Carvalho, Luciana Carrion

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

METANOIA: HISTÓRIAS DE VIDA, FORMAÇÃO


CONTINUADA E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA EM UMA
ESCOLA DO CAMPO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Luciana Carrion Carvalho

Santa Maria, RS, Brasil


2015
METANOIA: HISTÓRIAS DE VIDA, FORMAÇÃO
CONTINUADA E VIOLÊNCIA SIMBÓLICA EM UMA ESCOLA
DO CAMPO

Luciana Carrion Carvalho

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-


Graduação em Educação. Linha de Pesquisa LP 1: Formação, Saberes
e Desenvolvimento Profissional, da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Helenise Sangoi Antunes

Santa Maria, RS, Brasil


2015
© 2015
Todos os direitos autorais reservados a Luciana Carrion Carvalho. A reprodução de
partes ou do todo deste trabalho só poderá ser feita mediante a citação da fonte.
E-mail: [email protected]
Dedico esta escrita àqueles que são de
suma importância em minha vida – Deus,
Cezar, Guilherme e Pedro. Vocês me
inspiram a cada amanhecer a desejar ser
uma pessoa melhor. Amo-os!!!
AGRADECIMENTOS

A Deus, pelos dons da vida, da esperança, do milagre, do amor.

Ao Cezar, meu esposo, amigo, namorado e companheiro... pelo incentivo, apoio e


compreensão para que eu pudesse chegar aqui.

Ao Guilherme, meu primogênito, que, nesses 25 anos, ensinou-me o significado de amor, de


renúncia e de perdão. Um líder nato com perfil apaziguador e protetor.

Ao Pedro, que veio completar a família e que, com seu jeitinho meigo e simpático, vem
conquistando seu espaço de forma muito tranquila.

Aos meus grandes amigos, irmãos e filhos (dependendo do contexto), Crhis e Samuel, que
conquistaram um espaço de destaque em nossos corações.

Aos meus pais, irmãos e irmã, cunhados, cunhada, concunhada, sobrinho, sobrinhas, sogro,
sogra... todos(as) que, de alguma forma, contribuíram para a minha formação e
transformação.

A minha querida orientadora, Profª. Drª. Helenise Sangoi Antunes, que é uma referência em
liderança, gestão, orientação, mãe, esposa, filha, irmã e que se tornou uma grande amiga!
Obrigada pelo carinho, apoio, incentivo. Levar-te-ei para sempre em meu coração.

Aos Pastores(as) da IBNSM, pelo ensino da Palavra de Deus, o amor e o cuidado que têm
por mim e minha família, em especial ao Pastor (Apóstolo) Levi, à Pastora Cristiane, ao
Pastor Edisson e à Pastora Marelisa. Amo-os.

Ao GEPFICA, pela oportunidade em me constituir pesquisadora.

Ao Grupo Dialogus, em especial ao prof. Celso Henz, que me acolheu com muito afeto,
ensinando-me mais de Paulo Freire; às novas amizades, que espero levar para toda a vida,
em especial: Larissa, Renato, Nisiael e Samuel.

À CAPES/CNPq, pelo financiamento da pesquisa.

Em especial, às coautoras da pesquisa, Terezinha e Neuza. Sem vocês, eu não teria essa
riqueza de informações. Muito obrigada! Que Deus as abençoe!

À Banca Examinadora, pela disponibilidade em contribuir em minha formação e escrita.

Ao PPGE/UFSM, pela disponibilidade em auxiliar em tudo o que precisei em todas as


etapas.
Essa perspectiva de trabalho, centrada na abordagem biográfica, configura-se como
investigação porque se vincula à produção de conhecimentos experienciais dos
sujeitos adultos em formação. Por outro lado, é formação porque parte do princípio
de que o sujeito toma consciência de si e de suas aprendizagens experienciais
quando vive, simultaneamente, os papéis de ator e investigador da sua própria
história. (SOUZA, 2006, p. 139).

A lógica da formação, como negociatória e transacional, é aquela que valoriza e não


cerceia a interpretação dada pelo narrador sobre suas experiências. Toda a arte de
mediação hermenêutica consiste na negociação do sentido sobre as experiências
formadoras. As mudanças que efetivamente vão se operar na práxis, construirão um
saber, que permanecerá provisório, inconcluso. A noção de inacabamento tão cara a
Paulo Freire, nos ajuda a compreender a riqueza heurística e formativa da
permanente reinterpretação de si e das experiências. (PASSEGGI, 2006, p. 213-
214).
RESUMO

Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal de Santa Maria

METANOIA: HISTÓRIAS DE VIDA, FORMAÇÃO CONTINUADA E


VIOLÊNCIA SIMBÓLICA EM UMA ESCOLA DO CAMPO
AUTORA: LUCIANA CARRION CARVALHO
ORIENTADORA: PROFª. DRª. HELENISE SANGOI ANTUNES
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 13 de agosto de 2015.

Este trabalho apresenta os resultados de pesquisa do Mestrado em Educação


vinculada à Linha de pesquisa-LP1 “Formação, Saberes e Desenvolvimento
Profissional” do PPGE/UFSM. Tal pesquisa versa sobre a metodologia de histórias
de vida e narrativas (auto)biográficas como dispositivos de formação continuada aos
docentes da Educação do Campo. Dessa forma, tem por objetivo refletir acerca da
formação continuada de professores, visando ao não apagamento de suas
características devido à instituição do modelo urbanocêntrico nas Escolas Rurais,
em um contexto neoliberal capitalista. Elencamos a história de vida das trajetórias
pessoal e profissional dos docentes, a fim de compreender tal fenômeno e com a
disposição de criar mecanismos por meio da formação continuada, visando
promover espaços de reflexão crítica do corpo docente, repensando conceitos até
aqui pensados e/ou vividos. Como amparo teórico, utilizamos estudos de Abrahão
(2006), Antunes (2011, 2012), Bolzan (2009), Bourdieu (2011), Caldart (2012),
Charlot (2000), Dufor (2005), Freire (1987, 1997, 2009), Henz (2014), Imbernón
(2010), Isaia (2009), Josso (2006), Júnior (2008), Martins (2008), Medonça (2008),
Nóvoa (2009), Passeggi, Abrahão e Delory-Momberger (2012), Rocha e Martins
(2011), Souza (2006, 2012), Souza e Meireles (2014), entre outros. A pesquisa
encontrou como resultados os seguintes pontos: a) a existência de violência
simbólica nas Escolas do Campo através do silenciamento das práticas docentes
camponesas e coletivas; b) a falta de sensibilidade dos educadores e da
comunidade em geral com a questão do campo; c) a possibilidade de superação
desta realidade por meio da metodologia dos Círculos Dialógicos Investigativo-
formativos e das escritas (auto)biográficas, as quais anunciam a superação deste
cenário instituído, pois as mesmas configuram-se em espaço de diálogo e de
fortalecimento da autonomia, esperança e instituição de práticas colaborativas e
coletivas, reconhecendo a escola como força transformadora.

Palavras-chave: História de vida. Educação do campo. Violência simbólica.


Formação continuada de professores.
ABSTRACT

Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal de Santa Maria

TRANSFORMATION: LIFE STORIES, CONTINUING EDUCATION


AND SYMBOLIC VIOLENCE IN A RURAL SCHOOL
AUTORA: LUCIANA CARRION CARVALHO
ORIENTADORA: PROFª. DRª. HELENISE SANGOI ANTUNES
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 13 de agosto de 2015.

This paper presents the search results of Master in Education linked to research
LP1-Line "Training, Knowledge and Professional Development" of PPGE / UFSM.
This research is about the methodology of life stories and narratives (auto)
biographical and continuing training devices to the Rural Education teachers. Thus, it
aims to reflect on the continuing education of teachers, in order to not erase its
characteristics due to the urban center model institution in Rural Schools, in a
capitalist neoliberal context. We listed the life story and professional trajectories of
the teachers, in order to understand this phenomenon and the willingness to create
mechanisms through continuing education, in order to promote critical reflection
spaces faculty, rethinking concepts hitherto thought and / or lived. As theoretical
support, we use studies of Abrahão (2006), Antunes (2011, 2012), Bolzan (2009),
Bourdieu (2011), Caldart (2012), Charlot (2000), Dufor (2005), Freire (1987, 1997,
2009), Henz (2014), Imbernón (2010), Isaia (2009), Josso (2006), Júnior (2008),
Martins (2008), Medonça (2008), Nóvoa (2009), Passeggi, Abrahão e Delory-
Momberger (2012), Rocha e Martins (2011), Souza (2006, 2012), Souza e Meireles
(2014), among others. The research found the following results as points: a) the
existence of symbolic violence in Rural Schools by silencing the practical and
collective rural teachers; b) the lack of sensibility of educators and the community at
large with the matter of the field; c) the possibility of overcoming this reality using the
methodology of the Dialogical Circles Investigative-training and (auto) biographical
write, which announce overcoming this set scenario because the same shape in
dialogue space and strengthening of the autonomy, hope and establishment of
collaborative and collective practices, recognizing the school as a transforming force.

Keywords: Life Stories. Rural Education. Symbolic violence. Continuing Teacher


Training.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Luiz Alberto Bellém Leite e Ana Maria Carrión, meus pais .................... 17
Figura 2 – Luana, Luiz Alberto (Chico), Luciano e eu, meus irmãos e irmã. Ainda
uma foto com meu pai e irmãos nas 7 Quedas de Foz de Iguaçu em
1982 ....................................................................................................... 18
Figura 3 – Jardim da Infância na Escola João Belém ............................................. 19
Figura 4 – Nascimento do primogênito: Guilherme ................................................. 20
Figura 5 – Meu casamento: meu filho e minha sobrinha Patrícia foram meus aios 22
Figura 6 – Meus filhos Guilherme e Pedro .............................................................. 23
Figura 7 – Formatura: Colação de grau................................................................... 23
Figura 8 – Guilherme no 6º Reg. de Cavalaria Blindado/6º RCB –
Alegrete/RS/2014 ................................................................................... 25
Figura 9 – Pedro e Guilherme em 2015 .................................................................. 25
Figura 10 – Foto atualizada da minha família ............................................................ 26
Figura 11 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro” ................................................... 31
Figura 12 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro” ................................................... 31
Figura 13 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro” ................................................... 31
Figura 14 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro” ................................................... 32
Figura 15 – Fotos dos alunos e professores referentes à viagem de estudos .......... 32
Figura 16 – Fotos dos alunos e professores referentes à viagem de estudos .......... 33
Figura 17 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola ...................................... 33
Figura 18 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola ...................................... 33
Figura 19 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola ...................................... 34
Figura 20 – Fotos do muro finalizado ........................................................................ 34
Figura 21 – Fotos do muro finalizado ........................................................................ 34
Figura 22 – GEPFICA/PPGE/UFSM – V Seminário de Formação de Professores:
O protagonismo das Instituições de Ensino Superior no Ensino,
Pesquisa e Extensão .............................................................................. 38
Figura 23 – GEPFICA/PPGE/UFSM – V Seminário de Formação de Professores:
O protagonismo das Instituições de Ensino Superior no Ensino,
Pesquisa e Extensão.............................................................................. 39
Figura 24 – Representação gráfica da Metanoia ....................................................... 42
Figura 25 – Momentos da pesquisa .......................................................................... 48
Figura 26 – Pesquisadora e coautoras: pesquisadora Luciana ao centro,
professora Neuza à esquerda e professora Terezinha à direita ............. 49
Figura 27 – Tópicos Guias ........................................................................................ 51
Figura 28 – Movimentos metodológicos dos Círculos Dialógicos Investigativos-
Formativos.............................................................................................. 52
Figura 29– Relação de conceitos entre violência simbólica, pertenciamento e
silenciamento ......................................................................................... 53
Figura 30– Apresentação dos conceitos de Bourdieu (2011) ................................... 59
Figura 31– Apresentação do conceito de violência simbólica de Bourdieu (2011) ... 61
Figura 32– Esquema Conceitos Bourdieu X Escola ................................................. 61
Figura 33– Espiral “o EU” ......................................................................................... 86
Figura 34– Figura 34: Espiral “o devir” ..................................................................... 86
Figura 35– Ser / Dimensões ..................................................................................... 91
Figura 36– Espiral como Metanoia ........................................................................... 94
LISTA DE ANEXOS

Anexo A – Entrevista Narrativa via Tópicos Guias ................................................ 105


Anexo B – Termo de Cedência de Uso 1............................................................... 106
Anexo B – Termo de Cedência de Uso 2............................................................... 107
Anexo C – Termo De Consentimento Livre e Esclarecido 1 .................................. 108
Anexo C – Termo De Consentimento Livre e Esclarecido 2 .................................. 110
Anexo D – Autorização Institucional ...................................................................... 112
Anexo E – Termo de Confidencialidade................................................................. 113
Anexo F – Carta de Aprovação ............................................................................. 114
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 13
1 COMPARTILHANDO MINHAS VIVÊNCIAS ................................................ 15
1.1 Revisitar minhas memórias... ressignificar minha existência ................ 15
1.2 A história de vida oportunizou emergir a questão de pesquisa por
meio da revisitação das memórias de minha trajetória profissional ..... 27
1.3 E agora??? METANOIA!! ........................................................................... 40
2 CAMINHO METODOLÓGICO: Materialidade da Possibilidade ............... 44
2.1 Para a pesquisa tornar-se realidade, alguns percursos escolhidos ...... 46
2.2 No caminhar do percurso, eis o cenário da pesquisa e seus sujeitos .. 48
2.2.1 Cenário ......................................................................................................... 48
2.2.2 Colaboradoras... quem são elas? ................................................................. 49
3 A HISTÓRIA DE VIDA E AS NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
COMO DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DA ESCOLA DO CAMPO ................................................ 55
3.1 Em tempos de Violência Simbólica?Como? Onde? Quando? ............... 56
3.2 Formação Continuada de Professores para a Escola do Campo: ......... 67
3.3 História de Vida e narrativas (auto)biográficas como dispositivo de
formação docente:...................................................................................... 80
3.4 Analisar para entender, ou entender para analisar?? ............................. 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS?... JAMAIS!!! ................................................. 96
REFERÊNCIAS .......................................................................................... 100
ANEXOS .................................................................................................... 104
INTRODUÇÃO

O projeto biográfico de formação é, ao mesmo tempo, busca e obra: busca no


sentido de uma abertura do ser para consigo mesmo e para com o seu ambiente
humano e cultural; e obra no sentido em que se criam diversas formas (de discursos,
textos, comportamentos, relações, encontros, atividades mais ou menos regulares,
imagens, etc.). (JOSSO, 2006, p. 31-32).

Esta dissertação em Educação está vinculada à Linha de Pesquisa 1


“Formação, Saberes e Desenvolvimento Profissional” do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria - PPGE/UFSM.
O estudo versa sobre a violência simbólica entre os docentes da Educação do
Campo e sua relação com a formação continuada de professores. Busca refletir
acerca da formação continuada de professores nessa modalidade de educação,
visando ao não apagamento de suas características devido à instituição do modelo
urbanocêntrico nas Escolas Rurais.
A investigação foi desenvolvida por meio da metodologia História de Vida,
ancorada na perspectiva das narrativas (auto)biográficas e Círculos Dialógicos
Investigativo-formativos como dispositivos de formação continuada aos docentes da
Educação do Campo. Dessa forma, tem por objetivo investigar sobre a possibilidade
da formação continuada para a superação da violência simbólica entre os docentes
da Escola do Campo a partir da História de Vida.
Elencamos a História de Vida e narrativas (auto)biográficas das trajetórias
pessoal e profissional dos docentes para identificar se há ou não o sentimento de
pertença desses educadores com a comunidade do entorno, a fim de compreender
tal fenômeno e com a disposição de criar mecanismos para a superação da violência
simbólica por meio de formações continuadas, buscando promover espaços de
reflexão crítica para o corpo docente, repensando conceitos e percepções até aqui
pensadas e/ou vividas.
Tal reflexão parte do desenvolvimento da pesquisa, a qual apresenta como
foco investigar sobre a violência gerada/sofrida entre os docentes da escola.
Violência esta entendida, por suas múltiplas formas, como abuso intencional de
força e poder, desde a material, física, simbólica, entre outras. Como amparo teórico,
14

utilizamos estudos de Abrahão (2006), Antônio (2008), Antunes (2011, 2012), Bolzan
(2009), Bourdieu (2011), Caldart (2012), Charlot (2000), Costa (2010), Dufor (2005),
Eyng (2010), Freire (1987, 1997, 2009), Henz (2014), Imbernón (2010), Isaia (2009),
Josso (2006), Júnior (2008), Martins (2008), Medonça (2008), Nóvoa (2009),
Passeggi, Abrahão e Delory-Momberger (2012), Rocha e Martins (2011), Souza
(2006, 2012), Souza e Meireles (2014), entre outros. Os textos citados serviram
como referência no estudo sobre Escola do Campo, Formação Continuada de
Professores, Violência Simbólica e História de Vida.
O primeiro capítulo do trabalho é constituído de minha história de vida,
compartilhando minhas vivências, no qual revisitei minhas memórias. Apresento os
motivos pelos quais escolhi pesquisar na área de formação de professores e na
temática da violência simbólica entre os docentes da Escola do Campo. Por meio da
rememoração de alguns fatos de minha trajetória de vida pessoal e profissional,
tentei justificar o porquê do interesse nessa investigação e como cheguei ao final.
O segundo capítulo desse trabalho apresenta o caminho metodológico, a
materialidade da possibilidade percorrida nessa investigação.
O terceiro capítulo aborda a violência simbólica a partir de Bourdieu e sua
relação com a escola, seguida pela formação continuada de professores para a
Escola do Campo, e ainda, História de Vida e narrativas (auto)biográficas como
dispositivo de formação docente. No decorrer do capítulo, optamos por inserir as
análises das dimensões encontradas na investigação, por entendermos ser esta a
melhor opção para a compreensão do trabalho. Ao término do terceiro capítulo,
analisamos também os movimentos elencados para os Círculos Dialógicos
Investigativo-formativos descritos no capítulo da metodologia e como se deu seu
delineamento.
Por fim, o último capítulo do trabalho destaca as considerações finais da
pesquisa, abordando as questões que permearam a formação continuada para a
superação da violência simbólica entre os docentes da Escola do Campo como foco
reflexivo desta última parte do trabalho. Ainda, apresentamos as contribuições dessa
pesquisa para a Linha de Pesquisa 1 (LP1) - “Formação, Saberes e
Desenvolvimento Profissional” do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Santa Maria - PPGE/UFSM e, também, para a Educação
como um todo, enquanto modalidade educativa.
1 COMPARTILHANDO MINHAS VIVÊNCIAS

[...] precisei falar do falado, do dito e do não dito, do ouvido, do escutado. Falar do
dito não é apenas re-dizer o dito, mas reviver o vivido que gerou o dizer que agora,
no tempo do redizer, de novo se diz. Redizer, falar do dito, por isso envolve ouvir
novamente o dito pelo outro sobre ou por causa do nosso dizer.
(FREIRE, 2009, p. 17).

1.1 Revisitar minhas memórias... ressignificar minha existência

Inicio este capítulo apresentando minhas memórias, minha história, de onde


vim, minhas vivências e experiências, para, assim, compreender um pouquinho mais
de mim. Quando criança, lembro-me de que era muito arteira. Subir em árvores,
escalar telhado, voar com carrinho de lomba, jogar bolitas e correr de bicicleta eram
minhas brincadeiras preferidas. Também brinquei de boneca, de casinha e
panelinhas, mas a prioridade era estar na companhia de meus irmãos e seus
amigos, brincando de polícia e ladrão com correria de montão. Tinha uma
imaginação fértil. Com facilidade, desligava-me da realidade e criava possibilidades
mil. Regularmente, à tardinha, brincava de cabeleireira com meu pai, quando ele
retornava da Base Aérea. Eram momentos preciosos e deliciosos. Que paciência ele
tinha comigo, pois, nem bem deitava no sofá, e eu aparecia com um monte de
objetos como se fosse um instituto de beleza. E na casa de meus avós? Que delícia!
Meu avô paterno era um gênio. Seguidamente, apresentava uma nova invenção.
Entrar em seu laboratório era a glória! Tantas coisas... Meu avô materno era
historiador. Quantos livros! Quantas histórias! Incrível e indescritível é olhar o
passado e contemplar a vida, esta que não se constrói de forma linear e estanque,
mas das várias fases vividas, com muito movimento, enquanto novos ciclos vão se
iniciando, outros vão se encerrando, e esta é a magia: movimento, desafios,
transformação; ou: desafios, movimento, transformação. Não importa a ordem dos
fatos, mas sim, sua direção: VIDA!
Por esse motivo, a escolha da metodologia para o desenvolvimento desta
pesquisa é a História de Vida, pois esta se dá por enfatizar seus processos
16

subjetivos e suas identidades (ATAÍDE, 2006, p. 318). Para o desenvolvimento deste


estudo, foi necessário mergulhar na literatura referente à história de vida e às
narrativas (auto)biográficas com objetivo de apropriação desse saber. Inscrevi-me
na disciplina de Seminário Temático/Avançado LP1: Histórias de Vida na Formação
de Professores no Ensino Rural, na qual nos foi lançado um desafio reflexivo:
quando ocorre a reinvenção de si? Quando me reinventei? Essas questões já
vinham me acompanhando em meu percurso há muitos anos (décadas), mas,
quando me vi diante do desafio de registrar minhas memórias como capítulo da
dissertação, confesso que resisti à ideia enquanto foi possível, pois meu sentimento,
naquele momento, entendeu que relatar meu passado (meu testemunho) de forma
oral diferencia-se muito do registro escrito. O oral pode ser efêmero, passageiro,
esquece-se; mas as memórias escritas passam a ser eternizadas na história. Assim,
com esse sentimento, iniciei “minha viagem oficial” para registro público, com
algumas resistências internas, em um novo desafio, muito “barulho”, muito
movimento, que resultaram em auto(trans)formação!
Por esse motivo, elenquei a citação de Freire (2009) para iniciar o trabalho,
devido à sensibilidade no uso das palavras juntamente com sua prática de vida, com
testemunho público registrado, e, assim, senti-me convidada a falar do vivido;
(re)falar do vivido; reviver o falado; redizer o revivido.
A seguir, convido-os a conhecer um pouco de minha autoformação por meio
de alguns fatos marcantes de significados, agora ressignificados:
Nasci em 28 de março de 1973. Sou filha de médico das forças armadas
(Aeronáutica) e de professora (de artes plásticas) do Ensino Médio. Meu pai ainda
vive, está com 71 anos. Já minha mãe faleceu em fevereiro do ano passado, entre
os dias sete e oito. No dia nove, completaria 70 anos. Não sabemos o dia exato,
pois ela estava só em Santa Maria/RS. Infelizmente, foi diagnosticada, tardiamente,
sua bipolaridade, o que dificultou a adesão ao tratamento, assim como sua
continuidade. Consequentemente, privando-a de uma melhor qualidade de vida
social e familiar. Embora meu pai more em Manaus/MA desde 1990, permanece o
legítimo gaúcho, totalmente enraizado na cultura do Sul. Não abre mão da tradição,
das bombachas e do bom chimarrão, conforme registro abaixo, que ilustra bem o
que estou descrevendo. A foto da minha mãe é bem antiga como se pode perceber,
pois data do momento de sua formatura no curso de Belas Artes na UFSM.
17

Selecionei-a porque gosto de alimentar essa lembrança, de quando ela era


professora, entusiasta com a profissão, muito alegre e muito divertida.

Figura 1 – Luiz Alberto Bellém Leite e Ana Maria Carrión, meus pais
Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho.

Em minha trajetória pessoal, guardo memórias de fatos agradáveis e outros


nem tanto, mas todos importantes para a minha formação. Apresento uma boa
lembrança abaixo, os meus amigos: conto com uma irmã, a primogênita, e mais dois
irmãos (estes são os filhos do primeiro casamento do meu pai). Como filha caçula,
cresci ora de forma mimada e ora de forma autônoma em minhas experiências.
18

Figura 2 – Luana, Luiz Alberto (Chico), Luciano e eu com meus irmãos e irmã. Ainda
uma foto com meu pai nas 7 Quedas de Foz de Iguaçu
Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho.

Ingressei na Escola João Belém aos seis anos, cursando a Educação Infantil.
Lembro-me dos momentos da compra de materiais, de uniforme, de avental e de
materiais pedagógicos. Esses eventos aumentavam ainda mais minha euforia, pois
não foi fácil esperar tanto tempo para, enfim, acompanhar meus irmãos e irmã na ida
à escola. A caixa de sapato forrada com papel contact, recheada com meus
pertences que ficariam na Escola, rouba-me sorrisos até hoje. Fui muito bem
recebida pela professora e pelos colegas. Era uma criança muito tímida até me
sentir segura nos locais e, após superar o impacto inicial do novo, interagi muito bem
(e até demais) com os colegas. Tentei lembrar-me de como fui alfabetizada, porém
não tenho a menor ideia de como se deu esse processo, uma vez que minha mãe
era do tipo “superprotetora”. Se estava muito frio, ou chovendo, ou qualquer coisa,
não era necessário ir à aula. Recordo-me de que, quando aparecia na Escola,
sentava com os colegas, enturmava-me e fazia o que tinha que ser feito. Numa
manhã, em especial, senti-me a verdadeira “astronauta”, já que cheguei atrasada na
aula, como de costume, e a turma estava “lendo” o alfabeto exposto na parede.
Fiquei admirada e pensativa: o que estava acontecendo? Como eles sabiam aquilo?
Ai que terror! Não tinha como me inserir naquele contexto. O que fazer? Sentei,
19

observei, e depois? Não sei, não sei como me alfabetizei, isso ainda é um enigma.
Até essas situações me roubam sorrisos, sou um caso raro! Ou não?
Rememorando meu passado, percebo que, desde a infância, tive identificação
com a profissão docente. Lembro-me de que era comum meus pais envolverem-me
em suas profissões. Meu pai levava-me com frequência na Aeronáutica, inclusive
em seus plantões. Minha mãe, da mesma forma, levava-me à Escola Maria Rocha,
onde era professora de artes e coordenava o audiovisual. Como eu amava aquele
ambiente! Era conhecida de todos, passava em todos os setores, conversava da
Direção à Cozinha. Era perita em mimeógrafo, que cheirinho delicioso que se
espalhava no ambiente após o contato da folha com o álcool e a matriz. Grampear
provas era comigo. Até escrever versos para campanha de direção eu escrevi, aliás
era muito boa em criar versos e rimas.

Figura 3 – Jardim da Infância na Escola João Belém


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (1979).

Com a separação dos meus pais, aos dez anos, eu tinha a Escola como
referência, um ponto de encontro com as amigas e os amigos. Nesse período,
estudava na Escola Edson Figueiredo, pertinho de minha casa, para onde me
deslocava a pé, pois já tinha idade suficiente para tal responsabilidade e, por isso,
20

não faltava mais às aulas. Algumas professoras e professores eram como da família,
acolhiam os alunos no turno inverso na quadra de esportes. Por vários motivos, esta
Escola possui um lugar especial em meu interior até os dias de hoje, pois me
retratou um espaço de sentir-se bem, permanecendo em minhas lembranças como
um ambiente de afeto. Freire (1997b, p. 160) compartilha da premissa de que “A
afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade”, que bom que alguns
educadores desta escola pensavam da mesma forma que Freire (op. cit).
Aos dezesseis anos, engravidei e com dezessete inaugurei a maternidade.
Entre fraldas e cadernos, fui cuidando do meu bebê. Conforme o Guilherme ia
crescendo, ia vendo a mãe estudar. Aos três anos, solicitava-me veemente: “eu
quero matemática, me dá matemática?” Eu não sabia o que ele queria, na verdade,
ninguém sabia. Até que um dia estava ajudando nos temas de matemática de um
menino, filho de uma amiga da minha mãe, e o Guilherme apontou para o estojo e
para o caderno do menino e disse: “matemática; me dá?”. Foi muito engraçado e, ao
mesmo tempo, um alívio, pois, até que enfim, descobrimos o que era matemática
para o Gui.

Figura 4 – Nascimento do primogênito: Guilherme


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (1990).
21

Meu primeiro vestibular foi para Fonoaudiologia, por influência da minha irmã.
Não passei. No meu segundo vestibular, optei por Educação Especial – habilitação
para deficiência da audiocomunicação. Passei muito bem, com uma pontuação que
poderia ser aprovada em qualquer curso, menos Medicina e Direito. Lembro-me de
ter ficado surpresa com o meu desempenho. A divulgação da lista de classificados
na rádio foi anunciada às dez horas de uma manhã do mês de fevereiro em 1994.
Estava na casa da sogra (morava com ela), fiquei muito feliz ao ouvir meu nome
anunciado na rádio local. Em seguida, o Cezar, que, na época, era meu “namorido”,
e que estava trabalhando e escutando a mesma rádio, ligou parabenizando-me,
muito feliz com a minha aprovação. Depois, veio a ligação da minha mãe, não muito
empolgada com a minha escolha, mas me parabenizando igualmente. Minha irmã,
fonoaudióloga, já estabelecida em Porto Alegre/RS, ligou-me quase dando os
pêsames. Meu pai já estava residindo em Manaus/AM (com sua esposa e duas
filhas do segundo casamento) e, da mesma forma que minha irmã e mãe, tentou
demover a ideia de tornar-me professora. Nessa época, meu irmão, que é dois anos
mais velho do que eu, já estava diagnosticado com esquizofrenia, o que me
sensibilizou ainda mais para refletir sobre a educação de/para/com o diferente.
Ainda, este período da entrada na universidade culminou com a entrada do
meu filho na Escola. Eu estava com vinte e um anos e ele com quatro. Achava que
estava preparada para o primeiro dia de aula do Gui, pois foram longas conversas,
já que em creches não se adaptou. Para a minha surpresa (ou decepção), fiquei
sentada no corredor por algumas tardes em vão, não solicitou a mãe nem uma vez;
sofri um “certo choque-materno” por não ser lembrada/solicitada pelo filho. Neste
mesmo ano, ainda aconteceu a cerimônia do meu casamento com os aios mais
bonitos da história: o Gui e a Pati.
22

Figura 5 – Meu casamento: meu filho e minha sobrinha Patrícia foram meus aios
Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (1994).

Minha segunda gestação foi aos vinte e três anos, durante a graduação, pois
não queria uma diferença longa de idade entre os filhos. Temia esperar o término do
curso e não ter mais ânimo para uma segunda gravidez, uma vez que o Gui estaria
“grande”, o que poderia inviabilizar uma amizade e companheirismo entre os manos.
Que desafio foi essa escolha! Administrar fraldas, mamadas, sopas entre cadernos,
livros, trabalhos e provas. Confesso que foi desesperador em alguns momentos.
Embora eu não recomende seguir meus passos, não me arrependo de minhas
escolhas, porque, com boa vontade, sacrifício e união, é possível vencer qualquer
obstáculo. Como é maravilhoso tê-los como filhos, acompanhar a cumplicidade dos
dois, o cuidado um com o outro, o amor fraterno, prático e real.
23

Figura 6 – Meus filhos Guilherme e Pedro


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (1997).

No ano de 1998, tornei-me sócia-fundadora do Centro de Desenvolvimento


Infantil Despertar, do qual participei entre os 25 e 37 anos, sendo que, nesse
período de doze anos, o Centro cresceu para Escola de Ensino Fundamental e,
ainda, aconteceu a mudança na sociedade em 2002.
Em 1999, no início do ano, ocorreu minha formatura. Minha colação de grau
aconteceu no Hotel Itaimbé. Enfim, Educadora Especial!

Figura 7 – Formatura: Colação de grau


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (março de 1999).
24

No ano de 2000, aos vinte e sete anos, passei no concurso para professora
da Rede Estadual, na qual ainda atuo, fazendo parte do quadro de professores da
Escola Estadual de Educação Especial Dr. Reinaldo Fernando Cóser.
Entre os anos de 2000 e 2012, foram muitas as histórias, sendo difícil
selecionar alguma para este momento. Então, passarei para os anos de 2013 e
2014. Esses, com certeza, marcaram minha vida para sempre, pois aconteceram
alguns episódios muito fortes nesse período. O primeiro episódio foi o da tragédia da
boate Kiss, à qual, com a graça de Deus, meu filho sobreviveu! Totalmente ileso no
físico, mas marcado nas lembranças. Eu já estava me preparando para concorrer a
uma vaga no mestrado, com muitas leituras já realizadas e com o esboço do projeto.
Foi muito duro e difícil tentar me concentrar na meta e não afundar no luto, com o
pensamento fixo na pior tristeza que nos poderia ter acometido: a dor dos pais que
não tiveram o mesmo privilégio que nós. A cada tosse do Gui, o pânico de ele vir a
adoecer. As noites em que não conseguia dormir se não estava com ele, a
preocupação que ele fosse desenvolver depressão, as muitas e muitas noites em
claro, vendo a impossibilidade dele de conseguir dormir. Sem dúvida, uma tragédia
que impossibilita quantificar os prejuízos emocionais. Com certeza, a fé em Deus e a
busca pela aprovação no mestrado ajudaram-me a manter a saúde mental
necessária que o momento impunha.
Após aprovada para o curso, acontece o segundo episódio. Em novembro
desse mesmo ano, meu irmão com esquizofrenia desapareceu. Em surto, resolveu ir
para Livramento/RS sem avisar, mas, com a benção de Deus, foi possível encontrá-
lo e reiniciarmos o seu tratamento. O terceiro episódio foi em fevereiro do ano
passado, com a morte súbita de minha mãe e a longa procura de uma clínica
especializada para tratar meu irmão.
O quarto episódio foi diferente dos demais, pois tem perspectiva de futuro,
conquista e vida. No mês de abril de 2014, o meu primogênito ingressou na ESA –
Escola de Sargentos e, com esta aprovação, foi necessária sua ida para
Alegrete/RS; um grande e penoso desafio: trabalhar o sentimento de ninho vazio.
Este com certeza também é um gigantesco desafio.
25

Figura 8 – Guilherme, 6º Reg. de Cavalaria Blindado/6º RCB – Alegrete/RS/2014


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2014).

Abaixo, registro recente dos meus meninos.

O tenista, “vestibulando”, e motorista: PEDRO!!! E o aviador: GUILHERME!!!

Figura 9 – Pedro e Guilherme em 2015


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2015).
26

Até aqui, fiz um pequeno resumo dos fatos ocorridos em minha vida pessoal,
sendo que existem muitos outros - engraçados, deliciosos e felizes. Entretanto,
selecionei estes por serem muito marcantes e por ser necessário maior engajamento
das boas lembranças em busca de ressignificar aquelas que não o foram. Minha
gratidão eterna a Deus por me possibilitar vivências tão diversas em minha trajetória
e por permanecer lado a lado comigo e, ainda, presentear-me com uma família
especial, que eu amo muito. Então, não poderia deixar de registrar mais um ciclo
que estava por iniciar em nossas vidas. Por esse motivo, optamos por eternizar este
momento através de um ensaio em um estúdio fotográfico, do qual compartilho,
aqui, uma das fotos em que estou com as pessoas que fazem meus dias valerem à
pena!

Figura 10 – Foto atualizada da minha família


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2014).

Essas são algumas das situações na vida pessoal, com vivências profundas e
desafiantes na família, que me levaram a pesquisar sobre violência simbólica. Em
seguida, retorno ao tema em outra perspectiva: a profissional. Isaia (2009, p. 97),
referente à trajetória pessoal, enfatiza:
27

Com relação à trajetória pessoal, essas idades correspondem às fases do


ciclo vital pelas quais cada pessoa passa, de acordo com determinados
parâmetros de tempo, espaço e estilo de vida. Em vista disso, ela é
concebida como o cenário no qual a vida dos professores adquire
consistência e significado existencial.

1.2 A história de vida oportunizou emergir a questão de pesquisa por meio da


revisitação das memórias de minha trajetória profissional

Com efeito, hoje a vida e suas diferentes formas são cindidas pelo esfacelamento,
quase generalizado, das fronteiras entre vida pessoal e vida profissional, vida
privada e vida pública, vida social e vida familiar e mesmo vida e morte, vida
passada e vida futura (PINEAU, 2006, p. 42).

Já em relação ao tema do estudo, este surgiu por meio de reflexões sobre


minha trajetória profissional na Educação. Meu percurso acadêmico, concomitante a
minha vivência profissional, oportunizou-me vislumbrar possibilidades antes não
pensadas na educação como, por exemplo, questões relacionadas à formação
continuada de professores que atuam na Educação do Campo. Para justificar meu
interesse por este tema, compartilho um pouco de minha trajetória profissional.
Em 1998, tornei-me Diretora, sócia-fundadora, de uma Escola Inclusiva e lá
atuei por 12 anos, experiência que me proporcionou crescer como pessoa, mãe e
profissional. Em 2000, ingressei no serviço público por meio de concurso e tornei-me
professora estadual em uma Escola de Educação Especial. Essa foi uma
experiência ímpar em minha vida também, pois foi necessário apreender uma nova
cultura, uma língua, compreender as diversas identidades, nova metodologia, novas
relações. Por uma década, dividi-me entre essas duas realidades tão diversas:
atuando como Diretora numa escola particular inclusiva e, em outra escola, pública e
de Educação Especial, atuando como professora regente.
Essas diferentes realidades oportunizaram-me refletir sobre os conflitos que
ocorrem dentro das instituições educacionais, principalmente nas relações de poder
entre os professores. Vivenciei momentos de violência simbólica nas mais diversas
situações em ambas as escolas e optei em não as registrar no projeto de
qualificação e, assim, na dissertação, pois temi que isso fosse interpretado como
28

exposição das instituições. Em minha qualificação do projeto, uma professora


integrante da banca interrogou sobre essas vivências e solicitou que tais situações
fossem contempladas no trabalho com o intuito de enriquecê-lo. Então, após muito
refletir sobre a solicitação, percebi que é possível conversar sobre as situações que
ocorrem no interior das escolas sem dar um tom de denúncia, pois, como
profissionais da educação, entendemos, ou talvez tenhamos que entender, que,
onde há pessoas reunidas, há uma grande probabilidade de haver problemas e que
existem pessoas-problemas. Conclui-se, assim, que não podemos declarar a Escola
como o próprio problema. Então, nessa lógica, entendo que o que compartilharei
abaixo não é, de forma alguma, uma exposição, uma queixa, uma denúncia
institucional, mas uma busca para entender tais processos e, consequentemente, a
busca para a superação de tais violências entre o corpo docente por meio de
formações continuadas.
Em maio do ano de 2000, entrei em efetivo exercício no magistério público
estadual por meio de concurso público de provas e títulos. A vaga destinada era
para preenchimento de Educadora Especial na recém inaugurada Escola Estadual
de Educação Especial Dr Reinaldo Fernando Cóser. Em razão do atraso na
autorização de funcionamento desta, foi necessária uma remoção temporária para a
Escola Cícero Barreto. Lembro-me que a Direção não queria receber as cinco novas
Educadoras Especiais, porque seu quadro docente encontrava-se completo. Eu fui a
primeira a entrar em exercício, presenciei o telefonema da Diretora com a 8ª CRE,
ali sentada com meu fono1 em mãos e a Diretora sendo convencida por telefone a
nos receber. Fui designada a assessorar a coordenadora pedagógica da educação
infantil e anos iniciais do turno da tarde. O “assessorar” significava passar de sala
em sala com o livro ponto para as professoras assinarem e buscar, na cozinha, o
cafezinho para o intervalo. Isso iniciou no mês de maio, estava com 27 anos, cheia
de motivação para o trabalho, como poderia aguentar isso até dezembro? Óbvio que
não aguentei e comecei a participar como auxiliar nas aulas de informática e no
laboratório, substituir professoras que necessitavam faltar por alguma razão,
acompanhar os recreios, a pracinha da educação infantil; enfim, queria participar.
Numa bela tarde ensolarada de inverno, fui até a Direção propor um projeto de
leitura que eu poderia assumir semanalmente. A reação não foi nada legal, pois fui

1
Documento de apresentação do servidor público Estadual à instituição a ser lotado/designado.
29

“colocada” em meu lugar da seguinte forma: “você precisa entender que está aqui
temporariamente, faça apenas o que te é designado”. Tentei argumentar: “não acho
justo contribuir tão pouco, uma vez que sou concursada para exercer o magistério e
não meramente servir cafezinho... posso contribuir com mais”. A resposta foi forte:
“bem-vinda ao serviço público, bem-vinda ao Estado, faça somente o que já
combinamos”. O tom usado na voz era um tanto sarcástico. Levantei com os olhos
encharcados e desci para o prédio onde teria que ficar até o término do turno, tentei,
mas não consegui disfarçar minha decepção e logo fui questionada pelos colegas.
Naquele momento, senti tanta vergonha da situação que não tive coragem de relatar
o ocorrido e faltei com a verdade, falei que estava preocupada com algumas
situações familiares, pois, para mim, era inconcebível tal atitude por parte de uma
gestora. Fui para casa em estado de choque, só compartilhei com a coordenadora
pedagógica porque já havíamos desenvolvido empatia uma pela outra e
confidenciei-lhe o fato, uma vez que ela estava “responsável” por mim naquele
momento. Ela, de forma muito carinhosa e sensível, tentou me consolar dizendo: “eu
te avisei que iria perder tempo tentando fazer algo, não esquenta, me ajuda aqui
com as professoras e nas reuniões, o final do ano está logo ali, aí tu vai para a tua
escola e tudo ficará bem”. Foi o que fiz, silenciada. Diz Redin (2010, p. 371) sobre o
Silêncio2: “Proibir o homem de dizer a sua palavra é proibi-lo de se transformar,
censurar o homem a dizer a sua palavra é escravizá-lo nas grades da cultura do
silêncio”. Exatamente como aconteceu, permaneci apenas executando o que me
pediam... Redin (2010, p. 371) ainda complementa: “extorquir do homem o direito ao
silêncio significa roubar-lhe o direito de sua identidade, de sua subjetividade, de sua
criatividade, de sua dignidade”. Assim, sempre que possível, dirigia-me para o
laboratório de informática, onde me sentia um pouco mais útil ou menos inútil. Isso
ajudava a passar o tempo mais rápido. Finalmente, chegou o final do ano e minha
escola foi autorizada para o funcionamento. Enfim, assumi meu espaço tão sonhado.
Escola nova, recém autorizada, muito trabalho pela frente. Muitas e muitas
reuniões de estudo para a proposta político-pedagógica (PPP), regimento escolar e
o maior desafio de todos, apropriar-me da Língua de Sinais (LS). Que desafio, a
escola foi pensada para a comunidade surda, então a metodologia utilizada foi o
bilinguismo, isto é, língua de sinais como primeira língua e língua portuguesa escrita

2
Conceito extraído do Dicionário Paulo Freire.
30

como segunda língua. Como escola nova, passamos por vários momentos: da
euforia do novo, da garra em fazer acontecer até as disputas de poder. Várias
relações foram estabelecidas e nenhuma de forma neutra. Embora a escola tenha
sido conquistada por um ideal, não nos poderíamos perder no essencial, como por
exemplo, os ouvintes delegando a educação dos surdos, não poderíamos repetir a
história dos ouvintes oprimindo os surdos. Como fazer para os surdos não nos
verem como concorrentes/inimigos, mas como parceiros para a mudança? Muita
tensão. Disputa de carga horária, disciplinas, turnos (entre os ouvintes)... mas uma
situação em especial me chamou a atenção, foi em relação aos comportamentos
impositivos de algumas educadoras ao quererem determinar como se daria o
processo educacional na escola. Essa coerção deu-se de várias formas: pelo tom de
voz alterada, por palavras grosseiras e, até mesmo, com a exclusão de colegas,
dentre outras formas. Era como se existissem muitos caciques para poucos índios,
comparação estranha, mas era assim que sentia, todo mundo queria interferir e
definir a vida escolar dos colegas, poucas se comportavam como professoras
democráticas; e muitas, como coordenadoras e diretoras opressoras. No ano de
2001, assumi a 3ª série. Que desafio! Nunca havia assumido uma classe, não sabia
Língua de Sinais, então toda noite eu pensava: e agora? O que vou fazer? Por onde
começar? Percebi grandes lacunas na formação inicial, afinal, estava formada para
quê? Em meio a muitas crises, chegamos ao final do nosso 1º ano, foi muito
gratificante, conseguimos!
Nos anos compreendidos entre 2002 e 2006, assumi o laboratório de
aprendizagem e a itinerância, uma experiência fantástica. A Escola passou de
seriada para ciclada, por isso, estudamos muito sobre complexo temático,
reformulamos o PPP, construímos nossa pesquisa socioantropológica, visitamos as
famílias, fizemos muitas reuniões, tivemos muito trabalho. Nos anos de 2007 a 2010,
passei a dar aula no ensino médio normal, formação de professores surdos.
Ministrava várias disciplinas de didática, entre outras, no turno da manhã e noite.
Nos anos de 2011 e 2012, assumi a coordenação do Programa Mais
Educação, foi um trabalho incrível. Em outubro de 2011, apresentamos um lindo
espetáculo no Teatro Municipal 13 de Maio, ensaiado na oficina de teatro do referido
programa.
31

Figura 11 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro”


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2011).

Figura 12 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro”


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2011).

Figura 13 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro”


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2011).
32

Figura 14 – Fotos do Espetáculo “O Grande Livro”


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2011).

A oportunidade de apresentar o espetáculo no Teatro Municipal 13 de Maio foi


de grande significado, lotamos o espaço, tínhamos pessoas nos corredores por falta
de cadeiras. Realmente, foi muito emocionante, ao final da apresentação, ver o
público aplaudindo em pé, demonstrando satisfação com o que presenciara.
Repercutiu muito esta oficina em nosso meio e sociedade.
Em dezembro de 2012, utilizamos a verba específica para viagem de estudos
do Programa Mais Educação. Optamos passear nas cidades de Rio Grande e
Cassino. Iniciamos o dia contemplando o nascer do sol na Praia do Cassino. Em
seguida, fomos presenteados com uma aula prática com a professora de ciências,
Eliane, a qual realizou uma explanação sobre a vida marinha. Depois, o grupo
recebeu orientações referentes ao Museu Oceanográfico "Prof. Eliézer de Carvalho
Rios", em Rio Grande e, por último, visitamos os Molhes da Barra do Cassino,
conforme os registros abaixo:

Figura 15 – Fotos dos alunos e professores referentes à viagem de estudos


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2012).
33

Figura 16 – Fotos dos alunos e professores referentes à viagem de estudos


Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2012).

Ainda em 2012, a Direção liberou toda a extensão do muro da frente da


escola para que os alunos e o monitor da oficina de grafite (profissional formado em
arquitetura e artes plásticas) fizessem o registro do aprendizado decorrido da oficina
desenvolvida durante o ano. Modéstia à parte (pois não peguei em pincel e nem em
spray, apenas coordenei o programa), o resultado ficou lindíssimo!

Figura 17 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola


Fonte: Arquivo de Matheus Moreno dos Santos Camargo (2012).

Figura 18 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola


Fonte: Arquivo de Matheus Moreno dos Santos Camargo (2012).
34

Figura 19 – Fotos dos alunos grafitando o muro da Escola


Fonte: Arquivo de Matheus Moreno dos Santos Camargo (2012).

Figura 20 – Fotos do muro finalizado


Fonte: Arquivo de Matheus Moreno dos Santos Camargo (2012).

Figura 21 – Fotos do muro finalizado


Fonte: Arquivo de Matheus Moreno dos Santos Camargo (2012).

Ambos os trabalhos foram de grande valia aos nossos alunos e familiares. Na


oficina de grafite, cada aluno, monitorado pelo professor, contribuiu com sua arte na
“sua escola”, motivo de grande satisfação. Infelizmente ocorreu algo muito
desagradável durante o processo dessa ação. Uma professora questionou-me quem
havia escrito a palavra “Jesus” no muro, respondi que não sabia, não tinha visto, fui
verificar e, realmente, estava escrito “Jesus” na pontinha do muro, com pouco
destaque, pequeno, quase imperceptível (se teve algo a mais no muro anterior à
verificação, não sei, mas por insistência do monitor, era só o que tinha no momento),
fato que me causou grande desconforto. Fui avisada de forma “forte” que estávamos
35

em um local público, por isso laico. Respondi com uma pergunta: “Tu sabes o que
significa a palavra laico?”. A resposta: “Não podemos trazer religião para dentro da
escola, então terás que apagar esta escrita”. Repliquei: “Laico significa não termos
uma religião oficial no Brasil, o que difere de ser ateu; portanto, não apagarei, pois
isso representa uma agressão à produção de um aluno, da mesma forma que rasgar
uma folha de seu caderno. Caso o Diretor me chame para conversar sobre o
assunto, estou disponível a me dirigir a ele”. Pouco tempo após este evento, ocorreu
a mudança de gestão (vice-direção) e, no dia 02 de janeiro de 2013, fui notificada,
via telefone, que encerraria a convocação e a minha participação na coordenação do
programa. Não foi um choque, uma vez que esperava ser desligada devido à
situação acima relatada, só não esperava ser prioridade na nova gestão a ponto de
ser uma das primeiras ações tomadas após a posse. Não guardo mágoa do
ocorrido, por entender que foi um ano de muitas disputas no campo “religioso” e
ideológico, muitas discussões em nível nacional sobre o Estado Laico, o que
difundiu grande confusão no conceito dessa palavra. Também não me ressenti, por
admirar a coragem e a competência da colega, eu a aprecio por ser uma pessoa de
grande sensibilidade, disponível a ajudar o próximo, estender as mãos aos
necessitados, dentre outras qualidades. Embora ela goste de passar uma imagem
de “durona”, é uma pessoa muito especial. Tenho entendido e relevado por anos as
atitudes de aspereza ao fato de ser cristã, sei que muitas pessoas deixaram a
desejar em muitos quesitos bíblicos, tais como: humildade, solidariedade,
demonstração de amor e afeto ao próximo, entre outros. Mas quem nasce pronto?
Freire (1997b) responde: “ninguém! Estamos diariamente sendo transformados, até
o final de nossas vidas, somos seres inacabados”. Também não posso achar
saudável e aceitar atitudes que discriminem pessoas por suas escolhas religiosas ou
qualquer escolha que seja, uma vez que a constituição garante tal liberdade de
expressão e fé. Da mesma forma, entendo a fala de muitos professores na
Universidade em relação a este tema: religião-Deus, pois sabemos, historicamente,
como se estabeleceu a igreja romana como força controladora e de poder. Entendo,
mas não concordo, pois é comum perceber a generalização da pessoa Deus com a
religião. Conhecer ou participar de uma crença não significa conhecer a Deus.
Conhecer a Deus significa estar além de uma religião! Essa falta de conhecimento
das Escrituras, em meu entender, tem trazido muitos prejuízos na formação humana,
com a quebra de modelos e de referências, tem dessimbolizado a humanidade,
36

como Dufor (2005, p. 198) nos adverte: “o limite absoluto da dessimbolização é


quando mais nada vem assegurar e assumir o encaminhamento dos sujeitos para a
função simbólica encarregada da relação e da busca de sentido”. Nesta lógica
instituída, minimizar o humano a uma matriz genética do macaco não me
desqualifica enquanto ser, mas, ao reconhecer em ser imagem e semelhança de
Deus, passa a ser visto como pejorativo, sendo próprio de pessoas ignorantes. Essa
inversão no valorar as teorias tem silenciado, em meu entender, tanto na formação
inicial (relato de algumas alunas na disciplina em que atuei como docente orientada
em 2014) quanto na formação continuada de professores, nas quais participo.
Após o breve “desabafo” acima, retorno ao ano de 2013. Iniciei o ano com a
volta para as disciplinas de didática para o ensino médio - formação de professores
surdos. Foi muito gratificante, pois estar com os adolescentes e os jovens traz-me
grande satisfação, sinto prazer em estar com este nível de desenvolvimento.
No período entre 2011 e 2012, concomitante à coordenação do Programa
Mais Educação, fiz minha segunda especialização: Gestão Pública e Sociedade –
Ênfase em Economia Solidária (parceria entre UFT e UFRGS). Nesse tempo, tive o
privilégio de conviver com vários profissionais das mais diversas áreas entre as
humanas e as exatas, com enfoque multidisciplinar, o que me despertou o interesse
pela comunidade rural. Nesses doze meses de convivência com os colegas e
professores, foram discutidos e estudados diferentes temas, como o direito à terra,
movimentos sociais, políticas públicas, economia solidária, tecnologias sociais,
educação, entre outros.
Meu retorno a casa (UFSM) aconteceu em abril de 2012 quando passei a
integrar o Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação Inicial, Continuada e
Alfabetização (GEPFICA/CNPq) da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM/RS), no projeto de pesquisa Laboratório de Alfabetização: Repensando a
Formação de Professores e, ainda, integrar o Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa - PNAIC, como monitora.
Por meio desse grupo, tive a oportunidade de aproximar-me de contextos
como das Escolas do Campo. Nas discussões com o grupo, pude perceber
situações muito parecidas com as que já havia experienciado na luta para a criação
e autorização da Escola para Surdos; fiz o paralelo com o reconhecimento de uma
cultura própria, com o sentimento de pertencimento, identidade, os movimentos e as
lutas para a emancipação de uma minoria.
37

Ainda no GEPFICA, percebi uma lacuna importante para a construção do


conhecimento em relação à Escola do Campo, o olhar sobre a violência para além
dos alunos, mas a violência entre os professores, uma vez que já havia detectado tal
situação em minha trajetória profissional.
Finalmente, em 2013, fui contemplada com a vaga no mestrado. Concorri com
um projeto que tinha a pretensão em estudar - as situações de violência simbólica
entre os docentes das Escolas do Campo. Em minha percepção, acredito que
pesquisar esse tema estaria relacionado com a minha escola de origem, mas
percebi que é algo além. As aulas da disciplina Pesquisa em Educação desafiaram-
me para grandes reflexões sobre as reais motivações que me levam a estudar um
tema por dois anos, qual a relevância social, mas, principalmente, a relevância
pessoal que este estudo tem me oportunizado. Também ganhou grande peso a fala
do professor Celso em minha qualificação, quando, com muita delicadeza e
sensibilidade (que é sua marca), trouxe novas provocações, como por exemplo: toda
a pesquisa deve estar imbricada com sua história para ter sentido, pois toda a
pesquisa, na verdade, está em busca de juntar seus pedacinhos, dar sentido, dar
novos significados... Confesso que essas palavras mexeram com o meu interior. Fui
em busca desses pedacinhos para dar novos contornos, ressignificando-os.
Segundo o professor Celso, como Freire, em busca da “auto(trans)formação”! Foi
nesse momento que percebi o quanto me sinto afrontada ao perceber desprezo à
Palavra de Deus e à fé, assim como a generalização de Deus = religião = evangélico
= cristão = retrocesso. Percebi e senti maior violência ainda no período das eleições
de 2014, quando foram incluídas no conjunto de “adjetivos” as palavras
fundamentalista e reacionário. Para Freire (1997a, p. 26, 27):

Quem apenas fala e jamais ouve; [...] quem ouve o eco apenas de suas
próprias palavras, numa espécie de narcisismo oral; [...] não tem realmente
nada que ver com libertação nem democracia. Pelo contrário, quem assim
atua e assim pensa, consciente ou inconscientemente, ajuda a preservação
das estruturas autoritárias.

Freire (1997a) chama a atenção para a diferença entre o ingênuo não


malicioso e o ingênuo astuto ou tático (p. 29, 30): “Neste sentido, estes últimos são
conscientemente reacionários. Por isso é que, neles, a ingenuidade é pura tática”,
tática para a preservação das estruturas autoritárias. Impossível não me sentir
agredida com tais adjetivos simplesmente por ser cristã. O que pude concluir foi
38

exatamente o contrário, aqueles que lutam para abolir a palavra de Deus na


sociedade, são os verdadeiros reacionários...
Após a explanação desse breve “parêntese” referente ao reacionário, dou
continuidade a minha narrativa: em março de 2014, ingressei em mais um grupo, no
Grupo de Estudos Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire,
sob a liderança do Professor Celso Henz, em que tenho aprendido muito sobre
Paulo Freire. Já com meu grupo de origem, o GEPFICA, participei da comissão
organizadora do V Seminário Nacional de Formação de Professores: O
protagonismo das Instituições de Ensino Superior no Ensino, Pesquisa e Extensão,
promovido pelo GEPFICA em parceria com o Centro de Educação (CE/UFSM),
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e Departamento de Metodologia
de Ensino (MEN). Esse evento oportunizou-me novas reflexões em relação à
Formação Continuada de Professores, concomitante aos estudos de Paulo Freire.

Figura 22 – GEPFICA/PPGE/UFSM – V Seminário de Formação de Professores: O


protagonismo das Instituições de Ensino Superior no Ensino, Pesquisa e Extensão
Fonte: Arquivo GEPFICA (2014).
39

Figura 23 – GEPFICA/PPGE/UFSM – V Seminário de Formação de Professores: O


protagonismo das Instituições de Ensino Superior no Ensino, Pesquisa e Extensão
Fonte: Arquivo GEPFICA (2014).

Ainda nesse ano (2014), representando o GEPFICA, integrei o Comitê de


Apoio Técnico e Infraestrutura do VI Encontro Internacional de Investigadores de
Políticas Educativas (NEPI-AUGM), evento ocorrido na UFSM (anfitrião).
Nesse ano de 2015, iniciamos o projeto Cartografias da Educação Básica
Rural: perspectivas educacionais na região central do Rio Grande do Sul3, como
pesquisadora do/no grupo, pesquisa coordenada pela Prof.ª Dr.ª Helenise Sangoi
Antunes, líder do grupo GEPFICA.
No período compreendido desde o início do mestrado até o momento,
participei de seis eventos com apresentação de trabalhos, como autora e coautora;

3
Este projeto de pesquisa possui como objeto de análise e trabalho a realidade da Educação Básica
do Campo por meio das informações coletadas relacionando-as com os Bancos de Dados do MEC,
do INEP, do IBGE, do IDEB, do Censo Escolar para o Estado do Rio Grande do Sul, objetivando
traçar o perfil profissional dos professores do campo e produzir cartografias voltadas para as
comunidades e escolas do campo envolvidas. A metodologia do trabalho possui como opção
metodológica uma abordagem quali-quantitativa permeada pelo método estudo multi-casos, que
permitirá o traçado das perspectivas educacionais da região central do Rio Grande do Sul, com
foco nas Escolas do Campo da Rede Estadual de Ensino pertencentes à 8ª Coordenadoria
Regional de Educação (8ª CRE). Tal estudo é motivado pela implantação, até o final de 2016, do
Regimento Curricular Padrão por Ciclos Formativos para todas as escolas da Rede Estadual de
Educação do RS. Alguns estudos já permitem perceber que tal política atinge de maneira singular
as diferentes instituições e sujeitos envolvidos, tais como escolas, professores, alunos,
coordenadorias regionais, diretores etc.
40

participei em dois ebooks, com um capítulo de livro em um ebook e dois capítulos


em outro; participo, ainda, com dois capítulos de livro, sendo o primeiro organizado
pelo professor Dr. Elizeu Clementino de Souza/UFBA e professora Drª Helenise
Sangoi Antunes/UFSM e o segundo organizado pelo professor Dr Celso
Henz/UFSM. Participei, ainda, na comissão organizadora de três eventos: um
seminário nacional, um fórum nacional e um encontro nacional. Por fim, co-orientei
um TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) da estudante Flavia Bopp Pereira.

1.3 E agora??? METANOIA!!

No decorrer das páginas, fui apresentando um pouco de minhas fases e faces


e percebi que, para tecer um pouco mais do EU, faltou algo que acredito ser o
essencial: que bases optei por me fundamentar?
Em meu percurso (auto)formativo, busquei algumas características em
algumas mulheres que elenquei como referências positivas a espelhar-me: minha
avó materna, a qual via como mãe acolhedora, pacificadora, aglutinadora; dona Luci
(sogra do meu irmão), mulher guerreira, com pouca escolaridade, que veio do meio
rural em busca de garantir estudo para as quatro filhas, formou todas, excelente
dona de casa, administradora e educadora; minha irmã Luana, seis anos mais
“madura” que eu, mulher determinada, focada em atingir seus objetivos; dona
Elaine, minha sogra, que, com sua simplicidade, ensinou-me que conhecimento
acadêmico não é sinônimo de sabedoria. Já na academia formal, também observei
perfis interessantes, tais como: a professora chique e inteligente; a criativa e
carismática; a guerreira e idealista; a sensível e reflexiva. Não posso deixar de
mencionar José, ah José! Não é mulher, nem está inserido no meio acadêmico, mas
tem um diferencial que me conquistou e conquista todos os dias, conhecido como o
grande sonhador de Deus! José teve todas as oportunidades de tornar-se uma
pessoa amargurada, triste, derrotada, mas ele escolheu crer nas promessas de
Deus sobre a sua vida e tornou-se uma personalidade bíblica de grande expressão
até os dias de hoje. Com sabedoria, transformou a miséria em prosperidade e a
opressão em liberdade. Por esse motivo, referi-me à metanoia: para conquistar a si
mesmo, faz-se necessário transformar a mente. Como educadora, identifico-me com
41

o que está escrito em Romanos 12:2 (carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12,
versículo 2): “e não vos conformeis com esse mundo, mas transformai-vos pela
renovação da vossa mente...”, isto é, não devemos entrar na forma do pensamento
opressor, mas devemos buscar nossa auto(trans)formação pela renovação da nossa
mente/pensamento. Então, posso afirmar o quanto as escrituras sagradas são
atualíssimas, mas, para as compreender, faz-se necessário lê-las na companhia do
Autor, este é o diferencial.
Mas, o que é metanoia? Segundo o Dicionário de Português online Michaelis,
a palavra metanoia, de origem grega, significa: “Transformação básica do
pensamento ou caráter”. Bourdieu (2011, p. 49), salienta:

A força do pré-construído está em que, achando-se inscrito ao mesmo


tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as aparências da
evidência, que passa despercebida porque é perfeitamente natural. A
ruptura é, com efeito, uma conversão do olhar e pode-se dizer do ensino da
pesquisa em sociologia que ele deve em primeiro lugar «dar novos olhos»
como dizem por vezes os filósofos iniciáticos. Trata-se de produzir, senão
«um homem novo», pelo menos, «um novo olhar», um olhar sociológico. E
isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia,
uma revolução mental, uma mudança de toda a visão do mundo social
(grifos meus).

Creio que o objetivo de permitir-se refletir criticamente sobre suas trajetórias e


história perpassa a transformação/auto(trans)formação. Da mesma forma,
transcende a capacidade comum comportamental, mas de estruturas mentais: o
pensamento. Nesse sentido, quando aprendemos a falar de si, deixamos de falar do
outro, num tom hostil, pouco amigável, até mesmo desprezível.
E agora? Eu respondo: Metamorfose ou Metanoia!
42

Figura 24 – Representação gráfica da Metanoia


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015)

A História de vida oportunizou-me revisitar o vivido, por meio das narrativas


(auto)biográficas nas quais eu me re-ditei, minha busca pelo Eu e por/com Deus,
(auto)transformei-me!
Enfim, todas as experiências, família, vizinhos, escolarização, amigos,
formação, profissão, igreja EU: ser inconcluso, inacabado, em permanente
transformação. Passeggi (2006, p. 213- 214) contribui com o seguinte excerto:

A lógica da formação, como negociatória e transacional, é aquela que


valoriza e não cerceia a interpretação dada pelo narrador sobre suas
experiências. Toda a arte de mediação hermenêutica consiste na
negociação do sentido sobre as experiências formadoras. As mudanças que
efetivamente vão se operar na práxis, construirão um saber, que
permanecerá provisório, inconcluso. A noção de inacabamento tão cara a
Paulo Freire, nos ajuda a compreender a riqueza heurística e formativa da
permanente reinterpretação de si e das experiências.

Diante desse contexto pessoal, justifico tal pesquisa de mestrado pela


necessidade de viabilizar reflexões e discussões acerca da formação continuada dos
professores que atuam nas Escolas do Campo em relação ao enfrentamento da
violência simbólica exercida/sofrida pelos docentes.
A partir das considerações acima expostas, apresento o objetivo geral da
pesquisa:
43

- Investigar sobre a possibilidade da formação continuada auxiliar para a


superação da violência simbólica entre os docentes da Escola do Campo a partir da
História de Vida.
E os objetivos específicos:
- Identificar se há ou não o sentimento de pertença desses educadores com a
comunidade do entorno;
- Criar mecanismos para a superação da violência simbólica por meio de
formações continuadas.
Acredito que este trabalho poderá contribuir para a formação continuada de
professores das Escolas do Campo que vivenciam a violência simbólica em seu
cotidiano, isso por acreditar que é possível colaborar para uma reflexão crítica de si,
a fim de que se possa promover uma mobilização local para a transformação no
espaço educacional. Dessa forma, trago o seguinte problema de pesquisa: A
formação continuada de professores interfere ou não no enfrentamento à
violência simbólica entre os docentes da Escola do Campo?
2 CAMINHO METODOLÓGICO: Materialidade da Possibilidade

Para o desenvolvimento desta pesquisa, optou-se pela abordagem qualitativa,


que, segundo Haguette (2011, p. 59), é conceituada como a

superioridade do método que fornece uma compreensão profunda de certos


fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto
subjetivo da ação social face à configuração das estruturas sociais, seja a
incapacidade da estatística de dar conta dos fenômenos complexos e dos
fenômenos únicos.

Para a tessitura desta pesquisa, buscamos utilizar uma metodologia que


oportunizasse a compreensão do processo formativo como um todo, possibilitando
um novo olhar, ou “outro olhar” referente à formação de professores da Escola do
Campo, embasado teoricamente, a fim de corresponder aos objetivos do estudo.
Dessa forma, torna-se indispensável uma pesquisa que venha valorar questões não
quantificáveis, e sim, subjetivas e singulares.
A investigação foi desenvolvida por meio da metodologia História de Vida,
ancorada na perspectiva das narrativas (auto)biográficas e Círculos Dialógicos
Investigativo-formativos4. Para Abrahão (2006, p. 154), a metodologia História de
Vida “caracteriza o processo de pesquisa que consiste em “fazer surgir” histórias de
vida em planos de históricos ricos de significado, em que aflorem, inclusive, e muito
especialmente, aspectos de ordem subjetiva”. Para Josso (2006, p. 21), justifica-se
tal metodologia porque

Trabalhar sobre relatos de “história de vida” no campo das ciências


humanas e na interpretação interativa com seus autores é uma revolução
metodológica que constitui um dos signos de emergência de dois novos
paradigmas: o paradigma de um conhecimento fundamentado sobre uma
subjetividade explicitada, ou seja, consciente de si mesma, e o paradigma
de um conhecimento experiencial que valoriza a reflexividade produzida a
partir de vivências singulares.

Nesse “tear” de histórias de vida, entendemos que o uso dessa metodologia


nos oportuniza o diálogo entre o individual e o sociocultural, sendo, assim, possível

4
A metodologia dos Círculos Dialógicos vem sendo desenvolvida pelo Grupo de Estudos Dialogus:
Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire (UFSM), inspirada nos Círculos de Cultura
freireanos em aproximação com a pesquisa-formação.
45

perceber a importância das histórias de vida relacionadas com a dinâmica da


comunidade e seu entorno.
As narrativas (auto)biográficas, conforme Souza e Meireles (2014, p. 71),
“embora estejam relacionadas a uma esfera particular, todas as lembranças estão
circunscritas em um contexto sócio-espacial-temporal”. Isso implica refletirmos que
“ao contar suas histórias, cada professora, revela as experiências vividas, recorda
suas trajetórias e partilha sentidos” (SOUZA E MEIRELES, 2014, p. 71). Nessa
perspectiva, compreendemos que os sujeitos estabelecem as reconstruções de
sentido, pois, ao rememorarem suas vivências, lembranças e percepções, eles
poderão (re)significar os fatos e, assim, possibilitar uma mudança primeiramente
pessoal e, consequentemente, uma transformação local, em que revisitar o passado
poderá oportunizar uma mudança no presente e, certamente, no futuro. Segundo
Abrahão (2006, p. 153), “As narrativas são, pois, elementos que trazem forte
significado pessoal e articulam presente, passado e futuro, instigadas pela
rememoração”. Para Souza (2006, p. 138):

Desta forma, entendo que a abordagem biográfica e a autobiografia das


trajetórias de escolarização e formação, tomadas como narrativas de
formação inscrevem-se nesta abordagem epistemológica e metodológica,
por compreendê-la como processo formativo e autoformativo, através das
experiências dos atores em formação.

Então, as narrativas de formação colaboram com maior compreensão do


processo formativo e (auto)formativo, uma vez que as vivências/experiências dos
atores remetem-nos às suas trajetórias de escolarização e de vida, que poderá
possibilitar novas reflexões de maneira efetiva em suas vivências e práticas no
cotidiano de seu trabalho docente, por meio da formação continuada de professores,
provocando sua auto(trans)formação.
Já os Círculos Dialógicos Investigativo-formativos surgiram com a construção
de uma proposta metodológico-espistemológica política a partir do Grupo de
Estudos Dialogus: Educação, Formação e Humanização com Paulo Freire. Para
Henz (2014, p. 4), essa metodologia

possibilita reconhecer cada homem e cada mulher na sua singularidade.


Sob esse prisma, todos os participantes da pesquisa são reconhecidos
como coautores, muito embora haja um pesquisador líder mediando os
diálogos investigativo-formativos.
46

A perspectiva dos Círculos Dialógicos oportunizou a reflexão crítica a partir do


diálogo entre as coautoras da pesquisa e a pesquisadora sobre as questões
relacionadas às suas vidas: educação, formação, profissão, entre outras.
A aproximação das metodologias escolhidas foi feita por acreditarmos que
isso proporciona e potencializa o diálogo intra e interpessoal dos atores envolvidos,
visto que, como narrativa, o sujeito interpreta sua autoimagem, como se
compreende e como manifesta seu desejo de dar-se a conhecer. Portanto, a
narrativa não se configura em uma “sequenciação” de fatos contados no formato
linear, mas num ensaio de ligá-los no tempo, no espaço, no sentido, no social,
abrindo-se as possibilidades, por meio dos círculos dialógicos, de (re)significação de
suas vidas, pela rememoração de suas histórias.

2.1 Para a pesquisa tornar-se realidade, alguns percursos escolhidos

A busca do campo de estudo foi longa e bastante desafiadora, pois foram


vários contatos com professoras de várias escolas, de diversos municípios desde o
início do mestrado, já que queríamos assegurar o lócus de pesquisa com
antecedência e, assim, organizar-nos para tal empreendimento. Inicialmente, muitas
pessoas se dispuseram a colaborar com a pesquisa, ficando acordado que
enviaríamos a entrevista narrativa via e-mail (as colaboradoras assim solicitaram),
mas, após o envio, não houve retorno das mesmas, o que trouxe bastante
preocupação uma vez que o tempo estava passando. Posteriormente, encontramos
um professor de uma Escola do Campo de outra localidade e firmamos uma longa
conversa sobre o tema da pesquisa e a dificuldade em encontrar colaboradores. A
fala do professor em relação a sua Escola motivou-nos a enfrentar os 250 (duzentos
e cinquenta) quilômetros de distância de Santa Maria, sendo necessário nos
deslocarmos de ônibus intermunicipal, descermos na rodovia e aguardarmos outro
ônibus (municipal), com destino à Escola, que é considerada de difícil acesso.
Próximo à Escola não há hotel, outro desafio, uma vez que seria interessante
permanecer por alguns dias no local para aproximação da realidade, a fim de nos
apropriarmos da “vida no/do campo”. O envolvimento do professor com sua Escola,
os projetos desenvolvidos e outras propostas à vista nos despertaram grande
47

interesse em conhecê-los, pois muitas características da Escola nos atraíram, como


por exemplo: a proposta político-pedagógica ser pensada para a comunidade local
(embora isso seja uma premissa para todas as escolas, temos notícias que muitas a
tem somente como documento obrigatório de praxe, e não de
reflexão/construção/transformação). Outro fator foi o fato de os professores serem
pertencentes àquela região e, também, por ser de difícil acesso, mas principalmente,
por estar localizada no meio rural efetivamente. O professor solicitou a entrevista
narrativa para apresentar em reunião pedagógica e verificar a real possibilidade em
desenvolver nosso estudo naquele local. O retorno da reunião demorou a acontecer,
demorou em torno de três meses. Em outro encontro com o professor, ele
demonstrou constrangimento em nos comunicar a negativa da solicitação. Eu e a
professora Helenise questionamos o motivo pelo qual não foi aceita a proposta,
então, finalmente, a resposta: “por se tratar de violência simbólica exercida/sofrida
entre os docentes, houve preocupação por parte dos colegas e equipe diretiva de vir
aflorar sentimentos e causar um mal-estar entre os colegas. Sinal que há problemas
em nosso meio que preferem não resolver, mas deixá-los encobertos”, palavras do
professor.
Após mais uma negativa de pesquisa, a preocupação ampliou-se em nossa
mente. Em nossos pensamentos, estava a busca por alternativas e, ainda, uma
“luta” interior por não aceitarmos a possibilidade de pesquisar outro tema que não
fosse a violência. Assim, tememos que outras escolas também negassem o referido
estudo.
Uma aluna formanda do curso de Pedagogia indicou-nos a Escola do Campo
em que estava desenvolvendo seu estágio, situada em um distrito de Santa
Maria/RS. Fomos visitá-la como última alternativa, conversamos com as prováveis
coautoras e com a Diretora. Solicitamos permissão para o estudo à gestora e, em
um primeiro momento, esta apresentou certa resistência, alegando que não gostaria
que a Escola fosse exposta, pois em outro momento em que foram solícitas a outro
pedido, o retorno foi negativo, o que não gostaria que ocorresse novamente.
Falamos sobre o cuidado na ética e na forma como o Grupo GEPFICA encaminha
as pesquisas e que o objetivo não seria denunciar, mas sim, pensar possibilidades
para a superação de desafios que, porventura, existissem na Escola. Enfim, portas
abertas! Portanto, podemos falar que o critério de escolha do campo de pesquisa foi
um tanto singular, talvez possamos pensar que foi “o lócus que nos escolheu”.
48

2.2 No caminhar do percurso, eis o cenário da pesquisa e seus sujeitos

Após uma longa busca, grande apreensão e satisfação em encontrar nosso


lócus, apresentaremos, abaixo, o cenário da pesquisa e, em seguida, as
colaboradoras do estudo.

2.2.1 Cenário

O campo de estudo foi uma Escola do Campo de abrangência da Secretaria


do Município da Educação de Santa Maria – SMED/SM, localizada
aproximadamente a trinta quilômetros do bairro Camobi, sentido Palma/RS. A
Escola está localizada em um distrito próximo e o acesso é muito tranquilo, pois está
à margem da rodovia.
Após o aceite da Escola em colaborar com a pesquisa, o primeiro encontro
teve por objetivo os seguintes momentos:

Figura 25 – Momentos da pesquisa


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015)
49

2.2.2 Colaboradoras... quem são elas?

Enfim, foram confirmadas as coautoras deste trabalho - duas professoras do


ciclo de alfabetização: (1) Professora Terezinha Maria Bortoluzzi Balconi, formada
em Pedagogia - Anos Iniciais, exerce a docência há 37 anos, leciona desde o ano de
1978, atua no 1º Ano do Ensino Fundamental - Alfabetização; e (2) Professora
Neuza Pena da Silva, formada no Magistério, exerce a docência há 23 anos, atua
em classes multisseriadas nos Anos Inicias do Ensino Fundamental.

Figura 26 – Pesquisadora e coautoras: pesquisadora Luciana ao centro, professora


Neuza à esquerda e professora Terezinha à direita
Fonte: Arquivo pessoal de Luciana Carrion Carvalho (2014).

A foto acima foi registrada em nosso primeiro encontro.


Os encontros seguintes ocorreram em forma de círculos dialógicos. Esses
encontros aconteceram semanalmente totalizando quatro reuniões.
50

Para a obtenção das narrativas (auto)biográficas, houve a nossa aproximação


no campo de estudo, a qual consistiu em explicitar os objetivos da pesquisa, a fim de
convidá-las a participar sem restrições de nossa parte, pois, conforme Pineau (2006,
p. 56), é imprescindível “ter feito sua história de vida antes de acompanhar os outros
nesta tarefa. [...] só um face a face com sua vida permite aproximar o face a face
com os outros e efetuar um caminho formador com eles”. Por esse motivo, iniciamos
o encontro com a partilha de nossa história de vida e, posteriormente, com a
explanação dos objetivos do estudo. No segundo momento do encontro, reiniciamos
nosso diálogo com a professora Terezinha, que compartilhou sua história e, em
seguida, da mesma forma, com a professora Neuza, o que possibilitou um rico
momento de partilhas.
Para o procedimento de recolha das histórias de vida enquanto instrumento
para a coleta de informações, Souza (2006, p. 137) nos sugere em “ser agrupadas
em duas dimensões: os diversos documentos pessoais (biografias, diários, cartas,
fotografias e objetos pessoais) e as entrevistas biográficas, que podem ser orais ou
escritas” em torno do aspecto temporal, espacial, social, em suas diversas fases, o
que é possível constatar como o dito ou o não dito por meio dos relatos, do silêncio,
das emoções, permitindo, assim, o movimento do desvelar-se.
Como instrumento de coleta de informações, utilizamos:
 a entrevista narrativa via tópicos guia;
 os encontros no formato de Círculos Dialógicos Investigativo-formativos
- esta estratégia nos oportunizou um ambiente favorável e acolhedor para o diálogo,
no qual as narrativas orais foram audiogravadas com a autorização prévia das
coautoras e, posteriormente, transcritas para a análise deste estudo.
As reuniões subsequentes foram desenvolvidas de acordo com as temáticas
já expressadas na entrevista narrativa via tópicos guia em que cada professora
respondeu de forma escrita a sua história. Essas entrevistas foram entregues às
coautoras no primeiro encontro, conforme já citado anteriormente, e foram
devolvidas a nós no segundo encontro.
As entrevistas foram balizadas nos seguintes tópicos guias:
51

Figura 27 – Tópicos Guias


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015)

Para construir o círculo dialógico para além da palavra, estrategicamente


firmamos alguns acordos que relataremos a seguir:
 falar a sua palavra quando se sentir à vontade e segura para a partilha
de sua história;
 considerar as diferentes vozes, com respeito à opinião alheia;
 não falar ao mesmo tempo.
Para o melhor aproveitamento do estudo, fez-se necessária a utilização de
cinco movimentos referentes à postura da pesquisadora frente aos Círculos
Dialógicos. Esses movimentos fazem parte da metodologia e foram estabelecidos
pelo subgrupo do Grupo Dialogus (2014) responsável por tal discussão.
52

Figura 28 – Movimentos metodológicos dos Círculos Dialógicos Investigativos-


formativos
Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015).

Todos os momentos e movimentos acima descritos foram imprescindíveis e


criteriosamente utilizados para a formulação da análise das informações. A próxima
etapa da análise foi o levantamento das dimensões que emergiram a partir das falas
das colaboradoras. As dimensões que se destacaram nos círculos dialógicos foram
representadas na forma de borboleta inconclusa (abaixo) e, após, descrevemos uma
breve explicação do que consiste cada parte da borboleta:
53

Figura 29 – Relação de conceitos entre violência simbólica, pertencimento e


silenciamento
Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015).

No corpo da borboleta, como podemos observar, indicamos a Dimensão


Pertencimento: que, para Martins (2008, p. 95), é “o sentimento de pertença, que é
subjetivo, e entre outros fatores de vinculação [...], que são fundamentais para a
construção de identidades coletivas ”. Optamos em fazê-lo na parte que consiste o
corpo, porque nos remete ao “ser”, fechado em si, em sua forma, e, ainda podemos
pensar que esse “corpo”, embora sem as asas, sobrevive mesmo que de forma
limitada.
Na asa superior, indicamos a Dimensão Violência Simbólica: Bourdieu
(2011) introduziu em suas discussões as questões referentes à violência simbólica
para se referir ao controle de um estrato social sobre outro, legitimadora da
dominação e posta em prática por meio de estilos de vida. Como podemos perceber,
a asa encontra-se desligada do corpo, remetendo-nos a algo não natural, como se
não fosse pertencente ao corpo.
Na asa inferior, indicamos a Dimensão Silenciamento: Antunes (2012,
p. 139) contribui ao nos falar que “nivelar as culturas por uma predominante – a do
poder instituído – é uma violência simbólica que, por anos, a escola vem produzindo
54

mediante o silenciamento de todos aqueles que pensam e agem de forma diferente


do que é permitido e considerado legitimado”. Da mesma forma que a asa de cima,
esta também se encontra desligada, silenciada... “faz parte do todo” da borboleta,
mas não se liga, não contribui, não flui.
Nos capítulos vindouros estaremos aprofundando as dimensões elencadas e,
consequentemente, a contextualização de acordo com as narrativas
(auto)biográficas das coautoras.
Acreditamos que poderão ocorrer questionamentos por parte dos leitores em
torno da escolha representativa na figura da borboleta, tanto no primeiro capítulo (na
justificativa), quanto neste, referente à metodologia, tais como: Por que borboleta? A
quem ela representa? Por que uma borboleta inacabada?
Referimo-nos à borboleta por alguns aspectos próprios dessa espécie:
iniciaremos pela metamorfose, obrigatória e natural, a qual, após vencer este
processo de força/fragilidade, surpreende-nos em seu desvelar-se, exibindo uma
beleza e delicadeza ímpar, única, por dias, até encerrar seu ciclo vital na Terra.
Assim, todo o docente/educador/professor que se permitir experienciar/vivenciar a
sua própria metamorfose, ou melhor, sua metanoia, reconhece-se como ser
inconcluso e inacabado, que se oportuniza buscar sua auto(trans)formação
enquanto houver sopro de vida em sua mente. Assim, Freire (2009, p. 192-193)
afirma:

Na verdade, porém, toda docência implica pesquisa e toda pesquisa implica


docência. Não há docência verdadeira em cujo processo não se encontre a
pesquisa como pergunta, como indagação, como curiosidade, criatividade,
assim como não há pesquisa em cujo andamento necessariamente não se
aprenda porque se conhece e não se ensine porque se aprende”.

Portanto, esta pesquisa provoca um desacomodar-se em si, um convite aos


docentes a “imergirem-se” em si mesmos, em busca de seu desvelamento, por meio
das narrativas (auto)biográficas/(auto)formativas, e, consequentemente, emergir
auto(trans)formado.
3 A HISTÓRIA DE VIDA E AS NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS
COMO DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORES DA ESCOLA DO CAMPO

O capítulo a seguir busca viabilizar reflexões e discussões acerca da


formação continuada dos professores que atuam nas Escolas do Campo,
modalidade da educação que se encontra contemplada na Lei de Diretrizes e Bases
na Educação Nacional nº 9.394/1996 e, também, nas diretrizes operacionais para a
educação básica nas Escolas do Campo, assim como nos Pareceres e Resoluções
sobre esta modalidade educacional. Para iniciarmos o diálogo, convidamo-los,
primeiramente, a adentrarmos em um ponto um tanto sensível ainda nas formações
continuadas de professores, como por exemplo, a violência simbólica que ocorre
entre os docentes da educação em geral, mas neste contexto, nas escolas do
campo. Então, nosso foco dar-se-á em relação à superação da violência simbólica
exercida/sofrida pelos/nos docentes a partir da História de Vida. Tal reflexão parte
do desenvolvimento da pesquisa, que busca investigar sobre a violência
gerada/sofrida entre os docentes da escola. Violência esta entendida, por suas
múltiplas formas, como abuso intencional de força e poder, desde a material, física,
simbólica, entre outras. Para tanto, elencam-se a história de vida e narrativas
(auto)biográficas das trajetórias pessoal e profissional dos docentes, na busca de
identificar se há ou não o sentimento de pertença desses educadores com a
comunidade ao entorno. Para a tessitura desta pesquisa, buscamos utilizar uma
metodologia que oportunizasse a compreensão do processo formativo como um
todo, possibilitando um novo olhar, ou “um outro olhar”, referente à formação
continuada de professores da Escola do Campo, embasado teoricamente a fim de
corresponder aos objetivos do estudo. A modalidade educacional em questão é que
vem nos instigando a conhecer a realidade dessas escolas e como ela está posta na
atualidade. Para melhor compreensão do texto, estaremos subdividindo em quatro
partes: a primeira refere-se à violência simbólica; a segunda, à formação continuada
de professores para as Escolas do Campo; a terceira, à metodologia História de
Vida e narrativas (auto)biográficas como dispositivo de formação docente; e, por
56

último, um movimento dialógico entre as narrativas (auto)biográficas e as dimensões


elencadas a partir da coleta das informações.
Dessa forma, o referencial teórico do trabalho terá destaque nos temas:
Violência Simbólica, Formação Continuada de Professores para a Educação do
Campo e História de Vida.

3.1 Em tempos de Violência Simbólica?Como? Onde? Quando?

Partimos do conceito de violência simbólica estudado pelo sociólogo Pierre


Bourdieu, estudioso do tema que se tornou referência na Antropologia e na
Sociologia, publicando diversos trabalhos nas áreas de educação, cultura, literatura,
arte, mídia, linguística e política.
Pierre Félix Bourdieu foi um destacado sociólogo francês. Nasceu em 1º de
agosto de 1930, proveniente de uma família campesina, no vilarejo de Denguin, no
sudoeste da França. Fez os estudos básicos num internato em Pau, experiência que
deixou profundas marcas negativas. Ao completar os estudos básicos, mudou-se
para Paris. Em 1951, ingressou na Faculdade de Letras e na Escola Normal
Superior. Três anos depois, graduou-se em Filosofia e iniciou sua vida profissional
como professor em Moulins. Prestou serviço militar na Argélia (então colônia
francesa), onde retomou a carreira acadêmica e escreveu o primeiro livro.
Bourdieu publicou mais de 300 títulos, entre livros e artigos. As publicações
entre as décadas de 1960 e 1980 o caracterizam como importante sociólogo do
século XX. A repercussão de suas reflexões levou-o a lecionar em importantes
universidades do mundo.
No ano de 1982, propôs a criação de uma “sociologia da sociologia”, cujo
argumento utilizado na época foi sobre a existência de estruturas objetivas no
mundo social, que podem vir a coagir a ação dos indivíduos, sendo essas estruturas
construídas socialmente. Rejeitou a dicotomia subjetivismo/objetivismo nas ciências
humanas com afirmações de que as relações sociais se dão em uma relação
dialética.
O sociólogo dedicou os seus últimos anos de vida a combater o
neoliberalismo sob todas as suas formas. Colocou os seus conhecimentos
57

científicos a serviço do empenhamento político. Ultrapassar esses limites, para ele,


significava tirar o saber para fora da “cidade dos sábios” e colocá-lo a serviço das
lutas sociais contra o neoliberalismo. Também era um crítico da globalização
financeira. Defendia a construção de um movimento social europeu como primeira
etapa da construção de um movimento social internacional, no espírito daquele que
tem vindo a ser construído em torno do Fórum Social Mundial. Deixou um importante
legado e uma convocação veemente aos intelectuais para que abandonem a “cidade
do saber” e passem a enfrentar o som e a fúria do mundo. Faleceu no dia 23 de
janeiro de 2002 na cidade de Paris aos 71 anos de idade.
Uma das questões mais importantes apresentadas em seu pensamento é a
análise de como os indivíduos incorporam a estrutura social, legitimando-a e
reproduzindo-a. Assim, construiu o seu mundo social sobre três conceitos: campo,
habitus e capital.
O campo, segundo Bourdieu (2011), representa um espaço simbólico no qual
os confrontos legitimam as representações. É o poder simbólico que classifica os
símbolos de acordo com a existência ou ausência de um código de valores. Esses
conflitos consagram valores que se tornam aceitáveis pelo senso comum. Por
exemplo, no campo da arte, por meio da disputa simbólica, decide-se o que é de
bom ou mau gosto, o que é erudito ou popular, formando-se o habitus e,
consequentemente, a aceitação social. Sobre o poder simbólico por ele definido,
Bordieu (2011, p. 7-8), afirma que:

No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte,


como em outros tempos não se queria reconhecê-lo nas situações em que
ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer
dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de «círculo cujo
centro está em toda a parte e em parte alguma» - é necessário saber
descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente
ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse
poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que
o exercem (Grifo nosso).

Esse tipo de poder invisível, e por isso simbólico, mantém-se ativo sempre
que há concordância para a sua permanência, tanto para os que estão sujeitados a
ele, quanto aos que o estão exercendo.
O conceito de habitus refere-se à incorporação de uma determinada estrutura
social pelos indivíduos, influindo em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma
58

que se inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que, nem sempre, de modo


consciente. Charlot (2000, p. 35) enfatiza tal conceito em sua obra:

Eles é que agem e não a estrutura através deles, porém eles agem em
função de disposições psíquicas que foram socialmente estruturadas: seu
habitus.O habitus é um conjunto de disposições psíquicas transponíveis e
duráveis: princípios de classificações, de visão, de divisão, gostos, etc., em
suma, princípios de percepção e ordenamento do mundo.

Assim, estruturas sociais e agentes individuais alimentam-se continuamente


numa engrenagem de caráter conservador. Charlot (2000, p. 35-36) ainda colabora
com a seguinte provocação:

Como é que o habitus se constitui? Por “interiorização”, “incorporação”,


responde Bourdieu em sua obra.
Em outras palavras, o social torna-se psíquico quando passa do “exterior”
para o “interior”; e por isso mesmo o interior (o que chamamos a
subjetividade) tem seu princípio de inteligibilidade no exterior (no espaço
das posições sociais). Isso, no entanto, significa ignorar o fato de que “o
interior”, o psíquico, a subjetividade têm leis próprias de organização e
funcionamento, irredutíveis às do “exterior”, do social, de um espaço de
posições. Quando o exterior se torna interior (se é que tal distinção tem um
sentido...), não muda apenas de lugar como também de lógica.

Já o capital representa o acúmulo de forças que o indivíduo pode alcançar no


campo. Ele é o autor dos subconceitos de capital social, capital cultural, capital
econômico e capital simbólico. Os indivíduos, por sua vez, posicionam-se nos
campos de acordo com o capital acumulado – que pode ser social, cultural,
econômico e simbólico. O capital social, por exemplo, corresponde à rede de
relações interpessoais que cada um constrói, com os benefícios ou malefícios que
ela pode gerar na competição entre os grupos humanos. Já na educação se
acumula, sobretudo, capital cultural, na forma de conhecimentos apreendidos, livros,
diplomas etc. Para ele, a escola é um espaço de reprodução de estruturas sociais e
de transferência de capitais de uma geração para outra.
59

Figura 30 – Apresentação dos conceitos de Bourdieu (2011)


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015).

Contextualizando esses conceitos formulados por Bourdieu com a Escola,


esta imersa na “engrenagem social”, percebemos que, ao mesmo tempo em que ela
sofre as influências, e por isso, as consequências de macroestruturas, também
produz e reproduz a violência na microestrutura. De que forma? Ora diante dos
conflitos, consagrando valores e partilhando o censo comum (campo); ora
acumulando forças, por meio do capital cultural (conhecimento, diplomas, currículo),
reproduzindo as estruturas sociais, transferindo de geração a geração (capital) e,
finalmente, conservando tais estruturas pela reprodução simbólica, recriando
desigualdades de modo indireto (habitus). O poder simbólico para Bourdieu (2011,
p. 11) é:

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de


conhecimento que os «sistemas simbólicos» cumprem sua função política
de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que
contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra
(violência simbólica) quando o reforço da sua própria força às relações de
força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de
Weber, para a «domesticação dos dominados».

Para o autor, a permissão para o acúmulo de poder simbólico se dá sempre


nas “relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material
60

ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas


relações” (BOURDIEU, loc. cit.). Assim, nessas lutas de classe, propriamente
simbólica, o que motiva é impor a definição do mundo social, conforme seus
interesses, impondo o campo de tomadas de posições ideológicas, reproduzindo o
campo das posições sociais. O autor ainda enfatiza sobre o poder simbólico (p. 14):

como poder de construir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer,
de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o
equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica) graças ao
efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer
dizer, ignorado como arbitrário.

O poder que a língua e a linguagem exercem em sua enunciação, torna-a


“legítima” pelo uso da palavra, passa a ser reconhecida sem se fazer uso da força
ou da influência econômica. Essa fala vem demonstrar a força que a educação
possui em uma nação e, talvez por esses motivos, é tão negligenciada e,
infelizmente, negligente em sua função social... Apesar de Bourdieu (2011) afirmar
que a escola consiste em conservar o habitus, cabe a todos nós lutar contra o
instituído e converter, através do diálogo, novos significados na relação estabelecida
entre o conhecimento e as novas gerações.
A partir desses estudos, Bourdieu (2011) introduziu o conceito de violência
simbólica para se referir ao controle de um estrato social sobre outro, legitimadora
da dominação e posta em prática por meio de estilos de vida. Isso explicaria o
porquê de ser tão difícil alterar certos padrões sociais: pois o poder exercido em
campos como a linguagem é mais eficiente e sutil do que o uso da força
propriamente dita.
61

Figura 31 – Apresentação do conceito de violência simbólica de Bourdieu (2011)


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015).

Diante do exposto é sabido que a violência simbólica também ocorre nos


espaços do cotidiano escolar. Por essa razão, buscamos, com o olhar desta
investigação, adentrar nesse universo, pois a relação de poder está impregnada em
todos os espaços; podemos encontrá-la tanto na cidade como no campo. Abaixo,
criamos um esquema, englobando a Escola com os escritos de Bourdieu (2011), no
intuito de ilustrar o que temos discutido até aqui:

Figura 32 – Esquema Conceitos Bourdieu X Escola


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015).
62

É possível perceber que a Escola encontra-se “refém” do sistema instituído,


atravessando as relações de toda a ordem, as intenções e as ações, como
verificamos na obra de Abrahão (2006, p. 149), que:

... seja no informal, no não intencional, pelos diferentes modos pelos quais
estes sujeitos são “afetados” pelo convívio no ambiente escolar, com
alunos, com colegas, com administradores de escola, pela cultura e
relações de toda a ordem, inclusive as de poder que perpassam as
intenções e as ações nesse meio, atravessadas, que são, pelas relações
sociais mais amplas (políticas, econômicas, culturais), que verificam no
macro-contexto (Grifo nosso).

Dessa forma, aproximando tais discussões para o contexto das escolas, não
podemos negligenciar este poder invisível, esta violência, mas sim, precisamos
trazer à luz tais questões, refletir sobre, e ainda, buscar possibilidades por meio de
formações continuadas para o enfrentamento dessas barreiras também invisíveis.
Em nossa proposta, em refletir sobre as escolas do campo, para continuarmos
nosso diálogo, entendemos que a negação e o não reconhecimento das
especificidades das comunidades rurais é uma forma de poder e de violência, local
onde se perduram as reproduções dos poderes dominantes por meio das escolas
culturalmente urbanas, conservando o mesmo campo, o habitus e o capital. Na
entrevista com as professoras Neusa e Terezinha, partilharam-se situações como:

Neuza: Saíram aqui do campo em busca de oportunidades, enfim, acho que


a escola, não sei, mas realmente a gente não consegue se ver muito
discutindo essas situações, porque a gente percebe assim que é toda
uma cultura da cidade que vem pra cá e nós temos que nos adaptar
com o sistema mais da cidade.

Terezinha: afinal de contas, qual é o papel da escola? Isso pra mim, eu


fiquei meio que a semana inteira questionando. Ontem de noite a gente teve
Pnaic, de novo o Plano Nacional de Educação, e a gente não vê muito
contemplado nada quase sobre o campo, pelo menos eu não vi, não sei se
tem. Mas eu vejo que ta muito longe daquilo que a gente sonha, daquilo que
a gente imagina, porque quem é que pensa em escola do campo? Quem
não mora no campo, então pensar em escola do campo quem não
mora no campo, não tem muito o que dizer, e vem com umas coisas
bem diferentes, eu estou sendo bem realista e realmente, quem pensa
na escola do campo não são pessoas que vivem e trabalham no
campo.

Luciana: E pra ti Neusa, o que é que tu pensa?


Neuza: É a mesma questão da Terezinha, o que dificulta o nosso trabalho é
isso ai, são pessoas que não tem o conhecimento do campo que vão lá
fazer as leis e ai o que acontece? Não contempla, não é a realidade
deles.[...]. Isso é constante na vida da gente. Nós que moramos aqui, como
eu e a Terezinha, não tem como não pensar. A nossa vida é essa, a gente
vive isso, não tem como não pensar.
63

Terezinha: Claro que os pais incentivam a criança a não ficar no campo,


mas ele não ficar no campo não significa que ele não estude. Porque nós
fomos incentivadas a sair do campo, mas não tiramos o campo de nós,
mas não conseguimos passar isso pra eles, pra mudar muito, mas alguns
sim, alguns ficaram. Temos muitos técnicos agrícolas, temos muitos
agrônomos que tão lidando com a terra, mas a gente vê que eles continuam
vendendo a terra se iludindo porque a cidade é melhor. Então em algum
lugar tem falha. Faltam três anos e parece que eu tenho que correr
contra o tempo, parece que tenho que fazer ainda muita coisa. Agora de
manhã a professora B. me falou que do primeiro ao quinto ano parece que
vamos ter apenas duas professoras, e isso me preocupa, porque vou ter
que ficar com primeiro e segundo e a colega com terceiro, quarto e quinto.
Porque muitos dos nossos alunos estão indo estudar em Camobi, porque os
pais acharam melhor.

Entre suspiros, olhares no vazio e reticências, as professoras partilham de


alguns desafios existentes em sua Escola, como por exemplo, a falta de discussões
acerca da Educação do Campo, a permanência da cultura urbanocêntrica nas
escolas rurais, a obrigatoriedade em adaptar-se em realidades que não são as suas
e nem da comunidade escolar; a crise identitária com relação ao papel da escola.
Entre olhares melancólicos, com pouca esperança, ainda continuam a pontuar os
desafios, talvez o que mais as entristeçam: quem pensa e fala sobre a Educação do
Campo são pessoas que desconhecem tal realidade, empobrecendo e, até mesmo,
descaracterizando esta modalidade educacional. Conforme a Professora Terezinha
rememora: “nós fomos incentivadas a sair do campo, mas não tiramos o campo de
nós”, remete à sua história, vendo repetir-se na vida de seus alunos. O sentimento
de impotência ao falar que “faltam três anos e parece que tenho que correr contra o
tempo, parece que tenho que fazer ainda muita coisa”. Três anos para se aposentar
e sente-se responsável em transformar a realidade, em garantir algo a seus alunos...
“Então, em algum lugar tem falha...”.
Na colaboração de Antunes (2012, p. 139), o autor nos fala que “nivelar as
culturas por uma predominante – a do poder instituído – é uma violência simbólica
que, por anos, a escola vem produzindo mediante o silenciamento de todos aqueles
que pensam e agem de forma diferente do que é permitido e considerado
legitimado”. Nesse quesito, a professora Terezinha contextualiza:

depois de uns nove anos que eu tava aqui, a escola passou a ser
multiseriado, aí a partir de 1991 veio a professora C., que era da cidade,
então ela ficou com o primeiro, segundo e terceiro, e eu fiquei com o quarto
e quinto. Aí já começaram os conflitos, porque ela também chegou bem
jovenzinha lá da cidade, com aquela teoria toda da cidade, e ai a gente
começou a ter alguns atritos. E nem era por nossa culpa, eu defendia mais
a questão do campo, por exemplo, as reuniões tinham que ser no horário
64

que o pessoal pudesse e não no horário que a professora pudesse, e a


gente tinha que se adaptar ao horário dela da cidade. Era um dos primeiros
conflitos e isso existe até hoje. Por exemplo, uma festinha de dia das mães
é sábado de manhã, porque ninguém quer vir sábado de tarde. Então a
gente ta puxando pra sexta de tarde pelo menos, ou pra segunda que
facilita, porque o ideal seria sábado de tarde. O ideal, se a gente quisesse
que a comunidade viesse, que a comunidade participasse, era no sábado à
tarde, porque fazer uma reunião numa sexta de tarde também é
complicado, quantos e quantas são faxineiros, não tem como elas virem.
Então, o meu conflito maior com as colegas da cidade é que a gente não
adapta a realidade da comunidade, então eu vejo que este é o maior
conflito.

Nota-se o sentimento de desaprovação da professora Terezinha na situação


em que se força uma alteração do ritmo de toda uma comunidade em prol de uma
professora (que não se adapta aos horários da escola), o que vem confirmar a
citação de Antunes (2012) de que nivelar a cultura do campo pela cultura urbana é
sim uma violência simbólica, prova disso se deu no momento em que a professora
“saiu do silêncio” e compartilhou sua insatisfação.
Eyng (2010) aponta um estudo em que a violência na escola evidencia-se de
várias facetas: como agressões e constrangimentos físicos, verbais, sociais e
simbólicos; o que é ocasionado por meio das tensões geradas pelas relações de
poder, vindo a resultar em mais produção da violência. Para Costa (2010, p. 419):

O que fica implícito nestes raciocínios é que a manifestação do fenômeno


da violência nas escolas é efeito de processos sociais mais amplos que
estão ocorrendo na sociedade. Neste caso a violência não é vista como
produzida no espaço escolar, mas como uma questão social maior que se
reproduz na escola, local vulnerável a vários tipos de processos,
especialmente à exclusão social.

A escola sofre as consequências dos processos sociais, refletindo, muitas


vezes, na reprodução e legitimação da lógica da exclusão social, conforme podemos
constatar com as explanações em Bourdieu (2011). Se a sociedade é permeada
dessas relações, sabemos que, na escola, também ocorre tais reflexos. De acordo
com o autor:

O autor, mesmo quando só diz com autoridade aquilo que é, mesmo


quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no ser: ao dizer as
coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos,
publicamente e oficialmente, ele substrai-as ao arbitrário, sanciona-as,
santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como
conformes à natureza das coisas, naturais (BOURDIEU, 2011, p. 114).
65

Quando a escola reproduz com autoridade aquilo que lhe é imposto, por meio
da coerção (velada ou não), impede a reflexão por parte da comunidade escolar e,
assim, impede toda a possibilidade de transformação pessoal, profissional,
institucional e local.
Para Antunes (2012, p. 143-144), “logo, é necessário instaurar espaços no
cotidiano escolar que compreendam o sujeito numa perspectiva global, assumindo a
formação como um processo interativo e dinâmico”, como possibilidade de
resistência às multiformas de violência. Destacamos, neste momento, uma forma de
violência perversa, silenciosa, danosa de relação de poder, que chamaremos de “o
silenciamento do outro”. Segundo Freire (1987, p. 44), “não é no silêncio que os
homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”, e isto se reflete
em todos os momentos e, nesse caso, tratando-se de escola, visualizam-se,
principalmente, nas reuniões pedagógicas, local apropriado para a partilha de ideias
e opiniões, momento em que ocorrem situações nas quais alguns professores são
silenciados pelos colegas, o que vem contrariar uma das condições básicas de
convivência entre os seres, que é o respeito à opinião alheia.
Nessa citação de Freire (op. cit), o autor reforça a importância de não silenciar
as várias vozes em uma escola e nem permitir sermos silenciados por outras. É
preciso estar atento às várias formas de violências que, porventura, podem
causar/provocar aos/por outros, por meio da comunicação. Sobre o silenciamento, a
professora Terezinha comenta:

Há uma discussão da escola do campo e tal, mas a gente não vê avanço


nisso. Preocupação, não sei, ta faltando alguma coisa ai. Eu sinto, acho que
a Neusa também, a gente percebe isso, e a gente que mora no campo
percebe onde estão as falhas. Como a gente já falou no silenciamento, a
gente acaba às vezes não conseguindo colocar a nossa ideia.[...].
Dessa questão do silêncio, de ver e não poder lutar contra isso, porque é
uma força tão grande, por isso que digo, falar em escola do campo é fácil,
mas vivenciar ela no dia a dia, não sei se é o termo despertar, mas enfim, o
que ele goste, mas ta faltando algo ai.
Final de ano sempre se avalia um pouco e eu me sinto muito angustiada no
momento da avaliação, e é por isso que eu te digo, quem não mora não
entende, mas a gente já desistiu.

Falas recheadas de emoção, olhar profundo, a tristeza em perceber onde


estão as falhas e não ter voz nem vez nas discussões “porque é uma força tão
grande [...] mas a gente já desistiu”. No depoimento da colaboradora, percebemos a
necessidade da interação social. Conforme Bolzan (2009, p. 53), “a interação social
66

deve ser considerada como fator relevante na construção do conhecimento, uma vez
que a cooperação emerge do trabalho solidário entre os sujeitos envolvidos nesse
processo”. E, ainda, a importância de desnaturalizar a violência nas instituições
escolares, envolvendo coletivamente os sujeitos em busca do enfrentamento e
superação das tensões geradoras em violência simbólica no quadro de professores.
Para Freire (2009, p. 118):

O diálogo tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos não


apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim crescem um
com o outro. O diálogo, por isso mesmo, não nivela, não reduz um ao outro.
Nem é favor que um faz ao outro. Nem é tática manhosa, envolvente, que
um usa para confundir o outro. Implica, ao contrário, um respeito
fundamental dos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não
permite que se constitua. Assim também a licenciosidade, de forma
diferente, mas igualmente prejudicial.

Para buscar superar tal fenômeno da violência simbólica entre os docentes, é


necessária a busca da compreensão de como se formam tais situações, para
compor mecanismos visando ao seu enfrentamento. Para Freire (2009, p. 79), “Meu
dever ético, [...] é exprimir o meu respeito às diferenças de ideias e de posições.
Meu respeito até mesmo às posições antagônicas às minhas, que combato com
seriedade e paixão”. É o respeito às diferenças dos outros que nos move e nos
fortalece. Em uma escola, torna-se fundamental o respeito pela trajetória que cada
um construiu. Dessa forma, buscamos em Isaia (2009, p. 97) subsídios para
conceituar trajetória:

Ao falar-se em marcas da vida e da profissão em suas diversas fases, o


conceito de trajetória apresentado por Ortega Y Gasset (1970) é
fundamental. Para esse autor, a trajetória é vista como porções de tempo,
duração e, como tal, finitude. Portanto, a vida ocorre por fases, etapas que
não só se sucedem, mas, principalmente, enlaçam-se e convivem em uma
mesma duração histórica.

Em uma escola onde os professores são fundamentais para a constituição da


instituição, mais ainda, da cultura e identidade própria da Escola, há um significativo
desafio para conquistar tal objetivo, pois, por trás de cada docente, há uma
variedade de pensamentos, cultura, histórias de vida e suas fases, o que pode
interferir na qualidade dos relacionamentos, entendimentos e comprometimentos.
Aqui, destacamos a emergência de as Escolas do Campo oportunizarem para os
profissionais que lá atuam a indispensável ligação com a terra, com os sujeitos, com
a comunidade.
67

É imprescindível, em suas trajetórias, a identificação com as lutas sociais para


a emancipação dessa minoria, conforme já vimos no início deste texto. Para Antunes
(2012, p. 143), “o locus formador deve ser revisitado com teorias-práticas-teorias que
contemplem as diversidades da realidade brasileira. Não há uma verdade única”,
então, diante das discussões até aqui elencadas, buscamos conceituar trajetória
pessoal em Isaia (2009, p. 97):

Com relação à trajetória pessoal, essas idades correspondem às fases do


ciclo vital pelas quais cada pessoa passa, de acordo com determinados
parâmetros de tempo, espaço e estilo de vida. Em vista disso, ela é
concebida como o cenário no qual a vida dos professores adquire
consistência e significado existencial.

Podemos refletir sobre trajetória pessoal conforme nos fala Isaia, juntamente
com Abrahão (2006, p. 150), que vêm contribuir no viés das histórias de vida “a
experiência humana, pessoal/social, tem uma natureza temporal cujo caráter
apresenta-se articulado pela narrativa, em especial quando clarifica a dualidade
“tempo cronológico”/ “tempo fenomenológico”. Portanto, entendemos que esse novo
olhar sobre o interior da Escola, em busca da compreensão das trajetórias e
narrativas dos docentes, pode vir a oportunizar uma qualificação nas relações
intersubjetivas. Estas servindo como núcleo nos relacionamentos interpessoais, pois
percebemos, na atualidade, que este ponto se torna uma questão imprescindível
para a luta e superação da violência instituída em nossas escolas, especialmente
entre os docentes.

3.2 Formação Continuada de Professores para a Escola do Campo:

Abaixo o excerto, segundo Rocha e Martins (2011, p. 214):

Partimos do pressuposto de que a educação é fundante na formação


humana. Por que então falar de uma Educação do Campo, e mais ainda
como nela a formação? Entendemos que do campo anuncia que a formação
não é universal, homogênea, igual. Formar o humano acontece na tensão
entre as desigualdades e diversidades. Nesse sentido, ela é emancipadora
e transformadora. Ser do campo também anuncia o pertencimento, no
sentido de “elaboração da própria identidade e de projetos coletivos de
mudança social a partir das próprias experiências” (apud SADER, 1988,
p. 53).
68

Concordamos com a premissa de que a educação é fundante na formação


humana, assim como ela pode ser emancipadora e transformadora quando está a
serviço da reflexão e autonomia intelectual dos sujeitos. Por esse motivo, não é
possível perpetuar o “silenciamento”5 dessas culturas, a essas realidades, também
ao seu apagamento em suas identidades e o distanciamento de seu pertencimento
com o seu meio. Por isso, é necessário oportunizar, nas relações estabelecidas
entre os docentes, o espaço para o diálogo, para a aceitação do outro e o
fortalecimento da autonomia, e principalmente, o fortalecimento da autoestima.
Para contextualizar as discussões em torno da educação do campo, daremos
continuidade a este diálogo com a seguinte afirmação provocativa: o não
reconhecimento da história de vida no/do campo e sua cultura significam o não
reconhecimento de seus sujeitos e, por conseguinte, suas especificidades. De
acordo com Martins (2008, p. 95), é não respeitar “o sentimento de pertença, que é
subjetivo, e entre outros fatores de vinculação, que são fundamentais para a
construção de identidades coletivas”. Nesse sentido, Antônio (2008, p. 75) contribui:

Um dos princípios centrais do movimento “Por uma Educação do Campo”


imprime uma proposição de que “não basta ter escolas no campo; quer-se
ajudar a construir escolas do campo”. Necessariamente, “escolas com um
projeto político-pedagógico vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos,
à história e à cultura do povo trabalhador do campo”.

Desse modo, a luta por escolas do campo ganha visibilidade a partir do


reconhecimento legal no Parecer nº 36/2001, em que se reconhece que o campo
não é somente um perímetro não-urbano, mas possuidor de “possibilidades que
dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da
existência social e com as realizações da sociedade humana”. Por essas e outras
razões, houve a decisão na proposição das Diretrizes Operacionais para a
Educação Básica nas Escolas do Campo, que supõe ainda: “a identificação de um
modo próprio de vida social e de utilização do espaço, delimitando o que é rural e
urbano sem perder de vista o nacional”.
A Resolução CNE/CEB nº 1 de 23 de abril de 20026, em seu artigo 2º,
parágrafo único, esclarece-nos sobre entendimento da identidade dessas escolas:

5
Silêncio: Conceito extraído do Dicionário Paulo Freire - para Redin (2010, p. 371), nos diz: “Proibir o
homem de dizer a sua palavra é proibi-lo de se transformarem, censurar o homem a dizer a sua
palavra é escravizá-lo nas grades da cultura do silêncio”.
6
Resolução que institui as diretrizes operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.
69

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às


questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na temporalidade e
saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros,
na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos
sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas
questões à qualidade social da vida coletiva no país (grifo nosso).

Embora haja o reconhecimento das peculiaridades próprias do campo, como


sua identidade, temporalidade, saberes e memória coletiva na Resolução de 2002 e,
ainda, fortalecida pela Lei nº 9.394/96 em seus artigos 23, 26 e 28, em que se
contempla a diversidade do campo em todos os seus aspectos - o social, o cultural,
o político, o econômico, de gênero, geração e etnia; as escolas rurais permanecem
centradas num modelo de educação urbana, conforme Souza e Meireles (2014,
p. 72) denunciam:

As escolas rurais, de modo geral, desde o seu surgimento, centram-se num


modelo de educação com princípios e políticas voltadas para a educação
urbana. Trata-se, pois, de uma lógica urbana transferida para a escola rural,
atentando para uma perspectiva que desconsidera o contexto rural e cultura
local. Nesse sentido, a educação rural, foi e ainda hoje, é marcada por uma
visão urbano-centrada que desvaloriza, desqualifica e por vezes negligencia
as especificidades e singularidades do espaço rural. Trata-se de uma
educação, vista preponderantemente pelos diversos governos brasileiros
como simplesmente um prolongamento/transferência da escolarização
urbana [...].

Um significativo desafio está posto por Souza (2012, p. 47), ao propor o


rompimento com “a lógica urbanocêntrica, [...], faz emergir a necessidade de
reencontrar o sentido de “lugar”, o qual é entendido como contexto territorial e
espaço de participação”. Um desafio às comunidades rurais é reencontrar o sentido
dos modos de vida dos atores que habitam nesses territórios. Embora as diretrizes,
pareceres, resoluções e a Lei 9.394/1996 contemplem um belo discurso em favor ao
reconhecimento dessa modalidade de educação, existe um grande distanciamento
entre o que se pretende e o que se é. Abaixo, compartilhamos um recorte de nosso
círculo dialógico que exemplifica a fala acima:

Neuza: Sim, foi discutidas “Escolas do campo” e “Escolas para o campo”,


uma coisa assim, tem diferença e eu não consigo ver. Mas eu acho que a
nossa não é para o campo. Não sinto isso, ela como para. [...], e os
professores que não conhecem a realidade acabam aceitando, só que a
gente que conhece a realidade a gente sabe que tem as partes que dá pra
plantar sem cortar, a gente conhece essa realidade, só que não
consegue trazer isso pra discussão, entende? Até porque são poucos.
Eu por exemplo, eu trabalho bastante assuntos da comunidade, nós
trabalhamos mais ou menos isso, porque a gente tem conhecimento. Por
exemplo, com o plantio de alguma coisa, com a criação de animais, com o
70

tirar leite, por exemplo. Essas atividades a gente tem, mas temos colegas
que são totalmente urbanos, e ai?

Terezinha: De 20 professores, temos 3 ou 4 que tem esse


conhecimento.

Neuza: Aí nós remamos contra a maré. (..). Tudo isso nós enfrentamos.
Enfrentamos barreiras com esse tipo de coisa. Por isso que eu digo
que a nossa escola eu já não a vejo como para o campo.

Terezinha: A questão de capinar, tava a professora capinando na horta


porque os alunos não podiam. Porque não querem colocar o aluno
capinar porque eles têm prova.

Luciana: E em relação aos professores, quando vocês têm essas reações


próprias do campo, eles aceitam bem os colegas do jeito que são?

Terezinha: É bem delicado assim. Ou não gostam, ou não conhecem, e


talvez seja por não conhecer... é com a mesma ênfase que nós falamos
no campo.

Neuza: Não tem a mesma sequência. Por exemplo, eu pego os alunos da


Terezinha, eu já sei o ponto onde ela parou e trabalhou aquele assunto, eu
já toco o assunto e vou ampliando, porque eu sei. Agora pego de outro
professor que é urbano, ele não vai seguir aquela nossa sequência, não é
que ele não queira, ele não tem conhecimento. [...]. Não é questão que
o professor não goste, de repente ele não viveu, não teve essa
vivência. É difícil tu não ter vivência. É claro que quando falar de uma
vaca e tirar um leite, todos sabem, agora fazer outras coisas, tem gente
que não sabe.

Neuza: mas eles não aprendem a lidar, criar porco, galinha, ter uma horta,
eles não tem essa cultura, e eu vejo que a escola fica, não sei se é por
falta de conhecimento, mas a gente fica distante dessa realidade, a
gente não consegue chegar a eles.

O diálogo acima se refere a um importante momento de reflexão, quando foi


possível perceber entre as professoras colaboradoras a tomada de consciência de
que não se trata de denúncia ou queixa das colegas “urbanas”, mas uma
constatação da realidade. Não há culpados, mas há falta de conhecimento para se
trabalhar com uma comunidade específica, que já se encontra amparada na lei em
suas especificidades. Nesse sentido, Caldart (2012, p. 259) contribui afirmando: “A
realidade que produz a Educação do Campo não é nova, mas ela inaugura uma
forma de fazer seu enfrentamento. Ao afirmar a luta por políticas públicas que
garantam aos trabalhadores do campo o direito à educação, especialmente à escola,
e uma educação que seja no e do campo [...]”. Assim, configura-se uma luta social
pelo direito à educação pelos trabalhadores do campo, “feita por eles mesmos e não
apenas em seu nome. A Educação do Campo não é para nem apenas com, mas
sim, dos camponeses, expressão legítima de uma pedagogia do oprimido”.
71

(CALDART, 2012, p. 261). Nesse sentido, pensamos que, para as escolas do


campo, são indispensáveis as modificações curriculares e metodológicas, mas,
principalmente, a formação continuada de professores, a fim de redimensionar a
formação tradicional até aqui recebida.
Romper com o silêncio, como Freire (2009, p. 40) coloca: “Era como se, de
repente, rompendo a “cultura do silêncio”, descobrissem que não apenas podiam
falar, mas, também, que seu discurso crítico sobre o mundo, seu mundo, era uma
forma de refazê-lo”. Assim, as professoras Terezinha e Neusa colaboram
novamente:

Neuza: Mas aí o conflito é uma política, né? Pode notar que a maioria
desses professores, eles tem 40 horas, e de repente não há disponibilidade
deles nesses horários flexíveis, porque eles têm outra escola também. Se
tivesse uma política que o professor que ficasse na escola ganhasse uma
porcentagem maior, ai não precisava o professor pegar outra escola, e aí
acontecem esses conflitos aí. [...]. Não é contra as gurias, porque elas
não têm culpa, acho que elas deveriam ser valorizadas, com um salário
bem melhor que elas não precisassem fazer essas quarenta horas e
pudessem ficar aqui, é isso que eu penso.

Luciana: E vocês avaliando tudo isso que já estão no final de uma


trajetória, mas dá pra ver que a veia de vocês pulsa muito por este
ambiente, por essa terra. Vocês levantam essas questões na escola, de
despertar a comunidade pra essa nova concepção, vocês tentaram fazer
esse tipo de trabalho?

Terezinha: Acho que nas reuniões sempre fica muito polêmico.

Luciana: Em que sentido?

Terezinha: Não sei, Ou dá, ou não dá, ou é difícil ou não é difícil... É


que as pessoas não conhecem, entende? Não conhecem essa
realidade.

Neuza: A própria horta vira projeto de um professor, não é projeto da


escola, de todos, e se todos fossem lá trabalhar, mas a gente não
conseguiu ainda. A gente até tentou, mas não deu certo.

Luciana: Esse ponto de pertencer ao campo, vocês acham então que isso
é fundamental?

Terezinha: É fundamental, importante, mas enfim, não é a mesma coisa.


Tem que entender a realidade, por exemplo, tempo de colheita, eles estão
colhendo, a prioridade é colheita, então talvez um horário mais flexível. O
calendário é igual a todos os outros. Começa pelo calendário e vai até
o conteúdo, porque eu estudo as partes da planta, mas não vou ali
conhecer uma planta. E nós temos esse conhecimento, mas tem
criança que, por exemplo, não conhece uma salsa, mas estuda a
palavra na alfabetização...

Neuza: É como falei da professora que nos dividiu os pedacinhos de terra,


cada um cuidava do seu terreno.
72

Luciana: seria um projeto maior de escola no caso?

Terezinha: É, não pode ser uma professora só ou duas.

Luciana: E nesse sentido que tu falaste que desistiu, existe esse


sentimento de silenciamento em vocês?

Terezinha: Acho que cada vez mais, eu estou me silenciando bastante.


Vejo que a Universidade também não colabora muito quando ela não
entra mais assim.

Neuza: E até os próprios cursos de licenciatura, deveriam ser mais


voltados a isso.

Novamente, retoma-se a necessidade de discutir a realidade do campo na


escola; a busca pela valorização do professor para que este tenha oportunidade em
permanecer nessa escola; o imbricar-se nessa realidade, tornar-se pertencente
desse lugar; o pensar e o desenvolver de projetos próprios para essa educação,
com currículo e calendário próprios para o campo; e, ainda, o desafio lançado à
Universidade a pronunciar-se, aos cursos de licenciatura para inserir essa
modalidade educativa em seus currículos. Dessa forma, seria um significativo
desafio o Centro de Educação criar o curso de Pedagogia com ênfase em Educação
do Campo. Uma iniciativa que poderia, ao longo dos anos, ajudar a desconstruir este
cenário de desencanto e desalento que as nossas coautoras narram.
Portanto, acreditamos que o engajamento dos professores em sua instituição
de ensino oportuniza dar sentido ao seu próprio desenvolvimento profissional e,
consequentemente, pessoal, pois romper “a mordaça” do silêncio e possibilitar ao
professor dizer a sua palavra7poderá ser fator determinante para a tomada de
consciência da própria limitação e, assim, de busca de sua libertação. Conforme o
excerto abaixo, Freire (2009, p. 100) aponta que:

[...] inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos


tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados,
condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura
percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É
preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo.

7
Fiore prefacia a obra de Freire, Pedagogia do Oprimido: “Condições de poder re-existenciar
criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua
palavra... Mas, para isto, para assumir responsavelmente sua função de homem, há de aprender a
dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunhão humana em que se constitui;
instaura o mundo em que se humaniza, humanizando-o... Com a palavra, o homem se faz homem.
Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana.
(FREIRE, 1987, p. 7)
73

A partir das considerações elencadas ao longo do texto, referentes à tomada


de consciência da possibilidade de libertar-se e, principalmente, à luta política pela
transformação do mundo, sentimo-nos provocados a refletir sobre as relações
estabelecidas no interior das Escolas devido à grande demanda humana existente
nas instituições de ensino. Isso tem nos desafiado, cotidianamente, a pensar sobre a
necessidade de uma formação continuada “para e com” os professores em vários
quesitos além da capacitação e aperfeiçoamento profissional, mas também no que
compete a relacionamento, à ética, à identidade com a escola, entre outros;
buscando romper com a invisibilidade dos atores que lá atuam, principalmente no
fazer docente em sala de aula. Assim, Souza (2012, p. 47) colabora no conceito de
espaço aprendente:

A apreensão do lugar, como “espaço aprendente”, destaca-se pela


participação da ação coletiva, pelos modos como forjamos nossa identidade
cultural e de solidariedade coletiva, implicando nas redes de saberes que
circulam e ligam-se aos territórios. Tais redes vinculam-se as ações dos
lugares e implicam-se com os atores, favorecendo a noção de lugar
“aprendente”, pois possibilitam através das relações que neles se
estabelecem marcas recíprocas entre saberes formalizados e saberes da
experiência. Nesta perspectiva, a noção de “lugar aprendente” articula-se às
capacidades de ação coletiva dos atores e suas próprias transformações,
tanto das paisagens, quanto dos atores, numa dimensão de criatividade
coletiva, possibilitando a reconfiguração de existências individuais, coletivas
e projeções biográficas dos atores em seus territórios.

A proposta de desenvolver, no espaço educacional, o “espaço aprendente”


como formação continuada de professores para as escolas do campo, além de
viável, parece ser uma possibilidade real em transformação local, por meio de ações
coletivas, que emergem no individual auto(trans)formação, à coletiva, favorecido
pelo lugar “aprendente” como espaço de trocas e relações recíprocas entre saberes
formais e saberes experienciais. Imbricam-se, dessa forma, a identidade cultural a
se reconfigurar, ligando seus atores em seus territórios. Para a formação dos
professores, Antunes (2011, p. 26) salienta:

A formação dos professores deve levar em consideração o desenvolvimento


pessoal. O “professor é a pessoa” e, por essa razão, é preciso investir na
identidade pessoal e no saber da experiência vivida. Esta experiência deve
vir aliada à produção do saber para o melhor aproveitamento do formador e
do formando, já que a formação está intimamente a ela ligada.

Entendemos que proporcionar a formação continuada no/com espaço


aprendente, isto é, a formação continuada no lócus em questão, potencializa o
74

saber da experiência vivida e, portanto, a identidade pessoal/profissional nos/dos


docentes. Abaixo, compartilhamos um pouco mais de nosso círculo dialógico:

Neuza: Eu acho que no nosso ponto de vista, na formação continuada era


bem melhor, a gente tinha assim uma atenção especial, não sei se tu
lembras Terezinha, em cada série nós tínhamos um encontro uma vez por
mês, todas as escolas de campo tinham encontros, todo o dia útil do mês a
gente se encontrava e aí discutia problemas das escolas, e era bom aquilo,
porque tu trabalhavas com a turma, com as séries, e eram Escolas do
Campo.

Luciana: Isso há quanto tempo atrás?

Neuza: Faz tempo... Acho que foi em 2001. Não lembro bem a data, mas
eram muito bons os nossos encontros, a gente trocava bastante ideia.

Luciana: E quem promovia esses encontros era a SMED ou a


universidade?

Neuza: Era a SMED. A gente se encontrava todos os meses, e aí naquele


dia, o último dia útil do mês a gente já sabia, a escola já se organizava,
quem é que ia ficar com a turma, quem deixava material e a gente ia pra lá.

Luciana: Era o dia inteiro de encontro?

Neuza: Era, a gente ficava lá, era muito bom. Teve uma época bem antes,
quando eu iniciei lá em 1978 ou 1979, que a gente criou a cartilha João de
Barro, foi um trabalho que a gente criou com as experiências da Escola do
Campo, a gente criou até cartilha! E lembro e em um dos cursos a Helenise
falou da cartilha João de Barro, não sei o que eu fiz com a minha que eu
perdi, mas tenho vontade de rever, resgatar, porque era uma cartilha
voltada para as Escolas do Campo, voltada pras crianças do campo, então
acho que a gente crescia muito nesses encontros e esses outros que a
gente fazia por escola, a gente crescia.
Casualmente hoje no intervalo até a gente comentava que sala de aula
hoje “emburrece” a gente, porque a gente não estuda, não lê, e a gente
não tem mais encontro. Se tu queres ir num curso não tem quem fique
no teu lugar, e saem cursos maravilhosos, mas a gente não pode ir
porque não tem ninguém pra nos substituir.

Luciana: Não tem incentivo?

Terezinha: Não tem incentivo pra gente fazer os cursos, então eu tô me


sentindo assim, sai sábado do pnaic com essa coisa engraçada, essa
semana me floresceu isso, veio a fora assim, depois de sábado do
encerramento do pnaic, depois de todas as dificuldades que a gente teve,
enfim, porque pra começar tem que ser no sábado à tarde, por que não
acha um horário durante a semana? Por quê? Porque que a gente não
pode durante a semana alguém nos substituir e a gente ir lá e fazer?
Mas tem que ser um sábado na folga do professor, então começa por
aí.

Neuza: É o dia inteiro, é como a formação que eu disse, é muito gostoso a


gente ir, porque é um dia de aula, e a gente saía daqui e tinha um professor
que ia ficar com a nossa turma...

Luciana: E quem é que colocou esse horário de sábado? Foi a Smed ou foi
o pessoal do Pnaic?
75

Terezinha: Até hoje ninguém explica quem foi, e a gente foi sábado pra
levar uma proposta pra dizer que fizessem durante a semana ou à noite ou
à tarde, enfim, e aí a gente chegou lá e já estavam até as datas prontas pro
ano que vem.

Luciana: O mesmo dia da semana?

Terezinha: Também no sábado. Muita gente se desestimula, eu gosto do


Pnaic, eu vou no Pnaic, mas se torna cansativo, principalmente no sábado à
tarde. Acho até que se fossem dois sábados, mas de manhã, sem problema
nenhum. Então a questão da formação continuada deixa a desejar
nesse sentindo, tem que ser num horário que alguém quer, não somos
nós, ninguém nos consulta pra perguntar “tu podes nesse horário”, e
tem que ser final de semana, não sei porque, ninguém nos explica
porque. Mas eu acho que está deixando sim muito a desejar por parte da
secretaria de educação. A Universidade, acho, que oferece bastante, mas a
gente não tem incentivo até pra ir até lá. Por isso que eu tô pensando em
voltar no grupo de estudos, porque eu tô me sentindo bem
“emburrecida”. Eu saí da Universidade em 2001, fiz depois uma
especialização em 2002, e olha, lá se foram já 12 anos. Então eu me
sinto assim, cada vez é mais difícil ir num curso.

Luciana: Então hoje a formação que vocês estão recebendo em Escola do


Campo é pelo Pnaic?

Neuza: Sim, não tem outra.

Luciana: E começou ano passado?

Terezinha: Sim, no ano passado.

Luciana: Então desde o início da década de 2000 até agora ficou um


grande vácuo.

Terezinha: Teve alguns encontros do Estado, mas foram assim, eventuais.


Aí tu chega lá e a discussão é sempre a mesma, parece que não avança.

Luciana: E acha que o Pnaic, essa proposta, é válida?

Terezinha: Acho que sim.

Luciana: Está valendo à pena?

Terezinha: Está valendo, os livros, o material... a orientadora


maravilhosa, e como ela é do campo o trabalho faz muita diferença.

Neuza: Para nós o que dificulta é ser o dia inteiro no sábado... Se fosse
dois sábados até o meio dia até daria. O problema é ser o dia inteiro... Tu já
trabalha a semana inteira...

Neuza: É aí que tá o desenvolvimento da formação continuada, não é pegar


um livro e ler um autor, até pode ser uma leitura inicial, mas o crescimento é
a troca, e aí eu penso o que é que eu posso fazer com cada aula de acordo
com aquele trabalho que ela apresentou, e aí vai indo, e é aquilo que é o
bom da formação continuada.

Luciana: Estava perguntando aqui para a Terezinha; no caso de toda a


escola, são vocês duas que estão participando do Pnaic?

Neuza: Sim.
76

Luciana: Tu visualizas a possibilidade de trazer todo esse conhecimento,


todas essas trocas que estão sendo contempladas nesta formação, trazer
para dentro da escola com as demais colegas?

Neuza: Olha, o difícil é que não estamos tendo nem reunião para nós para
chegar, por exemplo, eu e a Terezinha e dizer “olha nós temos isso pra
passar pras gurias”, mas é nos recreios, ligeiro, entendeu? Teria que ter um
tempo pra gente passar pras colegas, trocar com as colegas isso, mas é
isso que estamos tendo, não tem tempo.

Essas e outras situações ilustram perfeitamente a necessidade de fazer-se da


Escola um “espaço aprendente”, possibilitar a formação em serviço, no lócus de
atuação a todos(as) educadores(as) que ali exercem sua profissão, e não restringir a
um número mínimo do corpo docente, o conhecimento e trocas de experiências, em
questões inerentes a todos(as) os professores(as) que “pertencem” a esta escola.
Então, vivenciar este novo tempo reflexivo-institucional-escolar tem se tornado mais
instigante, uma vez que as discussões acerca da importância do olhar sobre o
professor enquanto sujeito vivo e histórico tem se mostrado fundamental na
atualidade. Por muito tempo afirmou-se em reuniões de professores que o espaço
de trabalho estaria desvinculado da vida pessoal, o que contraria a percepção de
hoje. Percebemos que esse pensamento foi um equívoco, trazendo frustrações e
sofrimentos psíquicos. Portanto, a formação profissional deve considerar também o
desenvolvimento do professor enquanto ser social e histórico, valorizando suas
experiências vividas, (re)significando-as para a produção do saber. Nesse sentido,
Isaia (2009, p. 99), aponta-nos o seguinte sobre a trajetória profissional:

A trajetória profissional, partindo desse pressuposto, é vista como um


processo complexo, um conjunto de movimentos em que revolução e
involução estão presentes; em que fases da vida e fases da profissão se
entrecruzam, mas não são uma só, visto que, fundamentalmente, esse
percurso é, em muitos aspectos, único. [...] Exatamente por haver
entrecruzamento, muitas vezes, torna-se difícil programar novas estratégias
de formação e de desenvolvimento profissional, pois essas gerações podem
interagir, podem se repelir ou mesmo se desconhecerem como parceiras na
construção do mundo acadêmico-pedagógico.

Nesse modo, desperta a reflexão o quanto é desafiador o desenvolvimento de


uma formação continuada que alcance ou satisfaça um significativo grupo de uma
escola, uma vez que, em um mesmo local de atuação, estão presentes profissionais
de diferentes gerações. Em alguns momentos, adequar o horário da formação
continuada parece um mero detalhe, mas para o grupo de professores pode ser um
sinal de respeito e acolhida.
77

Nesse processo de formação continuada, não podemos esquecer que o


nosso material é humano, o que vem nos desafiar ainda mais a qualificar a
comunicação, o respeito, a ética, o diálogo. Para Freire (2009, p. 81), “quanto mais
tolerantes, quanto mais transparentes, quanto mais críticos, quanto mais curiosos e
humildes, tanto mais assumem autenticamente a prática docente”. Para além de
tratarmos de educação, também tratamos de formação humana, em que todos
atuam na sociedade nas mais diversas funções: familiar, profissional, cidadã, entre
outras. Assim, para Isaia (2009, p. 100) “o desenvolvimento do professor como
pessoa e profissional é gerado por crises, contradições e conflitos, entendidas de
forma construtiva, como ocasião de mudança e transformação”. Ainda nesse
sentido, Antunes (2011, p. 27) complementa:

Nesse sentido, pensar em construir estratégias para o professor que atua


no Ensino Fundamental repensar em serviço as suas práticas educativas
proporciona condições para que os professores compreendessem os
significados em torno da sua escolha profissional, da sua carreira docente,
da sua prática pedagógica, da sua formação inicial, da sua formação
continuada e da sua existência enquanto ser humano e profissional. Todas
as questões, estão colocadas, partiram de um pressuposto: o professor
precisa olhar para si mesmo e compreender-se como pessoa, com uma
história de vida que precisa ser conhecida, que realizou trajetórias
singulares na carreira docente, que seus alunos e os seus colegas de
profissão também são pessoas com histórias de vida pessoal e profissional
que necessitam ser conhecidas.

Conforme o exposto, acreditamos que a formação em serviço tenha essa


possibilidade para a compreensão e reflexão do professor, de si e de suas escolhas,
suas trajetórias e, consequentemente, sua história. Uma formação em serviço
organizada e planejada poderá oportunizar um excelente espaço para o
desenvolvimento pessoal e profissional dos educadores. Poderá ser desenvolvido
através de estratégias de sensibilização e humanização referenciando a importância
de respeitar o outro independente de suas ideias e opiniões, simplesmente por
perceber o colega como um ser possuidor de necessidades tais como a si mesmo,
com uma história de vida e experiências acumuladas por meio de sua trajetória
pessoal e profissional.
Souza e Meireles (2014, p. 75-76) indagam “propor outros olhares e outros
modos de ensinar e aprender em escolas rurais, delineando assim, um projeto de
escola rural que faça sentido para os sujeitos que habitam esses espaços, bem
como para os professores que atuam nesses contextos”. Para Júnior (2008, p. 243-
244):
78

Nesta modalidade formalizada, a Educação ganha novos desafios, pois


além de ser ensinada, ela deve ser também gerenciada, administrada com
vias a possibilitar uma formação humana em educadores e educandos. A
escola, por ser uma organização que proporciona o convívio entre diversos
sujeitos, possui um caráter pedagógico que visa a formação humana para
transformação da sociedade. Logo, a administração deste tipo de instituição
tende a ser diferenciada das demais. Desta forma, a cultura que é
instaurada em uma escola está diretamente ligada às perspectivas de sua
gestão.

Nesse sentido, a escola possui um caráter pedagógico para a transformação


da sociedade por meio da formação humana, traz uma implicação diretamente em
seus gestores e em suas formas de gestão. Portanto, uma das formas para qualificar
o espaço-escola enquanto comunidade-única poderá ser desenvolver nos
profissionais que lá atuam a identidade com a instituição e o sentimento de
pertencimento àquela comunidade. Essa identificação é essencial para o
enfrentamento dos desafios reais, almejando superá-los na expectativa de
ocorrerem as mudanças necessárias para a transformação do espaço educativo.
Partindo da interlocução com Nóvoa (2009, p. 42):

Através dos movimentos pedagógicos ou das comunidades de prática,


reforça-se um sentimento de pertença e de identidade profissional que é
essencial para que os professores se apropriem dos processos de mudança
e os transformem em práticas concretas de intervenção. É esta reflexão
coletiva que dá sentido ao desenvolvimento profissional dos professores.

São esses movimentos pedagógicos que provocam a reflexão de si, um


sentimento de pertencimento e de identidade profissional, oportunizando uma
revisitação em si, e, por conseguinte, a reflexão coletiva nos diversos meios e
espaços. Destacamos a relevância de estarmos abertos para o diálogo, para as
mudanças, para o outro. Freire (1997b, p. 154) afirma que “o sujeito que se abre ao
mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma
como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na
história”. Portanto, quando nos abrimos para o outro, abrimo-nos para uma relação
dialógica, o que nos coloca em movimento com a nossa própria história. A seguir,
um pouco mais do nosso diálogo:

Luciana: E tu achas que se fosse organizado esse momento que é da


nossa profissão de planejamento, deveria ser contemplado, haveria a
abertura das professoras em escutar, em partilhar?

Neuza: Acho que sim, as colegas são abertas.


79

Terezinha: E mesmo assim a gente faz as trocas, rapidinhas.

Neuza: Isso, a gente faz rapidinho. Porque a gente muito uma ajuda a
outra, o que tem de diferente traz pra colega, a gente faz isso, só que é o
tempo né? Recreio é “ah, eu tenho isso aqui, se tu quiseres quem sabe tu
mostra”, ou pergunta pra uma colega, a gente é bem acessível, mas é
conversa assim, ligeirinha.

Terezinha: A proposta já mudou várias vezes, até a primeira foi bem


interessante porque ela foi construída com a comunidade, foi uma proposta
que a gente trouxe do curso de especialização, a gente fazia na
Universidade.

Neuza: Se lembra, a gente tinha uma vez por mês aqui, a gente se
encontrava os dois turnos, e faz tempo que a gente não faz mais isso.

Luciana: De pegar, no caso, as séries iniciais e as séries finais?

Neuza: Isso. E aí a gente trabalhava os assuntos, até por isso que eu digo
que a coisa andava melhor. Mas agora tem colegas que quanto tempo faz
que eu não vejo... Como é que eu vou dizer que ela não tem vontade de
trabalhar se não tenho conversado com ela?

Terezinha: A gente só se encontra na primeira e na última reunião.

Luciana: E é uma escola só. Às vezes parece-me, dá a impressão que


dividem tanto, “aqui é a educação infantil”, “aqui é a séries iniciais”, “aqui é
anos finais”, mas é uma escola!

Terezinha: É uma escola, é um aluno que vai passar por todas. A


preocupação da gente é essa, porque vai passar por todas...

No diálogo acima, quando questionadas em relação às reuniões de


planejamento, sobre a existência de abertura por parte das colegas na escuta de
seus anseios, sentimos serem contraditórias suas respostas, pois, em outros
diálogos, haviam respondido que já estavam cansadas em insistir, desistidas para as
discussões, e ainda, a escola estava sem tempo para reuniões de planejamento.
Nesse momento do diálogo, a colaborada Neuza diz: “acho que sim, as colegas são
abertas”, e logo em seguida comentam que muitas professoras se veem apenas no
primeiro e no último dia de aula, comentário que inviabiliza uma afirmação positiva
em relação à abertura por parte das colegas para a discussão dessa realidade, pois
não há convívio com as mesmas. Há uma fala em que a professora Neuza enfatiza:
“como é que eu vou dizer que ela não tem vontade de trabalhar se não tenho
conversado com ela?”. São gestos, olhares, silêncios que nos fazem pensar sobre
as posturas recorrentes de professores nas escolas em geral, o que desperta muitos
questionamentos. Mas, inquietou-nos, principalmente, o último comentário desse
80

recorte do diálogo: “é uma escola, é um aluno que vai passar por todas. A
preocupação da gente é essa, porque vai passar por todas...”.
Os desafios são muitos e diversos, podemos dizer que a formação em
serviço, ou, no lugar aprendente, é vital para a escola, para os profissionais que lá
atuam, assim como para a comunidade pertencente a esta escola. Portanto, estar
em formação é uma procura pela transformação como profissional, é (re)pensar
suas teorias e práticas, são buscas de novas perspectivas, como aponta Imbernón,
e isso não é simples, pois

A solução não está apenas em aproximar a formação dos professores e do


contexto, mas, sim, em potencializar uma nova cultura formadora, que gere
novos processos na teoria e na prática da formação, introduzindo-nos em
novas perspectivas e metodologias. Como, por exemplo, as relações entre
professores, seus processos emocionais e atitudinais (IMBERNÓN, 2010,
p. 40).

Corroborando com essa perspectiva, Antunes (2012, p. 143) afirma que “a


privação do conhecimento determina que inúmeras professoras desconheçam as
possibilidades abertas a toda existência humana. Não há limite para todos aqueles
que desejam conhecer e criar novas formas de pensar a sociedade”. Dessa forma,
acreditamos que o engajamento dos professores com a instituição de ensino por
meio de formações que contemplem as suas especificidades, oportuniza dar sentido
ao seu próprio desenvolvimento profissional, e, consequentemente, pessoal.

3.3 História de Vida e narrativas (auto)biográficas como dispositivo de


formação docente:

Após as considerações acima, referentes à formação continuada para


professores das Escolas do Campo, passaremos, a seguir, a refletir sobre a
metodologia História de Vida e narrativas (auto)biográficas como estratégias para
uma formação específica para esses profissionais. De acordo com Souza (2012,
p. 53):

Construir pontes, derrubar muros e pensar outras possibilidades teórico-


metodológicas do trabalho nas escolas rurais tem sido desafios que nos
lançamos cotidianamente. De certo que, as possíveis aproximações entre
pesquisa narrativa, mediante a dimensão colaborativa das trajetórias
81

(auto)biográficas dos sujeitos que habitam o território rural, tem nos


ensinado a compreender o lugar da memória e a memória do lugar na
educação rural.

Pensar outras possibilidades teórico-metodológicas para a formação


continuada para professores da Escola do Campo não se dá pelo acaso, mas sim
pela necessidade em se pensar, (re)pensar nas especificidades da modalidade
educacional em discussão. Não um simples pensar “por eles”, mas “com eles”. E,
para a compreensão e apreensão do território rural, este poderá ser por meio da
inserção ao lugar da memória e a memória do lugar, como Souza nos convida a
conhecer. Para o referido autor (2012, p. 36), “como perspectiva metodológica,
pesquisas com narrativas (auto)biográficas, [...] são marcadas como um trabalho
formativo, mediante reflexões coletivas das experiências pedagógicas,
empreendidas enquanto dispositivo de investigação-ação-formação”.
Podemos pensar que, parafraseando Passeggi, Abrahão e Delory-Momberger
(2012, p. 32), refletir e escrever na perspectiva das experiências e expectativas de
vida dirige-se para uma formação-emancipação, em que tal reflexão sobre si e sobre
o outro, possa vir a deflagrar o poder-emancipador, tanto no individual quanto no
coletivo. Para as colaboradas do estudo:

Terezinha: Eu era professora única do primeiro ao quinto ano. Claro, estava


iniciando minha carreira, hoje já tenho outra realidade, então a gente
trabalhava todas essas questões, todas, enfim, trazia para a sala de aula.
Só que eles tinham medo de sair, eu incentivava que eles fossem, saíssem
pra estudar. Eu não tinha essa mentalidade que tenho hoje, de trabalhar
pra que eles ficassem mais no campo. Eu tinha a mesma cabeça que
meu pai dizia, “vão estudar, vão buscar porque a vida não ta fácil.

Neuza: Meus pais também diziam isso, “vai estudar, não fica aqui
trabalhando.”

Terezinha: Só que está mais difícil agora, tem toda uma cultura que está
por traz disso, por exemplo, mesmo que não tenha incentivo do governo pra
que ele fique no campo. Não tem muito isso, por exemplo, a questão da lei
que a gente ta há anos esperando que aconteça, que é uma lei que está no
senado já há anos, que saía uma verba pra quem mora no campo e quer,
por exemplo, uma partilha de terra, que um dos herdeiros possa pegar um
empréstimo e comprar de todos, para que ele fique. E o que acontece é que
ele tem que vender toda pra dividir entre os outros da família, porque um
não consegue comprar de todos, que é o que está acontecendo agora com
as terras da minha família, quer dizer, um tem que vender, mas os outros
não podem comprar, ai não tem um empréstimo, alguma coisa, um incentivo
do governo que tu possa dizer “não, óh, vou pegar um empréstimo do
governo para eu pagar em tantos anos, mas que eu possa pagar o valor
justo para quem não quer mais ficar no campo”, e aqui a gente se viu
quantas pequenas propriedades que as pessoas não puderam permanecer
no campo e tiveram que vender tudo para poder dividir entre todos. Tudo
82

por falta de política agrícola, a produção também é caríssima pra produzir e


nem todo mundo tem. Para comprar uma máquina é muito caro, não tem
muito essa ideia de cooperativismo, por exemplo, não precisava cada
família ter a sua máquina de colher, podia ser uma máquina coletiva, e
não tem isso, quando a gente tenta fazer uma coisa coletiva não dá
certo. Eu participei bastante em um grupo aqui, a gente tentou montar
um grupo para fabricar bolachas, eram seis ou sete mulheres. Até
quando a ideia surgiu, eu disse: “mas para que tá comprando umas
bolachas tão ruins? Vamos produzir.” E depois não deu certo, só criam
inimizade, porque não se tem essa ideia de cooperativismo que precisa
ser trabalhado. Dentro da escola mesmo, a gente visitou uma escola da
cooperativa em Nova Petrópolis, junto com o pessoal do PIBID lá da
Universidade, a gente foi pra lá e é bem interessante, a escola toda se
envolve na questão do cooperativismo, e o próprio cooperativismo
acontece dentro da escola, os alunos se reúnem, montam uma
diretoria e tem diretoria de cooperativa, tem reunião de cooperativa,
quer dizer que eles vão se criando fazendo isso.

Nesse diálogo, podemos observar, a partir das histórias de vida, a


convergência com as histórias de cunho profissional, em que, em um dado
momento, houve a reprodução da mentalidade em sair do campo perpetuado de
geração em geração, tal concepção transmitida de pais para filhas e,
consequentemente, de professoras a alunos(as). Mas também podemos observar
que, na oportunidade em que se rompeu a ideia de que sair do campo é a melhor,
ou talvez, a única possibilidade de melhorar na vida, tornou-se possível pensar em
possibilidades para a superação de desafios oriundos da comunidade rural. Dessa
forma, Passeggi, Abrahão e Delory-Momberger (2012, p. 40) contribuem com o
seguinte posicionamento:

Esse é certamente o posicionamento epistemológico que a autora vislumbra


na perspectiva da pesquisa (auto)biográfica em seus estudos sobre a
relação entre biografia e Educação: a dimensão da construção biográfica
numa dinâmica temporal na qual a projeção do devir torna-se fundante do
sujeito.

A dimensão temporal, a qual as autoras se referem para a projeção do devir,


enquanto fundante do sujeito permite-nos viajar nas seguintes reflexões: “o que me
tornei?”, o “que eu gostaria de ter me tornado?”, o “que eu gostaria ainda de ser?”.
Para Passeggi, Abrahão, Delory-Momberger (2012, p. 44-45):

Sobre o projeto de si, admitimos como hipótese de trabalho que no adulto é


comum a coexistência de pelo menos dois projetos de si: um projeto
anterior, amarelecido pelo tempo, e que já não satisfaz à condição atual do
sujeito, e um projeto de si a ser elaborado no processo de biografização. A
dificuldade do sujeito para se desvencilhar de um projeto que perdeu suas
cores pode ser mais dilacerante do que dar-se conta de não ter projetos.
83

Conforme exposto acima, os riscos do insucesso neste processo de busca de


si, na tomada de consciência em que seu projeto perdeu suas cores e a não
reelaboração de si, poderá ser mais trágico do que se dar conta de que não se têm
projetos. Por esse motivo, o que se espera do processo de biografização é que a
pessoa venha a compreender sua história para além da linha do tempo cronológico.
Por meio da tomada de consciência, revisitar o passado, atravessando o presente, e
assim, projetando o futuro: “O que me tornou quem sou? Por que penso desse
modo? Em que e como posso mudar a minha vida? (PASSEGGI; ABRAHÃO;
DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 44). Dessa forma, torna-se possível caminhar
pelo passado e se projetar em devir.

Neuza: Pra mim, é difícil falar sobre isso, mas sinto que alguma coisa
ficou incompleta, não ficou completo o meu trabalho, porque a gente
sente que tem certos traves que não consegue, mas que gostaria de
trabalhar bem mais, fazer com que o aluno daqui valorize isso, porque
não adianta incentivar esse aluno a sair daqui, se sair daqui e ele não tiver
onde morar lá na cidade, onde é que eles vão quando saem daqui? Para as
periferias. Lá eles vão aprender mais coisas ruins do que boas, com quem
eles vão conviver. Então eu penso assim, às vezes saio daqui sentida,
porque parece que a gente não ensinou, faltaram coisas, essa coisa boa
de a gente ensinar pro nosso aluno... É triste tu ver um jovem aqui da
colônia não saber pegar uma enxada, não ter amor pela terra... Então
eu me sinto assim, que tem uma parte que faltou; E às vezes a gente
encontra nosso aluno ou vê dando na polícia “ah, fulano foi preso”, e era
aluno nosso aqui de fora. Então são coisas assim, esses dias mesmo
quando deu na polícia do D., que foi meu aluno, eu fiquei assim “mas o que
é que nós fizemos?”.

Com olhar entristecido, como quem visualiza muitas interrogações, a


colaboradora Neuza desabafa ao ser questionada sobre o sentimento de estar
prestes à aposentadoria, em fase final de carreira. Em sua resposta, transmite um
tom de fracasso ao não conseguir influenciar nos alunos o amor pela terra, assim
como a impotência frente ao sistema capitalista ao falar: “mas o que é que nós
fizemos?”.
Historicamente, há o anseio pela liberdade e o desejo de tomar em suas
mãos a sua própria vida é inerente ao homem, é subjacente à concepção da
formação-emancipação do sujeito. Assim descreve Passeggi, Abrahão, Delory-
Momberger (2012, p. 34): “Contra as teorias da suspeição e do apagamento do
sujeito retomam-se os vínculos entre o sujeito-ator-autor-em-devir e o poder da
palavra como fonte de empoderamento e de resiliência”. A força da linguagem aliada
84

à resilência, empodera o sujeito ao protagonismo de sua vida. Por estas razões,


concordamos com Freire (1997b, p. 60):

O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe


numa posição em face do mundo que não e a de quem a ele se adapta,
mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser
apenas objeto, mas sujeito também da história.

Ao deparar-se com um autoconfronto de sua trajetória, a professora Neuza


(embora aparentasse um abatimento após refletir sobre o percurso docente) instiga-
nos a pensar que este abatimento, na verdade, foi o momento da tomada da
consciência, que não está adaptada a este mundo, mas sim inserida, sujeito também
da sua história! É a vontade fundante de tornar-se protagonista de sua própria
existência.
Nesse mesmo posicionamento, percebemos o que Souza nos fala sobre a
modalidade de educação em questão, inserida no contexto de uma nova ruralidade,
isto é:

Tais questões vinculam-se ao reconhecimento da necessidade de localizar


e territorializar o rural, de modo que as experiências vivenciadas
cotidianamente no espaço rural possam ser incorporadas e valorizadas pela
escola e tratadas de forma particular, onde cada sujeito possa se relacionar
consigo mesmo, com o outro e com a natureza de maneira sustentável,
como forma de enfrentamento do processo de artificialização da vida,
fabricado a partir das formas de socialização escolar, que fez com que os
sujeitos rurais fossem apartados da própria vida, uma vez que suas
experiências sociais não integravam os padrões que constituíam os
currículos das escolas rurais (SOUZA E MEIRELES, 2014, p. 82).

Para o enfrentamento do processo de “artificialização da vida” no contexto


rural, Souza faz alguns apontamentos às formas de socialização escolar, sendo
estas vinculadas ao reconhecimento das experiências vivenciadas cotidianamente,
devendo ser incorporadas e valorizadas na/pela escola, oportunizando o sujeito a
relacionar-se consigo, com o outro e com a natureza.

Neuza: Eu estudei no Margarida, que era considerado urbano, e nós


trabalhávamos com enxada, horta, e nós tínhamos parte de cultura sim e de
agricultura. Aí a parte de agricultura era na horta. E culturas eram mais com
as flores e árvores. E o professor nos fazia abrir buraco com a pá e carregar
esterco daqui e dali, sabe. Nós trabalhávamos melhor do que aqui.

Neuza: Eu que estudei numa escolinha pequena, e era assim, foi bem
interessante, a professora dividiu o terreno da escola, era só ela pra fazer
todo o serviço, aí ela nos pedia ajuda daqui e dali, e ela fez isso de uma
maneira inteligente. Ela pegou todo o pátio da escola e dividiu em terrenos e
deu um terreno pra cada aluno, e disse assim: “agora vamos ver, vocês vão
85

trabalhar, vão plantar, vão deitar bonito como vocês quiserem, vamos ver
quem é que vai deixar mais bonito esses terrenos”. E todo mundo capinava
o seu terreno, todo mundo plantava florzinha. Então a maneira de deixar o
pátio limpo era fazendo isso ai, ninguém quebrou a coluna e nem nada.
Claro que a gente plantava nossas flores, olhava o canteiro do vizinho.

Luciana: Tu estavas em que série?

Neuza: Quarto ou terceiro ano.

Luciana: Bem pequenininha...

Neuza: Não era tanto, porque a nossa vivência era disso. Em casa já era
assim. Não era como nosso aluno hoje que não sabe pegar uma enxada,
nós já éramos acostumados em casa a fazer esse serviço.

Luciana: Já era a realidade de vocês...

Neuza: Já era a realidade nossa, o pátio era lindo de ver, na primavera era
lindo, tudo florido, um trazia uma flor, outro trazia outra. Era uma maneira
inteligente de cuidar, agora vai fazer isso hoje...

Ao rememorar suas vivências enquanto aluna, a professora Neuza


compartilha da estratégia firmada por sua professora na sua infância, esta buscava
motivá-los a cuidar da escola da mesma forma que os alunos já estavam habituados
a fazer em suas casas, o que acarretava, ainda, o ensino para a preservação da
natureza, e finaliza o diálogo com a seguinte provocação: “agora, vai fazer isso
hoje...”. Nem a própria família incentiva seus filhos no cultivo da terra. As nossas
coautoras apontaram que existem famílias que precisariam e não estimulam esta
prática conforme pode ser lido no seguinte trecho compartilhado pela professora
Terezinha: “E aqui a gente coloca eles na horta, quando consegue pôr na horta, aí
vem um bilhete da mãe: não quero que meu filho trabalhe na horta, não quero que
meu filho se suje”.
Famílias sem pertencimento, vítimas de uma violência simbólica cultural e
econômica. A falta de incentivo familiar faz com que muitas crianças e jovens
sintam-se sem estímulo e vontade de viver o momento presente e construir um
futuro melhor. Situação que está presente na infância e na juventude, quando se
está vivenciando o espaço urbano devido à falta de tempo e envolvimento das
famílias com seus filhos.
Quem sabe qual a infância que temos hoje? Assim como os professores não
conseguem dialogar entre si, também não conseguem estabelecer o diálogo com
seus alunos! Pensamos e reafirmamos que o ouvir o outro é necessário no cenário
educacional. Ainda para Souza e Meireles (2014, p. 82, 83):
86

Afinal de contas, as escolas localizadas em espaços rurais oportunizam aos


sujeitos o acesso a escolarização em seu próprio espaço de vivência, fator
que contribui significativamente para a permanência dos sujeitos no espaço
rural, com fortalecimento dos laços de pertencimento e a afirmação de suas
identidades culturais. Desse modo, mesmo com as representações
negativas e os estereótipos que tem recaído sobre as escolas rurais, sobre
seus professores e estudantes, outros olhares parecem apontar para uma
nova concepção sobre essas escolas. Assim, a partir de um movimento de
inversão, o que até então foi enxergado como um problema, pode agora ser
entendido como possibilidade [...].

Pareceu-nos um reascender da esperança em nossas colaboradoras quando


compartilharam sobre as possibilidades existentes no campo, como a agricultura
familiar, o cooperativismo, o cultivo de alimentos livres de agrotóxicos, a preservação
da natureza, entre outros fatores, o que converte essa fala com a fala de Souza e
Meireles (2014), acima já referenciada, uma inversão de concepção, em que, o que
era visto como problema, agora pode ganhar status de possibilidade!
Para ilustrar até aqui a análise desse processo, utilizaremos as espirais
abaixo para a compreensão da proposta de formação continuada de professores.

Eu

Trajetórias de vivências Memória


e violências
“o devir”
História de Vida

Diálogo

Figura 33 – Espiral “o EU” Figura 34 – Espiral “o devir”


Fonte: http://martina-0123.deviantart.com/art/Espiral-de-color-PNG-379010551
87

Na figura 1, podemos imaginar o Eu no centro da espiral (figura 33), envolvido


por suas trajetórias de vivências e violências no decorrer de sua história, enquanto a
segunda espiral (figura 34) nos dá a possibilidade de (re)significar as memórias,
principalmente o “devir”, a partir do empoderamento pela palavra, conforme o
movimento de “ir e vir” neste diálogo, oportunizando dizer a sua palavra, assim como
ouvir a “do outro”, resgatando o protagonismo de suas vidas por meio das narrativas
(auto)biográficas como dispositivo de formação docente.

3.4 Analisar para entender, ou entender para analisar??

A partir deste momento passaremos a refletir um pouco mais sobre as


dimensões encontradas - “Pertencimento”, “Violência Simbólica” e “Silenciamento” -
em consonância com a metodologia utilizada na pesquisa, descrita no capítulo 2
(dois) desse trabalho, expressa na figura 28: Movimentos Metodológicos dos
Círculos Dialógicos Investigativo-formativos (2015). Num total de cinco movimentos,
sendo que o primeiro permeou toda a pesquisa.
Ressaltamos que, em nossos encontros, compartilhamos de um espaço em
que desfrutamos do direito ao dissenso e ao contraditório, todas com a liberdade à
circularidade da “sua palavra”, portanto, sem o cerceamento da mesma. A partir da
compreensão de que o cerceamento da palavra promove o silenciamento e que isso
se configura como violência contra si/o outro, percebemos marcas mais profundas
em nossas coautoras, como o isolamento, de forma velada, levando-as ao
apagamento enquanto sujeito de suas histórias. Abaixo, destacamos mais um
recorte do diálogo para darmos continuidade a nossa discussão:

Luciana: Quando eu vim aqui no primeiro dia eu achei interessante uma


fala quando tu leu na entrevista, tu chegou assim, “silenciamentos... é, a
gente veio de uma ditadura onde nós fomos muito silenciados, não
tínhamos voz”, achei tão interessante a tua fala.

Neuza: Porque o professor ditava as regras e a gente fazia.

Luciana: Mas enquanto aluna tu está te referindo?

Neuza: Sim, enquanto aluna. Mas, no fundo eu acho que não era
totalmente ruim a nossa fase, a gente era silenciado, mas também sabia
respeitar mais. Eu noto assim, que hoje em dia as coisas se confundiram.
88

Liberdade de tudo. Eu tenho a minha liberdade, não vou te respeitar,


entendeu? Os limites... Eu vejo que as crianças hoje não, eles não tem mais
limites, saem, falam o que querem.

Terezinha: Quantas vezes já trabalhamos essas questões... Se tem gente


na sala tem que bater.. Agora no retorno da aula vou ter que retomar tudo
de novo. São coisas assim que não vêm de família, só que a gente tinha
essa educação.

Neuza: Nós tínhamos, em casa e na escola. Por exemplo, se nós


estávamos conversando aqui na minha casa, o pai só olhava, se eu
passasse por ali assim, ele só te dava uma olhada. Mas na segunda
passada tu não farias. A gente tinha uma coisa, vou dizer que não era
totalmente ruim, pelo menos a gente sabia respeitar, só no olhar tu sabia
que não era pra ti passar mais ali. Então, era o respeito, foi marcante pra
mim; isso me marcou muito.

Terezinha: E a gente não vê isso hoje nos alunos...

Neuza: Não vê; Hoje nas casas quem manda é as crianças, no nosso
tempo não. E isso conta a escola também, a escola era sagrada e o que a
professora dizia, também. O pai até ia lá conversar com a professora, mas
se a professora mandasse um bilhete avisando alguma coisa que tu fez, ele
não dizia que a professora tava pegando no pé do meu filho, ele dizia “ah,
mas tu fez isso”, por mais que ele não concordasse com aquilo, ele dava
razão para o professor, perante nós, na nossa presença. O professor
era uma referência, nem que tivesse que ir falar com a professora,
falava, mas a gente nem ficava sabendo. Eram umas coisas boas, que
eu acho que o professor era bem respeitado, e hoje em dia não, tu está
falando com um aluno e facilita ele te enche de desaforo.

O relato acima exemplifica situações recorrentes no passado e outras da


atualidade, tanto em sala de aula, quanto nas famílias, posturas que, no passado,
eram inaceitáveis por parte dos pais/professores em relação a seus filhos/alunos,
situações com as quais notamos certo desconforto das professoras, conforme suas
narrativas. Para Bourdieu (2011, p. 49), “a força do pré-construído está em que,
achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta
com as aparências da evidência, que passa despercebida porque é perfeitamente
natural”. O romper com padrões estabelecidos nas “aparências da evidência”,
conforme o autor nos coloca, torna-se desafiador, pois este possui a força do pré-
construído (campo), como algo perfeitamente natural (habitus), permitindo dizer: o
poder advindo da “generalização”.
A primeira impressão ocorrida ao analisar a pesquisa foi a percepção da
convergência das dimensões entre si, pois elas se mostram imbricadas umas nas
outras, sendo possível identificar isso nas falas das professoras, ao rememorarem a
forma em que foram educadas, em casa e na escola, e como essa educação ocorre,
atualmente, nas relações: professora(s)/escola, professora(s)/colegas,
89

professora(s)/alunos. Ambas as colaboradoras compartilharam seus sofrimentos


advindos do silenciamento como já dialogado no decorrer do capítulo três, “porque é
uma força tão grande”, uma violência em suas histórias de vida e que ainda perdura
em suas trajetórias.
Para uma melhor compreensão das dimensões, abordaremos Dufor (2005),
em sua obra intitulada a “A arte de reduzir as cabeças”, pois essa leitura
oportunizou-nos um descortinar em nosso entendimento, trazendo uma
compreensão ampliada em relação ao efeito que uma ideologia neoliberal pode
acarretar aos sujeitos, assujeitando-os apenas a mercadorias; o que nos permite
visualizar a violência simbólica que está por trás dessa disputa de poder que Bordieu
(2011) anuncia em sua obra.

Com efeito, sabe-se quanto a transmissão de narrativas foi por todo o


sempre um meio utilizado pela geração de pais para a formação da geração
seguinte. Transmitir uma narrativa é, com efeito, transmitir conteúdos,
crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações
sociais... mas é também e antes de tudo transmitir um dom da palavra. É
fazer passar de uma geração à outra a aptidão humana para falar, de modo
que o destinatário da narrativa possa, por sua vez, identificar-se como si e
situar os outros a seu redor, antes dele e depois dele, a partir desse ponto.
Com efeito, é preciso instituir o sujeito falante; se essa antropofeitura não
ocorrer, a função simbólica muito simplesmente não é transmitida (DUFOR,
2005, p. 128, 129).

Dufor (2005) adverte sobre a importância da transmissão de narrativas, do


dom da palavra para a formação da geração seguinte, e, se negligenciada essas
narrativas, interdita a função simbólica tão necessária para as relações sociais. Para
esse autor (p. 34), “... a palavra possui em si mesma uma autoridade”, dessa forma,
a autoridade que há na palavra passa despercebida normalmente e, quando nossas
coautoras foram silenciadas na impossibilidade de dizer a sua palavra, sofreram
violência, da mesma forma em que quando foram induzidas a abandonar suas
raízes (campo/pertencimento) em prol da busca de melhores condições de vida na
cidade, e, ainda mais uma vez, quando foram silenciadas em “seu território” em se
tratando da educação do campo. Assim, o autor aponta sobre a importância do
acesso à simbolização pela transmissão da palavra:

o acesso à simbolização se opera desde sempre pelo simples pôr em


operação a mais antiga atividade do homem, o discurso oral frente a frente.
Desse modo, transmite-se o dom da palavra sem nem mesmo se dar conta;
trata-se de um prodígio tão invisível [...] sem se dar conta disso (DUFOR,
2005, p. 129).
90

Impedir o diálogo significa impedir o acesso à simbolização, configura-se,


para Dufor (2005, p. 198), “o limite absoluto da dessimbolização é quando mais nada
vem assegurar e assumir o encaminhamento dos sujeitos para a função simbólica
encarregada da relação e da busca de sentido”. Podemos dizer que a
dessimbolização é uma violência contra os sujeitos, pois, para o autor (p. 199), “a
dessimbolização indica um processo que visa desembaraçar a troca do que a
excede ao mesmo tempo que a institui: seu fundamento”. Então, se há invasão nos
fundamentos alheios, isto é, em seus princípios, há violência contra o ser. A seguir,
o autor continua ainda em sua explanação sobre a dessimbolização:

Com efeito, a troca humana está inserida num conjunto de regras cujo
princípio não é real, reenvia a “valores” postulados. Esses valores se
originam numa cultura (depositária de princípios morais, de cânones
estéticos, de modelos de verdade) e, como tal, podem diferir, inclusive se
opor a outros valores. Ora, o “novo espírito do capitalismo” persegue um
ideal de fluidez, de transparência, de circulação e de renovação que não
pode se conciliar com o peso histórico desses valores culturais. Nesse
sentido, o adjetivo “liberal” designa a condição de um homem
“liberado” de toda a ligação de valores. Tudo o que remete à esfera
transcendente dos princípios e dos ideais, não sendo conversível em
mercadorias e em serviços, se vê doravante desacreditado. Os valores
(morais) não têm valor (mercadológico). Por não valerem nada, sua
sobrevivência não se justifica mais num universo que se tornou
integralmente mercantil. Além do mais, eles constituem uma possibilidade
de resistência à propaganda publicitária, que exige, para ser plenamente
eficaz, um espírito “livre” de todo o aprisionamento cultural. A
dessimbolização tem, pois, um objetivo: ela quer erradicar, nas trocas,
o componente cultural, sempre particular (DUFOR, 2005, p. 200, grifo
nosso).

Com efeito, podemos dizer que o apagamento da memória, do sentimento de


pertença, da sua história, é o apagamento do próprio ser (dessimbolização). Por
esse motivo, entendemos que ignorar a história da Educação do Campo existente,
com suas peculiaridades no imenso território brasileiro, constitui-se numa violência a
essas comunidades. Torna-se inviável analisar tais dimensões separadamente, uma
vez que essas dimensões encontram-se imbricadas no “SER”:
91

Figura 35 – Ser / Dimensões


Fonte: Luciana Carrion Carvalho (2015)

Então, podemos pensar como os sujeitos (SER), inseridos em um meio


(pertencimento - campo), quando apagados em suas memórias e em suas histórias,
constituem-se na dessimbolização desses sujeitos, portanto, o apagamento do SER.
Uma das consequências do neoliberalismo é o apagamento do sujeito, de sua
história de vida e memória. Oportunizando você a ser mais um número dentro de
uma sociedade que produz o medo, o silêncio, o isolamento, a depressão, o suicídio
e o consumo desenfreado.

Com efeito, estamos na época da fabricação de um “novo homem”, de um


sujeito a-crítico e psicotizante, por uma ideologia também conquistadora,
mas provavelmente muito mais eficaz do que o foram as grandes ideologias
(comunistas e nazistas) do século passado. O que o neoliberalismo quer é
um sujeito dessimbolizado, que não esteja mais nem sujeito à culpabilidade,
nem suscetível de constantemente jogar com um livre arbítrio crítico. Ele
quer um sujeito incerto, privado de toda ligação simbólica; ele tende a
instalar um sujeito unissexo e “não-engendrado”, isto é, sem o arrimo de
seu fundamento exclusivamente no real, o da diferença sexual e da
diferença geracional. Sendo recusada toda referência simbólica
suscetível de garantir as trocas humanas, há apenas mercadorias que
são trocadas num fundo ambiente de venalidade e de niilismo
generalizados no qual somos solicitados a tomar lugar (DUFOR, 2005,
p. 208).

Para o autor, o neoliberalismo tem por objetivo a fabricação do “novo


homem”, a-crítico, privado de toda ligação simbólica, levado a ser apenas
mercadoria. Esse é o risco de sermos silenciados em nossas vozes, apagados em
92

nossa história e esquecer a nossa história de vida e os sentidos por ela construídos.
Para Dufor (p. 208, 209):

Vivemos, nesse sentido, uma virada capital, porque, se a forma sujeito


construída com grande luta pela história é atingida, não serão mais somente
as instituições que temos em comum que estarão em perigo, será também,
e sobretudo, o que somos. Não é apenas o nosso ter cultural que está em
perigo, é nosso ser. [...] até o nosso próprio ser, terá entrado na órbita
da mercadoria (grifo nosso).

Essas reflexões se deram em nossos encontros, diálogos recheados de


reticências..., exclamações e suspiros..., em alguns, o silêncio que falou a sua
palavra..., olhares melancólicos, suspiros permeados de emoção..., reflexões até
então não pensadas. Momentos significativos se deram quando as coautoras
perceberam-se enquanto seres inacabadas, expressando as seguintes falas: “sala
de aula hoje emburrece a gente! Porque a gente não estuda, não lê, e a gente não
tem mais encontro!” Afirmações que configuram insatisfação com a imobilidade em
seus trajetos profissionais, configurando o segundo movimento.
No percurso dos encontros, ocorreu um momento de grande impacto: o
movimento do desvelamento, o terceiro movimento descrito no capítulo da
metodologia. Momento/movimento que nos levou à reflexão mais profunda sobre
formação continuada após o seguinte questionamento:

Luciana: Como vocês se sentem enquanto profissionais, depois de uma


trajetória, encaminhando para o final de carreira? Como é o sentimento de
passar toda essa história e não conseguir vivenciar a Escola do Campo
atualmente?

Neuza: Para mim, é difícil falar sobre isso, sinto que alguma coisa ficou
incompleta, não ficou completo o meu trabalho, porque a gente sente que
têm certos traves que não consegue, mas que gostaria de trabalhar bem
mais, [...]. Então eu penso assim, às vezes saio daqui sentida, porque
parece que a gente não ensinou, faltaram coisas, essa coisa boa de a gente
ensinar para o nosso aluno... É triste tu ver um jovem aqui da colônia não
saber pegar uma enxada, não ter amor pela terra, [...] “mas o que é que nós
fizemos?”.

Terezinha: E eu me sinto assim também, acho que é um pontinho de aquilo


que a gente falou, dessa questão do silêncio, de ver e não poder lutar
contra isso, porque é uma força tão grande, por isso que digo, falar em
Escola do Campo é fácil, mas vivenciar ela no dia a dia, não sei se é o
termo despertar, mas enfim, o que ele goste, mas está faltando algo ai. [...].
Faltam três anos e parece que eu tenho que correr contra o tempo, parece
que tenho que fazer ainda muita coisa.
93

Em todo o momento, foi demonstrada pelas professoras a preocupação e o


zelo ao se referirem às suas colegas e à direção, um cuidado que não denotasse
queixa ou denúncia, mas como quem, talvez pela experiência advinda pela vivência,
ou pelo saber advindo da experiência, trouxe-lhes suavidade nas respostas sobre o
que foi perguntado:

Luciana: E em relação aos professores, quando vocês têm essas reações


próprias do campo, eles aceitam bem os colegas do jeito que são?

Terezinha: É bem delicado assim.. Ou não gostam, ou não conhecem, e


talvez seja por não conhecer.. É com a mesma ênfase que nós falamos no
campo.

Neuza: ... agora pego de outro professor que é urbano, ele não vai seguir
aquela nossa seqüência, não é que ele não queira, ele não tem
conhecimento.[...]. Não é questão que o professor não goste, de repente ele
não viveu, não teve essa vivência. É difícil tu não ter vivencia.

O quarto movimento, relativo à construção coletiva e saberes compartilhados


a partir dos diálogos problematizadores, ocorreu em vários momentos, mas
deixamos aqui registrado um que ganhou destaque: “por isso estou pensando em
voltar no grupo de estudos, porque eu estou me sentindo bem emburrecida. Eu saí
da Universidade em 2001, fiz depois uma especialização em 2002, e olha, lá se
foram já 12 anos”. Após muitas trocas, diálogos, reflexões, a percepção do querer
ser mais, partilhar saberes advindos da experiência, (re)significar suas vivências,
compartilhar com o coletivo diálogos problematizadores conforme a realidade do
campo em busca da construção de propostas vinculadas às expectativas da vida
rural.
Finalmente, o quinto movimento referente às auto(trans)formações mostrou-
se nos momentos das reflexões exercidas após as narrativas socializadas em
nossos encontros dialógicos, principalmente no decorrer do movimento do
desvelamento (3º movimento).
Portanto, após a análise do processo investigativo-formativo que a autora e as
coautoras compartilham em suas reflexões críticas para além do diálogo,
concordamos com Mendonça (2008, p. 189-190) ao se referir ao desafio à
educação:

O desafio à educação hoje é recuperar o sentido da vida. Diante da


construção histórica de uma cultura da violência, entendida como
mentalidades que se constroem sobre a relação dialógica, o encontro não
94

realizado, o face a face interditado. O desafio da educação, após séculos de


domínio de tais valores é subvertê-los e construir uma cultura voltada para a
recuperação do sentido da vida. Tudo o mais, amor, paz, não-violência, a
responsabilidade ética, a compaixão, a solidariedade, o desapego, o
respeito à vida em todas as suas manifestações, a honestidade, a fé que
dialoga antes que exclui, a dignidade e, last but not least, o respeito ao
espaço público, à comunidade e à cidadania será resultado disso.

Assim, destacamos o “convite” aos docentes para a imersão em si, em busca


do redescobrir-se, e conseguinte, o sentido da vida conforme o autor citou.
Retomando o final do primeiro capítulo e o capítulo dois, locais em que trouxemos a
borboleta em diferentes significados, para encerrar o terceiro capítulo, não a
poderíamos deixar de fora. Após todo o processo investigativo-formativo, finalmente,
o seu amadurecimento: METANOIA!

Figura 36 – Espiral como Metanoia


Fonte: www.mariposa-que-se-mueve-em-espiral-32611902.jpg.

Acreditamos que, para ocorrer uma significativa transformação em nossas


escolas, torna-se indispensável a instrumentalização, primeiramente, na equipe
diretiva. Técnicas para além da burocrática, mas para a VIDA! Junior (2008, p. 245)
aponta situações pertinentes para a efetiva mudança:

Para que aconteçam de forma ordenada, no entanto, e tenham êxito na


interação com todos os atores que participam do meio escolar é necessário
que sejam motivadas e bem organizadas pelos profissionais responsáveis
pelas funções de diretor e coordenador pedagógico. Para isso, é
imprescindível que estes profissionais estejam instrumentalizados de
95

técnicas e conhecimentos teóricos sobre Gestão Escolar. Uma


administração escolar efetiva, no entanto, pretende estar além da mera
gestão da burocracia escolar, ensejando uma gerência dos diversos fatores
afetivos, emocionais e simbólicos que envolvam a escola, valorizando uma
participação democrática e o desenvolvimento de valores.

Assim, conforme as discussões desenvolvidas até o presente momento,


achamos oportuno encerrar este capítulo com uma citação de Freire, como resposta
a outra citação que utilizamos no início no primeiro capítulo desse trabalho, falas do
autor retiradas da obra intitulada “Pedagogia da Esperança”. Para Freire (2009,
p. 54):

Neste sentido, escrever é tão re-fazer o que esteve sendo pensado nos
diferentes momentos de nossa prática, de nossas relações com, é tão re-
criar, tão re-dizer o antes dizendo-se no tempo de nossa ação quanto ler
seriamente exige de quem o faz, repensar o pensado, re-escrever o escrito
e ler também o que antes de ter virado o escrito do autor ou da autora foi
uma certa leitura sua.

A escrita (auto)biográfica constitui-se num momento de libertação e


esperança para que possamos ir além do que está dito e vivido. Apesar das
ameaças da violência simbólica que vivenciamos nas Escolas do Campo, as nossas
coautoras têm a consciência da necessidade da formação continuada como uma
forma de (re)significar as suas trajetórias e sentidos, construindo, assim, uma prática
docente de esperança e de autonomia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS?... JAMAIS!!!

O meu retorno à sala de aula na condição de aluna trouxe satisfação e um


significativo crescimento. Afirmo que, a partir desse processo, foi possível
desconstruir algumas barreiras internas que foram sendo formadas no decorrer de
minha história de vida. O retorno aos estudos, por meio do mestrado, permitiu o
desvelamento dos trajetos docentes a partir da aproximação das metodologias
História de Vida e Círculos Dialógicos Investigativo-formativos, o que viabilizou a
superação da frustração docente e, por conseguinte, a ressurreição da alegria na
profissão.
A figuração da borboleta, no princípio, deu-se por acaso, enquanto rabiscava
a folha do caderno e pensava em como iria materializar, na escrita, os nossos
círculos dialógicos, a partir das entrevistas narrativas tópicos guia. Enquanto
desenhava as dimensões pertencimento, silenciamento e violência simbólica,
percebi que todas estavam interligadas e, o mais interessante, em uma forma que
lembrava o inseto.
Quando me senti instigada em minha história, também passei pelo movimento
do desvelamento, da conscientização de que algumas de minhas identidades
encontravam-se quebradas, tais como: a filha que perdeu a mãe, e quase perdeu o
pai também; a mãe que sofreu a experiência do “ninho vazio”; a professora
desacreditada em sua profissão, sentindo a força e o poder do sistema capitalista
neoliberal na educação; entre outros desafios. Situações que vão enclausurando,
formando uma rede de proteção, até o ponto em que ocorreu a percepção de ver-me
como “uma larvinha”, “ensimesmada: cheia de mim e em mim mesma”.
Momento/movimento no qual fui impulsionada a inaugurar um novo ciclo, a tão
conhecida figura da metamorfose. Ciclo no qual, para os insetos, a mudança não se
opera só na aparência externa, ocorre também em seus hábitos, no meio de vida, na
alimentação. É uma transformação global, que atinge toda a sua estrutura, não só a
externa, mas também a interna. Como humana, prefiro utilizar o conceito de
metanóia, devido às argumentações já expostas no final do primeiro capítulo. Essas
situações que compartilho, decorrem das auto(trans)formações ocorridas neste
processo formativo, expondo a profundidade na qual fui afetada por meio dos
97

círculos dialógicos e das narrativas (auto)biográficas. Conforme Souza (2006)


declara em seus escritos, a pesquisa com a metodologia História de Vida possui a
função de formativa também aos pesquisadores. Fato que ocorreu em meu interior.
Até aqui, elenquei situações pessoais, como testemunho da potencialidade
auto(trans)formativa dessa metodologia empregada. Agora, passaremos a dialogar e
refletir numa esfera macro, sem desconsiderar os micro-contextos.
Este estudo nos oportunizou conhecer um recorte da realidade das Escolas
do Campo em nosso município; todavia, com o devido cuidado em não recorrer à
generalização das análises elencadas como verdades únicas e homogênias para
essa modalidade de ensino, conforme Bourdieu (2011) destaca em sua obra, sobre
o perigo da “aparência das evidências”.
Percebemos a necessidade de viabilizar reflexões e discussões acerca da
formação continuada dos professores em relação ao apagamento das identidades e
das culturas dos sujeitos pertencentes a esses meios.
Embora tenhamos a Lei 9.394/96 (LDBEN), as Diretrizes Operacionais, os
Pareceres e as Resoluções próprias para as Escolas do Campo, vimos, por meio da
pesquisa, a existência de um “abismo” entre a legislação que vigora e a prática
exercida na grande maioria das escolas em nosso território nacional. O que nos
impulsiona a questionar sobre o que impede a execução do “legal” e a sua
efetivação nas práticas docentes. Após muita reflexão sobre essa questão, podemos
considerar, entre as muitas variáveis, as fragilidades na formação inicial e
continuada de professores atuantes em tais escolas. Como o nosso foco nesta
pesquisa é a formação continuada, convidamo-los a pensar nessa perspectiva, na
força de impacto que estes momentos formativos possam provocar em nossos
educadores. Frente a isso, percebemos a importância de „dar voz‟ aos atores, aos
professores, esses que devem ser protagonistas de suas trajetórias na vida pessoal
e profissional. Para isso, a metodologia História de Vida e narrativas
(autobio)gráficas vêm oportunizar reflexões em torno da formação inicial e
continuada para o enfrentamento do silenciamento imposto, e, consequentemente, a
invisibilidade instaurada. Essa metodologia é uma possibilidade de promover
encontros formativos, a partir do estímulo em exercer a escuta sensível, o diálogo e
potencializar o ser a dizer a sua palavra, provocando assim o desenvolvimento da
auto-estima, dos vínculos afetivos, o fim da apatia e da indiferença; oportunizando
transformar o “lugar de trabalho” em “espaço formador docente”.
98

Uma possibilidade de se pensar em maneiras para o enfrentamento e


superação da violência, velada ou não, poderá dar-se por meio de formações
continuadas, através dos Círculos Dialógicos Investigativos-formativos como
possível caminho, sendo este processo iniciado com os gestores (equipe diretiva) e,
em seguida, com o corpo docente da escola. Esse processo, sendo iniciado com os
gestores, poderá tornar-se mais eficaz e eficiente na expectativa de alcançar os
resultados esperados, uma vez que os „muros poderão desaparecer‟ quando se
encontrar um mecanismo de unificar em uma só linguagem o papel da escola e do
professor, com o entendimento de que os gestores estão em uma posição
transicional e não permanente, e do quanto se faz necessário horizontalizar as
relações no espaço educativo.
Em um espaço permeado pela diversidade de pensamentos, ideologias,
percepções, culturas, entre outros; fica de fácil entendimento a necessidade de se
criarem mecanismos que busquem a superação dos muros construídos de proteção
individual e individualista da diferença: cada um/a com sua opinião ou
posicionamento frente a algumas questões que possuem caráter coletivo e não
individual. Parte daí o desafio de entender e trabalhar com histórias de vida,
narrativas (auto)biográficas, trajetórias pessoais e profissionais, diálogo,
compartilhamento de ideias, solidariedade, como meio de minimizar a violência
gerada/sofrida entre os docentes.
Acreditamos que um trabalho coletivo, colaborativo e participativo poderá
desenvolver uma cultura para a não violência nos espaços educacionais,
fortalecendo vínculos de amor e amizade na comunidade educativa. Ao passo que
se vislumbre tempos, momentos e ações próprias aos educadores para que estes
venham a se reconhecer como sujeitos da própria história, então, poderão
posicionar-se diante do mundo, na luta por uma transformação de suas escolas,
consequentemente, de suas realidades.
Uma formação que aproxime as histórias de vida utilizando as narrativas
(auto)biográficas pode promover espaços de reflexão crítica do corpo docente,
repensando conceitos e percepções até aqui pensadas e/ou vividas. Oportuniza que
cada ser se auto(trans)forme pela capacidade de agir e refletir criticamente sobre a
realidade na qual estão inseridos, libertando-se da condição de dominação e
opressão tão bem discutidos por Paulo Freire.
99

Destacamos, nesse sentido, a sensibilização por meio das histórias de vida


dos educadores do campo, como uma das possibilidades para se constituírem
enquanto sujeitos históricos, imersos em uma realidade própria, que necessita
visibilidade e respeito a suas peculiaridades, não sendo mais possível percebermos
o enfraquecimento das Escolas do Campo, devido à falta de conhecimento da
realidade onde as escolas estão situadas, bem como as práticas docentes
arraigadas em uma lógica capitalista e urbanocêntricas, voltada para o
fortalecimento da competição, do individualismo e do silenciamento das vozes de
docentes e estudantes, que ousam pensar e ter esperança em uma educação
voltada para a valorização do trabalho coletivo, do compartilhamento de saberes e
do fortalecimento da autonomia.
Acreditamos que a criação do curso de Pedagogia com ênfase em Educação
do Campo seja uma resposta aos anseios dessas comunidades esquecidas e, até
mesmo, abandonadas por esta sociedade capitalista. Um curso voltado para a
formação de profissionais capacitados a inserirem-se nessa modalidade de
educação, torna possível romper com um modelo neoliberal instituído na formação
de mentes, que perpassa de geração a geração. Proposta que incidirá um
reascender da esperança e dos sonhos já adormecidos em decorrência das
mordaças do silêncio.
Faz-se imprescindível, da mesma forma, a garantia, por meio de políticas
públicas, do campo de atuação para os formados nesses cursos por concurso
público, voltada a essas realidades e especificidades.
Portanto, mesmo em um cenário arrasado pelo abandono e descrédito,
tornamos viável, a partir das propostas referendadas, a superação da violência
simbólica dos/nos docentes a partir das histórias de vida e as narrativas
(auto)biográficas, como dispositivo de formação continuada de professores da
Escola do Campo.
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ANEXOS
105

ANEXO A – Entrevista Narrativa via Tópicos Guia

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA


CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

Entrevista Narrativa via Tópicos Guia

Nome Completo:
Data de Nascimento:
Formação Inicial:
Cargo/Atuação:
Tempo de docência:

1. “Tempos de Infância”:

2. “Tempos de Escola”:

3. “Formação Inicial de Professores”:

4. “Formação Continuada de Professores”:

5. “Escola do Campo”:

6. “Violência simbólica”:

7. “Os Silenciamentos”:

8. “Pertencimento”:
106

ANEXO B – Termo de Cedência de Uso 1


107

ANEXO B – Termo de Cedência de Uso 2


108

ANEXO C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 1


109
110

ANEXO C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 2


111
112

ANEXO D – Autorização Institucional


113

ANEXO E – Termo do Confidencialidade


114

ANEXO F – Carta de Aprovação


115

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