Ensaio Us 2019

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Resumo

Nós, tradução livre de Us para o português, é a primeira de muitas outras referências


usadas pelo filme, que em primeira análise parecem destinadas ao público norte-americano, a
quem os símbolos, referências, insinuações podem fazer mais sentido inicialmente. Visto que,
Us pode significar nós, como também a sigla dos Estados Unidos em sua proposição original
como United States (US). A obra, em síntese, retrata a família de Adelaide e Gabe que
decidem passar o verão com seus dois filhos na casa de praia da cidade litorânea de Santa
Cruz, cidade situada nos Estados Unidos, que no passado foi palco de um acontecimento
precioso na vida de Adelaide e que este conflito retorna logo no início da obra com o
aparecimento emblemático do Doppelgänger de seu ciclo familiar, vizinhos e visivelmente de
todos os seres humanos. O desenrolar da trama a partir disso segue com analogias que
podemos relacionar com os eventos sociais ocorridos nos EUA, como o Hands Across
America e acontecimentos sociais de desigualdade social, econômica e política,
experienciados por países de influências capitalistas e neoliberais, mas que o objetivo deste
ensaio foi poder trazer uma perspectiva psicológica sobre o filme thriller/terror norte-
americano Us dirigido, produzido e roteirizado pelo cineasta Jordan Peele lançado no ano de
2019.
Palavras-chave: Sombra; Us; Persona; Jung; Arquétipos.
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O início do desfecho do roteiro é munido de referências a obra clássica literária de


Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, em que as similaridades não se dão apenas pela
presença dos coelhos como insinuação a esses animais que são usados em testes laboratoriais
em analogia ao que os clones da trama sofreram, mas como também a menção, ainda que
alterada, da célebre frase “Todos somos loucos aqui”, a ida de Adelaide ao bunker dos
Doppelgänger como alusão da descida a toca do coelho também pode se relacionar com o
conhecimento de si mesmo e encontro com sua própria sombra, como Carl Gustav Jung
destaca em Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo: “A sombra é, no entanto, um
desfiladeiro. Um portal estreito cuja dolorosa exigüidade não poupa quem quer que desça ao
poço profundo.” (JUNG, 2002, P. 31).
O arquétipo sombra, conceito desenvolvido dentre inúmeros outros conteúdos do
inconsciente coletivo, seria o agrupamento de elementos da nossa personalidade que não
estaria visível para o ego, conteúdos esses que podem se tornar hostis e irascíveis a depender
da rigorosidade do ego. Ela é desenvolvida a partir da rejeição daquilo que é considerado
conflitante com a persona e o consciente, coexistindo sem que o ego saiba de sua existência e
de suas projeções, o que faz com que a sombra se relacione com o id no conhecimento
freudiano da segunda tópica. Ao contrário da persona que serve como máscara ajustada com
os princípios e tradições sociais para possibilitar que a interação social discorra, a sombra
costuma se manifestar em momentos específicos, permanecendo na maior parte do tempo
limitado a seguir a persona sem que suas propriedades sejam reveladas. Na construção visual
do filme em questão, o pôster mais emblemático e divulgado ao redor do mundo é da
personagem Red/Adelaide segurando em sua mão uma máscara de sua face enquanto nos é
exposto o seu rosto com uma fisionomia aterrorizante, não somente no pôster, mas no próprio
desenvolvimento da trama nos é possível inferir que os clones não possuem livre-arbítrio, e só
lhe é permitido reproduzir no subterrâneo de uma maneira mais caricata e primitiva a
realização dos feitos de seus duplos da superfície.
Essa dualidade entre a sombra e a persona, a máscara e o oculto, o que está à vista e o
que está escondido pode ser opor uma à outra integralmente, pois a consciência não admite a
sombra como constituinte de si, ou se complementar. Esta noção de par nos remete ao termo
“Doppelgänger” a qual trata-se da junção de dois substantivos: réplica e ambulante ou aquele
que vaga, de origem alemã que denomina uma lenda nórdica e germânica, mas que está
presente em outros contos ao redor do mundo, sobre a existência de um sósia humano que não
está ligado familiarmente com essa pessoa apesar de atribuir características físicas
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semelhantes. O evento de experenciar esse fenômeno é considerado mau agouro ou prenúncio


de que algo ruim pode acontecer, a ideia de existir um duplo de seus atributos físicos,
difundido majoritariamente como uma cópia do mal, foi logo cooptado pela cultura em livros,
séries, novelas, filmes e jogos.
Em Us, a presença e o reconhecimento do duplo se desdobram de maneira
significativa para nós, ao cair da noite, perto do horário de dormir, a família Wilson toma
conhecimento de que algo atípico ocorre do lado de fora da sua casa de veraneio confortável,
algo desconhecido que aparece em companhia de outros membros logo se torna um aviso de
perigo iminente, de que não é seguro a aproximação e apesar das tentativas frustradas para
afugentá-los, o desconhecido invade o conforto, o seguro, a defesa. A representação até então
de segurança se encontra ameaçada e a ocupação ocorre ao adentrar a porta, ao quebrar as
janelas, mesmo com esforços para trancá-la e manter o espaço protegido, o desconhecido
encontra mecanismos diferentes para alastrar-se perante a resistência. A energia para trazer os
conteúdos e traços do ser à luz, à consciência, para satisfazer suas necessidades, é nessa obra
levada ao extremo, pois a conjectura é que ambas as personalidades não poderiam existir, uma
precisaria eliminar a outra para sua sobrevivência.
E a tesoura, instrumento que em princípio são dois lados iguais, porém opostas, é
utilizada no filme como ferramenta de aniquilação do Doppelgänger, simbolizando corte da
representação da identidade humana que nós reprimimos, negamos, julgamos, guardamos em
segredo e condenamos. É uma observação que poderíamos compreender sobre como a
possibilidade de incorporar os opostos se torna infactível para algumas pessoas na vida real. A
incorporação e o equilíbrio da sombra podem ser vistos de maneira, não totalmente fidedigna,
da relação que o Jason, filho caçula do casal, tem com o seu duplo Pluton, o contato que se
estabelece entre eles, diferentemente dos outros integrantes familiares, é menos destrutiva e
gera uma comunicação moderada, ainda que os dois não tenham trocado nenhuma palavra
sequer. Esse relacionamento pode estar vinculado com o fato da fase do Jason ainda
representar um amadurecimento de sua persona, sua idade está mais próxima ao estágio de
seu desenvolvimento mais amorfo e imagético, em cena vemos a comunicação entre os dois
baseada em símbolos e mímicas.
A divisão pode trazer um conflito de opostos e gerar uma crise para o indivíduo se este
não conceber a integração da persona e sombra como uma possibilidade de fazer-se a si
mesmo, um ser autêntico e capaz de assumir uma nova relação com o mundo e com o que
existe em si. Ele precisa se abrir, se permitir adentrar, tal como Alice aos seus conteúdos que
o constituem como um ser singular, o papel do terapeuta seria um facilitador para que o
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sujeito em seu desenvolvimento de mudança passe pelo processo de individuação para tornar-
se um ser único e incomparável. O material dito maligno encontrado na sombra, comumente
se trata apenas de um ajustamento discordante com a persona, o acolhimento de sua psique
como ela se apresenta é o primeiro passo no exercício de desenvolvimento pessoal para
refletir, classificar e eleger o que lhe cabe e que faz sentido para o seu contexto atual. O
desafio de equilibrar e ressignificar diferentes aspectos de sua psique para estabelecer
conexão com o self, com sua totalidade, pode significar um processo de cura, não no sentido
psicopatológico, mas no de transformação, como aponta Jung em seus escritos.
Na clínica podemos encontrar pessoas que apresentem impedimentos para esta
integração, cada um vive o seu processo de um modo diferente, cabe ao sujeito e ao
psicoterapeuta compreender suas possibilidades, seus limites e o seu tempo. Em seu alicerce,
a sessão é baseada na conversa, podendo adentrar a análise dos sonhos do analisando, que
neste pode conter os símbolos e arquétipos interligados no composto onírico, os significados
das associações de palavras feita na associação livre e podendo agregar práticas que
desenvolvem a criatividade, como uma expressão criativa se for de interesse e disposição do
sujeito em questão. Não somente entre as paredes do consultório, mas a manifestação e
interesse artístico na literatura, música, pintura, desenho podem auxiliá-lo no entendimento e
resoluções de conflitos internos e externos de comportamentos e emoções afetivas quando
trazidas para sessão.
No cotidiano podemos ver a sombra sendo manejada de maneira similar como
Adelaide comporta-se com a sua réplica, mas como vimos, a terapia pode ajudar o sujeito a
tornar-se mais flexível, disposto a transformar modelos antigos de estar no mundo para trilhar
de uma maneira mais consciente dos seus atos e integração dos opostos, de suas partes. Se
conhecer é desconfortável, pode intimidar, gerando resistências, mas se torna necessário
quando nossa maneira de lidar com os diferentes aspectos da psique nos causa sofrimento e
adoecimento psíquico. Esse desenvolvimento pessoal é sempre inacabado, pois o sujeito
precisa mudar e se adaptar a novos contextos, mas essa é uma transformação que precisa lhe
produzir significado e possibilitar o desenvolvimento de se adquirir uma personalidade mais
ampla e integrante, acolhedora para as demandas do self.
O terror parece ser o gênero cinematográfico mais correspondente para fazermos
alusões críticas sobre camadas políticas, problemáticas sociais e uma imensidão de eventos
por estar diretamente relacionado ao ato de aterrorizar, atributo do que é terrível e isso abre
uma gama imensa de possibilidades e discussões sobre as particularidades do que é o medo
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para cada um de nós, nos possibilitou neste ensaio inclusive a possibilidade de fazermos
referências ao construto teórico de Jung do século XX com o thriller do Peele no século XXI,
que nos deixa uma concepção de para quem ainda não se integrou, o inferno são os outros,
ainda que estejam na sombra de nós.

Referências

BERTRAND, Lino. A Terapia Junguiana. 2020. Disponível em:


https://www.jungnapratica.com.br/a-terapia-junguiana/. Acesso em: 12 jun. 2021
BINDA, Fabiana Lopes. A Eterna Criança – Auto-estima e Individuação. 2017.
Disponível em: https://ipacamp.org.br/2017/07/14/a-eterna-crianca-auto-estima-e-
individuacao/. Acesso em: 10 jun. 2021
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. In: CARROLL,
Lewis; GARDNER, Martin. Alice: edição comentada e ilustrada: Aventuras de Alice no
País das Maravilhas & Através do espelho. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 6-138
DOPPELGÄNGER. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia
Foundation, 2021. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Doppelg%C3%A4nger&oldid=60996494>.
Acesso em: 08 de junho de 2021.
JUNG, Carl Gustav. SOBRE OS ARQUÉTIPOS DO INCONSCIENTE COLETIVO.
In: JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2002. p. 13-49
PEREIRA, Ivanildo. ‘NÓS’ E A VISÃO DE JORDAN PEELE PARA O
HORROR SUBTERRÂNEO DA HUMANIDADE. 2019. Disponível em:
https://www.cineset.com.br/artigo-nos-jordan-peele/. Acesso em: 07 jun. 2021
STEIN, Murray. O revelado e o oculto nas relações com outros (Persona e Sombra).
In: STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. 5. ed. São Paulo: Cultrix,
2006. p. 111-131
US. Direção de Jordan Peele. Roteiro: Jordan Peele. Califórnia: Blumhouse
Productions, 2019. (116 min.), color

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