A Natureza Heterogênea Do Discurso

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A natureza heterognea do discurso

por Gloria Elizabeth Saldivar

- 10/05/2004

Introduo

Devido complexa natureza de seu objeto terico e particular formao do seu quadro epistemolgico cujos fundamentos esto relacionados com a Lingstica, o Materialismo Histrico e a Psicanlise a Anlise do Discurso francesa (AD) uma disciplina de natureza aberta, em permanente interlocuo com as outras cincias humanas, pois explorando as contradies presentes nos seus discursos que a AD reconfigura seu estatuto terico e seus procedimentos de anlise. Coerentes com essa orientao, nosso projeto As interfaces da Anlise do Discurso no quadro das cincias humanas busca mapear os quadros tericos das reas vizinhas para discernir as suas especificidades com relao AD. Nesse sentido, as primeiras indagaes foram direcionadas para a Psicanlise e para a Educao, resultando em interessantes percursos atravs da noo de sujeito. Dando seqncia a nossos estudos, decidimos examinar as possibilidades de estabelecer uma interface com a Teoria Literria. Assim, depois de algumas incurses tericas, a via de acesso escolhida relaciona dois conceitos que foram afetados pelas reflexes tericas de Mikhail Bakhtin: a heterogeneidade discursiva da AD e a intertextualidade de uma das correntes da Teoria Literria. Em primeiro lugar, faremos breves referncias s proposies de Bakhtin, pois a sua presena foi importante para empreender este trabalho. Na seqncia, apresentaremos as etapas que consideramos mais significativas na elaborao do conceito de heterogeneidade discursiva para, em seguida, fazer o mesmo com relao intertextualidade. Finalmente, analisaremos um poema com o propsito de exemplificar o funcionamento da heterogeneidade no discurso literrio. O dialogismo e a polifonia de Bakhtin Conforme Bakhtin, um enunciado, ao ser isolado do seu processo de enunciao e transformado numa abstrao lingstica, perde o que tem de essencial, a sua natureza dialgica, pois a realidade fundamental da linguagem o dialogismo. Este conceito tem como base o movimento de dupla constituio entre a linguagem e o fenmeno da interao socioverbal, isto , a linguagem se instaura a partir do processo de interao e este, por sua vez, s se constri na linguagem e atravs dela. Porm, o dialogismo no se reduz s relaes entre os sujeitos nos processos discursivos; pelo contrrio, se refere tambm ao permanente dilogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade. esta dupla dimenso que nos permite considerar o dialogismo como o princpio que determina a natureza interdiscursiva da linguagem. Estreitamente ligada ao dialogismo, outra noo bakhtiniana importante a polifonia, que nos leva a perceber a impossibilidade de contar com as palavras como se fossem signos neutros, transparentes, j que elas so afetadas pelos conflitos histricos e sociais que sofrem os falantes de uma lngua e, por isso, permanecem impregnadas de suas vozes, seus valores, seus desejos. Assim, a polifonia se refere s outras vozes que condicionam o discurso do sujeito. A heterogeneidade do discurso na AD

Em Anlise automtica do discurso (1969) - obra fundadora da disciplina - Michel Pcheux se ocupa da definio de vrios conceitos fundamentais para o quadro terico da AD, porm ainda no desenvolve nenhuma reflexo especfica a respeito da natureza heterognea do discurso. At mesmo nos procedimentos analticos no se concebia a possibilidade de que um discurso relacionado com uma determinada formao discursiva (FD) pudesse estar atravessado por outros discursos, nem sequer em situao de aliana, muito menos em oposio. Em conseqncia, considerava-se o discurso homogneo, identificado plenamente com a ideologia na qual se inscrevia a sua FD. Vrios estudos subseqentes apontam algumas incoerncias na articulao entre discurso, formao discursiva e uma ideologia marcada pela presena de foras contrrias, criando controvrsias a respeito da rigidez dos limites de uma FD e questionando a convico de um espao discursivo homogneo. Todavia, s a partir de Semntica e Discurso (Pcheux, 1975) - uma reviso de certos elementos do quadro terico da AD - que a contradio inscrita na ideologia comea a ser evidenciada na FD, o que provoca a sua reformulao e os primeiros esboos da noo de heterogeneidade do discurso. Pcheux prossegue com essas reflexes em Remontmonos de Foucault a Spinoza (1977), no qual comprova que no interior de uma FD coexistem discursos provenientes de outras formaes discursivas, cujas relaes nem sempre so pacficas. Ele conclui, ento, que o discurso no constitui um bloco homogneo, idntico a si mesmo, pois reproduz a diviso e a contradio presentes na FD da qual procede. Desta maneira, a formao discursiva passa a ser caracterizada pela heterogeneidade, o que determina, conseqentemente, a natureza heterognea do discurso. Esse processo de reviso de conceitos foi empreendido tendo sempre em vista a categoria da contradio, que se entende como a impossibilidade de falar, simplesmente, numa ideologia dominante em contraposio a uma ideologia dominada. Isto se explica porque a diviso est presente na mesma ideologia dominante, devido luta de classes como contradio histrica que determina seu funcionamento. Em outras palavras, a contradio est inscrita na ideologia porque ela inerente a toda formao social. E sendo a ideologia um elemento que constitui o discurso e condiciona os processos de significao, a categoria da contradio tambm se inscreve na prtica discursiva. Por isso, considerando que a base dos processos discursivos a linguagem, pois ela mediao entre o sujeito e o seu entorno, podemos concluir que um espao social caracterizado pela permanente disputa de foras antagnicas deixa, irremediavelmente, marcas tanto na linguagem quanto no sujeito. Nesse sentido, a AD concebe a linguagem como um lugar de conflito e opacidade que, com a conjuno da histria, constitui, por sua vez, um sujeito descentrado, dividido, incompleto. E esse sujeito cindido que se desloca para alm dos limites da sua FD na busca de completude e afirmao da sua identidade, assim como nos mostra Courtine em Analyse du discours politique (1981). Nesta obra, alm de dar novos contornos noo de FD que passa a ser compreendida como "matriz de sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, tambm, o que no pode e no deve ser dito" ele demonstra que so as fronteiras fundamentalmente instveis das FD que permitem seus constantes deslocamentos e reconfiguraes. Desta forma, Courtine torna evidente o processo que determina a natureza heterognea do discurso. Contudo, Authier-Revuz, Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso (1982), que confere noo de heterogeneidade discursiva uma maior definio, tendo como base a problemtica do discurso como produto do interdiscurso, a teoria do sujeito construda pela psicanlise e o dialogismo e a polifonia de Mikhail Bakhtin. Segundo a autora, o princpio da heterogeneidade parte da idia de que a prpria linguagem heterognea na sua constituio; e, como a materialidade do discurso de natureza lingstica, lgico consider-lo tambm heterogneo. Porm, falar em linguagem heterognea se reduz,

praticamente, ao reconhecimento das outras vozes que marcam as palavras, conforme a polifonia de Bakhtin. Na AD, no entanto, a heterogeneidade se relaciona com o interdiscurso, o exterior constitutivo que d condies para a construo de qualquer discurso, num processo de reelaborao ininterrupta que comporta toda a historicidade inscrita tanto na linguagem quanto nos processos discursivos. Para verificar o funcionamento da noo na prtica analtica, Authier distingue duas formas de heterogeneidade: constitutiva e mostrada. A primeira no se apresenta na organizao linear do discurso, visto que a alteridade no revelada, permanece no interdiscurso e, por isso mesmo, no passvel de ser analisada. A segunda traz marcas da presena do outro na cadeia discursiva, ou seja, a alteridade se manifesta ao longo do discurso e pode ser recuperada de maneira explcita atravs da anlise. A heterogeneidade mostrada pode ser ainda marcada e no-marcada. Quando for marcada, da ordem da enunciao, visvel na materialidade lngstica, como, por exemplo, o discurso direto, as palavras entre aspas. Se for no-marcada, ento, da ordem do discurso, sem visibilidade, como o discurso indireto livre e a ironia. Com a noo de heterogeneidade discursiva, a AD no s abandona a idia de um discurso homogneo como tambm desestabiliza os conceitos de unidade do sujeito e unidade do texto dos estudos tradicionais da linguagem. Como o sujeito e o discurso j so heterogneos na sua constituio, a iluso de unidade tanto no sujeito quanto no texto no passam de efeitos ideolgicos. H outros interessantes trabalhos que propem novos enfoques para a noo de heterogeneidade discursiva, pois ela constitui um campo instigante e propcio para constantes retomadas. Mas, neste trabalho, optamos por concluir com os estudos de Authier-Revuz - nos quais constatamos a presena de Bakhtin na AD - como via de acesso para fazer a travessia das fronteiras da literatura e explorar a heterogeneidade do seu discurso. A heterogeneidade do discurso na Teoria Literria A organizao e sistematizao das diferentes correntes que investigam o fenmeno literrio nas primeiras dcadas do sculo XX, empreendida por Wellek e Warren (Teoria da Literatura, 1948), representa, alm do nascimento oficial da disciplina, a revelao de duas tendncias importantes nos estudos literrios. Por um lado, a busca de autonomia na definio de mtodos e conceitos capazes de dar conta do carter especfico da produo literria e de dotar as anlises de objetividade e rigor cientficos. Por outro, a nfase no estudo da organizao do texto literrio na sua imanncia, levando em conta sua coerncia interna e no mais os referentes fora do texto. A segunda tendncia tem relao com a lingstica, cujo forte advento nas cincias humanas e sociais atingiu tambm os estudos literrios, que no conseguiram resistir sua irradiao terica, ainda mais considerando que a especificidade do literrio tem a ver com a linguagem. Nesse sentido, so as correntes formalistas as que levam at s ltimas conseqncias a anlise estrutural da linguagem aplicada literatura. Esta centra-se na considerao dos fatos de linguagem observveis no texto e, em geral, despreza a dimenso socio-histrica da produo literria. Em conseqncia, a idia de homogeneidade que subjaz aos conceitos de texto e sujeito da lingstica estrutural se reflete tambm nos estudos literrios. Procura-se, at certo ponto, vislumbrar na estrutura da obra certos procedimentos homogneos de composio, bem como marcas de um nico sujeito-autor concebido como o criador. J quando se trata de verificar as fontes de um determinado texto, costuma-se analisar a influncia predominante de um autor na obra do outro, ou seja, no se leva em conta ainda a multiplicidade de fontes, nem se trabalha com a idia de constituio heterognea da obra literria. o que pode ser constatado, por exemplo, na obra de Harold Bloom, A angstia da influncia (1973), na qual ele se refere a uma relao basicamente bilateral e cheia de conflitos entre poetas fortes.

Essas tendncias comeam a ser revisadas a partir da teoria da intertextualidade de Julia Kristeva (1969), instaurada com base no dialogismo e na polifonia de Mikhail Bakhtin. Um de seus princpios o de considerar a obra literria como uma estrutura em aberto, o que permite estudar com maior profundidade as complexas relaes que se estabelecem entre os textos e rever algumas concepes como a da homogeneidade vinculada ao texto e ao autor. Na nossa compreenso - visto que a literatura constitui um discurso e, por isso, passvel de tornar-se objeto de estudo da AD - a teoria da intertextualidade marca o inicio da desconstruo da idia de um discurso literrio homogneo. Representa o reconhecimento da heterogeneidade como condio essencial da produo literria, pois como afirma Kristeva "...todo texto se constri como mosaico de citaes, todo texto absoro e transformao de um outro texto". possvel estabelecer pontos de aproximao entre a intertextualidade e a heterogeneidade discursiva, pois ambas as noes apresentam algumas semelhanas que podem ser evidenciadas ao parafrasear Kristeva e transformar seu enunciado em "todo discurso se constri como mosaico de outros discursos, todo discurso absoro e transformao de outros discursos". Reconhecemos, entretanto, que devido s especificidades do discurso literrio h vrias divergncias entre essas noes. Uma delas refere-se, por exemplo, ao fato de que nos estudos literrios se explicita a presena de outras vozes numa obra no em termos discursivos, mas sim em termos intertextuais, relativos, somente, ao campo especfico da literatura; ou seja, nas anlises predomina o interesse por observar a presena de outros textos literrios e no a a presena de outros discursos, como na AD. Outro aspecto que diferencia o enfoque da heterogeneidade nos estudos literrios o ncleo das discusses na seqncia teoria da intertextualidade, pois enquanto a AD trabalha com os nveis explcitos e implcitos da presena da alteridade num discurso, entre os estudiosos da literatura ainda no h um consenso a respeito da identificao da intertextualidade com relaes explcitas ou implcitas. Barthes, por exemplo, refora o pensamento de Kristeva ao afirmar: "todo texto um intertexto; outros textos esto presentes nele (...) o intertexto um campo geral de frmulas annimas, cuja origem raramente localizvel, de citaes inconscientes ou automticas feitas sem aspas." Esta assero nos permite concluir que ele concebe a intertextualidade, preponderantemente, como relaes implcitas, no marcadas no texto. Outros estudiosos, entretanto, no aceitam que a intertextualidade seja compreendida como um fenmeno imanente, difcil de ser identificado. Eles defendem que o intertexto deve referirse a traos explcitos da presena de outra obra, e no a um amplo processo gentico. Para Laurent Jenny, por exemplo, "...a intertextualidade designa no uma soma confusa e misteriosa de influncias, mas o trabalho de transformao e assimilao de vrios textos operado por um texto centralizador, que detm o comando do sentido". Assim, para Jenny, a intertextualidade est mais relacionada com as relaes explcitas entre os textos, que, segundo ele, formam uma rede intertextual em contnua expanso. Como a heterogeneidade discursiva na AD, a intertextualidade tambm uma noo produtiva, pois, a partir dela decorreram outros estudos importantes no campo terico da literatura. Porm, aqui delimitamos seu percurso levando em conta que nosso propsito no esgotar todas as referncias sobre o tema, e sim apresentar as que consideramos pertinentes para esta interface. Anlise Tendo em vista toda a reflexo anterior sobre a noo de heterogeneidade discursiva, pensamos que a anlise de um texto literrio sob a perspectiva da AD seria o caminho adequado para verificar a natureza heterognea do discurso literrio. Com este objetivo, escolhemos o seguinte poema de Carlos Drummond de Andrade:

Europa, Frana e Bahia Meus olhos brasileiros sonhando exotismos. Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo. Os cais bolorentos de livros judeus e a gua suja do Sena escorrendo sabedoria. O pulo da Mancha num segundo. Meus olhos espiam olhos inglses vigilantes nas docas. Tarifas bancos fbricas trust crash. Milhes de dorsos agachados em colnias longnquas formam um tapete ...para Sua Graciosa Majestade Britnica pisar. E a lua de Londres como um remorso. Submarinos inteis retalham mares vencidos. O navio alemo cauteloso exporta dolicocfalos arruinados. Hamburgo, embigo do mundo. Homens de cabea rachada cismam em rachar a cabea dos outros dentro de alguns anos A Itlia explora conscienciosamente vulces apagados, vulces que nunca estiveram acesos a no ser na cabea de Mussolini. E a Suia cndida se oferece numa coleo de postais de altitudes altssimas. Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa. No h mais Turquia. O impossvel dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar. Mas a Rssia tem as cores da vida. A Rssia vermelha e branca. Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no tmulo de Lenin ...em Moscou parece que um corao enorme est batendo, batendo mas no bate igual ao da gente... Chega ! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos, Minha boca procura a "Cano do Exlio". Como era mesmo a "Cano do Exlio" ? Eu to esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabi ! (Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edies Pindorama, 1930) Este texto chamou a nossa ateno, principalmente, pela sua densidade semntica, que percebida na sua prpria constituio, uma vez que o sujeito-autor organiza seu discurso conjugando saberes das mais diversas procedncias como, por exemplo, elementos de dimenso espacial e temporal. Por ser um poema, podemos identificar o espao a partir do qual o sujeito constri seu dizer como formao discursiva literria. Assim, partindo da FD literria, o sujeito-autor recorre ao interdiscurso e se apropria dos saberes de outras FD para complementar e reforar o seu discurso. Contudo, observamos que duas se destacam ao longo do processo discursivo. Elas formam, de maneira mais evidente, uma rede de sentidos atravs da mobilizao de termos e enunciados identificados com os seus domnios, s quais denominaremos FD capitalista e FD comunista. Todo o texto parece estar construdo de forma a comparar os discursos historicamente antagnicos do capitalismo e do comunismo, estabelecendo-se entre eles uma constante tenso. o que acontece quando o sujeito do discurso menciona e critica pases que adotam e defendem o sistema econmico capitalista como, por exemplo, Frana, Inglaterra, Alemanha e

Itlia; em contraposio Rssia, que representa o comunismo, e sobre a qual no h observaes incisivas. Em "Tarifas bancos fbricas trust crash" o sujeito-autor retoma, atravs de designaes-chave, algumas prticas essenciais do capitalismo como a taxao alfandegria de produtos externos, a acumulao de capitais, a automao industrial para reduzir custos e otimizar a produo, a supresso da concorrncia e a especulao dos mercados. Neste ponto a tenso parece visvel, por um lado, pela saturao que provoca na memria a retomada dessas prticas atravs do efeito de aliterao causado pela materialidade lingstica. Por outro lado, o termo "crash" tambm mobiliza a memria discursiva para transportar-nos a 1929, ano da quebra da bolsa de Nova Iorque, um evento que desestabilizou no s a economia como tambm a poltica mundial. Todavia, a tenso se torna flagrante na maneira pela qual o sujeito do discurso articula o enunciado em questo, dispondo os termos num crescendo como se fossem etapas de um processo cujo desenlace a "quebra", a "falncia" do sistema econmico capitalista. Alm desse enunciado que consideramos o mais representativo da FD capitalista, possvel associar mesma FD alguns termos que o sujeito vai incorporando ao seu discurso na medida em que descreve os pases capitalistas. o caso de "cais", "docas", "navios" que, relacionados s reiteradas imagens do mar, nos indicam a constante necessidade de expanso do capitalismo, o que significa no s o seu fortalecimento como, principalmente, a sua sobrevivncia. Conquistar novos domnios alm-mar, estabelecer "colnias longnquas" e criar mercados de consumo para os quais "exporta" os excedentes da produo industrial. Temos, ainda, "Majestade" e "Mussolini" representando duas formas de governo que se apoiam no capitalismo, a monarquia e o fascismo. Vejamos agora, em oposio ao capitalismo, quais so as principais seqncias discursivas que tecem as tramas do discurso comunista. Comeamos com "Milhes de dorsos agachados em colnias longnquas formam um tapete para Sua Graciosa Majestade Britnica pisar" que nos remete explorao do homem pelo capital. Ora, sabemos que foram os comunistas, inspirados em Marx, os primeiros a denunciar essa situao e a referir-se dessa maneira ao que os capitalistas denominam, simplesmente, "livre iniciativa privada". Temos tambm "Mas a Rssia tem as cores da vida", "A Rssia vermelha e branca", "Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista e no tmulo de Lenin em Moscou parece que um corao enorme est batendo, batendo" estes enunciados se referem, respectivamente, identificao do governo comunista com as cores da bandeira russa, revoluo do proletariado e ao desejo de expandir o iderio comunista pelo mundo. Embora no tenhamos enunciados nos quais identificar, de maneira explcita, a postura do sujeito do discurso com relao ao comunismo, no temos dvida de que ele se posiciona contra o capitalismo e para tal se apoia nos saberes da FD comunista. Acreditamos que a partir da organizao do discurso possvel descrever o trajeto interdiscursivo do sujeito, desde a FD literria para as FD capitalista e comunista, entre outras, at retornar sua FD de origem. Este retorno est representado pela citao de um texto j consagrado pela tradio literria, a "Cano do Exlio", de Gonalves Dias. Contudo, a riqueza do poema nos permite ainda traar uma interessante comparao entre esse percurso e um outro que denominaremos "intergeogrfico". Este se inicia com referncias ao Brasil,"Meus olhos brasileiros sonhando exotismos", para logo atravessar o oceano e prosseguir pela Frana, a Inglaterra, a Alemanha... at chegar Rssia. Mas, com a seqncia "Meus olhos brasileiros se fecham saudosos" fica marcado o trmino desse roteiro e a volta para a prpria terra. Assim, encontramos uma semelhana entre o percurso interdiscursivo e o intergeogrfico, ou seja, percebemos dois caminhos paralelos que se entrecruzam indicando o deslocamento do sujeito do seu espao de origem para outros espaos e o seu regresso. exatamente esse processo que permite a configurao heterognea da formao discursiva, como o demonstrou Courtine, pois o sujeito dividido, incompleto que, na busca de identidade, provoca os deslocamentos da sua FD em contato com outras formaes discursivas. Em ltima instncia, o sujeito que intervm, de maneira decisiva, para tornar movedias as fronteiras das FD no desejo de sustentar seu dizer e constituir-se sujeito-autor do seu discurso.

As formaes discursivas identificadas no poema de Drummond e comentadas nesta anlise foram suficientes para apontar a natureza heterognea do discurso literrio. No entanto, preciso ressaltar que outras FD esto presentes no fio desse discurso alm da capitalista e da comunista, o que comprova mais uma vez a sua forte heterogeneidade. Consideraes finais Como os objetos tericos da Anlise do Discurso e da Teoria Literria compartilham a mesma materialidade lingstica como bases de seus procedimentos analticos, foi bastante significativo o desenvolvimento deste trabalho ao cotejar as noes de heterogeneidade discursiva e de intertextualide, pois identificamos mais divergncias marcantes do que afinidades interessantes entre as duas disciplinas. Com relao a Bakhtin, por exemplo, comprovamos que a sua importncia foi maior na Teoria Literria, pois seus estudos originaram a intertextualidade. No entanto, na AD, esses mesmos estudos so considerados j num estgio de finalizao da noo de heterogeneidade discursiva, o que pode explicar a menor representatividade do terico russo na Anlise do Discurso. Entretanto, uma das principais diferenas entre as noes estudadas o seu funcionamento na prtica analtica, o que se deve maneira distinta de relacionar o discurso com a exterioridade, ou seja, com os outros discursos que condicionaram a sua configurao. Na AD, alm de ser um elemento constitutivo, a exterioridade considerada com base na relao entre formaes discursivas no espao do interdiscurso, e no limitando-se somente a textos de uma nica formao discursiva como ocorre na Teoria Literria. Considerando que a AD no trabalha em termos quantitativos e sim realizando recortes, depois dos resultados deste trabalho, pensamos que ela pode constituir-se numa outra forma de aproximao do literrio, num outro olhar sobre a literatura, pois investigar e tornar explcitos os outros discursos presentes no texto literrio, e no apenas aqueles relacionados com a literatura, um desafio cujos resultados permitiro uma maior exposio do leitor opacidade do texto

Bibliografia ANGENOT, Marc et al. (org.). Teoria Literria. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1995. (Nova Enciclopdia). AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. DRUMMOND, Carlos de Andrade. Alguma Poesia. Belo Horizonte: Edies Pindorama, 1930. JENNY, L. A estratgia da forma. Potique, 27: 257-281, 1986 NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. So Paulo: Edusp, 1997. PCHEUX, Michel. Semntica e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1995 PCHEUX, Michel. Remontmonos de Spinoza a Foucault. In: TOLEDO, M. Monforte (Org.). El discurso poltico. Mxico: Nueva Imag

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