"Meu Jeito Nasceu Comigo!" Mulatas Do Samba"

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 78

Joyce Gonçalves Restier da Costa Souza

“Meu jeito nasceu comigo!” Mulatas do samba


entre o dom e o saber corporal, as
corporeidades em ação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais do Departamento de
Ciências Sociais da PUC-Rio.

Orientadora: Profa. Sônia Maria Giacomini

Rio de Janeiro
Setembro de 2019
Joyce Gonçalves Restier da Costa Souza

“Meu jeito nasceu comigo!” Mulatas do samba


entre o dom e o saber corporal, as
corporeidades em ação

Dissertação apresentada como requisito parcial para


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-


graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo.

Profa. Sônia Maria Giacomini


Orientadora
Departamento de Ciências Sociais – PUC-Rio

Prof. Valter Sinder


Departamento de Ciências Sociais – PUC-Rio

Prof. Júlio Cesar Tavares


Universidade Federal Fluminense - UFF

Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2019


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização da universidade, da autora
e da orientadora.

Joyce Gonçalves Restier da Costa Souza

Graduou-se em Educação Física na Universidade Castelo


Branco em 2006. Mestre em Relações Étnico-raciais pelo Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca -
CEFET/RJ em 2015. Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Realiza
pesquisas sobre as relações raciais na sociedade brasileira e as
corporeidades da população negra.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Ficha Catalográfica

Souza, Joyce Gonçalves Restier da Costa

“Meu jeito nasceu comigo!” : mulatas do samba entre o


dom e o saber corporal, as corporeidades em ação / Joyce
Gonçalves Restier da Costa Souza ; orientadora: Sônia
Maria Giacomini. – 2019.
78 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica


do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, 2019.
Inclui bibliografia

1. Ciências Sociais – Teses. 2. Mulatas. 3.


Corporeidades. 4. Saber corporal. 5. Dom. I. Giacomini,
Sônia Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Ciências Sociais. III. Título.

CDD: 300
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Às minhas ancestrais e à minha filha como prova de nossas


potencialidades.
Agradecimento

À Nossa Senhora Aparecida pela força, a coragem e a determinação para a


conclusão da pesquisa.
Ao meu marido Henrique pelo companheirismo, apoio, suporte, escuta e
paciência. Pelas inúmeras leituras e aconselhamentos. Pelo amor, carinho e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

compreensão.
Aos meus pais, Iraci e Cesar, pelo apoio e suporte. À minha mãe Iraci pela
companhia nos momentos solitários de leitura e escrita, pela segurança e a certeza
de que tudo daria certo.
À minha irmã Kelly e ao meu cunhado Felipe pelos mimos e aconchegos.
À minha filha Manuela por mostrar que é possível e que nunca estaremos sós.
À minha orientadora Sônia Giacomini pela confiança, pelo zelo e pelo
encorajamento.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à
PUC-Rio pelo investimento e apoio à pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001.
À banca examinadora pelas contribuições, pelo cuidado e a oportunidade de
pesquisar o que acredito.
Aos funcionários do Departamento de Ciências Sociais por todo apoio e amizade.
Às minhas ancestrais que me acompanharam e me acompanham nos caminhos de
minhas pesquisas.
Resumo

Souza, Joyce Gonçalves Restier da Costa; Giacomini, Sônia Maria. “Meu


jeito nasceu comigo!” Mulatas do samba entre o dom e o saber
corporal, as corporeidades em ação. Rio de Janeiro, 2019. 78p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Esta dissertação discute as possíveis relações entre a maneira de sambar e


o saber corporal contido na performance de mulheres negras intituladas como
Mulatas no samba do Rio de Janeiro. O estudo investiga por meio de depoimentos
das próprias, os motivos pelos quais percebem o seu sambar, ou o samba no pé,
como um dom. Articulando as percepções sobre as corporeidades e as possíveis
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

origens do dom de sambar são examinadas as possibilidades deste dom atuar


como um arquivo gestual configurando-se como um saber corporal possivelmente
herdado de gerações anteriores e manifestado através do Ser Mulata. Desta
maneira, a conscientização do Ser Mulata iria além dos aprendizados formais e
informais e do reconhecimento dos pares, podendo absorver um arquivo de gestos
compartilhados por experiências entre mulheres negras cariocas participantes do
mundo do samba tornando-as personalidades dentro e fora do carnaval.

Palavras-chave
Mulatas; Corporeidades; Saber corporal; Dom.
Abstract

Souza, Joyce Gonçalves Restier da Costa; Giacomini, Sônia Maria


(Advisor). "My way was born with me!" Mulatas of the samba
between the gift and the corporal knowledge, the corporeities in
action. Rio de Janeiro, 2019. 78p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.

This dissertation discusses the possible relations between the way of


sambar and the corporal knowledge contained in the performance of black women
titled as Mulatas in the samba of Rio de Janeiro. The study investigates through
their own testimonies, the reasons why they perceive their sambar, or the samba in
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

the foot, as a gift. Articulating the perceptions about the corporeities and the
possible origins of the gift of sambar are examined the possibilities of this gift to
act like a gestural file configuring like a corporal knowledge possibly inherited of
previous generations and manifested through the Mulata Being. In this way, the
awareness of the Mulata Being would go beyond formal and informal learning
and peer recognition, and could absorb a file of gestures shared by experiences
among black women from the samba world, making them personalities inside and
outside the carnival.

Keywords
Mulattas; Corporeity; Body knowledge; Gift.
Sumário

1. Introdução .......................................................................................... 10

2. Mulatas – O início ................................................................................ 21


2.1. Corpos Negros no Brasil ................................................................. 27
2.2. As mulatas e o seu corpo ................................................................ 29
2.3. O comportamento da mulata ........................................................... 37

3. Meu samba, meu Dom ........................................................................ 43


3.1. Aquela que tem o Dom .................................................................... 47
3.2. Samba no pé este é o Dom ............................................................. 51
3.3. Samba no pé – Saber corporal ........................................................ 55
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

3.4. O sagrado no Dom .......................................................................... 58

4. Meu samba, nossa história .................................................................. 60


4.1. A dança na Arkhé ............................................................................ 60
4.2. Os valores no samba em Arkhé ...................................................... 65
4.3. O samba no pé e a alegria .............................................................. 67

5. Considerações Finais .......................................................................... 69

6. Referências Bibliográficas ................................................................... 72


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Lá vem ela, vai passar; Lá vem ela, vai passar


Ela é linda, é divinal, é produto da favela;
Malandro quebra o pescoço; Pra ver o gingado dela
Mulher belisca marido, tranca porta e janela
Só quero saber qual é, qual é o segredo dela
Eu só quero saber qual é, qual é o segredo dela
À noite, quando ela chega iluminando a favela
Transforma becos escuros numa linda passarela
Não abre, não dá espaço, mas eu tô de olho nela
Preciso saber qual é, qual é o segredo dela
Eu preciso saber qual é, qual é o segredo dela
Lá vem ela, vai passar; Lá vai ela, já passou.

Lá vem ela, Grupo Revelação


1.
Introdução

Lá vem ela, vai passar


Ela é linda, é divinal, é produto da favela
Malandro quebra o pescoço, pra ver o gingado dela...
Só quero saber qual é, qual é o segredo dela...
Grupo Revelação, Lá vem Ela.

“Só quero saber qual é, qual é o segredo dela...” é a principal motivação


desta pesquisa. Com o pensamento e o questionamento voltado para as
performances das mulatas do samba no Rio de Janeiro, a pesquisa tem como
objetivo investigar as explicações fornecidas por estas mulheres que justificariam
a sua percepção sobre ter o dom para o samba no pé. Este dom enredado por
noções de aprendizado, de dádiva e de talento percorre os discursos trazendo
consigo a complexidade da existência de um saber corporal com o qual todas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

essas mulheres convivem e que se confunde entre a vivência social no mundo do


samba e a ancestralidade.
Este tema emerge da curiosidade da autora em explorar os motivos pelos
quais alguns enunciados sobre possuir o dom para a dança foram tão frequentes
durante sua infância e adolescência. Dentro de todo um conjunto de discursos, que
passavam por recomendações, conselhos e elogios, que preconizavam pela
proteção e sobrevivência no círculo social do qual fazia parte, podemos destacar
alguns que inquietaram e instigaram a pensar se nós, mulheres negras,
compartilhamos experiências e saberes sem mesmo ter noção de que tal coisa
possa ocorrer.
Enquanto bailarina, orientada sempre por estudos especializados e com
acesso à inúmeras modalidades de dança, não escapava do crivo de parentes e
amigos. “Como pode essa menina bailarina, nascida em Madureira, não ser do
samba?” Alguns iam ainda mais fundo: “-Ah, Sr. C. Leva essa menina pro samba,
isso é mulata!”.
Estes parentes e amigos compartilhavam uma percepção sobre a menina
negra nascida no subúrbio do Rio de Janeiro, especificamente no bairro de
Madureira, então, local de grande circulação de valores sobre a cultura do samba,
e se indagavam como poderia esta menina não ser do samba. Como ela não
11

participava do samba? Afinal, para eles, menina negra, suburbana e que sabia
sambar bem, automaticamente deveria fazer parte da comunidade do samba.
Ainda na dança, participando de grupos e estreando coreografias de Dança
Afro, ouvia com mais força, algo que sempre fez parte dos elogios às
performances: “-Essa menina é muito talentosa, Ela tem o dom da dança!”.
A palavra talento acompanhada do significado de ser algo inestimável e
individualizado, começou a aparecer nas vivências diárias trazendo consigo um
sentido de importância e de destaque, como algo que personificaria a
performance, tornando-a única e pessoal.
Já na idade adulta, como professora de Educação Física, era rotineiro ouvir
instrutores, técnicos e colegas de profissão encaminhando alunos e alunas às
equipes e clubes em razão de um talento para alguma modalidade desportiva. As
frases mais utilizadas para justificar o encaminhamento era que os educandos
eram muito talentosos em determinada modalidade esportiva ou que estes tinham
o dom para algum esporte em questão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

No universo da educação física, a seleção de talentos e a atenção na


identificação dos portadores de dons para algumas atividades, sejam elas artísticas
ou esportivas, insere o termo dom, muitas vezes como sinônimo de talento, como
algo que evidencia singularidades nos indivíduos portadores, fornecendo à eles
uma prática diferenciada visto que suas habilidades técnicas na execução de tais
atividades se mostra em maior grau de eficiência e perfeição estética destacando-
os dos demais e com isso oferecendo maiores possibilidades de atuação
profissional na área afim.
Os estudos sobre as relações raciais iniciado em 2013 possibilitaram a
correlação entre os estudos sobre corporeidade e as questões relativas à
corporeidade da população negra. Neste momento, o que chamaria de
corporeidade negra apareceria como um modo de ser, estar e agir, como o
componente de presença da população negra brasileira na sociedade. Os corpos
como meios de expressão e de sobrevivência, conteriam em seus gestos e atitudes,
as marcas da linha do tempo não só da pessoa, mas de todo o seu grupo social.
Recentemente em contato com os trabalhos sobre mulatas e passistas, o
recorrente discurso onde o talento para o samba é atribuído aos antepassados
negros ou ainda como algo inato e herdado, nos rememorou as indagações
realizadas na sua infância e também despertou a curiosidade em entender como se
12

daria este percepção por parte de quem é portador do talento. Nesse sentido, para
além da admiração, a curiosidade nos levou a investigar as mulatas do samba e as
suas percepções sobre o que seria ser uma mulata.
Percebemos então que um conjunto de hábitos, posturas e condutas
caracterizam as mulatas incorporando uma maneira de ser mulata que,
concordando com a afirmação de Fernanda Carneiro (2000, p.26), mantém suas
“verdades espirituais e culturais ancoradas no corpo”. Neste entendimento, ser
uma mulata toma corpo e se expande em uma performance motora exemplar
combinando o samba no pé, graciosidade, o amor pelo samba e a paixão pelo
carnaval. Sua expressão envolve não somente o conjunto de aprendizados
informais como também o convívio desde a infância e a vivência de mães e avós
no universo do samba e/ou do carnaval.
As complicadas explicações sobre a origem do que seria ser uma mulata,
considerado aqui como algo que “se adquiriu, mas se encarnou de modo
duradouro no corpo em forma de disposições permanentes” (Bourdieu, 2003,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

p.140), um habitus, segue convergindo com as percepções sobre uma maneira de


ser e agir que teria sido herdada.
Nossa hipótese de pesquisa compreende a possibilidade dessa
predisposição considerada por elas como natural, ser um saber corporal ancestral,
isto é, herdado de mães e avós e por esta razão sendo considerado um dom. Essa
noção nos foi revelada pelo discurso das próprias mulatas nos filmes
documentários utilizados pela pesquisa. É pontuado com frequência a relação
entre a performance e o saber estando no sangue, na cor, dando seus primeiros
sinais ainda na infância. Sinais estes que compreendem a aptidão para o samba, de
maneira única e com excelência. Muitas relatam que não aprenderam a sambar e
sim que já sabiam, com toda desenvoltura, desde muito novas.
Faz parte também de nossa hipótese a relação que é estabelecida entre as
diferenças que aparecem no discurso sobre esse dom. Nas etnografias utilizadas
como referência, os depoimentos das mulatas e os contextos nos quais estavam,
deixaram a entender aos autores que o samba no pé poderia ser um talento.
Talento este particular e único, que facilitaria o aprendizado de diferentes
modalidades de dança e ainda consolidaria a relação das mulatas com o público e
assim o “dom da mulata se apresenta identificado a uma propriedade relacional,
isto é, caracteristicamente afeita à interação com o público” (Giacomini, 1992,
13

p.66) ou ainda o dom seria revelado “quando um outro integrante da escola de


samba reconhece o aspirante como passista [...], a identificação do dom do samba
é um ato público e compartilhado” (Toji, 2006, 61).
As falas deixam entender que ele pode ser tanto um dom herdado, em
razão de mães e avós terem vivenciado o mundo do samba, como uma aptidão
motora, um talento, que facilitou de inúmeras maneiras, a incorporação dos
trejeitos da mulata no samba. Isto posto, nos leva a entender o dom em duas
instâncias como mencionado pelo antropólogo Arlei Damo (2005, p.105), “dom
como sinônimo de talento, equivalendo a uma predisposição inata, algo que está
no sujeito e pode ser aperfeiçoado, mas comporta um residual intangível à
cultura” e o “dom como sinônimo de dádiva, equivalendo a uma predisposição
que além de inata, é herdada (da natureza ou da divindade), razão pela qual se
aproxima da noção de dádiva”.
E é justamente nesta nuance que consideramos estar o segredo em ser uma
mulata, se considerarmos o dom relatado por elas como uma dádiva, estamos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

ainda tratando de uma aptidão motora que nasce com elas e que de alguma
maneira pode ter sido herdada de sua ancestralidade. É nesta vertente da
ancestralidade que encontramos um saber corporal elaborado pelo corpo negro em
diáspora1 que pode estar mesclado com as corporeidades que estão em ação na
performance destas mulheres. Um habitus, então incorporado como um arquivo
gestual que está em paralelo com tantas outras manifestações corporais negras
brasileiras como a ginga, os ombros em movimento, os requebros de quadris, a
umbigada dentre tantos outros, que perpassaram os séculos e, reconfigurados,
aparecem como exclusividades de um talento particular.
Toda a gama de interpretações acima relatadas surge das análises dos
depoimentos das mulatas nos filmes documentários selecionados para a pesquisa.
Neles, além de narrarem suas histórias de vida, suas imagens nos oferecem gestos
e silêncios que colaboraram para o entendimento de qual seria, como diz a
epígrafe, o segredo delas.
Inicialmente nos foi solicitado que realizássemos entrevistas com as
mulatas, no entanto, houve uma dificuldade temporal e interpessoal. A
pesquisadora então, grávida de alto risco, já no fim da gestação, entrou em contato

1
“O termo diáspora serve para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas
Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram (Lopes, 2004, p.236)”
14

com uma das interlocutoras e neste encontro a mesma aceitou participar da


pesquisa cedendo seu depoimento, mas somente poderia colaborar durante o mês
de janeiro, isto é, antes do carnaval. Ocorreu que o parto cesariana da
pesquisadora se deu em dezembro, logo, o mês de janeiro correspondeu ao
período pós parto de resguardo, de dores e de alegrias da maternidade. Após o
mês de janeiro tornou-se impossível o contato em razão dos ensaios e preparativos
para o carnaval.
Mesmo após o carnaval, a pesquisadora tentou insistentemente contato
com essa interlocutora e outras, mas não obteve sucesso. Contudo, como a
pesquisa precisava ter continuidade, foi necessário realizar uma nova escolha. A
opção interessante que atenderia aos anseios da pesquisa foi a análise de
depoimentos das mulatas em documentários. Essa modalidade foi selecionada em
virtude de seu compromisso com a exploração da realidade, mostrando os sujeitos
e suas narrativas sobre algum tema.
Assim, iniciamos uma busca por documentários que tivessem como tema
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

as passistas e as mulatas. Fez parte também de nosso critério a regionalidade. Para


isso, mantivemos nossa atenção em documentários que fossem ambientados no
Rio de Janeiro, mantendo assim uma tentativa de proximidade com as obras da
antropóloga Sônia Giacomini (1992) e da antropóloga Simone Toji (2006) que
utilizaremos como base para nossa argumentação e análise.
Esta busca foi realizada em plataformas de vídeo online, especificamente
Youtube e Vimeo, duas plataformas com alto número de vídeos disponibilizados e
com acesso gratuito. As motivações para escolha das plataformas também estão
voltadas para a visibilidade que ambas possuem o que poderia facilitar o aflorar
de vídeos sobre o tema.
Utilizando separadamente as palavras “passistas” e “mulatas” na busca,
começamos nossa procura pelos documentários. Na plataforma Youtube, com a
palavra “passista” surgiu um número enorme de vídeos, porém não eram
documentários e sim vídeos particulares ou compilações dos desfiles das escolas
de samba. Já na plataforma Vimeo apareceram 05 páginas com 12 vídeos cada,
em sua maioria vídeos também particulares e compilações. Um único nos chamou
15

atenção, uma entrevista com Nilce Fran2 disponibilizado no canal Escola Superior
de Propaganda e Marketing, ESPM-1.
Modificamos a palavra para “mulatas”. Na plataforma Youtube apareceu,
mais uma vez, um número enorme de vídeos. Agora os vídeos são produções
como Show de Mulatas, Mulatas do Sargentelli, atuações de mulatas em shows e
nos carnavais. Com a estrutura de documentário visualizamos apenas um trailer
com o nome Mulatas! Um tufão nos quadris na página do Site Papo de Samba. Na
plataforma Vimeo foram localizadas 12 páginas com 12 vídeos cada. Vídeos
musicais, declamação de poesias, individuais e particulares, além de show de
mulatas. O primeiro vídeo que aparece na primeira página é o trailer do
documentário citado anteriormente.
A fim de refinar ainda mais a busca, inserimos o termo “passistas
documentário”. Na plataforma Youtube apareceram 20 vídeos sendo 06 destes
documentários. Já na plataforma Vimeo apareceram 02 vídeos documentários,
sendo o primeiro sobre as passistas de São Paulo e o segundo sobre o carnaval
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

paranaense. Nossa última tentativa foi com o termo “mulatas documentário”. No


Youtube surgiram 20 vídeos e apenas 01 documentário (o trailer de Mulatas! Um
tufão nos quadris), já no Vimeo não foram encontrados vídeos.
Nas pesquisas gerais nos foi apresentado duas séries documentários que
foram exibidas, uma no Canal Brasil, disponível no Canal Brasil Play, com o
nome Mulatas e outra no canal GNT, disponível no GNT Play, o Damas do
Samba.
Dentro de todo material encontrado realizamos mais uma triagem,
elencando para a pesquisa, apenas aqueles que trouxessem depoimentos de
passistas e/ou mulatas e com isso somente 02 vídeos foram selecionados. Nesse
sentido os documentários que atenderam nossa expectativa foram: Fazendo
Carnaval - A passista de Estevão Ciavatta e João Carrascosa (2010), documentário
ambientado na Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, localizada em
Duque de Caxias na Baixada Fluminense. Com duração de 12 minutos o
documentário contém o depoimento de duas passistas que relatam sua vivência no
samba e fora dele relacionando com sua função de passista da escola de samba.

2
Nilce Fran é coordenadora da Ala das Passistas da Escola de Samba Portela, participante de
vários vídeos e documentários sobre o tema carnaval, oferece aulas de samba no pé no Brasil e em
vários países e ainda orienta a atuação de diversas passistas de diferentes escolas de samba.
16

O segundo documentário de nosso interesse foi Samba de Theresa


Jessouroun (2001), ambientado na Escola de Samba Estação Primeira de
Mangueira localizado na zona norte do Rio de Janeiro. Com duração de 54
minutos, o documentário revela o universo da escola de samba Mangueira fora do
carnaval e contém o depoimento de algumas personalidades da escola e a história
familiar de uma passista.
As duas séries documentário também participaram de nossa análise. No
caso da série Mulatas de Walmor Pamplona (2011a) é compartilhado o
depoimento de 13 mulatas, assim anunciadas, que relatam sobre sua experiência
de vida pessoal e nas escolas de samba da qual fazem parte. Já a série Damas do
Samba de Susanna Lira (2015) são recolhidos depoimentos de grandes artistas do
samba em diversas áreas, passando por toda a gama de profissionais mulheres
envolvidas no contexto do samba e do carnaval.
Sobre o filme documentário Mulatas! Um tufão nos quadris, também de
Walmor Pamplona (2011b), inicialmente conseguimos somente o trailer. O filme
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

estava indisponível nas plataformas de vídeo pesquisadas e em decorrência disso a


pesquisadora contactou por meio de redes sociais o diretor do filme a fim de
conseguir algum local de exibição ou arquivo de vídeo disponível. Foi, então que
o diretor disponibilizou um link para que pudéssemos assistir ao filme. O
documentário compartilha, em 90 minutos de duração, o depoimento de 13
ilustres mulatas que demonstram por meio do discurso e da expressividade o que
vem a ser uma mulata nos contextos e nas escolas das quais fazem parte. E com
este encerramos o material áudio visual a ser utilizado.
Ressaltamos que ao utilizar documentários, trabalhamos com as seleções
realizadas pelos idealizadores e diretores dos mesmos. E essa questão nos é
importante pela constatação de que em todo material áudio visual utilizado, as
mulatas entrevistadas eram mulheres negras. Variando na tonalidade de sua tez, as
mulatas foram assim elencadas de maneira a ressaltar que o que as fazia mulata,
para além da cor da pele, era o samba no pé visto que todas eram excelentes em
suas performances. Uma outra questão também é relevante, o fato de as
selecionadas serem negras, impediu o questionamento sobre a questão racial nas
relações entre passistas e mulatas.
Juntamente com o material áudio visual selecionado, utilizaremos as
transcrições de depoimentos disponibilizados na dissertação Profissão Mulata:
17

Natureza e Aprendizagem num curso de formação de Sônia Giacomini (1992). O


texto contém entrevistas com participantes de um curso de formação em Mulatas
Profissionais e conta com a análise histórica do termo Mulata, a visão das próprias
em como e de que se constitui a mulata. Há uma busca em se entender o que é o
“Ser Mulata”. Esta dissertação é considerada uma fonte fundamental para nossa
pesquisa, já que foi a partir dela que surgiram os primeiros questionamentos sobre
o tema. Os trechos transcritos pela autora são componentes importantes na
demonstração das opiniões das próprias mulheres sobre o que as constitui
enquanto mulatas. Não é nossa intenção trabalhar com a interpretação destas falas
na dissertação e sim capturar por meio do trecho transcrito a maneira como estas
mulheres se autodescrevem e se reconhecem.
Outro texto fundamental para nossa pesquisa é a dissertação de Simone
Toji (2006), Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas da escola de
samba Estação Primeira de Mangueira. Neste texto temos as visões de passistas da
Estação Primeira de Mangueira em relação à sua constituição enquanto passistas,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

o reconhecimento e um histórico sobre o surgimento da personagem e de sua Ala


no carnaval carioca. São compartilhados depoimentos de passistas, homens e
mulheres, na busca de se entender o que os compõem enquanto personagem e
performance. Mais uma vez, utilizaremos as transcrições dos depoimentos dos
sujeitos evitando assim a interpretação da autora sobre os mesmos.
Para elaboração de nossa argumentação e análise dos materiais foi
realizada uma revisão bibliográfica que pudesse contemplar os conceitos que
utilizaremos. Iniciamos nossa revisão tentando entender o termo mulata, como ele
se construiu, seus sentidos e significados, assim como a sua possível
ressignificação no ambiente do samba a partir das falas das próprias. Estas são
questões latentes e que podem dialogar diretamente com as construções sócio-
históricas do termo. Neste empenho, contamos com as contribuições de Amanda
Braga (2015, 2017), Sônia Giacomini (1988, 1992, 2006), Teófilo de Queiroz
Júnior (1975) e Vânia Bonfim (2009).
Seguimos construindo nossa argumentação dialogando com as
perspectivas trazidas pelas interlocutoras sobre o seu corpo e seus gestos. A
maneira como a expressividade corporal se configura em comunicação no
momento da explicação do que é ser mulata, nos impulsionou a convocar autores
que tratassem da corporeidade. Um conceito que entende o corpo em sua
18

perspectiva fenomênica, ou seja, “um corpo que percebe e expressa em si mesmo


um conjunto de sentidos e significados que são, sobretudo, formas de
materialização dos seres humanos” (Queiroz e Silva, 2016, p.198) na qual “a
experiência corporal é compreendida como fundamento existencial da cultura e do
sujeito” (Csordas, 2008, p.337) e assim sendo possibilitando a análise dos
depoimentos e dos gestos de nossas personagens para além dos discursos, pois “as
dimensões subjetivas presentes no movimento, ou seja, na experiência corpórea,
escapam ao discurso e, portanto não podem reduzir-se a ele” (Daolio, 2012,
p.191). Os autores que nos auxiliaram nesta discussão são Silvino Santin (2003)
Jocimar Daolio (2012), Thomas Csordas (2008).
Optamos então por utilizar a perspectiva fenomenológica de Maurice
Merleau-Ponty (1999, p.01) para discussão deste tema visto que “a fenomenologia
é o estudo das essências”, ou ainda, “uma ciência descritiva dos princípios
existenciais” (Csordas, 2008, p.107). Desta maneira, ao observarmos discursos e
gestos, esteve em relevo a compreensão do que foi dito e expressado a partir da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

percepção das interlocutoras, que consideram seu saber sambar ou o seu samba no
pé como algo intrínseco, visto aqui como algo que é parte de sua existência e não
só de sua vivência pois, de acordo com a perspectiva, seria essa “experiência da
existência a condição sine qua non para corporificar/materializar o sujeito”
(Queiroz e Silva, 2016, p.199).
Sobre o samba enquanto dança e enquanto ritmo, traçamos uma relação
entre estes e a ancestralidade afro-brasileira, com a possibilidade de análise do
samba como um componente da cultura de Arkhé afro-brasileira. Para esta
discussão nos acompanham Muniz Sodré (1997, 1998, 2002, 2005), Fábio Leite
(1995), Zeca Ligiéro (2011) e Sandra Petit (2008, 2015). Nesta perspectiva o
samba performado pelas mulatas além de arquivo gestual seria também o símbolo
do samba urbano carioca.
A análise dos dados então foi realizada por meio da análise do discurso e
observação gestual das depoentes nos documentários. Aproveitando a
oportunidade em observar as imagens em movimento, buscamos além de analisar
o discurso destas mulheres, observar em seus gestos o que poderia significar o ser
mulata, considerando juntamente com Silvino Santin (2003, p.66) o tornar-se
como o “incorporar no seu modo de ser a realidade assumida”.
19

A interpretação dos depoimentos das mulatas foi realizada de maneira a


ilustrar o que a teoria e os autores basilares nos ofereceram como aporte. Assim, a
as falas aparecem no texto como uma ilustração sobre o que está sendo discutido
com a teoria. Como não foi realizado um trabalho de campo e sim uma análise em
um material que já seria uma interpretação, no caso os documentários, tornou-se
complexo a reflexão sobre o que foi dito pelas mulatas visto que as falas são
editadas e contextualizadas de acordo com roteiro do filme. Isso acarretou que por
vezes não obtivemos uma fala que contrariasse nossa proposta. Nossa intenção
nessa pesquisa, considerando essa problemática, foi destacar o discurso nativo, ou
seja, os discursos com as percepções dos sujeitos da pesquisa, de maneira a
oferecer visibilidade aos pareceres das mulatas aliando a isso a teoria
antropológica em questão.
Em muitos momentos os depoimentos parecerão referendar as questões
levantadas pela autora, porém o que buscamos foi demonstrar a possibilidade dos
discursos baseados no autoconhecimento e na percepção envolvidos pela
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

sabedoria popular tradicional da população negra, estarem em acordo com as


teorias clássicas. E que estas mesmas teorias possibilitassem, de modo dialético,
oferecer uma compreensão sobre o não dito presente nos discursos nativos.
A pesquisa foi então subdividida em três capítulos e desta maneira
pudemos destacar e expor a maneira como a nossa argumentação foi construída,
iniciando com as construções discursivas sobre as mulatas, sobre seus corpos e
comportamentos, em seguida selecionamos alguns trechos dos depoimentos que
possam nos auxiliar a compreender como o samba no pé é reconhecido e auto
percebido como uma dádiva e por último atentamos para a ancestralidade e a
cultura de Arkhé (Sodré, 2002)
No primeiro capítulo, Mulatas - O início, foram discutidas as construções
discursivas sobre os corpos e comportamentos das mulatas. Literatura científica
do século XIX e XX, os anúncios em jornais da grande imprensa do século XIX e
os romances foram as fontes onde encontramos descrições de corpos e
comportamentos que acabaram por alimentar o imaginário social construindo uma
mulata arquetípica e que serviria de modelo para as gerações futuras de mulheres
negras que tivessem em seus corpos os atributos que classificavam as mulatas.
A partir destas práticas discursivas sobre seus corpos e suas corporeidades
procuramos evidenciar as elaborações do que seria ser mulata para estas mulheres.
20

Como a incorporação dos discursos se tornaram a realidade social e com isso


participando das performances das mulatas em sua vida cotidiana.
O segundo capítulo, Meu samba meu dom, discutimos como o samba no
pé é percebido como um dom, uma dádiva pelas mulatas. Percorremos o caminho
do sapateado do samba até o samba no pé a fim de entender os sentidos da dança
na atualidade e a sua relação com o ritmo samba. Neste capítulo os depoimentos
das mulatas aparecem de maneira a demonstrar como a percepção destas mulheres
sobre as suas performances as classifica como portadoras de um dom ancestral
que é expresso por meio de um saber, então, corporal do qual não se sabe a
origem, mas se acredita ter sido herdado pela ancestralidade. Essa ancestralidade
em seu mais amplo sentido, contendo os antepassados mais próximos e também
os mais distantes, dando um sentido de sagrado ao samba no pé.
Já em nosso terceiro capítulo, Meu samba, nossa história, prezamos pela
descrição das potencialidades existentes nas corporeidades negras enquanto
arquivo gestual calcada em uma ancestralidade afro-brasileira. O samba no pé
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

enquanto tradição e símbolo de um sagrado que compõe o mundo do samba e


oferece aos portadores do dom uma performance única e particular. A influência
da ancestralidade na transmissão da tradição e dos saberes incorporados criando
um elo entre o mundano e o sagrado que produz uma resistência no momento de
fornecer alguma explicação sobre as origens do dom. Sobre os segredos existentes
nos saberes corporais em corpos negros, como característica de uma cultura de
Arkhé.
Nossa intenção é que esta pesquisa possa servir de subsídios para novas
argumentações sobre os dons em manifestações corporais afro-brasileiras. De
maneira a compreender as falas de sujeitos negros no que tange à sua
corporeidade, abrindo a reflexão para a diversidade das culturas de Arkhé, de um
corpo integrado e simbólico, um corpo arquivo portador de saberes e axé,
remanescente daqueles que tinham apenas no corpo o seu instrumento de
comunicação e transmissão. Que a curiosidade permaneça em descobrir qual é o
segredo, qual o segredo do corpo negro diaspórico.
2.
Mulatas – O início

Eu penso que Mulata tá no sangue, tá na cor, entendeu?! Já vem de


pequena já. Mulata é uma palavra muito forte, né, de raiz.
Rose Bombom, Mulatas! Um tufão nos quadris.

Mulata é uma palavra muito forte, né, de raiz. Essa declaração é de Rose
Bombom (Mulatas!, 2011b), mulata show e passista do Grêmio Recreativo Escola
de Samba Acadêmicos do Grande Rio, mulher negra de grande estatura e volume
corporal que tem em seu corpo e imagem o estereótipo da mulata ainda presente
no imaginário social. Se entendermos o imaginário social como “um sistema
simbólico que reflete práticas sociais em que se dialetizam processos de
entendimento e de fabulação de crenças e ritualizações”(De Marco, 2006, p.15),
poderemos compreender os motivos pelos quais as construções discursivas sobre
as mulatas persiste e se reatualiza.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Mantendo as ambiguidades nos atributos de valor e anunciando novos


comportamentos e funções sociais, a figura da mulata ilustra um “imaginário
racial” que contém, como diz Mariza Corrêa (1996, p.40), “uma espécie de mulata
estilizada, abstrata, ou imaginária, que resume e sintetiza todas as suas
antepassadas” e que congrega em sua representação “as tentativas de construção
de modelos globais e descritivos das formas de constituição étnica da
nacionalidade” (Giacomini, 2007, p.91). Segundo Sônia Giacomini (2007, p.102),
“elas são, simultaneamente, estruturadas pelas, e estruturantes das, relações de
raça e gênero dominantes em nossa sociedade” e assim como “categoria social
particular” reflete, de acordo com Ângela Figueiredo (2015, p.165), “uma
construção social sobre raça no Brasil, onde cor e fenótipo são associados aos
comportamentos de gênero e de geração”. O que é confirmado pela fala de Nilce
Fran (Mulatas!, 2011b) - coordenadora da Ala das Passistas do Grêmio Recreativo
Escola de Samba Portela: ‘(...)antes entendia-se que mulata era uma cor, né! (...)
E hoje virou uma profissão’.
A observação de Nilce evidencia as transformações que as gerações
percebem em relação ao termo mulata. Antes era uma cor, agora uma profissão.
Uma profissão que dialoga diretamente e até se fundamenta nas atribuições
delegadas à cor de mulata, construída então discursivamente. As mulatas seriam
22

as mulheres mestiças frutos de relacionamentos extraconjugais, de abuso e


exploração, entre homens brancos e mulheres negras escravizadas. Estas
mulheres, por vezes de tez mais clara, possuíam características físicas e morais
que as posicionava como um produto final positivo da miscigenação e também
como “protagonistas da mediação entre as raças” (Giacomini, 2007, p.101). De
personagens de romances e contos à objeto de estudo científico elas ajudaram a
compor o retrato do que era e do que estava por vir do povo brasileiro.
A miscigenação no início do século XX transfigurava-se de problema
nacional para solução dos problemas raciais e o Rio de Janeiro, na época capital
da República, foi o palco para a encenação do “processo unificador e
homogeneizador em curso” como relata a autora Caetana Damasceno (2010,
p.106):
O Rio de Janeiro vai se construindo também como o espaço
privilegiado onde circulam e se comunicam pobres 'de cor' e
'brancos' de elite (mais precisamente pelos bairros centrais,
como a Lapa, que adquirem marcadas características boêmias).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Eles constroem uma linguagem que foi traduzida por muitos


intelectuais - em especial, por Gilberto Freyre - como o elogio
da miscigenação e da ausência de preconceito e de
discriminação 'racial' (DAMASCENO, 2010, p. 106).

Esta linguagem de elogio à miscigenação e de ausência de preconceito e


discriminação racial se deu também pelas relações não polarizadas entre brancos e
negros no samba e na boemia o que de alguma maneira parecia afrouxar as
tensões raciais remanescentes do período escravocrata. Uma das consequências
deste distensionamento é a figura da mulata e do malandro como representantes
não só da cultura negra como também da cultura nacional. A mulata com sua
construção discursiva e imagética consolidada, representando um modelo de
mulher, aparece como a descrição da própria brasilidade por sua capacidade de
sedução, beleza e desenvoltura com as danças, assim como o malandro,
representado pelo mulato e toda a sua versatilidade.
Talvez esta seja uma das razões do termo mulata ser uma palavra forte.
Afinal representaria a brasilidade e com isso possuiria algum sentido de
responsabilidade na sua representação. Porém, observamos que além de sua
atribuição à um perfil específico de mulher, o termo tem consigo a complexidade
de sua participação na história do universo racial brasileiro, sendo atribuído às
negras mulheres escravizadas que trabalhavam como mucamas. Lélia Gonzales
23

(1984, p.229) nos oferece uma importante perspectiva sobre os significados da


palavra mucama. Para a autora, as funções de doméstica e mulata se fundem na
função de mucama, pois esta que era uma palavra em “Quimbumdo mu’kama
significando amásia escrava”, tem no seu significado dicionarizado um
“deslocamento do significado” ao conceitua-la, à época, como “a escrava negra
moça e de estimação que era escolhida para auxiliar nos serviços caseiros ou
acompanhar pessoas da família e que, por vezes era ama-de-leite”. Assim, a
mulher negra escravizada que trabalhava com afazeres domésticos, se nomeada
mucama, também atuaria como amante de seu senhor. Mas onde está a mulata
nisso tudo?
De acordo com Amanda Braga (2015, p.67), as mulheres negras traficadas
como escravizadas e classificadas como “preferidas” pelos brancos eram as
africanas de etnia Mina e Fula por serem “africanas não só de pele mais clara,
como mais próximas em cultura e ‘domesticação’ dos brancos”, assim como os
negros e negras “bonitos de corpo e de rosto, altos e com todos os dentes”, já as
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

mulheres vindas de Guiné, Cabo e Serra Leoa tinham “prioridade para o trabalho
doméstico nas casas-grandes” (Braga, 2015, p.64). A associação corpo e beleza
foi fundamental para criação de um discurso sobre a suposta disponibilidade
sexual destas mulheres já que esses eram os atributos que as marcariam e as
condenariam a funcionalidade de mucamas. Mucamas, mulatas, amas-de-leite,
papéis compulsoriamente vivenciados por mulheres negras na diáspora brasileira
ajudaram a compor todo o imaginário onde se fundaram as bases de um
pensamento social brasileiro.
Relembrando que o imaginário social brasileiro, elaborado
discursivamente principalmente entre o século XIX e início do século XX, traz em
suas composições imagens de mulatas que, até então mestiças, passavam de
voluptuosas e fogosas a traidoras e vingativas. Estas mulheres consideradas
sempre como sedutoras e com atitudes que demonstravam algum tipo de liberdade
e independência em relação aos seus corpos e as suas vidas tiveram os discursos
sobre si forjados e reelaborados a partir dos olhares e pensamentos de homens
brancos no decorrer dos anos até a chegada por volta de 1970 da Mulata do
Samba que se mostra dentro das configurações que hoje reconhecemos.
O historiador e jornalista Sérgio Cabral em depoimento no documentário
de Walmor Pamplona (Mulatas!, 2011b), aponta que as mulatas ainda na década
24

de 1950 ainda não apareciam com destaque nas escolas de samba. Segundo o
jornalista, elas aparecem com o seu esplendor e glamour nas escolas de samba a
partir da absorção das configurações utilizadas nos shows de Carlos Machado3,
produtor e diretor de espetáculos brasileiros, que ocorreram entre o fim da década
de 50 e meio da década de 60 nas casas de shows do mesmo. Nos anos de 1970, as
mulatas apresentam o seu auge com empresário Oswaldo Sargentelli4, auto
intitulado Mulatólogo, com os seus Show de Mulatas já com uma configuração
que conhecemos atualmente. Formalizando o que Mariza Corrêa (1996, p.48)
indicou como “mulatice”, ou seja, a mulata “como um gênero de ser”.
Os discursos masculinos elaborados por literatos, médicos e intelectuais
tinham como objetivo não só estabelecer um padrão de corpo feminino, como
também fixar categorias nas quais os corpos de mulheres negras pudessem se
localizar como objeto de seus intentos, de seus desejos, de suas experiências.
Até mesmo a interpretação do que seria uma "vadia" como
qualidade depreciativa de mulheres que frequentavam, com
maior liberdade o espaço público ou que possuíam o controle de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

seus corpos, não sendo totalmente submissas ao controle


masculino, estava imbuída do discurso e do desejo masculino
de manter suas mulheres sob controle e vigilância (SILVA,
2015, p.104).

Com o intuito de estabelecer um patamar social diferenciado e exclusivo


para as mulheres brancas, o discurso masculino estereotipava e condenava à
marginalização as mulheres negras, mestiças e pobres tendo como consequência
as atribuições de valores morais censurados às mulheres brancas empregados na
estigmatização do corpo e do comportamento dessas mulheres (Silva, 2015,
p.107).
Em contrapartida, a população negra por meio de suas associações e clubes
elaboravam contradiscursos que pudessem enobrecer a sua imagem por meio das
imagens e representações sobre as mulheres negras. Começando, no ambiente
carioca, na segunda metade dos anos 40 com a fundação do Teatro Experimental
do Negro. Liderado pelo ativista, ator e político Abdias do Nascimento, o TEN

3
Carlos Machado (1908-1992) foi produtor e diretor de espetáculos brasileiros. Proprietário de
diversas casas de shows no Rio de Janeiro, onde os espetáculos contavam com vedetes e mulatas
vestidas com biquinis brilhantes e esplendores. É reconhecido como o “o rei da noite” e o inventor
das mulatas.
4
Oswaldo Sargentelli (1923-2002) foi apresentador de televisão e empresário. Realizava Show de
mulatas e as promovia enquanto atrizes. Dono da casa de show Oba-Oba, que mais tarde se tornou
um show com referência nas manifestações culturais brasileiras tendo como ponto alto a
apresentação de mulatas.
25

tinha como objetivo “ser um movimento que revelava a identidade étnica do negro
brasileiro por meio da valorização de sua ascendência africana” (Silva, 2015,
p.131). A associação realizava concursos de beleza negra atendendo os mesmos
moldes dos empreendidos pela alta sociedade carioca, eram eles Rainha das
Mulatas realizado em 1947, o Glamour Negro Girl e o Boneca de Pixe em 1948.
Os nomes dos concursos estabeleciam uma correlação entre pauta racial e os
termos pejorativos pelos quais mulheres negras eram nomeadas o que para
Amanda Braga (2015, p.126) se caracterizava como um protesto discursivo em
nome de uma afirmação racial. Segundo a autora:
O TEN com a promoção dos concursos de beleza, abriu uma via
de valorização das mulheres negras calcada em seu próprio
padrão estético: uma resposta ao critério racista engendrado
pelos concursos de beleza que apenas aceitavam inscrição de
mulheres brancas. Era o modo de resgatar a autoestima dessas
mulheres, massacradas por uma estética exclusivista e
eurocêntrica de beleza (BRAGA, 2015, p.124).

A autora Joyce Silva (2015, p.133) em sua análise das imagens dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

concursos de beleza negra no início do século XX argumenta que “a proposta do


TEN era de elevar a beleza de mulheres negras em todos os seus aspectos,
inclusive o corporal, sem sexualizá-los, expondo-os como elemento importante
desta bela mulher brasileira considerada então rainha”.
Uma outra associação também investiu nos concursos de beleza como
forma de valorização da comunidade negra, o Renascença Clube. O clube foi
fundado em 1951 por homens e mulheres negras “intelectualmente e
economicamente capazes” (Giacomini, 2006, p.28) de frequentar os diversos
clubes cariocas, mas que eram impedidos por serem negros.
O Renascença nasceu como uma resposta à discriminação, ou
melhor, à segregação imposta aos negros na cidade [...] É a
reação à discriminação que qualifica o próprio ato fundador,
emprestando-lhe um caráter de insurgência (GIACOMINI,
2006, p.29)

E assim o clube tornou-se o território dos negros, um clube social de e para


negros, onde aqueles qualificados e com educação privilegiada, que não
aceitavam a discriminação, tinham o seu reduto de manifestação de suas
qualidades, produção de comportamentos e ressignificação dos discursos
disponíveis na realidade social.
26

A fim de ressignificar os discursos sobre as mulheres negras, o Renascença


também, realizou concursos para a promoção de suas rainhas, eram eles: o Miss
Rainha da Primavera, o Miss Simpatia e o Miss Renascença (Giacomini, 2006).
Para além da valorização da beleza negra feminina, os concursos possuíam um
marco que estava fundamentado na refutação do discurso da disponibilidade
sexual de mulheres negras. Assim, mesmo após os concursos saírem da esfera
interna ao clube, pois o Renascença participou com candidatas no Miss Guanabara
e no Miss Brasil, a promoção da imagem da mulher negra esteve atrelada à
moralidade e à honra, destacando as qualificações destas candidatas a namoradas,
noivas e esposas num páreo com as mulheres brancas.
Quer essa tenha sido ou não a intenção consciente desses
concursos no Renascença, [...], chamam a atenção, de um lado,
por assegurarem à mulher negra sua inclusão na categoria
universalizada “bela”, e, de outro lado, por celebrarem um ideal
de beleza feminina com as marcas de classe e de estilo do
grupo. Assim, pode-se afirmar que a mulher negra, requintada,
distinta, “com brio”, é resultado da inclusão da beleza no
projeto de dignificação: é a beleza honrada, nobilitada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

(GIACOMINI, 2006, p.83).

Desta maneira, a comunidade negra dignificava as imagens e os discursos


sobre as suas mulheres, compondo por meio delas a ressignificação dos discursos
sobre todo o grupo negro. As mulheres negras categorizadas como mulatas tinham
no seio de sua comunidade a oportunidade de vivenciar um reconhecimento racial
positivado com a correspondência entre raça e beleza, beleza negra e honra,
demonstrando a força de uma resistência da população negra aos discursos
racializados e discriminatórios.
Nestas correlações o componente que dá consistência aos discursos é
justamente o corpo. É dele e sobre ele que são impostos os pareceres que
enobrecem ou desqualificam a mulher negra. O seu corpo, mesmo com a
valorização proposta por seu grupo social, é o alvo das formulações de modelos
que deveriam caracterizar as diferenças raciais.
Neste sentido, veremos como os corpos de mulheres negras foram
expostos e com quais adjetivações foram inseridos no discurso literário e
científico de maneira que, ainda hoje, a questão corporal seja o principal meio de
reconhecimento daquelas que se intitulam mulatas.
27

2.1. Corpos Negros no Brasil

O corpo de homens negros e mulheres negras na diáspora foram os seus


espaços de significação, espaços territórios de manutenção e sobrevivência de
suas histórias pessoais e vivência cultural. Diante da experiência atroz da
escravidão e da colonização, segundo Stuart Hall (2013, p.324), “restou às
populações de descendência africana o seu corpo como forma de expressão e
identificação na diáspora”.
Por meio da descrição de suas características físicas que a população negra
no Brasil foi identificada e classificada, de modo que sua aparência e até seus
comportamentos tornaram-se traços importantes para a definição de sua
inferioridade racial e consequentemente cultural. Como os primórdios da
intelectualidade brasileira estiveram baseados em teorias racialistas, que serviram
como fundamento para o pensamento científico europeu na sedimentação das
possíveis diferenças raciais entre os seres humanos, a elaboração de um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

pensamento social brasileiro no momento da construção do Estado-nação trouxe


em seu bojo toda a influência eugênica das ciências nas tentativas de categorizar e
explicar a diversidade humana nas populações mundiais.
Utilizada como “arma política de discriminação social e limpeza étnica”
(Diwan, 2015, p.46), a eugenia chega ao Brasil já como ciência e se estabelece
como solução definitiva para o problema nacional, a miscigenação. Sobre isso, a
autora, Pietra Diwan (2015), ressalta que antes do início do século XIX, da maior
propagação da eugenia, já estávamos embriagados pelo racismo científico:
No Brasil, é indiscutível que a eugenia tenha sido pontuada pela
atuação de Renato Kehl. Mas é possível afirmar que muito antes
dele, o racismo e a teoria degeneracionista já faziam sucesso
entre intelectuais e médicos brasileiros. [...] Tais teorias
justificavam a impossibilidade de progresso do Brasil, dos
países tropicais e da África, dada tamanha promiscuidade racial
de seus povos (DIWAN, 2015, p.88).

O racismo científico e a teoria degeneracionista citada pela autora


condenava veementemente a miscigenação, pois a mestiçagem seria o resultado da
degeneração das raças, condenando e poluindo a raça branca até então a raça pura
e superior culturalmente. Nossos intelectuais empreenderam longos estudos que
pudessem contrapor a degenerescência e assim justificar a ascensão social de
28

mestiços no país. A miscigenação de problema nacional precisava se tornar


solução.
Neste contexto, onde a eugenia e a mestiçagem se tornaram questões
nacionais, surgem as discussões sobre os corpos negros brasileiros. Abrangendo a
política da beleza e a solução de problemas de ordem pública a literatura científica
administraria os discursos onde os corpos negros seriam marginalizados e
depreciados.
As descrições destes corpos foram realizadas pela ciência e também
jornais, nos quais eram anunciados escravizados fugitivos, venda, troca, aluguel e
compra dos mesmos. A desumanização decorrente da escravidão, o status de coisa
atribuído aos corpos negros favoreciam a comercialização e a consequente
exposição. Desprovidos de sua identidade étnica, coisificados, os escravizados
tinham seus corpos detalhadamente descritos apontando suas marcas e
escarificações, seu sexo e seu comportamento, como atributos de constituição dos
seres que eram. As representações do corpo negro foram engendradas de maneira
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

a estigmatizar estes corpos, que não eram individualizados, visto que na diáspora,
corpos negros eram corpos coletivos e assim a estigmatização foi transmitida para
todo o grupo.
Entendemos o estigma a partir da visão Erving Goffman (1975), como um
“atributo profundamente depreciativo” em um tipo de relação especial entre
atributo e estereótipo em uma linguagem de relações. Com isso um conjunto de
práticas de representações sobre homens e mulheres negras marcaram seus corpos
e seus comportamentos estabelecendo características de uma estereotipagem
profundamente negativa. Considerando o quanto “a estereotipagem, enquanto
prática de produção de significados, é importante para a representação da
diferença racial” (Hall, 2016), é possível visualizar os motivos pelos quais
algumas particularidades referentes às etnias africanas foram naturalizadas de
maneira a categorizar toda a população negra. Isso ocorre, segundo Stuart Hall
(2016, p.190), devido aos “efeitos essencializadores, reducionistas e
naturalizadores, que reduz as pessoas a algumas poucas características simples e
essenciais, que são representadas como fixas por natureza”.
No universo da linguagem de relações, esta estereotipagem, divagaria
entre o negativo e o positivo, sendo manipulada pelos corpos negros como
estratégia de sobrevivência e resistência, estabelecendo uma “estratégia corporal”,
29

visando à preservação e o fortalecimento do corpo como


instrumento de transmissão da cultura, isto é, dos hábitos
socialmente adquiridos -arquivos, ao mesmo tempo como
instrumento de organização de defesas físicas, individual e
comunitária – arma (TAVARES, 2012, p.26).

Desta maneira, os corpos negros marcados pelo discurso masculino


colonial e escravista eram considerados como marcadores de diferenças raciais, e
com isso morais e estéticas, o que obrigava estes corpos à uma tentativa de
preservação de sua experiência de vida por meio da “estratégia corporal”
(Tavares, 2012). Os corpos de mulheres negras e a estratégia corporal seriam
interdependentes no sentido de, mesmo com a desumanização, terem estes
mesmos corpos-trabalho, corpos-territórios, mantido as heranças de sabedorias
africanas e lutado violenta e/ou sutilmente contra a escravidão.

2.2. As mulatas e o seu corpo

Os corpos de mulheres negras mulatas foram descritos tanto pela literatura


PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

quanto pela ciência sendo apontado e direcionado para os seus atributos,


naturalizando-os e transformando-os em características gerais de mulheres negras.
Tal ação acabou por propagar no imaginário social representações sobre esses
corpos que até os dias atuais habitam o senso comum.
Examinamos, a partir da análise de Sônia Giacomini (1992), as
perspectivas sobre os mestiços, especificamente as mulatas, por parte de
intelectuais que participaram da constituição de um perfil para o povo brasileiro.
Na produção do médico Raymundo Nina Rodrigues (1894 apud Giacomini, 1992)
se destaca o seu esforço em descrever a mulata em razão de ser uma categoria
intermediária e, portanto, “objeto de afirmações categóricas acerca dos atributos
que a constituem” (Idem, p.08). Estes atributos estariam relacionados fortemente à
sensualidade e à moralidade que já era compreendida como uma representação
clássica.
Desta forma, se ele segue o senso comum estabelecido acerca
da sensualidade da mulata, inova ao deslocar a mulata e os
referidos atributos para um novo terreno, que é o da ciência,
enriquecido pelas mais recentes descobertas a respeito dos
mestiços e de sua degeneração. Este deslocamento tornaria
inteligível a identificação mulata/lubricidade-sensualidade, ao
descobrir que se trata de efeitos de uma mestiçagem que se
exacerbam manifestações atávicas de caracteres africanos. [...] a
30

reafirmação da representação da mulata sensual vai


acompanhada de sua patologização (GIACOMINI, 1992, p.10)

Assim, Nina Rodrigues seria um dos intelectuais que relaciona a mulata e


sua tão afamada sensualidade como uma das características de sua patologização,
visto que era resultado da expressão da sua parte africana. Pode-se observar
também que a sua tentativa de explicar a especificidade da mulata, Nina
Rodrigues acaba conferindo a ela um status diferenciado em relação às outras
mulheres, reiterando o senso comum.
Outro intelectual analisado pela autora foi historiador e sociólogo
Francisco José de Oliveira Vianna. O discurso de Oliveira Vianna em relação às
mulatas passa pela ideia de que como mestiça, e esteticamente não tão parecida
com as negras, seriam elas o meio para o processo branqueador necessário para a
formação eugênica do povo brasileiro. Segundo Sônia Giacomini (1992, p.17), a
seleção fenotípica dos homens brancos em relação às mulheres mestiças eram a
partir de “uma certa hierarquia na eleição de caracteres: beleza plástica, cor,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

harmonia dos traços fisionômicos, textura dos cabelos” O que entre as negras
seria encontrado nas “ nações minas, fulas, felanins e achantis” pois estas estariam
“entre as mais bem dotadas do ponto de vista da beleza plástica e a cor não tem o
negro retinto de certas tribos, mas um matiz agradável (...) os traços da fisionomia
são mais harmoniosos e puros” (Vianna apud Giacomini, 1992, p.18).
Já Oliveira Vianna ressalta a identificação das mulatas com as
características dita positivas de sua miscigenação, como a tez mais clara, os traços
fisionômicos mais afilados e os cabelos menos crespos. Este autor elenca as
características que nutririam a imagem da mulata com ênfase em sua cor de pele.
O terceiro intelectual analisado pela autora foi o sociólogo Gilberto Freyre.
Para este o mestiço, no caso o mulato e a mulata, seriam o exímio exemplar da
brasilidade, o especialista em mediações, “isto é, o brasileiro – é melhor que o
branco, o índio e o negro; é mais rico, mais plástico, mais apto” (Giacomini, 1992,
p.23). Já especificamente sobre a mulata, a autora pontua que ela “teria
desenvolvido adaptativamente comportamentos afáveis e cordiais para conquistar
simpatias que assumiriam a forma de disponibilidade sexual” (Giacomini, (1992,
P.24). E esta disponibilidade apareceria justamente na manifestação de atributos
raciais:
31

À mulata, pela sugestão sexual não só dos olhos como do modo


de andar e do jeito de sorrir, alguns acham que até dos pés,
porventura mais nervosos que os das brancas e os das negras;
dos dedos da mão, mais sábios que os das brancas, [...]; do
sexo, dizem que em geral mais adstringente que o da branca; do
cheiro de carne, afirmam certos volutuosos que todo especial na
sua provocação- à mulata, por todos esses atributos, já se tem
atribuído, um tanto precipitadamente e em nome de ciência
ainda tão verdade e me começo como a sexologia, uma como
permanente superexcitação sexual, que faria dela uma anormal,
e do ponto de vista da moral europeia e católica, uma grande e
perigosa amoral. (FREYRE apud Giacomini, 1992, p. 25).

Gilberto Freyre então seria o autor que colaboraria com o encontro das
características morais e libidinais ressaltadas por Nina Rodrigues e a estética
elencada por Oliveira Vianna. Na perspectiva freyriana, a mulata é uma
combinação de atributos morais e estéticos em uma harmonia que a torna
irresistível aos olhos de seus senhores.
Podemos observar que para os três intelectuais selecionados, a mulata é
um perfil diferente das mulheres negras e das mulheres brancas. Carrega consigo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

particularidades que lhe atribuem um valor sexual não creditado às demais. Esse
valor sendo veiculado por meio do discurso científico, confere a ele legitimidade e
status de verdade.
Desde o início de sua trajetória em terra brasileira, mulatas são retratadas
discursivamente através de seus corpos e assim, desde a tonalidade de sua pele, o
formato dos cabelos, o feitio de seus seios e nádegas são agregados à conotação
sexual sugerindo uma disponibilidade. Se observarmos com cuidado, esta
disponibilidade se encontra como o anseio do enunciador do discurso, visto que as
vozes dessas mulheres não eram retratadas ou ouvidas. Apareciam, segundo
Gilberto Freyre (2012) no seu estudo sobre os anúncios nos jornais do século
XIX, algumas referências que ilustravam a sua possível posição de “amásia
escrava”, como: “de boa conduta a servir como noiva”, “senhor saudoso de seus
cafunés e dengos”, “muito carinhosa para meninos”.
Discursos que deixam para o entendimento do leitor a percepção de que a
combinação entre formas corporais e comportamentos afetuosos faria de
“mulatinhas”, “mulatas de bonita figura”, com seus “peitos em pé”, ‘bunda
grande” ou “empinada” e “corpo espigadinho” acessíveis e disponíveis aos seus
senhores já que o corpo não lhes pertencia. Porém, a sua agência enquanto
potencial de manifestação de suas vontades, como bem citado por Teofilo de
32

Queiroz Junior (1975, p.29), permitiu que as mulatas, “em certos casos,
terminassem por explorar seus dotes físicos como recursos de auto-afirmação e
como meio de libertar-se de fato” da situação de escrava. Nem por isso foi
amenizada ou negada a condição de seu corpo na qual teria a sua “aparência
funcionando como índice de seu ‘valor de uso sexual’ como descrito por Sônia
Giacomini (1988, p.76).
A fim de demonstrar como ocorriam estas descrições, selecionamos alguns
anúncios de jornais do século XIX, vejamos:
A mulatinha puxando a sarará, de nome Joana, de 14 anos
prováveis, fugida de um engenho no Cabo, seria, com suas
pernas e mãos muito finas, uma verdadeira “flor de pecado”,
cor alvacenta, cabelos carapinho e russo, corpo regular, com
todos os dentes, mas com vestígios antigos de chicote no
corpo[...] (FREYRE, 2012, p.61, grifo nosso).

Alguma mucama ou mumbanda de “bonita figura”, criada


que como folha e fugida talvez com o mulato de sua paixão,
deixando o senhor branco sozinho, com saudade dos seus
cafunés, dos seus dengos e dos seus quitutes. Está nesse caso a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

negrinha Luísa, de beiços finos, olhos grandes, pés pequenos,


espigadinha de corpo e peitos em pé, que em 1833 fugiu da
rua das Violas[...] (Idem, p.60, grifo nosso).

[..] Ana, Fula e seca, que em 1839 desapareceu da casa dos seus
senhores, tinha ‘peitos em pé’ que se harmonizavam com seu
corpo todo ele bem feito; e aristocratizado – do ponto de vista-
europeu- por um nariz afilado e pequeno (Idem, p.71, grifo
nosso).

[...] mulata escrava de nome Rosa que em 1857, continuava


desaparecida [...] de cor parda, grossa de corpo, cabelos quase
carapinhos, maçãs do rosto altas, a mulata fugida se fazia notar
também pela ‘bunda grande’ (Idem, p.74, grifo nosso).

Ressaltamos nas passagens acima as características pelas quais eram


reconhecidas as mulatas no século XIX. Verificamos que muitos destes atributos
são aqueles que expõem o corpo destas mulheres dando-lhes uma conotação
sexual e de disponibilidade. As partes do corpo que eram detalhadas pelos
senhores eram justamente as que lhes atraía o desejo.
As descrições dos corpos de mulatas ocorreram também na literatura,
sendo nesta o local de sedimentação do estereótipo. Teófilo de Queiroz Junior
(1975) realizou análise de algumas obras literárias que, segundo ele, mesmo com
intervalos muito desiguais preservaram as peculiaridades do estereótipo. Na
literatura diferentemente dos anunciantes dos jornais, os romancistas pintaram as
33

características corporais com um aroma, uma cor, ajudando a compor mais um


retrato, aquele em que romantizadas, as mulatas, para além de sua impetuosidade
possuíam um sabor. Entrava em cena também os comportamentos e atitudes
demonstrando o que seria a personalidade destas mulheres. Vejamos:
São contribuições de Gregório de Matos à catalogação da
mulata como tipo literário: a beleza de seus braços; sua
alegria; sua musicalidade e graça; a intensidade de sua
atração (QUEIROZ JUNIOR, 1975, p.46, grifo nosso).

[...] Vidinha de Memórias de um Sargento de Milícias[...]: era


uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros
largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os
olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos,
os dentes alvíssimos, a fala um pouco descansada, doce e
afinada [...] (Idem, p.49, grifo nosso)

Em seus entusiasmos de analista, o autor vai detalhando a figura


de Isaura: busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente
ondulados se despenham caracolando pelos ombros em
espessos e luzidios rolos. E fala também do porte esbelto e a
cintura delicada. Isaura tem dedos mimosos, pesinhos(...)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

delicado[...] (Idem, p. 51, grifo nosso)

Rita Baiana, de volta ao cortiço, seu tipo físico é traçado: no


seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca,
havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha
espetado num gancho. [...] Irriquieta, sacoteando o atrevido e
rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda,
pondo à mostra um fio de dentes claros e brilhantes [...]a
mulata bonita, dança com sensualidade, com meneios(...)
cheios de graça irresistível, simples e primitiva, feita toda de
pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de
mulher (Idem, p.53, grifo nosso).

[...] há Maria Olho de Prata, mulata registrada com todos os


dados principais do estereótipo[...]. Ela tem peito fartos, mais
cheirosos que uma braçada de mandioca doce, pezinhos finos,
sempre limpos [...]. Assim bonita, limpa, cheirosa, tentadora[...]
(Idem, p.54, grifo nosso).

Jini é descrita como uma mulata escura mas recortada fino de


cara, o corpo bem feito, acinturado, que é uma beleza sensível
mesmo. [...] fica a mulata retratada como mulher irresistível e
vulgar a trocar renovadamente de parceiros, com inteiro
descaso pela moral[...] Era nova, muito firme, uma mulata cor
de violeta. A boca vivia um riso mordido, aqueles dentes que
de brancos aumentavam. Aí os olhos, enormes, verdes, verdes
que manchavam a gente de verde, que perdiam o orvalho. [...] O
desliz do corpo, os seios pontudos, a cinturinha entrada
estreita, os proibidos – as pernas (...) (Idem, p.57, grifo nosso).
34

Pelo físico é que Gabriela se apresenta: corpo esguio, o rosto


sorridente, mordendo uma goiaba. [...] a via esguia e formosa, a
cabeleira solta e o rosto fino, as pernas altas e o busto
levantado. [...] Além do cravo e canela, Jorge Amado recorre
ainda à pitanga para assinalar o colorido da boca da mulata
Gabriela (Idem, p.60, grifo nosso).

Como na descrição dos anúncios de jornais as características físicas que


chamariam a atenção sobre as mulatas seriam os atributos corporais. A fartura, a
harmonia das formas corporais combinando com o comportamento impetuoso e
sensual (por natureza), demonstram a precisão com a qual as reiterações
discursivas foram capazes de construir uma imagem de mulher mulata que
possuía cor, sabor e desejo.
Em muitas das descrições o apontamento sobre o corpo “desejável” da
mulata nos chama a atenção. Há também uma relevância aos comportamentos
tanto afetivos quanto individuais relacionados aos modos de estar no meio social,
imprimindo nas mulatas para além do cunho sexual, algo atrelado à moralidade.
Sobre isso, Teófilo de Queiroz Junior (1975, p.30) menciona que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

a aceitação generalizada da mulata como dotada de um


comportamento impetuoso, seus modos fogosos, tudo parece
expô-la a corresponder, agindo assim, às expectativas sociais
que a envolvem e condicionam seu modo de ser.

Houveram ainda outras práticas discursivas que provavelmente auxiliaram


na construção da imagem da mulata, foram as pinturas de Di Cavalcanti. Emiliano
Di Cavalcante foi um dos mais ilustres representante do modernismo brasileiro,
conhecido como “pintor das mulatas”. Segundo Mariana de Almeida (2007,
p.105), nas pinturas de Di Cavalcanti as mulatas serviram como símbolo do
Brasil, a partir do olhar do pintor, refletindo as características da sociedade face à
modernização e a urbanização da virada do século XX. Acompanhando as
elaborações discursivas das literaturas, as mulatas de Di Cavalcante,
materializaram os estereótipos e “transformada em tipo social representativo de
uma maneira de ser, viver, de agir, a mulata é um símbolo que foi e é
constantemente re-significado na cultura popular e erudita” (Idem).
A imagem da mulata foi elaborada por Di Cavalcanti para se
opor à da mulher branca, mas também à da mulher negra, que
era, por sua vez, associada ao trabalho manual. O investimento
do artista na expressão da sensualidade dos gestos dessa
mulher, expondo seu corpo e sua sensualidade e evidenciando
sua sexualidade, tinha como objetivo despertar o desejo
masculino (CHAMOM; NASCIMENTO, 2018, p.138).
35

E não só o desejo masculino como também “estimular os sentidos de quem


olha” (Almeida, 2007). Essa corporeidade da mulata pode ser observada nos
quadros do autor em uma reiteração/ressignificação dos estereótipos. Na tela
Samba (1925):
No centro do espaço pictórico, uma mulher é representada [...] a
mulata. Seu corpo é curvilíneo e sensual - sensualidade que é
feita explícita pela alça da blusa que do ombro deixando nu o
seio esquerdo. Seus gestos são graciosos ao mesmo tempo em
que demonstram firmeza e confiança. Seu olhar lânguido
oferece carinho. Sua feminilidade e vaidade são caracterizadas
não só pelo comportamento, mas também pela roupa e seu
elegante salto alto, que tem o detalhe da flor cuidadosamente
desenhado (ALMEIDA, 2007, p.86 grifo nosso).

Segundo a autora Mariana de Almeida (2007) essas representações são


comuns e se repetem nas obras de Di Cavalcanti, de maneira que confirma e
reafirma a construção da imagem da mulata como um símbolo nacional, e de
alguma maneira corporizando a mulata arquetípica que demonstramos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

anteriormente. Os atributos destacados são aqueles que dão corpo à


comportamentos e atitudes das mulheres. E dessa maneira surge a imagem que
ilustrará as formas e atitudes das mulatas, não só no início do século XX como no
decorrer dos anos, chegando à glamourização nos shows de Carlos Machado e
Oswaldo Sargentelli, nas décadas de 1950 e 1960.
Nesta curta exposição observamos o quanto as características físicas
relacionadas às mulatas foram discursivamente reiteradas no decorrer dos anos,
independente do meio de exposição. As partes do corpo realçadas nos discursos:
seios, glúteos, corpo regular, dentes alvos, cintura, porte, cor da pele, atributos
que, por vezes, estiveram diretamente relacionadas às características de etnias
africanas, como no caso das mulheres de etnia hotentote que possuem nádegas
grandes e volumosas ou ainda a pele mais clara das mulheres de Serra Leoa
(Braga, 2015), serviram como marcadores para a construção de uma imagem e de
um imaginário sobre as mulatas e as suas condutas corporais.
Examinando as citações dos intelectuais dos séculos XIX e XX, as mulatas
presentes na literatura e os anúncios em jornais sobre as mulheres escravizadas
vislumbramos que, por meio da reiteração discursiva, ocorreu a construção de um
padrão normativo para identificação de mulatas na realidade social. Com isso, as
mulheres negras que, de alguma maneira, tinham em seu corpo as marcas que
36

comporiam o corpo de uma mulata acabariam reconhecidas como tal. E não só


isso, as próprias mulheres considerariam relevantes esses atributos como
constituintes de sua imagem corporal. Podemos constatar ao ter acesso aos
depoimentos das próprias, vejamos:
‘Uma mulata sem um biquini eu acho que ela não é ninguém
com certeza. Então o biquini é melhor, o caimento dá volume
ao seu corpo, entendeu?’ (Márcia dos Santos apud DAMAS,
2001)

‘Eu acho que é necessário ter um corpo bonito...[...] eu achava


que não tava preparada, não estava com o corpo preparado
pra botar um biquini, pra sambar, eu estava e achando muito
magra’ (Elaine apud Giacomini, 1992, p.226).

‘olha pra mim, eu sou a verdadeira mulata, bundão, pernão,


cinturinha fina...’ (Tânia Bisteka apud MULATAS!, 2011b)

‘...como é que eu diria..., que é uma negra, um corpo


escultural...’ (Nilce Fran apud MULATAS!, 2011b)

‘[...] tem que ser engraçadinha, jeitosa, tem que ter um corpo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

de mulata... É ter um corpo assim meio violão, bundinha assim


um pouquinho grandinha, empinadinha, cintura fina...’ (Ma.
apud Giacomini, 1992, p. 152).

Observamos assim que os discursos sobre a mulata acabaram por construir


uma representação sobre ela. As representações como produtos de ações,
comunicações e interações humanas (Moscovici, 2009, p. 40) permitiu que por
meio das muitas descrições sobre as mulatas, estas fossem elaboradas enquanto
representações particularizadas a partir de seus atributos corporais e
comportamentos. Como dito anteriormente, o fato de escravizados serem
categorizados e definidos através de seus corpos era capturada uma parte de sua
identidade social o que, no caso das mulatas, as transformaria em um tipo único e
particular. A mulata, descolada do gênero oposto (o mulato) e do mesmo gênero
(as mulheres negras e brancas) tem pelas práticas discursivas que a construíram
um “estatuto próprio” (Corrêa, 1996, p.49). O autor Serge Moscovici (2009, p.41)
nos alerta que:
longe de refletir, seja o comportamento ou a estrutura social, a
representação muitas vezes condiciona ou até mesmo responde
a elas. Isso é assim, não porque ela possui uma origem coletiva,
ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque, como
tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela
constitui uma realidade social sui generis. Quanto mais a sua
origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada,
mais fossilizada ela se torna. O que é ideal, gradualmente torna-
37

se materializado. Cessa de ser efêmero, mutável e mortal e


tornar-se, em vez disso, duradouro, permanente, quase imortal.

E dessa maneira as representações sociais sobre as mulatas tornaram-se a


realidade social para aquelas mulheres que compartilhavam dessas representações.
A origem esquecida, foi materializada na imagem da mulata de pele clara, corpo e
postura sedutora, com desempenho sexual aprimorado e aptidão às danças.
Possuindo um sabor, um aroma e uma cor que seduz apenas por ser. Um corpo
harmonioso que tornaria difícil resistir. A mulata está assim constituída como
objeto de desejo e de sedução para o olhar e o discurso masculino.
Se analisarmos as práticas discursivas como ‘as diferentes maneiras como
as pessoas, através dos discursos, produzem realidades psicológicas e sociais”
(Spink; Gimenes, 1994, p.153) constatamos que as representações sociais sobre as
mulatas se materializaram na realidade como um modelo, conquistando no
imaginário social brasileiro um espaço privilegiado no qual a mulata se torna
“uma definição não passível de negociação: a mulata é a tal” (Corrêa, 1996, p.48).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Entendendo a imagem corporal a partir das considerações de Paul Schilder


(1981), como um fenômeno social, compreendemos que a sua construção se faz
através do convívio social com outros corpos e posturas, e por meio da apreensão
dos sentidos sobre o próprio corpo. Essa imagem seria tanto mental quanto a
percepção sobre o próprio corpo e assim percebemos como a construção de uma
imagem corporal pode estar atrelada às representações sociais existentes no
imaginário social.
Desta maneira, a realidade construída sobre as mulatas tornou-se senso
comum, influenciando e sendo incorporado por estas mulheres, tanto que em seus
depoimentos, os pressupostos para que uma mulher seja considerada mulata, passa
pela questão do corpo considerado ideal, que seria justamente aquele composto
pelas características e representações enunciadas pelas construções discursivas
sobre este corpo. Mas não foram só as representações sobre o corpo das mulatas
que contribuíram para a construção desse imaginário, o comportamento também
foi alvo de práticas discursivas.

2.3. O comportamento da mulata

‘Ser mulata pra mim (...) não é só pela cor, pelo estilo já de
mulata, que as pessoas já olham e já falam, essa aí é uma
38

mulata. Mas a mulata do samba, é você ter uma boa


apresentação. É você saber falar, é você saber dialogar com as
pessoas, é você saber dançar com classe, dançar bonito, fazer
uma boa apresentação’ (Queila Mara apud MULATAS!,
2011b).

Com isso, além de ter um corpo que corresponda ao que Sônia Giacomini
(2006, p.124) enunciou como “mulata arquetípica, aquela que o português
inventou”, para ser autêntica, seria preciso ter um conjunto de atitudes e
comportamentos que a inseririam no contexto das mulatas do samba. Atitudes
provocativas e desafiadoras em relação ao público ao mesmo tempo que
acolhedoras e simpáticas, aparente autoestima elevada, elegância e porte durante a
dança, demonstração de orgulho e paixão pelo samba, um comportamento que a
mantenha profissionalmente vinculada ao mundo do show e a distancie da
prostituição e, principalmente, o Samba no pé.
Vejamos algumas falas:
‘a mulata, na cor dela, ela passa uma porção de coisas prás
pessoas, é energia. Quero dançar, dançar, passar energia
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

positiva para o público que está me assistindo’ (D. apud


Giacomini, 1992, p.160).

‘Tem que ser abusada, costumo dizer que não basta sambar tem
que ser abusada. Tem que ser enjoada [...] Tem que ter um
carão, tem que ter uma ousadia, tem que ser diferente[...]’
(Nilce Fran apud DAMAS, 2015).

‘Tem dois mundo da mulata: Você querer ser mulata e você ser
mulata, entendeu? Eu sou mulata. Eu sambo, faço show, então
eu sou intocável, respeita que eu vou passar[...] a mulata só
quer sambar’ (Márcia Anjo apud MULATAS, 2011a).

‘Mulata é força. Acho que toda mulata é quente; toda mulata


tem uma força. A mulata chega, é ela.... e você caracteriza, é
mulata’ (Meiri Lannes apud MULATAS!, 2011b).

‘Mulata é uma mulher bonita, que põe um biquini, que faz um


show, samba no pé e transmite a sensualidade pro público ver’
(Jaqueline Faria apud MULATAS!, 2011b).

Observamos nos depoimentos das mulatas uma série de qualificações a


serem alcançadas para que possam ser reconhecidas. Essas qualificações variam
de aspectos físicos a questões comportamentais e éticas estabelecendo uma
relação entre pessoa e performance. Considerando que as performances “marcam
identidades, dobram o tempo, remodulam e adornam o corpo, e contam estórias”
(Schechner, 2006, p.28), visualizamos, no caso destas mulheres, a performance do
39

samba e da vida cotidiana se reunindo na composição de uma maneira de ser e


agir que forneceria os signos para o reconhecimento citado anteriormente por
Queila Mara (Pamplona, 2011a), ‘pelo estilo já de mulata, que as pessoas já
olham e já falam, essa aí é uma mulata’.
A partir da definição de performance de Richard Schechner (2006, p.42),
entendemos que as performances, aquelas da vida cotidiana, fazem acreditar, ou
seja, “criam as realidades sociais que encenam”. Com isso, compreendemos a fala
de Queila Mara como a incorporação da performance exigida para a função de
mulata, uma corporeidade. Corporeidade esta entendida como a experiência da
existência (Queiroz e Silva, 2016, p.199), ou seja, como condição indispensável
para materializar o sujeito, fazendo assim das experiências vivenciadas e
internalizadas componentes desse ser impresso corpo no sujeito. Assim, a
compreensão do que seria ser uma mulata sairia da esfera da função social e da
profissionalização para adentrar na esfera da individualização pois corresponderia
à corporificação dos atributos e das percepções sobre o corpo e comportamento
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

desempenhados por estas mulheres.


Ao entendermos a corporeidade como um agir no mundo, como uma
“estrutura simbólica” (Le Breton, 2012, p.18) e, portanto, relacional ou seja,
fundamentada na interação entre o eu e o outro, o eu e o mundo, percebemos a sua
relevância na construção do ser, na constituição do Eu. O Eu das mulatas
perpassaria as construções discursivas sobre seu corpo e suas atitudes corporais e
seria compreendido e reconhecido através deste conjunto, designando como
aponta Silvino Santin (2003, p.66) que “tornar-se significa incorporar, em seu
modo de ser a realidade assumida”.
Deste modo, ser mulata passa tanto pela incorporação dos modos de ser/
estar e agir discursivamente criados e divulgados na sociedade brasileira, quanto
pelo reconhecimento externo, afinal é preciso ser vista pelos outros como tal. Nos
depoimentos e também nos trabalhos etnográficos encontramos muitas falas sobre
essa questão. As mulheres, ainda enquanto meninas, ingressariam em alas de
passistas ou em cursos de formação para passistas da escola mediante a escolha de
algum membro da escola, geralmente homens, diretores e coordenadores.
Pontuamos então mais um item importante nesta discussão, o
autoconhecimento que, para a autora Cristina Lee-Manoel (2002, p.34),
40

se caracteriza pela capacidade do ser humano de construir uma


representação interna do universo e também uma representação
interna de si mesmo, levando em conta a posição, prestígio
social, a aprovação do outro, o respeito e a segurança.

O autoconhecimento então, difere da imagem corporal, pois conta com o


respeito e aprovação do outro para um reconhecimento sobre o próprio corpo e
suas potencialidades na realidade social. Lee-Manoel (2002) expõe quatro termos
para ilustrar o conceito de autoconhecimento: o autoconceito (percepção do
indivíduo de si mesmo ou como ele se vê, sem emitir julgamento ou comparar-se
a outros), a autoestima (julgamentos qualitativos e sentimento vinculados às
descrições que cada um atribui a si), autoconfiança (crença da pessoa em sua
habilidade para dominar desafios particulares e superar obstáculos e dificuldades)
e a percepção de competência (habilidade real percebida pelo indivíduo). Se
observamos os gestos e as atitudes corporais das mulatas enquanto falam,
percebemos estes termos como componentes na estruturação de sua corporeidade.
Neste processo de conhecimento e estruturação da corporeidade, a mulata
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

constitui o seu jeito de ser, seu jeito de corpo e é por meio deste que ocorreria o
seu reconhecimento pelos componentes da escola ou da comunidade.
A percepção de competência seria a habilidade que, aparentemente, daria
suporte à autoconfiança e a autoestima. Nos depoimentos das mulatas verificamos
esta habilidade quando elas falam e demonstram aquilo que dá excelência a sua
performance como mulata, o samba no pé.
‘Pra sambar a pessoa tem que ter aquela vontade né, aquele
prazer, harmonia... Agora ir no samba só coisa não adianta,
rebolar também não adianta, o negócio é o pé’ (Tia Suluca
apud DAMAS, 2015).

‘A importância da mulher no samba [...] tem que mostrar em


primeiro lugar[...] é ter samba no pé, ter samba mesmo, não é
só mostrar a plástica, né!’ (Nananã da Mangueira apud
DAMAS, 2015).

‘[...] ele disse – neguinha abusada, eu falei não é abusada, é


samba no pé né!’ (Márcia Anjo apud MULATAS, 2011a).

O samba no pé, enquanto performance, seria como os “comportamentos


restaurados, ações realizadas para as quais as pessoas treinam e ensaiam”
(Schechner, 2006, p.28) e que marcam identidades e remodulam o corpo. Cada
performance em cada ensaio técnico seriam uma reafirmação e um reavivamento
do que seria o samba no pé criado pela mulata, contendo seu estilo próprio e a
41

caracterizando. Assim a cada repetição elas modulariam a sua corporeidade como


mulata.
O termo samba no pé teria sua origem na expressão “dizer no pé” que,
segundo Zeca Ligiéro (2011, p.142), remete ao sapateado do samba, dança-
conhecimento pertencente à tradição oral do samba. Sobre a dança:
O chão sob o qual ele dança é tratado com carinho, como se lá
embaixo de si ele guardasse mesmo terra dos ancestres. Fazer
música com os pés é um convite para que os ancestres venham
também dançar ou pelo menos inspirar e admirar os dançarinos,
participando como espectadores. No sapateado do samba o
corpo é uma expressão da dança e a sola do pé o instrumento
musical.

A imagem no filme documentário Samba (2001) de Theresa Jessouroun,


oferece uma boa demonstração de samba no pé, primeiro com Tia Suluca, uma
senhora que à época era presidente de honra da ala das baianas da Mangueira e
Nilce Fran, coordenadora da ala das passistas da Portela. As duas ao sambarem no
filme o fazem como se deslizassem no piso, mantendo os joelhos fletidos, um
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

movimento ordenado e harmonioso de quadril, com o tronco e braços realizando


gestos que expressam o charme do seu estilo, todo o tempo em que aparecem o
som de seu samba é proferido por seus pés, não há bateria. Uma outra mulata,
Sônia Capeta (Mulatas!, 2011b), passista da Beija Flor de Nilópolis, também faz
referência ao sapateado do samba em sua fala
‘Eu sambo no estilo de um liquidificador, porque eu não sambo
muito com o corpo, eu sambo muito com os quadris e quase não
tiro os pés do chão’.

Sônia, como é uma passista antiga, teria incorporado em seu estilo as


mesmas características que compuseram o sapateado do samba, os pés em contato
com chão. A utilização dos quadris na marcação do ritmo da bateria e o deslizar
no contato com piso reforçam a perspectiva do samba no pé como uma
performance que mesmo recriada e adaptada ao estilo de cada uma, mantém uma
base comum.
Esta performance do samba no pé seria o que caracterizaria, por fim a
corporeidade da mulata do samba. A partir dela são criados e recriados os sentidos
e significados do que seria ser mulata, afinal ao “realizar a performance sendo”
(Schechner, 2006, p.28), as mulatas se colocam como “existência por ela mesma”,
sua vida cotidiana como “realidade última”.
42

‘Ah, ser mulata pra mim é minha história de vida, sabe..., tudo
que eu tenho, tudo que eu sou’ (Tânia Bisteka apud
MULATAS!, 2011b).

‘Eu posso tá velha mas eu vou continuar sambando, porque


isso foi um dom que deus me deu e ninguém vai tirar, ne?!’
(Soninha Bumbum apud MULATAS, 2011a).

Assim enquanto tradição, cultura e até mesmo dom, o samba no pé vive e


se reconfigura nas imagens e nos corpos das mulatas, diante da ação, movimento e
interação de suas performances.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA
3.
Meu samba, meu Dom

“Meu samba é o meu dom, sou eu”.


Lucinha Nobre, Damas do Samba.

O samba, como ritmo ou como dança, é considerado um dos símbolos das


cultura afro-brasileira. Ambientado no Rio de Janeiro tece no início do século XX
o seu ápice nas “reuniões em casas de grandes festeiros, das próprias tias baianas
ou até de Ialorixás” (Ligiéro, 2011a, p.143). No ritmo samba, segundo Muniz
Sodré (1998, p.11), a síncopa (ausência no compasso da marcação de um tempo
que repercute em um outro mais forte) “atua incitando o ouvinte a preencher o
espaço vazio com a marcação corporal” e esse vazio, essa marcação corporal seria
fundamentalmente preenchida pelo corpo negro. O samba estaria onde o povo
negro estivesse, atuando como transmissão de sabedorias africanas, ponto alto da
tradição oral e como resistência à “redução do corpo negro à máquina
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

reprodutiva” (Sodré, 1998, p.12).


A dança samba aparece como esta marcação corporal, o espaço preenchido
pelo corpo na síncopa. Este corpo se expressaria de maneira a demonstrar nos pés
e nos quadris a sua performance. Nananã da Mangueira (Samba, 2001) já dizia:
‘samba é pé, cadeira e cadência’. Os movimentos dos pés estariam relacionados
à energia da terra, pois para os africanos “o céu está sob a terra – mundo dos
ancestres” (Ligiéro, 2011a, p.141), e os movimentos dos quadris (as cadeiras)
estariam relacionados aos “ritos de fecundidade” (Rodrigues, 2005, p.31),
caracterizado por remelexos, rebolados e a própria umbigada, que seria um
encontrão, com a região umbilical, entre duas sambistas. A cadência ficaria por
conta da habilidade da sambista em conectar a sua dança ao ritmo da bateria.
A sensualidade provocativa da dança samba executada pelas mulatas viria
então da movimentação dos quadris que, como bem descreve Graziela Rodrigues
(2005, p.49), desenha o infinito. Este desenho que caracteriza o rebolado, para
Zeca Ligiéro (2011a, p. 143) é um dos movimentos básicos do samba, juntamente
com o miudinho e a ginga. O rebolado, segundo o autor, é um movimento básico e
muito popular, composto hoje em dia, de uma “sequência de hábeis remelexos
com as coxas, quadris e nádegas”. As movimentações de quadris nas danças de
matrizes africanas representam a energia que circula pelo corpo durante as
44

performances e enuncia o sentido da sacralidade existente na região da pelve.


Deste entrelaçam os sentidos de sagrado e sensual para a região da bacia.
Vejamos:
A bacia representa um vaso que recebe e nutre, interligando-se
ao aspecto da vitalidade, sendo um gerador de energia para todo
o corpo. Observando a sensualidade e a sexualidade conjugando
com o sentido mais genuíno de sacralidade implantada na bacia
(RODRIGUES, 2005, p.50).

A mobilidade e a liberdade dos movimentos de tronco e quadril seria o


fator que diferencia e oferece legitimidade à mulata do samba. As performances
assistidas tanto de mulatas mais jovens quanto das mais antigas trazem nos pés e
no rebolado o seu diferencial. Sônia Capeta (Mulatas!, 2011b) afirma que seu
estilo é tipo liquidificador, porque samba com os quadris, Soninha Bumbum
(Mulatas, 2011a), recebeu esse codinome por sua atuação enfatizando o seu
rebolado e o movimento que executava com as nádegas, Rafaela Bastos e Elaine
Ribeiro (Mulatas!, 2011b), mulatas mais novas, demonstram sua desenvoltura ao
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

associar os movimentos dos pés e dos quadris juntamente com os braços alinhados
e gestos sutis nos quais mostram o rosto. São diferentes maneiras de expressar o
samba no pé, porém mantendo um acervo básico de gestos que transparecem para
além do saracotear de pernas e nádegas, um belo conjunto gracioso de gestos que
fazem com que estas transpareçam a simpatia em sua performance.
Os movimentos dos pés, o chamado samba no pé, está incluído no
movimento básico miudinho. Nilce Fran (Mulatas!, 2011b), oferece no vídeo uma
aula de samba no pé onde ao mesmo tempo que executa os passos, verbaliza como
fazê-los. O que observamos é que os pés de Nilce deslizam no chão enquanto
executam a troca de peso entre esquerda e direita, ao mesmo tempo que produzem
um som, assemelhando-se à definição de José Carlos Rego:
Movimento sequencial da dança do samba, onde os pés
deslizam. Na maioria das vezes as pernas ficam em meia dobra
num exercício continuado. O miudinho difere-se do sapateado
americano pelo fato de que nele os pés têm ação rastejada e para
o movimento erguem-se milímetros do chão (REGO apud
LIGIÉRO, 2011a, 143).

O autor ainda afirma que no miudinho a passista “mostra o seu trato, seu
estilo próprio, a sua intimidade com a dança, pois só quem domina muito bem
esse passo será, algum dia, considerado mestre” (Idem). Começamos por aí a
entender a relevância do samba no pé para as mulatas, pois é somente por meio do
45

domínio e da criação de um estilo próprio que elas podem se intitular mulatas. Na


série documentário de Walmor Pamplona (Mulatas, 2011a), foram 13 mulatas
entrevistadas e todas se asseveraram como mulatas justamente por ter samba no
pé. Isso é o que diz a mulata Márcia Anjo (Mulatas, 2011a) quando foi chamada
de “neguinha abusada” por não aceitar uma vaga na ala de passistas sem participar
do concurso: - “Não é abusada, é samba no pé, né!. Já Amanda Matos (apud Toji,
2006, p.82), deixa claro que a diversidade da ala de passistas da Mangueira se dá
justamente pelo estilo de cada uma.
‘Cada um tem um estilo. Cada um tem um estilo. A Mangueira
agora ultimamente tá com passistas muito bons mesmo,
entendeu. Cada um tem um estilo. Tem umas que sambam no
miudinho, tem outras que sambam pra trás, outras que têm tudo
em conjunto. Samba, braço, depende, isso é... cada um tem um
estilo’.

O próximo movimento básico que comentaremos é a ginga. A ginga seria


o movimento característico das expressões corporais afro brasileiras, segundo
Zeca Ligiéro (2011a), o que diferencia as danças africanas das danças europeias é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

justamente a descontinuidade do movimento do torso em relação ao quadril. A sua


descrição aparece em alguns comentários de viajantes do século XIX, e
claramente deixam transparecer a diferença na percepção das movimentações.
Selecionamos o exemplo de George Hilhlm Freyress, botânico sueco em sua visita
ao Rio de Janeiro em 1815.
Por isso o negro selvagem, com a sua alegria barulhenta e o
cômico meneio de seu corpo, indica o verdadeiro grau em que
se acha na escala social, que, conforme nossas ideias de beleza,
está muito baixo, sendo singular que as danças dos negros
sejam exatamente o contrário das nossas, porque ao passo
que nós procuramos mostrar o nosso corpo na luz mais
favorável e os nossos professores de dança se esforçam por dar
aos seus discípulos uma posição exata e elegante, os negros
procuram dar ao seu corpo as mais extravagantes posições,
contrariando de modo mais desnatural possível o jogo de
todos os seus músculos, e quando mais ele o consegue maiores
são os aplausos que lhe são dispensados (FREYRESS apud
LIGIÉRO, 2011a, p.140, grifo nosso).

O cômico meneio de corpo e o modo desnatural de tratar o jogo de seus


músculos é o que, para nós, elucida as torções exigidas pela ginga na descrição do
botânico sueco. A ginga se caracteriza não só pela descontinuidade de
movimentos entre o torso e o quadril, mas também pela torção exercida, assim “a
perna direita fica em frente do corpo em conjunção com o braço esquerdo, e então
46

a perna esquerda se move para frente enquanto o torso se move para a direita e o
braço direito avança” (Ligiéro, 2011a, p.143). Este movimento pode se
encontrado no samba ou na capoeira, o que diferencia a sua presença nas
modalidades citadas é o ângulo de ação e a energia que é projetada. No samba a
ginga atua com suavidade acompanhando a cadência do samba, arrematado com
os movimentos dos pés (miudinho) e o rebolado. Não há dispersão de energia
como ocorre com a sequência “ginga, aú, negativa, rolê” na capoeira (Tavares,
2012, p.100).
A energia no samba está na maneira como a mulata acompanhará o ritmo
de sua bateria, como os seus pés se encontram com o chão, em como as cadeiras
(os quadris) acompanham o ritmo do samba. O que possibilita na performance os
remelexos, tremidinhas e todos os outros movimentos que fornecem oportunidade
de dispersão da energia contida, emanada e recebida no samba. Energia recebida
pelo som dos tambores da bateira, contida pelo corpo quando do seu contato com
o solo e emanada por meio da performance do samba no pé.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Assim, a ginga se mostra como movimento que parece ser aquele que dá
personalidade ao estilo da mulata. Além de dizer no pé, a mulata precisa compor
com a ginga o seu estilo que formatará a sua dança. Observamos que todas as
mulatas participantes dos documentários possuem uma performance exemplar e o
gestual exigido, independentemente de sua idade. O que estamos pontuando é que
as mudanças na dança samba acompanharam as transformações do ritmo samba e
mesmo com o ritmo das baterias mais forte e rápido, os movimentos básicos e a
graciosidade continuaram presentes.
Porém, segundo as próprias mulatas, somente aquelas que possuem o dom
para o samba se encontrariam no quadro descrito acima. Somente as portadoras do
dom estariam aptas a serem mulatas reconhecidas porque elas têm o domínio dos
movimentos básicos e o estilo próprio para representar a personagem.
47

3.1. Aquela que tem o Dom

Este dom do samba no pé que ‘está no sangue’, ‘é de raiz’, ‘nasceu


comigo’, seria algo que potencializaria a performance e personificaria a mulata. É
o contingente interno que cada uma possui e que possibilita o seu reconhecimento,
afinal, é por meio do dom que as mulatas são conhecidas e com isso convidadas a
estarem nas escolas ou nos shows de mulata e por esta razão ‘não basta ter um
corpo bonito, tem que ter samba no pé’, ‘tem que dizer no pé’. E, para elas, ter o
samba no pé é algo que não é ensinado, é tradição.
Ter ou não o dom do samba no pé, passa pela percepção de cada uma
sobre como se desenvolve o processo de reconhecimento de si como portadora do
dom. Entendemos, a partir das reflexões de Maurice Merleau-Ponty (1999), a
experiência perceptiva como uma experiência corporal na qual o movimento e o
sentir são seus elementos. O sentir se dá pelo movimento. Com isso, a percepção
de ser portadora do dom do samba no pé passa pela movimentação. Ao sambar a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

mulata percebe seu dom e é a sensação, o sentir o movimento, e a energia


emanada por ele, que a leva a declarar o samba no pé como algo intrínseco,
particular e independente de aprendizado. O que pode ser ilustrado com a
definição de percepção de Terezinha da Nóbrega (2010, p.70), na qual a
percepção é “uma interpretação que envolve o jogo dinâmico do organismo com o
entorno, a história e a cultura”.
Como bem disse Maurice Merleau-Ponty (1999, p.14), “o mundo é aquilo
que nós percebemos” e a percepção de Ser das mulatas está justamente no mundo
que elas percebem, na experiência corporal vivida por elas, o universo do samba,
a energia que circula no samba e na dança, o carnaval. Não que não existam
outros mundos, mas quando falamos sobre a sua posição como mulata, e isso pôde
ser notado na maioria das mulatas entrevistadas, todo esse conjunto é o seu Eu. O
fato de reconhecerem o samba no pé como um dom e o ser mulata como
constituição de si, faz parte da atribuição de sentidos no “complexo emaranhado
do corpo e do movimento que, em conjunto, expressam a sensibilidade humana” e
isso somente é possível porque é “no movimento dos corpos que podemos fazer a
leitura com lentes sensíveis dos aspectos visíveis e invisíveis do Ser, do
conhecimento e da cultura” (Nóbrega, 2010, p.77).
48

Os aspectos visíveis e invisíveis do Ser mulata, do conhecimento e da


cultura sobre o samba e o samba no pé estariam sobressaltados na performance,
em sua desenvoltura e na maneira como vivem e reagem ao mundo dentro e fora
do ambiente carnavalesco. Haveria um conjunto de características, atitudes e
comportamentos que fariam menção à uma memória, à um saber incorporado,
parte da construção sócio histórica da população negra na diáspora brasileira.
A prática da dança samba em seu contexto sócio histórico pode ser
entendido como uma tradição, ou seja, um “como um conjunto de saberes
transmitidos de uma geração para uma outra” (Sodré, 2002, p.103), que carregaria
os corpos negros com traços de história e de estratégias corporais, como citado
anteriormente, que comporia um arquivo vivo retroalimentado pelas restaurações
dos comportamentos. “O corpo é um arquivo”, disse Georges Vigarello (2000,
p.230), e como arquivo ele revela e escode, exprime e age, é uma memória social.
O corpo enquanto memória social seria ele mesmo o local da lembrança, de uma
lembrança compartilhada por todo um grupo social, afinal
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

a lembrança é sempre fruto de um processo coletivo, na medida


que precisa de uma comunidade afetiva forjada no entreter-se
internamente com pessoas característico das relações nos
grupos de referência (SCHMIDT; MAHFOUD, 1993, p.289).

Desta maneira, os traços de história e de estratégias corporais contidas no


corpo negro arquivo seriam compostos por lembranças que estariam configuradas
como arquivos gestuais aptos a construir e reconstruir uma memória coletiva, de
maneira que “os dados ou noções comuns que estejam no nosso espírito e também
no dos outros estejam sempre passando destes para aqueles e vice-versa”
(Halbwachs apud Silva, 2016, p.249). O autor Júlio Tavares (2012, p.61) nos
oferece uma explicação sobre como estes arquivos se constituem enquanto
memória coletiva:
Inúmeras práticas de vivências ritualizadas assumem, no Brasil,
uma função muito especial, que é a de manter a tradição de
determinados hábitos comportamentais pela via de certas ações
corporais e da própria comunicação não verbal que estas
pressupõem. Gestos e movimentos conectam-se, constituindo
uma linguagem a qual, pela via corporal, articula os artefatos,
reificam seus fetiches a partir da função de adorno corporal,
bem como asseguram e constituem dispositivos de identidade
coletiva.
49

Mesmo compreendendo que a construção de memórias e identidades são


fenômenos negociados e dependentes em uma referência aos outros (Pollak, 1992,
p.204), notamos que nas performances do samba no pé o reconhecimento parte do
grupo social na qual as mulatas estão inseridas. São presidentes de escolas,
coordenadoras de alas que as convidam para participação em alas de passistas,
porém é a própria mulata que percebe e reconhece o seu dom. As entrevistadas
não citaram o fato de alguém ter-lhes dito que possuíam o dom, elas se auto
perceberam como portadoras.
As performances, como comportamentos restaurados, segundo Richard
Schechner (2006, p.34), “são independentes dos sistemas causais que as ligam à
existência. Elas possuem vida própria”. Seria por meio de performances que os
suportes tanto para a existência e sobrevivência dos corpos negros na diáspora
quanto para os mecanismos de resposta e entretenimento foram reelaboradas em
meio a realidade social hostil.
O mesmo autor aponta ainda que como estas performances “foram feitas,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

descobertas ou desenvolvidas, pode estar oculto ou ser desconhecido; elaborado;


distorcido pelo mito e pela tradição” (Schechner, 2006, p.34), de maneira que, no
caso de nossa pesquisa, o fato de não ser facilmente explicável o como e onde
aprendeu o samba no pé, provocaria gestos e atitudes que sugeririam uma certa
dúvida em relação a essa origem, já que elas acreditam e reafirmam o fato de não
terem aprendido em lugar algum.
‘Eu acho que não se aprende samba, você nasce sabendo. Você
pode até aprender os passos, alguma coisa, mas você aprender
a sambar não. Isso tá no sangue, isso tá na alma da pessoa. A
pessoa saber sambar tá na alma. [...] eu tinha que saber
sambar, tinha que nascer já sabendo sambar, porque é... é
como uma obrigação, o samba tá dentro de mim’ (Tânia
Bisteka apud SAMBA, 2001).

‘Eu acho que isso é de berço realmente. Porque nunca ninguém


me ensinou. As vezes que minha mãe, que ela fala, “Ó, esse
braço, tá muito rápido. Ih, você não tá rebolando na cintura,
mexe mais esse quadril’ (Amanda Matos, apud TOJI, 2006,
p.58).

‘Eu digo que samba precisa de orientador, mas não professor’


(Dona Mocinha apud SAMBA, 2001).

A percepção que essas mulheres têm de que já nasceram sabendo sambar e


que apenas aperfeiçoam o como, daí a explicação de Dona Mocinha (2001) sobre
50

o orientador e o professor, nos direciona a discutir o samba no pé como um dom


recebido, uma dádiva ou ainda uma herança, já que por algum motivo, que varia
desde ter os pais como passistas ou pessoas que vivenciaram o samba, até uma
sensação de ser abençoada com este dom, fazem com que elas tenham “no
sangue”, “na alma” o samba no pé.
O dom ou dádiva seriam “coisas sociais em movimentos” (Mauss, 2003,
p.187) que participariam de um sistema simbólico de trocas composto por três
ordens: dar, receber e restituir. Seriam dotadas de um “legado mágico, geralmente
idêntico tanto ao doador quanto ao recipiendário, e também ao espírito que dotou
o clã desses talismãs[...]” (Mauss, 2003, p.254). Dessa maneira, os dons ou
dádivas recebidas pelos espíritos ou heróis, como pontua Marcel Mauss (2003)
possuiriam um poder mágico ou uma força que seria reconhecida por todos os
componentes no sistema de trocas: doador, receptor e aquele que quem primeiro
ofertou o dom, o espírito. Esta força seria o fator que empregaria valor ao dom,
tanto que alguns dons não participariam das trocas, que seria o sagrado. Segundo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Maurice Godelier (2001, p.270), o sagrado seria “uma relação dos homens com as
suas origens, origens deles mesmos, assim como de tudo que os cerca”.
A aproximação entre o mundano e o sagrado, no contexto da cultura afro-
brasileira possui uma linha tênue, visto que “religião e entretenimento são formas
complementares de um mesmo ritual” (Ligiéro, 2011, p.135). Assim algo
aparentemente mundano pode ter um tom sagrado para os praticantes. Entendendo
o elemento sagrado como o bem que não se pode doar, na perspectiva de Godelier
(2001), podemos visualizar o samba no pé como um dom dádiva, oferecido pela
ancestralidade que permite às mulatas uma reconfiguração de atitudes corporais
apoiados em uma memória corporal coletiva.
Quando analisamos os depoimentos das mulatas sobre suas histórias de
vida juntamente com o contexto socio histórico da população negra,
possibilitamos uma leitura sobre como este dom pode estar relacionado ao
sagrado, à origem das mulatas, a uma memória corporal que constituiu um saber
expressado por meio do samba no pé, que poderia ter este corpo como arquivo
deste saber.
51

3.2. Samba no pé este é o Dom

‘Eu já nasci assim, porque o que eu sei de samba eu não


aprendi em lugar nenhum’ (J. apud Giacomini, 1992, p.146)

O dom para o samba no pé, para as mulatas, seria o que as qualifica e


personifica. Em todos os depoimentos analisados pudemos observar o quanto
essas mulheres acreditam no samba no pé como algo que nasce com elas, como
um atributo que fez parte de seus antepassados, pois como algumas colocam, é
algo de raiz. Esta raiz, em nossa percepção, pode estar relacionada ao passado do
próprio samba e principalmente ao seu passado no samba. É como se o samba no
pé tivesse enraizado nos corpos das pessoas que vivenciam o mundo do samba,
mas não todos, apenas aqueles dotados com o dom. Como observamos no
depoimento de D. Chininha, na época vice-presidente da Escola de Samba
Estação Primeira de Mangueira, à pesquisadora Simone Toji (2006):
‘Samba não se aprende na escola, a gente nasce com o dom,
que nós temos várias pessoas aqui na escola, que são nascidas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

e criadas na escola [de samba], faz parte e não tem nem ritmo,
entendeu. Não sabem sambar e não adianta ensinar que não vai
aprender. E tem pessoas que não tem nada a ver, nunca
participou e tem aquilo no sangue, e só chegar e mostrar,
entendeu’ (D. Chininha, apud Toji, 2006, p.57).

Vem desta noção de singularidade, as percepções sobre as proximidades e


distanciamentos entre passistas e mulatas, as relações estabelecidas entre o dom e
a raça, dentre outros aspectos. Não é por ter a cor de mulata, por ser negra ou ser
assiduamente participante dos ensaios das escolas de samba que se possui o dom.
O samba no pé está como o dom para aqueles “escolhidos”, para os que
apresentam alguma conexão com a ancestralidade ao ponto de reproduzir e
ressignificar as performances mantendo os movimentos básicos como forma de
saber corporal encarnado em seu corpo.
‘O samba eu não aprendi, eu sempre soube sambar’ (Z. apud
Giacomini, 1992, p.148)

‘O samba eu acho que já vem de raiz, gente já nasce sabendo,


já samba. Vem de raiz mesmo’ (Z. apud Giacomini, 1992,
p.150)

‘Eu acho que vem de dentro da pessoa mas eu acredito que


saber sambar está muito ligado às raízes daqui, brasileiras, e
também às raízes, vamos supor, africanas...’ (Mt. apud
Giacomini, 1992, p.150)
52

Os depoimentos acima são alguns exemplos de como o dom é considerado


pelas mulatas. Verificamos que a palavra raiz é utilizada como sinônimo de
origem, de passado. Esse passado traz em seu pano de fundo uma ancestralidade
em seu sentido mais amplo, sendo os ancestrais negros de um passado longínquo e
também aos ancestrais próximos que correspondem aos pais, avós e bisavós.
Percebemos então, que o dom pode ser entendido como algo que é transmitido
pelas gerações, por meio da ancestralidade. A ancestralidade de acordo com a
definição de Fábio Leite (1996, p.110), “é um princípio suficientemente amplo
para incluir, além dos ancestrais nascidos do homem – os ancestrais históricos-
também as divindades e até mesmo o preexistente” e com isso poderemos ampliar
a nossa noção sobre a proveniência do dom.
‘Minha mãe foi passista, minha avó foi porta-bandeira...’ (Rose
Bombom apud MULATAS!, 2011b).

‘Minha história com a Mangueira é o seguinte, minha mãe


engravidou, aí vinha pro samba normalmente, curtia [...] aí
minha mãe me teve dentro da quadra praticamente [...] Na
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

época que minha mãe me teve era época de escolha de samba’


(Andressa Vieira apud MULATAS!, 2011b).

‘Minha mãe dançou quinze anos [...] Eu ter ganho o Estandarte


de Ouro foi uma glória pra minha mãe, pra minha avó, que
viveu o mundo do samba, que vive no mundo do samba’ (Tânia
Bisteka apud SAMBA, 2001).

A partir da perspectiva sobre o espectro do dom elaborada na etnografia de


Arlei Damo (2005, p.105), encontramos duas possíveis explicações para a
maneira como as mulatas descrevem a sua forma de sambar como dom. A
primeira das interpretações utilizadas pelo autor é o dom como sinônimo de
talento e nesta concepção “o dom equivale a uma predisposição inata, algo que
está no sujeito e pode ser aperfeiçoado, mas que comporta um residual intangível
à cultura”. Na segunda interpretação o dom aparece como sinônimo de dádiva
equivalendo “a uma predisposição que, além de inata, é herdada, razão pela qual
se aproxima da noção de dádiva”.
Na etnografia de Sônia Giacomini (1992), a autora aponta que o dom para
ser mulata é justamente o atributo que as qualifica para que se tornem
profissionais e este dom estaria estritamente relacionado à relação que estas
estabeleceriam com o público. Enquanto as mulatas se percebiam como
portadoras de um dom e que este era o que as possibilitava a profissionalização,
53

os coreógrafos e demais professores do curso, viam este dom como a capacidade


de obterem uma resposta positiva do público. Seria energia trocada com o público.
Nos filmes documentários, a palavra dom foi pouco citada pelas mulatas
entrevistadas, porém o sentido de que o samba no pé é algo que lhe pertence, que
lhe é muito importante e um diferencial em seu status como mulata é flagrante.
Isso é demonstrado não somente nas entrelinhas por meio das falas, mas
principalmente na expressividade de seus gestos.
Quando Rose Bombom (Mulatas!, 2011b) é convidada a dizer o que é uma
mulata, ela graciosamente diz ‘na minha opinião mulata tá no sangue, tá na cor,
entendeu?! Vem desde pequena já. Mulata é uma palavra muito forte né, de raiz’,
enquanto diz ela passa as mãos em si e joga os cabelos para traz. Em um outro
momento quando o entrevistador pergunta como ela explicaria a um et o que é
uma mulata, entre risos, ela prontamente responde: ‘Sou eu!’
Percebemos nos gestos de Rose que além de disfarçar a timidez com o
jogar dos cabelos, há uma verdade em se perceber como a imagem da mulata.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Mulata não é a profissão dela, não é o que ela faz, mulata é o seu Eu. Em sua
entrevista demonstra que todos os atributos corporais que possui e que a
classificam como mulata, são parte de seu jeito de ser. Sua história pessoal passa
pelo passado de uma mãe passista e de uma avó porta-bandeira, desde muito nova
vivenciando a escola de samba e sendo aprovada no concurso para passista.
Quando observamos a sua entrevista fica nítido em suas declarações que não
haveria outra corporeidade em Rose sem ser a de mulata e isso, de alguma
maneira, está relacionado ao seu samba no pé, o dom, que pode ter sido herdado
de sua mãe e avó, até mesmo porque em suas explicações apenas diz que quando
chegou na escola de samba fez amizade com as meninas, não há nenhuma menção
ao aprender a sambar. Quando ela traz o passado da mãe e da avó, teria como
intuito demonstrar a herança herdada.
Outra mulata que também nos fornece um bom panorama de como o dom
é tratado por elas é Tânia Bisteka. Quando ela conta a sua história no samba no
filme de Theresa Jessouroun (Samba, 2001), pontua as suas raízes na mangueira
dizendo sobre o passado de sua mãe e pai como primeiros passistas e de sua avó
como componente da escola. Neste caso, o discurso da moça, que assim como o
de Rose, atribuí o seu sucesso como mulata ao fato de ter raiz, ou seja de ter
antepassados que já participavam do samba como passistas, deixa a entender que
54

o seu samba no pé foi herdado e ainda ela diz que o samba está no sangue, está na
alma, ou seja é parte preponderante do que ela é. ‘o samba está dentro de mim’. Já
no documentário de Walmor Pamplona (Mulatas!, 2011b), que ela também
participa, ela diz que é a verdadeira mulata, ‘ser mulata pra mim é minha história
de vida, sabe... tudo que eu tenho, tudo que eu sou! Por mais que a gente pare de
dançar, eu nunca vou deixar de ser’.
Tânia em seus dois momentos quando fala sobre a sua história pessoal faz
um gesto com cabeça e direciona o olhar para o alto, como que envolta em
nostalgia e em seu discurso enfatiza que o samba está na alma trazendo em sua
voz a certeza do que diz.
Estes são apenas dois exemplos de como o samba no pé se configura como
um dom herdado para as mulatas, nos filmes observamos ainda mais mulheres
descrevendo a sua condição de mulata desta mesma maneira. Consideramos,
então, a partir destas colocações que o dom do samba no pé, para as mulatas, é
algo vai além do talento, pois ele é considerado pelas próprias como parte inerente
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

de seu ser. Essa consideração se vale do fato de que as depoentes nos


documentários em momento algum citarem um reconhecimento externo como
pauta para atestar o que são, estas realmente percebem o sambar como algo seu,
como Eu. Observando o contexto sócio-histórico da difusão da dança samba,
como visto anteriormente, podemos inferir que há um conhecimento sobre o
samba no pé transmitido pelas gerações de mulheres negras até as mulatas
entrevistadas.
Todas argumentam o fator da vivência dos pais, mães e avós no mundo
samba como pré-requisito para que sejam mulatas hoje. Haveria então uma
tradição no mundo das mulatas, baseado na passagem deste conhecimento de
forma geracional. É verdade que o fato de todas estarem vivenciando, observando
e compartilhando a realidade das escolas de samba desde a infância influenciaria a
noção de aprendizagem da performance, assim como, o fato de muitas outras
terem participado das escolinhas de passistas de suas escolas. Mas uma
observação muito bem elaborada por um dos entrevistados e reafirmado por
mulatas mais novas foi que, mesmo na escolinha para passistas existe uma ética
na qual não se ensina a sambar e sim se ensina os trejeitos para passistas, os
passos consagrados de passistas antigos e o comportamento durante o desfile.
Nada relacionado ao samba no pé em si, cada uma configuraria o seu samba de
55

acordo com as “bricolagens gestuais” (Tavares, 2012, p.90), ou seja, uma junção
de gestos, que acessaria.
A imitação é um fator importante nessas “bricolagens”, um conjunto de
gestos de outros passistas vão sendo reconfigurados e transformados em novos
passos e trejeitos que são incorporados pelas mulatas. Ainda assim é necessário
saber sambar, ter o samba no pé para conseguir tal proeza. Como elas mesmo
dizem: ‘fui pegando um pouquinho de um, um pouquinho de outro, até que montei
o meu samba, né!’ (Dandara Machado apud Mulatas, 2011a).
Dessa maneira, consideraremos o dom do samba no pé como um saber
corporal. Um saber a ser analisado a partir da perspectiva na qual “a experiência
corporal é compreendida como fundamento existencial da cultura e do sujeito”
(Csordas, 2008, p.337). O corpo vivido, a experiência corporal como parte
fundamental da constituição da pessoa. Assim poderemos compreender como o
samba no pé, uma tradição afro diaspórica brasileira, pode ser transmitido entre
gerações de mulheres negras, chegando às nossas mulatas e sendo percebidos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

como uma dádiva.

3.3. Samba no pé – Saber Corporal

Como as mulatas encaram a sua maneira de sambar como algo inato e


pessoal, elas então partiriam de sua experiência corporal para constituir a sua
individualidade e subjetividade, ou seja, o seu Eu. Essa experiência estaria
fundamentada em um saber que está ancorado no corpo, utilizado como estratégia
corporal para resistência e sobrevivência. Como diz Júlio Tavares (2012, p.83),
nem sempre esse saber possuirá sentido, “pode ser que alguma das enunciações
seja dessemantizada e seu significante flutue, levite e se realize na condição
exclusiva de se tornar-se visível, prático, ativo”. E é nesse sentido que
visualizamos o dom das mulatas do samba.
O corpo aparece, [...] como arquivo das informações que
ficaram evidenciadas por intermédio dos gestos e dos
movimentos corporais. É o corpo um arquivo não verbal e, por
intermédio dele, a memória comunitária é recuperada, passando
o corpo a falar e a salvaguardar a memória do grupo por
intermédio das modulações gestuais, cuja elaboração foi
possível (TAVARES, 2012, p.83).
56

Assim as descrições dos círculos de batuque por George Freyress (Ligiéro,


2011a), os movimentos básicos citados por Zeca Ligiéro (idem) e a continuidade
das maneiras de execução destas performances, nos levam a relacionar o corpo
das mulatas com o saber corporal que nele se expressa quando estas estão no
universo do samba. Não seria apenas uma incorporação dos atributos construídos
socialmente pela literatura, pelos discursos científicos ou pelas descrições de
senhores escravagistas, sugerimos que poderiam ser “memórias ancoradas em
experiências dos que só tem no corpo e em suas formas de comunicação heranças
de seus antepassados e marcas de suas histórias” (Antonacci, 2016, p.19). Os
símbolos e significantes da história de mulheres negras mulatas, juntamente com
os de toda a população negra no Brasil, encontrariam no corpo a única forma de
transmitir seus saberes, conhecimentos e comportamentos, que “a memória
corporal armazenava como fontes de um programa de atitudes corporais”
(Tavares, 2012, p. 102).
A memória seria “a faculdade de representar o passado, o que nele foi
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

aprendido, o que nele foi vivido e, principalmente, o que foi sentido”, “é o lugar
da lembrança” (Castets, 1988, p.09). Esta memória se instalaria no corpo por meio
da inscrição destas lembranças gestuais e sensoriais no inconsciente que “quanto
mais profundamente inscritos na memória do corpo, mais facilmente aparecem,
tornando-se habituais e inconscientes” (Idem). Assim, o corpo negro mesmo com
todos os impedimentos para sua expressão e sobrevivência,
preservou e condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos
ritmos e pela energia, bem como pela oralidade, que vem sendo
transmitida como que um plano conspirativo, invisivelmente no
interior da própria sociedade (TAVARES, 2012, p.25)

O corpo negro seria então um local de memória desses conhecimentos,


como aponta Fabiana Eramo (2010, p.133), “instituída através da performance
graças à repetição de gestos, coreografias, músicas e cantos, técnicas que são
todas veiculadas pelo corpo”. A autora traz então o gesto como protagonista da
produção e transmissão de conhecimento, afinal “ele é o instrumento de
transmissão e reprodução das histórias ancestrais dos povos de matriz africana,
que por séculos basearam a transmissão de suas culturas na oralidade” (Idem).
Os gestos durante a execução do samba no pé, com os movimentos de pés,
de quadris e a ginga, seus remelexos e rebolados, tão presentes na performance
atual estariam relacionados ou seriam consequências de restaurações de
57

comportamentos “herdados de seus antepassados ou trazidos pelos ancestrais


africanos” (Ligiéro, 2011, p.134). Poderiam com isso contar um pouco da história
contida nestes gestos que, pleno de sentidos para os atores sociais envolvidos,
gerariam “uma linguagem própria, envolvendo os indivíduos atuantes em um
sistema de comunicação onde todos compartilham a mesma rede de significados”,
uma linguagem povoada por significados, gestos, imagens, sons, símbolos
partilhados e compreendidos pela coletividade” (Simões, 2013, 152). Talvez por
este motivo seja tão nítido e explícito para a mulata, ser mulata ou como elas
dizem, as pessoas olham e caracterizam: é mulata.
Sobre o samba no pé podemos afirmar juntamente com Mariana Simões
(2013, p.135) que as danças “renovam-se com o tempo, mas mantem-se uma
estrutura enraizada no saber corporal e que se perpetua ao longo do tempo,
embora haja improvisos e inovações, a base constituída se repete” compondo o
cenário gestual do samba e, principalmente, da atuação das mulatas. Os sentidos
dos gestos estão imbricados de tal forma com a corporeidade das mulatas que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

suscita a seguinte declaração: ‘a mulata é muito mais que o samba, ela é o samba
em forma de pessoa’ (Ana Pérola apud Mulatas!, 2011b).
O corpo tem seu mundo próprio, sua singularidade, onde o
gesto é fundamental na produção de linguagem e comunicação
deste corpo com o mundo. O gesto é onde o corpo se realiza, é a
estrutura da memória. O gesto é usado para recuperar a
memória, pois nele pensamento e movimento estão juntos. Cada
gesto é um ato significativo, pois fornece muita informação
sobre a vida do sujeito (ERAMO, 2010, p.127).

Consideramos, juntamente com Graziela Rodrigues (2005, p.23), a dança


como “atividade em que vários corpos se integram para gerar conhecimentos no
âmbito do sensível, do perceptível e das relações humanas a partir de um contato
direto com a realidade circundante” e com isso a população negra obteve, também
por meio de suas danças, o instrumento para o armazenamento de sua sabedoria,
tradições e rituais. O povo negro dança. Desde a chegada ao Brasil os africanos
demonstram a relevância das danças na sua compreensão do novo mundo. Zeca
Ligiéro (2011, p.137) traz uma análise interessante sobre uma passagem descrita
pelo botânico sueco George Freyress sobre as danças praticadas por escravizados
recém-chegados ao mercado de escravos no porto do Rio de Janeiro. Na análise o
autor pontua que mesmo que não saibamos o propósito da dança poderíamos
acreditar que “ela cria para os dançarinos não somente uma forte conexão com as
58

memórias da África, mas também laços espirituais e emocionais” com os grupos


de homens e mulheres de diferentes etnias que ali aportaram.
Assim, considerando as fortes conexões entre o entretenimento e o ritual, a
maneira como ambos se conjugam nas performances afrodiaspóricas e ainda a
influência de uma memória corporal na qual foram armazenados os gestos
significativos de uma tradição, direcionaremos o nosso olhar para a sacralidade
das danças que poderá nos revelar um componente importante do dom das
mulatas.

3.4. O sagrado no dom

As danças, segundo José Gil (1997), sempre têm algo de divino. As


energias que circundam as danças de matriz africana estão carregadas de
memórias e gestos, onde “corpo, música e memória se articulam, configurando o
percussivo corpo nação Brasil, comunitários monumentos históricos na guarda e
transmissão de culturas sob o regime da oralidade” (Antonacci, 2016, p.222).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

Acrescentamos aqui o regime da corporeidade também, com os seus modos de


ser, estar e agir em um corpo simbólico repleto de signos e saberes, que entretém
e ritualiza as práticas corporais.
A oralidade e a corporeidade são assim os componentes que articulam
memórias e saberes nas práticas das danças afro diaspóricas, em “uma via dupla
entre o jogo (brincadeira) e o ritual” (Ligiéro, 2011b, p.134). Assim:
Jogando com corpos e seus prolongamentos, em termos de
habilidades vocais, fonéticas, rítmicas e instrumentais,
conjugações de dança, canto, música – carregadas de
subjetividade, pois suscetíveis a ânimos, oratória e
sensibilidades - , emergem na centralidade de cosmologias
africanas, sustentando encontros de seus mundos visível e
invisível (Antonacci, 2016, p.225).

O samba no pé então enquanto sabedoria preservada no corpo seria um


dom que, como estaria inscrito na memória como lembrança, poderia ser
considerada enquanto dádiva, portanto, herdada ou um presente divino. Talvez
essas sejam as razões da dificuldade das mulatas em explicar o que é uma mulata.
‘Ah! Ser mulata é mulata; não sei como é que eu posso explicar
assim’ (Ma. apud Giacomini, 1992, p.139).

‘Eu acho que eu não sei o que é, dizer o que é ser mulata
mesmo’ (Z. apud Giacomini, 1992, p.140).
59

Sobre isso, Arlei Damo (2005, p.118), aponta que o dom quando uma
dádiva divina “não se pode explicar ou ainda é aquilo que você sabe que o sujeito
tem, mas não sabe o que é”. Para o autor seria uma representação que preserva
uma dimensão intangível. E é essa dimensão que se relaciona com o que Maurice
Godelier (2001) considera como sagrado.
Porque diz o indizível, porque representa o irrepresentável, o
objeto sagrado, é o objeto carregado do valor simbólico mais
forte. E é por ser o objeto cultural que condena e unifica mais
íntima e eficientemente do que qualquer outro o imaginário e o
real que compõem a realidade social que ele é ao mesmo tempo
o símbolo mais forte, o significante mais pleno, o termo mais
rico de sentido de uma língua que ultrapassa a palavra, a língua
falada da sociedade e que fala também através dos gestos, dos
corpos e dos objetos, naturais e fabricados que os cercam
(GODELIER, 2001, p.263)

Assim sendo, essa dimensão intangível como um bem irrepresentável, faz


do dom do samba no pé um saber herdado a partir de uma ancestralidade que
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

confere a esse dom um valor que o remete ao sagrado, sendo assim complicado,
como pudemos observar nas falas das mulatas, explicar, representar ou até mesmo
passar adiante. Como algo muito pessoal e individualizado a transmissão do dom
se daria então por meio da tradição ou ainda pela compreensão da cultura como
Arkhé ou seja, como “um impulso inaugural da força de continuidade do grupo
que está no passado e no futuro, é tanto origem como destino [...] é a transmissão
da matriz simbólica do grupo” (Sodré, 2002, p.170).
4.
Meu samba, nossa história.
‘Ah, o samba pra mim é minha vida, quem eu sou, é onde eu me mostro,
onde eu me reconheço, e..., é o que eu represento’
Lucinha Nobre, Damas do Samba.

As atitudes corporais das mulatas nos filmes documentários são


importantes indícios sobre o que diz Lucinha Nobre (Damas, 2015), ‘o samba é
onde me reconheço’. As mulheres mulatas entrevistadas em seus relatos sobre
suas histórias de vida no mundo do samba compartilham uma mesma matriz,
todas tiveram em seu passado próximo pessoas que participaram diretamente do
samba. Existe em suas falas uma significação sobre samba no qual dança, ritmo e
canto ajudaram a compor as pessoas que se tornaram e com isso foram
internalizadas como parte de seu ser.
O ser numa concepção afro-brasileira poderia, segundo Muniz Sodré
(2002, p. 93), estar em uma perspectiva dinâmica que o constitui enquanto força
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

propulsora de potencialidades. Assim, o samba participando do ser destas


mulheres conferiria a elas uma potência na ação cotidiana que seria dinamizada
pela existência de uma aura ancestral que intensificaria seus gestos e geraria um
contínuo processo de transformação e mudança com a recriação e adaptação dos
movimentos básicos à atualidade.
“Dançar é performar, inscrever” diz Leda Martins (2003, p.78), no caso de
nossa pesquisa podemos dizer que sambar é performar, é inscrever. Sambar para
as mulatas seria o ato de inscrever o conhecimento em seu próprio corpo e
naqueles corpos espectadores, seria um reavivar de princípios, valores, estéticas,
corporeidades grafadas na memória do corpo. Assim, o sambar escreveria e
inscreveria memórias e conhecimento de uma cultura que “permite novas
possibilidades de transação com história, pois compreende origem e destino do
grupo negro” (Sodré, 2002), de uma cultura que oferece uma diferente visão de
mundo e sentido de presença, as culturas de Arkhé.

4.1. A dança na Arkhé

As culturas de Arkhé, segundo Sodré (2002), são as culturas que se


diferenciam das formações socioculturais do Ocidente é, assim, uma “cultura
simbólica por vias de corpo e do território” que “dá primado ao símbolo, ao invés
61

do signo e da representação” (Sodré, 1997, p.30). Desta maneira, as danças nas


culturas de Arkhé seriam compostas por símbolos, plenos de significados, nos
quais os gestos e as expressões corporais externalizariam seus sentidos e
significados para o grupo social envolvido.
A dança é impulso e expressão de força revitalizante. É
transmissão de um saber, sim, mas um saber incomunicável em
termos absolutos, pois não se reduz aos signos de uma língua,
seja esta constituída de palavras, gestos imitativos ou escrita. É
um saber colado à experiência do corpo próprio (SODRÉ, 2002,
p.137).

No samba urbano carioca estão inseridos os símbolos de uma vivência


negra carioca que se relaciona com a resistência aos impedimentos de
manifestação de sua religiosidade e entretenimento, com o jogo, na duplicidade
que caracteriza as atitudes das populações negras nas negociações e rebeldia
inseridas em suas manifestações e com a festividade, pois é nas festas que ocorre
a renovação das forças.
O samba carioca com sua música e dança teve seu início nos terreiros e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

nos quintais das tias baianas que desembarcaram no Rio de Janeiro no início do
século XX, como Tia Bebiana e Tia Ciata (Moura, 1995). Essas tias, segundo
Helena Teodoro (Damas, 2015), trouxeram “a ciência, economia, tecnologia de
cozinhar, a gastronomia. Fazendo a junção do sabor e do saber e no seu próprio
corpo a possibilidade da continuidade histórica e de liberdade de ser”. Assim
essas tias, conhecidas também como mulatas, iniciaram por meio de seus
territórios, corpos e lugares, o samba urbano, como “prolongamentos dos sambas
domésticos, familiares, unidos à cozinha, [...] unindo também muitas vezes a fé
religiosa do candomblé” (Sabino; Lody, 2011, p.69).
Uma destas casas, a de Tia Ciata, onde ocorriam grandes festas, foi
retratada por Muniz Sodré (1998, p.15) como uma “metáfora viva das posições de
resistência adotadas pela comunidade negra”, pois na parte da frente ficavam os
bailes com músicas mais aceitáveis pela sociedade carioca e nos fundos,
“protegidos pelos biombos culturais da sala de visitas, estavam os sambas (onde
atuava a elite negra da ginga e do sapateado) e a batucada (terreno próprio dos
negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso e só se
destacavam os bambas de perna veloz e do corpo sutil)”.
62

O sapateado, o miudinho, o rebolado, a ginga, o ritmo da bateria e o cantar


dos sambas seriam, então, os símbolos do samba carioca urbano. Esses símbolos
externalizados nos corpos das mulatas, fazem destes corpos uma totalidade, ao
mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeitos como agentes e participantes da festa, do
rito, individualizados e objeto como portador dos símbolos de uma memória
corporal ancestral, parte de uma coletividade.
Assim, o samba no pé das mulatas do samba seria o símbolo da cultura do
samba urbano carioca. Ancorados no corpo em forma de saber e, portanto, “como
resíduos de uma identidade (corpórea-gestual) para o interior da comunidade,
enquanto prática constituída, significam um saber produzido e memorizado pelo
corpo” (Tavares, 2012, p.105). Este saber corporal, proveniente de uma
ancestralidade em uma memória também corporal, seria reconhecido como
símbolo da cultura do samba urbano carioca, e um dom revelado por meio da
dança.
A dança samba com sua festa, ritmo e canto estão presentes como
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

princípios fundamentais, caracterizando o samba como uma cultura de Arkhé,


tendo “o corpo como ponto de interseção entre a existência individual e cosmos”
(Sodré, 1995, p.32). As danças daí provenientes, sambas e danças de terreiro,
atuariam como “um movimento transformador-expressivo” através do qual “junta-
se o que estava separado, isto é, indivíduo e cosmos” (Idem, 2002, p.135). As
danças de matriz africana, segundo Graziela Rodrigues (2005, p.30), tem um
compromisso com o sagrado e este compromisso situa-se na necessidade de
“conviver com o cosmos, com a grande roda do mundo”.
Como discutido anteriormente, se compreendermos o samba no pé como
uma dádiva, parte de um sagrado no mundo do samba, entendemos que a
interação com o cosmos estaria intimamente interligada com as performances e
todo o aparato que as sustenta, como a indumentária, os componentes da escola, a
bateria e o canto do samba enredo. Pinah (Damas, 2015), ex-passista do Grêmio
Recreativo Escola de Samba Beija Flor de Nilópolis, nos aponta para esta questão
com a seguinte fala:
‘Quando eu entro na avenida, eu digo, eu acho que eu sou uma
entidade. Ali, naquele momento, eu realmente me sinto que eu
represento algo mais forte que a Pinah mãe, a Pinah mulher...
Parece que tem algo mais forte quando piso naquela avenida,
costumo dizer também que a energia que o público passa ali é
63

tão forte que parece que você tá voando’ (Pinah, Damas,


2015).

No momento que pisa na avenida, Pinah estaria em contato com o cosmos,


estabelecendo a relação unificada de um corpo simbólico integrado participante da
Arkhé afro-brasileira. Ao assistir os vídeos das mulatas sambando no desfile,
percebemos a energia, o calor e a vibração que os corpos em performance
emanam para os espectadores. Mesmo com a relação que se estabelece com os
espectadores, existe uma parcela da performance que parece pessoal, que está
sendo realizada para a própria mulata. Temos o depoimento de um passista,
Gargalhada, sobre o samba no pé que também ilustra esta relação:
‘Samba no pé é quando a batucada tá muito quente e você
responde sambando[...] Quando a bateria toca, que ela bate
aquele ritmo redondo, gostoso [...], eu fico..., eu..., acho que
fico fora de mim’ (Gargalhada, Samba, 2001).

O ritmo da bateria juntamente com a vibração que o toque proporciona no


corpo do passista, oferece a ele a sensação de sair de seu corpo, o que é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

característica importante nas danças de matriz africana, como se o participante


entrasse em uma catarse, já que “por meio desse complexo rítmico chamado
dança, o indivíduo incorpora a força cósmica, com usas possibilidades de
realização, mudança e catarse” (Sodré, 2002, p.135). O samba tanto como ritmo
quanto como dança fornece aos seus participantes a oportunidade de vivenciar o
aflorar dos toques e gestos mantidos em sua memória corporal, assim como a
libertação de seu corpo das amarras das normas sociais, permitindo os gestos, os
requebros e a ginga que reativam a memória, visto que como afirma Leda Martins
(2003, p.67) “os festejos, são férteis ambientes de memória dos vastos repertórios
de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos
culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo corpo”.
Segundo Julio Tavares (2012, p.105), “são os movimentos dos quadris e a
energia dinâmica (do movimento) que fazem o corpo do negro um corpo que
catalisa e reverbera a força energético-cósmica”, sendo assim um corpo que
condensa as energias provenientes dos movimentos e de sua relação com o meio
em uma força.
As energias que compõem as movimentações das manifestações de matriz
africanas estariam numa correlação entre o cotidiano e o sagrado. O mesmo
corpo-trabalho que empenha sua energia e força nas atribuições sociais do
64

cotidiano é aquele que surge para uma reconfiguração energética nos rituais. Para
Raul Lody e Jorge Sabino (2011, p.80),
São muitas as ações repetidas das tradições ancestrais, outras
foram adaptadas, algumas criadas ou fundidas, mas tem sempre
no corpo possível, no corpo do trabalho, o principal elemento-
base para realizar, nos momentos permitidos, a celebração da
pessoa com a sua história, sempre marcada pela música e pela
dança.

Vale ressaltar que “a celebração é uma experiência central na Arkhé


africana, ou afro-brasileira, inseparável da corporalidade” (Sodré, 1997, p.33) e
por esta razão, onde há celebração, há corpo, há música, há canto. Essa celebração
para as mulatas do samba ocorreria, possivelmente, nas rodas de samba e nos
ensaios das escolas de samba.
Celebração esta marcada pela circularidade (roda) ou pelo coletivo, já que
nos ensaios os outros componentes da escola de samba, inclusive outras mulatas,
estariam presentes. Assim compreendemos que no samba a celebração se dá em
coletivo, não há como sambar sem um dos componentes, o canto e o batuque. A
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

pesquisadora Simone Toji (2006) nos revela um exemplo quando uma das alunas
da escolinha para passistas, participantes de seu trabalho, solicita à outra que, já
era passista, fizesse uma demonstração de seu samba no pé. A passista alega não
realizar a dança por não haver bateria e segundo relata a autora, rapidamente as
meninas da escolinha cantarolam um samba e com o ritmo de suas palmas a
passista demonstra o seu samba no pé. Da mesma maneira, nos relatos descritos
por Zeca Ligiéro (2011a) sobre o sapateado do samba, o ritmo que alimenta a
performance da passista é justamente o ritmo proferido pelos pés no próprio
samba no pé.
De acordo com Graziela Rodrigues (2005, p.46), “os pés apresentam uma
íntima relação com o solo. Penetram na terra como se adquirissem raízes...”, e
assim estabelecem a relação com a terra e assim na movimentação do samba, na
troca de apoios entre os pés direito e esquerdo, haveria “o descarrego de energia
acumulada no corpo e a absorção de uma nova energia para o corpo”. E assim a
energia circularia pelo corpo em um circuito energético que “a partir da cabeça,
assentamento do sagrado, retornamos à unidade deste corpo: a energia psíquica
expande-se pelo tronco, segmenta-se no ventre para depositar-se no solo a partir
de representações que os pés imprimem” (Idem, p.55).
65

Essa energia psíquica que percorreria os corpos nas danças de matriz


africana poderia ser identificada, tanto em tradições banto quanto em tradições
yorubas, como uma força vital. Não uma energia transcendental, pois ela seria “da
ordem do visível, mas não pode ser percebida diretamente pelos sentidos” (Sodré,
2002, p.93). A energia que emana do chão e do alto e que percorre o corpo negro
teria uma força, entendida como a própria noção de ser (na perspectiva banto) e
como princípio fundamental da vida, uma força de realização e engendramento (o
axé, na perspectiva yorubá). Independente da perspectiva, o que podemos
observar é que essa energia, essa força é o que constitui o ser e permite que ele
seja o que é. “Corpo enquanto energia: ação. Corpo enquanto ritmo: movimento.
Eis o campo magnético das forças” (Tavares, 2012, p.104). Como exemplifica
Nananã da Mangueira (Samba, 2001), ‘Tudo pra mim é samba, braço, cabeça,
pensamento, tudo é samba. Tudo o que você acha que deve fazer...’.
E assim para além da energia dispersada na agilidade dos movimentos dos
pés e dos requebros dos quadris, as mulatas dos samba se perceberiam como tal
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

justamente por estarem em contato com essa força, com essa energia que, parte
inerente das manifestações corporais afro-brasileiras, atravessam esses corpos e
conferem a eles o calor e a energia, identificadas e reconhecidas como partes do
que é uma mulata.
Seria o que a mulata Meiri Lannes (Mulatas!, 2011b) gostaria de
exemplificar quando diz que ‘toda mulata tem uma força, que toda mulata é
quente’. Essa força faria referência a energia que esta mulher emana durante a sua
performance, como a energia que circula em seu corpo e preenche os espaços e os
gestos, transformando a performance num universo único de sentidos para os
amantes do samba.

4.2. Os valores no samba em Arkhé

O samba no pé como dança na Arkhé tem as propriedades da força vital,


representada pelo axé e pela energia que circula nos movimentos; presença da
ancestralidade, representada pelos mestres, pais e avós que vivem no mundo do
samba e transmitem os saberes e da oralidade, representada pela maneira como as
tradições, cultos e rituais são transmitidos nos contos e fatos ocorridos na história
familiar e de personagens do samba.
66

Observamos a presença da circularidade, representada pela roda de samba


e pela maneira como a energia e os saberes ciclicamente perpassam os envolvidos;
do cooperativismo, representada pela ginga como “uma atitude coletiva de
sobrevivência do grupo ao mesmo tempo que é a afirmação de seu ethos para
outros grupos da sociedade abrangente” (Oliveira apud Petit, 2008, p. 05). A
religiosidade está presente com a convergência entre a dança e o sagrado,
demonstrada na “tenacidade com que os afro-brasileiros permaneceram fiéis aos
seus valores culturais-religiosos apesar das perseguições” (Ligiéro, 2011a, p.
137).
Encontramos a corporeidade, representada pelo corpo, pois “o ser humano
é indivíduo-corpo com elementos singulares e intransferíveis que integra-se ao
simbolismo coletivo” (Sodré, 1997, p.31). A musicalidade, com o seu ritmo que
traz nos tambores e nos pés a memória ancestral contida nos sons e toques, “o
ritmo é rito” (Sodré, 2002, p.135); A memória, representada pelos gestos que
“instituem e instauram a própria performance” que, em cada repetição,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

gera um processo pendular entre a tradição e a sua transmissão


instituindo um movimento curvilíneo, reativador e prospectivo
que integra sincronicamente, na atualidade do ato performado, o
presente do pretérito e do futuro (Martins, 2003, p.76).

E por fim encontramos a ludicidade, a dimensão do jogo e da brincadeira


que “assenta-se no sentimento comunitário, na capacidade de criatividade, na
manifestação da gestualidade, na celebração e no caráter festivo, na sociabilidade”
(Petit, 2015, p.85), além disso faz parte do jogo da dissimulação sobre os padrões
civilizatórios europeus e assim “o movimento criativo do jogo interfere com as
coordenadas históricas de espaço e de tempo, como pode atestar a dança” (Sodré,
2002, p.134).
O samba no pé, então, possui uma série de valores que reconhecemos,
apoiados em Oliveira (apud Sousa, 2005, p.05), como aspectos civilizatórios afro-
brasileiros, parte do reconhecimento das africanidades brasileiras, numa
“compreensão dos traços culturais e o imaginário dos africanos e de seus
descendentes no Brasil, e situar tais produções na construção da nação brasileira”
(Gonçalves e Silva apud Sousa, 2005, p.05).
Esses valores civilizatórios seriam princípios que perpassariam as
manifestações culturais afro brasileiras incutindo em suas práticas os modos de
67

ser, estar e agir da cultura negra brasileira, o que poderia modificar as percepções
sobre o mundo de seus praticantes.
De alguma maneira conseguimos observar a presença destes valores nas
atitudes corporais das mulatas durante seus depoimentos nos documentários. A
descrição da energia que é compartilhada com o público, a relação com os
ritmistas e seus instrumentos, a relação de gratidão, dedicação e cooperação com a
escola de samba são alguns exemplos da presença destes valores. Entre todos os
princípios um nos chama a atenção, a ludicidade. Isso porque ele congrega
aspectos que podem nuançar as tensões, como a alegria.

4.3. O samba no pé e a alegria

A mulata Dandan Firmo (Mulatas!, 2011b), diz que ‘para ser mulata você
tem que estar feliz’, que para executar a performance de mulata seria preciso ter
uma alegria. A alegria na cultura de Arkhé seria, segundo Muniz Sodré (2002,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

p.164), “um sentimento formado por uma intuição imediata do mundo, em que se
experimenta a força do presente e se entra em comunhão com o real”. A
experimentação da força do presente seria então o reconhecimento da
potencialidade de uma corporeidade preenchida por uma força vital que o
impulsiona a acessar os gestos, que as performances querem revelar, e que partem
de uma memória corporal baseada em uma ancestralidade. Assim “o corpo negro
movente possui gestualidade, ludicidade e força de engendramento. Isso acontece
no auge do empoderamento vital” (Petit, 2015, p.86).
O empoderamento vital das mulatas se daria na avenida, nos desfiles, no
apogeu de sua performance. Na sua vivência corporal da Arkhé. Quando o saber
do símbolo extravasa o corpo e é expresso na performance. “O símbolo é,
portanto, algo com que se recorda a alguém uma coisa ou um antigo conhecido,
mas também o próprio fundamento de constituição (a Origem) do grupo” (Sodré,
2002, p.175).
O samba no pé como símbolo se faz presente nas performances das
mulatas do samba como um saber “colado à experiência de um corpo próprio”
(Sodré, 2002, p.137) e esta seria fonte da dificuldade em descrever qual o segredo
destas mulheres. Por fim, consideramos o segredo das mulatas parte do mistério
68

sobre a origem de seu dom, o que na cosmovisão afro-brasileira, de acordo com


Muniz Sodré (2005, p.107), seria
uma dinâmica de comunicação, de redistribuição de axé, de
existência e de vigor das regras do jogo cósmico. Elas circulam
com tal, sem serem reveladas, porque dispensam a hipótese de
que a Verdade existe e de deve ser trazida à luz.

O segredo então numa perspectiva afro-brasileira estaria como um meio de


salvaguardar os símbolos de suas habilidades potenciais de manutenção dos
mecanismos de memória do grupo negro carioca.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA
5.
Considerações Finais

Mulheres negras tiveram, ao longo de sua história no Brasil, seus corpos,


seus comportamentos e suas atitudes corporais manipulados discursivamente em
detrimento de suas vontades e anseios. As experiências corporais vivenciadas por
estas mulheres, nos seus momentos de trabalho, de lazer, de exercício de sua
religiosidade, se não preservados em sua memória corporal, poderiam ter se
perdido em meio aos estereótipos e a depreciação.
Não podemos negar que a negociação entre as atitudes individuais e os
estereótipos acabaram por gerar novos tipos de comportamento, também
absorvidos e aglutinados na memória destas mulheres. Esse tipo de memória
corporal foi o que nos inspirou a investigar a corporeidade das mulatas do samba
através de suas palavras e de seus gestos.
Uma de nossas primeiras questões é sobre o termo mulata e os motivos de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

utilizar mulatas e não passistas. Nossa perspectiva de análise na pesquisa


percorreu uma linha onde seria observado a percepção das mulheres sobre a sua
vida como mulata. Em todos os documentários selecionados, elas se reconheciam
como mulatas e não como passistas. Em um deles, a deixa para o início das
entrevistas é: Fala Mulata. Em outro o termo mulata é o nome do filme. E as
perguntas dos entrevistadores são sempre se referindo a elas como mulatas. As
diferenças entre as funções de passistas e mulatas está justamente em ser
portadora do dom ou não, já que as mulatas tem um plus em suas performances,
mas atuam como passistas nos desfiles executando as incumbências que estas
possuem.
Uma outra questão seria sobre a cor. Todas as mulatas entrevistadas nos
documentários são negras. Negras com tez mais escura, tez mais clara, todas
negras. Por este motivo a questão racial passa por nosso texto sem o relevo
esperado. Raça para estas mulheres está em sua garra na execução das
performances e não na questão identitária. Isso não quer dizer que não há relatos
sobre discriminação racial, visto que a maioria delas viveu ou passou temporadas
no exterior.
Mais um ponto é a postura profissional destas mulheres e a associação de
seu trabalho à prostituição. Em todos os filmes localizamos este tema como um
70

assunto espinhoso, que causava desconforto. Elas afirmam que muitas trabalham
também como prostitutas, mas que essa não é a regra. A condição de estar em
contato com outras culturas e com seus corpos expostos é uma das causas
levantadas por elas para essa “confusão”. Podemos perceber também que, mesmo
com seus corpos expostos em biquinis, suas performances são entendidas como
arte e elas lutam constantemente para que seja reconhecida como tal.
Para estas mulheres ser uma mulata passa longe de vestir um biquini e
sambar nos desfiles das escolas de samba. Envolve uma consciência de grupo, de
gratidão à sua comunidade e à sua escola pela oportunidade de expressar o seu
dom. Envolve uma armadura, composta pelo biquini, esplendor, apliques de
cabelo, salto alto e muito brilho, a fim de conferir todo um glamour a sua arte.
Envolve uma luta cotidiana na vida fora do carnaval, com seus familiares e
empregos longe de sua atuação como passistas. Porém, mesmo nestes outros
contextos elas se posicionam, se empenham e se reconhecem como mulatas, isto
quer dizer, “montadas” ou não, ser mulata não é só uma postura para o samba, é
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

uma postura para a vida.


Sobre a objetificação de seus corpos, as mulatas entrevistadas não tratam
deste assunto, ou pelo menos isso não foi uma pauta sugerida pelos diretores.
Foram focalizadas as belezas de seus corpos e indumentária.
Em uma perspectiva histórica realizamos uma revisão sobre as construções
discursivas sobre as mulatas e as consequências para a realidade social.
Desenvolvendo no imaginário social a imagem da mulata atuaram a literatura
clássica e científica, as artes plásticas e ainda o próprio povo na figura dos
senhores de escravos. Essa figura foi criada, reiterada e constantemente
transformada no decorrer dos anos, porém algumas marcas desses discursos foram
incorporadas na realidade social, materializando as mulatas em mulheres que
possuíam as características.
Positiva ou negativamente, o que observamos nas mulheres entrevistadas
foi o jogo, a negociação entre o que está no imaginário social e a mulher real. Por
vezes, em suas falas captamos a utilização dessas marcas como forma de
representação da pessoa. Atributos são positivados ou negativados dependente da
circunstância em que são convocados. Exemplo: a ousadia e a petulância,
consideradas como atributos negativos na literatura e até na relação interpessoal,
para elas é uma das características que as compõem como mulata, afinal, na
71

avenida, na atuação é preciso ousadia ou ainda tem que ter um “carão”. E assim
também são percebidos outros atributos, principalmente os corporais. Estes
incutidos de um sentido relacionado à sensualidade são marcas corporais da
condição de mulata. A própria sensualidade, por vezes criticada, é a mais utilizada
na performance como um artifício para criar uma aproximação com o público
espectador.
As mulatas tem o seu dom do samba no pé como uma condição única e
especial. É esta condição que a torna mulata. Dessa maneira, nota-se a dificuldade
em se descrever o que é o seu dom ou simplesmente o que é ser mulata. Em nossa
análise relacionamos esse dom ao sagrado e isso em razão desse dom ser herdado
e também uma dádiva recebida por Deus, como relata algumas mulatas. Existe
toda uma aura que envolve a ancestralidade na manifestação do dom, gerando o
sentimento de gratidão e de obrigação. Elas ressaltam a gratidão em serem
portadoras do dom e também um sentimento de obrigação em realizar a
performance já que esse dom está em seu sangue.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

O samba no pé como um dom foi considerado em nossa análise como o


saber corporal, um saber ancorado nos corpos das mulatas como um reavivamento
de uma memória. Memórias de um modo de dançar, de um modo de interagir no
mundo, por meio dos gestos e das atitudes corporais que compuseram as
corporeidades das mulheres negras no decorrer dos anos.
Baseados em uma perspectiva afro-brasileira conseguimos encontrar no
samba princípios que possivelmente nortearam a reorganização da população
negra no Brasil. Com resquícios de valores africanos e as modulações que foram
necessárias para a sobrevivência em terras brasileiras, os valores civilizatórios
afro-brasileiros nos permitiu pensar a complexidade do envolvimento das mulatas
com o seu dom e a sua vivência no mundo do samba.
Por fim, tentamos nessa pesquisa analisar a partir das falas e dos gestos das
mulatas o que as torna um personagem tão interessante e importante não só para o
mundo do samba, como também para a imagem internacional da brasilidade,
como elas mesmas ressaltam.
6.
Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Mariana. As mulatas de Di Cavalcanti: Representação


racial e de gênero na construção da identidade brasileira (1920 2
1930). Dissertação (Mestrado em História), Departamento de História,
Universidade Federal do Paraná, 2007.
ALMEIDA, Miguel V. Corpo Presente: Treze ensaios antropológicos
sobre o corpo. Oieras: Celtas, 1996. Disponível em:
http://miguelvaledealmeida.net/books/CorpoPresente.pdf Acesso em 09
dez.2017.
_________. O Corpo na Teoria Antropológica. Revista de Comunicação
e Linguagens, Lisboa, n.33, 2004. p. 49-66. Disponível em:
http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2008/06/o-corpo-na-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

teoria-antropologica.pdf Acesso em 09 dez 2017.


ANJOS, Isa Regina. Dotação e Talento: concepções reveladas em
dissertações e teses no Brasil. Tese (Doutorado em Educação
Especial), Programa de Pós-graduação em Educação Especial,
Universidade Federal de São Carlos, 2011.
ANTONACCI, Maria. Memórias ancoradas em corpos negros. 2ed., 2
reimp., São Paulo: Educ, 2016.
_________. Corpos negros em zonas de contato interculturais. In:
VELLOSO, Mônica et al. Corpo: identidades, memórias e
subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. p.101-116.
BONFIM, Vania M. "A identidade contraditória da mulher negra brasileira:
Bases históricas." In: NASCIMENTO, Elisa L.(Org). Afrocentricidade:
Uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro,
2009. (Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira 04), p.219 - 149.
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de século,
2003.
_________. Notas provisórias sobre a percepção do corpo. Revista Pró-
Posições, Campinas, SP, v.25, n.1, jan/abr, 2014. p. 247-256. Disponível
em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8642
491 Acesso em:24 mar. 2018.
BRAGA, Amanda. História da beleza negra no Brasil: Discursos,
corpos e práticas. São Carlos: EdUFSCAR, 2015.
_________. Entre senhores, sambas e cervejas: a construção discursiva
da mulata fácil no Brasil. Revista Brasileira de Estudos da Presença.
Porto Alegre, V. 7, n.2, mai-ago, 2017. p. 333-358.
73

CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vêm de longe...In: WERNECK,


Jurema et.al.(Org.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos
passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas: Criola, 2000. p. 22-41.
CASTETS, B. Memória do corpo e identidade. In: HERMANT, G. (Org.) O
corpo e sua memória. São Paulo: Editora Manole, 1988. p.09-12.
CHAMOM, Andréa Regina; NASCIMENTO, Adriano. As “mulatas” de Di
Cavalcanti: um estudo em psicologia social. Memorandum: Memória e
História em Psicologia, Minas Gerais, v.35, 2018. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6891
Acesso em 09 mai. 2019.
CORRÊA, Mariza. A invenção da Mulata. Cadernos Pagu, Campinas,
SP, n.6/7, 1996. p.35-50. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1860
Acesso em 31 ago.2015.
CSORDAS, Thomas. Corpo, Significado, Cura. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2008.
DAMAS do Samba. Direção Suzanna Lira, 1 vídeo (1h15min), Rio de
Janeiro: Modo Operante Produções, 2015. Disponível em:
https://globosatplay.globo.com/gnt/v/5678860/ Acesso em 20 mai. 2019.
DAMASCENO, Caetana. Segredos da boa aparência: Da "cor" à "boa
aparência" no mundo do trabalho carioca (1930 - 1950). Seropédica:
Ed. Da UFRRJ, 2010.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

DAMO, Arlei. Do Dom à Profissão: Uma etnografia do futebol de


espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França.
2005. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2005.
DAOLIO, Jocimar; RIGONI, Ana Carolina; ROBLE, Odilon. Corporeidade:
o legado de Marcel Mauss e Maurice Merleau-Ponty. Revista Pró-
Posições, Campinas, SP, v.23, n.3, 2012. p. 179-193. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8642
846 Acesso em 09 fev. 2014.
DE MARCO, Ademir (Org). Educação Física: cultura e sociedade. 5
ed., Campinas, SP: Papirus, 2006.
DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no
mundo. 2.ed., 3 reimp. São Paulo: Contexto, 2015.
ENTREVISTA com Nilce Fran. Canal ESPM-1, Memória Audiovisual,
Observatório Estudos do Carnaval: Cinestesia. 1 vídeo (04min), Rio de
Janeiro, 2019. Disponível em: https://vimeo.com/335447661 Acesso em
20 mai. 2019.
ERAMO, Fabiana. Infinita Beleza: o sétimo sentido. A linguagem do
corpo e a inteligência dos sentidos na performance da dança afro.
Dissertação (Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-graduação em
Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2010.
FAZENDO CARNAVAL- A passista. Direção: João Carrascosa, 1 vídeo
(12min), Rio de Janeiro: Pindorama Filmes, 2010. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=R_YXzB9jz8c&t=266s Acesso em 20
mai. 2019.
74

FIGUEIREDO, Ângela. Carta de uma ex- mulata à Judith Butler. Revista


Periódicos. v.1, n.3., 2015. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.9771/peri.v1i3.14261
FREIRE, Ida M. O feminino e o sagrado na dança: um ensaio sobre a
coragem de ser. Anais do Fazendo Gênero 8: Corpo, violência e
poder, 2008. Disponível em:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST22/Ida_Mara_Freire_22.pdf
Acesso em 25 abr. 2017.
_________. Tecelãs da Existência. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, SC, v.22, n.2, 2014. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/%25x Acesso em 12 nov.2017
_________. Toyi-Toyi: A dança de uma nação e a noção de liberdade em
Merleau-Ponty. In: C. SILVA e M. MULLER; (Orgs.). Merleau-Ponty em
Florianópolis. Porto Alegre, Editora Fi, 2015. p.37-55.
_________. Toyi-Toyi: A dança sul-africana entre a memória e o perdão.
Revista Alegrar, Paraná, n.18, dez, 2016. p.61-70. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1XyRsNbJ7k3LtVHZ3CA5qne6Rw40OpeGs
/view Acesso em 25 mai.2017.
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do
século XIX. 1 ed.digital, São Paulo: Global, 2012.
GARCEZ, Laís. Os movimentos do Maracatu Estrela Brilhante de
Recife: os “trabalhos” de uma “nação diferente”. Dissertação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

(Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-graduação em


Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2013.
GIACOMINI, Sônia M. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao
estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1988.
_________. Profissão Mulata: Natureza e aprendizagem num curso de
formação. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional. 1992.
_________. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube
social da Zona Norte do Rio de Janeiro – o Renascença Clube. Belo
Horizonte, MG: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006.
_________. Sexo e raça na construção da nação brasileira. Uma leitura
das representações sobre a mulata. Interseções: Revista de estudos
interdisciplinares, Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora/UERJ,
NAPE, ano 9, n.1, 2007. p.89-105.
GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997.
________. Movimento Total – O corpo e a dança. Lisboa: Relógio
d’água, 2001.
GILLIAM, Angela; GILLIAM, Onik’a. Negociando a subjetividade de mulata
no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, SC, v.3, n.2, 1995.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/%25x Acesso em 15 dez. 2017.
GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1975.
GONZALES, Lélia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. Revista
Ciências Sociais Hoje, São Paulo, 1984, p.223-244.Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br › mod › resource › view Acesso em 04 jun 2013.
75

GUENTHER, Zenita e RONDINI, Carina. Capacidade, dotação, talento,


habilidades: Uma sondadem da conceituação pelo ideário dos
educadores. Educação em Revista, Minas Gerais, v.18, n.01, 2012.
p.237-266. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
46982012000100011. Acesso em 06 ago. 2018.
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais.
Organização: Liv Sovik. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
_________. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Editora PUC:
Apicuri, 2016.
JACQUES, Paola. Corpografias urbanas: a memória da cidade no corpo.
In: VELLOSO, Mônica et al. Corpo: identidades, memórias e
subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. p.31-42.
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das
emoções. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009.
_________. A Sociologia do corpo. 6. ed., Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
2012.
_________. Antropologia do corpo. 4.ed., Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
2016.
LEE MANOEL, Cristina. O corpo em movimento gerando
autoconhecimento. In: CUNHA, Newton et.al. Corpo, Prazer e
Movimento. São Paulo: SESC/SP, 2002. p.32 - 41.
LEITE, Fábio. Valores Civilizatórios em sociedades negro-africanas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

África: Revista do Centro de Estudos Africanos, USP, São Paulo,


v.18-19, n.1, 1995/1996. p. 103-118. Disponível em:
https://doi.org/10.11606/issn.2526-303X.v0i18-19p103-118 Acesso em 20
ago.2018.
LIGIÉRO, Zeca. Batucar-cantar-dançar: desenho das performances
africanas no Brasil. Aletria: Revista de estudos de literatura, Minas
Gerais, n.1, v. 21, jan-abr, 2011a. p. 133-146. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.17851/2317-2096.21.1.133-146 Acesso em 08
abr.2018.
_________. O conceito de ‘motrizes culturais aplicado às práticas
performativas afro-brasileiras. Revista de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Maranhão, v.8, n.16, jul-dez, 2011b. p. 129-144. Disponível em:
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/695
Acesso em 08 abr.2018.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo:
Selo Negro, 2004.
LUZ, Narcimária. O patrimônio civilizatório africano no Brasil: páwódá-
dinâmica e extensão do conceito de educação pluricultural. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 25, 1997. p.199-209.
Disponível em
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/RevPat25_m.pdf Acesso em
07 jul. 2019.
MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar de memória.
Revista do Programa de Pós-graduação em Letras, Rio Grande do Sul,
v. 26, 2003. Disponível em http://dx.doi.org/10.5902/2176148511881
Acesso em 02 mar. 2017.
76

MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: _________. Sociologia e


Antropologia. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naif Editora,
2003. p. 399-422.
_________. Ensaio sobre a Dádiva. In MAUSS, Marcel. Sociologia e
Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 183-314.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo:
Ed. Martins Fontes, 1999.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em
psicologia social. 6.ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. 2
ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Divisão de
Editoração, 1995.
MULATAS. Direção: Walmor Pamplona, Apresentação: Rafaela Bastos,
13 vídeos (2h16min), Rio de Janeiro: , 2011a. Disponível em:
https://globosatplay.globo.com/canal-brasil/mulatas/ Acesso em 20 mai.
2019.
MULATAS! Um tufão nos quadris. Direção Walmor Pamplona. 1 vídeo
(1h25min), Rio de Janeiro: Carioca Filmes, 2011b.
NEIVA, Marcos G.; NUNES, Mário L. Linguagem e cultura: subsídios para
uma reflexão sobre a educação do corpo. Revista Caligrama. São Paulo:
USP, v.3, n.3, 2007. Disponível em https://doi.org/10.11606/issn.1808-
0820.cali.2007.66201 Acesso em 06 jan. 2015.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

NOBREGA, Terezinha. Fenomenologia do Corpo. São Paulo: Editora


Livraria da Física, 2010.
OLIVEIRA, Nadir N. Dança Afro: Sincretismo de movimentos.
Salvador: UFBa, 1992.
PETIT, Sandra H. Pretagogia. Pertencimento, Corpo-dança
afroancestral e tradição oral africana na formação de professoras e
professores. Fortaleza, CE: Ed. UECE, 2015.
_________.; CRUZ, Norval. Arkhé: corpo, simbologia e ancestralidade
como canais de ensinamento na educação. Anais da 31ª Reunião Anual
da Anped, Caxambu, MG, 2008. Disponível em:
http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt21-4159-int.pdf Acesso em 25
abr.2018
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v.2, n.3, 1989. p. 3-15. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417
Acesso em 09 fev.2017.
_________. Memória e identidade social, Revista Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v.5, n.10, 1992. p. 200-212. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941/1080
Acesso em 21 mai.2018
QUEIROZ E SILVA, Thais; ALMEIDA, Dulce; WIGGERS, Ingrid. Diálogos
com Thomas Csordas: o paradigma da corporeidade na educação física.
Revista Brasileira de Ciência e Movimento, Brasília, v.24, n.2, 2016.
p.197-205. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18511/rbcm.v24i2.5932
QUEIROZ JUNIOR, Teófilo. Preconceito de cor e a mulata na literatura
brasileira. São Paulo: Ática, 1975.
77

ROCHA, Everaldo, FRID, Marina (Orgs.). Os Antropólogos: clássicos


das ciências sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, Rio de Janeiro: Editora
PUC, 2015.
RODRIGUES, Graziela. Bailarino-pesquisador-intérprete: processo de
formação. 2.ed., Rio de Janeiro: Funarte, 2005.
RODRIGUES, José C. Tabu do Corpo. 7 ed. rev. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2006.
SABINO, Jorge; LODY, Raul. Danças de matriz africana: Antropologia
do movimento. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
SAMBA. Direção, produção, roteiro: Theresa Jessouroun. 1 vídeo (54
min), Rio de Janeiro: Kino Filmes, 2001. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=imosNHToWvw Acesso em 20 mai.
2019.
SANTIN, Silvino. Educação física: uma abordagem filosófica da
corporeidade. 2 ed.rev. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2003.
SANTOS, Inaicyra F. Corpo e ancestralidade: uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação. São Paulo: Terceira Imagem,
2006.
SCHECHNER, Richard. O que é performance. Revista O Percevejo, Rio
de Janeiro, ano 11, n.12, 2003. p.25-50.
SCHILDER, Paul. A imagem do corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
SCHMIDT, Maria Luisa; Mahfoud, Miguel. Halbwachs: memória coletiva e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

experiência. Revista Psicologia USP, São Paulo, v.4, n.1-2, 1993. p.


285-298. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1678-
51771993000100013 Acesso em 20 mai 2019.
SCORSOLINI-COMIN, Fábio; AMORIM, Kátia. Corporeidade: uma revisão
crítica da literatura científica. Psicologia em Revista, Minas Gerais, v.14,
n.1, 2008. p. 189-214. Disponível em:
http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/2
95/304 Acesso em 29 set. 2018.
SENNET, Richard. Carne e Pedra: O corpo e a cidade na civilização
ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008.
SILVA, Giuslane. A memória coletiva. Revista do corpo discente do
PPG-História da UFRGS, Rio Grande do Sul, v.8, n.18, 2016. p.247-253.
Disponível em https://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/59252/38241
Acesso em 20 mai 2019.
SILVA, Joyce. Nós também somos belas. A construção social do
corpo e da beleza em mulheres negras. Dissertação (Mestrado em
Relações Étnico-raciais) Programa de Pós-graduação em Relações
Étnico-raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca/RJ, 2015.
SIMÕES, Mariana. Meu corpo é tambor: corpo e oralidade no Reinado
dos Arturos. Tese (Doutorado em Antropologia), Programa de Pós-
graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, 2013.
SODRÉ, Muniz. Corporalidade e Liturgia negra. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, n. 25, 1997. p.29-33. Disponível em
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/RevPat25_m.pdf Acesso em
07 jul. 2019.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2.ed. Rio de Janeiro: Mauad,
1998.
78

_________. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira.


2.ed. Rio de Janeiro: Imago Ed.; Salvador, BA: Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 2002.
_________. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no
Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
SOUBIRAN, G. B. Sobre a memória. In: HERMANT, G. (Org.) O corpo e
sua memória. São Paulo: Editora Manole, 1988. p.09-12.
SOUSA, Andréia. Valores afro-brasileiros na educação. In: BRASIL.
Valores afro-brasileiros na educação. Brasília, DF: Ministério da
Educação, 2005. p. 03-14.
SPINK, Mary J. (orgs.). Práticas discursivas e produções de sentido
no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas. 1.ed. – Rio de
Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013 (publicação virtual).
_________.; GIMENES, Maria. Práticas discursivas e produção de
sentido: apontamentos metodológicos para a análise de discursos sobre a
saúde a doença. Revista Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 03, n.02,
1994, p. 149-171. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v3n2/08.pdf>. Acesso em: 10 out. 2015.
TAVARES, Julio C. Educação através do corpo: a representação do corpo
nas populações afro-americanas. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, n. 25, 1997. p.216-221. Disponível em
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/RevPat25_m.pdf Acesso em
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1712837/CA

07 jul. 2019.
_________. Dança de Guerra - arquivo e arma: elementos para uma
Teoria da Capoeiragem e da Comunicação Corporal Afro-Brasileira.
Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
TOJI, Simone. Samba no pé e na vida: carnaval e ginga de passistas
da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Dissertação
(Mestrado em Sociologia com concentração em Antropologia). Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
https://issuu.com/marcelooreilly/docs/0146-simonesayuritakahashitoji
Acesso em 25 mai.2018.
VALVERDE, Monclar. A performance como representação da presença.
In: C. SILVA e M. MULLER; (Orgs.). Merleau-Ponty em Florianópolis.
Porto Alegre, Editora Fi, 2015. p.56-71.
VIGARELLO, Georges. O corpo inscrito na história: imagens de um
“arquivo vivo”. Projeto História, São Paulo, v.21, nov, 2000. p. 225-236.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/10769/8001
Acesso em 19 jun. 2015.
VILLAÇA, Nísia. Os imageiros do contemporâneo: representações e
simulações. In: VELLOSO, Mônica et al. Corpo: identidades, memórias
e subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. p.31-42.

Você também pode gostar