"Meu Jeito Nasceu Comigo!" Mulatas Do Samba"
"Meu Jeito Nasceu Comigo!" Mulatas Do Samba"
"Meu Jeito Nasceu Comigo!" Mulatas Do Samba"
Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Setembro de 2019
Joyce Gonçalves Restier da Costa Souza
Ficha Catalográfica
CDD: 300
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA
compreensão.
Aos meus pais, Iraci e Cesar, pelo apoio e suporte. À minha mãe Iraci pela
companhia nos momentos solitários de leitura e escrita, pela segurança e a certeza
de que tudo daria certo.
À minha irmã Kelly e ao meu cunhado Felipe pelos mimos e aconchegos.
À minha filha Manuela por mostrar que é possível e que nunca estaremos sós.
À minha orientadora Sônia Giacomini pela confiança, pelo zelo e pelo
encorajamento.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à
PUC-Rio pelo investimento e apoio à pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001.
À banca examinadora pelas contribuições, pelo cuidado e a oportunidade de
pesquisar o que acredito.
Aos funcionários do Departamento de Ciências Sociais por todo apoio e amizade.
Às minhas ancestrais que me acompanharam e me acompanham nos caminhos de
minhas pesquisas.
Resumo
Palavras-chave
Mulatas; Corporeidades; Saber corporal; Dom.
Abstract
the foot, as a gift. Articulating the perceptions about the corporeities and the
possible origins of the gift of sambar are examined the possibilities of this gift to
act like a gestural file configuring like a corporal knowledge possibly inherited of
previous generations and manifested through the Mulata Being. In this way, the
awareness of the Mulata Being would go beyond formal and informal learning
and peer recognition, and could absorb a file of gestures shared by experiences
among black women from the samba world, making them personalities inside and
outside the carnival.
Keywords
Mulattas; Corporeity; Body knowledge; Gift.
Sumário
1. Introdução .......................................................................................... 10
participava do samba? Afinal, para eles, menina negra, suburbana e que sabia
sambar bem, automaticamente deveria fazer parte da comunidade do samba.
Ainda na dança, participando de grupos e estreando coreografias de Dança
Afro, ouvia com mais força, algo que sempre fez parte dos elogios às
performances: “-Essa menina é muito talentosa, Ela tem o dom da dança!”.
A palavra talento acompanhada do significado de ser algo inestimável e
individualizado, começou a aparecer nas vivências diárias trazendo consigo um
sentido de importância e de destaque, como algo que personificaria a
performance, tornando-a única e pessoal.
Já na idade adulta, como professora de Educação Física, era rotineiro ouvir
instrutores, técnicos e colegas de profissão encaminhando alunos e alunas às
equipes e clubes em razão de um talento para alguma modalidade desportiva. As
frases mais utilizadas para justificar o encaminhamento era que os educandos
eram muito talentosos em determinada modalidade esportiva ou que estes tinham
o dom para algum esporte em questão.
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daria este percepção por parte de quem é portador do talento. Nesse sentido, para
além da admiração, a curiosidade nos levou a investigar as mulatas do samba e as
suas percepções sobre o que seria ser uma mulata.
Percebemos então que um conjunto de hábitos, posturas e condutas
caracterizam as mulatas incorporando uma maneira de ser mulata que,
concordando com a afirmação de Fernanda Carneiro (2000, p.26), mantém suas
“verdades espirituais e culturais ancoradas no corpo”. Neste entendimento, ser
uma mulata toma corpo e se expande em uma performance motora exemplar
combinando o samba no pé, graciosidade, o amor pelo samba e a paixão pelo
carnaval. Sua expressão envolve não somente o conjunto de aprendizados
informais como também o convívio desde a infância e a vivência de mães e avós
no universo do samba e/ou do carnaval.
As complicadas explicações sobre a origem do que seria ser uma mulata,
considerado aqui como algo que “se adquiriu, mas se encarnou de modo
duradouro no corpo em forma de disposições permanentes” (Bourdieu, 2003,
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ainda tratando de uma aptidão motora que nasce com elas e que de alguma
maneira pode ter sido herdada de sua ancestralidade. É nesta vertente da
ancestralidade que encontramos um saber corporal elaborado pelo corpo negro em
diáspora1 que pode estar mesclado com as corporeidades que estão em ação na
performance destas mulheres. Um habitus, então incorporado como um arquivo
gestual que está em paralelo com tantas outras manifestações corporais negras
brasileiras como a ginga, os ombros em movimento, os requebros de quadris, a
umbigada dentre tantos outros, que perpassaram os séculos e, reconfigurados,
aparecem como exclusividades de um talento particular.
Toda a gama de interpretações acima relatadas surge das análises dos
depoimentos das mulatas nos filmes documentários selecionados para a pesquisa.
Neles, além de narrarem suas histórias de vida, suas imagens nos oferecem gestos
e silêncios que colaboraram para o entendimento de qual seria, como diz a
epígrafe, o segredo delas.
Inicialmente nos foi solicitado que realizássemos entrevistas com as
mulatas, no entanto, houve uma dificuldade temporal e interpessoal. A
pesquisadora então, grávida de alto risco, já no fim da gestação, entrou em contato
1
“O termo diáspora serve para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas
Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram (Lopes, 2004, p.236)”
14
atenção, uma entrevista com Nilce Fran2 disponibilizado no canal Escola Superior
de Propaganda e Marketing, ESPM-1.
Modificamos a palavra para “mulatas”. Na plataforma Youtube apareceu,
mais uma vez, um número enorme de vídeos. Agora os vídeos são produções
como Show de Mulatas, Mulatas do Sargentelli, atuações de mulatas em shows e
nos carnavais. Com a estrutura de documentário visualizamos apenas um trailer
com o nome Mulatas! Um tufão nos quadris na página do Site Papo de Samba. Na
plataforma Vimeo foram localizadas 12 páginas com 12 vídeos cada. Vídeos
musicais, declamação de poesias, individuais e particulares, além de show de
mulatas. O primeiro vídeo que aparece na primeira página é o trailer do
documentário citado anteriormente.
A fim de refinar ainda mais a busca, inserimos o termo “passistas
documentário”. Na plataforma Youtube apareceram 20 vídeos sendo 06 destes
documentários. Já na plataforma Vimeo apareceram 02 vídeos documentários,
sendo o primeiro sobre as passistas de São Paulo e o segundo sobre o carnaval
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2
Nilce Fran é coordenadora da Ala das Passistas da Escola de Samba Portela, participante de
vários vídeos e documentários sobre o tema carnaval, oferece aulas de samba no pé no Brasil e em
vários países e ainda orienta a atuação de diversas passistas de diferentes escolas de samba.
16
percepção das interlocutoras, que consideram seu saber sambar ou o seu samba no
pé como algo intrínseco, visto aqui como algo que é parte de sua existência e não
só de sua vivência pois, de acordo com a perspectiva, seria essa “experiência da
existência a condição sine qua non para corporificar/materializar o sujeito”
(Queiroz e Silva, 2016, p.199).
Sobre o samba enquanto dança e enquanto ritmo, traçamos uma relação
entre estes e a ancestralidade afro-brasileira, com a possibilidade de análise do
samba como um componente da cultura de Arkhé afro-brasileira. Para esta
discussão nos acompanham Muniz Sodré (1997, 1998, 2002, 2005), Fábio Leite
(1995), Zeca Ligiéro (2011) e Sandra Petit (2008, 2015). Nesta perspectiva o
samba performado pelas mulatas além de arquivo gestual seria também o símbolo
do samba urbano carioca.
A análise dos dados então foi realizada por meio da análise do discurso e
observação gestual das depoentes nos documentários. Aproveitando a
oportunidade em observar as imagens em movimento, buscamos além de analisar
o discurso destas mulheres, observar em seus gestos o que poderia significar o ser
mulata, considerando juntamente com Silvino Santin (2003, p.66) o tornar-se
como o “incorporar no seu modo de ser a realidade assumida”.
19
Mulata é uma palavra muito forte, né, de raiz. Essa declaração é de Rose
Bombom (Mulatas!, 2011b), mulata show e passista do Grêmio Recreativo Escola
de Samba Acadêmicos do Grande Rio, mulher negra de grande estatura e volume
corporal que tem em seu corpo e imagem o estereótipo da mulata ainda presente
no imaginário social. Se entendermos o imaginário social como “um sistema
simbólico que reflete práticas sociais em que se dialetizam processos de
entendimento e de fabulação de crenças e ritualizações”(De Marco, 2006, p.15),
poderemos compreender os motivos pelos quais as construções discursivas sobre
as mulatas persiste e se reatualiza.
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mulheres vindas de Guiné, Cabo e Serra Leoa tinham “prioridade para o trabalho
doméstico nas casas-grandes” (Braga, 2015, p.64). A associação corpo e beleza
foi fundamental para criação de um discurso sobre a suposta disponibilidade
sexual destas mulheres já que esses eram os atributos que as marcariam e as
condenariam a funcionalidade de mucamas. Mucamas, mulatas, amas-de-leite,
papéis compulsoriamente vivenciados por mulheres negras na diáspora brasileira
ajudaram a compor todo o imaginário onde se fundaram as bases de um
pensamento social brasileiro.
Relembrando que o imaginário social brasileiro, elaborado
discursivamente principalmente entre o século XIX e início do século XX, traz em
suas composições imagens de mulatas que, até então mestiças, passavam de
voluptuosas e fogosas a traidoras e vingativas. Estas mulheres consideradas
sempre como sedutoras e com atitudes que demonstravam algum tipo de liberdade
e independência em relação aos seus corpos e as suas vidas tiveram os discursos
sobre si forjados e reelaborados a partir dos olhares e pensamentos de homens
brancos no decorrer dos anos até a chegada por volta de 1970 da Mulata do
Samba que se mostra dentro das configurações que hoje reconhecemos.
O historiador e jornalista Sérgio Cabral em depoimento no documentário
de Walmor Pamplona (Mulatas!, 2011b), aponta que as mulatas ainda na década
24
de 1950 ainda não apareciam com destaque nas escolas de samba. Segundo o
jornalista, elas aparecem com o seu esplendor e glamour nas escolas de samba a
partir da absorção das configurações utilizadas nos shows de Carlos Machado3,
produtor e diretor de espetáculos brasileiros, que ocorreram entre o fim da década
de 50 e meio da década de 60 nas casas de shows do mesmo. Nos anos de 1970, as
mulatas apresentam o seu auge com empresário Oswaldo Sargentelli4, auto
intitulado Mulatólogo, com os seus Show de Mulatas já com uma configuração
que conhecemos atualmente. Formalizando o que Mariza Corrêa (1996, p.48)
indicou como “mulatice”, ou seja, a mulata “como um gênero de ser”.
Os discursos masculinos elaborados por literatos, médicos e intelectuais
tinham como objetivo não só estabelecer um padrão de corpo feminino, como
também fixar categorias nas quais os corpos de mulheres negras pudessem se
localizar como objeto de seus intentos, de seus desejos, de suas experiências.
Até mesmo a interpretação do que seria uma "vadia" como
qualidade depreciativa de mulheres que frequentavam, com
maior liberdade o espaço público ou que possuíam o controle de
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Carlos Machado (1908-1992) foi produtor e diretor de espetáculos brasileiros. Proprietário de
diversas casas de shows no Rio de Janeiro, onde os espetáculos contavam com vedetes e mulatas
vestidas com biquinis brilhantes e esplendores. É reconhecido como o “o rei da noite” e o inventor
das mulatas.
4
Oswaldo Sargentelli (1923-2002) foi apresentador de televisão e empresário. Realizava Show de
mulatas e as promovia enquanto atrizes. Dono da casa de show Oba-Oba, que mais tarde se tornou
um show com referência nas manifestações culturais brasileiras tendo como ponto alto a
apresentação de mulatas.
25
tinha como objetivo “ser um movimento que revelava a identidade étnica do negro
brasileiro por meio da valorização de sua ascendência africana” (Silva, 2015,
p.131). A associação realizava concursos de beleza negra atendendo os mesmos
moldes dos empreendidos pela alta sociedade carioca, eram eles Rainha das
Mulatas realizado em 1947, o Glamour Negro Girl e o Boneca de Pixe em 1948.
Os nomes dos concursos estabeleciam uma correlação entre pauta racial e os
termos pejorativos pelos quais mulheres negras eram nomeadas o que para
Amanda Braga (2015, p.126) se caracterizava como um protesto discursivo em
nome de uma afirmação racial. Segundo a autora:
O TEN com a promoção dos concursos de beleza, abriu uma via
de valorização das mulheres negras calcada em seu próprio
padrão estético: uma resposta ao critério racista engendrado
pelos concursos de beleza que apenas aceitavam inscrição de
mulheres brancas. Era o modo de resgatar a autoestima dessas
mulheres, massacradas por uma estética exclusivista e
eurocêntrica de beleza (BRAGA, 2015, p.124).
A autora Joyce Silva (2015, p.133) em sua análise das imagens dos
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a estigmatizar estes corpos, que não eram individualizados, visto que na diáspora,
corpos negros eram corpos coletivos e assim a estigmatização foi transmitida para
todo o grupo.
Entendemos o estigma a partir da visão Erving Goffman (1975), como um
“atributo profundamente depreciativo” em um tipo de relação especial entre
atributo e estereótipo em uma linguagem de relações. Com isso um conjunto de
práticas de representações sobre homens e mulheres negras marcaram seus corpos
e seus comportamentos estabelecendo características de uma estereotipagem
profundamente negativa. Considerando o quanto “a estereotipagem, enquanto
prática de produção de significados, é importante para a representação da
diferença racial” (Hall, 2016), é possível visualizar os motivos pelos quais
algumas particularidades referentes às etnias africanas foram naturalizadas de
maneira a categorizar toda a população negra. Isso ocorre, segundo Stuart Hall
(2016, p.190), devido aos “efeitos essencializadores, reducionistas e
naturalizadores, que reduz as pessoas a algumas poucas características simples e
essenciais, que são representadas como fixas por natureza”.
No universo da linguagem de relações, esta estereotipagem, divagaria
entre o negativo e o positivo, sendo manipulada pelos corpos negros como
estratégia de sobrevivência e resistência, estabelecendo uma “estratégia corporal”,
29
harmonia dos traços fisionômicos, textura dos cabelos” O que entre as negras
seria encontrado nas “ nações minas, fulas, felanins e achantis” pois estas estariam
“entre as mais bem dotadas do ponto de vista da beleza plástica e a cor não tem o
negro retinto de certas tribos, mas um matiz agradável (...) os traços da fisionomia
são mais harmoniosos e puros” (Vianna apud Giacomini, 1992, p.18).
Já Oliveira Vianna ressalta a identificação das mulatas com as
características dita positivas de sua miscigenação, como a tez mais clara, os traços
fisionômicos mais afilados e os cabelos menos crespos. Este autor elenca as
características que nutririam a imagem da mulata com ênfase em sua cor de pele.
O terceiro intelectual analisado pela autora foi o sociólogo Gilberto Freyre.
Para este o mestiço, no caso o mulato e a mulata, seriam o exímio exemplar da
brasilidade, o especialista em mediações, “isto é, o brasileiro – é melhor que o
branco, o índio e o negro; é mais rico, mais plástico, mais apto” (Giacomini, 1992,
p.23). Já especificamente sobre a mulata, a autora pontua que ela “teria
desenvolvido adaptativamente comportamentos afáveis e cordiais para conquistar
simpatias que assumiriam a forma de disponibilidade sexual” (Giacomini, (1992,
P.24). E esta disponibilidade apareceria justamente na manifestação de atributos
raciais:
31
Gilberto Freyre então seria o autor que colaboraria com o encontro das
características morais e libidinais ressaltadas por Nina Rodrigues e a estética
elencada por Oliveira Vianna. Na perspectiva freyriana, a mulata é uma
combinação de atributos morais e estéticos em uma harmonia que a torna
irresistível aos olhos de seus senhores.
Podemos observar que para os três intelectuais selecionados, a mulata é
um perfil diferente das mulheres negras e das mulheres brancas. Carrega consigo
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particularidades que lhe atribuem um valor sexual não creditado às demais. Esse
valor sendo veiculado por meio do discurso científico, confere a ele legitimidade e
status de verdade.
Desde o início de sua trajetória em terra brasileira, mulatas são retratadas
discursivamente através de seus corpos e assim, desde a tonalidade de sua pele, o
formato dos cabelos, o feitio de seus seios e nádegas são agregados à conotação
sexual sugerindo uma disponibilidade. Se observarmos com cuidado, esta
disponibilidade se encontra como o anseio do enunciador do discurso, visto que as
vozes dessas mulheres não eram retratadas ou ouvidas. Apareciam, segundo
Gilberto Freyre (2012) no seu estudo sobre os anúncios nos jornais do século
XIX, algumas referências que ilustravam a sua possível posição de “amásia
escrava”, como: “de boa conduta a servir como noiva”, “senhor saudoso de seus
cafunés e dengos”, “muito carinhosa para meninos”.
Discursos que deixam para o entendimento do leitor a percepção de que a
combinação entre formas corporais e comportamentos afetuosos faria de
“mulatinhas”, “mulatas de bonita figura”, com seus “peitos em pé”, ‘bunda
grande” ou “empinada” e “corpo espigadinho” acessíveis e disponíveis aos seus
senhores já que o corpo não lhes pertencia. Porém, a sua agência enquanto
potencial de manifestação de suas vontades, como bem citado por Teofilo de
32
Queiroz Junior (1975, p.29), permitiu que as mulatas, “em certos casos,
terminassem por explorar seus dotes físicos como recursos de auto-afirmação e
como meio de libertar-se de fato” da situação de escrava. Nem por isso foi
amenizada ou negada a condição de seu corpo na qual teria a sua “aparência
funcionando como índice de seu ‘valor de uso sexual’ como descrito por Sônia
Giacomini (1988, p.76).
A fim de demonstrar como ocorriam estas descrições, selecionamos alguns
anúncios de jornais do século XIX, vejamos:
A mulatinha puxando a sarará, de nome Joana, de 14 anos
prováveis, fugida de um engenho no Cabo, seria, com suas
pernas e mãos muito finas, uma verdadeira “flor de pecado”,
cor alvacenta, cabelos carapinho e russo, corpo regular, com
todos os dentes, mas com vestígios antigos de chicote no
corpo[...] (FREYRE, 2012, p.61, grifo nosso).
[..] Ana, Fula e seca, que em 1839 desapareceu da casa dos seus
senhores, tinha ‘peitos em pé’ que se harmonizavam com seu
corpo todo ele bem feito; e aristocratizado – do ponto de vista-
europeu- por um nariz afilado e pequeno (Idem, p.71, grifo
nosso).
‘[...] tem que ser engraçadinha, jeitosa, tem que ter um corpo
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‘Ser mulata pra mim (...) não é só pela cor, pelo estilo já de
mulata, que as pessoas já olham e já falam, essa aí é uma
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Com isso, além de ter um corpo que corresponda ao que Sônia Giacomini
(2006, p.124) enunciou como “mulata arquetípica, aquela que o português
inventou”, para ser autêntica, seria preciso ter um conjunto de atitudes e
comportamentos que a inseririam no contexto das mulatas do samba. Atitudes
provocativas e desafiadoras em relação ao público ao mesmo tempo que
acolhedoras e simpáticas, aparente autoestima elevada, elegância e porte durante a
dança, demonstração de orgulho e paixão pelo samba, um comportamento que a
mantenha profissionalmente vinculada ao mundo do show e a distancie da
prostituição e, principalmente, o Samba no pé.
Vejamos algumas falas:
‘a mulata, na cor dela, ela passa uma porção de coisas prás
pessoas, é energia. Quero dançar, dançar, passar energia
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‘Tem que ser abusada, costumo dizer que não basta sambar tem
que ser abusada. Tem que ser enjoada [...] Tem que ter um
carão, tem que ter uma ousadia, tem que ser diferente[...]’
(Nilce Fran apud DAMAS, 2015).
‘Tem dois mundo da mulata: Você querer ser mulata e você ser
mulata, entendeu? Eu sou mulata. Eu sambo, faço show, então
eu sou intocável, respeita que eu vou passar[...] a mulata só
quer sambar’ (Márcia Anjo apud MULATAS, 2011a).
constitui o seu jeito de ser, seu jeito de corpo e é por meio deste que ocorreria o
seu reconhecimento pelos componentes da escola ou da comunidade.
A percepção de competência seria a habilidade que, aparentemente, daria
suporte à autoconfiança e a autoestima. Nos depoimentos das mulatas verificamos
esta habilidade quando elas falam e demonstram aquilo que dá excelência a sua
performance como mulata, o samba no pé.
‘Pra sambar a pessoa tem que ter aquela vontade né, aquele
prazer, harmonia... Agora ir no samba só coisa não adianta,
rebolar também não adianta, o negócio é o pé’ (Tia Suluca
apud DAMAS, 2015).
‘Ah, ser mulata pra mim é minha história de vida, sabe..., tudo
que eu tenho, tudo que eu sou’ (Tânia Bisteka apud
MULATAS!, 2011b).
associar os movimentos dos pés e dos quadris juntamente com os braços alinhados
e gestos sutis nos quais mostram o rosto. São diferentes maneiras de expressar o
samba no pé, porém mantendo um acervo básico de gestos que transparecem para
além do saracotear de pernas e nádegas, um belo conjunto gracioso de gestos que
fazem com que estas transpareçam a simpatia em sua performance.
Os movimentos dos pés, o chamado samba no pé, está incluído no
movimento básico miudinho. Nilce Fran (Mulatas!, 2011b), oferece no vídeo uma
aula de samba no pé onde ao mesmo tempo que executa os passos, verbaliza como
fazê-los. O que observamos é que os pés de Nilce deslizam no chão enquanto
executam a troca de peso entre esquerda e direita, ao mesmo tempo que produzem
um som, assemelhando-se à definição de José Carlos Rego:
Movimento sequencial da dança do samba, onde os pés
deslizam. Na maioria das vezes as pernas ficam em meia dobra
num exercício continuado. O miudinho difere-se do sapateado
americano pelo fato de que nele os pés têm ação rastejada e para
o movimento erguem-se milímetros do chão (REGO apud
LIGIÉRO, 2011a, 143).
O autor ainda afirma que no miudinho a passista “mostra o seu trato, seu
estilo próprio, a sua intimidade com a dança, pois só quem domina muito bem
esse passo será, algum dia, considerado mestre” (Idem). Começamos por aí a
entender a relevância do samba no pé para as mulatas, pois é somente por meio do
45
a perna esquerda se move para frente enquanto o torso se move para a direita e o
braço direito avança” (Ligiéro, 2011a, p.143). Este movimento pode se
encontrado no samba ou na capoeira, o que diferencia a sua presença nas
modalidades citadas é o ângulo de ação e a energia que é projetada. No samba a
ginga atua com suavidade acompanhando a cadência do samba, arrematado com
os movimentos dos pés (miudinho) e o rebolado. Não há dispersão de energia
como ocorre com a sequência “ginga, aú, negativa, rolê” na capoeira (Tavares,
2012, p.100).
A energia no samba está na maneira como a mulata acompanhará o ritmo
de sua bateria, como os seus pés se encontram com o chão, em como as cadeiras
(os quadris) acompanham o ritmo do samba. O que possibilita na performance os
remelexos, tremidinhas e todos os outros movimentos que fornecem oportunidade
de dispersão da energia contida, emanada e recebida no samba. Energia recebida
pelo som dos tambores da bateira, contida pelo corpo quando do seu contato com
o solo e emanada por meio da performance do samba no pé.
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Assim, a ginga se mostra como movimento que parece ser aquele que dá
personalidade ao estilo da mulata. Além de dizer no pé, a mulata precisa compor
com a ginga o seu estilo que formatará a sua dança. Observamos que todas as
mulatas participantes dos documentários possuem uma performance exemplar e o
gestual exigido, independentemente de sua idade. O que estamos pontuando é que
as mudanças na dança samba acompanharam as transformações do ritmo samba e
mesmo com o ritmo das baterias mais forte e rápido, os movimentos básicos e a
graciosidade continuaram presentes.
Porém, segundo as próprias mulatas, somente aquelas que possuem o dom
para o samba se encontrariam no quadro descrito acima. Somente as portadoras do
dom estariam aptas a serem mulatas reconhecidas porque elas têm o domínio dos
movimentos básicos e o estilo próprio para representar a personagem.
47
Maurice Godelier (2001, p.270), o sagrado seria “uma relação dos homens com as
suas origens, origens deles mesmos, assim como de tudo que os cerca”.
A aproximação entre o mundano e o sagrado, no contexto da cultura afro-
brasileira possui uma linha tênue, visto que “religião e entretenimento são formas
complementares de um mesmo ritual” (Ligiéro, 2011, p.135). Assim algo
aparentemente mundano pode ter um tom sagrado para os praticantes. Entendendo
o elemento sagrado como o bem que não se pode doar, na perspectiva de Godelier
(2001), podemos visualizar o samba no pé como um dom dádiva, oferecido pela
ancestralidade que permite às mulatas uma reconfiguração de atitudes corporais
apoiados em uma memória corporal coletiva.
Quando analisamos os depoimentos das mulatas sobre suas histórias de
vida juntamente com o contexto socio histórico da população negra,
possibilitamos uma leitura sobre como este dom pode estar relacionado ao
sagrado, à origem das mulatas, a uma memória corporal que constituiu um saber
expressado por meio do samba no pé, que poderia ter este corpo como arquivo
deste saber.
51
e criadas na escola [de samba], faz parte e não tem nem ritmo,
entendeu. Não sabem sambar e não adianta ensinar que não vai
aprender. E tem pessoas que não tem nada a ver, nunca
participou e tem aquilo no sangue, e só chegar e mostrar,
entendeu’ (D. Chininha, apud Toji, 2006, p.57).
Mulata não é a profissão dela, não é o que ela faz, mulata é o seu Eu. Em sua
entrevista demonstra que todos os atributos corporais que possui e que a
classificam como mulata, são parte de seu jeito de ser. Sua história pessoal passa
pelo passado de uma mãe passista e de uma avó porta-bandeira, desde muito nova
vivenciando a escola de samba e sendo aprovada no concurso para passista.
Quando observamos a sua entrevista fica nítido em suas declarações que não
haveria outra corporeidade em Rose sem ser a de mulata e isso, de alguma
maneira, está relacionado ao seu samba no pé, o dom, que pode ter sido herdado
de sua mãe e avó, até mesmo porque em suas explicações apenas diz que quando
chegou na escola de samba fez amizade com as meninas, não há nenhuma menção
ao aprender a sambar. Quando ela traz o passado da mãe e da avó, teria como
intuito demonstrar a herança herdada.
Outra mulata que também nos fornece um bom panorama de como o dom
é tratado por elas é Tânia Bisteka. Quando ela conta a sua história no samba no
filme de Theresa Jessouroun (Samba, 2001), pontua as suas raízes na mangueira
dizendo sobre o passado de sua mãe e pai como primeiros passistas e de sua avó
como componente da escola. Neste caso, o discurso da moça, que assim como o
de Rose, atribuí o seu sucesso como mulata ao fato de ter raiz, ou seja de ter
antepassados que já participavam do samba como passistas, deixa a entender que
54
o seu samba no pé foi herdado e ainda ela diz que o samba está no sangue, está na
alma, ou seja é parte preponderante do que ela é. ‘o samba está dentro de mim’. Já
no documentário de Walmor Pamplona (Mulatas!, 2011b), que ela também
participa, ela diz que é a verdadeira mulata, ‘ser mulata pra mim é minha história
de vida, sabe... tudo que eu tenho, tudo que eu sou! Por mais que a gente pare de
dançar, eu nunca vou deixar de ser’.
Tânia em seus dois momentos quando fala sobre a sua história pessoal faz
um gesto com cabeça e direciona o olhar para o alto, como que envolta em
nostalgia e em seu discurso enfatiza que o samba está na alma trazendo em sua
voz a certeza do que diz.
Estes são apenas dois exemplos de como o samba no pé se configura como
um dom herdado para as mulatas, nos filmes observamos ainda mais mulheres
descrevendo a sua condição de mulata desta mesma maneira. Consideramos,
então, a partir destas colocações que o dom do samba no pé, para as mulatas, é
algo vai além do talento, pois ele é considerado pelas próprias como parte inerente
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acordo com as “bricolagens gestuais” (Tavares, 2012, p.90), ou seja, uma junção
de gestos, que acessaria.
A imitação é um fator importante nessas “bricolagens”, um conjunto de
gestos de outros passistas vão sendo reconfigurados e transformados em novos
passos e trejeitos que são incorporados pelas mulatas. Ainda assim é necessário
saber sambar, ter o samba no pé para conseguir tal proeza. Como elas mesmo
dizem: ‘fui pegando um pouquinho de um, um pouquinho de outro, até que montei
o meu samba, né!’ (Dandara Machado apud Mulatas, 2011a).
Dessa maneira, consideraremos o dom do samba no pé como um saber
corporal. Um saber a ser analisado a partir da perspectiva na qual “a experiência
corporal é compreendida como fundamento existencial da cultura e do sujeito”
(Csordas, 2008, p.337). O corpo vivido, a experiência corporal como parte
fundamental da constituição da pessoa. Assim poderemos compreender como o
samba no pé, uma tradição afro diaspórica brasileira, pode ser transmitido entre
gerações de mulheres negras, chegando às nossas mulatas e sendo percebidos
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aprendido, o que nele foi vivido e, principalmente, o que foi sentido”, “é o lugar
da lembrança” (Castets, 1988, p.09). Esta memória se instalaria no corpo por meio
da inscrição destas lembranças gestuais e sensoriais no inconsciente que “quanto
mais profundamente inscritos na memória do corpo, mais facilmente aparecem,
tornando-se habituais e inconscientes” (Idem). Assim, o corpo negro mesmo com
todos os impedimentos para sua expressão e sobrevivência,
preservou e condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos
ritmos e pela energia, bem como pela oralidade, que vem sendo
transmitida como que um plano conspirativo, invisivelmente no
interior da própria sociedade (TAVARES, 2012, p.25)
suscita a seguinte declaração: ‘a mulata é muito mais que o samba, ela é o samba
em forma de pessoa’ (Ana Pérola apud Mulatas!, 2011b).
O corpo tem seu mundo próprio, sua singularidade, onde o
gesto é fundamental na produção de linguagem e comunicação
deste corpo com o mundo. O gesto é onde o corpo se realiza, é a
estrutura da memória. O gesto é usado para recuperar a
memória, pois nele pensamento e movimento estão juntos. Cada
gesto é um ato significativo, pois fornece muita informação
sobre a vida do sujeito (ERAMO, 2010, p.127).
‘Eu acho que eu não sei o que é, dizer o que é ser mulata
mesmo’ (Z. apud Giacomini, 1992, p.140).
59
Sobre isso, Arlei Damo (2005, p.118), aponta que o dom quando uma
dádiva divina “não se pode explicar ou ainda é aquilo que você sabe que o sujeito
tem, mas não sabe o que é”. Para o autor seria uma representação que preserva
uma dimensão intangível. E é essa dimensão que se relaciona com o que Maurice
Godelier (2001) considera como sagrado.
Porque diz o indizível, porque representa o irrepresentável, o
objeto sagrado, é o objeto carregado do valor simbólico mais
forte. E é por ser o objeto cultural que condena e unifica mais
íntima e eficientemente do que qualquer outro o imaginário e o
real que compõem a realidade social que ele é ao mesmo tempo
o símbolo mais forte, o significante mais pleno, o termo mais
rico de sentido de uma língua que ultrapassa a palavra, a língua
falada da sociedade e que fala também através dos gestos, dos
corpos e dos objetos, naturais e fabricados que os cercam
(GODELIER, 2001, p.263)
confere a esse dom um valor que o remete ao sagrado, sendo assim complicado,
como pudemos observar nas falas das mulatas, explicar, representar ou até mesmo
passar adiante. Como algo muito pessoal e individualizado a transmissão do dom
se daria então por meio da tradição ou ainda pela compreensão da cultura como
Arkhé ou seja, como “um impulso inaugural da força de continuidade do grupo
que está no passado e no futuro, é tanto origem como destino [...] é a transmissão
da matriz simbólica do grupo” (Sodré, 2002, p.170).
4.
Meu samba, nossa história.
‘Ah, o samba pra mim é minha vida, quem eu sou, é onde eu me mostro,
onde eu me reconheço, e..., é o que eu represento’
Lucinha Nobre, Damas do Samba.
nos quintais das tias baianas que desembarcaram no Rio de Janeiro no início do
século XX, como Tia Bebiana e Tia Ciata (Moura, 1995). Essas tias, segundo
Helena Teodoro (Damas, 2015), trouxeram “a ciência, economia, tecnologia de
cozinhar, a gastronomia. Fazendo a junção do sabor e do saber e no seu próprio
corpo a possibilidade da continuidade histórica e de liberdade de ser”. Assim
essas tias, conhecidas também como mulatas, iniciaram por meio de seus
territórios, corpos e lugares, o samba urbano, como “prolongamentos dos sambas
domésticos, familiares, unidos à cozinha, [...] unindo também muitas vezes a fé
religiosa do candomblé” (Sabino; Lody, 2011, p.69).
Uma destas casas, a de Tia Ciata, onde ocorriam grandes festas, foi
retratada por Muniz Sodré (1998, p.15) como uma “metáfora viva das posições de
resistência adotadas pela comunidade negra”, pois na parte da frente ficavam os
bailes com músicas mais aceitáveis pela sociedade carioca e nos fundos,
“protegidos pelos biombos culturais da sala de visitas, estavam os sambas (onde
atuava a elite negra da ginga e do sapateado) e a batucada (terreno próprio dos
negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso e só se
destacavam os bambas de perna veloz e do corpo sutil)”.
62
cotidiano é aquele que surge para uma reconfiguração energética nos rituais. Para
Raul Lody e Jorge Sabino (2011, p.80),
São muitas as ações repetidas das tradições ancestrais, outras
foram adaptadas, algumas criadas ou fundidas, mas tem sempre
no corpo possível, no corpo do trabalho, o principal elemento-
base para realizar, nos momentos permitidos, a celebração da
pessoa com a sua história, sempre marcada pela música e pela
dança.
pesquisadora Simone Toji (2006) nos revela um exemplo quando uma das alunas
da escolinha para passistas, participantes de seu trabalho, solicita à outra que, já
era passista, fizesse uma demonstração de seu samba no pé. A passista alega não
realizar a dança por não haver bateria e segundo relata a autora, rapidamente as
meninas da escolinha cantarolam um samba e com o ritmo de suas palmas a
passista demonstra o seu samba no pé. Da mesma maneira, nos relatos descritos
por Zeca Ligiéro (2011a) sobre o sapateado do samba, o ritmo que alimenta a
performance da passista é justamente o ritmo proferido pelos pés no próprio
samba no pé.
De acordo com Graziela Rodrigues (2005, p.46), “os pés apresentam uma
íntima relação com o solo. Penetram na terra como se adquirissem raízes...”, e
assim estabelecem a relação com a terra e assim na movimentação do samba, na
troca de apoios entre os pés direito e esquerdo, haveria “o descarrego de energia
acumulada no corpo e a absorção de uma nova energia para o corpo”. E assim a
energia circularia pelo corpo em um circuito energético que “a partir da cabeça,
assentamento do sagrado, retornamos à unidade deste corpo: a energia psíquica
expande-se pelo tronco, segmenta-se no ventre para depositar-se no solo a partir
de representações que os pés imprimem” (Idem, p.55).
65
justamente por estarem em contato com essa força, com essa energia que, parte
inerente das manifestações corporais afro-brasileiras, atravessam esses corpos e
conferem a eles o calor e a energia, identificadas e reconhecidas como partes do
que é uma mulata.
Seria o que a mulata Meiri Lannes (Mulatas!, 2011b) gostaria de
exemplificar quando diz que ‘toda mulata tem uma força, que toda mulata é
quente’. Essa força faria referência a energia que esta mulher emana durante a sua
performance, como a energia que circula em seu corpo e preenche os espaços e os
gestos, transformando a performance num universo único de sentidos para os
amantes do samba.
ser, estar e agir da cultura negra brasileira, o que poderia modificar as percepções
sobre o mundo de seus praticantes.
De alguma maneira conseguimos observar a presença destes valores nas
atitudes corporais das mulatas durante seus depoimentos nos documentários. A
descrição da energia que é compartilhada com o público, a relação com os
ritmistas e seus instrumentos, a relação de gratidão, dedicação e cooperação com a
escola de samba são alguns exemplos da presença destes valores. Entre todos os
princípios um nos chama a atenção, a ludicidade. Isso porque ele congrega
aspectos que podem nuançar as tensões, como a alegria.
A mulata Dandan Firmo (Mulatas!, 2011b), diz que ‘para ser mulata você
tem que estar feliz’, que para executar a performance de mulata seria preciso ter
uma alegria. A alegria na cultura de Arkhé seria, segundo Muniz Sodré (2002,
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p.164), “um sentimento formado por uma intuição imediata do mundo, em que se
experimenta a força do presente e se entra em comunhão com o real”. A
experimentação da força do presente seria então o reconhecimento da
potencialidade de uma corporeidade preenchida por uma força vital que o
impulsiona a acessar os gestos, que as performances querem revelar, e que partem
de uma memória corporal baseada em uma ancestralidade. Assim “o corpo negro
movente possui gestualidade, ludicidade e força de engendramento. Isso acontece
no auge do empoderamento vital” (Petit, 2015, p.86).
O empoderamento vital das mulatas se daria na avenida, nos desfiles, no
apogeu de sua performance. Na sua vivência corporal da Arkhé. Quando o saber
do símbolo extravasa o corpo e é expresso na performance. “O símbolo é,
portanto, algo com que se recorda a alguém uma coisa ou um antigo conhecido,
mas também o próprio fundamento de constituição (a Origem) do grupo” (Sodré,
2002, p.175).
O samba no pé como símbolo se faz presente nas performances das
mulatas do samba como um saber “colado à experiência de um corpo próprio”
(Sodré, 2002, p.137) e esta seria fonte da dificuldade em descrever qual o segredo
destas mulheres. Por fim, consideramos o segredo das mulatas parte do mistério
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assunto espinhoso, que causava desconforto. Elas afirmam que muitas trabalham
também como prostitutas, mas que essa não é a regra. A condição de estar em
contato com outras culturas e com seus corpos expostos é uma das causas
levantadas por elas para essa “confusão”. Podemos perceber também que, mesmo
com seus corpos expostos em biquinis, suas performances são entendidas como
arte e elas lutam constantemente para que seja reconhecida como tal.
Para estas mulheres ser uma mulata passa longe de vestir um biquini e
sambar nos desfiles das escolas de samba. Envolve uma consciência de grupo, de
gratidão à sua comunidade e à sua escola pela oportunidade de expressar o seu
dom. Envolve uma armadura, composta pelo biquini, esplendor, apliques de
cabelo, salto alto e muito brilho, a fim de conferir todo um glamour a sua arte.
Envolve uma luta cotidiana na vida fora do carnaval, com seus familiares e
empregos longe de sua atuação como passistas. Porém, mesmo nestes outros
contextos elas se posicionam, se empenham e se reconhecem como mulatas, isto
quer dizer, “montadas” ou não, ser mulata não é só uma postura para o samba, é
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avenida, na atuação é preciso ousadia ou ainda tem que ter um “carão”. E assim
também são percebidos outros atributos, principalmente os corporais. Estes
incutidos de um sentido relacionado à sensualidade são marcas corporais da
condição de mulata. A própria sensualidade, por vezes criticada, é a mais utilizada
na performance como um artifício para criar uma aproximação com o público
espectador.
As mulatas tem o seu dom do samba no pé como uma condição única e
especial. É esta condição que a torna mulata. Dessa maneira, nota-se a dificuldade
em se descrever o que é o seu dom ou simplesmente o que é ser mulata. Em nossa
análise relacionamos esse dom ao sagrado e isso em razão desse dom ser herdado
e também uma dádiva recebida por Deus, como relata algumas mulatas. Existe
toda uma aura que envolve a ancestralidade na manifestação do dom, gerando o
sentimento de gratidão e de obrigação. Elas ressaltam a gratidão em serem
portadoras do dom e também um sentimento de obrigação em realizar a
performance já que esse dom está em seu sangue.
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07 jul. 2019.
_________. Dança de Guerra - arquivo e arma: elementos para uma
Teoria da Capoeiragem e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira.
Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
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da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Dissertação
(Mestrado em Sociologia com concentração em Antropologia). Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
https://issuu.com/marcelooreilly/docs/0146-simonesayuritakahashitoji
Acesso em 25 mai.2018.
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Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/10769/8001
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