Conclusão - Althusser e A Psicanálise (Pascale Gillot)

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CONCLUSÃO

O que podemos·destacar desse.estudo é que a questão geral


da subjetividade, compreendida ·como processo ~ç subjetivação
µ~:
ue repousa sobre uma éstrutura: ~escentrarriento e de assu-
1
1

;itamento, constit~i 'uffii quest~<( de~isiva:, da o~ra, de_ Alth".5-


ser, considerada sob o aspect9 d,e .utP de_seus pnnc1pa1s proJe-
l
cos, 0 de uma teoria da. i'deôÍ~_g1a_'~~a l~~unar no marxismo.
Nesse quadro, Al~usser mohil{~ jµh1a sér!e de questionamentos
e de conceitos -emp~citád<;>~ do ca,mpo da psicanálise, seguindo
0 mesmo gesto de -r ~tomada '. e ,refqr~ulação que gover~ou a ela-
./ • '. ! '

boração de seus própi;ios conceitos fu1;1damehtais;· na perspectiva


do retorno a Marx, tais 'eom? o ~e
sobr~detçrminação, de leitura
sintoma! ou de causaliaade ·ésfr~tural·. Deix?lfemôs em suspenso
um ponto nodaÍ e problem~tico· em j~go ao l~ngo da releitura
althusseriana da descóberta,freudiana:· o da.fundação epistemológi.-
ca da psicanálise pelo marxismo~· até mesmo por uma teoria geral
do discurso ou do signÜicant~ que Althusser de~anda, embora
permaneça bastante elíptico a esse .respeito. Nos deteremos, em
vez disso, na reflexão sobre essa questão ·do sujeito, inseparável de
toda a conceit.uação althusseriaria da ideologia, e reveladora da
rela - · · --
çao smgular que o pensamento de Althusser mantém com a
teoria fre udºtana e sua retomada lacamana.
.
] ]8 1 Pascale Gillot

Destacamos que a teoria da interpelação ern ..


mecanismo fun damenta1 da i'deo1ogia . é regida suJetto
l co-'11
. . .
da noção laca111ana de ordem simbólica, sob e pe a rea .
. tivaçã
0

O 0
.
de Cultura E, no entanto, diferentemente de Laonceito de Lei
. . can, Althu
não parece sempre disposto a reconhecer uma pert' ,, . sser
. de su;etto.
sófica completa ao conceito . . Podemos perceb tnencta fil -
0
" · de mo do notave
divergencia ' l nas recepçoes
- quase er essa
. do Eu penso, em Lacan' de umºPostas
conceituação cartesiana 1 d ' dª
Althusser de outro. . a o, e em
Para Lacan, a conceituação cartesiana do sujeit~ in
.
um paradigma sempre vál'd
i o, uma teona . do
. .su ·eito
. quaugura_
. , 1 · e nao
define um simples momento na história da filosofia m·as r:
,, 0 rere-
ce uma tematização moderna da subje~ividélde (em:reÍação com
a ciência e o desejo de saber) que é ai.r;ida a q.a psi~an~ise, em
sua própria irredutibilidade à psicologia. O .ft1: penso cart~iano
não define um sujeito psicológic~, _nem um s,!1jeito d~ pr~fup-
dezas, mas muito mais um sujeito vazio que figura o ·correlato
antagônico, da ciência, constituído por, um~ -"relação ·po~t~al
! •• , '

e evanescente" com o "saber"~l o cogito se revela, com efeit~,


no momento da máxima incerteza: ele então não caracteriza
'
mais o sujeito pleno da psicologi_a, ou o eu regido pela_ função
'

da consciência, mas essa instância incapturável, esse. pol).to,.de


evanescimento que se descobre inicialmente na dúvida hiper-
,,l:J

bólica. O conceito moderno de sujeito ina_ugurando na filosofia


de Descartes, sob a condição de sujeito da ciência, perm~n~çe o
modelo, não ultrapassado, de toda rematização não psic9fó~ica
da subjetividade: portanto, ele continua prevale~endo, sobtetu:-
do, na própria psicanálise. O sujeito do inconsciente, é ainda.p
sujeito da ciência; pode-se mesmo afirmar, segundo Lacart, que
"a abordagem de Freud é cartesiana", uma vez que ela "par · te
do fundamento do sujeito da certeza''. 2 Em Althusser, porém, ª
1
2
J. Lacan, "La Science er la Veriré", em Ecrits, p. 858 . .,
J. Lacan, Les Quatre Concepts Fondamentaux de '/a Áychanalyse, III, p. 43.
Alrhusser e a Psicanálise
1 I 19

e Jção da
filosofia cartesiana é muito tnàis crítica e
. . ·, cnvo lve
rec l . r·a mais trad1c1onal, que parece fazer do carresi·a •
1 a 1e1tu . . . . ms-
un 111 n10 mento dec1s1vo na const1tu1ção de uma "filoso a
10 0 6
11 nsciência". Ainda que Alchusser não confunda O concei-
h co . . da dad ( ..
e' rcesiano de su1ezto ver: e ou SUJetto de objetividade)
ro c.1 a uele de uma psicologia efetiva, ele estabelece, no encan-
coin ' q d • . · . A_ • • ,
1 05 entre esses 01s c.o ncettos. ru;s1m, o SUJelto psicológico
ro, aç . d " . . d .... ,, a1·
d r relac10na o ao .SUJetto u erro t como lhe concebe
0 e se . . . .
Descarces , isto é, ,como
P . o mverso
. . do SUJetto da verdade trans-
ce a seus propnos procedimentos e•operações na ordem
paren , . . .
da ciência. 3 A filosofia, de, Descartes, que desconhecena a sigm-
ficação real do corte entre verdade e erro é, às vezes, reatribuída
Pº r Althusser à ordem 'd e .um:a, ~'filosofi_a burguesa", correlativa
do advento da ideologia' ju~.í dica, do · "sµjeito"·. Contrariamente
ao que afirma Lacan, a concepção ca~tesiapa não constitui I_?ais
então o horizonte insuperáy<!h ou·
nãot superndo, não circuns-
crito historicamente;,-de -t~d~ ·çÚnc~pção de sujeit~, válido na
própria ordem da ps~canál~se;;·;~~d~-s~ ~:qui, novamente, a im-
portância do espinosismo de ·4Jthússçr, que.• supõe a rejeição do
sujeito cartesiano enq~?JltO ·sujéitõ·· da ti~n:ciá~.. ess·a, rejeição do
sujeito da ciência, ou dó. sujeito.do.con}eci71:en~O{ tomado numa
relação dual com ·úrri '-'~bjetd', ê· convoqi9.a pçla crítica geral
de qualquer "teo-ria d9 conhéci~énto",'':crítica implicada pela
definição do próprio ~onhecimento.~omo processo sem sujeito.
A crítica althusseriaha do sujeito :cartesiano (definído c~mo
sujeito de verdade) se revela,_em-última ~nálise~ nos antípodas
da perspectiva original de Laca.ó.. Reforça-se assim a constata-
ção de uma ambiguidade em Althusser do próprio projeto· de
con stituição de uma teoría do -.sujeito, emb~ia não egológica e
não psicológica. Por um lado, desta~ou~se que a questão da
sub· · 'd
_ Jeuvi ade não é totalmente ignorada; mas -corp.anda ao co~- ·,
3 Sobre esse ponto, cf. L. Althusser Psychanalyse et Sciences Humaines, 2e. Conferénce,
p. 106-122. ' ' , .
1201 PascaJe GiHor
,~
.....,~

trário, em grande medid~, o pro~rama althusseriano de e


· ·ão de uma teoria da ideologia desvinculada d 0 nstj.
twç . . . . o Illodel
Pecularidade simples, e CUJas leis responderia.rn à o da
es . caUsal. d
em ação no inconsciente. Por outro lado, poré.rn, a e 1 ade
.
de sujeito parece rnscrever-se , . de urna fiI ategof
no domm10 . ta
consciência da qual a fil oso fi a do conceito,
. convocada osofia
I ,, da
. . convicto
ticartesiamsmo . ,, de Al thusser, continua
. sendopeado an ·
. 'fi ca então o que pod ,Versá·
rio teórico. Essa am b.igui'dade s1gm
chamar de o enigma do sujeito althusseriano, 0 suJ·e·t enarnos .
1
. às vezes como su· 0 inter.
pelado, que se encontra compreendido .
. b'l' .. d . . Jetto
sun o ico, o su1e1to o mconsc1ente nas categorias de Lacan ,
vezes como um eu [mot] imaginário, cujos desconheciment~s:
as ilusões, mesmo aquelas da consciência, recobrem a alien -
· açao
característica do '"sou eu' do homem moderno", que é também
o "sujeito da civilização científica". 4 Sem dúvida, déve-se preci-
sar aqui, a extraordinária proximidade intelectual que liga Louis
Althusser a Jacques Lacan se declina sob diferentes inodos, e cÍe-
nota, conforme assinalamos, ora uma relação de quase-fidelidade
("lhe devemos o essencial"), ora pelo contrário, uma estratégia de
apropriação ("traduzir Lacan") :e de integração a um dispositivo
maior, em jogo por exemplo no projeto de uma teoria da ideolo-
gia que funda de certo modo a própria psica~:ílise, em sua exigên-
cia de cientificidade. Além disso, ela comporta limites evidentés,
já que se Althusser percebe muito cedo, e com grande acuidade,
a importância do trabalho de Lacan, parece que Lacan, por sua
vez, não concede mais que um interesse- fortemente limitado e
circunstancial ao programa althusseriarto do retorno a Marx, e
o põe em perspectiva à psicanálise e ao marxismo. Além disso, 0
próprio Althusser, depois da virada de sua autocrítica nos anos
1970, e da reje_ição da compreensão anterior da noção de corte
epistemológico, 5 julgado "teoricista'', se distancia consideravelmente
4 J. Lacan, "Foncrion et Champ de la Parole et du Langage", em Écrits, P· 28 1.
5 C( sobre esse tema L. Althusser, Élements d'Autocritique, 2, p. 41-53.
Alrhusser e a Psicanálise
11 21

referência a Lacan, até finalmente qualifi


J:1 . d fc . car como fr
, ·va Jacaniana e con enr à psicanáli acasso a
rcnrJCJ . . . seoestatutode .,_ .
reria, no máximo, foqado uma "fil fi ctertc1a.
.1can
· d · d oso a da P51canáJ'·
,,
L fracassa o em seu proJeto e constituir . lSe ,
as . . . a partir da obr d
.. d uma teoria do ,inconsciente.
111
J-1eu ., ,
6
Entretant0 · .
, parece 1gualmen
ª e
rc, que essa constataçao. de . fracasso, essa desil usao ,., . a respeito
. do-
na., balho de, Lacan,
. c01ncide. em Althusser
, . com o por ,, em causa
suas propnas pesquisas , a propos1to da filosofi a· 1atente de o
de . .
,nital e do
. estatuto cientifico dó materialismo hi'st,onco: • pôr em
Car .
e usa particularmente perceptível no artig0 de 1978 tntttu · • .lad0
ª em seus limites".
"Marx . . '. . .
Parece, assim, existir, no próprio interior da obra de Althus-
ser, uma tensão não superada entre) por _um lad~, uma crítica
explícita do conceito filosófico de_sujeito em geral, associada à
crítica dos conceitos idealistas ·de ·origem e de fim, inerente à
conceituação do processo sem sujeito e,.' por outro, ,uma· rema-
tização original da dimensão ideológ!~~ em jogo-em qualquer.
forma de sociedade. Ora, essa. t~matização só se ·compreende
verdadeiramente no quadro de.stia reformulação e 1de sua pro-
blematização renovada, e' não· da,éxpulsão' pura: e.simples desta
questão do sujeito. Por um .làdq; então, Althussér não 'faz ab-
solutamente sua a recuper~ção lacanianwdo sujeito 'da filosofia
clássica, o sujeito cartesiano. De·.ma!'leira ainda mais radical,
a categoria de sujeito lhe aparece como "a categ9ria filosófica
nº 1" da filosofia burguesa, segund<;> a; fórmula da Resposta a
John Lewis. 7 A esse respeito, deve-se destacar que os conceitos,
fundamentais da .persp~ctiva de Lacan, -de sujeito da ciência e
de sujeito do inconsciente, permanecem para Althusser categorias
filosoficamente opacas, até inadmissíveis . .Se, na pJimeir~. das
Três Notas sobre a Teoria dos Discur~os, se encontram a~miuclas
6 Sb , d" 1976 em Écrits sur la Psy-
0 re esse ponto, cf. "La Découverte du Docceur Freu ' '
chanalyse, p.195-219.
7 L. Alchusser, Répomeàjohn Lewis, p. 71.
l 22 / Pascale Gillot

1 . ó -cs de u m efe ito sujeito-da-ciência e de


:l S 1 qJ rcs _ . . .
\J.rr..,
.... ,1- ere1t
t- :
.
d . co iiscienre, essas sao logo invalidadas ·'"""' . 0 S\J.Jei-
to- 0 - 111 I • • 1 ,p1J.cand '
, ...

_ ·do explie1ro co1n Lacan sobre esse ponto n , · o ltJll


1
uesaco r , . . . ; a,ltledid
oue, o suJ·eito _ se encontra
--·-- - em
--- defin1t1vo reconduz~
~ ·d a. ·. a e111 11

ro do discurso rdeológrco. Por outro lado, a tdeologi~ •'-llll•e 1·~


·1 . • s .

!emento necessárío-cta existência humana, e a; ê '~~~ t1ttü


o e . . . , . .., .. ?tl\flÇao. d
_ J·eiro considerado com o efeito caractenst1co dó ·d" •' . ,. e
su , . 1spos.1ti
·deolóoico, provém da mesma necessidade. De· rn'.an~· • .. ' V.o
1 o . . ,. 1ta.,gera1
como destaca Etienne Bahbar, a leitura tradicionaJ: do· niO .'
mento estruturalista como simples desqualifitaçã6 ·do ,, : 1-
, r e teoncos
é inadequada: os fil osoros , . d.ltos "estruturalii' . . . , ,SUJeito
i ái . ', . . .
como Lacan, o pri":'eiro Fou~a.ult, e j)róprí(} Alth~ser,.)4,:~~ 1
de tentarem desqualificar o suye,to, _tentaram pensáel9iJ:nai~~re-
cisamente, tentaram esclarec7r "este po,nto t:ego instaladP ..pela 1
filosofia clássica na posição de fundam'<Pto, isto é, .de ~ ilt-
sar o sujeito de uma função constit1:ttiva· par.a ümà FQ$IÇã('{ i&ns-
9
tituída". A análise da dificuldade inte;na.' :à .,:9 htaide Aftliu,sser
1
a respeito dessa questão do sujeito pas~av~; :asi im,,.'pdq(:,~ ime
\
dos seus pontos de encontro, mas tamb~_in de,s/.4',<l.if efgtdas,
com a concepção lacaniana. Quisemos,_riessa pe~sp~ctif ~;Jtp.ôr \

em relevo a singularidade, · bem, como o caráter .enigrnáti,ço_de


uma teoria da ideologia que é simultaneamente uma teoí:i;i d,;t
constituição do sujei_to. O caráter inaç~bado de tal téotiá;:.,} ia
perspectiva específica aberta por Althusser, é provav'elmetit~;in-
dissociável das tensões inerentes à sua própria conceituação' do
ser ou do devir sujeito. Mas esse inacabamento rião .í~vátida 0
seu projeto, e pode, pelo contrário, incitar, comó te~tem~ajiain
8
º. numerosos trabalhos recentes, o prosseguimento dá reflexão
em torno da problemática da "interpelação em sujeito"•

- datada de 28 de outubro de 1966 a Trozs. Notes sur f.a ·Thtoríe


8 L· Alth usser, Intro d uçao, ·
des
9 Discours, em Écrits sur la. Psychanalyse, p. 117. ' . . .
É., Balibar, "I.:Objet d'Althusser", em Sylvain Lazarus (org.) , Politique et Phiwsophte
dans l CEuvre de Louis Althusser, p. 98 .

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