O Mal Estar Na Civilizacao PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 21

O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 1

O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO (1930) mesma coisa que o consolo oferecido por um acham incorretamente traçadas. Há casos em
Volume XXI § Sigmund Freud (1856 - 1939) dramaturgo original e um tanto excêntrico que partes do próprio corpo de uma pessoa,
ao seu herói que enfrenta uma morte auto- inclusive partes de sua própria vida mental
I infligida: ‘Não podemos pular para fora deste — suas percepções, pensamentos e senti-
É impossível fugir à impressão de que as pes- mundo.Isso equivale a dizer que se trata do mentos —, lhe parecem estranhas e como
soas comumente empregam falsos padrões sentimento de um vínculo indissolúvel, de não pertencentes a seu ego; há outros casos
de avaliação — isto é, de que buscam poder, ser uno com o mundo externo como um todo. em que a pessoa atribui ao mundo externo
sucesso e riqueza para elas mesmas e os ad- Posso observar que, para mim, isto parece, coisas que claramente se originam em seu
miram-nos outros, subestimando tudo aqui- antes, algo da natureza de uma percepção próprio ego e que por este deveriam ser reco-
lo que verdadeiramente tem valor na vida. intelectual, que, na verdade, pode vir acom- nhecidas. Assim, até mesmo o sentimento de
No entanto, ao formular qualquer juízo ge- panhada de um tom de sentimento, embora nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e
ral desse tipo, corremos o risco de esquecer apenas da forma como este se acharia pre- as fronteiras do ego não são permanentes.
quão variados são o mundo humano e sua sente em qualquer outro ato de pensamen- Uma reflexão mais apurada nos diz que o
vida mental. Existem certos homens que não to de igual alcance. Segundo minha própria sentimento do ego do adulto não pode ter
contam com a admiração de seus contem- experiência, não consegui convencer-me da sido o mesmo desde o início. Deve ter pas-
porâneos, embora a grandeza deles repouse natureza primária desse sentimento; isso, sado por um processo de desenvolvimento,
em atributos e realizações completamente porém, não me dá o direito de negar que ele que, se não pode ser demonstrado, pode ser
estranhos aos objetivos e aos ideais da mul- de fato ocorra em outras pessoas. A única construído com um razoável grau de probabi-
tidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado questão consiste em verificar se está sendo lidade. Uma criança recém-nascida ainda não
a supor que, no final das contas, apenas uma corretamente interpretado e se deve ser en- distingue o seu ego do mundo externo como
minoria aprecia esses grandes homens, ao carado como a fons et origo de toda a neces- fonte das sensações que fluem sobre ela.
passo que a maioria pouco se importa com sidade de religião. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo
eles. Contudo, devido não só às discrepâncias Nada tenho a sugerir que possa exercer in- a diversos estímulos. Ela deve ficar fortemen-
existentes entre os pensamentos das pessoas fluência decisiva na solução desse problema. te impressionada pelo fato de certas fontes
e as suas ações, como também à diversidade A idéia de os homens receberem uma indi- de excitação, que posteriormente identificará
de seus impulsos plenos de desejo, as coisas cação de sua vinculação com o mundo que como sendo os seus próprios órgãos corpo-
provavelmente não são tão simples assim. os cerca por meio de um sentimento imedia- rais, poderem provê-la de sensações a qual-
Um desses seres excepcionais refere-se a si to que, desde o início, é dirigido para esse quer momento, ao passo que, de tempos em
mesmo como meu amigo nas cartas que me fim, soa de modo tão estranho e se ajusta tempos, outras fontes lhe fogem — entre as
remete. Enviei-lhe o meu pequeno livro que tão mal ao contexto de nossa psicologia, que quais se destaca a mais desejada de todas, o
trata a religião como sendo uma ilusão, e ele se torna justificável a tentativa de descobrir seio da mãe —, só reaparecendo como resul-
me respondeu que concordava inteiramente uma explicação psicanalítica — isto é, ge- tado de seus gritos de socorro. Desse modo,
com esse meu juízo, lamentando, porém, que nética — para esse sentimento. A linha de pela primeira vez, o ego é contrastado por
eu não tivesse apreciado corretamente a ver- pensamento que se segue, sugere isso por si um ‘objeto’, sob a forma de algo que existe
dadeira fonte da religiosidade. Esta, diz ele, mesma. Normalmente, não nada de que pos- ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir
consiste num sentimento peculiar, que ele samos estar mais certos do que do sentimen- através de uma ação especial. Um outro in-
mesmo jamais deixou de ter presente em si, to de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego centivo para o desengajamento do ego com
que encontra confirmado por muitos outros nos aparece como algo autônomo e unitário, relação à massa geral de sensações — isto é,
e que pode imaginar atuante em milhões de distintamente demarcado de tudo o mais. Ser para o reconhecimento de um ‘exterior’, de
pessoas. Trata-se de um sentimento que ele essa aparência enganadora — apesar de que, um mundo externo — é proporcionado pelas
gostaria de designar como uma sensação de pelo contrário, o ego seja continuado para freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações
‘eternidade’, um sentimento de algo ilimita- dentro, sem qualquer delimitação nítida, por de sofrimento e desprazer, cujo afastamento
do, sem fronteiras — ‘oceânico’, por assim uma entidade mental inconsciente que de- e cuja fuga são impostos pelo princípio do
dizer. Esse sentimento, acrescenta, configura signamos como id, à qual o ego serve como prazer, no exercício de seu irrestrito domínio.
um fato puramente subjetivo, e não um arti- uma espécie de fachada —, configurou uma Surge, então, uma tendência a isolar do ego
go de fé; não traz consigo qualquer garantia descoberta efetuada pela primeira vez atra- tudo que pode tornar-se fonte de tal despra-
de imortalidade pessoal, mas constitui a fon- vés da pesquisa psicanalítica, que, de resto, zer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego
te da energia religiosa de que se apoderam as ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o em busca de prazer, que sofre o confronto de
diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por relacionamento do ego com o id. No sentido um ‘exterior’ estranho e ameaçador. As fron-
eles veiculado para canais específicos e, in- do exterior, porém, o ego de qualquer modo, teiras desse primitivo ego em busca de prazer
dubitavelmente, também por eles exaurido. parece manter linhas de demarcação bem e não podem fugir a uma retificação através da
Acredita ele que uma pessoa, embora rejeite claras e nítidas. Há somente um estado — experiência. Entretanto, algumas das coisas
toda crença e toda ilusão, pode corretamente indiscutivelmente fora o comum, embora não difíceis de serem abandonadas, por propor-
chamar-se a si mesma de religiosa com funda- possa estigmatizado como patológico — em cionarem prazer, são, não ego, mas objeto,
mento apenas nesse sentimento oceânico.As que ele não se apresenta assim. No auge do e certos sofrimentos que se procura extirpar
opiniões expressas por esse amigo que tanto sentimento de amor, a fronteira entre ego e mostram-se inseparáveis do ego, por causa
respeito, e que outrora já louvara a magia objeto ameaça desaparecer.Contra todas as de sua origem interna. Assim, acaba-se por
da ilusão num poema, causaram-me não pe- provas de seus sentidos, um homem que se aprender um processo através do qual, por
quena dificuldade. Não consigo descobrir em ache enamorado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um meio de uma direção deliberada das próprias
mim esse sentimento ‘oceânico’. Não é fácil só, e está preparado para se conduzir como atividades sensórias e de uma ação muscular
lidar cientificamente com sentimentos. Pode- se isso constituísse um fato. Aquilo que pode apropriada, se pode diferenciar entre o que
se tentar descrever os seus sinais fisiológi- ser temporariamente eliminado por uma fun- é interno — ou seja, que pertence ao ego
cos. Onde isso não é possível — e temo que ção fisiológica [isto é, normal] deve também, — e o que é externo — ou seja, que ema-
também o sentimento oceânico desafie esse naturalmente, estar sujeito a perturbações na do mundo externo. Desse modo, dá-se o
tipo de caracterização —, nada resta senão causadas por processos patológicos. A pa- primeiro passo no sentido da introdução do
cair no conteúdo ideacional que, de forma tologia nos familiarizou com grande núme- princípio da realidade, que deve dominar o
mais imediata, está associado ao sentimento. ro de estados em que as linhas fronteiriças desenvolvimento futuro. Essa diferenciação,
Se compreendi corretamente o meu amigo, entre o ego e o mundo externo se tornam naturalmente, serve à finalidade prática de
ele quer significar, com esse sentimento, a incertas, ou nos quais, na realidade, elas se nos capacitar para a defesa contra sensações
2 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

de desprazer que realmente sentimos ou pe- significava a destruição do resíduo mnêmico castelo de Santo Ângelo ainda apresentaria
las quais somos ameaçados. A fim de desviar — isto é, a sua aniquilação —, ficamos incli- em suas ameias as belas estátuas que o ador-
certas excitações desagradáveis que surgem nados a assumir o ponto de vista oposto, ou navam até a época do cerco pelos godos, e
do interior, o ego não pode utilizar senão os seja, o de que, na vida mental, nada do que assim por diante. Mais do que isso: no local
métodos que utiliza contra o desprazer oriun- uma vez se formou pode perecer — o de que ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez
do do exterior, e este é o ponto de partida tudo é, de alguma maneira, preservado e que, se ergueria — sem que o Palazzo tivesse de
de importantes distúrbios patológicos.Desse em circunstâncias apropriadas (quando, por ser removido — o Templo de Júpiter Capito-
modo, então, o ego se separa do mundo ex- exemplo, a regressão volta suficientemente lino, não apenas em sua última forma, como
terno. Ou, numa expressão mais correta, ori- atrás), pode ser trazido de novo à luz. Tente- os romanos do Império o viam, mas também
ginalmente o ego inclui tudo; posteriormen- mos apreender o que essa suposição envolve, na primitiva, quando apresentava formas
te, separa, de si mesmo, um mundo externo. estabelecendo uma analogia com outro cam- etruscas e era ornamentado por antefixas
Nosso presente sentimento do ego não passa, po. de terracota. Ao mesmo tempo, onde hoje se
portanto, de apenas um mirrado resíduo de Escolheremos como exemplo a história da Ci- ergue o Coliseu, poderíamos admirar a desa-
um sentimento muito mais inclusivo — na dade Eterna. Os historiadores nos dizem que parecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do
verdade, totalmente abrangente —, que cor- a Roma mais antiga foi a Roma Quadrata, uma Panteão encontraríamos não apenas o atual,
responde a um vínculo mais íntimo entre o povoação sediada sobre o Palatino. Seguiu- tal como legado por Adriano, mas, aí mesmo,
ego e o mundo que o cerca. Supondo que há se a fase dos Septimontium, uma federação o edifício original levantado por Agripa; na
muitas pessoas em cuja vida mental esse sen- das povoações das diferentes colinas; depois, verdade, o mesmo trecho de terreno estaria
timento primário do ego persistiu em maior veio a cidade limitada pelo Muro de Sérvio e, sustentando a Igreja de Santa Maria sobre
ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do mais tarde ainda, após todas as transforma- Minerva e o antigo templo sobre o qual ela
sentimento do ego mais estrito e mais nitida- ções ocorridas durante os períodos da repú- foi construída. E talvez o observador tivesse
mente demarcado da maturidade, como uma blica e dos primeiros césares, a cidade que apenas de mudar a direção do olhar ou a sua
espécie de correspondente seu. Nesse caso, o imperador Aureliano cercou com as suas posição para invocar uma visão ou a outra.
o conteúdo ideacional a ele apropriado seria muralhas. Não acompanharemos mais as mo- A essa altura não faz sentido prolongarmos
exatamente o de ilimitabilidade e o de um dificações por que a cidade passou; pergun- nossa fantasia, de uma vez que ela conduz
vínculo com o universo — as mesmas idéias tar-nos-emos, porém, o quanto um visitante, a coisas inimagináveis e mesmo absurdas. Se
com que meu amigo elucidou o sentimento que imaginaremos munido do mais completo quisermos representar a seqüência histórica
‘oceânico’. conhecimento histórico e topográfico, ainda em termos espaciais, só conseguiremos fazê-
Contudo, terei eu o direito de presumir a so- pode encontrar, na Roma de hoje, de tudo que lo pela justaposição no espaço: o mesmo es-
brevivência de algo que já se encontrava ori- restou dessas primeiras etapas. À exceção de paço não pode ter dois conteúdos diferentes.
ginalmente lá, lado a lado com o que poste- umas poucas brechas, verá o Muro de Aure- Nossa tentativa parece ser um jogo ocioso.
riormente dele se derivou? Sem dúvida, sim. liano quase intacto. Em certas partes, pode- Ela conta com apenas uma justificativa. Mos-
Nada existe de estranho em tal fenômeno, rá encontrar seções do Muro de Sérvio que tra quão longe estamos de dominar as ca-
tanto no campo mental como em qualquer foram escavadas e trazidas à luz. Se souber racterísticas da vida mental através de sua
outro. No reino animal, atemo-nos à opinião bastante — mais do que a arqueologia atu- representação em termos pictóricos.
de que as espécies mais altamente desenvol- al conhece —, talvez possa traçar na planta Há outra objeção a ser considerada. Pode-se
vidas se originaram das mais baixas; no en- da cidade todo o perímetro desse muro e o levantar a questão da razão por que escolhe-
tanto, ainda hoje, encontramos em existência contorno da Roma Quadrata. Dos prédios que mos precisamente o passado de uma cidade
todas as formas simples. A raça dos grandes outrora ocuparam essa antiga área, nada en- para compará-lo com o passado da mente. A
sáurios se extinguiu e abriu caminho para contrará, ou, quando muito, restos escassos, suposição de que tudo o que passou é pre-
os mamíferos; o crocodilo, porém, legítimo já que não existem mais. No máximo, as me- servado se aplica, mesmo na vida mental, só
representante dos sáurios, ainda vive entre lhores informações sobre a Roma da era re- com a condição de que o órgão da mente te-
nós. Essa analogia pode ser excessivamente publicana capacitariam-no apenas a indicar nha permanecido intacto e que seus tecidos
remota, além de debilitada pela circunstân- os locais em que os templos e edifícios pú- não tenham sido danificados por trauma ou
cia de as espécies inferiores sobreviventes blicos daquele período se erguiam. Seu sítio inflamação. Mas influências destrutivas que
não serem, em sua maioria, os verdadeiros acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas possam ser comparadas a causas de enfermi-
ancestrais das espécies mais altamente de- ruínas deles próprios, mas pelas de restau- dade como as citadas acima nunca faltam na
senvolvidas dos dias atuais. Via de regra, os rações posteriores, efetuadas após incêndios história de uma cidade, ainda que tenha tido
elos intermediários extinguiram-se, e só os ou outros tipos de destruição. Também faz-se um passado menos diversificado que o de
conhecemos através de reconstruções. No do- necessário observar que todos esses remanes- Roma, e ainda que, como Londres, mal tenha
mínio da mente, por sua vez, o elemento pri- centes da Roma antiga estão mesclados com sofrido com as visitas de um inimigo. Demo-
mitivo se mostra tão comumente preservado, a confusão de uma grande metrópole, que lições e substituições de prédios ocorrem no
ao lado da versão transformada que dele sur- se desenvolveu muito nos últimos séculos, a decorrer do mais pacífico desenvolvimento de
giu, que se faz desnecessário fornecer exem- partir da Renascença. Sem dúvida, já não há uma cidade. Uma cidade é, portanto, a prio-
plos como prova. Quando isso ocorre, é geral- nada que seja antigo, enterrado no solo da ri, inapropriada para uma comparação desse
mente em conseqüência de uma divergência cidade ou sob os edifícios modernos. Este é o tipo com um organismo mental.
no desenvolvimento: determinada parte (no modo como se preserva o passado em sítios Curvamo-nos ante essa objeção e, abandonan-
sentido quantitativo) de uma atitude ou de históricos como Roma. Permitam-nos agora, do nossa tentativa de esboçar um contraste
um impulso instintivo permaneceu inaltera- num vôo da imaginação, supor que Roma não impressivo, nos voltaremos para o que, afinal
da, ao passo que outra sofreu um desenvol- é uma habitação humana, mas uma entidade de contas, constitui um objeto de compara-
vimento ulterior. psíquica, com um passado semelhantemente ção mais estreitamente relacionado: o corpo
Esse fato nos conduz ao problema mais geral longo e abundante — isto é, uma entidade de um animal ou o de um ser humano. Aqui
da preservação na esfera da mente. O assunto onde nada do que outrora surgiu desapareceu também, no entanto, encontramos a mesma
mal foi estudado ainda, mas é tão atraente e e onde todas as fases anteriores de desenvol- coisa. As primeiras fases do desenvolvimento
importante, que nos será permitido voltar- vimento continuam a existir, paralelamente já não se acham, em sentido algum, preserva-
mos um pouco nossa atenção para ele, ainda à última. Isso significaria que, em Roma, os das; foram absorvidas pelas fases posteriores,
que nossa desculpa seja insuficiente. Desde palácios dos césares e as Septizonium de Sé- às quais forneceram material. O embrião não
que superamos o erro de supor que o esque- timo Severo ainda se estariam erguendo em pode ser descoberto no adulto. A glândula do
cimento com que nos achamos familiarizados sua antiga altura sobre o Palatino e que o timo da infância, sendo substituída, após a
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 3

puberdade, por tecidos de ligação, não mais periências mais inusitadas, acabando por lhe der habe Religion!
se apresenta como tal; nas medulas ósseas do dar um conhecimento enciclopédico, asse- Esses dois versos, por um lado, traçam uma
homem adulto posso, sem dúvida, traçar o gurou-me que, através das práticas de ioga, antítese entre a religião e as duas mais altas
contorno do osso infantil, embora este tenha pelo afastamento do mundo, pela fixação da realizações do homem, e, por outro, asseve-
desaparecido, alongando-se e espessando-se atenção nas funções corporais e por métodos ram que, com relação ao seu valor na vida,
até atingir sua forma definitiva. Permanecem peculiares de respiração, uma pessoa pode de essas realizações e a religião podem repre-
o fato de que só na mente é possível a pre- fato evocar em si mesma novas sensações e sentar-se ou substituir-se mutuamente. Se
servação de todas as etapas anteriores, lado cenestesias, consideradas estas como regres- também nos dispusermos a privar o homem
a lado com a forma final, e o de que não sões a estados primordiais da mente que há comum [que não possui nem ciência nem
estamos em condições de representar esse muito tempo foram recobertos. Ele vê nesses arte] de sua religião, é claro que não teremos
fenômeno em termos pictóricos. estados uma base, por assim dizer fisiológica, de nosso lado a autoridade do poeta. Esco-
Talvez estejamos levando longe demais essa de grande parte da sabedoria do misticismo. lheremos um caminho específico para nos
reflexão. Talvez devêssemos contentar-nos Não seria difícil descobrir aqui vinculações aproximarmos mais de uma justa apreciação
em afirmar que o que se passou na vida com certo número de obscuras modificações de suas palavras. A vida, tal como a encon-
mental pode ser preservado, não sendo, ne- da vida mental, tais como os transes e os êx- tramos, é árdua demais para nós; proporcio-
cessariamente, destruído. É sempre possível tases. Contudo, sou levado a exclamar, como na-nos muitos sofrimentos, decepções e tare-
que, mesmo na mente, algo do que é antigo nas palavras do mergulhador de Schiller: fas impossíveis. A fim de suportá-la, não po-
seja apagado ou absorvido — quer no curso ‘…Es freue sich, Wer da atmet im rosigten demos dispensar as medidas paliativas. ‘Não
normal das coisas, quer como exceção — a Licht.’ podemos passar sem construções auxiliares’,
tal ponto, que não possa ser restaurado nem diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três
revivescido por meio algum, ou que a preser- II medidas desse tipo: derivativos poderosos,
vação em geral dependa de certas condições Em meu trabalho O Futuro de uma Ilusão que nos fazem extrair luz de nossa desgraça;
favoráveis. É possível, mas nada sabemos a [1927c], estava muito menos interessado satisfações substitutivas, que a diminuem; e
esse respeito. Podemos apenas prender-nos nas fontes mais profundas do sentimento substâncias tóxicas, que nos tornam insen-
ao fato de ser antes regra, e não exceção, o religioso do que naquilo que o homem co- síveis a ela. Algo desse tipo é indispensá-
passado achar-se preservado na vida mental. mum entende como sua religião — o sistema vel. Voltaire tinha os derivativos em mente
Assim, estamos perfeitamente dispostos a re- de doutrinas e promessas que, por um lado, quando terminou Candide com o conselho
conhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe lhe explicam os enigmas deste mundo com para cultivarmos nosso próprio jardim, e a
em muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer perfeição invejável, e que, por outro, lhe ga- atividade científica constitui também um de-
sua origem remontar a uma fase primitiva do rantem que uma Providência cuidadosa vela- rivativo dessa espécie. As satisfações substi-
sentimento do ego. Surge então uma nova rá por sua vida e o compensará, numa exis- tutivas, tal como as oferecidas pela arte, são
questão: que direito tem esse sentimento de tência futura, de quaisquer frustrações que ilusões, em contraste com a realidade; nem
ser considerado como a fonte das necessida- tenha experimentado aqui. O homem comum por isso, contudo, se revelam menos eficazes
des religiosas. só pode imaginar essa Providência sob a figu- psiquicamente, graças ao papel que a fanta-
Esse direito não me parece obrigatório. Afi- ra de um pai ilimitadamente engrandecido. sia assumiu na vida mental. As substâncias
nal de contas, um sentimento só poderá ser Apenas um ser desse tipo pode compreender tóxicas influenciam nosso corpo e alteram a
fonte de energia se ele próprio for expressão as necessidades dos filhos dos homens, en- sua química. Não é simples perceber onde a
de uma necessidade intensa. A derivação das ternecer-se com suas preces e aplacar-se com religião encontra o seu lugar nessa série. Te-
necessidades religiosas, a partir do desampa- os sinais de seu remorso. Tudo é tão patente- mos de pesquisar mais adiante.
ro do bebê e do anseio pelo pai que aquela mente infantil, tão estranho à realidade, que, A questão do propósito da vida humana já
necessidade desperta, parece-me incontrover- para qualquer pessoa que manifeste uma ati- foi levantada várias vezes; nunca, porém,
tível, desde que, em particular, o sentimento tude amistosa em relação à humanidade, é recebeu resposta satisfatória e talvez não a
não seja simplesmente prolongado a partir penoso pensar que a grande maioria dos mor- admita. Alguns daqueles que a formularam
dos dias da infância, mas permanentemen- tais nunca será capaz de superar essa visão acrescentaram que, se fosse demonstrado
te sustentado pelo medo do poder superior da vida. Mais humilhante ainda é descobrir que a vida não tem propósito, esta perderia
do Destino. Não consigo pensar em nenhuma como é vasto o número de pessoas de hoje todo valor para eles. Tal ameaça, porém, não
necessidade da infância tão intensa quanto que não podem deixar de perceber que essa altera nada. Pelo contrário, faz parecer que
a da proteção de um pai. Dessa maneira, o religião é insustentável e, não obstante isso, temos o direito de descartar a questão, já que
papel desempenhado pelo sentimento oceâ- tentam defendê-la, item por item, numa sé- ela parece derivar da presunção humana, da
nico, que poderia buscar algo como a restau- rie de lamentáveis atos retrógrados. Gostarí- qual muitas outras manifestações já nos são
ração do narcisismo ilimitado, é deslocado de amos de nos mesclar às fileiras dos crentes, familiares. Ninguém fala sobre o propósito
um lugar em primeiro plano. A origem da ati- a fim de encontrarmos aqueles filósofos que da vida dos animais, a menos, talvez, que se
tude religiosa pode ser remontada, em linhas consideram poder salvar o Deus da religião, imagine que ele resida no fato de os animais
muito claras, até o sentimento de desamparo substituindo-o por um princípio impessoal, se acharem a serviço do homem. Contudo,
infantil. Pode haver algo mais por trás disso, obscuro e abstrato, e dirigirmos-lhes as se- tampouco essa opinião é sustentável, de uma
mas, presentemente, ainda está envolto em guintes palavras de advertência: ‘Não toma- vez que existem muitos animais de que o
obscuridade. rás o nome do Senhor teu Deus em vão!’ E, se homem nada pode se aproveitar, exceto des-
Posso imaginar que o sentimento oceânico se alguns dos grandes homens do passado agi- crevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda
tenha vinculado à religião posteriormente. A ram da mesma maneira, de modo nenhum se assim, inumeráveis espécies de animais esca-
‘unidade com o universo’, que constitui seu pode invocar seu exemplo: sabemos por que param inclusive a essa utilização, pois exis-
conteúdo ideacional, soa como uma primeira foram obrigados a isso. tiram e se extinguiram antes que o homem
tentativa de consolação religiosa, como se Retornemos ao homem comum e à sua reli- voltasse seus olhos para elas. Mais uma vez,
configurasse uma outra maneira de rejeitar gião, a única que deveria levar esse nome. só a religião é capaz de resolver a questão do
o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a A primeira coisa em que pensamos é na bem propósito da vida. Dificilmente incorreremos
partir do mundo externo. Permitam-me ad- conhecida expressão de um de nossos maio- em erro ao concluirmos que a idéia de a vida
mitir mais uma vez que para mim é muito res poetas e pensadores, referindo-se à rela- possuir um propósito se forma e desmorona
difícil trabalhar com essas quantidades quase ção da religião com a arte e a ciência: com o sistema religioso.Voltar-nos-emos,
intangíveis. Outro amigo meu, cuja insaciá- Wer Wissenschaft und Kunst besitzt, hat portanto, para uma questão menos ambicio-
vel vontade de saber o levou a realizar as ex- auch Religion; Wer jene beide nicht besitzt, sa, a que se refere àquilo que os próprios ho-
4 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

mens, por seu comportamento, mostram ser simplesmente porque escapou à infelicidade desprazer. É extremamente lamentável que
o propósito e a intenção de suas vidas. O que ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, até agora esse lado tóxico dos processos
pedem eles da vida e o que desejam nela rea- a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de mentais tenha escapado ao exame científico.
lizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. obter prazer em segundo plano. A reflexão O serviço prestado pelos veículos intoxican-
Esforçam-se para obter felicidade; querem nos mostra que é possível tentar a realiza- tes na luta pela felicidade e no afastamento
ser felizes e assim permanecer. Essa empresa ção dessa tarefa através de caminhos muito da desgraça é tão altamente apreciado como
apresenta dois aspectos: uma meta positiva e diferentes e que todos esses caminhos foram um benefício, que tanto indivíduos quanto
uma meta negativa. Por um lado, visa a uma recomendados pelas diversas escolas de sabe- povos lhes concederam um lugar permanente
ausência de sofrimento e de desprazer; por doria secular e postos em prática pelos ho- na economia de sua libido. Devemos a tais
outro, à experiência de intensos sentimen- mens. Uma satisfação irrestrita de todas as veículos não só a produção imediata de pra-
tos de prazer. Em seu sentido mais restrito, necessidades apresenta-se-nos como o méto- zer, mas também um grau altamente deseja-
a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses do mais tentador de conduzir nossas vidas; do de independência do mundo externo, pois
últimos. Em conformidade a essa dicotomia isso, porém, significa colocar o gozo antes sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortece-
de objetivos, a atividade do homem se de- da cautela, acarretando logo o seu próprio dor de preocupações’, é possível, em qualquer
senvolve em duas direções, segundo busque castigo. Os outros métodos, em que a fuga ocasião, afastar-se da pressão da realidade e
realizar — de modo geral ou mesmo exclusi- do desprazer constitui o intuito primordial, encontrar refúgio num mundo próprio, com
vamente — um ou outro desses objetivos. diferenciam-se de acordo com a fonte de melhores condições de sensibilidade. Sabe-se
Como vemos, o que decide o propósito da desprazer para a qual sua atenção está prin- igualmente que é exatamente essa proprie-
vida é simplesmente o programa do princípio cipalmente voltada. Alguns desses métodos dade dos intoxicantes que determina o seu
do prazer. Esse princípio domina o funciona- são extremados; outros, moderados; alguns perigo e a sua capacidade de causar danos.
mento do aparelho psíquico desde o início. são unilaterais; outros atacam o problema, São responsáveis, em certas circunstâncias,
Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, simultaneamente, em diversos pontos. Con- pelo desperdício de uma grande quota de
ainda que o seu programa se encontre em tra o sofrimento que pode advir dos relacio- energia que poderia ser empregada para o
desacordo com o mundo inteiro, tanto com namentos humanos, a defesa mais imediata é aperfeiçoamento do destino humano.
o macrocosmo quanto com o microcosmo. o isolamento voluntário, o manter-se à dis- A complicada estrutura de nosso aparelho
Não há possibilidade alguma de ele ser exe- tância das outras pessoas. A felicidade pas- mental admite, contudo, um grande número
cutado; todas as normas do universo são-lhe sível de ser conseguida através desse méto- de outras influências. Assim como a satisfa-
contrárias. Ficamos inclinados a dizer que do é, como vemos, a felicidade da quietude. ção do instinto equivale para nós à felicida-
a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não Contra o temível mundo externo, só podemos de, assim também um grave sofrimento sur-
se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que defender-nos por algum tipo de afastamento ge em nós, caso o mundo externo nos deixe
chamamos de felicidade no sentido mais res- dele, se pretendermos solucionar a tarefa por definhar, caso se recuse a satisfazer nossas
trito provém da satisfação (de preferência, nós mesmos. Há, é verdade, outro caminho, e necessidades. Podemos, portanto, ter espe-
repentina) de necessidades represadas em melhor: o de tornar-se membro da comunida- ranças de nos libertarmos de uma parte de
alto grau, sendo, por sua natureza, possí- de humana e, com o auxílio de uma técnica nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos
vel apenas como uma manifestação episódi- orientada pela ciência, passar para o ataque instintivos. Esse tipo de defesa contra o so-
ca. Quando qualquer situação desejada pelo à natureza e sujeitá-la à vontade humana. frimento se aplica mais ao aparelho senso-
princípio do prazer se prolonga, ela produz Trabalha-se então com todos para o bem de rial; ele procura dominar as fontes internas
tão-somente um sentimento de contenta- todos. Contudo, os métodos mais interessan- de nossas necessidades. A forma extrema
mento muito tênue. Somos feitos de modo tes de evitar o sofrimento são os que procu- disso é ocasionada pelo aniquilamento dos
a só podermos derivar prazer intenso de um ram influenciar o nosso próprio organismo. instintos, tal como prescrito pela sabedoria
contraste, e muito pouco de um determinado Em última análise, todo sofrimento nada do mundo peculiar ao Oriente e praticada
estado de coisas. mais é do que sensação; só existe na medida pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo,
Assim, nossas possibilidades de felicidade em que o sentimos, e só o sentimos como é verdade, abandona também todas as outras
sempre são restringidas por nossa própria conseqüência de certos modos pelos quais atividades: sacrifica a sua vida e, por outra
constituição. Já a infelicidade é muito me- nosso organismo está regulado.O mais gros- via, mais uma vez atinge apenas a felicida-
nos difícil de experimentar. O sofrimento nos seiro, embora também o mais eficaz, desses de da quietude. Seguimos o mesmo caminho
ameaça a partir de três direções: de nosso métodos de influência é o químico: a intoxi- quando os nossos objetivos são menos extre-
próprio corpo, condenado à decadência e à cação. Não creio que alguém compreenda in- mados e simplesmente tentamos controlar
dissolução, e que nem mesmo pode dispen- teiramente o seu mecanismo; é fato, porém, nossa vida instintiva. Nesse caso, os elemen-
sar o sofrimento e a ansiedade como sinais que existem substâncias estranhas, as quais, tos controladores são os agentes psíquicos
de advertência; do mundo externo, que pode quando presentes no sangue ou nos tecidos, superiores, que se sujeitaram ao princípio da
voltar-se contra nós com forças de destruição provocam em nós, diretamente, sensações realidade. Aqui, a meta da satisfação não é,
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de prazerosas, alterando, também, tanto as con- de modo algum, abandonada, mas garante-
nossos relacionamentos com os outros ho- dições que dirigem nossa sensibilidade, que se uma certa proteção contra o sofrimento
mens. O sofrimento que provém dessa últi- nos tornamos incapazes de receber impulsos no sentido de que a não-satisfação não é tão
ma fonte talvez nos seja mais penoso do que desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem penosamente sentida no caso dos instintos
qualquer outro. Tendemos a encará-lo como de modo simultâneo, como parecem estar ín- mantidos sob dependência como no caso dos
uma espécie de acréscimo gratuito, embora tima e mutuamente ligados. No entanto, é instintos desinibidos. Contra isso, existe uma
ele não possa ser menos fatidicamente inevi- possível que haja substâncias na química de inegável diminuição nas potencialidades de
tável do que o sofrimento oriundo de outras nossos próprios corpos que apresentem efei- satisfação. O sentimento de felicidade deri-
fontes. tos semelhante pois conhecemos pelo menos vado da satisfação de um selvagem impulso
Não admira que, sob a pressão de todas essas um estado patológico, a mania, no qual uma instintivo não domado pelo ego é incompara-
possibilidades de sofrimento, os homens se condição semelhante à intoxicação surge sem velmente mais intenso do que o derivado da
tenham acostumado a moderar suas reivin- administração de qualquer droga intoxican- satisfação de um instinto que já foi domado.
dicações de felicidade — tal como, na ver- te. Além disso, nossa vida psíquica normal A irresistibilidade dos instintos perversos e,
dade, o próprio princípio do prazer, sob a in- apresenta oscilações entre uma liberação de talvez, a atração geral pelas coisas proibidas
fluência do mundo externo, se transformou prazer relativamente fácil e outra compara- encontram aqui uma explicação econômica.
no mais modesto princípio da realidade —, tivamente difícil, paralela à qual ocorre uma Outra técnica para afastar o sofrimento reside
que um homem pense ser ele próprio feliz, receptividade, diminuída ou aumentada, ao no emprego dos deslocamentos de libido que
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 5

nosso aparelho mental possibilita e através com a qual é impossível viver, de maneira de uma transbordante sensação de prazer,
dos quais sua função ganha tanta flexibili- que, se quisermos ser de algum modo felizes, fornecendo-nos assim um modelo para nos-
dade. A tarefa aqui consiste em reorientar os temos de romper todas as relações com ela. sa busca da felicidade. Há, porventura, algo
objetivos instintivos de maneira que eludam O eremita rejeita o mundo e não quer saber mais natural do que persistirmos na busca da
a frustração do mundo externo. Para isso, ela de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais felicidade do modo como a encontramos pela
conta com a assistência da sublimação dos do que isso; pode-se tentar recriar o mun- primeira vez? O lado fraco dessa técnica de
instintos. Obtém-se o máximo quando se con- do, em seu lugar construir um outro mundo, viver é de fácil percepção, pois, do contrário,
segue intensificar suficientemente a produ- no qual os seus aspectos mais insuportáveis nenhum ser humano pensaria em abandonar
ção de prazer a partir das fontes do trabalho sejam eliminados e substituídos por outros esse caminho da felicidade por qualquer ou-
psíquico e intelectual. Quando isso acontece, mais adequados a nossos próprios desejos. tro. É que nunca nos achamos tão indefesos
o destino pouco pode fazer contra nós. Uma Mas quem quer que, numa atitude de desafio contra o sofrimento como quando amamos,
satisfação desse tipo, como, por exemplo, a desesperado, se lance por este caminho em nunca tão desamparadamente infelizes como
alegria do artista em criar, em dar corpo às busca da felicidade, geralmente não chega a quando perdemos o nosso objeto amado ou
suas fantasias, ou a do cientista em solucio- nada. A realidade é demasiado forte para ele. o seu amor. Isso, porém, não liquida com a
nar problemas ou descobrir verdades, possui Torna-se um louco; alguém que, a maioria técnica de viver baseada no valor do amor
uma qualidade especial que, sem dúvida, um das vezes, não encontra ninguém para aju- como um meio de obter felicidade. Há muito
dia poderemos caracterizar em termos me- dá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, mais a ser dito a respeito. [Ver [1]].
tapsicológicos. Atualmente, apenas de forma contudo, que cada um de nós se comporta, Daqui podemos passar à consideração do in-
figurada podemos dizer que tais satisfações sob determinado aspecto, como um paranói- teressante caso em que a felicidade na vida
parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Con- co, corrige algum aspecto do mundo que lhe é predominantemente buscada na fruição da
tudo, sua intensidade se revela muito tênue é insuportável pela elaboração de um desejo beleza, onde quer que esta se apresente a
quando comparada com a que se origina da e introduz esse delírio na realidade. Conce- nossos sentidos e a nosso julgamento — a
satisfação de impulsos instintivos grosseiros de-se especial importância ao caso em que a beleza das formas e a dos gestos humanos, a
e primários; ela não convulsiona o nosso ser tentativa de obter uma certeza de felicidade dos objetos naturais e das paisagens e a das
físico. E o ponto fraco desse método reside e uma proteção contra o sofrimento através criações artísticas e mesmo científicas. A ati-
em não ser geralmente aplicável, de uma vez de um remodelamento delirante da realidade, tude estética em relação ao objetivo da vida
que só é acessível a poucas pessoas. Pressu- é efetuada em comum por um considerável oferece muito pouca proteção contra a amea-
põe a posse de dotes e disposições especiais número de pessoas. As religiões da humani- ça do sofrimento, embora possa compensá-lo
que, para qualquer fim prático, estão longe dade devem ser classificadas entre os delírios bastante. A fruição da beleza dispõe de uma
de serem comuns. E mesmo para os poucos de massa desse tipo. É desnecessário dizer qualidade peculiar de sentimento, tenue-
que os possuem, o método não proporciona que todo aquele que partilha um delírio ja- mente intoxicante. A beleza não conta com
uma proteção completa contra o sofrimento. mais o reconhece como tal. um emprego evidente; tampouco existe cla-
Não cria uma armadura impenetrável contra Não pretendo ter feito uma enumeração com- ramente qualquer necessidade cultural sua.
as investidas do destino e habitualmente fa- pleta dos métodos pelos quais os homens se Apesar disso, a civilização não pode dispen-
lha quando a fonte do sofrimento é o próprio esforçam para conseguir a felicidade e man- sá-la. Embora a ciência da estética investigue
corpo da pessoa.Enquanto esse procedimento ter afastado o sofrimento; sei também que as condições sob as quais as coisas são senti-
já mostra claramente uma intenção de nos o material poderia ter sido diferentemente das como belas, tem sido incapaz de fornecer
tornar independentes do mundo externo pela disposto. Ainda não mencionei um processo qualquer explicação a respeito da natureza e
busca da satisfação em processos psíquicos — não por esquecimento, mas porque nos da origem da beleza, e, tal como geralmente
internos, o procedimento seguinte apresenta interessará mais tarde, em relação a outro acontece, esse insucesso vem sendo escamo-
esses aspectos de modo ainda mais intenso. assunto. E como se poderia esquecer, entre teado sob um dilúvio de palavras tão pompo-
Nele, a distensão do vínculo com a realidade todas as outras, a técnica da arte de viver? sas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente,
vai mais longe; a satisfação é obtida através Ela se faz visível por uma notável combi- também pouco encontrou a dizer sobre a be-
de ilusões, reconhecidas como tais, sem que nação de aspectos característicos. Natural- leza. O que parece certo é sua derivação do
se verifique permissão para que a discre- mente, visa também a tornar o indivíduo campo do sentimento sexual. O amor da bele-
pância entre elas e a realidade interfira na independente do Destino (como é melhor za parece um exemplo perfeito de um impul-
sua fruição. A região onde essas ilusões se chamá-lo) e, para esse fim, localiza a satis- so inibido em sua finalidade.’Beleza’ e ‘atra-
originam é a vida da imaginação; na época fação em processos mentais internos, utili- ção’ são, originalmente, atributos do objeto
em que o desenvolvimento do senso de re- zando, ao proceder assim, a deslocabilidade sexual. Vale a pena observar que os próprios
alidade se efetuou, essa região foi expressa- da libido que já mencionamos,ver [[1]]. Mas órgãos genitais, cuja visão é sempre excitan-
mente isentada das exigências do teste de ela não volta as costas ao mundo externo; te, dificilmente são julgados belos; a qualida-
realidade e posta de lado a fim de realizar pelo contrário, prende-se aos objetos per- de da beleza, ao contrário, parece ligar-se a
desejos difíceis de serem levados a termo. tencentes a esse mundo e obtém felicidade certos caracteres sexuais secundários.
À frente das satisfações obtidas através da de um relacionamento emocional com eles. A despeito da deficiência [de minha enume-
fantasia ergue-se a fruição das obras de arte, Tampouco se contenta em visar a uma fuga ração, ver ([1])], aventurar-me-ei a algumas
fruição que, por intermédio do artista, é tor- do desprazer, uma meta, poderíamos dizer, observações à guisa de conclusão para nossa
nada acessível inclusive àqueles que não são de cansada resignação; passa por ela sem lhe investigação. O programa de tornar-se fe-
criadores. As pessoas receptivas à influência dar atenção e se aferra ao esforço original liz, que o princípio do prazer nos impõe,ver
da arte não lhe podem atribuir um valor alto e apaixonado em vista de uma consecução [[1]],não pode ser realizado; contudo, não
demais como fonte de prazer e consolação na completa da felicidade. Na realidade, talvez devemos — na verdade, não podemos —
vida. Não obstante, a suave narcose a que a se aproxime mais dessa meta do que qual- abandonar nossos esforços de aproximá-lo
arte nos induz, não faz mais do que ocasio- quer outro método. Evidentemente, estou fa- da consecução, de uma maneira ou de ou-
nar um afastamento passageiro das pressões lando da modalidade de vida que faz do amor tra. Caminhos muito diferentes podem ser
das necessidades vitais, não sendo suficien- o centro de tudo, que busca toda satisfação tomados nessa direção, e podemos conceder
temente forte para nos levar a esquecer a em amar e ser amado. Uma atitude psíquica prioridades quer ao aspecto positivo do obje-
aflição real. desse tipo chega de modo bastante natural a tivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o
Um outro processo opera de modo mais ener- todos nós; uma das formas através da qual o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva
gético e completo. Considera a realidade como amor se manifesta — o amor sexual — nos a tudo o que desejamos. A felicidade, no re-
a única inimiga e a fonte de todo sofrimento, proporcionou nossa mais intensa experiência duzido sentido em que a reconhecemos como
6 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

possível, constitui um problema da economia a um delírio de massa, a religião consegue definir o conceito de civilização, constitui
da libido do indivíduo. Não existe uma regra poupar a muitas pessoas uma neurose indivi- fato incontroverso que todas as coisas que
de ouro que se aplique a todos: todo homem dual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, buscamos a fim de nos protegermos contra as
tem de descobrir por si mesmo de que modo como dissemos, muitos caminhos que podem ameaças oriundas das fontes de sofrimento,
específico ele pode ser salvo. Todos os tipos levar à felicidade passível de ser atingida fazem parte dessa mesma civilização.
de diferentes fatores operarão a fim de dirigir pelos homens, mas nenhum que o faça com Como foi que tantas pessoas vieram a assu-
sua escolha. É uma questão de quanta satis- toda segurança. Mesmo a religião não conse- mir essa estranha atitude de hostilidade para
fação real ele pode esperar obter do mundo gue manter sua promessa. Se, finalmente, o com a civilização? Acredito que seu funda-
externo, de até onde é levado para tornar-se crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios mento consistiu numa longa e duradoura
independente dele, e, finalmente, de quanta inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que insatisfação com o estado de civilização en-
força sente à sua disposição para alterar o tudo que lhe sobrou, como último consolo e tão existente e que, nessa base, se construiu
mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, uma condenação dela, ocasionada por certos
Nisso, sua constituição psíquica desempe- foi uma submissão incondicional. E, se está acontecimentos históricos específicos. Penso
nhará papel decisivo, independentemente preparado para isso, provavelmente poderia saber quais foram a última e a penúltima des-
das circunstâncias externas. O homem predo- ter-se poupado o détour que efetuou. sas ocasiões. Não sou suficientemente erudito
minantemente erótico dará preferência aos para fazer remontar a origem de sua cadeia o
seus relacionamentos emocionais com outras III mais distante possível na história da espécie
pessoas; o narcisista que tende a ser auto- Até agora, nossa investigação sobre a felici- humana, mas um fator desse tipo, hostil à
suficiente, buscará suas satisfações princi- dade não nos ensinou quase nada que já não civilização, já devia estar em ação na vitória
pais em seus processos mentais internos; o pertença ao conhecimento comum. E, mesmo do cristianismo sobre as religiões pagãs, de
homem de ação nunca abandonará o mundo que passemos dela para o problema de saber uma vez que se achava intimamente relacio-
externo, onde pode testar sua força. Quanto por que é tão difícil para o homem ser fe- nado à baixa estima dada à vida terrena pela
ao segundo desses tipos, a natureza de seus liz, parece que não há maior perspectiva de doutrina cristã. A penúltima dessas ocasiões
talentos e a parcela de sublimação instintiva aprender algo novo. Já demos a resposta,ver se instaurou quando o progresso das viagens
a ele aberta decidirão onde localizará os seus [[1]] pela indicação das três fontes de que de descobrimento conduziu ao contacto com
interesses. Qualquer escolha levada a um nosso sofrimento provém: o poder superior povos e raças primitivos. Em conseqüência de
extremo condena o indivíduo a ser exposto da natureza, a fragilidade de nossos próprios uma observação insuficiente e de uma visão
a perigos, que surgem caso uma técnica de corpos e a inadequação das regras que procu- equivocada de seus hábitos e costumes, eles
viver, escolhida como exclusiva, se mostre ram ajustar os relacionamentos mútuos dos apareceram aos europeus como se levassem
inadequada. Assim como o negociante caute- seres humanos na família, no Estado e na uma vida simples e feliz, com poucas neces-
loso evita empregar todo seu capital num só sociedade. Quanto às duas primeiras fontes, sidades, um tipo de vida inatingível por seus
negócio, assim também, talvez, a sabedoria nosso julgamento não pode hesitar muito. visitantes com sua civilização superior. A
popular nos aconselhe a não buscar a tota- Ele nos força a reconhecer essas fontes de experiência posterior corrigiu alguns desses
lidade de nossa satisfação numa só aspira- sofrimento e a nos submeter ao inevitável. julgamentos. Em muitos casos, os observado-
ção. Seu êxito jamais é certo, pois depende Nunca dominaremos completamente a na- res haviam erroneamente atribuído à ausên-
da convergência de muitos fatores, talvez tureza, e o nosso organismo corporal, ele cia de exigências culturais complicadas o que
mais do que qualquer outro, da capacidade mesmo parte dessa natureza, permanecerá de fato era devido à generosidade da nature-
da constituição psíquica em adaptar sua fun- sempre como uma estrutura passageira, com za e à facilidade com que as principais neces-
ção ao meio ambiente e então explorar esse limitada capacidade de adaptação e reali- sidades humanas eram satisfeitas. A última
ambiente em vista de obter um rendimen- zação. Esse reconhecimento não possui um ocasião nos é especialmente familiar. Surgiu
to de prazer. Uma pessoa nascida com uma efeito paralisador. Pelo contrário, aponta a quando as pessoas tomaram conhecimento
constituição instintiva especialmente desfa- direção para a nossa atividade. Se não pode- do mecanismo das neuroses, que ameaçam
vorável e que não tenha experimentado cor- mos afastar todo sofrimento, podemos afas- solapar a pequena parcela de felicidade des-
retamente a transformação e a redisposição tar um pouco dele e mitigar outro tanto: a frutada pelos homens civilizados. Descobriu-
de seus componentes libidinais indispensá- experiência de muitos milhares de anos nos se que uma pessoa se torna neurótica porque
veis às realizações posteriores, achará difícil convenceu disso. Quanto à terceira fonte, a não pode tolerar a frustração que a sociedade
obter felicidade em sua situação externa,em fonte social de sofrimento, nossa atitude é lhe impõe, a serviço de seus ideais culturais,
especial se vier a se defrontar com tarefas de diferente. Não a admitimos de modo algum; inferindo-se disso que a abolição ou redução
certa dificuldade. Como uma última técnica não podemos perceber por que os regula- dessas exigências resultaria num retorno a
de vida, pelo que menos lhe trará satisfações mentos estabelecidos por nós mesmos não possibilidades de felicidade.
substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a representam, ao contrário, proteção e bene- Existe ainda um fator adicional de desapon-
enfermidade neurótica, fuga que geralmente fício para cada um de nós. Contudo, quando tamento. Durante as últimas gerações, a hu-
efetua quando ainda é jovem. O homem que, consideramos o quanto fomos malsucedidos manidade efetuou um progresso extraordiná-
em anos posteriores, vê sua busca da felici- exatamente nesse campo de prevenção do rio nas ciências naturais e em sua aplicação
dade resultar em nada ainda pode encontrar sofrimento, surge em nós a suspeita de que técnica, estabelecendo seu controle sobre a
consolo no prazer oriundo da intoxicação também aqui é possível jazer, por trás desse natureza de uma maneira jamais imaginada.
crônica, ou então se empenhar na desespe- fato, uma parcela de natureza inconquistável As etapas isoladas desse progresso são do
rada tentativa de rebelião que se observa na — dessa vez, uma parcela de nossa própria conhecimento comum, sendo desnecessário
psicose. constituição psíquica. enumerá-las. Os homens se orgulham de suas
A religião restringe esse jogo de escolha e Quando começamos a considerar essa possibi- realizações e têm todo direito de se orgulha-
adaptação, desde que impõe igualmente a lidade, deparamo-nos com um argumento tão rem. Contudo, parecem ter observado que o
todos o seu próprio caminho para a aquisição espantoso, que temos de nos demorar nele. poder recentemente adquirido sobre o espaço
da felicidade e da proteção contra o sofri- Esse argumento sustenta que o que chama- e o tempo, a subjugação das forças da natu-
mento. Sua técnica consiste em depreciar o mos de nossa civilização é em grande parte reza, consecução de um anseio que remonta
valor da vida e deformar o quadro do mun- responsável por nossa desgraça e que serí- a milhares de anos, não aumentou a quan-
do real de maneira delirante — maneira que amos muito mais felizes se a abandonásse- tidade de satisfação prazerosa que poderiam
pressupõe uma intimidação da inteligência. mos e retornássemos às condições primitivas. esperar da vida e não os tornou mais felizes.
A esse preço, por fixá-las à força num estado Chamo esse argumento de espantoso porque, Reconhecendo esse fato, devemos contentar-
de infantilismo psicológico e por arrastá-las seja qual for a maneira por que possamos nos em concluir que o poder sobre a natureza
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 7

não constitui a única precondição da felici- mais desconhecidos que estes possam ser. A nem a água nem o ar podem impedir seus
dade humana, assim como não é o único ob- felicidade, contudo, é algo essencialmente movimentos; por meio de óculos corrige os
jetivo do esforço cultural. Disso não devemos subjetivo. Por mais que nos retraiamos com defeitos das lentes de seus próprios olhos;
inferir que o progresso técnico não tenha horror de certas situações — a de um escravo através do telescópio, vê a longa distância; e
valor para a economia de nossa felicidade. de galé na Antiguidade, a de um camponês por meio do microscópio supera os limites de
Gostaríamos de perguntar: não existe, então, durante a Guerra dos Trinta Anos, a de uma visibilidade estabelecidos pela estrutura de
nenhum ganho no prazer, nenhum aumento vítima da Inquisição, a de um judeu à espera sua retina. Na câmara fotográfica, criou um
inequívoco no meu sentimento de felicidade, de um pogrom — para nós, sem embargo, instrumento que retém as impressões visuais
se posso, tantas vezes quantas me agrade, es- é impossível nos colocarmos no lugar dessas fugidias, assim como um disco de gramofone
cutar a voz de um filho meu que está moran- pessoas — adivinhar as modificações que retém as auditivas, igualmente fugidias; am-
do a milhares de quilômetros de distância, ou uma obtusidade original da mente, um pro- bas são, no fundo, materializações do poder
saber, no tempo mais breve possível depois cesso gradual de embrutecimento, a cessação que ele possui de rememoração, isto é, sua
de um amigo ter atingido seu destino, que das esperanças e métodos de narcotização memória. Com o auxílio do telefone, pode
ele concluiu incólume a longa e difícil via- mais grosseiros ou mais refinados produzi- escutar a distâncias que seriam respeitadas
gem? Não significa nada que a medicina te- ram sobre a receptividade delas às sensações como inatingíveis mesmo num conto de fa-
nha conseguido não só reduzir enormemente de prazer e desprazer. Além disso, no caso das. A escrita foi, em sua origem, a voz de
a mortalidade infantil e o perigo de infecção da possibilidade mais extrema de sofrimento, uma pessoa ausente, e a casa para moradia
para as mulheres no parto, como também, na dispositivos mentais protetores e especiais constituiu um substituto do útero materno,
verdade, prolongar consideravelmente a vida são postos em funcionamento. Parece-me o primeiro alojamento, pelo qual, com toda
média do homem civilizado? Há uma longa improdutivo levar adiante esse aspecto do probabilidade, o homem ainda anseia, e no
lista que poderia ser acrescentada a esse tipo problema. qual se achava seguro e se sentia à vontade.
de benefícios, que devemos à tão despreza- Já é tempo de voltarmos nossa atenção para Essas coisas — que, através de sua ciência
da era dos progressos científicos e técnicos. a natureza dessa civilização, sobre cujo valor e tecnologia, o homem fez surgir na Terra,
Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se como veículo de felicidade foram lançadas sobre a qual, no princípio, ele apareceu como
faz ouvir e nos adverte que a maioria dessas dúvidas. Não procuraremos uma fórmula que um débilorganismo animal e onde cada in-
satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ exprima essa natureza em poucas palavras, divíduo de sua espécie deve, mais uma vez,
louvado pela anedota: o prazer obtido ao se enquanto não tivermos aprendido alguma fazer sua entrada (‘oh inch of nature’) como
colocar a perna nua para fora das roupas de coisa através de seu exame. Mais uma vez, se fosse um recém-nascido desamparado
cama numa fria noite de inverno e recolhê-la portanto, nos contentaremos em dizer que a — essas coisas não apenas soam como um
novamente. Se não houvesse ferrovias para palavra ‘civilização’ descreve a soma integral conto de fadas, mas também constituem uma
abolir as distâncias, meu filho jamais teria das realizações e regulamentos que distin- realização efetiva de todos — ou quase todos
deixado sua cidade natal e eu não precisaria guem nossas vidas das de nossos antepassa- — os desejos de contos de fadas. Todas essas
de telefone para ouvir sua voz; se as viagens dos animais, e que servem a dois intuitos, vantagens ele as pode reivindicar como aqui-
marítimas transoceânicas não tivessem sido a saber: o de proteger os homens contra a sição cultural sua. Há muito tempo atrás, ele
introduzidas, meu amigo não teria partido natureza e o de ajustar os seus relaciona- formou uma concepção ideal de onipotência e
em sua viagem por mar e eu não precisaria mentos mútuos. A fim de aprendermos mais, onisciência que corporificou em seus deuses.
de um telegrama para aliviar minha ansie- reuniremos os diversos aspectos singulares A estes, atribuía tudo que parecia inatingível
dade a seu respeito. Em que consiste a van- da civilização, tal como se apresentam nas aos seus desejos ou lhe era proibido. Pode-se
tagem de reduzir a mortalidade infantil, se comunidades humanas. Agindo desse modo, dizer, portanto, que esses deuses constituíam
é precisamente essa redução que nos impõe não hesitaremos em nos deixar guiar pelos ideais culturais. Hoje, ele se aproximou bas-
a maior coerção na geração de filhos, de tal hábitos lingüísticos ou, como são também tante da consecução desse ideal, ele próprio
maneira que, considerando tudo, não criamos chamados, sentimento lingüístico, na con- quase se tornou um deus. É verdade que isso
mais crianças do que nos dias anteriores ao vicção de que assim estamos fazendo justiça só ocorreu segundo o modo como os ideais
reino da higiene, ao passo que, ao mesmo e discernimentos internos que ainda desa- são geralmente atingidos, de acordo com o
tempo, criamos condições difíceis para nossa fiam sua expressão em termos abstratos. juízo geral da humanidade. Não completa-
vida sexual no casamento e provavelmente A primeira etapa é fácil. Reconhecemos mente; sob certos aspectos, de modo algum;
trabalhamos contra os efeitos benéficos da como culturais todas as atividades e recur- sob outros, apenas pela metade. O homem,
seleção natural? Enfim, de que nos vale uma sos úteis aos homens, por lhes tornarem a por assim dizer, tornou-se uma espécie de
vida longa se ela se revela difícil e estéril em terra proveitosa, por protegerem-nos contra “Deus de prótese”. Quando faz uso de todos
alegrias, e tão cheia de desgraças que só a a violência das forças da natureza, e assim os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeira-
morte é por nós recebida como uma liberta- por diante. Em relação a esse aspecto de ci- mente magnífico; esses órgãos, porém, não
ção? Parece certo que não nos sentimos con- vilização, dificilmente pode haver qualquer cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam
fortáveis na civilização atual, mas é muito dúvida. Se remontarmos suficientemente às muitas dificuldades. Não obstante, ele tem
difícil formar uma opinião sobre se, e em que origens, descobriremos que os primeiros atos o direito de se consolar pensando que esse
grau, os homens de épocas anteriores se sen- de civilização foram a utilização de instru- desenvolvimento não chegará ao fim exata-
tiram mais felizes, e sobre o papel que suas mentos, a obtenção do controle sobre o fogo mente no ano de 1930 A.D. As épocas futuras
condições culturais desempenharam nessa e a construção de habitações.Entre estes, o trarão com elas novos e provavelmente ini-
questão. Sempre tendemos a considerar ob- controle sobre o fogo sobressai como uma re- magináveis grandes avanços nesse campo da
jetivamente a aflição das pessoas — isto é, alização extraordinária e sem precedentes, ao civilização e aumentarão ainda mais a seme-
nos colocarmos, com nossas próprias neces- passo que os outros desbravaram caminhos lhança do homem com Deus. No interesse de
sidades e sensibilidades, nas condições delas, que o homem desde então passou a seguir, e nossa investigação, contudo, não esquecere-
e então examinar quais as ocasiões que nelas cujo estímulo pode ser facilmente percebido. mos que atualmente o homem não se sente
encontraríamos para experimentar felicidade Através de cada instrumento, o homem recria feliz em seu papel de semelhante a Deus.
ou infelicidade. Esse método de examinar seus próprios órgãos, motores ou sensoriais, Reconhecemos, então, que os países atingi-
as coisas, que parece objetivo por ignorar ou amplia os limites de seu funcionamen- ram um alto nível de civilização quando des-
as variações na sensibilidade subjetiva, é, to. A potência motora coloca forças gigan- cobrimos que neles tudo o que pode ajudar
naturalmente, o mais subjetivo possível, de tescas à sua disposição, as quais, como os na exploração da Terra pelo homem e na sua
uma vez que coloca nossos próprios estados seus músculos, ele pode empregar em qual- proteção contra as forças da natureza tudo,
mentais no lugar de quaisquer outros, por quer direção; graças aos navios e aos aviões, emsuma, que é útil para ele — está dispo-
8 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

nível e é passível de ser conseguido. Nesses e como uma coisa será efetuada, e isso de examinar, embora só seja facilmente visível
países, os rios que ameaçam inundar as ter- tal maneira que, em todas as circunstâncias nas atividades científicas e estéticas. Não se
ras são regulados em seu fluxo, e sua água é semelhantes, a hesitação e a indecisão nos pode, porém, duvidar de que as outras ati-
irrigada através de canais para lugares onde são poupadas. Os benefícios da ordem são vidades também correspondem a fortes ne-
ela é escassa. O solo é cuidadosamente culti- incontestáveis. Ela capacita os homens a cessidades dos homens — talvez a necessi-
vado e plantado com a vegetação apropriada, utilizarem o espaço e o tempo para seu me- dades que só se achem desenvolvidas numa
e a riqueza mineral subterrânea é assidua- lhor proveito, conservando ao mesmo tempo minoria. Tampouco devemos permitir sermos
mente trazida à superfície e modelada em as forças psíquicas deles. Deveríamos ter o desorientados por juízos de valor referentes a
implementos e utensílios indispensáveis. Os direito de esperar que ela houvesse ocupa- qualquer religião, qualquer sistema filosófico
meios de comunicação são amplos, rápidos do seu lugar nas atividades humanas desde ou qualquer ideal. Quer pensemos encontrar
e dignos de confiança. Os animais selvagens o início e sem dificuldade, e podemos ficar neles as mais altas realizações do espírito hu-
e perigosos foram exterminados e a criação admirados de que isso não tenha acontecido, mano, quer os deploremos como aberrações,
de animais domésticos floresce. Além dessas, de que, pelo contrário, os seres humanos re- não podemos deixar de reconhecer que onde
porém, exigimos outras coisas da civilização, velem uma tendência inata para o descuido, eles se acham presentes, e, em especial, onde
sendo digno de nota o fato de esperarmos en- a irregularidade e a irresponsabilidade em eles são dominantes, está implícito um alto
contrá-las realizadas nesses mesmos países. seu trabalho, e de que seja necessário um nível de civilização.
Como se estivéssemos procurando repudiar a laborioso treinamento para que aprendam a Resta avaliar o último, mas decerto não o
primeira exigência que fizemos, reconhece- seguir o exemplo de seus modelos celestes. menos importante, dos aspectos caracterís-
mos, igualmente, como um sinal de civiliza- Evidentemente, a beleza, a limpeza e a or- ticos da civilização: a maneira pela qual os
ção, verificar que as pessoas também orien- dem ocupam uma posição especial entre as relacionamentos mútuos dos homens, seus
tam suas preocupações para aquilo que não exigências da civilização. Ninguém susten- relacionamentos sociais, são regulados — re-
possui qualquer valor prático, para o que não tará que elas sejam tão importantes para a lacionamentos estes que afetam uma pessoa
é lucrativo: por exemplo, os espaços verdes vida quanto o controle sobre as forças da na- como próximo, como fonte de auxílio, como
necessários a uma cidade, como playgroun- tureza ou quanto alguns outros fatores com objeto sexual de outra pessoa, como mem-
ds e reservatórios de ar fresco, são também que ainda nos familiarizaremos. No entanto, bro de uma família e de um Estado. Aqui,
ornados de jardins e as janelas das casas, ninguém procurará colocá-las em segundo é particularmente difícil manter-se isento de
decoradas com vasos de flores. De imediato, plano, como se não passassem de trivialida- exigências ideais específicas e perceber aqui-
constatamos que essa coisa não lucrativa des. Que a civilização não se faz acompanhar lo que é civilizado em geral. Talvez possamos
que esperamos que a civilização valorize, é apenas pelo que é útil, já ficou demonstrado começar pela explicação de que o elemento
a beleza. Exigimos que o homem civilizado pelo exemplo da beleza, que não omitimos de civilização entra em cena com a primeira
reverencie a beleza, sempre que a perceba na entre os interesses da civilização. A utilidade tentativa de regular esses relacionamentos
natureza ou sempre que a crie nos objetos da ordem é inteiramente evidente. Quando à sociais. Se essa tentativa não fosse feita,
de seu trabalho manual, na medida em que limpeza, devemos ter em mente aquilo que os relacionamentos ficariam sujeitos à von-
é capaz disso. Mas isso está longe de exaurir também a higiene exige de nós, e podemos tade arbitrária do indivíduo, o que equivale
nossas exigências quanto à civilização. Es- supor que, mesmo anteriormente à profila- a dizer que o homem fisicamente mais forte
peramos, ademais, ver sinais de asseio e de xia científica, a conexão entre as duas não decidiria a respeito deles no sentido de seus
ordem. Não concebemos uma cidade do inte- era de todo estranha ao homem. Contudo, a próprios interesses e impulsos instintivos.
rior da Inglaterra, na época de Shakespeare, utilidade não explica completamente esses Nada se alteraria se, por sua vez, esse homem
como possuidora de um alto nível cultural, esforços; deve existir algo mais que se en- forte encontrasse alguém mais forte do que
quando lemos que havia um grande monte contre em ação. ele. A vida humana em comum só se torna
de esterco em frente à casa de seu pai, em Nenhum aspecto, porém, parece caracteri- possível quando se reúne uma maioria mais
Stratford; também ficamos indignados e cha- zar melhor a civilização do que sua estima forte do que qualquer indivíduo isolado e que
mamos de ‘bárbaro’ (o oposto de civilizado), e seu incentivo em relação às mais elevadas permanece unida contra todos os indivíduos
quando nos deparamos com as veredas do atividades mentais do homem — suas rea- isolados. O poder dessa comunidade é então
Wiener Wald cobertas de papéis velhos. A su- lizações intelectuais, científicas e artísticas estabelecido como ‘direito’, em oposição ao
jeira de qualquer espécie nos parece incom- — e o papel fundamental que atribui às poder do indivíduo, condenado como ‘força
patível com a civilização. Da mesma forma, idéias na vida humana. Entre essas idéias, bruta’. A substituição do poder do indivíduo
estendemos nossa exigência de limpeza ao em primeiro lugar se encontram os sistemas pelo poder de uma comunidade constitui o
corpo humano. Ficamos estupefatos ao saber religiosos, cuja complicada estrutura já me passo decisivo da civilização. Sua essência
que o emanava um odor insuportável, mene- esforcei por esclarecer em outra oportunida- reside no fato de os membros da comunida-
amos a cabeça quando, na Isola Bella nos é de. A seguir, vêm as especulações da filosofia de se restringirem em suas possibilidades de
mostrada a minúscula bacia em que Napoleão e, finalmente, o que se poderia chamar de satisfação,ao passo que o indivíduo desco-
se lavava todas as manhãs. Na verdade, não ‘ideais’do homem — suas idéias a respeito de nhece tais restrições. A primeira exigência da
nos surpreende a idéia de estabelecer o em- uma possível perfeição dos indivíduos, dos civilização, portanto, é a da justiça, ou seja,
prego do sabão como um padrão real de civi- povos, ou da humanidade como um todo, e a garantia de que uma lei, uma vez criada,
lização. Isso é igualmente verdadeiro quanto as exigências estabelecidas com fundamen- não será violada em favor de um indivíduo.
à ordem. Assim como a limpeza, ela só se to nessas idéias. O fato de essas criações do Isso não acarreta nada quanto ao valor éti-
aplica às obrasdo homem. Contudo, ao passo homem não serem mutuamente independen- co de tal lei. O curso ulterior do desenvolvi-
que não se espera encontrar asseio na natu- tes, mas, pelo contrário, se acharem estrei- mento cultural parece tender no sentido de
reza, a ordem, pelo contrário, foi imitada a tamente entrelaçadas, aumenta a dificuldade tornar a lei não mais expressão da vontade
partir dela. A observação que o homem fez não apenas de descrevê-las, como também de uma pequena comunidade — uma casta
das grandes regularidades astronômicas não de traçar sua derivação psicológica. Se, de ou camada de uma população ou grupo racial
apenas o muniu de um modelo para a intro- modo bastante geral, supusermos que a for- —, que, por sua vez, se comporta como um
dução da ordem em sua vida, mas também ça motivadora de todas as atividades huma- indivíduo violento frente a outros agrupa-
lhe forneceu os primeiros pontos de partida nas é um esforço desenvolvido no sentido mentos de pessoas, talvez mais numerosos.
para proceder desse modo. A ordem é uma de duas metas confluentes, a de utilidade e O resultado final seria um estatuto legal para
espécie de compulsão a ser repetida, compul- a de obtenção de prazer, teremos de supor o qual todos — exceto os incapazes de in-
são que, ao se estabelecer um regulamento que isso também é verdadeiro quanto às ma- gressar numa comunidade — contribuíram
de uma vez por todas, decide quando, onde nifestações da civilização que acabamos de com um sacrifício de seus instintos, que não
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 9

deixa ninguém — novamente com a mesma ção excretória, por seus órgãos e produtos, Depois que o homem primevo descobriu que
exceção — à mercê da força bruta. transforma-se, no decurso do crescimento, estava literalmente em suas mãos melhorar a
A liberdade do indivíduo não constitui um num grupo de traços que nos são familiares, sua sorte na Terra através do trabalho, não
dom da civilização. Ela foi maior antes da tais como a parcimônia, o sentido da ordem e lhe pode ter sido indiferente que outro ho-
existência de qualquer civilização, muito da limpeza — qualidades que, embora valio- mem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse
embora, é verdade, naquele então não pos- sas e desejáveis em si mesmas, podem ser in- outro homem adquiriu para ele o valor de
suísse, na maior parte, valor, já que dificil- tensificadas até se tornarem acentuadamente um companheiro de trabalho, com quem era
mente o indivíduo se achava em posição de dominantes e produzirem o que se chama de útil conviver. Em época ainda anterior, em
defendê-la. O desenvolvimento da civilização caráter anal. Não sabemos como isso aconte- sua pré-história simiesca, o homem adotara
impõe restrições a ela, e a justiça exige que ce, mas não há dúvida sobre a exatidão da o hábito de formar famílias, e provavelmen-
ninguém fuja a essas restrições. O que se faz descoberta. Ora, vimos que a ordem e a lim- te os membros de sua família foram os seus
sentir numa comunidade humana como de- peza constituem exigências importantes de primeiros auxiliares. Pode-se supor que a
sejo de liberdade pode ser sua revolta con- civilização, embora sua necessidade vital não formação de famílias deveu-se ao fato de ter
tra alguma injustiça existente, e desse modo seja muito aparente, da mesma forma que ocorrido um momento em que a necessidade
esse desejo pode mostrar-se favorável a um revelam indesejáveis como fonte de prazer. de satisfação genital não apareceu mais como
maior desenvolvimento da civilização; pode Nesse ponto, não podemos deixar de ficar im- um hóspede que surge repentinamente e do
permanecer compatível com a civilização. pressionados pela semelhança existente en- qual, após a partida, não mais se ouve falar
Entretanto, pode também originar-se dos tre os processos civilizatórios e o desenvol- por longo tempo, mas que, pelo contrário,
remanescentes de sua personalidade ori- vimento libidinal do indivíduo. Outros ins- se alojou como um inquilino permanente.
ginal, que ainda não se acha domada pela tintos [além do erotismo anal] são induzidos Quando isso aconteceu, o macho adquiriu
civilização, e assim nela tornar-se a base da a deslocar as condições de sua satisfação, a um motivo para conservar a fêmea junto de
hostilidade à civilização. O impulso de liber- conduzi-las para outros caminhos. Na maio- si, ou, em termos mais gerais, seus objetos
dade, portanto, é dirigido contra formas e ria dos casos, esse processo coincide com o sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea,
exigências específicas da civilização ou con- da sublimação (dos fins instintivos), com que não querendo separar-se de seus rebentos
tra a civilização em geral. Não parece que nos achamos familiarizados; noutros, porém, indefesos, viu-se obrigada, no interesse de-
qualquer influência possa induzir o homem a pode diferenciar-se dele. A sublimação do les, a permanecer com o macho mais forte.
transformar sua natureza na de uma térmita. instinto constitui um aspecto particularmen- Na família primitiva, falta ainda uma carac-
Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua te evidente do desenvolvimento cultural; é terística essencial da civilização. A vontade
reivindicação à liberdade individual contra ela que torna possível às atividades psíquicas arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita.
a vontade do grupo. Grande parte das lutas superiores, científicas, artísticas ou ideológi- Em Totem e Tabu [1912-13], tentei demons-
da humanidade centralizam-se em torno da cas, o desempenho de um papel tão impor- trar o caminho que vai dessa família à etapa
tarefa única de encontrar uma acomodação tante na vida civilizada. Se nos rendêssemos subseqüente, a da vida comunal, sob a forma
conveniente — isto é, uma acomodação que a uma primeira impressão, diríamos que a de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os
traga felicidade — entre essa reivindicação sublimação constitui uma vicissitude que foi filhos descobriram que uma combinação pode
do indivíduo e as reivindicações culturais do imposta aos instintos de forma total pela ci- ser mais forte do que um indivíduo isolado.
grupo, e um dos problemas que incide sobre vilização. Seria prudente refletir um pouco A cultura totêmica baseia-se nas restrições
o destino da humanidade é o de saber se tal mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmen- que os filhos tiveram de impor-se mutua-
acomodação pode ser alcançada por meio de te — e isso parece o mais importante de tudo mente, a fim de conservar esse novo estado
alguma forma específica de civilização ou se —, é impossível desprezar o ponto até o qual de coisas. Os preceitos do tabu constituíram
esse conflito é irreconciliável. a civilização é construída sobre uma renúncia o primeiro ‘direito’ ou ‘lei’. A vida comuni-
Permitindo que o sentimento comum assu- ao instinto, o quanto ela pressupõe exata- tária dos seres humanos teve, portanto, um
misse o papel de nosso guia quanto a decidir mente a não-satisfação (pela opressão, re- fundamento duplo: a compulsão para o tra-
sobre quais aspectos da vida humana devem pressão, ou algum outro meio?) de instintos balho, criada pela necessidade externa, e o
ser encarados como civilizados, conseguimos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina poder do amor, que fez o homem relutar em
esboçar uma impressão bastante clara do o grande campo dos relacionamentos sociais privar-se de seu objeto sexual — a mulher
quadro geral da civilização; contudo, é ver- entre os seres humanos. Como já sabemos, — e a mulher, em privar-se daquela parte
dade que, até agora, não descobrimos nada é a causa da hostilidade contra a qual todas de si própria que dela fora separada — seu
que já não fosse universalmente conhecido. as civilizações têm de lutar. Também ela fará filho. Eros e Ananke [Amor e Necessidade]
Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não exigências severas à nossa obra científica, e se tornaram os pais também da civilização
concordar com o preconceito de que civiliza- muito teremos a explicar aqui. Não é fácil humana. O primeiro resultado da civilização
ção ésinônimo de aperfeiçoamento, de que entender como pode ser possível privar de foi que mesmo um número bastante grande
constitui a estrada para a perfeição, preorde- satisfação um instinto. Não se faz isso im- de pessoas podia agora viver reunido numa
nada para os homens. Agora, porém, apresen- punemente. Se a perda não for economica- comunidade. E, como esses dois grandes po-
ta-se um ponto de vista que pode conduzir mente compensada, pode-se ficar certo de deres cooperaram para isso, poder-se-ia es-
numa direção diferente. O desenvolvimento que sérios distúrbios decorrerão disso. Mas, perar que o desenvolvimento ulterior da civi-
da civilização nos aparece como um processo se quisermos saber qual o valor que pode ser lização progredisse sem percalços no sentido
peculiar que a humanidade experimenta e no atribuído à nossa opinião de que o desenvol- de um controle ainda melhor sobre o mundo
qual diversas coisas nos impressionam como vimento da civilização constitui um proces- externo e no de uma ampliação do número
familiares. Podemos caracterizar esse proces- so especial, comparável à maturação normal de pessoasincluídas na comunidade. É difícil
so referindo-o às modificações que ele oca- do indivíduo, temos, claramente, de atacar compreender como essa civilização pode agir
siona nas habituais disposições instintivas o problema. Devemos perguntar-nos a que sobre os seus participantes de outro modo
dos seres humanos, para satisfazer o que, em influência o desenvolvimento da civilização senão o de torná-los felizes.
suma, constitui a tarefa econômica de nossas deve sua origem, como ela surgiu e o que Antes de continuarmos a indagar sobre de
vidas. Alguns desses instintos são emprega- determinou o seu curso. que direção uma interferência poderia sur-
dos de tal maneira que, em seu lugar, aparece gir, o reconhecimento do amor como um dos
algo que, num indivíduo, descrevemos como IV fundamentos da civilização pode servir de
um traço de caráter. O exemplo mais notável A tarefa parece imensa e, frente a ela, é na- pretexto para uma digressão que nos capa-
desse processo é encontrado no erotismo anal tural que se sinta falta de confiança. Mas citará a preencher uma lacuna por nós dei-
das crianças. Seu interesse original pela fun- aqui estão as conjecturas que pude efetuar. xada num exame anterior,ver [[1]]. Mencio-
10 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

náramos então que a descoberta feita pelo Em cada uma delas, continua a realizar sua os a executarem sublimações instintivas de
homem de que o amor sexual (genital) lhe função de reunir consideráveis quantidades que as mulheres são pouco capazes. Já que
proporcionava as mais intensas experiências de pessoas, de um modo mais intensivo do o homem não dispõe de quantidades ilimi-
de satisfação, fornecendo-lhe, na realidade, que o que pode ser efetuado através do in- tadas de energia psíquica, tem de realizar
o protótipo de toda felicidade, deve ter-lhe teresse pelo trabalho em comum. A manei- suas tarefas efetuando uma distribuição con-
sugerido que continuasse a buscar a satis- ra descuidada com que a linguagem utiliza veniente de sua libido. Aquilo que emprega
fação da felicidade em sua vida seguindo o a palavra ‘amor’ conta com uma justificação para finalidades culturais, em grande parte
caminho das relações sexuais e que tornas- genética. As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao o extrai das mulheres e da vida sexual. Sua
se o erotismo genital o ponto central dessa relacionamento entre um homem e uma mu- constante associação com outros homens e
mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fa- lher cujas necessidades genitais os levaram a a dependência de seus relacionamentos com
zendo assim, ele se tornou dependente, de fundar uma família; também dão esse nome eles o alienam inclusive de seus deveres de
uma forma muito perigosa, de uma parte do aos sentimentos positivos existentes entre marido e de pai. Dessa maneira, a mulher se
mundo externo, isto é, de seu objeto amo- pais e filhos, e entre os irmãos e as irmãs descobre relegada a segundo plano pelas exi-
roso escolhido, expondo-se a um sofrimento de uma família, embora nós sejamos obriga- gências da civilização e adota uma atitude
extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto dos a descrever isso como ‘amor inibido em hostil para com ela. A tendência por parte da
ou o perdesse através da infidelidade ou da sua finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com uma civilização em restringir a vida sexual não é
morte. Por essa razão, os sábios de todas as finalidade inibida foi de fato, originalmen- menos clara do que sua outra tendência em
épocas nos advertiram enfaticamente con- te, amor plenamente sensual, e ainda o é no ampliar a unidade cultural. Sua primeira fase,
tra tal modo de vida; apesar disso, ele não inconsciente do homem. Ambos — o amor totêmica, já traz com ela a proibição de uma
perdeu seu atrativo para grande número de plenamente sensual e o amor inibido em sua escolha incestuosa de objeto, o que consti-
pessoas. finalidade — estendem-se exteriormente à tui, talvez, a mutilação mais drástica que a
Apesar de tudo, uma pequena minoria de família e criam novos vínculos com pessoas vida erótica do homem em qualquer época já
pessoas acha-se capacitada, por sua consti- anteriormente estranhas. O amor genital con- experimentou. Os tabus, as leis e os costumes
tuição, a encontrar felicidade no caminho do duz à formação de novas famílias, e o amor impõem novas restrições, que influenciam
amor. Fazem-se necessárias, porém, altera- inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se tanto homens quanto mulheres. Nem todas
ções mentais de grande alcance na função do tornam valiosas, de um ponto de vista cultu- as civilizações vão igualmente longe nisso, e
amor antes que isso possa acontecer. Essas ral, por fugirem a algumas das limitações do a estrutura econômica da sociedade também
pessoas se tornam independentes da aquies- amor genital, como, por exemplo, à sua ex- influencia a quantidade de liberdade sexual
cência de seu objeto, deslocando o que mais clusividade. No decurso do desenvolvimento, remanescente. Aqui, como já sabemos, a civi-
valorizam do ser amado para o amar; prote- porém, a relação do amor com a civilização lização está obedecendo às leis da necessida-
gem-se contra a perda do objeto, voltando perde sua falta de ambigüidade. Por um lado, de econômica, visto que uma grande quanti-
seu amor, não para objetos isolados, mas para o amor se coloca em oposição aos interesses dade da energia psíquica que ela utiliza para
todos os homens, e, do mesmo modo, evitam da civilização; por outro, esta ameaça o amor seus próprios fins tem de ser retirada da se-
as incertezas e as decepções do amor geni- com restrições substanciais. xualidade. Com relação a isso, a civilização
tal, desviando-se de seus objetivos sexuais e Essa incompatibilidade entre amor e civi- se comporta diante da sexualidade da mesma
transformando o instinto num impulso com lização parece inevitável e sua razão não é forma que um povo, ou uma de suas camadas
uma finalidade inibida. Ocasionam assim, imediatamente reconhecível. Expressa-se a sociais, procede diante de outros que estão
nelas mesmas, um estado de sentimento im- princípio como um conflito entre a família e submetidos à sua exploração. O temor a uma
parcialmente suspenso, constante e afetuo- a comunidade maior a que o indivíduo per- revolta por parte dos elementos oprimidos a
so, que tem pouca semelhança externa com tence. Já percebemos que um dos principais conduz à utilização de medidas de precaução
as tempestuosas agitações do amor genital, esforços da civilização é reunir as pessoas em mais estritas. Um ponto culminante nesse
do qual, não obstante, se deriva. Talvez São grandes unidades. Mas a família não abando- desenvolvimento foi atingido em nossa civi-
Francisco de Assis tenha sido quem mais lon- na o indivíduo. Quanto mais estreitamente lização ocidental européia. Uma comunidade
ge foi na utilização do amor para beneficiar os membros de uma família se achem mutua- cultural acha-se, do ponto de vista psicológi-
um sentimento interno de felicidade. Além mente ligados, com mais freqüência tendem co, perfeitamente justificada em começar por
disso, aquilo que identificamos como sendo a se apartarem dos outros e mais difícil lhes proscrever as manifestações da vida sexual
uma das técnicas para realizar o princípio do é ingressar no círculo mais amplo da cidade. das crianças, pois não haveria perspectiva de
prazer foi amiúde vinculado à religião; essa O modo de vida em comum que é filogeneti- submeter os apetites sexuais dos adultos, se
vinculação pode residir nas remotas regiões camente o mais antigo, e o único que existe os fundamentospara isso não tivessem sido
em que a distinção entre o ego e os objetos, na infância, não se deixará sobrepujar pelo lançados na infância. Contudo, uma comu-
ou entre os próprios objetos, é desprezada. modo cultural de vida adquirido depois. Se- nidade desse tipo de modo algum pode ser
De acordo com determinado ponto de vista parar-se da família torna-se umatarefa com justificada se vai até o ponto de realmente
ético, cuja motivação mais profunda se nos que todo jovem se defronta, e a sociedade repudiar essas manifestações facilmente de-
tornará clara dentro em pouco, essa disposi- freqüentemente o auxilia na solução disso monstráveis e, na verdade, notáveis. Quanto
ção para o amor universal pela humanidade e através dos ritos de puberdade e de inicia- ao indivíduo sexualmente maduro, a escolha
pelo mundo representa o ponto mais alto que ção. Ficamos com a impressão de que se trata de um objeto restringe-se ao sexo oposto,
o homem pode alcançar. Mesmo nessa etapa- de dificuldades inerentes a todo desenvolvi- estando as satisfações extragenitais, em sua
preliminar da discussão, gostaria de apresen- mento psíquico — e, em verdade, no fundo, maioria, proibidas como perversão. A exigên-
tar minhas duas principais objeções a essa a todo desenvolvimento orgânico. cia, demonstrada nessas proibições, de que
opinião. Um amor que não discrimina me Além do mais, as mulheres logo se opõem à haja um tipo único de vida sexual para todos,
parece privado de uma parte de seu próprio civilização e demonstram sua influência re- não leva em consideração as dessemelhanças,
valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, tardante e coibidora — as mesmas mulheres inatas ou adquiridas, na constituição sexual
em segundo lugar, nem todos os homens são que, de início, estabeleceram os fundamen- dos seres humanos; cerceia, em bom número
dignos de amor. tos da civilização pelas reivindicações de seu deles, o gozo sexual, tornando-se assim fon-
O amor que fundou a família continua a amor. As mulheres representam os interesses te de grave injustiça. O resultado de tais me-
operar na civilização, tanto em sua forma da família e da vida sexual. O trabalho de ci- didas restritivas poderia ser que, nas pessoas
original, em que não renuncia à satisfação vilização tornou-se cada vez mais um assun- normais — que não se acham impedidas por
sexual direta, quanto em sua forma modifi- to masculino, confrontando os homens com sua constituição —, a totalidade dos seus in-
cada, como afeição inibida em sua finalidade. tarefas cada vez mais difíceis e compelindo- teresses sexuais fluísse, sem perdas, para os
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 11

canais que são deixados abertos. No entanto, entre dois indivíduos, no qual um terceiro só uma vez que nenhum desses dois tipos de
o próprio amor genital heterossexual, que pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo relacionamento entra em questão onde o pre-
permaneceu isento de proscrição, é restrin- que a civilização depende de relacionamen- ceito de amar meu próximo se acha em jogo.)
gido por outras limitações, apresentadas sob tos entre um considerável número de indiví- Ela merecerá meu amor, se for de tal modo
a forma da insistência na legitimidade e na duos. Quando um relacionamento amoroso se semelhante a mim, em aspectos importantes,
monogamia. A civilização atual deixa claro encontra em seu auge, não resta lugar para que eu me possa amar nela; merecê-lo-á tam-
que só permite os relacionamentos sexuais qualquer outro interesse pelo ambiente; um bém, se for de tal modo mais perfeita do que
na base de um vínculo único e indissolúvel casal de amantes se basta a si mesmo; sequer eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu
entre um só homem e uma só mulher, e que necessitam do filho que têm em comum para próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se
não é de seu agrado a sexualidade como fon- torná-los felizes. Em nenhum outro caso Eros for o filho de meu amigo, já que o sofrimento
te de prazer por si própria, só se achando revela tão claramente o âmago do seu ser, o que este sentiria se algum dano lhe ocorresse
preparada para tolerá-la porque, até o pre- seu intuito de, de mais de um, fazer um úni- seria meu sofrimento também — eu teria de
sente, para ela não existe substituto como co; contudo, quando alcança isso da maneira partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um estra-
meio de propagação da raça humana. proverbial, ou seja, através do amor de dois nho para mim e não conseguir atrair-me por
Naturalmente, isso configura um quadro ex- seres humanos, recusa-se a ir além. um de seus próprios valores, ou por qualquer
tremado. Todos sabem que ele se mostrou in- Até aqui, podemos imaginar perfeitamente significação que já possa ter adquirido para a
xeqüível, mesmo por períodos muito breves. uma comunidade cultural que consista em minha vida emocional, me será muito difícil
Apenas os fracos se submeteram a uma usur- indivíduos duplos como este, que, libidinal- amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo
pação tão ampla de sua liberdade sexual, e as mente satisfeitos em si mesmos, se vinculem assim, pois meu amor é valorizado por todos
naturezas mais fortes só o fizeram mediante uns aos outros através dos elos do trabalho os meus como um sinal de minha preferência
uma condição compensatória, que será pos- comum e dos interesses comuns. Se assim por eles, e seria injusto para com eles, colo-
teriormente mencionada. A sociedade civili- fosse, a civilização não teria que extrair ener- car um estranho no mesmo plano em que eles
zada viu-se obrigada a silenciar sobre muitas gia alguma da sexualidade. Contudo, esse estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse
transgressões que, segundo os seus próprios desejável estado de coisas não existe, nem amor universal) meramente porque ele tam-
princípios, deveria ter punido. Mas, por um nunca existiu. A realidade nos mostra que a bém é um habitante da Terra, assim como o
outro lado, não devemos errar, supondo que, civilização não se contenta com as ligações são um inseto, uma minhoca ou uma serpen-
por não alcançar todos os seus objetivos, que até agora lhe concedemos. Visa a unir te, receio então que sóuma pequena quan-
uma atitude desse tipo por parte da socieda- entre si os membros da comunidade também tidade de meu amor caberá à sua parte — e
de seja inteiramente inócua. A vida sexual do de maneira libidinal e, para tanto, emprega não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo
homem civilizado encontra-se, não obstante, todos os meios. Favorece todos os caminhos julgamento de minha razão, tenho o direito
severamente prejudicada; dá, às vezes, a im- pelos quais identificações fortes possam ser de reter para mim. Qual é o sentido de um
pressão de estar em processo de involução estabelecidas entre os membros da comuni- preceito enunciado com tanta solenidade, se
enquanto função, tal como parece acontecer dade e, na mais ampla escala, convoca a libi- seu cumprimento não pode ser recomendado
com nossos dentes e cabelos. Provavelmen- do inibida em sua finalidade, demodo a forta- como razoável?
te, justifica-se supor que sua importância lecer o vínculo comunal através das relações Através de um exame mais detalhado, descu-
enquanto fonte de sentimentos de felicidade de amizade. Para que esses objetivos sejam bro ainda outras dificuldades. Não meramen-
e, portanto, na realização de nosso objetivo realizados, faz-se inevitável uma restrição à te esse estranho é, em geral, indigno de meu
na vida, diminuiu sensivelmente. Às vezes, vida sexual. Não conseguimos, porém, enten- amor; honestamente, tenho de confessar que
somos levados a pensar que nãose trata ape- der qual necessidade força a civilização a to- ele possui mais direito a minha hostilidade
nas da pressão da civilização, mas de algo mar esse caminho, necessidade que provoca e, até mesmo, meu ódio. Não parece apre-
da natureza da própria função que nos nega o seu antagonismo à sexualidade. Deve haver sentar o mais leve traço de amor por mim e
satisfação completa e nos incita a outros ca- algum fator de perturbação que ainda não não demonstra a mínima consideração para
minhos. Isso pode estar errado; é difícil de- descobrimos. comigo. Se disso ele puder auferir uma van-
cidir. A pista pode ser fornecida por uma das exi- tagem qualquer, não hesitará em me preju-
gências ideais, tal como as denominamos, da dicar; tampouco pergunta a si mesmo se a
V sociedade civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu vantagem assim obtida contém alguma pro-
O trabalho psicanalítico nos mostrou que as próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, porção com a extensão do dano que causa
frustrações da vida sexual são precisamen- conhecida em todo o mundo, é, indubita- em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo
te aquelas que as pessoas conhecidas como velmente, mais antiga que o cristianismo, auferir alguma vantagem; se puder satisfa-
neuróticas não podem tolerar. O neurótico que a apresenta como sua reivindicação mais zer qualquer tipo de desejo com isso, não
cria em seus sintomas satisfações substituti- gloriosa. No entanto, ela não é decerto ex- se importará em escarnecer de mim, em me
vas para si, e estas ou lhe causam sofrimento cessivamente antiga; mesmo já em tempos insultar, me caluniar e me mostrar a superio-
em si próprias, ou se lhe tornam fontes de históricos, ainda era estranha à humanida- ridade de seu poder, e, quanto mais seguro
sofrimento pela criação de dificuldades em de. Se adotarmos uma atitude ingênua para se sentir e mais desamparado eu for, mais,
seus relacionamentos com o meio ambiente com ela, como se a estivéssemos ouvindo com certeza, posso esperar que se comporte
e a sociedade a que pertence. Esse último pela primeira vez, não poderemos reprimir dessa maneira para comigo. Caso se condu-
fato é fácil de compreender; o primeiro nos um sentimento de surpresa e perplexidade. za de modo diferente, caso mostre conside-
apresenta um novo problema. A civilização, Por que deveremos agir desse modo? Que bem ração e tolerância como um estranho, estou
porém, exige outros sacrifícios, além do da isso nos trará? Acima de tudo, como conse- pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo
satisfação sexual. guiremos agir desse modo? Como isso pode e qualquer caso e inteiramente fora de todo
Abordamos a dificuldade do desenvolvimento ser possível? Meu amor, para mim, é algo de e qualquer preceito. Na verdade, se aquele
cultural como sendo uma dificuldade geral valioso, que eu não devo jogar fora sem refle- imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu
de desenvolvimento, fazendo sua origem re- xão. A máxima me impõe deveres para cujo próximo como este te ama’, eu não lhe faria
montar à inércia da libido, à falta de inclina- cumprimento devo estar preparado e dispos- objeções. E há um segundo mandamento que
ção desta para abandonar uma posição antiga to a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, me parece mais incompreensível ainda e que
por outra nova. Dizemos quase a mesma coi- ela tem de merecer meu amor de alguma ma- desperta em mim uma oposição mais forte
sa quando fazemos a antítese entre civiliza- neira. (Não estou levando em consideração o ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus
ção e sexualidade derivar da circunstância de uso que dela posso fazer, nem sua possível inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto,
o amor sexual constituir um relacionamento significação para mim como objeto sexual, de percebo que estou errado em considerá-lo
12 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

como uma imposição maior. No fundo, é a coisas terá de se curvar humildemente ante a comunista; não posso investigar se a abo-
mesma coisa. verdade dessa opinião. lição da propriedade privada é conveniente
Acho que agora posso ouvir uma voz solene A existência da inclinação para a agressão, ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer
me repreendendo: ‘É precisamente porque que podemos detectar em nós mesmos e su- que as premissas psicológicas em que o sis-
teu próximo não é digno de amor, mas, pelo por com justiça que ela está presente nos tema se baseia são uma ilusão insustentável.
contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo outros, constitui o fator que perturba nossos Abolindo a propriedade privada, privamos
como a ti mesmo’. Compreendo então que relacionamentos com o nosso próximo e for- o amor humano da agressão de um de seus
se trata de um caso semelhante ao do Cre- ça a civilização a um tão elevado dispêndio instrumentos, decerto forte, embora, decer-
do quia absurdum.Ora, é muito provável que [de energia]. Em conseqüência dessa mútua to também, não o mais forte; de maneira
meu próximo, quando lhe for prescrito que hostilidade primária dos seres humanos, a alguma, porém, alteramos as diferenças em
me ame como a si mesmo, responda exata- sociedade civilizada se vê permanentemente poder e influência que são mal empregadas
mente como o fiz e me rejeite pelas mesmas ameaçada de desintegração. O interesse pelo pela agressividade, nem tampouco alteramos
razões. Espero que não tenha os mesmos fun- trabalho em comum não a manteria unida; as nada em sua natureza. A agressividade não
damentos objetivos para fazê-lo, mas terá a paixões instintivas são mais fortes que os in- foi criada pela propriedade. Reinou quase
mesma idéia que tenho. Ainda assim, o com- teresses razoáveis. A civilização tem de utili- sem limites nos tempos primitivos, quando
portamento dos seres humanos apresenta di- zar esforços supremos a fim de estabelecer li- a propriedade ainda era muito escassa, e já
ferenças que a ética, desprezando o fato de mites para os instintos agressivos do homem se apresenta no quarto das crianças, quase
que tais diferenças são determinadas, clas- e manter suas manifestações sob controle por antes que a propriedade tenha abandonado
sifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas formações psíquicas reativas. Daí, portanto, sua forma anal e primária; constitui a base
inegáveis diferenças não forem removidas, o emprego de métodos destinados a incitar de toda relação de afeto e amor entre pessoas
a obediência às elevadas exigências éticas as pessoas a identificações e relacionamentos ( com a única exceção, talvez, do relaciona-
acarreta prejuízos aos objetivos da civiliza- amorosos inibidos em sua finalidade, daí a mento da mãe com seu filho homem). Se eli-
ção, por incentivar o ser mau. Não podemos restrição à vida sexual e daí, também, o man- minamos os direitos pessoais sobre a riqueza
deixar de lembrar um incidente ocorrido na damento ideal de amar ao próximo como a si material, ainda permanecem, no campo dos
câmara dos deputados francesa, quando a mesmo, mandamento que é realmente justi- relacionamentos sexuais, prerrogativas fada-
pena capital estava em debate. Um dos mem- ficado pelo fato de nada mais ir tão forte- das a se tornarem a fonte da mais intensa
bros acabara de defender apaixonadamente mente contra a natureza original do homem. antipatia e da mais violenta hostilidade en-
a abolição dela e seu discurso estava sendo A despeito de todos os esforços, esses empe- tre homens que, sob outros aspectos, se en-
recebido com tumultuosos aplausos, quando nhos da civilização até hoje não conseguiram contram em pé de igualdade. Se também re-
uma voz vinda do plenário exclamou: ‘Que muito. Espera-se impedir os excessos mais movermos esse fator, permitindo a liberdade
messieurs les assassins commencent! grosseiros da violência brutal por si mesma, completa da vida sexual, e assim abolirmos
O elemento de verdade por trás disso tudo, supondo-se o direito de usar a violência con- a família, célula germinal da civilização, não
elemento que as pessoas estão tão dispostas tra os criminosos; no entanto, a lei não é podemos, é verdade, prever com facilidade
a repudiar, é que os homens não são criaturas capaz de deitar a mão sobre as manifestações quais os novos caminhos que o desenvolvi-
gentis que desejam ser amadas e que, no má- mais cautelosas e refinadas da agressividade mento da civilização vai tomar; uma coisa,
ximo, podem defender-se quando atacadas; humana. Chega a hora em que cada um de porém, podemos esperar; é que, nesse caso,
pelo contrário, são criaturas entre cujos do- nós tem de abandonar, como sendo ilusões, essa característica indestrutível da natureza
tes instintivos deve-se levar em conta uma as esperanças que, na juventude, depositou humana seguirá a civilização.
poderosa quota de agressividade. Em resul- em seus semelhantes, e aprende quanta di- Evidentemente, não é fácil aos homens aban-
tado disso, o seu próximo é, para eles, não ficuldade e sofrimento foram acrescentados donar a satisfação dessa inclinação para a
apenas um ajudante potencial ou um objeto à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo agressão. Sem ela, eles não se sentem confor-
sexual, mas também alguém que os tenta a tempo, seria injusto censurar a civilização táveis. A vantagem que um grupo cultural,
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a ex- por tentar eliminar da atividade humana a comparativamente pequeno, oferece, con-
plorar sua capacidade de trabalho sem com- luta e a competição. Elas são indubitavel- cedendo a esse instinto um escoadouro sob
pensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu mente indispensáveis. Mas oposição não é a forma de hostilidade contra intrusos, não
consentimento, apoderar-se de suas posses, necessariamente inimizade; simplesmente, é nada desprezível. É sempre possível unir
humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá- ela é mal empregada e tornada uma ocasião um considerávelnúmero de pessoas no amor,
lo e matá-lo. — Homo homini lupus. Quem, para a inimizade. enquanto sobrarem outras pessoas para re-
em face de toda sua experiência da vida e Os comunistas acreditam ter descoberto o ceberem as manifestações de sua agressivi-
da história, terá a coragem de discutir essa caminho para nos livrar de nossos males. Se- dade. Em outra ocasião, examinei o fenôme-
asserção? Via de regra, essa cruel agressivi- gundo eles, o homem é inteiramente bom e no no qual são precisamente comunidades
dade espera por alguma provocação, ou se bem disposto para como seu próximo, mas com territórios adjacentes, e mutuamente
coloca a serviço de algum outro intuito, cujo a instituição da propriedade privada corrom- relacionadas também sob outros aspectos,
objetivo também poderia ter sido alcançado peu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza que se empenham em rixas constantes, ri-
por medidas mais brandas. Em circunstân- privada confere poder ao indivíduo e, com dicularizando-se umas às outras, como os
cias que lhe são favoráveis, quando as forças ele, a tentação de maltratar o próximo, ao espanhóis e os portugueses por exemplo, os
mentais contrárias que normalmente a ini- passo que o homem excluído da posse está alemães do Norte e os alemães do Sul, os in-
bem se encontram fora de ação, ela também fadado a se rebelar hostilmente contra seu gleses e os escoceses, e assim por diante. Dei
se manifesta espontaneamente e revela o opressor. a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das
homem como uma besta selvagem, a quem Se a propriedade privada fosse abolida, pos- pequenas diferenças’, denominação que não
a consideração para com sua própria espécie suída em comum toda a riqueza e permitida ajuda muito a explicá-lo. Agora podemos ver
é algo estranho. Quem quer que relembre as a todos a partilha de sua fruição, a má von- que se trata de uma satisfação conveniente
atrocidades cometidas durante as migrações tade e a hostilidade desapareceriam entre os e relativamente inócua da inclinação para
raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos homens. Como as necessidades de todos se- a agressão, através da qual a coesão entre
povos conhecidos como mongóis sob a chefia riam satisfeitas, ninguém teria razão alguma os membros da comunidade é tornada mais
de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura para encarar outrem comoinimigo; todos, de fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, es-
de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou boa vontade, empreenderiam o trabalho que palhado por toda a parte, prestou os mais
mesmo, na verdade, os horrores da recente se fizesse necessário. Não estou interessado úteis serviços às civilizações dos países que
guerra mundial,quem quer que relembre tais em nenhuma crítica econômica do sistema os acolheram; infelizmente, porém, todos os
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 13

massacres de judeus na Idade Média não bas- e acima das tarefas de restringir os instintos, essas discrepâncias foram superadas; afinal
taram para tornar o período mais pacífico e para as quais estamos preparados, reivindi- de contas, o sadismo fazia claramente parte
mais seguro para seus semelhantes cristãos. ca nossa atenção o perigo de um estado de da vidasexual, em cujas atividades a afeição
Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza podia ser substituída pela crueldade. A neu-
o amor universal entre os homens como o psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais rose foi encarada como o resultado de uma
fundamento de sua comunidade cristã, uma ameaçador onde os vínculos de uma socie- luta entre o interesse de autopreservação e
extrema intolerância por parte da cristanda- dade são principalmente constituídos pelas as exigências da libido, luta da qual o ego
de para com os que permaneceram fora dela identificações dos seus membros uns com os saiu vitorioso, ainda que ao preço de graves
tornou-se uma conseqüência inevitável. Para outros, enquanto que indivíduos do tipo de sofrimentos e renúncias.
os romanos, que não fundaram no amor sua um líder não adquirem a importância que Todo analista admitirá que, ainda hoje, essa
vida comunal como Estado, a intolerância lhes deveria caber na formação de um gru- opinião não soa como um erro há muito tem-
religiosa era algo estranho, embora, entre po. O presente estado cultural dos Estados po abandonado. Não obstante, alterações
eles, a religião fosse do interesse do Estado e Unidos da América nos proporcionaria uma nela se tornaram essenciais, à medida que
este se achasse impregnado dela. Tampouco boa oportunidade para estudar o prejuízo à nossas investigações progrediam das forças
constituiu uma possibilidade inexeqüível que civilização, que assim é de se temer. Evitarei, reprimidas para as repressoras, dos instin-
o sonho de um domínio mundial germânico porém, a tentação de ingressar numa crítica tos objetais para o ego. O decisivo passo à
exigisse o anti-semitismo como seu comple- da civilização americana; não desejo dar a frente consistiu na introdução do conceito
mento, sendo, portanto, compreensível que a impressão de que eu mesmo estou empregan- de narcisismo, isto é, a descoberta de que o
tentativa de estabelecer uma civilização nova do métodos americanos. próprio ego se acha catexizado pela libido,
e comunista na Rússia encontre o seu apoio de que o ego, na verdade, constitui o reduto
psicológico na perseguição aos burgueses. VI original dela e continua a ser, até certo pon-
Não se pode senão imaginar, com preocupa- Em nenhum de meus trabalhos anteriores to, seu quartel-general. Essa libido narcísica
ção, sobre o que farão os soviéticos depois tive, tão forte quanto agora, a impressão de se volta para os objetos, tornando-se assim
que tiverem eliminado seus burgueses. que o que estou descrevendo pertence ao co- libido objetal, e podendo transformar-se no-
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, nhecimento comum e de que estou desper- vamente em libido narcísica. O conceito do
não apenas à sexualidade do homem, mas diçando papel e tinta, ao mesmo tempo que narcisismo possibilitou a obtenção de uma
também à sua agressividade, podemos com- usando o trabalho e o material do tipógrafo compreensão analítica das neuroses traumá-
preender melhor porque lhe é difícil ser fe- e do impressor para expor coisas que, na rea- ticas, de várias das afecções fronteiriças às
liz nessa civilização. Na realidade, o homem lidade, são evidentes por si mesmas. Por essa psicoses, bem como destas últimas. Não foi
primitivo se achava em situação melhor, sem razão, ficaria feliz em desenvolver o tema se necessário abandonar nossa interpretação
conhecer restrições de instinto. Em contra- isso levasse à conclusão de que o reconhe- das neuroses de transferência como se fos-
partida, suas perspectivas de desfrutar dessa cimento de um instinto agressivo, especial sem tentativas feitas pelo ego para se defen-
felicidade, por qualquer período de tempo, e independente, significa uma alteração da der contra a sexualidade, mas o conceito de
eram muito tênues. O homem civilizado tro- teoria psicanalítica dos instintos. libido ficou ameaçado. Como os instintos do
cou uma parcela de suas possibilidades de Veremos, no entanto, que a coisa não é bem ego também são libidinais, pareceu, por cer-
felicidade por uma parcela de segurança. Não assim, e que se trata simplesmente de foca- to tempo, inevitável que tivéssemos de fazer
devemos esquecer, contudo, que na família lizar de modo mais nítido uma mudança de a libido coincidir com a energia instintiva em
primeva apenas o chefe desfrutava da liber- pensamento há muito tempo introduzida, geral, como C. G. Jung já advogara anterior-
dade instintiva; o resto vivia em opressão seguindo-a até suas últimas conseqüências. mente. Não obstante, ainda permanecia em
servil.Naquele período primitivo da civiliza- De todas as partes lentamente desenvolvidas mim uma espécie de convicção, para a qual
ção, o contraste entre uma minoria que goza- da teoria analítica, a teoria dos instintos foi ainda não me considerava capaz de encontrar
va das vantagens da civilização e uma maio- a que mais penosa e cautelosamente progre- razões, de que os instintos não podiam ser
ria privada dessas vantagens era, portanto, diu. Contudo, essa teoria era tão indispensá- todos da mesma espécie. Meu passo seguinte
levada a seus extremos. Quanto aos povos vel a toda a estrutura, que algo tinha de ser foi dado em Mais Além do Princípio do Prazer
primitivos que ainda hoje existem, pesquisas colocado em seu lugar. No que constituía, a (1920g), quando, pela primeira vez, a com-
cuidadosas mostraram que sua vida instin- princípio, minha completa perplexidade, to- pulsão para repetir e o caráter conservador
tiva não é, de maneira alguma, passível de mei como ponto de partida uma expressão do da vida instintiva atraíram minha atenção.
ser invejada por causa de sua liberdade. Está poeta-filósofo Schiller: ‘são a fome e o amor Partindo de especulações sobre o começo da
sujeita a restrições de outra espécie, talvez que movem o mundo’. A fome podia ser vista vida e de paralelos biológicos, concluí que,
mais severas do que aquelas que dizem res- como representando os instintos que visam a ao lado do instinto para preservar a subs-
peito ao homem moderno. preservar o indivíduo, ao passo que o amor se tância viva e para reuni-la em unidades cada
Quando, com toda justiça, consideramos fa- esforça na busca de objetos, e sua principal vez maiores, deveria haver outro instinto,
lho o presente estado de nossa civilização, função, favorecida de todos os modos pela na- contrário àquele, buscando dissolver essas
por atender de forma tão inadequada às nos- tureza, é a preservação da espécie. Assim, de unidades e conduzi-las de volta a seu es-
sas exigências de um plano de vida que nos início, os instintos do ego e os instintos ob- tado primevo e inorgânico. Isso equivalia a
torne felizes, e por permitir a existência de jetais se confrontavam mutuamente. Foi para dizer que, assim como Eros, existia também
tanto sofrimento, que provavelmente poderia denotar a energia destes últimos, e somente um instinto de morte. Os fenômemos da vida
ser evitado; quando, com crítica impiedosa, deles, que introduzi o termo ‘libido’. Assim, podiam ser explicados pela ação concorrente,
tentamos pôr à mostra as raízes de sua im- a antítese se verificou entre os instintos do ou mutuamente oposta, desses dois instin-
perfeição, estamos indubitavelmente exer- ego e os instintos ‘libidinais’ do amor (em seu tos. Não era fácil, contudo, demonstrar as
cendo um direito justo, e não nos mostrando sentido mais amplo) que eram dirigidos a um atividades desse suposto instintode morte.
inimigos da civilização. Podemos esperar efe- objeto. Um desses instintos objetais, o instin- As manifestações de Eros eram visíveis e
tuar, gradativamente, em nossa civilização to sádico, destacou-se do restante, é verdade, bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que
alterações tais, que satisfaçam melhor nossas pelo fato de o seu objetivo estar muito longe o instinto de morte operava silenciosamente
necessidades e escapem às nossas críticas. de ser o amar. Ademais, ele se encontrava dentro do organismo, no sentido de sua des-
Mas talvez possamos também nos familiarizar obviamente ligado, sob certos aspectos, aos truição, mas isso, naturalmente, não consti-
com a idéia de existirem dificuldades, ligadas instintos do ego, pois não podia ocultar sua tuía uma prova. Uma idéia mais fecunda era
à natureza da civilização, que não se subme- estreita afinidade com os instintos de domí- a de que uma parte do instinto é desviada
terão a qualquer tentativa de reforma. Além nio que não possuem propósito libidinal. Mas no sentido do mundo externo e vem à luz
14 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

como um instinto de agressividade e destru- mal — a despeito dos protestos da Christian humanidade. Porque isso tem de acontecer,
tividade. Dessa maneira, o próprio instinto Science — com o Seu poder e a Sua bon- não sabemos; o trabalho de Eros é precisa-
podia ser compelido para o serviço de Eros, dade. O Demônio seria a melhor saída como mente este. Essas reuniões de homens devem
no caso de o organismo destruir alguma ou- desculpa para Deus; dessa maneira, ele es- estar libidinalmente ligadas umas às outras.
tra coisa, inanimada ou animada, em vez de taria desempenhando o mesmo papel, como A necessidade, as vantagens do trabalho em
destruir o seu próprio eu (self). Inversamen- agente de descarga econômica, que o judeu comum, por si sós, não as manterão unidas.
te, qualquer restrição dessa agressividade di- desempenha no mundo do ideal ariano. Mas, Mas o natural instinto agressivo do homem,
rigida para fora estaria fadada a aumentar a ainda assim, pode-se responsabilizar Deus a hostilidade de cada um contra todos e a de
autodestruição, a qual, em todo e qualquer pela existência do Demônio, bem como pela todos contra cada um, se opõe a esse pro-
caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se existência da malignidade que este corpori- grama da civilização. Esse instinto agressivo
suspeitar, a partir desse exemplo, que os dois fica. Em vista dessas dificuldades, ser-nos-á é o derivado e o principal representante do
tipos de instinto raramente — talvez nunca mais aconselhável, nas ocasiões apropriadas, instinto de morte, que descobrimos lado a
— aparecem isolados um do outro, mas que fazer uma profunda reverência à natureza lado de Eros e que com este divide o domínio
estão mutuamente mesclados em proporções profundamente moral da humanidade; isso do mundo. Agora, penso eu, o significado da
variadas e muito diferentes, tornando-se as- nos ajudará a sermos populares e, por causa evolução da civilização não mais nos é obs-
sim irreconhecíveis para nosso julgamento. disso, muita coisa nos será perdoada. O nome curo. Ele deve representar a luta entre Eros e
No sadismo, há muito tempo de nós conheci- ‘libido’ pode mais uma vez ser utilizado para a Morte, entre o instinto de vida e o instinto
do como instinto componente da sexualida- denotar as manifestações do poder de Eros, de destruição, tal como ela se elabora na es-
de, teríamos à nossa frente um vínculo desse a fim de distingui-las da energia do instinto pécie humana. Nessa luta consiste essencial-
tipo particularmente forte, isto é, um vínculo de morte. Deve-se confessar que temos uma mente toda a vida, e, portanto, a evolução
entre as tendências para o amor e o instinto dificuldade muito maior em apreender esse da civilização pode ser simplesmente descrita
destrutivo, ao passo que sua contrapartida, o instinto; podemos apenas suspeitá-lo, por como a luta da espécie humana pela vida. E
masoquismo, constituiria uma união entre a assim dizer, como algo situado em segundo é essa batalha de gigantes que nossas babás
destrutividade dirigida para dentro e a sexu- plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a tentam apaziguar com sua cantiga de ninar
alidade, união que transforma aquilo que, de menos que sua presença seja traída pelo fato sobre o Céu.
outro modo, é uma tendência imperceptível, de estar ligado a Eros. É no sadismo — onde
numa outra conspícua e tangível. o instinto de morte deforma o objetivo eróti- VII
A afirmação da existência de um instinto de co em seu próprio sentido, embora, ao mes- Por que nossos parentes, os animais, não
morte ou de destruição deparou-se com re- mo tempo, satisfaça integralmente o impul- apresentam uma luta cultural desse tipo?
sistências, inclusive em círculos analíticos; so erótico — que conseguimos obter a mais Não sabemos. Provavelmente alguns deles
estou ciente de que existe, antes, uma incli- clara compreensão interna (insight) de sua — as abelhas, as formigas, as térmitas —
nação freqüente a atribuir o que é perigoso natureza e de sua relação com Eros. Contudo, batalharam durante milhares de anos antes
e hostil no amor a uma bipolaridade origi- mesmo onde ele surge sem qualquer intuito de chegarem às instituições estatais, à dis-
nal de sua própria natureza. A princípio, foi sexual, na mais cega fúria de destrutividade, tribuição de funções e às restrições ao indiví-
apenas experimentalmente que apresentei não podemos deixar de reconhecer que a sa- duo pelas quais hoje os admiramos. Constitui
as opiniões aqui desenvolvidas, mas, com o tisfação do instinto se faz acompanhar por um sinal de nossa condição atual o fato de
decorrer do tempo, elas conseguiram tal po- um grau extraordinariamente alto de fruição sabermos, por nossos próprios sentimentos,
der sobre mim, que não posso mais pensar de narcísica, devido ao fato de presentear o ego que não nos sentiríamos felizes em quaisquer
outra maneira. Para mim, elas são muito mais com a realização de antigos desejos de onipo- desses Estados animais ou em qualquer dos
úteis, de um ponto de vista teórico do que tência deste último. O instinto de destruição, papéis neles atribuídos ao indivíduo. No caso
quaisquer outras possíveis; fornecem aque- moderado e domado, e, por assim dizer, inibi- das outras espécies animais, pode ser que um
la simplificação, sem ignorar ou violentar os do em sua finalidade, deve, quando dirigido equilíbrio temporário tenha sido alcançado
fatos, pela qual nos esforçamos no trabalho para objetos, proporcionar ao ego a satisfação entre as influências de seu meio ambiente e
científico. Sei que no sadismo e no masoquis- de suas necessidades vitais e o controle sobre os instintos mutuamente conflitantes dentro
mo sempre vimos diante de nós manifesta- a natureza. Como a afirmação da existência delas, havendo ocorrido assim uma cessação
ções do instinto destrutivo (dirigidas para do instinto se baseia principalmente em fun- de desenvolvimento. Pode ser que no homem
fora e para dentro), fortemente mescladas ao damentos teóricos, temos também de admitir primitivo um novo acréscimo de libido tenha
erotismo, mas não posso mais entender como que ela não se acha inteiramente imune a provocado um surto renovado de ativida-
foi que pudemos ter desprezado a ubiqüida- objeções teóricas. Mas é assim que as coisas de por parte do instinto destrutivo. Temos
de da agressividade e da destrutividade não se nos apresentam atualmente, no presente aqui muitas questões para as quais ainda não
eróticas e falhado em conceder-lhe o devi- estado de nosso conhecimento; a pesquisa e existe resposta.
do lugar em nossa interpretação da vida. (O a reflexão futuras indubitavelmente trarão Outra questão nos interessa mais de perto.
desejo de destruição, quando dirigido para novas luzes decisivas para esse tema. Quais os meios que a civilização utiliza para
dentro, de fato foge, grandemente à nossa Em tudo o que se segue, adoto, portanto, inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-
percepção, a menos que estejarevestido de o ponto de vista de que a inclinação para a la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos
erotismo.) Recordo minha própria atitude de- agressão constitui, no homem, uma dispo- familiarizamos com alguns desses métodos,
fensiva quando a idéia de um instinto de des- sição instintiva original e auto-subsistente, mas ainda não com aquele que parece ser o
truição surgiu pela primeira vez na literatura e retorno à minha opinião,ver [[1]] de que mais importante. Podemos estudá-lo na his-
psicanalítica, e quanto tempo levou até que ela é o maior impedimento à civilização. Em tória do desenvolvimento do indivíduo. O
eu me tornasse receptivo a ela. Que outros determinado ponto do decorrer dessa investi- que acontece neste para tornar inofensivo
tenham demonstrado, e ainda demonstrem, gação ver [[1]], fui conduzido à idéia de que seu desejo de agressão? Algo notável, que
a mesma atitude de rejeição, surpreende- a civilização constituía um processo especial jamais teríamos adivinhado e que, não obs-
me menos, pois ‘as criancinhas não gostam’ que a humanidade experimenta, e ainda me tante, é bastante óbvio. Sua agressividade é
quando se fala na inata inclinação humana acho sob a influência dela. Posso agora acres- introjetada, internalizada; ela é, na realida-
para a ‘ruindade’, a agressividade e a destru- centar que a civilização constitui um proces- de, enviada de volta para o lugar de onde
tividade, e também para a crueldade. Deus so a serviço de Eros, cujo propósito é combi- proveio, isto é, dirigida no sentido de seu
nos criou à imagem de Sua própria perfei- nar indivíduos humanos isolados, depois fa- próprio ego. Aí, é assumida por uma parte
ção; ninguém deseja que lhe lembrem como mílias e, depois ainda, raças, povos e nações do ego, que se coloca contra o resto do ego,
é difícil reconciliar a inegável existência do numa únicagrande unidade, a unidade da como superego, e que então, sob a forma de
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 15

‘consciência’, está pronta para pôr em ação ele nunca pode ser mais do que isso, e em do o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua
contra o ego a mesma agressividade rude que muitos adultos ele só se modifica até o ponto alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva
o ego teria gostado de satisfazer sobre outros em que o lugar do pai ou dos dois genitores as exigências de sua consciência, impõe-se
indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre é assumido pela comunidade humana mais abstinência e se castiga com penitências. Po-
o severo superego e o ego, que a ele se acha ampla. Por conseguinte, tais pessoas habitu- vos inteiros se comportaram dessa maneira,
sujeito, é por nós chamada de sentimento de almente se permitem fazer qualquer coisa má e ainda se comportam. Isso, contudo, é facil-
culpa; expressa-se como uma necessidade de que lhes prometa prazer, enquanto se sentem mente explicado pelo estágio infantil origi-
punição. A civilização, portanto, consegue seguras de que a autoridade nada saberá a nal da consciência, o qual, como vemos, não
dominar o perigoso desejo de agressão do respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só é abandonado após a introjeção no superego,
indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o têm medo de serem descobertas. A sociedade persistindo lado a lado e por trás dele. O Des-
e estabelecendo no seu interior um agente atual, geralmente, vê-se obrigada a levar em tino é encarado como um substituto do agen-
para cuidar dele, como uma guarnição numa conta esse estado mental. Uma grande mu- te parental. Se um homem é desafortunado,
cidade conquistada. dança só se realiza quando a autoridade é isso significa que não é mais amado por esse
Quanto à origem do sentimento de culpa, as internalizada através do estabelecimento de poder supremo, e, ameaçado por essa falta de
opiniões do analista diferem das dos outros um superego. Os fenômenos da consciência amor, mais uma vez se curva ao representan-
psicólogos, embora também ele não ache fácil atingem então um estágio mais elevado. Na te paterno em seu superego, representante
descrevê-lo. Inicialmente, se perguntarmos realidade, então devemos falar de consciên- que, em seus dias de boa sorte estava pronto
como uma pessoa vem a ter sentimento de- cia ou de sentimento de culpa. Nesse ponto, a desprezar. Esse fato se torna especialmente
culpa, chegaremos a uma resposta indiscutí- também, o medo de ser descoberto se extin- claro quando o Destino é encarado segundo o
vel: uma pessoa sente-se culpada (os devotos gue; além disso, a distinção entre fazer algo sentido estritamente religioso de nada mais
diriam ‘pecadora’) quando fez algo que sabe mau e desejar fazê-lo desaparece inteiramen- ser do que uma expressão da Vontade Divina.
ser ‘mau’. Reparamos, porém, em quão pouco te, já que nada pode ser escondido do supe- O povo de Israel acreditava ser o filho favo-
essa resposta nos diz. Talvez, após certa he- rego, sequer os pensamentos. É verdade que rito de Deus e, quando o grande Pai fez com
sitação, acrescentemos que, mesmo quando a seriedade da situação, de um ponto de vista que infortúnios cada vez maiores desabassem
a pessoa não fez realmente uma coisa má, real, se dissipou, pois a nova autoridade, o sobre seu povo, jamais a crença em Seu re-
mas apenas identificou em si uma intenção superego, ao que saibamos, não tem motivos lacionamento com eles se abalou, nem o Seu
de fazê-la, ela pode encarar-se como culpa- para maltratar o ego, com o qual está intima- poder ou justiça foi posto em dúvida. Pelo
da. Surge então a questão de saber por que mente ligado; contudo, a influência genéti- contrário, foi então que surgiram os profetas,
a intenção é considerada equivalente ao ato. ca, que conduz à sobrevivência do que pas- que apontaram a pecaminosidade desse povo,
Ambos os casos, contudo, pressupõem que sou e foi superado, faz-se sentir no fato de, e, de seu sentimento de culpa, criaram-se os
já se tenha reconhecido que o que é mau é fundamentalmente, as coisas permanecerem mandamentos superestritos de sua religião
repreensível, é algo que não deve ser feito. como eram de início. O superego atormenta o sacerdotal. É digno de nota o comportamen-
Como se chega a esse julgamento? Podemos ego pecador com o mesmo sentimento de an- to tão diferente do homem primitivo. Se ele
rejeitar a existência de uma capacidade ori- siedade e fica à espera de oportunidades para se defronta com um infortúnio, não atribui
ginal, por assim dizer, natural de distinguir fazê-lo ser punido pelo mundo externo. a culpa a si mesmo, mas a seu fetiche, que
o bom do mau. O que é mau, freqüentemen- Nesse segundo estágio de desenvolvimento, a evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe
te, não é de modo algum o que é prejudi- consciência apresenta uma peculiaridade que uma surra, em vez de se punir a si mesmo.
cial ou perigoso ao ego; pelo contrário, pode se achava ausente do primeiro e que não é Conhecemos, assim, duas origens do senti-
ser algo desejável pelo ego e prazeroso para mais fácil de explicar, pois quanto mais virtu- mento de culpa: uma que surge do medo de
ele. Aqui, portanto, está em ação uma influ- oso um homem é, mais severo e desconfiado uma autoridade, e outra, posterior, que sur-
ência estranha, que decide o que deve ser é o seu comportamento, de maneira que, em ge do medo dosuperego. A primeira insiste
chamado de bom ou mau. De uma vez que última análise, são precisamente as pessoas numa renúncia às satisfações instintivas; a
os próprios sentimentos de uma pessoa não que levaram mais longe a santidade as que se segunda, ao mesmo tempo em que faz isso
a conduziriam ao longo desse caminho, ela censuram da pior pecaminosidade. Isso signi- exige punição, de uma vez que a continuação
deve ter um motivo para submeter-se a essa fica que a virtude perde direito a uma certa dos desejos proibidos não pode ser escondida
influência estranha. Esse motivo é facilmen- parte da recompensa prometida; o ego dócil e do superego. Aprendemos também o modo
te descoberto no desamparo e na dependên- continente não desfruta da confiança de seu como a severidade do superego — as exigên-
cia dela em relação a outras pessoas, e pode mentor, e é em vão que se esforça, segundo cias da consciência — deve ser entendida.
ser mais bem designado como medo da perda parece, por adquiri-la. Far-se-á imediatamen- Trata-se simplesmente de uma continuação
de amor. Se ela perde o amor de outra pessoa te a objeção de que essas dificuldades são ar- da severidade da autoridade externa, à qual
de quem é dependente, deixa também de ser tificiais, e dir-se-à que uma consciência mais sucedeu e que, em parte, substituiu. Perce-
protegida de uma série de perigos. Acima de estrita e mais vigilante constitui precisamen- bemos agora em que relação a renúncia ao
tudo, fica exposta ao perigo de que essa pes- te a marca distintiva de um homem moral. instinto se acha com o sentimento de culpa.
soa mais forte mostre a sua superioridade sob Além disso, quando os santos se chamam a Originalmente, renúncia ao instinto consti-
forma de punição. De início, portanto, mau si próprios de pecadores, não estão errados tuía o resultado do medo de uma autoridade
é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos — considerando-se as tentações à satisfação externa: renunciava-se às próprias satisfação
faz sentir ameaçados. Por medo dessa perda, instintiva a que se encontram expostos em para não se perder o amor da autoridade.
deve-se evitá-lo. Esta também é a razão por grau especialmente alto —, já que, como Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por
que faz tão pouca diferença que já se tenha todossabem, as tentações são simplesmen- assim dizer, quite com a autoridade e ne-
feito a coisa má ou apenas se pretenda fazê- te aumentadas pela frustração constante, nhum sentimento de culpa permaneceria.
la. Em qualquer um dos casos, o perigo só se ao passo que a sua satisfação ocasional as Quanto ao medo do superego, porém, o caso
instaura, se e quando a autoridade descobri- faz diminuir, ao menos por algum tempo. O é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não
lo, e, em ambos, a autoridade se comporta da campo da ética, tão cheio de problemas, nos basta, pois o desejo persiste e não pode ser
mesma maneira. apresenta outro fato: a má sorte — isto é, a escondido do superego. Assim, a despeito da
Esse estado mental é chamado de ‘má consci- frustração externa — acentua grandemente renúncia efetuada, ocorre um sentimento de
ência’; na realidade, porém, não merece esse o poder da consciência no superego. Enquan- culpa. Isso representa uma grande desvanta-
nome, pois, nessa etapa, o sentimento de cul- to tudo corre bem com um homem, a sua gem econômica na construção de um supere-
pa é, claramente, apenas um medo da perda consciência é lenitiva e permite que o ego go ou, como podemos dizer, na formação de
de amor, uma ansiedade ‘social’. Em crianças, faça todo tipo de coisas; entretanto, quan- uma consciência. Aqui, a renúncia instintiva
16 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

não possui mais um efeito completamente cada agressão de cuja satisfação o indivíduo uma forte influência na formação do supere-
liberador; a continência virtuosa não é mais desiste é assumida pelo superego e aumen- go da criança. Isso significa que, na formação
recompensada com a certeza do amor. Uma ta a agressividade deste (contra o ego). Isso do superego e no surgimento da consciência,
ameaça de infelicidade externa — perda de não se harmoniza bem com o ponto de vista fatores constitucionais inatos e influências
amor e castigo por parte da autoridade ex- segundo o qual a agressividade original da do ambiente real atuam de forma combinada.
terna — foi permutada por uma permanente consciência é uma continuação da severidade O que, de modo algum, é surpreendente; ao
infelicidade interna, pela tensão do senti- da autoridade externa, não tendo, portanto, contrário, trata-se de uma condição etioló-
mento de culpa. nada a ver com a renúncia. Mas a discrepân- gica universal para todos os processos desse
Essas inter-relações são tão complicadas e, ao cia se anulará se postularmos uma derivação tipo. Pode-se também asseverar que, quando
mesmo tempo, tão importantes, que, ao risco diferente para essa primeira instalação da uma criançareage às suas primeiras grandes
de me repetir, as abordarei ainda de outro agressividade do superego. É provável que, frustrações instintivas com uma agressivida-
ângulo. A seqüência cronológica, então, seria na criança, se tenha desenvolvido uma quan- de excessivamente forte e um superego cor-
a seguinte. Em primeiro lugar, vem a renún- tidade considerável de agressividade contra a respondentemente severo, ela está seguindo
cia ao instinto, devido ao medo de agressão autoridade, que a impede de ter suas primei- um modelo filogenético e indo além da rea-
por parte da autoridade externa. (É a isso, ras — e, também, mais importantes — sa- ção que seria correntemente justificada, pois
naturalmente, que o medo da perda de amor tisfações, não importando o tipo de privação o pai dos tempos pré-históricos era indubita-
equivale, pois o amor constitui proteção con- instintiva que dela possa ser exigida. Ela, velmente terrível e uma quantidade extrema
tra essa agressão punitiva.) Depois, vem a porém, é obrigada a renunciar à satisfação de agressividade lhe pode ser atribuída. As-
organização de uma autoridade interna e a dessa agressividade vingativa e encontra sim, se passarmos do desenvolvimento indi-
renúncia ao instinto devido ao medo dela, ou saída para essa situação economicamente vidual para o desenvolvimento filogenético,
seja, devido ao medo da consciência. Nessa difícil com o auxílio de mecanismos familia- as diferenças entre as duas teorias da gênese
segunda situação, as más intenções são igua- res. Através da identificação, incorpora a si da consciência ficam menores ainda. Por ou-
ladas às más ações e daí surgem sentimento a autoridade inatacável. Esta transforma-se tro lado, uma nova e importante diferença
de culpa e necessidade de punição. A agres- então em seu superego, entrando na posse de aparece entre esses dois processos de desen-
sividade da consciência continua a agressivi- toda a agressividade que a criança gostaria volvimento. Não podemos afastar a suposição
dade da autoridade. Até aqui, sem dúvida, as de exercer contra ele. O ego da criança tem de que o sentimento de culpa do homem se
coisas são claras; mas onde é que isso deixa de contentar-se com o papel infeliz da auto- origina do complexo edipiano e foi adquirido
lugar para a influência reforçadora do infor- ridade — o pai — que foi assim degradada. quando da morte do pai pelos irmãos reuni-
túnio (da renúncia imposta de fora),ver [[1]] Aqui, como tão freqüentemente acontece, dos em bando. Naquela ocasião, um ato de
e para a extraordinária severidade da consci- a situação [real] é invertida: ‘Se eu fosse o agressão não foi suprimido, mas executado;
ência nas pessoas melhores e mais dóceis ver pai e você fosse a criança, eu otrataria muito foi, porém, o mesmo ato de agressão cuja re-
[[1]]?Já explicamos essasparticularidades da mal’. O relacionamento entre o superego e o pressão na criança se imagina ser a fonte de
consciência, mas provavelmente ainda temos ego constitui um retorno, deformado por um seu sentimento de culpa. Nesse ponto, não
a impressão de que essas explicações não desejo, dos relacionamentos reais existentes me surpreenderei se o leitor exclamar com
atingem o fundo da questão e deixam ainda entre o ego, ainda individido, e um objeto raiva: ‘Então não faz diferença que se mate o
inexplicado um resíduo. Aqui, por fim, surge externo. Isso também é típico. A diferença pai ou não — fica-se com um sentimento de
uma idéia que pertence inteiramente à psi- essencial, porém, é que a severidade original culpa do mesmo jeito! Pedimos licença para
canálise, sendo estranha ao modo comum de do superego não representa — ou não repre- levantar algumas dúvidas. Ou não é verdade
pensar das pessoas. Essa idéia é de um tipo senta tanto — a severidade que dele [do ob- que o sentimento de culpa provém da agres-
que nos capacita a compreender por que o jeto] se experimentou ou que se lhe atribui. sividade reprimida, ou então toda a história
tema geral estava fadado a nos parecer con- Representa, antes, nossa própria agressivida- da morte do pai é uma ficção e os filhos do
fuso e obscuro, pois nos diz que, de início, de para com ele. Se isso é correto, podemos homem primevo não mataram os pais mais
a consciência (ou, de modo mais correto, a verdadeiramente afirmar que, de início, a do que as crianças o fazem atualmente. Além
ansiedade que depois se torna consciência) consciência surge através da repressão de um disso, se não for ficção, mas fato histórico
é, na verdade, a causa da renúncia instintiva, impulso agressivo, sendo subseqüentemente plausível, seria o caso de acontecer algo que
mas que, posteriormente, o relacionamento reforçada por novas repressões do mesmo todos esperam que aconteça, ou melhor, uma
se inverte. Toda renúncia ao instinto torna- tipo. pessoa se sentir culpada porque realmente
se agora uma fonte dinâmica de consciência, Qual destes dois pontos de vista é correto? fez algo que não pode ser justificado. E para
e cada nova renúncia aumenta a severidade O primeiro, que geneticamente parecia tão esse evento, que afinal de contas, constitui
e a intolerância desta última. Se pudésse- inexpugnável, ou o último, que de manei- uma ocorrência cotidiana, a psicanálise ain-
mos colocar isso mais em harmonia com o ra tão bem-vinda apara as arestas da teo- da não forneceu qualquer explicação.’
que já sabemos sobre a história da origem da ria? Claramente, e também pelas provas de Tudo isso é verdade, e temos de corrigir a
consciência, ficaríamos tentados a defender observações diretas, ambos se justificam. omissão. Tampouco existe qualquer grande
a afirmativa paradoxal de que a consciência Não contradizem mutuamente e, até mes- segredo quanto ao assunto. Quando se fica
é o resultado da renúncia instintiva, ou que mo, coincidem em determinado ponto, pois com um sentimento de culpa depois de ter
a renúncia instintiva (imposta a nós de fora) a agressividade vingativa da criança será praticado uma má ação, e por causa dela, o
cria a consciência, a qual, então, exige mais em parte determinada pela quantidade de sentimento deveria, mais propriamente, ser
renúncias instintivas. agressão punitiva que espera do pai. A ex- chamado de remorso. Este se refere apenas
A contradição entre essa afirmativa e o que periência mostra, contudo, que a severidade a um ato que foi cometido, e, naturalmente,
anteriormente dissemos sobre a gênese da do superego que uma criança desenvolve, pressupõe que uma consciência — a presteza
consciência não é, na realidade, tão gran- de maneira nenhuma corresponde à severi- em se sentir culpado — já existia antes que
de, e vemos uma maneira de reduzi-la ainda dade de tratamento com que ela própria se o ato fosse praticado. Um remorso desse tipo,
mais. A fim de facilitar nossa exposição, to- defrontou. A severidade do primeiro parece portanto, jamais pode ajudar-nos a descobrir
memos como exemplo o instinto agressivo e ser independente da do último. Uma criança a origem da consciência e do sentimento de
suponhamos que a renúncia em estudo seja criada de forma muito suave, pode adquirir culpa em geral. O que acontece nesses ca-
sempre uma renúncia à agressão. (Isso, na- uma consciência muito estrita. No entanto, sos cotidianos é geralmente o seguinte: uma
turalmente, só deve ser tomado como uma também seria errado exagerar essa indepen- necessidade instintiva adquire intensidade
suposição temporária.) O efeito da renúncia dência; não é difícil nos convencermos de para alcançar satisfação, a despeito da cons-
instintiva sobre a consciência, então, é que que a severidade da criação também exerce ciência, que, afinal de contas, é limitada em
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 17

sua força, e, com o debilitamentonatural da lência, da eterna luta entre as tendências de ‘sentimento de culpa inconsciente’. A fim de
necessidade, devido a ter sido satisfeita, o amor e de morte, acha-se a ele inextricavel- nos tornarmos inteligíveis para eles, falamos-
equilíbrio anterior de forças é restaurado. A mente ligado um aumento do sentimento de lhes de uma necessidade inconsciente de pu-
psicanálise encontra assim uma justificativa culpa, que talvez atinja alturas que o indiví- nição, na qual o sentimento de culpa encon-
para excluir do presente exame o caso do duo considere difíceis de tolerar. Aqui, somos tra expressão. Apesar disso, sua vinculação a
sentimento de culpa devido ao remorso, por lembrados da comovente denúncia dos ‘Po- uma forma específica de neurose não deve ser
mais freqüentemente que tais casos ocorram deres Celestes’, feita pelo grande poeta: lhr superestimada. Mesmo na neurose obsessiva
e por grande que seja sua importância prá- führt in’s Leben uns hinein,lhr lasst den Ar- há tipos de pacientes que não se dão conta
tica. men schuldig werden,Dann überlasst lhr den de seu sentimento de culpa, ou que apenas
Mas, se o sentimento humano de culpa remon- Pein,Denn iede Schuld rächt sich auf Erden. o sentem como um mal-estar atormentador,
ta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de E bem podemos suspirar aliviados ante o uma espécie de ansiedade, se impedidos de
contas, de um caso de ‘remorso’. Por ventura pensamento de que, apesar de tudo, a alguns praticar certas ações. Deveria ser possível
não devemos supor que [nessa época] uma é concedido salvar, sem esforço, do torveli- chegar a compreender essas coisas, mas, até
consciência e um sentimento de culpa, como nho de seus próprios sentimentos as mais agora, não nos foi possível. Aqui, talvez, nos
pressupomos, já existiam antes daquele fei- profundas verdades, em cuja direção o resto possamos alegrar por termos assinalado que,
to? Se não existiam, de onde então proveio o de nós tem de encontrar o caminho por meio no fundo, o sentimento de culpa nada mais
remorso? Não há dúvida de que esse caso nos de uma incerteza atormentadora e com um é do que uma variedade topográfica da an-
explicaria o segredo do sentimento de culpa intranqüilo tatear. siedade; em suas fases posteriores, coincide
e poria fim às nossas dificuldades. E acredito completamente com o medo do superego. E
que o faz. Esse remorso constituiu o resulta- VIII as relações da ansiedade com a consciência
do da ambivalência primordial de sentimen- Chegando ao fim de sua jornada, o autor se apresentam as mesmas e extraordinárias va-
tos para com o pai. Seus filhos o odiavam, vê obrigado a pedir o perdão dos leitores por riações. A ansiedade está sempre presente,
mas também o amavam. Depois que o ódio não ter sido um guia mais hábil e por não num lugar ou outro, por trás de todo sinto-
foi satisfeito pelo ato de agressão, o amor lhes ter poupado as regiões mais ásperas da ma; em determinada ocasião, porém, toma,
veio para o primeiro plano, no remorso dos estrada e os desconfortáveis détours. Não há ruidosamente, posse da totalidade da cons-
filhos pelo ato. Criou o superego pela iden- dúvida de que isso poderia ter sido feito de ciência, ao passo que, em outra, foi adquiri-
tificação com o pai; deu a esse agente o po- forma melhor. Tentarei, já findando o dia, da. se oculta tão completamente, que somos
der paterno, como uma punição pelo ato de proceder a algumas correções. obrigados a falar de ansiedade inconsciente,
agressão que haviam cometido contra aque- Em primeiro lugar, desconfio que o leitor tem ou, se desejamos ter uma consciência psico-
le, e criou as restrições destinadas a impedir a impressão de que nosso exame do senti- lógica mais clara — visto a ansiedade ser,
uma repetição do ato. E, visto que a incli- mento de culpa quebra a estrutura deste no primeiro caso, simplesmente um senti-
nação à agressividade contra o pai se repe- ensaio; que ocupa espaço demais, de manei- mento —, das possibilidades de ansiedade.
tiu nas gerações seguintes, o sentimento de ra que o resto do tema geral, ao qual não Por conseguinte, é bastante concebível que
culpa também persistiu, cada vez mais forta- se acha sempre estreitamente vinculado, é tampouco o sentimento de culpa produzido
lecido por cada parcela de agressividade que posto de lado. Isso pode ter prejudicado a pela civilização seja percebido como tal, e
era reprimida e transferida para o superego. estrutura do trabalho, mas corresponde fiel- em grande parte permaneça inconsciente, ou
Ora, penso eu, finalmente podemos apreen- mente à minha intenção de representar o apareça como uma espécie de mal-estar, uma
der duas coisas de modo perfeitamente claro: sentimento de culpa como o mais importante insatisfação, para a qual as pessoas buscam
o papel desempenhado pelo amor na origem problema no desenvolvimento da civilização, outras motivações. As religiões, pelo menos,
da consciência e a fatal inevitabilidade do e de demonstrar que o preço que pagamos nunca desprezaram o papel desempenha-
sentimento de culpa. Matar o próprio pai ou por nosso avanço em termos de civilização é do na civilização pelo sentimento de culpa.
abster-se de matá-lo não é, realmente, a coi- uma perda de felicidade pela intensificação Ademais — ponto que deixei de apreciar em
sa decisiva. Em ambos os casos, todos estão do sentimento de culpa.Qualquer coisa que outro trabalho —, elas alegam redimir a hu-
fadados a sentir culpa, porque o sentimento ainda soe estranha a respeito dessa afirma- manidade desse sentimento de culpa, a que
de culpa é expressão tanto do conflito devido ção, que constitui a conclusão final de nossa chamam de pecado. Da maneira pela qual,
à ambivalência, quanto da eterna luta entre investigação, pode ser provavelmente locali- no cristianismo, essa redenção é conseguida
Eros e o instinto de destruição ou morte. Esse zada no relacionamento bastante peculiar — — pela morte sacrificial de uma pessoa isola-
conflito é posto em ação tão logo os homens até agora completamente inexplicado — que da, que, desse modo, toma sobre si mesma a
se defrontem com a tarefa de viverem juntos. o sentimento de culpa mantém com nossa culpa comum a todos —, conseguimos inferir
Enquanto a comunidade não assume outra consciência. No caso comum de remorso, que qual pode ter sido a primeira ocasião em que
forma que não seja a da família, o conflito encaramos como normal, esse sentimento se essa culpa primária, que constitui também o
está fadado a se expressar no complexo edi- torna claramente perceptível para a consci- primórdio da civilização,
piano, a estabelecer a consciência e a criar o ência. Na verdade, estamos habituados a fa- Embora talvez não seja de grande importân-
primeiro sentimento de culpa. Quando se faz lar de uma ‘consciência de culpa’, em vez de cia, não é supérfluo elucidar o significado de
uma tentativa para ampliar a comunidade, um ‘sentimento de culpa’. Nosso estudo das certas palavras, tais como ‘superego’, ‘consci-
o mesmo conflito continua sob formas que neuroses, ao qual, afinal decontas, devemos ência’, ‘sentimento de culpa’, ‘necessidade de
dependem do passado; é fortalecido e resulta as mais valiosas indicações para uma com- punição’ e ‘remorso’, as quais é possível que
numa intensificação adicional do sentimento preensão das condições normais, nos leva de muitas vezes tenhamos utilizado de modo
de culpa. Visto que a civilização obedece a encontro a certas contradições. Numa dessas frouxo e intercambiável. Todas se relacionam
um impulso erótico interno que leva os seres afecções, a neurose obsessiva, o sentimen- ao mesmo estado de coisas, mas denotam
humanos a se unirem num grupo estreita- to de culpa faz-se ruidosamente ouvido na diferentes aspectos seus. O superego é um
mente ligado, ela só pode alcançar seu obje- consciência; domina o quadro clínico e tam- agente que foi por nós inferido e a consciên-
tivo através de um crescente fortalecimento bém a vida do paciente, mal permitindo que cia constitui uma função que, entre outras,
do sentimento de culpa. O que começou em apareça algo mais ao lado dele. Entretanto, atribuímos a esse agente. A função consiste
relação ao pai é completado em relação ao na maioria dos outros casos e formas de neu- em manter a vigilância sobre as ações e as
grupo. Se a civilização constitui o caminho rose, ele permanece completamente incons- intenções do ego e julgá-las, exercendo sua
necessário de desenvolvimento, da família ciente, sem que, por isso, produza efeitos censura. O sentimento de culpa, a severidade
à humanidade como um todo, então, em re- menos importantes. Nossos pacientes não do superego, é, portanto, o mesmo que a se-
sultado do conflito inato surgido da ambiva- acreditam em nós quando lhes atribuímos um veridade da consciência. É a percepção que o
18 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

ego tem de estar sendo vigiado dessa manei- dos a procurar aqui a solução do problema apontaria para a direção por mim prevista.
ra, a avaliação da tensão entre os seus pró- da relação variável em que o sentimento de Sinto-me tentado a extrair uma primeira van-
prios esforços e as exigências do superego. O culpa se acha para com a consciência. Pode- tagem dessa visão mais restrita do caso, apli-
medo desse agente crítico (medo que está no se pensar que o sentimento de culpa surgido cando-a ao processo da repressão. Conforme
fundo de todo relacionamento), a necessida- do remorso por uma ação má deve ser sem- aprendemos, os sintomas neuróticos são, em
de de punição, constitui uma manifestação pre consciente, ao passo que o sentimento de sua essência, satisfações substitutivas para
instintiva por parte do ego, que se tornou culpa originado da percepção de um impulso desejos sexuais não realizados. No decorrer
masoquista sob a influência de um supere- mau pode permanecer inconsciente. Contudo, de nosso trabalho analítico, descobrimos,
go sádico; é, por assim dizer, uma parcela do a resposta não é tão simples assim. A neurose para nossa surpresa, que talvez toda neurose
instinto voltado para a destruição interna obsessiva fala energicamente contra ela. oculte uma quota de sentimento inconscien-
presente no ego, empregado para formar uma A segunda contradição se referia à energia te de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os
ligação erótica com o superego. Não devemos agressiva da qual supomos dotado o supe- sintomas, fazendo uso deles como punição.
falar de consciência até que um superego se rego. Segundo determinado ponto de vista, Agora parece plausível formular a seguinte
ache demonstravelmente presente. Quanto essa energia simplesmente continua a ener- proposição: quando uma tendência instintiva
ao sentimento de culpa, temos de admitir gia punitiva da autoridade externa e a man- experimenta a repressão, seus elementos libi-
que existe antes do superego e, portanto, tém viva na mente,ver [[1]], ao passo que, de dinais são transformadosem sintomas e seus
antes da consciência também. Nessa ocasião, acordo com outra opinião, ela consiste, pelo componentes agressivos em sentimento de
ele é expressão imediata do medo da autori- contrário, na própria energia agressiva que culpa. Mesmo que essa proposição não passe
dade externa, um reconhecimento da tensão não foi uti lizada e que agora se dirige contra de uma aproximação mediana à verdade, é
existente entre o ego e essa autoridade. É o essa autoridade inibidora,ver [[1]]. A primei- digna de nosso interesse.
derivado direto do conflito entre a necessi- ra visão parecia ajustar-se melhor à história Alguns leitores deste trabalho podem ainda
dade do amor da autoridade e o impulso no e a segunda à teoria do sentimento de culpa. ter a impressão de que já ouviram, de modo
sentido da satisfação instintiva, cuja inibição Uma reflexão mais adequada resolveu essa demasiado freqüente, a fórmula sobre a luta
produz a inclinação para a agressão. A super- contradição aparentemente irreconciliável de entre Eros e o instinto de morte. Ela foi não
posição desses dois estratos do sentimento modo quase excessivamente completo; o que só empregada para caracterizar o processo
de culpa — um oriundo do medo da autori- restou como fator essencial e comum foi que, de civilização que a humanidade sofre,ver
dade externa; o outro, do medo da autorida- em cada caso, se lida com uma agressividade- [[1]],mas também vinculada ao desenvol-
de interna — dificultou nossa compreensão deslocada para dentro. A observação clínica, vimento do indivíduo ver [[1]] e, além dis-
interna (insight) da posição da consciência ademais, nos permite de fato distinguir duas so, dela se disse que revelou o segredo da
por certo número de maneiras. Remorso é um fontes para a agressividade que atribuímos vida orgânica em geral,ver [[1]]. Acho que
termo geral para designar a reação do ego ao superego; ou uma ou outra exerce o efei- não podemos deixar de penetrar nas relações
num caso de sentimento de culpa. Contém, to mais forte em qualquer caso determinado, existentes entre esses três processos. A repe-
emforma pouco alterada, o material senso- mas, em geral, operam em harmonia. tição da mesma fórmula se justifica pela con-
rial da ansiedade que opera por trás do sen- É este, penso eu, o lugar para apresentar a sideração de que tanto o processo da civiliza-
timento de culpa; ele próprio é uma punição, uma consideração séria uma opinião que an- ção humana quanto o do desenvolvimento do
ou pode incluir a necessidade de punição, teriormente recomendei para aceitação pro- indivíduo são também processos vitais — o
podendo, portanto, ser também mais antigo visória. Na literatura analítica mais recente, que equivale a dizer que devem partilhar a
do que a consciência. mostra-se predileção pela idéia de que qual- mesma característica mais geral da vida. Por
Tampouco fará mal que passemos mais uma quer tipo de frustração, qualquer satisfação outro lado, as provas da presença dessa ca-
vez em revista as contradições que nos con- instintiva frustrada, resulta, ou pode resultar racterística geral, pela razão mesma de sua
fundiram durante algum tempo, no correr de numa elevação do sentimento de culpa. Acho natureza geral, fracassam em nos ajudar a
nossa investigação. Assim, em determinado que se conseguirá uma grande simplificação estabelecer qualquer diferenciação [entre os
ponto, o sentimento de culpa era a conse- teórica, se se encarar isso como sendo aplicá- processos], enquanto não for reduzida por
qüência dos atos de agressão de que alguém vel apenas aos instintos agressivos, e não se limitações especiais. Só podemos ficar satis-
se abstivera; em outro, porém — exatamen- encontrará quase nada que contradiga essa feitos, portanto, afirmando que o processo
te em seu começo histórico, a morte do pai afirmação. Pois, como devemos explicar, em civilizatório constitui uma modificação, que
—, constituía a conseqüência de um ato de fundamentos dinâmicos e econômicos, um o processo vital experimenta sob a influência
agressão que fora executado,ver [[1]]. En- aumento no sentimento de culpa que apa- de uma tarefa que lhe é atribuída por Eros e
controu-se uma saída para essa dificuldade, rece no lugar de uma exigência erótica não incentivada por Ananké — pelas exigências
pois a instituição da autoridade interna, o satisfeita? Isso só parece possível de maneira da realidade —, e que essa tarefa é a de unir
superego, alterou radicalmente a situação. indireta se supusermos que a prevenção de indivíduos isolados numa comunidade ligada
Antes disso, o sentimento de culpa coincidia uma satisfação erótica exige uma agressivi- por vínculos libidinais. Quando, porém, exa-
com o remorso. (Podemos observar, inciden- dade contra a pessoa que interferiu na satis- minamos a relação existente entre o proces-
talmente, que o termo ‘remorso’ deveria ser fação, e que essa própria agressividade, por so desenvolvimental ou educativo dos seres
reservado para a reação que surge depois de sua vez, tem de ser recalcada. Se as coisas se humanos individuais, devemos concluir, sem
um ato de agressão ter sido realmente execu- passam assim, é em suma, apenas a agressi- muita hesitação, que os dois apresentam uma
tado.) Posteriormente, devido à onisciência vidade que é transformada em sentimento de natureza muito semelhante, caso não sejam
do superego, a diferença entre uma agressão culpa, por ter sido recalcada e transmitida o mesmo processo aplicado a tipos diferentes
pretendida e uma agressão executada perdeu para o superego. Estou convencido de que de objeto. O processo da civilização da espé-
sua força. Daí por diante, o sentimento de muitos processos admitirão exposição mais cie humana é, naturalmente, uma abstração
culpa podia ser produzido não apenas por um simples e mais clara, se as descobertas da de ordem mais elevada do que a do desen-
ato de violência realmente efetuado (como psicanálise sobre a derivação do sentimen- volvimento do indivíduo, sendo, portanto, de
todos sabem), mas também por um ato sim- to de culpa forem restringidas aos instintos mais difícil apreensão em termos concretos;
plesmente pretendido (como a psicanálise agressivos. O exame do material clínico não tampouco devemos perseguir as analogias
descobriu). Independentemente dessa alte- nos fornece aqui uma resposta inequívoca, a um extremo obsessivo. Contudo, diante
ração na situação psicológica, o conflito que porque, como nossa hipótese nos diz, os dois da semelhança entre os objetivos dos dois
surge da ambivalência — o conflito entre os tipos de instinto dificilmente aparecem em processos — num dos casos, a integração de
dois instintos primitivos — deixa atrás de si forma pura, isolados um do outro, e uma in- um indivíduo isolado num grupo humano;
o mesmo resultado,ver [[1]]. Somos tenta- vestigação dos casos extremos provavelmente no outro, a criação de um grupo unificado a
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 19

partir de muitos indivíduos —, não podemos para com o outro e disputar-se mutuamente des do superego poderem ser mais facilmente
surpreender-nos com a similaridade entre os a posse do terreno. Contudo, essa luta entre detectadas em seu comportamento na comu-
meios empregados e os fenômenos resultan- o indivíduo e a sociedade não constitui um nidade cultural do que no indivíduo isolado.
tes. derivado da contradição — provavelmente O superego cultural desenvolveu seus ideais
Em vista de sua excepcional importância, não irreconciliável — entre os instintos primevos e estabeleceu suas exigências. Entre estas,
devemos adiar mais a menção de determina- de Eros e da morte. Trata-se de uma luta den- aquelas que tratam das relações dos seres
do aspecto que estabelece a distinção entre tro da economia da libido, comparável àquela humanos uns com os outros estão abrangidas
os dois processos. No processo de desenvol- referente à distribuição da libido entre o ego sob o título de ética. As pessoas, em todos os
vimento do indivíduo, o programa do prin- e os objetos, admitindo uma acomodação fi- tempos, deram o maior valor à ética, como
cípio do prazer, que consiste em encontrar nal no indivíduo, tal como, pode-se esperar, se esperassem que ela, de modo específico,
a satisfação da felicidade, é mantido como também o fará no futuro da civilização, por produzisse resultados especialmente impor-
objetivo principal. A integração numa comu- mais que atualmente essa civilização possa tantes. De fato, ela trata de um assunto que
nidade humana,ou a adaptação a ela, apare- oprimir a vida do indivíduo. pode ser facilmente identificado como sendo
ce como uma condição dificilmente evitável, A analogia entre o processo civilizatório e o ponto mais doloroso de toda civilização. A
que tem de ser preenchida antes que esse o caminho do desenvolvimento individual é ética deve, portanto, ser considerada como
objetivo de felicidade possa ser alcançado. passível de ser ampliada sob um aspecto im- uma tentativa terapêutica — como um es-
Talvez fosse preferível que isso pudesse ser portante. Pode-se afirmar que também a co- forço por alcançar, através de uma ordem
feito sem essa condição. Em outras palavras, munidade desenvolve um superego sob cuja do superego, algo até agora não consegui-
o desenvolvimento do indivíduo nos parece influência se produz a evolução cultural. do por meio de quaisquer outras atividades
ser um produto da interação entre duas pre- Constituiria tarefa tentadora para todo aquele culturais. Como já sabemos, o problema que
mências, a premência no sentido da felicida- que tenha um conhecimento das civilizações temos pela frente é saber como livrar-se do
de, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, humanas, acompanhar pormenorizadamente maior estorvo à civilização — isto é, a incli-
e a premência no sentido da união com os essa analogia. Limitar-me-ei a apresentar nação, constitutiva dos seres humanos, para
outros da comunidade, que chamamos de alguns pontos mais notáveis. O superego de a agressividade mútua; por isso mesmo, es-
‘altruísta’. Nenhuma dessas descrições desce uma época de civilização tem origem seme- tamos particularmente interessados naquela
muito abaixo da superfície. No processo de lhante à do superego de um indivíduo. Ele se que é provavelmente a mais recente das or-
desenvolvimento individual, como dissemos, baseia na impressão deixada atrás de si pelas dens culturais do superego, o mandamento
a ênfase principal recai sobretudo na pre- personalidades dos grandes líderes — homens de amar ao próximo como a si mesmo.Ver
mência egoísta (ou a premência no sentido de esmagadora força de espírito ou homens [[1].] Em nossa pesquisa de uma neurose e
da felicidade), ao passo que a outra premên- em quem um dos impulsos humanos encon- em sua terapia, somos levados a fazer duas
cia, que pode ser descrita como ‘cultural’, ge- trou sua expressão mais forte e mais pura e, censuras contra o superego do indivíduo. Na
ralmente se contenta com a função de impor portanto, quase sempre, mais unilateral. Em severidade de suas ordens e proibições, ele
restrições. No processo civilizatório, porém, muitos casos, a analogia vai mais além, como se preocupa muito pouco com a felicidade do
as coisas se passam de modo diferente. Aqui, no fato de, durante a sua vida, essas figuras ego, já que considera de modo insuficiente as
de longe, o que mais importa é o objetivo — com bastante freqüência, ainda que não resistências contra a obrigação de obedecê-
de criar uma unidade a partir dos seres hu- sempre — terem sido escarnecidas e maltra- las — a força instintiva do id [em primeiro
manos individuais. É verdade que o objetivo tadas por outros e, até mesmo, liquidadas de lugar] e as dificuldades apresentadas pelo
da felicidade ainda se encontra aí, mas rele- maneira cruel. Do mesmo modo, na verdade, meio ambiente externo real [em segundo].
gado ao segundo plano. Quase parece que a o pai primevo não atingiu a divindade senão Por conseguinte, somos freqüentemente
criação de uma grande comunidade humana muito tempo depois de ter encontrado a mor- obrigados, por propósitos terapêuticos, a nos
seria mais bem-sucedida se não se tivesse de te pela violência. O exemplo mais evidente opormos ao superego e a nos esforçarmos
prestar atenção à felicidade do indivíduo. As- dessa conjunção fatídica pode ser visto na por diminuir suas exigências. Exatamente as
sim, pode-se esperar que o processo desen- figura de Jesus Cristo — se, em verdade, mesmas objeções podem ser feitas contra as
volvimental do indivíduo apresente aspectos essa figura não faz parte da mitologia, que exigências éticas do superego cultural. Ele
especiais, próprios dele, que não são repro- a conclamou à existência a partir de uma também não se preocupa de modo suficiente
duzidos no processo da civilização humana. obscura lembrança daquele evento primevo. com os fatos da constituição mental dos seres
É apenas na medida em que está em união Outro ponto de concordância entre o supe- humanos. Emite uma ordem e não pergun-
com a comunidade como objetivo seu, que rego cultural e o individual é que o primei- ta se é possível às pessoas obedecê-la. Pelo
o primeiro desses processos precisa coincidir ro, tal como o último, estabelece exigências contrário, presume que o ego de um homem
com o segundo. ideais estritas, cuja desobediência é punida é psicologicamente capaz de tudo que lhe é
Assim como um planeta gira em torno de um pelo ‘medo da consciência’,ver [[1]]. Aqui, exigido, que o ego desse homem dispõe de
corpo central enquanto roda em torno de seu em verdade, nos deparamos com a notável um domínio ilimitado sobre seu id. Trata-se
próprio eixo, assim também o indivíduo hu- circunstância de que, na realidade, os proces- de um equívoco e, mesmo naquelas que são
mano participa do curso do desenvolvimento sos mentais relacionados são mais familiares conhecidas como pessoas normais, o id não
da humanidade, ao mesmo tempo que per- para nós e mais acessíveis à consciência tal pode ser controlado além de certos limites.
segue o seu próprio caminho na vida. Para como vistos no grupo, do que o podem ser Caso se exija mais de um homem, produzir-
nossos olhos enevoados, porém, o jogo de no indivíduo. Neste, quando a tensão cresce, se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele
forças nos céus parece fixado numa ordem é apenas a agressividade do superego que, se tornará infeliz. O mandamento ‘Ama a teu
que jamais muda; no campo da vida orgâni- sob a forma de censuras, se faz ruidosamen- próximo como a ti mesmo’ constitui a defe-
ca, ainda podemos perceber como as forças te ouvida; com freqüência, suas exigências sa mais forte contra a agressividade humana
lutam umas com as outras e como os efeitos reais permanecem inconscientes no segun- e um excelente exemplo dos procedimentos
desse conflito estão em permanente mudan- do plano. Se as trazemos ao conhecimento não psicológicos do superego cultural. É
ça. Assim também as duas premências, a que consciente, descobrimos que elas coincidem impossível cumprir esse mandamento; uma
se volta para a felicidade pessoal e a que se com os preceitos do superego cultural pre- inflação tão enorme de amor só pode rebai-
dirige para a união com os outros seres hu- dominante. Neste ponto os dois processos, xar seu valor, sem se livrar da dificuldade. A
manos, devem lutar entre si em todo indiví- o do desenvolvimento cultural do grupo e o civilização não presta atenção a tudo isso;
duo, e assim também os dois processos de do desenvolvimento cultural do indivíduo, se ela meramente nos adverte que quanto mais
desenvolvimento, o individual e o cultural, acham, por assim dizer, sempre interligados. difícil é obedecer ao preceito, mais meritório
têm de colocar-se numa oposição hostil um Daí algumas das manifestações e proprieda- é proceder assim. Contudo, todo aquele que,
20 « O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud

nacivilização atual, siga tal preceito, só se to longe de minha intenção exprimir uma cher Verlag, 136 págs.
coloca em desvantagem frente à pessoa que opinião sobre o valor da civilização huma- 1931 2ª ed. (Reimpressão da 1ª ed., com al-
despreza esse mesmo preceito. Que poderoso na. Esforcei-me por resguardar-me contra o guns acréscimos.)
obstáculo à civilização a agressividade deve preconceito entusiástico que sustenta ser a 1934 G.S., 12, 29-114.
ser, se a defesa contra ela pode causar tanta nossa civilização a coisa mais preciosa que 1948 G.W., 14, 421-506.
infelicidade quanto a própria agressividade! possuímos ou poderíamos adquirir, e que seu (b) TRADUÇÃO INGLESA:
A ética ‘natural’, tal como é chamada, nada caminho necessariamente conduzirá a ápices Civilization and its Discontents
tem a oferecer aqui, exceto a satisfação nar- de perfeição inimaginada. Posso, pelo menos, 1930 Londres: Hogarth Press e Institute of
císica de se poder pensar que se é melhor ouvir sem indignação o crítico cuja opinião Psycho-Analysis. Nova Iorque: Cape and Smi-
do que os outros. Nesse ponto, a ética base- diz que, quando alguém faz o levantamento th, 144 págs. (Trad. de Joan Riviere.)
ada na religião introduz suas promessas de dos objetivos do esforço cultural e dos meios A atual tradução baseia-se na publicada em
uma vida melhor depois da morte. Enquanto, que este emprega, está fadado a concluir que 1930.
porém, a virtude não for recompensada aqui não vale a pena todo esse esforço e que seu O primeiro capítulo do original alemão foi
na Terra, a ética, imagino eu, pregará em resultado só pode ser um estado de coisas publicado pouco antes do resto do livro, em
vão. Acho também bastante certo que, nesse que o indivíduo será incapaz de tolerar. Mi- Psychoanal. Bewegung,1 (4) novembro-de-
sentido, uma mudança real nas relações dos nha imparcialidade se torna mais fácil para zembro de 1929. O quinto capítulo apare-
seres humanos com a propriedade seria de mim na medida em que conheço muito pou- ceu separadamente no número seguinte do
muito mais ajuda do que quaisquer ordens co a respeito dessas coisas. Sei que apenas mesmo periódico, 2 (1), janeiro-fevereiro de
éticas; mas o reconhecimento desse fato en- uma delas é certa: é que os juízos de valor 1930. Duas ou três notas de rodapé a mais fo-
tre os socialistas foi obscurecido, e tornado do homem acompanham diretamente os seus ram incluídas na edição de 1931 e uma frase
inútil para fins práticos, por uma nova e desejos de felicidade, e que, por conseguin- final foi acrescentada à obra. Nenhum desses
idealista concepção equivocada da natureza te, constituem uma tentativa de apoiar com acréscimos apareceram na primeira versão da
humana.Ver [[1].] argumentos as suas ilusões. Acharia mui- tradução inglesa.
Creio que a linha de pensamento que procura to compreensível que alguém assinalasse a Freud terminara O Futuro de uma Ilusão no
descobrir nos fenômenos de desenvolvimen- natureza obrigatória do curso da civilização outono de 1927. Durante os dois anos se-
to cultural o papel desempenhado por um humana e que dissesse, por exemplo, que as guintes, principalmente, sem dúvida, por
superego promete ainda outras descobertas. tendências para uma restrição da vida sexual causa de sua doença, produziu muito pouco.
Apresso-me a chegar ao fim, mas há uma ou para a instituição de um ideal humani- No verão de 1929, porém, começou a escrever
questão a que dificilmente posso fugir. Se o tário à custa da seleção natural foram ten- outro livro, mais uma vez sobre um assunto
desenvolvimento da civilização possui uma dências de desenvolvimento impossíveis de sociológico. O primeiro esboço foi terminado
semelhança de tão grande alcance com o de- serem desviadas ou postas de lado, e às quais por volta de fins de julho; o livro foi enviado
senvolvimento do indivíduo, e se emprega os é melhor para nós nos submetermos, como à gráfica no começo de novembro e realmen-
mesmos métodos, não temos nós justificativa se constituíssem necessidades da natureza. te publicado antes do fim do ano, embora
em diagnosticar que, sob a influência de pre- Também estou a par da objeção que pode trouxesse a data de ‘1930’ em sua página de
mências culturais, algumas civilizações, ou ser levantada contra isso, objeção segundo a rosto (Jones, 1957, 157-8).
algumas épocas da civilização — possivel- qual, na história da humanidade, tendências O título original para ele escolhido por Freud
mente a totalidade da humanidade — se tor- como estas, consideradas insuperáveis, fre- foi ‘Das Unglück in der Kultur’ (‘A Infelicida-
naram ‘neuróticas’? Uma dissecação analítica qüentemente foram relegadas e substituídas de na Civilização’), mas ‘Unglück’ foi poste-
de tais neuroses poderia levar a recomenda- por outras. Assim, não tenho coragem de me riormente alterado para ‘Unbehagen’, palavra
ções terapêuticas passíveis de reivindicarem erguer diante de meus semelhantes como um para a qual foi difícil escolher um equivalen-
um grande interesse prático. Eu não diria que profeta; curvo-me à sua censura de que não te inglês, embora o francês ‘malaise‘ pudesse
uma tentativa desse tipo, de transportar a lhes posso oferecer consolo algum, pois, no ter servido. Numa carta à sua tradutora, a
psicanálise para a comunidade cultural, seja fundo, é isso que todos estão exigindo, e os Sra. Riviere, Freud sugeriu‘O Desconforto do
absurda ou que esteja fadada a ser infrutífe- mais arrebatados revolucionários não menos Homem na Civilização’, mas foi ela própria
ra. Mas teríamos de ser muito cautelosos e apaixonadamente do que os mais virtuosos que descobriu a solução ideal para a dificul-
não esquecer que, em suma, estamos lidando crentes. dade no título finalmente adotado.
apenas com analogias e que é perigoso, não A questão fatídica para a espécie humana pa- O tema principal do livro — o antagonismo
somente para os homens mas também para rece-me ser saber se, e até que ponto, seu de- irremediável entre as exigências do instinto
os conceitos, arrancá-los da esfera em que se senvolvimento cultural conseguirá dominar a e as restrições da civilização — pode ter sua
originaram e se desenvolveram. Além disso, a perturbação de sua vida comunal causada origem remontada a alguns dos mais antigos
diagnose das neuroses comunais se defronta pelo instinto humano de agressão e autodes- trabalhos psicológicos de Freud. Assim, em
com uma dificuldade especial. Numa neurose truição. Talvez, precisamente com relação a 31 de maio de 1897, escreveu a Fliess que ‘o
individual, tomamos como nosso ponto de isso, a época atual mereça um interesse espe- incesto é anti-social e a civilização consis-
partida o contraste que distingue o pacien- cial. Os homens adquiriram sobre as forças da te numa progressiva renúncia a ele’ (Freud,
te do seu meio ambiente, o qual se presume natureza um tal controle, que, com sua aju- 1950a, Rascunho N), e, um ano depois, no
ser ‘normal’. Para um grupo de que todos os da, não teriam dificuldades em se extermi- artigo ‘Sexuality in the Aetiology of the
membros estejam afetados pelo mesmo dis- narem uns aos outros, até o último homem. Neuroses’ (1898a), escreveu que ‘podemos
túrbio, não poderia existir esse pano de fun- Sabem disso, e édaí que provém grande parte com justiça responsabilizar nossa civiliza-
do; ele teria de ser buscado em outro lugar. de sua atual inquietação, de sua infelicidade ção pela disseminação da neurastenia’. Não
E, quanto à aplicação terapêutica de nosso e de sua ansiedade. Agora só nos resta es- obstante, em seus primeiros trabalhos, Freud
conhecimento, qual seria a utilidade da mais perar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’ não parece ter considerado a repressão como
corretaanálise das neuroses sociais, se não ver [[1]], o eterno Eros, desdobre suas forças sendo inteiramente devida a influências so-
se possui autoridade para impor essa terapia para se afirmar na luta com seu não menos ciais externas. Embora em seus Três Ensaios
ao grupo? No entanto, e a despeito de todas imortal adversário. Mas quem pode prever (1905d), fale da ‘relação inversa que existe
essas dificuldades, podemos esperar que, um com que sucesso e com que resultado? entre a civilização e o livre desenvolvimento
dia, alguém se aventure a se empenhar na da sexualidade’ (Edição Standard Brasileira,
elaboração de uma patologia das comunida- DAS UNBEHAGEN IN DER KULTUR Vol. VII, pág. 250, IMAGO Editora, 1972), em
des culturais. (a) EDIÇÕES ALEMÃS: outra passagem da mesma obra, fez o seguin-
Por uma ampla gama de razões, está mui- 1930 Viena: Internationaler Psychoanalytis- te comentário sobre as barreiras opostas ao
O Mal-estar na Civilização § Sigmund Freud » 21

instinto sexual surgidas durante o período estudos mais longos sobre ele ocorreram nos de 1937, à Princesa Marie Bonaparte, na qual
de latência: ‘Tem-se das crianças civilizadas Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade parece aludir a uma maior independência ori-
uma impressão de que a construção dessas (1905d), onde surgiu como um dos ‘instintos ginal da destrutividade externa: ‘A interiori-
barreiras é um produto da educação, e sem componentes’ ou ‘parciais’ do instinto sexu- zação do instinto agressivo é, naturalmente,
dúvida, a educação muito tem a ver com al. ‘Assim’, escreveu ele na Seção 2 (B) do pri- o correspondente da exteriorização da libido,
ela. Mas, na realidade, este desenvolvimen- meiro ensaio, ‘o sadismo corresponderia a um quando ela se transfere do ego para os obje-
to é organicamente determinado e fixado componente agressivo do instinto sexual que tos. Teríamos um quadro esquemático nítido
pela hereditariedade, e pode ocasionalmente se tornou independente e exagerado e, por se supuséssemos que, originalmente, ao iní-
ocorrer sem qualquer auxílio da educação.’ deslocamento, usurpou a posição dominante’ cio da vida, toda a libido era dirigida para o
(Ibid., pág. 157.) (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, IMAGO interior e toda a agressividade para o exte-
A noção de haver uma ‘repressão orgânica’ Editora, 1972, págs. 159-60). Não obstante, rior, e que, no decorrer da vida, isso grada-
que prepara o caminho para a civilização posteriormente, na Seção 4 do segundo en- tivamente se alterava. Mas talvez isso possa
— noção expandida nas duas longas notas saio, a independência original dos impulsos não ser correto’. É justo acrescentar que, em
de rodapé ao início e ao final do Capítulo IV agressivos foi reconhecida: ‘Pode-se presumir sua carta seguinte, Freud escrevia: ‘Peço-lhe
(pág. 77 e seg. e 57 e segs., adiante) — re- que os impulsos de crueldade surgem de fon- para não dar muito valor às minhas observa-
monta ao mesmo período anterior. Numa tes que são, na realidade, independentes da ções sobre o instinto de destruição. Elas só
carta a Fliess, em 14 de novembro de 1897, sexualidade, mas podem unir-se a ela num foram feitas fortuitamente e teriam de ser
Freud escreveu que freqüentemente suspei- estágio prematuro’ (ibid., 198n). As fontes cuidadosamente pensadas antes de publica-
tou ‘que algo orgânico desempenhou um pa- independentes indicadas deveriam ter sua das. Ademais, pouco há de novo nelas.’
pel na repressão’ (Freud, 1950a, Carta 75). origem remontada aos instintos autopreser- É óbvio, portanto, que O Mal-Estar na Civi-
Prossegue, no mesmo sentido daquelas notas vativos. Essa passagem foi alterada na edição lização é uma obra cujo interesse ultrapassa
de rodapé, sugerindo a importância, como fa- de 1915, onde se declarou que ‘o impulso bastante a sociologia.
tores de repressão, da adoção de uma postura da crueldade surge do instinto de domínio’ Partes consideráveis da primeira tradução
ereta e da substituição do olfato pela vista e a frase sobre ser ele ‘independente da se- (1930) do presente trabalho foram incluídas
como sentido dominante. Uma alusão ainda xualidade ‘foi omitida. Mas já em 1909, no em Civilization, War and Death: Selections
mais precoce à mesma idéia ocorre numa car- decorrer do combate às teorias de Adler, from Three Works by Sigmund Freud (1939,
ta de 11 de janeiro de 1897 (ibid., Carta 55). Freud fizera um pronunciamento muito mais 26-81), da autoria de Rickman.
Nos trabalhos publicados de Freud, as únicas amplo. Na Seção II do terceiro capítulo da
menções dessas idéias, antes do atual, pare- história clínica do ‘Pequeno Hans’ (1909b),
cem ser uma breve passagem na análise do Freud escreveu: ‘Não consigo convencer-me
‘Rat Man’ (1909d), Satndard Ed., 10, 247-8, da existência de um instinto agressivo espe-
e outra ainda mais sucinta no segundo artigo cial, ao lado dos instintos familiares de au-
sobre a psicologia do amor (1912d), Edição topreservação e sexo, e em pé de igualdade
Standard Brasileira, Vol. XI, pág.172, IMAGO com eles’ (ibid., 10, 140). A relutância em
Editora, 1972. De modo particular, nenhuma aceitar um instinto agressivo independente
análise das origens internas mais profundas da libido foi auxiliada pela hipótese do nar-
da civilização pode ser encontrada naquilo cisismo. Os impulsos de agressividade, e de
que é, de longe, o mais longo dos primeiros ódio também, desde o início pareceram per-
estudos de Freud sobre o assunto, ou seja, tencer ao instinto autopreservativo, e, visto
o artigo ‘“Civilized” Sexual Morality and Mo- que este se achava agora incluído na libido,
dern Nervous Illness’ (1908d), que dá a im- não se exigia qualquer instinto agressivo in-
pressão de as restrições da civilização serem dependente. E assim era a despeito da bipo-
algo imposto desde fora. laridade das relações objetais, das freqüen-
Na verdade, contudo, não foi possível nenhu- tes misturas de amor e ódio, e da complexa
ma avaliação clara do papel desempenhado origem do próprio ódio. (Ver ‘Instincts and
nessas restrições pelas influências internas their Vicissitudes’ (1915c), Standard Ed., 14,
e externas e seus efeitos recíprocos, até que 138-9). Foi somente após a hipótese formu-
as investigações realizadas por Freud sobre a lada por Freud de um ‘instinto de morte’ que
psicologia do ego o conduziram às hipóteses um instinto agressivo verdadeiramente inde-
sobre o superego e sua origem nas mais an- pendente apareceu em Beyond the Pleasure
tigas relações objetais do indivíduo. É devido Principle (1920g). (Ver, especificamente, o
a isso que uma parte tão grande da presente Capítulo VI, ibid., 18, 52-5). Mas é de notar
obra (especialmente nos Capítulos VII e VIII) que mesmo aí, e nos escritos posteriores de
se interessa pela exploração e clarificação ul- Freud (por exemplo, no Capítulo IV de The
teriores da natureza do sentimento de culpa, Ego and the Id.), o instinto agressivo ain-
e que Freud,ver ([1]), declara sua ‘intenção da era algo secundário, derivado do instinto
de representar o sentimento de culpa como de morte autodestrutivo e primário. Isso é
o mais importante problema no desenvol- verdadeiro, ainda, quanto à presente obra,
vimento da civilização’. E isso, por sua vez, embora aqui a ênfase esteja colocada mais
constitui o fundamento para o segundo tema nas manifestações do instinto de morte vol-
lateral de importância da obra (embora ne- tadas para fora, e também quanto aos estu-
nhum deles seja, na verdade, um tema late- dos ulteriores do problema na última parte
ral), a saber, o instinto de destruição. da Conferência XXXIII das New Introductory
A história das opiniões de Freud sobre o instin- Lectures (1922a) e em mais de um ponto do
to da agressão ou de destruição é complicada Esboço da Psicanálise (1940a [1938] Pequena
e só resumidamente pode ser indicada aqui. Coleção das Obras de Freud, Livro 7, IMAGO
Através de todos os seus primeiros escritos, Editora, 1974), de publicação póstuma.Sem
o contexto em que ele predominantemente embargo, é tentador citar um par de frases de
o encarou foi o do sadismo. Seus primeiros uma carta escrita por Freud, em 27 de maio

Você também pode gostar