Texto FREUD Conferência 31 Dissecação Psíquica

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FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias 31 [1933].

Edição porém, encontrar uma abordagem inicial; e é a respeito disto que pretendo
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. V. 22. Rio de falar-lhes hoje.
Janeiro: Imago, 1980: A DISSECÇÃO DA PERSONALIDADE Devo, no entanto, transmitir-lhes a minha suspeita de que esta minha
PSÍQUICA exposição sobre psicologia do ego os influenciará de forma diferente da
introdução ao submundo psíquico, a qual a precedeu. Não posso dizer com
SENHORAS E SENHORES: certeza por que isto tem de ser assim. Pensei, antes, que os senhores
Sei que estão conscientes, no que diz respeito aos seus próprios descobririam que, enquanto anteriormente eu lhes relatei principalmente fatos,
relacionamentos, seja com pessoas, seja com coisas, da importância do ponto embora estranhos e característicos, os senhores, agora, estarão ouvindo
de partida dos senhores. Também foi isto o que se passou com a psicanálise. principalmente opiniões — isto é, investigações teóricas. Isto, contudo, não
Não foi uma coisa sem importância, para o curso do seu desenvolvimento ou contradiz a situação. Considerando melhor, devo afirmar que o montante da
para a acolhida que ela encontrou, o fato de ela ter começado seu trabalho elaboração do material concreto de nossa psicologia do ego não é muito maior
sobre aquilo que é, dentre todos os conteúdos da mente, o mais estranho ao do que era na psicologia das neuroses. Fui obrigado a rejeitar também outras
ego (eu) — sobre os sintomas. Os sintomas são derivados do reprimido explicações do resultado que prevejo: agora acredito que é, de certo modo,
(recalcado), são, por assim dizer, seus representantes perante o ego; mas o uma decorrência da natureza do material em si, e de não estarmos
reprimido é território estrangeiro para o ego — território estrangeiro interno acostumados a abordá-lo. Em todo caso, não me surpreenderei se os senhores
— assim como a realidade (que me perdoem a expressão inusitada) é território se mostrarem ainda mais reservados e cautelosos no seu julgamento do que até
estrangeiro externo. A trajetória conduziu dos sintomas ao inconsciente, à vida agora.
das pulsões, à sexualidade; e foi então que a psicanálise deparou com a
brilhante objeção de que os seres humanos não são simplesmente criaturas Pode-se esperar que a própria situação em que nos encontramos no início de
sexuais, mas têm, também, impulsos mais nobres e mais elevados. Poder-se-ia nossa investigação nos aponte o caminho. Queremos transformar o ego, o
acrescentar que, exaltados por sua consciência desses impulsos mais elevados, nosso próprio eu, em tema de investigação. Mas isto é possível? Afinal, o ego
eles muitas vezes assumem o direito de pensar de modo absurdo e desprezar é, em sua própria essência, sujeito; como pode ser transformado em objeto?
os fatos. Bem, não há dúvida de que pode sê-lo. O ego pode tomar-se a si próprio como
Os senhores estão bem informados. Já desde o início temos dito que os seres objeto, pode tratar-se como trata outros objetos, pode observar-se, criticar-se,
humanos adoecem de um conflito entre as exigências da vida pulsional e a sabe-se lá o que pode fazer consigo mesmo. Nisto, uma parte do ego se coloca
resistência que se ergue dentro deles contra esta; e nem por um momento nos contra a parte restante. Assim, o ego pode ser dividido; divide-se durante
esquecemos dessa instância que resiste, rechaça, reprime, que consideramos numerosas funções suas — pelo menos temporariamente. Depois, suas partes
aparelhada com suas forças especiais, as pulsões do ego, e que coincide com o podem juntar-se novamente. Isto não é propriamente novidade, embora talvez
ego da psicologia popular. A verdade foi simplesmente que, em vista da seja conferir ênfase incomum àquilo que é do conhecimento geral. Por outro
natureza laboriosa do progresso feito pelo trabalho científico, até mesmo a lado, bem conhecemos a noção de que a patologia, tornando as coisas maiores
psicanálise não conseguiu estudar todas as áreas simultaneamente e expressar e mais toscas, pode atrair nossa atenção para condições normais que de outro
suas opiniões sobre todos os problemas de um fôlego só. Mas, por fim, modo nos escapariam. Onde ela mostra uma brecha ou uma rachadura, ali
atingiu-se o ponto em que nos foi possível desviar nossa atenção do reprimido pode normalmente estar presente uma articulação. Se atiramos ao chão um
para as forças repressoras, e encontramos esse ego que parecera tão evidente cristal, ele se parte, mas não em pedaços ao acaso. Ele se desfaz, segundo
por si mesmo, com a segura expectativa de que aqui novamente haveríamos de linhas de clivagem, em fragmentos cujos limites, embora fossem invisíveis,
encontrar coisas para as quais não podíamos estar preparados. Não foi fácil, estavam predeterminados pela estrutura do cristal. Os doentes mentais são
estruturas divididas e partidas do mesmo tipo. Nem nós mesmos podemos
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esconder-lhes um pouco desse temor reverente que os povos do passado agora por que processo. Antes, porém, atentemos para uma discrepância entre
sentiam pelo insano. Eles, esses pacientes, afastaram-se da realidade externa, os dois. O superego parece ter feito uma escolha unilateral e ter ficado apenas
mas por essa mesma razão conhecem mais da realidade interna, psíquica, e com a rigidez e severidade dos pais, com sua função proibidora e punitiva, ao
podem revelar-nos muitas coisas que de outro modo nos seriam inacessíveis. passo que o cuidado carinhoso deles parece não ter sido assimilado e mantido.
(...) Se os pais realmente impuseram sua autoridade com severidade, facilmente
podemos compreender que a criança desenvolva, em troca, um superego
Sem dúvida, os senhores esperarão que eu lhes dê mais do que uma simples severo. Contrariando nossas expectativas, porém, a experiência mostra que o
ilustração quando lhes informo havermos descoberto todo tipo de coisas superego pode adquirir essas mesmas características de severidade inflexível,
acerca da formação do superego (supereu) — isto é, sobre a origem da ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa, e se
consciência. Seguindo um conhecido pronunciamento de Kant, que liga a tenham evitado, na medida do possível, ameaças e punições. Mais adiante,
consciência dentro de nós com o céu estrelado, um homem piedoso bem retornaremos a essa contradição, quando tratarmos das transformações da
poderia ser tentado a venerar essas duas coisas como as obras-primas da pulsão durante a formação do superego.
criação. As estrelas são, na verdade, magníficas, porém, quanto à consciência, Não posso dizer-lhes tanto quanto gostaria a respeito da metamorfose do
Deus executou um trabalho torto e negligente, pois da consciência a maior relacionamento parental em superego, em parte porque esse processo é tão
parte dos homens recebeu apenas uma quantia modesta, ou mal recebeu o complexo, que uma exposição dele não cabe dentro do esquema de trabalho de
suficiente para ser notado. Longe de nós desprezarmos a parcela de verdade uma série de conferências de introdução, como a que tento dar-lhes, mas em
psicológica da afirmação segundo a qual a consciência é de origem divina; parte, também, porque não nos sentimos seguros de que estejamos
contudo a tese requer interpretação. Conquanto a consciência seja algo ‘dentro compreendendo-a por inteiro. Assim, devem satisfazer-se com o esboço que
de nós’, ela, mesmo assim, não o é desde o início. Nesse ponto, ela é um se segue.
contraste real com a vida sexual, que existe de fato desde o início da vida e A base do processo é o que se chama ‘identificação’ — isto é, a ação de
não é apenas um acréscimo posterior. Pois bem, como todos sabem, as assemelhar um ego a outro ego, em conseqüência do que o primeiro ego se
crianças de tenra idade são amorais e não possuem inibições internas contra comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em certo
seus impulsos que buscam o prazer. O papel que mais tarde é assumido pelo sentido, assimila-o dentro de si. A identificação tem sido comparada, não
superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pela autoridade inadequadamente, com a incorporação oral, canibalística, da outra pessoa. É
dos pais. A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de uma forma muito importante de vinculação a uma outra pessoa,
amor e ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda provavelmente a primeira forma, e não é o mesmo que escolha objetal. A
do amor e se farão temer por essa mesma causa. Essa ansiedade realística é o diferença entre ambas pode ser expressa mais ou menos da seguinte maneira.
precursor da ansiedade moral subseqüente. Na medida em que ela é Se um menino se identifica com seu pai, ele quer ser igual a seu pai; se fizer
dominante, não há necessidade de falar em superego e consciência. Apenas dele o objeto de sua escolha, o menino quer tê-lo, possuí-lo. No primeiro caso,
posteriormente é que se desenvolve a situação secundária (que todos nós com seu ego modifica-se conforme o modelo de seu pai; no segundo caso, isso não
demasiada rapidez havemos de considerar como sendo a situação normal), é necessário. Identificação e escolha objetal são, em grande parte,
quando a coerção externa é internalizada, e o superego assume o lugar da independentes uma da outra; no entanto, é possível identificar-se com alguém
instância parental e observa, dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma que, por exemplo, foi tomado como objeto sexual, e modificar o ego segundo
forma como anteriormente os pais faziam com a criança. esse modelo. Diz-se que a influência sobre o ego, motivada pelo objeto sexual,
O superego, que assim assume o poder, a função e até mesmo os métodos da ocorre com particular freqüência em mulheres e é característica da
instância parental, é, porém, não simplesmente seu sucessor, mas também, feminilidade. Devo ter-lhes falado, já, em minhas conferências anteriores,
realmente, seu legítimo herdeiro. Procede diretamente dele, e verificaremos daquilo que é, sem dúvida, a relação mais esclarecedora entre identificação e
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escolha objetal. Pode ser observado com igual facilidade em crianças e em Espero que já tenham formado uma opinião de que a hipótese do superego
adultos, tanto em pessoas normais como em pessoas doentes. Se alguém realmente descreve uma relação estrutural, e não é meramente uma
perdeu um objeto, ou foi obrigado a se desfazer dele, muitas vezes se personificação de abstrações tais como a da consciência. Resta mencionar
compensa disto identificando-se com ele e restabelecendo-o novamente no mais uma importante função que atribuímos a esse superego. É também o
ego, de modo que, aqui, a escolha objetal regride, por assim dizer à veículo do ideal do ego, pelo qual o ego se avalia, que o estimula e cuja
identificação. exigência por uma perfeição sempre maior ele se esforça por cumprir. Não há
Eu próprio não estou, de modo algum, satisfeito com esses comentários sobre dúvida de que esse ideal do ego é o precipitado da antiga imagem dos pais, a
identificação; mas isto será suficiente se os senhores puderem assegurar-me de expressão de admiração pela perfeição que a criança então lhes atribuía. (...)
que a instalação do superego pode ser classificada como exemplo
bem-sucedido de identificação com a instância parental. O fato que fala Atribuímo-lhe as funções de auto-observação, de consciência e de [manter] o
decisivamente a favor desse ponto de vista é que essa nova criação de uma ideal. Daquilo que dissemos sobre sua origem, segue-se que ele pressupõe um
instância superior dentro do ego está muito intimamente ligada ao destino do fato biológico extremamente importante e um fato psicológico decisivo; ou
complexo de Édipo, de modo que o superego surge como o herdeiro dessa seja, a prolongada dependência da criança em relação a seus pais e o
vinculação afetiva tão importante para a infância. Abandonando o complexo complexo de Édipo, ambos intimamente inter-relacionados. O superego é para
de Édipo, uma criança deve, conforme podemos ver, renunciar às intensas nós o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço
catexias objetais que depositou em seus pais, e é como compensação por essa tendente à perfeição — é, em resumo, tudo o que pudemos captar
perda de objetos que existe uma intensificação tão grande das identificações psicologicamente daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da
com seus pais, as quais provavelmente há muito estiveram presentes em seu vida do homem. Como remonta à influência dos pais, educadores, etc.,
ego. Identificações desse tipo, cristalização de catexias objetais a que se aprendemos mais sobre seu significado se nos voltamos para aqueles que são
renunciou, repetir-se-ão muitas vezes, posteriormente, na vida da criança; sua origem. Via de regra, os pais, e as autoridades análogas a eles, seguem os
contudo, está inteiramente de acordo com a importância afetiva desse primeiro preceitos de seus próprios superegos ao educar as crianças. Seja qual for o
caso de uma tal transformação o fato de que se deve encontrar no ego um entendimento a que possam ter chegado entre si o seu ego e o seu superego,
lugar especial para seu resultado. Uma investigação atenta mostrou-nos, são severos e exigentes ao educar os filhos. Esqueceram as dificuldades de sua
também, que o superego é tolhido em sua força e crescimento se a superação própria infância e agora se sentem contentes com identificar-se eles próprios,
do complexo de Édipo tem êxito apenas parcial. No decurso do inteiramente, com seus pais, que no passado impuseram sobre eles restrições
desenvolvimento, o superego também assimila as influências que tomaram o tão severas. Assim, o superego de uma criança é, com efeito, construído
lugar dos pais — educadores, professores, pessoas escolhidas como modelos segundo o modelo não de seus pais, mas do superego de seus pais; os
ideais. Normalmente, o superego se afasta mais e mais das figuras parentais conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de
originais; torna-se, digamos assim, mais impessoal. E não se deve esquecer todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se transmitiram
que uma criança tem conceitos diferentes sobre seus pais, em diferentes de geração em geração. Facilmente podem adivinhar que, quando levamos em
períodos de sua vida. À época em que o complexo de Édipo dá lugar ao conta o superego, estamos dando um passo importante para a nossa
superego, eles são algo de muito extraordinário; depois, porém, perdem muito compreensão do comportamento social da humanidade — do problema da
desse atributo. Realizam-se, pois, identificações também com esses pais dessa delinqüência, por exemplo — e, talvez, até mesmo estejamos dando
fase ulterior, e, na verdade, regularmente fazem importantes contribuições à indicações práticas referentes à educação. Parece provável que aquilo que se
formação do caráter; nesse caso, porém, apenas atingem o ego, já não mais conhece como visão materialista da história peque por subestimar esse fator.
influenciam o superego que foi determinado pelas imagos parentais mais Eles o põem de lado, com o comentário de que as ‘ideologias’ do homem nada
primitivas. mais são do que produto e superestrutura de suas condições econômicas
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contemporâneas. Isto é verdade, mas muito provavelmente não a verdade espécies de inconsciente — uma que é facilmente transformada, em
inteira. A humanidade nunca vive inteiramente no presente. O passado, a circunstâncias de ocorrência freqüente, em algo consciente; e uma outra, na
tradição da raça e do povo, vive nas ideologias do superego e só lentamente qual essa transformação é difícil e apenas se realiza quando sujeita a
cede às influências do presente, no sentido de mudanças novas; e, enquanto considerável dispêndio de esforços, ou, possivelmente, jamais se efetue,
opera através do superego, desempenha um poderoso papel na vida do absolutamente. Com a finalidade de evitar a ambigüidade no sentido de
homem, independentemente de condições econômicas. (...) estarmo-nos referindo, a um ou a outro inconsciente, de estarmos usando a
palavra no sentido descritivo ou no sentido dinâmico, utilizamo-nos de um
Não há necessidade de discutir o que se deva denominar consciente: não expediente permissível e simples. O inconsciente que está apenas latente, e
pairam dúvidas sobre isto. O mais antigo e o melhor significado da palavra portanto facilmente se torna consciente, denominamo-lo ‘pré-consciente’, e
‘inconsciente’ é o significado descritivo. Denominamos inconsciente um reservamos o termo ‘inconsciente’ para o outro. Temos, agora, três termos,
processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor — devido a algum ‘consciente’, ‘pré-consciente’ e ‘inconsciente’, com os quais podemos ser
motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos —, mas do qual nada bem-sucedidos em nossa descrição dos fenômenos mentais. Repetindo: o
sabemos. Nesse caso, temos para tal processo a mesma relação que temos com pré-consciente também é inconsciente no sentido puramente descritivo, mas
um processo psíquico de uma outra pessoa, exceto que, de fato, se trata de um não lhe atribuímos esse nome, exceto quando falamos sem a preocupação de
processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos, modificaremos conferir-lhe precisão, ou quando temos de fazer a defesa da existência, na vida
nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um processo se somos mental, de processos inconscientes em geral.
obrigados a supor que ele está sendo ativado no momento, embora no Os senhores admitirão, segundo espero, que até esse ponto isto não está
momento não saibamos nada a seu respeito. Essa restrição faz-nos raciocinar totalmente mal e permite um manejo conveniente. Sim, mas infelizmente o
que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num curto trabalho da psicanálise viu-se compelido a empregar a palavra ‘inconsciente’
espaço de tempo; muito em breve se tornam latentes, podendo, contudo, em mais um sentido, o terceiro, e isto, certamente, pode ter causado confusão.
facilmente tornar-se de novo conscientes. Também poderíamos dizer que se Sob o novo e poderoso impacto da existência de um extenso e importante
tornaram inconscientes, se fosse absolutamente certo que, na condição de campo da vida mental, normalmente afastado do conhecimento do ego, de
latência, ainda constituem algo de psíquico. Até aí, não teríamos aprendido modo que os processos que nele ocorrem têm de ser considerados como
nada novo; e não teríamos adquirido o direito de introduzir o conceito de inconscientes, em sentido verdadeiramente dinâmico, vimos a entender o
inconsciente na psicologia. Mas então surge a observação que já pudemos termo ‘inconsciente’ também num sentido topográfico ou sistemático;
fazer com referência às parapraxias. A fim de explicar um lapso de língua, por passamos a falar em ‘sistema’ do pré-consciente e em ‘sistema’ do
exemplo, achamo-nos na obrigação de supor que a intenção de fazer um inconsciente, em conflito entre o ego e o sistema Inc., e temos empregado
determinado comentário estava presente na pessoa. Concluímo-lo, com cada vez mais freqüentemente essa palavra com a finalidade de assinalar,
segurança, a partir da interferência dessa intenção no comentário que ocorreu; antes, uma região mental, do que para designar uma qualidade daquilo que é
mas a intenção não foi levada a cabo e era, portanto, inconsciente. Quando, a mental. A descoberta, realmente inconveniente, de que partes do ego e
seguir, nós a revelamos à pessoa que cometeu o lapso, se ela reconhece tal também do superego são inconscientes, no sentido dinâmico, atua, nesse
intenção como sendo-lhe já familiar, era-lhe esta, então, apenas ponto, como um alívio — possibilita a remoção de uma complicação.
temporariamente inconsciente; se, contudo, a repele como algo alheio, tal Percebemos não termos o direito de denominar ‘sistema Inc.’ a região mental
intenção foi, então, permanentemente inconsciente. Partindo dessa alheia ao ego, de vez que a característica de ser inconsciente não lhe é
experiência, retrospectivamente adquirimos o direito de afirmar ser exclusiva. Assim sendo, não usaremos mais o termo ‘inconsciente’ no sentido
inconsciente também algo que tinha sido qualificado como latente. Uma sistemático e daremos àquilo que até agora temos assim descrito um nome
reflexão sobre essa relação dinâmica permite-nos, agora, distinguir duas melhor, um nome que não seja mais passível de equívocos. Aceitando uma
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palavra empregada por Nietzsche e acolhendo uma sugestão de George mergulhadas no id pelas repressões, são virtualmente imortais; depois de se
Groddeck [1923]1, de ora em diante chama-lo-emos de ‘id’. Esse pronome passarem décadas, comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só
impessoal parece especialmente bem talhado para expressar a principal podem ser reconhecidos como pertencentes ao passado, só podem perder sua
característica dessa região da mente — o fato de ser alheia ao ego. O importância e ser destituídos de sua catexia de energia, quando tornados
superego, o ego e o id — estes são, pois, os três reinos, regiões, províncias em conscientes pelo trabalho da análise, e é nisto que, em grande parte, se baseia
que dividimos o aparelho mental de um indivíduo, e é das suas relações o efeito terapêutico do tratamento analítico.
mútuas que nos ocuparemos a seguir. (...) Muitíssimas vezes, tive a impressão de que temos feito muito pouco uso
teórico desse fato, estabelecido além de qualquer dúvida, da inalterabilidade
Os senhores não haverão de esperar que eu tenha muita coisa nova a dizer-lhes do reprimido com o passar do tempo. Isto parece oferecer um acesso às mais
acerca do id, exceto o seu nome novo. É a parte obscura, a parte inacessível de profundas descobertas. E, infelizmente, eu próprio não fiz qualquer progresso
nossa personalidade; o pouco que sabemos a seu respeito, aprendemo-lo de nessa parte.
nosso estudo da elaboração onírica e da formação dos sintomas neuróticos, e a Naturalmente, o id não conhece nenhum julgamento de valores: não conhece o
maior parte disso é de caráter negativo e pode ser descrita somente como um bem, nem o mal, nem moralidade. Domina todos os seus processos o fator
contraste com o ego. Abordamos o id com analogias; denominamo-lo caos, econômico ou, se preferirem, o fator quantitativo, que está intimamente
caldeirão cheio de agitação fervilhante. Descrevemo-lo como estando aberto, vinculado ao princípio de prazer. Catexias pulsionais que procuram a descarga
no seu extremo, a influências somáticas e como contendo dentro de si — isto, em nossa opinião, é tudo o que existe no id. Parece mesmo que a
necessidades instituais (pulsionais) que nele encontram expressão psíquica; energia dessas moções pulsionais se acha num estado diferente daquele
não sabemos dizer, contudo, em que substrato. Está repleto de energias que a encontrado em outras regiões da mente, muito mais móvel e capaz de
ele chegam das pulsões, porém não possui organização, não expressa uma descarga; de outro modo, não ocorreriam os deslocamentos e as condensações,
vontade coletiva, mas somente uma luta pela consecução da satisfação das que são tão característicos do id e que tão radicalmente desprezam a qualidade
necessidades pulsionais, sujeita à observância do princípio de prazer. As leis daquilo que é catexizado — aquilo que no ego chamaríamos de uma idéia.
lógicas do pensamento não se aplicam ao id, e isto é verdadeiro, acima de Daríamos muito para entender mais acerca dessas coisas! Aliás, os senhores
tudo, quanto à lei da contradição. Impulsos contrários existem lado a lado, podem verificar que estamos em condições de atribuir ao id características
sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro: quando muito, outras além dessa de ser inconsciente, e podem reconhecer a possibilidade de
podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica partes do ego e do superego serem inconscientes, sem possuírem as mesmas
dominante, com vistas à descarga da energia. No id não há nada que se possa características primitivas e irracionais.—Podemos esclarecer melhor as
comparar à negativa e é com surpresa que percebemos uma exceção ao características do ego real, na medida em que este pode ser diferenciado do id
teorema filosófico segundo o qual espaço e tempo são formas necessárias de e do superego, examinando sua relação com a parte mais superficial do
nossos atos mentais. No id, não existe nada que corresponda à idéia de tempo; aparelho mental, que descrevemos como o sistema Pcpt.-Cs. Esse sistema está
não há reconhecimento da passagem do tempo, e — coisa muito notável e voltado para o mundo externo, é o meio de percepção daquilo que surge de
merecedora de estudo no pensamento filosófico nenhuma alteração em seus fora, e durante o seu funcionamento surge nele o fenômeno da consciência. É
processos mentais é produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de o órgão sensorial de todo o aparelho; ademais, é receptivo não só às
desejos, que jamais passaram além do id, e também impressões, que foram excitações provenientes de fora, mas também àquelas que emergem do interior
da mente. Quase não necessitamos procurar uma justificativa para a opinião
segundo a qual o ego é aquela parte do id que se modificou pela proximidade
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[Em alemão ‘Es’, o termo comum para ‘it’.] (‘It’, inglês, e ‘Es’, alemão, são um e influência do mundo externo, que está adaptada para a recepção de
mesmo pronome neutro, que se traduz por ‘ele’, ‘ela’, ‘isto’, ‘isso’. ‘Id’ é a forma estímulos, e adaptada como escudo protetor contra os estímulos, comparável à
latina do mesmo pronome. [N. do T. bras.])
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camada cortical que circunda uma pequena massa de substância viva. A extrai do id quantidades adicionais de energia. Um dentre tais métodos, por
relação com o mundo externo tornou-se o fator decisivo para o ego; este exemplo, consiste em identificar-se com objetos reais ou abandonados. As
assumiu a tarefa de representar o mundo externo perante o id — o que é uma catexias objetais procedem das exigências pulsionais do id. O ego tem de, em
sorte para o id, que não poderia escapar à destruição se, em seus cegos primeiro lugar, registrá-las. Mas, identificando-se com o objeto, o ego
intentos que visam à satisfação de suas pulsões, não atentasse para esse poder recomenda-se ao id em lugar do objeto e procura desviar a libido do id para si
externo supremo. Ao cumprir com essa função, o ego deve observar o mundo próprio. Já vimos que, no decurso de sua vida, o ego assume dentro de si um
externo, deve estabelecer um quadro preciso do mesmo nos traços de memória grande número de precipitados, como este das mencionadas catexias objetais.
de suas percepções, e, pelo seu exercício da função de ‘teste de realidade’, O ego deve, no geral, executar as intenções do id, e cumpre sua atribuição
deve excluir tudo o que nesse quadro do mundo externo é um acréscimo descobrindo as circunstâncias em que essas intenções possam ser mais bem
decorrente de fontes internas de excitação. O ego controla os acessos à realizadas. A relação do ego para com o id poderia ser comparada com a de
motilidade, sob as ordens do id; mas, entre uma necessidade e uma ação, um cavaleiro para com seu cavalo. O cavalo provê a energia de locomoção,
interpôs uma protelação sob forma de atividade do pensamento, durante a qual enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e de guiar o
se utiliza dos resíduos mnêmicos (de memória) da experiência. Dessa maneira, movimento do poderoso animal. Mas muito freqüentemente surge entre o ego
o ego destronou o princípio de prazer, que domina o curso dos eventos no id e o id a situação, não propriamente ideal, de o cavaleiro só poder guiar o
sem qualquer restrição, e o substituiu pelo princípio de realidade, que promete cavalo por onde este quer ir.
maior certeza e maior êxito. Há uma parte do id da qual o ego separou-se por meio de resistências devidas
A relação com o tempo, tão difícil de descrever, também é introduzida no ego à repressão (recalque). A repressão, contudo, não se estende para dentro do id:
pelo sistema perceptual; dificilmente pode-se duvidar de que o modo de o reprimido (recalcado) funde-se no restante do id.
atuação desse sistema é o que dá origem à idéia de tempo. O que, contudo, Adverte-nos um provérbio de que não sirvamos a dois senhores ao mesmo
muito particularmente distingue o ego do id é uma tendência à síntese de seu tempo. O pobre do ego passa por coisas ainda piores: ele serve a três severos
conteúdo, à combinação e à unificação nos seus processos mentais, o que está senhores e faz o que pode para harmonizar entre si seus reclamos e exigências.
totalmente ausente no id. Quando, agora, abordarmos as pulsões na vida Esses reclamos são sempre divergentes e freqüentemente parecem
mental, conseguiremos, segundo espero, reconstituir essa característica incompatíveis. Não é para admirar se o ego tantas vezes falha em sua tarefa.
essencial do ego em sua origem. Somente ela produz o alto grau de Seus três tirânicos senhores são o mundo externo, o superego e o id. Quando
organização que o ego requer para suas melhores realizações. O ego evolui da acompanhamos os esforços do ego para satisfazê-los simultaneamente — ou
percepção das pulsões para o controle destas; esse controle, porém, apenas é antes, para obedecer-lhes simultaneamente —, não podemos nos arrepender
realizado pelo representante [psíquico] da pulsão quando tal representante se por termo-lo personificado ou por termo-lo erigido em um organismo
situa no lugar que lhe é próprio, num amplo conjunto de elementos, quando separado. Ele se sente cercado por três lados, ameaçado por três tipos de
tomado em um contexto coerente. Para adotar um modo popular de falar, perigo, aos quais reage, quando duramente pressionado, gerando ansiedade.
poderíamos dizer que o ego significa razão e bom senso, ao passo que o id Devido à sua origem decorrente das experiências do sistema perceptual, ele é
significa as paixões indomadas. destinado a representar as exigências do mundo externo, contudo também se
Até aqui, temo-nos deixado impressionar pelos méritos e capacidades do ego; esforça por ser um servo leal do id, manter bom relacionamento com este,
é tempo, agora, de considerar também o outro lado. O ego, afinal, é apenas recomendar-se ao id como um objeto e atrair para si a libido do id. Em suas
uma parte do id, uma parte que foi adequadamente modificada pela tentativas de exercer mediação entre o id e a realidade, freqüentemente é
proximidade com o mundo externo, com sua ameaça de perigo. Do ponto de obrigado a encobrir as ordens Inc. do id mediante suas próprias
vista dinâmico, ele é fraco, tomou emprestadas ao id as suas forças, e em parte racionalizações Pcs., a ocultar os conflitos do id com a realidade, a
entendemos os métodos — poderíamos chamá-los subterfúgios — pelos quais reconhecer, com diplomática dissimulação, que percebe a realidade mesmo
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quando o id permaneceu rígido e intolerante. Por outro lado, é observado a somente através do ego — ao menos de acordo com esse diagrama. Por certo é
cada passo pelo superego severo, que estabelece padrões definidos para sua difícil dizer, atualmente, em que medida o esquema está correto. Em um
conduta, sem levar na mínima conta suas dificuldades relativas ao mundo aspecto, indubitavelmente não está. O espaço ocupado pelo id inconsciente
externo e ao id, e que, se essas exigências não são obedecidas, pune-o com devia ter sido incomparavelmente maior do que o do ego ou do
intensos sentimentos de inferioridade e de culpa. Assim, o ego, pressionado pré-consciente. Devo pedir-lhes que o corrijam em seus pensamentos.
pelo id, confinado pelo superego, repelido pela realidade, luta por exercer
eficientemente sua incumbência econômica de instituir a harmonia entre as E aqui está outra advertência para completar essas observações, que
forças e as influências que atuam nele e sobre ele; e podemos compreender certamente foram cansativas e talvez não muito esclarecedoras. Ao pensar
como é que com tanta freqüência não podemos reprimir uma exclamação: ‘A nessa divisão da personalidade em um ego, um superego e um id,
vida não é fácil!’ Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em naturalmente, os senhores não terão imaginado fronteiras nítidas como as
ansiedade — ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade fronteiras artificiais delineadas na geografia política. Não podemos fazer
moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das justiça às características da mente por esquemas lineares como os de um
paixões do id. Gostaria de configurar as relações estruturais da personalidade desenho ou de uma pintura primitiva, mas de preferência por meio de áreas
mental, segundo as descrevi para os senhores, neste despretensioso esquema coloridas fundindo-se umas com as outras, segundo as apresentam artistas
com que os presenteio: modernos. Depois de termos feito a separação, devemos permitir que
novamente se misture, conjuntamente, o que havíamos separado. Os senhores
não devem julgar com demasiado rigor uma primeira tentativa de
proporcionar uma representação gráfica de algo tão intangível como os
processos psíquicos. É altamente provável que o desenvolvimento dessas
divisões esteja sujeito a grandes variações em diferentes indivíduos; é possível
que, no decurso do funcionamento real, elas possam mudar e passar por uma
fase temporária de involução. Particularmente no caso da que é
filogeneticamente a última e a mais delicada dessas divisões — a
diferenciação entre o ego e o superego — algo desse teor parece verdadeiro.
Está fora de dúvida que a mesma coisa se produz através da doença psíquica.
Também é fácil imaginar que determinadas práticas místicas possam
conseguir perturbar as relações normais entre as diferentes regiões da mente,
de modo que, por exemplo, a percepção pode ser capaz de captar
acontecimentos, nas profundezas do ego e no id, os quais de outro modo lhe
seriam inacessíveis. Pode-se, porém, com segurança, duvidar se a esse
caminho nos levará às últimas verdades das quais é de se esperar a salvação.
Não obstante, pode-se admitir que os intentos terapêuticos da psicanálise têm
escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito é, na verdade,
fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar seu campo
Como vêem, o superego se funde no id; na verdade, como herdeiro do de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder assenhorear-se
complexo de Édipo, tem íntimas relações com o id; está mais distante do de novas partes do id. Wo es war, soll ich werden (onde id estava, deve ego
sistema perceptual do que o ego. O id relaciona-se com o mundo externo estar). É uma obra de cultura — não diferente da drenagem do Zuider Zee.
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