Uma Idéia Fundamental Da Fenomenologia de Husserl SARTRE
Uma Idéia Fundamental Da Fenomenologia de Husserl SARTRE
Uma Idéia Fundamental Da Fenomenologia de Husserl SARTRE
Jean-Paul Sartre[1]
Ele comia-a com os olhos. Esta frase e muitos outros sinais indicam suficiente a
iluso comum ao realismo, segundo a qual conhecer comer. A filosofia francesa, aps cem
anos de academismo, ainda est nisso. Todos ns lemos Brunschvicg, Lalande e Meyerson,
todos acreditamos que o Esprito-Aranha atraa as coisas para a teia, cobria-as com uma
baba branca e as deglutia lentamente, reduzia-as sua prpria substncia. O que uma
mesa, uma rocha, uma casa? Um certo conjunto de contedos da conscincia, uma ordem
destes contedos. Oh filosofia alimentar! Contudo, nada parecia mais evidente: no a
mesa o contedo atual da minha percepo, no ela o estado presente da minha
conscincia? Nutrio, assimilao. Assimilao dizia Lalande das coisas pelas idias,
das idias entre elas e dos espritos entre si. As rijas arestas do mundo eram rodas por essas
distases diligentes: assimilao, unificao, identificao. Entre ns, os mais simples e os
mais rudes procuravam em vo algo slido, algo, enfim, que no fosse o esprito; por toda a
parte, encontravam apenas uma nvoa branca e muito ilustre: eles prprios.
Contra a filosofia digestiva do empiriocriticismo, do neokantismo, contra todo o
psicologismo, Husserl no se cansa de afirmar que no se pode dissolver as coisas na
conscincia. Vem esta rvore, seja. Mas esto a v-la no prprio lugar em que est: beira
do caminho, no meio do p, s e retorcida pelo calor, a vinte lguas da costa mediterrnea.
No poderia entrar na vossa conscincia, porque no da mesma natureza que ela. Julgareis
reconhecer aqui Brgson e o primeiro captulo de Matire et Mmoire. Mas Husserl no
realista: essa rvore colocada num pedao de terra gretada no constitui um absoluto que
entraria mais tarde em comunicao conosco. A conscincia e o mundo surgem
simultaneamente: exterior por essncia, o mundo por essncia relativo a ela. que
Husserl considera a conscincia um fato irredutvel que nenhuma imagem fsica pode
representar. Exceto, talvez, a imagem rpida e obscura do estouro[2]. Conhecer estourar
para, arrancar-se da mida intimidade gstrica para prosseguir, por ai fora, para alm de si,
pra o que se no , por ai fora, perto da rvore e todavia fora dela, pois escapa-se e repeleme e eu no posso perder-me nela mais do que ela diluir-se em mim: fora dela, fora de
mim. No reconhecereis por acaso nesta descrio as vossas exigncias e pressentimentos?
Sabeis muito bem que a rvore no era vs mesmos, que no podeis faz-la entrar nos
vossos estmagos obscuros e que o conhecimento no podia, sem desonestidade, compararse com a posse. Ao mesmo tempo, a conscincia purificou-se, clara como a ventania, j
nada h nela, exceto um movimento para fugir, um deslizamento fora de si. Se por milagre
entrsseis em uma conscincia, sereis arrastados por um turbilho e lanados fora, perto
da rvore, em plena poeira, pois a conscincia no tem interior; simplesmente o exterior
dela prpria, e essa fuga absoluta e essa recusa a ser substncia que a constituem como
conscincia. Imaginai agora uma srie ligada de estalidos que nos arrancam a ns
prprios, que no deixam sequer a um ns mesmos o tempo necessrio para se formar
atrs deles, mas que nos lanam, pelo contrrio, para alm deles, na poeira seca do mundo,
na terra rude, entre as coisas; imaginai que somos expulsos dessa maneira, abandonados
pela nossa prpria natureza num mundo indiferente, hostil e teimoso; tereis compreendido o
sentido profundo da descoberta que Husserl exprime nesta frase famosa: Toda a
conscincia conscincia de qualquer coisa. Pouco faltar para pr cobro a essa mole
filosofia da imanncia, em que tudo se faz mediante uma norma qumica celular. A filosofia
da transcendncia pe-nos no grande caminho, no meio de ameaas, sob uma luz
ofuscante. Ser diz Heidegger ser-no-mundo. Compreenda-se este ser em no sentido
de movimento. Se a conscincia tenta recuperar-se, se tenta coincidir enfim com ela
prpria, a quente, com as janelas fechadas, aniquila-se. A esta necessidade, que tem a
conscincia de existir como conscincia diferente dela, chama Husserl intencionalidade.
Falei primeiro do conhecimento para me fazer compreender melhor: a filosofia
francesa, que nos formou, j quase no conhece mais nada alm da epistemologia. Mas,
para Husserl e os fenomenlogos, a conscincia que adquirimos das coisas no se limita ao
seu conhecimento. O conhecimento ou pura representao apenas uma das formas
possveis da minha conscincia de esta rvore; posso tambm gostar dela, rece-la, odila, e esse exceder-se da conscincia por ela prpria, a que se chama intencionalidade,
torna a encontrar-se no receio, no dio, no amor. Odiar outrem ainda uma maneira de
estourar para ele, encontrar-se de sbito em frente dum desconhecido de que se v e se
sente primeiramente a qualidade objetiva e odivel. A est como, de repente, essas
famosas reaes subjetivas, dio, amor, receio, simpatia, que flutuavam na salmoura
malcheirosa do Esprito, se separam dele: so apenas maneira de descobrir o mundo. As
coisas que se revelam a ns imediatamente como odientas, simpticas, horrveis, ou
amveis. Ser terrvel uma propriedade duma mscara japonesa: uma propriedade
inesgotvel, irredutvel, que constitui a sua prpria natureza e no a soma das nossas
reaes subjetivas a um pedao de madeira esculpida. Husserl reinstalou o horror e o
encanto nas coisas. Restitui-nos o mundo dos artistas e dos profetas: espantoso, hostil,
perigoso, com ancoradouros de amor e de graa. Preparou o terreno para um novo tratado
das paixes que se inspiraria nessa verdade to simples e to profundamente desconhecida
pelos nossos requintados: se amamos uma mulher, porque ela amvel. Eis-nos libertos
de Proust! Libertos como Amiel, como uma criana a quem se beija o ombro, as carcias, os
carinhos da nossa intimidade, porque no fim de contas, tudo est fora, tudo, at ns
prprios: fora, no mundo, entre os outros. No em nenhum refgio que nos
descobriremos: na rua, na cidade, no meio da multido, coisa entre as coisas, homem
entre os homens.
Janeiro de 1939.
[1] SARTRE, Jean-Paul. Situaes I. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1968.
[2] No original, clatement. (N. do T.)