelas fac-
ções que comandam os presídios da Paraíba. Varella (1999) chega a ver
com bons olhos a chegada do crack como substância ilícita em substi-
tuição a cocaína, que era usada, principalmente, pelo meio injetável e,
com isso, tornava-se um elemento facilitador da propagação do HIV
nas penitenciárias.
Embora alguns doutrinadores entendam que o uso de drogas sirva
como mecanismos de contenção para as tensões que o sistema prisional
impõe aos internos, a droga nos presídios é um elemento potencializa-
dor de problemas, uma vez que o indivíduo tende a ficar dependente
da substância e se envolver no mundo do crime ou assumir uma culpa
que não lhe cabe. Neste aspecto, Varella (1999) destaca:
44
geralmente, pessoas pobres e desempregadas que são atraídas para levar
essas substâncias para os presídios por outras pessoas que comandam o
tráfico e pela ausência do Estado na promoção de políticas sociais que
gerem renda, trabalho e assistência a uma grande parcela da sociedade
que vive marginalizada.
45
em 2000, dos quais 168.236 são do sexo masculino e 187.095 do sexo
feminino e 337.484 se encontram na zona urbana e apenas 17.847 na
zona rural (dados do IBGE).
46
verificar se carregavam material suspeito em suas partes íntimas.
Diante desta prática, os representantes dos Direitos Humanos co-
meçaram a buscar explicações do Estado para essa atitude, afirmando
que esse ato estava infrigindo a dignidade da pessoa humana, prevista
no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988 e pressionando o Es-
tado para que esta prática fosse abolida. Diante do posicionamento
dos representantes dos Direitos Humanos, foi criada a Lei Estadual
nº 6.081/2000 que proibiu esse tipo de revista “vexatória”, em que as
revistas a partir da lei seriam realizadas por detectores de metais e outros
equipamentos necessários, permitindo a revista íntima apenas em casos
excepecionais, como previsto do artigo 6º, parágrafo 2º, da citada lei:
47
problema que afeta os presídios da cidade de Campina Grande, a saber:
entrada de drogas (maconha, cocaína, artane, pramil e sildenafila) nas
dependências das unidades prisionais. Muitas dessas drogas são apre-
endidas nas revistas íntimas, revista pessoal e/ou por arremesso, tendo
como envolvidos, principalmente, companheiras, parentes, amigos e
qualquer pessoa que esteja disposta a entregar a droga.
Embora presente no universo prisional, não é fácil colher informa-
ções sobre drogas no interior do cárcere, principalmente quando os
informes são fornecidos pelos presos. Conforme destaca Silva (2008, p.
86), “esse silêncio aparente sobre determinados temas parece ampare-
se sobre aquilo que o médico cronista denominava de mandamento
supremo da marginalidade: o crime é silêncio”. Diante disso, os dados
foram colhidos, em sua maioria, dos inquéritos policiais que versam
sobre as ocorrências no presídio.
Como destaca Drauzio Varella, “droga corre atrás do viciado, é o
que diz a malandragem” (VARELA, 1999, p. 138). De fato, por ter gran-
de procura, o tráfico de drogas é uma constante e mesmo com o contro-
le exercido, elas entram no presídio as mais variadas formas.
O gráfico 1, a seguir, evidencia que a entrada de drogas nas três
unidades do Complexo do Serrotão em Campina Grande se dá, pri-
mordialmente, por meio de mulheres.
Gráfico 1 - Sexo
48
As mulheres entram com drogas nos presídios por motivos diversos,
mas, segundo relatos dos inquéritos policiais, são movidas pelas amea-
ças que sofrem dos companheiros e para atenderem-nos usam o próprio
corpo como disfarce, colocando as substâncias entorpecentes em suas
partes íntimas.
Essas mulheres, frequentemente, são mães, esposas, companheiras
ou até mesmo não possuem nenhum grau de parentesco e buscam in-
troduzir substâncias entorpecentes no Complexo Serrotão em troca de
dinheiro ou a mando de alguém. Diante deste relato, o gráfico 2 expõe
o grau de parentesco das pessoas que levam as drogas.
Gráfico 2 - Parentesco
49
proibidas ou até mesmo produtos que também não são permitidos.
Um dos inquéritos analisados na pesquisa demonstra um caso que
tem uma prestadora de serviços da enfermaria como acusada, que
tentou adentrar com materiais proibidos, no Inquérito Policial Nº
139/2016, consta o seguinte relato:
50
Gráfico 3 - Forma como as drogas entraram
51
Gráfico 4 - Drogas e objetos apreendidos
52
substâncias apreendidas.
Gráfico 5 - Outras substâncias entorpecentes
53
Chips 190
Cartões de memória 11
Substância semelhante à maconha 72,646G
Material semelhante à cocaína 1,078,9G
Maricas 24
Materiais perfurocortantes (facas, facões, espetos) 284
Litros de cachaça artesanal 310L
Caixas pequenas de som 10
Comprimidos alucinógenos e estimulantes 1512
Pedaços de ferro 5
Barras de ferros 18
Adaptadores de cartão SD 10
Mp4 1
Balança artesanal 1
Balança digital 1
Agulhas para tatuagem 81
54
Material semelhante à cocaína 439,5g
Facões industriais 27
Facas industriais 04
Facas artesanais 265
Maricas 68
Espetos 131
Barras de ferro 22
Serras 05
Balanças digitais 07
Fonte: Dados fornecidos pela Direção do Presídio Serrotão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade tem acompanhado diversas notícias de indivíduos encar-
cerados por diferentes crimes que lhe são imputados, assim como tam-
bém tem acompanhado notícias mostrando, que mesmo presos, esses
indivíduos ainda se envolvem no mundo do crime.
Diante disso, muito se falam e se discutem sobre o sistema prisional
e seus problemas, como a superlotação, rebeliões, fugas, mas poucos
trabalhos acadêmicos conseguem explicar, através de dados numéricos,
porque a ressocialização não ocorre.
Apesar de diversos fatores como falta de estrutura, superlotação, fal-
ta de programas efetivos de ressocialização, o trabalho proposto teve
por objetivo expor um tema específico que dificulta a reeducação e tem
gerado problemas que afetam todo o funcionamento do presídio, ou
seja, o tráfico de drogas ocorrido em suas dependências.
Com base em pesquisa realizada em inquéritos policiais no ano de
55
2016, ficou evidente que o tráfico de drogas é uma realidade que acom-
panha o sistema prisional, que apesar de medidas para inibirem tal fato,
ele tem sido recorrente e que a forma como a droga entra no presídio é
muito variada, dificultando, assim, sua apreensão e combate.
Embora o senso comum e o imaginário popular acreditem que as
drogas entram nos presídios apenas pela facilitação dos agentes de segu-
rança que ali trabalham, os números mostram que a maior quantidade
das drogas entra no presídio através de arremesso ou mesmo de pessoas
que tentam levá-las em seu corpo ou outros meios.
Outro aspecto mostrado ao longo do trabalho, é que, diferentemen-
te do que a maioria das pessoas acredita, o crack não tem sido droga
traficada no interior dos presídios durante o período que a pesquisa
foi realizada, mostrando que seu poder ofensivo é tão grande que até
mesmo os presos não admitem sua entrada, além do mais, a variedade
de substâncias, que entram no cárcere que são qualificadas como dro-
gas, é bem ampla, pois envolve medicamentos que têm uma finalidade,
porém são utilizados de outra forma.
Embora alguns autores acreditem que drogas mais naturais, e de
menor potencial ofensivo, como a maconha, poderiam acalmar a ten-
são que o próprio sistema prisional impõe aos presos, os dados expos-
tos, no trabalho, mostram que as drogas são ofensivas dentro do cárcere
e que não há uma com menor ou maior potencial de perigo, pois há um
valor comercial muito alto e nem sempre aqueles que as consumem,
conseguem pagar.
O tráfico de drogas, seja no interior dos presídios ou fora deles, é
porta de entrada para outros crimes, como homicídios, furto, tráfico.
Por isso, deve ser combatido e políticas de saúde devem ser implantadas
para tirar do vício os dependentes, além da implantação de políticas
criminais para dificultar a entrada das drogas nos presídios.
O trabalho trouxe um estudo de caso sobre o presídio do Serrotão,
mas os dados locais estão concatenados com a realidade nacional; por
isso, os estudos levantados, nesta pesquisa, podem servir de base para
análise futura, assim como para fundamentação teórica, de medidas
políticas que visam a real eficácia da lei do cumprimento da pena.
REFERÊNCIAS
56
BRASIL. Código Penal. 27ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
57
penitenciário brasileiro. Porto Alegre: Sulina, 2008.
58
CAPÍTULO 3
ASPECTOS DE GÊNERO E OS DANOS
PSICOSSOCIAIS SOFRIDOS PELAS
MULHERES NO CÁRCERE
INTRODUÇÃO
O estudo das prisões, ao longo do tempo até a atualidade, permite que
seja ampliada a visão acerca de suas finalidades, assim como a forma
como tem sido utilizada na punição de crimes com penas privativas de
liberdade.
Este artigo foi elaborado tendo por objetivo estudar o encarcera-
mento feminino e através das informações coletadas, contribuir para o
melhoramento das condições de vida oferecida às mulheres dentro das
prisões brasileiras. Sobre presídios femininos, faz-se necessário desta-
car suas instalações, analisar o cotidiano de figuras femininas em situ-
ação de prisão e assim se obter um perfil da sociedade atual, que ainda
carrega consigo os alicerces do patriarcado. Desta forma, optou-se por
enxergar o cárcere na perspectiva de quem está do lado de dentro (as
presas).
As mulheres dentro do cárcere, na sua maioria, conheceram vida di-
fícil fora dos muros da prisão e, por vezes, tendo como porta de entrada
para o mundo do crime a influência de companheiros que já atuavam
cometendo delitos.
Desde os primórdios, o sistema carcerário e a prisão como punição
21 Bacharela em Direito pelo Centro de Ensino Superior Reinaldo Ramos - Cesrei.
59
destacam-se por terem sido pensados para homens, não respeitando
a condição diferenciada da mulher. Por isso, compreendemos ser im-
prescindível discutirmos os direitos, que são antes de qualquer coisa
inerentes aos indivíduos e resguardados pela Constituição da República
Federativa do Brasil, denominada cidadã, por tratar como fundamental
o respeito à dignidade da pessoa humana. Desta forma, vislumbramos
a urgência de darmos notoriedade e voltarmos o olhar para o que acon-
tece diariamente dentro dos presídios brasileiros e colocarmos em foco
a mulher presa e suas necessidades tão peculiares a sua condição de
gênero.
Embora existam alguns estudos sobre a mulher e a criminalidade,
quase nada se tem como análise da qualidade de vida dentro das prisões
brasileiras, menos ainda sob a ótica da própria mulher em situação de
cárcere, uma vez que o vocábulo, penitenciária fala por si. É muito
mais do que a privação do direito de ir e vir, no caso das mulheres, é
sinônimo de danos, violência psicológica e social. A presente pesquisa
visa preencher uma lacuna ainda existente dentro desse campo do co-
nhecimento. Afinal, quem são as mulheres encarceradas?
Individualizando o olhar e observando de perto essas pessoas, é pos-
sível dizer que são presos que menstruam, que geram filhos, carregando
muitas vezes além da sua própria história, outras vidas. Fato óbvio e
claro, mas esquecido por aqueles que são responsáveis pela aplicação
das leis e, principalmente, a tão discutida dignidade da pessoa humana,
regulada pela Constituição Federal do Brasil de 1988 e pela lei nº 7.210
de 1984 (Lei de Execução Penal).
Analisando o sistema prisional brasileiro através da visão do preso,
observando que a principal porta de entrada para o mundo do crime,
na maioria das vezes, está diretamente ligada ao IDH (Índice de Desen-
volvimento Humano), a hipótese levantada por esta pesquisa é que o
caminho que levará a ressocialização, diante do crescimento alarmante
do encarceramento em massa que acontece hoje no Brasil, em que as
penas privativas de liberdade ainda são as principais formas de punição,
sem dúvidas só será efetivo através do cumprimento das normas espe-
cíficas (nacionais e internacionais), que versem sobre o tema, partindo
da lei máxima, a Constituição da República, dando ao indivíduo pre-
so tratamento digno e humano, inclusive, contando como primordiais
60
estabelecimentos prisionais com instalações físicas adequadas para um
bom funcionamento.
Para alcançar o objetivo mencionado anteriormente, será exposto
um estudo de casos realizado no Presídio Regional Feminino de Cam-
pina Grande/PB, através da análise de questionários respondidos pelas
presidiárias que lá residem cumprindo penas privativas de liberdade,
bem como da observação das condições gerais do estabelecimento com
visita "in loco", comparando com o que regulamenta a legislação penal
em vigor, apresentando a realidade da prisão, ou seja, como de fato é e
como funciona.
Examinar o sistema prisional é de fundamental importância em
tempos que tanto se discute sobre segurança pública, e esse trabalho é
de indiscutível relevância por analisar e apontar, através da experiência
das mulheres por trás das grades, os danos psicossociais sofridos por elas
dentro da penitenciária, quando diariamente são violados os aspectos
de gênero, e tantos outros direitos claramente evidenciados pela reda-
ção da legislação suprema, a Constituição da República, assim como
pelas infraconstitucionais e até específicas como a LEP (Lei de Execu-
ção Penal), que norteia o cumprimento dos vários tipos de prisão e que
garante a mulher presa um tratamento diferenciado.
O trabalho trata-se de uma pesquisa aplicada que, segundo Appoli-
nário (2011, p. 146), é realizada com o intuito de “resolver problemas ou
necessidades imediatas". A proposta é dar visibilidade e tornar conheci-
da da sociedade e da própria presidiária, as normas vigentes que versam
sobre seus direitos e garantias, para que haja uma fiscalização e também
uma cobrança no sentido de se efetivar o seu cumprimento. Que as
autoridades competentes capacitem os trabalhadores das unidades pri-
sionais e os tornem sabedores e conhecedores desses direitos e garantias
que assistem a mulher presa, em virtude de terem suas necessidades de
gênero reconhecidas e legalizadas. Que se inaugure um tempo de res-
peito ao princípio da dignidade da pessoa humana dentro das prisões
femininas brasileiras.
Aqui, serão trabalhadas amostras as quais através de estatísticas e
gráficos construirão um perfil das mulheres que passaram pela Peni-
tenciária Feminina Regional de Campina Grande/PB, o que torna nos-
sa pesquisa quanti-qualitativa. Usado como instrumento de coleta de
61
dados um questionário que foi aplicado a algumas dessas mulheres, de
onde será extraída uma amostra dessa população. Construiremos variá-
veis referentes às características pessoais das presidiárias, bem como de
sua vida fora e dentro dos muros da prisão, visando contribuir com o
conhecimento mais amplo sobre o encarceramento feminino, suas pe-
culiaridades, a lei penal em vigor e a prática cotidiana e real dentro das
prisões destinadas às mulheres.
62
atualmente, como uma das leis mais avançadas, por estabelecer normas
e direitos eficientes, principalmente, quanto à ressocialização do deten-
to. Ainda no artigo 11º, a redação não deixa espaço para variáveis na sua
interpretação quando versa sobre os direitos assistenciais que indubi-
tavelmente não se aplicam à realidade do sistema prisional no Brasil.
A lei com suas especificidades, no artigo 14° parágrafo 3°, traz aquilo
que deveria ser premissa no tratamento destinado à presa e à gestante,
ou seja, a assistência qualificada, especializada e estendida ao recém-
nascido, realidade longe de se consolidar.
Constituem direitos da mulher encarcerada e resguardados pela LEP
a alimentação suficiente e vestuário, o que na realidade, na prática diá-
ria de quem vive dentro dos muros da prisão não acontece. O que che-
ga temperado pela fome é de péssima qualidade, para quem não pode
contar com as visitas dos familiares que mesmo passando por vexames e
humilhações, prestam-lhe assistência. A lei garante que a mulher presa
pode receber visita de amigos, porém apenas familiares devidamente
cadastrados conseguem, em dias determinados, entrar para visitarem
uma detenta, garantia que está no artigo 41 inciso X.
A realidade do sistema prisional feminino previsto em lei está dis-
tante da idealizada pelos legisladores, pois as regras de valor e de crista-
linas qualidades que foram criadas para nortear o tratamento da mulher
em situação de cárcere são diariamente violadas quando inobservadas e
descumpridas, desrespeitando os direitos individuais do preso, tanto de
forma objetiva quanto subjetiva.
No Brasil, poucas unidades prisionais femininas foram construídas
para o fim ao qual se destinam, pois a sua maioria foi adaptada para
receber aquelas a quem a lei reconhece e garante condições específicas
de alojamento e assistência. Além das relações interpessoais que se de-
senvolvem intramuros, causando a essa mulher uma punição que ul-
trapassa o físico, chegando à sua alma um castigo que adoece as suas
emoções, causando-lhe danos psicossociais por vezes irreversíveis. É a
justiça usando apenas a força de sua espada.
63
filhos. A sociedade é capaz de encarar com alguma
complacência a prisão de um parente homem, mas a
da mulher envergonha a família inteira. (VARELLA,
2017, p. 38).
64
um "bazar de carne humana", sem privacidade e conforto.
Lugares para deitarem e camas não são disponibilizados para todas,
muito menos colchão, espaço para 6 (seis), abrigando até 19 (dezeno-
ve), por vezes, sobra apenas o chão frio forrado por alguns lençóis para
aquelas que possuem o privilégio de receberem visitas e atenção de suas
famílias, quando não passam a noite no banheiro da cela. Sim, passam
as noites, pois dormir estando na cadeia é artigo de luxo.
Outro grande problema quando tratamos de encarceramento femi-
nino é o abandono da família e principalmente de seus companheiros,
a que são submetidas às mulheres quando do lado de dentro dos muros
de uma prisão. Precisam se redescobrir mais fortes a fim de sobrevive-
rem aos dias de densas nuvens que se quantificam com suas penas que
as privam não só da liberdade, mas também do status de seres dignos e
completos, pois são as mulheres, os presos que menos recebem visitas
e, em Campina Grande/PB, não é diferente, completando o quadro do
cenário nacional em que o homem praticamente não visita seu amor
por trás das grades, visto que das 100 (cem) mulheres recolhidas, do
estabelecimento prisional em comento, apenas 4 (quatro), recebem vi-
sitas íntimas, sendo uma destas de uma relação homoafetiva.
Não contentes em ter sua privacidade vasculhada por pesquisado-
ras que muito perguntam e muito observam, foi assim que vimos em
alguns rostos o incômodo de estarem como animais enjaulados, acua-
dos e adestrados, que apenas cumprem ordens de forma silenciosa para
garantir uma passagem sem maiores danos no tempo de reclusão que
lhes cabe.
Na unidade prisional, as presas provisórias encontram-se recolhidas
em compartimentos diferentes das condenadas definitivas, ao mesmo
tempo em que primárias e reincidentes ficam misturadas (Figura 1). Tal
constatação demonstra que estão sendo cumpridas – em parte – apenas
as norteadoras programáticas dos artigos 82 e 83 da lei e as regras míni-
mas da ONU (Organização das Nações Unidas) para o tratamento de
reclusos e para o tratamento de presos no Brasil.
Ao trafegar pela PRFCG, juntamente com a direção do estabele-
cimento prisional e o professor Valdeci Feliciano Gomes, coordena-
dor da pesquisa "Por trás das grades: uma análise sobre o sistema pri-
sional", que serviu de base para a escrita desse artigo, percebeu-se a
65
não existência de refeitório e que a comida é preparada pelas presas e
estas se alimentam nas próprias celas, são servidas 3 refeições por dia
(café, almoço e jantar), aos familiares é permitido trazer alimentos não
perecíveis.
66
o bom comportamento e que, devido ao trabalho, têm seu tempo de
pena reduzido.
A Lei nº 7.210/1984 (Lei da Execução Penal) traz a educação como
uma das formas de assistência social. Tal modalidade de assistência tem
sua previsão normativa situada entres os artigos 17 a 21 da referida Lei.
Em atendimento às exigências da LEP, a PRFCG desenvolve um
trabalho educacional junto às detentas, com atividade educacional
e profissional adequada à condição de mulher. Logo na entrada do
presídio, fica situada a extensão da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB), fruto de uma parceria entre a Secretaria de Administração
Penitenciária - SEAP e o campus de Campina Grande/PB. Isso porque,
segundo matéria publicada no "CAMPUS em Revista", de dezembro
de 2011, edição I, nº 01, a UEPB firmou convênio de Mútua Coope-
ração Técnico-Pedagógica e Científica com a Secretaria de Estado da
Administração Penitenciária em agosto de 2011, visando:
67
naquele recinto por uma igreja evangélica da cidade, tem se mostrado
primordial à ressocialização das mesmas, corroborando com o fato de
que nada do que especifica a lei no que tange aos direitos da mulher
presa deve ser ignorado.
Segundo informações fornecidas pela direção daquela
casa, hoje o que se tem de concreto em relação à assistência
à saúde por lá é uma visita semanal de uma equipe multi-
disciplinar em um único turno. O que não é suficiente para
atender à demanda, sendo as necessidades de atendimento
psicológico as de maior incidência, fato pelo qual, a psicóloga
que atende as detentas da unidade prisional para mulheres
de Campina Grande/PB, não consegue prestar atendimento
a todas que a procuram em determinado momento. Compro-
vando o que tanto se fez questão de abordar neste trabalho:
os danos psicossociais que transformam a vida das mulheres
em situação de cárcere. Ratificando a afirmação da existên-
cia de necessidades específicas da sua condição de gênero.
68
Muitas são mães e, quando presas, precisam deixar suas crianças
aos cuidados de outros e às vezes até sem cuidado algum, o que leva
aos transtornos psicológicos e surtos psicóticos dessas presidiárias. Fa-
zendo-nos entender que dar visibilidade a esse tema é imprescindível e
discutir o desencarceramento feminino também é de extrema impor-
tância, exigir-se o cumprimento da legislação que reconhece as vulne-
rabilidades dessa classe, como, por exemplo, da Lei Federal nº 13.257 de
08 de março de 2016 (Marco Legal da Primeira Infância).
Segue abaixo o triste relato de uma ex-presidiária, de nome fictício
Flor, que passou 1 (um) ano e 3 (três) meses cumprindo pena privativa
de liberdade na unidade prisional em comento. Transcrito, exatamente
da forma como ela mesma escreveu, como desabafo, quando respondeu
ao questionário da pesquisa que fundamenta este trabalho (Figura 3).
69
Figura 3 - Relato da ex-presidiária
70
AS DIFICULDADES DA PESQUISA DE CAMPO E O
RESULTADO DA PESQUISA
No início deste artigo, o intuito era de entrevistar mulheres recolhi-
das dentro do Presídio Feminino de Campina Grande/PB, possuindo
como objetivo questionar as necessidades das detentas daquela unidade
prisional, tendo em vista a sua condição de gênero diferenciada. Mas,
em visita ao estabelecimento acima citado, a diretora da casa mesmo
sendo comunicada através de ofício emitido pela Faculdade Reinaldo
Ramos – FARR, que especificava o objetivo do projeto de pesquisa,
informou que só seria possível a realização das entrevistas com a autori-
zação expressa do Secretário da Administração Penitenciária, o que não
aconteceu, impossibilitando o acesso às presas e à informação.
Era sabido das dificuldades que seriam encontradas e que são ine-
rentes ao objeto da pesquisa, ligadas à criminalidade e em particular,
quando se trata da realidade do sistema prisional. Isso porque, como
destaca Shecaíra (2012), o saber na criminologia tem um valor intima-
mente ligado ao jogo de poder. As relações de força que se dão entre
esses elementos se condicionam mutuamente e contribuem para a es-
tratégia do conhecimento. Desta forma, muda-se o objeto da pesquisa.
Diante da dificuldade em entrevistar as mulheres recolhidas no Presídio
Feminino de Campina Grande, a análise passou a ser realizada ouvindo
detentas que passaram pelo sistema prisional na unidade citada.
Procurando evidenciar a voz dessas mulheres e lhes dar vez devido
as suas vivências em cárcere, e que nos deixasse um registro da condição
de vida das presas de Campina Grande/PB, foi feito o contato com ex
-presidiárias, das quais algumas se recusaram a conversar por sentirem
medo de repressão, mesmo já estando novamente em conformidade
com a sociedade e a justiça. Além do medo, a vergonha pelo erro come-
tido no passado. Por estes motivos, foi preferível não insistir, pois todos
possuem o direito de esquecer um passado de delinquência e encarce-
ramento. Ressocialização é também: dar ao indivíduo a capacidade de
recomeçar e desmemoriar os acontecimentos, oportunizando-lhe olhar
adiante.
O silêncio fala muito e percebe-se que há um medo ou necessidade
de apagar lembranças que não são boas, pois só quem conhece a reali-
dade do cárcere sabe o que traz na memória.
71
Para obter variáveis a serem analisadas, foi desenvolvido um ques-
tionário com aproximadamente três laudas, e aplicado a cerca de 9
(nove) mulheres que já cumpriram suas penas privativas de liberdade
no Presídio Regional Feminino de Campina Grande/PB, pelo cometi-
mento de crimes diversos. As informações coletadas na pesquisa foram
baseadas na versão das entrevistadas e não em informações coletadas na
unidade carcerária. Ressaltando que os questionários foram preenchi-
dos pelas próprias participantes, sob a supervisão da pesquisadora e do
orientador.
O documento que foi empregado para o recolhimento de dados na
pesquisa, foi um questionário aplicado pela pesquisadora sob a super-
visão do seu orientador. As perguntas foram direcionadas a ex-detentas
do Presídio Regional de Campina Grande/PB, que livremente con-
cordaram em contribuir com os objetivos da pesquisa. O questionário
contém indagações divididas em seções relativas à infância das detentas,
entrada no mundo do crime e experiências vividas dentro da unidade
carcerária em comento.
72
acesso à educação de qualidade, assistência nas diversas ordens e tam-
pouco um acompanhamento familiar. Vivendo desde jovens em rela-
ções afetivas desajustadas, algumas são levadas ao cárcere por influência
dos companheiros.
73
Gráfico 1 - Nível Educacional
74
Regional Feminino de Campina Grande/PB e que participaram da pes-
quisa. Elas também são irmãs, avós, companheiras, mas o infortúnio de
serem separadas de seus filhos é causa de uma tortura psicológica que as
desestabilizam emocionalmente e em alguns casos levam a episódios de
surtos psicóticos das detentas. Mesmo diante de tamanha dor, algumas
dessas mulheres acabam por optar pela não visitação dos filhos, por não
desejarem que suas crianças as vejam reclusas num lugar hostil, com
tantas restrições.
Esse é, sem dúvidas, um dos fatores de maior dor e desequilíbrio
na vida da mulher presa, a distância de quem se ama de forma quase
divina, os filhos. A incerteza do bem-estar destes e de que haverá ainda
um reencontro com uma vida em comum, ladeada pela esperança de
um novo tempo fora das grades. Ressaltando a necessidade de inves-
timento em alternativas penais e no modelo de gestão dos presídios,
bem como o cumprimento da lei da primeira infância, promovendo
um desencarceramento dessa mulher como medida alternativa à pena
de prisão, trazendo outras respostas mais eficazes no combate à crimi-
nalidade feminina.
Os números do Gráfico 2 são didáticos quanto aos filhos das
detentas.
Gráfico 2 - Filhos
75
Pela análise exposta, a maioria têm filhos e relataram o quanto foi
ruim ficar distante deles durante o tempo que passaram no cárcere.
76
ou associação ao tráfico de drogas, relacionado diretamente aos seus
companheiros e a economia familiar, ressaltando a importância de se
apresentar soluções exequíveis para a diminuição deste que é um dos
maiores problemas quando a pauta em voga é a criminalização e o en-
carceramento feminino.
Embora boa parte das internas tenham ficado reclusas por influ-
ência dos companheiros, a realidade da mulher encarcerada fica mais
uma vez restrita à visitação da família de primeiro grau. Quando não
são entregues de vez a solidão do cárcere. Os dados da pesquisa só ra-
tificaram e consolidaram o que já é sabido. A mulher é abandonada
pelo companheiro quando adentra no sistema prisional, ou seja, quase
nunca recebe visita íntima, o que no caso da amostra e do resultado
da pesquisa é brutal. Totalmente diferente da realidade dos presídios
masculinos, onde se formam filas em dias de visita de qualquer tipo.
Nenhuma das mulheres que responderam ao questionário recebia
visita íntima no período em que estiveram presas. Quando muito, as
visitas eram apenas dos familiares como mães e irmãos (89 % das inter-
nas), havendo, inclusive, quem nunca recebera visita alguma para aju-
dar a aliviar a difícil rotina de um presídio feminino (11% das internas).
77
Esse tópico é claramente um dos que mais mexem emocionalmente
com as mulheres que vivem e/ou que experimentaram a inesquecível
experiência de cumprirem pena privativa de liberdade em um estabele-
cimento penal brasileiro e que se estende a vida das ex-presidiárias do
Presídio Regional Feminino de Campina Grande/PB.
78
trabalhadores é um dos maiores incômodos e motivos de reclamação
das detentas. Dando destaque à necessidade de que haja vontade políti-
ca para que se construa um caminho viável com propostas concretas de
enfrentamento desse tipo de violência, minorando os efeitos nefastos
da privação de liberdade.
79
Gráfico 6 – Alojamento
80
Gráfico 7 – Material para higiene pessoal
ATENDIMENTO MÉDICO
A vida das mulheres em situação de cárcere no que tange à assistência
social e à saúde é algo aterrorizante e que merece destaque. São, por
vezes, doenças curáveis que se tornam fatais pela falta de atendimento
médico. Algumas mulheres que participaram da pesquisa, responderam
ao questionário, dizendo não terem precisado de atendimento médico
durante o período em que estavam encarceradas (78% disseram que não
precisavam e 22% relataram que necessitavam de atendimento médi-
co), no entanto, não deixaram de manifestar suas experiências quanto
à qualidade do atendimento prestado às companheiras de cela, o qual,
classificaram como ruim e até inexistente.
Apesar de ser um direito constitucional de todos os brasileiros, as
mulheres presas quase não têm acesso à saúde e tratamentos médicos
especializados. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o sis-
tema penitenciário brasileiro conta com apenas 15 especialistas nessa
área (ginecologia), o que equivale a um profissional para cada 2.335
mulheres.
Mas como o império do medo ainda vigora por lá, há quem diga
que o atendimento é bom (Gráfico 8). As respostas com relação a este
questionamento foram bem distintas e controversas. Faltam não só
81
prestação de atendimento médico ambulatorial e assistência à saúde da
mulher presa, também faltam medicamentos básicos como analgésico e
antitérmico, substância comprada a preço irrisório nos estabelecimen-
tos farmacêuticos, e assim, expostas a estes riscos com a retirada de
direitos básicos é que vivem as mulheres privadas de liberdade.
82
sua dignidade e acaba se sentindo um nada. Quando não perde seu
bem mais precioso e que, na maioria esmagadora dos casos, é o que lhe
resta após adentrar um presídio: a vida, pois infelizmente, ainda, vigora
por aqui a máxima de que bandido bom é bandido morto. É nesse con-
texto que depois de cumprida a pena, voltará ao convívio com a socie-
dade, estigmatizado e sem condições de se reintegrar a esta, assim sem
possibilidade de adaptação voltará a delinquir. De acordo com Foucault
(1997, p.18), "Um castigo que atua profundamente sobre o coração, o
intelecto, a vontade e as disposições."
Mesmo sendo considerado um grande fracasso, a prisão é tida –
hoje – como a principal forma de punir aqui no Brasil. Os estabeleci-
mentos penais ainda que sejam distintos de acordo com a natureza do
delito, a idade e o sexo do apenado como disposto no art. 5º, XLVIII da
CF, a prisão continua sendo falha e não promove a ressocialização, mas
a manutenção da criminalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É impossível tratar sobre encarceramento feminino sem enfatizar a con-
dição de gênero da mulher, suas necessidades específicas e o total des-
caso do Estado. A mulher presa é uma porção da sociedade esquecida
e discriminada, mas elas existem e precisam ter seus direitos e garantias
legais respeitados para que consigam efetivamente voltar a viver em
comunidade.
Respeito, indubitavelmente, é a pedra angular na construção da
ressocialização e na extinção da reincidência. Normas bem escritas e
que atentam as especificidades de gênero dessa mulher presa já foram
criadas, mas o que ainda falta é o respeito. Falta também um trabalho
sério e comprometido, no sentido de que sejam todas as normas que
versem sobre o tema, executadas no cotidiano das instituições penais
femininas.
Considerando as informações colhidas sobre o sistema carcerário
feminino no cenário nacional, bem como na cidade de Campina Gran-
de/PB, é cristalino o uso da pena privativa de liberdade como principal
prática punitiva. É o império do poder de punir do Estado, quando
em se tratando do modelo feminino, o olhar deve ser mais atento para
as fragilidades de quem está do lado de dentro e por trás das grades,
83
implantando políticas de assistência multidisciplinar, como instrumen-
tos de transformação.
Muitos são os desafios na busca da ressocialização e na possibilidade
de vida continuada fora dos muros das prisões e o primeiro passo para
a construção desse novo tempo está na conscientização do ser humano
dentro das unidades prisionais femininas. A trilha, certamente, come-
ça na capacitação dos funcionários que diariamente lidam diretamente
com essas mulheres em situação de cárcere. Na necessidade de se res-
saltar que não perderam a dignidade humana de cidadãs quando foram
recolhidas ao estabelecimento penal. É mister que as normas e garantias
legais que lhes assistem de maneira preciosa em suas redações, passem
de mera utopia e ingressem o mundo da realidade. A resposta começa
em uma mudança no modelo de administração penitenciária.
Fica claro, nos resultados da pesquisa, que o mal não se combate
com o mal e que encarceramento em massa não é justiça, sendo uma
das coisas que mais revoltam as mulheres na cadeia: o tratamento desti-
nado a elas e aos seus familiares. São as feridas causadas pelas correntes
da alma, as que mais causam danos. É sabido que o abandono é abso-
luto e desumano, há uma violação brutal da sua dignidade, por isso,
lucidamente, há de se falar em, cada vez mais, publicizar esse grave
problema que é social, sim. Conduzir o popular, ainda que a passos
pequenos e firmes, a entender que não é possível separar segurança
pública e crise penitenciária, levar a pessoa do povo a discernir sobre o
cumprimento da pena e o castigo.
Nunca se encarcerou tanto e os índices de criminalidade só aumen-
tam. Há de se repensar que a educação tradicional e a profissional são
fundamentais, mas, por si só, não são suficientes para que essas mulhe-
res possam ter possibilidades concretas de serem inseridas no mercado
de trabalho após pagarem sua dívida com a sociedade. Inegavelmente, a
transformação do caráter acontece de dentro para fora e a humanização
da pena é o alicerce de um canteiro de boas colheitas para um retorno
harmônico como prevê a lei e, até se vislumbrar o desencarceramento
como realidade, um aumento da ressocialização e uma considerável e
decrescente reincidência e, por fim, uma concreta diminuição da cri-
minalidade feminina.
Para que haja uma ressocialização das detentas, a harmonia social
84
– diante de seu retorno à sociedade – deve haver um grande esforço
para fazer cumprir as medidas de assistência que a lei de execução pe-
nal prever. Entretanto, relatos, pesquisas em obras que versam sobre o
tema, mostram que tal coisa está longe de ocorrer.
REFERÊNCIAS
85
SHECAÍRA, Sérgio. Criminologia. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2012.
86
CAPÍTULO 4
MÃOS À OBRA: OS PRESOS E O TRABALHO
NA PENITENCIÁRIA DO SERROTÃO
INTRODUÇÃO
O tema sistema prisional ganha importância no meio acadêmico, so-
bretudo quando vem relacionado a temas como: grupos faccionados,
tibieza do estado, ressocialização, direitos humanos, dentre outros.
Ademais, embora a sociedade tenha cada vez mais acesso a informações
relativas aos problemas das prisões no Brasil, aos programas policiais e a
toda sorte de mídias compartilhadas com relatos, imagens e vídeos das
penitenciárias, não tem conhecimento quanto ao valor investido no sis-
tema carcerário, nem como se dá o retorno desse investimento. Diante
do exposto, temos como lócus de estudo a Penitenciária Regional de
Campina Grande/Paraíba Raymundo Asfora, conhecida popularmente
de “Serrotão”, e como objeto os programas de ressocialização via traba-
lho e sua eficácia ou ineficácia.
22 Bacharel em Direito pelo Centro de Educação Superior Reinaldo Ramos- Cesrei
(2020) e Agente Penitenciário do Estado da Paraíba.
23 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, Mestrando em
Direito Constitucional pela UNESA / FARR; Especialista em Direito Penal e Di-
reito Processual Penal pela Universidade Estadual da Paraíba, Bacharel em Direito
pela Universidade Estadual da Paraíba e Licenciado em História Pela Universidade
Federal da Paraíba.
87
Afirmar que o cárcere ou prisão não promove a recuperação já é
consenso. Dessa forma, o objetivo deste artigo não é repetir a afirma-
ção, a fim de concluir que a pena de prisão está falida ou que a resso-
cialização seja um mito e que não traz proveito algum para o sistema
penitenciário. Antes, este estudo visa especificar alguns aspectos da de-
gradação da pessoa do preso, decorrente da própria vida carcerária, para
assim tratar das medidas eficazes que podem promover a reintegração
social do preso.
A importância deste estudo se dá em virtude da necessidade de uma
gestão eficiente dos recursos públicos empregados na ressocialização,
bem como por trazer apontamentos ou alternativas a serem implanta-
das pelo Estado, com vistas a trazer resultados compatíveis com o inves-
timento e, principalmente, com a ressocialização efetiva dos egressos.
Ressaltamos que a experiência profissional dos autores deste arti-
go, como agente penitenciário e investigador criminal, possibilitou a
observação da quantidade de egressos que são reincidentes no sistema
prisional. Nessa perspectiva, destaca-se a necessidade de analisar a res-
socialização penitenciária, mais especificamente, a ausência de resulta-
dos esperados.
Nesse sentido, constatamos que na Penitenciária Raymundo Asfo-
ra, dentre os trabalhos ofertados a poucos detentos têm os que expli-
cam como fazer pinturas, colagens, atividades recreativas lúdicas, como
também os de artesanato ou capinagem, cozinha e serviços gerais. En-
tretanto, para o preparo do interno ao convívio social com a garantia de
sua aceitação no mercado de trabalho, observa-se a incompatibilidade
das atividades laborais ofertadas para fim de qualificação profissional.
Pontuamos ainda que o perfil criminológico da população carce-
rária do Serrotão é formado por indivíduos acusados de crimes contra
o patrimônio, que se caracteriza por roubos e furtos. Nesse sentido,
entende-se que a inserção de atividades técnicas para qualificação pro-
fissional nas penitenciárias, a exemplo do programa do sistema “S”,
ocasionaria resultados mais eficientes e duradouros aos egressos. Tendo
em vista que existe uma relação entre a reincidência criminal e a falta
de oportunidades de emprego e profissão, dado ao elevado número de
retorno dos sujeitos que praticam crimes contra o patrimônio.
Isto posto, a questão-problema que norteia as reflexões contidas
88
neste artigo foi: como ocorre o processo de ressocialização em peniten-
ciárias do Estado da Paraíba?
Para obter resposta e resultados acerca do problema sugerido an-
teriormente, será utilizado o método indutivo de pesquisa, visto que,
por meio da experiência empírica, tem-se como hipótese primária a
estreita relação entre a ressocialização ineficaz e a reincidência criminal
registrada nas penitenciárias. Quanto à definição do método indutivo,
Marconi e Lakatos (2010) afirmam:
89
de pena pode ser determinado de duas formas: reclusão ou detenção.
Conforme prevê o Artigo 33 do Código Penal, na reclusão, a pena deve
ser cumprida em regime fechado, semiaberto ou aberto; enquanto que
na detenção, em regime semiaberto ou aberto, salvo necessidade de
transferência a regime fechado. A imposição de um ou outro regime é
prevista de acordo com a gravidade do crime.
A Constituição Federal, em seu art. 5º, XLVIII, estabelece que a
pena deverá ser cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo
com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado. Além disso, pre-
vê que a pena privativa de liberdade é cumprida em regime progressivo.
O cumprimento de pena em regime fechado apresenta maior con-
trole do interno, posto que a execução da pena ocorre em estabeleci-
mento de segurança máxima ou média, onde o apenado terá restrições
na circulação e condições materiais. Em regime semiaberto, o interno
poderá ser acomodado em ambientes coletivos (colônia agrícola, in-
dustrial ou estabelecimento similar) e a realização da pena está atrelada
ao seu trabalho. Já na etapa do regime aberto, é ofertada ao condenado
uma possibilidade de vivência em sociedade, trabalhando o dia e se
recolhendo a noite.
É importante observar que o sistema de progressão de regime coo-
pera para uma melhoria sensível da motivação dos jovens internos em
tarefas formativas, culturais e escolares. Ressalte-se, entretanto, que a
pena deve recair apenas sobre quem praticou o crime (SHECARIA,
2010).
Pensar a pena é também refletir acerca da política carcerária brasilei-
ra e, portanto, ponderar sobre a própria conjuntura política e histórica
do Brasil. Visto que, em uma nação que o sistema democrático e a va-
lorização da Dignidade Humana, enquanto supraprincípio norteador
da Constituição, demoraram a ser reconhecidos, a dispensa de uma
observação histórica leva a omissão de fundamentos que norteiam as
tendências e escolhas do legislador no atual sistema normativo.
Conforme observa Alvino Augusto de Sá, em seu livro “Criminolo-
gia clínica e psicologia criminal”, a conduta criminosa algumas vezes é
o resultado de uma vida socialmente marginalizada, marcada por sen-
timentos de rejeição e hostilidade. De fato, embora não se possa negar
que muitas pessoas enveredam pelo mundo do crime por força de traços
de personalidade e de caráter, existem muitas pessoas que cometeram
90
crimes devido a ocasiões, como falta de emprego e condições para se
manterem. Destaque-se, igualmente, a justiça brasileira que pune desi-
gualmente os vários tipos de réus, de acordo com a origem social desses.
É necessária uma compreensão, um olhar para o problema da cri-
minalidade que tenha por base a relação preso-sociedade. Sobre isso,
corrobora Sá (2014, p. 117) ao afirmar que:
91
meta do Estado.
Conforme observa Sá (2014, p. 121), “isso não significa nenhuma
atitude de acomodação. Há que se lutar por minorar os seus efeitos.
Ora, uma das características básicas, essenciais de pena de prisão é o in-
fligir ao condenado o isolamento, a segregação em relação à sociedade”.
A preocupação do autor é com os efeitos negativos gerados pela prisão,
quando, por meio dela, o Estado explicita, formaliza e materializa a
relação de antagonismo entre àquele que está preso e a sociedade.
Embora a Lei nº 7.210/1984 – Lei de Execução Penal (LEP/84) –
tenha expresso em seu artigo 1º que: “execução penal tem por objetivo
efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do in-
ternado” (BRASIL, 1984), a prisionização se fundamenta no processo
de segregação social e, diante disso, não há como diminuir seus efeitos
negativos e preparar o preso para sua reintegração social.
Todos estes aspectos práticos consideram os critérios de eficiência
e economicidade, sobretudo no Poder Judiciário. Nestes termos, há
de se abordar a participação ativa de diversos setores, sobretudo das
entidades familiares, na formação do indivíduo. Haja vista que o tex-
to constitucional, no artigo 5°, trata da responsabilidade solidária no
cumprimento da cláusula inerente ao contrato social, conforme prevê
a LEP/84, art. 4º, dispositivo recepcionado pela Magna Carta vigente.
Assim, a referida lei de execução, quando comparada com o sistema
carcerário, ainda carece de efetividade em alguns pontos. Essas lacunas
são oriundas, principalmente, da gestão de algumas unidades prisionais,
na medida em que não é possível se individualizar cada apenado, diante
dos muitos que ainda permanecem presos mesmo depois de cumprida
a sua pena, considerando a quantidade de processos a serem julgados.
Trata-se de uma condição de marginalização e precarização da vida
que vai de encontro aos parâmetros estabelecidos com o advento da
Constituição Federal de 1988 e que, por muitas vezes, é tratado, por
segmentos da sociedade, como forma de “educar” o detento, através
de uma experiência prática de exclusão, para uma não transgressão fu-
tura. Desta feita, o martírio em cárcere, quando não esquecido pelos
segmentos populacionais, é justificado a partir de um discurso de parte
do sistema punitivo.
92
CONHECENDO A PENITENCIÁRIA REGIONAL DE
CAMPINA GRANDE RAYMUNDO ASFORA, O “SERROTÃO”
A ESTRUTURA
A Penitenciária do “Serrotão”, como é comumente conhecida, está lo-
calizada na cidade de Campina Grande, às margens da BR 230, km 160,
foi inaugurada no dia 27 de setembro de 1990. Destinada para o reco-
lhimento de presos condenados já possuidores de guia de recolhimento,
tem capacidade para abrigar 280 apenados e se encontra, na data desta
pesquisa, com 1130 reeducandos, com superlotação em 403% acima de
sua capacidade.
Foi idealizada para ser uma colônia agrícola e receber apenados do
regime semiaberto, mas hoje é utilizada como penitenciária propria-
mente dita, literalmente para cumprimento de penas em regime fecha-
do. Foi projetada em uma área de 12 hectares, com uma muralha de 6
metros de altura, rodeada de uma serpentina energizada e com cabos
elétricos com voltagem em torno de 8.000 volts.
O presídio possui 09 pavilhões, sendo eles distribuídos em 08 (oito)
pavilhões para o convívio e 01 (um) para o seguro e trabalhadores da
casa, estes pavilhões são separados por uma grade de seis metros de
altura, evitando o contado entre os detentos. Todos os pavilhões são
divididos em lado A e lado B, facilitando a contagem e até mesmo a
divisão de poderes e hierarquia que existem entre os apenados, os cha-
mados “palavras” ou “comandos”.
OS APENADOS DO SERROTÃO
93
Quadro 1 - Escolaridade
ESCOLARIDADE QUANTIDADE PORCETAGEM
94
interesse de participar da preparação e, consequentemente, dos exames
nacionais.
Neste ponto, entra-se no assunto da disponibilidade e interesse dos
apenados em relação à escola. Diferentemente do que muitos acham, o
preenchimento das vagas ou exclusão de alunos não passa por critérios
financeiros, merecimento ou punitivos, e sim uma aceitação por parte
dos apenados e interesse de participar ou não das aulas. É claro que a
aceitação é construída a partir de processos de percepção dos presos
sobre as expectativas que têm sobre a aceitação por parte da sociedade.
Com o total de 168 vagas disponíveis todos os anos para o ensino
dos apenados, a Escola Paulo Freire comumente não atinge um quarto
(1/4) do disponibilizado, uma vez que tanto a direção da escola como
a Administração Prisional vão “pessoalmente” em todos os pavilhões,
literalmente, perguntar a todos os apenados quem quer estudar e parti-
cipar das atividades de recreação/ressocialização.
Não raro é o apenado afirmar que opta por ir à escola por causa do
“rango” (lanche), para saírem “daquele inferno” (pavilhão) ou em virtu-
de das professoras. Diferentemente, observa-se a ausência de registros
de um apenado realmente interessado em estudar, se formar, melhorar,
até mesmo porque ao longo de sua vida eles foram excluídos de forma-
ção escolar oficial, o que parcialmente explica as resistências apresenta-
das por eles, já adultos, em frequentarem a escola no interior da peni-
tenciária, senão estes não estariam naquele ambiente dentro e incluídos
nos números de 90% dos que não possuem ensino fundamental.
No mesmo ofício nº 956/2018/ADMPRCGRA enviado à adminis-
tração da unidade prisional em análise, obtiveram-se também números
relativos à faixa etária dos internos da Penitenciária, conforme o quadro
2 seguinte.
Quadro 2 - Idades
QUANTIDADE FAIXA ETÁRIA PORCETAGEM
230 apenados 18-24 20,39%
557 apenados 25-34 49,34%
290 apenados 35-50 25,69%
46 apenados 51-65 4,09%
5 apenados 65-100 0,46%
95
No quadro 2, percebe-se que 70% dos integrantes da massa carcerá-
ria é composta por adultos de 18 a 34 anos de idade. Faixa etária que, em
tese, eles estariam mais aptos para mercado de trabalho, mas por fatores
diversos cometeram crimes.
96
Com o advento da Lei de Execução Penal – LEP (lei nº 7.210/84), o
legislador traçou as diretrizes para o trabalho do apenado enquanto um
direito que lhe assiste. Trata-se, portanto, de um instrumento legal que
viabiliza para além de uma garantia normativa, uma vez que possibilita
a reintegração social e contribuição para o processo de (re)emancipação
daquele que deixa o cárcere.
Ademais, é preciso a compreensão de que a prática trabalhista pos-
sibilita o desenvolvimento de uma educação profissional. Ou seja, ao
passo que o apenado consegue ter uma fonte de renda para sua família,
também desenvolve e especializa um saber técnico.
Quanto às atividades laborais, a Lei de Execução Penal (Lei nº
7.210/84) estabelece, no art. 28, que o trabalho do condenado, como
dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educa-
tiva e produtiva. Ou seja, qualquer que seja a atividade que venha a
ser desenvolvida pelo apenado deverá respeitar sua integridade física e
psíquica.
A LEP/84, ainda em seu art. 28, § 1º, ratifica que todas as normas de
saúde e segurança do trabalho sejam garantidas ao trabalhador apenado
ao afirmar que: aplicam-se à organização e aos métodos de trabalho as
precauções relativas à segurança e à higiene.
Outro importante efeito do desenvolvimento de atividades laborais,
pelo apenado, é a possibilidade de conversão da jornada de trabalho em
remissão da pena. Assim, estabelece a LEP/84, em seu art. 126:
97
Asfora, foi possível identificar na população carcerária dessa casa prisio-
nal que 60 apenados recebem auxílio-reclusão via INSS, ou seja, eram
segurados da previdência social na data do crime. Conforme quadro 3.
Quadro 3 - Auxílio-reclusão
POPULAÇÃO CARCERÁRIA 1130 APENADOS
AUXÍLIO-RECLUSÃO 60 APENADOS
98
de seleção o conhecimento prévio para o exercício da função, muito
menos comprovação de capacitação. A seleção ocorre principalmente
por questões de afinidade ao serviço e/ou necessidade da unidade e
interesse do preso em querer trabalhar, e claro, encontrar receptividade
da diretoria da penitenciária.
Notamos, dentre os postos de trabalhos oferecidos, ausência de ca-
pacitação mínima, a exemplo do cargo de chefe de cozinha ou chefe de
padaria, que é exercido na base do empirismo e do aprendizado adqui-
rido quando o apenado ainda era auxiliar em tais funções. Verifica-se,
portanto, a inexistência, por parte do Estado, de cursos de capacitação
profissional para os presos que trabalham, dificultando, assim, a rein-
serção ao mercado de trabalho destes, quando egressos.
Pontuamos também, que a maioria dos cargos ofertados se relaciona
a funções primárias (como: limpeza de ambientes e capinagem). Tais
funções não necessitam de capacidade técnica apurada e, por isso, não
oferecem reais oportunidades de trabalho fora do ambiente prisional ou
as limitam. Nesta perspectiva, Valter Fernandes e Newton Fernandes
(2012), no livro “Criminologia Integrada”, afirmam que seria um gran-
de passo se, no Brasil, os presídios ensejassem aos encarcerados trabalho
profissional sério. Para esses autores, apenas uma parceria do Estado
com empresas privadas possibilitaria a oferta de autêntica atividade la-
borativa em unidades prisionais.
Embora o Código Penal e Lei de Execução Penal indiquem que
os presos do regime semiaberto cumpram pena em colônia industrial,
agrícola ou similar, Valter Fernandes e Newton Fernandes (2012) des-
tacam que:
99
Ao observar a realidade presente no Presídio do Serrotão, tem-se
que, diariamente, às 05:00 da manhã, os apenados saem de seus “mo-
cós” (camas ou alojamentos) e se dirigirem ao portão 03, onde, já
protegido por Agentes Penitenciários, são revistados e conduzidos aos
seus locais de trabalho, uns indo até a ferramentaria para se equiparem,
outros para os setores já definidos, onde laboram das 06:00 horas às
16:00 horas.
Salientamos que as atividades voltadas para a ressocialização, tanto
por meio do estudo, quando do trabalho, ficam na responsabilidade
do Campus Avançado da Universidade Estadual da Paraíba, localiza-
do no interior do Serrotão. Esse Campus, criado em 20 de agosto de
2013, foi posto em funcionamento, inicialmente, com o intuito de pre-
parar 13 apenados para o ENEM e a Universidade se preparava para
formar uma turma de licenciatura, possivelmente em Letras, História
ou Geografia, mas nunca foi efetivamente iniciada. No ano de 2016, a
Universidade Estadual da Paraíba realizou os cursos de Colagem e de
Pintura de Mandalas para os apenados, com custo unitário orçado em
R$ 36.000,00 (trinta e seis mil reais). Constatou-se, por conseguinte,
que, ao longo dos anos, são ofertados cursos recreativos, colagens e
passatempos, sem valor profissional aos apenados. Trata-se de, confor-
me Foucault (1997) denomina, atividades sem utilidades, que não são
substanciais e duradouras, com qualificação para o desenvolvimento
de trabalhos úteis. Devemos considerar que esse tipo de atividade de
ressocialização gera o direito à remissão. Destaque-se, em todo o caso,
que tais cursos oferecidos servem para redirecionar as atividades dos in-
ternos envolvidos, evitando assim que permaneçam na ociosidade que
impera para a maioria.
Nesse sentido, percebemos que fazer colagens, artesanato ou ativi-
dades semelhantes, não propiciará, talvez, ao egresso a possibilidade
de renda e disputa ao mercado de trabalho. Visto que, se não for por
políticas públicas afirmativas, os reeducandos não serão, de fato, con-
correntes, nem serão absorvidos pelo mercado.
Nos termos do artigo 126, § 1º, Inciso I da Lei 7.210/84 tem-se: – “1
(um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar – ativi-
dade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou
superior, – divididas, no mínimo, em 3 (três) dias”.
100
Diante disto, a LEP/84, em seu art. 1º, afirma que a execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal
e proporcionar condições para a harmônica integração social do con-
denado e do internado. Ademais, no art. 40, o referido documento
esclarece que se impõe a todas as autoridades o respeito à integridade
física e moral dos condenados e dos presos provisórios.
O Estado não vem cumprindo o que foi estabelecido em diversos
diplomas legais, como a Lei de Execuções Penais (LEP/84), CFRB/88,
Código Penal (CP/40), além das regras internacionais, como a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (DUDH/1948), a Declaração
Americana de Direitos e Deveres do Homem, Resolução da ONU,
dentre outros documentos que disciplinam o tratamento do encarcera-
do, a partir de regras mínimas de tratamento do preso que viabilizem o
cumprimento dos direitos humanos do apenado.
Cabe ressaltar as Regras de Mandela, que estabelece em sua 5° regra:
101
coloca como desafio a trabalho futuro.
Com quase 50% da população carcerária composta por atores que
praticaram crimes contra o patrimônio, logo, não hediondos, têm-se,
como candidatos à ressocialização e ao ensino, internos que não pas-
sarão 02 (dois) anos sem suas liberdades, especialmente em Campina
Grande/Paraíba, em que foi abolida, desde agosto de 2019, a terceira
fase da progressão de regime, o regime aberto.
Sabe-se que a progressão de regime para crimes não hediondos se
dá aos 16,66% de cumprimento da pena, 1/6 da reprimenda imposta,
logo, em questão de meses, os reclusos deixam a unidade do Serrotão, o
regime fechado, e se dirigem diretamente para o regime de livramento
condicional, peculiaridade de Campina Grande/Paraíba, em virtude da
implementação do programa de monitoramento eletrônico.
Defende-se um tempo de internação maior que 1/6 da pena para
crimes não hediondos, a fim de que ocorra o real cumprimento da pena
e possibilite às Unidades Escolares o poder de formar algum candidato
a estudante e/ou em técnico profissional.
102
Figura 1 - Centro de Reeducação Feminino Maria Júlia Maranhão
Fonte: https://correiodaparaiba.com.br/fundacao-solidariedade/
chefs-vao-cozinhar-para-apenadas-do-julia-maranhao-nesta-sexta/.
Figura 2 - Culinária
103
A importância que a educação exerce no desenvolvimento das rela-
ções sociais é inegável. Trata-se de um fator fundamental para a cons-
trução da noção de individualidade humana, racionalidade e poder de
crítica diante do mundo real. Diante de tais fatos, deve-se levar em con-
sideração a magnitude que os efeitos da educação podem causar quan-
do atuar em um contexto específico, em que é fundamental se alcançar
o ideal de ressocialização e ajuste, como é o caso das penitenciárias.
As prisões devem ser visualizadas e entendidas como locais propícios
para que ocorra o processo de ressocialização dos condenados, os quais
devem ter condições reais de reintegração à comunidade.
Em se tratando da parceria entre o Sistema Penitenciário da Paraíba
e o Sistema “S” deve-se destacar que as aulas ocorrem em um motor
home ou caminhão-escola, que, geralmente, se desloca até as unidades
prisionais, além de evitar a saída do presídio e a onerosidade do des-
locamento dos apenados para o Estado, promove cursos de lancheria
pelas manhãs, que consiste em instrução sobre a confecção de lanches
quentes e frios, tais como: pasteizinhos, enroladinhos, sanduíches,
hambúrgueres, croissants, e toda sorte de biscoitos; e o curso de boleiro
profissional, pela tarde, que não precisa de muita explicação, visto que
a apenada ou apenado tem acesso ao ofício de boleiro e aprende a con-
feccionar desde bolos de padaria até bolos requintados.
Compreendemos que as atividades bem-sucedidas podem ajudar a
sociedade nesta missão de reinserir egressos na sociedade de maneira
justa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões sobre o processo de ressocialização permitiram responder à
pergunta que norteia essa pesquisa, qual seja: como ocorre o processo
de ressocialização em penitenciárias do Estado da Paraíba?
Constatamos que as atividades desenvolvidas na Penitenciária
Raymundo Asfora, em Campina Grande/Paraíba, estão longe de alcan-
çarem o intuito de ressocializarem os apenados, bem como de segui-
rem as determinações da Constituição Federal, Lei de Execução Penal,
Declaração Universal de Direitos Humanos e do Pacto de San José da
Costa Rica. Visto que se verificou que a oferta de cursos recreativos,
colagens e passatempos, sem valor profissional aos apenados, ocasiona
104
possibilidades limitadas.
Pelo exposto ao longo do artigo, podemos dizer que o cárcere sem
um trabalho correto nos programas não recupera ninguém. Ao contrá-
rio, pode provocar a degradação daqueles que estão internos. Mas tal
afirmação não traz uma resposta aos problemas do que o sistema carce-
rário enfrenta. Diante disso, apontaram-se os problemas comuns à pró-
pria natureza da pena privativa de liberdade, sobretudo o isolamento do
interno, que afastado da sociedade e de sua família, fica mais passível
à revolta, não aceitando que o sistema prisional controle todos os seus
atos ou mais passível às relações interpessoais entre os presos, que de
um lado podem lhe ofertar apoio e assistência, mas ao mesmo tempo
em que também lhe reprimem e punem caso não aceite fazer parte de
uma facção ou ceder às vontades daqueles que mandam na cela, por ser
mais antigo ou ter mais influência na cadeia.
Apontamos também alguns problemas decorrentes da má gestão da
coisa pública, como alto investimento em ensino de atividades laborais
que não servem para o dia a dia fora do cárcere, de modo que não facili-
tam a absolvição dos apenados no mercado de trabalho, nem favorecem
o trabalho autônomo.
A Penitenciária Feminina Júlia Maranhão em João Pessoa/Paraíba,
por meio do auxílio e apoio do Sistema S, em especial o Senac-JP, tem
realizado cursos que se mostram promissores para a ressocialização das
detentas, com atividades de capacitação e incentivo a inserção no mer-
cado de trabalho.
Percebemos, portanto, a importância e a influência que o trabalho
extramuros ou pregresso tem na vida de cada apenado, bem como a
falta dele, que, juntamente, com a “falta” do estudo proporciona ao
apenado sua trajetória de vida e passagem pela prisão.
O Estado dever manter uma política eficiente e atuante, promoven-
do trabalho e qualificação para os egressos prisionais, mediante parce-
rias com entidades públicas e privadas que teriam por finalidade pri-
mordial obter o eficaz retorno do apenado ao convívio social, a partir
de ocupação honesta e assistência para sua subsistência.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
105
Anísio Teixeira. Disponível: http://download.inep.gov.br/educacao_
basica/censo_escolar/notas_estatisticas/2017/notas_estatisticas_cen-
so_escolar_da_educacao_basica_2016.pdf. Acesso em: 23 de fevereiro
de 2020.
106
jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios.
Acesso em: 24 de março de 2020.
107
CAPÍTULO 5
CORPOS NA PRISÃO: UM ESTUDO
ETNOGRÁFICO SOBRE A EXPERIÊNCIA
DE MULHERES ENCARCERADAS 24
INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira tem passado por importantes processos de trans-
formações, nos quais o debate sobre a violência e a criminalidade tem
ganhado destaque. A diversidade de autores e pesquisadores das mais
distintas áreas das ciências humanas com suas perspectivas teóricas e
metodológicas está entre os que influenciaram o despertar e a realização
da pesquisa que serviu de base à elaboração das reflexões contidas nesse
artigo.
24 Este artigo é parte da dissertação de mestrado em Ciências Sociais, defendida na
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), sob orientação do prof. Dr.
Vanderlan Silva.
25 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) pela
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Graduada em Comunica-
ção Social (Jornalismo) pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail:
[email protected]
26 Professor Associado de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma
universidade. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Paris-Descartes (Paris
V – Sorbonne). E-mail:[email protected]
108
O primeiro desafio empírico enfrentado em nossa pesquisa foi con-
seguir autorização para acessar a Penitenciária Regional Feminina de
Campina Grande e, por conseguinte, poder dialogar com as internas.
Tais encontros foram possíveis mediante autorização emitida pela Jus-
tiça e por intercessão de alguns conhecidos profissionais da área da se-
gurança pública.
Esse processo ajudou a produzir um dos principais ensinamentos
analíticos sobre o funcionamento da penitenciária. Aprendemos, du-
rante a pesquisa, a ouvir mais não do que sim. Na pesquisa, estabele-
cemos interlocução com dez mulheres (Dandara, Cibele, Nise, Soraia,
Helena, Pâmela, Dália, Cravo, Cristal e Rubi), cujos nomes aqui cita-
dos são fictícios para evitar a identificação delas que se encontraram
em situação de privação de liberdade, cujo tempo de permanência na
penitenciária variam de 6 meses há 12 anos enfrentando a situação de
cárcere.
Uma das principais preocupações que tive foi de entender as trans-
formações ocorridas após a entrada na penitenciária na condição de
interna. Por isso, entre as questões norteadoras de nossa pesquisa estava
esta: como acontecem os processos de ruptura e transformação corporal
da mulher apenada? Tendo esse e outros questionamentos como guia,
desloquei-me27 para o presídio em busca de respostas. Nessa busca por
explicações, eu procurei estar atenta a todos os detalhes do que era
dito e do que se passava durante as idas à Penitenciária Feminina do
Serrotão para realizar a pesquisa, incluindo-se as entrevistas com as pre-
sas. Fiz uso de diário de campo utilizando um caderno de anotações e
uma caneta, enquanto que em outros momentos foi o exercício de me-
morização que me ajudou a reter as informações obtidas. Importante
destacar que a autorização que me possibilitou a realização da pesquisa
foi interpretada como impeditiva para a gravação das conversas com as
internas. Entretanto, alguns dos bons instrumentos engendrados pela
Etnografia me ajudaram a superar os limites impostos.
27 Escrito a quatro mãos, em alguns momentos do texto optamos pelo uso do pro-
nome pessoal na primeira pessoa do singular para ajudar o leitor a entender me-
lhor os desafios enfrentados na pesquisa empírica conduzida por Kalyenne Antero,
cuja condição de gênero feminino “impôs” limites e desafios descritos ao longo do
texto.
109
Quando se pensa na corporeidade das presas e quais os impactos da
prisão nesses corpos, subtende-se que a condição de estar presa, isto é,
privada de liberdade, retira-lhe diversos direitos e benefícios conquis-
tados na rua e que isso, obviamente, tem implicações sobre o corpo de
cada uma delas. O acesso e uso de roupas são exemplos disso. Na pe-
nitenciária, as mulheres não podem usar as roupas que desejam, já que
existe um protocolo na instituição que define o que pode e o que não
pode ser usado: cada presa só pode manter consigo quantidade limitada
de blusas, shorts, calcinhas, sutiãs e outras peças femininas. No espaço
das celas, as internas têm “liberdade” para se vestirem como desejam,
entretanto, fora dela devem vestir o fardamento de cores: branca e rosa,
cedido pelo governo de Estado. A obrigatoriedade do uso do farda-
mento fora das celas surge frente aos olhos daqueles que ultrapassam
o portão principal da penitenciária feminina como a marca inicial de
controle que o aparato estatal exerce sobre a vida das mulheres presas.
Paralelamente a indistinção das roupas no espaço externo às celas,
têm-se a alimentação e os serviços de saúde que também apresentam
restrições. Diariamente a penitenciária serve três refeições às presas.
Para aquelas cujos familiares que as visitam trazem gêneros alimentí-
cios, essas podem desfrutar de complementos alimentícios, tais como
biscoitos e frutas. Sobre os atendimentos médico, as internas podem
se consultar com os profissionais disponibilizados pelo presídio. Essas
restrições e limitações são características de instituições fechadas, como
a Penitenciária Regional Feminina de Campina Grande, tal como de-
finidas por Goffman (1974), em seu importante estudo sobre as insti-
tuições totais.
Essas restrições exercem influência sobre os corpos das mulheres
aprisionadas. Portanto, o debate sobre o corpo das mulheres apenadas
pode ser percebido enquanto um problema sociológico fundamental,
embora pareça ainda não ter merecido a devida atenção da maioria
dos estudos realizados sobre o universo penitenciário brasileiro. Exis-
tem estudos sobre corporeidades abordando práticas de lazer, esportes,
ocupação da cidade, mas pouco se têm notícias sobre estudos voltados
para as transformações dos corpos femininos no mundo prisional. Do
mesmo modo, as pesquisas sobre prisões vão ao sentido linear de in-
vestigar o número crescente de mulheres presas por tráfico de drogas, a
110
maternidade no cárcere, a influência do movimento feminista na vida
das mulheres presas, identidades de gênero e mulheres em situação de
lideranças na prática de crimes, etc.
111
e presídios femininos também são outros espaços que têm possibilitado
novos rumos de compreensão e saber para a comunidade acadêmica.
Uma das principais consequências ocasionadas na vida das mulheres
presas é o sentimento de solidão que se produz. Muitas, para “sobre-
viverem” criam e ressignificam a existência a partir de redes de apoio
construídas no próprio presídio. Essas ressignificações podem ser vistas
como forma de resistência às consequências negativas produzidas pela
solidão. Contudo, como observou Foucault (2014), a solidão faz parte
do projeto penitenciário de produzir reflexões nos indivíduos sobre os
quais as forças estatais sobrepõem o seu poder através das grades da
penitenciária e de todos os limites impostos.
Entre as pessoas que nunca foram à prisão, talvez muitas tenham
visões que são alimentadas por informações genéricas e pré-noções
de como as leis funcionam nos sistemas prisionais. Todavia, salta aos
olhos, tanto do cidadão comum quanto daqueles que estudam o fenô-
meno, como a prisão limita os movimentos dos corpos aprisionados,
exercendo controle que leva a provocar transformações sobre aqueles.
Entretanto, nem sempre as prisões foram espaços de correção desses
corpos. Vejamos, portanto, uma retrospectiva das formas de punição
em séculos passados e os reflexos disso na sociedade em que estamos
inseridos.
Em um primeiro momento, houve um esforço de pesquisas avan-
çadas, para mostrar os diferentes métodos de punição utilizados anti-
gamente contra as mulheres e como eles funcionavam. Nos estudos
consultados, o surgimento de cada método punitivo e/ou castigo não
apresentava paridade, por isso nos detivemos aos séculos que prece-
dem, mas também ajudaram a fundar a chamada modernidade, com
a emergência da Revolução Francesa. É certo que nem todas as formas
de castigo, em grau intenso, tenham sido aplicadas exclusivamente às
mulheres, mas fizemos tal esforço de não nos tornarmos tautológica,
mesmo que priorizando a discussão da punição cometida ao público
estudado.
Em uma perspectiva histórica, surgiram os suplícios, considerados
formas de punição aplicadas aos corpos de pessoas condenadas. Fou-
cault (2014) descreve em detalhes uma prática de suplício no século
XVIII, em que um homem chamado Damiens foi obrigado a pedir
112
perdão publicamente aos que ali se encontravam por um crime de par-
ricídio. A descrição do ato violento pode ser considerada uma técnica
que exerce uma espetacularização da cena, com efeitos de produzir uma
quantidade de sofrimento no indivíduo, assim como outros modos de
punir o sujeito, seja através da decapitação, esquartejamento, mutilação
e outras formas de tortura.
A ideia de que a punição era, em essência, um espetáculo público
(DAVIS, 2018) e tal prática não tinha dimensões de gênero. O exemplo
acima, apesar de praticado contra um homem, não isentava as mulheres
dos processos de torturas. No século XVII, na Inglaterra, as mulheres
consideradas conflituosas eram punidas com “mordaças”. O apedre-
jamento – prática que ainda existe em países do Oriente Médio e da
África – era destinado às pessoas que cometessem o adultério, neste
caso, prática considerada direta contra as mulheres. De todo modo,
essas e outras práticas infligidas às mulheres, raramente, foram discu-
tidas e aprofundadas por literaturas que envolvem o sistema prisional
feminino brasileiro.
Antes das prisões, as mulheres do período medieval viveram proces-
sos de torturas corporais. A gaiola de ferro era um objeto utilizado na
cabeça da mulher que falasse “demais”, pronunciasse palavrões ou qual-
quer atitude desviante. No caso do banco encurvado, homens e mulhe-
res, com ênfase para as mulheres, deveriam sentar-se, e que também era
uma punição como meio de humilhação. Outra punição recorrente,
em meados do século XVI, eram marcas feitas com ferros nos corpos
de mulheres prostitutas; a intenção era a de marcar essas pessoas com
um ferro quente e, depois, expulsá-las das cidades. Com esse resgate de
punições aplicadas às mulheres, percebem-se as fases em que os méto-
dos punitivos foram aplicados e como o castigo era aplicado, em sua
maioria, nos corpos dos condenados.
É fato que algumas realidades como a decapitação e a presença das
pessoas em praça pública para aplaudirem tais atos foram, de fato, ex-
tintas. Essas práticas punitivas foram substituídas pelo poder e controle
exercido sob patrocínio do Estado moderno. É nas instituições totais,
fechadas e controladas rigidamente que o sistema exerce o seu poder
sobre os aprisionados. Não obstante, reforçamos a nossa noção de po-
dermos compartilhar também das concepções foucaultianas. Já que o
113
autor vai entender o poder, não somente enquanto institucionalizado,
concentrado, mas como resultados das relações e práticas que são dis-
seminadas por toda a estrutura social, presente inclusive nas relações
entre as próprias presas.
Essa perspectiva do poder é interessante, pois demonstra o poder
enquanto algo real e que possui uma eficácia produtiva. Ao transfigurar
para o espaço prisional, percebe-se que o poder também fabrica o tipo
de ser humano, neste caso, mulher, necessário para o funcionamen-
to da sociedade capitalista, ou seja, mulheres que sejam obedientes/
disciplinadas e que contribuam para a manutenção (tranquilidade) do
espaço físico e que possam se tornar úteis, ou seja, aptas a produzirem/
trabalharem quando saírem da prisão. “E é justamente esse aspecto que
explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para suplicá
-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo”, (FOUCAULT, 1979,
p. 16). Claro que frente às normas e práticas prisionais, as mulheres
resistem com base em seus desejos.
Na sequência das reflexões teóricas, um autor como Giddens (2002)
nos oferece reflexões interessantes para a compreensão do universo pri-
sional feminino. O sociólogo inglês apresenta o conceito de casulo pro-
tetor e de segurança ontológica como chaves analíticas que nos ajudam
a pensar sobre nosso universo de pesquisa. O casulo protetor é citado
como uma carapaça defensiva, isto é, o ambiente vital em que o sujeito
obtém uma segurança pessoal. O uso do conceito de casulo protetor
pode gerar dúvidas sobre a sua aplicabilidade para pensar o universo
prisional, pois embora julguemos as celas como “espaços protegidos”
para cada interna, é preciso não perder de vista que são ambientes cole-
tivos e não individuais. Por outro lado, claro que há diferenças eviden-
tes e consideráveis em relação às casas familiares, nas quais, boa parte de
nossas interlocutoras residiam antes de “caírem” na prisão.
Pensar nas celas como casulo protetor significa reconhecer tal lu-
gar no interior da Penitenciária Feminina do Serrotão como lugar so-
cial no qual se produzem algumas das mais importantes e, por vezes,
recorrentes formas de interação cotidiana entre as internas. É lá, por
exemplo, onde repousam, dormem, usam as roupas com liberdade que
não encontram fora das celas, conversam “livremente” com as colegas
de cela, onde igualmente realizam evento tão singular para a vida na
114
mencionada prisão, o dia da beleza30. Como em todo lugar socialmen-
te produzido, também no casulo protetor, as situações de equilíbrio e
harmonia podem ser rompidas de maneiras temporárias ou definitivas.
E, no mundo prisional, tenso por excelência, essa possibilidade sempre
latente pode se transformar para uma situação conflituosa de hora pra
outra.
Uma segunda contribuição importante de Giddens é o conceito de
segurança ontológica, compreendida enquanto sentimento que tem li-
gação com o inconsciente do sujeito e na crença de continuidades das
coisas e pessoas. No caso específico dessa penitenciária, essa segurança
ontológica pode ser vista em funcionamento durante os dias de visita,
quartas e domingos. Nesses dias, a penitenciária fica muito mais mo-
vimentada, graças à presença de familiares e amigos. A quarta-feira é
reservada às visitas íntimas e o domingo às visitas dos familiares. As
ocasiões de reencontro com parentes e amigos servem para que as pre-
sas possam realçar seus laços de pertencimento aos grupos externos aos
quais, mesmo distantes fisicamente, ainda pertencem, tal como atestam
a presença dos visitantes que lhe dizem, através de suas presenças, que
elas continuam sendo importantes e consideradas, ainda que fisicamen-
te estejam ausentes. Receber visitas representa ser portador de capital
social considerável para quem estar na prisão, não apenas pelas ajudas
materiais que possam receber, como alimentos e vestuários, mas tam-
bém pela confirmação da permanência de muitos laços relacionais para
além dos muros da penitenciária, o que acaba por exercer influência na
vida no interior da instituição total. A alegria manifestada pelas presas
ao ver seus parentes e familiares é algo que mexe com seus corpos e suas
almas. Para que o nobre leitor e leitora possam imaginar tal situação,
ela produz algo semelhante àquilo que sente um viajante distante muito
tempo de sua família e certo dia a reencontra. Paradoxalmente à alegria
sentida com a chegada das visitas, a tristeza se produz com suas partidas
ao final do horário das visitas. Obviamente existem dias que ninguém
aparece para visitar uma ou outra presa, assim como há aquelas que
30 A informação sobre o dia da beleza – momento em que as presas podem fazer as
unhas, cabelos, maquiagem e outros processos que envolvem o uso de artefatos e de
cosméticos – foi repassada pela atual diretora do presídio, datada na primeira ida à
Penitenciária Feminina de Campina Grande em 11/07/2019.
115
se veem abandonadas pelo circulo familiar e de amigos. Para essas, O
“abandono” é atestado pela ausência. Já para as que são visitadas, mes-
mo com a partida após o encerramento da visita, fica o sentimento de
pertencimento, de carinho, de cuidado que os visitantes, por tantos
meio físicos e linguísticos, trazem até suas conhecidas penitenciárias.
O que se sente no interior da penitenciária certamente não é dife-
rente do que elas sentiam fora do mundo prisional. Provavelmente, o
ambiente prisional possibilita uma gangorra de sentimentos, ou seja,
uma maior concorrência de seus eventos. Contudo, aqueles que dis-
põem de maior capital social têm a seu dispor um conjunto maior de
instrumentos para enfrentar situações de solidão, de medo e tantos ou-
tros “monstros” existenciais.
A vida na Penitenciária Feminina do Serrotão obedece a um con-
junto de regras e horários de atividades que também servem de orienta-
ção para a vida das internas. Portanto, elas sabem, em princípio, o que
ocorrerá ao longo da jornada, em especial as que desenvolvem trabalhos
internos. Isso acaba por produzir uma consciência nessas mulheres de
como elas devem agir (e sentir) minimamente seguras.
Entre intempéries e permanências no mundo penitenciário, é im-
portante destacar a realidade de superlotação nos presídios31, diagnos-
ticada nos mais distintos ambientes de encarceramento, e também foi
constatada na Penitenciária Regional Feminina de Campina Grande.
O local conta atualmente com 93 presas32. Os últimos dados publica-
dos pelo Levantamento Nacional da Infopen Mulheres33 são do ano
de 2016, e de lá para o atual momento, percebe-se uma desatualização
dos dados estatísticos do Sistema Penitenciário Brasileiro Feminino. O
documento aponta que, em 2016, foram registradas 42.355 mulheres
31 Superlotação aumenta e número de presos provisórios volta a crescer no Brasil.
Notícia acessada em: 29/07/2019.
32 É importante destacar que o número é variável, já que no presídio existe uma al-
ternância de presas sem julgamento (provisórias), condenadas e as que respondem
crimes em regime semiaberto. Esse número de presas foi informado no dia da
primeira visita: 11/07/2019.
33 Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Documento disponível na internet: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/
infopen- mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf. Acessado em: 29/07/2019.
116
que compõem a População Prisional Feminina. O Brasil se encontra
em quarto lugar dos doze países que mais encarceram pessoas em geral
no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos, China e Rússia.
A lista segue com a Tailândia, Índia, Filipinas, Vietnã, Indonésia, Mé-
xico, Mianmar e Turquia, sequencialmente. Na população carcerária
feminina, o Brasil está em quinto lugar, já sobre o número de mulheres
encarceradas por Unidade de Federação, São Paulo é o Estado com o
maior número de presas (15.104); a Paraíba concentra o total de 615
aprisionadas.
O documento ainda revela um perfil prisional feminino no Brasil,
com as seguintes características: em sua maioria são jovens, considera-
das até 29 anos, segundo classificação do Estatuto da Juventude (Lei
no 12.852/2013). No que diz respeito ao item raça, cor ou etnia, 62%
da população prisional feminina é composta por mulheres negras. É
oportuno destacar que, no documento, há uma constatação da lacuna
de dados com recortes de gênero, reforçando a leitura que os estudos de
mulheres nas prisões apresentam especificidades significativas do pró-
prio grupo.
117
(medicina, nutrição, psiquiatria, odontologia) o corpo físico aprisiona-
do? As respostas para esses questionamentos foram reveladas, no cam-
po, pelas interlocutoras desta pesquisa: as mulheres presas.
Os métodos punitivos que, vagarosamente, passaram a ser extintos
e transformados em uma realidade vigilante e monitorada pela prisão,
possibilitaram caminhos de análise até chegar ao debate sobre o corpo
feminino no sistema prisional. Corpos que podem ser marcados por ta-
tuagens, cicatrizes, curvaturas em consequência da subordinação social
e institucional e memórias de eventos marcantes em suas existências,
cujas marcas mais visíveis nem sempre são capazes de tornar visíveis as
dores que carregam consigo.
Numa obra singular, Bourdieu vai denominar o que é habitus. Para
ele, esse pode ser entendido enquanto uma interiorização das estruturas
sociais, isto é, ele é incorporado através de mecanismos inconscientes.
O habitus, portanto, é fruto das condições sociais nas quais vive o su-
jeito. Quando as mulheres são encaminhadas para o presídio, elas já
têm pré-noções sobre o que é a penitenciária; elas têm gostos, vontades
e costumes já definidos em suas vidas. Obviamente ao chegarem no
“novo mundo”, algumas dessas práticas consolidadas em suas vidas en-
trarão em choque com o que se apresenta no mundo prisional.
Tendo clareza que, muitas vezes, os conceitos podem ser tomados
como referenciais estáticos; é importante que recorramos a outro con-
ceito do mesmo autor, pois, a partir da relação entre os dois conceitos,
poderemos melhor pensar a vida das mulheres na prisão. O habitus se
configura e será sempre praticado em campos relacionais, em que múl-
tiplas relações se apresentam, muitas das quais contraditórias entre si.
Em outras palavras, o campo é um “sistema” ou “espaço” estruturado
de posições.
Portanto, conhecer quem são essas mulheres aprisionadas e onde
estavam antes da situação prisional é parte de uma realidade que se
apresenta configurada a partir de múltiplas trajetórias do ser femini-
no. Mulheres que nas ruas estavam no trabalho, no lar, em cargos de
lideranças, na luta, no sindicato, nas empresas, na construção civil, nos
protestos, no bar ou mesmo no crime. É difícil não falar das mulheres,
sem mencionar as questões de gênero e as lutas feministas, já que a nos-
sa leitura é a parte de temas transversais, que dialogam e que impactam
118
os movimentos, transformando os sujeitos participantes. Por isso, res-
peitando essas diferentes trajetórias de mulheres, brancas, pardas ou
negras, pobres ou de classe média, apoiamo-nos no conceito de inter-
seccionalidade discutido em Valéria Silva (2016).
Nessa compreensão teórica, as mulheres são entendidas enquanto
atrizes sociais marcadas pelas esferas subjetiva e estrutural. E assim nos
propomos a pensar a interseccionalidade, inclusive, na situação das mu-
lheres na prisão, no sentido de considerarmos que nossas interlocutoras
poderiam apresentar significações sobre o que é ser mulher a partir de
suas experiências e com diferentes recortes de raça, classe e gênero. Por
isso, consideramos que o impacto da prisão em suas vidas é tão impor-
tante, pois nos ajudaram a melhor elaborar essas compreensões analíti-
cas, seja a partir dos discursos, do corpo, dos sentimentos.
A autora mencionada anteriormente contribui com o debate apre-
sentando o conceito de interseccionalidade como resultado do movi-
mento feminista. Sucintamente, os movimentos sociais são formados a
partir de uma identidade coletiva, ou seja, a construção de redes com-
plexas que envolvem variados atores e interações. O feminismo é tido
como tendo caráter multifacetado, moldando-se às realidades locais.
Nas palavras de Silva, o movimento feminista é “uma rede que admite
uma diversidade de discursos e práticas em torno do que se chama,
genericamente, a causa das mulheres”, (SILVA, 2016, p. 121).
119
as dirigentes estavam de folga. A informação me causou surpresa, já
que existia um combinado entre mim e uma das diretoras. Foi notório
que fiz uma cara de desânimo para os dois agentes que me atendiam, e
como a motorista já havia saído, o que me restou foi esperar por outro
transporte dentro da penitenciária. Saí de casa com o propósito de con-
versar com a diretora e poder acompanhar mesmo que, minimamente,
alguma das rotinas das presas. Em contrapartida, o saldo dessa ida ao
presídio me gerou conversas informais com um agente penitenciário.
Ao final, consegui voltar para casa, com uma corrida acertada com um
mototaxista de confiança do meu companheiro.
Após alguns dias, retornei à penitenciária e fui atendida por uma das
dirigentes. Empolgada, fui tirando rapidamente a autorização do juiz
de dentro da bolsa para mostrar que, dessa vez, eu estava apta para co-
meçar o meu estudo. É importante destacar que não foi fácil conseguir
esse papel. Na verdade, não era apenas um papel, mas o ofício que me
autorizava a iniciar a pesquisa na Penitenciária Regional Feminina de
Campina Grande, Complexo do Serrotão.
De todos os entraves burocráticos, com certeza, esse, até então, foi
um dos maiores. Apesar de todos esses percalços, o mais importante foi
alcançado: eu havia conseguido a autorização do juiz. Além da auto-
rização do juiz, fui informada de que era também necessária a autori-
zação da Gerência Executiva do Sistema Penitenciário de João Pessoa,
a Gesipe. O órgão exigia aproximadamente onze documentos, entre
certidões negativas, folhas de antecedentes criminais, carta de recomen-
dação, ofícios, documentos pessoais e outros papéis.
No total, eu precisei me deslocar cinco vezes para conseguir o que
queria. Nas idas e vindas, os funcionários sempre acrescentavam um
documento a mais, o que causou certo estresse e desgaste emocional.
Após reunir a documentação exigida, eles me informaram que o prazo
para o recebimento da folha de antecedentes criminais seria de oito
dias. Como a minha folha de antecedentes já estava pronta, agora, res-
tava-me aguardar pela emissão da outra folha de antecedentes criminais
de meu orientador.
A composição dessas narrativas e acontecimentos, e que fugiam, por
diversos momentos, de uma linearidade, faziam-me achar que não exis-
tia sentido na minha experiência de campo. Para a minha surpresa, o
120
sentido e compreensão dos dados só me foram revelados posteriormen-
te, sobretudo, durante o processo de olhar para as falas que me foram
reveladas. Sobre isso, eu pude aprender (ainda mais) com Geertz (1978),
quando o estudioso falava sobre descrição densa:
121
e-mail, endereçados a Gesipe. Já o plano B, como se lê, seria executa-
do com a ajuda de Isadora35. Embora eu tivesse opções de caminhos
para adentrar no campo de pesquisa, ambas as escolhas permaneciam
travadas.
Foi numa sexta-feira que consegui contato com a diretora-geral da
Penitenciária. O combinado foi que eu poderia começar a pesquisa na
segunda, às 14 horas. Depois de tantas dificuldades, eu ainda não acre-
ditava que conseguiria começar a coleta dos meus dados. Por diversos
momentos, estive questionando qual o nosso verdadeiro lugar de au-
toridade enquanto cientistas e pesquisadores, ao investigar instituições
fechadas como a prisão? Fui percebendo que para sobreviver a esse e
outros questionamentos, eu precisaria responder essas perguntas.
Em conversas com as diretoras da unidade, falei de alguns crité-
rios que defini na pesquisa e, a partir disso, fui para uma sala vizinha
à direção aguardar que elas [minhas interlocutoras] chegassem. Esse
local me foi disponibilizado durante toda a pesquisa. Uma sala peque-
na, com um gabinete, cadeiras, ventilador e outros objetos. Embora eu
não tenha utilizado todo o espaço, serviu-me bastante. Já a escolha das
apenadas, se deu através da direção, que buscou contemplar os critérios
estabelecidos na pesquisa, quais sejam, entrevistar presas recém-chega-
das na prisão, algumas que já estivessem cumprindo entre 4 e 6 anos
de pena e outras que já fossem “antigas” na cadeia, com mais de 6 anos
“de casa”.
Finalizadas as dez entrevistas, despedi-me da diretora, agradeci todo
o apoio e disponibilidade em me receber durante os dias combinados.
Ela me convidou, também, para retornar no final do mês de janeiro,
que seria quando as atividades de saúde voltariam a funcionar, para que
eu acompanhasse um dia de rotina e exames feitos pelas presas. Agrade-
ci o convite, mas não pude confirmar, já que o meu tempo, agora, seria
curto e eu precisaria correr para analisar os dados da pesquisa e escrever
seus resultados em forma de trabalho científico. De todo modo, “deixei
a porta aberta” caso eu precisasse voltar.
ALIMENTAÇÃO
35 Isadora foi uma das facilitadores (e fonte) importante em meu percurso de pesqui-
sa. Ela foi capaz de mediar o meu contato com funcionários da penitenciária.
122
Por trás de cada um dos nomes fictícios, existem de histórias que se
aproximam e/ou se distanciam de outras histórias narradas em presí-
dios femininos pelo Brasil. A primeira detenta com a qual conversei
gosta de ser chamada pelo sobrenome, mas, no texto, foi identificada
como Dandara36. Ela tem 33 anos, embora não aparente. Estatura baixa,
corpo e um estereótipo de jovem: roupas folgadas, usando um pequeno
alargador na orelha e um par de chinelos havaianas. Dandara se sentou
ao meu lado e conversamos como se já nos conhecêssemos. Talvez, ela
tenha tido a intenção de impressionar e honestamente não parei para
pensar nisso. Ela “residia” na prisão há 12 anos e me contou que “pegou”
26 de cadeia, por causa do crime de latrocínio, também conhecido por
roubo seguido de morte.
Durante a nossa conversa, Dandara se identificou como a ”bombril”
do presídio, quer dizer uma pessoa que tem muitas funções dentro do
espaço, inclusive, lembrando a expressão utilizada em comerciais tele-
visivos como “bombril, 1001 utilidades”. Além de instalação elétrica, a
presa contou que era responsável pelo cuidado dos jardins e que estava
no processo de construção de uma horta com produtos alimentícios
como coentro e mostarda. A série de atividades desempenhadas por
Dandara reforça a noção de poder (FOUCAULT, 1979): a fabricação e
o tipo de sujeito que a se propõe: obediente.
Na fala de Dandara, a comida não foi um elemento recorrente, já
que, em sua opinião, sempre teve o mesmo corpo (magro) com exceção
do período em que perdeu a mãe, chegando a pesar 37 quilos. Com esse
peso, ela sairia da condição de magra para uma em que a quantidade
de massa muscular ficaria abaixo do esperado. Só que a relação com o
alimento não foi a mesma para todas.
Cibele e Nise são duas detentas que tiveram opiniões diferentes so-
bre quando questionadas das mudanças corporais que tiveram nos es-
paços prisionais. Cibele já está na cadeia há 3 anos, só que segundo ela,
o tempo de sua pena foi calculado em 24 anos por causa de tráfico de
drogas. Foi na prisão que Cibele disse que alguns “quilinhos” ficaram
mais evidentes. Em conversa, a presa revelou que na rua fazia tratamen-
to, por causa de problemas emocionais e que seria a comida a porta de
36 Os nomes de todas as interlocutoras serão substituídos por pseudônimos, como
forma de preservar suas identidades.
123
saída e fuga dos problemas mundanos. Hoje, na prisão, ela é uma das
responsáveis pela comida de quatro equipes de agentes penitenciários.
No caso de Nise, que já está no presídio há 6 anos, condenada por
38 anos e 6 meses de privação de liberdade, após o crime de homicídio,
a comida seria a “vilã”, por provocar a tão temida “barriguinha”. Ante-
nada em exercícios físicos, ela confessou passar horas malhando, dentro
da própria cela. Ao contrário de Dandara e Cibele, Nise não trabalha,
mas participa das aulas de ensino regular de manhã e do Projovem
de tarde. Agachamento sumô, avanço e stiff são alguns dos exercícios
praticados pela mesma. Apesar de não os fazer mais, pelo menos cinco
tipos de abdominais também já fizeram parte da rotina de atividades
de Nise.
Segundo as presas, apesar de não faltar comida, existe pouca varie-
dade. As detentas me contaram que no almoço comem o considerado
comum: arroz, feijão, macarrão e um tipo de carne. Para comer frutas,
legumes, bolo ou qualquer outro tipo de item, é preciso que as visitas
levem aos domingos. Enquanto umas acham que não é boa a alimen-
tação no presídio, outras dizem que lá na prisão, às vezes, não acertam
o “ponto”, mas ele [o Estado] dá o pão de cada dia, coisa que muita
gente na rua não tem. Essa comparação de gosto e sabor da alimentação
também é discutida no texto de Rudnicki (2011), sob o seguinte olhar:
Soraia foi uma das presas que reconheceu que o pão, de todo “san-
to” dia, não falta nas mesas do presídio. Conforme ela, existe uma su-
pervisão na cozinha feita pelas presas cozinheiras. A contrapartida é
que, mesmo se existisse uma nutricionista, não seria possível ter uma
alimentação balanceada, já que faltam frutas, legumes e verduras. Por
mais que Soraia falasse da ausência desse tipo de profissional, também
124
existe gente que sequer sabe o que significa essa formação. Durante a
nossa conversa, Helena me perguntou: Nutricionista? O que é isso?”.
Helena pode até não ter entendimento dos profissionais que estudam
(mas não só) a alimentação saudável, mas Nise e Dália entendem de va-
lores calóricos e do que pode não “cair” tão bem na alimentação diária.
Para Dália, a famosa papa de biscoito é “tiro e queda”, ou seja, comeu
e engordou.
Outra mulher encarcerada que tive a oportunidade de conversar foi
Pâmela. Ela foi uma das presas que mais elencou adjetivos para falar da
prisão. Da boca dela, eu ouvi que “sempre tem médico pra nóis”, “as
agentes sempre tão de plantão”, “nóis prega os olhos, as agentes não”,
“tem horário pra tudo” e “a comida é sagrada”. Durante essa entrevista,
uma agente penitenciária esteve acompanhando uma escuta, sentada
alguns centímetros de distância de nós duas: eu e a detenta. De início,
achei estranho, já que em outras conversas, fiquei a sós com as pre-
sas. Mas, não contestei. Respeitei. Apesar de todo o discurso que me
foi dito pela presa, nada me convenceu de que existiu um controle de
impressões e que isso se deve a uma fachada (GOFFMAN, 1996), já
que eu não tive acesso aos bastidores do presídio, embora seja razoável
supor que tal presença nessa ocasião em particular tenha uma signifi-
cância em relação ao lugar ocupado pela presa nas relações ali estabe-
lecidas e talvez, por isso, ela tenha merecido essa “homenagem” de ser
escutada, ao contrário das demais entrevistadas.
A relação dessas mulheres em situação de cárcere com a alimentação
e como elas podem estar relacionadas às mudanças corporais mostram,
na verdade, aspectos que a antropologia pode considerar como simbó-
licos, já que existe uma maneira como cada grupo, nas sociedades hu-
manas, tem de se relacionar com os alimentos. As considerações sobre
o que elas comem, compreendem e valorizam por comida, diferem em
alguns aspectos, mas apresentam fatores ainda que positivos, quando
comparados com a realidade de outros sistemas prisionais brasileiros.
ADOECIMENTO
Presas como Cibele afirmam que alguns exames são obrigatórios, como
é o caso do exame de sangue para diagnosticar a sífilis. Não precisou
conversar durante horas, para que ela me contasse uma de suas histórias
125
íntimas. Tratava-se de uma história vivida lá na rua, mas jamais es-
quecida por Cibele. “Olha, certa vez, houve uma história de que meu
ex-marido estava me traindo. Minha mãe colocou na minha cabeça de
que eu devia fazer esse exame pra saber se eu tava com a doença e aqui,
na cadeia, nunca mais deixei de fazer”.
Do contrário, Nise acha que não precisa ir ao médico, pois a própria
se analisa: “sou muito saudável” embora ela tenha contado “tive umas
dores no joelho recentemente” e “preciso fazer uma endoscopia, acho
que tô com alguma coisa no estômago”. Eu ainda perguntei se ela teria
medo de ir para as consultas, por ter observado resistência de sua parte
para participar dos atendimentos médicos, só que ela me retrucou di-
zendo “eu sou muito corajosa, não vou mesmo, pois não preciso”.
Os serviços psicológicos não foram vistos como prioridade para a
detenta, mas confessou ter ido uma vez, só por curiosidade, “eu fui uma
vez só pra conhecer, curiosidade, né?” Diferentemente do serviço odon-
tológico, que Nise reconheceu “eu tô precisando tanto”. Apesar de o
atendimento com o clínico geral estar disponível, uma vez por semana,
foi frequente ouvir das mulheres presas que só o procuravam quando
era obrigatório ou quando estavam sentindo alguma dor, mostrando
que os exames de rotina nem sempre eram respeitados.
Outras, em menor quantidade, mostraram certa resistência para fa-
zer exames. Com essas informações, percebo quão diferentes podem
ser as realidades prisionais. Preciso dizer que, é óbvio, não tive acesso a
todas as falas e narrativas das presas, mas somente o que elas acharam
pertinente me contar e sobre as pautas que foram surgindo durante as
entrevistas. Essas experiências, sobre o ter saúde e adoecer na prisão,
mostram como somos particularizadas nessas questões, tendo em vista
que a saúde ocupa um lugar individual na vida de cada uma.
MEMÓRIAS
Ter privilégios, na rua, é uma coisa, na cadeia, é outra. Na rua, a grande
maioria das pessoas conseguem comprar desde a colônia, adocicado ou
mesmo importado, em muitas parcelas ou não, um perfume. Na peni-
tenciária, as presas não têm esse acesso, com exceção de algumas como
é o caso de Dandara. Na visão da detenta, poder usar várias roupas e
perfume é muito bom. “Não é querendo ser melhor do que ninguém
126
aqui, mas isso ajuda na nossa autoestima”, justificou ela. Mas é preciso
explicar: Dandara faz parte do grupo de presas que trabalham na casa e,
por isso, ela tem o direito de usufruir desses “privilégios”.
A rua também pode ser entendida como sinônimo de saudade.
Além delas não terem acesso a essa territorialidade, é também o lugar
onde estão seus familiares, filhos e companheiros. Em alguns momen-
tos das entrevistas, vi mulheres se emocionarem ao recordarem do que
viviam lá fora e eu, sem saber muito como acolhê-las, permaneci em
silêncio respeitando esse sentimento nostálgico.
Ainda que exista o drama de muitas mulheres que não recebem
determinadas visitas na prisão, a rua também é espaço autorizado para
os estudos e trabalho. A relação das presas com a escolaridade pode ex-
plicar quando um número significativo das mulheres que se encontram
privadas de liberdade tem somente o nível fundamental incompleto.
No sistema prisional, algumas voltam aos estudos, enquanto outras
abandonam o estudo, dentro da prisão, por alegarem trabalhar o dia
inteiro.
Embora os discursos tenham particularidades, o comportamento
das presas se repete do mesmo modo como é ensinado nas escolas in-
fantis: andar em fileiras, mãos para trás e cabeça baixa. Pâmela reagiu
exatamente assim, após o término da nossa conversa. Andando em li-
nha reta, as mãos entrecruzadas e a cabeça baixa, despedindo-se assim:
“Foi um prazer a senhora ter vindo. Deus abençoe”. O que Foucault vai
entender é que, na verdade, não se trata de “cuidar” do corpo, em mas-
sa, mas de estabelecer o controle sobre esses corpos ativos, seja através
dos movimentos, gestos, atitudes ou rapidez. Assim, todos esses méto-
dos que permitem o controle minucioso do corpo são o que o autor vai
chamar de disciplina. Com esse entendimento do corpo controlado e
disciplinado, penso que chamá-lo de corpo subordinado também con-
tribuiria para exprimir, em palavras, o que vi no mundo prisional.
Cada presa chega à penitenciária trazendo consigo seus hábitos,
como já discutidos no diálogo com Bourdieu. O gosto pelo trabalho
ganha destaque na fala de Helena, uma das presas que trabalham na
cozinha. Segundo ela, sua responsabilidade é de tudo um pouquinho:
higienizar a cozinha, colocar água nas plantas, fazer faxina nas salas e,
no final da tarde, catar feijões. Essa e outras mulheres, mesmo antes
127
de estarem presas, aprenderam que o ofício do trabalho é importante,
fazendo com que o sujeito seja moldado, ensinado a pensar, sentir e agir
de determinado jeito.
O que é lembrança na rua, também é levado para dentro dos pre-
sídios. Cuidar de si, seja através de atividades físicas, fazendo exames
médicos na prisão ou mesmo participando do dia da beleza, são formas
de nutrir o imaginário dessas mulheres que, apesar de construído aqui
fora (na rua), também é reproduzido lá dentro (na prisão).
CONCLUSÕES
Uma das primeiras conclusões a que chegamos é que as punições apli-
cadas ao corpo das mulheres são anteriores ao mundo da prisão. Esses
corpos foram marcados e sujeitados historicamente pelo controle social
que recai de maneira impiedosa sobre os indivíduos e grupos sociais po-
bres, negros e considerados perigosos. Diante de quadro que reproduz
cenários que existem desde longo curso na história, encontramos, como
alternativa para explicar os métodos de castigo, fazer uma retrospectiva
histórica das formas de punição de séculos passados e os reflexos até os
dias atuais.
Além das punições corporais, as mulheres também sofriam (e ainda
sofrem) com as punições na alma. É que o sentimento de abandono,
solidão, saudade e o medo formam cicatrizes que as nossas interlocuto-
ras se permitiram revelar, através de seus discursos. As mulheres apren-
deram a ressignificar o cuidado com os corpos, a partir dos recursos que
lhes eram ofertados e como elas consideraram que era necessário, seja
dormindo mais, comendo o que é disponibilizado pelo presídio ou o
que é levado pelos familiares durante as visitas, trocam favores com as
companheiras de celas, que se ajudam mutuamente durante as ativida-
des no dia da beleza.
Por outro lado, quando essas mulheres narraram as saudades e os
desejos: “queria tanto uma segunda chance” e “se eu tivesse uma nova
oportunidade” [histórias de Pâmela e Juliana], o próprio discurso apon-
ta para o abandono desses corpos. Mesmo que as visitas ocorram, vez
ou outra, muitas levam anos para reencontrar seus entes queridos.
O perfil encontrado das presas entrevistadas corresponde a uma mé-
dia de 33,3 anos de idade, o que é superior à faixa etária da maioria das
128
presas registradas no Brasil. De acordo com o documento Infopen Mu-
lheres 2016, em sua maioria, elas são jovens, classificadas até 29 anos de
idade. Sobre a escolaridade, variou entre casos de presas que aguardam
uma vaga na universidade, outras que dividem seus dias entre o ensi-
no regular e o Projovem. Só que também houve registros de casos de
mulheres presas que contaram ter abandonado os estudos e que sequer
acessaram o ensino médio, o que coincide com os dados do documento
divulgado pelo Governo Federal.
Os conceitos casulo protetor e segurança ontológica, sugeridos por
Giddens, foram conceitos que auxiliariam na compreensão da vivência
das presas no espaço prisional do Serrotão. Outra categoria que ganha
notoriedade no texto é a de habitus proposta por Bourdieu, cujas in-
corporações vão sendo reveladas pelas conversas com as nossas interlo-
cutoras. Com o auxílio desses conceitos, atrelado aos discursos narrados
pelas presas, concluímos que existe um processo de autocuidado com
os corpos dessas mulheres, seja por meio do que é contado ou do que
os nossos olhos puderam observar. Por outro lado, o frequente relato
da ausência do profissional da odontologia e a carência das presas com
esse tipo de serviço apontam não só para o que precisa ser melhorado
enquanto assistência de saúde dentro do espaço carcerário, mas que a
falta de cuidado bucal também pode proporcionar problemas com o
corpo físico.
Os problemas de saúde relatados na prisão feminina são semelhan-
tes entre as presas, a diferença é que não eram todas que se disponibi-
lizam a ir periodicamente às consultas médicas. Mesmo assim, elas se
queixavam de algumas dores nas costas, no estômago, algumas com o
peso acima do esperado, problemas no útero, na pele e outros casos.
Além do mais, elas entendem que o ambiente prisional também possi-
bilita um maior adoecimento, já que muitas são as mulheres que circu-
lam, entram e saem do mesmo espaço. Algumas perguntas nos foram
feitas sobre essas situações e, obviamente, não nos sentíamos capazes de
apresentar nenhum diagnóstico dessas mulheres. Apesar de tantos dis-
cursos, concordo com Silva (2014) quando vemos mulheres desejarem
a liberdade, mas, na prisão, reproduzem discursos e comportamentos
desejados. Encerramos esse texto sabendo que muito tem de nossas in-
terpretações, mas muito também do que elas, donas de suas histórias,
129
escolheram contar.
REFERÊNCIAS
130
Regional Feminina de Campina Grande (1970-2000). [Tese de Douto-
rado]. Recife, 2014.
131
CAPÍTULO 6
A LEITURA QUE LIBERTA: UMA
ANÁLISE SOBRE A POSSIBLIDADE DA
RESSOCIALIÇÃO PELO ESTUDO
INTRODUÇÃO
No campo das ciências jurídicas, a discussão em relação aos objetivos e
finalidades da pena tem sido recorrente. O Código Penal Brasileiro, em
seu artigo 59, prevê que as penas devem ser necessárias e suficientes à
reprovação e prevenção do crime. Diante do previsto na referida legisla-
ção entende-se que a pena tem por dever reprovar o mal produzido pelo
crime praticado, assim como prevenir futuras infrações penais.
Em se tratando da prevenção, uma das ações consideradas mais im-
portantes dentro do universo do sistema prisional refere-se à ressocia-
lização, uma vez que se tem essa finalidade como elemento resolutivo
de parte dos problemas causados pela criminalidade dentro e fora dos
presídios, ao apontá-la como medida inibidora de novas ações crimino-
sas. Nesta perspectiva, através de uma assistência eficaz ao egresso, no
37 Graduado em Direito pelo Centro Universitário Reinaldo Ramos. Email: caiquee-
[email protected]
38 Graduado em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestre em Direitos
Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela Universidade Federal da Paraíba.
Advogado. Professor da graduação em Direito do Centro de Ensino Superior Rei-
naldo Ramos. Email: [email protected]
132
sentido de reintegrar aqueles que por razões criminais estão afastados
do seio social, haveria a possibilidade de sua reinserção em sociedade e
como consequência o distanciamento à propensão de retorno ao meio
criminoso.
Dentre as medidas elencadas como promotoras da ressocialização,
ainda durante o período de cumprimento de pena, destacam-se o tra-
balho e a assistência religiosa e educacional. Como mencionado, no
entanto, estas são medidas garantidas – quando o são – apenas durante
o cumprimento da pena, enquanto entende-se que o preso está sob
tutela do Estado, malgrado seja relevante, neste contexto, a atuação de
instituições privadas, notadamente as religiosas.
Entendendo a complexidade do processo de ressocialização e que
cada medida adotada tem suas peculiaridades, tem-se como objeto
desta pesquisa, especificamente, a assistência educacional no sistema
prisional brasileiro, com especial preocupação a seus objetivos e eficácia
enquanto medida promotora da ressocialização. Enquanto experiência
etnográfica buscar-se-á retratar a pesquisa de campo desenvolvida jun-
to ao Presídio Regional Raymundo Asfora, popularmente conhecido
como Presídio do Serrotão, situado no Município de Campina Grande
– PB.
O problema de pesquisa se encontra estruturado nos seguintes ques-
tionamentos: a) qual a importância da educação no processo de resso-
cialização? e, b) quais as limitações do processo educacional nas prisões?
Ambas as questões refletem a preocupação, que busca esquadrinhar
como seria possível ressocializar, isto é, reinserir alguém na sociedade
sem que lhe seja oportunizada sequer a formação educacional básica.
Apesar da relevância atribuída à ressocialização como saída da crise
prisional, e de sua ampla discussão, trata-se de medida infimamente
concretizada. Ante a isto, torna-se crucial não só analisar a problemática,
como propor saídas resolutivas concretas e possíveis de serem postas em
prática e a educação, pode ser uma das saídas efetivas à ressocialização.
Como objetivo perscrutou-se ainda, através da pesquisa de campo,
compreender a estrutura física da unidade prisional investigada a fim
de avaliar se dentro da perspectiva ressocializadora ela atinge os obje-
tivos da pena, bem como se buscou levantar o perfil da população pri-
sional e o seu nível de formação educacional para assim compreender
133
a aplicabilidade do fenômeno educação enquanto elemento ressociali-
zador na prática.
A FINALIDADE DA PENA
Antes de compreender os fatores que envolveram o cárcere como forma
de punir, necessário se faz explanar a penalização do criminoso, seus
objetivos, suas subjetividades, simbolismos e seus aspectos sociais, para
que assim seja possível um entendimento completo dessa problemática
na atualidade.
A ideia de pena acompanha a própria história humana e o desenvol-
vimento das sociedades, mudando e evoluindo de acordo com as trans-
formações histórico-estruturais. Conforme preceitua Rodrigues (2019,
p. 37) depreender a pena e o desenvolvimento das prisões (tal qual o
conhecemos) é antes de tudo entender “a sua evolução na esfera política
e estatal e os problemas que permeiam o desenvolvimento das políticas
carcerárias ao longo de sua construção histórico-evolutiva”, vez que não
se trata de um dilema unicamente do campo jurídico-criminal, mas
uma questão política e social que se delineia “juntamente com a cons-
trução das concepções de Estado e poder”.
Até o século XV, a privação de liberdade era apenas um estágio antes
da aplicação das penas de flagelo ou de morte, sendo uma forma de ga-
rantir a aplicação dos castigos corpóreos e não a punição em si mesma.
Com as mudanças econômicas, políticas e sociais ocorridas durante a
Idade Média, marcando transformações nos Estados, que se expandi-
ram com as colonizações europeias, o desenvolvimento do mercantilis-
mo e a expansão das cidades, surge, então, a necessidade de um maior
controle social frente às fortes migrações ocorridas do campo para as
cidades.
Neste contexto, nascem as primeiras penas privativas de liberdade
enquanto punição aplicável, materializadas através das casas de correi-
ção europeias.
Melossi e Pavarini (2006, p. 36) ilustram que em um primeiro mo-
mento, no qual o Estado tinha que desenvolver ações para controlar
o quantitativo de miseráveis, as casas de correição (houses of corection)
serviam como uma forma de retirar os mendigos das ruas e habilitar a
massa camponesa para o trabalho, que com a retração do feudalismo
134
vagava nas cidades.
Desta forma, o Estado, através da privação da liberdade, formava
uma nova linha de produção e tentava manter o controle social e uti-
lizando o trabalho obrigatório e a disciplina, a sanção penal através
da privação da liberdade passou a servir de instrumento de controle e
higienização social (RODRIGUES, 2019, p. 44).
Com a transição do Estado Absolutista para o Estado de Direito, no
início do Século XVIII, o direito de punir ganha novos contornos, e o
Estado passa tanto a monopolizar a violência e a ordem como também
os ditames da lei. Nesta nova conjuntura, agora mais humanista, as
penas têm por função o restabelecimento da ordem interna da socie-
dade. “Nesta nova visão sobre a punição, as violências físicas devem ser
abolidas e a pena privativa de liberdade, além de punir, também precisa
servir como forma de prevenção, impedindo que o indivíduo volte a
delinquir, propiciando a sua reinserção no seio social” (RODRIGUES,
2019, p. 48).
A partir da concepção legalista e humanista e da ideia de contrato
social rousseauriano, a pena, em tese, passa a ser a punição, o castigo,
aplicado aos indivíduos que apresentam comportamento desviante do
acordado socialmente, sendo este positivado por meio de leis, que assim
ditam e explicitam o que é ou não crime. Logo, a força punitiva da so-
ciedade é imposta através do Estado e seu poder coercitivo. O que vem
ou não a ser crime em determinada época e espaço deve ser previamen-
te definido, visto tratar-se o crime de um desvio desse acordo social.
Dessa forma, seguindo a concepção jurídica do Princípio da Legali-
dade, ao qual afirma só haver crime e sua respectiva punição, se houver
uma lei prévia para que algo seja considerado um delito, e assim exista
a possibilidade de punir, deve haver uma lei anterior que defina o que
vem a ser crime. Neste sentido, é o ensinamento de Cesare Beccaria,
precursor da aplicação moderna da pena:
135
parte da sociedade) pode, com justiça, infligir a qual-
quer outro membro da mesma sociedade, penas não
estabelecidas por lei. (BECCARIA, 2012, p. 15).
Ainda, preceitua o autor que se uma pena não tenha razões justas,
a pena se torna uma atuação estatal autoritária, deixando tal conotação
clara ao dissertar que: “[…] todos os atos de uma autoridade, de um
homem sobre outro, que não derivem da absoluta necessidade, são tirâ-
nicos.” (BECCARIA, 2012, p. 13).
Logo, o direito absoluto e legal do Estado punir vem da necessidade
deste defender o meio social das possíveis violações a bens tutelados
pelo ordenamento jurídico, tais como a vida, a propriedade ou até mes-
mo bens públicos.
Ante a tal discussão e a complexidade das sociedades e estruturas
estatais, urge um questionamento: como proporcionar uma punição
justa e equilibrada para um determinado crime? A resposta não poderia
ser outra senão através do equilíbrio e individualização. Para as diversas
possibilidades de crime, seus fatores, motivos, características, especi-
ficidades, deve haver diversas penas, ou ao menos critérios diferentes
para seu balizamento, para que assim cada pena seja razoável ao delito
cometido.
As penas devem variar em graus de severidade, sempre acompa-
nhando a gravidade do crime ao indivíduo e ao tecido social. Por con-
seguinte, compreende-se que a pena segue um grau de importância de
um bem jurídico em uma sociedade, sempre variando no tempo e no
espaço, sejam por critérios morais, religiosos, econômicos, políticos,
etc. Quanto mais valioso e importante o bem, ou quanto maior o inte-
resse de determinada classe a um bem, maior ou mais grave será pena.
Assim, novamente é elucidado:
136
comum, em proporção aos interesses e erros pelos
quais os legisladores são sucessivamente influencia-
dos. (BECCARIA, 2012, p. 24).
137
que o criminoso está em dívida com a sociedade e necessita pagar, logo,
o meio para isto é o cumprimento de uma pena.
Segundo, a disposição preventiva da pena busca defender a socie-
dade para que novos delitos não venham a ser cometidos, podendo,
como o caso das penas privativas de liberdade, retirar o delinquente, o
desviante, do tecido social, isolando-o da sociedade.
Terceiro, temos o aspecto ressocializador da pena. Sua necessidade
dentro da finalidade da pena, apesar de ser evidente, não é levada em
consideração com a devida importância. Isso se mostra verdadeiro por
diversos motivos ao longo do curso da história do cárcere no mundo, o
qual nunca cumpriu com sua proposta de modo efetivo, que é sociali-
zar indivíduos, que em tese, antes foram dessocializados.
Outro assim, temos a população carcerária brasileira em constante
crescimento há décadas, conservando o mesmo perfil de preso, pobres,
negros e de baixa escolaridade. Os dados disponíveis no Departamento
Penitenciário Nacional-DEPEN mostram que, em 2019, a maioria dos
detentos são analfabetos, alfabetizados ou com ensino fundamental in-
completo e que esse público é composto, também, de forma majoritária
por pardos e negros.39
Sobre o crescimento cada vez mais crescente das pessoas privadas
de sua liberdade, Wacquant (2001) explica que, nos Estados Unidos,
a população carcerária teve um índice perto de 650 detentos para cada
100.000 habitantes, em 1997, e traz um dado importante sobre o Esta-
do Califórnia.
39 O número de pardos maior que o de negros se justifica pelo motivo dos formulá-
rios dos Estados não qualificar os presos pela raça e sim pela cor (branca, amarela,
parda, indígena e preta) e embora muitas pessoas se considerem negras não se iden-
tificam pela cor preta e sim parda.
138
atrás das grades e dois terços provinham de famílias
dispondo de uma renda inferior a metade do limite
da pobreza.( WACQUANT, 2001, p. 83).
139
Entender essa dinâmica espacial é vital para perceber como se dão
as relações entre presos e funcionários dos presídios. Em universos dis-
tintos, com regras distintas, hábitos e costumes particulares e mundos
realmente diferentes dentro do mesmo presídio. É de se deduzir que
as configurações relacionais entre os indivíduos que ali estejam sejam
complexas, e complexas de acordo com cada indivíduo. A relação de
um preso com outro preso não é a mesma que a de um preso para com
um funcionário do presídio, inclusive, sendo diferente até mesmo de
preso para preso de acordo com sua posição de moradia dentro da ala
dos pavilhões, seu status e suas escolhas de vida dentro do presídio.
Essa distinção entre tipos de presos pode ser percebida no trecho
abaixo, o qual se refere também ao Presídio Serrotão:
140
que deveria ser levado em consideração para todo e qualquer processo
ressocializador, pois fugiria da ideia inicial de ressocialização por meio
da disciplina excessiva e da imposição de qualquer projeto ressociali-
zador que não leve em conta as individualidades de cada ser. Então,
o sujeito que antes era um ser social, ativo e passivo do meio no qual
vivia, continua com essa mesma dinâmica, entretanto em outro am-
biente social.
Assim como o entendimento do espaço, a compreensão do perfil
dos presos que compõem a população carcerária do presídio é funda-
mental para tomada de decisões sobre ressocialização.
Antes é preciso esclarecer que um dos maiores problemas dos pre-
sídios atualmente é a superlotação, pois esse problema reduz as pos-
sibilidades de desenvolvimento de programas de ressocialização, seja
pelo estudo, trabalho ou qualquer outro meio, uma vez que, além de
dificultar a logística de organização dos presos, não há como ofertar, em
um único presídio, programas para todos os indivíduos.
Ademais, há que se falar que nem todo tipo de programa resso-
cializador é benéfico a todo preso. O crime, por ser um ato humano
multifatorial, não tem elementos iguais para todo aquele que o comete,
o que basta para não se falar em uma única forma de ressocializar.
A discussão sobre a superlotação nos presídios não é algo recente no
Brasil. É um tema levantado não só pelos estudiosos do meio, mas pe-
los próprios presos, que vivem e sentem de fato o problema. Ademais,
superlotação em celas, pavilhões e presídios gera outros problemas, tais
como proliferação de doenças, falta de espaço para dormir, falta de
privacidade, conflitos de convivência mais propícios a acontecerem, re-
beliões como forma de reivindicações, mesmo que de forma violenta.
O aspecto de uma prisão superlotada é de abandono do ser humano
em condições insalubres e violadoras à dignidade humana. De todo
modo, esse problema reflete apenas uma realidade, o desinteresse polí-
tico em relação a todo e qualquer assunto referente ao sistema prisional,
o que, por ingenuidade talvez, ainda não foi percebido como um pro-
blema social e que tem reflexos externos e nos índices de criminalidade,
pois todo e qualquer preso, ao seguir o curso normal de uma prisão,
voltará para a vida em sociedade.
Seguindo a pesquisa, no dia 11 de novembro de 2018, através do
141
Ofício 2080/2018/ADM/PRCGRA, foi disponibilizado que o número
total de presos naquela unidade prisional era de 1.120 apenados. Em
entrevista ao Programa 31 Minutos40, através da Rede UEPB, Ednaldo
Correia, ex-diretor de onze instituições prisionais em toda a Paraíba,
revela que, nos anos 90, a população carcerária de Campina Grande
era de 197 presos, sendo destes, 110 do Presídio Serrotão, que havia
inaugurado na mesma década com capacidade para 240 presos. Agora,
mostra-se o Presídio Serrotão com quase cinco vezes mais presos do que
a capacidade para o qual fora projetado.
Desse modo, há algumas possibilidades que explicam esse cenário
de aumento populacional carcerário. A primeira é que os índices de
encarceramento vêm aumentando desde a década de 90, com o Estado
social cada vez mais mínimo e um Estado penal maior. A segunda é que
ressocialização não está tendo resultados.
De todo modo, independente de qualquer das duas possibilidades,
o perfil de preso é majoritariamente o mesmo há muitos anos. Os diver-
sos problemas sociais, como a má distribuição de renda, falta de acesso
à saúde, educação e cultura, as desestruturações dos arranjos familiares,
são problemas que levam a uma mesma classe social a ser encarcerada
ao longo dos anos, sendo isso uma realidade não apenas campinense,
mas de todo o Brasil. Essa realidade, conforme destaca Carvalho Filho
(2002, p. 10), pode ser entendida no relatório da caravana da Comissão
de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados por diversos presídios
do país, divulgado em setembro de 2000, que aponta um quadro “fora
da lei”, trágico e vergonhoso, que invariavelmente atinge gente pobre,
jovem, e semialfabetizada.
Os dados abaixo demonstram o perfil dos indivíduos encarcerados
no presídio investigado. De forma coerente com o encontrado no res-
tante do país, as características sociais dos apenados são aquela demons-
trada no relatório apresentado pela Comissão.
Esta importante evidência nos impele a fazer oportuno questio-
namento: indivíduos pobres, semialfabetizados e jovens são o grande
número de titulares de crimes, ou, as ações das políticas de segurança
pública são focadas em combater crimes cometidos por esse perfil, ten-
do em vista a facilidade ou conveniência de prender?
40 Disponível em: https://youtu.be/L17xumHmxRI. Acesso em: 27 nov.. 2019.
142
É uma discussão impossível de ser feita em apenas um âmbito. Po-
deriam ser analisados com mais profundidade diversos aspectos, desde
o prisma jurídico, como um problema processual, até análises individu-
ais da motivação criminal e atuação das forças de segurança. Entretan-
to, cabe aqui nos atermos apenas a compreender o perfil da população
prisional do Serrotão a fim de compreendermos melhor seu universo e
o processo de ressocialização ali preconizado.
Dito isto, passaremos a análise dos dados que corroboram com o já
exposto. Inicialmente, tem-se a faixa etária dos apenados do Presídio
do Serrotão:
Através dos dados, percebe-se que a maior parte dos presos corres-
ponde a uma faixa etária entre 25 e 34 anos de idade, sendo quase 50%
dos apenados no presídio. Compreende-se ainda que presos entre 35 a
50 anos correspondem a segunda maior quantidade de apenados. Trata-
se de faixas etárias que representam a parcela da sociedade que, via de
regra, é economicamente ativa.
143
Deste modo, percebe-se que uma parcela significativa da população
masculina da sociedade que deveria estar ativa no mercado de trabalho,
produzindo e fazendo parte do processo econômico na cidade, encon-
tra-se cumprindo pena. A terceira maior parcela da população prisional
se refere aos jovens entre 15 e 24 anos, aqueles considerados em forma-
ção escolar, insta salientar que embora conste no ofício a faixa etária
entre 15 e 24 anos, estamo-nos referindo, na verdade, apenas aos jovens
entre 18 e 24 anos, uma vez que, na legislação brasileira, menores de 18
anos não cumprem penas em unidades prisionais, mas medidas socioe-
ducativas em unidades de socioeducação específicas.
Outro dado significativo é a etnia da população prisional do Serro-
tão. Os dados mostram que 78,58% da população prisional é parda e
11,99% é preta. Ressaltando-se que, na perspectiva adotada pelo Institu-
to Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estes dois estratos for-
mam o grupo étnico “negro” de modo que, a partir desta metodologia,
90,57% da população prisional do Serrotão é negra.
Considerando que, segundo o IBGE (2016), o grupo negro com-
põe 54,9% da população, os dados coletados no Presídio do Serrotão
apontam para um encarceramento preferencial da população negra, o
que dialoga com outros elementos, tais como menor acesso à renda e
escolaridade e maior vulnerabilidade à violência deste mesmo grupo
étnico, de modo que a partir destas constatações cunha-se a categoria
“genocídio do povo negro”, uma vez que esta população, segundo da-
dos obtidos a partir do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019),
também é expressamente mais vitimizada, no que diz respeito aos cri-
mes violentos letais e intencionais, do que a população branca.
Tem-se que é imprescindível analisar a questão carcerária e o pro-
blema da segurança pública como um todo, dando-se a devida atenção
à questão racial, uma vez que a prevalência do racismo (aqui entendido
para além de sua tipificação penal, isto é, compreendendo o estabele-
cimento de uma hierarquia baseada na raça, oriunda dos processos de
colonização e escravidão no Brasil), ainda que formalmente haja a pre-
visão de igualdade no texto constitucional, ainda tem grande influência
no destino dos sujeitos negros, nos mais diversos aspectos.
Desta forma, entendemos ser relevante, na discussão sobre a res-
socialização, prestar especial atenção ao marcador étnico-racial,
144
conjuntamente ao de classe e escolaridade, para melhor compreender e
solucionar os diversos problemas existentes.
Abaixo, segue o gráfico com os dados referentes à raça dos apenados
do Presídio do Serrotão:
145
Gráfico 3 – Nível de escolaridade dos apenados da Penitenciária Raymundo
Asfora (Serrotão)
A maior parte dos presos não tem nível fundamental completo, to-
talizando 871 apenados, o equivalente a 77,10% da população prisio-
nal no Serrotão. É um número alarmante, e nos mostra que boa parte
dos crimes cometidos tem como autor indivíduos sem nenhuma ou
de baixa escolaridade. Uma premissa que revela a necessidade de haver
investimento na educação, para dar acesso ao maior número de pessoas
possíveis. Ao ser identificada a existência de apenas três presos com ní-
vel superior completo, esse problema fica ainda mais evidente.
Entretanto, percebe-se que o número de presos com ensino médio
completo é maior do que o número de presos com ensino médio in-
completo. Essa realidade pode ser explicada pela facilidade de acesso
a programas de supletivo, que possibilitam, de modo mais simples, a
conclusão do ensino médio. Entretanto, ainda assim, a realidade dentro
da unidade prisional é a baixa escolaridade.
O Censo Escolar 2017 mostrou que, no respectivo ano, havia um to-
tal de 163 reeducandos/apenados matriculados no sistema educacional
146
prisional. Havido no ano de 2018, o ano dos dados de escolaridade
acima trazidos, um aumento de 12,26% de matrículas ativas na mesma
escola, totalizando assim 183 reeducandos/apenados. Entretanto, as ma-
trículas ativas nos anos de 2017 e 2018 se referem a todas as Instituições
de Ensino Prisional, o que compreende o Presídio Serrotão, Presídio
Padrão (Máxima), Presídio Agnelo Amorim (Monte Santo) e Peniten-
ciária Feminina de Campina Grande.
O mesmo Censo mostrou que em todas as instituições de ensino
havia o total de dez turmas de ensino e apenas treze docentes. Espe-
cificamente, no Presídio do Serrotão, apenas 37 presos estudavam na
época da pesquisa, como mostra o Ofício 2080/2018/ADM/PRCGRA,
o que corresponde a aproximadamente 3,30% de toda a sua população
prisional.
Ademais, pela escola estar inserida no sistema prisional, é de se de-
duzir que todo e qualquer problema existente no sistema prisional se
reflete nela. Então, o abandono estatal por meio de políticas públicas
de melhoria também ocorre na escola, o que é um problema suficiente
para, mais uma vez, enfraquecer as ferramentas de ressocialização exis-
tentes no cárcere.
Como é evidente, a educação prisional não objetiva apenas educar
e alfabetizar. O desafio é maior, pois atrelado a ela há o papel ressocia-
lizador de indivíduos que talvez nunca tenham sequer sido socializados
da maneira adequada na sociedade, sendo este, também, um grande
obstáculo a ser enfrentado por parte dos professores que lecionam nesse
ambiente.
Diante da realidade evidenciada, é possível compreender a necessi-
dade de que os professores do sistema prisional recebam treinamentos
e instruções adequadas para o trato e a pedagogia dessa parcela social
reclusa, o que não é o caso dos professores da escola no Presídio do
Serrotão.
Obviamente isso não se trata de um problema do professor, mas
da falta de assistência e incentivo do Governo do Estado da Paraíba,
que sequer valoriza necessidades básicas da educação, tais como ma-
terial e fardamento. Consequentemente, não só a educação como
ferramenta ressocializadora é desvalorizada, mas o professor também,
que não tem incentivo material para continuar lecionando e buscando
147
criar condições para que o crime se desvincule da vida e identidade dos
apenados.
Incrementando a discussão, observou-se que questões humanas e
relacionais e espaciais do Presídio Serrotão tornam dificultoso o pro-
cesso educacional do apenado. É preciso compreender esses problemas
como pertencentes à realidade dentro deste sistema social que é o presí-
dio e levá-los em consideração para poder se propor alguma alternativa
realista.
Inicialmente, a taxa de adesão de presos para estudar é baixíssima
como visto, não se trata de um problema da escola, mas de escolhas
individuais dos apenados que, mesmo com a oferta das vagas para
estudarem, veem-se ainda ligados e embutidos no universo criminal.
Problema esse que poderia ser resolvido se a escola e seus reeducandos
tivessem condições de se apartar do mundo dos pavilhões, que de fato
é o local onde o discurso criminal ainda persiste.
Um preso que estuda é tido como um “homem preso”, ou seja,
aquele que não está com a vida atrelada à criminalidade. Deste modo,
esse preso não é tão bem-visto no mundo dos pavilhões, e esse tipo de
tratamento e olhar diferenciado sobre esses presos são um estigma cria-
do, ao qual para o estigmatizado não é nenhum pouco viável essa con-
ceituação, principalmente pelo ambiente de violência que é o presídio.
Diante disso, estudar ou trabalhar no sistema prisional pode ser
uma característica que possibilita a estigmatização do preso frente aos
indivíduos que não estudam ou trabalham. Tal como não trabalhar ou
estudar pode ser uma característica estigmatizante frente aos presos que
trabalham e estudam. A melhor compreensão dessa ideia se dá pelo
exposto abaixo:
148
Destarte, compreende-se que o universo prisional e da criminalida-
de está atrelado ao sistema educacional prisional, é de se esperar, como
um dos motivos, essa rejeição dos presos para com a educação. E esse
estigma no universo prisional carrega um quesito de maior peso, pois
ser estigmatizado, no presídio, é ser rejeitado por toda uma maioria de
presos, sendo assim, significa rejeitar, mesmo que indiretamente, um
universo que o rodeia, o universo do crime. Acabar com esse problema
requer uma total reconfiguração espacial do presídio, o que, pelo histó-
rico da atuação política nesta área, não dá sinais de que possa ocorrer.
Ressaltamos que a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) insta-
lou, no presídio, um campus avançado, objetivando proporcionar for-
mação superior aos apenados. No entanto, dado o pequeno número de
presos com ensino médio concluído, o projeto pouco prosperou.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se, ao longo da pesquisa, que a ressocialização por meio da
educação tem previsão legal na Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal
- LEP) e sua efetivação é uma necessidade para fazer com que muitos
internos tenham acesso à educação e isso ajude no seu harmonioso re-
torno à sociedade.
Entretanto, o aprofundamento desse estudo mostra que ressociali-
zar vai muito além de disciplinar, de tornar o indivíduo obediente e útil
à sociedade, pois é necessário que sejam ofertados meios e atrativos para
conscientizar os indivíduos reclusos que o estudo os liberta. Liberta não
apenas das grades físicas da prisão, mas da prisão da segregação social e
intelectual. Mostrar que o estudo é um direito que acompanha o preso
como cidadão.
Percebemos ser impossível haver uma efetiva ressocialização sem
que sejam resolvidos os problemas de infraestrutura física dos presídios,
cuja precariedade faz ressaltar tão somente o caráter punitivo e segre-
gador da prisão. Igualmente, a configuração de um sistema político e
econômico baseado na exploração de uma classe por outra, salientado
pelo marcante traço racista do Estado brasileiro, dificulta a efetiva res-
socialização, atuando, em verdade, como legitimador desta estrutura
violenta e segregante.
Ademais, percebe-se uma contradição entre o já há muito anunciado
149
fracasso da prisão enquanto política de segurança pública e a sua conti-
nuidade até os dias atuais, sem que haja a menor perspectiva de revisão.
A sociedade aceita e permite a existência das prisões como forma de
melhoria social no que tange a criminalidade, mesmo sabendo que ela
não melhora e ainda piora o panorama da segurança pública.
Além disto, foi visto que, desde a criação do presídio, a população
prisional da instituição só cresce.
Foi exposta, na pesquisa, a escolaridade dos presos, mostrando o
nível de instrução da massa populacional prisional, a faixa etária e a
etnia. A maior parte dos presos não tem ao menos nível fundamental
completo, mostrando assim a necessidade de investimento e ampliação
da educação no cenário prisional. Ainda no que tange o perfil prisional,
foi visto que a maior parte dos presos são negros, à semelhança dos
dados obtidos a nível nacional em outras pesquisas, demonstrando a
influência da constituição histórica do racismo na marginalização da
população.
Visto isso, foi possível perceber que a ressocialização de toda massa
prisional está longe de ocorrer, pois ficou evidente que a maior parte
dos apenados, no Presídio do Serrotão, não estudam, não trabalham ou
não são tratados como reeducandos e sim como apenas são presos, que
cumprem seu tempo de pena e são soltos novamente.
Desse modo, as soluções possíveis para uma
ressocialização mais eficaz seriam uma mudança na política
de encarceramento e uma reestruturação física do presídio, de
modo que não só resolvam o problema da superlotação, mas
também da forma como os presos são tratados.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cessare. Dos delitos e das penas. 2º ed. São Paulo: Hun-
ter Books, 2012.
150
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27/11/2019.
151
NUNES, Clarissa, et al. História das prisões no Brasil. 1º ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009.
152
CAPÍTULO7
A REINVENÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS
NO ENTORNO DO PRESÍDIO DO SERROTÃO
INTRODUÇÃO
A maioria das pessoas desconhece como é a vida em uma casa penal,
limitando-se a compreender o funcionamento do sistema prisional
através de reportagens, filmes, livros e séries. Entretanto, é importante
perceber que existe uma organização social, política, econômica e cul-
tural feita dentro dos muros de um presídio, um organismo vivo que
cresce a cada dia e que, na teoria, o Estado deveria dar mais atenção a
esse local, pois, em muitos casos, fatos que acontecem dentro de um
presídio podem reverberar diretamente fora dele, de modo a atingirem
os habitantes das cidades que ficam em seu entorno, a exemplos de
41 Licenciado em História pela Universidade Federal de Campina Grande (2009),
Bacharel em Direito pelo Centro de Educação Superior Reinaldo Ramos - Cesrei
(2018) e Especialista em Ciências Criminais pelo Centro de Educação Superior
Reinaldo Ramos - Cesrei (2020), Professor de História e Policial Militar do Estado
da Paraíba.
42 Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, Mestrando em
Direito Constitucional pela UNESA / FARR; Especialista em Direito Penal e Di-
reito Processual Penal pela Universidade Estadual da Paraíba, Bacharel em Direito
pela Universidade Estadual da Paraíba e Licenciado em História Pela Universidade
Federal da Paraíba.
153
crimes coordenados de dentro de presídios.
Observar o sistema carcerário, em geral, é submergir em um uni-
verso paralelo, fascinante e desconhecido, em que várias forças coli-
dem constantemente, desde a criação de um estilo de vida feita pelo
apenado para resistir ao cárcere até os mecanismos desenvolvidos pelo
Estado com o objetivo de normatizar o comportamento da comunida-
de carcerária.
Nessa perspectiva, é necessário refletir a respeito do sistema peniten-
ciário brasileiro e da rede de tráfico de drogas, que ocorre dentro dos
presídios, que mediante o capital econômico que produz, financia o cri-
me organizado e mantém uma robusta comunidade carcerária advinda
do tráfico. Deve-se pontuar, também, o descaso do Estado no que tange
esse sistema, que além de criar um sucateamento nas forças de seguran-
ça dentro das prisões, delega às mesmas, de forma precária, a função
de coibir o crescimento do tráfico dentro das comunidades carcerárias.
O presente artigo pretende analisar o tráfico de drogas nos presídios
e as estratégias utilizadas para coibir tal prática, mediante amostragem
das atividades criminosas, referentes ao tráfico de drogas, no entorno da
Penitenciária Regional Raimundo Asfora, conhecida como “Serrotão”,
localizada na cidade de Campina Grande, Paraíba.
154
novos códigos”, ou seja, a forma prisão preexiste à sua utilização siste-
mática nas leis penais.
Todos os mecanismos punitivos, citados brevemente, tinham a pri-
são como uma forma de castigar, não contemplando a ressocialização,
pois embora as prisões tenham sua existência ao longo das sociedades
do passado, o cárcere, como forma de punição, é bem mais recente,
datando o seu início no fim do século XVIII até o começo do século
XX, quando o castigo da dor é substituído pelo da privação da liberda-
de. Nas palavras de Michel Foucault: “não é mais o corpo, é a alma. À
expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue
profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade e as disposi-
ções” (FOUCAULT, 2007, p. 18).
Foi com Cessare Beccaria que se começou a pensar na punição de
forma “mais racional”, mostrando que a pena deveria ser proporcional
ao crime praticado, conforme demonstra em sua obra “Do Delito e das
Penas”:
155
sobre as prisões, no Brasil, durante o século XIX:
156
da época, o Serrotão foi transformado, de forma improvisada, em um
presídio para cumprimento de pena no regime fechado e até hoje abri-
ga a maioria da comunidade carcerária masculina, desse regime, em
Campina Grande.
Com a finalidade de ser uma colônia penal agrícola, a penitenciária
foi construída para comportar, aproximadamente, 350 apenados, mas,
atualmente, a unidade chega a abrigar mais 1200 presos. Ressalte-se que
a superlotação é uma realidade do sistema carcerário brasileiro.
Geograficamente, a Penitenciária Regional Raimundo Asfora (Ser-
rotão) faz parte de um complexo maior que engloba outros presídios.
O Presídio do Serrotão, como é conhecido, está inserido no Comple-
xo Penitenciário do mesmo nome. Ao todo são três unidades prisio-
nais situadas nessa área: a Penitenciária Regional de Campina Grande
Raimundo Asfora, onde ficam os presos já condenados pela Justiça; a
Penitenciária Regional Padrão de Campina Grande, conhecida como
Máxima, onde ficam os presos provisórios, ou seja, que aguardam jul-
gamento e a Penitenciária Feminina de Campina Grande, onde ficam
as mulheres reclusas.
Diante do fato do locus de estudo ter sido a Penitenciária Regional
de Campina Grande Raimundo Asfora, achamos necessário conhecer
um pouco da estrutura e organização espacial do lugar, como mostra
a figura 1.
157
Figura 1 - Visão aérea do Presídio Raimundo Asfora - Serrotão. Imagem alterada
com legendas para identificação
158
para aquela comunidade carcerária se comunicar com alguém perto do
presídio sem a utilização ilegal do celular.
Na hora do banho de sol, os presos têm uma visão ampla de boa
parte da estrutura do presídio, de modo a perceberem a aproximação
de alguém ou, até mesmo, preverem uma operação que possa ser feita
no presídio, como, por exemplo, uma intervenção da polícia militar
no local.
É importante destacar que não apenas no pátio, mas até mesmo das
celas, os presos podem observar o que acontece no entorno do presídio
e isso facilita, dentre outras coisas, o tráfico de drogas. Ou seja, o Esta-
do criou um presídio para ser usado de uma maneira (colônia agrícola)
e depois passou a ser usado de outro modo, assim os parâmetros de
segurança pensados para um modelo foram mantidos para outro, ge-
rando problemas decorrentes de tal inobservância. Sobre falhas como
essas afirma o autor Rogério Greco que:
159
“está em todas as camadas sociais, desde as inferiores até a epitetada
high Society” (FERNANDES; FERNANDES, 2012, p. 633).
Tratando-se do público encarcerado nas prisões, a droga procura
uma população que, em sua maioria, teve contado com a mesma, seja
na condição de usuário ou traficante, apesar de todo controle exercido
pelo Estado para evitar o acesso dos detentos a ela.
Devido à grande procura e valor comercial da droga na prisão,
percebemos, no Brasil e, de forma específica, na cidade de Campina
Grande, cidade onde a pesquisa foi realizada, que o tráfico de drogas é
comandando por grandes traficantes que atuam, muitas vezes, no in-
terior das unidades prisionais. Esses chefes do tráfico usam “mulas” ou
“aviões”, apelidos dados às pessoas “usadas” por traficantes para trans-
portar o ilícito por lugares policiados mediante pagamento ou coação.
Destacamos que, mesmo com o controle exercido pelo Estado, as
drogas e outros objetos proibidos chegam aos presos de diversas formas,
dentre as quais, algumas serão expostas a seguir.
160
observação por parte do detento que, ao conhecer a vigilância à qual
está submetido, procura os chamados pontos cegos da fiscalização, ob-
servando o posicionamento das câmeras de monitoramento, que ficam
aos cuidados dos agentes penitenciários e as guaritas que estão ativadas,
que ficam sob responsabilidade da polícia militar.
Notamos também que existe um estudo comportamental por parte
dos apenados, que encomendam a entrada das drogas, no tocante à
vigilância dos policiais dentro das guaritas para deduzir o melhor mo-
mento e local para determinar o lançamento do objeto para o presídio,
possibilitando o detento pegar o volume após o ato, para isso aconte-
cer é imprescindível à utilização do celular, que de forma sincronizada
entre os dois envolvidos articula toda a ação dentro e fora do presídio.
As informações colhidas sobre o melhor local para a droga entrar
levam a um lançamento exitoso, para isso ocorrer nada pode dar errado
e a utilização dos aparelhos de telefone celulares pelos presos não pode
ser perceptível, por isso, utilizam os aparelhos longe dos olhares da fis-
calização, nos pavilhões onde não existem câmeras.
Um dos autores desse artigo é policial militar e trabalha no presídio
fazendo a vigilância nas guaritas. Tal fato ajudou na captura do wifi,
que possibilitou a identificação de inúmeros celulares ativos na unidade
prisional do Serrotão, como mostra a figura 2 abaixo.
161
Figura 2 - Imagem printada de um policial militar que se encontrava nas
guaritas G15 e G17 em dois momentos respectivos
162
em uma zona rural, longe de centros residenciais, reforçando que as
redes apresentadas nas figuras pertencem, em sua maioria, aos presos e
seus respectivos celulares.
Pontuamos, ainda, que nem sempre o arremesso é bem-sucedido,
visto que pode ocorrer um desencontro das informações, de modo que
a possibilidade de o lançamento da coisa ilícita ser frustrada, nesse caso,
o agente externo é afugentado, conforme mostra a descrição do livro
de ocorrências do corpo da guarda do presídio do Serrotão transcrito
a seguir:
163
G-13, observou um movimento suspeito de dois indivíduos próximos
ao muro do presídio e utilizou os métodos cabíveis para conter qual-
quer arremesso, que nesse caso são disparos de advertência, os mes-
mos se evadiram do local, mas foram capturados logo em seguida pelo
patrulhamento móvel da polícia militar, apreendendo a substância já
citada e encaminhando os envolvidos para as autoridades responsáveis
na polícia civil.
Essa apreensão chamou a atenção da imprensa, que noticiou, devi-
do à quantidade e o tipo de substância em questão, mostrando o fluxo
do tráfico dentro do presídio, como demonstra a nota abaixo.
164
AS “MULAS” DO TRÁFICO
Apesar da precária estrutura do Serrotão possibilitar a entrada de drogas
e outros objetos como carregadores e aparelhos de telefone celulares
por arremesso sobre os muros, é importante deixar claro que a entrada
de substâncias ilícitas ocorre também através dos familiares ou conhe-
cido(a)s dos detentos nos dias de visita, bem como por pessoas ligadas
à estrutura do sistema. Essa modalidade de entrada de substâncias ilí-
citas ocorre devido ao aumento da vigilância e fiscalização para evitar
o arremesso das drogas, pois com maior controle do Estado nos muros
do presídio, cresce, eventualmente, o número de mulheres visitantes
(geralmente, companheiras, esposas e mães), que são flagradas na ten-
tativa de ingressar no sistema prisional com drogas ilícitas, para tráfico
interno ou consumo dos apenados.
Nos dias de visita, aquelas ou aqueles que vão ter contato com o
interno passam por um scanner que identifica se ela ou ele porta algum
objeto ilícito ou proibido pela direção do presídio. Antes do scanner, os
agentes desenvolviam uma revista íntima nas pessoas que visitavam seus
parentes nos presídios, esse tipo de busca pessoal dentro dos estabeleci-
mentos prisionais ficou conhecido como a “revista vexatória”, que con-
sistia na busca de material suspeito no corpo do indivíduo, chegando a
observar as partes íntimas.
Na “revista vexatória”, o(a)s visitantes ficam despido(a)s e, algumas
vezes, colocava-se um espelho no chão para que a pessoa suspeita aga-
chasse e mostrasse suas partes íntimas no espelho podendo haver uma
identificação de algo estranho que poderia ter sido introduzido em al-
gum orifício como forma de colocar alguma substância ilícita para o
interior do presídio.
O vexame de tal prática fez com que representantes dos direitos
humanos passassem a questionar essa atitude por parte do Estado, pois
esse método é uma agressão à dignidade da pessoa humana e, diante
disso, passaram a pressionar para que o Estado abolisse tal prática.
A resposta do Estado veio com a lei estadual 6.871/2000, proibindo
esse tipo de revista. A lei sugere que este ato só ocorra em casos excep-
cionais e que o Estado invista em tecnologia para resolver essa situação.
A instalação de detectores de metais e scanners nos estabelecimentos
prisionais da Paraíba, em especial no Serrotão, não só coíbe o problema
165
levantado pelos agentes dos Direitos Humanos, como torna a revista
na entrada do presídio em dias de visita mais eficaz, com a utilização da
tecnologia empregada.
É importante citar que este artigo não descarta a possibilidade de
os agentes de segurança, que trabalham nessa casa prisional, como os
agentes penitenciários e policiais militares, serem subornados para co-
locarem entorpecentes para o interior do Serrotão, porém, até o fim da
presente pesquisa, não foram encontrados dentro dos órgãos oficiais
processos ou acusações ou até mesmo escândalos midiáticos que de-
nunciassem algum caso de corrupção.
166
principalmente em dias mais escuros ou com neblina para dificultar a
percepção dos policiais que ficam nas guaritas.
Por ser um método lento que exige atenção e cuidado mais apurado
por parte dos presos, esse mecanismo foi utilizado por certo período
de tempo, principalmente, quando ele foi descoberto pelos agentes de
segurança, nesse caso, algumas medidas foram tomadas para coibir a
ação, como uma fiscalização maior dos pontos em que ocorria essa prá-
tica e uma varredura no entorno do muro na parte externa para loca-
lizar o fio de náilon, não significa que esta prática acabou, depende de
como os apenados enxergam a situação e a oportunidade para fazerem
isso, porém ela foi reduzida drasticamente.
O USO DE GATOS
Outra situação criada na casa penal que chega a ser inusitada e ao mes-
mo tempo cômica, foi a utilização de um gato para transportar drogas
e carregadores de celular para dentro do presídio, nesse caso é comum a
circulação de animais no entorno e dentro do presídio, principalmente,
quando se trata de gatos, existem alguns que convivem diretamente
com os presos como mostra a figura 3.
167
A utilização de gatos para o tráfico se tornou matéria de reportagem
no site do G1.globo.com. O caso em questão ocorreu no dia de visita e
teve a colaboração de um familiar do apenado que, no fim da visitação,
saiu com o gato que vive dentro do presídio em seus braços e passou
desapercebido pelos agentes de segurança que faziam a fiscalização do
portão principal, quando a visita acabou o gato tentou retornar para
dentro do presídio, pois ali é o seu convívio natural, porém quando
tentou passar entre as grades ficou preso e os agentes notaram que havia
algo enrolado no corpo do felino, com uma fita adesiva, o gato trans-
portava pequenos pacotes com uma substância parecida com maconha
e alguns cabos para celular. O curioso fato foi noticiado pela mídia
local, mostrando não só o lado cômico, mas a criatividade em questão
para introduzir a droga no presídio, como mostra o relato abaixo:
168
que os arremessos tradicionais já não são tão eficientes assim.
O problema é que esse tipo ação se tornou eficaz, já que os drones
são modificados para ficarem invisíveis a olho nu e os mesmos são ma-
nipulados de madrugada, dificultando mais ainda a identificação exata
do transporte, nesse caso, as medidas tomadas pelos agentes de segu-
rança são disparar se baseando no barulho que o drone emite através
de suas hélices, já que as luzes do mesmo são todas tapadas com fita
adesiva, deixando-o praticamente invisível à noite. Dessa forma, alguns
já foram derrubados pelos agentes como mostra a figura 4 abaixo, que
depois de muitos disparos esses aparelhos foram encontrados abando-
nados próximos ao presídio.
169
gancho conseguem trazer o pacote para dentro dos pavilhões.
O interessante que, nesse caso da utilização de recursos tecnológi-
cos, os agentes de segurança não possuem material capaz de identificar
e apreender rapidamente um drone, principalmente os que agem de
forma fortuita pela madrugada. Desse modo, enquanto uma ideia não
aparece para resolver esse problema, os traficantes do entorno do presí-
dio, sempre que possível, utilizam essa estratégia.
170
ilícitas, principalmente a que se discute neste trabalho.
As câmeras de vigilância auxiliam diretamente a fiscalização por
parte dos policiais militares que se encontram nas guaritas para a ma-
nutenção da ordem local e combaterem ao crime no interior da prisão.
O uso das câmeras torna o controle da vigilância mais eficaz por
dois aspectos: amplia o campo de vigilância e atuação do agente carce-
rário ou policial militar; e constitui o que Foucault denominou de: “o
olho do poder” ou, em uma nomenclatura moderna, o Panóptico de
Bentham. Sobre a estrutura arquitetural demonstrada por Bentham e
sua eficácia, destaca Foucault que:
171
estratégias não maculem a legislação vigente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões sobre a prática e o combate de tráfico de drogas em uni-
dade prisional do município de Campina Grande/Paraíba permitiram
constatar que os presos e outros envolvidos no tráfico ilícito de entorpe-
centes, no interior do Presídio Serrotão, buscam métodos eficazes para
introduzir as drogas dentro da unidade prisional, seja desde um simples
arremesso de fora do presídio para a parte interna até a utilização de
drones para transporte, o importante para os detentos é que o mercado
interno do tráfico no presídio esteja abastecido.
Vale lembrar que as práticas citadas neste artigo, com a exceção da
utilização do gato, continuam sendo feitas pelos associados do tráfico
nas proximidades do muro da casa penal analisada e que os agentes
de segurança mantêm a sua política de apreender o máximo possível
de entorpecentes e encaminhar o maior número de pessoas envolvidas
com esse crime para as autoridades competentes.
Ressaltamos que o relato apresentado retrata o cotidiano do pre-
sídio, um vislumbre da engenhosidade de quem pratica o tráfico de
drogas no presídio Serrotão. Em contrapartida, por sua vez, a força de
segurança tenta acompanhar a inventividade do tráfico para coibi-lo.
Evidencie-se, entretanto, que a análise apresentada neste artigo não
é exaustiva, embora retrate a realidade comum em diversos presídios do
Brasil, modificando tão somente a localização e denominação da casa
penal e a precariedade de suas estruturas, bem como o nível de controle
da facção criminosa local e grau de atuação do Estado.
REFERÊNCIAS
BECCARIA, Cessare. Dos Delitos e das Penas. 1ª ed, São Paulo, Hun-
ter Books, 2012.
172
2019.
173
Nacional. Ano 11. nº. 121. Rio de Janeiro: Sabin, 2015.
174
CAPÍTULO 8
CORPOS DEMARCADOS, CORPOS
CONDENADOS: O CÓDIGO DAS TATUAGENS
E OS MICROPODERES PRISIONAIS
175
comumente relacionada à criminalidade, este capítulo se propõe a deli-
near o percurso do uso das tatuagens pelas camadas marginalizadas da
sociedade, bem como o estigma a elas atribuído, culminando no uso
de tais insígnias enquanto um código de identificação entre os grupos
surgidos dentro do sistema carcerário, revelando assim a comunicação
semiológica compartilhada pelos micropoderes prisionais.
Este estudo em criminologia, ao lançar mão de conceitos como
identificação e sociabilidades, acaba por transpor o imaginário de uma
psicologia clínica e terapêutica voltada para as elites, restrita às pare-
des de um consultório particular e aponta para uma psicologia que
se constrói a partir do estudo e observação do cotidiano, atendendo a
demandas sociais atuais.
Ao debruçar seu olhar sobre os novos modos de ser no mundo e das
relações humanas, a psicologia se insere, entre outras discussões, em
meio aos estudos em criminologia, contribuindo assim com um olhar
voltado às subjetividades, muitas vezes, esquecidas ou deixadas em se-
gundo plano pelos operadores do direito. É neste contexto que a área
da psicologia criminal, ainda embrionária em meio às demais ciências
criminais no Brasil, se inscreve.
Tendo como ponto de partida estudos anteriores46 relacionados
às tribos urbanas e seus modos de identificação, discussões acerca das
marcas corporais enquanto signos identitários de grupos sociais foram
cultivadas e expandidas. É neste contexto que entrecruzando os estudos
em psicologia social e criminal, tomamos como base uma perspectiva
sociológica do crime para analisar a relação entre as teorias positivistas
da criminologia e os estigmas relacionados às marcas corporais, bem
como a utilização dessas marcas como signos identitários entre os cri-
minosos buscando responder à pergunta: “É possível identificar grupos
sociais a partir de tatuagens?”.
Unindo conceitos da sociologia como os de estigmas e inciviliza-
ção apresentados por Erving Goffman (1988), teceremos uma discussão
acerca de sua relação com a teoria criminalística de Cesare Lombroso
(1897), tendo como foco as tatuagens como exemplo de marcas cor-
porais, sobretudo aquelas utilizadas como identificação entre grupos
46 MELO, G. M. C. Por entre tabas e praças: as tribos urbanas em Campina Grande
- PB. (2010).
176
criminosos.
Observa-se que a discussão acerca das tatuagens está presente nos
estudos criminalísticos desde os primórdios, como também é ampla-
mente analisada pela sociologia, sobretudo pela antropologia. Ao longo
das últimas décadas, as marcas corporais vêm também galgando seu
lugar de objeto de estudo no âmbito da psicologia e da psicanálise.
Sendo assim, tal pesquisa visa contribuir para a construção de um
diálogo entre as citadas ciências, buscando ressaltar uma concepção
holística e integrada do homem enquanto ser constituinte e constitui-
dor da sociedade, construtor de conceitos compartilhados socialmente,
como os estigmas.
177
que: “Criminologia é um conjunto de conhecimentos que estudam o
fenômeno e as causas da criminalidade, a personalidade do delinquen-
te, sua conduta delituosa e a maneira de ressocializá-lo”.
Para Rabuffetti (1999, p. 35), “o positivista sustentava que o delin-
quente se revelava automaticamente em suas ações e que estava impul-
sionado por forças que ele mesmo não tinha consciência”. É com base
nesse pensamento que Lombroso passa a desenvolver pesquisas cranio-
métricas com criminosos, analisando fatores anatômicos, fisiológicos
e mentais para correlacioná-los aos atos cometidos (ALBERGARIA,
1999, p. 131).
As ideias de Lombroso, segundo Calhau,
178
arcada dentária defeituosa, braços excessivamente
longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais,
orelhas grandes e separadas, polidactilia.
179
– É o chefe dos tais de Capitães da Areia. Veja... O
tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu
Lombroso... Mas se lesse, conheceria. Traz todos os
estigmas do crime na face. Com esta idade já tem
uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser tratado
como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais...
Pedro Bala o espia com os olhos injetados. Sente can-
saço, uma vontade doida de dormir. Bedel Ranulfo
aventura uma pergunta:
– Levo pra juntos dos outros?
– O quê? Não. Para começar, meta-o na cafua. Vamos
ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá...
(AMADO, 1937/2002, p. 196 [grifo nosso]).
180
TATUAGEM: INSÍGNIAS DE IDENTIFICAÇÃO/
DEMARCAÇÃO
Do Tahitiano, “tatau”, o termo tatuagem passou a ser divulgado pelo
mundo por intermédio das pesquisas registradas nos diários de viagem
de James Cook (1728–1779), navegador e cartógrafo inglês que viajou
pelos arquipélagos da Oceania, descobrindo a Nova Zelândia. Segundo
Cook (apud FERREIRA, 2006, p. 10), o fonema “tatau” representa o
ritual de picar repetidamente a pele, introduzindo corantes.
Conforme Isabel Mendes de Almeida (apud FERREIRA, 2006, p.
208), a tatuagem, desde os primórdios, caracterizou-se enquanto uma
forma de classificação de indivíduos e grupos.
Para Almeida (2000, p. 103):
181
marítimas, até os dias atuais, as escrituras corporais são vistas como
estigma, enquanto expressão corporal de uma suposta patologia crimi-
nal ou de uma perversidade sexual (FERREIRA apud PAIS, 2004, p.
77–78).
Para fazer um contraponto acerca dos usos atuais de tais práticas
com o seu uso em culturas antigas, Pimenta Filho (2004), psicanalista,
remete-se ao complexo de Édipo e à questão do tabu. Tendo desejado a
mãe como seu primeiro objeto de amor durante a primeira infância, o
sujeito é advertido da impossibilidade de realização desse desejo. É na
adolescência que a proibição do incesto torna-se real e, diante do tabu,
o sujeito passa a procurar meios de afastar-se do objeto mãe.
Em outros tempos e outras culturas, essa separação se dava por meio
de ritos de iniciação que, como um carimbo, deixavam no corpo a mar-
ca de um novo sujeito. Para Pimenta Filho (2004), os ritos de iniciação
compartilhavam três características fundamentais. Seriam elas:
182
conforme Foucault (2013), depositam no corpo toda uma linguagem
enigmática, cifrada, secreta e sagrada que evocaria para este mesmo cor-
po a vivacidade do desejo.
Os “sinais corporais, com os quais se procurava evidenciar algo de
extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava”
(GOFFMAN, 1988, p. 11), eram nomeados pelos gregos de “estigma”.
O estigma, este corte ou queimadura infligida no corpo, portava um
significado pernicioso para a convivência social. Tal marca era utilizada
para simbolizar a categoria de escravos, criminosos ou até mesmo um
rito de desonra. Estes signos serviam de advertência para se evitar o
contato social com os estigmatizados, comprometendo assim seu con-
vívio social e, consequentemente, as relações comerciais (MELO, [s/d],
p. 1-3). Desta forma, o termo estigma passa a ser atribuído a um atribu-
to profundamente depreciativo. (GOFFMAN, 1988).
183
faziam parte integrante da percepção corporal dos
seus membros, estas técnicas do corpo reflectiam so-
bretudo uma forma de idiossincrasia social (Mauss,
1966 [1950]: 368), sendo mobilizadas enquanto signos
políticos de inclusão endogrupal e de exclusão exo-
grupal, expressão de pertença a determinado grupo
que, por sua vez, funcionará para outros como um
território de exclusão. (FERREIRA, 2006, p. 335).
184
não está tão distante dos nossos dias atuais. Na primeira metade dos
anos 40 do século XX, durante a segunda guerra mundial na Euro-
pa, o antissemitismo tomou proporções demasiado críticas. Os judeus
passaram a ser aprisionados em campos de concentração e, de modo a
melhor catalogá-los e submetê-los ao sistema disciplinar-punitivo, os
militares nazistas passaram a marcá-los, nas roupas e na pele. Assim, o
prisioneiro perdia seu lugar de sujeito humanizado, e passava a ocupar
o lugar de objeto.
Os prisioneiros do campo de Auschwitz eram classificados em se-
quências de numerações precedidas de letras que correspondiam às
seguintes classificações (LEITE & CRUZ, 2018): Regular – Polacos,
judeus e a maioria dos presos (todos do sexo masculino); AU – Prisio-
neiros de guerra soviéticos; Z – da palavra alemã para Gypsy, Zigeuner,
designou os ciganos; EH – designava os prisioneiros que tinham sido
enviados para “reeducação” (Erziehungshäftlinge); A e B – A partir de
1944, classificavam séries de 20 mil. (Utilizariam todo o alfabeto, caso
não tivessem sido derrotados e os campos de concentração fechado).
As marcas, antes impostas por aqueles que ocupavam posições de
poder e controle, passaram a ser incorporadas pelos próprios prisionei-
ros que puderam então escolher as insígnias que melhor os representas-
sem. A este respeito, antropóloga (BERGER apud PAREDES, 2003, p.
8) expõe que:
185
a maior parte dos presos da revolução era católica, fez-se referência à
passagem bíblica de Gênesis 4:15 para justificar a marcação corporal
dos infratores. Neste versículo bíblico, antes de ser expulso de diante
da face do Senhor, Caim haveria recebido um sinal que o identificasse
como assassino.
Por conseguinte, seguindo a lógica da apropriação das marcas cor-
porais como signos identitários, as tatuagens adquiriram o papel de
classificar escalas sociais dentro de facções criminosas e ilustrar o his-
tórico criminal dos prisioneiros russos. A suas imagens passou a ser
atribuído tamanho significado que, caso sejam “falsas”, isto é, não cor-
respondam à verdadeira ficha criminal do sujeito, o indivíduo será pu-
nido, a depender da gravidade, até mesmo com a morte.
Para os prisioneiros russos hoje, quanto mais severas são as condena-
ções, maior a incidência de tatuagens e, retomando a significação reli-
giosa das marcas da revolução, a grande maioria das tatuagens da Máfia
Russa hoje são símbolos religiosos. Os crucifixos, por exemplo, identi-
ficam os ladrões, a igreja com várias cúpulas representa, cada uma, uma
sentença criminal cumprida. A imagem de Jesus na cruz designa um
grupo específico, a Máfia Vory v zakone.
Fonte: https://www.vice.com/en_us/article/9bzvbp/
russian-criminal-tattoo-fuel-damon-murray-interview-876
186
Alguns dos códigos utilizados pelos prisioneiros russos podem ser
observados na figura 1. Nela, podemos identificar as caveiras com os
ossos cruzados nos ombros que indicam o cumprimento de prisão
perpétua; a garota levantando o vestido com uma linha de pesca ge-
ralmente feita em estupradores; a estrela no ombro que indica que o
sujeito é membro de uma organização criminosa; a cruz no peito re-
presentando a casta de ladrões e a catedral ao fundo, metáfora de pre-
sídio, cujo número de torres indica quantidade de vezes que foi preso.
(MACZEWSKI, 2014).
No Japão, a tradição das tatuagens que identificavam os criminosos,
como o símbolo Tokigawa tatuado na nuca durante o período Edo para
evitar a pena de morte e os anéis negros no braço para cada crime co-
metido, foi incorporada pela Máfia Yakuza como sinais de fidelidade e
afirmação. Desenhos de elementos da natureza cobrem o corpo inteiro
dos Yakuzas para mostrar que eles têm a força para ajudar os fracos,
no entanto, elas não podem ser vistas acima da gola ou das mangas.
(FAZAL, 2017).
Já as máfias mexicanas adotam um código de honra das tatuagens
inverso ao da Yakuza. Isto porque seus integrantes tatuam o próprio
rosto com os símbolos de suas gangues (“MS” ou “18” para os integran-
tes do “Mara”) ou números e letras referentes ao código penal associa-
do ao crime que cometeram. Para merecer uma tatuagem da gangue e
entrar de vez para a família, o candidato deve matar um membro da
gangue rival. Dessa forma, o jovem demonstra sua bravura e seu com-
prometimento de pertencer à “família”, assumindo permanentemente
a identidade do grupo.
Assim, vemos que do Bad Character cravado involuntariamente aos
desenhos elaboradamente elegidos e estampados na pele dos conde-
nados, a tatuagem fez-se estigma de periculosidade aceito e comparti-
lhado pela população carcerária, sendo utilizada, sobretudo, enquanto
um código de identificação entre grupos e praticantes de determinados
crimes.
187
algumas organizações criminosas já solidamente estabelecidas que per-
mitem essa identificação, como veremos mais adiante.
Foi José de Moraes Mello, primeiro psiquiatra do sistema carcerá-
rio paulista, que primeiro decodificou e classificou as tatuagens uti-
lizadas dentro do cárcere no Brasil. Sendo o profissional responsável
por realizar o Laudo de Biotipologia Criminal: avaliação obrigatória
influenciada pela antropologia criminal, Mello analisou mais de três
mil diferentes marcas nos corpos dos detentos do presídio Carandiru
entre os anos de 1920-1940.
Fonte: https://forcapolicial.wordpress.com/tatuagem-de-cadeia/
188
resultado de sua pesquisa e experiência em abordagens policiais, e iden-
tificou que presos condenados por crimes semelhantes apresentavam
tatuagens semelhantes, indicando um código simbólico das marcas
corporais.
Este levantamento além de tornar possível identificar a correlação
entre os símbolos mais utilizados pelos presos e os crimes por eles co-
metidos, apurou que mais 60% da população carcerária masculina no
Brasil tem alguma tatuagem, sendo que 20% teriam feito a marca du-
rante cumprimento de pena.
189
Figura 3 - Taz e Chuck – O retrato da guerra nas favelas e presídios
190
chinês Yin Yang é o mais utilizado, representando a maneira de equili-
brar o bem e o mal com sabedoria. A carpa tatuada principalmente no
braço, muitas vezes indica hierarquia na organização, dependendo da
posição em que ela se encontra (para baixo ou para cima). Os números
1533 também representam essa organização. Referem-se às letras do al-
fabeto (P-15; C-3; C-3). A inscrição “Paz, Justiça, Liberdade” é comum
tanto em membros do PCC como do Comando Vermelho. (SILVA,
2012, p. 43-44).
191
por Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê, e por Celsinho da Vila Vintém
por volta de 1998. Uê foi expulso do Comando Vermelho em 94, após
tramar a morte de Orlando Jogador, um dos líderes da principal orga-
nização criminosa do Rio de Janeiro. Principal rival do traficante Luiz
Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar (ligado ao CV), Uê foi
morto em 2002, durante rebelião liderada pelo Comando Vermelho no
presídio de Bangu. Com a morte de Uê e a prisão de Celsinho da Vila
Vintém, o TC e a ADA se uniram. Dissidentes das duas facções forma-
ram o TCP (Terceiro Comando Puro). (FOLHA DE SÃO PAULO,
2004).
A imagem comumente encontrada na pele dos membros da ADA
é o Boneco Assassino, o Chuck. Sendo, algumas vezes, encontrada a
imagem do Chuck segurando a cabeça do TAZ como resposta à afronta
do Comando Vermelho:
192
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O levantamento histórico e sociológico evidencia que as marcas corpo-
rais, mais especificamente, as tatuagens, outrora impostas involuntaria-
mente àqueles de comportamento desviante, como forma de estigma e
punição, difundidas enquanto símbolos de marginalidade que impe-
diam a socialização com aqueles de “bom caráter”, e que se configura-
ram até mesmo enquanto característica frenológica para a identificação
daqueles que, segundo a teoria biologicista da criminologia, estariam
pré-dispostos a cometer um crime, passaram a ser incorporadas pelos
próprios infratores como recurso de identificação entre os pares, comu-
nicação semiótica e status.
Estigma de bandidagem, marginalidade e periculosidade, a tatua-
gem foi aceita e absorvida pela população carcerária não mais enquanto
um registro involuntário, mas enquanto uma silenciosa manifestação da
confissão de seus atos criminosos e identificação dentre grupos sociais.
Tais grupos sociais vão além da família, religião ou região de origem.
Os novos grupos sociais nascidos por detrás das grades são as conheci-
das organizações criminosas que, estabelecidas sob fortes “mandamen-
tos”, agregam fiéis dispostos não somente a “converter” mais membros,
como também aniquilar aqueles que porventura decidam se afastar do
grupo.
As organizações criminosas que pregam defender os direitos dos
presos, lutando por melhores condições de vida dentro dos presídios,
também possuem sua outra face, a de organizar o crime nos moldes de
uma empresa. Dispondo de líderes, cargos, delegação de funções, as
organizações criminosas comandam o tráfico de drogas, rebeliões e cri-
mes, sobretudo, nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, estando
em plena expansão para outros estados do Brasil.
Este estudo possibilitou observar que Organizações Criminosas bra-
sileiras como o PCC, o CV e a ADA possuem, assim como organiza-
ções criminosas da Rússia, Japão e México, marcas idiossincráticas de
identificação entre seus membros, registradas na própria pele sob forma
de tatuagens.
No entanto, foi-se possível também constatar que as tatuagens uti-
lizadas pelos presos não identificam apenas a organização a qual eles
pertencem. O que mais se observa, conforme exposição doutrinária, é,
193
sobretudo, a identificação dos crimes cometidos, existindo uma vasta
gama de insígnias representando toda uma variedade de crimes come-
tidos pelos apenados.
Destarte, é possível identificar, tal como afirma Ferreira (2006, p.
335), que:
REFERÊNCIAS
194
Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.
195
LEITE, G., CRUZ, R. L. P. Quando o trabalho não liberta: o contem-
porâneo do pós-guerra. Jornal Jurid. Disponível em: <https://www.jor-
naljurid.com.br/colunas/gisele-leite/quando-o-trabalho-nao-liberta-o-
contemporaneo-do-pos-guerra>. Acesso em: 08/11/2018.
196
Gráfica, 2012.
197
CAPÍTULO 9
O USO DOS RECURSOS DO FUNDO
PENITENCIÁRIO NACIONAL –
FUNPEN E A SUPERLOTAÇÃO DO
SISTEMA PRISIONAL NO BRASIL
INTRODUÇÃO
Embora a expressão “superlotação do sistema prisional” não tenha uma
definição específica em termos numéricos, é compreendida e usual-
mente utilizada para representar o déficit de oferta (número de vagas
disponibilizadas no sistema prisional pelo Estado) em relação à deman-
da (número de presos efetivamente recolhidos no sistema prisional)
do sistema carcerário. Ou seja, quando temos um número de pessoas
presas maior que o número de vagas que as unidades prisionais do país
disponibilizam, temos uma superlotação do sistema prisional.
Conforme dados dos relatórios do Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias – INFOPEN, a superlotação do sistema
prisional brasileiro é um problema presente em todas as unidades da
federação.
Em 2019, o Brasil contabilizou um total de 812.564 presos no sis-
tema penitenciário brasileiro e apenas 461.026 vagas disponíveis nas
198
unidades prisionais49. Com um déficit de 351.538 vagas e uma taxa de
367,61 presos para cada 100 mil habitantes, o país ocupa a terceira po-
sição entre os países que mais prendem no mundo, se considerados os
números absolutos, ficando apenas atrás de Estados Unidos e China50.
Salla e Ballesteros (2008), em trabalho sobre o sistema prisional na
América do Sul, já alertavam sobre o ritmo vertiginoso de crescimento
da população carcerária brasileira que também vinha sendo acompa-
nhado por numerosas convulsões no sistema, como rebeliões, massacres
e denúncias de condições desumanas dentro dos cárceres.
Neste contexto, o país tem se apresentado no panorama internacio-
nal como violador de direitos humanos quando da aplicação das regras
das Nações Unidas para tratamento de pessoas privadas de liberdade.
Em 2008, a Human Rights Watch apresentou relatório sobre as con-
dições desumanas dos cárceres brasileiros destacando a superlotação51.
No mesmo ano, a Anistia Internacional em sua publicação sobre o esta-
do dos direitos humanos no mundo descreve o sistema prisional brasi-
leiro com a seguinte redação: “superlotação extrema, condições sanitá-
rias precárias, violência entre gangues e motins continuam a deteriorar
o sistema prisional” (ZACKSESKI et al., 2016, p. 3).
Em 2009, diversos presídios brasileiros foram denunciados à Co-
missão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH da Organização
dos Estados Americanos – OEA52.
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI do
Sistema Carcerário Brasileiro realizada, em 2009, apontou que nenhum
presídio brasileiro cumpria as exigências legais inscritas na Lei de Exe-
cução Penal Brasileira e o relatório de nova CPI, em 2015, destaca a
problemática do uso dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional -
FUNPEN (BRASIL, 2009).
49 Dados do CNJ.
50 Ranking do World Prison Brief, elaborado pelo Institute for Criminal Policy Rese-
arch da University of London.
51 HUMAN RIGHTS WATCH. Relatório mundial de 2008: Falsas democra-
cias minam direitos humanos. Disponível em: [http://hrw.org/portuguese/
docs/2008/01/31/brazil17926_txt.htm].
52 ANISTIA INTERNACIONAL. Informe Anual 2009. Disponível em: [www.
br.amnesty.org/?q=”node/316].
199
Diante do quadro de degradação do sistema, em setembro de 2015,
o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347/DF, que re-
conheceu formalmente o estado de coisas inconstitucional referente ao
sistema carcerário brasileiro, em face da situação degradante das peni-
tenciárias do país e das recorrentes violações de direitos fundamentais,
determinou, em sede liminar, o descontingenciamento de recursos do
FUNPEN, obrigando o Poder Executivo a liberar o saldo acumulado
para os fundos estaduais, sob o argumento de que se estaria destinando
as verbas do fundo a finalidades alheias ao sistema prisional.
O Estado de Coisas Inconstitucional tem origem nas decisões da
Corte Constitucional Colombiana e vem ganhando espaço nas cortes
internacionais. Tem-se um Estado de Coisas Inconstitucional quando
se constata um quadro insustentável de violações de direitos funda-
mentais, decorrente da omissão ou comissão de diferentes autoridades
públicas, agravado pela inércia reiterada dessas mesmas autoridades
(CUNHA JÚNIOR, 2015).
Em dezembro de 2016, o Presidente Michel Temer assinou a Medi-
da Provisória 755/2016 autorizando a transferência obrigatória, fundo a
fundo, dos recursos do FUNPEN, independente de celebração de con-
vênio ou instrumento congênere. No ano seguinte, a Medida Provisória
781/2017 manteve a obrigatoriedade do repasse e instituiu que o per-
centual mínimo de 30% dos recursos fosse utilizado na construção e re-
forma das unidades prisionais, culminando na entrada em vigor da Lei
13.500/2017 que modificou substancialmente a forma de arrecadação e
repasse do fundo, reduzindo o poder discricionário na esfera federal.
Este artigo preconiza o entendimento sobre o que é e como funcio-
na o Fundo Penitenciário Nacional e como estes recursos foram utili-
zados no contexto d ão da pesquisa, destacou-se o corte temporal de
1994 até 2016 que representa o ano de criação do fundo até o marco da
mudança legislativa que passou a distribuir os recursos fundo a fundo,
mudando toda a sistemática de alocação e uso do FUNPEN.
200
expandido, nas últimas décadas, em diversos países do mundo. Esta
expansão é reflexo das profundas mudanças no “uso da prisão como
instrumento de controle e gerenciamento do crime” (ZACKSESKI et
al., 2016, p. 2).
A evolução das prisões enquanto forma de punição por delitos co-
metidos é um reflexo do desenvolvimento político, econômico e so-
cial dos Estados no século XIX (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1939;
NORONHA, 1993, MORIS e ROTHMAN, 1998; MASSON, 2011;
GRECO, 2017).
Foucault (1999, p. 10), em sua célebre obra Vigiar e Punir, descreve
como as sociedades ocidentais evoluíram da punição como forma de
espetáculo e suplício público, para a prisão pena, cujo objetivo deixa
de ser o de apenas punição ou vingança, passando a objetivar “corrigir,
recuperar e curar”.
No entanto, passados mais de dois séculos da materialização das
prisões pena nos Estados modernos, os administradores públicos ainda
apresentam “dificuldades para encontrar o balanço ideal entre punição
e retribuição versus reabilitação reentrada” (DEMICHELE, 2015 apud
ZAMPIER, 2018, p. 84).
A questão prisional brasileira vem permeada de debates acadêmicos
e estatais, de modo que se tem indagado como tratar a questão adequa-
damente tanto do ponto de vista jurídico como das políticas públicas.
No que tange aos levantamentos sobre sistema prisional de modo
mais específico, os estudos precursores acerca do assunto já apontavam
perspectivas alarmantes. Coelho (2005, p. 164), ao analisar o sistema
penitenciário no estado do Rio de Janeiro, durante a década de 1980,
descreve-o como tendo atingido “o seu grau mais alto de deterioração”,
no qual quase nada mais funciona em níveis mínimos de eficiência.
Para o autor, o sistema só não teria entrado em colapso “em decorrên-
cia das soluções irregulares permitidas de modo a suprir a omissão do
Estado na assistência ao preso”.
Analisando os dados do Levantamento Nacional de Informações Pe-
nitenciárias - INFOPEN, ano 2016, verifica-se que a população carce-
rária brasileira vem se incrementando nas últimas três décadas, e pode-
se estabelecer que, durante os anos do último período democrático, a
dinâmica de crescimento permaneceu com semelhantes características,
201
apresentando aumento exponencial registrado a cada década e uma
tendência ininterrupta de alta do encarceramento no país.
Da década de 1990 até 2000, houve um incremento de 142.800 pes-
soas no sistema prisional, de 2000 a 2010, aumento de 263.500 pre-
sos, permanecendo a tendência de crescimento. Em junho de 2016, já
tínhamos uma população de 726.712 indivíduos encarcerados, o que
representa um aumento de mais de 700% em relação ao total de pessoas
presas registradas no início da década de 90.
Deste modo, a população prisional brasileira tem apresentado uma
tendência de crescimento exponencial, praticamente duplicando a cada
década.
202
prisionais.
203
BA 15.294 6.831 8.463
CE 34.566 11.179 23.387
DF 15.194 7.229 7.965
ES 19.413 13.417 5.996
GO 16.917 7.150 9.767
MA 8.835 5.293 3.542
MG 68.354 36.556 31.789
MS 18.688 7.731 10.957
NT 10.362 6.369 3.993
PA 14.212 8.489 5.723
PB 11.377 5.241 6.136
PE 34.556 11.495 23.061
PI 4.032 2.363 1.669
PR 51.700 18.365 33.335
RJ 50.219 28.443 21.776
RN 8.809 4.265 4.544
RO 10.832 4.969 5.863
RR 2.339 1.198 1.141
RS 33.868 21.642 12.226
SC 21.472 13.870 7.602
SE 5.316 2.251 3.065
SP 204.061 131.159 108.902
TO 3.468 1.982 1.486
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - INFOPEN 2016.
204
AM existem 48 presos para cada 10 vagas no sistema, no CE e em PE,
30 presos ocupam cada 10 vagas. O gráfico a seguir expõe a taxa de ocu-
pação de cada uma das unidades da federação no último ano da série
histórica analisada.
205
e inações dos agentes públicos.
Segundo Cobb e Elder (1983, apud SECCHI, 2013, p. 47), existem
três condições para que um problema público faça parte ou permaneça
na agenda política: a) que o problema toque responsabilidades políti-
cas; b) que as ações sejam consideradas necessárias e factíveis e c) que
ela tenha a atenção de diferentes atores sociais (cidadãos, grupos de in-
teresse, mídia, etc.) a ponto de ser reconhecida pelos polcymakers como
merecedora de atenção. Deste modo, a depender do grupo a quem esta
política pública beneficie, ela também pode ser considerada politica-
mente indesejável.
206
prisional do país é analfabeta completa, analfabeta funcional ou tem
ensino fundamental incompleto. Os gráficos abaixo melhor ilustram
estas características.
207
através da análise crítica comparativa entre o quadro social do sistema
prisional e o quadro social da população geral do país, levando em con-
sideração, idade, escolaridade e cor, que o sistema prisional é reflexo das
características das desigualdades sociais da população brasileira.
Dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicilio – PNAD,
realizada pelo IBGE, mostram que, em 2016, 51% da população brasi-
leira com 25 anos ou mais possuíam no máximo ensino fundamental
incompleto, cerca de 66,3 milhões de pessoas.
No país, 11,2% da população de 25 anos ou mais não tinham ins-
trução; 30,6% tinham o fundamental incompleto; 9,1% tinham fun-
damental completo; 3,9% tinham ensino médio incompleto; 26,3%
tinham o ensino médio completo e 15,3% o superior completo.
Nesta faixa etária, enquanto 7,3% das pessoas de cor branca não
tinham instrução, a proporção das pessoas de cor preta ou parda que
estavam nesse grupo era o dobro: 14,7%. Situação inversa ocorreu nos
percentuais dos que tinham nível superior completo: 22,2% para os
brancos e 8,8% para os pretos ou pardos. O gráfico a seguir mostra a
distribuição populacional por escolaridade e cor ou raça, que nos per-
mite observar a discrepância educacional entre brancos e pretos no país.
208
cor branca, (4,2%).
Destaca-se que o percentual populacional total de pretos ou pardos
é 53% e de brancos 46%, havendo praticamente uma paridade de cor
na população geral, o que não se reflete quanto aos dados educacionais.
Monteiro (2003, p. 101) reitera em sua pesquisa que o sistema pri-
sional tornou-se um verdadeiro “aspirador social” que pune, em sua
maioria, indivíduos já pertencentes a esferas sociais marginalizadas e os
dados etários e de cor e escolaridade bem ilustram este aspecto.
Zampier (2018) defende que as peculiaridades da população carcerá-
ria refletem também a qualidade da política pública, pois os destinatá-
rios das políticas públicas influenciam as tomadas de decisões.
Os destinatários das políticas públicas (policytakers) são uma catego-
ria que mais recebe influência do que provoca na formação da política
pública. Além do processo de encarceramento que retira legalmente di-
reitos, inclusive os políticos, agem sobre este setor as características so-
ciais destes indivíduos e os reflexos sociais pesam nas escolhas políticas.
OS PRESOS PROVISÓRIOS
Os dados do INFOPEN 2016 mostram que 40% da população pri-
sional brasileira ainda não havia sido julgada e condenada. Esta não é
uma característica exclusiva do Brasil, em praticamente toda a América
Latina, o percentual de presos provisórios ultrapassa os 30%.
Do ponto de vista jurídico-legal, o excesso de prisão provisória con-
traria a legislação penal que considera o preso não condenado presumi-
velmente inocente e a prisão provisória exceção para casos específicos
adstritos em lei.
Nos casos de prisão provisória, a pessoa que está sendo acusada de
determinado crime permanece presa, aguardando o seu julgamento, o
que ocorre através da decretação de prisão preventiva.
A restrição da liberdade pelo Estado, sem o devido julgamento e
condenação, é medida grave que deve ser ponderada e aplicada com
cautela a fim de se evitar que um indivíduo seja recolhido ao cárcere e
depois seja julgado inocente ou que passe mais tempo na prisão do que
a pena recebida em julgamento posterior. Por este motivo, a legislação
brasileira estabelece que a prisão preventiva só pode ser aplicada como
garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da
209
instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando
houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria54.
A quantidade de presos provisórios no país tem preocupado as au-
toridades governamentais e órgão de defesa de direitos humanos, pois
em alguns Estados supera o número de presos sentenciados em regime
fechado, ou seja, alguns Estados da federação possuem uma quantidade
de presos sem julgamento maior que a quantidade de presos julgados
e condenados. Esta característica evidenciada mostra que a justiça cri-
minal tem sido falha em julgar a tempo os indivíduos recolhidos ao
cárcere e que o sistema prisional provavelmente está ocupado por uma
quantidade significativa de pessoas que após o julgamento sairá livre,
ou cumprindo regimes mais brandos (aberto ou semiaberto).
O gráfico a seguir faz a comparação entre o percentual de presos
provisórios e o percentual de presos em regime fechado por unidade da
federação. Pode-se verificar que, em 18 Estados, o percentual de presos
provisórios é maior que o de presos condenados55 (AL, AM, BA, CE,
ES, GO, MA, MG, MT, PA, PE, PI, PR, RJ, RR, SC, SE, TO).
210
número de presos provisórios no país cresceu anualmente acompa-
nhado do incremento do déficit de vagas no sistema. A correlação de
Pearson entre o número de presos provisórios e o déficit de vagas no
sistema é muito forte (0,964), inferência que corrobora com os estudos
que vêm apontando o excesso de prisões provisórias como elemento
significativo na ampliação da população carcerária (MONTEIRO e
CARDOSO, 2013; ZACKESKI, 2016; RANGEL e BICALHO, 2017;
ZAPIEN, 2017).
211
um ente atribui ao outro. “O Executivo argumenta que não pode admi-
nistrar prisões superlotadas se o Judiciário continuar adotando prisões
provisórias em larga escala [...], enquanto o Judiciário argumenta que é
responsabilidade do Executivo prover serviços decentes” (ROSA, 2017
apud ZAMPIER, 2017, p. 91).
Ainda, partindo da análise dos mesmos dados, pode-se observar que
o aumento do déficit de vagas do sistema carcerário acompanha a ten-
dência de aumento do número de presos provisórios.
212
particularidade que é o fortalecimento das organizações criminosas no
interior das unidades prisionais, sobre o qual este trabalho não se de-
bruçará, mas merece ser citado.
213
penais federais. Outra destinação legal dos recursos do Fundo é custear
seu próprio funcionamento.
Conforme art. 2º da Lei Complementar nº 79/1994, essencialmen-
te, o Fundo possui fontes vinculadas e é constituído com recursos que
possuem origem nas dotações orçamentárias da União, doações, con-
tribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a
receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou es-
trangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou es-
trangeiras; recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos
firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais
ou estrangeiras; recursos confiscados ou provenientes da alienação dos
bens perdidos em favor da União Federal; multas decorrentes de sen-
tenças penais condenatórias com trânsito em julgado; fianças quebra-
das ou perdidas; três por cento do montante arrecadado dos concursos
de prognósticos57, sorteios e loterias, no âmbito do Governo Federal e
rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, de-
correntes de aplicação do patrimônio do FUNPEN.
Inicialmente, as custas judiciais também figuravam no rol de ori-
gem de receita do FUNPEN, no entanto, a partir da promulgação da
Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, esta fonte
de receita deixou de ser considerada vinculada ao FUNPEN, mesmo
sendo uma fonte de recursos de grande representatividade.
As principais fontes de arrecadação do FUNPEN até 2016 foram
os concursos de prognósticos, sorteios e loterias, no âmbito do Gover-
no Federal. Entretanto, é preciso salientar que por força das Emendas
Constitucionais nº 10/96, nº 17/97, nº 27/00, nº 42/03 e nº 56/07, 20%
(vinte por cento) dos recursos de loterias devidos ao FUNPEN sofre-
ram retenção para os fins especificados nas citadas Emendas.
Os Recursos Próprios Financeiros previstos no artigo 2º, inciso IX,
da Lei Complementar nº 79/94 são rendimentos de qualquer natureza,
auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio
do Fundo. Essa receita é fruto da remuneração dos depósitos bancários
do Fundo na Conta Única do Tesouro Nacional.
A única receita do Fundo que não é vinculada é a proveniente de
57 Com a redação dada pela Lei 13.756 de 2018, o percentual advindo dos concursos e
prognósticos repassados pela Caixa Econômica Federal passaram a ser variáveis.
214
recursos ordinários, prevista no inciso I, do citado artigo. Esta receita
não possui um percentual pré-determinado, constituindo recursos dis-
poníveis para livre programação.
O Orçamento Geral da União (OGU) contempla o FUNPEN
entre as Unidades Orçamentárias (UOs) vinculadas ao Ministério da
Justiça e Segurança Pública (UO 30907). Na condição de unidade orça-
mentária, o Fundo desempenha o papel de coordenação do processo de
elaboração da proposta orçamentária no seu âmbito de atuação, inte-
grando e articulando o trabalho das suas unidades administrativas, mas
possui natureza contábil, de modo que não se materializa em estrutura
administrativa própria.
A administração dos recursos no âmbito do FUNPEN cabe a uma
unidade específica dentro do Ministério da Justiça e Segurança Públi-
ca, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, que até 2016
operacionalizou a execução orçamentária do Fundo, mediante descen-
tralizações de recursos via convênios ou contratos de repasse, pois, com
a mudança legislativa e a entrada em vigor da Lei 13.500 de 2017, o
repasse passou a ser na modalidade Fundo a Fundo o que reduziu o
poder discricionário do Governo Federal no gerenciamento do recurso.
Do ponto de vista da elaboração de políticas públicas, o FUNPEN
é única fonte de recursos federais destinada à construção e ampliação
de unidades prisionais. Diante das evidências da existência de super-
lotação, no sistema prisional, de que o número de vagas criadas nos
sistema não vem sendo capaz de adequar a oferta à demanda e de que
o FUNPEN apresentou desde a sua criação aumento gradativo na ar-
recadação e acúmulo superavitário, um questionamento sobre como
essa fonte orçamentária foi utilizada e se a sua existência foi capaz de
gerar reflexos no problema da superlotação se faz pertinente e dotada
de lógica.
A superlotação do sistema prisional, enquanto problema público,
pode ser examinado sobre diversas diretrizes diante da complexidade de
fatores que a envolve e a perspectiva orçamentária é uma delas.
Reunindo dados orçamentários (SIAFI e Portal da Transparência –
CGU) e informações de relatórios oficiais (FUNPEN em Números, Re-
latório Anual de Gestão – DEPEN, Relatório Anual de Repasse Social
da Caixa Econômica Federal), encontrou-se um conjunto aproximado
215
dos números da movimentação orçamentária do Fundo Penitenciário
Nacional.
Cruzando-se os dados do Portal da Transparência – CGU com os do
relatório FUNPEN em Números 2012 e dos relatórios anuais de repasse
da Caixa Econômica Federal e calculando o acúmulo anual residual
com a arrecadação do ano seguinte, percebeu-se que o FUNPEN era
um fundo superavitário que, ao longo dos anos, acumulou um saldo
positivo atingindo, em 2016, aproximadamente 2,3 bilhões de reais.
Os dados levantados mostraram que, no que tange a existência de
recursos públicos para investimentos no sistema prisional, construção
de unidades e criação de novas vagas, o Brasil possuía uma fonte supe-
ravitária e de arrecadação positiva constante.
Contudo, a vultosa arrecadação do fundo não se refletiu na sua uti-
lização. Desde a sua criação, foi liberado em dotação orçamentária um
valor médio de 300 milhões de reais anuais, contudo os recursos utiliza-
dos alcançam uma média de 120 milhões anuais, tendo séries temporais
nas quais foram utilizados apenas 10% dos recursos liberados.
Através da análise detalhada dos relatórios FUNPEN em Números,
dos relatórios de gestão anual do DEPEN, que forneceram esclareci-
mentos descritivos sobre a dinâmica do uso dos recursos federais, em
conjunto com a análise dos dados orçamentários aglutinados e estru-
turados, pôde-se verificar que um modo preponderante de atuação dos
atores políticos que afetou a distribuição e aplicação de verbas do fundo
ao fim ao qual se destina foi concretizado através do contingenciamen-
to dos recursos, previsto nos artigos 8º e 9º da Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Normalmente, no início de cada ano, o Governo Federal emite um
Decreto limitando os valores autorizados na LOA, relativos às despesas
discricionárias ou não legalmente obrigatórias (investimentos e custeio
em geral). O Decreto de Contingenciamento apresenta como anexos
limites orçamentários para a movimentação e o empenho de despesas,
bem como limites financeiros que impedem pagamento de despesas
empenhadas e inscritas em restos a pagar, inclusive de anos anteriores.
O contingenciamento foi possível porque o aprovisionamen-
to destes recursos para os Estados é feito por meio de transferências
216
voluntárias58, por não decorrerem de regra constitucional nem terem
obrigatoriedade de repasse59 em lei, legalmente era permitido o seu uso
para fins de obtenção do superávit primário60. Inclusive esta foi a expli-
cação dada pelo Governo Federal, através do DEPEN, ao Ministério
Público Federal, justificando que o contingenciamento do fundo “de-
tinha um papel importante no equilíbrio das contas públicas federais,
mantendo um compasso entre a realização dos gastos e a arrecadação
das receitas de forma a garantir o cumprimento das metas de superávit
primário” (BRASIL, 2017, p. 15).
Os relatórios FUNPEN em Números, do Ministério da Justiça,
apresentam os valores oficiais do contingenciamento do fundo até o
ano de 2011 (relatório 2012). A partir de 2013, a estrutura e metodologia
dos relatórios mudaram e passaram a não mais constar em seu teor os
valores contingenciados de maneira explícita.
217
Gráfico 9 - Contingenciamento (%) anual dos recursos do FUNPEN
218
Gráfico 10 - Percentual da dotação orçamentária anual do FUNPEN
que foi efetivamente utilizado através de despesa realizada
219
10%.
O contingenciamento de recursos limita o repasse para a execução
de projetos no sistema prisional, no entanto, não tem sido a única ação
governamental relevante para a reduzida criação de vagas, porquanto
a construção e ampliação das unidades prisionais são apenas umas das
modalidades de uso do FUNPEN, e o contingenciamento isoladamen-
te não explica o pouco uso dos recursos para esta finalidade.
Com relação ao uso dos recursos para criação de novas vagas, tem-se
que o Plano Plurianual - PPP estabelece ações a serem tomadas em âm-
bito federal, e o DEPEN, órgão executivo gestor dos recursos do fundo,
organiza a distribuição dos recursos em Ações Orçamentarias – AO que
atendam aos objetivos estabelecidos. Dentre estas Ações Orçamentárias
estabelecidas, três visam, essencialmente, à criação de vagas no sistema,
quais sejam, apoio à construção e ampliação de estabelecimentos penais
estaduais, construção de penitenciárias federais, apoio à reforma de es-
tabelecimentos penais estaduais.
Os relatórios anuais de gestão do DEPEN apresentam a dotação
orçamentária destinada a cada uma das Ações Orçamentárias a fim de
cumprimento dos objetivos do PPP e valores utilizados na execução dos
projetos. A análise destes relatórios em conjunto com os dados do SIA-
FI demonstrou que anualmente uma quantidade ínfima destes recursos
foi utilizada para as AOs com finalidade de criação de vagas, havendo
inclusive períodos (2014 a 2016) em que não se foi reservado absolu-
tamente nada dos recursos do fundo para este fim. O gráfico abaixo
melhor demonstra o panorama de utilização dos recursos do FUNPEN
para fins de construção e ampliação de unidades prisionais.
220
Fonte: Relatórios anuais de gestão DEPEN (2006-2016 e SIAFI).
221
licença ambiental, elaboração do projeto executivo, licitação, adaptação
do projeto – até a efetiva liquidação.
Leva-se em média de um ano e meio a três anos para a conclusão
de um projeto, o que demonstra que o processo de criação de vagas é
lento e, portanto, não vem acompanhando a dinâmica do crescimento
da população prisional.
Estes dados nos revelam a princípio que o sistema prisional do país,
há mais de uma década, não consegue acompanhar o crescimento da
população prisional no que concerne a criação de vagas. Isso se deve
porque o processo de criação de vagas depende de diversas variáveis
para se consolidar, a liberação de recursos exige uma operacionaliza-
ção extremamente complexa e a passagem por um ciclo burocrático
composto de cinco fases: proposta, análise, aprovação, formalização e
liberação; o qual demanda a elaboração de um projeto estrutural em
conformidade com diversas normas (leis, decretos e portarias).
Enquanto o sistema carcerário recebeu a cada ano em média 30.800
presos, as vagas anuais criadas foram em média 14.500, permanecendo
o sistema prisional com um déficit médio de vagas de 53%, ou seja, ba-
sicamente ingressaram no sistema prisional dois presos para cada vaga
criada. Ressaltando-se que se trata de uma média nacional que consi-
dera o sistema como um todo sem analisar as peculiaridades de cada
Estado.
Porquanto, ante o levantamento exploratório, chega-se à conclusão
de que na perspectiva de resolução do problema da superlotação do
sistema prisional, através da criação de vagas, a existência dos recursos
vultosos no FUNPEN não tem sido revertida para esta finalidade. A
liberação dos recursos não garantiu a sua utilização e o processo buro-
crático que envolve a liberação de verba limitou, ao longo do “percur-
so orçamentário”, o repasse e tornou a criação de vagas um processo
demorado.
Os dados do balanço financeiro62 do Fundo Penitenciário Nacional,
62 Balanço financeiro é a demonstração contábil pública que evidencia os totais anu-
ais (ou do período em questão) das receitas e despesas orçamentárias e extraorça-
mentárias executadas, bem como os saldos das disponibilidades (caixa e bancos)
que foram recebidas do exercício anterior e os que serão passados para o exercício
seguinte.
222
juntamente com a análise documental, demonstram que a existência
do aporte financeiro não foi relevante para mudar a conjuntura do sis-
tema prisional quanto ao processo de superlotação através da criação
de vagas. Esta observação se mostra relevante uma vez que as ações
governamentais recentes têm apontado a liberação do uso dos recursos
do FUNPEN como solução para amenizar os problemas do sistema
prisional.
Não se trata de afirmar que os recursos do FUNPEN não são im-
portantes enquanto instrumento para a melhoria do sistema prisional,
mas que não foram utilizados substancialmente na criação de novas va-
gas vislumbrando amenizar o problema da superlotação. É preciso rever
a sua forma de liberação, em que estes recursos estão sendo alocados e
desenvolver melhores estratégias de utilização.
Quanto ao processo de superlotação do sistema prisional, a criação
de novas vagas é premente, mas é um processo que demanda tempo
para sua execução. Assim, é preciso buscar outras alternativas para es-
truturar em conjunto ações de curto, médio e longo prazo que não
visem somente à criação de estruturas para caberem pessoas presas, mas
que filtrem melhor quem será preso, desenvolvendo formas de controle
diversas da prisão para casos de crimes menos graves, desta maneira,
seria possível estabelecer um maior controle de entrada e a manutenção
de vagas no sistema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A superlotação do sistema prisional é um problema público com con-
tornos preocupantes no Brasil e situá-lo como problema público exige
aprofundamento no conhecimento das características que o permeiam,
pois para se desenvolver uma política pública prisional que apresente
coerência e aplicabilidade prática é preciso antes de tudo conhecer bem
o sistema e suas peculiaridades.
De certo que a superlotação não é origem, mas consequência de
um problema conjuntural maior que envolve todo o sistema prisional e
necessita ser explorado sobre suas várias nuances dentro deste mosaico
amplo que representa.
A (não) criação de vagas a partir do uso dos recursos do FUNPEN é
um bom exemplo da desorganização de propósitos entre a necessidade
223
e a aplicação dos recursos públicos. Através da análise detalhada de
documentos e dados, pôde-se constatar que apesar de existir um déficit
substancial de vagas no sistema prisional e um fundo nacional com a
arrecadação positiva constante e superavitária, o seu uso para a cria-
ção de novas vagas não tem sido significativo para suprir a demanda.
Tal característica revela que o desenvolvimento de uma política pública
não depende exclusivamente da existência de recursos financeiros, mas,
antes de tudo, de uma construção de mecanismos de efetividade para
utilização destes recursos.
O processo de elaboração e implementação de uma política públi-
ca exige dos tomadores de decisão participação ativa na tentativa de
perpassar os entraves burocráticos para atingir os fins pretendidos, de
modo que se pode observar que nem a existência de recursos, nem a
liberação destes recursos, por si sós, garantem a realização de uma po-
lítica pública.
Como exemplo, temos que o contingenciamento dos recursos do
FUNPEN representou perda significativa na capacidade financeira de
uso, mas não foi isoladamente o único fator preocupante quanto à uti-
lização do aporte financeiro federal, os dados claramente demonstram
que mesmo se analisando isoladamente os valores não contingenciados,
a realização das despesas com a finalidade de criação de novas vagas no
sistema prisional foi muito baixa.
O uso dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional vem larga-
mente sendo discutido politicamente e na mídia nacional, mas pouco
se sabe verdadeiramente sobre a efetividade deste uso na melhoria do
sistema, vez que a qualidade do uso importa tanto quanto a quantidade
de recursos existente.
Constatado que os recursos do FUNPEN não têm sido revertidos
satisfatoriamente para criação de novas vagas no sistema e que a criação
de vagas através da reforma, ampliação e construção de unidades pri-
sionais é um processo que demanda tempo. Necessário se faz também
ponderar que, do ponto de vista da política pública, é preciso desenvol-
ver outras ações que visem à redução da população prisional.
Elaborar ações conjuntas relativas às diversas frentes do problema,
bem como sanear as disfunções do uso do aporte financeiro são medidas
que devem ser tomadas para concretização de uma política eficiente.
224
REFERÊNCIAS
225
Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
226
SALLA, Fernando; BALLESTEROS, Paula R. Democracia, direitos
humanos e condições das prisões na América do Sul. Research project
of Geneva Academy of International Humanitarian Law and Human
Rights, 2008.
227
Sobre o livro