FREUD, S. O Mal Estar Na Civilização (I e V)

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O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO

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/Éimpossí~el fugir à _im~ressão de que as pessoas comumente empregam
falsos padroes de avahaçao -. isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza
para ela~ mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que
verdadeiram~nte tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo
geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são O mundo
humano e sua vida mental. p xistem certos homens que não contam com a
admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em
atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da
multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que, no final das
contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo que a
maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às discrepâncias
existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como também
à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente
não são tão sitnples assim.
Um desses seres excepcionais refere-se a si mesmo como meu amigo
nas cartas que me remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que trata a religião
como sendo uma ilusão, 1 e ele me respondeu que concordava inteiramente
com esse meu juízo, lamentando, porém, que eu · não tivesse apreciado
corretamente a verdadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, consiste num
sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter presente em si, <.j\1c
encontra confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em
milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar
como uma sensação de 'eternidade', um sentimento de algo ilimitado, sem
fronteiras - 'oceânico', por assim dizer. Esse sentimento, acrescenta, con-
figura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé; não traz consigo .
qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constituí a fonte da energia
religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por
eles veiculado para canais específicos e, indubitavelmente, também por eles
exaurido. /Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda
ilusão, pode corretamente chamar-se a si mesma de religiosa com fundamen-
to apenas nesse sentimento oceânico. /

1 [The Future ~lan Jl/11sio11 (1921c), Standard Ed.. 21, 5.J

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As opiniões expressas por esse amigo que tanto respeito, e que outrora
jú louvara a magia da ilusão num poema, 1 causaram-me não pequena dificul-
dade. Não consigo descobrir cm mim esse sentimento ' oceânico' . Não é fácil
lidar cientificamente com sentimentos. Pode-se tentar descrever os seus
sinais fisiológicos. Onde isso não é possível - e temo que também 0
sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização-, nada resta senão
cai r no conteúdo idcacional que, de forma mais imediata, está associado ao
sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer significar.
com esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um
dramaturgo original e um tanto excêntrico ao seu herói que enfrenta uma
morte auto-infligida: 'Não podemos pular para fora deste mundo.':? Isso
equivale a dizer que se trata do sentimento de um vínculo indissolúvel, de
ser uno com o mundo externo como um todo. Posso observar que, para mim,
isto parece, antes, algo da natureza de uma percepção intelectual, que, na
verdade, pode vir acmnpanhada de um tom de sentimento, embora apenas da
fonna con10 este se acharia presente em qualquer outro ato de pensamento
de igual alcance. Segundo minha própria experiência, não consegui conven-
cer-me da natureza primária desse sentimento; isso, porém, não me dá o
dire ito ,de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A única questão
consiste cm verificar se está sendo corretamente interpretado e se deve ser
encarado cmno afons et origo de toda a necessidade de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência decisiva na solução
desse problema. A idéia de os homens receberem uma indicação de sua
vinculação com o mundo que os cerca por meio de um sentimento imediato
que, desde o iníc io, é dirigido para esse fim, soa de modo tão estranho e se
ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia, que se toma justificável a
tentati va de descobrir uma explicação psicanalítica - isto é, genética-para
esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere isso por si
mesma. ~ ormaltnente,nãohá nada de que possamos estar mais certos do que
do scnti1nento de nosso eu, do nosso próprio ego.\ O ego nos aparece como

l:Vow de rodapé m:rescentada em 1931 :] liluli [ 191 9]. - Desde a publicação de seus do!s
livros. La vie de Ramakrishna [ l 929] e la vie de Vivekananda ( I 930). não necessito mais
esconder o fato de que o amigo mencionado no texto é Romain Rolland. [Romain Rollaorl
escrevera a Freud u respeito do 'sentimento oceânico ' numa carta de 5 de dezembro de 1927 ·
logo após a publicação de The F11ture ofan 11/usion.] .
') Christian Diet rich Grabbc [1801-36]. Hmmibal: 'Ja, aus der Welt wcrdem wir nicht fallcn.
Wir sind cinmal darin.' ['sim, não pularemos para fora deste mundo. Estamos nele de uina
vez por todas.']
3 Í Certas observações sobre o emprego por Freud dos termos 'ego' e ·eu' (se(/) podem ser
encontradas na Introdução do Editor a The Ego and the Jd ( 1923b), Standard Ed .. 19. 7.]

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algo autônomo e unitário, distintamente demarcadO d tud .
d
aparencia engana ora - apesar de que pelo contrário
A • e o o mais.
- Ser
. essa
. . : , o ego seJa contmuado
para dentro, sem qualquer dehm1taçao nítida por uma ent·d d
. • . ' 1 a e mental
inconsciente que designamos como id, à qual o ego serve como um , •
h d a espec1e
de fac a a - , con fi1gurou uma descoberta efetuada pela primeira vez t ,
· · 1· · a raves
da pesquisa p~1cana 1t1ca, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer
sobre o relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém,
0
ego de qualquer modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e
nítidas. Há so~ent~ um estado - indiscutivelmente fora o comum, embora
não possa est1gmat1zado como patológico -· em que ele não se apresenta
assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça
desaparecer.Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache
enamorado declara que ·eu' e 'tu' são um só, e está preparado para se conduzir
• • , 1 •
como se isso constttu1sse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente
eliminado por uma função fisiológica [isto é, normal] deve também, natural-
mente, estar sujeito a perturbações causadas por processos patológicos. ;,A
patologia nos familiarizou com grande número de estados em que as linhas
fronteiriças entre o ego e o mundo externo se tomam incertas, ou nos quais,
na realidade, elas se acham incorretamente traçadast1Há casos em que partes
do próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental
- suas percepções, pensamentos e sentimentos -, lhe parecem estranhas e
como não pertencentes a seu ego; há outros casos em que a pessoa atribui ao
mundo externo coisas que claramente se originam em seu próprio ego e que
t por este deveriam ser reconhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de nosso
próprio ego está sujeito a distúrbios, e as fronteiras do ego não são perma-
nentes. I
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do ego do adulto
não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um proce~so
de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser const~1do
com um razoável grau de probabilidade.2 Uma criança recém-nascid_a ainda
não distingue o seu ego do mundo externo como fonte da~ sensaç~es que
fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagmdo a diversos
estímulos. 3 Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes

1 [Cf. nota de rodapé à seção III da história clínica de Schreber ( 191 lc), S1a111ard Edd., 12. 69.]
, . d d olvimento do ego e sentnnento o ego. a
2 Cf. os muitos traba lhos sobre o topico O esenv . da Realidade'
datar do artigo de Ferenczi sobre 'Estágios no Desenvolvni:iento do Senso
( 191 .>~) .ite
, , t 'b . ões de Fedem de 1926, 1927 e postenores. .
as con n u1ç T H . tudado O assunto não muito
3 f Nesse parágrafo, Freud achava-:.t: ta'.-. terreno fam1
tempo antes. em seu artigo 'Negauon (1925/z), Stan
;r·ª' ·d ., ,
;;•al~ 236-8 mas dele tratara em
'
75
dl' 1.·x1.·1t:u;:10, que postl:riorn1 c.:nt L: ide11tilí0ar{1 <.:on10 Sl:ndo <>K sc.:us rrúrnos
ú1l ~ll\)S r urporn1s, po<kn:111 provC:-la dt.: st:11s:1t;õt:s c1 qualqu<.:r inorn(;nlo, ao
p:,sso qtH.:, de te111pos e111 11..:rnpos, outras f<>nl L:s llic fogc.:m cntn,; as quai s
sl' tkst:1c:1 :, 111:11 s desc j:1d:1 de todas, o sl: io da mfü.; , sú reararcccndo como
r~sull.ido d e se11s gn t~)S d e: socorro. l)<.:ssc modo , rela rrirnc.:irn vez, o ego é
1.~ontr:,st:ido por 11111 ' oh_jc.:to' , sob" l'orrna de.: algo que existe '<.:xtcriormentc '
1
e qu e sú é t'or~:udo :, surgi r ;itrnvés de.: urna ação especíal. lJrn outro incentivo
p:,rn o desc11gaj:1rnt.;11to do ego com relação à massa gera l de sensações -
isttl 6, p,1r:1 o rl:co11hc.:címc11to ele um ' exterior' , de um mundo externo - é
pn)porc ion:ido pelas fr<.:qücntcs, múltiplas e incvitáv<.;is sensações de sofri -
rncnto e dcsprnz1.:r, cujo afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio
do prazer, no exercício de seu irrestrito dornínio.fSurgc, então, uma tendência
a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para
fora e a criar um puro ego cm busca de prazer, que sofre o confronto de um
'exterior' estranho e arncaçador./As fronteiras desse primitivo ego em busca
de prazer não podem fugir a uma retificação através da experiência. Entre-
tanto, algumas das coisas dificeis de serem abandonadas, por proporcionarem
prazer, são, não ego, mas objeto, e certos sofrimentos que se procura extirpar
mostram-se inseparáveis do ego, por causa de sua origem interna. Assim,
acaba-se por aprender um processo através do qual, por meio de uma direção
deliberada das próprias atividades sensórias e de urna ação muscular apro-
priada, se pode diferenciar entre o que é interno - ou seja, que pertence ao
ego - e o que é externo - ou seja, que emana do mundo externá . Desse
modo, dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da
realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro.2 Essa diferenciação,
naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra
sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos amea-
çados.? A fim de desviar certas excitações desagradáveis que surgem do
interior, o ego não pode utilizar senão os métodos que utiliza contra 0
desprazer oriundo do exterior, e este é o ponto de partida de importantes
distúrbios patológicos. 1

~li~crsas ocasi ões anteriores. Ver, por exemplo, ' Insti ncts and theír Vicissitudes · ( 1915c),
1b1d., 14, 119 e 134-6, eA Interpretação de Sonhos ( 1900a), Edição Standard Brasileira, Vol.
V, págs. 602-3, IMAGO Edi tora, 1972 . Sua essência, na verdade, já pode ser encontrada no
' Proje to ' de 1895 , Seções 1, 2, 11 , e 16, da Parte I (Freud, 1950a):]
1 IA ' ação especí fí ca ' do ' Projeto ' .'!
2 I_ Cf. ' fonmilatinn s on thc Two Princi pies of Menta l Functionin g ' ( 19 11 b), Standard Ed . 12
222-3] ' '

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( Desse
-
modo, então O e
. ' go se separa d

expressao mais
. correta, on·gi·na 1mente ego ·mundo
O
°
1,
externo· 0 u, numa
separa, de s1 mesmo, um mundo externo )N •_nc UI tudo; posterionnente
nio passa, portanto, de apenas um . d. oss? presente sentimento do ego'
. . 1 . mirra o res1duo d
mats 1nc us1vo - na verdade t0 t I e um sentimento muito
, . , , a mente abrangente
um vmcu 1o mais mtimo entre O - , que corresponde a
. ego e o mundo que 0
muitas pessoas em cuja vida mental . cerca. Supondo que há
. esse senhmentop · , · d
em maior ou menor grau ele exi·st· . nmano o ego persistiu
. • ' ina ne1as ao lad d0 ·
mais e-stnto e mais nitidamente demarcado da m .º sentimento do ego
de correspondente seu Nesse caso . d atuo<lade, como uma espécie
. · , o conteu o ideac· 1 1 .
sena exatamente o de ilimitabilidade d , iona ª e e apropnado
. .. e o e um vmculo com 0 ·
as mesmas ideias com . que
. . .meu amigo eluc1.dou o sentimento
. universo -
'oceânico'
Contudo,_t~re1 eu o dtre1to de presumir a sobrevivência de ai .:
encontrava ongmalmente lá lado a lado com O . go que Jª se
· ? S d, . . ' que postenormente dele se
denvou. em uv1da, sim. Nada existe de estranho em tal~,enomeno tanto A

no.c~po mental como em qualquer outro. No reino animal, atemo~nos à


op1~1ao ?e que as espécies mais altamente desenvolvidas se originaram das
mais ba1_xas; no entanto, ainda hoje, encontramos em existência todas as
formas ~1mples. A raça ~os grandes sáurios se extinguiu e abriu caminho para
os mam1feros; o crocodilo, porém, legítimo representante dos sáurios, ainda
vive entre nós. Essa analogia pode ser excessivamente remota, além de
debilitada pela circunstância de as espécies inferiores sobreviventes não
serem, em sua maioria, os verdadeiros ancestrais das espécies mais altamente
desenvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os elos intermediários extingui-
ram-se, e só os conhecemos através de reconstruções. No domínio da mente,
por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao
lado da versão transformada que dele surgiu, que se faz desnecessário
fornecer exemplos como prova. Quando isso ocorre, é geralmente em conse-
qüência de uma divergência no desenvolvimento: determinada parte (no
sentido quantitativo) de uma atitude ou de um impulso instintivo permaneceu
inalterada, ao passo que outra sofreu um de_senvolvimento ulteri~r.
Esse fato nos conduz ao problema mais geral da preservaçao na esfera
da mente. O assunto mal foi estudado ainda,' mas é tão atraente e im~ortante,
• ·· 1 nossa atenção para ele ainda que
que nos sera perm1ttdo
. . vo tarmos
· um
D dpouco superamos o erro de,supor que
nossa desculpa seJa msufic1ente. es e que . . ._
o esquecimento com que nos achamos familiarizados significava a destnuçao

o assunto foi acrescentada por Freud em 1907 à Seção F do ú.ltimo


[Uma nota de rodapé sobre d Li'e ( 190 lb) Standard Ed., 6, 274-5.J
capítulo de The Psychopathology 01Every ay '1' '

77
do rcs íd110 1n116mí c() is to 6~ a hWi r.tn1qw Jt1.,.(;W.:J ~' fí '-arr,,,,-, md1n.aóf, ;;_
ít ss111n ír o ronto ck vis ta orost(), <JU ~cja, <J d e que~ na YJd .õ, JYt(,'111,..õJ~ nzAã d<J
q11 e 111na vez se.; f<>rmo11 r<Jdc r crcccr <, de quC; tud,, {;; de í::tlg urná rrJ.ãn~Jr~.
pn.:sl:rvado <..: 41,e, cm c1rcunstáncíafoi apropriada~ (q uand(J; por e-,Y,(:rr,pJ,,~ <:.
regressão volt a h lJ f ící c:ntc.:m cntc atrá.<, )} pode M.,"í traz1d,, d{; n <rHJ (i Juz.
Tcnl<..:n1os apn;c:nch,;r o que.; e~sa ~upo~íção envolve} c~U1,hdCC(..11d<J u1J1a ~,n~-
logié1 com outro cam ro .v ·:scolhcremo;-, como exemplo a h1 <,tória da C1&..ê~
1·'. te rna . 1 Os hí storíadorcs nos dizem que a Rom a rnai~ antíg<:i fr11 a PortUJ.
(Juadrata, uma r ovo ação sediada sobre o Pa Jatíno. Segu iu-~ a fa ~~ é<f,
.\'eptimontium, uma federação da~ povoaçõ c~ da i., difr,"íente~ o,hr,a~; 6::-y.Jh.
veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e~ mais tarde ainda; após todas
as transfr)rmaçõcs ocorrida<, durante os períodos da república e dos primeiros
césares, a cidade que o imperador Aureliano cercou com as s1..ras muralhas.
Não acompanharemos mais as m odifi cações por que a cidade passou; per-
guntar-nos-emos, porém, o quanto um visitante~ que imaginaremos munjdo
do mai s completo conhecimento histórico e topográfico, ainda p~e encon-
trar, na Roma de hoje, de tudo que restou dessas primeiras etapas. A exceção
de umas poucas brechas, verá o Muro de Aureliano quase intacto . Em certas
partes, poderá encontrar seções do Muro de Sérvio que foram escavadas e
trazidas à luz. Se souber bastante - mais do que a arqueologia atual conhece
- , talvez possa traçar na planta da cidade todo o perímetro desse m uro e o
contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que outrora ocuparam essa antiga
área, nada encontrará, ou, quando muito, restos escassos, j á que não existem
mais. No máximo, as melhores infonnações sobre a Roma da era republicana
capacitariam-no apenas a indicar os locais em que os templos e edificios
públicos daquele período se erguiam. Seu sítio acha-se hoje tomado por
ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas de restaurações posteriores.
efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição. Também faz-se
necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga ~-rão
mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu
1nuito nos últimos séculos, a partir da Renascença. Sem dúvi~ já não há
nada que seja antigo, enterrado no solo da cidade ou sob os edifícios
modernos. Este é o modo como se preserva o passado em s ítios históricos
como Roma.
Pennitam-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Ron1a não é
mna habitação humana, mas uma entidade p síquica~ com um passado seme-

Baseada em 'The Cambridge Ancient H istory ·. 7 ( 1928): "The Founding ofRome ·. por Hugo
Last.

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thantemente longo e abundante _ ist . .
outrora surgiu desapareceu e onde todo e, u~a entidade onde nada do que
• as as iases anteriores d d 1·
mento continuam a existir, paralelamente a. u. 1ttma
. e
Isso signifi · esenvo v1-
Roma, os palácios dos césares e as Se•nt. . d. .
r 1zomum e Sétimo Sev
tcana que,
. d em
estariam erguendo em sua antiga altura sobre o p I t'
A • ª a mo e que ero am a se
o castelo d
Santo Ange1o. ainda apresentaria em suas ameias · as belas estatuas
. que 0e
adornavam
. 1 ate 1 a época do cerco pelos godos, e assim
· por d',ante Mais . do que
isso: no oca ocupado . pelo Palazzo Cafarelli , mais · uma vez se· ergueria . _
sem
~ que o Palazzo tivesse
• . de ser removido - 0 TemPIo de Jup1terCap1tohno
• · · •
nao apenas em. sua. . ultima forma ' como os romanos do lmpeno · · o viam,
· mas'
também na pnmittva, quando apresentava formas etruscas e era omamentad0
por a~tefixas de ~erracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se ergue O CoJiseu,
podenamos admirar a desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do
Panteão encontraríamos não apenas o atual, tal co~o legado por Adriano,
mas, aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa; na verdade, o mesmo
trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria sobre Minerva
e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E talvez o observador tivesse
apenas de mudar a direção do olhar ou a sua posição para invocar uma visão·
ou a outra.
A essa altura não faz sentido prolongannos nossa fantasia, de uma vez
que -ela conduz a coisas inimagináveis e mesmo absurdas. Se quisermos
representar a seqüência histórica em termos espaciais, só conseguiremos
fazê-lo pela justaposição no espaço: o mesmo espaço não pode ter dois
conteúdos diferentes. Nossa ten~tiva parece ser um jogo ocioso. Ela conta
com apenas uma justificativa. Mostra quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de sua representação em termos pictó-
ricos.
Há outra objeção a ser considerada. Pode-se levantar a questão da razão
por que escolhemos precisamente o passado de uma cidade para compará-lo
com o passado da mente. A suposição de que tudo o que passou é preservado
se aplica mesmo na vida mental, só com a condição de que o ~rgão d~ mente
1
tenha permanecido intacto e que seus tecidos I\ão tenham sido danificados
por trauma ou inflamação. Mas influências destrutivas que possam ser
'd d citadas acima nunca faltam na
comparadas a causas de en tierm1 a e como as . .
. . h 'd passado menos d1vers1ficado
história de uma cidade, ainda que ten a tt o um . ..
que o de Roma e ainda que, como Londres, mal tenha sofndo com as v1s1tas
' . • - d édios ocorrem no decorrer
de um inimigo. Demolições e substJtuiçoes ·dede pr Uma cidade
. e. portanto, ª
do mais pacífico desenvolvimento de uma ci ª · ' ·
79
. . ·ada para uma comparação desse tipo cotn um organismo
priori. ,napropn
mental. te ess·i obieção e. abandonando nossa tentativa de
Curvamo-nos an ' J
·,npressivo nos voltaremos para o que, afinal de contas
esboçar un, contras te ' · . . . ,
. .
constttu1 um o ~eb. to de comparação mais estrettainente
. , relacionado: 0 corpo
de um animal ou O de um ser humano. Aqui tamb~m, no e~~a~to, encontramos
a mesm,a Col. ·sa · As primeiras fases do desenvolvnnento Ja nao se acham , em
sentido algum. preservadas; foram absorvidas pelas fases posteriores, às
quais forneceram material. O embrião não pode ser descoberto no adulto. A
glândula do timo da infância, sendo substituída. após a puberdade, por tecidos
de ligação. não mais se apresenta corno tal; nas medulas ósseas do homem
adulto posso, sem dúvida, traçar o contorno do osso infantil, embora este
tenha desaparecido, alongando-se e espessando-se até atingir sua forma
definitiva. Permanecen1 o fato de que só na mente é possível a preservação
de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final, e o de que não
estamos em condições de representar ,esse fenômeno em termos pictóricos.
Talvez estejamos levando longe demais essa reflexão.\ralvez devêsse-
mos contentar-nos en1 afirmar que o que se passou na vida mental pode ser
preservado, não sendo, necessariamente, destruído·\É sempre possível que.
mesmo na n1ente. algo do que é antigo seja apagado ou absorvido - quer no
curso normal das coisas, quer como exceção - a tal ponto, que não possa
ser restaurado nem revivescido por meio algum, ou que a preservação em
geral dependa de certas condições favoráveis. É possível, mas nada sabemos
a esse respeito. Podemos apenas prender-nos ao fato de ser antes regra, e não
exceção, o passado achar-se preservado na vida mental.
Assim. estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento
'oceânico' existe em muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem
remontar a uma fase primitiva do sentimento do ego. Surge então uma nova
questão: que direito tem esse sentimento de ser considerado como a fonte das
necessidades religiosas.
Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de contas, um sentimento só
poderá ser fonte de energia se ele próprio for expressão de uma necessidade
intensa. A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê
e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível,
desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir
dos dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder
superior do Destino. Não consigo pensar em nenhuma necessidade da inf'ancia
tão intensa quanto a da proteção de um pai. Dessa maneira, o papel desempe-
nhado pelo sentimento oceânico, que poderia buscar algo como a restauração do

80
narcisism~ i~imitado, é deslocado de um lu~ar em primeiro plano. A origem da
atitude rehg1osa pode ser remontada, em linhas muito claras, até O sentimento
de desamparo infanti 1. Pode haver algo mais por trás disso, mas, presentemente,
ainda está envolto em obscuridade.
Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião
posterionnente. A ' unidade com o universo', que constitui seu conteúdo
ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como
se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece
a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais uma vez
que para mim é muito dificil trabalhar com essas quantidades quase intangí-
veis. Outro amigo meu, cuja insaciável vontade de saber o levou a realizar
as experiências mais inusitadas, acabando por lhe dar um conhecimento
enciclopédico, assegurou-me que, através das práticas de ioga. pelo afasta-
mento do mundo, pela fixação da atenção nas funções corporais e por
métodos peculiares de respiração, uma pessoa pode de fato evocar em si
mesma novas sensações e cenestesias, consideradas estas como regressões a
estados primordiais da mente que há muito tempo foram recobertos. Ele vê
nesses estados uma base, por assim dizer fisiológica, de grande parte da
sabedoria do misticismo. Não seria difícil descobrir aqui vinculações com
certo número de obscuras modificações da vida mental, tais como os transes
e os êxtases. Contudo, sou levado a exclamar, como nas palavras do mergu-
lhador de Schiller:

· ... Es freue sich,


1
Wer da atmet im rosigten Licht.'

. . . . . .. 1 z! ' Schiller, ·Der Taucher'.)


!' Regozije-se aquele <1ue aqui em cima respira, na rosea u

81
V

O tr~balho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual


são precisamente aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não
poden~ tolerar. O neurótico cria cm seus sintomas satisfações substitutivas
para s1. e estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam
fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos
com o meio ambiente c a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil
de comprc_cndcr: o primeiro nos apresenta um novo problema. A civilização.
porém. exige outros sacrificios, além do da satisfação sexual.
Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma
dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia
da libido. à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por
outra nova.' Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre
civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir
urn relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser
supérfluo ou pc1turbador, ao passo que a civilização depende de relacior~a-
mcntos entre um considerável número de indivíduos. Quando um relaciona-
mento amoroso se encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro
interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo; sequer
necessitam do filho que têm em comum para tomá-los felizes. Em nenhum
outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser. o seu intuito de. de
mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial,
ou seja. através do amor de dois seres humanos. recusa-se a ir além.
Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural
que consista em indivíduos duplos como este, que, libidinalrnente satisfeitos
em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho
con1um e dos interesses comuns. Se as~irn fosse, a civilização não teria que
extrair energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável estado de
coisas não existe, nem nunca existiu. A realidade nos mostra que a civilização
não se contenta com as ligações que até agora lhe concedemos. Visa a unir
entre si os membros da c01nunidadc tamb~m de maneira libidinal e, para
tanto, emprega todos os meios. Favorece todos os caminhos pelos qua!s
identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comu111-
dadc e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida cm sua finalidade. de

[ Ver. por exemplo. pág. 56. acima. Para certas observações sobre o emprego por ~reu<l <lo
· · · ps1qu1ca
conceito de 'inercia · · • cm geral, ver nota, de ro d·ap1.:• do E.<l.tor
1 •·1 Freud • 1915/.
• Swndard

Ed.. 14. 272.]

I IJ
, nunal através das relações de amizade p
• • . v,ncu 1o co1 . . : ·l , . - . ara
,
rnotlo ,1 1(\ 1akce1
1 º. . .
. . . ·cplll rca 11z, · • acJos faz-se mcv1t,1ve
. rnna rcstnçao ,a· v,.da
~ esses ob_1c11vos _s ·' , entender qual necessidade força a civiliza ~
qui..: ;- scgrunnos. poren 1. , .. , , ' .. . Çao
. ·xual. N,10 con. • ...d de que provoc<1 o seu dllt,1go111smo a sexua11·d· .1
si:, • • ho m:ccss1 a . . _ . . ' <lue.
:i 10111arcssecanttll . · • , 1urbação que amda nao descohnmos.
1•u!ll tator t 1c pct . , . .d .
Deve haver a g . . • •d·t por uma das cx1gcnc1as I cais, tal como .
. . ode ser to111cc1 , . . .. , . , ,. . , , as
A pista P . 1. de civilizada. Diz cl,1. A1naras ,, teu proxi·,
• • • 1 da soc1cc ,1 . , . no
dcnon1111,11nos. • • . . • .• •ência. conhecida e1n todo o mundo, e, tndubit·
. ,smo Es!-ia cxtg <1-
c0111n a tt me.. · . ,. uc O cristianismo, que a apresenta co1no sua rcivin-
- .d . ' . .. .
,i;
. ·I . 1itc mais
111e • .
anllg,1 q
. ..- ) mais gl01 wsa.
.· . No entanto. ela nao e ecerto excessivamente antiga·
h . . ,
t11cnçc1< .. ' •· ~ ~ 1•stóricos, ainda era estran a a 11umamdade. Se adotar-

•.;mo cm tempos 11.
nii;.. ·. . d·· . (1 .
. ,
ua para cmn ela, con10 se a est1vcssemos ouv111do pela
.
mos lllna at1tu c lll_.,cn . . . . d. , ..
. . - deremos rcprm11r um scnt11nento e surpresa e perplex,-
prnne1ra vi.:z. nao po . . . . . ,, .
Verell . agir desse 111odo? Que bem isso nos trara ? Acima
da<lc. Por que e1c · 105 ·' .· . , . . ,
de tu do. com (l Collsc (luiremos
• ,:;,
ag•tr desse
.
modo? Con10 _
isso pode.
ser poss1ve1? ·
1 1cu amo r. Par
. · .~
, ,1 1111 111 · " ' algo de valioso, que eu. nao devo
. Jogar fora sem
i\
rctlc:xào. A m.ixima me impõe deveres para CUJO cumpnmento devo estar
preparado e disposto a efetuar sacrificios. Se an10 uma pessoa, ela tem de
m,:recer meu amor de algu1na maneira. (Não estou levando cm consideração
ü uso que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como
objeto sexual, de uma vez qüe nenhum desses dois tipos de relacionamento
entra cm questão onde o preceito de amar ineu próximo se acha cm jogo.)
Eb merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, ein aspectos
importantes. que eu me possa an1ar nela; merecê-lo-á també1n, se for de tal
modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu
próprio eu (s<'I/). Terei ainda de an1á-la, se for o filho de meu amigo, já que
o sofrimento que este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria 1neu sofri-
mento também - eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for un1 estranho
para mim e não conseguir atrair-1ne por um de seus próprios valores, ou por
qualquer significação que já possa ter adquirido para a n1inha vida emocional,
me ·sed' muit ct·t· ·1 · 1
, 0 1 ict ama- a. Na verdade, cu estaria errado agindo assim, pois
·
meu. amor e valorizad0 por todos os 1neus como u1n sinal de 1n1nha . •
preferen-
c1a por eles e seria in · ·tO
' · Jus para co1n eles colocar un1 estranho no mesmo
l
pano em que eles e·t' S '
- s ao. e, no entanto devo amá-lo (con1 esse amor
umvcrsa) 1 meramente ' .
• ~ . porque ele também é un1 habitante da Terra, assim
como o sao um mscto ur . • . - .,
' na rnmhoca ou uma serpente, receio entao que so

íVcr p:'tg. 47, acima. Cf. também "· . . . .• , .


199.J ' Civll,zcd Sexual Morality' ( 1908d). Sra11dard Ed., 9,

114
uma pequena quantidade de meu amor cabe : .
a 1guma,. tanto quanto·, pelo JU ra. .a sua' parte· - e nao,
• 1gamcnto de minha ~
~ em 11.
. .
utpotesc
• ,

para mim. Qual é O sentído d . · ~o, lcn110 o d1re1to de reter


seu cumprimento ~ od e um preceito enunciado com tanta solenidade, se
, de um
Atraves nao P. e ser recomendado
·, d como razoável''·
de N~ exame mais ctalhado, descubro ainda outras dificulda-
s. . ao mera1nentc esse estranho é, em geral, indigno de meu amor·
hon~s.tamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minh •
hostilidade e até · dº - ª
, . mesr_no, meu o to. Nao parece apresentar o mais leve traço
d~ amor por rn1111 e ~ao demonstra a mínima consíderação para comigo. Se
dts~o ele puder auferir uma ~antagem qualquer, não hesitará em me prejudi-
car, tampouco pergunta a st mesmo se a vantagem assim obtida contém
alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade,
não precisa nem rnesrno auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qual-
quer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me
insultar, 111e caluniar e me mostrar a superíoridade de seu poder, e, quanto
mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso
esperar que se comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de
1nodo diferente, caso mostre consideração e tolerância como um estranho,
estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e inteira-
rnente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente
rnandamento dissesse' Ama a teu próximo como este te ama', eu não lhe faria
objeções. E há um segundo mandamento que me parece ma~s incompreensí-
vel ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte amda. Trata-se do
rnan d amento •Ama os teus inimigos'. Refletindo sobre . ele,
. - no entanto,
· N
percebo que estou errado em considerá-lo como uma tmposrçao maior. o
• 1
fundo é a mesma coisa. . .·
Acho ue agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: . E

preci~a~e~~ porqude teu pró~!:::!:éa


é teu mrn11go, que eves ama
ante ao do Credo
.
quza
~:g::s~:~~~:;:~!~~ :~::ª;;~
absurdum.
2
se trata de um caso seme lh

. . . d ennitir-se dar expressao- _ Jocosamen


. te.' pelo .mcuo~._
Um grande e imagmauvo escntorpo e p . . Assim l·leine confessa: ·Minha dispos,_
- a verdades psicológicas scveram~nte yr~scntahs. mi Ide ~abana com um tcio de palha, ma~
,
çiio é a mais pacifica. Os meus deseJoS sao.
. uma. frescos
u - pne
flores em minha · 1a e algumas
. 'd d
.d o leite e a manteiga mais , 1 t a minha fehc1 a e,
boa cama, boa comi a, . a· e se Deus quiser tomar comp e a , ores Antes
belas árvores cm fren_te de mm:~t::s;tc,de meus inimigos enforcados ne~s~;~me fi~eram.
me concederá a alegria de ver s • oração lhes perdoarei todo o mal que e•~. do enforcados.,
da morte deles, eu, tocado em meu~ . . ' - mas não antes de terem s1
erooar os m1m1gos
Deve-se, é verdade, p - 28 Freud retoma
( Geda11ke11 und Ein/àlle íSeçao IJ-!r Jl/usio11 ( 1927a). Standard Ed., 21. .
2 [Ver. o Capítulo V eIe The Future OJ an
115
ora. e mmto provável que meu próximo, quando lhe for p .
. rescrito
me ame como a s1 mesmo, responda exatamente como o fiz e me . . que
_ _ • reJe1te p 1
mesmas razoes. Espero que nao tenha os mesmos fundamentos ob· . e as
. .• 1 , .d,. .
tazc- o. mas tera a mesma I eia que tenho. Amda assim, 0 com
~etivos· Para
O
dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprczan: rtamento
que tais . ct11ercnças
·e: -
sao · das. e1ass1fica
detcrmma · como 'boac;' o o fato
, .
de
Enquanto essas inegáveis diferenças ni:"10 forem removidas, a Obed~.
. • . ,. . ,
0

1enc1a as
~as:.
e1evadas cx1genc1as eticas acarreta preJu1zos aos objetivos da civiliza.-
incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incident Çao, ~or
na câmara dos deputados francesa, quando a pena capital estava ec ocdorrbido
. m e ate
Um dos membros acabara de defendcr apaixonadamente a abolição d 1 •
. . eacseu
discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma
vm . . exc1amou: 'Que 1ness1eurs
. da d· o p1enano · 1es assassms
· commencent!'• Vf.r/_
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão
tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam
ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo
~ontrário. são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta
tuna poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é,
para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a
explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmen-
te sem o seu consentin1ento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-
lhe sofri mento, torturá-lo e matá-lo. - Homo homini /upus. 2 Quem, em face
de toda sua experiência da vida e da história. terá a cor~gem de discutir essa
asserção'? Via de regra, essa cn1el agressividade espera por alguma provoca-
ção, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também
poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que
lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que normalmente a
inibem se encontra111 fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente
e revela o homem como uma besta selvagem, a quem a consideração para
com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as
atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos.
ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e
Tamerlão. ou na captura de Jerusalétn pelos piedosos cruzados, ou mesmo.

ao tema de amar ao próximo como a si mesmo mais adiante. na pág. 93 e segs.]


['Que os senhores assassinos comc~em!'] . . .
-, (' o homem é o lobo do homem.' Citado de Plauto, Asmarra, 11. iv. 88.1

11(,
na Yerdade. os horrores da recente guerra mundial, quem quer que relem bre
tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opini uo.
A existência da inclinaç,10 para a agressão, que podemos detectar cm nús
mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitu i o fat or
que perturba nossos relacionamentos com o nosso próx imo e força a ci vili -
zação a um tão ele,·ado dispendio [de energia] . Em conseqüência dessa mútua
hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê r errna-
nentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalh o em comum
não a manteria unida: as paixões instintivas são mais fortes que os interesses
razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabele-
cer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifesta-
ções sob controle por fonnações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego
de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e rel acionamentos
amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sex ual e daí.
também. o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo.
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão
fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os
esforços. esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito.
Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violencia brutal por si
mesma~supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos ; no
entanto. a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais
cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que c1da
um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões. as esperanças que. na
juventude, depositou em seus semelhantes. e aprende quanta dificuldade e
sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo
tempo. seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade
humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas
oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empre-
gada e tomada uma ocasião para a inimizade.
Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de noss,Js
males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para COlllll
seu próximo. mas a instituição da propriedade privada corTompcu-lhe a natun.'?J
A propriedade da riqueza pri\'ada confere poder ao indivíduo e, Ct)lll ~- k . ~1
tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem cxduidu da pt)SSi..' i..':--lj
fadado a se rebelar hostilmente contrn seu opressor.
Se a propriedade privada foss e abolida, pnssuida L'lll l'llt11t1111 tl)d:1 a
riqueza e permitida ~1 todos :l partilha lk sua frui,·Jl), a ma \'ontad~ 1.' a
hostilidade desapareceriam t:ntn: os homens. ( \ Hno as nccessidatks de tod l)S
seriam sat1sfcítas , ninguém tcn:1 r;11Jo nlgulll:\ pnr:1 c11cir:1r outn.'111 como

l 17
1mmigo; todos , de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fi zesse
necessário. Não estou interessado e111 nenhuma crítica econômica do sistema
comunista; não posso investigar se a abolição da propriedade privada é
1
conveniente ou vantaj osa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas
psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável.
Abolindo a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão de
um de seus instrumentos, decerto forte, e111bora, decerto também, não O mais
forte ; de maneira algu111a, poré111 , alteramos as diferenças e111 poder e influên-
cia que são 111al empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos
nada e111 sua natureza. A agressividade não foi criada pela propriedade.
Reinou quase se111 lünites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda
era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que
a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária; constitui a base
de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única exceção, talvez,
do relacionamento da mãe com seu filho homem 2) . Se eliminamos os direitos
pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacio-
namentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tomarem a fonte da mais intensa
antipatia e da 1nais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspec-
tos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator,
permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família,
célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilida-
de quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar;
uma coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica
indestrutível da natureza humana seguirá a civilização.
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa
inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. A
vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, con-
cedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra
intrusos , não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável

Quem quer que tenha provado as desgraças da pobreza em sua própria juventude e e~peri-
mentado a indiferença e a arrogância dos abastados deveria achar-se a salvo da suspeita de
não ter compreensão ou boa vontade para com os ésforços destinados a combater a desigu_al -
dade da riqueza entre os homens e tudo a que ela conduz. Certamente, se se fizer uma tentativa
para basear essa luta numa exigência abstrata, em nome da justiça, da igualdade para to~o~
os homens, existirá uma objeção muito óbvia a ser feita: a de que a natureza, por dotai ~s
· d · 'd ·b · d ·
~11 . 1v 1_ uos com atn utos físicos e capacidades mentais extremamente esiguais,
· introduziu
m.1ust1ças contra as quais não há remédio. .
2 [Cf. uma nota de rodapé ao Capítulo VI de Group Psychnlogy (1921c), Standa rd Ed. , 18 '
101 17 · u m exame
, bem mais· longo do assunto ocorre perto '-10 final da eonietet
. -. -~1ci't' xxxm
das New lntroductnry Lectures ( l 939a) .]

118
nún1ero de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para rcccbc-
retn as manifestações de sua agressividade. Em outra ocasião , examinei o
fenÔineno no qual sã~pr~cisamente comunidades com territórios adjacente'.-,.
~ 1nutuan:!_eQter.elacionadas ta1nbérn s'Ob out ros aspectos, que se em penham
em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os espanh óis e
os portugueses por exe1nplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul. os
ingleses e os escoceses, e assim por diante. 1 Dei a esse fenômeno o nome de
__ ' narcisismo das pequenas diferenças ', denominação que não aj uda muito a
explicá-lo. Agorã põaemos ver que se trata de uma sati sfação conveni ente e
relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão
entre os membros da comunidade é tomada mais fácil. Com respeito a isso.
o povo judeu, espalhado por toda a parte, prestou os mais útei s serviços às
civilizações dos países que os acolheram ; infelizmente, porém , todos os
massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tomar o período mais
pacífico e mais seguro para seus semelhantes cristãos. Quando, outrora, o
Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o funda-
mento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da
cristandade para com os que permaneceram fora dela tomou-se uma conse-
qüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida
comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora.
entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnado
dela. Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível que o sonho de um
domínio mundial germânico exigisse o anti-semitismo como seu complemento.
sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma civilização
nova e comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na perseguição aos
burgueses. Não se pode senão imaginar, com preocupação, sobre o que farão os
soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grancles, não apenas à sexyaJidade
do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor
porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem
primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instinto.
Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade , por qual -
quer período de tempo, eram muito tênues . O homem civilizado trocou uma
parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.
Não deve1nos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe
desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil. Naquele

[Ver Cap_ítulo VI de Group Psychology (1921c), Standard Ed. , 18, 101 , e :o Tab u da
Virgindade ' ( I 981 a) , Edição Standard Brasileira, Vol. XI , pág. 184, IMAGO Ed1tora , 1970.]

l 19
, d ·
peno o pr 11111
·tivo da civilização, o contraste
. . entre
. uma minoria que gozava
, • , tagens da civilização e uma ma10na pnvada dessas vantagens era
e,1c1s van . .. ,
port a ,nto levada a seus extremos. Quanto aos povos pnm1t1vos
.d . . .que ainda hoie
J
existem , pesquisas cuidadosas mostraram que sua v1 a mstmtiva não é, de
maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade ..Está
sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que
dizem respeito ao homem moderno.
Quando , co1n toda justiça, considermnos falho o presente estado de nossa
civilização, por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um
plano de vida que nos torne felizes , e por permitir a existência de tanto
sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica
impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos
indubitavehnente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos
da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civiliza-
ção alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às
nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de
existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se subme-
terão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de restringir
os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o
perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de 'pobreza psicoló-
gica dos grupos' . 1 Esse perigo é 1nais ameaçador onde os vínculos de uma
sociedade são principalmente constituídos pelas identificações dos seus
1nembros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder
não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo.2
O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporciona-
ria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é
de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica da civili-
zação americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou
empregando métodos americanos.

[O alemão 'p\'ycho!o
· · ·h es E!en d' parece ser uma versão da expressao
g,sc - de Janet ·m r·sere
psychologiquc'
, . ' por e Ie ap 1·ica, d a para descrever a mcapacidade
. de síntese menta 1que ªt ribui
aos neurot1cos.]
2 [Cf. Group Psycholq"ry and the Analysis ofthe Ego (192lc).]

120

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