C.G.Jung - A Divergência Entre Freud e Jung 1929

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A DIVERGÊNCIA ENTRE FREUD E JUNG1

JUNG, Carl Gustav. Freud e a Psicanálise. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis:
Vozes, 1998, 3ª edição, volume IV das Obras Completas.

NOTA: Os números em colchetes referem-se à numeração original dos parágrafos e serve como
referência para citação bibliográfica.

[768] Sobre a diferença entre os pontos de vista de Freud e os meus, deveria, na


verdade, escrever alguém que estivesse fora do circuito das idéias que se chamam "Freud" e
"Jung". Não sei se mereço que me confiem aquela objetividade que me sobreleva,
imparcialmente, acima de minhas próprias idéias. Será que alguém consegue isso? Duvido.
Mas se alguém aparentemente conseguir esta façanha digna de um Barão de Münchhausen,
então aposto que as idéias não são, em última análise, as suas.
[769] É verdade que idéias amplamente aceitas já não constituem propriedade do
autor; ele se toma, antes, um serviçal de suas idéias. Idéias impressionantes, chamadas de
idéias verdadeiras, têm algo de peculiar. Elas brotam da intemporalidade, de um sempre
estar presente, de uma raiz primitiva materna e psíquica, a partir da qual se desenvolve o
espírito efêmero da pessoa individual como a planta que floresce, frutifica, dá sementes e
morre. As idéias brotam de algo maior do que da pessoa humana singular. Não as fazemos,
elas nos fazem.
[770] Por um lado, idéias são confissão fatal que trazem à luz não apenas o melhor
de nós, mas também nossas mais recônditas insuficiências e misérias pessoais. Idéias
exclusivamente sobre psicologia! Donde mais poderiam provir que não do mais subjetivo? A
experiência do objeto pode escudar-nos da parcialidade subjetiva? Toda experiência não é
ela, ao menos em sua metade, de caráter subjetivo? O subjetivo, por sua vez, também é
um dado objetivo, um pedaço do mundo. Tudo o que dele provém resulta, em última
análise, da composição do mundo, como o mais raro e estranho ser vivente é sustentado e
nutrido também pela terra, comum a todos nós. São precisamente as idéias subjetivas que
estão mais próximas da natureza e da essência e, por isso, pode-se dizer que são as mais
verdadeiras. Mas, "o que é a verdade?”
[771] No tocante à psicologia, acho melhor renunciar à idéia de que estejamos hoje
em condições de fazer afirmações "verdadeiras" ou "corretas" sobre a essência da psique. O
melhor que conseguimos fazer são expressões verdadeiras. Entendo por expressões
verdadeiras uma confissão e uma apresentação detalhada do que se observa
subjetivamente. Alguém colocará ênfase especial na forma do que encontrou e se arvorará
em autor do seu achado, outro dará mais importância à observação e falará daquilo que se
manifesta, valorizando sua atitude receptiva. A verdade estará provavelmente entre
ambos: a verdadeira expressão é a que dá forma à observação.
[772] Tudo se resolve neste receber e neste proceder, e o psicólogo de hoje, por
mais ambiciosa que seja sua pretensão, só disso pode vangloriar-se. Nossa psicologia é uma
confissão de alguns poucos, formulada de modo mais ou menos feliz; e na medida que eles
integram mais ou menos um tipo, sua confissão pode ser aceita por muitos outros como
descrição bastante válida. Podemos concluir também que àqueles que apresentam outro
tipo, mas que pertencem ao gênero das pessoas humanas, aplica-se também esta confissão,
1
[Publicado pela primeira vez com o mesmo título em Kölnische Zeitung (Colônia, 9 de maio de 1929), p. 4. Incorporado
como dissertação III (p. 65-75) em Seelenprobleme der Gegenwart. Varträge mia Aufsätze (Psychologische Abhandlungen
III). Rascher, Zurique 1931. Reimpressões em 1933, 1939, 1946 e a 5' edição, completamente revisada, em 1950; edição
brochurada com bibliografia e índice de pessoas e assuntos em 1969].
ainda que em menor proporção. O que Freud tem a dizer sobre a importância da
sexualidade, do prazer infantil e de seu conflito com o "princípio da realidade" é, em
primeiro lugar, a mais verdadeira expressão de sua psicologia pessoal. É uma formulação
feliz daquilo que observou subjetivamente. Não sou um opositor de Freud, ainda que a
visão míope dele próprio e de sua escola insistam em qualificar-me dessa forma. Nenhum
psiquiatra experimentado pode negar ter vivenciado dúzias de casos cuja psicologia condiz
com a de Freud em todos os aspectos essenciais. Por isso Freud contribuiu, exatamente com
sua confissão mais subjetiva, para o nascimento de uma grande verdade humana. Ele
mesmo é o exemplo clássico de sua psicologia e dedicou sua vida e trabalho à realização
dessa tarefa.
[773] Nosso modo de ser condiciona nosso modo de ver. Outras pessoas tendo outra
psicologia vêem e exprimem outras coisas e de outro modo. Isto o demonstrou logo um dos
primeiros discípulos de Freud: Alfred Adler. Ele apresentava o mesmo material empírico de
um ponto de vista bem diferente, e sua maneira de ver é, no mínimo, tão convincente
quanto a de Freud, porque também Adler representa um tipo de psicologia que
encontramos com freqüência. Sei que os seguidores de ambas as escolas me consideram,
sem mais, no caminho errado, mas a história e os pensadores imparciais me darão razão.
Não posso deixar de criticar as duas escolas por interpretarem as pessoas demasiadamente
pelo lado patológico e por seus defeitos. Exemplo convincente disso é a impossibilidade de
Freud de entender a vivência religiosa2.
[774] Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde e gostaria de libertar os
doentes daquela psicologia que Freud coloca em cada página de suas obras. Não consigo ver
onde Freud consegue ir além de sua própria psicologia e como poderá aliviar o doente de
um sofrimento do qual o próprio médico padece. Sua psicologia é a psicologia de um estado
neurótico de determinado cunho e, por isso, Freud é verdadeiro e válido, mesmo quando
diz uma inverdade, pois também isto faz parte do quadro geral e traz a verdade de uma
confissão. Mas não é uma psicologia sã — e isto é sintoma de morbidade — baseada numa
cosmovisão acrítica e inconsciente, capaz de estreitar muito o horizonte da visão e da
experiência. Foi um grande erro de Freud ter ignorado a filosofia. Jamais critica suas
suposições, nunca questiona suas premissas psíquicas. Em minhas preleções anteriores
deixei claro que isto é uma necessidade; a crítica de seus próprios fundamentos não teria
permitido que expusesse de modo tão ingênuo sua psicologia original 3. Em todos os casos
teria experimentado as dificuldades que eu encontro. Nunca recusei a bebida agridoce da
filosofia crítica, mas procurei sempre, ao menos por precaução, tomar pequenas doses.
Muito pouco, dirão meus adversários. Quase demais, diz minha sensibilidade. A autocrítica
envenena facilmente o precioso bem da ingenuidade, aquele dom indispensável a qualquer
ser criado. De qualquer modo, a crítica filosófica me ajudou a perceber que toda psicologia
— inclusive a minha — tem o caráter de uma confissão subjetiva. Tenho que refrear meu
poder de crítica para que não destrua minha criatividade. Sei muito bem que toda palavra
que pronuncio traz consigo algo de mim mesmo — do meu eu especial e único, com sua
história particular e seu mundo todo próprio. Mesmo ao lidar com dados empíricos, estou
falando necessariamente de mim mesmo. Mas, aceitando isto como algo inevitável, posso
colaborar para o conhecimento do homem pelo homem — uma causa à qual Freud também
quis servir e serviu, apesar de tudo. O conhecimento não reside apenas na verdade, mas
também no erro.

2
Die Zukunft einer Illusion.
3
Cf. Freud, Die Traumdeutung.
[775] O reconhecimento do caráter subjetivo da psicologia que cada um produz é
talvez o ponto que mais me separa de Freud.
[776] Outro ponto que nos diferencia parece-me o fato de que eu me esforço por não
ter pressuposições inconscientes e, por isso, não-críticas sobre o mundo em geral. Eu disse
"eu me esforço", pois quem está absolutamente certo de não ter pressuposições
inconscientes? Esforço-me por evitar, ao menos, os preconceitos mais grosseiros e, por isso,
estou inclinado a reconhecer todos os deuses possíveis, supondo que eles atuam na psique
humana. Não duvido de que os instintos naturais se desdobrem grandemente no campo
psíquico, quer seja o eros, quer a vontade de poder; não duvido também de que esses
instintos entrem em colisão com o espírito, pois sempre estão colidindo com algo, e por que
esse algo não pode ser chamado "espírito"? Assim como não sei o que é o espírito em si, da
mesma forma não sei o que são "instintos". Ambos são misteriosos para mim; e não posso
explicá-los como se um fosse equívoco do outro. Não é nenhum equívoco que a terra só
tenha uma lua. Na natureza não há equívocos; estes só existem no campo daquilo que o
homem chama "inteligência". Instinto e espírito estão além da minha inteligência; são
conceitos que consideramos desconhecidos, mas que são tremendamente operantes.
[777] Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu
conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de
meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus
pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com
as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande
interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo.
Também é positiva minha atitude para com a biologia e para com o empirismo das ciências
naturais em geral; nelas vejo uma tentativa hercúlea de entender o íntimo da psique
partindo de fora. Num movimento inverso, considero também a gnose religiosa um
empreendimento gigantesco do espírito humano que tenta extrair um conhecimento do
mundo a partir do interior. Na minha concepção do mundo há um grande exterior e um
grande interior; entre esses pólos está o homem que se volta ora para um, ora para outro e,
de acordo com seu temperamento e disposição, toma um ou outro como verdade absoluta
e, conseqüentemente, nega e/ou sacrifica um pelo outro.
[778] Esta imagem é uma pressuposição — mas naturalmente uma pressuposição da
qual não gostaria de abrir mão, pois é muito valiosa para mim como hipótese. Eu a
considero heurística e empiricamente demonstrada para mim e confirmada pelo consenso
dos povos (consensus gentium). Esta hipótese que certamente brotou de dentro de mim
mesmo, ainda que eu julgue tê-la extraído da experiência, foi a responsável por minha
teoria dos tipos e minha reconciliação com pontos de vista tão divergentes como, por
exemplo, os de FREUD.
[779] Em tudo o que acontece no mundo, vejo o jogo dos opostos e dessa concepção
derivo minha idéia de energia psíquica. Acho que a energia psíquica envolve o jogo dos
opostos de modo semelhante como a energia física envolve uma diferença de potencial, isto
é, a existência de opostos como calor-frio, alto-baixo etc. Freud começou por considerar
como única força propulsora psíquica a sexualidade e, somente após minha ruptura com
ele, levou também outros fatores em consideração. Eu, porém, reuni os diversos impulsos
ou forças psíquicas — todos constituídos mais ou menos ad hoc — sob o conceito de energia
a fim de eliminar a arbitrariedade quase inevitável de uma psicologia que lida
exclusivamente com a força. Portanto, já não falo de forças ou de impulsos individuais, mas
de "intensidades de valores" 4. Com isso não pretendo negar a importância da sexualidade
4
Cf.Über psychische Energetik und das Wesen der Traume (Obras Completas, VIII, 1967).
na vida psíquica, conforme Freud me acusa de fazê-lo. O que pretendo é colocar limites à
terminologia avassaladora do sexo que vicia toda discussão da psique humana e, também,
colocar a própria sexualidade em seu lugar.
[780] O bom senso dirá sempre que a sexualidade é apenas um dos instintos
biológicos, apenas uma das funções psicológicas, ainda que muito abrangente e importante.
Mas o que acontecerá se, por exemplo, não conseguirmos mais comer? Sem dúvida está
muito conturbada, hoje, a esfera psíquica da sexualidade; é semelhante à situação de um
dente que dói e parece que toda a constituição psíquica é pura dor de dente. A espécie de
sexualidade que Freud descreve é aquela obsessão sexual inequívoca que se encontra
sempre que um paciente chegou ao ponto de ter que ser aliciado ou forçado para fora de
uma situação ou atitude errôneas, uma espécie de sexualidade represada que volta às
proporções normais logo que esteja desimpedido o caminho para sua expansão. Na maioria
das vezes é o atolamento nos ressentimentos familiares e as delongas emocionais do
"romance familiar" que levam ao represamento da energia vital, e é este represamento que
infalivelmente se manifesta sob a forma da sexualidade, que chamamos infantil. Trata-se
de uma sexualidade impropriamente dita, de uma descarga de tensões que estariam mais
bem estabelecidas em outro campo existencial. O que adianta, pois, ficar navegando neste
terreno totalmente inundado? É muito mais importante — ao menos é isto que parece à
minha compreensão retilínea — abrir canais de descarga, isto é, encontrar uma nova
atitude ou novo modo de vida que forneça um declive conveniente para a energia
encurralada. Caso contrário, teremos um círculo vicioso, e é isto que me parece a
psicologia de Freud. Falta-lhe qualquer possibilidade de contornar o ciclo inexorável dos
eventos biológicos. Desesperados, temos que bradar com Paulo: "Homem miserável que
sou, quem me salvará do corpo dessa morte?" E o nosso homem espiritual se apresentará,
meneando a cabeça, e dirá com Fausto: "Você está consciente de apenas um impulso", ou
seja, do laço carnal que leva de volta ao pai e à mãe ou para adiante, para os filhos que
nasceram de nossa carne, um "incesto" com o passado e um "incesto" com o futuro, o
pecado original da perpetuarão do "romance familiar". Nada nos liberta disso, a não ser o
espírito que é o outro pólo do acontecer no mundo; não são os filhos da carne, mas os
"filhos de Deus" que experimentarão a liberdade. Na tragédia de Ernst Barlach, O dia
mortal, diz o demônio materno ao final do romance familiar: "Estranho é apenas que o
homem não queira aprender que seu pai é Deus". E é isto que Freud nunca quis aprender e
contra o que voltam todos os seus adeptos ou, ao menos, não encontram para isso a chave.
A teologia não vem ao encontro do pesquisador porque ela exige fé, e esta é um carisma
autêntico e verdadeiro que ninguém pode fabricar. Nós modernos estamos predestinados a
viver novamente o espírito, isto é, a fazer uma experiência primitiva. Esta é a única
possibilidade de romper o círculo vicioso dos eventos biológicos.
[781] Este ponto de vista é a terceira característica que diferencia minhas
concepções das de Freud. E por isso me acusam de misticismo. Contudo, não sou
responsável pelo fato de o homem espontaneamente ter desenvolvido, sempre e em toda
parte, uma função religiosa e que, por isso, a psique humana está imbuída e trançada de
sentimentos e idéias religiosos desde os tempos imemoriais. Quem não enxerga este
aspecto da psique humana é cego, e quem quiser recusá-lo ou explicá-lo racionalmente não
tem senso de realidade. Ou será que, por exemplo, o complexo de pai que perpassa toda a
escola de Freud, desde seu fundador até o último membro, trouxe alguma libertação
notável dessa fatalidade do romance familiar? Este complexo de pai, com sua rigidez e
hipersensibilidade fanáticas, é uma função religiosa mal compreendida, um misticismo que
se apoderou do biológico e do familiar. Com seu conceito de "superego", Freud tenta
introduzir furtivamente sua antiga imagem de Jeová na teoria psicológica. Essas coisas, a
gente as diz bem claramente. Prefiro dar às coisas os nomes que sempre tiveram.
[782] A roda da história não deve ser tocada para trás e o passo do homem para o
espiritual, que já começou com os ritos de iniciação primitivos, não deve ser negado. É
óbvio que a ciência não só pode, mas deve selecionar campos de atuação com hipóteses
bem definidas; mas a psique é uma totalidade superior à consciência, é a mãe e
pressuposição da consciência e, por isso, a ciência é apenas uma de suas funções que
jamais esgotará a plenitude de sua vida. O psicoterapeuta não deve refugiar-se no ângulo
patológico e recusar terminantemente a idéia de que a psique doente é uma psique humana
que, apesar de sua doença, participa do todo da vida psíquica da humanidade. Ele tem que
admitir, inclusive, que o eu está doente porque foi cortado do todo e porque perdeu sua
conexão com a humanidade e com o espírito. O eu é realmente o "lugar do medo", como diz
acertadamente Freud 5, mas só enquanto isto não se referir ao pai ou à mãe. Freud
sucumbe diante da pergunta de Nicodemos: "Pode alguém voltar ao ventre da mãe e nascer
de novo?" A história se repete — se for permitido comparar grandes com pequenas coisas —
na briga doméstica da psicologia moderna.
[783] Desde séculos incontáveis, os ritos de iniciação falam do nascimento a partir do
espírito, e estranhamente o homem esquece sempre de novo como entender a geração
divina. Isto não demonstra uma força especial do espírito, mas as conseqüências da
incompreensão manifestam-se como perturbações neuróticas, amargura, estreitamento e
avidez. É fácil expulsar o espírito, mas na sopa falta o sal, "o sal da terra". O espírito
comprova sua força no fato de a doutrina essencial das antigas iniciações ter sido
transmitida de geração em geração. Sempre houve pessoas que entenderam o que
significava ser Deus o seu pai. O equilíbrio entre carne e espírito é conservado nesta esfera.
[784] A oposição entre Freud e eu repousa essencialmente na diferença de
pressupostos básicos. Pressupostos são inevitáveis e porque são inevitáveis não se deve dar
a impressão de que não os tenhamos. Por isso eu trouxe à luz, sobretudo, os aspectos
fundamentais; a partir deles é possível entender melhor as várias diferenças, inclusive em
seus detalhes, entre a concepção de Freud e a minha.

5
Das Ich und das Es.

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