Verdade em Videos Amadores
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Resumo: Neste texto, nos concentramos numa categoria específica dentro do vasto
conjunto das imagens amadoras: os vídeos operados por pessoas “comuns” que
flagram um fato de grande importância, aqui chamados de vídeos amadores de
acontecimentos. Além de delimitar essa categoria de imagens, problematizamos
alguns atributos aos quais estas geralmente estão associadas: o efeito de verdade
vinculado à crença numa evidência documental tomada diante do fato; o efeito de
real calcado nos ruídos e na urgência das filmagens amadoras; e a hipótese de que
contribuam para uma modificação significativa na política das imagens, impondo
ao universo midiático novos atores e novos lugares de fala.
Abstract: In this paper, we focus on a specific category inside the wide set of
amateur images: videos images shot by ordinary people that capture an occurrence
of great media relevance, called here amateur videos of events. In addition to define
this category of images, we problematize some of its characteristics: the truth effect
linked to the belief in a piece of evidence made before the fact; the reality effect
grounded in the noise and the urgency of the amateur images; the hypothesis that
those documents contribute to a substantial change in the politics of the images,
imposing to the media new actors and new places of speech.
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Cultura das Mídias do XXV Encontro Anual da Compós, na
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016.
2
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP. E-mail:
[email protected]. A pesquisa que originou este texto conta com o apoio financeiro da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
3
Usamos a expressão “comum” sempre entre parênteses, uma vez que não se trata de um conceito teórico mas
de referência ao sentido com que o termo é usado cotidianamente. Isto é: as pessoas “comuns” em oposição aos
profissionais das mídias.
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notícias. Isto é, imagens captadas por sujeitos não vinculados a empresas de comunicação,
instituições ou qualquer outro grupo organizado e sem preparo no ofício de filmar que
registram, no momento de sua própria duração, um fato de grande importância, tornando-se
peça significativa na construção desse acontecimento. A proliferação de imagens amadoras
em espaços digitais e nas mídias em geral é um fenômeno marcante da cultura visual
contemporânea. O objeto aqui em pauta é um recorte dentro desse vasto conjunto. Se as
filmagens operadas e protagonizadas por pessoas comuns estão associadas à difusão
midiática do banal e do ordinário, os vídeos aqui investigados inscrevem o extraordinário e o
relevante ao interesse público, frequentemente de modo acidental. Graças à proeza de um
cinegrafista legitimado por localizar-se em um ponto privilegiado espacial e temporalmente,
este objeto audiovisual se destaca e ganha relevo no fluxo midiático.
Em inúmeros acontecimentos de envergadura ocorridos em anos recentes, os registros
documentais amadores ocupam papel proeminente nos relatos e descrições. O exemplo
histórico emblemático é a captação inadvertida do assassinato de John Kennedy pelo
imigrante ucraniano Abraham Zapruder, que operava uma recém comprada câmera de oito
milímetros. Entre os exemplos recentes, podemos citar: os atentados de 11 de setembro nos
Estados Unidos; desastres da natureza como os tsunamis no Sudeste Asiático, em 2004, e no
Japão, em 2011; a onda de manifestações de rua mundo afora (Primavera Árabe, Occupy
Wall Street, Junho de 2013 no Brasil).
No telejornalismo, a imagem que é produto de um cinegrafista amador serve como
matéria-prima na montagem de tele-reportagens – um fragmento dentre vários elementos na
composição de uma narrativa de cunho jornalístico. Filmagens factuais amadoras também são
incorporadas em outros discursos midiáticos, inseridas em reportagens de portais e em blogs,
em programas de variedades, em documentários e filmes de ficção. Em todos esses exemplos,
passam pelo filtro de algum editor, repórter, produtor. Todavia, os vídeos amadores também
encontram uma circulação descentralizada e dispersa nas redes sociais digitais. Trata-se de
uma circulação distribuída entre milhões de usuários que compartilham conteúdos a partir de
seus perfis, isso num ambiente reticular, em permanente expansão, labiríntico e caótico, “um
universo indeterminado e que tende a manter sua indeterminação, pois cada novo nó da rede
das redes em expansão pode tornar-se produtor ou emissor de novas informações” (LEVY,
2007, p. 111). Um fluxo até certo ponto autônomo às instâncias decisórias dos veículos de
mídia tradicionais, com capacidade de eventualmente impor temas e enfoques ao noticiário –
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embora deva-se sublinhar o papel ainda relevante dos veículos de comunicação tradicionais
como mediadores e autenticadores dos acontecimentos de grande impacto.
Tais imagens não são, obviamente, uma inovação do paradigma digital. O século XX
produziu uma boa porção de flagrantes audiovisuais, como é o caso do filme de Zapruder.
Conforme Bruno (2007, s.p.):
Sabe-se que a novidade não reside no uso do flagrante capturado por câmeras
amadoras, já há muito comum no jornalismo. A “novidade” consiste na
intensificação desta prática e no “efeito de real” que tais imagens hoje produzem.
4
Barthes (1988) cunhou a expressão “efeito de real” para designar recursos estilísticos do romance realista do
século XIX com função única e exclusiva de conotar o real enquanto tal (a principal referência é a obra de
Gustave Flaubert). Tratam-se de descrições sem qualquer função aparente dentro da narrativa – analisada numa
perspectiva estrutural – a não ser “a ‘representação’ pura e simples do ‘real’, o relato nu ‘daquilo que é’ (ou
foi)” (p. 187), inaugurando uma nova “verossimilhança, que é exatamente o realismo (entenda-se todo o
discurso que aceita enunciações só creditadas pelo referente)” (p. 189). A noção de “efeito de real” vem sendo
usada amplamente pelos estudiosos dos novos realismos, nas mais variadas áreas (literatura, mídias, artes
visuais, cinema) para designar operadores e estilos que renovam estéticas realistas, embora não necessariamente
operem do mesmo modo descrito por Barthes. É neste mesmo espírito que a usamos aqui em referência à
estética do amador.
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fixam um lugar nas culturas midiática e visual, em um gênero discursivo nas mídias. Daí, por
exemplo, o desafio de nomear o próprio objeto da pesquisa, encaixá-lo em uma categoria
específica de imagens a rigor inexistente.
As circunstâncias de enunciação dos vídeos digitais contemporâneos são múltiplas e
imprevisíveis: no Youtube são acompanhados de título, de descrição, de vídeos relacionados;
na timeline do Facebook, são provavelmente antecedidos de algum comentário; o mesmo
quando compartilhados em grupos do WhatsApp. Podem ser vistos em uma tela de
computador ou em um aparelho menor, como celular ou tablet. Uma hipótese é de que, em
todos esses contextos de enunciação, efeitos ligados à instabilidade e à falta de um
enquadramento em um gênero discursivo mais estrito acompanham essas imagens,
contribuindo para a produção de uma estética realista que remete à crueza. As instabilidades
de ordem estética e epistemológica dessas imagens documentais são homólogas à
instabilidade intrínseca ao seu modo de circulação nas redes digitais: descentralizadas,
difusas, aleatórias.
Em contrapartida, ainda que possam ser rodados no Youtube ou vistos em redes
sociais como o Facebook em sua versão crua, os planos-sequências de acontecimentos
captados por amadores já chegam ao espectador inseridos em uma narrativa. Não compõem
uma montagem no sentido estrito, como o fariam num filme ou numa reportagem de
televisão. Mas, via de regra, circulam já indexados: atrelados a determinado acontecimento,
cujo estatuto de evento relevante geralmente está autenticado e legitimado pelos veículos
tradicionais de mídia.
O conjunto de marcas estéticas das imagens amadoras produz um discurso
audiovisual especialmente eficaz na obtenção de ilusão referencial – a promessa de
comparecimento da própria realidade na forma de referente – e força de evidência, isto é, a
promessa de que algo aconteceu de certa maneira. São efeitos em boa parte construídos no
interior de uma história do audiovisual. Fundamentalmente, a capacidade de determinada
imagem de ser verdadeira depende da inserção desta em uma política geral da verdade
(FOUCAULT, 2001). A verdade informada por uma imagem de evidência depende sempre
da questão que é colocada: é relativa, uma resposta dentro de parâmetros estritos que
delimitam as conclusões possíveis.
Quanto à dimensão estética, a textura granulada, a câmera instável, o som precário, o
enquadramento mal armado, a inserção da câmera na cena: essas características não são
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intrinsicamente mais realistas, mas produzem sentidos que se consolidaram num percurso
alinhado às modificações no regime visual e no lugar das imagens na sociedade. A
espontaneidade expressa por essas filmagens ganha valor, por exemplo, em resposta à
percepção de crescente roteirização da vida e do mundo, embora a expansão desmedida das
imagens amadoras também esteja associada, no nível das estratégias de poder e de mercado, a
um esforço programático.
A noção de verdade factual invocada pelos vídeos amadores de acontecimentos liga-
se intimamente à ideia de evidência, mas também parece fundamental para essa veracidade o
lugar de enunciação que desvia das dinâmicas convencionais de edição e de filtragem do
jornalismo convencional. E o lugar da enunciação aqui mencionado refere-se tanto à posição
de um enunciador-cinegrafista percebido como alheio à produção midiática profissional –
interessado simplesmente em filmar o fato, inabilitado a fazer mais que isso – quanto aos
espaços nos quais as imagens circulam e são exibidas nos ambientes digitais. Sendo assim,
esse efeito de verdade parece também inseparável de um discurso libertário em torno do
ciberespaço, onde a informação supostamente fluiria com autonomia e liberdade inéditas.
Existe, porém, uma opacidade no fluxo de dados em sites de busca e em redes sociais: nunca
são evidenciados ao internauta os critérios que levam alguns conteúdos a aparecerem de
modo destacado e outros não.
5
Uma versão digitalizada do filme pode ser vista neste link: http://www.youtube.com/watch?v=1q91RZko5Gw.
Acesso em: 16/02/2016.
6
De acordo com Pasternack (2012), o governo dos Estados Unidos logo teve acesso ao filme de Zapruder,
usando-o, assim, na investigação levada a cabo na época. Ainda em novembro de 1963, a revista Life publicou
uma série de fotogramas, suprimindo, porém, o frame que mostra o projétil atingindo o crânio de Kennedy,
considerado muito violento. A revista pagou a Zapruder 150 mil dólares para publicar os fotogramas. O filme só
seria exibido na televisão na íntegra doze anos depois, em 1975, pela emissora de TV aberta americana ABC.
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Filmar os homens reais no mundo real significa estar às voltas com a desordem das
vidas, com o indecidível dos acontecimentos do mundo, com aquilo que do real se
obstina em enganar as previsões. Impossibilidade do roteiro. Necessidade do
documentário (COMOLLI, 2008, p. 176).
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vezes bloqueada por placas, bastante tremida. Embora precária na comparação com a
produção técnica apurada da televisão, reproduz, dado o efeito de câmera subjetiva, o olhar
de uma testemunha presente na plateia do desfile, num ponto um pouco mais afastado e
alguns palmos acima da rua. No momento do tiro, o automóvel aparece no limite inferior da
imagem e JFK quase some do campo de visão: provavelmente, em reação ao barulho do
primeiro disparo, o amador Zapruder balança a câmera e deixa o quadro quase todo
dominado pela grama verde que se espalha no outro lado da avenida.
Um filme amador cujo interesse ficaria limitado a familiares e amigos do
cinegrafista torna-se inadvertidamente um documento histórico de grande relevância,
atravessando a fronteira do privado para o público, do não-oficial para o oficial. O flagrante
de um acontecimento de impacto internacional que carrega as marcas estéticas e os efeitos de
sentido do cinema amador: “a espontaneidade”, o caráter não-distorcido, “a documentação do
trivial, do pessoal, do desimportante”, a ausência tanto de beleza quanto de uma consciência
autoral, “estabelecendo uma razão inversa entre pureza documental e valor estético” e
produzindo um documento com “maior quociente de verdade” (BRUZZI, 2000, p. 14)8.
8
“Spontaneous”, “the documentation of the trivial, the personal, the inconsequential”, “establishing an inverse
ratio between documentary purity and aesthetic value”, “greater quotient of truth”.
9
“The Zapruder film, by these criteria, is exemplary in its rawness, innocence and credibility as a piece of non-
fiction evidence or documentation. Within such a context, the film’s ‘value’ is presumed to be that, because of
the singular lack of premeditation, intention and authorship, it is able, unproblematically to yield the truth
contained within its blurry, hurried images; but therein lies its problem and the factual film’s burden of proof.”
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O acontecimento está lá, indiscutível, mas opaco: o documento não “diz” nada, nem
explica nada (longe de impedir a proliferação de incontáveis especulações em torno
do assassinato de Kennedy, o filme de Zapruder as suscita).10
Na reflexão que parte do exemplo de Zapruder para chegar a alguns traços essenciais
da linguagem do cinema, Pasolini (2006) associa o plano-sequência a um documento cru e
incompleto, praticamente sem sentido visto isoladamente. O plano bruto carece de outros
elementos verbais e visuais para ganhar significado e compor uma narrativa mais ampla.
Discorrendo sobre Zapruder, Pasolini (2006) percebe na filmagem deste “espectador-
operador” que “simplesmente filmou desde onde se encontrava, tomando aquilo que seu olho
– melhor, que sua objetiva – via” (p. 83), o mais típico plano-sequência possível.
O plano-sequência, acrescenta:
O máximo limite realista de toda técnica audiovisual [pois] não é concebível “ver e
escutar” a realidade em seu suceder senão desde um só ângulo visual: e este ângulo
visual é sempre o de um sujeito que vê e que sente (PASOLINI, 2006, p. 84).
10
Tradução nossa: « L’événement est là, indiscutable, mais mat: le document n’en “dit” rien, n’en explique rien
(loin d’empêcher la prolifération d’innombrables spéculations autour de l’assassinat de Kennedy, le film de
Zapruder les a suscitées). »
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Conceito de Dominique Maingueneau (2011) que engloba o conjunto de elementos presentes no ato de
enunciação que influenciam o processo de significação de um enunciado. Ao deparar-se com um enunciado, o
público irá valer-se de todos os elementos discursivos existentes na cena de enunciação para (ainda que
inconscientemente) elaborar o significado. Não existe enunciado puro, desprovido de uma cena de enunciação.
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“The Zapruder film has become the dominant assassination text, onto which is poured all the subsidiary grief,
anger, belief in conspiracy and corruption surrounding the unresolved events it depicts.”
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O punctum em Warhol está menos nos detalhes do que nos lampejos repetitivos da
imagem. Esses lampejos servem como equivalente visual de nossos encontros
faltosos com o real, do mesmo modo que a imagem fora de registro ou uma lavada
na cor. “O que se repete”, escreve Lacan, “é sempre algo que se produz [...] como
que por acaso”. É como esses lampejos: parecem acidentais, mas também parecem
repetitivos, automáticos, até tecnológicos (FOSTER, 2014, p. 129).
13
Há uma versão deste vídeo disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=wCGhpiQPweU.
Acesso em 16/02/2016.
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Center. O cinegrafista amador, localizado em uma posição muito próxima das torres, aponta a
câmera para o topo da construção tomada por chamas e uma fumaça escura. Flagra o instante
em que o segundo avião se choca contra a torre sul. Vista de baixo, com a torre ainda intacta
centralizada, a filmagem dá a ver o impacto com grande clareza – ouvimos o barulho da
aeronave se aproximando, adentrando o prédio e provocando uma enorme explosão.
Nesta imagem que reproduz essa experiência traumática, assim como em muitas
outras relacionadas a este acontecimento, cabe a clássica afirmação de Lacan (1988) de que o
sujeito não é o indivíduo que olha, mas sobretudo localiza-se na imagem, naquilo que nos
olha de volta – a noção-chave aqui é a de olhar, um elemento pungente fixado no objeto
visionado. No esquema lacaniano da visão, à clássica pirâmide invertida que parte do olho do
indivíduo é interposta outra pirâmide, no sentido contrário, esta partindo do objeto; um
esquema com “estrutura de reviravolta” (LACAN, 1988, p. 85). O esquema de eixos cruzados
do olhar tem como função estabilizar a visão, está em funcionamento o tempo todo – entre
outras coisas, protege o sujeito da visão direta e insuportável do real ao erigir o que Lacan
(1988) chama de anteparo, o núcleo dessa estrutura protetora.
Pensado no esquema lacaniano, este vídeo que flagra o segundo choque abala a
estabilidade construída pelo anteparo. O instante do impacto e da explosão desmonta
momentaneamente a proteção erigida pela mediação do anteparo e remete ao encontro
impossível com o real insuportável. A visão do horror da torre imensa em chamas já produz
um desequilíbrio. Eis que, nesta imagem pungente irrompe o avião comercial cheio de
pessoas e provoca uma segunda explosão, um desfecho inesperado. O efeito enquadra-se no
já mencionado realismo traumático: um realismo cuja força não reside na explicitação
transparente da realidade, mas na remissão momentânea ao encontro muito mais potente e
violento com um real não simbolizável. O caráter instantâneo e efêmero deste encontro
faltoso incita a repetição do vídeo, outro traço deste realismo do trauma (o modo de exibição
no Youtube e outros espaços digitais favorece a repetição dos vídeos). A repetição dessa
imagem tanto domestica quanto reitera o efeito traumático.
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Uma versão do vídeo está disponível neste link: https://www.youtube.com/watch?v=Mm5E0zuZemE. Acesso
em 23/02/2016.
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todos os tipos de consumo de imagens, deste registro da morte do adolescente Alan de Souza
Lima tomado na sua própria duração.
O vídeo de uma morte real testa o limite da linguagem, neste modo de representação
que já angaria seu realismo intensificado de um efeito abrupto, que remete a um “pancadão
do real” (Jaguaribe, 2007). Aquele que morre – não diante, mas atrás da câmera – é
exatamente o sujeito da enunciação deste registro em primeira pessoa; e o realismo subjetivo
fundamenta-se na assunção do ponto de vista e no engajamento na cena, que funcionam como
autenticadores da verdade da imagem. Conforme Figueiredo (2009, p. 33), “a vertente de
realismo que se tornou predominante, hoje, caracteriza-se por valorizar o envolvimento
daquele que narra com o fato narrado”. Ocorre que, neste caso extremo, o “narrador”, se é
que podemos chamar assim, é morto logo no início da filmagem, o que coloca em xeque esse
subjetivismo fundamental e deixa em aberto o estatuto desse olhar que prossegue, de certo
modo trazendo à tona a autonomia do dispositivo.
Ao mesmo tempo, na contramão de um regime do visível dominado pela evidenciação
pornográfica da violência, este documento visual tomado no olho do fato mantém as
ocorrências ocultas. Não há, no campo de visão, violência explícita, corpo ferido. É uma
imagem que apela a outras sensibilidades que não a visão. Uma perspectiva documental
positivista, interessada em conhecer os pormenores tal como se deram no mundo histórico
encontrará, neste vídeo, poucas provas transparecidas na dimensão do visível. Embora tratado
pela imprensa como uma evidência, este registro do universo amador caracteriza-se pela
opacidade na restituição do ocorrido.
As evidências eminentemente visuais conseguem responder a algumas questões
específicas. E oferecem uma verdade relativa e lacunar: nos segundos iniciais os rapazes
apenas brincam, não disparam armas, sequer portam revólveres. Os meninos foram acusados
de trocarem tiros com os policiais, que invocaram legítima defesa. A delegada do caso15,
porém, vê nas imagens a prova de que os rapazes não portavam armas ou estavam vinculados
a traficantes. Isto é, pragmaticamente falando, a imagem provoca uma inversão no processo:
os rapazes agora são as vítimas e os réus, os policiais. Neste sentido, é um registro tratado
como portador de uma verdade de ordem factual, que corrige e revela a farsa dos policiais
envolvidos, verdade sustentada e entendida como oposição a uma mentira. Um instrumento
15
Informações retiradas desta reportagem do site G1: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/pms-
envolvidos-em-morte-de-jovem-que-filmou-com-celular-sao-ouvidos.html
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O Sonderkommando (literalmente, “comando especial”) era um grupo constituído predominantemente por
prisioneiros judeus que tinha por função executar alguns trabalhos braçais envolvendo o extermínio em massa
nos campos de concentração nazista. Respondia por tarefas tais como: carregar os corpos das câmeras de gás até
os locais de cremação, operar os fornos, limpar as câmeras, entre outros.
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também uma espécie de alegoria do estatuto dessa violência policial na periferia, cujos
detalhes e motivações jamais são integralmente expostos aos holofotes e debatidos
frontalmente nos espaços políticos e na mídia tradicional, apesar dos esforços de muitos
agentes políticos – e da proliferação de testemunhos e de evidências documentais como os
vídeos analisados neste artigo. Um documento tomado de modo acidental,
inconscientemente, que vaza (este vazamento das mídias digitais que por vezes parece obra
de um autômato, sem autor, sem sujeito, uma imagem que simplesmente aparece, uma
operação que parece obra não de um eu mas de um isso). A violência ocultada que insiste em
aparecer.
Neste registro, temos a presença das duas acepções de trauma: o choque violento
contra o corpo e a inscrição em imagem de uma entre tantas violências, presentes e passadas,
contra a população pobre e negra no Brasil. Típico exemplo de memória traumática: ainda
ocultada, não articulada no simbólico e no imaginário, constantemente retornando de modo
abrupto e violento – este vídeo é um exemplo claro.
Veja-se o caso brasileiro, com sua incapacidade crônica de inscrever sua longa e
terrível história de violências, da escravidão à última ditadura, às histórias do
Amarildos de nosso presente. Esse silêncio nos condena a repetir sem trégua a
violência iniciada pelo ciclo colonial (SELIGMANN-SILVA, 2015).
A abolição de distância que é marca formal deste vídeo remete ainda à ausência de
distância temporal deste fato que compõe as “atualidades” e não a história. Enquanto
documento, insere-se em uma batalha de discursos vigente hoje que engloba inclusive o ato
de nomear o acontecimento, no sentido amplo e forte, ao qual este fato se vincula. Grupos
ativistas de direitos humanos e em combate ao racismo falam de genocídio contra a
população negra, tal a amplitude da violência contra negros que moram na periferia (SILVA
e DARA, 2015). Isto é: está em andamento um desastre de proporções históricas, um
acontecimento – interligado ao histórico de violência nas periferias brasileiras17. Neste
prisma, o vídeo que captura a execução de Alan é uma verdade lacunar, aguda e reveladora
sobre o horror da vida do morador de periferia em 2015.
O Holocausto é um fato histórico inquestionável. Aconteceu e foi uma política de
Estado. Negar sua ocorrência inclusive é crime em alguns países. É ético ser espectador das
17
Uma tentativa de dar visibilidade e discutir o tema da violência e dos excessos da política de segurança
pública encontra-se no livro recém-lançado Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua
superação (DUNKER, KEHL, CAPRIGLIONE, et. al., 2015).
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Referências
_____________. “Estrutura da notícia”. In: Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999.
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